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Repensando a matemática Preparo docente precisa tornar-se elemento de compreensão do mundo • CLARA GENI BERLIM Psicopedagoga. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia. Coordenadora Educacional do Colégio Israelita Brasileiro. Porto Alegre/RS. A matemática tem sido, desde muito tempo, classificada como uma atividade especial que somen- te pode ser aprendida na escola. Tem uma função socialmente definida como algo que exige muita qualificação e só pode ser compre- endida por especialistas. Este artigo pretende refletir sobre es- tas premissas e introduzir no debate o conceito de numeralização e, para isto, serão utilizadas as idéias de Nunes e Bryant. A aura que encobre a matemá- tica faz com que as pessoas que pensam situações relacionadas a ela de forma diferente daquela ensinada na escola concluam que não estão fazendo matemática. Os autores apresentam uma pesquisa realizada na Inglaterra, com jogadores de dardos, onde um dos membros da equipe dizia-se ruim em matemática, apesar das regras do jogo exigirem uma sé- rie de cálculos e planejamento atento das jogadas. Este jogador elaborou estratégias próprias para resolver as questões do jogo e estendeu-as para sua vida pessoal. Assim, quando tinha que realizar algum cálculo de multiplicação, usava como referencial os ele- mentos do jogo de dardos, ressal- tando que fazia desta forma por- que não sabia multiplicar. Este jogador não sabe ou não usa os mesmos mecanismos na escola? Por que as pessoas con- sideram que os procedimentos espontaneamente desenvolvidos não se referem à matemática? Tais idéias estão fortemente arraigadas na nossa cultura pois, na escola, aprende-se alguns con- ceitos e estratégias da matemáti- ca e acaba-se negando outros, que não são ensinados lá. É preciso romper com a idéia de que aquilo que é aprendido na academia pode ser aplicável em toda a parte e o que é produzido na prática, fruto de estratégias e pensamentos pessoais, se refere a uma situação específica que não pode ser generalizada. Os autores fazem também re- ferência a outras pesquisas, pro- curando estabelecer a relação en- tre o contexto da aprendizagem e a forma de matemática aprendida. Como ponto de partida, usaram um fenômeno que era um enig- ma: altas taxas de reprovação de crianças brasileiras de classes operárias, principalmente em matemática. Destaco aquela realizada com meninos de rua do Recife, que não se saíram bem na escola, mas es- tavam no mercado de trabalho in- formal, vendendo produtos varia- dos nas esquinas. Tais meninos utilizaram métodos orais na solu- ção de problemas cotidianos de matemática. Porém, quando se defrontaram com problemas se- melhantes apresentados por es- crito, do jeito escolar, demonstra- ram muita dificuldade para resol- vê-los, procurando utilizar pro- cessos de cálculo de uma forma geral, sem a preocupação com as regras formais (algoritmos). Ao serem encorajados a usar formas para solucionar os proble- mas, encontravam a resposta cor- reta e sabiam disto, porém diziam que tais estratégias não estavam realmente certas porque não ha- viam sido aprendidas na escola. Alguns professores, entrevis- tados nestas pesquisas, desqualifi- caram esta modalidade mais pes- soal de resolver os problemas matemáticos, dizendo que as cri- anças estavam na escola para aprender matemática escolar, que

repensando a matematica

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Repensando a matemáticaPreparo docente precisa tornar-se elemento de compreensão do mundo

•CLARA GENI BERLIMPsicopedagoga.Vice-Presidente da Associação Brasileirade Psicopedagogia.Coordenadora Educacional do ColégioIsraelita Brasileiro. Porto Alegre/RS.

A matemática tem sido, desdemuito tempo, classificada comouma atividade especial que somen-te pode ser aprendida na escola.Tem uma função socialmentedefinida como algo que exige muitaqualificação e só pode ser compre-endida por especialistas. Esteartigo pretende refletir sobre es-tas premissas e introduzir no debateo conceito de numeralização e,para isto, serão utilizadas as idéiasde Nunes e Bryant.

A aura que encobre a matemá-tica faz com que as pessoas quepensam situações relacionadas aela de forma diferente daquelaensinada na escola concluam quenão estão fazendo matemática.

Os autores apresentam umapesquisa realizada na Inglaterra,com jogadores de dardos, onde umdos membros da equipe dizia-seruim em matemática, apesar dasregras do jogo exigirem uma sé-rie de cálculos e planejamentoatento das jogadas. Este jogadorelaborou estratégias próprias pararesolver as questões do jogo eestendeu-as para sua vida pessoal.Assim, quando tinha que realizaralgum cálculo de multiplicação,usava como referencial os ele-mentos do jogo de dardos, ressal-tando que fazia desta forma por-que não sabia multiplicar.

Este jogador não sabe ou nãousa os mesmos mecanismos naescola? Por que as pessoas con-sideram que os procedimentosespontaneamente desenvolvidosnão se referem à matemática?

Tais idéias estão fortementearraigadas na nossa cultura pois,na escola, aprende-se alguns con-ceitos e estratégias da matemáti-ca e acaba-se negando outros, quenão são ensinados lá.

É preciso romper com a idéiade que aquilo que é aprendido naacademia pode ser aplicável emtoda a parte e o que é produzidona prática, fruto de estratégias epensamentos pessoais, se referea uma situação específica que nãopode ser generalizada.

Os autores fazem também re-ferência a outras pesquisas, pro-curando estabelecer a relação en-tre o contexto da aprendizagem ea forma de matemática aprendida.Como ponto de partida, usaramum fenômeno que era um enig-ma: altas taxas de reprovação decrianças brasileiras de classesoperárias, principalmente emmatemática.

Destaco aquela realizada commeninos de rua do Recife, que nãose saíram bem na escola, mas es-

tavam no mercado de trabalho in-formal, vendendo produtos varia-dos nas esquinas. Tais meninosutilizaram métodos orais na solu-ção de problemas cotidianos dematemática. Porém, quando sedefrontaram com problemas se-melhantes apresentados por es-crito, do jeito escolar, demonstra-ram muita dificuldade para resol-vê-los, procurando utilizar pro-cessos de cálculo de uma formageral, sem a preocupação com asregras formais (algoritmos).

Ao serem encorajados a usarformas para solucionar os proble-mas, encontravam a resposta cor-reta e sabiam disto, porém diziamque tais estratégias não estavamrealmente certas porque não ha-viam sido aprendidas na escola.

Alguns professores, entrevis-tados nestas pesquisas, desqualifi-caram esta modalidade mais pes-soal de resolver os problemasmatemáticos, dizendo que as cri-anças estavam na escola paraaprender matemática escolar, que

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esta era a única forma adequada defazer matemática.

Refletir sobre tais pesquisasnos levará a encontrar, na escola,novas propostas que favoreçamas aprendizagens, reconhecen-do e respeitando os processosindividuais.

Neste sentido, também é pre-ciso ampliar a discussão sobre afunção da matemática. Além dematéria escolar, ela é também par-te importante do cotidiano das cri-anças e elemento significativo paraa sua compreensão de mundo.

Surge então um novo concei-to: o da numeralização que, assimcomo a alfabetização, ocorre nocontexto de todas as disciplinasescolares e fora delas.

Ser numeralizado não é omesmo que saber calcular... É sercapaz de pensar sobre e discutirrelações numéricas e espaciais,utilizando convenções da nossaprópria cultura.

Ser numeralizado significapensar matematicamente sobresituações e, para tal, é preciso es-tar familiarizado com os números,ter a habilidade de compreenderas informações que são apresen-tadas em termos matemáticos eusá-las como meio de comunica-ção. Por exemplo: poder compre-ender uma tabela com os resulta-dos de uma pesquisa sobre as elei-ções municipais ou sobre a inci-dência de acidentes em determi-nados locais da cidade, assimcomo perceber a diferença dos va-lores de compra de um equipa-mento para pagamento à vista oua prazo.

Estar atento às alternativasque os alunos encontram para so-lucionar os problemas matemáti-cos escolares e da vida diária écompreender seus processos depensamento. Além disso, pensar éconstruir opções, criar novosrecursos, novas hipóteses e poderestender esta aprendizagem para

a vida cotidiana.Percebemos a educação in-

fantil como um espaço privile-giado de trabalho com conteúdosmatemáticos. Propostas que per-mitam à criança experimentar eexpressar, em diferentes lingua-gens, as suas descobertas certa-mente favorecerão a ampliaçãodas suas concepções. Sempre quea criança for colocada como su-jeito ativo do processo, suas hi-póteses, combinadas com as in-formações do meio, vão promo-ver a descoberta e a construção deconhecimentos.

Seber destaca que questionar,sugerir novos exemplos ou con-tra-argumentar conduz a criança adescrever, interpretar e explicarsuas ações, expondo sua opiniãoem relação a outros pontos de vis-ta. Assim, qualquer resposta, quan-do espontaneamente dada, tem umvalor construtivo. Os erros, nestaperspectiva, constituem a mani-festação da busca em direção auma forma superior de conheci-mento e, uma vez superados,transformam-se em conquistasreais.

Um processo significativo deensino-aprendizagem deve lançardesafios, provocar o interesse dosalunos, ativar seus esquemas depensamento. Reconhecer a baga-gem cultural que a criança traz eautorizá-la a percorrer uma cami-nhada pessoal na busca de solu-ções dos problemas matemáticosé compreender que pensar é tãoou mais importante que encontrara resposta certa. Há uma grandediferença entre aprender uma res-posta específica para uma deter-minada situação e construir me-canismos de solução que abremnovas perspectivas para outrosresultados.

A sala de aula deve ser umlugar para pensar os problemas esuas diferentes estratégias de re-solução, com contribuições cria-

tivas por parte dos alunos e nãoum espaço onde os conceitos de-vam ser aprendidos e utilizadosmecanicamente.

A distância significativa entreo que é ensinado na escola e o queé aprendido na vida cotidiana gerauma séria crise de competência eacaba expulsando crianças eadolescentes da escola. Precisa-mos encontrar um equilíbrio en-tre a aritmética escolar e a de rua,sem supervalorizar uma em detri-mento da outra.

É preciso reconhecer as ha-bilidades de raciocínio da criançae ajudá-la a desenvolvê-las na es-cola. O professor deve utilizar suaexperiência como aluno, sua for-mação e a análise reflexiva de suaatuação como instrumento decompreensão, planejamento eavaliação.

A matemática que as criançasaprendem na escola deve lhes daracesso a novos meios de pensar enão simplesmente a uma lista deprocedimentos, levando-as a umaflexibilidade de pensamento, tãonecessária neste mundo dinâmicoem que vivemos.

A partir do que está sendoposto, os professores podem re-pensar sua visão acadêmica damatemática, aproveitar todos oscontextos para trabalhar o pensa-mento matemático, percebendonos alunos suas estratégias indi-viduais de solução.

BIBLIOGRAFIA

DEVRIES, R; ZAN, B. A ética na educaçãoinfantil: o ambiente sócio-moral na escola.Porto Alegre : Artes Médicas, 1998.

KRAMER, S. (org.) Com a pré-escola nasmãos: uma alternativa curricular para a edu-cação infantil. 6.ed. São Paulo : Ática, 1993.

NUNES, T.; BRYANT, P. Crianças fazendomatemática. Porto Alegre : Artes Médicas,1999.

SEBER, M. G. Construção da inteligência pelacriança: atividades do período pré-operató-rio. 3.ed. São Paulo : Scipione, 1993.