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2020 Renato Brasileiro de Lima Manual de Processo Penal volume único 8 ª edição revista atualizada ampliada

Renato Brasileiro de Lima - Editora Juspodivm...Nosso Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941) entrou em vigor em pleno Estado-Novo, mais precisamente

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8ª edição

revista atualizada ampliada

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS 103

TÍTULO 2

JUIZ DAS GARANTIAS1. SUSPENSÃO CAUTELAR DA EFICÁCIA DOS ARTS. 3º-A A 3º-F DO CPP (STF, ADI 6.299 MC/DF, REL. MIN. LUIZ FUX, J. 22/02/2020).

Na condição de Relator das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (j. 22/01/2020), todas ajuizadas em face da Lei n. 13.964/19, o Min. Luiz Fux suspendeu sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e de seus consectários (CPP, arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F), afirmando, ademais, que a concessão dessa medida cautelar não teria o condão de interferir nem suspender os inquéritos e processos então em andamento, nos termos do art. 10, §2º, da Lei n. 9.868/95.

Sem embargo de a referida medida cautelar ter acarretado a suspensão da eficácia da inte-gralidade dos dispositivos normativos abordados no presente Título do nosso Manual de Processo Penal, o qual, aliás, sequer existia na edição anterior da nossa obra, reputamos válido – e até mesmo honesto com o leitor – procedermos a uma análise minuciosa, detalhada e crítica de toda a sistemática pertinente à criação do juiz das garantias pela Lei n. 13.964/19, até mesmo porque sua constitucionalidade (formal e material) ainda será objeto de apreciação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que poderá confirmar (ou não) a decisão proferida pelo Eminente Min. Luiz Fux.

2. NOÇÕES INTRODUTÓRIASNosso Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941) entrou em

vigor em pleno Estado-Novo, mais precisamente no dia 1º de janeiro de 1942, tendo nítida ins-piração no modelo fascista italiano que deu origem ao denominado Código Rocco de 1930.1 Daí, aliás, a oportuna observação feita por Fauzi Hassan Choukr, no sentido de que “conhecemos uma história legislativa republicana sem que tenhamos um Código de Processo Penal integralmente nascido da atividade democrática parlamentar”.2

Desde então, sem embargo da abertura democrática consumada no Brasil com a promulga-ção da Constituição Federal de 1988 e a incorporação de inúmeros Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos ao nosso ordenamento jurídico, destacando-se, dentre eles, o Pacto de São José da Costa Rica, nosso Código sofreu apenas alterações pontuais, como, por exemplo, a mudança da sistemática atinente ao interrogatório (Lei n. 10.792/03), procedimento do júri (Lei n. 11.689/08), prova (Lei n. 11.690/08), procedimento comum (Lei n. 11.719/08), e, mais recentemente, a alteração de dispositivos do CPP relativos às medidas cautelares de natureza pessoal (Lei n. 12.403/11). A

1. Prova disso, aliás, é a Exposição de Motivos do CPP, que, no seu n. II, salienta: “De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessaria-mente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum (...) No seu texto, não são reproduzi-das as fórmulas tradicionais de um mal avisado favorecimento legal aos criminosos (...) É ampliada a noção de flagrante delito... A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade para ser um dever imposto ao juiz, adquire a suficiente elasticidade para tornar-se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal”. (nosso grifo).

2. CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 2).

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estrutura básica da legislação processual penal, porém, foi mantida, e ainda se encontra alicerçada em bases inquisitoriais oriundas do regime totalitário vigente durante a 2ª Guerra Mundial. Prova disso, aliás, é a subsistência de dispositivos legais – de duvidosa constitucionalidade e convencio-nalidade – que autorizam o próprio juiz a requisitar a instauração de um inquérito policial (CPP, art. 5º, II),3 a decretar de ofício a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes ou a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante, seja na fase investigatória, seja na fase processual (CPP, art. 156, incisos I e II, respectivamente), ou que autorizam o próprio juiz a realizar pessoalmente uma busca domiciliar (CPP, art. 241).

Era premente, portanto, a mudança da nossa legislação processual penal como um todo, para que sua estrutura fosse, enfim, adaptada à nova ordem constitucional e convencional, notadamen-te ao sistema acusatório (CF, art. 129, I) e à garantia da imparcialidade (CADH, art. 8º, n. 1). Afinal, não se pode mais compreender o processo penal como um mero instrumento necessário para o exercício da pretensão punitiva do Estado. Muito além disso, o processo penal há de ser compreendido como uma forma de tutela dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Para tanto, é dizer, “para que tenhamos um processo ético, limpo, sem surpresas, equilibrado, com regras definidas e conhecidas, e que valoriza o ser humano”,4 este deve ser concebido como um processo de partes, em que as atividades de acusar e julgar estejam efetivamente distribuídas a diferentes personagens, estruturado sobre um procedimento em contraditório, cabendo às partes desenvolver a atividade probatória com o objetivo de convencer um julgador imparcial, a quem é dado decidir de maneira subjetivamente desinteressada.

É dentro desse contexto que surgem, então, os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3ºD, 3º-E e 3º-F, introduzi-dos no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19: o primeiro deles, após dispor que o processo penal terá estrutura acusatória, veda expressamente a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação; os demais passam a prever a figura do juiz das garantias, doravante responsável pelo controle da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, ficando impedido de mais adiante funcionar na instrução e julgamento do mesmo feito.

Cuida-se, a Lei n. 13.964/19, do produto final do chamado “Pacote Anticrime”, projeto de lei apresentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao Congresso Nacional, em 19 de fevereiro de 2019, cujo propósito era o de atualizar a legislação criminal e o processo penal, sistematizando as mudanças em uma perspectiva mais rigorosa no enfrentamento à criminalidade, teoricamente em consonância com o anseio popular expressado nas eleições presidenciais de 2018. No mês de março de 2019, a Câmara dos Deputados criou uma Comissão para apreciar o referido “Pacote”, que passou a trabalhar, em paralelo, com uma proposta alternativa, elaborada, no ano de 2018, por um grupo de juristas encabeçado pelo Ministro Alexandre de Moraes. Curiosamente, porém, a vedação explícita à iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação (CPP, art. 3º-A) e a figura do juiz das garantias (CPP, arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F) não constavam de nenhum desses dois projetos. Na verdade, foram ali inseridos através de emenda, reproduzindo, em grande parte, o conteúdo referente à matéria que integrava o Projeto de Lei n. 8.045/2010 (Projeto de Lei do Senado n. 156/09), destinado à criação de um

3. Recentemente, o Min. Dias Dias Toffoli, na condição de Presidente do Supremo Tribunal Federal, determinou, de ofício, com fundamento no art. 43 e seguintes do RISTF, a instauração de inquérito “para apurar a existência de notícias fraudulentas (“fake News”), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, difamandi e injuriandi, que estariam supostamente atingindo a honorabilidade e a segurança da-quela Corte, de seus membros e familiares” (Portaria GP n. 69, de 14/03/2019 – Inq. 4.781), designando, para a condução do feito, o eminente Ministro Alexandre de Moraes.

4. GIACOMOLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal: considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 13.

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novo Código de Processo Penal, que até já fora aprovado pelo Senado Federal, mas que ainda aguarda apreciação por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados.

Independentemente de como se deu a introdução desses artigos no Projeto que deu ensejo à Lei n. 13.964/19, fato é que a sua legítima aprovação pelo Poder Legislativo, referendada, indi-retamente, pelo próprio Presidente da República, que poderia vetá-los, mas não o fez, representa, pelo menos enquanto não aprovado o Projeto de Lei que visa à criação de um novo Código de Processo Penal, a maior revolução já experimentada pela legislação processual penal pátria desde 1942, que poderá, enfim, se ver livre de uma estrutura marcantemente inquisitorial que sempre a orientou. Passemos, pois, à análise dessa mudança de paradigma que os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, todos do CPP, deverão produzir no seio do nosso Código de Processo Penal.

3. ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO PROCESSO PENAL

CPP

ANTES da Lei n. 13.964/19

CPP

DEPOIS da Lei n. 13.964/19

Sem correspondente. Juiz das Garantias

Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.’

3.1. Da suspensão da eficácia sine die do novo procedimento de arquivamento introduzido pela Lei n. 13.964/19

A despeito de o art. 3º-A ter sido introduzido no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19 no capítulo denominado “Juiz das Garantias”, ao lado, portanto, dos arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, com eles não guarda nenhuma relação. Trata-se, na verdade, de uma mera rati-ficação da estrutura acusatória do nosso processo penal, em fiel observância ao art. 129, inciso I, da Constituição Federal, do que deriva a conclusão de que seria vedada qualquer inciativa do juiz na fase de investigação, bem como a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Daí a nossa surpresa com a decisão proferida pelo Min. Luiz Fux por ocasião da apreciação da medida cautelar nos autos das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 (j. 22/01/2020). Apesar de o art. 3º-A do CPP não guardar nenhuma relação com o juiz das garantias, porquanto apenas enuncia postulados básicos do sistema acusatório, foi colocado no “mesmo bolo” que os arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F do CPP para fins de suspensão de sua eficácia, senão vejamos: “(...) suspendo sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e seus consectários [arts. 3º-A, 3º-B, 3ºC, 3º-D, 3º-E, 3º-F, do Código de Processo Penal] (...)”.

Sem embargo da suspensão sine die da eficácia, ad referendum do Plenário, do art. 3º-A do CPP, que não guarda nenhuma relação direta com a figura do juiz das garantias, reputamos oportuno comentar todas as possíveis mudanças que a sua introdução pela Lei n. 13.964/19 será capaz de produzir no âmbito da nossa legislação processual penal como um todo, haja vista a possibilidade de o Plenário da Suprema Corte, tão logo pautada a decisão das diversas ADI’s ajuizadas contra o Pacote Anticrime, revogar a decisão monocrática do Min. Luiz Fux.

3.2. Gestão da prova pelo magistrado: a vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias e da iniciativa probatória do juiz da instrução e julgamento

Para a estruturação de um sistema verdadeiramente acusatório, não basta a separação das fun-ções de acusar, defender e julgar. Para além disso, é de todo relevante que o juiz não seja o gestor da prova, cuja produção deve ficar a cargo das partes. Afinal, enquanto o juiz não se mantiver estranho à atividade investigatória e instrutória como um mero observador, tendo liberdade para produzir

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atos investigatórios e probatórios de ofício a qualquer momento da persecução penal, não há falar em um magistrado verdadeiramente imparcial, é dizer, um terceiro desinteressado em relação às partes. A chave para a compreensão dos sistemas acusatório e inquisitório recai, portanto, sobre a gestão da prova e sobre os princípios dispositivo (iniciativa probatória exclusiva das partes) e inquisitivo (atividade probatória a caráter do magistrado), que lhes são, respectivamente, regentes.

Quando se fala, pois, em um sistema acusatório, como aquele explicitamente adotado pela Constituição Federal (art. 129, inciso I), que atribui à pessoa diversa da autoridade ju-diciária a titularidade da ação penal pública, há de ser em mente que estamos falando de um modelo democrático, cujo núcleo (gestão da prova), vinculado ao seu princípio informador – dispositivo –, orientará uma atividade judicial imparcial, quer durante a fase investigatória, quer durante a fase judicial, respeitando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa, na busca limitada da verdade processual, jamais real.5 Não basta, pois, pensar o sistema acusatório baseado exclusivamente na separação inicial das atividades de acusar e julgar. Afinal, como observa Aury Lopes Jr.,6 de nada adianta uma separação inicial, com o oferecimento de uma denúncia pelo Ministério Público, se, na sequência, ao longo de toda a marcha procedimental, ao juiz for outorgado um papel ativo de protagonismo na busca pela prova ou até mesmo na prática de atos típicos da acusação.

Noutro giro, quando se pensa em um sistema inquisitório, ter-se-á um modelo claramente autoritário, cujo núcleo (gestão da prova), vinculado ao seu princípio informador (inquisitivo), orien-tará uma atividade claramente incompatível com a imparcialidade, colocando em segundo plano o contraditório e a ampla defesa, na busca ilimitada da verdade real.7 Assim, na busca dessa utópica verdade real, o imputado deixa de ser sujeito de direitos e passa a ser um mero objeto de investiga-ção, ficando, assim, submetido a um inquisidor que está autorizado a extrai-la a qualquer custo.8 O juiz, então, deixa de tutelar a presunção de inocência e passa a funcionar como um “buscador da verdade – o Google da verdade real”.9 Como observa Geraldo Prado,10 tal sistema é estruturado com vista à realização do direito penal material, em que a função do juiz se limita a concretizar o poder punir do Estado, como se o exercício do magistério penal fosse uma questão de segurança pública.

Enfim, ou a produção de provas é tarefa das partes e se está diante de um modelo acusatório (princípio dispositivo – juiz espectador), ou é do juiz (juiz ator/inquisidor), e se está então diante de modelo diverso, qual seja, o inquisitório. Não há, pois, espaço para um meio-termo.11 Resta,

5. Nesse contexto: RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 175.

6. Direito processual penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 189. 7. A distinção entre verdade real e processual/formal é vista, por exemplo, na doutrina de Ferrajoli (Direito e ra-

zão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 51-52), que enfatiza a necessidade de superação da chamada verdade substancial (real ou absoluta), utópica e inalcançável, por uma verdade processual de caráter aproximativo, que não pretende ser declarada como a verdade, já que condicionada ao processo e às garantias da defesa. Trata-se, pois, de uma verdade controlada quanto ao método de aquisição e reduzida quanto ao conteúdo informativo em relação à hipotética verdade substancial, protegendo, assim, os cidadãos, de práticas autoritárias.

8. LOPES Jr., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 180.

9. PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 13.10. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de

Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 105.11. Como observa Ricardo Gloeckner, o processo acusatório distingue-se do inquisitorial pela gestão da prova (possi-

bilidade de intervenção judicial na instrução), daí por que “não há possibilidade de conciliação em um meio-termo (...) Ou há poderes judiciais instrutórios ou é faculdade das partes a colheita das provas (...) Inquisitividade – po-deres instrutórios do juiz – somente pode ser pensada a partir do sistema inquisitório. Impossível um significante querer dizer uma mesma coisa e seu contrário (princípio da não-contradição). (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen.

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pois, analisarmos a (in) constitucionalidade dessa atuação ex officio do magistrado, seja ele o juiz das garantias, durante a investigação preliminar, seja ele o juiz da instrução e julgamento, no curso do processo judicial, o que pressupõe um cotejo da nova sistemática introduzida no art. 3º-A do CPP com aquela constante do art. 156 do CPP, cujos incisos facultam ao juiz agir de ofício antes de iniciada a ação penal (inciso I) e no curso da instrução ou antes de proferir sentença (inciso II).

3.2.1. Da vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias na fase investigatóriaInovando em relação à antiga redação do art. 156 do CPP, que só permitia a atuação probatória

de ofício do juiz no curso do processo, a nova redação dada ao art. 156, inciso I, do CPP, pela Lei nº 11.690/08, passou a prever que ao magistrado seria permitido, de ofício, mesmo antes do início da ação penal, determinar a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

Com a adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal (art. 129, inciso I), restou con-solidada a obrigatoriedade de separação das funções de acusar, defender e julgar, fazendo com que o processo se caracterize como um verdadeiro actum trium personarum, sendo informado pelo con-traditório. Esse sistema de divisão de funções no processo penal acusatório tem a mesma finalidade que o princípio da separação dos poderes do Estado: visa impedir a concentração de poder, evitando que seu uso se degenere em abuso. Com essa separação de funções, aliada à oralidade e publicidade, características históricas do sistema acusatório, e com partes em igualdade de condições, objetiva-se a preservação da imparcialidade do magistrado, afastando-o da fase investigatória, a qual deve ter como protagonistas tão somente a autoridade policial e o Ministério Público.

É óbvio que o juiz das garantias não está impedido de agir na fase investigatória. Mas essa atuação só pode ocorrer mediante prévia provocação das partes. Exemplificando, vislumbrando a autoridade policial a necessidade de mandado de busca domiciliar, deve representar ao magistrado no sentido da expedição da ordem judicial (CPP, art. 3º-B, XI, “c”). De modo semelhante, surgindo a necessidade de uma prisão temporária para acautelar as investigações, deve o órgão Ministerial formular requerimento ao juiz competente (CPP, art. 3º-B, V). Na fase investigatória, portanto, deve o magistrado agir somente quando provocado, atuando como garante das regras do jogo. Afinal, como sintetiza a Exposição de Motivos do Código Modelo para Ibero-America, “o bom inquisidor mata ao bom juiz, ou ao contrário, o bom juiz desterra ao inquisidor”.

O que não se deve lhe permitir, nessa fase preliminar, é uma atuação de ofício. E isso porque, pelo simples fato de ser humano, não há como negar que, após realizar diligências de ofício na fase investigatória, fique o juiz das garantias envolvido psicologicamente com a causa, colocando-se em posição propensa a decidir favoravelmente a ela, com grave prejuízo a sua imparcialidade. A partir do momento em que uma mesma pessoa concentra as funções de investigar e colher as provas, estará comprometido a priori com a tese da culpabilidade do acusado. Com efeito, se o magistrado tomou a iniciativa de determinar, de ofício, a realização de um ato investigatório, mesmo antes do início do processo penal, já indica, por si só, estar ele procurando uma confirmação para alguma hipótese sobre os fatos, é dizer, estar ele se deslocando daquela posição de imparcialidade decorrente da sua posição de terceiro para uma posição parcial, não mais alheia aos interesses da acusação ou da defesa.

Essa discussão quanto à atuação do magistrado de ofício na fase investigatória não é no-vidade no Brasil. Quando entrou em vigor a Lei nº 9.034/95, também conhecida como Lei das Organizações Criminosas, o art. 3º previa que, na hipótese de quebra do sigilo de dados fiscais, bancários, financeiros e eleitorais, a diligência seria realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça. O dispositivo conferia ao magistrado, assim, poderes para diligenciar pessoalmente na obtenção de elementos informativos pertinentes à persecução penal

Nulidades no processo penal: introdução principiológica à teoria do ato processual irregular. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 211-217).

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de ilícitos decorrentes da atuação de organizações criminosas, com dispensa do auxílio da Polícia Judiciária e do Ministério Público, criando uma espécie de juiz inquisidor.

O Supremo Tribunal Federal foi chamado a analisar a constitucionalidade do dispositivo, tendo concluído que o art. 3º seria parcialmente inconstitucional. No tocante aos sigilos bancário e financeiro, entendeu a Suprema Corte que o art. 3º teria sido revogado pelo advento da Lei Complementar nº 105/01, que passou a regulamentar a matéria. Em relação aos dados fiscais e eleitorais, todavia, o Supremo reconheceu a inconstitucionalidade do art. 3º, por flagrante violação ao princípio da imparcialidade e consequente violação ao devido processo legal.12

Em outro importante precedente (HC 94.641/BA, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 11/11/2008, DJe 43 05/03/2009), a 2ª Turma do Supremo concedeu, de ofício, habeas corpus impetrado em favor de condenado por atentado violento ao pudor contra a própria filha, para anular, em virtude de ofensa à garantia da imparcialidade da jurisdição, o processo desde o recebimento da denúncia. In casu, no curso de procedimento oficioso de investigação de paternidade promovido pela filha do paciente para averiguar a identidade do pai da criança que essa tivera, surgiram indícios da prática delituosa supra, sendo tais relatos enviados ao Ministério Público. O parquet, no intuito de ser instaurada a devida ação penal, denunciara o paciente, vindo a inicial acusatória a ser recebida e processada pelo mesmo juiz daquela ação investigatória de paternidade. Entendeu-se que o juiz sentenciante teria atuado como se autoridade policial fosse, em virtude de, no procedimento pre-liminar de investigação de paternidade, em que apurados os fatos, ter ouvido testemunhas antes de encaminhar os autos ao Ministério Público para a propositura da ação penal.

Ora, se o Supremo Tribunal Federal concluiu pela inconstitucionalidade do juiz inquisidor previsto no art. 3º da revogada Lei nº 9.034/95 (ADI n. 1.570), tendo, ademais, reconhecido a imparcialidade de magistrado que aturara de ofício como verdadeira autoridade policial em pro-cedimento preliminar de investigação de paternidade (HC 94.641/BA), outra conclusão não há senão a de que o art. 156, inciso I, do CPP, é absolutamente incompatível com o nosso sistema acusatório e com a garantia da imparcialidade.13

Em um sistema acusatório, cuja característica básica é a separação das funções de acusar, defender e julgar, não se pode permitir que o magistrado atue de ofício na fase de investigação. Essa concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, o juiz inquisidor, além de violar a imparcialidade e o devido processo legal, é absolutamente incompatível com o próprio Estado Democrático de Direito, assemelhando-se à reunião dos poderes de administrar, legislar e julgar em uma única pessoa, o ditador, nos regimes absolutistas. Trata-se, enfim, a figura do juiz-espectador em contraposição à figura inquisitória do juiz-protagonista, de verdadeiro “preço a ser pago para termos um sistema acusatório”.14 Portanto, a tarefa de recolher elementos para a propositura da ação penal deve recair sobre a Polícia Judiciária e sobre o Ministério Público, preservando-se, assim, a imparcialidade do magistrado, que só deve intervir quando estritamente necessário, e desde que seja provocado nesse sentido.

Louvável, nesse sentido, o disposto na primeira parte do art. 3º-A do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, que, após dispor que o processo penal terá estrutura acusatória, veda a iniciativa do juiz das garantias na fase de investigação. Operou-se, pois, a revogação tácita do art. 156, inciso I,

12. STF, Tribunal Pleno, ADI 1.570/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 22/10/2004.13. Em sentido um pouco diverso, sustenta Grinover que, “para uma interpretação sistemática dessa disposição, cabe

lembrar que, na redação dada ao art. 155, a Lei 11.690/2008 estabelece uma distinção entre o que é prova e aquilo que constitui elemento informativo da investigação. Ao dizer, assim, que o juiz pode determinar produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, a lei não contempla outra coisa senão a iniciativa judicial para a antecipação de atos tendentes à formação de provas – não de elementos de investigação –, diante do risco de desaparecimento ou deterioração das fontes de informação”. (As nulidades no processo penal. Op. cit. p. 124).

14. LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 190.

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS 109

do CPP, nos exatos termos do art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (“A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”).15

3.2.2. Da vedação da iniciativa probatória do juiz da instrução e julgamento no curso do pro-cesso penal

Sempre houve consenso na doutrina e na jurisprudência quanto à vedação da iniciativa acu-satória do magistrado em sede de investigação preliminar. Tal consenso jamais existiu, todavia, quando se falava desta mesma atuação ex officio do magistrado no curso do processo judicial (iniciativa probatória), tal qual previsto, aliás, no inciso II do art. 156 e em tantos outros disposi-tivos do Código de Processo Penal.

De um lado, parte da doutrina admite que, de modo subsidiário, e exclusivamente durante a fase processual da persecução penal, possa o juiz determinar a produção de provas que entender pertinentes e razoáveis, a fim de dirimir dúvidas sobre pontos relevantes, seja por força do princípio da busca da verdade, seja pela adoção do sistema da persuasão racional do juiz (convencimento motivado). Nesse caso, é imperioso o respeito ao contraditório e à garantia de motivação das decisões judiciais. A fim de dirimir eventual dúvida que tenha nascido no momento de valora-ção da prova já produzida em juízo, esta atuação deve ocorrer de modo supletivo, subsidiário, complementar, nunca desencadeante da colheita da prova. Em síntese, não se pode permitir que o magistrado se substitua às partes no tocante à produção das provas. Essa iniciativa probatória residual do magistrado pode ser exercida em crimes de ação penal pública e ação penal de iniciativa privada. Ora, se o querelante pode dispor do direito de ação, isso não significa dizer que o juiz é obrigado a reconhecer eventual pretensão deduzida quando não convencido do direito pleiteado, sem poder, antes, averiguar a verdade dos fatos que lhes são postos, mesmo em se tratando de ação penal privada.16

Para tanto, deve o magistrado atuar de maneira imparcial. Se o escopo do juiz for o de buscar provas apenas para condenar o acusado, além da violação ao sistema acusatório, haverá evidente comprometimento psicológico com a causa, subtraindo do magistrado a necessária imparcialidade, uma das mais expressivas garantias inerentes ao devido processo legal, prevista expressamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8º, nº 1).

Admitida a produção de provas ex officio no curso do processo penal, deve o magistrado assegurar que as partes possam participar da sua produção (contraditório para a prova), ou, caso isso não seja possível, garantir-lhes o direito de se manifestar sobre a prova produzida (contraditório sobre a prova). Ademais, diante do resultado da prova cuja produção foi determinada de ofício pelo magistrado, deve se franquear às partes a possibilidade de produzir uma contraprova, de modo a infirmar o novo dado probatório acrescido ao processo. Além disso, de modo a preservar sua imparcialidade, impõe-se ao magistrado o dever de motivar sua decisão, expondo a necessidade e relevância da prova cuja realização foi por ele determinada ex offício.

Na visão dessa primeira corrente, essa atuação subsidiária do juiz na produção de provas não teria o condão de comprometer sua imparcialidade. Na verdade, como destaca a doutrina, “os poderes instrutórios do juiz não são incompatíveis com a imparcialidade do julgador. Ao determinar a produção de uma prova, o juiz não sabe, de antemão, o que dela resultará e, em consequência,

15. Em sentido relativamente diverso, eis o teor do Enunciado n. 5 da Procuradoria-Geral de Justiça e da Correge-doria-Geral do Ministério Público de São Paulo: “O art. 3º-A do CPP não revogou os incisos I e II do art. 156 do mesmo diploma legal, salvo no caso do inciso I, no que tange à possibilidade de determinar, de ofício, a produção antecipada da prova na fase de investigação”.

16. Nesse contexto: BASTOS, Marcelo Lessa. Processo penal e gestão da prova: a questão da iniciativa instrutória do juiz em face do sistema acusatório e da natureza da ação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 93.

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a qual parte vai beneficiar. Por outro lado, se o juiz está na dúvida sobre um fato e sabe que a realização de uma prova poderia eliminar sua incerteza e não determina sua produção, aí sim estará sendo parcial, porque sabe que, ao final, sua abstenção irá beneficiar a parte contrária àquela a quem incumbirá o ônus daquela prova. Juiz ativo não é sinônimo de juiz parcial. É equivocado confundir neutralidade ou passividade com imparcialidade. Um juiz ativo não é parcial, mas ape-nas um juiz atento aos fins sociais do processo, e que busca exercer sua função de forma a dar ao jurisdicionado a melhor prestação jurisdicional possível”.17

Também não há qualquer incompatibilidade entre o processo penal acusatório e um juiz dotado de iniciativa probatória, que lhe permita determinar a produção de provas que se façam necessá-rias para o esclarecimento da verdade. A essência do sistema acusatório repousa na separação das funções de acusar, defender e julgar. Por mais que a ausência de poderes instrutórios do juiz seja uma característica histórica do processo acusatório, não se trata de uma característica essencial a ponto de desvirtuar o referido sistema. Consoante prevê a própria Exposição de Motivos do CPP, enquanto não estiver averiguada a matéria de acusação ou da defesa, e enquanto houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet. É por isso que se diz que no processo penal o juiz tem o dever de investigar a verdade; e a busca da verdade traduz um valor que legitima a atividade jurisdicional penal. Nessa linha, como observa Antônio Scarance Fernandes, “não se deve mesmo retirar do juiz o poder probatório, pois não há porque impedi-lo de, para seu convencimento, esclarecer alguns aspectos da prova produzida pelas partes ou a respeito de algum dado probatório vindo aos autos”.18

Essa atuação subsidiária do magistrado no tocante à produção de provas no curso do processo pode ser facilmente percebida a partir da leitura do art. 212 do CPP. De acordo com o caput do art. 212 do CPP, “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. O parágrafo único do art. 212 do CPP, por sua vez, prevê que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”. Da leitura do dispositivo em questão, cuja redação foi determinada pela Lei nº 11.690/08, percebe-se claramente que a produção probatória deve recair predominantemente sobre as partes, o que, no entanto, não significa dizer que o magistrado deva adotar um comportamento absolutamente inerte no curso do processo. Na busca de um processo justo, pode o magistrado atuar de maneira subsidiária, complementando o quanto trazido aos autos pelas partes.

Além do art. 156, inciso II, do CPP, há outros dispositivos que consagram poderes instru-tórios do juiz no curso do processo penal. A título de exemplo, o art. 127 do CPP autoriza o juiz a decretar o sequestro em qualquer fase do processo ou mesmo antes de oferecida a denúncia ou queixa. Noutro giro, segundo o art. 196 do CPP, a todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes. Por sua vez, de acordo com o art. 209, caput, o juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes. Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem (CPP, art. 209, § 1º). Por sua vez, segundo o art. 234 do CPP, se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, independentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos

17. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. Op. cit. p. 83. Em sentido seme-lhante, Marco Antônio de Barros adverte que “a imparcialidade do juiz não exclui seu poder-dever de buscar a verdade, sobretudo porque imparcialidade não se confunde com inércia e nem está limitada ao sabor de uma contrariedade ativa da partes, mas das garantias processuais de defesa. É perfeitamente possível compatibilizar a imparcialidade com a busca da verdade, bastando apenas que a função jurisdicional seja exercida com equilíbrio e em consonância com os ditames legais” (A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 122).

18. FERNANDES, Antônio Scarance. Reação defensiva à imputação. Op. cit. p. 17.

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS 111

autos, se possível. De seu turno, os arts. 241 e 242 do CPP, além de autorizarem a autoridade judiciária a realizar pessoalmente uma busca domiciliar, preveem expressamente a possibilidade de a busca ser determinada de ofício pelo magistrado. Na mesma linha, por força do art. 366 do CPP, entende-se que cabe ao Juiz da causa decidir sobre a necessidade da produção antecipada da prova testemunhal, podendo utilizar-se dessa faculdade quando a situação dos autos assim reco-mendar, especialmente por tratar-se de ato que decorre do poder geral de cautela do Magistrado.19

Esse entendimento, porém, sempre foi criticado por parte da doutrina nacional, que entendia que, independentemente do momento da persecução penal em que se encontrar o caso penal – investigação preliminar ou fase judicial –, não se pode admitir a atuação ex officio do magistrado, sob pena de violação ao sistema acusatório e, consequentemente, à imparcialidade do magistrado. Como ser humano que é, se o juiz da instrução e julgamento tomar uma decisão de ofício no tocante à produção de provas, seja em benefício da acusação, seja em favor da defesa, restará vinculado a esta decisão, e, mesmo que involuntariamente, buscará a sua manutenção, superestimando novas informações que possam confirmá-la, ao mesmo tempo em que tenderá a subestimar outras que a contrariem. Ao determinar a realização de uma prova, estará, pois, nas palavras de Giacomol-li,20 “retirando a sua toga de terceiro e vestindo a da acusação, sepultando o in dubio pro reo e a prestação da tutela jurisdicional criminal efetiva, com a observância do devido processo penal, pela contaminação da parcialidade”.

Com efeito, segundo Geraldo Prado, “a busca das provas da autoria e da existência da infração penal, pelo juiz, por mais grave que possa parecer o delito, compromete a imparcialidade daquele que vai decidir (...)”, pois, “pelo menos do ponto de vista psicológico, por mais sereno que seja o magistrado, sua inserção na mencionada atividade implicará certo grau de comprometimento com os fatos apurados, afastando-se o julgador do ponto de equilíbrio que, como garantia das partes, traduz-se no princípio do juiz imparcial”.21

Não há espaço, portanto, para a atribuição de poderes instrutórios ao juiz da instrução e julga-mento no curso do processo penal, sem que se esteja colocando em risco a sua imparcialidade, haja vista esta possível e muito provável vinculação com as decisões ex officio que ele vier a proferir a respeito da prova. Quando assim o faz, o magistrado acaba por assumir sua parcialidade para a condução do feito, mesmo que no plano do inconsciente. Absolutamente incompatíveis, portanto, tais poderes instrutórios do julgador à luz do princípio da imparcialidade.

É dentro desse contexto, leia-se, no sentido de que não existe investigador imparcial, que surge a nova redação do art. 3º-A do CPP, que dispõe que o processo penal terá estrutura acusató-ria, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Conquanto o dispositivo não seja, quanto à fase processual, tão claro quanto o é em relação à investigação, uma interpretação sistemática da Lei n. 13.964/19 como um todo nos leva a crer que, doravante, não mais será admitida qualquer iniciativa do magistrado, nem mesmo no curso do processo judicial. Não apenas por força da nova redação do art. 3º-A, in fine, do CPP, mas também pelo fato de o Pacote Anticrime ter vedado expressamente a possibilidade de decretação de qualquer medida cautelar pessoal de ofício pelo magistrado, seja durante a fase investigatória – o que já era vedado antes (Lei n. 12.403/11) –, seja durante a fase processual (CPP, arts. 282, §§2º e 4º, e 311, todos com redação dada pela Lei n. 13.964/19). Ora, se o Código

19. Nesse sentido: STF, 1ª Turma, HC 93.157/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 23/09/2008, DJe 216 13/11/2008.20. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de

São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 285.21. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de

Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 199. Ainda segundo o autor (Op. cit. p. 137), “quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador”.

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de Processo Penal veda expressamente a decretação ex officio de uma medida cautelar, inclusive no curso do processo penal, como justificar, então, a produção de provas ex officio nesta etapa da persecução penal? Enfim, se ao juiz da instrução e julgamento não é permitido se substituir à atuação probatória do órgão da acusação, deverá recair, portanto, exclusivamente sobre a acusação, o ônus de comprovar a imputação constante da peça acusatória, sem qualquer tipo de intervenção do juiz, a não ser para sanar dúvida pontual em algumas hipóteses, como, por exemplo, comple-mentando as perguntas formuladas pelas partes às testemunhas (CPP, art. 212, parágrafo único).22

Não se pode mais continuar a insistir, contra a Constituição, em manter um sistema inquisitorial porque assim o preveem os incisos I e II do art. 156 do CPP, em permanente conflito com o modelo acusatório extraído do art. 129, I, da Constituição Federal, e do próprio art. 3º-A do CPP, que, nas pala-vras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “reclama um devido processo legal e, assim, incompatível com aquele no qual o juiz é o senhor do processo, o senhor das provas e, sobretudo – como sempre se passou no Sistema Inquisitório – pode decidir antes (naturalmente raciocinando, por primário e em geral bem intencionado) e depois sair à cata da prova que justifique a decisão antes tomada”.23

Quando se confere ao juiz tamanho protagonismo no curso do processo penal, podendo buscar e produzir a prova que quiser, praticamente desonerando as partes do seu ônus probandi (CPP, art. 156, caput), o magistrado põe em risco toda aquela ideia de alheamento aos interesses em jogo inerente à imparcialidade que deve nortear sua atuação, tornando despicienda inclusive a própria existência do órgão acusatório, já que não é tão incomum que se utilize dessa iniciativa probatória supostamente em “favor da sociedade”. De mais a mais, enquanto se insistir na atribui-ção de poderes investigatórios ou instrutórios ao juiz das garantias ou da instrução e julgamento, respectivamente, estará mantida nas mãos do magistrado a gestão da prova, logo, preservado todo o sistema inquisitorial do Código de Processo Penal de 1941, em flagrante contradição com a Constituição Federal (art. 129, I) e com a própria redação do art. 3º-A do CPP.

Operou-se, pois, a revogação tácita do art. 156, inciso II, do CPP, bem como de todos os demais dispositivos constantes do Código de Processo Penal que atribuíam ao juiz da instrução e julgamento iniciativa probatória no curso do processo penal. É bem verdade que o legislador poderia ter sido mais direto e objetivo, revogando-os expressamente, de modo a privilegiar a técnica e a própria segurança jurídica. Mas tal omissão não impede que se produza uma interpretação sistemática, coerente com o próprio espírito das mudanças produzidas pela Lei n. 13.964/19 e com o sistema acusatório, que sempre repudiou veementemente esta iniciativa probatória no curso do processo judicial. É tempo, pois, de deixarmos de acreditar, ingenuamente, que o magistrado não tem sua imparcialidade con-taminada ao procurar se substituir às partes no tocante à produção de provas.

Ao fim e ao cabo, convém destacar que o art. 3º-A do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, deixou uma margem perigosa para a sobrevivência do sistema inquisitorial. Isso porque, ao vedar a iniciativa probatória do juiz no curso do processo penal, fez referência à impossibilidade de substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Ou seja, interpretando-se a contrario sensu o referido dispositivo, ter-se-ia como válida a iniciativa probatória do juiz no curso do processo penal quando o fizesse em favor da defesa. Ora, por que motivo devemos admitir que o juiz da instrução e julgamento se substitua à atuação

22. Com entendimento semelhante: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 15.

23. Op. cit. p. 9. Como observa Aury Lopes Jr. (Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentali-dade constitucional. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 164), “a principal crítica que se fez (e se faz até hoje) ao modelo acusatório é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição da imparcialidade), pois este deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado. Esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (através da inquisição) um gravíssimo erro”.

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS 113

probatória da defesa, produzindo provas de ofício, se deriva do princípio da presunção de inocência a regra de julgamento segundo a qual, diante da dúvida, outra opção não há senão a absolvição do acusado em face do in dubio pro reo? De mais a mais, tendo em conta o princípio da comunhão das provas, por força do qual a prova é comum, quem poderá garan-tir que tal prova não estaria sendo produzida ex officio pelo juiz da instrução e julgamento para prejudicar o acusado, e não o contrário? Há de se tomar cuidado, portanto, com a parte final do art. 3º-A do CPP, para que não entre em rota de colisão com a estrutura acusatória delineada por todas as inovações introduzidas pela Lei n. 13.964/19.

4. JUIZ DAS GARANTIAS

CPP

ANTES da Lei n. 13.964/19

CPP

DEPOIS da Lei n. 13.964/19

Sem correspondente. Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo con-trole da legalidade da investigação criminal e pela sal-vaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:

I – receber a comunicação imediata da prisão, nos ter-mos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal;

II – receber o auto da prisão em flagrante para o con-trole da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código;

III – zelar pela observância dos direitos do preso, po-dendo determinar que este seja conduzido à sua pre-sença, a qualquer tempo;

IV – ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;

V – decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;

VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cau-telar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegura-do, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;

VII – decidir sobre o requerimento de produção ante-cipada de provas consideradas urgentes e não repetí-veis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;

VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estan-do o investigado preso, em vista das razões apresen-tadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;

IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;

X – requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;

XI – decidir sobre os requerimentos de:

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MANUAL DE PROCESSO PENAL – Renato Brasileiro de Lima114

CPP

ANTES da Lei n. 13.964/19

CPP

DEPOIS da Lei n. 13.964/19

a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;

b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;

c) busca e apreensão domiciliar;

d) acesso a informações sigilosas;

direitos fundamentais do investigado;

XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do ofere-cimento da denúncia;

XIII – determinar a instauração de incidente de insa-nidade mental;

XIV – decidir sobre o recebimento da denúncia ou quei-xa, nos termos do art. 399 deste Código;

e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam XV – assegurar prontamente, quando se fizer neces-sário, o direito outorgado ao investigado e ao seu de-fensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;

XVI – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;

XVII – decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;

XVIII – outras matérias inerentes às atribuições defini-das no caput deste artigo.

§ 1º (VETADO).

§ 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.’

4.1. ConceitoNa dicção do art. 3º-B, caput, do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n. 13.964/19, o juiz

das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário. Consiste, pois, na outorga exclusiva, a um determinado órgão jurisdicional, da competência para o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal, o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse mesmo caso penal.

Cuida-se de verdadeira espécie de competência funcional por fase do processo,24 é dizer, a depender da fase da persecução penal em que estivermos, a competência será de um ou de

24. Para mais detalhes acerca da competência funcional (conceito, espécies, etc.), remetemos o leitor ao Título atinente à competência criminal.

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TÍTULO 2 • JUIZ DAS GARANTIAS 115

outro juiz: entre a instauração da investigação criminal e o recebimento da denúncia (ou queixa), a competência será do juiz das garantias, que ficará impedido de funcionar no processo; após o recebimento da peça acusatória e, pelo menos em tese, até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória (ou absolutória), a competência será do juiz da instrução e julgamento. Objetiva-se, assim, minimizar ao máximo as chances de contaminação subjetiva do juiz da causa, potencializando, pois, a sua imparcialidade, seguindo na contramão da sistemática até então vigente, quando a prática de qualquer ato decisório pelo juiz na fase investigatória tornava-o prevento para prosseguir no feito até o julgamento final (CPP, art. 75, parágrafo único, e art. 83).

Não se trata, o juiz das garantias, de função jurisdicional inédita no nosso ordenamento jurídico, porquanto sempre existiu, e sempre existirá, em um Estado Democrático de Direito, uma autoridade judiciária competente para a tutela dos direitos e garantias fundamentais em qualquer fase da persecução penal, inclusive na investigação preliminar.25 Porém, pelo menos até a entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, tal juiz também era livre para atuar como juiz da instru-ção e julgamento daquela mesma demanda. Ou seja, o mesmo juiz que, por exemplo, durante o inquérito policial, decretava a interceptação telefônica, a busca domiciliar e a prisão preventiva do investigado, poderia, mais adiante, atuar como juiz da instrução e julgamento daquele feito, visto que, aos olhos da redação então vigente do Código de Processo Penal, não haveria motivos para se questionar sua imparcialidade, já que tal hipótese não estava elencada dentre as causas de impedimento, suspeição e incompatibilidade dos arts. 252, 253 e 254 do CPP. Doravante, porém, o Código de Processo Penal passa a prever que este juiz das garantias que intervir na fase investigatória, deliberando, por exemplo, ao menos quanto ao recebimento da denúncia (CPP, art. 3º-B, XIV), estará impedido de funcionar no processo (CPP, art. 3º-D). Opera-se, assim, a cisão funcional entre os momentos de investigação e julgamento da persecução penal.

A inovação introduzida pela Lei n. 13.964/19 guarda relação, portanto, com o reconhecimen-to explícito, por parte da legislação processual penal, do entendimento de que não há condições mínimas de imparcialidade num processo penal que autoriza que o mesmo julgador que interveio na fase investigatória tenha competência, mais adiante, para apreciar o mérito da imputação, condenando ou absolvendo o acusado. Ou seja, diante de possíveis prejuízos causados à imparcia-lidade do magistrado decorrentes do contato que teve com os elementos informativos produzidos na investigação preliminar, e as tomadas de decisões que teve que fazer, decretando, por exemplo, medidas cautelares pessoais, o que se está a buscar com a nova figura do juiz das garantias é o seu afastamento definitivo da fase processual, preservando-se, assim, sua imparcialidade para o julgamento do feito sem quaisquer pré-julgamentos, para que possa, enfim, adentrar o julgamento do feito sem amarras que possam comprometer sua imparcialidade, deixando de ser, assim, um terceiro involuntariamente manipulado no processo.26 Trata-se, pois, de uma verdadeira espécie de blindagem da garantia da imparcialidade.27

25. Como observa Daniel Kessler de Oliveira (Op. cit. p. 191), pode-se dizer que “a expressão juiz das garantias constitui, por si só, uma redundância em termos, uma vez que a figura do juiz, no âmbito processual penal, não pode ter outro sentido ou função que não seja a de garantir a estrita observância dos direitos fundamentais do acusado”.

26. Expressão utilizada por Bernd Schünemann. Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasE-dicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=140 Acesso em: 13/01/2020 às 09:50.

27. MAYA, André Machado. Imparcialidade e processo penal: da prevenção da competência ao juiz de garantias. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 193. Em sentido semelhante: MARRAFON, Marco Aurélio. O juiz de garantias e a compreensão do processo à luz da Constituição: perspectivas desde a virada hermenêutica no Direito Brasileiro. O novo Processo Penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Luis Gustavo Grandinetti Castranho de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 145); MORAES, Maurício Zanoide de. Quem tem medo do “juiz das garantias”? Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 18, n. 213, edição especial CPP, p. 21-23, ago./2010).

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Sua introdução no processo penal permite, então, que o juiz da instrução e julgamento, não menos garantidor dos direitos fundamentais do acusado, entre no processo sem ter contra si o peso de alguma decisão anterior por ele mesmo proferida a favor (ou contra) uma das partes. De fato, se há um magistrado com competência exclusiva para a fase investigatória da persecução penal – juiz das garantias –, isso acaba por libertar o juiz da instrução e julgamento não apenas de um passivo da investigação, contaminado por elementos de informação que foram produzidos ao arrepio do contraditório e da ampla defesa, mas também de eventuais compromissos pessoais de sua parte com decisões por ele mesmo já tomadas naquele momento inicial (v.g., decretação de prisão preventiva, recebimento da denúncia, sequestro de bens, etc.).

Como resultado imediato decorrente da introdução da figura do juiz das garantias no âmbito processual penal, a regra será, doravante, a irrestrita separação entre a atividade jurisdicional exercida antes e depois do início do processo, funcionando o recebimento da peça acusatória como marco divisório entre essas duas fases da persecução penal. Objetiva-se, assim, evitar que o juiz da causa, competente para a instrução e julgamento do feito, venha a ser influenciado pelo conhecimento aprofundado dos elementos de informação produzidos na fase investigatória, ou que, mesmo antes da instrução probatória sob o crivo do contraditório judicial e da ampla defesa, já tenha aderido a uma das teses, seja da acusação ou da defesa, tornando, assim, até mesmo “dispensável o processo”,28 vez que sua decisão já estaria formada independentemente das provas produzidas pelas partes.29

Enfim, não se trata, o juiz das garantias, de mecanismo concebido com o objetivo de se criar um sistema processual em favor dos criminosos, como aqueles adeptos ao movimento da Lei e da Ordem têm apregoado, sem qualquer procedência, desde a publicação da Lei n. 13.964/19. O sistema acusatório e o juiz das garantias nunca foram e jamais serão sinônimos de impunidade. Representam, sim, um passo decisivo na direção de um processo penal democrático, capaz de realçar o papel das partes, mais consentâneo com os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, colocando o juiz numa posição de equidistância, preservando seu valor mais caro, a imparcialidade, princípio supremo do processo, fundante da própria estrutura dialética (actum trium personarum), decorrente da adoção de um sistema verdadeiramente acusatório.

4.2. (In) constitucionalidade formal e material do juiz das garantiasA introdução da figura do juiz das garantias no Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/19

deverá provocar grande discussão quanto a sua (in) constitucionalidade formal e material. Vejamos, então, os principais questionamentos acerca da controvérsia, que certamente deverá ser dirimida em breve pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento das diversas ADI’s já propostas em face da Lei n. 13.964/19 (ADI n. 6.298, ADI n. 6.299, ADI n. 6.300, ADI n. 6.305):

a) inconstitucionalidade formal em face de vício de iniciativa relativo à competência legislativa do Poder Judiciário para alterar a organização e a divisão judiciária: de um lado, há quem entenda que a Lei n. 13.964/19 estaria contaminada por uma inconstitucionalidade formal

28. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 109.

29. Como observa Alexandre Morais da Rosa (Decisão Penal: a bricolagem de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 364-366), o magistrado deve considerar todos os significantes dotados de pretensão de validade produzidos no processo, sem controle totalmente racional e sem antecipar o julgamento, sob pena de recair numa atitude inquisitória, marcada pelo “primado das hipóteses sobre os fatos”, situação típica do sistema processual inquisitório na qual apenas são considerados e relevados os significantes confirmadores da acusação, desprezando os demais. Nesses casos, forma-se, na lição de Cordero, um “quadro mental paranoico”, onde praticamente não há espaço para a defesa, porque o juiz que vai atrás da prova primeiro decide (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (prova) que justificam a decisão, que, na verdade, já estaria tomada.

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por ofensa à competência dos Tribunais para a criação de órgãos do Poder Judiciário (CF, art. 96, I, “d”; e II, “b” e “d”, e art. 110), bem como à competência dos estados para organizarem sua própria justiça e à competência dos Tribunais de Justiça para iniciarem a lei de sua organização judiciária (CF, art. 125, §1º). Ao ajuizar a ADI n. 6.298, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) aduziram que os arts. 3º-A a 3º-F do CPP, introduzidos pela Lei n. 13.964/19, por não versarem sobre “alteração de competência dos Juízos criminais existentes, mas de instituição de um novo juízo (o das Garantias) de forma imediata, sem prever a efetiva criação e instituição por meio das leis de organização judiciária no âmbito da União e dos Estados, estão violando os dispositivos da CF referidos”. Na mesma linha, por ocasião do deferimento da medida cautelar para suspender a eficácia sine die, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e de seus consectários (CPP, arts. 3º-A a 3º-F) na condição de relator das ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, o Min. Luiz Fux asseverou que “a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país. Nesse ponto, os dispositivos questionados têm natureza materialmente híbrida, sendo simulta-neamente norma geral processual e norma de organização judiciária, a reclamar a restrição do art. 96 da Constituição”.30 Com a devida vênia, não se sustenta a alegação de que, ao instituir o juiz das garantias, a Lei n. 13.964/19 estaria violando o poder de auto-organização dos Tribunais e a sua prerrogativa de propor a alteração da organização e da divisão judiciárias. A propósito, vale rememorar a distinção entre normas de organização judiciária e normas de direito proces-sual propriamente dito, nas palavras de José Frederico Marques: “(...) as leis de organização judiciária cuidam da administração da justiça e as leis de processo da atuação da justiça. (...) As leis processuais, portanto, regulamentam a ‘tutela jurisdicional’, enquanto que as de organização judiciária disciplinam a administração dos órgãos investidos da função jurisdicional”.31 Ora, fir-mada a premissa de que a norma de direito processual é aquela que afeta aspectos umbilicalmente ligados à tríade jurisdição, ação e processo, não há por que se afirmar que teria havido qualquer inconstitucionalidade nesse ponto, visto que os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, caput, 3º-E e 3º-F do CPP estão diretamente relacionados a questões atinentes ao próprio exercício da jurisdição no processo penal brasileiro. A matéria versada em tais dispositivos – criação de uma nova causa de impedimento e repartição de competências entre magistrados para as fases de investigação e de instrução processual penal (competência funcional por fase da persecução penal) – insere-se, portanto, no âmbito da competência legislativa privativa da União prevista no art. 22, inciso I, da Constituição Federal, porquanto versam sobre Direito Processual.32 Trata-se, na verdade, de uma legítima opção feita pelo Congresso Nacional no exercício de sua liberdade de conformação, que deliberou por instituir no sistema processual penal brasileiro uma nova espécie de competência funcional por fase do processo, afastando o magistrado que interveio na fase investigatória – juiz das garantias – da possibilidade de mais adiante vir a julgar o mesmo caso penal. Ora, se a própria legislação processual penal já prevê uma espécie de competência funcional por fase do processo

30. De acordo com o Min. Fux, a necessidade de dois juízes para toda e qualquer persecução penal nas milhares de varas criminais do país poderá criar uma desorganização dos serviços judiciários em efeito cascata de caráter exponencial, gerando risco de a operação da justiça criminal brasileira entrar em colapso, sobretudo se levarmos em consideração questões práticas como a ausência de magistrados em diversas comarcas, o déficit de digitali-zação dos processos ou de conexão adequada de internet em vários Estados, as dificuldades de deslocamento de juízes e servidores entre comarcas que dispõem de apenas um magistrado, entre outras.

31. Organização judiciária e processo. Revista de Direito Processual Civil. Vol. 1. Ano 1. Jan. a Jun. de 1960. São Paulo: Saraiva. p. 20-21.

32. Conforme consignado pelo Min. Luiz Fux no julgamento da ADI n. 4.414 (STF, Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 31/05/2012, DJe 114 14/06/2013), a cisão funcional de competência não se insere na esfera legislativa dos estados-membros, sendo matéria de direito processual penal, de competência privativa da União (art. 22, I, da CF/88). Em sentido semelhante: STF, Pleno, ADI 3.711, Rel. Min. Luiz Fux, j. 05/08/2015, DJe 24/08/2015.

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no âmbito do Júri com dois magistrados diversos exclusivamente na fase judicial da persecução penal – juiz sumariante no iudicium accusationis e juiz-presidente no iudicium causae –, por que não se admitir semelhante divisão funcional, porém entre a fase investigatória e judicial do pro-cesso penal? Enfim, se o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do art. 33 da Lei Maria da Penha,33 que determina expressamente que varas criminais poderão cumular as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher enquanto não estruturadas as respectivas varas especializadas, algo que, a nosso juízo, claramente representa matéria relacionada à auto-organização do Poder Judiciário, seria ilógico apontar a existência de tal vício no caso do juiz das garantias;34

b) inconstitucionalidade material em razão de violação à regra de autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário (CF, art. 99, caput), em razão da ausência de prévia dotação orçamentária para a implementação das alterações organizacionais acarretadas pela Lei (CF, art. 169, §1º), e em razão da violação do novo regime fiscal da União instituí-do pela Emenda Constitucional n. 95 (ADCT, arts. 104 e 113): ao suspender a eficácia dos arts. 3º-A a 3º-F do CPP (ADI n. 6.299 MC/DF, j. 22/01/2020), o Min. Luiz Fux concluiu que os dispositivos que instituíram o juiz das garantias violaram diretamente os arts. 169 e 99 da Cons-tituição Federal, na medida em que o primeiro deles exige prévia dotação orçamentária para a realização de despesas por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal, enquanto o segundo garante autonomia orçamentária ao Judiciário. Nas palavras do Eminente Ministro, “é inegável que a implementação do juízo das garantias causa impacto orçamentário de grande monta ao Poder Judiciário, especialmente com os deslocamentos funcionais de magistrados, os necessários incrementos dos sistemas processuais e das soluções de tecnologia de informação correlatas, as reestruturações e as redistribuições de recurso humanos e materiais, entre outras possibilidades. Todas essas mudanças implicam despesas que não se encontram especificadas nas leis orçamen-tárias anuais da União e dos Estados”. A criação do juiz das garantias também violaria o Novo Regime Fiscal da União, instituído pela Emenda Constitucional n. 95/2016. O art. 113 do ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado pela referida Emenda, determina que “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”. Logo, como não há notícia de que a discussão legislativa por ocasião da tramitação do Projeto de Lei que deu origem ao juiz das garantias tenha observado esse requisito constitucional, também seria de rigor, por tal motivo, o reconhecimento de sua inconstitucionalidade material. Pedindo vênia, mais uma vez, ao Min. Fux, somos levados a acreditar que a Lei n. 13.964/19 não criou nenhuma atividade nova dentro da estrutura do Poder Judiciário. Com efeito, o controle da legalidade da investigação criminal e a salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Judiciário sempre foram atividades realizadas pelos juízes criminais Brasil afora. O que será necessário, portanto, é apenas redistribuir o trabalho que antes competia ao mesmo magistrado, seja através da especialização de varas, seja através da criação de núcleos de inquéritos. É dizer, haverá necessidade de uma mera adequação da estrutura judiciária já existente em todo o país para que as funções de juiz das garantias e juiz da instrução e julgamento não mais recaiam sobre a mesma pessoa, dando-se efetividade à norma de impedimento constante do caput do art. 3º-D do CPP. Não há, pois, criação de órgãos novos, competências novas. O que há é uma mera divisão

33. Lei n. 11.340/06. “Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decor-rentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente”.

34. No julgamento da ADC 19/DF (Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 09/02/2012, Dje 80 28/04/2014), o Supremo entendeu que o art. 33 da Lei n. 11.340/06 não implica usurpação da competência normativa dos estados quanto à própria organização judiciária.

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funcional de competências criminais já existentes. Logo, não há falar em violação às regras cons-titucionais anteriormente citadas;

c) inconstitucionalidade formal do art. 3º-D do CPP, introduzido pela Lei n. 13.964/19, em face de vício de iniciativa relativo à competência legislativa do Poder Judiciário para alterar a organização e a divisão judiciária: de acordo com o referido dispositivo, “nas comar-cas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo”. Como se pode notar, o dispositivo sob comento não dispõe propriamente sobre processo penal, ingressando em questão de organização judiciá-ria, vez que determina que se adote um sistema de rodízio de magistrados como mecanismo de efetivação do juiz das garantias. Ora, ao determinar a forma pela qual deverá ser implementado o juiz das garantias nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, é de todo evidente que o art. 3º-D, parágrafo único, do CPP, cria uma obrigação aos tribunais no que tange a sua forma de organização, violando, assim, o poder de auto-organização desses órgãos (CF, art. 96) e usurpando sua iniciativa para dispor sobre organização judiciária (CF, art. 125, §1º). Prova disso, aliás, é a própria redação do art. 3º-E do CPP, o qual, em fiel observância à Constituição Federal, dispõe que “o juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal”. Como se pode notar, diversamente do parágrafo único do art. 3º-D, o art. 3º-E, também do CPP, vem ao encontro da autonomia dos tribunais, respeitando, ademais, as peculiaridades de cada estado da federação.

4.3. Distinção entre o juiz das garantias, juizado de instrução e “centrais de inquérito” (v.g., DIPO/SP)

Conquanto muitos insistam em realizar tal comparação, a figura do juiz das garantias, tal qual regulamentado pelos arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F do CPP, não se confunde com o chamado Juizado de Instrução. Na verdade, o modelo brasileiro se assemelha muito mais ao Giudice per Le indagini preliminari do sistema italiano. Como observa Daniel Kessler Oliveira,35 tanto no modelo italiano como no brasileiro, “a atuação do juiz de garantias é ocasional, sem funções de instrução, limitada ao controle da legalidade e à garantia dos direitos fundamentais”. Como deixa bem claro o art. 3º-A do CPP, ao nosso juiz das garantias é vedada qualquer iniciativa na fase de investigação, estando sua atuação limitada, portanto, a autorizar pedidos de medidas invasivas a direitos e garantias fundamentais que estejam subordinados à prévia autorização judicial, apar-tando-se, pois, por completo de um juiz investigador. É ele, portanto, o guardião das regras do jogo, e não o senhor da investigação preliminar.

Difere, pois, do denominado juizado de instrução, adotado em diversos países, e que consiste, grosso modo, na existência de um julgador que representa a máxima autoridade, sendo responsável pelo impulso e direção oficial. Na condição de responsável pelo desenvolvimento da instrução preliminar, este juiz instrutor assume um papel de protagonismo, detendo amplos poderes para realizar as investigações e diligências que reputar necessário para trazer aos autos elementos de informação que permitam ao titular da ação penal oferecer uma acusação e a ele decidir, numa fase intermediária, sobre a admissão ou não da peça acusatória.36

35. Nessa linha: OLIVEIRA, Daniel Kessler. A atuação do julgador no processo penal constitucional: o juiz de garantias como um redutor de danos da fase de investigação preliminar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 166.

36. OLIVEIRA, Daniel Kessler. Op. cit. p. 165. Na mesma linha: SÁ, Priscila Placha. Juiz de garantias: breves con-siderações sobre o modelo proposto no Projeto de Lei do Senado 156/2009. O novo Processo Penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Luis Gustavo Grandinetti Castranho de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 163.

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O juiz das garantias, introduzido pela Lei n. 13.964/19 no Código de Processo Penal, tam-bém não se confunde com as chamadas “Centrais de Inquérito”,37 a exemplo do Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), em funcionamento na capital paulista há décadas, o qual, concentra “todos os atos relativos aos inquéritos policiais e seus incidentes, bem como os pedidos de habeas corpus” (Provimento n. 167/1984, art. 2º).

Ao contrário do magistrado integrante do DIPO/TJSP, o juiz das garantias estabelecido pela Lei n. 13.964/19: a) fica impedido de atuar nas demais fases da persecução penal; b) também é competente para decidir sobre o recebimento (ou não) da denúncia (ou queixa). Quanto à pri-meira distinção, convém destacar que a norma que instituiu o DIPO/TJSP no âmbito do Estado de São Paulo – Lei Complementar Estadual n. 2.208/2013 – não estabeleceu o impedimento do magistrado integrante desse órgão nas demais etapas da persecução penal. Logo, pelo menos em tese, é possível que o magistrado que atuou em determinado inquérito como membro do DIPO/TJSP venha a atuar também na fase processual da persecução penal, em hipóteses de promoção ou remoção. Em sentido diverso, o juiz das garantias criado pela Lei n. 13.964/19 fica impedido de atuar nas demais fases do processo judicial (CPP, art. 3º-D). Não há, portanto, no âmbito do DIPO/TJSP, a separação integral entre o magistrado responsável pela fase pré-processual e o magistrado responsável pela instrução e julgamento, sendo inaplicável a mesma lógica referente ao juiz das garantias. Por conseguinte, revela-se inadequado denominar a figura criada pelo Poder Judiciário Paulista de juiz das garantias.

4.4. Fundamento: a necessária preservação da imparcialidade do magistrado à luz da teoria da dissonância cognitiva

De modo a evitar que uma parte seja beneficiada em detrimento da outra, ainda que invo-luntariamente, o magistrado só pode atuar de maneira imparcial, conduzindo o processo como um terceiro desinteressado em relação às partes, comprometendo-se a apreciar na totalidade am-bas as versões apresentadas sobre os fatos em apuração, proporcionando sempre igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos. Este alheamento do julgador aos interesses em jogo funciona como princípio supremo do processo, marca do sistema processual acusatório, enfim, como verdadeira garantia fundamental orientada à concretização de um processo penal justo e ético. A imparcialidade requer do magistrado, portanto, uma postura de equidistância em relação às partes, a exigir que assuma uma posição para além dos interesses delas, o que, em tese, per-mitirá uma atuação jurisdicional objetiva, desapaixonada, na qual não deverá favorecer, seja por interesse ou simpatia, seja por ódio ou antipatia, a nenhuma das partes. Em outras palavras, é o desinteresse subjetivo no resultado do processo o que caracteriza o ser imparcial. Ser imparcial, nas palavras de Giacomolli, “não significa ignorar as pretensões das partes, suas perspectivas e expectativas, mas outorgar confiança e segurança de um julgamento na qualidade de terceiro e não de parte, bem como evitar que seja proferido um julgamento com dúvida razoável acerca da parcialidade do julgador”.38

Por mais que a Constituição Federal não diga, expressamente, que toda pessoa acusada de um delito tem direito de ser julgada por um juiz imparcial, como o faz, por exemplo, a Convenção

37. Relatório do Conselho Nacional de Justiça acerca da estrutura e da localização das unidades judiciárias com com-petência criminal identificou 07 (sete) tribunais de justiça com centrais ou departamentos de inquéritos policiais, dentre os quais se inclui o do Estado de São Paulo: a) Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (capital + 22 no interior); b) Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (capital); c) Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (São Luís e Imperatriz); d) Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (capital); e) Tribunal de Justiça do Estado do Pará (capital); f) Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (capital); g) Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (capital).

38. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 280.