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95 COMUNIDADE NEGRA RURALRINCÃO DO SANTO INÁCIORS SOB A ÓTICA DO CAMPESINATO: UMAALTERNATIVA DE DESENVOLVIMENTO SOCIO AMBIENTAL E CULTURAL SUSTENTÁVEL ATRAVÉS DO PARADIGMA DA AGROECOLOGIA Aline Beatriz Stock Eich¹ Lauro César Figueiredo² Introdução O passado cultural é importante para definir espaços, autoestima, reafirmação social tanto no espaço regional quanto no local, não com a intencionalidade de restauração sociocultural, mas de reencontrar valores que promovam atitudes, projetos de vida, integrações, configurando padrões de vida, traumatismos culturais frutos de mudanças significativas no grupo, alterando o modo de vida e a ordem dos valores existentes (TEDESCO, 1999). Assim, sabese, que através da criação de gado e do desenvolvimento das charqueadas, que se concentravam principalmente na cidade de Pelotas por volta de 1780, foi intensificado o tráfico de escravos no Rio Grande do Sul, outra área de grande concentração foi à estrada dos tropeiros, como ficou conhecida a estrada que ligava o extremo sul de Rio Grande ao restante do Estado, ao longo da qual se encontravam as maiores estâncias, local para onde era trazida a maioria destes escravos que chegavam ao Estado (MAGNOLI, 2001). Com o início do século XIX, após a abolição da escravatura e da Revolução Farroupilha, muitas mudanças continuaram a ocorrer no espaço geográfico e a divisão fundiária foi uma delas. Nesse sentido, povos de origem africana, antes refugiados em fazendas, começavam a formar pequenas comunidades denominadas de quilombos, outros permaneciam nas fazendas, pois a abolição ao contrário do que se pensava havia gerado outros tipos de conflitos, tanto no âmbito territorial quanto étnicoracial. Neste sentido, o Rincão do Santo Inácio destacase por ser um espaço social marcado pela terra e pelo parentesco, uma vez que, constituise num quilombo localizado em área rural, sendo que, nele se estabelecem relações que despertam elementos históricos de organização da família negra, incorporado a uma história de tradição que etnicamente os diferencia (GUSMÃO, 1995). ¹ Artigo desenvolvido na disciplina de Seminários de Mestrado Programa de PósGraduação em Geografia e Geociências (PPGGeo), sob orientação do Profº.Drº.Lauro César Figueiredo. ² Aluna de Mestrado Programa de PósGraduação em Geografia e Geociências (PPGGeo)UFSM.

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COMUNIDADE NEGRA RURAL­RINCÃO DO SANTO INÁCIO­RS SOB A ÓTICADO CAMPESINATO: UMA ALTERNATIVA DE DESENVOLVIMENTO SOCIO­AMBIENTAL E CULTURAL SUSTENTÁVEL ATRAVÉS DO PARADIGMA DA

AGROECOLOGIAAline Beatriz Stock Eich¹Lauro César Figueiredo²

Introdução

O passado cultural é importante para definir espaços, auto­estima, reafirmação socialtanto no espaço regional quanto no local, não com a intencionalidade de restauraçãosociocultural, mas de reencontrar valores que promovam atitudes, projetos de vida,integrações, configurando padrões de vida, traumatismos culturais frutos de mudançassignificativas no grupo, alterando o modo de vida e a ordem dos valores existentes(TEDESCO, 1999).

Assim, sabe­se, que através da criação de gado e do desenvolvimento dascharqueadas, que se concentravam principalmente na cidade de Pelotas por volta de 1780,foi intensificado o tráfico de escravos no Rio Grande do Sul, outra área de grandeconcentração foi à estrada dos tropeiros, como ficou conhecida a estrada que ligava oextremo sul de Rio Grande ao restante do Estado, ao longo da qual se encontravam asmaiores estâncias, local para onde era trazida a maioria destes escravos que chegavam aoEstado (MAGNOLI, 2001).

Com o início do século XIX, após a abolição da escravatura e da RevoluçãoFarroupilha, muitas mudanças continuaram a ocorrer no espaço geográfico e a divisãofundiária foi uma delas. Nesse sentido, povos de origem africana, antes refugiados emfazendas, começavam a formar pequenas comunidades denominadas de quilombos,outros permaneciam nas fazendas, pois a abolição ao contrário do que se pensava haviagerado outros tipos de conflitos, tanto no âmbito territorial quanto étnico­racial.

Neste sentido, o Rincão do Santo Inácio destaca­se por ser um espaço socialmarcado pela terra e pelo parentesco, uma vez que, constitui­se num quilombo localizadoem área rural, sendo que, nele se estabelecem relações que despertam elementoshistóricos de organização da família negra, incorporado a uma história de tradição queetnicamente os diferencia (GUSMÃO, 1995).

¹ Artigo desenvolvido na disciplina de Seminários de Mestrado ­ Programa de Pós­Graduação em Geografia e Geociências(PPGGeo), sob orientação do Profº.Drº.Lauro César Figueiredo.² Aluna de Mestrado Programa de Pós­Graduação em Geografia e Geociências (PPGGeo)­UFSM.

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Entretanto, passado mais de 300 anos desde o fim da escravidão no Brasil, algumascomunidades negras, ainda refletem limitações impostas historicamente no pensamentosocial brasileiro e os entraves relativos a vários aspectos que envolvem este segmentoétnico em particular. As considerações que segue, têm por proposta repensar a realidadedo espaço rural negro na perspectiva do campesinato, na comunidade negra rural Rincãodo Santo Inácio, localizada no município de Nova Palma – RS, seus muitos caminhos elutas para permanecerem como um grupo ligado a uma terra em particular.

O espaço rural das comunidades negras no contexto do campesinato

Cabe­nos destacar que a vigência da escravidão como relação de trabalho única eabsoluta durante o período colonial nas Américas é um mito. Mesmo antes da colonizaçãobrasileira, os portugueses já haviam estabelecido em outras colônias, como a ilha de SãoTomé, uma forma de mão­de­obra mista entre a escravidão e o campesinato. Nesse caso,o escravo possuía pequenas cotas de terra, que podia cultivar uma vez por semana e cujaa produção lhe pertencia, podia vendê­la no mercado e, assim, arrecadar o dinheironecessário para comprar sua carta de alforria. Esta figura pouco conhecida, metadeescravo, metade camponês esta bem presente no Sul dos EUA e no Caribe.(CARDOSO,2004).

Neste contexto, surgem diversos autores que buscam conceituar as comunidadesrurais e conseqüentemente a figura do camponês, assim, Kroeber também caracteriza asociedade camponesa como uma forma de organização social, constituindo sociedadesparciais com culturas parciais. Carecem de isolamento, da autonomia política e autárquicados grupos tribais, mas suas unidades locais conservam sua velha identidade, deintegração e apego á terra e aos cultivos (1948, p.284).

Neste sentido, devemos estar atentos á algumas questões teóricas metodológicas quepermeiam o contexto desta síntese, uma vez que serão analisados ao longo deste estudo,alguns aspectos que buscam aproximar o negro da figura do camponês, inferindo tratar­sedo mesmo sujeito, porém com histórias de vida diferentes. Assim, as terras de preto, ascomunidades negras rurais ou o quilombo, entre outras denominações, constituem­se nonosso recorte espacial e não podem ser compreendido apenas como um espaço histórico,único ou fisicamente definido. Neste sentido, é válido lembrar e compartilhar da mesmaidéia do antropólogo Almeida (1996, p. 18), que sustenta:

O conceito de quilombo não pode ser territorial apenas, ou fixado numúnico lugar geograficamente definido, historicamente ‘documentado’ earqueologicamente ‘escavado’. Ele designa um processo de trabalho

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autônomo, livre da submissão dos grandes proprietários. Neste sentido,não importa se está isolado ou próximo das casas grandes. Há umatransição econômica do escravo ao camponês livre, que sóindiretamente passa pelo quilombo no caso do Frechal. O que não foiconcebido no lugar onde se ergueu o quilombo foi obtido a partir dedebilitado o poder da casa grande, bem junto a ela. Este talvez seja oelemento mais controvertido e que dificulta aos historiadorestradicionais entender a essência do significado de quilombo. Taishistoriadores sempre querem colocá­lo numa camisa de forçageográfica, como se fora sempre isolado, longínquo, distante dosmercados e produzindo para a subsistência. Ao contrário, aqui se temuma afirmação econômica de produzir para o mercado, de a ele se ligare de reverter domínios fundiários reconhecidos pela Lei de Terras de1850, devido ao fato de os grandes proprietários perderem,circunstancialmente, o poder e buscarem um acordo verbal, prometendoalforria e terra, ante a incapacidade de proverem os recursos para aescravaria se alimentar e produzir.

Nesta mesma linha, visando, desfazer a idéia equivocada de que o quilombo (terrasde preto, comunidade negra rural...) é um espaço estático, cuja autonomia foi colocada emdúvida, por muitos pesquisadores, sobretudo aqueles que foram os pioneiros nestatemática, Almeida (2002, p. 53), assevera que:

O quilombo já surge como sobrevivência, como ‘remanescente’.Reconhece­se o que sobrou, o que é visto como residual aquilo querestou, ou seja, se aceita o que já foi. Julgo que, ao contrário, se deveriatrabalhar com o conceito de quilombo considerando o que ele é nopresente. Em outras palavras, tem que haver um deslocamento. Não édiscutir o que foi, e sim discutir o que é e como essa autonomia foisendo construída historicamente. Aqui haveria um corte nosinstrumentos conceituais necessários para se pensar a questão doquilombo, porquanto não se pode continuar a trabalhar com umacategoria histórica acrítica nem com a definição de 1740.

Assim, buscamos retomar o texto original, com a finalidade de compreender o que foireportado pelo Conselho Ultramarino ao rei de Portugal em 1740, como definição dequilombo: “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada,ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele.” Essa visãoreduzida que se tinha das comunidades negras rurais refletia, na verdade, a “invisibilidade”produzida pela história oficial, cuja ideologia propositadamente, ignora os efeitos daescravidão na sociedade brasileira. (GUSMÃO, 1995).

A permanência deste sujeito, numa área rural bastante afastada dos centros urbanos,não o torna vítima de um isolamento cruel que poderia ter­ se dado como conseqüência do

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seu passado escravista ou pela má preparação da sociedade em aceitá­lo enquantohomem livre. Tampouco, permanecem nestas terras por obra do acaso; não, ele existe alienquanto sujeito da própria história, porque, não se trata de qualquer terra, é uma terraimpregnada de simbologia, afetividade, que lhes foi passada pela geração anterior que,também cultivava esse vínculo com a mesma, justificando a resistência e a reprodução daunidade familiar sob esse território.

Neste aspecto, muitas comunidades negras rurais privilegiaram áreas distantes doscentros urbanos para estabelecerem seu território, isolando­se da convivência diária domodo de produção e de vida das cidades. Entretanto, segundo O’dwyer (2002), o que nãopode acontecer, é, confundir esse isolamento como sendo um regresso ao passado ou umisolamento inconsciente. Devemos considerar que existe ali, uma troca entre os saberes docampo e da cidade, presente na realidade desses grupos, bem como uma ligação com osconhecimentos e hábitos pertinentes a atividade urbana, que proporcionam de certa forma,uma reprodução mais organizada e legitima dos indivíduos nesse território. Refiro­me aquia questões relacionadas a fluidez das informações, velocidade de informações, entreoutros que os colocam á par de assuntos importantes para o grupo, como por exemplo, ainteração com outras comunidades negras rurais, que se encontram em níveis maisavançados em relação à certificação das terras e mesmo aos aspectos que envolvem ainfra­estrutura È neste sentido, que O’dwyer (2002, p.256), afirma tratar­se

... De um isolamento defensivo, que se propõe a obstaculizar a entradade pessoas vistas como de fora nos círculos mais íntimos do cotidianode seus territórios. Entre tais grupos, o isolamento é mantido atualizadode forma consciente, sem ser confundido com o isolamento primitivo,muito pelo contrário, o isolamento consciente visa à seleção e ocontrole, por parte da comunidade, das relações com o exterior e umdomínio do espaço. Trata­se da permeabilidade das fronteiras étnicas,que, ao invés de isolar, elege momentos nas quais as mesmas seabrem.

Deste modo, partindo­se do pressuposto de que a cultura negra é responsável porsingularidades, que (re) criam­se sobre esse território, é importante destacar a autonomiaexercida por estas comunidades negras rurais. Salientando­se que, esta autonomia édeterminante no controle sobre os modos de produção, sobre o trabalho, econseqüentemente sobre a reprodução dos seus meios de vida. Não podemos, porémaceitar esta autonomia como única e verdadeira; tampouco, privilegiar a dicotomiaexistente entre o campo e a cidade trabalhando­os como realidades independentes, vistoque estes sujeitos estão de alguma forma submetidos a fatores externos que influenciamna organização do seu território.

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Nesta mesma linha, Oliveira (2002, p.74), Afirma que...o território deve ser entendido como síntese contraditória, comototalidade concreta do processo/modo de produção/ distribuição/circulação/ consumo e suas articulações e mediações...O território éassim produto concreto da luta de classes travada pela sociedade noprocesso de produção que dão configuração histórica específica aoterritório.Logo o território não é um prius ou a um priori , mas a continualuta da sociedade pela socialização igualmente continua da natureza.

Assim, o território também pode ser compreendido, como a projeção espacial derelações do poder, mas não pode ser jamais compreendido e investigado, no que se referea sua origem e as causas de suas transformações, sem que o aspecto material do espaçoseja devidamente considerado. SOUZA (1995, p.64)

Ainda, sobre o território e suas projeções espaciais, Raffestin (1978, p.144), afirmaque:

Qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representaçãorevela a imagem desejada de um território, de um local de relações,assim, todo projeto é sustentado por um conhecimento e uma prática,isto é, por ações ou comportamentos que é claro, supõem a posse decódigos, de sistemas sêmicos. E são por esses sistemas sêmicos quese realizam as objetivações do espaço, que são processos sociais.

Neste sentido, as comunidades negras rurais, apresentam um conjunto decaracterísticas, de códigos e simbologias, muito particulares á este segmento étnico. Noentanto, seus modos de produção, seus meios para produzir, as formas de organização doterritório, a maneira como se deu ao longo dos tempos a apropriação da terra, e até mesmoa estrutura das propriedades, acabaram gerando (de) semelhanças, entre as mesmas.

Aspectos Culturais do negro rural e/ou camponês

Quando observamos a distribuição espacial das comunidades negras rurais no RioGrande do Sul, e até mesmo no restante do país, verificamos que embora exista umarelevante distância geográfica entre muitas destas, inferimos que algumas característicasapresentam­se de forma homogênea entre as mesmas, outras já diferem em algunsaspectos. A questão cultural é uma delas, visto que permanecem quase inalteradas entreeste grupo étnico; com algumas diferenças entre os ramos religiosos, visto que, algumascomunidades ainda manifestam a religião dos seus antepassados, ligados a cultosafricanos, como o candomblé, umbanda, enquanto outros grupos aderiram a religiões maistradicionais como as evangélicas ou católicas, entre outras.

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No entanto, a evolução do grupo enquanto unidade de produção, bem estar dosiindivíduos, educação, saúde, infra­estrutura das moradias, entre outros, apresentam­sebem mais desenvolvidas em apenas algumas comunidades, principalmente naquelas ondea busca pela legitimação do território e a abertura das fronteiras para os de “fora” deu­seconcomitante aos primeiros debates sobre a posse das terras onde hoje se configuram osterritórios quilombolas. Um exemplo desse desenvolvimento e autonomia é a comunidadenegra rural de Morro Alto, localizada no litoral norte do nosso Estado, onde a infra­estruturalocal e a o trabalho coletivo foram alcançados com êxito, e isto só foi possível entre outrosfatores, á abertura que a comunidade promoveu para um grupo de fora, que reuniapesquisadores de universidades e órgãos de apoio do governo, que tinham como únicointeresse o resgate da cultura negra e a preservação da identidade quilombola bem comosua reprodução territorial.

As condições materiais de produção desse modo de vida, associadas ao meio e asrelações sociais que se constroem a partir disso, asseguram processos sociais nucleadosem torno da família, da organização do trabalho, da comunidade, da vizinhança e doparentesco, do mundo exterior, da organização social para a sobrevivência, para asociabilidade, para o domínio da natureza e para a construção da individualidade.(TEDESCO 1999, p.49). Assim, ao repensar o território rural negro, buscando inseri­lo nocontexto do campesinato, encontramos na trajetória deste segmento étnico, em seu modode vida e na relação que este mantinha com a terra no período da escravidão; talvez oprimeiro quesito, digamos assim, que o colocaria como sujeito na perspectiva de sercamponês. Trata­se da brecha camponesa, que diz respeito em parte “as atividadesagrícolas, realizadas por escravos nas parcelas e no tempo para trabalhá­las concedidospara esse fim no interior das fazendas.” (CARDOSO, 1979. p. 145). Sendo assim, a brechacamponesa nada mais era do que um incentivo por parte do proprietário da fazenda, entãodono dos escravos, que tinha por objetivo fixar a permanência destes em suas terras,inibindo qualquer tipo de resistência, cumprindo, portanto, o que O’dwyer (2002)denominou de função ideológica de manutenção da estrutura escravista.

Todavia, a brecha camponesa, também proporcionou ao escravo, uma determinadaautonomia econômica, uma vez que este passou a acumular um pequeno capital que erautilizado na compra de produtos que ora os auxiliavam em sua modesta produção, comosementes, por exemplo, ora serviam para satisfazer outras necessidades, como ovestuário.

Desta forma, a relação do negro com a terra passa a ter um novo significado, pois, nasua concepção, não existiria mais a idéia de fuga, luta, e resistência, visto que, o seusenhor era bom. Então, fugir da fazenda para quê? Ir para onde? Considerando que,encontravam­se, ali o que lhes era necessário para sua subsistência, ou seja, a terra e o

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alimento que esta lhes dava; criando­se assim mais que uma relação de troca, mas dereciprocidade e acima de tudo afetiva com esta terra, que mais tarde passa a ser o seuterritório.

Neste contexto, o negro ex­cativo, passa a ser sujeito da sua própria história, uma vezque se materializava no espaço o que circulava no seu imaginário, a liberdade •, e a“propriedade” de uma parcela de terra na qual poderia produzir para seu autoconsumo bemcomo da sua família e comercializar ou trocar o excedente, pelo que não tinham acesso,conforme foi exposto anteriormente. É neste sentido, que Sidney Mintz (1974), de quemCardoso (1979) se dissocia no que se refere à dissolução das categorias escravo e modode produção escravista, defende que, o cativo poderia ser escravo e camponês, ao viver,em forma alternada, as duas relações de produção.

Embora algumas linhas teóricas tenham preconizado o fim do campesinato, enquantoclasse social, Paulino (2006. p.3), é bastante firme em sua contribuição sobre este grupoem particular, afirmando que

...alguns pressupostos ganharam força, sobretudo aquele quevislumbrava o seu desaparecimento enquanto classe. Entretanto,constata­se que o desenvolvimento capitalista não tem provocado odesaparecimento do campesinato, mas sua recriação.

As discussões sobre as comunidades negras rurais e/ou camponês negro exigem umareflexão específica tendo em vista que ao longo das últimas décadas este termo, bemcomo seu significado, vem sendo amplamente discutido, questionado e reconceituado,soma­se a isto algumas hipóteses que surgiram a cerca da classe camponesa, entre elas,a de que a figura do camponês teria deixado de existir; na medida em que o capitalismocrescente tomou conta do espaço agrário de forma imensurável, estabelecendo­se noslugares mais remotos, fazendo uso massivo de variadas tecnologias (FERNANDES, 2001).

Desta forma, segundo essa concepção, o camponês submetido á este modocapitalista de produção teria sofrido uma metamorfose, tornado­se um agricultor familiar,que luta pela permanência no campo, visto as dificuldades encontradas neste setor.

No entanto, observando as considerações de autores como Tedesco (1999) e Gusmão(1995), respectivamente sobre o colono italiano e os negros de comunidades rurais,destaca­se a grande semelhança, entre essas duas diferentes categorias históricas deanálise. Diferentes, em sua trajetória de vida, em seus costumes e hábitos, em seu modode apropriação da terra (no momento da instalação). Porém muito próximas, no que serefere ao sentimento pela terra, aos laços de parentesco, ao exercício da coletividade,entre tantos outros aspectos que se assemelham e permeiam seus cotidianos,configurando seu território e materializando­se no espaço, aproximando­os assim da figurado camponês, e do ser camponês.

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É válido observarmos as colocações de, (TEDESCO 1999, p.50), quando estecaracteriza o típico camponês italiano, que dentro desta lógica contracena com o sujeitoe/ou camponês das comunidades negras rurais

[...] a ordem social do colono fundava­se na ligação com a propriedade,família e trabalho, este com sentido além do econômico, que ligado ápropriedade, formaria o espaço social e a trajetória seqüencial dasestratégias de reprodução familiar e organização da individualidade docolono. As estratégias familiares, serão implementadas em função dasespecificidades que se constroem nesse espaço de sociabilidadepreponderantemente rural, de reciprocidade, de laços pessoais e demercados débeis, de uma moral que fundamenta a solidariedadefamiliar e comunitária e, de certa forma, o econômico. São construçõessimbólicas no âmbito objetivo, e também ritualístico, que envolvem laçosde matrimônio e contato coma terra nas práticas de trabalho.

Nesta mesma linha, porém privilegiando o sujeito das comunidades negras rurais,bem como o conjunto de particularidades que os diferenciam enquanto segmento étnico,Gusmão (1990. p.116), sustenta que

[...] as especificidades de que são portadores os torna parte do universocamponês brasileiro e, ao mesmo tempo os diferenciam a partir dacondição étnica da história particular que lhes deu origem... Constroemcoletivamente a vida sob uma base geográfica física e social formadorade uma territorialidade negra. Dentro dela, elaboram­se formasespecíficas de ser e existir enquanto camponês e negro.

Acrescenta­se, á isto, a cultura do envolvimento comunitário em torno de soluçõespara os problemas que são uns das marcas do campesinato. Trata­se da ajuda mútua queacontece independentemente desse esforço dirigido (PAULINO, 2006. p.280.), o vínculoafetuoso que se estabelece com a terra, a forma como se teve acesso á ela seja porherança, seja por doação, ou mesmo por apropriação, essa coletividade que se dá emvirtude do parentesco e das afinidades, os aproximam muito da perspectiva camponesa.

Neste sentido, Paulino (2006) também coloca que, por vezes, é a troca deexperiências na comunidade que garante a sua difusão, viabilizando a produçãocamponesa e que o saber camponês conserva­se justamente porque o processo produtivose faz no interior da família, passando de geração a geração. Do mesmo modo, ocorre coma autonomia, relacionada à forma de produção, e a manifestação de hábitos e costumespertinentes a cultura negra que dão configuração ao seu território e que perpassam osparadigmas do capitalismo e de seus instrumentos tecnológicos dos quais a comunidadeRincão do Santo Inácio, não possuí acesso. Baseado nestes aspectos é que chamamosmais uma vez Gusmão (1990 p.117) que sustenta que

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[...] em conseqüência da relação com a terra, tais famílias passaram avivenciar problemas próprios da economia de pequenos produtores (dasubsistência), problemas de parentesco e de propriedade. Com isso adupla estrutura que organiza a vida e existência de grupos rurais negroscontemporâneos é de mesmo sentido daquela que afeta todo equalquer grupo camponês... Um espaço social marcado pela terra epelo parentesco.

Assim, nesse processo de compreensão dos espaços e dos sujeitos, deste novomundo rural, as valorizações culturais e econômicas da cidade e das indústrias acabamdesqualificando saberes e outras racionalidades específicas deste grupo étnico emparticular (do negro camponês), conforme afirmou Gusmão anteriormente, surgemproblemas próprios. Principalmente no que se refere ao trabalho coletivo da terra, onde nasúltimas décadas, o homem que era responsável pela produção e cultivo, teve que sair da“roça” em busca de emprego fora da comunidade e em muitos casos, até em outrascidades, contribuindo para a permanência de outros moradores, pais, esposas, filhos eirmãos na comunidade e colaborando para a permanência, ali, de uma campesinidade,através da alteração do ethos do trabalho. Também nesta perspectiva, Tedesco (1999)coloca que o espaço da casa, das visitas a parentes, entre outros, são atribuídos à mulher,que reforça a visão de poder na esfera do lar. Porém nesta alteração de ethos, emdecorrência da saída do homem da roça, é a mulher que assume o papel de trabalhar aterra e, portanto domina mesmo que por períodos, o território masculino. Assim, no modode vida camponês a representação social da dominação masculina é reforçada na medidaem que o grupo doméstico tem um papel fundamental na constituição e manutençãoeconômica e moral, da unidade familiar. Estas e outras colocações a respeito daorganização de vida rural, dos camponeses, visam demonstrar a importância de algunsfatores indispensáveis em suas vidas, tais como a terra, a família e o capital, que já foiexplanado por autores como Tedesco e aqui nesta síntese, procura aproximá­las do modode vida dos negros e/ou camponeses das comunidades rurais, buscando mostrar queestes sujeitos há muitos séculos trabalham a terra e relaciona­se com ela na mesmaperspectiva do camponês tradicional e, portanto devem ser vistos como tais.

Também, a respeito das relações internas da agricultura camponesa, Chayanov(1974) considera que as mesmas não reproduzem a lógica capitalista, e sim, visamatender, primeiramente, às necessidades e expectativas da família. Guzmán e Molina(2005) ressaltam que, ainda, vinculados ao mercado, mesmo que, a maior parte de suaprodução vai para o autoconsumo, seu traço central, é sem dúvida, constituído pela formade dependência que possui com a sociedade maior em termos de exploração.

Nesta mesma linha, o processo de trabalho aponta alguns significados para acompreensão da trajetória do sujeito camponês nas sociedades capitalistas, cuja lógica

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não foi capaz de extingui­los enquanto categoria histórica. Pois, a expansão deste modo deprodução é contraditória, marcada por relações sociais de produção capitalistas e tambémnão capitalistas que se reproduzem no seu interior. (FERNANDES, 2008), (MARQUES,2008).

Assim, o campo sociocultural e a nova ordem neoliberal dos mercados podem abrirespaço para uma revalorização do saber e do fazer camponês e até a uma ampliação dosetor camponês no contexto da sociedade, porém a perspectiva histórica indica que estarevalorização só será viável se a apropriação deste conhecimento implicar em ganhos nasesferas da acumulação capitalista, dentro desta análise, observa­se que a dominaçãocultural e suas críticas conformam um campo de realidade polimorfa onde se valorizamdeterminados saberes, desvalorizando outros. São construções sociais e humanas, queforam e ainda são, historicamente determinadas. (MOREIRA, 2007).

Portanto, as comunidades negras rurais, da forma como as percebemos são espaçosde transformações constantes, de tensões com a cultura e a natureza, do distante e dopróximo, do familiar e do desconhecido, formando no seu conjunto, uma lógica da vidacotidiana baseada em critérios e representações sociais, estabelecendo eixos culturais quetentam, hoje, perpassar ou ser resgatados, com novas interpretações ou comracionalidades adaptativas ao período em que vivemos. (TEDESCO, 1999).

O paradigma da agroecologia como alternativa de desenvolvimentosustentável nas comunidades negras rurais e/ou camponesas.

Antes de iniciarmos o debate que segue, sobre o paradigma da agroecologia, nascomunidades negras rurais, faz­se extremamente necessário, salientar que o objetivodesta síntese, é demonstrar que, o desenvolvimento agroecológico e sustentável podemser aplicados e trabalhados com mais facilidade e melhor aceitação dentro dascomunidades rurais tradicionais. Uma vez que, segundo Sevilla (2001) é a fusão entre a“empiria camponesa” e a “teoria agroecológica” que estabelece um desenvolvimentoalternativo, um desenvolvimento rural e sustentável. É neste sentido, através dos seussaberes e práticas camponesas, que estes pequenos agricultores estabeleceram umarelação com a terra que vai além da mesma como capital, a terra, neste universocamponês, representa muito mais, que uma mercadoria, ela é símbolo de autonomia, dedomínio sobre a estrutura familiar. E, é a partir desta relação de afetividade que seestabelece entre o camponês e a terra, no qual, o objetivo principal é a manutenção e aperpetuação desta terra para os seus sucessores, que se torna viável aproximar e trazercomo sugestão para este debate o desenvolvimento das práticas agroecológicas nas

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comunidades negras rurais. É válido porque ambos, buscam o mesmo interesse, baseadonum resgate de técnicas e saberes tradicionais, que colocados em prática, proporcionarão,a sustentabilidade tanto do agroecossistema (local) quanto da cultura étnica dessascomunidades negras e demais comunidades rurais tradicionais. Salientamos que, mesmoque não existam ainda, no Brasil, comunidades rurais totalmente agroecológicas, existemsim, comunidades negras desenvolvendo projetos em fase inicial, que visam à substituiçãodo modelo agrícola tradicional pelo agroecológico, como é o caso da Comunidade Negrade Jatobá, localizada em Patu, no Rio Grande do Norte, onde a produção de hortaliças eum banco de sementes crioulas e nativas estão dando início às práticas agroecológicas,também como exemplos temos a comunidade quilombola “Terra dos Kalungas”, localizadana Chapada dos Veadeiros, que da mesma forma tentam dar os primeiros passos embusca de um desenvolvimento agroecológico.

Assim, o conceito de agroecologia vem buscando nas últimas décadas sistematizaresforços e produzir uma proposta de agricultura abrangente, que seja socialmente justa,economicamente viável e ecologicamente sustentável; um modelo que seja o (re) começode um novo jeito de relacionar do homem com a natureza, com os meios e modos deprodução. Nesta visão estabelece­se uma ética ecológica que implica no abandono de umamoral consumista e individualista e que postula a aceitação e a reprodução da justiça e dasolidariedade como valores indispensáveis. (ROSA, 2004). Assim, as comunidades negrasrurais são parte integrante de um amplo mosaico étnico­social, ecológico e cultural docenário agrário brasileiro. Em sua maioria, estas comunidades negras apresentaminvariavelmente um quadro de agravante pobreza rural, sendo necessário a análise e oestudo de possibilidades que busquem a inserção econômica desses pequenoscamponeses, a partir da elaboração de projetos que permitam a agregação de valor aosprodutos agrícolas e não­ agrícolas (GRAZIANO, 1999), e a partir de suas dinâmicas efatores de desenvolvimento

Nesta perspectiva, é a fusão entre a empiria camponesa e a teoria agroecológica queestabelece um desenvolvimento alternativo e um desenvolvimento rural sustentável(GUZMÁN, 2001), considerando que a agroecologia se assenta nas particulares condiçõeslocais e na singularidade de suas práticas culturais, contribuindo para o delineamento deum novo paradigma, que atenda as necessidades de uma crise ampla da sociedademoderna e que abra espaço para uma nova visão sobre a questão ecológica (CANUTO,2003).

São essas características socioculturais que reproduzidas no espaço (re) criam asformas endógenas advindas do conhecimento e que perpassam as gerações, sendo queestá inserido neste contexto o negro e/ou camponês, portador de especificidades culturaisque nas últimas décadas vem mudando a paisagem rural brasileira e regional,

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conformando realidades singulares do seu modo de ser, produzir e reproduzir­se noespaço.

Assim, na “agroecologia a agricultura é vista como um sistema vivo e complexo,inserida na natureza rica em diversidade, por isso a agricultura familiar com enfoqueagroecológico é sem dúvida uma das formas de expressão do atual ecologismo popular”,visto sua diversificação de culturas e cuidados com preservação do solo em unidades deprodução familiar. (CANUTO, 2003, p.131).

Nesta perspectiva a agroecologia “é como um paradigma que se abre para ademocracia participativa como forma de superar a assimetria social entre incluídos eexcluídos” (Canuto, 2003, p.128), é nesse aspecto, que a agroecologia também surgecomo uma alternativa para os camponeses e/ou negros obterem mais renda de suasterras, uma vez que dependem menos do capital externo ao da sua unidade de produçãofamiliar.

Devemos considerar que as comunidades devem explorar características epotencialidades próprias, na busca de diversificação de atividades que lhes tragamvantagens, tanto no âmbito natural, quanto econômico, social, político, econseqüentemente respeitando a preservação dos recursos.

Neste sentido, Guzmán (2005), atenta para a necessidade de se valorizar as culturastradicionais, neste caso específico (dos negros) que resgatam a trajetória histórica dasfamílias, devido ao amplo debate que se formou em função da utilização de técnicasmodernas de produção, concomitante ao aumento do número de comunidades tradicionaisque tem afirmado suas territorialidades. Pois, mesmo que a distância geográfica entre arede urbana e as comunidades rurais seja pequena, as comunidades negras rurais e asdemais comunidades tradicionais mantém sua identidade e sua cultura local, ou seja, aproximidade entre ambas não interferiu em suas características culturais que setransformam com as dinâmicas e reorganizações do espaço, mas permanecem numconjunto de valores que se reproduzem socialmente. Atrela­se a isto, o fato da maioria dascomunidades negras, manterem uma relação sustentável no manejo dos recursos naturais,aproximando, portanto, o campesinato da proposta Agroecológica.

Entretanto, Gusmão (1996. p. 13), afirma que,...para além da condição de pequeno produtor de subsistência e forçade trabalho disponível para o capital, deve­se descobrir a existência demecanismos próprios de uma condição histórica que permitiu, não sóa existência de grupos rurais negros, mas também sua resistência notempo. Outra função atribuída à agricultura camponesa é o aspectosócio­cultural, que equivale ao resgate de um modo de vida que associaconceitos de cultura, tradição e identidade.

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Também faz parte desse contexto a valorização do desenvolvimento local, baseadoem processos endógenos, com o aproveitamento racional dos recursos disponíveis emunidades territoriais delimitadas pela identidade sócio­cultural (ALTAFIN, 2003).

Assim, os saberes agroecológico são uma constelação de conhecimentos, técnicos,saberes e práticas dispersas que respondem as condições ecológicas, econômicas,técnicas e culturais de cada geografia e de cada população, entendendo que cadacomunidade tem um perfil específico e deve ser valorizada como verdadeira guardiã naconstrução de modelos de desenvolvimento alternativos. Compreendendo que adiversidade não é apenas biológica, mas também étnico­cultural e religiosa sendo, decisivapara a manutenção da vida. (CANUTO, 2003)

Deste modo, conforme afirma Leff, (2001, p. 43)...na reapropriação de saberes tradicionais e sua hibridação comconhecimentos científicos e modernos, o elemento aglutinante não é odesejo de lucro, senão a reprodução ecológico­cultural doagroecossistema e do território.

Neste contexto, em suas aplicações pontuais, a agroecologia contribui paradesmontar os modelos agroquímicos tradicionais, mas sua ação transformadora implica ainserção de suas técnicas e suas práticas em uma nova teoria da produção (LEFF, 1994),configurando­se através

...de um novo campo de saberes “práticos para uma agricultura maissustentável, orientada ao bem comum e ao equilíbrio ecológico doplaneta, e como uma ferramenta para a auto­subsistência e asegurança alimentar das comunidades rurais” (LEFF. 2001 p. 37)

Dessa maneira considerando o camponês, detentor do seu espaço de produção, ouainda, possuidor de uma territorialidade particular, podemos dizer que ele também seconstitui como classe dentro do processo de acumulação capitalista. Assim, sua crescentedesterritorialização é resultado das desigualdades entre os atores hegemônicos dessecapitalismo.

Assim, enquanto a sociedade avança rumo ao consumismo e ao individualismo noanseio de satisfazer as necessidades materiais, o campesinato aparece como uma formado camponês/negro, enquanto sujeito, se relacionar com a natureza, ao considerar­seagente transformador, dentro de um processo, que visa à união do conhecimentotradicional e conhecimento científico.

Conforme exposto anteriormente, o acúmulo de conhecimentos tanto tradicionaisquanto científicos é significativo, neste novo paradigma, caracterizando

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[...] o conhecimento cotidiano como produto tanto da acumulaçãopessoal, como do acúmulo das sucessivas gerações, e sua circulaçãodepende diretamente da memória e da sabedoria [...] essa forma deprodução e de circulação de conhecimentos como epistemologianatural, o que significa que esses conhecimentos ou saberes cotidianossão dotados de valor epistêmico e de grande importância para a própriaprodução de conhecimento científico (Gomes, 2005, p.90).

Quando abordamos o tema comunidade negra rural e/ou camponesa e/ou agriculturafamiliar, é intrínseco que o conhecimento tradicional depende da reprodução por meio dosurgimento de novos sujeitos e do aprendizado sobre o modo de reprodução que oscaracterizam, definindo assim um contexto histórico especifico dos grupos étnicos.

É a partir do resgate desses elementos que se permite fundamentar a proposta de umpluralismo metodológico na produção de um conhecimento agrário, tomando como baseepistemológica a agroecologia. Esta síntese aborda uma variedade de contextos para aprodução e a circulação do conhecimento agrário, bem como busca revalorizar o aspectosocial e suas demandas pertinentes as comunidades negras rurais e demais comunidadesrurais tradicionais. Neste sentido, os agroecossistemas desenvolvidos a muitas geraçõespelos camponeses permitem satisfazer as necessidades locais baseando­se nos princípiosda sustentabilidade, muitas vezes nem sabem que o estão fazendo, são atitudes eatividades rurais cotidianas, porém desenvolvidas com muito cuidado, no sentido depreservar para suas gerações futuras, estas unidades familiares, que são reproduzidas aosseus sucessores.

Contudo, conforme (Caporal & Hernandéz, 2004).É considerado também que a matriz comunitária ao qual o agricultorestá inserido é de suma importância, já que por meio da matrizsociocultural o agricultor é dotado de uma práxis intelectual e políticaque define sua identidade local e sua rede de relações sociais; quepermitem elaborar propostas de ação social coletivas

Portanto, devem ser reconhecidas e legitimadas como exemplos de aplicação doconhecimento ecológico de certa forma avançado, quando comparado a outras formas deprodução.

Assim, os moradores das comunidades rurais negras e os camponeses tradicionais,que optem por uma produção agroecológica de alimentos diversificados devem procurarinserir­se dentro de uma lógica comercial que pague preços justos para garantir areprodução do sistema bem como da unidade de produção. Neste contexto, os sujeitossociais, representados aqui pelos negros e/ou camponeses, buscam políticas públicasfundamentadas na multifuncionalidade da agricultura, visando o fortalecimento das

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comunidades composta por unidades de produção familiares e sustentáveis no tempo.Vista como solução, na agroecologia os camponeses são partes de um todo, podem

colocar seus conhecimentos à prova; não a prova científica, mas à prova do cotidiano, dasestações do ano, da colheita, da memória coletiva dos antepassados. Nela, oscamponeses detêm o conhecimento que o pesquisador/cientista quer valorizar e, sepossível, aprimorar a partir de estudos que evoquem a antiga produção do espaço cujasbases estejam alicerçadas para um desenvolvimento do território mais humanizado.(ROSA, 2004).

Neste contexto, depois de decorrida esta síntese, sabe­se que, o desenvolvimento deum modelo agrícola baseado totalmente no paradigma da agroecologia, não é uma tarefamuito fácil de realizar, porém deve ser trabalhado aos poucos, somando­se as técnicas esaberes tradicionais, ás novas técnicas que o modelo agroecológico nos traz, incorporadonas comunidades negras rurais e demais comunidades camponesas futuramente poderávir a ser uma prática cotidiana, já que muitas organizações não governamentais egovernamentais estão lançando políticas de apóio á este tipo de desenvolvimento.

Assim, a comunidade Rincão do Santo Inácio, nossa área de estudo, não faz partedas comunidades que estão dando inicio á essa prática agrícola, tão pouco é sustentável,porém, tentamos com essa abordagem inseri ­ lá nesta perspectiva, sugerindo como foimencionado ao longo do texto, que por se tratar de uma comunidade camponesa, dotadade particularidades e considerando a relação afetiva que se estabelece com a terra, nesteterritório, o desenvolvimento agroecológico é viável e aplicável. E, assim como nos doisexemplos mencionados, da comunidade do Jatobá e da Terra dos Kalungas, o Rincão doSanto Inácio poderia dar inicio a projetos agroecológico simples, como o cultivo dehortaliças agroecológicas e bancos de sementes crioulas, e talvez assim em longo prazovenha tornar­se a primeira comunidade negra rural totalmente agroecológica.

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