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187 RELEVOS CÁRSTICOS EM ROCHAS NÃO CALCÁRIAS: UMA REVISÃO DE CONCEITOS Vinícius Duarte Guareschi 1 Andréa Valli Nummer 2 Introdução A superfície terrestre passa por constantes modificações que se desenrolam desde sua formação, fruto de sua dinâmica interna, ou processos endógenos, somado aos fatores externos que constituem os processos exógenos. Como argumenta Florenzano (2008), a superfície da Terra não é plana nem uniforme em toda a sua extensão, caracterizandose por elevações e depressões de diferentes formas que constituem o relevo, sendo este resultado da interação da litosfera, atmosfera, hidrosfera e biosfera. Neste sentido, o estudo do relevo é imprescindível para a análise geográfica, já que atua como fator condicionante para inúmeros outros elementos de uma paisagem como vegetação e hidrografia, bem como fator determinante para diversas atividades econômicas ligadas a exploração de recursos naturais podendo caracterizar geograficamente um espaço. Um tipo de relevo que merece destaque devido a sua gênese e evolução diz respeito aos relevos cársticos. Estas formas de relevo foram inicialmente identificadas em rochas calcárias e são resultados de processos geoquímicos de dissolução. Contudo, é importante destacar que rochas não calcárias também apresentam processos de dissolução e os resultados assemelhamse as formas originadas no carste de rochas calcárias. Assim, para indicar formas cársticas em outras rochas que não as carbonáticas, é muito comum o uso da partícula “pseudo” dando origem a nomes como pseudodolina, pseudouvala, etc. Conforme Kohler (2005) a Geomorfologia Cárstica abrange o estudo da forma, gênese e dinâmica dos relevos elaborados sobre rochas solúveis pela água, tais como as carbonáticas e os evaporitos, e mesmo rochas menos solúveis, como os quartzitos, granitos, basaltos, entre outras. Neste contexto, o presente trabalho faz uma reflexão acerca da evolução do conceito de relevos cársticos, bem como expõem algumas nomenclaturas usadas para denominar estas feições em diferentes litologias, além de trazer exemplos de publicações e questionamentos sobre a origem e evolução destas formas. 1 Mestrando em Geografia Universidade Federal de Santa Maria 2 Prof.ª Dr.ª Depto. de Geociências Universidade Federal de Santa Maria

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RELEVOS CÁRSTICOS EM ROCHAS NÃO CALCÁRIAS: UMA REVISÃODE CONCEITOS

Vinícius Duarte Guareschi1Andréa Valli Nummer2

Introdução

A superfície terrestre passa por constantes modificações que se desenrolam desdesua formação, fruto de sua dinâmica interna, ou processos endógenos, somado aos fatoresexternos que constituem os processos exógenos. Como argumenta Florenzano (2008), asuperfície da Terra não é plana nem uniforme em toda a sua extensão, caracterizando­sepor elevações e depressões de diferentes formas que constituem o relevo, sendo esteresultado da interação da litosfera, atmosfera, hidrosfera e biosfera.

Neste sentido, o estudo do relevo é imprescindível para a análise geográfica, já queatua como fator condicionante para inúmeros outros elementos de uma paisagem comovegetação e hidrografia, bem como fator determinante para diversas atividades econômicasligadas a exploração de recursos naturais podendo caracterizar geograficamente umespaço.

Um tipo de relevo que merece destaque devido a sua gênese e evolução diz respeitoaos relevos cársticos. Estas formas de relevo foram inicialmente identificadas em rochascalcárias e são resultados de processos geoquímicos de dissolução. Contudo, é importantedestacar que rochas não calcárias também apresentam processos de dissolução e osresultados assemelham­se as formas originadas no carste de rochas calcárias. Assim, paraindicar formas cársticas em outras rochas que não as carbonáticas, é muito comum o usoda partícula “pseudo” dando origem a nomes como pseudo­dolina, pseudo­uvala, etc.

Conforme Kohler (2005) a Geomorfologia Cárstica abrange o estudo da forma, gênesee dinâmica dos relevos elaborados sobre rochas solúveis pela água, tais como ascarbonáticas e os evaporitos, e mesmo rochas menos solúveis, como os quartzitos,granitos, basaltos, entre outras.

Neste contexto, o presente trabalho faz uma reflexão acerca da evolução do conceitode relevos cársticos, bem como expõem algumas nomenclaturas usadas para denominarestas feições em diferentes litologias, além de trazer exemplos de publicações equestionamentos sobre a origem e evolução destas formas.1 Mestrando em Geografia ­ Universidade Federal de Santa Maria2 Prof.ª Dr.ª Depto. de Geociências ­ Universidade Federal de Santa Maria

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188 Relevos cársticos em rochas não calcárias: uma revisão de conceitos

Morfologia Cárstica

Segundo Carvalho Júnior (2008) o termo "Karst" é oriundo da região do Carso (emesloveno, Kars), localizada no sudoeste da Eslovênia até o noroeste da Itália, formada derochas carbonáticas. Na Língua Portuguesa Brasileira, o termo inicialmente usado paradesignar os fenômenos decorrentes da ação da água nos calcários é "Carse",posteriormente substituído por "Carste" (CABRAL, 2004).

Carste, na sua essência, sempre foi considerado uma forma de relevo específico derochas calcárias onde o principal agente modelador é a água, através do processo dedissolução do carbonato de cálcio componente dessas rochas, na qual os resultadosmorfológicos deste fato recebem várias denominações, em virtude das diferentes formaspresentes nas superfícies com substrato calcário, relacionadas, possivelmente, ao estágioem que se encontra o processo de dissolução da rocha, ou seja, lapiáz, dolinas, uvalas,poljés, canhões, cavernas e outras (FLORENZANO, 2008).

Para Carvalho Júnior (2008), dois critérios são importantes para se definir a presençade um relevo cárstico, sendo o primeiro o transporte de massa, no qual a dissolução é oprocesso mais importante, e a morfologia, caracterizada por formas de relevo típicas dosprocessos de dissolução.

Formas Cársticas mais comuns

LapiásÉ a feição característica que marca o desenvolvimento inicial do carste. Refere­se ao

conjunto de todas as microformas que entalham a superfície das rochas solúveis. Oscampos de lapiás são comuns em todo o carste (BIGARELLA et al., 1994).

Correspondem às caneluras ou sulcos superficiais nas rochas calcárias, podendoestar recobertas por uma camada de solo (“terra rossa”) ou aflorar a céu aberto. Quandoapresentam uma camada de “terra rossa”, supõe­se que o ataque se efetuou através daação dos ácidos húmicos, ao longo do escoamento sobre a rocha recoberta de solo. Sãoformas potenciais que surgem como verdadeiros lapiás após a remoção da coberturaedáfica. No segundo caso, quando afloram a céu aberto, o fator responsável é oescoamento das águas pluviais.

As vertentes do relevo sofrem um processo evolutivo muito especifico. A atividade daágua segue as fissuras, diáclases ou planos de estratificação, imprimindo uma açãoquímica preponderante na rocha calcária, e eventualmente mecânica, corroendo­as eerodindo­as. Os planos de menor resistência da rocha são escavados e originam relevos

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íngrimes de cristas agudas. As dimensões das caneluras e das cristas podem variar dealguns milímetros a mais de 10 metros, sendo as formas mais comuns em torno dodecímetro ao metro. As diferenças de forma e de dimensões são explicadas pelaresistência da rocha aos processos intempéricos e aos mecanismos de dissolução.

DolinasO vocábulo dolina, é de origem servo­croata sendo usado para se referir a

depressões fechadas com contornos circulares ou ovais, com bordo geralmenteapresentando declividades acentuadas e afloramento de rocha, e o fundo pode estarrecoberto por uma camada de argila (terra rossa). Sua origem está associada à dissoluçãode rochas calcárias pela percolação de água contendo CO2 e ácidos húmicos em solução.

As dolinas também podem ter origem a partir do colapso (desabamento) do teto decavernas. No primeiro caso, são mais ou menos circulares ou ovaladas e no segundo,forma depressões mais ou menos afuniladas. De acordo com Christofoletti (1980), asdolinas podem ser consideradas como a forma fundamental do relevo cárstico, e são detamanho e morfologia variável. Em relação ao tamanho, variam de um a mais de 1000metros de largura, e de poucos centímetros a mais de 300 metros de profundidade.

UvalaO termo uvala é de origem eslava, sendo usado para designar uma depressão

alongada provavelmente pela coalescência de duas ou mais dolinas. Quando a evolução dadolina ocorre em superfície mais rapidamente que em profundidade, origina uma depressãomais ampla com contornos sinuosos, de forma elipsoidal quando formada pela conjunção deduas dolinas. De acordo com Bigarella et al. (1994) a formação da uvala aumentaconsideravelmente a capacidade absorvente de água na região calcária. A presença da uvalaimplica num certo grau de evolução do carste mais avançado do que a dolina em si.

A figura I mostra uma feição tipo uvala que se forma a partir da coalescência de duas oumais dolinas.

Figura I­ Representação de Dolinas e Uvalas.Fonte: Bigarella (1994).

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190 Relevos cársticos em rochas não calcárias: uma revisão de conceitos

PoljéNos idiomas eslavos significa campo ou área cultivada. Na literatura geomorfológica

internacional é utilizado para designar uma planície cárstica ou uma grande depressãoresultante da dissolução de extensas áreas com rochas calcárias. Os poljés tem suaorigem ligada a fatores estruturais da rocha, como falhas, fraturas, horizontalidade decamadas, entre outros, assim como o processo de corrosão.

O fundo do peljé apresenta­se como uma bacia nivelada, preenchida com aluviões oucoberta de “terra rossa”. Devido a esses fatores os poljés são áreas muito férteis sendopreferidos para a agricultura como para o estabelecimento de núcleos urbanos.

Na planície de poljés podem ser encontradas dolinas e sumidouros por onde escoamas águas pluviais e os eventuais córregos que drenam a área. Quando o fluxo das águasexcede a capacidade de escoamento do sumidouro, os poljés sofrem inundaçõestemporárias, originando lagos cársticos efêmeros (BIGARELLA et al., 1994).

A figura II mostra o esquema de um poljé, no qual se observa um rebaixamento dasuperfície do terreno causado pela dissolução de parte da rocha.

CanhõesSão vales de paredes abruptas, isto é, vales encaixados, os quais adquirem

características mais típicas quando cortam estruturas sedimentares que pouco se afastamda horizontal. Forma­se uma série de degraus ou patamares ao longo do corredorescavado pela erosão.

Os canhões são vales em garganta, assemelhando­se a grandes desfiladeiros, ondea diferença entre a linha do talvegue e o topo do planalto pode variar de algumas dezenasaté centenas de metros. Conforme afirma Bigarella et al. (1994) alguns canhões foramantigos rios subterrâneos que pelo desmoronamento da abóbada das galeriastransformaram­se numa corrente subaérea.

Figura II- Representação esquemática de um poljé.Fonte: Bigarella (1994).

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CavernasConstitui uma feição endocársticas, pois diferente das formas descritas anteriormente,

as cavernas desenvolvem­se em subsuperfície, podendo atingir vários metros deprofundidade. São muito comuns em áreas cársticas e resultam da percolação da águaatravés de fraturas e fendas nas rochas. Quanto maior o teor de gás carbônico presente naágua, maior será o poder de dissolução. O movimento da água no interior da rocha calcáriaé controlado por linhas de falhas e fraturas, sendo justamente nas paredes desteslineamentos que a corrosão tem início.

No interior da caverna é possível distinguir duas zonas de acordo com amovimentação da água. Uma em que a água circula livremente, denominada de zonavadosa, e outra na qual todos os interstícios, ou fissuras estão preenchidos, denominada dezona freática. Nessa zona a água a água circula sob pressão hidrostática.

Pseudo­CarsteA definição do termo “carste” não se restringe apenas a formas de relevo em rochas

carbonáticas, pois rochas de natureza diferentes como sedimentares detríticas e vulcânicastambém podem apresentar processos e evolução morfológica semelhantes à das rochascalcárias.

Assim, para indicar feições tipicamente cársticas em ambientes que não seenquadravam ao carste propriamente dito, principalmente em termos litológicos que diferemdo calcário, acrescenta­se a partícula gramatical “pseudo” aos termos que definem asformas cársticas na sua originalidade. A literatura científica passou a trazer nas publicaçõestermos como “pseudo­carste”, “pseudo­dolinas”, “pseudo­uvalas”, “tipo carste” entre outros,para designar formas tipicamente cársticas, presentes em regiões de litologias não calcárias(CABRAL, 2004).

O termo pseudo­carste é usado então para definir relevos tipo cárstico presentes emrochas não carbonáticas, com origem associada a fatores como o derretimento de gelo emgeleiras, dissolução em rochas levando a formação de dutos subterrâneos que, ao entrarem colapso, podem formar depressões superficiais; drenagem subterrânea em rochasareníticas que provocam a dissolução dos silicatos relacionada ao processo natural dealteração das rochas; e processos de colapsividade dos solos em sedimentos recentes,entre outros (CABRAL, 2004).

Dentre as feições cársticas em rochas não carbonáticas um tipo muito comum são asdolinas, depressões fechadas com contornos circulares ou ovais, com afloramento derochas e diâmetro superior a profundidade.

Em rochas vulcânicas o aparecimento de dolinas fica favorecido quando o substratorochoso se apresenta na horizontal, sem tectônica dobrável, mas com muitas fraturas e

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descontinuidades do tipo disjunções verticais e horizontais. São as fraturas que conferemuma permeabilidade ao maciço e podem armazenar água, funcionando como aqüíferofraturado.

Outra possibilidade de infiltração e armazenamento de água ocorre na zona de contatoentre derrames, onde é comum ocorrer rocha vesicular alterada, brechas vulcânicas,vitrófiros, e disjunções horizontais.

A Figura III mostra, em seguida, uma feição cártica tipo uvala formada pelacoalescência de três dolinas.

A ocorrência de dolinas em rochas vulcânicas pode estar associadas à decomposiçãodo vitrófiro, entre os quais um de seus componentes são os feldspatos, um dos primeirosminerais a sofrer alteração na presença da água. Assim, os derrames que apresentam emsua morfologia uma camada superior constituída de vitrófiro no topo, tendem a seintemperizar mais facilmente devido o contato com as águas meteóricas, causando adesagregação estrutural da rocha e promovendo um colapso do solo logo acima, originandouma feição tipo dolina caracterizada por uma microdepressão arredondada no terreno.

Feições cársticas em rochas não carbonáticas

Muitos autores ao estudarem as feições cársticas em rochas não carbonáticasacrescentam o termo “pseudo” antes do nome das feições. Entretanto, outros nomeiam asformas baseados na nomenclatura cárstica, mas destacam rocha em que tais feiçõesocorrem.

Figura III­ Feição cártica tipo Uvala, formada pela coalescência de três dolinas, no PlanaltoVulcânico do Rio Grande do Sul.

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É possível o desenvolvimento de feições cársticas em rochas como arenitos,basaltos, granitos entre outras, desde que o intemperismo químico condicione osurgimento da morfologia. Hardt et al (2009), destacam dois motivos pelo qual durantemuito tempo formas “cársticas” em rochas solúveis foram denominadas pseudo­carste.

O primeiro, é de origem histórica, posto que o carste foi inicialmente estudado emcarbonatos, então adotou­se, na definição, que "carste é um relevo que ocorre no calcário".Assim, quando as mesmas formas de relevo eram encontradas em outras rochas,simplesmente designava­se tais formas a categoria de não cársticas, sem qualquer estudofeito sobre sua gênese, porque se acreditava que tais formas teriam outra origem que nãoa dissolução.

O segundo motivo, um pouco mais complexo, é com relação aos processos. Umaforma de relevo está associada a determinado processo ou processos formadores. Como oprocesso de formação do relevo cárstico estava ligado à dissolução do calcário, se a rochanão contém carbonatos, então não seria carste, pois não haveria dissolução destes. Oproblema é que a dissolução pode ocorrer em outras rochas, com reações químicasdiferentes.

Neste sentido, pode­se considerar “carste” baseado nas formas originadas e nosprocessos geoquímicos envolvidos e não apenas nas evidências litológicas. Dessa forma,podemos identificar duas linhas de raciocínio com relação à classificação de um relevo noâmbito da nomenclatura cárstica. Um está baseado no tipo de rocha, e o outro leva emconsideração os processos de dissolução e as formas originárias. O primeiro restringeenormemente a inclusão de qualquer forma de relevo, permitindo somente aquelesesculpidos apenas em rochas calcárias, enquanto que o segundo abre a possibilidade paraa inclusão de uma vasta gama de feições entalhadas nas mais variadas litologias, desdeque as formas se assemelhem as que ocorrem nas rochas calcárias e o processo dedissolução seja o mecanismo responsável.

Hardt et al (2009), apresentam dois exemplos de carste no território brasileiro, um naChapada dos Guimarães (Estado do Mato Grosso) e outro na Serra do Itaqueri (Estado deSão Paulo) ambas as áreas inserem­se em arenitos. Nas duas áreas destacam­se osprocessos de dissolução do arenito em subsuperficíe originando diversas cavernas. NaChapada dos Guimarães, os autores atribuem o forte controle estrutural no substratorochoso como importante fator para a percolação da água promovendo a dissolução doarenito.

Foram identificadas diversas formas de dissolução nas superfícies rochosas,associadas ao relevo cárstico, como as ruiniformes e os arcos, bem como morrotesresiduais e depressões fechadas, além das próprias cavernas. Neste sentido, os autoresadmitiram que a área apresenta um comportamento sistêmico, passando a ser vista comoum sistema cárstico.

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Na Serra do Itaqueri, o contexto geológico apresenta cavernas inseridas no ArenitoBotucatu, quase sempre associadas a afloramentos de basaltos em posição altimétricasuperior as cavidades. A hipótese para a formação de cavernas neste local é baseada napresença de basaltos, o que permitiu num passado mais úmido a ocorrência de aqüíferoscom água contendo PH alto (básico) extremamente favorável à dissolução da sílica. Com orebaixamento do nível freático, as águas abandonaram as cavidades, que perderamsustentação, gerando grandes abatimentos da porção superior. Uma terceira fase daevolução ocorre atualmente, com os condutos estabilizados, porém sofrendo dissolução dana parte superior da cavidade devido à infiltração das águas superficiais.

Em outra porção da Serra foram identificadas dolinas largas e rasas com turfeiras nointerior. Esta feição está associada possivelmente à dissolução das rochas devido à presençade matéria orgânica na água.

Nota­se a preferência dos autores pelo uso do pelo uso dos termos referentes àsfeições cársticas sem a utilização do termo “pseudo” mesmo em uma área ondepredominam arenitos.

Uagoda; Avelar; Coelho Netto (2006), descrevem a ocorrência de depressões fechadasem quartzitos na Bacia do Ribeirão Santana, vale do Rio Paraíba, entre os Estados de MinasGerais e Rio de Janeiro. Os autores relatam a ocorrência de feições exocársticas, comotorres e dolinas em divisores, feições endocársticas, como dutos e cavernas, e feiçõesepicárstica, depósitos que preenchem os outros dois tipos de feições.

Em uma área de 20 Km2 foram identificadas 41 depressões fechadas, situadas nosdivisores de águas e nas encostas das colinas convexo­retilíneas especialmente nos toposaltimétricos. Observa­se a preocupação dos autores em concentrar esforços noentendimento dos processos geomorfológicos associados às formas, bem como estasinserem­se e evoluem nas encostas no contexto da bacia de drenagem.

Estudando os processos erosivos na Bacia Hidrográfica do Arroio Sarandi no RioGrande de Sul, Ávila; Nummer; Pinheiro (2010), atribuem os focos de erosão as feiçõescársticas associadas a fraturas de direção preferencialmente nordeste. Os autoresdestacam a ocorrência depressões do tipo dolinas e uvalas, feições típicas de relevoscársticos, na microbacia, porém, como a área não é formada por terrenos calcários,optaram por chamar tais depressões de pseudo­dolinas e pseudo­uvalas.

A geologia local corresponde a arenitos finos a conglomeráticos com estratificaçõescruzadas acanaladas e planares de pequeno a médio porte. Neste sentido, o surgimentodas pseudo­dolinas é atribuído à presença de rochas estratificadas com diferenciaçãotextural sendo estas um condicionante geológico favorável à ocorrência de piping, uma vezque o fluxo de água tende a se concentrar em uma determinada camada na qual seoriginam aberturas em forma de tubos, que podem vir a sofrer colapsos e originar ascavidades na superfície.

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Ao apresentarem uma voçoroca de grandes proporções que ocorre na bacia, osautores atribuem o avanço do processo erosivo na porção côncava da vertente aconcentração de linhas de fluxo subterrânea originando dutos internos e comoconseqüência, as pseudo­dolinas e pseudo­uvalas, já os fluxos superficiais seriamresponsáveis por aprofundar a incisão erosiva. Observa­se a importância dada aosprocessos cársticos, pois da forma descrita podemos inferir que tratam­se de dolinas deabatimento, e que estas feições tem em grande parte forte contribuição para odesenvolvimento e evolução dos processos erosivos na bacia hidrográfica.

Também na Depressão Central do Rio Grande do Sul (CABRAL et al., 2004)detectaram a presença de pequenas depressões nos topos de colinas e divisores de água,as quais chamaram de pseudo­dolinas por não se localizarem diretamente sobre rochascalcárias. É atribuída uma relação direta destas formas com os processos devoçorocamentos nas cabeceiras de drenagem. Anteriormente, Maciel Filho; Cabral; Spinelli(1993a) relacionaram estas formas a processos de dissolução de carbonato de cálcio, óxidode ferro (cimento) e da própria sílica, componentes significativos das estruturassedimentares na Depressão Periférica.

Neste sentido, Cabral et al (2004), afirma que alguns autores consideram que asdepressões interfluviais e as próprias voçorocas podem fazer parte do conjunto de formassemelhantes às que ocorrem em rochas calcárias. No entanto, por estarem inseridas emestruturas, rochosas não calcárias, comumente recebem denominações diferenciadas danomenclatura do sistema de relevo cárstico.

Os autores concluem afirmando que levando em consideração a nomenclatura cártica,as depressões interfluviais corresponderiam as pseudo­dolinas que, dependendo domaterial de origem, pluviosidade e uso e ocupação do solo podem evoluir para voçorocasem cabeceiras de drenagem. As depressões interfluviais estão ligadas à ocorrência devoçorocas devido à presença de drenagem subterrânea e a considerável ação química daágua em diferentes estruturas permeáveis.

Gontan (2002) também constata que na Depressão Periférica do Rio Grande do Sul,as depressões úmidas circulares ocorrem nas partes planas que constituem os divisores deáguas das colinas. A autora demonstra preferência pela utilização do termo pseudo­dolinapelo motivo das feições não estarem assentadas sobre rochas calcárias.

Também são mencionadas depressões abertas, na qual a circularidade rompe devidosua localização em certa declividade, tomando forma alongada. A água extravasa, formandoum pequeno canal hidrográfico, originando um curso fluvial de 1º ordem. Devido ao soloarenoso, estas formas evoluem transformando­se em grandes voçorocas (GONTAN, 2002).

Em rochas vulcânicas são mais escassos os estudos que procuram compreender aorigem e evolução de feições cársticas. No Rio Grande do Sul, no Planalto Meridional,constituído por rochas vulcânicas básicas e ácidas Maciel Filho; Cabral; Spinelli (1993b)

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identificaram a presença de feições de relevo do tipo dolinas na sob condições tectônicasespeciais como falhas, fraturas e descontinuidades. No Município de são Martinho da Serra,o autor atribuiu estas feições ao intemperismo químico do vitrófiros.

Gontan (2002) afirma que o Planalto Meridional apresenta vários aspectos típicos deterrenos cársticos, sejam as pequenas depressões circulares fechadas (dolinas), lagoasnaturais, afloramentos de rochas irregulares (lapiáz) e os pântanos que podem seassemelhar a poljés, embora com dimensões menores. A autora confere estas formas àdissolução parcial da rocha, principalmente o vitrófiro e também o transporte de materiaispela água. Observa­se que mesmo a área apresentando formas e processos muitosemelhantes aos que ocorrem no carste, a autora optou por tratar tais feições comopseudo­cársticas, por não terem seu desenvolvimento em rochas carbonáticas.

Considerações Finais

O conceito de carste encontra em expansão, pois à medida que mais estudos estãosendo realizados, novas descobertas se apresentam mostrando que os processos dedissolução são responsáveis por uma imensa variedade de formas de relevo em diferenteslitologias, porém muito semelhante as que ocorrem em rochas calcárias.

Nota­se que o conceito vem evoluindo ao longo dos anos. A definição original de carsterestringia­se a uma variedade de formas de relevo esculpidas apenas em rochascarbonáticas em que o processo de dissolução era o grande responsável. Toda e qualquerfeição, por mais semelhante que fosse com as do carste “original”, mas, que não fosseformada no calcário não seria considerada carste.

Mais tarde, de forma gradual, passou­se a reconhecer que mesmo rochas que nãoapresentavam calcário em sua constituição desenvolviam uma diversidade de formas bemparecidas com a do carste em rochas carbonáticas, inferindo­se assim que os processosatuantes seriam similares. Estes relevos foram então classificados como “pseudo­casrte”devido à rocha não ser calcário.

Como feições cársticas são encontradas nas mais variadas litologias, desde arenitosaté rochas vulcânicas, muitos autores vem optando em manter o nome “carste” juntamentecom o nome da rocha a qual a feição está associada, assim surgem denominações como“carste em quartzitos”, “carste e arenito”, “carste em vulcânicas” etc.

Gontan (2002) lembra que em debates no V Simpósio Brasileiro de Geografia FísicaAplicada houve consenso de que as feições resultantes de dissolução, mesmo em outrarocha que não calcário, seriam “Carste” verdadeiro.

No entanto, ainda observamos em algumas classificações, uma grande influência dosconceitos tradicionais sobre “carste” no qual o fator litologia exerce grande controle. Muitos

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autores estudando formas semelhantes a do carste, e considerando a possibilidade deexistência de processos geoquímicos de dissolução tanto no exterior comosubterraneamente, e uma série de implicações em decorrência de manifestações típicasde áreas cársticas, tais feições ainda são tratadas como “pseudo­carste” por não sedesenvolverem sobre rochas carbonáticas.

Entretanto, nem tudo pode ser carste, é essencial que algumas condições sejamestabelecidas, como a forte atuação do intemperismo químico na rocha e a existência deformas resultantes típicas de processos geoquímicos de dissolução.

Dessa forma, concordamos com Hardt et al. (2009) quando afirmam que não se podeaceitar mais simplesmente atribuir um termo genérico e pouco claro a uma área,denominando­a pseudo­carste, simplesmente porque não se trata de calcário. Por outrolado, não é porque existem formas que se assemelham ao carste em uma determinadaárea que é necessariamente carste. O equilíbrio tem de ser encontrado, e a definição seuma determinada área é ou não carste deve ser feita após estudos do relevo e processosque atuam ou atuaram na mesma.

Referências

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