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Relatório da Comissão de defesa dos direitos Humanos e Cidadania

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Relatório da Comissão de defesa dos direitos Humanos e Cidadania

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RelatóRio daComissão de

defesa dos diReitos Humanos e

Cidadania | aleRjDezembro De 2014

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PubliCaçãofiCHa téCniCa

CoordenaçãoRoberto P. Krukoski Gevaerd Renata Souza

TextosBruno VillaRenata SouzaRoberto P. Krukoski GevaerdRossana TavaresTomás Ramos

RevisãoMaíra Contrucci Jamel

Diagramação e ArteEvlen Lauer

FotografiasLeon DinizRoberto P. Krukoski GevaerdMídia NinjaRenata Souza

Fotos de CapaAntônio FrancoBira CarvalhoMídia Ninja

ImpressãoGráfica Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

DEZEMBRO DE 2014

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Comissão de defesa dos diReitos Humanos e Cidadania | aleRj

Composição: 2014

PresidênciaDeputado Estadual Marcelo Freixo

Vice-PresidênciaDeputado Jânio Mendes

Membros Titulares:Deputado Iranildo CamposDeputado Flávio BolsonaroDeputada Inês Pandeló

Equipe Técnica:Roberto P. Krukoski GevaerdMarielle FrancoSidney TellesTomas RamosDejany SantosAna Marcela TerraMichelle Lacerda

Estagiários: Natália Figueiredo (Direito)Julia Igreja (Serviço Social)Vinícius Melo (Direito)

Contribuição da equipedo Mandato Deputado Estadual Marcelo Freixo

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ÍndiCe aPResentação vi

1 . o mal-estaR da demoCRaCia 9

Justiça para Rafael Braga 13

As jornadas de junho e o Estado de exceção:legado autoritário da FIFA ou permanência histórica? 15

2. a neCessidade de avançaRPaRa um estado desmilitaRizado 19

2.1. UMA VIA DE MãO DUPLA: MORTE DA E PELA POLíCIA 22

DESMILITARIZAçãO E SEGURANçA PúBLICA 24Por: João Trajano Sento-Sé

2.2. ENTRE A BAIxADA E O SUMARé:BANALIZAçãO DA MORTE DA JUVENTUDE NEGRA 27

2.3. CASO CLáUDIA SILVA E A INFELIZREAFIRMAçãO DOS AUTOS DE RESISTêNCIA 29

2.4. CASO ACARI 31

2.5. MILíCIAS E O ESTADO LEILOADO 32

2.6. CASO NITERóI 34

Arbitrariedades no Prédio da Caixa em Niterói 35

2.7. MARé: PACIFICAçãO E/OU DOMESTICAçãO MILITARIZADA? 37Por: Marielle Franco e Renata Souza

3. “não vamos esqueCeR!” 42

A tortura ontem e hoje 42

50 anos do Golpe Militar – vidas, liberdades e identidades subtraídas 45

A justiça da transação e a (não) ruptura na lutapelo direito à memória, à verdade e à justiça 48Por: Nadine Borges

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3.1. RACISMO PENAL E A BANALIZAçãO DA PRISãO PROVISóRIA: 53

“Eu fui vítima de racismo” 58

“Me trataram como animal” 60

Racismo institucional, justiça criminal e genocídio da Juventude Negra 62Por: Bruno Cândido

3.2. PRINCIPAIS DENúNCIAS DO SISTEMA PENITENCIáRIODO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 67

3.3. O SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO RIO EM 2014 72Por: Mecanismo de Prevenção e Combateà Tortura do Estado do Rio de Janeiro

4. luta Pelo diReito À Cidade 75

4.1. A MORADIA COMO DIREITO: UM PROJETO DE CIDADE EM DISPUTA 76

Violações em reintegração de posse na Favela da Telerj 79

4.2. VILA AUTóDROMO: UMA hISTóRIA DE LUTAE RESISTêNCIA PELO DIRETO à MORADIA 82

Vila Autódromo em uma corrida desleal 84

4.3. A LUTA PELO DIREITO à MORADIA PóS-TRAGéDIA NA REGIãO SERRANA 86

Desabrigados e abandonados na Região Serrana 88

4.4. OCUPA Dh NO MORRO DO BOREL 91

Morro do Borel ainda enfrenta a falta de água, de Segurança e de Saúde 93

4.5. CéLIO DE BARROS E JúLIO DELAMARE: PARA qUEM? 95

Parque Aquático Júlio Delamare à deriva 97

A luta de Vila Autódromo 98

Impactos Sociais das Transformações Urbanasna área Portuária em Função do Projeto Porto Maravilha 101Por: Isabel Cristina da Costa Cardoso

Bairro do Caju 106

questões e violações relevantes identificadas por moradores 106

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aPResentaçãoBem-vindo ao relatório anual da Comissão de Defesa dos Direitos humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (CDDhC Alerj). Neste ano, 2014, a ideia de reivindicar o direito à cidade como tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização, ou seja, sobre o modo como nossas cidades são feitas e refeitas ganhou ainda mais força.

As manifestações iniciadas no ano anterior ainda ecoam sobre o cotidiano de nosso país e principalmente no Estado do Rio de Janeiro. De que maneira as diversas expressões deste descontentamento irão alterar o cenário social e cultural ainda não é possível responder, mas estamos certos de que a crise de representatividade dos governos e governantes torna criteriosa a necessidade de pensar e debater novas formas de representação.

Assim, em um ano marcado pela forte simbologia dos 50 anos do golpe militar, é de chamar atenção a ampliação das ações no campo penal, com forte ruptura das garantias funda-mentais trazidas no texto constitucional brasileiro e, pior, sem o desmonte das estruturas de representação e justiça. O episódio da prisão dos 23 ativistas na véspera da final da Copa do Mundo muito se assemelha com o que David harvey denomina como sendo uma “de-mocracia totalitária”.

é em função da gravidade desse fato que invertemos a tradicional ordem dos temas apre-sentados nos relatórios anuais da CDDhC Alerj, abordando no primeiro bloco o mal-estar da democracia, onde a prática adotada pelo sistema de justiça (Polícias Militar e Civil, Ministério Público e Tribunal de Justiça) rompe com toda normatividade no campo penal.

Das novas violações às velhas práticas que usam a “guerra às drogas ilícitas” como pretexto, o segundo bloco apresenta em números e casos emblemáticos que a opção pelo militarismo do Poder Executivo fluminense nas últimas décadas precisa ser revista. Em 2013 foram regis-trados 50.806 homicídios, sendo 4.745 só no Estado do Rio de Janeiro, ficando atrás apenas da Bahia em números absolutos, segundo os dados do 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A pesquisa revela ainda que o número de policiais mortos foi de 490 no ano passa-do, chegando ao marco de 1.170 mortes desde 2009. O Estado onde mais policiais foram mortos, assim como em 2012, foi o Rio de Janeiro (104). A resposta à barbárie não pode ser mais barbárie e sim a aposta em novos marcos civilizatórios demarcados pela tolerância, pela pluralidade e pela justiça social.

Na semana de fechamento desta edição, vivenciamos a morte de cinco polícias e do cabo do Exército Michel Mikami , de 21 anos, no Complexo da Maré. Somente no Estado do Rio, em média nove policiais militares foram assassinados por mês, em 2014. Até a última semana de novembro, 103 trabalhadores da segurança haviam sido mortos. Uma realidade insana, no qual o discurso fácil contra os direitos humanos, como se segurança e policia estivessem de um lado e os “ direitos humanos” do outro, só mascara as más condições de trabalho e da segurança dos policiais militares no Estado, a falta de valorização de suas carreiras, com ausência de bons salários e um a formação adequada à defesa da cidadania , que somente poderá ser garantida com mais democracia dentro da corporação.

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Este cenário reafirma a urgência de nós ampliarmos o diálogo com toda a sociedade sobre esta crise. A resposta à barbárie não pode ser mais barbárie, e sim a aposta em novos marcos civilizatórios demarcados pela tolerância, pela pluralidade e pela justiça social.

Nesse sentido, há uma raiz histórica que precisa ser superada. Ao fazer um paralelo entre a tortura de ontem, oriunda do Estado militar do golpe de 64, e a tortura de hoje, para além dos números de genocídio que vivenciamos, resiste como consequência uma segunda vertente da criminalização da pobreza. O terceiro bloco, além de fazer um resgate do pe-ríodo militar e a necessidade de continuar lutando por uma justiça de transição, aborda a banalização da prisão privosória e a sua interface com o racismo institucionalizado no Estado brasileiro, bem como as principais violações e denúncias recebidas pela CDDhC Alerj no sistema prisional e socioeducativo.

Para encerrar esse balanço da atuação da CDDhC Alerj, as violações do direto à cidade no contexto do modelo cidade-empresa, no qual o interesse privado se sobrepõe ao interesse público na atuação estatal, tiveram na luta pelo direito à moradia adequada grande cen-tralidade. Superando a limitação que interpreta direito à moradia como sinônimo de casa própria, a resistência dos moradores de Vila Autódromo em deixar a comunidade, a espera dos moradores da região serrana por moradia digna três anos após os desastres, a falta de serviços básicos de qualidade no Morro do Borel e a ocupação do terreno abandonado da Telerj fazem do quarto bloco exemplos, dentre tantos outros, de que as cidades não podem ser regidas pelo mercado imobiliário.

Para contribuir nesse balanço e dar voz aos grupos e pessoas atingidas pelas contradições apontadas neste relatório, em cada um dos quatro blocos, as descrições e ações da CDDhC são intercaladas com entrevistas de vítimas da omissão ou dos abusos cometidos pelo Esta-do e de artigos de parceiros que multiplicam nossa reflexão sobre esses diversos temas. As-sim, levando em consideração o aspecto segurança, diferente dos outros temas abordados neste relatório, o quarto capítulo permite que os casos emblemáticos aqui abordados sejam ricos em depoimentos e vídeos de moradores e militantes.

Esperando que esse material seja de grande valia na reflexão de nossas práticas, mais uma vez agradecemos ao apoio de todas as demais instituições públicas, organizações da so-ciedade civil, movimentos sociais, cidadãs e cidadãos que contribuíram para o trabalho da CDDhC ao longo de 2014.

dePutado estadual maRCelo fReixoPresidente CDDhC Alerj 2014

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1 . o mal-estaR da demoCRaCiaA forma como a Polícia Civil e o Poder Ju-diciário do Rio de Janeiro conduziram o inquérito que resultou no indiciamento de 23 ativistas em julho de 2014 pelo crime de formação de quadrilha armada é uma grave afronta ao Estado Democrático de Direito, e, não à toa, foi repudiada por juristas e entidades de defesa dos Direitos humanos em todo o país. A Operação Fire Wall foi desencadeada pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) no dia 12 de julho, véspera da final da Copa do Mundo, para cumprir mandados de prisão de acusados por envolvimento em atos de

vandalismo ocorridos em protestos desde junho de 2013.

Nos autos do processo contra os 23 ativistas supostamente envolvidos em atos violentos durante manifestações, alguns detalhes chamam atenção e lembram até expressões usadas em investigações da ditadura mili-tar. Em determinado momento, o inquérito descreve o comportamento de uma das ati-vistas da seguinte forma: “tenta disseminar suas ideias, tendo inclusive, conseguido re-unir cerca de quinze pessoas” e “questionar a ordem vigente”.

 

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Vale destacar que o depoimento de uma testemunha que, segundo o inquérito po-licial, se apresentou por vontade própria à Delegacia de Repressão a Crimes contra In-formática fundamentou a denúncia contra os 23 ativistas acusados de associação para a prática de vários crimes em protestos no Estado. Se algum dos ativistas, após inves-tigações transparentes, for julgado culpado por algum delito, ele deve ser responsabili-zado. Mas todo o processo precisa ocorrer dentro dos limites legais, respeitando todas as garantias constitucionais. Mas vemos uma atuação típica de uma polícia política, cujo objetivo é minar a legitimidade de to-dos os movimentos sociais, não apenas da-queles acusados de praticar atos violentos. Manifestar-se é um exercício de cidadania.

No episódio mencionado, a lista de viola-ções1 começa com as investigações da Dele-gacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI). Os delitos que cada um dos 23 indi-ciados teria praticado não foram individua-lizados e não foram apresentadas provas concretas sobre eles.

Pressupostos essenciais para proteger os cidadãos dos abusos cometidos pelo Esta-do, a presunção da inocência e direito de defesa foram violados. Ao contrário da imprensa, os advogados do grupo não ti-veram acesso integral ao inquérito. Nem o desembargador da 7ª Câmara Criminal, Siro Darlan, responsável por revogar as prisões, obteve o documento dentro do prazo legal, considerando que os 23 ativistas acusados de participarem de protestos violentos no último ano “não representam perigo a or-dem pública”.

Os problemas persistiram após o inquérito ser entregue ao Ministério Público. Como noticiou o jornalista Lucas Vettorazzo, da Folha de São Paulo, o promotor Luís Otávio Figueira Lopes, da 26ª Promotoria de Inves-tigação Criminal, levou apenas duas horas para analisar o documento de cerca de duas

mil páginas, antes de enviá-lo ao Tribunal de Justiça. Se ele realmente se deu o traba-lho de ler o material, o promotor consumiu impressionantes 16 páginas por minuto.

O cenário não é novo. Reivindicações legí-timas e urgentes, como o fim do aumento da passagem de ônibus, a abertura da caixa-preta dos transportes, a reforma política e a defesa da educação pública, por exemplo, foram tratadas como casos de polícia desde o princípio. Em vez do diálogo, o poder pú-blico lançou mão da força.

Nesse sentido, é importante mencionar que a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro também não contribuiu efetivamente com as demandas das ruas, pelo contrário, a Lei 6.528/13 (Lei das Máscaras), aprovada pela maioria dos deputados, em 10 de setem-bro, acelerou o processo de criminalização das manifestações populares. A aprovação da lei seguiu a tendência inaugurada pela decisão da 27ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro, que permitiu que mani-festantes mascarados pudessem ser identi-ficados criminalmente, mesmo inexistindo fundada suspeita de prática de infração penal. Isto significa que os policiais passa-ram a ter a autorização de conduzir coerci-tivamente para delegacia, com a justifica-tiva de consulta de antecedentes criminais, identificação datiloscópica e fotográfica, os manifestantes que tenham o rosto coberto por máscara, lenço ou afins, mesmo com identificação civil.

Apesar de a lei vir com a justificativa de re-gulação do direito à manifestação, previsto no artigo 23 da Constituição Estadual, tal normativa constitui-se como um flagrante retrocesso no que diz respeito a valores democráticos. Isto porque, primeiramen-te, a detenção para averiguação, que é o que vem tomando lugar com a aplicação da Lei 6.528, criminaliza de forma ampla o exercício do direito à reunião e à liber-dade de expressão, ao presumir que todos

 

1. Vale lembrar que ao longo de 2013 as práticas de

violência contra manifestantes e repressão da atuação de

jornalistas e comunicadores sociais, por exemplo,

evidentemente não se adéquam aos parâmetros internacionais

para a matéria. Como exemplo de práticas estatais contrárias ao corpus iuris internacionais,

tivemos a criação da Comissão Especial de Investigação

de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas (CEIV),

pelo Estado do Rio de Janeiro. A Comissão, criada com poderes

investigatórios como o de impor a quebra de sigilo telefônico e com primazia de investigação

sobre outros órgãos, chegou a ser revogada, após denúncias

da sociedade civil acerca da sua inconstitucionalidade.

Entretanto, o Estado continua criando novas figuras

institucionais controversas, como os recentes tribunais-relâmpagos

em São Paulo, criados para garantir a prisão provisória de manifestantes supostamente

envolvidos em delitos durantes os protestos, mas que, porém,

ao valorizar a celeridade em detrimento de uma investigação

séria, podem vir a representar uma grave fonte de violações e

abusos.

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os manifestantes que cubram os rostos o façam necessariamente porque pretendem cometer crimes; na verdade, muitas vezes, o uso da máscara impõe-se como prote-ção contra o efeito das armas menos letais (armamento antidistúrbios), tão frequen-temente utilizadas de maneira arbitrária e abusiva pela polícia.

A restrição ao uso das máscaras é, portan-to, medida desproporcional que importa em séria restrição ao direito à reunião, através de uma regulação que impõe uma limitação para além do que se co-loca como legal pelos parâmetros nacio-nais e internacionais. Ademais, o uso de máscaras não impede, de maneira algu-ma, a identificação do manifestante, já que a autoridade policial pode cobrar-lhe a apresentação do registro civil, além de a Constituição garantir que o civilmente identificado não precisará ser submetido à identificação criminal.

“A criminalização da liberdade de expressão durante os protestos se apresenta pela tratativa penal que os manifestantes vêm recebendo frente aos seus pleitos. Ao invés do diálogo, da facilitação e segurança das mani-festações e do respeito às garantias fundamentais da liberdade de expres-são, liberdade de reunião e associação pacíficas, o Estado vem optando cons-tantemente pela via repressiva e crimi-nalizante. Grande parte dos detidos durante os protestos foi enquadrada nas delegacias em artigos do Código Penal e de outras leis penais, muitas vezes artigos e leis que são flagrante-mente inadequadas para lidar com os protestos sociais. Os principais tipos penais que foram aplicados pela polí-cia em todo o país contra os manifes-tantes foram a formação de quadrilha (associação criminosa), dano ambien-tal, dano ao patrimônio público, desa-cato, incêndio, ato obsceno, posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, além de casos em que foi apli-cada a Lei de Segurança Nacional. ”2

Ainda no tocante a legalidade dos proce-dimentos adotados pelo sistema de justiça do Estado do Rio de Janeiro, o depoimen-to, portanto, daqueles que presenciaram a suposta prática do delito é essencial para a caracterização do flagrante. Levan-tamento feito junto às organizações que acompanharam as inúmeras detenções ao longo das manifestações apurou que

em 76% dos casos a única testemunha do caso era policial militar, policial civil ou guardas municipais.

Além disso, um dos tipos de flagrante re-conhecidos pela legislação brasileira é o flagrante presumido ou ficto, que se carac-teriza pela situação em que o agente é sur-preendido com objetos ou documentos que o liguem à prática de uma infração penal, sem que tenha sido perseguido. Um dos ca-sos mais emblemáticos nesse sentido é o do morador de rua, Rafael Braga Vieira, que se encontra preso desde o dia 20 de junho de 2013.

No referido dia, marcada por uma grande manifestação ocorrida na Av. Presidente Vargas em direção à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro a Polícia Militar levou Ra-fael Braga Vieira para a sede policial, ale-gando que este portava artigos explosivos. Deve-se ressaltar que os policiais alegam que este carregava uma mochila, fato este contestado pelo acusado.

Rafael, que é morador de rua, possuía ma-teriais para higiene do local onde pretendia dormir, sendo autuado em flagrante delito por conta de uma garrafa de água sanitária e outra de álcool, além de uma vassoura. Rafael foi encaminhado ao presídio de Ja-peri. Foi realizada sua denúncia em 25 de junho de 2013, tendo como as únicas tes-temunhas arroladas pela acusação policiais. Faz-se premente ressaltar que no Brasil, apesar da ampla prova de ilegalidade em diversas detenções em manifestações e da notoriedade de abusos cometidos pelos mesmos, existe a presunção de legitimi-dade de atos praticados por policiais. Sua prisão foi convertida em prisão preventiva para “manutenção da ordem pública”, co-locando sobre ele condutas genéricas sem nenhuma forma de prova de que de fato este estaria usando tais líquidos para coisa diversa que a higienização de seu lugar de dormida.

Todo o inquérito se baseia na existência de duas garrafas plásticas sob a posse de Rafael, cujo intuito de utilização é supos-to pelos responsáveis pelas investigações, sem nenhum outro indício, sendo inclusi-ve colocado no laudo técnico que ambas possuíam aptidão mínima para funcionar como material incendiário. No dia 23 de setembro foi realizado um pedido de revo-gação de prisão preventiva de Rafael pela Defensoria Pública, julgado improcedente pelo Juiz da 32ª Vara Criminal no dia 27 do

2. Relatório apresentado durante o 150ª período ordinário de sessões da Comissão Interamericana de Direitos humanos (Washington, DC, 28 de março de 2014) pelas entidades: Artigo 19 (Brasil), Comissão de Direitos humanos da Câmara Municipal de Porto Alegre (Brasil), Conectas Direitos humanos (Brasil), Articulação Nacional de Comitês Populares (Brasil), Instituto de Defensores de Direitos humanos (Brasil), United Rede Internacional de Direitos humanos (Estados Unidos da América), quilombo xis - Ação Comunitária Cultural (Brasil), Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) e Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (Brasil)

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mesmo mês. Apenas em outubro de 2014 Rafael, já condenado, recebeu progressão de regime, cumprindo então a pena em re-gime semiaberto.

Portanto, diante dos graves fatos inicia-dos em 2013 e aprofundados em 2014, a Comissão de Defesa dos Direitos humanos reafirma em suas ações que a luta política é pedagógica, baseada nas mobilizações so-ciais, no diálogo e no respeito à dignidade humana, defendendo como sua principal

missão dar voz aos muitas vezes oprimi-dos. Não há qualquer concordância com qualquer grupo que use a violência como método. No entanto, a democracia é um princípio inegociável. Não podemos admi-tir que o Estado, por motivações políticas, use seu aparato institucional para atacar a liberdade e os direitos civis, cuja reconquista recente foi tão difícil. A criminalização dos movimentos sociais e da pobreza não pode ser vista como algo natural em um Estado democrático de direito.

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justiça PaRa Rafael bRagaO morador de rua Rafael Braga Vieira, 26 anos, foi o primeiro condenado devido às manifes-tações de junho de 2013. De uma família de sete irmãos, o rapaz que morava na rua há 13 anos desconhecia as motivações políticas que levaram as pessoas a se manifestarem naquele momento e sequer sabia os nomes do então governador e do prefeito do Rio. A sentença de cinco anos de prisão em regime fechado foi dada em primeira instância, sob a alegação de portar material explosivo e incendiário durante o ato do dia 20 de junho, que levou mais de um milhão de pessoas às ruas. O Tribunal de Justiça julgou, em agosto de 2014, o recurso de apelação de Rafael e reduziu a pena em dois meses.

Em outubro deste ano, a Vara de Execuções Penais do Rio deferiu o pedido dos advogados do Instituto de Defensores de Direitos humanos e concedeu a Rafael o direito de trabalhar fora do complexo prisional de Bangu. Desde então, Rafael é auxiliar de serviços gerais e cumpre a pena em regime semiaberto no Instituto Penal Edgard Costa, em Niterói. Rafael reafirma sua inocência ao relatar que carregava garrafas pet com cloro e Pinho Sol. Eis uma entrevista concedida ainda em 2013.

CDDHC: O que aconteceu quando você foi preso?Rafael Braga: Eles me abordaram, me ba-teram. Antes de sair para trabalhar naquele dia, vi que iria ter uma manifestação porque todo mundo estava reunido na rua e eu fui trabalhar. Eu cato latinha, garrafa e peças antigas na rua. Fico garimpando coisas no Centro do Rio. E quando voltei ao local onde dormia, um casarão abandonado em frente à Delegacia das Crianças, vi duas gar-rafas de cloro e uma de Pinho Sol, lacrada. Eu peguei para dar para uma tia que mora em outro casarão. quando eu saia com es-tas duas garrafas, alguns policiais me cha-

maram, já chegaram me batendo e pergun-taram “O que é isto aí na sua mão?”. Eles me levaram para delegacia e falaram que eu estava preso. Na delegacia, vi que a garrafa de Pinho Sol estava pela metade. Não sei dizer se eles colocaram gasolina nela. Eles tinham colocado um pedaço de pano na boca da garrafa.

CDDHC: Você já conhecia estes policiais? Já ouviu falar de coquetel molotov?Rafael: Não, mas eles falam que me conhe-cem. Nunca ouvi falar disso (coquetel mo-lotov) na minha vida. Não sei nem o que é este negócio de protestar. Não estava fa-

Rafael cumpre a pena em regime semiaberto no Instituto Penal Edgard Costa, em NiteróiLe

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zendo bagunça nenhuma. Eu estava voltan-do do trabalho.

CDDHC: Você se lembra o que estava acontecendo na hora?Rafael: Eu assisti a correria que estava acontecendo lá. Só nessa rua onde eu esta-va não estava tendo tumulto. Eu assisti, mas eu não me envolvi com nada.

CDDHC: E estes protestos, o que você acha deles?Rafael: Eu não parava muito perto das ma-nifestações. Nunca tinha ido para outra an-tes. A primeira vez que vi de perto foi quan-do fui preso.

CDDHC: Você sabe o por quê de estas pessoas estarem se manifestando?Rafael: Não sei.

CDDHC: Qual é o nome do governador do Rio de Janeiro?Rafael: Não sei dizer … Sérgio álvares … Sérgio Cabral?

CDDHC: E do prefeito do Rio de Janei-ro?Rafael: Também não sei.

CDDHC: Você é o único manifestante que foi condenado. O que acha disso?Rafael:Eu acho que isso não tá certo.

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as joRnadas de junHo e o estado de exCeção: legado autoRitáRio da fifa ou PeRmanênCia HistóRiCa?Por Fernanda Vieira1

O ano de 2013 marcou nossas histórias pela capacidade de nos apontar possibilidades de retomada das ruas em nome de mu-danças necessárias na cidade e no campo, com movimentos massivos em luta por mais saúde, educação, transporte, enfim, reivin-dicações clássicas na busca pela efetivação da democracia, logo, do acesso aos direitos fundamentais.

A resposta estatal, seja municipal, estadual ou federal, acabou por reproduzir a mesma postura historicamente conhecida: um pro-cesso brutal de repressão e violência contra os manifestantes que lutavam por seus di-reitos. De fato, o que se observou foi uma ação coordenada entre os poderes (execu-tivos, legislativos e judiciários) com o apoio necessário da mídia conservadora, na sedi-mentação do imaginário social de que ali se encontravam vândalos e não movimentos legítimos de reivindicação diante da impo-sição de um modelo de desenvolvimento que gesta uma cidade livre para o capital e a interditada para os trabalhadores, uma cidade de exceção.

há que se reconhecer que o estabeleci-mento de uma cidade de exceção não é propriamente um fenômeno novo, faz par-te do desenvolvimento do capitalismo a adoção de lógica de exceção como forma de sedimentação e garantia dos seus inte-resses econômicos. No entanto, o que se percebe contemporaneamente é a escala global de tal fenômeno, interpretado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben como a sedimentação de um Estado de exceção2, o que para outros autores se configuraria

em um Estado Penal, conforme Loic Wac-quant.

O que caracteriza o atual estágio do capita-lismo de cunho neoliberal é a escala global das medidas de controle social, ampliando-se as ações no campo penal, com rupturas com as garantias fundamentais trazidas nos textos constitucionais, sem que haja neces-sidade de desmonte das estruturas de re-presentação, como parlamentos, ou mesmo o estabelecimento de um Estado totalitário, não sem razão David harvey denomina tal período como sendo das "democracias to-talitárias".

Os exemplos que se ampliam a partir de 11 de setembro são cada vez mais visíveis: Guantánamo e Abu Ghraib, modelos in-quisitoriais de prisão, tendo a tortura legi-timada como método de interrogatório; a adoção da diretiva de retorno pela União Europeia contra o imigrante indocumen-tado (geralmente negro e árabe) que per-mite a detenção sem processo por quase dois anos com a deportação e proibição de entrada no território dos Estados membros são demonstrativos de que a hegemonia do direito penal do inimigo parece ter encon-trado um terreno fértil para sua execução3.

No Brasil, não tem sido diferente. Se nossos inimigos ainda não são vistos como terroris-tas, o tratamento penal que lhes é imposto os alça a esse encargo, vide o Complexo Pe-nitenciário de Pedrinhas.

Portanto, podemos extrair a partir das jorna-das a sedimentação do Estado de exceção

1. Advogada, Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora e integrante da entidade Mariana Crioula.

2. Para Agamben o estado de exceção se apresenta cada vez mais como uma regra em nossa vida, tendo por pressuposto a flexibilização das garantias constitucionais pelo intérprete judicial, gestando em determinados campos, territórios, a possibilidade de sobrestamento do direito. As ações das UPPs nas favelas cariocas parecem explicar com perfeição a concepção do autor acerca da sedimentação de um estado de exceção.

3. Não é pouco significativo que os discursos dos candidatos a deputado estadual de múltiplos partidos apresentavam como plataforma a redução da idade penal, ainda que não tivessem competência para a matéria, demonstrando o quão o discurso punitivo seduz ainda que de forma irracional e alienada.

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como um modelo de gestão no campo da segurança, eis o legado da FIFA! Diversas rupturas com os marcos constitucionais e normas internacionais no campo dos direi-tos humanos, garantidoras da liberdade de expressão, foram detectadas nas operações policiais de controle das manifestações, tais como: a não identificação dos agentes públi-cos, que receberam no RJ uma identificação alfanumérica, dificultando a identificação do agente que cometia abuso de poder (e não foram poucos); uso abusivo de armas menos letais e letais; a detenção indiscriminada, in-cluindo pessoas que estavam sem máscara mas portavam vinagre, na medida em que fora divulgado que auxiliava no caso de spray de pimenta; a vigilância abusiva (com quebra de sigilo) nas redes sociais e de aparelhos de comunicação, como celulares e o whatsA-pp; infiltração de policiais nas manifestações com o objetivo de causarem tumulto e possi-bilitar as detenções e prisões4.

Dentre as práticas abissais adotadas pela polícia carioca, que rompem com toda nor-matividade no campo penal, está a criação de um registro de ocorrência (R.O) deno-minado: MEDIDA ASSECURATóRIA DE DI-REITO FUTURO. qualquer pessoa que fosse detida nas manifestações e não estivessem praticado nenhuma ação caracterizada em qualquer tipo penal, ainda assim era levada à delegacia e teria seus dados todos regis-trados em um R.O. (sob o título acima des-crito) como forma de garantir um banco de dados para a polícia mapear quem esteve nas passeatas. Mesmo os advogados que acompanhavam os depoimentos dos deti-dos figuraram no R.O. como envolvidos.

Tal medida é reveladora do quão autoritária foi a prática de controle policial, autorizada pelo Executivo e legitimada pelo Judiciário. O saldo da operação militar de controle, de acordo com o relatório do Artigo 19, de ja-neiro de 2013 a Dezembro de 2013, foi: 8 mortes, 837 pessoas feridas, 2608 pessoas detidas, 117 jornalistas agredidos ou feri-dos e 10 jornalistas detidos5.

Para o jurista português José Gomes Cano-tilho (2008)6, torna-se mais visível a partir do 11 de setembro americano o avanço em escala global dos discursos antigarantistas que colocam em questão a manutenção de determinadas garantias constitucionais no campo penal e processual penal. Para os detratores dos marcos constitucionais tanto a Constituição, quanto suas garantias, são responsáveis pela desproporcionalidade no combate à criminalidade, justificando-se

assim a flexibilização de tais garantias em nome da ordem e da segurança.

Não é pouco significativo que se perceba o crescimento da ampliação punitiva, logo do direito penal, com regras diferenciadas para determinados agentes que cometam o ilícito, ou como nos fala Canotilho: um direito penal contra o inimigo, responsável por uma modificação doutrinária rompendo com os princípios do campo penal, como a:

(…) centralidade do paradigma do crime de perigo indirecto, de forma a possibilitar a incriminação de con-dutas que, em abstracto, se revelam inidóneas e desadequadas para criar aquelas situações de perigosidade le-gitimadoras de antecipação de inter-venção penal; (…) inversão do onus probandi,atenuando a presunção de inocência do arguido; (…) radicaliza-ção da pena de prisão nos seus limi-tes máximos e mínimos, e intensifi-cação do rigor repressivo nas várias modalidades de execução de penas, acompanhada de bloqueio a políticas criminais alternativas (CANOTILhO, 2008, 236).

Essa subversão da ordem democrática no pe-ríodo das jornadas, que apontou para uma flexibilização das garantias fundamentais, foi amplamente reforçada por setores so-ciais, como a larga campanha midiática da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), da Federação Nacional dos Jor-nalistas (Fenaj), da Associação dos Repórte-res Fotográficos e Cinematográficos do Rio (Arfoc), que lançaram documentos após a trágica morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, da TV Bandeirantes, pedindo um contra-ataque do Estado, ao ponto de re-quererem "(...) que as autoridades de segu-rança do Estado do Rio de Janeiro instaurem imediatamente uma investigação criminal para apurar quem defende, financia e presta assessoria jurídica a este grupo de crimino-sos, hoje assassinos, intitulados black blocs, que agridem e matam jornalista e praticam uma série de atos de vandalismos contra o patrimônio público e privado”.

Tal requerimento foi prontamente atendi-do com a instauração do inquérito policial n° 218-01646/2013 pela Delegacia de Re-pressão a Crimes de Informática (DRCI), que se transformou no processo criminal nº0229018-262013.8.19.0001, em trâmi-te na 27ª Vara Criminal, marcado de con-tradições, eivado de nulidades, com amplo

4. De fato, a atuação da polícia carioca em

muito lembra a ação da Geheime Staatspolizei (polícia secreta do Estado), mais conhecida

pela acrônimo Gestapo. Polícia criada em 1933 e que teve um

papel preponderante para a sustentação do regime nazista.

Conhecida por seus métodos violentos de captura, deteve

poderes de investigação e execução, tendo a tortura como

uma prática de interrogatório. Infiltrava seus agentes nas

organizações sindicais e insuflava o movimento reivindicatório

e posteriormente desaparecia com os sindicalistas que apresentavam liderança.

Detinham sem motivação, como forma de mapeamento dos

indivíduos. A forma como se estruturou a Gestapo traz muitas referências para o que se viu no decorrer das jornadas, incluindo

a infiltração de agentes, tanto nas passeatas, como em

determinadas organizações. 5. ARTIGO 19 BRASIL.

Relatório protestos no Brasil 2013. Pág. 15.

6. CANOTILhO, José J. G. Estudos sobre direitos

fundamentais. Coimbra, Coimbra editora, 2008.

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acesso a mídia e restrição aos advogados7, em que a própria assessoria jurídica, uma ga-rantia constitucional derivada do princípio da presunção de inocência, será criminalizada:

Muitos advogados alegaram na im-prensa que estavam sendo investi-gados por prestar assistência jurídica gratuita aos manifestantes violentos que são presos. Ocorre que apenas aqueles que permaneceram com os manifestantes, em tempo inte-gral, nos protestos e movimentos de ocupação de atos violentos, sem recebimento de honorários, e os que convocaram os manifestan-tes para ocupações demonstraram atitudes suspeitas e contrárias ao estabelecido no Código de Ética da OAB ao fomentarem práticas de crimes (inquérito nº 218-01646/2013, anexo 2 – grifo no original).

O cenário de barbarização que se assistiu nas jornadas não nos parece uma ação congelada no tempo. Ela impôs um ethos nas práticas do campo da segurança, que já possui uma formação militarizada e de rebaixamento da cidadania, em especial se esta é negra e/ou pobre, moradora de fave-

la. Não sem razão, Loic Wacquant (2012)8 ao analisar a gestão penal na ordem neo-liberal nos apresenta um cenário de con-trole militarizado das questões sociais cada vez mais visível como forma de contenção dessa massa humana que será rebaixada pelo capital. As inseguranças sociais, deri-vadas do próprio modelo econômico, serão respondidas por meio de uma ampliação penal, tendo a prisão como resposta para todas as mazelas sociais.9

Não são ventos novos e democráticos os trazidos pelos que defendem uma amplia-ção punitiva com ampliação do tempo de pena, com redução da maioridade penal. Trata-se de um retrocesso autoritário e vio-lento que marca e marcou a nossa forma-ção social.

A formação de uma elite oligárquica, que sempre se apresentou como "naturalmente vocacionada" ao poder10, constói uma his-tória marcada de violência cotidiana contra a pobreza e a oposição.

A resposta à barbárie não pode ser mais barbárie e sim a aposta em novos marcos civilizatórios demarcados pela tolerância, pela pluralidade e justiça social.

7. Para Eugênio Raúl Zaffaroni (2007) o desafio diante dessas alterações no campo das garantias reside na ampliação dos indivíduos que em escala global serão entendidos como perigosos, os inimigos do estado, pois nessa perspectiva de recrudescimento punitivo o que se percebe é um rebaixamento do agente capturado pelo sistema penal como um não-ser, alguém destituído de civilidade, um bárbaro. ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007.

8. BATISTA, Vera (org.). Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan, 2012.

9. Wacquant analisa essa ampliação no imaginário social que se traduzirá por mais pena, mais cadeia, derivado desse sentimento de insegurança geral, do medo ampliado pelos discursos conservadores da mídia, sempre atenta em amortecer os sentidos, em nome de uma ordem com maior controle sobre os estratos sociais mais vulneráveis econômicos.

10. Nosso atual congresso nacional espelha essa dimensão com a ampliação das bancadas dos milionários (quase metade), do agronegócio e dos evangélicos.

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2. a neCessidade de avançaR PaRa um estado desmilitaRizadoPartindo da premissa que Segurança Públi-ca é o resultado da articulação de diversas políticas sociais visando a defesa, garantia e promoção da liberdade, nos últimos anos o debate pouco avançou no sentido de su-perar a visão que a política de segurança restringe-se à questão policial e à matéria prisional. Um estado cheio de prisões e re-pleto de policiais não é um estado seguro, muito menos livre.

hoje as estatísticas do país, e em especial do estado do Rio de Janeiro, confirmam que somos governados por um olhar militar que desenha “corredores de segurança” para garantir a circulação das mercadorias, conservar os bairros nobres da metrópole e proteger os trechos escolhidos para inves-timentos. Os resultados são de genocídio. Em 2013 foram registrados 50.806 homi-cídios, sendo 4.745 só no Estado do Rio de Janeiro, ficando atrás apenas da Bahia em números absolutos.

Vale destacar que a lógica do estado mili-tarizado é justificada para garantir a “liber-tação” de comunidades/periferias pobres do jugo dos “traficantes” das selecionadas

drogas tornadas ilícitas. Com efeito, é exa-tamente a proibição a determinadas dro-gas tornadas ilícitas o motor principal da militarização das atividades policiais, seja no Rio de Janeiro, no Brasil, ou em outras partes do mundo.

A “guerra às drogas” não é propriamente uma guerra contra as drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quais-quer outras guerras, é sim uma guerra con-tra pessoas. Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, os marginalizados, os negros, os desprovidos de poder, como os vendedores de drogas do varejo das favelas do Rio de Janeiro, demonizados como “traficantes”, ou aqueles que a eles se assemelham, pela cor da pele, pelas mesmas condições de po-breza e marginalização, pelo local de mora-dia que, conforme o paradigma bélico, não deve ser policiado como os demais locais de moradia, mas sim militarmente “conquista-do” e ocupado1.

Ressalta-se que a militarização das ativida-des policiais não é apenas uma questão de polícias. Não são apenas as polícias que-precisam ser desmilitarizadas. Antes disso,

1. O paradigma bélico, explicitamente retratado na expressão “guerra às drogas”, lida com “inimigos”. Em uma guerra, quem deve “combater” o “inimigo”, deve eliminá-lo. Policiais – militares ou civis – são, assim, formal ou informalmente autorizados e mesmo estimulados, por governantes e por grande parte do conjunto da sociedade, a praticar a violência, a tortura, o extermínio. In. Karam, Maria Lúcia; Relatório CDDhC Alerj 2013.

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3,97% do PIB, é classificada no estudo como “custo social da violência”. Com-pletam os custos da violência no país os R$ 4,9 bilhões para manter as prisões e unidades de cumprimento de medidas socioeducativas e os investimentos go-vernamentais de R$ 61,1 bilhões em se-gurança pública.

Os dados e os gastos com a Segurança Pública que estamos traçando não cor-respondem a um Estado desmilitarizado, o qual devemos almejar. As propostas que tramitam no Congresso Nacional, detentores da responsabilidade de legis-lar sobre esse assunto, apontam para o aprofundamento desse quadro exposto. Nesse sentido, a aprovação da lei comple-mentar (PLC nº 39/20145) que cria o Es-tatuto Geral das Guardas Municipais que amplia os poderes das guardas civis, esten-dendo a elas o poder de polícia e também o porte de armas trata-se de um claro sinal do avanço do Estado policial. O Ministério Público Federal e os comandantes das Polí-cias Militares do país contestam a constitu-cionalidade desta lei. 

Outro debate que pautou as candidaturas à presidência nesta última eleição refere-se ao equívoco da redução da maioridade penal. Na última década, o número de presos no Brasil dobrou. Segundo levan-tamento do Conselho Nacional de Justiça, que levou em conta as pessoas que cum-prem pena em prisão domiciliar, há 712 mil adultos encarcerados no país. Nossa população encarcerada só cresce mas isso não resultou na diminuição da violência, pelo contrário. Isso porque a causa da violência não está relacionada somente à “pena” que será aplicada a quem come-teu um crime, mas a todo o contexto so-cioeconômico do país. Além disso, todos nós sabemos que a prisão não melhora as pessoas nem a sociedade. Em resumo, o encarceramento é uma forma cara de tornar as pessoas piores.

Por isso, precisamos debater outras for-mas de responsabilização, como penas alternativas, mais baratas e mais eficazes – que já estão tendo sucesso em muitos países. Nossa juventude está morrendo. Anualmente, 30 mil jovens entre 15 e 24 anos são vítimas de homicídio (85% são negros e 94% são homens). Somos o segundo país do mundo em número de mortes violentas de jovens. No Rio de Ja-neiro a cada 100 homicídios, 64 são de jovens negros.

é preciso afastar a “militarização ideológi-ca da segurança pública”2, amplamente tolerada e apoiada até mesmo por muitos dos que hoje falam em desmilitarização. A necessária desmilitarização pressupõe uma nova concepção das ideias de segurança e atuação policial que, afastando o domi-nante paradigma bélico, resgate a ideia do policial como agente da paz, cujas tarefas primordiais sejam a de proteger e prestar serviços aos cidadãos. A prevalência dessa nova concepção não depende apenas de transformações internas nas polícias e na formação dos policiais. há de ser, antes de tudo, adotada pela própria sociedade e exi-gida dos governantes.

é necessário superar o estigma que se reproduz nos debates sobre a desmilita-rização no Brasil. Concentrando-se na ação de policiais, especialmente policiais militares, deixa-se intocada a atuação incentivadora do Ministério Público e do Poder Judiciário, de governantes e legis-ladores, da mídia, da sociedade como um todo. Concentrando-se em propostas de mera reestruturação das polícias, silen-ciando quanto à proibição e sua política de “guerra às drogas”, deixa-se intocado o motor principal da militarização das ati-vidades policiais.

Assim, de acordo com os dados da 8ª edi-ção do Anuário Brasileiro de Segurança Pública3, entre 2008 e final de 2012, os policiais brasileiros mataram, em serviço e fora, 11.197 pessoas, uma média de seis por dia. A pesquisa revela ainda que o nú-mero de policiais mortos chegou a 490 no ano passado, chegando ao marco de 1.170 policiais mortos desde 2009, uma média de 1,34 por dia, sendo que 75,3% desse total foram mortos fora de serviço. O estado onde mais policiais foram mor-tos, assim como em 2012, foi o Rio de Janeiro (104).

O documento ainda aponta que as cus-tas para o Brasil é equivalente a 5,4% do Produto Interno Produto (PIB). No ano de 2013, o montante atingiu R$ 258 bi-lhões4. A maior parte deste valor, R$ 114 bilhões, é resultado justamente da perda de capital humano, além disso, entram na conta dos custos da violência R$ 39 milhões de gastos com contratação de serviços de segurança privada, R$ 36 bi-lhões com seguros contra roubos e fur-tos e R$ 3 bilhões com o Sistema Público de Saúde. A soma destas despesas, que chegou a R$ 192 bilhões em 2013, ou

2 A expressão é utilizada pelo Coronel PM (reformado) e

Professor Jorge da Silva em artigo que, publicado em

1996, mantém sua atualidade: “Militarização da segurança

pública e a reforma da polícia”. In BUSTAMANTE, R. et al

(coord.). Ensaios jurídicos: o direito em revista. Rio de

Janeiro: IBAJ, 1996, pp. 497/519.

3. Disponível em http://www.forumseguranca.org.br/storage/

download/8o_anuario_brasileiro_de_seguranca_publica.pdf

4. Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/estudo-

mostra-que-custo-da-violencia-no-brasil-ja-chega-54-do-pib-

14517004#ixzz3IhIFvrgr

5. Essa nova atribuição é uma aberração jurídica na medida

em que a Constituição Federal, em seu artigo 144, enumera

cada um dos órgãos que podem exercer atividades inerentes à segurança pública (incisos I a V), e não inclui neste meio as

Guardas Municipais. Estas, por sua vez, só são mencionadas no parágrafo 8º do mesmo artigo,

que autoriza os Municípios a constituírem guardas municipais, mas delimita bem as atribuições que elas podem ter: a proteção de bens, serviços e instalações municipais e outras atribuições

inerentes ao poder de polícia administrativa.

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Neste contexto, nossos esforços se con-centram em manter nossa juventude viva e no banco da escola – não no banco dos réus. é muito importante sabermos que qualquer pessoa a partir de 12 anos que comete crimes já é responsabilizada, o Es-tatuto da Criança e do Adolescente prevê seis diferentes medidas socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; li-berdade assistida; semiliberdade e inter-nação. A responsabilização aplicada ao jovem e ao adulto que cometem crimes é diferenciada não porque o adolescente não sabe o que está fazendo – até mes-mo uma criança de 10 anos sabe quando faz uma coisa errada – mas sim devido à

condição de desenvolvimento em que ele se encontra e ao que a sociedade quer quando o responsabiliza: possibilitar a ele um recomeço de vida ou fazê-lo sofrer pelos erros cometidos. Devemos optar por um recomeço para nossos jovens.

Nesse capítulo apresentamos alguns casos emblemáticos que passaram pela CDDhC ao longo de 2014 e reafirmam o neces-sário debate sobre a desmilitarização do Estado; 1-Morte de policiais no Estado do Rio de Janeiro; 2 - Chacina da Baixada Flu-minense; 3 – Assassinato da Cláudia Silva; 4 – Operações no Complexo de Acari; 5 – Milícias; 6 – Caso do prédio da Caixa e 7- Ocupação da Maré;

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2.1. uma via de mão duPla:moRte da e Pela PolÍCia Os dados disponibilizados pela 8ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública ajudam a esclarecer uma informação impor-tante; a polícia que mais mata é também a que mais morre. Para cada quatro cidadãos mortos pela polícia em 2013, um policial é assassinado no Brasil. A matemática mostra que nesse ciclo da violência não há vence-dores.

De acordo com especialistas, esses altos números preocupam por configurar “um presságio” de maiores níveis de violência num futuro imediato. Os dados apontam tanto para uma alta letalidade das ações da polícia como para o grande nível de risco ao qual os agentes da lei estão expostos no país. Em 2013, ocorreram ao menos 1.259 homicídios cometidos por policiais e 490

baixas nos quadros das polícias civil e mili-tar em 22 Estados que forneceram dados a pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O pesquisador Ignácio Cano do Laborató-rio de Análise da Violência da UERJ atenta para o fato de que os policiais morrem mais quando estão de folga, em situação mais vulnerável. "quanto mais mortes causadas pela polícia, mais policiais vão ser mortos quando estão trabalhando na segurança privada ou quando são surpreendidos nas áreas onde moram. Isso, por consequên-cia, significa que a polícia vai matar mais depois, entrando num círculo vicioso. Uma lógica de guerra que nunca desapareceu no Brasil, mas algo que temos que combater e tentar manter sob controle".

Gráfico – Vitimização de Policiais (2009-2013)

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6. Cientista político professor do Instituto de Ciências Sociais da UERJ e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência.

Os policiais brasileiros morrem 3 vezes mais fora do serviço do que em serviço. As cau-sas dessa estatística podem ser várias, mas fundamentalmente a questão dos “bicos” é a maior causadora de mortes. é fundamen-tal melhorar as condições salariais para que eles tenham menos necessidades de expor suas vidas ao risco de um trabalho sem con-dições efetivas de segurança.

é preciso considerar que a morte do policial em serviço é mais grave do que a vitimiza-ção fora dela; não pode haver aceitação na-tural à perda da vida de um policial. Nesse sentido, a CDDhC além de se solidarizar com os familiares tem posto sua equipe téc-nica à disposição dos familiares de policiais militares mortos em serviço.

A CDDhC concorda que um Estado no qual se aceita naturalmente que um policial perca sua vida em razão da sua profissão está mui-to próximo da barbárie. é preciso acabar com o estigma que a bandeira dos direitos huma-nos não está a serviço também do corpo po-licial. Defender a desmilitarização é defender a melhoria das condições de formação e tra-balho dos policiais e seus familiares.

A CDDhC atuou nos seguintes casos, em ordem cronológica:

1. Morte da Policial MilitarAlda Rafael Castilho

Em fevereiro de 2014, a policial militar Alda Rafael Castilho, lotada na Unidade de Polí-cia Pacificadora (UPP), morreu e outras três pessoas ficaram feridas após troca de tiros na comunidade Parque Proletário, na Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Município do Rio de Janeiro. Alda tina 27 anos e cursava faculdade de Psicologia, morava na Baixada Fluminense, em Duque de Caxias, com sua mãe, irmã e sobrinha.

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes ao caso:

• Garantiu atendimento psicológico para os familiares no posto de saúde mais próxi-mo de sua residência;

• Articulou o atendimento dos familiares no Núcleo de Defesa dos Direitos humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro;

• Acompanhou os familiares no atendimen-to jurídico junto ao escritório de advocacia particular que assumiu o caso;

2. Morte do Policial MilitarRodrigo Paes Leme

Em março de 2014, o policial militar Rodri-go Paes Leme, 33 anos, foi morto em uma operação na comunidade Nova Brasília, no Conjunto de Favelas do Alemão, após ser surpreendido por suspeitos armados. Em 30 dias foram mortos três policiais no Complexo do Alemão em confrontos ar-mados.

Rodrigo de Souza Paes Leme era Policial Mi-litar há três anos. Ele trabalhou na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Providência e estava na UPP Nova Brasília havia quatro meses. Rodrigo tinha 9 filhos.

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes ao caso:

Atendimento presencial com a última com-panheira de Rodrigo. Foi oferecido assistên-cia psicossocial, mas a mesma estava sendo acompanhada pela corporação, o que não ocorre com as demais 8 mães de seus filhos;

• Foi feito contato com as mães dos filhos do soldado. Algumas mães aceitaram a intermediação da CDDhC para garantir atendimento psicológico próximo a suas residências;

• Uma mãe de um dos filhos pediu revisão do seguro de vida de Rodrigo e foi en-caminhada para o Núcleo de Família da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro;

3. Morte do Policial Militar José Ricardo Valença Moniz

O sargento da PM José Ricardo Valença Mo-niz foi encontrado morto em casa, em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por volta das 10h do dia 11 de julho de 2014. Segundo in-formações dos policiais do 14º BPM (Bangu), ele foi surpreendido por criminosos que efetu-aram os disparos e fugiram do local. O policial era lotado no 2º Comando de Policiamento de área, casado e tinha uma filha de 2 anos e 7 meses.

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes ao caso:

• Atendimento presencial aos irmãos de José Ricardo;

• Solicitação da cópia e acompanhamento do inquérito.

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desmilitaRização e seguRança PúbliCa

1. Cientista político professor do Instituto de Ciências Sociais

da UERJ e pesquisador do Laboratório de Análise da

Violência.

João Trajano Sento-Sé1

Em pesquisa realizada entre os anos de 2009 e 2010 com policiais militares do Rio de Janeiro, 77,9% dos praças, num univer-so de 2267 entrevistados, afirmaram ser fa-voráveis à desmilitarização da Polícia Militar. A mesma pergunta teve entre oficiais a res-posta negativa de 66% entre 109 respon-dentes. Nesse mesmo universo de praças que são maciçamente favoráveis à desmili-tarização, 59,6% consideraram que o mais importante para atuar em favelas é dominar técnicas de confronto armado. A mesma posição teve a adesão de menos da metade dos oficiais, vale dizer, 46% dos responden-tes desse segmento. Num bloco qualitativo da mesma pesquisa, ambos os segmentos, praças e oficiais, julgaram muito importante a utilização de armas pesadas na rotina do trabalho policial. Embora restrita à corpora-ção fluminense, é difícil imaginar que os re-sultados seriam muito diferentes em outros centros.

As duas primeiras impressões frente à apre-sentação desses dados, escolhidos um tanto aleatoriamente entre tantos são: 1) existem na Polícia Militar do Rio de Janeiro ao me-nos duas corporações e a clivagem que as divide é o marco de entrada institucional; 2) há uma grande confusão quando o assun-to é desmilitarização da polícia e o mesmo ator pode defender posturas contraditórias entre si. Ambas as impressões são corretas e ilustram bem uma das razões para termos avançado tão pouco na matéria.

A despeito dos anos em que o imperativo da desmilitarização da segurança públi-ca está no debate público, os avanços são quase nulos. Os desdobramentos desse fracasso se traduzem de diferentes formas, encontrando sua expressão mais dramática nas taxas de letalidade dolosa que se perpe-

tuam, ao longo dos anos, em patamares al-tíssimos. Pior ainda, se perpetuam com uma colaboração expressiva de óbitos perpetra-dos pelas agências de segurança cujo traba-lho deveria ter por principal foco reduzi-las. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2014), as polícias brasileiras foram responsáveis, entre 2009 e 2013, por nada menos do que 11197 mortes. Somen-te em 2013, as forças policiais provocaram em média no Brasil 6 mortes por dia. Por outro lado, nesse mesmo ano 490 policiais foram mortos, o que representa um núme-ro altíssimo. é preciso reconhecer que to-dos, policiais e população, estão perdendo com a perpetuação de modelos arcaicos e ineficazes, além de indefensáveis política e moralmente.

Partir de um lugar comum talvez ajude na definição de um rumo a ser adotado. Su-ponhamos que todos os atores interessa-dos aceitassem como ponto de partida de discussão o conteúdo da PEC 51, proposta de emenda constitucional encaminhada ao Senado e sujeita à apreciação do Legislativo Federal, que introduz um conjunto de mu-danças e qualificações no tratamento do campo da segurança pública. Sabemos que há nessa proposta várias iniciativas e que to-das, sem exceção, são sujeitas a polêmicas. Será que isso representa a impossibilidade de se estabelecer consensos em torno dela? O que há nessa proposta que poderia gerar alguns pontos de convergência que, ainda que precários, nos tire da inércia à que nos autocondenamos?

Não é o caso de discutir aqui ponto a pon-to. O documento é público e está disponível para quem quiser dele tomar ciência. A pro-posta aqui é divisar princípios orientadores que, para além da contenda militarização/

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desmilitarização, possam forjar consensos. Em outras palavras, sugerimos que se olhar-mos algumas de suas formulações à luz dos princípios que as orientam, talvez possamos produzir um consenso básico focado na produção de mudanças urgentes. há, no mínimo, três princípios com tal rendimento.

O primeiro deles é de natureza técnica e in-cide sobre propostas como a instauração do ciclo completo de polícia que, ao menos em tese, tornaria o trabalho policial mais eficaz. é evidente que tal suposição pode não se concretizar na prática, sobretudo se tiver-mos em mente que, em se tratando de um sistema, qualquer ação isolada depende da combinação de uma série de outras inicia-tivas para ter o efeito esperado. A mesma razão que nos levaria a suspeitar da eficácia dessa iniciativa pode e deve ser aventada para seu oposto: por que o ciclo comple-to não impactaria positivamente o trabalho policial? Afinal, ele implica necessariamen-te em redefinição de mandatos, responsa-bilidades e comprometimentos. Dado que lidamos com sérios problemas em rigorosa-mente todas as esferas do sistema de justiça criminal, por que não tentar medidas para redefini-lo como um todo?

As resistências observadas nas corpora-ções policiais são mais do que compreen-síveis. Todas as corporações são refratárias a mudanças. Essa não é uma exclusividade policial. Assumir que um princípio de natu-reza técnica, que tenha como condição a maior qualificação, responsabilidade e en-volvimento dos profissionais de polícia não beneficia apenas os cidadãos que desejam legitimamente fruir da segurança como um bem próprio ao pacote de direitos civis que lhes cabem. As mudanças daí decorrentes tendem a ser benéficas também para o pro-fissional de polícia a quem sistematicamen-te são negados reconhecimento e prestígio social. Esse último é um ponto pouco ex-plorado.

Se o trabalho policial deve ser abordado como atividade altamente especializada, que implica elevado grau de responsabiliza-ção, não podemos negligenciar sua dimen-são política. Esquecê-la equivale a, em certo sentido, amesquinhá-la. Embora observável em vários pontos da proposta, a dimensão política pode ser surpreendida de forma mais acentuada na proposta de criação de ouvidorias externas e independentes. Por sua criação, pretende-se não somente am-parar o exercício do controle da sociedade sobre um campo de atuação do Estado, mas

proteger, simultaneamente, os profissionais desse campo dos abusos institucionais de que são recorrentemente objeto.

O controle externo evidentemente se volta para o profissional e seu desempenho, mas seu principal foco são as instituições. Em-bora a maior parte das atividades no siste-ma de justiça criminal (polícias, sobretudo) implique alguma dose de risco, é evidente que nas escolhas políticas que têm sido feitas sistematicamente no interior dos pa-lácios de governo, a vida e a saúde desses profissionais são recorrentemente negligen-ciadas. Não à toa, em geral, o aumento de mortes perpetradas por agentes policiais está acompanhado pelo aumento da viti-mização desses mesmos agentes, dentro ou fora do serviço. Não é de surpreender, como ensina Michael Walzer (2003), num contexto de guerra a vida do opositor não vale muito menos do que a vida do seu pró-prio soldado. A omissão desse dado tem preservado intacta uma parte das trinchei-ras dos defensores da lógica da guerra e da militarização da segurança pública: a negli-gência para com a vida humana em geral, a dos policiais, inclusive.

Temos, então, dois termos sob os quais pre-tendemos fundar um consenso mínimo so-bre a importância de avançar em propostas de desmilitarização da segurança pública, nas condições sugeridas pela PEC 51. Os dois princípios, apenas para recapitular, são a admissão da natureza técnica do trabalho policial, que lhe é específica e, consequen-temente, diferenciada de uma outra espe-cialização, relativa à guerra, e a afirmação de seu componente político, que traz em si o reconhecimento de que se trata de um campo chave para afirmação de direitos e deveres cidadãos, incluídos aí os próprios profissionais de polícia. Temos, ainda, uma terceira dimensão, a saber, as implicações administrativas peculiares das instâncias de provimento de tão complexo serviço.

A importância de redimensionamento ad-ministrativo do sistema está explicitada na PEC 51, quando ela estabelece prerrogati-vas dos entes federados e as relaciona com prerrogativas igualmente inalienáveis da União. quem conhece um pouco da histó-ria política brasileira sabe bem que a distri-buição de poderes e responsabilidades po-líticas e administrativas entre os três níveis de institucionalidades estatais (Municípios, Estados e União) é um dos pontos mais po-lêmicos de nossa trajetória, desde os tem-pos imperiais.

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A volúpia descentralizadora combinada com a timidez política e com a inexperiência em lidar com a segurança pública de uma perspectiva democrática levou os legisla-dores de 1988 a produzirem, com o artigo 144, uma peça que é, a um só mesmo tem-po, omissa, permissiva e conservadora. Ao prever a definição de diretrizes, doutrina e parâmetros de formação como prerrogativa da União, preservando a autonomia admi-nistrativa dos Estados para que estruturem suas forças segundo conveniências e singu-laridades regionais, a PEC 51, concedamos, atenua, ainda que não necessariamente erradique, os males decorrentes das limita-ções do poder constituinte. Encontra, para o caso específico da segurança pública, o ponto de equilíbrio, sempre e necessaria-mente precário, entre controle político e autonomia administrativa de que tanto tra-tam juristas, historiadores e cientistas políti-cos brasileiros. Se estamos fundamentados teórica, normativa e historicamente para o reconhecimento da relevância de buscar tal ponto no que diz respeito às questões jurí-dicas e políticas atinentes ao Estado brasi-leiro, encaremos no que se encontra na PEC 51 uma alternativa plausível.

Temos, então, três eixos estruturantes para iniciar um diálogo realmente propositivo que, simultaneamente, ampara a plausibi-lidade das propostas contidas na PEC 51. Um último ponto, enfim, deve ser desta-cado. Um leitor atento há de ter percebido que após o parágrafo inicial não foi feita nesse texto qualquer alusão direta à Polícia Militar. O mesmo ocorre com o projeto de emenda. Isso é relevante porque explicita o princípio que atravessa uma orientação para mudanças efetivas: a desmilitarização se refere à segurança pública como um todo, não sendo um problema exclusivo das

polícias militares. é verdade que as polícias militares são as maiores “vítimas” da colo-nização operada pelas Forças Armadas no campo da segurança pública, mas o “estra-go” as extrapola. Desse modo, e tendo em vista que em lugar de temê-la profissionais de polícia e cidadãos comprometidos com a universalização do acesso a benefícios básicos do direito devem encarar a desmi-litarização como uma rota para a melhoria dos padrões de coexistência coletiva na so-ciedade brasileira, poderíamos assumir os três eixos indicados como princípios básicos para esse fim.

Dado o passo necessário da desmilitariza-ção, nos termos anteriormente propostos, entraremos numa outra escala de discus-são: a interpelação dos poderes legislativos e, sobretudo, judiciário acerca de suas res-ponsabilidades e obrigações nesse campo. Omissas, essas instâncias têm estado aquém de seus deveres enquanto poderes constitu-cionais instituídos para prover proteção aos direitos civis dos cidadãos brasileiros. Essa será outra longa e árdua tarefa para a qual uma nova gramática deverá ser construída.

REFERêNCIAS:

8º Anuário Brasileiro de Segurança Públi-ca. Fórum Brasileiro de Segurança Pública www.forumseguranca.org.br, 2014.

Sento-Sé, João Trajano. Condições de tra-balho e formação das polícias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FAPERJ/LAV-UERJ, 2010.

Walzer, Michael. Guerras justas e injustas. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2003.

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1. Ver em <http://apublica.org/2014/07/dois-meninos-e-uma-sentenca-de-morte/>

2.2. entRe a baixada e o sumaRé: banalização da moRte da juventude negRaSete jovens foram baleados em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, na noite do dia 13 de outubro de 2014, no Rio de Ja-neiro. A chacina deixou cinco mortos: três morreram no local enquanto outros dois morreram durante atendimento médico, dos dois sobreviventes, um adolescente de 12 anos foi internado e outro de 14 anos conseguiu fugir do local do crime.

O jovem socorrido foi encaminhado para o hospital Estadual Adão Pereira Nunes, em Saracuruna. Segundo a unidade, ele foi submetido imediatamente a uma cirurgia e foi internado na Unidade de Terapia In-tensiva (UTI). Ainda segundo o hospital, a vítima apresentava estado de saúde estável, estando lúcido e orientado.

A chacina ocorreu no Bairro Parque Pau-lista, por volta de 21h. O caso está sendo investigado pela Divisão de homicídios da Baixada Fluminense. A Polícia Civil não tem informações sobre o caso. Mas relatos nas redes sociais dizem que os jovens foram atacados por homens encapuzados e fuzi-lados em um muro.

Outro episódio que marcou junho de 2014: a perseguição a dois adolescentes teve início por volta de 9h30 do dia 11 do mesmo mês, na esquina da Avenida Mare-chal Floriano. Os cabos Vinícius Lima Viei-ra e Fábio Magalhães Ferreira, do 5º BPM (Praça da harmonia), teriam visto um dos rapazes passando correndo atrás de um ônibus. Um dos PMs desceu do carro e, cinco minutos depois, um dos jovens foi capturado, a 50 metros da DPCA. Após

alguns minutos, o segundo adolescente também foi detido.

Depois de colocar dois adolescentes que supostamente tinham praticado um roubo dentro da viatura 52-1651, as imagens do veículo mostram um dos cabos da Polícia Militar rindo e gesticulando em direção à Delegacia de Proteção à Criança e ao Ado-lescente (DPCA), no Centro, para onde os menores deveriam ter sido levados. As ima-gens das câmeras e do GPS instalados na viatura mostram ainda que o motorista e outro PM, no entanto, levaram os garotos para o Morro do Sumaré.

Já no Sumaré, os menores foram colocados deitados no chão e, segundo o depoimen-to do sobrevivente na Delegacia de homi-cídios, um dos cabos disse: “Você não vai mais andar” e disparou contra seu joelho. O adolescente foi ainda baleado nas costas e, fingindo-se de morto, conseguiu escapar. Já Mateus Alves dos Santos, de 14 anos, levou tiros na cabeça, peito e perna e morreu1.

Os episódios ocorridos confirmam que a cada nova divulgação dos dados sobre homi-cídios no Brasil a mesma informação é dada: morrem por homicídio, proporcionalmente, mais jovens entre 15 e 29, negros e pardos no país. Além disso, vem se confirmando que a tendência é um crescimento desta desigualdade nas mortes por homicídios. Segundo dados expostos pelo 8º edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 84% das mortes por agressão em 2013 es-tão concentrada na faixa etária entre 15 a 29 anos no Estado do Rio de Janeiro.

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Tabela - Mortes por agressão, por sexo em 2013

Tabela - Mortes por agressão, por faixa etária em 2013

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE; Ministério da Saúde/DATASUS; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O problema a ser enfrentado é bem com-plexo. Até hoje as iniciativas que dialogam com este público de juventude negra es-tão em dissonância com elementos fun-damentais para o êxito de uma ação que vise combater os homicídios. Para estas políticas, quando há orçamento, não há reconhecimento de diferenças; quando o projeto aborda a juventude negra, não há recursos. E quando há reconhecimento com recursos, não existe foco nos jovens mais vulneráveis.

Assim, esta agenda deve ser trabalhada pelo poder público a partir de duas con-cepções distintas de políticas públicas e de uma noção convergente de direitos, como o direito à vida de certa juventude (a juven-tude negra). Além disso, deve ser elaborada a partir do reconhecimento de diferenças, contudo o Estado Brasileiro através de seus quadros burocráticos, muitas vezes reluta em fazê-lo.

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes aos casos apresentados:

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE; Ministério da Saúde/DATASUS; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Caso Sumaré

• Acompanhamento dos procedimentos da Delegacia de homicídios;

• Atendimento presencial aos familiares pela CDDhC;

• Orientações jurídicas e psicossociais para os membros da família;

• Mobilização com Meu Rio, parceiro da so-ciedade civil, para cobrar o cumprimento da Lei que exige a instalação de câmeras em todas as viaturas do Estado;

Caso Chacina da Baixada Fluminense

• Atendimento aos familiares de vítimas;

• Encaminhamento dos adolescentes sobrevi-ventes para programa de proteção a crian-ças e adolescentes ameaçadas de morte;

• Acompanhamento dos procedimentos da Delegacia de homicídios.

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE; Ministério da Saúde/DATASUS; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

TABELA · Mortes por agressão, por raça/cor em 2013

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2.3. Caso Cláudia silva e a infeliz ReafiRmação dos autos de ResistênCiaEram cerca de 9h de um domingo, dia 16 de março, quando uma viatura do 9º BPM (Rocha Miranda) descia a Estrada Intendente Magalhães, no sentido Mare-chal Hermes, na Zona Norte do Rio, com o porta-malas aberto. Depois de rolar lá de dentro e ficar pendurado no para-choque do veículo apenas por um pedaço de rou-pa, o corpo de uma mulher foi arrastado por cerca de 250 metros, batendo contra o asfalto conforme o veículo fazia ultrapas-sagens. Apesar de alertados por pedestres e motoristas, os PMs não pararam. Um ci-negrafista amador que passava pelo local registrou a cena num vídeo.

A mulher arrastada era Cláudia Silva Fer-reira, de 38 anos,  baleada durante uma troca de tiros entre policiais do 9º BPM e traficantes do Morro da Congonha, em Madureira, enquanto ia comprar pão. Em depoimento à Polícia Civil, os PMs disse-ram que a mulher foi socorrida por eles ainda com vida, e levada para o hospi-tal Carlos Chagas, em Marechal hermes, mas não resistiu. Já a secretaria Estadual de Saúde informou que a paciente já che-gou à unidade morta. Ela levou um tiro no pescoço e outro nas costas. Dias depois, a Polícia Civil informou que Cláudia foi morta em função dos disparos pelos quais foi atingida.

Esses são apenas alguns dos inúmeros casos de “mortes em confronto” na lista do bata-lhão. Outras 57 pessoas morreram em con-dições semelhantes nos últimos dois anos (2012 e 2013) na área do 9º BPM, que é a 4ª com maior número de autos de resis-tência. De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), o batalhão fica à frente de outras 36 unidades do Estado. Vale ressaltar que a bordo do veículo haviam

três policiais do batalhão que historicamen-te é apontado como um dos mais violentos do Estado e cujos integrantes chegaram a ser conhecidos como “Cavalos Corredores” na década de 90 — época da Chacina de Vigário Geral.

Três semanas antes da morte de Cláudia, no dia 23 de fevereiro, outros agentes da unidade já haviam se tornado centro de um outro caso de violência policial: um jovem inocente foi morto a coronhada em Cam-pinho, na Zona Norte do Rio. Na ocasião, quatro PMs foram afastados e presos in-ternamente pela morte do adolescente, de acordo com a corporação.

Antes disso, a  morte de dois rapazes na comunidade Bateau Mouche já tinha cau-sado revolta em moradores. No início de fevereiro, os jovens, que não tinham pas-sagem pela polícia, foram baleados por PMs do 9º BPM. Os assassinatos foram registrados como homicídio em interven-ção policial — antes chamado de auto de resistência (morte em confronto com a po-lícia). Familiares garantem que a dupla não tinha envolvimento com o tráfico e que as armas encontradas ao lado das vítimas fo-ram “plantadas”.

Dezessete bairros e cerca de 30 mil registros de ocorrências por ano (desde furtos até homicídios), segundo dados oficiais. Essa é a realidade da região atendida pelo 9º BPM (Rocha Miranda), onde a guerra do tráfico de drogas faz moradores reféns. Apenas em 2013, a região registrou média de 82 ocorrências por dia de acordo com o Insti-tuto de Segurança Pública (ISP).

Conforme mencionado em relatórios e po-sicionamentos anteriores desta CDDhC, o

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auto de resistência é uma prática naturali-zada; quem mora na favela e os próprios policiais sabem disso. O que deu errado no caso da Cláudia é que se filmou e que era uma mulher, mãe de família. Se fosse jovem e negro não teria o mesmo impacto.

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-

mentos referentes ao caso:

• Atendimento aos familiares;

• Encaminhamento para assistência jurídica;

• Acompanhamento dos procedimentos adotados pela Polícia Civil;

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Nove homens foram  mortos  entre 15 de julho e 04 de agosto de 2014 na comuni-dade de Acari, no Rio de Janeiro, em con-sequência de operações da Polícia Militar. A última morte aconteceu no dia 04 de agosto, entre 16h e 17h, quando um ho-mem com cerca de 30 anos, que era orga-nizador de um evento local de forró, saiu para comprar gelo e foi baleado e morto. Moradores de Acari afirmam que após o término da Copa do Mundo, as operações da Polícia Militar aconteceram quase diaria-mente e chegaram a durar até 12 horas. As operações foram realizadas por diferentes unidades da Polícia Militar, tal como o 41º Batalhão da PM, a Tropa de Choque e o Ba-talhão de Operações Especiais (BOPE). Em geral, as operações aconteceram sem aviso e em diferentes horários (de manhã cedo, à noite ou de madrugada), e às vezes foram lideradas por veículo blindado, o chamado “caveirão”.  

Mais de 80 moradores relataram diversos abusos por parte da polícia. Eles alegam que a polícia usa “chaves-mestras” para entrar nas casas sem qualquer aviso e sem

2.4. Caso aCaRimandados de busca, destroem pertences dos moradores e até furtam objetos e di-nheiro. Os moradores também alegam que os policiais usam linguagem ofensiva, espe-cialmente com as mulheres, às vezes agri-dem fisicamente os moradores, em diversas ocasiões com “tapas na cara”.

O uso de armas de fogo desnecessariamen-te ou de forma indiscriminada durante as operações policiais está colocando a vida de todos os moradores em risco e tem am-plo impacto sobre a comunidade. Escolas e creches ficam fechadas durante os dias de operação. Em diversas ocasiões, mães com seus filhos nos braços ficaram em risco en-quanto procuravam local para se abrigar, mas sem ter lugar para ir.”

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes ao caso:

• Reunião junto com entidades da socieda-de civil e moradores na localidade;

• Encaminhamento das denúncias para Se-cretaria de Segurança;

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2.5. milÍCias eo estado leiloado

Seis anos após a divulgação do relatório fi-nal da CPI das Milícias, realizada na Assem-bleia Legislativa do Rio de Janeiro, nenhu-ma política pública foi criada para enfrentar efetivamente o crescimento das quadrilhas. Além de indiciar 226 pessoas e pôr na ca-deia os principais chefes dos bandos – entre eles deputados e vereadores -, a comissão propôs 58 iniciativas de caráter econômico e político para acabar com o poder dos mi-licianos, mas nada foi feito.

Não é à toa que o crime organizado expan-diu seus negócios e manteve sua influência eleitoral, como mostrou um relatório divul-gado pela Secretaria de Segurança Pública encaminhado ao Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE) em agosto deste ano. Em pelo menos 41 comunidades, somente candida-tos autorizados por milicianos ou trafican-tes podem fazer campanha.

No dia 12 de agosto de 2014, o TRE do Rio encontrou cestas básicas com uma relação de beneficiários e propaganda de candidatos do PMDB e do PSDB na asso-ciação de moradores das comunidades águia de Ouro e Guarda, em Del Castilho, Zona Norte. De acordo com as informa-ções divulgadas, a operação averiguou denúncias de formação de curral elei-toral por milícias. Dois meses atrás uma deputada estadual candidata à reeleição denunciou ter recebido ameaças de um homem armado quando colocava placas na comunidade águia de Ouro. Ela che-gou a afirmar que milícias cobrariam 100

mil reais de pedágio aos interessados em fazer campanha no local.

é preciso entender que milícia é máfia. Ao contrário do tráfico, ela tem projeto de poder político, controla de forma violenta currais eleitorais e ajuda a eleger parlamen-tares para ampliar sua influência. Os para-militares em sua maioria são agentes do Estado que adotam o discurso da ordem e usam seu domínio territorial e econômico para barganhar politicamente e atuar den-tro das estruturas de poder. Milícia não é o Estado paralelo, é o Estado leiloado.

Neste sentido, não é só uma ameaça à Se-gurança Pública, mas à própria democracia. Por isso, não basta prender. é fundamental cortar os braços político e econômico das quadrilhas, que exploram o transporte al-ternativo, a agiotagem, a venda ilegal de gás, a instalação irregular de TV a cabo, a cobrança de taxas de segurança. Denun-ciado pela CDDhC já em 2012 e com gran-de exposição nos jornais deste ano, ficou comprovado que milicianos passaram a expulsar famílias beneficiadas pelo progra-ma Minha Casa, Minha Vida para alugar os imóveis.

Neste ano, a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas (Draco) descobriu que alguns bandos se aliaram ao tráfico de dro-gas. Esse comportamento nunca ocorrera – os milicianos reprimiam violentamente o consumo de entorpecentes nas áreas que controlam. Em Rio das Pedras, na Zona Oes-

1. Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/politica/o-

poder-da-milicia-nas-eleicoes-do-rio-de-janeiro-1597.html>

“Além dos 48 reais mensais que tem de pagar para ter gás em seu barraco, I.S, 50 anos, paga 5 reais para poder resgatar a correspondência que chega endereçada a ela ou ao marido. O controle do fornecimento de gás, do correio, do sinal de TV a cabo, do transporte feito por vans e até mesmo sobre qual candidato ela deve votar é feito há dez anos por um mesmo grupo de milicianos”

Matéria publicada no site da Carta Capital, em 30 de agosto de 2014.1

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te, há um ponto de vendas na localidade de Pinheiros. Em Campinho e Itanhangá, na mesma região, os grupos arrendaram fave-las para traficantes, segundo investigações da Draco.  

As prisões são importantes devido ao perigo que os criminosos representam. O assassi-nato de cinco das seis testemunhas das in-vestigações contra a milícia conhecida como Família é Nóis, de Duque de Caxias, é um exemplo disso e da fragilidade dos progra-mas de proteção a testemunhas do Estado. Parte do grupo foi preso em 2010 e, após receber o direito de responder em liberdade, cometeu os homicídios. A única testemunha viva é o delegado Alexandre Capote, titular da Draco, responsável pelas investigações. A Família é Nóis foi descoberta e denunciada pela primeira vez pela CPI.

Mas é preciso ir além das detenções e ado-tar iniciativas que envolvam os governos municipal, estadual e federal. Por exem-plo, o controle territorial é fundamental para o funcionamento dos negócios das quadrilhas. Neste sentido, é revelador que apenas uma favela comandada por mili-cianos tenha recebido UPP: o Batan, na Zona Oeste.

Da mesma forma, é urgente regulamentar a revenda de gás e ampliar a fiscalização através de convênio com a Agência Nacio-nal de Petróleo; aplicar uma nova política de controle e incentivo fiscal ao transporte alternativo, com permissões de caráter ex-clusivamente individual, já que muitas coo-perativas são controladas por milícias; criar uma comissão, integrada pela Secretaria de Segurança Pública e pela Polícia Federal, para fiscalizar as empresas que prestam ser-viços de segurança; e viabilizar através de incentivos a venda de pacotes populares de TV a cabo nas favelas.

hoje, a Draco, principal responsável por en-frentar o crime organizado, tem uma estru-tura reduzida e atua de forma heroica. A articulação entre as policiais Civil, Militar e Federal, o Ministério Público e o Poder Judi-ciário é urgente.  

As milícias surgiram no governo Rosinha Garotinho (2003-2006), na Zona Oeste, e cresceram de forma assustadora na gestão de Sérgio Cabral. Elas extrapolaram a região e já atuam na Zona Norte, Baixada Flumi-nense e em municípios do interior. Cerca de 620 mil moradores de 370 comunidades são subjugados pela máfia.

Em 2014 a CDDHC recebeu 28 denúncias que envolvem a atuação de di-versos grupos milicianos em diferentes partes do Estado; Recreio dos Ban-deirantes, Piedade, Bairro Jardim Maravilha em Guaratiba, Nova Sepetiba, Paciên-cia, Complexo do Alemão, Rio das Pedras, Praça Seca, Campo Grande, Itaguaí, Camorim/Jacarepaguá, Ilha do Governador, Parque Capivari em Duque de Caxias, São João de Meriti, Angra dos Reis e Itaguaí. As denúncias envolviam casos de assassinatos, expulsão de imóveis, ameaças e ocupação de terrenos.

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2.6. Caso niteRóiNo dia 23 de maio de 2014 várias delega-cias e o Ministério Público realizaram uma operação no local conhecido como Prédio da Caixa Econômica, no Centro de Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo informações oficiais, a operação foi em decorrência de uma investigação que corria sobre o suposto envolvimento de milícia no local, exploração sexual infantil e tráfico de drogas.

Segundo relatos dos presentes no prédio, no decorrer da entrada dos policiais ne-nhum deles apresentou mandado de busca e apreensão, estavam sem identificação e inúmeras prostitutas foram agredidas, com furto de seus pertences e violência sexual. De acordo com o relato das vítimas, todas as prostitutas foram postas no corredor do andar em que trabalhavam e ainda obriga-das a fazer sexo oral em um dos policiais presentes na operação.

Após serem levadas a 76º DP, aquelas mu-lheres que não quiseram prestar depoi-mentos, eram presas por desacato. Ainda segundo as mesmas, nenhuma das mu-lheres prostitutas foi levada por livre e es-

pontânea vontade para a delegacia. Para aprofundar o drama das mulheres, há re-latos de algumas delas tentaram dar quei-xa na Delegacia Especializada de Aten-dimento a Mulher (DEAM) pela agressão por parte dos policiais, e lá foram infor-madas de que não poderiam registrar a queixa contra os policiais.

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes ao caso:

• Visita ao prédio onde ocorreu a operação policial para buscar relatos mais precisos das denúncias apresentadas a CDDhC Alerj;

• Acompanhamento dos inquéritos envol-vendo as denúncias apontadas pelas pros-titutas;

• Realização de audiência pública em con-junto com a Comissão da Mulher no dia 04 de junho de 2014;

Encaminhamento do caso ao Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro;

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aRbitRaRiedades no PRédio da Caixa em niteRói

No dia 23 de maio, a Polícia Civil realizou uma grande operação no edifício número 327, na Avenida Amaral Peixoto, no Centro de Niterói. Os policiais interditaram os apartamentos dos quatro primeiros andares do imóvel, conhecido como Prédio da Caixa, onde prostitutas trabalhavam. A juíza Rose Marly, da 1ª Vara Criminal de Niterói, que autorizou a operação, argumentou no mandado de busca e apreensão que no local funcionaria um esquema de exploração sexual e que haveria risco de desabamento devido a problemas estruturais do edi-fício, apesar de a Defesa Civil municipal não ter sido acionada para confirmar a informação. As mulheres disseram que os policiais as agrediram e não apresentaram o mandado judicial. Algumas afirmaram que sofreram violência sexual. As prostituas também reclamaram que o delegado da 76ª DP (Centro) e a delegada da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) não quiseram registrar as queixas de agressão. Apesar do suposto risco de desabamento, somente os quatro primeiros andares, onde as prostitutas trabalhavam, foram interditados. Os outros sete pavimentos continuaram abertos. Com o fechamento dos apartamentos, centenas de mulheres ficaram sem ter onde morar, como a prostituta Joice Oliveira, 25 anos.

CDDHC: O que ocorreu na operação policial no Prédio da Caixa?Joice: Cerca de 300 policiais tomaram o prédio, fecharam a Avenida Amaral Peixo-to, entraram no prédio sem mandado e sem se identificarem. Arrombaram as portas dos privês (apartamentos onde as prostitutas trabalham) que estavam em funcionamen-to e levaram cerca de 300 a 400 meninas num ônibus. Fizeram sexo oral nas meninas

e bagunça nos apartamentos, reviraram tudo. Eram todos policiais homens, não ti-nha uma policial mulher. Passaram a mão na gente.

CDDHC: Como foi para registrar as agressões na delegacia?Joice: Na delegacia (76ª DP), os advogados não puderam entrar. Nos obrigaram a falar

A prostituta Joice Oliveira, ao centro, denuncia agressão policial em ação no prédio da Caixa, em NiteróiLe

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o que eles queriam e assinar (o depoimen-to). Fomos obrigados a assinar (o boletim policial) como exploração sexual, mas num dos apartamentos só tinha uma mulher tra-balhando. O prédio foi interditado como local de crime, sendo que nada foi encon-trado lá. Não encontrou morto, drogas nem menores de idade. Cerca de 400 mulheres ficaram na rua sem ter onde morar. Na Delegacia da Mulher, a delegada não quis fazer a ocorrência de abuso sexual, físico e verbal. Na 76ª DP também foi negado. Um policial me deu tapa na cara, puxou meu cabelo e me deu um chute na perna. Como não fiz a ocorrência, não podemos fazer o exame de corpo de delito.

CDDHC: Qual a situação das prostitutas que trabalham no Prédio da Caixa?Joice: A profissão é reconhecida pelo Mi-nistério do Trabalho. A gente paga o INSS. Belo horizonte tem cerca de 4 mil mulheres (que trabalham como prostitutas). Lá, a Cai-xa Econômica Federal fez uma parceria com a Aprosmig (Associação de Prostitutas de Minas Gerais) e regulamentou. As meninas têm máquina de cartão de crédito, talão de cheque e todos os direitos de qualquer tra-balhador. A gente não tem isso aqui. Aqui é perseguição.

https://www.youtube.com/watch?v=w08o-xCbbi5q

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2.7. maRé: PaCifiCação e/ou domestiCação militaRizada?Por Marielle Franco1 e Renata Souza2

O conjunto de favelas da Maré, localiza-do na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi ocupado em abril de 2014 por forças mi-litares de pacificação como estratégia da Segurança Pública para a realização da Copa do Mundo. Uma engenhosa opera-ção envolveu mais de dois mil homens do Exército, da Marinha, da Força Aérea, além das polícias Civil e Militar. O local, que tem uma população de cerca de 130 mil habi-tantes de acordo com o Censo do IBGE de 2010, entrelaça as principais vias da cidade como a Avenida Brasil e as linhas Amarela e Vermelha, esta última leva ao aeroporto internacional. é inegável que há um ima-ginário social, articulado principalmente pelos meios de comunicação tradicionais, que o identifica como um lugar de extrema violência, miséria e banditismo. Tais este-reótipos são enfatizados pelo Estado, que ao invés de estar ausente da Maré, como advoga o senso comum, se mantém na fa-vela com forte aparato militar de repressão ao varejo do tráfico de drogas e, no tocan-te aos serviços públicos, se destaca por sua precariedade.

há uma militarização da vida na favela que remonta o autoritarismo no Brasil. Não por acaso, no ano em que o golpe militar completa 50 anos, mais de 80 civis, até a publicação deste artigo, foram au-tuados em flagrante ou receberam man-dados de prisão sob a acusação de crimes militares na Maré. O número representa 20% do total de presos desde abril, mui-tos foram detidos por desacato, desobe-diência e lesão corporal, crimes praticados contra militares em serviço. Além disso, serão julgados pela Justiça Militar. A Maré está sob o regime de Garantia da Lei e da

Ordem (GLO), medida constitucional que permite aos militares atuarem como for-ça de Segurança Pública. Cabe ressaltar, que a prisão de civil por crime militar na Maré é prevista no artigo 9º (que trata de crimes militares em tempo de paz) do de-creto-lei 1.001 de 21 de outubro de 1969, assinado pelo general Artur Costa e Sil-va, considerado o presidente da fase mais dura do regime militar, sucedido pelo ge-neral Emílio Garrastazu Médici.

é neste contexto que os moradores das fa-velas que compõem a Maré convivem roti-neiramente com as arbitrariedades de um Estado militarizado e as imposições dos grupos civis armados que disputam o ter-ritório para a expansão do varejo do tráfico de drogas. Tal realidade impõem-se como um futuro de incertezas, já que no presente os moradores são reféns cativos tanto do Estado militarizado quanto dos grupos cri-minosos armados.

Pacificação militarizadaO processo de militarização é galgado pela política pública de Segurança estadual, em nome da “guerra às drogas”, e também pela apropriação de armas de fogo por parte de grupos civis que controlam inú-meras favelas. Isso significa que qualquer elucidação deve apostar em uma dupla avaliação. A militarização na favela é uma questão central, que se agudiza com a ins-talação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) ou de forças militares. Tendo em vista que a ocupação territorial, além de inserir mais armas no cotidano comunitário, não visa necessariamente o combate ao tráfico de armas. Mesmo pressupondo uma di-minuição da força armada desses grupos

1. Marielle Franco é ex-moradora do morro do Timbau (Maré) e mestre em Administração Pública pela UFF

2. Renata Souza é morada da favela Nova holanda (Maré) e doutoranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ

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criminosos, já que o poderio bélico antes ostentado é reprimido pela presença de policiais nas comunidades, observa-se que as armas estão principalmente, mas não só, nas mãos dos policiais. Uma política de segurança, que almeja alterar a realidade de moradores de favelas, não deveria dis-putar o imaginário social através da osten-tação de seu poder bélico.

Este cenário pôde ser melhor observado pela sociedade no ano de 2013, quando eclodiram nas principais cidades brasilei-ras inúmeras manifestações populares. As ruas foram ocupadas por milhões de pessoas que reivindicavam mudanças po-líticas e estruturais. Em resposta às de-mandas sociais, um enorme esquema de repressão e truculência policial foi posto em prática, mesmo em atos considerados pacíficos, como as manifestações dos pro-fessores. Essa postura voltaria a se repetir no ano de 2014, quando professores fo-ram reprimidos e autuados devido a uma caminhada em apoio à greve unificada entre as categorias do Município e do Es-tado. As consequências foram violência, agressões e prisão. Naquele momento, infelizmente democratizou-se no Brasil a violência policial, antes experimentada apenas pelos favelados. Fato estampado e verificado como na frase: “No centro da cidade, a bala é de borracha, nas favelas a bala é de verdade”.

Mesmo considerando as inúmeras viola-ções e arbitrariedades cometidas durante as manifestações democráticas, com uso descontrolado de munição não letal e altos índices de lesões, a favela ainda é o prin-cipal espaço de expressão de uma atuação violenta e repressiva. No ano de 2014, o passado “bate à nossa porta”, pois se re-memora os 50 anos da ditadura imposta ao Brasil com o Golpe Militar de 1964. O passado ainda se faz presente na maior comenda militar do Brasil, a “Medalha de Bronze do Pacificador”, que fora entregue a oficiais que se destacavam no combate aos subversivos que questionavam o regi-me. Nas favelas cariocas, a presença é as-sustadora, um tanque blindado chamado de “Pacificador”, popularmente conhecido como “Caveirão”, é utilizado nas incursões da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (CORE). Músicos da banda de rock Passarela10, da Maré, no ano de 2006, já o qualificou em um dos seus re-frões como: “Não Pacifica a dor”/ “Passa, e fica a dor”.

Assim, de maneira lúdica, algumas inicia-tivas culturais e comunicacionais, como o bloco de carnaval “Se Benze que Dá” e o jornal O Cidadão, se utilizam de sua arte e comunicação comunitária para questionar as políticas públicas destinadas de manei-ra unilateral na Maré. Vale destacar, neste momento, algumas iniciativas coletivas e/ou institucionais que buscam impulsionar a organização popular e as resistências às arbitrariedades do Estado.

Maré de direitos O Bloco "Se Benze que Dá” (SBqD) é fruto de algumas ações políticas realizadas por jovens da Maré. Lançado em 2005, o bloco sempre abordou a relação desigual entre a favela e a cidade, além de interferir em sua realidade social ao reivindicar o direito de ir e vir dos moradores. Ao ultrapassar as bar-reiras físicas, simbólicas e sociais impostas tanto pelas facções armadas quanto pelas operações policiais, o SBqD consolidou-se como um bloco de luta política, cultural e educacional na Maré. Um dos motores de seus questionamentos se deu na ocasião do assassinato da moradora e estudante da Faculdade de Economia da UERJ, Jaqueline, durante uma operação policial na Baixa do Sapateiro. No carnaval de 2005, o SBqD fez o primeiro desfile já tematizando a cri-minalização da pobreza e dos movimentos sociais, e arregimentou pessoas de vários cantos da cidade. O seu principal grito, já naquele instante, entoava: “Vem pra rua, morador”. Uma alusão crítica à recomenda-ção dada através dos alto-falantes do veícu-lo blindado ao adentrar na favela: “Sai da rua, Morador”.

é sabido que a tentativa de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais sem-pre foi uma estratégia dos agentes estatais para calar as críticas sobre a gestão das políticas públicas. Esse processo se torna recorrente, principalmente, em entidades que atuam dentro de favelas como as Or-ganizações da Sociedade Civil (OSCIP) e as associações de moradores, que são acusa-das de se associarem ao tráfico de drogas. Para Silva e Rocha (2008), esse ostracismo político encontrado na maioria das associa-ções de moradores estaria atrelado a uma mudança de demanda desses espaços. Se outrora as demandas eram por serviços de água, saneamento e luz, no contexto atual, as associações de moradores têm muito a contribuir no debate sobre Segurança Pú-blica Cidadã e Direitos humanos. Sendo as-sim, nos últimos três anos, uma conferência

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livre sobre segurança pública e o projeto "Maré que queremos em funcionamento na Maré" reuniu uma rede de instituições com participação ativa das 16 associações de moradores da localidade.

A partir do acúmulo desses encontros, as organizações Redes de Desenvolvimento da Maré, Observatório de Favelas e Anistia In-ternacional lançaram a campanha “Somos Maré e temos Direitos”:

Material Informativo da campanha "Somos da Maré e Temos Direitos"Fonte: Anistia Internacional, Observatório de Favelas e REDES da Maré

A campanha caiu nas mãos dos moradores e adentrou becos, ruas e vielas da Maré, em 2013, com orientações sobre como agir em caso de abordagem policial. O objetivo era garantir os direitos dos moradores à segu-rança, prevenir contra abusos e ações des-respeitosas por parte das forças policiais, uma vez que estes são funcionários públi-cos e devem estar a serviço da população. Por fim, também orientava os moradores, nos casos de violações, a acionarem a Cor-regedoria da Polícia Militar e a Comissão de Defesa dos Direitos humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Tudo foi feito com a participação dos mo-radores e das Associações, que inclusive se reuniram com o Conselho de Segurança, Comando Operações Especiais (COE) e em audiências com a Secretaria Estadual de Se-gurança, para reivindicar uma atuação dife-renciada das forças de segurança na Maré.

No entanto, essa iniciativa não previa a ocupação das forças militares de pacifica-ção. No ano de “descomemoração” dos 50 anos do Golpe Militar, soldados e tanques se apropriaram da Maré em um espetáculo midiático digno de um desfile militar de 7 de setembro. Para dar segurança aos jogos da Copa do Mundo, mais de 130 mil habi-tantes foram colocados sob regime de Ga-rantia da Lei e da Ordem (GLO). O inimigo do Estado de ontem era o subversivo comu-nista, hoje são os favelados. Isso é sinal da perpetuação da criminalização da pobreza e da supressão do direito de ter direito.

Domesticação comunitária“Soldado da Força de Pacificação da Maré afirma a jornal sueco que proibição de bai-les funk é ‘castigo’”, anuncia a manchete do jornal Extra no dia 19 de junho de 2014. Ao cercear uma das principais expressões

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culturais da favela, a política de pacificação do Rio de Janeiro demonstra o quanto ig-nora a dinâmica comunitária, mesmo antes da implantação definitiva de uma Unida-de de Polícia Pacificadora (UPP) na Maré. Essa política se baseia na gestão autoritá-ria do espaço favelado, dada à imposição do “Nada opor”, documento redigido pela Coordenadoria de Polícia Pacificadora que busca “criar uma norma para organizar e envolver o maior número de órgãos gover-namentais na elaboração dos atestados de ‘Nada opor’ para eventos culturais em lo-cais públicos ou privados dentro dos limites da comunidade”.

Desse modo, as forças de pacificação mili-tarizada, além de vigiar e punir como prevê Michel Foucault, se qualificam como agen-tes culturais. São as corporações militares que se encarregam de gerenciar a cultura, como outrora o fez a ditadura militar, ao deslegitimar e achacar a autonomia comu-nitária. Percebe-se empiricamente que as ruas da Maré se revelam como o espaço privilegiado do ser comunitário e cultural. João do Rio foi enfático ao caracterizar a alma das ruas cariocas, porque reconhecia sua configuração como o espaço das trocas reais e simbólicas.

Nas ruas da comunidade há uma linguagem muito específica, manifestada pela repro-dução insistente das composições de funk, que muitos qualificam como gíria, mas os Racionais Mc’s insistem em lembrar: “Gíria, não, dialeto”. Assim, nota-se que a rua e o funk se consolidam como referência na rotina cultural da favela. Tanto que, aos fins de semana, a rua torna-se local de lazer, é nela que os espaços público e privado se confundem. Daí a dificuldade de um Es-tado ordenador e impositor de regras rígi-das dialogar com as múltiplas linguagens. Na Maré, assim como em outras favelas do Rio, as festas particulares tomam as ruas, que geralmente são fechadas com enormes caixas de som, e o repertório é dominado quase que exclusivamente pelo funk. Entre-tanto, sua ocupação pelas Forças Armadas recrimina essa prática dos bailes funks e das festas particulares. A realização de bai-les funks foi expressamente proibida, e as festas particulares devem ser precedidas de autorização das forças de pacificação, que estavam previstas para se retirarem após as eleições, mas o prazo estendeu-se para o final de dezembro de 2014. Enquanto isso, a rotina de arbitrariedades cometidas pelo Exército cresce incessantemente. Morador que faz da rua a extensão de sua casa para

festas particulares é abordado de maneira violenta e autoritária, o que gera conflito direto, com agressões corporais entre mo-radores e militares.

Por mais que o funk tenha sido reconheci-do por força de lei, em 2009 por conta de um projeto de Marcelo Freixo, como uma expressão cultural, a abordagem truculenta revela a velha prática de criminalização do funk e dos funkeiros que residem em favelas. Trata-se de um discurso articulado historica-mente pelos órgãos de Segurança Pública e endossado pela mídia tradicional. As inú-meras manchetes de jornais da década de 90 são reveladoras: “Funkeiros apedrejam ônibus e ferem 3” (O Globo, 10/08/1993), “Funk Carioca: de James Brown ao Coman-do Vermelho” (O Dia, 23/03/1994), “Juiz manda apurar apologia ao tráfico nos bai-les funk” (O Globo, 11/06/1995), “Rap é a nova arma do Comando Vermelho” (O Globo, 11/06/1995), “Febre Funk já matou 80” (O Dia, 12/09/1996). Essas narrativas discursivas impuseram o funk como bode expiatório das mazelas da sociedade, por isso, a solução imediata dos órgãos públicos sempre apelou para sua proibição.

Não há como negar que o funk é uma ex-periência extremamente comunitária, já que muitas de suas composições revelam o cotidiano de alegrias, frustrações, priva-ções, opressões vivenciadas em comum por moradores de favelas. A nossa aposta é a de que, neste universo complexo, a rua pode se configurar como o espaço em que este vínculo comunitário se realiza em seu maior grau de organicidade. A rua, que na favela torna-se extensão das casas das pessoas, se configura como o desordenamento físico do espaço que o Estado quer ordenar. Por isso, uma das primeiras ações da política de pacificação nestes locais é a alteração da vida cotidiana. Ao estabelecer toques de recolher e/ou impondo regras para a realização de festas, se reduz o espaço de socialização. Mas, mesmo diante das adver-sidades, as pessoas continuam ocupando as ruas das favelas da Maré com encontros festivos. E, assim como Stuart hall, somos otimistas ao acreditarmos que é na cultura popular que se encontra um ambiente fértil para se constituir o ser social orgânico. Uma vez que a cultura popular se potencializa, passa também a disputar novas narrativas e discursos.

é sabido, entretanto, que a fabricação do discurso, de acordo com Michel Foucault (2012), obedece uma série de procedimen-

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tos com o objetivo de limitar seus poderes e perigos, essa produção é controlada, sele-cionada, organizada e redistribuída. Desse modo, em nossa sociedade, há mecanismos de exclusão que se revelam na interdição do direito de dizer tudo. é descabido falar sobre tudo, mas esse direito é facultado a alguns privilegiados, os sujeitos de fala. Na contramão daqueles que detém o mo-nopólio dos meios de fala e/ou comunica-ção de massa, identificamos o funk como uma linguagem autônoma, com base em uma leitura ritmada, independe dos meios tradicionais de produção, divulgação e co-municação. Mas, para além de reconhecê-lo com cultura e linguagem, concordamos com Adriana Lopes (2011) que o qualifica como uma prática social historicamente si-tuada em seu lugar de fala. O funk é cultura e reafirmamos que a militarização da vida comunitária tende a domesticar a autono-mia cultural das favelas. O constante estado de exceção nas favelas não pode ser natura-lizado. Maré vive, pois nós Somos da Maré e temos Direitos.

Referências

FOUCALT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pro-nunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 22 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

hALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovic. Tradu-ção Adelaine La Guardia Resende. Belo ho-rizonte. Ed. UFMG, 2003.

LOPES, Adriana de Carvalho. Funke-se quem quiser. No batidão negro da cidade carioca.1.ed. Rio de Janeiro. Ed. Bom Texto: FAPERJ, 2011.

SILVA; ROChA, Lia de Mattos, e Itamar. Associações de Moradores de Favelas e seus Dirigentes: o discurso e a ação como reversos do medo. In Justiça Global: Se-gurança, tráfico e milícias no Rio de Ja-neiro. Rio de Janeiro: Fundação heinrich Böll, 2008.

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3. “não vamos esqueCeR!”– a toRtuRaontem e Hoje há cinquenta anos, no dia 1º de abril de 1964, consolidou-se no Brasil o golpe de Estado empresarial-militar que rompeu com a ordem democrática, derrubou o en-tão presidente João Goulart e levou o país a vivenciar vinte e um anos de terror. Esti-ma-se que o regime ditatorial tenha matado ao menos 357 militantes políticos, prendido em torno de 50.000 pessoas somente nos primeiros meses do regime, processado no âmbito da Justiça Militar outras 7.367, ba-nido 130 cidadãos do país, forçado outros 10.000 ao exílio, punido 6.592 militares, ex-pulsado 245 estudantes da universidade e cassado o mandato e os direitos políticos de 4.862 brasileiros1. Nota-se que esses núme-ros não incluem uma série de casos que, até hoje, não foram reconhecidos pelo Estado brasileiro, seja por não haver vontade polí-tica para tanto ou por não se ter acesso aos documentos do período que ajudariam a esclarecer as violações perpetradas à época. 

A título de exemplo, em recente pesqui-sa, realizada no ano de 2013, a Secretaria Nacional de Direitos humanos identificou 1.196 casos de trabalhadores rurais assas-sinados ou desaparecidos por razões ideo-lógicas e por disputa fundiária no campo, entre setembro de 1961 e outubro de 1988 (período indicado pela Lei nº 9.140/1995, a primeira a reconhecer que pessoas foram assassinadas pela ditadura militar). Destes, apenas 29 já foram reconhecidos pelo Esta-do ao terem seus nomes incluídos no rela-tório final da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Da mesma forma, tais números não incluem as prisões, desa-

parecimentos forçados e execuções perpe-tradas contra os povos indígenas, alvos de um projeto de desenvolvimento absoluta-mente excludente. Em prol da construção de estradas e de megaprojetos de infraes-trutura, tribos e comunidades indígenas, quando não eram dizimadas, acabavam expulsas de suas terras ancestrais. Apesar de se acreditar que o número de indígenas mortos possa chegar a milhares (alguns pesquisadores falam em mais de 2 mil), a Secretaria Nacional de Direitos humanos conseguiu identificar ao menos 300 casos de indígenas mortos e desaparecidos pela ditadura. Contudo, os mesmos ainda não foram reconhecidos oficialmente pelo Esta-do brasileiro.

Inserida em um contexto histórico mais am-plo, marcado pela Guerra Fria, pela expan-são do imperialismo estadunidense e pela contenção dos movimentos sociais popula-res ao redor do mundo, a ditadura brasileira teve como base ideológica a “Doutrina da Segurança Nacional” (DSN). Elaborada pe-los militares do Pentágono como um marco de diretrizes gerais para as ditaduras da re-gião, tal doutrina sustentava que o cidadão só se realiza plenamente enquanto membro de uma comunidade nacional coesa. Rejei-tava, portanto, a ideia da divisão da socie-dade em classes. O objetivo principal era pôr fim a tudo aquilo que fosse tido como nocivo à “unidade nacional”. E o inimigo mais perigoso para a tradição política local era uma suposta ameaça comunista que, segundo os militares, pairava sobre a Amé-rica Latina2.

1. Brasil. Secretaria Especial de Direitos humanos. Comissão

Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão

Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília:

Secretaria Especial dos Direitos humanos, 2007, pp.30-31.

2. PADRóS, Enrique Serra. “Repressão e violência:

segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-

americanas” In: Ditadurae Democracia na América

Latina, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2008.

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Através da edição de decretos-leis, da ela-boração dos chamados Atos Institucionais, da adoção de maciça propaganda para for-jar um falso nacionalismo e da estruturação de um aparelho punitivo contra os oposi-tores ao regime empresarial-militar, a dita-dura garantiu o aprofundamento de certo padrão de acumulação capitalista atrelado às necessidades do mercado transnacional, promoveu um processo de ocidentalização do país (baseado no “American Way of Life”) e produziu impérios econômicos. O regime empresarial-militar buscou, assim, derrotar os movimentos populares organi-zados, arruinar projetos de distribuição da riqueza social que ameaçavam mudar a relação capital-trabalho no país, e destruir as instituições democrático-representativas que promoviam o pluralismo político. A po-lítica econômica adotada pelos militares foi fundamental para a sustentação da nova institucionalidade autoritária, a construção do aparato repressivo e a viabilização dos serviços de censura, de vigilância e controle. Existe, portanto, uma ligação direta entre a sala de tortura, o pau-de-arara, a “geladei-ra” e as fontes de financiamento empre-sariais provindas daqueles que, em última instância, se beneficiavam do modelo de desenvolvimento do regime militar3.

A ditadura deixou visíveis sequelas em nossa sociedade. Depois de trinta anos do fim do regime, suas consequências perma-necem até os dias atuais como obstáculos para o desenvolvimento social e político de nosso país. Nesse ponto, é preciso concor-dar com aqueles que afirmam que a dita-dura brasileira foi a mais violenta do Cone-Sul, não em razão do número de mortos ou desaparecidos, mas em razão de tudo que ainda resta deste regime em nossa socieda-de atual4. Fomos o último país da América Latina a instituir uma Comissão Nacional da Verdade, não responsabilizamos os autores das graves violações de direitos humanos ocorridas naquele período e distorcemos a história para justificar as barbáries do regi-me, persistindo em manter um projeto au-toritário de conciliação cujo símbolo central é a lei de anistia de 1979, interpretada a partir da “reciprocidade” entre os crimes políticos e aqueles cometidos pelos agen-tes estatais. Assim, chegamos em 2014 sem que as Forças Armadas reconhecem os hor-rores dos anos de chumbo. Pior, no aniver-sário de 50 anos do golpe, a cidade de São Paulo foi palco de uma passeata onde seto-res conservadores da elite brasileira pediram a volta dos militares. Apesar do pequeno numero de participantes, tal acontecimento

não deixa de ser um triste sintoma de um passado que ainda nos assombra.

Fatos recentes explicitam os limites do pro-cesso de justiça de transição em curso no Brasil – processo esse que se intensificou a partir de 2012, com a instalação da Comis-são Nacional da Verdade e das comissões estaduais, municipais e setoriais que se es-palharam pelo país. No dia 14 de novem-bro de 2014, o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal (PF) realizaram uma operação de busca e apreensão no hospital Central do Exército (hCE) em Ben-fica, Rio de Janeiro. Além de constatar que aquela unidade do Exército ocultou docu-mentos que, meses antes, foram objeto de diligência conjunta da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão da Verdade do Rio, a operação descobriu que membros e integrantes da referida delegação foram, posteriormente, objeto de investigação preliminar daquela unidade militar: o MPF chegou a encontrar uma pasta do Exército com nomes, fotografias e informações de integrantes das duas comissões.

A progressiva militarização do Estado, as seguidas intervenções das Forças Armadas no espaço urbano (por exemplo, em 1992, 1994, 2008, 2010, 2014, para ficar só na cidade do Rio de Janeiro), o avanço de pro-gramas de segurança orientados pela lógica da guerra ao “inimigo”, os altos índices de letalidade das nossas polícias, a criminaliza-ção dos movimentos populares, o oligopó-lio das grandes empresas de comunicação e a conivência de nossas instituições contem-porâneas com antigas figuras da ditadura que ainda ocupam cargos políticos, são in-dícios de arranjos de poder – reorganizados, intensificados e elaborados pela ditadura – que até hoje continuam a funcionar. A vio-lência do presente não pode ser, portanto, desassociada do nosso passado repressor. Desconsiderar os limites de nossa transição democrática seria um erro, posto que eles confirmam a perseverança de uma tradi-ção institucional e de uma cultura política ainda amarradas a formas de autoritarismo não plenamente superadas. O esforço de resgatar o passado ditatorial para decifrar o presente, contudo, não deve ser entendido como um fim em si mesmo, mas como um meio para a ação política. No lugar de na-turalizar ou esquecer o passado em nome de um dito “progresso”, urge atualizá-lo a partir dos problemas que se colocam no presente. A luta pela memória, justiça e ver-dade é, assim, decisiva para a construção de um novo futuro.

2. DORNELLES, João Ricardo W. “50 anos depois ainda vivemos o horror” In: Especial 50 anos do Golpe, Carta Capital, 06/04/2014.

3. SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson. “O que resta da ditadura-Apresentação” In: O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. Pag. 10.

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Assim, nesse capítulo apresentamos, além da entrevista com Vitória Grabois, integrante do Grupo Tortura Nunca Mais, um artigo sobre a atuação da Comissão Estadual da Verdade do Rio. há ainda os seguintes itens: 3.1 - Ra-

cismo penal e a banalização da prisão provi-sória; 3.2 – Principais denúncias do Sistema Prisional de 2014 e; 3.3 – As denúncias do Sistema Socioeducativo pelo Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura;

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50 anos do golPe militaR – vidas, libeRdades e identidades subtRaÍdasVitória Lavínia Grabois Olímpio, nascida em 1º de novembro de 1943, é presidente do Gru-po Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Filha do comunista Maurício Grabois, fundador do Partido Comunista do Brasil e guerrilheiro desaparecido do Araguaia, Vitória viveu sua juventude na clandestinidade. Sua militância começou ainda na Faculdade Nacional de Filo-sofia, atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Ao reivindicar com outros cole-gas, em 1963, eleições diretas para direção da faculdade, o então presidente João Goulart a suspendeu. quando retornou do período de suspensão, ocorreu o golpe militar e todos os alunos suspensos foram expulsos da Faculdade, incluindo o jornalista Elio Gaspari. A di-tadura militar levou seu pai, Maurício Grabois, seu irmão André Grabois, seu companheiro Gilberto Olímpio, sua liberdade e identidade.

CDDHC: Conte um pouco de sua história e a entrada na militância política?Vitória: Eu tive uma vida modesta. Meu pai era judeu e frequentávamos a comunidade judaica. Muitos judeus comunistas tinham um nível de vida de classe média, minhas amigas tinham um quarto só para elas, mas eu não tinha isso. Morávamos em um quarto e sala em Niterói e eu dormia com o meu irmão na sala. quando tinha reunião do Partido, eu com 18 anos dormia com os meus pais no quarto para dar lugar aos companheiros que vinham de São Paulo. Imagine isso para uma adolescente? Então, eu dizia que nunca iria entrar no Partido e que iria cuidar da minha vida, seria uma an-tropóloga para trabalhar com os indígenas no interior do Brasil. Meu sonho era ser as-sistente de Marina São Paulo Vasconcelos, seu assistente principal à época era Darcy

Ribeiro. Mas isso a ditadura militar me tirou. quando entrei para a faculdade já havia co-branças relacionadas ao meu sobrenome, sempre me perguntavam o que eu era de Maurício Grabois. Mas a gente ainda respi-rava democracia. quando fui suspensa da faculdade, negociei diretamente com o pre-sidente João Goulart, tanto que estávamos na antessala do Jango quando o seu secre-tário nos informou que não poderia nos atender porque acabara de receber um tele-fonema do embaixador de Washington di-zendo que Jonh Kennedy fora assassinado. O ano de 1963 foi lindíssimo, não esperáva-mos um golpe militar no ano seguinte. Com a ditadura, minha família toda passou para a clandestinidade e nos mudamos para São Paulo. Fui a Porto Alegre levar documentos que foram encaminhados para o Brizola no Uruguai. Lá me deram uma certidão de nas-

Vitória Grabois revela que o golpe militar retirou sua liberdade e identidadeLe

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cimento com o nome de Teresa, então tirei carteira de identidade, título de eleitor, pas-saporte e iniciei militância na clandestinida-de. A nossa casa funcionava como apare-lho do PCB e, se desse problema no comitê central na Lapa, onde ocorreu a chacina de 1976, todos deveriam ir para a minha casa.

Eu atuei no Comitê Brasileiro da Anistia (CBA), que foi decretada em agosto de 1979, mas só voltei para a minha vida pú-blica em 1980. Depois que o CBA acabou, entrei para a militância no Fórum Feminista e no Grupo Tortura Nunca Mais pelo resga-te da memória.

CDDHC: O que mais marcou durante o Golpe de 64?Vitória: A retirada da minha liberdade e identidade. Eu tive os meus direitos políticos cassados por 10 anos, não poderia entrar em nenhuma universidade pública do Bra-sil. Então, no final de dezembro de 64 eu casei com Gilberto e fomos para o interior do Mato Grosso fazer parte de um grupo de reconhecimento geográfico da região onde iria se instalar a guerrilha. Meu pai diz que aquele núcleo iria acabar porque não teria mulher na guerrilha. Voltei para São Paulo e decidi ter um filho, porque achava que não teria outra chance. Inclusive costumo dizer que meu filho Igor salvou a minha vida, por-que não voltei para a guerrilha por causa dele. E fiquei com minha mãe como apoio, já que ela também não poderia participar da guerrilha por ser considerada velha aos 50 anos. Viajei quatro vezes para a Europa como “pombo correio”, porque o Partido só mandava gente de confiança. E meu pai foi o comandante da Guerrilha do Araguaia ao lado do meu irmão e do meu marido. E eles são dados como desaparecidos desde 1973. Têm pessoas que criticam a luta ar-mada, mas naquela época não havia outra saída. E todos deram o seu bem maior que era a vida na luta pela liberdade. Eu sofri muito, e sinto mais pelo meu irmão porque éramos muito amigos. Já meu pai morreu como ele quis, na luta, assim como o Gil-berto. E senti muito pelo meu filho Igor que foi criado sem o pai.

E na clandestinidade foi muito duro. Tive que mudar o nome do Igor também, en-tão coloquei o nome de Jorge, que significa Igor em russo. E um dos dias mais terríveis da minha vida foi quando um dos colegui-nhas dele perguntou qual era o seu nome. E ele disse: “Na escola me chamam de Jor-ge”. Como se dissesse que não fazia dife-rença chamá-lo de Jorge ou de Igor. E ele

achava que Igor e Vitória eram apelidos, já que só os nossos familiares nos chamavam assim. E isso era muito duro. Viver na clan-destinidade era pior do que estar na cadeia. quem diz isso são as próprias pessoas que estiveram presas, torturadas e depois fo-ram obrigadas a entrar na clandestinidade. é claro que não há como definir a prisão e a tortura. Mas quando estavam nos DOI-CODIs da vida com seus companheiros, elas mantinham a sua identidade. Já na clandes-tinidade você vive uma outra identidade, tanto jurídica como emocional. Eu até me esquecia que me chamava Vitória, porque eu não podia errar o nome Teresa.

CCDHC: Como avalia a postura do Estado Brasileiro após o Golpe Militar nesses 50 anos?Vitória: Uma postura lamentável. Todos os governos civis que sucederam a ditadura militar têm uma dívida com o povo brasi-leiro e, em especial, com os familiares dos mortos e desaparecidos políticos. Nada foi feito. Apenas agora, passados quase 50 anos do golpe, que foram instituir as Co-missões da Verdade. Enquanto qualquer governo da América Latina, após o término das ditaduras, logo iniciaram o funciona-mento das Comissões da Verdade. E se hoje temos Comissões da Verdade se deve à luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos e dos Grupos Tortura Nunca Mais do Brasil. Os familiares do Araguaia entra-ram com uma ação em 1982 para a iden-tificação e localização dos restos mortais. Estamos em 2014 e essa ação ainda não foi executada, apesar de ter sido julgada em 2007. Por conta da morosidade da Justiça brasileira, nós entramos com uma ação na Corte Interamericana de Direitos humanos da OEA. A Corte deu a sentença final em 2010, mas o governo do então presiden-te Luiz Inácio Lula da Silva encaminhou ao Congresso Nacional um anteprojeto das Comissões da Verdade. O governo se ante-cipou porque sabia que a Corte demandaria a criação das Comissões. Por isso, a Comis-são da Verdade é fruto da nossa luta.

CDDHC: Como o Tortura Nunca Mais se posiciona diante da Comissão Nacional da Verdade?Vitória: Temos sérias críticas. queríamos uma Comissão da Verdade e da Justiça, mas a justiça não foi feita. A sentença da Corte Interamericana diz, em seu artigo 256, que a lei da anistia brasileira não impede que aqueles que cometeram crimes contra a hu-manidade sejam processados. é com base nessa sentença que o Ministério Público Fe-

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deral tem entrado com ações nos Tribunais de Justiça para a abertura de processos con-tra os torturadores. Todo mundo já sabe da nossa verdade, ela sempre foi contada por nós através de livros, filmes e estudos aca-dêmicos. Agora precisamos saber o que fi-zeram com as pessoas que questionaram o regime militar. quando e como foram mor-tos, quem os matou. Cadê os restos mortais de cerca de 500 brasileiros?

CDDHC: Por que e pelo o que ainda é necessário lutar?Vitória: A grande luta do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro pela a abertu-ra dos arquivos da ditadura. Eu espero que este segundo mandato da presidente Dilma

Rousseff seja diferente, porque até agora, todos os presidentes fizeram acordos com os militares em nome da governabilidade. Isso precisa ser rompido. O Brasil precisa cumprir a sentença do Araguaia, já que nem ao menos a reparação dos familiares foi fei-ta em sua integridade. Mães de vítimas da ditadura estão morrendo ou perdendo a lucidez e não foram reparadas. No dia que esses militares forem processados, que seus familiares e vizinhos souberem que eles fo-ram torturadores e assassinos, muita coisa pode mudar. Espero que a presidente tenha coragem política de exigir do Supremo Tri-bunal Federal o cumprimento da sentença do Araguaia e abertura de todos os arqui-vos da ditadura militar.

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a justiça da tRansação e a (não) RuPtuRa na luta Pelo diReito À memóRia,À veRdade e À justiçaPor Nadine Borges1

Estamos em 2014 e faz exatamente 50 anos que houve um golpe militar em nosso país. A maioria de nós leu, viu ou ouviu alguma coisa em março e abril deste ano sobre o cinquentenário de um passado que insiste em não passar e se perpetua no presente com diversas violações de direitos humanos. Eu particularmente nunca tinha visto se fa-lar tanto em ditadura, lei de anistia, mortos e desaparecidos políticos, crimes contra a humanidade, tortura e morte de pessoas que ousaram lutar pela democracia.

Discutir sobre esse tema nos permite enten-der que hoje, os “subversivos” de ontem, transformaram-se em “vândalos” e são em sua maioria jovens negros e pobres. Esse ex-termínio da juventude negra e pobre no Es-tado do Rio de Janeiro não deixa registros, similar ao que ocorria na época da ditadura. é sobre essa ausência que escreveremos. Não se trata de uma tarefa simples, pois até hoje os arquivos das Forças Armadas não fo-ram abertos e ninguém sabe de fato quem, como e onde estão os corpos das centenas de pessoas que desapareceram durante a ditadura que durou 21 anos (1964-1985). Da mesma forma, ninguém sabe até hoje onde está o corpo de Amarildo e de tantas outras pessoas que morrem diariamente e são vítimas da violência do Estado.

O último 31 de março ou o 1º de abril desper-taram interesse por um tema forçosamente silenciado pelo próprio Estado durante déca-das. Não foram poucos os debates em esco-las e universidades com intuito de elucidar o período do regime militar ditatorial no Brasil. Nos últimos dois anos centenas de livros, fil-

mes, documentários, peças teatrais, mostras fotográficas, audiências públicas na ALERJ em parceria com a Comissão de Direitos hu-manos, exposições, debates, o Movimento Ocupa Dops, seminários e palestras deram conta de mostrar o caráter pedagógico do que escolhemos chamar de “descomemora-ção do golpe militar”.

E o que foi o golpe militar? Por qual razão foi criada uma Comissão da Verdade? Para que serve essa Comissão? Alguém será punido?

Antes de responder essas perguntas é bom recordar que a Comissão Nacional da Ver-dade iniciou seus trabalhos em 16 de maio de 2012 e teve como principal objetivo exa-minar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período. O relatório final apresentado em 10 de de-zembro de 2014 reconstituiu parte da histó-ria dessas violações e é mais um passo para promover o direito à memória e à verdade em nosso país.

Para entendermos do que se trata exata-mente o trabalho de uma comissão da ver-dade é preciso saber o que são as graves violações de direitos humanos. Essa respos-ta nos conduz ao questionamento de al-guns alicerces do que se denomina “direitos humanos”, tais como a restrição da gênese da noção contemporânea de “direitos hu-manos” ao advento da Revolução Francesa ou, mais recentemente, da Declaração Uni-versal dos Direitos do homem de 1948.

Antes de pensarmos nas violações que ocorrem todos os dias ao nosso redor é

1. Membro da Comissão da Verdade do Rio

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preciso lembrar que não foram poucas as resistências, os massacres e as invasões que dizimaram populações inteiras em to-dos os continentes ao longo de séculos. Muitos grupos, mesmo alguns que não tiveram direitos violados, ofereceram resis-tência e conseguiram gradativamente criar as primeiras normas de direitos humanos. Algumas delas, datadas do intervalo entre os séculos xVII e xIx, consolidaram os ei-xos considerados ainda hoje fundamentais na definição do que entendemos por direi-tos humanos. Mesmo que sigamos vivendo em um mundo desigual, é importante re-conhecer o movimento que alastrou para um grande contingente da população hu-mana instrumentos jurídicos forjados há mais de dois séculos para proteger grupos específicos.

Justamente por não se aterem a esta di-mensão mais orgânica da constituição dos direitos humanos como um bem social am-plo, seus detratores reduzem sua existên-cia e sua garantia ao Estado. Seja quando garantidos, seja quando violados, é apenas ao Estado que é atribuída agência e res-ponsabilidade. Embora seja fácil constatar que as declarações de direitos registradas em leis não correspondem à sua execu-ção, é de suma importância atentar para os riscos de desconsiderarmos os avanços. A despeito de suas debilidades, precisamos entender de maneira concomitante tanto a formação dos direitos humanos como um tesouro universal – que pertence a todos – quanto sua feição particular em contextos marcados por processos históricos específi-cos. Com um olhar atento a tal caráter sui generis, que incorpora avanços e retroces-sos, somos capazes de nos aproximar de enigmas de diversas ordens, como o foi o Golpe Militar de 64 e tantos outros que lhe foram contemporâneos. Tal compreensão mais acurada nos permite ir além da pura estupefação que nos domina ao pensarmos que aquele regime totalitário se estabelecia depois, por exemplo, da queda do regime nazista. A barbárie e a atrocidade se repe-tem vezes sem fim, entretanto, o que não nos é permitido é deixar que a repetição aconteça como farsa. Se houve punição para os crimes do nazismo, por que razão, até hoje não temos um registro exaustivo das vítimas do regime militar no Brasil? Não somente daquelas que à época foram identificadas, presas, julgadas, levadas a se exilarem ou mortas após longas torturas, mas também de pessoas anônimas que fo-ram torturadas, demitidas, perseguidas e prejudicadas em função do golpe militar,

incluindo quase 10 mil militares. Entre o regime nazista e o regime militar no Brasil não há apenas um abismo no tempo, mas uma chaga no brio de todos nós pois no primeiro caso – a despeito do inominável sofrimento – a histórias veio à tona em uma infinidade de matizes, ao passo que no Bra-sil a atuação dos agentes do Estado nessas graves violações continua sendo um enig-ma sem solução. Levando em consideração que muitos personagens dessa história de violações silenciada ainda estão vivos, por algum tempo ainda teremos testemunhas às quais desejamos coragem para enfrentar os fantasmas e a violência que nos rondam até hoje, impedindo-nos de construir uma outra história do nosso país, inspiradora de ações estratégicas para que os crimes da di-tadura nunca mais se repitam.

O caso brasileiro suscita debates a respeito da urgência de se tratar de tais sofrimen-tos com novas lentes. Não mais com o foco exclusivamente na verdade dos fatos, mas com o objetivo maior de, a partir do conhe-cimento e dos esclarecimentos dos fatos, nos tornarmos capazes de delimitar e qua-lificar as responsabilidades institucionais, sociais e políticas daquele período a fim de transformar radicalmente um paradigma de governo que nos acompanha até hoje, se-gundo o qual o Estado tem a prerrogativa de promover matanças – impunemente.

As experiências de outras comissões da verdade no mundo ajudaram a cicatrizar/curar feridas, ao revelarem publicamente as atrocidades cometidas pelo próprio Estado. O que a Comissão da Verdade do Rio tem em mãos hoje é a possibilidade de mostrar as causas e as consequências dessas viola-ções e, posteriormente, impulsionar refor-mas políticas e institucionais necessárias para evitar a repetição dessas violações. A Comissão não tem caráter persecutório, não pode e nem deve, portanto, ser uma alternativa para substituir qualquer autori-dade com poder de julgamento. Ao mes-mo tempo, a Comissão não pode se guiar somente pelo passado, porque a análise do ontem deve servir para subsidiar um novo começo, uma nova ordem política, ou seja, deve reunir elementos para que a sociedade possa atuar de forma preventiva, evitando a repetição de violações contra nossa hu-manidade.

Apesar deste desejo e inspiração, as reco-mendações que a Comissão do Rio fará ao Estado em seu relatório final só serão pos-síveis se soubermos o que ocorreu e como

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dação de Amparo à Pesquisa do Rio de Ja-neiro, um edital no valor de R$ 2 milhões, distribuídos entre 07 projetos de diferentes universidades do Estado do Rio para “Apoio ao estudo de temas relacionados ao direito à memória, à verdade e à justiça relativas a violações de direitos humanos no perío-do de 1946 a 1988”. Já adianto, os dados parciais causam perplexidade até para os especialistas e esperamos sistematizar a ri-queza desse conhecimento acadêmico de tal forma que contribua para a elaboração de políticas públicas voltadas para a não re-petição dessas violações.

Mexer com essa estrutura é um desafio que parece não ter fim, mas como não caminha-mos sozinhos sentimos durante todo o ano de 2014 o quão importante foi o cinquen-tenário do golpe militar para reinterpretar-mos o significado de uma ditadura militar que foi chamada de revolução democrática pelos golpistas.

Se hoje convivemos com um legado legis-lativo que remonta à época da ditadura é porque não conseguimos, apesar dos avan-ços da Constituição Federal de 1988, mexer com o viés ideológico autoritário que até hoje norteia os atos da administração públi-ca tanto no legislativo, quanto no executivo e, principalmente, no judiciário.

Em épocas de democracia ficamos com a falsa impressão de que o uso desmedido e irregular da força, como algo à margem das previsões legais, é algo peculiar dos regimes de exceção quando a Constituição perde seu significado com rompimentos. Se essa assertiva for correta por quais razões o di-reito à livre manifestação foi reprimido com armas “não letais” durante as manifesta-ções de junho, quando na verdade o que todos aqueles que tiveram nas ruas exerce-ram ao saber que a polícia militar usaria a força para reprimir, nada mais foi que o di-reito à legítima defesa. Ou alguém acha que dá para sair de casa e ir para um ato público sabendo que a polícia usará gás, bombas de "efeito moral" e spray de pimenta sem uma máscara para se proteger?

Essas constatações, por vezes óbvias, nos permitem ler que o poder exercido no Bra-sil no século xx desde a República Velha, passando pela ditadura Vargas, pela de-posição do Presidente João Goulart, pelo covarde golpe militar de 1964, pela transa-ção para aprovar a Lei da Anistia em 1979, pelo movimento das diretas negociado pela elite e até mesmo os governos com faces

ocorreu, sob pena de não sabermos o que não deve se repetir. Em alguma medida, re-velar esses fatos e essas circunstâncias pode ser um gesto capaz de gerar uma censura social sobre as pessoas e as instituições que cometeram essas graves violações de direi-tos humanos. A verdade sozinha não fará justiça e não é esse o papel de uma comis-são da verdade. O legado que podemos deixar por meio de nosso relatório é a reve-lação de injustiças silenciadas e muitas de-las até hoje cometidas. Isso possibilitará às futuras gerações melhores condições para conhecer e reconhecer os limites do Esta-do, garantidor dos direitos humanos que, apesar desta prerrogativa, foi, é, e sempre será capaz de atuar como violador desses mesmos direitos.

No caso fluminense, a Comissão foi consti-tuída pela Lei Estadual 6335/2012 aprovada pela ALERJ após um grande movimento de pressão de familiares dos mortos e desapa-recidos políticos, de ex-presos políticos e de uma militância jovem que tomou para si a luta pelo direito à memória, à verdade e à justiça. A Comissão da Verdade do Rio é composta por sete membros que possuem notória história de comprometimento com a defesa dos direitos humanos, a saber: ál-varo Caldas, Eny Moreira, Geraldo Cândido, João Ricardo Dornelles, Marcelo Cerqueira, Wadih Damous (presidente) e eu, Nadine Borges, que compartilho um pouco dessa experiência com vocês.

Nosso trabalho se dividiu desde o início em algumas frentes para investigar os casos de mortos e desaparecidos políticos, os planos e atentados terroristas praticados por agen-tes do Estado, o financiamento, as estrutu-ras e a institucionalidade da repressão, os centros clandestinos e oficiais da repressão e lugares de resistência e um observatório de não-repetição dessas violações.

Todo esse trabalho recebeu desde o início um apoio importante de uma estrutura que criamos chamada de Fórum de Participação da Sociedade Civil. Trata-se do principal eixo formulador das nossas ações, pois mensal-mente realizamos um encontro de portas abertas para escutar as demandas das orga-nizações da sociedade civil, de militantes e dos familiares e ex-presos políticos afetados pela ditadura.

há diversos relatos sobre o nosso trabalho, mas escolho um exemplo que revela o pa-pel pedagógico do que fazemos, vejamos: lançamos em parceria com a FAPERJ- Fun-

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de esquerda que começaram com algumas políticas sociais nos governos do Fernando henrique, do Presidente Lula e que seguem uma linha ascendente no atual governo da Presidenta Dilma apresentam similaridades incapazes de enfrentar a luta ideológica enraizada daqueles que como nos ensinou Vitor Nunes Leal são os coronéis donos das enxadas e dos votos. Não fosse assim os de-fensores da ditadura não teriam sido eleitos com milhares de votos na última eleição.

Se atentarmos para as reformas de base propostas pelo Presidente João Goulart no Comício da Central do Brasil em 13 de mar-ço de 1964, as quais mexeriam com a estru-tura fundiária e econômica em nosso país, algo até hoje não realizado, entenderemos que o modelo administrativo e político do nosso país se orienta, ainda atualmente, pelo interesse da classe dominante, inde-pendente de quem seja essa classe. é por isso que, apesar das eleições livres e regu-lares, milhares de pessoas foram às ruas em 2013 para reivindicar direitos e enfrentar uma crise de representatividade. Ou alguém acha normal que mais de 50% da popula-ção seja formada por mulheres e elas ocu-pem apenas 8% das cadeiras no Congresso Nacional?

Nenhum governo, desde o fim da ditadu-ra, poupou o uso da violência para reprimir lutas sociais, embora a intensidade tenha sido diferenciada, conforme os interesses econômicos.

Não há dúvidas de que a democracia é sem-pre melhor que qualquer ditadura e como disse a Presidenta Dilma durante a última campanha eleitoral não podemos esquecer que para quem viveu a ditadura ela está ali na esquina. Não temos o direito de tapar o sol com peneira e deixar de enfrentar esse modelo que permite até hoje o controle dos ricos sobre a economia e a política, subme-tendo os pobres a políticas compensatórias, quando todas as políticas devem ser repa-ratórias. Devemos comemorar as políticas dos governos Lula e Dilma que retiraram quase 40 milhões da pobreza, mas o que fazer com os 16 milhões que ainda vivem na extrema pobreza?

Tudo o que nos toca e move diante dos problemas estruturais de moradia, acesso à saúde, transporte público, distribuição de renda, acesso à educação está intimamente ligado com esse passado que não passou porque a ditadura, assim como a escravidão foi um negócio: deu lucro. O que não pode-

mos é permitir que a democracia também seja um negócio e cabe a cada um de nós lutar todos os dias contra isso. é óbvio que esses 30 anos de democracia trouxeram conquistas na área da educação, da saú-de, do emprego, da qualidade e expectativa de vida, mas infelizmente os que têm mais continuam com mais, independente daque-les que tinham menos e hoje possuem um pouco mais. Não sejamos ingênuos, conti-nuamos sujeitos a um conjunto de medidas políticas e econômicas gestadas na ditadura que permanecem intocadas quando se tra-ta da real distribuição do poder econômico que nada mais faz além de fomentar a in-justiça social.

Estudar o período da ditadura e investigar as atrocidades cometidas nos ajuda a com-preender o motivo dos pobres e excluídos de hoje serem torturados nos moldes do que fizeram com os “terroristas” ou “sub-versivos” que simplesmente desapareceram não apenas para seus familiares, mas para a história do país.

é contra esse esquecimento e essas ausên-cias que pautamos nosso trabalho na Co-missão da Verdade do Rio. Isso nos conduz à certeza de que o golpe militar de 1964 foi antidemocrático, mas a ruptura com o mo-delo de encarcerar pobres e excluídos ainda não ocorreu. Não fosse assim a população carcerária em nosso país não seria a maior de todos os tempos.

Será que, seja há diferença entre matar, tor-turar, desaparecer, condenar pela mídia an-tes de julgar na ditadura e na democracia? Enquanto não rompermos com as estrutu-ras que concentram o poder econômico e político nas mãos dos mesmos de sempre estaremos apenas reproduzindo o mesmo modelo das capitanias hereditárias.

Infelizmente a atual composição do Con-gresso Nacional, somada a decisão equivo-cada do STF de não revisar a Lei da Anistia, fato que permitiu aos próprios torturadores se anistiarem, são bons exemplos de que a essência não mudou. Se por um acaso al-guém defender que mudou, nos resta per-guntar o motivo de não ter mudado para quem vive em áreas dominadas pela milí-cia ou pela polícia que arrasta corpos pelas ruas, ou àqueles que moram nas ruas, em sua maioria negros.

Nosso trabalho na Comissão da Verdade tem vários objetivos previstos em lei, mas somos movidos pela convicção que enquan-

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to o inimigo de hoje for o “subversivo” de ontem precisaremos enfrentar o alicerce do modelo de representação política que sustenta o capitalismo, não importando os rótulos da democracia quando as desigual-dades são alarmantes.

Se eu pudesse apostar em uma fórmula para enfrentar essa desigualdade, come-çaria pela revisão da Lei da Anistia, pois a lógica do perdão é o que permite a conti-nuidade de práticas incapazes de promover qualquer mudança.

O que aconteceu em nosso país no ano de 1979 quando a Lei da Anistia foi aprovada é uma aberração. Ninguém pode discordar da anistia dada aos que enfrentaram e con-seguiram sobreviver a ditadura, mas como concordar com anistia para torturadores, estupradores, facínoras que não comete-ram crimes políticos, ou alguém acha que arrancar mamilos e estuprar mulheres ou colocar baratas e jacarés para obter confis-sões é crime político?

é por essas e outras que acredito em um movimento na sociedade brasileira capaz de enfrentar essa barbaridade.

Defendo as políticas adotadas desde 1995 que admitem a responsabilização do Estado por essas violações de direitos humanos. A lei nº 9.140/95 (com as al-terações da lei nº 10.875/2004) que re-conheceu como mortas e com direito à reparação as pessoas ali nomeadas e a lei nº 10.559/2002 que criou a Comissão de Anistia são bons exemplos. Contudo são exemplos políticos com desdobramentos administrativos através de reparações pe-cuniárias e simbólicas e continuam afas-tando qualquer possibilidade de ações judiciais. Não adianta reparar com a ex-pectativa de promover uma reconciliação nacional forçada. Se há de fato vontade mudar, e aqui cabe um reconhecimento a Presidenta Dilma que criou a Comissão Nacional da Verdade, os resultados para que possamos falar em ruptura só virão no dia em que a justiça bater à porta dos autores das violações, sejam esses agen-tes militares, empresários nacionais e in-ternacionais, permitindo o direito ao con-traditório e a ampla defesa, algo que eles negaram àqueles que foram, e continuam sendo, mortos e torturados. Ou isso, ou a justiça de transição sem ruptura continua-rá sendo a justiça da transação.

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3.1. RaCismo Penale a banalizaçãoda PRisão PRovisóRia:

“Ele sacou a arma, apontou pra mim e disse: ‘sou policial civil, cadê a bolsa, cadê a bol-sa?’ Os carros passavam e falavam ‘vagabundo, vagabundo’. Eu falei que eles estavam enganados, que eles tinham pego o cara errado”

Fala do jovem Vinicius Romão na Audiência Pública realizada pela CDDhC ALERJ no dia 13 de março de 2014.

No dia 10 de fevereiro de 2014, Vinícius Ro-mão foi parado pela polícia, logo depois de subir uma escada que dava acesso a um via-duto no Méier, bairro na Zona Norte do Mu-nicípio do Rio de Janeiro. Ele tinha acabado de sair do trabalho, em um shopping nessa região, e estava quase chegando em sua casa quando a polícia o abordou. Nesse mesmo instante, “Dona Dalva falou: ‘foi ele, foi ele’”.

A partir daí o policial o rendeu e o man-dou botar a mão para trás e deitar no chão. “Ele sacou a arma, apontou pra mim e dis-se: ‘sou policial civil, cadê a bolsa, cadê a bolsa?’ Os carros passavam e falavam ‘va-gabundo, vagabundo’. Eu falei que eles es-tavam enganados, que eles tinham pego o cara errado. ‘Eu sou inocente, não vai ter arma comigo, não vai ter bolsa, não vai ter nada’”, disse Vinícius.

Nesse momento a abordagem truculenta é seguida por erros sucessivos que iriam deixar Vinicius por mais de 16 dias preso no Complexo Penitenciário de Gericinó. O primeiro erro: flagrante sem embasamento legal, uma vez que ele não estava sendo perseguido, ao abordá-lo o policial já partiu da premissa de que ele era o autor do cri-me com base no testemunho de uma vítima que ainda estava nervosa, sob o efeito do ato violento que acabara de sofrer, e ne-nhum pertence foi encontrado no local.

Segundo erro: reconhecimento às pressas, considerando que o código de processo pe-

nal recomenda que o reconhecimento seja feito em uma sala com pessoas com carac-terísticas semelhantes àquelas da pessoa descrita, com a mesma roupa. Terceiro erro: cerceamento de defesa, pois, após ser de-tido, Vinícius foi levado à delegacia e só o deixaram fazer uma ligação no dia seguinte. Além disso, o mesmo foi interrogado pelo delegado quando já estava na cela, sem a presença de um advogado. quarto erro: a prisão foi mantida sem elementos sufi-cientes, uma vez que o Ministério Público Estadual manteve a privação da liberdade mesmo não havendo absolutamente nada que a justificasse.

há uma característica de Vinícius Romão que até então não foi exposta, trata-se de um jovem de 27 anos e negro, semelhante a outros diversos jovens e negros presos no Estado do Rio de Janeiro sem qualquer ga-rantia do devido processo legal. Contudo, graças à mobilização de amigos e parentes de Vinícius, os erros do sistema penal pu-deram ser corrigidos, o que não acontece com muitos presos no Estado. A ação pe-nal contra Vinícius Romão foi arquivada e a Corregedoria Interna da Polícia Civil abriu procedimento para apurar as irregularida-des da prisão. A investigação vai avaliar a conduta do policial civil Waldemiro Antunes de Freitas Junior, da 11ª DP (Rocinha), que abordou Vinícius e apresentou a ocorrência à 25ª DP (Engenho Novo), e a do delegado de plantão William Lourenço Bezerra, res-ponsável pelo equivocado flagrante.

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Em audiência pública realizada pela Comis-são de Defesa dos Direitos humanos e Cida-dania da Alerj, no dia 13 de março de 2014, outros casos semelhantes foram apresenta-dos, evidenciando uma questão estrutural no sistema de justiça criminal do Estado. Douglas de Oliveira Moreira, presente na audiência, foi acusado de participar do rou-bo de um automóvel em julho de 2013, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Segundo as informações colhidas por seus familiares na Delegacia, a polícia chegou até Douglas através das redes sociais, inves-tigando um de seus “amigos”, denunciado como receptador de peças de automóveis roubados.

Douglas foi preso em sua residência por vol-ta de cinco horas da manhã do dia 09 de janeiro de 2014, tendo inclusive seus per-tences quebrados pela polícia no momento de sua prisão. A ocorrência foi registrada na 58ª DP, em Comendador Soares, e, após prestar depoimento pelo qual negou as acusações, Douglas foi encaminhado para o sistema penitenciário. Procurada por seus familiares, a CDDhC solicitou à Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (FETRANSPOR) informações sobre a utilização do Bilhete único na data do crime em questão, dado que indicou a localização e horário de Dou-glas no momento do fato; o mesmo esta-va dentro de um ônibus, a mais de quinze quilômetros de distância do roubo do carro. Apesar dessa informação, após permanecer preso por um mês, Douglas está em liber-dade provisória e ainda responde à ação penal.

Enquanto isso, hércules Menezes San-tos ainda está preso pelo mesmo crime imputado a Douglas, mesmo depois da identificação e prisão da quadrilha que roubava carros na região e constatação da semelhança com um dos integrantes do grupo. Cabe destacar que o recepta-dor preso afirmou não conhecer hércules e seus familiares depuseram informando que estavam com o mesmo em casa na hora do crime, o que não foi levado em consideração. Apesar dos esforços da Co-missão de Igualdade Racial da OAB/RJ, de seu advogado e da CDDhC, hércules ainda aguarda julgamento preso desde ja-neiro de 2014 por roubo de carro, mesmo não sabendo dirigir.

Ao olhar os casos aqui narrados fica pa-tente que há uma inversão do ônus da

prova. A prisão aparentemente elimina a necessidade de investigação, passando a ser a prisão a resposta à sociedade da-quilo que tememos. Ela culturalmente eli-mina a necessidade de investigação. Essa constatação fica mais evidente ao analisar os casos de prisão provisória no Estado do Rio de Janeiro.

Também presente na audiência, o pesqui-sador Ignácio Cano apresentou o resulta-do de uma pesquisa realizada ao longo de 2013 sobre a avaliação da aplicação da Lei nº 12.403, de 2011, na prisão provisória no Rio de Janeiro, realizada pelo CESeC, Cen-tro de Estudo de Segurança e Cidadania, da Cândido Mendes.

A Lei nº 12.403, de 2011, chamada lei das medidas cautelares, abre para o Judiciário um grande leque de alternativas. Entre es-sas medidas alternativas à prisão provisória estão: o comparecimento em juízo, a proi-bição de acesso a determinados lugares, a proibição de manter contato com uma pessoa específica, a proibição de se au-sentar da comarca, o recolhimento domi-ciliar, a suspensão do exercício da função pública, a internação provisória nos casos de imputabilidade, fiança e monitoração eletrônica.

A pesquisa contou com duas partes: análise quantitativa sobre os casos de prisão provi-sória flagrantes no ano de 2011 no Rio de Janeiro e uma pesquisa qualitativa com en-trevistas a defensores, juízes, promotores, advogados e observação de audiências. Na pesquisa quantitativa, foram analisados um total de 6.084 réus envolvidos em 5.400 processos de janeiro a dezembro de 2011. Foi obtida a lista da distribuição dos fla-grantes do Judiciário. No final, foi possível comparar - porque a informação não está completa em todos os casos - a situação de 3.339 detidos antes da entrada em vigor da lei com a de 2.745 detidos depois da entra-da em vigor da lei. A pesquisa qualitativa entrevistou 36 juízes, promotores, defenso-res e advogado e observou 10 audiências de julgamento.

A primeira constatação é que, na primeira medida tomada pelo juiz após a prisão em flagrante, 79% dos réus foram mantidos em prisão provisória e apenas 21% tiveram acesso a outra medida cautelar diferente da prisão provisória. Ou seja, a prisão provisó-ria é a medida cautelar imposta, via de re-gra, no Rio de Janeiro.

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que o tráfico e o roubo têm uma propor-ção de prisão provisória superior a de ho-micídio. Em 5% dos casos de homicídio há outra medida, mas no caso de roubo e tráfico não há, absolutamente, nenhuma outra medida provisória que não seja a pri-são cautelar.

Gráfico 1 Primeira medida cautelar imposta após a prisão em

flagrante para todos os tipos de crimes no ano de 2011

Prisão provisória

3.818 (79%)

Outras medidas

1.041 (21%)

Ao verificar o tipo de crime, como pode-mos esperar, alguns deles não têm nenhu-ma outra medida cautelar, como o caso de roubo, tráfico, homicídio e outros crimes. Outros crimes, então, recebem outras me-didas cautelares diferentes da prisão em maior proporção. Note-se, por exemplo,

Gráfico 2 Primeira medida cautelar imposta após a prisão

em flagrante no ano de 2011, por tipo de crime (em %)

77

59

16

56

69

70

75

90

93

95

99

99

100

23

41

99

85

44

31

30

25

10

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Todos os casos (3.993)

Outros delitos (373 casos)*

Falsificação de sinal de fiscalização alfandegária (147 casos)

Violação de direito autoral (71 casos)

Estelionato (64 casos)

Furto (849 casos)

Furto qualificado (310 casos)

Receptação (145 casos)

Porte ilegal de arma (Estatuto do Desarmamento - 143 casos)

Homicídio qualificado (55 casos)

Homicídio (56 casos)

Tráfico de drogas (440 casos)

Roubo (717 casos)

Roubo circunstanciado (346 casos)

Prisão Outras medidas

Antes da entrada em vigor da nova lei, 84% dos réus presos em flagrante tiveram a pri-são cautelar mantida pelo juiz; depois da entrada em vigor da lei o número caiu para 72%. Ou seja, a lei reduziu em 11% a apli-cação da prisão provisória, mas ela continua a ser a majoritária.

Ainda de acordo com o levantamento, há um aumento no número de casos classifi-

cados como de maior gravidade quando se trata de furto e roubo. As ocorrências de crimes de furto qualificado e roubo cir-cunstanciado ultrapassaram as de furto e roubo depois que a lei entrou em vigor, em julho de 2011. A evidência é muito clara no sentido de que alguns delegados estão mudando a tipificação penal para conseguir manter a prisão provisória e evitar o impac-to benéfico da lei.

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Ao analisar o resultado dos processos ini-ciados em 2011 com prisão em flagrante é possível verificar que apenas 31% des-ses casos resultam na prisão em regime fechado; 18% em regime semiaberto; 4% em regime aberto; 15% outras penas; 7% absolvição e outras questões processuais e apenas 1% de réu revel. Isso quer dizer que as pessoas são mantidas em prisão provi-sória sendo que menos de 1/3 delas serão, depois, condenadas a prisão em regime fe-chado. Em 70% dos casos, as pessoas estão sendo mantidas numa condição mais grave do que a pena a qual será condenada. Esse dado é claro no sentido do abuso da prisão provisória no Rio de Janeiro.

Os pesquisadores ainda tentaram entender o porquê essa situação de abuso sistemáti-co da prisão provisória. De acordo com um dos juízes entrevistados, as medidas caute-

lares não são implementáveis e não podem ser fiscalizadas, e como não funcionam, então, a opção adotada é manter a prisão provisória. Ou seja, na dúvida, aplica-se a prisão provisória.

Algumas sentenças analisadas são muito ilustrativas. Por exemplo, em uma delas, o juiz declara que “o tráfico de drogas é o grande responsável pela guerra civil não declarada, sendo a conduta atribuída ao indiciado de natureza hedionda, em tese, relevante para a disseminação das subs-tâncias entorpecentes, gera insegurança e fragilidade, demandando restrição ambula-torial do denunciado para o resguardo da ordem pública”. Ou seja, quem é acusado de tráfico é responsável pela guerra civil que acontece no Estado e, segundo o juiz, deve ficar preso. Para Ignácio Cano, responsável pelo levantamento, a estigmatização e de-

Gráfico 3

Número de prisões em flagrante por furto, furto qualificado, roubo e roubo circunstanciado, segundo mês da distribuição

0

20

40

60

80

100

120

Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

Mês da distribuição

Núm

ero

de c

asos

FurtoFurto qualif icado

0

20

40

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100

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Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

Mês da distribuição

Núm

ero

de c

asos

RouboRoubo circunstanciado

 

Tabela 1 Resultado de processos iniciados em 2011 com prisão

em flagrante e concluídos até janeiro de 2013

Sentença Número % % de casos válidos

Condenação a regime fechado 1.136 23,4 30,9 Condenação a regime semiaberto 686 14,1 18,7 Condenação a regime aberto 169 3,5 4,6 Outras penas 584 12,0 15,9 Absolvição 288 5,9 7,8 Outras situações processuais 759 15,6 20,7 Réu revel 50 1,0 1,4 Total com informação 3.672 75,6 100,0 Sem informação 1.187 24,4 - Total de casos 4.859 100,0 -

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monização do tráfico acontecem de muitas formas, uma delas pelo uso e o abuso da prisão provisória.

Outra sentença muito interessante que também vem à tona quando menciona-mos os casos de Douglas e de Vinícius, que são pessoas negras, jovens e de ori-gem relativamente humilde, ilustra a per-cepção dos juízes. Em uma sentença, o juiz declara: “Diante da situação fática, não se encontram presentes requisitos que justi-ficavam a prisão cautelar. Res salto que a ré – uma mulher – possui o terceiro grau completo e profissão definida – é arquite-ta – e ainda tem um Fiat Palio Flex 2007”. Fica muito claro o critério de seletividade com o qual a prisão provisória é aplicada no Rio de Janeiro.

Vale ressaltar que na Constituição a pre-sunção da inocência é o princípio básico, e a prisão provisória é excepcional, aplicável apenas em algumas circunstâncias. Entre-

tanto, os próprios juízes estão afirmando que no Estado do Rio de Janeiro os denun-ciados ficam presos até que se descubra o que aconteceu, que tragam as provas; os réus são obrigados a produzir evidências para provar a sua inocência, em vez de o Estado produzir provas para confirmar a culpabilidade.

A CDDhC tomou as seguintes medidas so-bre o caso em questão:

• Realização de audiência pública em março de 2014;

• Caso Douglas – solicitação para FETRANS-POR das informações do bilhete único do usuário;

• Atendimento aos familiares e amigos de Vinicius Romão;

• Acompanhamento dos casos junto à Po-lícia Civil

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“eu fui vÍtima de RaCismo”A pele negra, o penteado black power e o racismo fizeram com que o psicólogo Vinícius Romão, 27 anos, fosse confundido com o ladrão que havia roubado a bolsa de uma mulher na Rua Amaro Cavalcanti, no Méier, em 10 de fevereiro deste ano. Ele voltava do Norte Shopping, em Del Castilho, onde trabalhava, quando foi detido. Além da falta de provas, o procedimento em que a vítima o reconheceu foi realizado sem obedecer às de-terminações da legislação penal. Vinícius ficou 16 dias preso na Casa de Detenção Patrícia Acioli, em São Gonçalo.

O fato de o psicólogo ter trabalhado como figurante na novela “Lado a Lado”, da TV Globo, em 2012, foi crucial para que fosse libertado. A mobilização de seus amigos e familiares nas redes sociais e a atenção dada pela imprensa permitiram que as arbitrariedades cometidas pela Polícia Civil fossem denunciadas.

CDDHC: Qual sua avaliação sobre a sua prisão e a forma como você foi tratado ao ser levado para a delegacia?

Vinícius: Por causa do erro de uma pessoa que me acusou injustamente, fui levado para a 25ª DP (Engenho Novo). Os meus direitos não foram vistos e uma sucessão de erros me levou à prisão. Vocês não sa-bem como é estar preso e não poder pro-var a inocência. Nem uma ligação pude fazer. Não pude ligar para um advogado, para meu pai ou para o meu trabalho. Meu pai é tenente-coronel do Exército. Se ele chegasse na delegacia com a carteira de militar, ia fazer diferença? E por quê? Por que ele tem autoridade? Perante a lei, somos todos iguais. Então, o garoto que cometeu o crime, que pensaram que fosse eu, também não ia ter condições de responder? Também não teria direito a nada? Eu tenho nível superior, carteira

de trabalho assinada, residência fixa, sou réu primário, mas nada disso foi investiga-do. quero saber o que o Estado faz hoje para mudar essa situação. A polícia de-veria proteger a população, mas isso não aconteceu.

CDDHC: Você acredita que foi vítima de racismo?Vinícius: Sim, fui vítima de racismo. Eu per-doei a moça que disse que eu tinha rouba-do porque ela estava muito nervosa, tinha acabado de ser assaltada. Mas foi racismo porque os meus direitos como cidadão não foram respeitados. Se o delegado tivesse feito uma simples ligação para o meu traba-lho, eu não teria passado pelo que passei. As leis existem, mas quem deveria cumprir não obedece. Se o delegado cumprisse a lei, eu não teria sido preso. Tudo isso dá a entender que o negro não presta, que é sempre visto como o culpado.

Vinícius Romão alega que o negro é sempre visto

como o culpado

Iara Pinheiro

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CDDHC: Você acha que, se não tivesse trabalhado numa novela da Globo, ainda estaria preso?Vinícius: Fiz três escolhas em minha vida que foram primordiais. Ter feito o curso de psicologia; trabalhado no IML (Instituto Médico Legal) e na 23ª DP (Méier); e o fato de ter feito figuração na novela. Por ter feito estágio na delegacia, fiquei tranqui-lo quando fui abordado porque achei que seria encaminhado para a 23ª DP. Os inspe-tores iam me ver e eles sabem do meu ca-ráter. Eu ia poder me explicar. Mas isso não aconteceu, fui para a 25ª DP. A psicologia me ajudou no presídio a ter um equilíbrio muito grande. Não tive contato com meu pai, não tive contato com os meus amigos. Pensei que estava sozinho e tive que ter um equilíbrio emocional grande. A figu-ração foi muito importante porque foi um

dos motivos que me tirou de lá. Se o jornal colocasse assim: “vendedor é confundido com ladrão...”, eu acho que ainda estaria lá. O fato de ser ator de novela foi o que em parte me tirou de lá.

CDDHC: Qual foi a importância da Comissão de Defesa dos Direitos Hu-manos e Cidadania no seu caso?Vinícius: Foi muito importante a comissão ter feito a audiência pública porque os ca-sos não são raros, não são isolados. Eles acontecem com muita frequência. Por isso, é importante que seja mostrado, exposto e que sirva para pressionar as instituições.

>> Veja aqui:https://www.youtube.com/watch?v=zu-dhh31v6Vc&index=2&list=PLib4jcpFaJi4a-CDgvnPcxnPGW3NabLEgo

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“me tRataRamComo animal”Douglas de Oliveira Moreira, 19 anos, tinha acabado de acordar quando, por volta das 5h30m, cerca de 15 policiais civis invadiram sua casa, na Rua Mina Ribeiro, na Pavuna, e, após insultos e agressões, o levaram preso. Douglas foi acusado de participar do roubo de um carro em Jardim Esplanada, Nova Iguaçu, em 27 de julho de 2013. Apesar de a inves-tigação ter se desenrolado por quase seis meses, ele nunca foi chamado pela polícia para depor. Sua prisão foi decretada unicamente porque a vítima o teria reconhecido através de uma foto no Facebook. Ele permaneceu preso por um mês.

O jovem recebeu o direito de responder em liberdade porque, no dia do crime, estava tra-balhando na Casa de Saúde Santa Terezinha, na Tijuca, como comprova o ponto biométrico do hospital e o registro de seu Bilhete único. Menos de 30 minutos antes de o crime ocorrer em Nova Iguaçu, ele estava saindo da Praça Saens Peña num ônibus.

CDDHC: O que ocorreu no dia da sua prisão?Douglas: No dia 9 de janeiro, eu estava em casa e me preparava para ir para o meu segundo trabalho quando fui intercepta-do por cerca de 15 policiais. Eles bateram na minha janela com bastante estrondo às 5h30m. quando acordei, ao abrir a jane-la, fui agredido com um tapa na cara. Eles mandaram eu sair pela janela. Como esta-va dormindo, estava de cueca. Eles disse-ram “você é ladrão, você é 157. Cadê as armas, cadê as armas?!” Me agrediram e não deixaram eu me explicar, falando que tinham grampos e vídeos. Eles invadiram e quebraram minha casa toda a procura de armas e de coisas que pudessem me incri-minar. queriam me forçar a confessar uma coisa que não fiz. Contribui, mostrei cada

cômodo e, cada vez que eu tentava me ex-plicar ou saber de alguma coisa, era uma agressão. Me levaram para a delegacia, de cueca, descalço e sem camisa. Ao entrar no carro, tomei uma coronhada de fuzil no joe-lho. Na delegacia, dois policiais me agredi-ram covardemente. Pior que a agressão é a palavra maldada. Não fui criado para ouvir que eu era marginal, que eu era ladrão, que eu colocava arma na cara de policial.

CDDHC: Você acredita que foi vítima de racismo?Douglas: Sim, não há alternativa. Fui preso injustamente, reconhecido pelo Facebook. A descrição dizia que a pessoa era negra, alta, magra e de cabeça raspada. O que podemos concluir é que a polícia, a partir destas características, poderia prender o Rio

Douglas de Oliveira diz que se não fosse a atuação da CDDhC, ainda estaria preso injustamente

Iara Pinheiro

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de Janeiro inteiro. Me intitularam ladrão de carros de alta periculosidade. Sempre man-tive minha vida, desde os 15 anos, quan-do comecei a trabalhar. Trabalho e estudo. Fui criado como pobre, mas tive tudo que a minha mãe, a minha avó e meus familia-res puderam ter. Passei por coisas que só pessoas como eu e o Vinícius Romão sabem o que é passar. O que é você ser transfe-rido, o que é você apanhar, ser agredido com palavras. Não tratam as pessoas como deveriam. Tratam como animal. Não é só o preso que sofre a humilhação. Todos os familiares sofrem. Toda ironia, todo o debo-che. Ao ponto de eles falarem para minha mãe que mãe é que nem corno, é o último a saber. Se não fossem as provas (o ponto biométrico do hospital e o registro do Bi-lhete único), poderia ter passado 10 ou 12 anos preso, como muitas pessoas passam. Entrei com a certeza de que era inocente, mas não sabia quando nem como ia sair. Minha opinião não valia de nada. O hér-

cules Menezes (condenado no mesmo in-quérito e também reconhecido através de uma foto no Facebook) ainda está lá preso. quantos outros estão na mesma situação? Eu conheci muitas pessoas que estão nessa mesma condição.

CDDHC: Qual foi a importância da Comissão de Defesa dos Direitos Hu-manos e Cidadania no caso?Douglas: Se não fosse a comissão eu estaria preso até hoje. A juíza mandou um ofício para conseguir o registro do meu Bilhete único no ônibus que peguei na Tijuca, mas até hoje ele não foi respondido. Se a co-missão não tivesse mandado o ofício e pres-sionado, até hoje estaria preso. Além disso, minha família recebeu todo apoio.

>> https://www.youtube.com/watch?v=L-CwmSojn7yI&index=3&list=PLib4jcpFaJi4a-CDgvnPcxnPGW3NabLEgo

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RaCismo instituCional, justiça CRiminal e genoCÍdio da juventude negRa

Por Bruno Cândido1

1. O racismo no Brasil

Um dos maiores desafios do Brasil é discu-tir os seus problemas internos, sendo até apelidado por grandes entidades de Direi-tos humanos como “especialista em des-conversar”2. O vulgo, para a infelicidade dos brasileiros, em especial os vulneráveis, tem grande carga de razão. Sem compro-misso com soluções humanas para proble-mas sociais, caminhamos com enorme e assustadora carga de violações a direitos fundamentais. Dos tabus, em termos de dialogo, nenhum assunto supera a reali-dade racial do país. A rediscussão da es-cravidão do povo negro no Brasil com sua efetiva reparação e o debate sobre racismo enfrentam diversas dificuldades em nosso país, chegando ao nível da invenção de mitos e falácias para desarticular e deses-timular qualquer reflexão e/ou indenização pelo o que foi considerado pela Organi-zação das Nações Unidas (ONU) como maior crime contra a humanidade. O Brasil foi descoberto há quinhentos e quatorze anos. Durante trezentos e cinquenta e oito anos vigorou o sistema de trabalho escra-vo, sendo o Brasil o país que mais recebeu africanos que foram escravizados, e o últi-mo país a abolir formalmente a escravidão. Ou seja, 69,64% da existência do país foi dedicado à escravidão de seres humanos, com base no mito de superioridades de ra-ças. A lei Aurea, de 13 de maio de 1888, não pretendia incluir o negro socialmente, sendo sua abolição meramente formal, sem conferir igualdade material, posto

“Quando a ordem significa escravidão e opressão, a desordem é o começo da Justiça e da liberdade.” (Thomas Carlyle)

que, livre, porém coisa. Neste sentido, afir-ma Lopes:

É preciso afirmar que o processo de libertação dos escravos não se deu por uma mentalidade humanística da elite brasileira, mas da emergência da reestruturação produtiva cujo fim do regime servil de trabalho era pré-con-dição. (1995)

A vigente Constituição da República Fede-rativa do Brasil, além de repudiar o racismo tornando-o imprescritível, inafiançável e ina-lienável, prevê a erradicação das desigual-dades como objetivo da República, ou seja, como um fim a ser alcançado. Após vinte e cinco anos de constituição cidadã e cento e vinte e seis anos da lei áurea, última lei do processo abolicionista, qual é a atual con-dição da população negra no Estado Bra-sileiro? Na visão romancista, seria imaginar que todos os brasileiros gozam de cidadania e plenos direitos e garantias fundamentais, que não há uma "questão negra" brasilei-ra, posto que segundo o artigo 5° da carta magna, apenas pela sua existência, o Brasil é uma democracia racial. há dois elemen-tos desarticuladores da realidade racial no país: o primeiro é a criação ou defesa de um mito, o da democracia racial, com base na simples positivação de uma norma, como se a lei tivesse o poder mágico de fazer sumir a história e seus efeitos, ou ainda de inclusão social imediata. Embora o “mito da demo-cracia racial” se constitua como marco na história do racismo brasileiro, autores apon-tam que outra tese, a do “branqueamento”,

1. Jovem, advogado, militante do movimento negro.

2. http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/25370-

especialista-em-desconversar

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também fez parte de nossa agenda política e social. Pode-se dizer que essa tese se cons-tituiu como pensamento dominante na elite que comandava o Brasil e assim permaneceu até a construção do “mito da democracia ra-cial”. A tese do branqueamento era a crença na qual a partir da mistura entre brancos e negros, a raça branca (como sendo uma raça superior) predominaria sobre a negra (infe-rior) e haveria um melhoramento genético. O segundo é a técnica brasileira de invisibi-lizar e desconversar problemas, negando a existência de um desequilíbrio étnico-racial na sociedade brasileira. Para a classe do-minante não existe uma questão negra no Brasil, desde 1988. Sobre este pensamento aduz o jurista Jorge da Silva:3

É uma posição cômoda, pois não são seus filhos que não terão acesso à educação; não são eles que terão as suas famílias desestruturadas; que serão obrigadas a ocupar as posições mais baixas na escala social, e que se constituirão em horas de despos-suídos. (DA SILVA, 2008, p. 24).

Racismo é relação de poder de uma “raça” sobre outra, um simples olhar no campo de manifestação do poder desconstrói de pla-no a negação do problema ou a afirmação de igualdade, demonstrando que embora abolida a escravidão, sofremos na sociedade brasileira a extensão dos efeitos dela, onde o racismo se manifesta de diversas formas, principalmente o racismo institucional.

O racismo institucionalO maior desafio da efetividade constitucio-nal no que tange aos Direitos humanos no Brasil é discutir a hegemonia racial brasilei-ra e sua dinâmica de poder, principalmente quando a questão envolve a justiça crimi-nal e seus agentes. A internalização do ra-cismo nas instituições não é algo novo na sociedade brasileira, para determinação de privilégios era fundamental a utilização de instrumentos públicos, conforme assevera o jurista Jorge da Silva:

Já no Segundo Império e início da Re-pública havia a crença de que o Brasil estava livre do problema relacionando ao preconceito racial e a solução en-contrada para enfrentar essa situação voltou-se para o branqueamento da população através da miscigenação seletiva e política de povoamento e mi-gração europeia. Assim, quanto mais branca fosse a pele da pessoa mais pri-vilégios e poder de ascensão ela teria,

em contrapartida qualquer cor que não fosse branca passaria a ser desvaloriza-da e os que as possuíam pas saram a ser considerado os outros.

Desta forma, a garantia de ascensão e pri-vilégios está intimamente ligada ao poder instituído, que comanda conforme a sub-jetividade do grupo representado. Assim, “Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de po-der.”  (Aamer Rahman, 2013). Em recente visita ao Brasil o Grupo de Trabalho das Na-ções Unidas (ONU) sobre Afrodescendentes apontou um grande contraste entre a pre-cariedade da situação dos negros e o eleva-do crescimento econômico do país. Desta-cou-se que, entre negros e brancos, existem desigualdades de acesso à educação, à jus-tiça, à segurança e a serviços públicos, iden-tificando racismo “nas estruturas de poder, nos meios de comunicação e no setor priva-do”. Segundo os representantes da ONU, apesar de serem metade da população bra-sileira, os negros estão “sub-representados e invisíveis”. Desta forma, é evidente que para os oprimidos, resta o controle exercido pelo poder dominante, servindo o sistema de justiça, na ótica do racismo institucional, como o instrumento garantidor de interes-ses racistas: privilégios.

No cenário de militarização da segurança pública para controle social de um grupo determinado, o negro é destinado à fren-te de guerra. Segundo o relatório anual de desigualdades raciais houve queda de 28% no número de jovens brancos assassinados. Já o número de homicídios contra os jovens pretos e pardos se elevou em 13,5%. O peso relativo aos negros até 24 anos assassinados se elevou de 57,8%, em 2001, para 67,8% em 2007. Através das manchetes de jornais são nítidos os diversos e frequentes confron-tos entre policiais e “traficantes”. A política criminal de guerra às drogas expõe jovens negros a constante enfrentamento. A guerra às drogas gera perda dos dois lados. De um lado, o recrutamento da juventude negra pobre através da rentabilidade do mercado com ganhos “fáceis”, do outro, processo se-letivo facilitado a policiais negros e pobres, gerando, nos frequentes conflitos motivados pelo proibicionismo, o extermínio em massa do povo negro: etnocídio.

3. Justiça criminal e o genocídio da população negraO sistema de justiça criminal é resultado do trabalho conjunto dos poderes da União. Conforme já analisamos, a estrutura de

3. DA SILVA. Jorge. 120 anos de abolição. hama. 2008. P.42.

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poder do Brasil está eivada de racismo nos três poderes. há uma clara dicotomia no tratamento do branco e do negro, quan-do o assunto é justiça criminal. Analisando as esferas conjuntamente, o resultado é o assustador genocídio da juventude negra, denotando uma cultura de extermínio, es-pecializado pela Política Criminal de Drogas.

O Legislativo.Na primeira análise, observaremos o poder legislativo. Em relação ao racismo, o histó-rico legislativo de criminalização da popula-ção negra demonstra que o poder de criar leis funciona como tática de controle social, ou seja, como instrumento de adequação social: “O movimento abolicionista funcio-nou como um grande estandarte dos cida-dãos brancos que pretendiam, de maneira racional e planejada, adequar o negro a um lugar que não gerasse incomodo à ordem emergente. (SANTOS, 2006, PP. 120).”

A articulação para exclusão funcionava ou com criminalização ou com proibição da população negra, atuando em todas as es-feras da vida. O Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto nú-mero 847, de 11 de outubro de 1890), nos artigos 402 e 403, criminalizava a capoeira, já a lei 601, de 18 de setembro de 1850, com receio de que a abolição da escravatu-ra permitisse que os escravos adquirissem terras, organizava a propriedade privada, proibindo o acesso de negros a terra, bem como os homens negros após a abolição eram proibidos de trabalhar, somente mu-lheres negras trabalhando como quitutei-ras ou babás de leite. hoje, o cenário não é diferente, a criminalização opera com a mesma força de antes, o que antes era a capoeira, nos termos de cultura negra, é agora o baile funk proibido de ser ouvido nas ruas de São Paulo ou nas comunidades militarizadas do Rio de Janeiro. O culto aos orixás da religião africana que não podia ser prestado na senzala se traduz hoje na deci-são do juiz do Tribunal Regional Federal de que Candomblé e Umbanda não são reli-giões e sim seitas, portanto, poderiam sofre situações vexatórias de intolerância religiosa em redes sociais. Adriana Facina diz em seu artigo “quem tem medo do proibidão?”: “Toda proibição tem uma história. Não existem condutas naturalmente proibidas, pois a proibição depende de regras e con-venções sociais que não são atemporais e nem mesmo universais. Assim, coisas que não são proibidas em numa época ou numa sociedade específicas, não o são em outras. O que é considerado transgressão, ou mes-

mo crime, muda de acordo com o tempo e com os valores culturais que predominam no momento.”

O Executivo.O executivo, como o próprio nome sugere, é o braço executor da vontade do Estado. No cenário do racismo institucional, a for-ça policial, sempre foi usada para imposi-ção da “ordem”, do controle social, através do encarceramento, genocídio indireto, ou da execução sumária, extermínio direto. Na atuação do executivo, vale lembrar a famo-sa lei da vadiagem, prevista no capítulo IV art. 295 da lei de contravenções penais, que autorizava a prisão e legitimava a execução sumária dos negros encontrados em situa-ção de vadiagem  e mendigagem, posto que a lei e os costumes proibiam a contra-tação de homens negros e o acesso a terras.

Interessante é o nascimento do termo “ati-vidade suspeita”, o apelido da seletividade na abordagem policial em critérios racistas e classistas. Sidney Chalhoub4 chamou de “estratégia generalizada”, utilizada para controle das populações negras recém-li-bertas no final do século xIx. hoje essa es-tratégia continua entranhada na cultura e nos procedimentos policiais como forma de manter sob controle os deslocamentos e a circulação pela cidade de segmentos sociais bem delimitados.

O olhar seletivo gera um peso racista nas ações dos agentes da lei. A criminóloga Gizlene Neder5 diz: “O dilema na formata-ção da família brasileira “criava um cons-trangimento”: como incluir ex-escravos? Toda estrutura agregadora da mãe negra era ignorada”. Conjugando Chalhoub e Gi-zlene, entendemos que o “medo branco” cumulado a constrangimento da inclusão, tornava os agentes inclinados a um racismo institucional, cujo resultado se estende até hoje em forma de extermínio. O olhar seleti-vo preenche os cárceres, dispara revólveres, nega emprego, saúde e educação. O olhar seletivo nega cidadania!

O JudiciárioNo âmbito judicial, ocorre o “Direito Penal do Negro”, quando o julgador, operando conforme o imaginário social do racismo estruturado, tem ou reproduz uma subje-tividade racista, ou seja, condena o agen-te com base na cor da sua pele. A política criminal de drogas trouxe grandes prejuízos para a sociedade brasileira, criou o caos no sistema carcerário e especializou o racismo, criando a imagem do inimigo "número

4. ChALhOUB. Sidney. Visões da liberdade. São Paulo, companhia

de letras, 1990.

5. NEDER. Gislene. Criminalidade, justiça e mercado de trabalho no Brasil. São Paulo,

Edusp, 1986 p.5.

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um" do estado, que deve ser exterminado a todo custo.

Com grande influência do pensamento de Cesare Lombroso, o sistema penal atual, no que tange à política de drogas, é re-gido pela discricionariedade do artigo 28 da 11.343/06, onde o juiz julga com par-cialidade, aplicando a subjetividade racista, legitimado por um sistema criminal racista. Sobre essa questão, destaca-se o pensa-mento do juiz de execuções penais Luiz Carlos Valois:

Os promotores gaúchos têm um costume estranho de anexar as fo-tos dos acusados em todas as suas denúncias. Digo estranho porque o que se deveria julgar é apenas o fato e não a pessoa, sendo que a figura daquele cidadão a ser julgado pode exercer influência desnecessária no processo. E a história do Direito Penal tem sido a da tentativa de se afastar qualquer julgamento sobre a pessoa do criminoso, qualquer julgamento que vá além do fato cometido. Nin-guém deveria poder ser julgado por sua história de vida e muito menos pelas cicatrizes, defeitos, manchas ou sinais que essa vida nos deixa. O Rio Grande do Sul é conhecido pela predominância de pessoas brancas, algumas louras de olhos claros, seja pela imagem exposta pela mídia, seja por uma simples busca no Google, e é esta a impressão também quando chegamos no Fórum ao prestar aten-ção no entra e sai de advogados. Até aí tudo bem, pois a nossa colonização se deu de forma realmente diferen-ciada, mas ao olhar as fotos juntadas nos processos pelos promotores tive um susto: a maioria esmagadora dos acusados é negra. O racismo no Brasil sempre foi de intrincada definição, encoberto por muitos e dissimulado por grande parte da população, e eu não precisaria ir à Porto Alegre para constatar que a guerra às drogas e o Direito Penal como um todo tem servido como forma de Apartheid. Basta que se entre em qualquer penitenciária bra-sileira para se perceber o contraste entre a cor da pele dos encarcerados e a cor da pele dos que estão nos shoppings. Contudo, nunca é fácil comprovar isso com estatísticas. Mui-tos são fichados, catalogados como brancos, mas são morenos, mulatos.

Nos processos que pesquisei isso acontecia também, pois alguns eram visivelmente negros e constavam da denúncia como brancos. (VALOIS; LUIS CARLOS, 2013,

http://www.pco.org.br/nacional/de-nunciados-por-trafico-de-drogas/azo-z,o.html).

No âmbito do judiciário, o art. 28 da Lei 11.343 de 2006 evidencia o direito penal do autor, pune-se pelo o que se é, e não pelo fato cometido. O negro é punido por-que é negro. A discricionariedade do juiz em discernir se a substância apreendida é de usuário ou de traficante, torna-se um instrumento de racismo.

O sistema assemelha-se ao escravocrata, pois o traficante é coisificado. é um ser des-provido de personalidade, para estes não incidem os direitos do cidadão. Responsável pelo caso do pedreiro Amarildo, - negro, morador de comunidade carente, vitima da militarização das favelas, as UPPs, onde se tornou um dos desaparecidos da democra-cia - Orlando Zaccone registra a seguinte informação na busca pela verdade real, na qual o rótulo de “traficante” tornava legíti-ma o desaparecimento do pedreiro:

No Brasil, o criminoso identificado como inimigo perde o estatuto da ci-dadania. Se o Amarildo fosse identifi-cado como traficante, a forma como morreu passaria a não ter mais impor-tância. (2013, Folha de São Paulo. ht-tps://www1.folha.uol.com.br)

Nilo Batista6, em seu discurso proferido na abertura do xV Congresso Internacional de Direito Penal, ao referir-se à escravatura ne-gra no Brasil, ressalta a articulação do direi-to penal público a um direito penal privado-doméstico, implementação de um sistema penal genocida, cúmplice das agências do Estado imperial-burocrata no processo de homicídio, mutilações e tortura de negros. Ele afirma: “Essas matrizes do extermínio, da desqualificação jurídica presente no ‘ser escravo’; da indistinção entre o público e o privado no exercício do poder penal, se enraizaram na equação hegemônica brasi-leira7.” São essas raízes que frutificam na implementação da ordem burguesa no final do século xIx, na recepção da doutrina da segurança nacional, a mesma que, instituí-da pela Lei 5726, introduzia a obrigação dos diretores de escola a denunciar os alu-nos envolvidos com drogas.

6. BATISTA. Nilo. “Fragmentos de um discurso sedicioso”, in Discursos Sediciosos – crime, direito e sociedade, nº 1. Rio de Janeiro, Relume-Dumará,1996, p.71.

7. BATISTA. Nilo. “Fragmentos de um discurso sedicioso”, in Discursos Sediciosos – crime, direito e sociedade, nº 1. Rio de Janeiro, Relume-Dumará,1996, p.71.

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O jurista Salo de Carvalho chama de ideolo-gia da diferenciação o fato de a norma pe-nal produzir tratamento distinto para usuá-rios e traficantes, sendo o primeiro doente e o segundo, delinquente:

Neste incipiente momento de criação de instrumentos totalizantes de re-pressão, o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos en-volvidos com drogas, fundado duplo discurso que estabelecerá a ideologia da diferenciação. A principal caracte-rística deste discurso é traçar nítida distinção entre consumidor e trafican-te, ou seja, entre doente e delinquen-te, respectivamente. Assim, sobre os culpados (traficantes) recairia o dis-curso jurídico penal do qual se extrai o estereótipo do criminoso corruptor

da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o discurso médi-co-psiquiátrico. (2013, v.6, p. 65)

No entendimento da política criminal de drogas a segregação da detenção para ne-gros era mais reeducadora do que a perma-nência na escola. Para o branco, o atestado médico, assegurava a reeducação com a fa-mília. Sob a égide do confinamento e do ex-termínio, o sistema penitenciário brasileiro transforma a prisão de castigo em remédio. A ilusão ressocializadora mascara a cruelda-de dos processos de “regeneração8”. Assim, compreende-se que no contexto no qual se inserem as ocorrências no Estado do Rio de Janeiro em relação à juventude negra, não se adequam a vontade da carta magna, não estando de acordo com o previsto no texto da Constituição.

8. MALAGUTI, Vera. Difíceis ganhos fáceis: drogas e

juventude pobre no Rio de Janeiro. Instituto Carioca de Criminologia. Coleção

Pensamento Criminológico: Volume 2. Rio de Janeiro: Freitas

Bastos, 1998.

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3.2. PRinCiPais denúnCias do sistema PenitenCiáRio do estado do Rio de janeiRoA opção pelo crescente encarceramento, com ênfase em jovens negros e por crimes associados às drogas ilícitas, o crescimento do déficit de vagas nas unidades do Estado do Rio de Janeiro, a banalização das prisões provisórias, como analisado, apontam para as razões do permanente número de de-núncias do sistema de privação de liberda-de do Estado. O amadurecimento da atua-ção do Comitê e Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura no Estado deve servir para aprofundar o debate e avançar as prá-ticas da política prisional.

Para tal, iniciado um novo ciclo governa-mental a partir de 2015, além do esforço de repensar a política prisional e política de segurança, torna-se criterioso que as iniciativas propostas perpassem os órgãos do Executivo e tragam junto o Judiciário e o Ministério Público, já que as soluções até aqui propostas, como a lei de caute-lares, vêm fracassando em seu potencial justamente quanto à sua aplicação, já que as mudanças não foram incorporadas na rotina dos promotores de justiça e Varas Criminais.

Vale observar também que os crescentes encarceramentos que apontamos nesse re-latório, junto com os índices de segurança, ajudam a definir uma sensação de insegu-rança da população em geral o que tam-bém gera uma consequência direta na com-posição da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e do Congresso Nacional. Pelo menos cinco candidatos eleitos a De-putado Estadual são profis sionais da área de segurança, como policiais militares da re-serva e delegados de polícia, além daqueles que defendem a bandeira do endurecimen-

to penal, o que se repete nos representan-tes do Congresso.

A presença de parlamentares com vivência na área da segurança pública deveria con-tribuir na produção de políticas capazes de promover mudanças políticas e multiplicar as formas de encarar o sistema penal, con-tudo, quando há contribuição, ainda é re-duzida.

A seguir apresentamos as principais denún-cias que envolvem o sistema penitenciário do Estado e, de maneira complementar, o artigo do Mecanismo de Prevenção e Com-bate à Tortura do Rio de Janeiro apresenta a problemática envolvendo o sistema socioe-ducativo ao longo de 2014.

Abusos e violência no transporte dos presos: atuação do SOE-SEAPDiante de inúmeras denúncias ao longo dos últimos anos, a CDDhC realizou no dia 13 de maio de 2014, audiência pública com “A gestão do Serviço de Operações Especiais (SOE) da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (SEAP)”. Com a presença de representantes do Ministério Público, Defensoria Pública, SEAP, socieda-de civil e o Mecanismo Estadual de Preven-ção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ) foram apresentados inúmeros casos e problemá-ticas ocorridas durante o transporte dos presos no Estado, seja no encaminhamen-to para atendimento médico-hospitalar, seja para o comparecimento em audiências nas Varas Penais.

O MEPCT/RJ ressaltou que desde julho de 2011, em sua primeira visita ao sistema pri-sional, até o dia 9 de maio de 2014, o ór-

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gão ouviu em todas as unidades prisionais e em todas as galerias denúncias a respeito de agressões praticadas pelo SOE, o que configura uma prática comum. quando a reclamação é feita na primeira galeria até a última, há que se levar em consideração o que foi ouvido. A reclamação sobre o trans-porte realizado pelo SOE, podemos dizer, que é a primeira queixa feita pelos presos, sejam homens ou mulheres.

Os presos relatam que são algemados de forma muito penosa e brusca durante o transporte. Eles são amontoados em viatu-ras com capacidade para oito ou dez pes-soas, mas que, por vezes, comportam 12, 15, 20 internos a serem transferidos. Muito acima, portanto, de sua capacidade. Cabe evidenciar que as viaturas não possuem cin-to de segurança e são em formato de cam-burão, assim, como os presos viajam soltos, balançando dentro do caminhão, vão se machucando, machucando uns aos outros, até que possam chegar ao destino.

Nos relatos referentes à transferência para o tratamento médico, para a UPA ou para o hospital hamilton Agostinho, usualmente escuta-se dos inspetores a seguinte frase “a gente quebra e o médico conserta”. há que se fazer uma ressalva, pois muitos presos afirmam ao MEPCT/RJ que preferem não ser atendidos no hospital, porque a ida até o hospital vai ser pior para eles do que ficar sem receber o atendimento médico.

Em 2012, o MEPCT/RJ realizou uma visi-ta ao complexo de Japeri, unidade Cotrim Neto. Na unidade, o órgão escutou de to-dos os internos, em todas as celas, relatos de graves problemas com o transporte e que a unidade do SOE em frente à unidade era o local onde ocorriam as agressões.

Alguns presos se apresentaram e relataram que já haviam sido agredidos e torturados dentro daquela base. Infelizmente, nem to-dos se colocam à disposição para registrar oficialmente a agressão, para que se pos-sa responsabilizar os agentes. De qualquer forma, foi um fato relatado, não só, obvia-mente, para a SEAP, mas também para o Comitê de Prevenção à Tortura e para as demais autoridades, porque, mais do que pensar na responsabilização criminal desse agente, há que se desconstruir a cultura do “esculacho”.

Em 2013, o caso que chamou mais aten-ção, pelo menos que chegou a nós, foi o caso dos manifestantes agredidos no trans-

porte da cadeia pública Patrícia Acioli para a cadeia pública Bandeira Stampa, Bangu 9, no complexo de Gericinó. Além de serem transportados em um veículo que não tinha a capacidade para o número de pessoas presas, eles foram agredidos na entrada da unidade.

Em março de 2014, o MEPCT/RJ teve aces-so a um boletim de ocorrência sobre lesões corporais efetuadas pelo SOE em um inter-no, que relatou ter sido agredido dentro da UPA em companhia de mais ou menos seis ou sete outros internos. O interno con-ta que eles receberam tapas na cara, tapas nas nádegas e chineladas, além disso apa-nhavam sem roupa e na chuva. Esse interno disse ainda que estava desidratado, que por isso foi levado à unidade de pronto atendi-mento. Mesmo tendo feito registro de ocor-rência, foi possível perceber que o interno não pôde identificar os agentes, porque estes não utilizavam identificação. Apesar do interno não ter conseguido realizar a identificação, é possível saber quem são os autores do fato apenas levantando os no-mes dos agentes que estavam de plantão na data indicada.

Devido às más condições das viaturas que realizam o transporte dos presos, a Defen-soria Pública, através do Núcleo de Defesa dos Direitos humanos (NUDh) propôs, no fim de 2012, uma Ação Civil Pública que foi distribuída para a 6ª Vara de Fazenda Públi-ca questionando a falta de investimentos. O fato de serem viaturas que se encontram sem a manutenção adequada coloca em ris-co, não só a vida dos internos, mas também dos agentes que os acompanham.

Ainda nesse sentido, o NUDh enviou ofícios para o CONATRAN e para o DETRAN com alguns questionamentos. Ao DETRAN, foi perguntando se as viaturas da SEAP reali-zavam vistoria. O órgão negou a realização. Para o CONATRAN foi perguntado se as via-turas da SEAP ou da polícia, enfim, estariam sujeitas às mesmas normas, deveriam fazer a vistoria anual e se adequar a todas as nor-mas de trânsito, indicando o órgão que sim. Por ser uma viatura de transporte de presos, ela não tem um regramento especial. Elas devem se submeter a todas as regras a que são submetidos os veículos automotores, de modo geral.

Saúde no sistema penitenciário:Os últimos anos foram marcados, no Rio de Janeiro, por embates no que diz respeito ao tema da saúde nas prisões. Se é fato que

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o sistema de saúde prisional deste Estado tenha sido sempre uma referência no âm-bito nacional e um exemplo de boas prá-ticas – tendo sido o primeiro a ter convê-nio com o SUS, ainda na década de 1990 – um desmonte das condições de trabalho e atendimento vem assolando, acelerada-mente, as condições de prestação deste serviço. Em 2014, a CDDhC recebeu inú-meras denúncias e pedidos sistemáticos por parte de parentes de presos de dialogo com a SEAP para garantir assistência médica aos apenados, comprovando a precariedade do serviço já descrita nos relatórios anuais an-teriores da CDDhC.

De acordo com o levantamento feito pela equipe técnica da CDDhC Alerj, respon-sável pelo atendimento ao público, foram registrados no sistema mais de 20 casos graves envolvendo a dificuldade de atendi-mento médico aos presos, além de pedidos para viabilizar a continuidade dos tratamen-tos quando iniciados em outras unidades. Dentre os casos de destaque, o número de portadores do vírus hIV que contraíram tu-berculose no sistema chama atenção. Mes-mo não havendo informações consolidadas sobre o número de casos, é importante considerar que a falta de profissionais nas unidades e o desmonte do programa de controle de tuberculose aponta para um crescimento vertiginoso de casos.

Nesse sentido, presentes na audiência pú-blica realizada no dia 13 de maio de 2014, o Ministério Público Estadual através da 3ª Promotoria de Tutela Coletiva da Saúde da Capital, propôs uma ação civil públi-ca objetivando garantir o atendimento do transporte sanitário dos presos tanto para as unidades de saúde prisional, ou seja, das unidades prisionais, para o hospital UPA hamilton Agostinho, como também trans-porte para as unidades de saúde do SUS, que, por regulação, recebem então as de-mandas que não podem ser atendidas no âmbito da saúde prisional. Essa ação foi proposta pela 3ª Promotoria após dois anos de investigação no âmbito de um inquérito civil em 27 de janeiro, junto à 8ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital e houve indeferimento da liminar com a se-guinte decisão:

Trata-se de ação civil pública com pe-dido de antecipação da tutela na qual o Ministério Público pretende a ado-ção, pelo Estado do Rio de Janeiro, de uma série de medidas visando mi-nimizar os problemas de transporte e

atendimento pré-hospitalar à popula-ção carcerária em todo o território do Município do Rio de Janeiro, preser-vando-se o direito à saúde e à integri-dade física dos presos. Analisando a petição inicial e os documentos que a acompanham, verifico que o eventual deferimento da liminar à antecipação de tutela pretendida pelo Ministério Público implicaria na realização de gastos públicos consideráveis. Assim, diante do óbice erigido pelo artigo 2º da Lei 8.437, foi feita uma interpre-tação desse artigo no sentido de que não poderia ser concedida a liminar sem a oitiva do poder público. Indefi-ro, por hora, a medida.

O Tribunal de Justiça, mais uma vez, afasta sua responsabilidade de garantir a fiscaliza-ção sob o executivo, uma vez que, se tra-tando de presos, interpreta a necessidade como gasto público considerável.

Nesse sentido, há também uma segunda ação civil pública proposta em 11 de abril de 2014, acerca das condições de funcio-namento do hospital Penal e UPA hamilton Agostinho, situados dentro do complexo de Bangu, após realização de diversas inspe-ções pela 3ª Promotoria de Saúde no com-plexo prisional. Como na outra iniciativa, a segunda ação civil obteve deferimento da liminar também contra o Estado, sem a oi-tiva do Estado, como o mesmo argumento de geração de gastos, motivo pelo qual o juiz entendeu impossível deferir. O objetivo da tutela antecipada dessa liminar foi esta-belecer uma restrição ao período de con-tratação da organização social, o Ministério Público não está impedindo a contratação, nem pedindo que a Justiça impeça a con-tratação da OS. O Ministério Público está questionando judicialmente a utilização da Organização Social em detrimento de administração direta ou indireta; e está pe-dindo judicialmente - e teve o deferimento da decisão - que o contrato que está sendo realizado agora seja limitado a doze meses de vigência.

O que o Ministério Público verificou nas unidades prisionais é que de fato há um total sucateamento e uma necessidade de alocação de recursos humanos grave e ur-gente, e, portanto, apesar de entendermos e verificarmos a presença de inconstitucio-nalidades e ilegalidades, nós requeremos que esse contrato tenha duração de ape-nas doze meses, com o objetivo, primeiro, que nesse período haja algum atendimento

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para os presos, muitas vezes agonizantes e sem nenhuma possibilidade e perspectiva de transferência para lugar nenhum.

Assim, o pedido do Ministério Público é que o contrato tenha uma limitação para apenas doze meses, pedido este deferido, e que haja uma definição clara por parte da Secretaria Estadual de Saúde e da Secretaria de Administração Penitenciária de quem e quando colocará quais recursos na UPA e no hospital hamilton Agostinho. O defe-rimento foi no sentido de que fosse esta-belecida multa diária de dez mil reais para o Estado em caso de descumprimento das seguintes obrigações: limitação do prazo do contrato com a organização social para doze meses, tendo em vista a situação pre-cária de atendimento aos presos e a urgente necessidade de alocação de recursos huma-nos; determina ao estado a imediata defini-ção de responsabilidades administrativas e financeiras entre a SEAP e a SES quanto à gestão, implantação, alocação de recursos e operação do hospital UPA hamilton Agosti-nho. Determinou-se ainda que o Estado, no prazo de quarenta e cinco dias, apresente cronograma para recomposição e expansão do atendimento do hospital e efetivo fun-cionamento da UPA, contemplando recur-sos humanos com detalhamento das ações administrativas necessárias para dotação de novos profissionais de saúde, médicos e não médicos e profissionais administrativos em número suficiente para a adequada presta-ção do serviço de saúde no hospital e UPA com clara definição das obrigações e res-ponsabilidades da SEAP e da SES na gestão do hospital e UPA.

Além disso, o Ministério Público ainda pede que a estrutura física seja revista, com substituição das camas de alvenaria e instalação de adequado sistema de venti-lação na UPA, refrigeração; reparo de infil-trações ou integral atendimento às exigên-cias para garantia de adequadas condições de segurança para os internos e para os profissionais em atuação na unidade de saúde prisional e insumos hospitalares; es-trutura gerencial e regulatória de acesso aos serviços do hospital de tecnologia da informação; cronogramas para transferên-cia dos serviços que forem operados pela OS durante o ano de vigência do contra-to para estruturas de administração dire-ta ou indireta do Estado com vedação de retrocesso e sem descontinuidade dos ser-viços prestados quando do encerramento do contrato de doze meses com a OS e o cronograma para expansão dos serviços

do hospital para pleno funcionamento da unidade e com capacidade de atendimen-to proporcional à população prisional ou integral garantia de acesso aos presos à assistência hospitalar.

Acesso à família: carteirinhas de visi-tação e o fim da revista vexatóriaabe ainda mencionar que a situação de degradação humana não atinge apenas o preso. Apesar de haver o princípio da per-sonalidade da pena que em linhas gerais se resume a dizer que a pena não extrapolará a pessoa do condenado, na prática perce-bemos que os familiares dos presos acabam recebendo igual tratamento degradante nas visitas. há uma efetiva criminalização do fa-miliar através de revistas que consistem na retirada de toda a roupa do cidadão visitan-te e no pedido de que o mesmo se agache por três vezes na frente de um agente do mesmo sexo, o que é extremamente hu-milhante e desnecessário, haja vista que, com o advento de novas tecnologias como o scanner, similar ao usado em aeroportos e por serviços de segurança em geral, já é possível realizar a revista sem recorrer a tais métodos nefastos, que afrontam os direitos e garantias individuais.

A Comissão de Direitos humanos e Mino-rias da Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade, no dia 5 de novembro de 2014, o Projeto de Lei (PL) 7764/2014, que sugere acabar com as revistas vexató-rias realizadas em presídios brasileiros. A proposta estabelece o uso de equipamen-tos eletrônicos, como detectores de metais e de raio-x, para as revistas íntimas obriga-tórias feitas em pessoas que queiram visitar presos. O texto agora seguirá para as co-missões de Segurança e depois para a de Constituição e Justiça antes de passar por sanção presidencial.

Alvo de uma campanha nacional, a revista vexatória é uma prática recorrente, porém ilegal. Não há nenhuma permissão na lei para ela. O número de 0,03 de apreensões revela que ela é insignificante e deixa cla-ro que o objetivo principal não é alcançado como aponta o levantamento da Campa-nha Fim da Revista Vexatória no Brasil1, no fim de abril. O que se consegue são outros objetivos não declarados, como o fim do contato do preso com a família.

Nesse sentido, existem dois projetos de lei (PLs)2 que visam proibir a prática da revis-ta vexatória no Estado do Rio de Janeiro, tanto no sistema penitenciário, como no

1. Ver em < http://www.fimdarevistavexatoria.org.br/hotsite/>

2. Projeto de Lei n 2159/2013 – Dispõe sobre o sistema de revista

de visitantes nos estabelecimentos prisionais do Estado do Rio de Janeiro e dá outras providências e Projeto de

Lei n 2984/2010 – Dispõe sobre o sistema de revista de visitantes nos estabelecimentos de atendimento

ao cumprimento de medidas sócioeducativas privativas de liberdade

do Estado do Rio de Janeiro.

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sistema socioeducativo. Os PLs ainda não foram votados no plenário da Assembleia em função da constante falta de quórum para sua aprovação.

Vale mencionar que em setembro deste ano os adolescentes internados na unidade de Volta Redonda promoveram rebelião após um episódio em que os internos acusam os agentes do DEGASE de abuso com as mães de um grupo de jovens.

No mesmo sentido é o calvário que cen-tenas de familiares passam para conseguir ter acesso à carteira de visitação aos presos no sistema penitenciário do Estado. A CD-DhC recebeu ao longo de 2014 inúmeros pedidos/denúncias a respeito da morosida-de para emissão das carteiras de visitação, além do risco apontado por alguns fami-liares quanto à localidade do setor de cre-

denciamento dos familiares, em função de disputas entre facções.

A CDDhC tomou as seguintes medidas so-bre os casos em questão:

• Realização de audiência pública no dia 13 de maio de 2014;

• Visita à Unidade do Degase de Volta Re-donda em outubro de 2014;

• Encaminhamento dos casos individuais referente às carteiras de visitação para Coordenação da Secretaria de Adminis-tração Penitenciária;

• Encaminhamento para a Coordenação de Saúde da Secretaria de Administração Penitenciária dos casos denunciados na CDDhC Alerj;

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3.3. o sistema soCioeduCativodo Rio em 2014Por Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro1

O ano de 2014 tem sido de grandes de-safios na efetivação dos direitos huma-nos dos adolescentes privados de liber-dade no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. Inúmeros foram os fatos e de-núncias que chegaram ao conhecimento do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura que elevam o Depar-tamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE ao órgão que, em 2014, mais foi vistoriado por nós. A seguir, tratare-mos de algumas situações encontradas durante o trabalho desenvolvido ao lon-go do ano, como elementos de exem-plificação da dura realidade à qual os adolescentes autores de atos infracionais fluminenses estão submetidos.

Destarte, é importante destacarmos que no final de 2013 foram inauguradas duas unidades de internação e internação pro-visória no interior do Estado, uma em Campos, Região Norte do Estado, outra em Volta Redonda, Região Sul. A inaugu-ração destas novas unidades representa um movimento do DEGASE de efetivação dos direitos à convivência familiar e co-munitária, uma vez que até então, todas as seis unidades de internação existentes no Estado do Rio de Janeiro estavam lo-calizadas na Região Metropolitana, sendo cinco destas na cidade do Rio de Janeiro. Desta forma, o ano de 2014 tem início com uma perspectiva de mudança para melhor, na medida em que com a inaugu-ração de novas vagas, a lógica apontaria para a redução da superlotação e, conse-quentemente, a melhoria das condições de privação de liberdade.

Infelizmente, essas expectativas foram frustradas por alguns acontecimentos. Os mais significativos, e preocupantes, foram as mortes de dois adolescentes ocorridas na unidade CENSE Don Bosco, antigo Instituto Padre Severino. Ambas as mor-tes possuem aspectos comuns que evi-denciam fragilidades em procedimentos de segurança adotados pelas equipes do DEGASE. Ambos os meninos que vieram a óbito, um em março e outro em julho, não possuíam antecedentes infracionais e foram apreendidos pela prática de ato infracional análogo ao tráfico de entor-pecentes, situação esta que não poderia ensejar a internação do jovem, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça consolidado na súmula 492 deste tribunal superior. Neste sentido, insta a observação da responsabilidade do Minis-tério Público e do Poder Judiciário nestes casos ao determinarem o cumprimento de medidas privativas de liberdade em ca-sos em que estas medidas são flagrante-mente ilegais. quanto aos procedimentos de segurança, no momento em que os jovens foram recepcionados na unidade CENSE Don Bosco, eles foram submetidos a breve triagem, na qual os mesmos te-riam declarado não ter pertencimento a nenhuma facção criminosa, embora re-sidissem em comunidades comandadas pelo Comando Vermelho. Diante desta informação, foram alocados em aloja-mentos/celas com outros adolescentes desta facção, onde acabaram mortos por, supostamente, comprarem drogas em comunidades dominadas por outro gru-po. Estas duas mortes foram amplamente

1. Membros: Antônio Pedro Campello Pereira Porto Soare,

Fábio do Nascimento Simas, Patrícia de Oliveira, Renata Lira,

Taiguara Souza eVera Lúcia Alves

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noticiadas por veículos de comunicação e geraram vistorias ad hoc do Mecanis-mo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura à unidade. Após algum tempo, a gestão do DEGASE optou por alterar os procedimentos de segurança e evitar mis-turar adolescentes que se encontrassem em sua primeira passagem pelo sistema socioeducativo. Para isso, criou uma nova unidade de internação provisória apenas para jovens nestas circunstâncias (primei-ra passagem), o CENSE Ilha. Esta unidade se encontra localizada no espaço em que antes funcionava o CRIAD Ilha, unidade de semiliberdade.

Outro ponto que merece uma atenção es-pecial de todos é o funcionamento de todo o sistema durante a Copa do Mundo 2014. Como é comum durante estes megaeven-tos, houve sistemática ação de recrudesci-mento da política criminal seletiva contra aqueles contingentes de pessoas considera-dos indesejáveis pelas autoridades públicas. Prova disso é o aumento da população de adolescentes internados no DEGASE neste período. Para exemplificar esta afirmação, o gráfico a seguir apresenta o quantitativo de adolescentes privados de liberdade no Esta-do do Rio de Janeiro no dia 04 de julho dos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014.

0200400600800

1000120014001600

2011 2012 2013 2014

Fonte: Degase

Nos chama muito a atenção o crescimento desproporcional do número de adolescen-tes privados de liberdade no dia 04 de julho de 2014, se comparado aos anos anteriores. Um aumento de mais de 40% (de 1.005 em 2013 passou para 1.487 em 2014) no nú-mero de jovens encarcerados. Diante deste quadro, é impossível não apontar a eviden-te relação entre este fenômeno e a realiza-ção da Copa do Mundo de Futebol, entre o dia 12 de junho e 13 de julho de 2014. Esta constatação nos impõe a leitura de que se instalou no Estado do Rio de Janeiro, quiçá no Brasil, um verdadeiro Estado de exceção, em que adolescentes eram apreendidos pe-las forças de segurança e mantidos privados de sua liberdade pelo Poder Judiciário com vistas à higienização da cidade sede da par-tida final da Copa do Mundo de Futebol.

Importante aqui destacar que os profissio-nais do DEGASE entrevistados pelo MEPC-T-RJ confirmaram esta impressão da equipe, afirmando que as audiências de apresenta-ção e continuação dos processos de conhe-

cimento2 na Vara da Infância e da Juventu-de da Comarca da Capital do Rio de Janeiro foram todas adiadas para o período poste-rior à Copa do Mundo, evidenciando que o Poder Judiciário, neste caso, consentiu com a política criminal de excepcionalidade ado-tada pelo Estado do Rio de Janeiro, manten-do os adolescentes apreendidos internados provisoriamente, mesmo nos casos em que não haveria razões para a manutenção da privação de liberdade.

Este processo de precarização das condi-ções de internação e superlotação trazem inúmeras consequências para o ambiente das unidades do DEGASE. A mais significa-tiva delas neste ano foi a rebelião ocorrida na unidade CENSE Irmã Assunción de La Gandara Ustara (CENSE IAGU), em Volta Redonda, no dia 23 de setembro. De acor-do com relatos dos adolescentes colhidos pela equipe do MEPCT-RJ, por volta das 12h do dia 22/09, durante a saída para o almoço se iniciou um movimento dos ado-lescentes baterem a porta dos alojamen-

2. Processos de conhecimento são aqueles que apuram a prática de atos infracionais.

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tos que se estendeu, por conseguinte, por todos os módulos. Após diversas batidas, a estrutura de alvenaria que sustentava as portas dos alojamentos cedeu e os mes-mos ocuparam os corredores e posterior-mente se direcionaram para o telhado da unidade. Cabe mencionar que apesar de a unidade ter sido inaugurada apenas nove meses antes do ocorrido, pôde-se observar que a estrutura física comportava matérias de má qualidade.

Na ocasião, os adolescentes haviam feito algumas reivindicações do cotidiano insti-tucional como maior tempo de banho de sol e extensão do horário de TV. Contudo, segundo informações colhidas, o motim se deu por um acúmulo de situações de maus tratos cotidianos que os adoles-centes vêm sofrendo na unidade, sendo o agravamento da superlotação um dos elementos mais basilares. Para se ter uma ideia, se na última inspeção realizada pelo MEPCT-RJ havia 120 adolescentes para uma capacidade de 90, no momento do motim a população de adolescentes che-

gava a 160, quase o dobro do quantita-tivo mínimo.

Esse quadro de superlotação vem se agra-vando nos últimos anos. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, o nú-mero de adolescentes apreendidos no Es-tado do Rio nos últimos anos tem se ele-vado exponencialmente, passando de um total de 3.466 em 2011, para 7.222 em 2013. Diante deste panorama, podemos afirmar que a erradicação desta grave vio-lação dos direitos destes adolescentes não passa por aumento de vagas ou inaugura-ção de novas unidades no Estado afora. Faz-se imperiosa uma radical mudança da prática judicial e da política de segu-rança pública, que criminalizam o jovem, negro, pobre e morador das periferias urbanas. é necessário que o Poder Judi-ciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública funcionem de forma satisfatória e apliquem a legislação de proteção ao ado-lescente, efetivando o caráter excepcional das medidas socioeducativas privativas de liberdade.

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4. luta Pelo diReito À CidadeAo longo de 2014, os processos de luta e resistência por cidades mais justas e demo-cráticas foram uma frente de atuação da CDDhC que mobilizou ações institucionais junto aos grupos que denunciaram viola-ções ao direito à moradia e à cidade. A par-tir dessas experiências apresentamos nossa reflexão sobre o projeto de cidade em dis-puta, na perspectiva do planejamento urba-no, levando em consideração os seguintes casos: (a) a reintegração de posse da ocupa-ção da Favela da Telerj na Zona Norte do Rio de Janeiro; (b) a luta pelo direito à moradia da comunidade Vila Autódromo, que se tor-nou ícone de resistência; (c) a problemática da moradia na Região Serrana pós-desastre;

(d) as condições de moradia no Morro do Borel levantadas durante o Ocupa Direitos humanos; (e) a desconstrução de equipa-mentos esportivos importantíssimos para a capital de nosso Estado: o Parque Aquático Júlio Delamare e o Estádio de Atletismo Cé-lio de Barros.

Além de artigos, apresentamos entrevistas realizadas com pessoas envolvidas direta-mente nos casos acompanhados pela co-missão e parte dos relatórios produzidos que consolidam nossa atuação, assim como nossas análises e recomendações que ser-vem de referencial para a construção coti-diana de nossa atuação.

Leon

Din

iz

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1. Em entrevista disponível em http://www.rts.org.br/entrevistas/

entrevistas-2009/raquel-rolnik.

2. CARDOSO, A. (org). O programa Minha Casa

Minha Vida e seus efeitos territoriais. Rio de Janeiro:

Letra Capital , 2013.

4.1. a moRadia Como diReito: um PRojeto de Cidade em disPuta

Raquel ROLNIK1

Desde o anúncio dos Megaeventos Espor-tivos (Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016), temos vivenciado inú-meros processos de violação de direitos, no-tadamente ligados à moradia. Os despejos forçados e violentos são a face mais eviden-te desse processo, em função de obras viá-rias, ampliação de aeroporto, construção e reforma de equipamentos esportivos e de reestruturação urbana em áreas de interes-se turístico (especialmente a área portuária e favelas). Como alternativa, os governos oferecem alugueis sociais, indenizações e reassentamento em conjuntos habitacio-nais, que por sua vez, não garantem o ple-no direito à moradia. Para aqueles(as) que resistem e permanecem em suas casas, o direito à moradia também é comprometido pelos assédios e ameaças promovidos por funcionários da prefeitura ou até mesmo das empreiteiras responsáveis por obras. A própria presença ostensiva de policiais em favelas ocupadas por UPPs (Unidades de Po-lícia Pacificadora), que chegam no “paco-te” do embelezamento da cidade, torna-se um elemento de pressão significativo para o processo de remoções.

Já não é novidade que o Brasil é um país urbano. Mais de 80% da população bra-sileira vive nas cidades. Porém, não é só o quantitativo de pessoas em áreas urbanas que mostra a importância de nos debruçar-mos sobre a política urbana em nosso Esta-do. A preparação das cidades para os Me-gaeventos evidenciaram a crise urbana que precisamos enfrentar em nossa metrópole,

“A gente tem que entender que direito à moradia não é sinônimo de casa própria. A propriedade e o programa de construção da casa própria são uma modalidade. Mas não são a totalidade”

onde as problemáticas da questão fundiá-ria e da moradia caminham juntas. Por isso, a importância de nos debruçarmos numa análise conjunta. Tanto a presença de fave-las nas áreas centrais do Município do Rio de Janeiro, como a elitização de bairros em áreas periféricas revelam a complexidade da questão habitacional e urbana na contem-poraneidade.

Em que pese a concentração de renda nos bairros da Zona Sul e da Zona Oeste (Barra da Tijuca e Recreio), o tecido urbano da me-trópole carioca se apresenta com novas cen-tralidades, complexo, espraiado, sobretudo onde assistimos investimentos tais como o COMPERJ (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro) e o Arco Metropolitano, que li-gará o Porto de Itaguaí ao Complexo em Itaboraí, entre outros. Ao mesmo tempo, não há como negar os impactos na vida das pessoas reassentadas em empreendimentos do Minha Casa Minha Vida2 na periferia de bairros como Campo Grande e Santa Cruz, em áreas pouco urbanizadas e dominadas por milicianos. Essa desarticulação de pro-jetos explicita a desregulação do território metropolitano, já apontando duras conse-quências socioambientais e urbanas, como enchentes e inundações, assim como na mobilidade.

hoje, na região metropolitana do Rio de Ja-neiro, está em jogo a disputa de um mode-lo de cidade ligado fortemente à lógica de mercado, tendo a especulação imobiliária como protagonista. Na verdade, há quem

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diga que não temos planejamento em nos-sas cidades, mas acreditamos que de fato há um planejamento muito bem orques-trado, mas não a favor da população e da redução das desigualdades.

Esse cenário nos desafia cada vez mais a ampliar o sentido de moradia. Primeira-mente, devendo estar associada a um di-reito fundamental, que não se restringe simplesmente à casa. Segurança da posse, infraestrutura adequada e acesso aos servi-ços públicos urbanos, mobilidade urbana e transporte público de qualidade, meio am-biente saudável e seguro, proximidade com o que a cidade pode oferecer compõem esse significado mais amplo de moradia. No entanto, por mais que se reivindique, que há décadas movimentos sociais lutem e pressionem por esse direito, cuja defini-ção nada mais é que o direito à cidade3, os avanços ainda se mostram tímidos.

O direito à cidade e à moradia não deve se restringir à produção de unidades habita-cionais, como estratégia única para comba-ter o déficit habitacional. Pelo contrário, é fundamental propor soluções políticas para habitação na perspectiva do planejamento urbano e regional. há inúmeros casos ilus-trativos importantes (como recentemente a ocupação na chamada a Favela da TELERJ), que revelam a necessidade de pensar de forma integrada a moradia e a questão fun-diária.

Dados da Fundação João Pinheiro revelam informações interessantes. Apesar do fôle-go de produção habitacional empreendida pelo Programa Minha Casa Minha Vida em todo país, no Rio de Janeiro houve um cres-cimento de 10,5% do déficit habitacional de 2011 para 2012. Isso coloca em xeque o real efeito da concentração dos esforços políticos na produção habitacional como única alternativa.

De forma geral, podemos afirmar que o aumento dos aluguéis pressionou signifi-cativamente o déficit na região. Segundo o índice da Fundação Instituto de Pesqui-sas Econômicas, o fipezap, de janeiro de 2009 a junho de 2014, houve aumento de 122,48%. Este aumento é observado tanto em bairros nobres, como nas favelas, nota-damente aquelas que foram ou estão sendo urbanizadas.

Relatos de moradores(as) da Favela da Telerj no bairro do Engenho Novo, antigo reduto industrial da cidade, revelam a mobilidade

de famílias vítimas da elevação do custo de vida e da moradia na cidade. Antes de ocuparem o prédio vazio e ocioso por mais de 10 anos, as cerca de 5.000 pessoas (que não chegaram a permanecer por mais de 10 dias) residiam em outras favelas, bair-ros suburbanos (como Engenho de Dentro, Penha, Pilares), ou mesmo em municípios da Baixada Fluminense. Ouvimos casos de pessoas, muitas mulheres com filhos(as), que moravam em favelas removidas ou em risco, como a Favela do Metrô ao lado do Maracanã; que moravam de aluguel em fa-velas objeto de intervenção urbana, como no Complexo de Manguinhos, Favela do Rato Molhado e Jacarezinho, na Zona Nor-te. Muitas não tinham mais condições de pagar os valores cobrados pelos aluguéis, por isso investiram o pouco que tinham em material de construção, móveis e eletrodo-mésticos para ocuparem o prédio, enxer-gando ali uma possibilidade de moradia a baixo custo, próxima do centro e das me-lhores ofertas de emprego, cientes que ali estavam longe do ideal de uma casa. Na madrugada do dia 18 de abril, essas pes-soas sofreram com um processo de despejo forçado e violento promovido por cerca de 1.500 policiais.

é importante dizer que alguns(mas) relata-ram já terem sido anteriormente cadastra-dos(as) na Secretaria Municipal de habita-ção para o Programa Minha Casa Minha Vida, mas que nunca foram chamados(as) ou contemplados(as) com uma casa. Parte das famílias que ocupam hoje unidades ha-bitacionais destinadas às famílias na faixa de renda de 0 a 3 salários mínimos foram beneficiadas por processo de reassenta-mentos4, mas não correspondem à totalida-de. houve famílias que foram indenizadas ou “beneficiadas” por aluguel social. Os valores de indenização são baixíssimos, pois correspondem apenas às benfeitorias das casas e excluem o valor da terra, impedindo que as famílias permaneçam próximas de seu bairro, justamente pela alta dos preços no contexto dos Megaeventos. O mesmo acontece com aqueles(as) que recebem o irrisório aluguel social de R$ 400,00, postos numa situação tida como provisória, que na prática não garante o direito à moradia5, devido à alta dos alugueis.

Então... Onde essas pessoas residem hoje? Se não estão nas ruas, ou buscam locais se-melhantes ao da Favela da Telerj, ou, prova-velmente, locais distantes de seu lugar de origem, de suas redes de solidariedade, do seu trabalho, de sua história; assim como as

3. Conceito apresentado por henri Lefebvre em seu livro O direito à cidade.

4. De acordo com dados levantados por membros do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio, 29 comunidades sofreram processo de remoções, totalizando 4772 famílias. Disponível em https://comitepopulario.files.wordpress.com/2014/06/dossiecomiterio2014_web.pdf.

5. Além dos casos de interrupção do pagamento do benefício antes do reassentamento em programa habitacional.

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que foram para o Programa Minha Casa Mi-nha Vida (MCMV) na hiperperiferia da Zona Oeste, em que o custo da terra é mais baixo e mais vantajoso para os investidores.

Neste contexto, o mercado é que dá as cartas, perpetuando o modelo de expan-são territorial desordenada e nada de-mocrática, além de reproduzir os erros do BNh (Banco Nacional de habitação – 1968-1986) que capturou o ideal da “casa própria” para legitimar uma das ações mais eficazes de implantação de modelo empresarial de gestão (AZEVEDO, 1988)6. A construção de conjuntos habitacionais “a toque de caixa” legitima a lógica de redução do déficit pelo mercado. E assim como no período BNh, os conjuntos para os(as) mais pobres têm sido prioritaria-mente construídos na periferia. Obviamen-te os terrenos escolhidos foram os mais baratos, distantes dos serviços urbanos e sem infraestrutura. Neste caso, o setor da construção civil ganha novamente, pois se fazem necessárias obras de abastecimento de água, esgotamento, iluminação públi-ca, etc.

quem disputa uma melhor localização na cidade vê a criminalização de suas reivin-dicações. Tornar a moradia algo acessível é também tornar a cidade acessível a to-

dos(as). Por isso, a disputa pela localização na cidade é fundamental.

Não estamos negando a importância de construir habitação social, mas esta não pode ser a única solução. Inclusive, se ana-lisarmos o padrão dos projetos arquitetôni-cos do MCMV, não há flexibilidade na sua planta, o tamanho das unidades são míni-mos, desconsiderando os diversos perfis de família. Além disso, muitos moradores(as) de favelas e de bairros periféricos utilizam parte de sua casa para o seu ganha-pão, ou seja, a residência não tem apenas função de moradia, mas também função econômica. Este aspecto também precisaria ser conside-rado nas propostas de conjuntos habitacio-nais. As experiências de autogestão seriam uma alternativa interessante para que se proponham projetos diferenciados confor-me o perfil de residentes beneficiados(as).

Certamente, instrumentos técnicos colabo-ram, mas não são suficientes. A garantia de espaços de participação popular é essencial para que, de fato, haja um debate demo-crático para construção da política habita-cional e urbana, e sejam tomadas decisões que considerem as reivindicações da popu-lação. Por isso, entendemos também que o direito à moradia se garante quando incluí-mos todos(as) no debate político.

6. AZEVEDO, Sergio. "Vinte e dois anos de política de

habitação popular (1964-86): criação, trajetória e extinção do BNh." Rev. Adm. públ., Rio de

Janeiro, 22(4):107-119, out./dez. 1988.

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violações em ReintegRação de Possena favela da teleRjEsquecidos pelo poder público e sem direito à moradia digna, cinco mil famílias ocuparam, no dia 4 de abril de 2014, o antigo prédio da Telerj, no Engenho Novo, abandonado há 10 anos. Os ocupantes, trabalhadores com familiares e sonhos, reivindicavam seu direito de ter um lar, como previsto pela Constituição Brasileira. No entanto, no dia 11 de abril, uma operação de reintegração de posse, efetivada por cerca 1.500 policiais, levou terror e pânico aos recém-moradores, que não puderam retirar seus bens materiais. há relatos de extrema violência e truculência praticadas pelos agentes do Estado. A equipe da Comissão de Defesa dos Direitos humanos e Cidadania da Alerj acompanhou a situação e registrou denúncias de violações e arbitrariedades. Com a palavra, os trabalhadores sem teto:

DANIELE RODRIGuES, 27, Ex-MORADORA DO ENGENHO DE DENTRO.

“Eles querem o quê? que eu vá para de-baixo da ponte com meus filhos? Não tem como, por isso que eu fui para a Telerj. é vergonhoso? é. Assim como é vergonhoso eu estar aqui agora, colocando minha cara para o povo ver. Mas essa é a única espe-rança que eu tenho: me humilhar. Estou

desesperada, por isso que a gente foi para o prédio da Telerj. Ninguém queria invadir nada de ninguém, a gente só quer o direi-to de moradia. Perdi tudo, e a única que restou foi um fogão velho. Não tem mais geladeira, gás, não tenho mais nada. Nem minha dignidade tenho mais.”

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JORGINA RODRIGuES, 62 ANOS, Ex-MORADORA DO RATO MOLHADO.

“Nós entramos com a cara, coragem e dis-posição. Nós só abrimos o portão, porque o local está abandonado há mais de 10 anos. Lá estava tudo parado, criando bichos. Pre-cisamos de moradia, então foi todo mundo pra Telerj. Capinamos, cavamos, limpamos os quintais porque estava tudo cheio de

lama e mato. A polícia chegou na igno-rância e estupidez e colocou todo mundo para fora que nem um cachorro. Por que eles estão fazendo isso com a gente? Será por que vai ter uma 'big' festa da Fifa e eles não querem que o povo de fora veja a gen-te aqui?”

ALCIONE MOREIRA, Ex-MORADORA DO TuIuTI.

“Você acha que a gente iria querer ficar aqui, sendo humilhado que nem cachor-ro? Você acha que a gente quer isso para as nossas vidas? As pessoas olhando para a gente com desprezo? Ver pessoas que pas-sam por aqui segurando a bolsa e pedindo para que os seguranças acompanhem elas, como se a gente fosse ladrão? Cada um

tem sua história para contar. Eu ocupei a favela da Telerj porque a própria Prefeitura pediu para eu sair da minha casa. Tenho o papel aqui (documentos) e quero mostrar para eles quando me perguntarem porque eu ocupei. Eu vou dizer: 'Por causa de vo-cês. Porque vocês obrigam o povo a fazer isso. Vocês não ajudam a quem precisa.’”

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SuELEN, 30 ANOS, Ex-MORADORA DO MANDELA.

“Eles falaram que iria ser algo pacífico, mas não foi o que aconteceu. Eles entra-ram gritando 'Sai! Sai! Sai!'. Eles chegaram empurrando. Um dos meus filhos saiu prati-camente desmaiado com o cheiro da bom-ba de gás lacrimogêneo. Minha filha mais velha está traumatizada. é uma coisa muito

desumana. Eles acham que somos bichos, só porque a gente mora ali. Estamos ali por-que precisamos. Eu sei que aquilo ali não era nosso, mas o meu sonho era sair do alu-guel. Imagine receber um salário mínimo, ter de pagar aluguel e ter de sustentar três crianças? é difícil, né?”

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes ao caso:

• Acompanhou de perto a desocupação do prédio, denunciando as violações cometidas no processo;

• Em setembro, além de constatar a omis-são do Estado, verificou de perto o abrigo na quadra da Paróquia Nossa Senhora do

Loreto, na Ilha do Governador, e a angús-tia das pessoas que foram removidas de maneira truculenta da Favela da Telerj, no mês de abril. Cento e oitenta e cin-co famílias receberam um cheque de R$ 1.200 para desocupar o local. O valor, que seria referente ao aluguel de um imóvel por três meses, renovável por um ano, foi pago pela Prefeitura através da Fundação Bento Rubião.

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4.2. vila autódRomo:uma HistóRia de lutae ResistênCia PelodiReto À moRadiaFundada em 1987, com a criação da As-sociação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo (AMPAVA), a comunida-de Vila Autódromo alcançou diversas con-quistas nos últimos 27 anos de existência. A antiga colônia de pescadores à beira da Lagoa de Jacarepaguá, localizada na Zona Oeste do Município do Rio de Janeiro, ao lado das principais obras destinadas às Olímpiadas de 2016, tornou-se o último entrave na relação do poder público mu-nicipal e os interesses do mercado imobi-liário da cidade.

Com cerca de 500 lotes, as tentativas de remoção na Vila Autódromo não são re-centes. Eles lutam contra isso desde 1993, quando as ameaças sugiram sob a alegação de que a comunidade causaria “dano esté-tico e ambiental” (prefeitura César Maia). Em 2007, por conta dos Jogos Pan-ameri-canos, resistiram a novas ofensivas para dar espaço aos projetos imobiliários na área.

No contexto dos Megaeventos Esportivos, a comunidade voltou a sofrer ameaças. Uma porção da área da Vila Autódromo foi indicada para ampliação e duplicação das Avenidas Salvador Allende e Aber-lado Bueno (Transolímpica). Além disso, pretende-se utilizar parte da área da co-

munidade para abrir acessos ao Parque Olímpico e à construção de uma estação do BRT. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, através das defensoras titulares do Núcleo de Terras do órgão, impetrou em 2013 uma Ação Civil Públi-ca, que por decisão liminar, condicionava a derrubada das casas à apresentação por parte da prefeitura de um plano urbanísti-co voltado aos moradores que quisessem permanecer na área, visando à declaração de nulidade da licença de demolição de moradias.

Esse processo gerou um conflitos entre moradores(as) da comunidade justamente porque a prefeitura construiu um conjunto habitacional, Parque Carioca, que foi ofer-tado como alternativa diante das ameaças de remoção apontada, por agentes munici-pais, como inevitável. hoje já é sabido que tanto a qualidade construtiva quanto o pró-prio projeto arquitetônico é questionável, segundo relatos de residentes.

A pressão imobiliária e os projetos que estão sendo construídos no seu entorno (Transo-límpica e Parque Olímpico) se caracterizam por um impacto socioambiental mais signi-ficativo que a garantia da permanência e consolidação de Vila Autódromo. A proxi-

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midade com a Lagoa de Jacarepaguá impõe certos cuidados no uso e na ocupação do solo que o governo municipal tem ignora-do. Apesar de utilizar o discurso do risco ambiental como uma das justificativas para remover as famílias, está sendo implantado um empreendimento de alto impacto, as-sim como outros que têm sido aprovados nas áreas de vargens (Sistema Lagunar de Jacarepaguá), já que a Zona Oeste é consi-derada área de expansão da cidade.

Para áreas já consolidadas, como é o caso de Vila Autódromo, há possibilidades de pensar em projetos que garantam a per-

manência de comunidades que considerem os limites ambientais. Sendo uma AEIS, é possível estabelecer parâmetros urbanísti-cos que controlem a expansão e o adensa-mento da área, além da restrição de deter-minados usos. Por isso, a individualização jurídica da negociação para o processo de reas sentamento, vulnerabiliza e fere direitos conquistados pela comunidade no que tan-ge à política urbana e a regularização fun-diária através das concessões de uso conce-didas pelo Estado.

>> Para ler o relatório completo acesse: https://medium.com/@CDhAlerj

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vila autódRomoem uma CoRRida deslealA Vila Autódromo, em Jacarepaguá, é símbolo da luta contra as remoções. Os morado-res reivindicam a permanência no local onde fincaram suas raízes, vínculos e história há décadas. A Prefeitura do Rio de Janeiro ignora toda a autonomia comunitária e se utili-za de seu peso institucional para pressionar a população a deixar suas casas e viabilizar a construção de equipamentos esportivos do Parque Olímpico, condomínios e hotéis de luxo. Além disso, a cúpula da Defensoria Pública do Estado, cuja principal obrigação deveria ser a proteção dos direitos dos cidadãos, se associou aos interesses do prefeito e garantiu, em março de 2014, a anulação da liminar que impedia a derrubada das casas de 300 famílias. O mais surpreendente é que a liminar que havia suspendido a demolição das moradias fora apresentada pelo Núcleo de Terras e habitação (NUTh) da própria Defensoria. Ou seja, a Defensoria derrubou sua própria ação para garantir os objetivos da gestão municipal. Os moradores continuam na resistência contra a remoção e, por trás dessa luta, há histórias de pessoas que construíram suas casas e sonhos com dignidade, suor e honestidade. é o caso de Francisco Marinho e Pedro Paulo Franklin.

O vigia noturno Francisco Marinho, 53 anos, com muito esforço construiu a sua casa e a da sua filha, que fica no sobrado. Segundo ele, ainda faltam alguns detalhes, mas as mo-radias estão “arrumadinhas”. Francisco contou que funcionários da Prefeitura intimidaram a população e repassaram informações falsas para tentar coagi-la. Em uma visita da equipe do Município à sua casa para cadastrar o imóvel na lista de demolição, ao afirmar que não deixaria o local, assustou-se com a resposta do agente público. “Eles disseram que eu tinha que sair. Me mandou ir para Austin, em Nova Iguaçu, porque quem não aceitasse essa si-tuação se daria mal”, afirmou.

CDDHC: Quando a Prefeitura iniciou o contato?Francisco: Foi em 2006, para fazer um cadastramento sobre urbanização. Eles mediram, fotografaram e filmaram as re-sidências. Depois descobrimos que era um plano para demolir as casas. Só que a gente entrou junto com a Defensoria Pública para eles lutarem com a gente. Não houve ne-nhuma obra de urbanização. A prefeitura nunca cedeu para gente. Nós que tivemos que criar o ponto de ônibus e a ponte para as crianças irem para escola.

CDDHC: A Defensoria Pública tem apoiado vocês?Francisco: Muito. A Maria Lúcia Pontes (ex-coordenadora do Núcleo de Terras e habitação da Defensoria) foi excelente. Ela luta até hoje com a gente como se fosse moradora. Mas tem alguns defen-sores que não falavam a nossa língua como o Nilson Bruno (defensor geral). Ele veio aqui uma vez e tudo que a gente consultava com ele, ele dizia que estava errado.

Francisco Marinho fala sobre o descaso da prefeitura com a

comunidade

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O bombeiro aposentado Pedro Paulo Franklin, 72 anos, afirma que a prefeitura não cumpriu as promessas feitas quando iniciou as negociações. “Acompanhei todas as negociações e ouvi do próprio prefeito que ele não tiraria os nossos sonhos. Antes, ele disse que toda a negocia-ção seria através da associação de moradores, mas, a partir daquela reunião (entre Eduardo Paes e aqueles que foram convencidos a deixar a comunidade), a negociação passou a ser diretamente com ele. Eles movimentaram a população contra a associação”, lembrou.

CDDHC: A prefeitura já o procurou?Pedro Paulo Franklin: Atualmente, não, só a Marli (Marli Peçanha, funcionária da prefei-tura), que perguntou se estávamos interessa-dos em mudar para outra localidade. Eu até cheguei a visitar os apartamentos, nas não quero de maneira nenhuma. Nós temos aqui uma questão antiga, entramos na justiça para reaver a posse, e eu vou esperar.

CDDHC: O que achou dos apartamentos?Pedro Paulo Franklin: Se eu não tivesse construído minha casa ou não tivesse nada, acho que até aceitaria. Mas minha vida toda, todo tempo e dinheiro disponível, está aqui. Foi tudo feito com honestidade, dentro da-quilo que eu podia, com minhas limitações.

CDDHC: Como observa o posiciona-mento da prefeitura?Pedro Paulo Franklin: Ouvi do próprio pre-feito que ele não tiraria nossos sonhos. No início, a palavra dele foi muito boa. Eu sempre achei que a gente ficaria na terra, ou que pelo menos, não iria perder o que construímos. Mas, as negociações não ca-minharam conforme esperávamos porque a prefeitura passou por cima da Associação de Moradores. Eles aproveitaram a oportu-nidade da liminar para dividir a população e jogar a culpa da falta de diálogo na As-sociação. O prefeito não deu resposta al-guma, não se posicionou sobre como será a urbanização ou como ficarão as pessoas que não querem sair.

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes ao caso:

• Realizamos no segundo trimestre o Ocu-pa Direitos humanos em Vila Autódromo, com parceiros como Anistia Internacional e a ONG Justiça Global quando tivemos a oportunidade de visitar a comunidade e recolher as denúncias de violação do di-reito à moradia.

• Audiência pública em abril sobre a política de remoções no Município e o papel da

defensoria pública, tendo como casos Vila Autódromo, Favela Indiana e Providência.

• Como encaminhamento da audiência, apre-sentamos uma representação ao Ministério Público contra o defensor público geral, Nilson Bruno, por assédio moral e impro-bidade administrativa por conta da liminar derrubada no caso de Vila Autódromo.

• Relatório sobre o contexto atual de Vila Autódromo, a política de remoções e re-comendações desta comissão.

Pedro Paulo Franklin diz que a prefeitura dividiu a Vila AutódromoLe

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4.3. a luta Pelo diReito À moRadia Pós-tRagédia na Região seRRanaDesde a fatídica chuva de janeiro de 2011, é possível afirmar que literalmente as cidades caíram. Alta densidade demográfica, relevo montanhoso e ocupação irregular de encos-tas e margens de rios e córregos, tanto em bairros populares quanto em áreas nobres, transformaram riachos bucólicos em cauda-losos rios de águas grossas e destruidoras, e as encostas esverdeadas em cachoeiras de terra, fazendo desaparecer bairros e vilare-jos da região serrana.

Uma das questões observadas tanto na vi-sita realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos humanos e da Cidadania da ALERJ, quanto nos documentos acessados, é a fal-ta de planejamento e de transparência do que de fato (i) está sendo realizado, (ii) o que está previsto, (iii) onde haverá interven-ções, (iv) as responsabilidades das ações, (v) o quantitativo de recursos mobilizados e (vi) como têm sido aplicados. Certamente, as prefeituras dos municípios atingidos não estavam preparadas e prevenidas, já que a regra da gestão urbana tem sido a correção, e não a prevenção. Por isso, podemos afir-mar que era uma tragédia anunciada.

Não é a toa que a face mais perversa des-sa tragédia são as famílias que residem em

áreas pobres e mais vulneráveis que se en-contram em áreas de risco. A associação das áreas de risco, alto e eminente, com a população mais pobre é a combinação mais provável. São as áreas que “sobram” para ocupação, evidenciando que o problema do déficit habitacional não se restringe apenas aos grandes centros urbanos. O descaso histórico com o controle do uso e ocupa-ção do solo urbano e planejamento, além da ausência de uma política de prevenção e alerta junto à defesa civil, vêm pondo em risco a vida principalmente dos mais vulne-ráveis socialmente, se olhamos a situação de risco para além dos eventos da chuva.

Diante desse panorama, podemos pontuar as seguintes questões mais evidentes na Re-gião Serrana pós-desastre:

• Falta de transparência da aplicação dos recursos e projetos em andamento;

• Baixa efetividade do planejamento urba-no e regional - a médio e longo prazo das ações nas escalas municipais e estadual;

• Canais de participação, quando abertos, pouco efetivos por se limitar a apresen-tações de projetos e ações, incorrendo na

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pouca transparência dos processos em curso;

• Ausência de diálogo e transparência com as famílias de desaparecidos;

• Falta de assistência social e saúde aos atingidos;

• Vulnerabilidade social e jurídica quanto à garantia do direito à moradia para atin-gidos;

• Precariedade do sistema de alerta por par-te da defesa civil;

• Falta de uma política de recuperação ple-na e efetiva das escolas municipais e es-taduais;

• Remoções forçadas de territórios em de-corrência do mapeamento do risco.

• Fraudes em licitações e outros tipos de corrupção pós-tragédia foram evidentes, promovendo “dança das cadeiras” nas prefeituras.

Os investimentos realizados, segundo ma-terial apresentado pelo MPF na audiência pública realizada em maio pela Comissão

de Defesa dos Direitos humanos e da Cida-dania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, não se reverteram em benefícios concretos para a população mais atingida pelas chuvas e vulnerável a novos eventos. O “Mapa de Ameaças Naturais” lançado em julho de 2014, produzido pela Defesa Civil do Estado, aponta que 3.000 famílias estão vivendo em áreas sujeitas a desliza-mento. O planejamento mínimo por parte das prefeituras e a atuação responsável do Estado seriam fundamentais para que os recursos, de fato, se revertessem em be-nefícios reais para a Região Serrana. In-felizmente, ainda não podemos tirar essa conclusão.

é evidente que as prefeituras e governo do Estado têm sido negligentes quanto à ga-rantia do direito à moradia adequada aos atingidos, que não deve ser apenas um teto, mas a qualidade de vida efetiva das famílias. A segurança da posse, a perma-nência em local seguro e amparado por sis-temas de alerta, além de assistência social, proximidade aos serviços urbanos mais es-senciais e acesso à infraestrutura adequada devem estar nas preocupações das prefeitu-ras e do governo do Estado. A morosidade só posterga e radicaliza os problemas en-frentados pelas inúmeras famílias da região.

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desabRigados e abandonadosna Região seRRanaO sofrimento das vítimas da tragédia de janeiro de 2011, provocada pelas chuvas na Região Serrana, ainda não terminou. As prefeituras não pagam regularmente o aluguel social para os desabrigados e as pessoas cujas casas estão localizadas em áreas de risco. Além disso, o valor do aluguel é baixo, pouco mais de R$ 400. A situação fez com que milhares de famílias continuem vivendo em locais onde existe a ameaça de mais tragédias. Além dos problemas de moradia, há urgências ambientais e urbanísticas. As obras necessárias para evitar novos desastres, como o desassoreamento de rios e a construção de encostas, não foram realiza-das e não há previsão para que ocorram.

LuIS CARLOS ARAGãO, ASSOCIAçãO DE MORADORESDO MORRO DO ROSáRIO (TERESóPOLIS).

Desde 2012, estamos tentando sobreviver, mas é muito complicado. A gente perde uma casa, muda para o lado e perde outra. Toda a área está interditada pela Defesa Ci-vil do Município. Em 2012, choveu muito e desceu umas pedras de cima do morro que atingiram o bairro inteiro, arrastando pessoas, móveis e casas. Tem muita gente

que não está recebendo o aluguel social, mas não adianta dar o aluguel e deixar a gente aqui.

>> Veja aqui:https://www.youtube.com/watch?-v=-8TwNt3xYvo&list=PLib4jcpFaJi5Z7eo-PPh7209B3x0Ofw8F5&index=1

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FREI MARCELO TOyANSK, MORRO DO ROSáRIO (TERESóPOLIS)

Desde a tragédia de 2011, nós calculamos de três a cinco mil mortos, e não 300, como foi divulgado. O trauma na população foi muito grande, mas não houve assistência psicológica. Nenhuma casa foi construída e três mil famílias dependem do aluguel

social. No bairro do Rosário, temos 15 mil pessoas vivendo essa realidade de medo.

>> https://www.youtube.com/watch?-v=-8TwNt3xYvo&list=PLib4jcpFaJi5Z7eoP-Ph7209B3x0Ofw8F5&index=1

MARIA ANGÉLICA NASCIMENTO,MORADORA DA COMuNIDADE DO BORGES (TERESóPOLIS)

Em época de chuva, a minha filha fica apavorada, não consegue dormir. quando chove, a gente tem que sair correndo pelo mato, de madrugada, sem lugar para ir. Não recebo aluguel social. quando comecei a receber, foi só por três meses.

>> Veja aqui:https://www.youtube.com/watch?v=5aRhI-ma68Jc&index=4&list=PLib4jcpFaJi5Z7eoP-Ph7209B3x0Ofw8F5

ANA PAuLA AQuINO, MORADORA DO VALE DO CuIABá (TERESóPOLIS)

Estou na área de risco porque não tem so-lução. Corri atrás, fui no Inea (Instituto Esta-dual do Ambiente), fiz tudo o que tinha que fazer, mas até agora não tem decisão. quan-do chove, eu não fico tranquila. Meu filho pequeno não pode nem ouvir falar em cho-

ver, não quer ficar em casa de jeito nenhum.

>> Veja aqui:https://www.youtube.com/watch?-v=9-n0MVUlh5s&list=PLib4jcpFaJi5Z7eoP-Ph7209B3x0Ofw8F5&index=5

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>> Para ler o relatório completo acesse: www.marcelofreixo.com.br

A CDDhC adotou os seguintes encaminha-mentos referentes ao caso:

• Realizamos visitas nos municípios de Te-resópolis, Nova Friburgo, Petrópolis para coletar denúncias de moradores e visitar locais que foram atingidos pelo desastre.

Audiência pública em maio sobre a situa-ção das cidades e das vítimas das chuvas de janeiro de 2011 na região.

• Produção de relatório “A tragédia na Re-gião Serrana do Rio de Janeiro três anos depois: direito à moradia adequada” com dados, análises e recomendações da co-missão.

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4.4. oCuPa dHno moRRo do boRelLocalizado no bairro da Tijuca, na Zona Norte do município do Rio de Janeiro, a ocupação no Morro do Borel teve inicio na década de 1920. habitantes do Morro do Castelo e do Santo Antônio, no centro da cidade, foram removidos e, em conse-quência, muitos migraram para onde hoje é o Morro do Borel.

Em 1954, a comunidade foi a pioneira na criação de uma associação de moradores, chamada de União de Trabalhadores Fave-lados. A associação teve êxito nas lutas con-tra a remoção de moradores e erradicação das favelas perpetuadas pelos governos até a década de 1980. Com a redemocratiza-ção do país após o fim do regime militar, o governo inicia uma nova relação entre a favela e o poder público. Alguns programas de melhorias na infraestrutura foram im-plantados em 1983, tais como o “Projetos de Favelas da Cedae – PROFACE” e o “Pro-grama Cada Família um Lote” com grande apoio dos moradores do Borel.

Ao longo da década de 90, a questão da violência e do tráfico de drogas foi ampla e insistentemente divulgada nos grandes meios de comunicação, inclusive reforçan-do o constante crescimento no número de pessoas mortas nas favelas e incursões policiais. Em 2008, a primeira Unidade de

Polícia Pacificadora, projeto do governo do Estado, entra nas favelas cariocas com o discurso da guerra às drogas. A primeira unidade foi instalada no Morro Santa Marta no bairro de Botafogo, Zona Sul da cidade. No Morro do Borel a UPP chegou em 2010.

Durante a atividade que chamamos de “Ocupa Direitos humanos”, quando a CDDhC vai à favela para levantar casos de violação, percebemos que moradores do Morro do Borel, marcados pela tragédia das chuvas de 2010, ainda convivem com a falta de esperança de ter uma moradia adequada. “Esse jornalzinho aqui é o meu documento”, disse Marcelo André ao exi-bir a reportagem que trata da dor e do de-samparo de sua família após perder uma fi-lha e duas netas no deslizamento de terras no Morro do Borel, em 2010. A assistência pública destinada a Marcelo se resume a um aluguel social e à falta de informações sobre a promessa de entrega de uma nova moradia.

Após quatro anos da tragédia, Marcelo se sente abandonado pelo poder público. “Eu estou um morto-vivo, estou diabético emo-cional. quando chove dias seguidos, meus filhos se desesperam e querem sair de casa. A gente quer uma casa segura, mas nunca vieram me procurar. Estamos abandona-

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dos”, afirmou. Esse sentimento é compar-tilhado por Carlos Roberto Monteiro que teve sua casa condenada pela Defesa Civil por estar em área de risco, na Vila da Paz. “Eu recebo aluguel social e pago uma casa logo abaixo da minha que foi derrubada pelo governo. quando chove muito, eu fico com medo de desabar. Já fui na Prefeitura e em todo lugar que indicam para ver se agi-lizam a entrega do apartamento, mas nin-guém resolve”. A CDDh solicitou os dados dos cadastros dos moradores para verificar junto aos órgãos responsáveis o que está ocorrendo e cobrar ações.

Esse problema é o mesmo enfrentado por outras famílias atingidas pelas chuvas na-quele mesmo ano, como constatou a equi-pe da CDDhC da Alerj, que realizou, junto à Justiça Global e parceiros locais, o  Ocu-pa Direitos humanos no Borel no dia 10 de maio. Na ocasião, verificou-se que mesmo com a entrada do braço armado do Estado, os problemas da favela continuam os mes-mos e outros foram acirrados.

Cerca de 30 pessoas em mutirão nos dife-rentes pontos do morro fizeram atendimen-tos às demandas apresentadas pela popula-ção. As principais queixas e reivindicações estão relacionadas à falta de retorno do Es-tado com relação ao programa Minha Casa, Minha Vida e à coleta de lixo, ao desabas-tecimento de água, ao aumento das tarifas de energia elétrica e à abordagem policial realizada pela Unidade de Polícia Pacifica-dora do Borel.

Lixo na rua e lata d´água na cabeçaO desabastecimento de água é uma cons-tante no Borel. Alguns moradores chegam a ficar uma semana sem água e quando a água cai na torneira permanece por apenas 30 minutos. Por isso, subir o morro com la-tas d’águas na cabeça é uma questão de sobrevivência e, para evitar desperdício, muitas mulheres lavam seus cabelos nos escassos pontos de distribuição organiza-dos pelos próprios moradores. Somado ao problema está o fato de uma das caixas d’águas que abastece a comunidade ter ra-chaduras, há a preocupação de a estrutura ruir. “Já entrei em contato com a Defesa Ci-

vil e a Cedae, mas ninguém faz nada. Ficam naquele jogo de empurra-empurra. A caixa d’água está cheia e tenho medo de quebrar, estourar. quando ela cair é que vão fazer algo, mas vai ser tarde demais”, afirmou Camila da Silva Lima.

A irregularidade na coleta de lixo também causa transtornos aos moradores. A princi-pal denúncia é a de que o lixo só é recolhido nas ruas centrais, enquanto becos e vielas são ignorados. Segundo Ivonete  Evaristo Ferreira, a prefeitura só limpa as ruas da Chácara do Céu quando acontece algum evento: “Só assim eles capinam e varrem tudo. Os moradores que fazem a limpeza das ruas, mas ainda falta conscientização”, disse. Terrenos das casas que foram demo-lidas por estarem em área de risco também viraram região de acúmulo de lixo. Além dos destroços e escombros deixados pelo poder público, a falta de coleta obriga os moradores a despejarem lixos nesses espa-ços. Outra reclamação é a falta de ilumina-ção pública. “Várias lâmpadas de postes estão quebradas e durante a noite fica tudo escuro”, afirma Ivonete. O perigo da falta de iluminação soma-se às péssimas condi-ções do asfalto no Borel. Não são poucos os buracos nas ruas, que causam acidentes, principalmente entre crianças e idosos.

Todas as demandas e denúncias serão orga-nizadas pela CDDhC e pela Justiça Global que as encaminharão aos órgãos públicos com o objetivo de que os problemas sejam sanados. haverá o acompanhamento das ações efetivas desses órgãos. 

A Comissão de Direitos humanos enca-minhou as demandas coletadas ao longo da ação para os seguintes órgãos: CEDAE; LIGhT; RIOLUZ; Secretaria Municipal de ha-bitação do RJ; Secretaria Municipal de Obras do RJ; Subsecretaria Municipal de Defesa Ci-vil do RJ; Geo-Rio; COMLURB; Comando Ge-ral da Polícia Militar; Chefia da Polícia Civil; CPP - Coordenadoria de Polícia Pacificadora; Corregedoria Geral Unificada; Procuradoria Geral do Ministério Público-RJ; Secretaria de Segurança Pública – RJ; Secretaria Municipal de Obras do RJ; Secretaria de Esportes e La-zer do Município do Rio de Janeiro.

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moRRo do boRel ainda enfRenta a falta de água, de seguRança e de saúdeDurante muito tempo, os órgãos públicos justificavam que a falta de atendimento aos servi-ços essenciais nas favelas era resultado da dificuldade de atuação diante do domínio dos tra-ficantes do varejo de drogas. No entanto, mesmo com a ocupação de uma Unidade de Polí-cia Pacificadora (UPP) no morro do Borel, em 2010, os problemas da comunidade continuam os mesmos e outros foram acirrados. As principais queixas e reivindicações dos moradores estão relacionadas à falta de retorno do Estado com relação ao programa Minha Casa, Mi-nha Vida, à coleta de lixo, ao desabastecimento de água, ao aumento das tarifas de energia elétrica e à abordagem policial realizada pela UPP. A desempregada Lilian Silveira Campos, 38 anos, nascida e criada no Morro do Borel, recebe o aluguel social porque sua casa foi condenada pela Defesa Civil após o deslizamento de terra ocorrido em 2010 no morro. Lilian fala sobre as dificuldades diárias de um local que foi valorizado por conta da presença da UPP, mas que pouco evoluiu em termos de Saúde e Segurança para a população.

CDDHC: O que você notou com a che-gada da uPP?Lilian: Isso aqui está parecendo a Vieira Sou-to, não parece mais comunidade. As contas de luz estão vindo altas demais. No começo, a conta estava acessível, mas agora a tarifa está muito cara. A gente tem economizado energia elétrica, mas mesmo assim estou com duas contas atrasadas, porque pago aluguel e meu marido está desempregado. Daqui a pouco vão cortar a luz novamente. Antigamente, eles não cortavam, mas agora não querem saber se estou desempregada ou se tenho criança pequena.

CDDHC: Como está o abastecimento de água?Lilian: Sempre falta água. Eu ponho galão

de água debaixo da pia, já ficamos mais de uma semana sem água. A gente conta com a ajuda de vizinhos que têm um pouco mais de água para fazer comida. E lavar roupa é quase impossível. quando falta água, as aulas na creche são suspensas, porque não tem como 200 crianças ficarem o dia inteiro sem água para beber. Todas as escolas da comunidade ficam sem aula. Eu estou em casa, desempregada, e fico com a minha filha. Mas têm muitas mães que dependem da creche para poder trabalhar, porque não têm com quem deixar seus filhos.

CDDHC: Como é a abordagem dos poli-ciais da uPP?Lilian: Sinceramente, eu não gosto da ma-neira com que eles abordam os moradores.

Lilian Silveira fala sobre as dificuldades de morar em um local que foi valorizado por conta da presença da UPPLe

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Uma vez estava sentada na minha porta com o meu filho e meu marido, e um po-licial mandou meu filho se levantar para revistá-lo. Eu concordei, mas pedi que o revistasse onde estava iluminado, porque eles o levaram para um canto escuro. E eles me disseram que eu não tinha o direito de decidir onde eles deveriam revistar o meu fi-lho. Então, eu falei que, por se tratar de um menor de idade, eles teriam que abordá-lo na minha frente. Depois, as pessoas querem dizer que o pessoal da comunidade é sem educação, ignorante e arrogante. Mas, o que acontece é que não concordamos com a forma que eles se comportam. Se eles querem estar na comunidade, é importan-te que tenham uma boa convivência com o morador, com diálogo.

CDDHC: Alguma coisa mudou depois da entrada da uPP?Lilian: O que mudou foi que não tem mais tiroteio aqui. Os nossos filhos podem des-cer sem correr o risco de receber uma bala

perdida. A outra mudança é que as pessoas estão alugando as casas de acordo com a UPP. Já que tem polícia na rua, o aluguel de uma casa com quarto, sala, cozinha e ba-nheiro tá saindo por R$ 700. Aqui eu pago R$ 400. quer dizer, que agora com o morro pacificado tudo valorizou? Mas os proble-mas continuam os mesmos: falta de água e de segurança, porque eu não me sinto se-gura com essa polícia.

CDDHC: E como está o acesso aos serviços de Saúde?Lilian: Esse posto de Saúde da Família que existe aqui é um elefante branco. Todas as vacinas que preciso dar na minha filha es-tão em falta. Já estive de cama, sem poder levantar e não veio nenhum médico aqui. que Saúde da Família é essa? A agente de Saúde que esteve aqui em casa para avisar que, depois de quase um ano, tinha conse-guido marcar a consulta de oftalmologista para a minha filha para mais dois meses a frente. Essa é a Saúde da Família.

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4.5. Célio de baRRos e júlio delamaRe: PaRa quem?Desde a polêmica que ronda a concessão do Complexo do Maracanã e os projetos de reformas, o parque aquático Júlio Delamare e o estádio de atletismo Célio de Barros fi-caram a abandonados para favorecer os de-sejos de empresários com apoio da prefei-tura do Rio de Janeiro de transformação do complexo, favorecendo mais os negócios e menos a prática esportiva e a importância cultural do Maracanã para a cidade.

As contradições são inúmeras em torno do projeto. Sem respeitar o patrimônio material e imaterial que representa o Ma-racanã, o consórcio liderado pela Ode-brecht implementou diversas mudanças que interferem no uso do complexo. Uma delas é a supressão das pistas do Célio de Barros para dar lugar a um estaciona-mento, exigência da FIFA para os jogos da Copa do Mundo. Além disso, a proposta do governo com a iniciativa privada era a construção de um shopping. é importan-te ressaltar que o estádio era o único em que abrigava equipamentos para todas as modalidades do atletismo. Por conta dis-so, os atletas do Rio de Janeiro estão sem condições adequadas de treino, um con-trassenso em uma cidade que será sede das Olimpíadas em 2016.

O ex-governador Sérgio Cabral havia dado uma declaração após inúmeras manifesta-ções contrárias ao projeto de que o estádio iria ser reconstruído e reaberto para os atle-tas. Em janeiro deste ano, foi feito um adi-tivo ao contrato de concessão retornando a administração para o Estado. Isto quer dizer que a gestão dos equipamentos voltou a ser da Superintendência de Esporte e Lazer do Estado do Rio de Janeiro – SUDERJ, tanto do Célio de Barros quanto do Júlio Delama-re. Isso poderia significar que as demandas pela reconstrução do estádio, assim como a manutenção do parque aquático, estariam garantidas. Inclusive, em outubro de 2013,

o governo do estado solicitou R$ 10 milhões em recursos para o Ministério do Esporte para as obras da pista, com previsão de iní-cio no primeiro bimestre de 2014. Mas os fatos demonstram o contrário. A dois anos das Olimpíadas, não há sinalização de início das obras, apenas a previsão de reabertura para depois dos jogos em 2016.

O parque aquático Júlio Delamare já ha-via sofrido reformas para o Pan-americano e foi fechado durante a Copa do Mundo para viabilizar um novo projeto ligado aos Jogos Olímpicos. havia sido divulgado que, em agosto, o parque seria reaberto para as atividades e projetos de esporte em vigor. No entanto, até hoje isso não ocorreu. Se-gundo informações de antigos alunos, as piscinas foram esvaziadas, contribuindo em curto prazo para deterioração dos equipa-mentos do parque.

é preciso ressaltar que a prefeitura do Rio, para garantir seus interesses quanto à re-forma do Complexo do Maracanã, havia cancelado o tombamento do Júlio Dela-mare e Célio de Barros, vindo a revogar o destombamento em agosto de 2013. Por essa razão, qualquer projeto de intervenção precisa respeitar critérios de preservação do patrimônio do parque aquático. As exigên-cias para os Jogos Olímpicos não podem interferir nas suas características físicas, sal-vo instalações temporárias que não danifi-quem ou interfiram no patrimônio.

A situação de Célio de Barros é mais delica-da, pois o estádio foi completamente des-truído. Contudo, apesar dos pesares, pode ser uma oportunidade de reconstrução do projeto original com equipamentos mais modernos e adequados às demandas dos atletas. O problema é que não sabemos se o projeto original do estádio será respeitado e se de fato voltará para os atletas amadores e profissionais.

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Estamos em 2014, a menos de dois anos dos Jogos Olímpicos. Ao que tudo indica, a população novamente, assim como os atletas brasileiros que competirão, não po-derá desfrutar da infraestrutura que será construída para as Olimpíadas. Ao mes-mo tempo, os projetos sociais do próprio governo baseados no Complexo estão comprometidos, já que as vilas olímpicas da cidade não comportam às inúmeras demandas socioeducativas, sobretudo em razão da sua gestão.

Além disso, não podemos deixar de mencio-nar a gestão da CBDA (Confederação Bra-sileira de Desportes Aquáticos). Em 2013, Coaracy Nunes foi reeleito para seu 7º man-dato, o que significa mais de 25 anos no poder. Não é por acaso que há uma grande dificuldade de diálogo e de proposição de uma política pública de fato voltada aos es-portes aquáticos, não apenas como compe-tição, mas como instrumentos socioeduca-tivo para crianças, jovens, adultos e idosos.

Tendo em vista esse quadro, recentemente encaminhamos um ofício à Superintendên-cia de Desportos do Estado do Rio de Janei-ro (SUDERJ) solicitando informações sobre o projeto Esporte RJ no Julio Delamare, assim como do escopo e cronograma do projeto de reforma do parque aquático. A resposta sobre a primeira questão foi de desrespon-sabilização quanto ao projeto, afirmando que a SUDERJ apenas gerencia o complexo e seus equipamentos. No entanto, se visi-tarmos a página eletrônica da autarquia, sobre suas atribuições está descrito:

A Suderj, dirigida por um presidente, tem por finalidade incrementar os desportos no Estado visando ao aperfeiçoamento físico e mental do homem, pela prática livre dos exercícios e através de competições; desen-

volver o desporto amador, prioritariamente as modalidades desportivas olímpicas e es-tender a camadas cada vez mais amplas o benefício da prática dos desportos, objeti-vando, desta forma, a seleção e o aprimora-mento dos atletas1.

Ou seja, a SUDERJ deveria se responsabilizar diretamente pelo êxito do projeto Esporte RJ uma vez que a mesma deveria dar condi-ções para que se efetivasse o projeto, mes-mo que a SUDERJ se limitasse às condições materiais.

Sobre o projeto que incidirá sobre o parque, a resposta da superintendência refere-se a um termo aditivo ao contrato de parceria público-privada entre o Estado do Rio de Janeiro e a concessionária (Complexo Ma-racanã Entretenimento S.A) com relação à efetivação das obras previstas para os Jogos Olímpicos. Segundo o ofício, essas obras são indispensáveis para a realização das competições de Polo Aquático a fim de adaptar o parque às exigências do COI (Co-mitê Olímpico Internacional). Além disso, ao contrário do que é informado por mo-radores das redondezas, é afirmado que as piscinas não estão esvaziadas, apenas estão sendo tomadas as medidas necessárias para a sua manutenção.

A ausência de diálogo efetivo e de informa-ções aos atletas amadores e profissionais que usufruíam o complexo deixa claro que as prioridades são as realizações de obras a qualquer custo, em detrimento dos interes-ses legítimos de nossos atletas e dos usuá-rios do Maracanã. Por isso, a CDDhC conti-nua atenta aos compromissos firmados com os grupos mobilizados que desejam o Célio de Barros e o Julio Delamare em pleno fun-cionamento, de forma democrática, e aber-ta à população carioca.

1. Disponível em: http://www.suderj.rj.gov.br/

atribuicoes.asp

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PARQuE AQuáTICO JúLIO DELAMARE à DERIVA O Parque Aquático Júlio Delamare, localizado no Complexo do Maracanã, foi fechado no dia 12 de maio de 2014 por determinação da FIFA. Não houve qualquer aviso pré-vio aos usuários ou satisfação sobre possível realocação. O espaço era usado por mais de 10 mil pessoas, entre atletas de ponta, jovens promessas, idosos e deficientes físicos, encaminhados pela rede pública de saúde para praticarem atividades físicas gratuitas. Após mobilização dos usuários e diversas audiências públicas da Comissão de Esporte e Lazer, foi apresentada como justificativa para fechamento do parque a realização de obras para comportar os jogos de Polo Aquático nas Olimpíadas, a construção de lojas e a expan-são da arquibancada. O projeto não foi discutido com os atletas, funcionários e alunos do parque. Após a pressão, os usuários conseguiram algumas vagas na Vila Olímpica da Man-gueira e na Vila Olímpica de Sampaio. A integrante da Comissão de Usuários do Parque Júlio Delamare, Rosângela Maciel, questiona a falta de transparência na condução do processo e reivindica a participação dos usuários na tomada de decisão.

usuários do Parque. é muito ruim para os idosos e deficientes. Uma falta de respeito

CDDHC: Qual a justificativa para o fechamento do espaço?Rosângela: Eles (o governo estadual) fala-ram, extraoficialmente, que iria começar uma obra imediatamente após o término da Copa. Construiriam lojinhas e mudariam a piscina coberta, mas esse projeto nunca foi discutido conosco.

CDDHC: O Estado apresentou algum prazo para a reabertura do Parque?Rosângela: Sim, maio de 2015. Mas duvido que seja cumprido, pois já estamos quase no final de novembro e a obra ainda não começou. Como teremos Olimpíadas em 2016? Ver este espaço fechado dói muito.

CDDHC: Quando e como você soube que o Parque Júlio Delamare iria fechar?Rosângela: Não houve nenhum comunica-do oficial aos alunos. Desconfiamos quando os funcionários começaram a comentar que o parque iria fechar e iniciaram os boatos. Até que fomos informados pelos jornais que o espaço seria fechado por causa da Copa do Mundo. Um dia chegamos no parque e as portas estavam fechadas. Foi surreal.

CDDHC: O Estado apresentou alguma alternativa aos usuários?Rosângela: Só depois da nossa pressão e de várias audiências. Mas nenhuma alternativa era viável. Tanto a Vila Olímpica da Man-gueira quanto a de Sampaio, não têm fácil acesso e não conseguem atender todos os

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a luta de vila autódRomo

Por Regina Bienenstein &Fernanda Sánchez1

Vila Autódromo está situada ao lado do antigo autódromo da cidade, uma exten-sa área pública transferida para o Consór-cio Rio Mais para a construção do Parque Olímpico. A comunidade vem sendo amea-çada de remoção desde a década de 1990. As justificativas têm sido as mais variadas, desde dano estético, prejuízos ao meio am-biente e até, mais recentemente, a suposta necessidade de viabilizar a implantação das alterações no sistema viário. Durante todo esse tempo, a Vila tem resistido, contando com o apoio da Defensoria Pública do Esta-do, de movimentos sociais de luta por mo-radia e profissionais engajados na luta pelo direito à cidade.

A Vila tem sua origem ligada à ocupação de pescadores e população de baixa ren-da às margens da Lagoa de Jacarepaguá há mais de 30 anos. Na década de 1980, os moradores se organizaram na Associa-ção de Moradores, Pescadores e Amigos da Vila Autódromo para lutar por infraes-trutura e investimentos públicos no lotea-mento que se iniciava. Vila Autódromo tem uma história peculiar: seu crescimen-to foi praticamente induzido por sucessi-vos governos da cidade do Rio de Janeiro. Já em 1989, durante o governo Marcelo Alencar, várias famílias oriundas da Co-munidade Cardoso Fontes foram autori-zadas a se assentarem no local. Um pouco mais tarde, em 1994, a antiga Secretaria

da habitação e Assuntos Fundiários do RJ, através do Processo Administrativo E-200011057/93, em decisão publicada no D.O. (04/04/94), assentou legalmente mais sessenta famílias em Vila Autódro-mo. Em 1997, cento e quatro famílias re-ceberam titulação do Governo do Estado e, no ano seguinte, os moradores da faixa marginal da Lagoa receberam Concessão de Uso Real por noventa e nove anos (pela antiga Secretaria de habitação e Assuntos Fundiários do RJ, D.O. de 31/12/98). Em 12/01/2005, a Câmara Municipal do Mu-nicípio do Rio de Janeiro definiu a comu-nidade como área de Especial Interesse Social (Projeto 75-A/2004). Mesmo assim, as ameaças não foram interrompidas e a permanência e a urbanização da Vila Au-tódromo não estavam nos planos para a região que se valorizava.

Num dos encontros com moradores de Vila Autódromo, o Prefeito reafirmou a neces-sidade da remoção, desta vez justificando como sendo uma necessidade para os Jo-gos Olímpicos, porém abriu a possibilidade da permanência, caso os moradores apre-sentassem alternativas. Daí nasceu a ideia do Plano Popular da Vila Autódromo. A par-tir daí, com a solicitação dos moradores de apoio para a elaboração de seu Plano Popu-lar, a UFRJ (ETTERN/IPPUR) e a UFF (NEPhU e GPDU) começaram a atuar diretamente em Vila Autódromo.

1. Regina Bienenstein - professora titular da escola

de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, Coordena o

Núcleo de Estudos e Projetos habitacionais e Urbanos da

UFF e participou da construção do Plano Popular de Vila

Autódromo.

Fernanda Sánchez -Professora Associada II da Escola de

Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense,

pesquisadora do Laboratório Globalização e Metrópole,

pesquisadora associada ETTERN-IPPUR da Universidade Federal

do Rio de Janeiro e participou da construção do Plano Popular de

Vila Autódromo.

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O Plano Popular mostra que existe alternati-va tecnicamente viável para a permanência daquelas famílias no local em que construí-ram suas casas. Se contrapõe à proposta oficial de mudança para um conjunto ha-bitacional do Programa Minha Casa Minha Vida, chamado Parque Carioca, situado a cerca de 2km e composto por 920 aparta-mentos, de dois e três quartos, com área entre 45m2 e 62m2.

Por meio de oficinas, reuniões e assembleias gerais, o Plano foi progressivamente cons-truído, traduzindo em termos técnicos, os objetivos, anseios e necessidades dos mora-dores. Os moradores, na condição de plane-jadores populares e com uma visão de que moradia não se restringe a um teto, defini-ram programas de Saneamento, habitacio-nal, de Infraestrutura e Meio Ambiente, de Transporte e Serviços e de Desenvolvimento Cultural e Comunitário.

O Plano resgata a faixa marginal de pro-teção da lagoa e do córrego de 15 metros (conforme Resolução nº 369/2006 do CO-NAMA), oferecendo às famílias a serem reassentadas, por estarem muito próximas à orla da lagoa, alternativas variadas de mo-radia (casas com um ou dois quartos, apar-tamentos com um, dois ou três quartos), com área entre 66m2 e 93m2. Além disso, propõe a reforma e ampliação da sede da Associação dos Moradores e a construção de uma edificação destinada a uma creche comunitária (até que a Prefeitura instalasse uma creche municipal).

Em resumo, o Plano Popular, mais do que uma solução para a urbanização, repre-senta uma forma de se planejar a cidade envolvendo os cidadãos. Ao apresentar alternativas, considerar requisitos técnicos e demandas populares, sempre apresenta-dos de forma aberta para o debate públi-co, propõe a democratização da produção da cidade.

Os moradores da Vila Autódromo, acom-panhados de sua assessoria técnica, apre-sentaram o projeto à Prefeitura, em au-diência, em agosto de 2012. O prefeito, em período eleitoral, se comprometeu a avaliar e dar um retorno dentro de 45 dias, o que nunca ocorreu. Frente ao seu silêncio, os moradores procuraram enti-dades profissionais, propondo a formação de um grupo técnico que avaliasse o Plano Popular e o comparasse à proposta oficial. O resultado deste estudo, plenamente favorável ao Plano Popular, foi entregue

oficialmente à Prefeitura em encontro rea-lizado na sede do Instituto de Arquitetos do Brasil, uma das entidades signatárias do parecer. Além disso, o Plano Popular da Vila Autódromo recebeu, no final de 2013, o Prêmio Internacional de Urbanismo Ur-ban Age, do Deutsche Bank e da London School of Economics, no valor de US$80 mil, e a comunidade decidiu aplicar esta quantia na construção da creche comuni-tária e na reforma e ampliação da Associa-ção dos Moradores.

Após as manifestações de junho de 2013, o prefeito abriu uma rodada de negocia-ções. Declarou-se arrependido e formou um grupo de trabalho composto por se-cretários e técnicos das Secretarias de Urbanismo, Meio Ambiente, habitação, além de representantes da empresa Rio Mais, representantes dos moradores, De-fensoria Pública e assessores das Universi-dades. Durante a rodada de reuniões fo-ram apresentados croquis que permitiam antever que a intenção de remover não havia mudado. Pelos desenhos, apenas a terça parte do assentamento permanecia. Isto se confirmou com o rompimento uni-lateral das negociações pela Prefeitura, a partir do momento em que a assessoria apresentou proposta alternativa, a qual, mesmo acatando as demandas do projeto do Parque Olímpico, permitia a perma-nência da maior parte das famílias.

O rompimento das negociações marca o iní-cio do período de assédio e ameaças, com “visitas” diárias de grupos de funcionários que abordam as famílias, tentam semear a dúvida, a discórdia e dividir a comunidade. Dentre os ruídos, desinformação e injustiças que acompanham as remoções, ressalta-se a confusão gerada e divulgada de que, tanto a Defensoria como a Associação de Moradores supostamente seriam responsá-veis pela cassação do direito de ir e vir dos moradores da Vila Autódromo que deseja-vam se mudar para o Parque Carioca. Foi necessário um grande esforço de esclare-cimento por parte da Defensoria Pública, mas somente após a manifestação da Caixa Econômica de que “as chaves já estavam disponíveis às famílias, não existindo qual-quer impedimento ou condição, como por exemplo, a demolição das casas, para o re-cebimento das chaves” é que os ânimos en-tre os moradores que optaram por sair e os que lutam pela permanência se acalmaram. Considerando que a Prefeitura não pode re-tirar as famílias sem que estas manifestem sua concordância, pois têm sua terra regu-

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larizada, este está sendo o caminho escolhi-do pelo governo municipal.

A Prefeitura oferece duas alternativas para as famílias que decidem sair: mudar-se para um apartamento do Programa Minha Casa Minha Vida no “Parque Carioca” ou rece-ber um valor por sua casa que varia, de caso para caso, tendo atingido em alguns casos R$ 2 milhões.

Com esta estratégia, uma parte das famí-lias já saiu da comunidade. Logo após a mudança das famílias, as casas são destruí-das e o terreno esvaziado, ou são apenas inutilizadas, com os escombros deixados no local. Além disso, com o avanço das obras do Parque Olímpico, o muro que di-vidia a comunidade do antigo Autódromo foi demolido, as árvores que sombreavam toda a Rua do Autódromo, no correr do muro, foram derrubadas. hoje, a situação corresponde a um verdadeiro campo de batalha. Ainda assim, perto de 200 famí-lias resistem e continuam a lutar pela per-manência, sempre reivindicando a urbani-zação prometida.

A pesquisa sobre a história da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, quando foram removidas favelas das áreas nobres da Zona Sul carioca, evidencia registros contundentes, memórias do sofri-mento daqueles cidadãos que se viram obri-gados a romper relações sociais e de amiza-de, indo morar na Vila Kennedy, Cidade de Deus ou Parque Aliança, como ilustra o filme recentemente lançado “Remoção”, de Luiz Antônio Pilar e Anderson quack. Também no caso de Vila Autódromo diversas repor-tagens e documentários têm relatados fatos semelhantes, sem alterar a disposição da Pre-feitura de realizar a remoção.

Professores e urbanistas que se dedicam ao estudo da habitação de interesse social em suas diferentes formas nas cidades brasilei-ras não poderiam imaginar que a nefasta cultura da remoção, que havia sido erradi-cada e substituída pela cultura da urbani-zação de favelas, conquistada mediante tantas lutas sociais no Brasil, voltaria com tamanho vigor. Eis que as remoções e o desrespeito aos direitos humanos voltaram à cena urbana como peças fundamentais da chamada Cidade Olímpica.

Responsabilizar somente a Prefeitura e seus técnicos é uma visão limitada. O direito dos cidadãos cariocas de ficar em seus territó-rios, em seus bairros, em suas favelas reur-banizadas está ameaçado pela Prefeitura, mas, por trás dessas ações, estão empresas que vão se beneficiar com os negócios imo-biliários, com condomínios que vão surgir nesses locais em disputa.

A Universidade pública, em conjunto com os moradores de Vila Autódromo, tem re-petidamente mostrado que é possível fazer Olimpíadas sem invadir um bairro popular como a Vila Autódromo, uma visão com-partilhada com a Defensoria Pública, o que também é de interesse de outras comunida-des atingidas por essa proposta de remoção dos trabalhadores pobres das regiões valori-zadas da cidade.

Os moradores, junto com as universidades, fizeram seu Plano Popular. No cenário som-brio da destruição de casas, este prêmio reforça o sonho e o desejo da construção de uma Creche, advinda dos recursos obti-dos com uma conquista de reconhecimento internacional. Trata-se de uma visão de ur-banismo que incomoda o chamado “urba-nismo olímpico”...

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imPaCtos soCiais das tRansfoRmações uRbanas na áRea PoRtuáRia em função do PRojeto PoRto maRavilHa

Isabel Cristina da Costa Cardoso1

O objetivo desse segmento do relatório da CDDhC é expor e denunciar a subordinação da função social da propriedade e da cida-de na região portuária do Rio de Janeiro ao processo de valorização da terra e do capital imobiliário a partir da criação e do desen-volvimento da Operação Urbana Consor-ciada (OUC) da Região do Porto do Rio de Janeiro, vulgo “Porto Maravilha”. Tal subor-dinação impacta diretamente a definição pública do uso da terra urbana para a ga-rantia do direito humano e social à moradia. Da mesma forma, pretende-se demonstrar que a defesa e garantia da moradia digna na região portuária depende: 1) da demar-cação legal da terra e dos imóveis existentes na região, enquanto área de especial inte-resse social (AEIS) para fins de produção de moradia social; 2) da destinação de recurso da OUC da Região do Porto do Rio para a produção de habitação de interesse social; 3) da elaboração e cumprimento do corres-pondente plano de urbanização para cada AEIS localizada na área de abrangência do Projeto Porto Maravilha (tanto as futuras áreas, quanto as existentes, como a AEIS do Morro da Providência e a AEIS da Pedra Lisa) que garanta o direito à moradia com urba-nidade e proteja os moradores das práticas de remoção, gentrificação e/ou especulação imobiliária decorrentes das transformações das formas de uso e ocupação da terra a partir da OUC; 4) do rompimento com as práticas de inviabilização e banimento social e urbano do bairro do Caju frente à dinâ-

1. Professora da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Membro do Fórum Comunitário do Porto e Coordenadora do Projeto de Extensão Direito à Cidade, Política Urbana e Serviço Social.

mica de desenvolvimento da cidade e, em especial, da OUC do Porto.

O Projeto Porto Maravilha e a Subor-dinação da Terra à Lógica Mercantil e FinanceiraO Projeto Porto Maravilha, criado pela lei nº101/2009, tem seu território delimitado pela área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) que abrange a totalidade dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo e parte dos bairros do Centro, São Cristóvão e Cida-de Nova. A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio (CDURP), criada pela Lei Complementar nº102/2009, tem a responsabilidade de promover todo o desenvolvimento urbano da AEIU do Por-to do Rio; coordenar, viabilizar ou executar ações de concessão e parcerias; gerir ativos patrimoniais, dentre outras funções.

Um dos principais pilares de sustentação financeira da OUC da Região do Porto é a emissão de Certificados de Potencial de Construção pelo Município do Rio de Ja-neiro, na quantidade de até 6.436.722 (seis milhões quatrocentos e trinta e seis mil setecentos e vinte e dois) certificados, cor-respondentes a 4.089.502 m² (quatro mi-lhões, oitenta e nove mil quinhentos e dois metros quadrados) adicionais de construção.

Após a aquisição integral dos CEPACs, na bolsa de valores, através de recursos do FGTS, foi constituído o Fundo de Investimento Imo-

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biliário Porto Maravilha (FII Porto Maravilha), administrado pela CEF. O valor adquirido com as vendas de CEPACs será transferido à CDURP, ao longo de 15 anos, para paga-mento dos custos da OUC do Porto do Rio referentes, centralmente, ao contrato da Par-ceria Público Privada (PPP), responsável pela implantação da segunda fase da OUC. Tal PPP está sob a responsabilidade do consór-cio vencedor chamado Porto Novo, compos-to pelas empresas Construtora OAS Ltda., Construtora Norberto Odebrecht Brasil S.A. e Carioca Christiani-Nielsen Engenharia S/A. Os recurso necessários para o cumprimento dessa obrigação, na ordem de R$ 8 bilhões, não foram aportados, ainda, integralmente no FII. Os recursos vindos do FGTS para com-pra dos CEPACs, R$ 3,5 bilhões, garantem alguns anos de obras e serviços previstos no contrato da PPP, mas não a sua totalidade. O restante dos recursos, ainda que garantido pelo FGTS, deverá vir da venda dos CEPACS, da renda fundiária propiciada pela permuta de CEPACs por área edificada na forma de negócios imobiliários rentáveis e dos terre-nos públicos integralizados pelo FII do Porto do Rio. O resultado dessas operações finan-ceiras e comerciais tem ainda que remunerar o próprio FII.

Não obstante o conjunto dos elementos des-tacados, como os certificados dizem respeito apenas a uma “terra virtual”, a realização destes potenciais adicionais de construção demanda a apropriação privada da terra ur-bana realmente existente e disponível na re-gião que é, na sua grande maioria, terra pú-blica (75%)2. Por isso, os terrenos públicos e os recursos obtidos com a venda dos mesmos integralizam o FII Porto Maravilha junto com os CEPACs. Ou seja, ao final, a expropriação fecha o seu circuito sobre a terra urbana e, em especial, sobre a terra urbana pública e sobre a expulsão da população pobre que ocupa os cortiços, favelas e imóveis aban-donados/vazios da região. Por isso, a demar-cação de terras urbanas dentro da AEIU do Porto Maravilha, através da criação de AEIS, para produção de moradia de interesse social e proteção e urbanização de áreas ocupadas anteriormente ao Projeto Porto Maravilha, é dimensão fundamental, ainda que conflituo-sa, para a garantia do direito humano à mo-radia na região. é sobre essa questão que o texto passará a se debruçar.

A Dimensão Fundiária do Direito à Moradia na Região Portuária: desatando o nó da terra.Dentre os princípios que fundamentam a lei nº 101/2009, de criação do Projeto

Porto Maravilha, é importante destacar: o atendimento econômico e social da po-pulação diretamente afetada; a promoção do adequado aproveitamento dos vazios urbanos ou terrenos subutilizados ou ocio-sos; e o apoio da regularização fundiária urbana nos imóveis de interesse social. O Estatuto da Cidade define que qualquer plano de operação urbana consorciada no país deve prever tal programa de atendi-mento econômico e social como compo-nente obrigatório de uma OUC.

Segundo definição da Lei nº101/2009 o Programa de Atendimento Econômico e Social da População Afetada da OUC do Porto destina-se a população de baixa renda e prevê: 1) a produção de habitação de interesse social em qualquer setor da OUC, inclusive os mais valorizados pelo consumo de CEPACS, desde que previs-to o uso residencial; 2) ações de reassen-tamento para população removida pelas intervenções da própria operação urbana; 3) alocação de recursos da OUC e outras formas de financiamento de recursos – é bom lembrar que as transações financeiras através da venda e/ou permuta dos Certi-ficados de Potencial Adicional de Cons-trução (CEPACS), representam a principal fonte de recursos da OUC do Porto o que significa dizer que essa é também a fon-te que deve custear o referido programa; e 4) a previsão de participação social da população na definição de planos de de-senvolvimento sustentáveis locais.

Se por um lado é possível encontrar no tex-to da lei que criou o Projeto Porto Maravilha princípios e diretrizes que dialogam com o estatuto da cidade, tais conteúdos não en-contram equivalência prática e observância legal no Programa Básico da OUC do Por-to. O referido apenas define um conjunto de intervenções físicas de obras e projetos viários e de infraestrutura urbana sem qual-quer previsão de componente ou progra-ma claramente definido e orientado para a produção de habitação de interesse social, através do aproveitamento dos vazios urba-nos existentes na área de intervenção, no-tadamente dos imóveis e terrenos públicos. Da mesma forma, não são previstas ações de recuperação e regularização de imóveis ocupados por população de baixa renda na região. Fora do Programa Básico, em mate-riais de divulgação da OUC, como boletins informativos e/ou produção de materiais de apresentação audiovisual, há a divulgação da produção de aproximadamente 500 uni-dades habitacionais através do Programa

2. A situação fundiária dos terrenos disponíveis na área

plana da OUC do Porto se divide da seguinte forma: 6%

do Estado do Rio de Janeiro, 6% do Município do Rio de Janeiro e 63% da União, e 25% propriedade privada. Ou seja, 75% dos terrenos

disponíveis, edificados ou não, na referida área plana da OUC

são terrenos públicos. Cabe destacar que desse universo,

60% são terrenos localizados em setores demarcados para a

comercialização de CEPACS.

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Novas Alternativas da Prefeitura do Rio. Nada mais além disso.

No final do ano de 2013 a prefeitura do Rio anunciou a produção de 2.200 unidades habitacionais na Região Portuária, pelo Pro-grama Minha Casa Minha Vida (MCMV), a partir da desapropriação “de imóveis em situação fundiária irregular, degradados ou abandonados ou, ainda, imóveis públi-cos da União, do Estado ou do Município” (disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/09/prefeitura-do-rio-anuncia-incentivos-para-habitacao-na-zo-na-portuaria.html)

Mais recentemente, foram aprovadas pela Câmara de Vereadores a Lei Complementar nº 5.780 de julho de 2014, que incentiva a produção habitacional no Porto Maravi-lha, através, de diferentes modalidades de renúncia fiscal do Município3, e a Lei com-plementar nº143 de agosto de 2014, que flexibiliza os padrões construtivos para in-centivo da produção habitacional nas áreas de consumo de CEPAC e na área de Preser-vação do Ambiente Cultural (Apac) SAGAS.

Se, por um lado, o número previsto de uni-dades habitacionais parece impressionar, é necessário cotejá-lo com os dados oficiais do licenciamento da produção habitacional do PMCMV, no Município do Rio, no pe-ríodo de 2009-2013 (disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/smu/exibeconteu-do?id=4257827) . quando se analisam os dados produzidos pela Secretaria Municipal de Urbanismo sobre as unidades habitacio-nais do MCMV licenciadas na cidade, até o ano de 2013, verifica-se o total de 73.321 u/h. Ao se desagregar a produção imobiliá-ria do PMCMV na Região Administrativa da Zona Portuária, constata-se o licenciamento de apenas 600u/h que representa menos de 1% da produção total do MCMV na cidade. Tal valor torna-se ainda mais insignificante quando se verifica que desse universo, ape-nas 182u/h, ou seja, menos de 0.3% do to-tal das u/h do PMCMV licenciadas na cida-de foi licenciada para a faixa de rendimento de 0 a 3 salários.

Os dados expostos devem ser ainda con-siderados a partir dos custos do financia-mento e da manutenção da moradia nos casarios da área do SAGAS, reformados e transformados em empreendimentos do antigo programa municipal “Novas Alter-nativas” ou do PMCMV, que afastam os segmentos de mais baixa renda desse perfil de habitação.

Outro elemento que também deve ser des-tacado é o fato do referido licenciamento na Zona Portuária ser extremamente frag-mentado em diversos endereços com re-duzido nº de unidades habitacionais por empre endimento licenciado. Tal perfil está diretamente associado às características dos imóveis antigos existentes nos bairros da APAC-SAGAS e a limitada capacidade de produção habitacional dos mesmos em ter-mos de área edificável. Tal fato, mesmo con-siderando-se a nova legislação municipal do ano de 2014, continuará a oferecer limites à produção de moradia popular para os seg-mentos sociais de mais baixa renda, onde se concentra a faixa mais significativa do déficit habitacional. Por isso, é fundamental enfati-zar que a produção significativa de habita-ção de interesse social na região portuária da cidade depende da demarcação e destinação das terras públicas lá existentes para o cum-primento dessa finalidade. Tal é o desafio fundiário do direito à moradia na região, pois os terrenos mais valorizados, onde está pre-vista a maior capacidade de consumo de CE-PACS são terrenos públicos, em grande parte da União. Sem a definição de política pública nessa direção, a criação de incentivos fiscais e urbanísticos pelo poder público municipal deixará ao mercado a tarefa de imprimir a di-reção da produção de moradia. O que signi-fica subordinar novamente o valor de uso da terra e da propriedade − que fundamenta a própria concepção da moradia como direito humano e direito social − ao valor de troca.

Por outro lado, os dados estatísticos e jurídi-cos anteriormente expostos, revelam a total ausência de demarcação de terras públicas que garanta um estoque fundiário relevan-te para a produção de moradia popular na área de influência do Projeto Porto Maravi-lha. Não há, por exemplo, a partir das no-vas leis de incentivo à produção de moradia nessa região da cidade, a demarcação de AEIS que estabeleçam quais áreas se des-tinarão à política habitacional de interesse social. Todas as duas possibilidades de AEIS previstas no Plano Diretor, tanto a que se volta para áreas ocupadas por população de baixa renda quanto a que se destina à áreas com predominância de terrenos e/ou imó-veis vazios ou subutilizados, são possíveis de aplicação na região portuária. Ao não enfrentar a questão do acesso à terra, não se produz política habitacional no Brasil, nem se faz valer o direito à moradia digna no centro da cidade do Rio de Janeiro.

Sem a previsão e indução de um eixo ha-bitacional popular, o Projeto Porto Mara-

3. A situação fundiária dos terrenos disponíveis na área plana da OUC do Porto se divide da seguinte forma: 6% do Estado do Rio de Janeiro, 6% do Município do Rio de Janeiro e 63% da União, e 25% propriedade privada. Ou seja, 75% dos terrenos disponíveis, edificados ou não, na referida área plana da OUC são terrenos públicos. Cabe destacar que desse universo, 60% são terrenos localizados em setores demarcados para a comercialização de CEPACS.

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vilha aprofunda a reprodução do histórico processo de segregação social dos segmen-tos de mais baixa renda, além de expor os segmentos sociais mais vulneráveis social e economicamente que já habitam a região Portuária e demais bairros da área de pla-nejamento nº 1 (AP1)4, situados na faixa de 0 a 3 salários mínimos, aos efeitos da gen-trificação do espaço urbano com a conse-quente expulsão desses segmentos a curto e médio prazos.

Esse é o caso que ocorre com os moradores do Morro da Providência. O relatório da CD-DhC do ano de 2013 ressaltou o processo de remoção na localidade, a partir de 2011, quando da implantação do Programa de Ur-banização Morar Carioca – Providência, e da disseminação das práticas de valorização e especulação imobiliárias a partir da criação do Porto Maravilha. Cabe destacar que tan-to o Morro da Providência, quanto a área da Pedra Lisa, são AEIS. Frente a tal condição, o Plano Diretor, no art. nº 206, estabelece pa-râmetros a serem seguidos no caso de uma AEIS em área delimitada por uma OUC. O objetivo é prevenir e/ou mitigar os impactos negativos decorrentes do processo de valori-zação fundiária e transformação das formas de uso e ocupação do espaço urbano. Ou seja, de acordo com o Plano Diretor, dever-se-ia esperar a proteção dos moradores e não a remoção dos mesmos, bem como a melhoria dos padrões de urbanidade da moradia.

Não obstante o anúncio formal da Prefeitu-ra do Rio, no final do ano de 2013, sobre a revisão do número previsto de remoções de moradores (redução para aproximadamente 70 moradias), a situação atual ainda é de im-passe, pois as negociações com a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro encontram-se suspensas e sem uma garantia legal de que o Programa Morar Carioca não produzirá mais remoções, especialmente aquelas previstas a partir da instalação de um plano inclinado na escadaria da Ladeira do Barroso e da demar-cação da totalidade das moradias da Pedra Lisa como “área de risco”.

Cabe destacar que após acordo comum entre a Procuradoria Geral do Município (PGM), o Núcleo de Terras e habitação (NUTh) da Defensoria Pública Geral do Es-tado do Rio de Janeiro e o Ministério Pú-blico Estadual (MPE), construído em junho de 2014, durante a tramitação na justiça da Ação Civil impetrada pelo NUTh contra a municipalidade e em defesa dos moradores da Providência, foi liberada a continuidade das obras do Conjunto habitacional situado

na Rua Nabuco de Freitas, bairro de San-to Cristo, integrante do PMCMV e previs-to pelo Morar Carioca da Providência para reassentamento dos moradores removidos. Não obstante tal acordo, até o presente momento não há qualquer movimentação de retomada das obras no conjunto habita-cional. Além desse fato, cabe destacar que, segundo informação da Secretaria Munici-pal de Urbanismo quanto ao licenciamento e ao habite-se das unidades habitacionais do referido empreendimento habitacional, a faixa de renda destinada a esse conjunto do MCMV não é a de 0 a 3 salários e sim a de 3 a 6 salários mínimos. Faixa essa que está longe de abarcar o perfil da população já removida da Providência. Para quem se destinarão, então, tais moradias?

Aliás, o próprio Programa Morar Carioca é uma incógnita para os moradores. O mes-mo se encontra paralisado, com a perma-nência de problemas de saneamento não solucionados, notadamente na área da Pe-dra Lisa, e sem esclarecimento aos morado-res quanto ao planejamento das ações do poder público. A partir de tal quadro, a vida parece voltar à sua dinâmica cotidiana e já há um movimento de ocupação pelos mo-radores de áreas anteriormente demolidas após processo de remoção desencadeado pelo Morar Carioca, voltando tais espaços à função da moradia. A implantação do te-leférico que foi o principal e mais oneroso componente de infraestrutura urbana do Morar Carioca para a favela, além de ter destruído a principal área de lazer da Provi-dência, a antiga Praça Américo Brum, ape-nas funciona em horários limitados, desde junho de 2014, e de forma intermitente ao longo do dia, não atendendo às necessida-des de transporte e mobilidade da popula-ção local. A previsão de funcionamento ple-no era de dois meses após a inauguração (ou seja, agosto de 2014). Contudo, o tele-férico é saudado pela CDURP, atual respon-sável pela operação do equipamento, como um exemplo de cidadania, pois em suas instalações funcionam uma Clínica da Fa-mília e uma unidade do programa farmácia popular. Mas seria necessário construir um teleférico, equipamento de infraestrutura de transporte com alto impacto ambiental e urbano no território da favela, para pres-tar tais serviços públicos de saúde à popu-lação? é claro que não. Fica então a palavra dos moradores da Providência que sempre perguntaram: teleférico para quem?

Por último, cabe destacar o aprofundamen-to do processo de segregação do bairro do

4. composta por seis regiões administrativas, dentre essas a região administrativa Portuária

formada pelos bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo e Caju.

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Caju frente ao desenvolvimento urbano da região portuária. O bairro Caju que integra a I Região Administrativa (I RA) do Municí-pio, denominada de Zona Portuária, junto com os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, foi excluído do território de abran-gência da AEIU, sem qualquer justificativa, uma vez que existia a previsão de inclusão do bairro quando da tramitação do projeto de lei na Câmara Municipal de Vereadores do Rio de Janeiro. Tal fato veio aprofundar ainda mais o ciclo de abandono urbano e degradação socioambiental desse que é o mais “portuário” dos bairros da região, concentrando as principais atividades econômicas integrantes da retroárea do Porto, além de atividades industriais, uni-dades militares, cinco cemitérios, uma es-tação de tratamento de esgotos, (ETE Ale-gria), uma usina de reciclagem de lixo e a concentração de oito favelas. Cabe des-tacar que o bairro tem recebido do Pro-

jeto Porto Maravilha apenas os impactos socioambientais negativos ocasionados pelos projetos de transformação viária da região, como, por exemplo, o aumen-to do fluxo de transporte de caminhões e carretas pesadas, decorrente do fecha-mento do portão nº 24 do Porto, situado em frente ao Instituto Federal de Trauma-tologia e Ortopedia (INTO).

Assim, é oportuno vocalizar, através do re-latório da CDDhC, a situação de inviabiliza-ção e banimento social e urbano do bairro Caju e de seus moradores pelo poder públi-co nas suas diferentes escalas da federação, ao longo de décadas, em especial pelo po-der municipal, e também pelo Projeto Porto Maravilha que “virou as costas” ao bairro, expurgando-o das melhorias e investimen-tos previstos pela OUC e da própria repre-sentação de quais territórios constituem a região portuária da Cidade.

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baiRRo do CajuQUeSTÕeS e VIoLAÇÕeS reLeVANTeSIDeNTIFICADAS Por morADoreS1

O conteúdo foi produzido a partir de dados fornecidos

pela Federação de órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE-Rio, junto com moradores, a partir da Oficina de Formação Política no Caju e produção de

cartografia social urbana.

Injustiça ambiental

• Forte poluição do ar com partículas sóli-das e odor insalubre nas áreas mais pró-ximas à Baía da Guanabara (presença de fábricas de cal e produção de concreto);

• Problemas ambientais decorrentes do lixo que encalha no Caju vindo dos demais canais das favelas próximas da Baía de Guanabara;

• Falta de investimento na infraestrutura do bairro (saneamento ambiental, pavimen-tação das ruas, calçamento, espaços de lazer, etc.)

• Poluição e degradação ambiental através da presença de lixo hospitalar, de insetos como moscas e baratas;

• Intensa circulação e manobra de cami-nhões nas ruas do bairro advinda das atividades portuárias. Esta circulação tem provocado acidentes e dificultado a circu-lação dos moradores. é comum ocorrer acidentes graves em que moradores são atropelados;

Frágil Presença de Equipamentosde Políticas Públicas

• Falta de profissionais e atendimentos de emergência no Caju, além do fechamen-to de hospitais (hospital São Sebastião, de infectologia, e o hospital Estadual An-chieta, de ortopedia, estão desativados; o hospital Nossa Senhora do Socorro, que já foi um centro de saúde mantido pela Santa Casa da Misericórdia, atualmente é um precário asilo);

• Fechamento de equipamentos públicos de educação como o Centro Integrado de Apoio às Crianças (CIAC);

• Presença do tráfico e conflito com policiais e traficantes;

Direito à Moradia ea História Social do Lugar

• Aumento do custo do aluguel com a ampliação da demanda por moradia em virtude da presença de trabalhadores em-pregados nas empresas de offshore com sede no Caju;

• Remoção de moradores da Vila dos So-nhos: o governo apareceu novamente di-zendo que na parte de baixo da Vila dos Sonhos será construída uma escola de en-sino médio e uma escola técnica na parte que fica próxima à rua. Foram retirados 110 moradores que estão no aluguel so-cial. Contudo, os moradores mais prejudi-cados pela demolição das casas estão na parte de cima da Vila dos Sonhos. Os mo-radores foram cadastrados, mas apenas as 110 famílias removidas foram indenizadas. As comunidades Vila dos Sonhos e Terra Abençoada dependem de uma bomba d’água que fica na parte de baixo do hos-pital. qualquer órgão que entre para fazer obra no hospital vai mexer com a vida de quem nora nessas duas comunidades

• Os moradores querem permanecer na Vila dos Sonhos

Descaso com a cultura e história do bairro e, inclusive, com o trabalho dos pescado-res (atualmente, aquela que foi uma das

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primeiras colônias de pescadores legaliza-da no Brasil, enfrenta imensas dificuldades para se manter. A poluição da Baía de Gua-nabara e a forma de uso e ocupação das águas da Baía (indústria do petróleo, óleo e gás, indústria naval, instalação de dutos para o transporte de derivados de petróleo, etc) impossibilita que o trabalho de pesca

assegure rendimentos satisfatórios. Os pes-cadores da colônia relatam o declínio dessa atividade tão importante simbólica (valor histórico para o bairro) e materialmente (ao assegurar a reprodução social das famílias).

• Presença do tráfico e conflito com policiais e traficantes.

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