REPENSANDO o Estado Novo.pdf

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    REFERNCIA BIBLIOGRFICA:

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    REPENSANDO o Estado Novo. Organizadora: Dulce Pandolfi. Rio de Janeiro: Ed. Fundao Getulio Vargas, 1999. 345 p.

  • Sumrio

    9 ApresentaoDulce Pandolfi

    P A R T E I

    15 O legado institucional

    CAP TU LO 1

    17 O Estado Novo no contexto internacionalBoris Fausto

    CAP TU LO 2

    21 Engenharia institucional e polticas pblicas: dos conselhos tcnicos s cmaras setoriaisEli Diniz

    CAP TU LO 3

    39 Do federalismo oligrquico ao federalismo democrticoAspsia Camargo

    P A R T E I I

    51 Trabalho, previdncia e sindicalismo Vargas e os trabalhadoresdo Brasil

    CAP TU LO 4

    53 Ideologia e trabalho no Estado NovoAngela de Castro Gomes

  • 6 R E P E N S A N D O O E S T A D O N O V O

    CAP TU LO 5

    73 O que h de novo? Polticas de sade pblica e previdncia, 1937-45Gilberto Hochman e Cristina M. O. Fonseca

    CAP TU LO 6

    95 Justia do Trabalho: produto do Estado NovoArion Sayo Romita

    P A R T E I I I

    113 Indstria, bancos e seguros

    CAP TU LO 7

    115 Estratgias de ao empresarial em conjunturas de mudana polticaMaria Antonieta P. Leopoldi

    P A R T E I V

    135 Intelectuais, cultura e educao

    CAP TU LO 8

    137 Trs decretos e um ministrio: a propsito da educao no Estado NovoHelena M. B. Bomeny

    CAP TU LO 9

    167 Propaganda poltica e controle dos meios de comunicaoMaria Helena Capelato

    CAP TU LO 10

    179 Modernistas, arquitetura e patrimnioLauro Cavalcanti

    CAP TU LO 11

    191 A poltica culturalSrgio Miceli

  • G I L B E R T O H O C H M A N E C R I S T I N A F O N S E C A 7

    P A R T E V

    197 Imigrao e minorias tnicas

    CAP TU LO 12

    199 Os imigrantes e a campanha de nacionalizao do Estado NovoGiralda Seyferth

    CAP TU LO 13

    229 Qual anti-semitismo? Relativizando a questo judaica no Brasil dos anos 30Marcos Chor Maio

    CAP TU LO 14

    257 Sua alma em sua palma: identificando a raa e inventando a naoOlvia Maria Gomes da Cunha

    P A R T E V I

    289 Militares, polcia e represso

    CAP TU LO 15

    291 A doutrina Gis: sntese do pensamento militar no Estado NovoSrgio Murillo Pinto

    CAP TU LO 16

    309 Ao e represso policial num circuito integrado internacionalmenteElizabeth Cancelli

    CAP TU LO 17

    327 O Estado Novo, o Dops e a ideologia da segurana nacionalMaria Luiza Tucci Carneiro

    CAP TU LO 18

    341 Vargas e os militaresJos Murilo de Carvalho

  • Apresentao

    Poucas fases da histria do Brasil produziram um legado to extenso eduradouro como o Estado Novo. Em funo das transformaes ocorridas nopas, o perodo tornou-se referncia obrigatria quando se trata de refletir so-bre estruturas, atores e instituies presentes no Brasil de hoje.

    Na realidade, durante o Estado Novo o regime autoritrio implan-tado com o golpe de novembro de 1937 , Getlio Vargas consolidou pro-postas em pauta desde outubro de 1930, quando, pelas armas, assumiu a pre-sidncia da Repblica. Como da Revoluo de 30 haviam participado foraspolticas bastante diversificadas, distintas eram as vises a respeito da condu-o do processo revolucionrio. Enquanto uns defendiam medidas mais cen-tralizadoras e autoritrias, insistindo na necessidade de um regime forte eapartidrio, outros pregavam medidas mais liberais e lutavam por maior au-tonomia regional. Por isso, entre a revoluo e o golpe, as disputas foram in-tensas. Ao longo desse tumultuado percurso, segmentos importantes das eli-tes civis e militares foram sendo alijados do poder. Em 1932, So Paulo, emarmas, rebelou-se contra o governo central, exigindo o fim do regime ditato-rial. Derrotados militarmente, os paulistas tiveram ganhos polticos. Em junhode 1934, parlamentares escolhidos pelo voto direto promulgaram uma Cons-tituio e elegeram o ento chefe do governo provisrio Getlio Vargas para a presidncia da Repblica. Grosso modo, a nova carta representava umavitria de setores mais liberais. Ao mesmo tempo em que assegurava o pre-domnio do Legislativo e ampliava a capacidade intervencionista do Estado,buscava evitar que essa ampliao do poder intervencionista do Estado fosseconfundida com um aumento do poder do presidente da Repblica. Deacordo com as regras do jogo, o mandato presidencial teria a durao de qua-tro anos, no sendo possvel a reeleio. Ou seja, em 1938, Getlio Vargas te-ria que sair da presidncia.

    Com a instalao de um governo constitucional, o clima poltico dopas radicalizou-se. Dois importantes movimentos de massas, com conotaesideolgicas bem distintas, mobilizaram a populao: a Ao Integralista Bra-

  • 10 R E P E N S A N D O O E S T A D O N O V O

    sileira (AIB), nacionalista e antiliberal, e a Aliana Nacional Libertadora (ANL),nitidamente de oposio a Vargas e que congregava socialistas, comunistas,catlicos e nacionalistas. Em novembro de 1935, levantes comunistas eclodi-ram em Natal, Recife e Rio de Janeiro. As revoltas foram debeladas rapida-mente, mas o perigo comunista passou a ser utilizado como justificativapara o governo intensificar e aprimorar mecanismos de represso e de con-trole da sociedade. Abrindo mo de suas prerrogativas, o Legislativo aprovoumedidas que implicaram o fortalecimento do Executivo e que conduziram aum gradativo fechamento do regime. A escalada repressiva iniciada em 1935teve como desfecho o golpe de 10 de novembro de 1937, que deu origem aoEstado Novo. Naquele dia, alegando que a Constituio promulgada em 1934estava antedatada em relao ao esprito do tempo, Vargas apresentou Nao nova carta constitucional, baseada na centralizao poltica, no inter-vencionismo estatal e num modelo antiliberal de organizao da sociedade.No mesmo perodo, experincias semelhantes estavam em curso na Europa:Hitler estava no poder na Alemanha, Mussolini na Itlia e Salazar em Portu-gal. Alis, desde o final da I Guerra Mundial, o modelo liberal clssico de or-ganizao da sociedade vinha sendo questionado em detrimento de concep-es totalitrias, autoritrias, nacionalistas, estatizantes e corporativistas.

    Com a implantao do Estado Novo, Vargas cercou-se de poderes ex-cepcionais. As liberdades civis foram suspensas, o Parlamento dissolvido, ospartidos polticos extintos. O comunismo transformou-se no inimigo pbliconmero um do regime, e a represso policial instalou-se por toda parte. Mas,ao lado da violenta represso, o regime adotou uma srie de medidas queiriam provocar modificaes substantivas no pas. O Brasil, at ento, basica-mente agrrio e exportador, foi-se transformando numa nao urbana e in-dustrial. Promotor da industrializao e interventor nas diversas esferas davida social, o Estado voltou-se para a consolidao de uma indstria de basee passou a ser o agente fundamental da modernizao econmica. O investi-mento em atividades estratgicas, percebido como forma de garantir a sobe-rania do pas, tornou-se questo de segurana nacional. Fiadoras do regimeditatorial, as Foras Armadas se fortaleceram, pois, alm de guardis da or-dem interna, passaram a ser um dos principais suportes do processo de in-dustrializao. Com medidas centralizadoras, Vargas procurou diminuir a au-tonomia dos estados, exercendo assim maior controle sobre as tradicionaisoligarquias regionais. Buscando forjar um forte sentimento de identidade na-cional, condio essencial para o fortalecimento do Estado nacional, o regimeinvestiu na cultura e na educao. A preocupao com a construo de umanova idia de nacionalidade atraiu para o projeto estado-novista um gruposignificativo de intelectuais. Na rea social, o Estado Novo elaborou leis es-pecficas e implantou uma estrutura corporativista, atrelando os sindicatos esfera estatal. Aboliu a pluralidade sindical e criou o imposto sindical, con-tribuio anual obrigatria, paga por todo empregado, sindicalizado ou no.

  • D U L C E P A N D O L F I 11

    O salrio mnimo foi institucionalizado. Para mediar as relaes entre patroe empregado, o governo regulamentou a Justia do Trabalho. Atravs da Con-solidao das Leis do Trabalho (CLT), sistematizou a legislao trabalhista.Em nome da valorizao do trabalhador nacional, o Estado Novo adotou umapoltica de restrio imigrao. Atravs do Departamento de Imprensa ePropaganda (DIP), que, alm de exercer a censura sobre todos os meios decomunicao, investia maciamente na propaganda do regime, Getlio Vargasconseguia reforar sua imagem de protetor da classe trabalhadora.

    No entanto, a partir de 1942 teve incio o processo de desarticulao doEstado Novo. Certamente o envolvimento do Brasil na II Guerra Mundial,aliando-se por razes de ordem econmica aos Estados Unidos e rompendocom a Alemanha nazista, contribuiu para o enfraquecimento do regime. Comojustificar a manuteno da ditadura, se soldados brasileiros lutavam na Eu-ropa em prol da democracia? Em novembro de 1945, Getlio foi deposto dapresidncia da Repblica. Extinto, o Estado Novo deixava uma forte heranahistrica e matria-prima para pesquisa e reflexo nas dcadas seguintes.

    Analisar esse perodo em todas as suas dimenses significa apreenderparadoxos e afastar tentaes maniquestas. Afinal, a despeito da ausncia dosdireitos polticos e da precariedade das liberdades civis, o regime ditatorialconsolidou a idia do Estado como agente fundamental do desenvolvimentoeconmico e do bem-estar social. Se a poltica trabalhista de Vargas perma-neceu praticamente intacta at os dias de hoje, se a discusso sobre o formatodo Estado e a reforma da previdncia social so temas que continuam mobi-lizando a sociedade, no se pode negar que o Estado Novo contribuiu para re-forar a fragilidade de nossas instituies poltico-partidrias, para produzirum descaso pelos direitos civis e polticos e para disseminar a ideologia doanticomunismo. A crena na dicotomia entre democracia social e democraciapoltica, na supremacia do Executivo sobre o Legislativo e da tcnica sobre apoltica so algumas das heranas do Estado Novo que comprometem athoje a consolidao da nossa democracia.

    Questes como essas motivaram o Centro de Pesquisa e Documentaode Histria Contempornea do Brasil da Fundao Getulio Vargas (CPDOC/FGV), em parceria com o Departamento de Cincia Poltica da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ), os departamentos de Histria e de CinciaPoltica da Universidade Federal Fluminense (UFF), a Casa de Oswaldo Cruzda Fundao Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e o Ncleo de Estudos Estratgicosda Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a organizar o seminrioEstado Novo: 60 anos, realizado no Rio de Janeiro, entre os dias 3 e 6 de no-vembro de 1997. A proposta era registrar a passagem dos 60 anos do inciodo Estado Novo com uma reflexo multidisciplinar que ajudasse a compreen-der os debates sobre as reformas em curso no pas. Assim, historiadores, an-troplogos, socilogos, cientistas polticos, economistas e juristas reuniram-separa analisar o Estado Novo luz no s de suas inovaes e permanncias

  • 12 R E P E N S A N D O O E S T A D O N O V O

    em relao ao passado, mas sobretudo de suas rupturas e continuidades emrelao ao Brasil de hoje.

    Neste livro, resultante do seminrio, o leitor entrar em contato comdimenses diversas do Estado Novo. Os personagens, as instituies, as ques-tes e as abordagens aqui presentes so os mais variados. O volume se com-pe de 18 captulos, agrupados em seis partes. Cabe ressaltar que alguns tex-tos so transcries das exposies feitas no seminrio, enquanto outros, agrande maioria, so verses mais elaboradas, embora mantenham o contedodo que foi ali exposto.

    A coletnea inaugurada por Boris Fausto, que tece consideraes so-bre os aspectos do contexto internacional que contriburam para a montagemdo Estado Novo e sobre as doutrinas de diferentes matizes que emergiram noBrasil na dcada de 20. Em seguida, Eli Diniz arrola as principais mudanasde natureza poltico-institucional vividas pelo pas no ps-30. As transforma-es ocorridas dentro do Estado e em sua relao com a sociedade possibili-taram a institucionalizao de uma estrutura corporativa, vertical e hierarqui-zada, abrindo espao representao de interesses dos novos atores ligados ordem industrial emergente. Entretanto, segundo a autora, ao incluir os em-presrios industriais e excluir os trabalhadores urbanos do acesso aos ncleosdecisrios de poder, o novo sistema consagrou a assimetria e consolidou umcorporativismo setorial bipartite, criando, em torno de polticas especficas,arenas de negociao entre elites econmicas e estatais. No terceiro e ltimotexto dessa primeira parte, Aspsia Camargo examina as tenses entre o fe-deralismo e o processo de centralizao poltica, chamando a ateno para aquesto regional, um dos pilares mais importantes para a compreenso dosconflitos e dos arranjos verificados ao longo de nossa histria.

    Iniciando a segunda parte do livro, Angela de Castro Gomes, preocu-pada com a relao que se estabeleceu entre Vargas e a classe trabalhada-dora, centra o foco de sua anlise na estruturao de uma ideologia polticasurgida no Brasil a partir dos anos 30, a qual procurou valorizar a questo dotrabalho e redefinir o papel e o lugar do trabalhador na sociedade brasileira.O segundo texto dessa parte de autoria de Gilberto Hochman e de CristinaFonseca, que analisam a poltica de sade pblica implantada durante o re-gime Vargas, mostrando as continuidades e as inovaes em relao Rep-blica Velha e o impacto dessa poltica nas dcadas posteriores. A criao, noBrasil, da Justia do Trabalho, sua estrutura e seu funcionamento so os pon-tos abordados no texto do jurista Arion Romita, que faz uma avaliao crticasobre a atuao da Justia do Trabalho ao longo de mais de meio sculo,apresentando em seguida as argumentaes favorveis e contrrias perma-nncia dessa instituio nos dias de hoje.

    Aps reunir reflexes de vrios estudos que analisaram as polticas eco-nmicas do governo Vargas, em especial aquelas voltadas para a industriali-zao e a criao de um setor nacional de bancos e de seguros, Maria Anto-

  • D U L C E P A N D O L F I 13

    nieta Leopoldi, autora da terceira parte deste volume, infere que a ao doEstado no ps-30 responde em conjunto aos constrangimentos da conjunturainternacional e s presses diferenciadas dos setores empresariais urbanos:indstria, bancos e seguros. Mostra, igualmente, que no se trata apenas deum Estado que responde a presses internas e externas, uma vez que se apa-relha tecnicamente para enfrentar os desafios macroeconmicos e constrium referencial nacional-desenvolvimentista que se traduz em objetivos estra-tgicos prprios.

    Intelectuais, cultura e educao so temas que compem a quarta partedo livro. Tomando como objeto de anlise trs decretos exemplares do minis-trio Gustavo Capanema, Helena Bomeny analisa a questo da educao, umadas principais dimenses estratgicas para viabilizar o projeto nacionalizadordo Estado Novo. Maria Helena Capelato discorre sobre o papel da propagandapoltica e o controle que o regime ditatorial de Vargas, atravs do Departa-mento de Imprensa e Propaganda (DIP), exercia sobre os meios de comuni-cao. Lauro Cavalcanti, concentrando-se nas reas de arquitetura e patrim-nio, apresenta os embates travados entre modernistas e tradicionalistas aolongo da dcada de 30, sobretudo entre 1935 e 1937. O ltimo texto dessaparte de Srgio Miceli, que, preocupado com o processo de construo deidentidade da elite brasileira, levanta algumas questes sobre as negociaesque se estabeleciam entre os pintores e as pessoas por eles retratadas.

    A quinta parte deste livro voltada para o problema da imigrao edas minorias tnicas. A tenso entre cidadania nacional e identidade tnica sefaz presente nos trs textos deste bloco. Quais as motivaes da campanha denacionalizao planejada e executada durante o Estado Novo e qual o seu im-pacto sobre diferentes grupos organizados como comunidades tnicas? Se-gundo Giralda Seyferth, a incorporao dos imigrantes e seus descendentes sociedade nacional, tema presente na discusso sobre a poltica imigratria ea formao (racial/tnica) brasileira desde meados do sculo XIX, torna-se, apartir de 1937, uma questo urgente de segurana nacional. Em nome deuma tradio de assimilao e de mestiagem demarcadoras da nossa nacio-nalidade, o regime estado-novista tomou medidas coercitivas visando atingiras organizaes comunitrias tnicas produzidas pela imigrao. A relaoque o regime Vargas estabeleceu com os judeus radicados no Brasil objetoda anlise de Marcos Chor Maio, que, dialogando com a produo acadmicasobre o tema, procura relativizar a importncia atribuda por essa literaturaao que comumente se considera a questo judaica no Brasil. No ltimo textodesse bloco, Olvia Gomes da Cunha confronta dois projetos veiculados nosanos 30 que tomaram o negro como objeto de interveno e de anlise. O pri-meiro, de natureza intelectual, tentou configurar uma rea de estudos sobre onegro, e o segundo, de carter institucional, voltou-se para a implantao deuma poltica de identificao civil/criminal que pretendia descrever etnol-gica e biotipologicamente os indivduos.

  • 14 R E P E N S A N D O O E S T A D O N O V O

    Finalmente os militares, a polcia e a represso so os temas presentesna sexta e ltima parte do livro. Srgio Murillo Pinto discorre sobre o pensa-mento poltico-militar do general Gis Monteiro, considerado o principal estra-tegista e formulador da poltica militar do Brasil no ps-30. Elizabeth Cancelliprocura mostrar a ligao direta entre Vargas e o aparato policial. Segundo aautora, a polcia do Distrito Federal, formalmente atrelada ao Ministrio daJustia, estava sujeita ingerncia direta da presidncia da Repblica, que bus-cou no s federalizar, mas tambm internacionalizar a polcia brasileira.Maria Luiza Tucci Carneiro examina os aspectos repressivos do regime e opapel controlador que o Departamento de Ordem Poltica e social (DOPS)exercia sobre a cultura. O ltimo texto do livro de Jos Murilo de Carvalho,que analisa o processo de construo das Foras Armadas. Emergindo da Revo-luo de 30 fracas e divididas, inadequadas para sustentar o processo de cen-tralizao e nacionalizao do poder, as FFAA vo-se transformando num atorforte, unificado poltica e ideologicamente, capaz de secundar a ao centrali-zadora e nacionalizante de Vargas.

    Sem dvida, a qualidade e a diversidade dos trabalhos aqui publicadoscumpriram o objetivo de oferecer ao leitor um vasto painel que articula ml-tiplas facetas do Estado Novo. Certamente o livro no esgota o assunto, mascontribui tanto para a compreenso da histria do presente quanto para osurgimento de iniciativas similares.

    Nesta iniciativa contei com participao generosa dos autores, com acontribuio financeira da Capes e da Faperj, e com o trabalho e o entusiasmode Angela de Castro Gomes, Celso Castro, Charles Pessanha, Gilberto Hoch-man, Helena Bomeny, Lcia Lippi Oliveira, Marcos Chor Maio, Maria Anto-nieta Leopoldi, Mario Grynszpan e Monica Velloso. A todos os meus agrade-cimentos.

    Dulce Pandolfipesquisadora do CPDOC/FGV

  • P A R T E I

    O legado institucional

  • C A P T U L O 1

    O Estado Novo no contexto internacional*Boris Fausto**

    Vou falar de improviso, com as vantagens da no-leitura, mas tambmcom as desvantagens de uma fala descosida, feita de forma semi-espontnea.

    Espero dizer alguma coisa sobre o contexto internacional europeu quetem conexo com o Estado Novo. Para tratar do tema, parece-me necessrio re-cuar poca da I Guerra Mundial. Vou tentar percorrer um caminho um poucodiverso do usual, falando menos das influncias mais bvias de determinadosregimes autoritrios e totalitrios na emergncia do Estado Novo. Desse modo,vou tratar de abordar, ainda que brevemente, alguns aspectos menos conheci-dos dessas influncias.

    Do ponto de vista histrico, podemos dizer que o sculo XX no comeapropriamente em 1900. Na realidade, ele comea com a guerra, essa grandeconflagrao que, em si mesma, introduz rupturas e novidades, desde as tcni-cas de confronto at a amplitude do envolvimento das Foras Armadas dos v-rios pases envolvidos.

    Como vocs no ignoram, j no curso da I Guerra Mundial ocorre umaruptura, ou seja, o triunfo da revoluo russa de outubro (novembro, em nossocalendrio) de 1997. Aps o conflito, no correr dos anos 20, emerge na Europauma nova direita, que poderamos chamar de revolucionria, ou contra-revolu-cionria, se a expresso direita revolucionria provocar arrepios.

    Quem chamou a ateno, de forma convincente, para essa nova configura-o poltica foi Franois Furet, em seu livro O fim de uma iluso, apontando parao fato de a direita que surge no ps-guerra ser muito diferente da direita tradicio-nal, conservadora, infensa a mobilizaes sociais, preservadora de valores clssi-cos. Pelo contrrio, ela se prope utilizar o arsenal ideolgico revolucionrio, mo-bilizar as massas, chocando-se muitas vezes com a direita tradicional. Obvia-mente, estou falando, entre outros exemplos, de regimes como o fascista, que tri-unfa na Itlia em 1922, e o nazista, que ascende ao poder na Alemanha em 1933.

    * Transcrio de exposio oral, revista pelo autor.** Professor aposentado do Departamento de Cincia Poltica da USP.

  • 18 R E P E N S A N D O O E S T A D O N O V O

    Esses acontecimentos ocorrem no mbito do avano das ideologias anti-liberais, antidemocrticas, que podemos constatar em quase todo o mundo eu-ropeu, incluindo a Frana, onde se afirma a Action Franaise, movimento quevinha de antes da guerra de 1914. A rigor, dentre os pases mais importantes daEuropa, apenas a Inglaterra fica imune. Ela ter, nos anos 30, um movimentofascista, cujo lder foi Mosley, mas sem maior expresso.

    Alis, diga-se de passagem, a Inglaterra ser um bastio da liberal-democracia e uma pedra no sapato de muitos autoritrios, inclusive do nossoautoritrio mais ilustre, Oliveira Viana, que, quando fala da falncia da demo-cracia liberal, tem de fazer algumas piruetas intelectuais para explicar por queo constitucionalismo britnico funciona, apresentando a Inglaterra como umagrande mas isolada exceo.

    Nesse quadro geral de emergncia de regimes totalitrios e autoritrios,tanto na Europa do Leste como na Europa ocidental, possvel apontar algunsregimes com direta influncia na organizao do Estado Novo e na construode sua ideologia. Chovendo no molhado, lembro, por exemplo, que a moldurasindical do Estado Novo teve forte influncia da Carta del Lavoro, vigente naItlia de Mussolini, e que as tcnicas de propaganda estado-novistas forammuito influenciadas pelo exemplo nazi-fascista.

    Queria chamar a ateno, porm, para certas influncias na formao doautoritarismo brasileiro que vm de reas perifricas da Europa e at de umpas na confluncia entre o mundo europeu e o mundo islmico. Essas influn-cias so menos repisadas, menos conhecidas, qui menos importantes, masno deixam de ter significado e introduzem um elemento comparativo novo en-tre pases que hoje chamamos de emergentes.

    Seleciono, dentre as muitas possibilidades, duas figuras autoritrias,embora bastante diversas, que foram uma referncia significativa no Brasil dosanos 20 e 30. Uma delas foi Manoilescu, autor romeno, ou melhor, mais do queum autor, um homem que participou da vida poltica da Romnia e cujas idiasforam uma espcie de Bblia para boa parte dos industriais brasileiros, sobre-tudo paulistas. H vrios anos, Warren Dean apontou essa circunstncia em seulivro A industrializao de So Paulo; mais recentemente, surgiu um minuciosoestudo de Joseph Love, Crafting the Third World; theorizing underdevelopment inRumania and Brazil, fazendo uma comparao aparentemente estranha, mas saparentemente, entre as teorias econmicas dominantes no Brasil e na Romnia.

    Por que Manoilescu foi importante? Foi importante por suas concepespolticas conservadoras, autoritrias e corporativas e porque, do ponto de vistaeconmico, esposava uma doutrina do agrado dos industriais brasileiros,tendo como um de seus itens principais a defesa do protecionismo como formade desenvolver a economia nas reas perifricas. Da seus trabalhos terem sidoreferncia obrigatria nos crculos industriais brasileiros na dcada de 20 e noincio dos anos 30. Manoilescu influenciou tambm intelectuais ligados ao Es-tado Novo, como Oliveira Viana e Azevedo Amaral. Este ltimo traduziu parao portugus o livro O sculo do corporativismo, publicado em 1934.

    Outra figura que constitui um ponto de referncia entre os autoritriosbrasileiros especialmente os integrantes das Foras Armadas Kemal Ata-turk, modernizador da Turquia, no comando daquele pas por anos e anos. O

  • B O R I S F A U S T O 19

    general Gis Monteiro refere-se a ele em seus escritos e especialmente no de-poimento prestado ao jornalista Lourival Coutinho, que se converteu no livroO general Gis depe. Gis vislumbra em Ataturk um exemplo a ser seguido,como construtor da nao turca, colocando-o ao lado de outras figuras comoMussolini e mesmo Lenin, apesar de sua crtica implacvel ao comunismo. Essareferncia a Ataturk curiosa, na medida em que guarda relao com outra,sugerindo que a modernizao pelo alto, realizada na Turquia, esteve muitasvezes presente no imaginrio e no iderio da elite militar brasileira. Refiro-me denominao dada aos defensores da reforma do Exrcito nos anos 10, co-nhecidos como jovens turcos.

    Dito isso, tento lidar, simplificada e muito brevemente, com alguns as-pectos do quadro poltico brasileiro, a partir dos anos 20, destacando a emer-gncia de doutrinas de diferentes matizes. A emergncia dessas doutrinas nose explica apenas por uma corrente que vem de fora para dentro, no s umvento que vem de fora, mas sem dvida esse vento teve muita importncia naelaborao de uma ideologia no pas. Lembremos grupos bastante diversos en-tre si, como a direita catlica e os tenentes, que conheo um pouco melhor doque a direita catlica.

    Como tpico dos integrantes das Foras Armadas, os tenentes mais fi-zeram, ou mais caminharam, do que falaram, mas no pouco que falaram estopresentes as concepes autoritrias. So idias associadas ao reforo da uni-dade nacional, via centralizao dos poderes, so idias de crtica ao sistemade representao individual em favor da representao de classes, so idiasque insistem na sobreposio das necessidades coletivas aos direitos indivi-duais, consistindo em toda uma crtica aos princpios da democracia liberal.

    A rigor, a defesa dos valores democrticos no Brasil dos anos 20 e pri-meiros anos da dcada de 30 concentra-se nos partidos democrticos estaduais,vindo em primeiro lugar o de So Paulo. Olhando retrospectivamente o PD pau-lista, podemos continuar criticando, como sempre se fez, suas limitaes, seuelitismo, sua incapacidade de compreender o fenmeno da emergncia das mas-sas urbanas. Mas penso que necessrio, por outro lado, valorizar sua insistn-cia no direito de representao, no combate fraude eleitoral, contrapondo-se embora mais na teoria do que na prtica s concepes autoritrias. Almdisso, lembremos as concepes autoritrias. Lembremos tambm a nfase co-locada na educao e na necessidade da reforma educacional, temas que hojeesto na ordem do dia, mas que em certas pocas, como nos anos 60, pareciammenores, diante da suposta iminente transformao revolucionria.

    Na passagem dos anos 20 para a dcada de 30, h um fator crucial queempurra o Brasil para o caminho autoritrio, ou seja, a crise mundial aberta em1929. Por seu impacto, a crise desmonta uma srie de pressupostos do capita-lismo liberal, que j no era to liberal, e fornece uma boa justificativa, noplano poltico, para a crtica liberdade de expresso, para a crtica ao dis-senso, expresso na liberdade partidria, tidos como elementos que conduziriamo pas desordem e ao caos.

    H a um tema que mereceria maiores pesquisas, no sentido de se veri-ficar em que medida existia um projeto autoritrio para o Brasil, por parte de

  • 20 R E P E N S A N D O O E S T A D O N O V O

    Getlio Vargas e sua equipe, desde o incio dos anos 30. Ou se, ao contrrio,esse projeto foi sendo formulado, ao longo dos anos, por fora da crise mundiale dos embates polticos. Inclino-me, meio intuitivamente, pela primeira alter-nativa, tendo em vista, entre outras coisas, medidas adotadas muito cedo peloGoverno Provisrio no sentido de estabelecer canais de propaganda governa-mental e reforar os instrumentos de represso poltica. Isso no quer dizer queem 1930 j estava dado, inexoravelmente, o desfecho de 1937. Parece-me terexistido, porm, desde logo, um projeto poltico centralizador, unitrio, antipar-lamentar, forjado por Getlio e sua entourage civil e por alguns nomes dacpula do Exrcito, dentre os quais se destaca o general Gis Monteiro.

    Como se sabe, para chegar ao desfecho do Estado Novo, o pas passoupela irradiao do movimento integralista, de corte fascista, do qual o EstadoNovo tratou sempre de guardar distncia, no plano ideolgico. significativoassinalar os esforos que os formuladores tericos do regime de 37 fazem nosentido de demarcar suas diferenas no s com o integralismo, como tambmcom o nazi-fascismo. Para serem conseqentes, eles no podiam admitir que re-cebiam forte influncia das idias autoritrias vigentes no mundo, pois critica-vam o liberalismo por ser um decalque de idias importadas, cuja aplicao noBrasil era artificial e contraproducente. O exemplo mais expressivo o de Aze-vedo Amaral, que faz uma excelente distino sem que o adjetivo impliquejuzo de valor entre autoritarismo e totalitarismo em O Estado autoritrio e arealidade nacional. Por sua vez, Oliveira Viana, aps repudiar o pluripartida-rismo, repudia tambm o conceito totalitrio de partido nico numa frase sin-ttica: nosso partido o presidente.

    Por ltimo, saindo do tema central, gostaria de fazer uma breve refern-cia a respeito de certa fascinao que o Estado Novo exerce at hoje. Ele no um espcime morto, sobre o qual se possa debruar com um olhar zoolgico.Uma das razes que, a meu ver, explicam esse sentimento h outras ligadass controvrsias polticas atuais o fato de o Estado Novo apresentar facetasbastante variadas. No acho que devamos ter um olhar frio sobre ele, mastrata-se de buscar entender, com a objetividade possvel, que diabo esse re-gime que gera essencialmente uma srie de males e, ao mesmo tempo, tem fa-cetas de progresso.

    Os homens do regime encarecem, censuram, em alguns casos torturam,promovem e tambm enquadram os sindicatos, assim como promovem o de-senvolvimento econmico e os melhores nomes da cultura da poca. Compa-rado com o nazismo, o Estado Novo tem uma poltica no campo esttico quenada tem a ver com aquele. Enquanto o nazismo acaba com a chamada arte de-generada, o regime estado-novista convoca tratando de cooptar, por certo a vanguarda modernista, que representa um ponto alto e muitas vezes irreve-rente da cultura do pas.

    Em resumo, as questes que emergem do Estado Novo no so frias e seabrem a muitas discusses. Espero que essas discusses possam ser feitas numambiente social e poltico em que no exista lugar para o autoritarismo, condiorelevante para que as controvrsias se explicitem e o conhecimento avance.

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    Engenharia institucional e polticas pblicas:dos conselhos tcnicos s cmaras setoriaisEli Diniz*

    A figura de Getlio Vargas , certamente, uma das mais controvertidasda histria do Brasil republicano. A partir dos anos 30, quando comea a pro-jetar-se na poltica nacional como chefe da revoluo que ps fim repblicaoligrquica, as imagens progressivamente associadas a Vargas so as maiscontraditrias possveis. Tal controvrsia no se restringe s suas caractersti-cas de personalidade enquanto lder poltico, mas adquire maior alcance, aoenvolver questes mais amplas, tais como seu real papel histrico, o signifi-cado poltico de seus dois governos (1935-45; 1951-54) ou ainda o teor e aconsistncia de suas polticas nas diferentes reas econmica, social, polticae cultural. Hoje a polmica retomada, discutindo-se intensamente o legadoda chamada era Vargas. Eis que a ascenso do projeto neoliberal reacende,radicalizando-o, o debate em torno da necessidade de uma ruptura com a he-rana de Vargas.

    Contrastando as vises polares acerca do lder poltico, de um lado has que o exaltam como personalidade conciliadora, com alta capacidade dedilogo e de articulao poltica, destacando sua grande habilidade paraconstruir consensos e harmonizar interesses. Por outro lado, no menos fre-qente a imagem oposta, que retrata Vargas como um lder autoritrio, cen-tralizador, avesso consulta e sobretudo a dividir o poder. Nessa linha, apre-senta-se aos nossos olhos a figura do poltico maquiavlico, especialista naarte de dissimular, de esconder suas reais intenes e manipular as situaesa seu favor, enfim, um mestre no emprego da astcia e da fora ao sabor desuas convenincias polticas.

    O Vargas do Estado Novo aparece como um poltico dominador e vo-luntarista, dotado de forte ambio de mando, capaz de usar sem vacilar osinstrumentos da represso e da coero para manter-se no poder, levando tal

    * Professora titular do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisadora associada do Iuperj.

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    comportamento s ltimas conseqncias, no hesitando mesmo em eliminarde seu caminho os amigos de ontem, os aliados de outrora. J o Vargas dosanos 50, presidente eleito para governar o pas numa nova fase poltica,tende a ser visto numa tica distinta. Aqui o que se enfatiza a capacidade decomunicao direta com os setores populares, a sintonia com uma sociedadecaracterizada cada vez mais pela presena das massas urbanas na poltica, ouainda o papel do lder trabalhista frente de um movimento nacionalista epopular que busca afirmar-se diante de uma elite arredia e conservadora,num contexto democrtico e competitivo.

    Igualmente contraditrias so as imagens associadas ao papel histricodesempenhado por Vargas no perodo ps-30. Enquanto algumas realam seuteor progressista de lder afinado com o movimento de seu prprio tempo, re-presentante das novas foras que despontavam na sociedade brasileira, ten-tando abrir caminho em meio resistncia da ordem oligrquica, outras odescrevem como uma fora retrgrada. Nessa tica, Vargas seria identificadocomo um tpico representante da antiga ordem, nada alm de um estancieiro,ligado por suas origens familiares oligarquia rural gacha, um poltico tra-dicional que cresceu, fortaleceu-se e consolidou seu prestgio a partir da pri-mazia da grande propriedade rural, sendo, portanto, mais um representantedo passado do que um lder dos novos tempos, de quem se exige antes detudo a capacidade de antever o futuro.

    Outro ponto controverso, como vimos, refere-se ao significado polticoda era Vargas. Aqui uma primeira dificuldade consiste em definir o que vema ser a chamada era Vargas. Ser ela um somatrio das realizaes dos doismomentos em que Vargas governou o pas? Entretanto, na literatura espe-cializada, no h dvida de que se trata de dois momentos histricos absolu-tamente distintos. Alm disso, mesmo o primeiro governo Vargas (1930-45)pode ser subdividido em pelo menos trs fases, cada uma com sua identidadeprpria. Portanto, o governo Vargas no forma um todo uniforme. Ademais,em suas vrias fases, tem sido interpretado luz de vises to diversasquanto contraditrias.

    Em sua primeira fase, a do governo provisrio, que se estende de 1930a 1934, Vargas projeta-se como lder de uma revoluo vitoriosa, a qual, adespeito de sua heterogeneidade ideolgica e poltica, tinha uma bandeirareformista. Essa bandeira estava relacionada com a temtica da justia so-cial, com a questo da igualdade e das liberdades polticas, com o desafio desuprimir as grandes disparidades sociais que marcavam a sociedade brasi-leira e eliminar as barreiras sociais que tolhiam o desenvolvimento da cida-dania poltica. Tratava-se, enfim, de instaurar um novo padro de relaciona-mento entre classes possuidoras e classes subalternas, de forma a atenuar aopresso excessiva ento exercida pelas elites dominantes, impondo limitesinstitucionais ao seu poder e expandindo os direitos civis e polticos para no-vos segmentos da sociedade. Expresso dos ideais libertrios dos anos 30,

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    esse foi o momento da realizao das grandes reformas polticas representa-das pela introduo do voto secreto, pela criao do tribunal eleitoral, peloreconhecimento do direito de voto para as mulheres, pelas medidas destina-das a combater a fraude eleitoral, enfim, pela aprovao do novo cdigoeleitoral, sob cujas regras se realizariam as eleies de 1933 para a Assem-blia Constituinte.

    A segunda fase, que se desenrola de 1934 a 1937, corresponde ao go-verno constitucional, quando Vargas eleito presidente por via indireta.Nesse momento, vem tona a figura do chefe de um governo comprometidocom um projeto liberal-democrtico, respaldado pela Constituio de 1934,que, apesar de conter um captulo de teor claramente intervencionista sobre aordem econmica e social, consagrava os princpios liberais embutidos nomovimento de 1930. Este, como ressaltado, foi um movimento bastante he-terogneo, marcado pelo entrechoque de tendncias distintas e mesmo con-traditrias, comportando tanto valores liberais quanto autoritrios. Assim, asmetamorfoses do primeiro governo Vargas estavam de alguma forma relacio-nadas com as tenses presentes no iderio poltico da revoluo de 1930.

    Finalmente, o perodo subseqente, 1937-45, caracteriza-se por uma vi-rada francamente autoritria. Nesse momento, a figura do Vargas ditadorque assume o primeiro plano, a imagem do homem que, atravs de um golpede Estado, com o auxlio das Foras Armadas, instaura a ditadura, pondo fim breve e turbulenta experincia democrtica de 1934-37, traindo assim os ideaisda revoluo de que fora um dos principais lderes. Nesse momento, domina acena o Vargas identificado com o iderio autoritrio. Cabe ressaltar, alis, queos grandes idelogos do autoritarismo tiveram o seu apogeu nessa fase. Lem-bremos Oliveira Viana, Francisco Campos e Azevedo Amaral, expoentes dopensamento autoritrio, cujas idias lanaram os fundamentos de uma srie demudanas poltico-institucionais que viriam a concretizar-se plenamente com oVargas do perodo estado-novista. Durante esse perodo, d-se continuidade produo da extensa legislao trabalhista e previdenciria, que regularia otrabalho urbano durante as vrias dcadas de desenvolvimento da industriali-zao por substituio de importaes. Segundo os princpios corporativistas, ostatus de trabalhador com carteira de trabalho assinada e reconhecida pelo Mi-nistrio do Trabalho (criado em 1930) permitiria o acesso aos benefcios dessalegislao, configurando o que Santos (1979:75) designaria pelo termo cida-dania regulada.

    A partir dessas consideraes, cabe retomar a pergunta inicial relativaao significado do legado varguista. S uma viso muito superficial e simpli-ficadora pode responder de forma categrica e unvoca a tal indagao. Comocaracterizar essa herana? Trata-se de um legado identificado com o atrasoou com a renovao? Produziu um impacto de reforo da tradio oligr-quico-conservadora ou significou uma ruptura com esse passado? Representoua continuidade ou, ao contrrio, impulsionou a mudana pela abertura de um

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    espao para a verbalizao dos interesses emergentes ligados ascenso daordem urbano-industrial?

    Os anos 30 como marco da transio para uma nova ordemComo explicar as discrepncias assinaladas? Por que a figura de Vargas

    como homem pblico suscita imagens to desencontradas e mesmo to anta-gnicas? S possvel entender interpretaes to dspares quando se consi-dera que esses 15 anos, de 1930 a 1945, representam na verdade uma dcadae meia de transio. O que explica as metamorfoses de Vargas enquanto lderpoltico e as mutaes que marcam seu primeiro governo o entendimentode todo esse perodo como um longo processo de transio. Como toda fasede transio, trata-se de momento particularmente rico, que encerra mlti-plas possibilidades, j que nele esto presentes foras muito contraditrias,movimentos que tendem para direes no necessariamente convergentes, di-nmicas que se negam ou se reforam, numa sucesso de fatos e processosmarcados por certo grau de indeterminao e incerteza. dentro desse lequede opes que tem lugar a interveno do lder, numa no-previsvel combi-nao de fortuna e virt, como diria Maquiavel.

    Qual foi a marca desse perodo de transio? Creio que a mudanaprincipal desse momento est representada pela passagem de um sistema debase agroexportadora para uma sociedade de base urbano-industrial. No setrata de afirmar que a construo do capitalismo industrial no Brasil se deunos anos 30. Como sabido, a consolidao da ordem industrial ocorrer al-gumas dcadas depois, sobretudo com a expanso impulsionada pelas polti-cas do governo Kubitschek. Porm, os pressupostos, as bases, os fundamentosnecessrios para o desenvolvimento dessa nova ordem econmico-social fo-ram lanados durante o primeiro governo Vargas. Eis por que esse momentopode ser considerado um marco, j que possibilitou o trnsito de uma socie-dade com perfil agrrio, nitidamente subordinada clssica diviso interna-cional do trabalho caracterizada pelo desequilbrio entre os pases expor-tadores de produtos industrializados, por um lado, e os exportadores de bensprimrios e matrias-primas, por outro , para uma sociedade mais com-plexa e diferenciada. Observa-se, portanto, uma ruptura, um corte com essepassado e a passagem para outro patamar histrico, mediante a introduode mudanas significativas. no perodo que se estende de 1933 a 1939 queefetivamente se desencadeia o processo de industrializao no Brasil. Assim,comparando a expanso industrial dos anos 30 com os surtos industriais an-teriores, Baer e Villela (1972) ressaltam que o processo de industrializao sveio a ocorrer na dcada de 30, tendo havido apenas crescimento industrialno perodo situado entre o incio da Repblica e o final da dcada de 20. Aimportncia da distino consiste em que um perodo de simples crescimentoindustrial, apesar da rpida expanso de algumas indstrias, no acarreta

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    modificaes estruturais profundas na economia, enquanto a industrializao,ao contrrio, implica mudanas desse tipo, tornando-se a indstria o setor l-der do crescimento da economia.

    Esse tipo de interpretao situa, portanto, os anos 30 como importanteetapa na definio dos rumos do desenvolvimento econmico do pas. Noplano da economia, a principal mudana foi o deslocamento do seu eixo doplo agroexportador para o plo urbano-industrial. No plano poltico, verifi-cou-se o esvaziamento do poder dos grupos interessados em manter a pre-ponderncia do setor externo no conjunto da economia, paralelamente as-censo dos interesses ligados produo para o mercado interno. Em outrostermos, configurou-se uma mudana na coalizo de poder mediante o in-gresso de novos atores, as elites industriais emergentes, ainda que as antigaselites no tenham sido desalojadas. Coube ao primeiro governo Vargas admi-nistrar esse processo de transio.

    A primazia das mudanas poltico-institucionaisNessa linha de consideraes, cabe ressaltar que as principais mudan-

    as verificadas foram as de natureza poltico-institucional. Se o primeiro go-verno Vargas teve impacto reformador, foi no plano institucional que essa facereformadora revelou-se de forma particularmente clara, atingindo no s aestrutura do Estado, mas tambm suas relaes com a sociedade. Construiu-se de fato um novo arcabouo poltico-institucional que permitiu aumentar opoder interventor do Estado e expandir a capacidade de incorporao do sis-tema poltico, abrindo espao para a representao dos interesses dos novosatores ligados ordem industrial emergente e quebrando a rigidez da estru-tura de poder preexistente. Esta, pela incluso de novos segmentos de elites,torna-se menos monoltica e mais diferenciada internamente.

    A nova engenharia poltico-institucional foi o resultado de uma srie demudanas introduzidas ao longo da dcada de 30, no contexto de um pro-cesso de fechamento crescente do sistema poltico. Entre essas mudanas,cabe ressaltar, desde logo, o fortalecimento do poder do Estado em face dasoligarquias regionais.1 Esse esforo de centralizao e concentrao do poderna esfera nacional, que teve na criao do sistema de interventorias um deseus suportes, teria implicaes profundas do ponto de vista das relaes en-tre os diferentes grupos dominantes e o Estado.

    Em primeiro lugar, resultou na subordinao ao comando do governocentral dos executivos estaduais mediante sua insero numa complexa en-grenagem, envolvendo as interventorias, as elites locais e os representantesdo governo federal. Em segundo lugar, desarticulou os mecanismos de in-

    1 Ver Gomes, 1989.

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    fluncia das elites tradicionais, em virtude da expanso da capacidade deci-sria do Executivo federal, deslocando para essa instncia as decises estra-tgicas para o desenvolvimento econmico e social do pas. Em terceiro lugar,o aperfeioamento e a diversificao dos instrumentos de interveno do Es-tado nas diferentes esferas da vida social e poltica viabilizaram a implemen-tao de um projeto nacional por cima da rivalidade entre as elites. Esse con-junto de mudanas foi aprofundado com a experincia da reforma do Estado,que, iniciada durante o governo constitucional, tem seu pice com a instau-rao do regime autoritrio.

    Essa reforma resultou de um conjunto de medidas voltadas para a de-sarticulao do Estado oligrquico, como a introduo da estabilidade para osfuncionrios pblicos, a instituio do concurso pblico para o ingresso nofuncionalismo de carreira, em 1934, a criao do Departamento Administra-tivo do Servio Pblico (Dasp), em 1938, a elaborao do estatuto dos fun-cionrios pblicos, em 1939, entre outras. Apesar de a reforma administrativater dado passos importantes no sentido da racionalizao da administraopblica pela introduo do recrutamento com base no sistema de mrito epela nfase no critrio da competncia tcnica no desempenho das funesburocrticas, o padro clientelista de expanso da mquina estatal no foi eli-minado. O resultado foi a evoluo para um sistema estatal hbrido, marcadopela interpenetrao entre os aspectos do modelo racional-legal e a dinmicaclientelista.

    Finalmente, o padro de articulao Estado-sociedade sofreu profundaalterao com a instaurao do corporativismo estatal, que possibilitou a in-corporao poltica de empresrios e trabalhadores urbanos, sob a tutela doEstado, o que resultaria na montagem de uma rede de organizaes de re-presentao de interesses, reguladas e controladas pelo poder pblico. Essedesenho institucional, imposto pelo alto, tolheu a evoluo para formas maisautnomas de organizao dos interesses que se diferenciavam com o avanoda industrializao. A insero em categorias ocupacionais especficas seria oprincpio ordenador do novo sistema, servindo ainda de base para a extensodo conjunto de direitos definidores do status de cidado. Consagrou-se umconceito de cidadania calcado no num cdigo de valores polticos, mas numsistema de estratificao ocupacional definido por norma legal. Nas palavrasde Santos (1979:75), a ordem regulada caracterizaria um contexto em que aextenso da cidadania se faz (...) via regulamentao de novas profisses e/ou ocupaes, em primeiro lugar, e mediante ampliao do escopo dos direi-tos associados a estas profisses, antes que por extenso dos valores inerentesao conceito de membro da comunidade.

    Levando em conta esse conjunto de modificaes, pode-se afirmar quea nova arquitetura poltico-institucional representou efetivamente um rema-nejamento dos recursos de poder disposio dos diferentes segmentos daselites dominantes, fechando alguns canais, abrindo outros ou, ainda, criando

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    novas arenas de negociao sob a gide do Estado, de acordo com os princ-pios corporativos que nortearam as reformas implementadas. Concluindo,cabe insistir ainda uma vez, as mudanas institucionais representaram as ino-vaes decisivas dessa poca. A modernizao da ordem institucional foi opasso mais audacioso dado pela coalizo que assumiu o poder em 1930. Oautoritarismo foi o custo poltico dessa modalidade de modernizao.

    Os conselhos tcnicos como peas bsicas da nova engenharia institucional

    Um dos aspectos envolvidos no reordenamento institucional do perodoconsiderado foi, como vimos, a nacionalizao da poltica para diferentesreas. Assim, as principais decises relativas s polticas cafeeira, industrial,trabalhista e social passariam a depender de articulaes e acordos efetuadosdentro da alta burocracia estatal. Esse tipo de evoluo refletiu a conjugaode alguns fatores.

    Em primeiro lugar, deve-se lembrar o esforo de centralizao e forta-lecimento da burocracia estatal, processo que culminou com a instaurao domonoplio burocrtico sobre as decises. Em segundo lugar, observou-se umaacentuada expanso dos poderes legislativos do Executivo, evoluindo-se paraum modelo de presidencialismo forte, levado s ltimas conseqncias com aimplantao da ditadura estado-novista que resultou no fechamento do Con-gresso e na eliminao dos partidos polticos. Finalmente, a montagem da es-trutura corporativa de intermediao de interesses introduziu o sistema de re-presentao direta dos interesses no interior do Estado, sem a mediao par-tidria. Consolidou-se um modelo que atribui ao Estado papel primordial nos nas decises relativas s principais polticas pblicas, como tambm na ad-ministrao do conflito distributivo, na definio das identidades coletivasdos setores sociais em processo de incorporao, bem como na representaodos interesses patronais e sindicais.

    A engenharia institucional assim instituda implicou, na verdade, umanova forma de formular e implementar polticas pblicas, deslocando-as parainstncias enclausuradas na alta burocracia governamental, protegidas de in-terferncias externas. Desta maneira, ao situar o processo de formao daspolticas num espao insulado e, portanto, fora do controle direto das oligar-quias estaduais, eliminou-se paralelamente qualquer forma de manifestaoautnoma dos interesses. Tais consideraes colocam em evidncia uma es-pecificidade dessa experincia de construo institucional, j que a naciona-lizao e a burocratizao do processo decisrio apresentam-se como duas fa-ces da mesma moeda dentro de um processo mais geral de centralizao e deconcentrao do poder do Estado. A ideologia autoritria forneceria os valo-res legitimadores do novo modelo, ressaltando o papel integrador e regene-rador do Estado forte e, sobretudo, a supremacia da tcnica em relao po-

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    ltica, esta ltima vista como fonte de distores e fator de irracionalidade naconduo dos negcios pblicos.

    Evidentemente, a autonomia do Estado assim alcanada no produziuo Estado neutro, imparcial, equidistante dos conflitos e comprometido com ointeresse pblico, enfatizado pelo discurso ideolgico. O que se teve, na ver-dade, foi uma nova modalidade de articulao entre o mundo dos interessese a esfera estatal pela institucionalizao da estrutura corporativa. Foi pormeio dessa estrutura vertical e hierarquizada, diretamente subordinada aoEstado, que se procedeu, como foi ressaltado, incorporao dos atoresemergentes trabalhadores urbanos e empresrios industriais ao sistemapoltico. O novo sistema, entretanto, consagrou a assimetria entre empres-rios e trabalhadores no que diz respeito ao acesso aos ncleos decisrios cen-trais. Admitindo os primeiros e excluindo os segundos, o que se consolidoufoi um corporativismo setorial bipartite, criando-se arenas de negociao en-tre elites econmicas e estatais em torno de polticas especficas. Em contrastecom o modelo tripartite do corporativismo liberal europeu, que implicava aincluso dos trabalhadores nos acordos negociados, institucionalizou-se noBrasil uma prtica de negociao de teor restrito, excludente e fechado, agra-vada pela marginalizao dos partidos, que jamais tiveram participao nesseprocesso.

    A criao dos conselhos tcnicos foi uma pea importante nessa engre-nagem que viabilizou um sistema decisrio mais aberto aos interesses econ-micos, sem subverter a primazia da elite tcnica. A partir do incio dos anos 30,criaram-se inmeros conselhos desse tipo, sobretudo na rea da poltica eco-nmica. Previstos pela Constituio de 1934, em seu art. 103, tinham por fun-o assessorar o Estado na formulao de polticas e na tomada de decises re-ferentes a diversas reas. Alguns eram dotados de poderes normativos e deli-berativos, outros exerciam apenas funes de natureza consultiva. Entre osprincipais, podem ser destacados o Conselho Nacional do Caf (1931), depoissubstitudo pelo Departamento Nacional do Caf; o Conselho Federal de Co-mrcio Exterior (1934); o Conselho Tcnico de Economia e Finanas (1934); oConselho Federal de Servios Pblicos (1936), depois substitudo pelo Depar-tamento Administrativo do Servio Pblico (1938); o Conselho Nacional deguas e Energia Eltrica (1939); o Conselho Nacional de Poltica Industrial eComercial (1943) e a Comisso de Planejamento Econmico (1994), tendosido os dois ltimos palco da clebre polmica entre o lder industrial RobertoSimonsen e o professor Eugnio Gudin em torno da estratgia de desenvolvi-mento mais adequada ao pas no mundo do ps-guerra, o primeiro defen-dendo o protecionismo e o planejamento econmico e o segundo, uma maiorabertura externa da economia.2

    2 Ver Diniz, 1978:201-20; e Simonsen, 1945.

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    A persistncia do legado institucional varguista

    O legado institucional varguista, j descrito em seus aspectos essen-ciais, no foi desmontado com a queda do Estado Novo. preciso lembrarque a redemocratizao do pas, no perodo ps-45, no afetou de forma subs-tancial o centralismo administrativo e o estilo de gesto introduzidos por Var-gas. Ao contrrio, preservou-se, em grande parte, o arcabouo institucionaldo governo deposto.3 Executivo forte, controle do processo decisrio pela altaburocracia, subordinao dos sindicatos ao Ministrio do Trabalho, desenvol-vimento de uma classe empresarial atrelada aos favores do Estado e margi-nalizao poltica dos trabalhadores rurais persistiriam como elementos cen-trais do novo regime. Na verdade, a experincia democrtica dessa fase(1945-64) conduziu instaurao de um sistema poltico semicompetitivo,caracterizado pela reduzida autonomia dos mecanismos de representao po-ltica e pelo papel secundrio da instncia parlamentar no processo de for-mao de polticas. Este permaneceria enclausurado no interior da burocraciagovernamental, observando-se a consolidao da tendncia anterior forma-o de arenas de negociao entre elites dos setores pblico e privado, comoocorreu com o Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI), a Carteira deComrcio Exterior do Banco do Brasil (Cacex) e o Conselho de Poltica Adua-neira (CPA), como ressalta Leopoldi (1992).

    O golpe de 1964 reintroduz o regime autoritrio no pas. Durante os21 anos de ditadura militar, alguns dos aspectos centrais desse modelo foramacentuados, notadamente a centralizao do poder do Estado, o fortaleci-mento do Executivo paralelamente ao debilitamento do Legislativo e dospartidos, a representao dos interesses pela via do corporativismo estatal eo reforo do padro insulado e fragmentado de negociao entre as elitesempresariais e estatais. Expandiu-se consideravelmente o nmero de conse-lhos tcnicos com representao empresarial. No Conselho Monetrio Na-cional (CMN), no Conselho Interministerial de Preos (CIP), no Conselho deDesenvolvimento Econmico (CDE), no Conselho de Desenvolvimento Indus-trial (CDI), no Conselho de Poltica Aduaneira (CPA) e no Conselho de De-senvolvimento Comercial (CDC), entre outros, o modelo bipartite de nego-ciao prevaleceria.4

    Essa estreita associao entre corporativismo estatal, Estado interven-cionista e debilidade da estrutura representativa foi acentuada pelo tipo depresidencialismo que se configurou historicamente. No decorrer do tempo,sobretudo sob o impacto das longas fases de autoritarismo, construiu-se umsistema fortemente concentrador das prerrogativas da autoridade presiden-cial, consagrando o desequilbrio entre um Executivo sobredimensionado e

    3 Ver Souza, 1976.4 Ver Boschi, 1979; e Diniz, 1994a.

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    um Legislativo crescentemente esvaziado em seus poderes. A falta de freiosinstitucionais e a ineficcia do sistema de cheques exacerbaram o arbtrio doExecutivo, o que veio a constituir-se num dos principais fatores da instabili-dade institucional do pas. O isolamento da esfera presidencial, seu fecha-mento ao escrutnio pblico, a falta de espao institucional para a interfern-cia das foras polticas e a inoperncia dos mecanismos de controles mtuosgerariam dificuldades adicionais para a articulao entre os poderes e a co-municao com a sociedade, que se diferenciava com o avano da moderni-zao. O regime de 1964 levou esse processo s ltimas conseqncias, im-plantando um ultrapresidencialismo e reeditando a figura do decreto-lei, ins-trumento amplamente utilizado por Vargas entre 1933 e 1945. Esse conjuntode fatores levaria subverso do princpio da separao dos poderes e redu-ziria o Congresso condio de rgo legitimador das decises emanadas doExecutivo.5

    Finalmente, a ditadura militar do perodo 1964-85 representou ummomento decisivo na constituio de dois outros traos fundamentais da po-ltica brasileira. Um deles, o estilo tecnocrtico de gesto da economia, fe-chado e excludente, reforaria a concepo acerca da supremacia da aborda-gem tcnica, abrindo caminho para a ascenso dos economistas notveis sinstncias decisrias estratgicas para a definio dos rumos do capitalismoindustrial.6 O segundo, responsvel pela primazia dos valores voluntaristas,forneceu elementos para a consolidao de uma cultura poltica deslegitima-dora da ao dos partidos e do Congresso na promoo do desenvolvimento.Retomou-se a tendncia, impulsionada pelo pensamento autoritrio hegem-nico nos anos 30, para idealizar o Executivo enquanto agente das transfor-maes necessrias modernizao do pas. Assim, a idia de reforma e demudana seria associada ao modelo de Executivo forte, sendo o Legislativo,ao contrrio, percebido como fora aliada ao atraso e defesa de interessesparticularistas e tradicionais.

    luz dessas consideraes, torna-se claro que a herana de Vargas naesfera institucional revelou alta capacidade de sobrevivncia. Aps o longoprocesso de transio que se desenrola entre 1974 e 1985, tendo em vista ameta da instaurao da democracia no pas, o novo governo civil inicia o des-monte da legislao, dos mecanismos e demais componentes do arsenal au-toritrio do antigo regime. Entretanto, inmeros aspectos do arcabouo ins-titucional varguista desafiariam as propostas de mudana, inclusive duranteos debates que marcaram o processo da Constituinte. Entre os traos demaior persistncia, cabe mencionar a estrutura corporativa de intermediaode interesses, cujos elementos centrais foram preservados, embora tenhamsido desativados os principais mecanismos de coero sobre os sindicatos.

    5 Ver Diniz, 1992.6 Ver Loureiro, 1992.

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    Outro aspecto, que no s persistiu, mas se acentuou, diz respeito ao modelode presidencialismo forte, dotado de vastas prerrogativas e ampla margemde arbtrio. Cabe lembrar que o aguamento da crise durante toda a dcadade 80 forneceu os argumentos e as condies para o reforo da concentraodecisria no Executivo, reeditando a tradicional assimetria entre a burocraciagovernamental e a arena parlamentar-partidria. Dada a centralidade assu-mida pelos planos de estabilizao econmica, o confinamento burocrticodas decises se acentuou, prevalecendo o estilo tecnocrtico de gesto daeconomia. Atravs da ampla utilizao dos decretos-leis, herana do regimeautoritrio, num primeiro momento, e das medidas provisrias, aps a ela-borao da Constituio de 1988, o Executivo preservaria sua independnciade ao. Nesse quadro, os economistas integrantes da rede transnacional deconexes manteriam sua posio de verdadeiros mentores e gestores da po-ltica governamental.

    A inovao institucional representada pelas cmaras setoriaisEssa longa linha de continuidade quanto aos mecanismos institucionais

    de articulao Estado-sociedade sofrer mudanas expressivas no decorrer dadcada de 90. Sob o impacto da crise em escala mundial dos anos 80 e daconfigurao de uma nova ordem internacional, observou-se o esgotamentoda estratgia da industrializao por substituio de importaes, paralela-mente a uma forte presso externa para redefinio da agenda pblica. Te-mas como o recuo do Estado, a privatizao, a abertura externa da economia,a desregulamentao, a reinsero no sistema internacional tornaram-se pre-ponderantes. Ao lado dos programas de estabilizao, as reformas orientadaspara o mercado passaram a dominar a agenda pblica nos diferentes paseslatino-americanos, embora a ordem de prioridades e o ritmo de execuo te-nham variado caso a caso.

    No Brasil, o marco desse processo ser o governo Collor, quando seobserva uma clara identificao com as diretrizes do chamado Consenso deWashington. Nesse momento, verifica-se uma drstica redefinio de rumos,determinando o estreitamento e o enrijecimento da agenda pblica, com acentralidade atribuda aos programas de estabilizao e reformas estruturais.Em conseqncia, as reformas sociais perdem prioridade, sendo de fato des-cartadas da agenda. Por outro lado, a reforma do Estado ganha destaque,sendo incorporada ao programa do governo, logo aps a posse do presi-dente.

    Sob a gide das diretrizes neoliberais, o que prevaleceu foi uma con-cepo minimalista de reforma do Estado. luz do enfoque reducionista do-minante, os reformadores privilegiariam as metas de corte de gastos e redu-o do dficit pblico, o que se traduziu num esforo de enxugamento da m-quina estatal. Cortes de pessoal e extino de rgos sem critrios implicaram

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    de fato a mutilao do aparelho burocrtico, agravando os problemas de ir-racionalidade e ineficincia. Observou-se o predomnio de uma agenda nega-tiva de desmantelamento do legado do passado, em franco descompasso comrelao complexidade das tarefas a serem desempenhadas pelo Estado nummundo globalizado, em que competitividade e capacidade de insero estra-tgica transformaram-se na chave do sucesso. Uma viso mais pertinente im-plicaria deslocar a nfase para a redefinio do papel e a reestruturao doaparelho estatal, restringindo em alguns setores e ampliando em outros aparticipao do Estado, tendo em vista sobretudo a melhoria da qualidade daadministrao pblica.

    O segundo aspecto da reforma empreendida nesse perodo foi a radi-calizao da centralizao do poder na cpula tecnocrtica, com a criao doMinistrio da Economia, um superministrio, que englobou trs antigos mi-nistrios e algumas secretarias da administrao anterior. Na esteira desseprocesso, verificou-se o fechamento de grande parte das arenas corporativas,que at o governo anterior ainda funcionavam dentro da burocracia governa-mental. No mbito da poltica industrial, por exemplo, foram extintos o CDI ediversos outros rgos anteriormente encarregados da deciso e implementa-o dessa poltica setorial, alm de inmeros conselhos e comisses voltadospara decises especficas na rea de fomento produo industrial.7 Deacordo com a primazia atribuda s metas de estabilizao e ajuste, para mui-tos dos novos decisores a poltica industrial seria, alis, irrelevante.

    Foi nesse contexto de insulamento burocrtico e de predomnio do es-tilo tecnocrtico de gesto que se criaram, no incio dos anos 90, as cmarassetoriais, arena de negociao voltada para a articulao de acordos em tornode polticas setoriais. Reunindo representantes empresariais e lideranas sin-dicais, ao lado de tcnicos e decisores governamentais, as cmaras setoriaisinauguraram um padro tripartite de negociao, consagrado internacional-mente pelo corporativismo europeu. Essa caracterstica levou autores que sededicaram ao estudo da mais expressiva dessas cmaras, a da indstria au-tomotiva, a afirmarem que se tratava da introduo do neocorporativismo noBrasil. Em outros trabalhos,8 tive a oportunidade de refutar amplamente essetipo de interpretao, razo pela qual farei apenas uma breve aluso ao tema,abordando alguns pontos que me parecem essenciais.

    Como foi salientado, a construo do capitalismo industrial no pasteve como pano de fundo uma engenharia poltico-institucional que agregariaos interesses em categorias hierarquizadas e no-competitivas, observando-sea articulao direta entre os setores pblico e privado pela via do corporati-vismo sem a mediao partidria. Institucionalizou-se uma sistemtica de ne-gociao de carter setorial e bipartite entre representantes do empresariado

    7 Ver Diniz, 1997:146.8 Ver Diniz, 1994b:296-303, e 1997:160-87.

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    e integrantes dos altos escales burocrticos, dando origem, em alguns casos, chamada privatizao do Estado. A participao dos trabalhadores em are-nas de negociao ficou restrita presena dos sindicatos operrios, repre-sentando os interesses de suas respectivas categorias, ao lado das elites em-presariais e de tcnicos governamentais na discusso de questes muito es-pecficas na rea trabalhista.

    nesse sentido que se pode apontar o impacto inovador das prticasinauguradas pelas cmaras setoriais, j que consagraram uma sistemtica denegociao tripartite em que os trabalhadores aparecem como interlocutoreslegtimos, determinando, portanto, a ruptura da relao didica e excludenteda tradio corporativa no Brasil. Trata-se, na verdade, do pleno aproveita-mento das virtualidades do modelo corporativo que, na variante que predo-minou entre as dcadas de 30 e 70, tornaram-se subutilizadas. Em primeirolugar, o padro de tutela e de ingerncia do Estado inviabilizou a resoluodo conflito distributivo pela negociao autnoma entre as partes interessa-das. Segundo, a marginalizao da representao dos trabalhadores conteve anegociao tpica desse sistema dentro de parmetros demasiado restritos. Fi-nalmente, o carter tpico e localizado dos acordos obstaculizou a evoluopara uma ampla parceria com o Estado, em virtude da reduzida representa-tividade dos interesses envolvidos, do peso dos nexos clientelistas e do al-cance limitado das questes negociadas.

    Ao legitimar o trabalhador sindicalizado como interlocutor, o meca-nismo em que se baseiam as cmaras setoriais permite certamente alargar ombito das negociaes, mas no leva automaticamente ruptura com a se-torizao dos interesses induzida pela configurao monopolista do mercado,tpica do sistema corporativo brasileiro. No garante, portanto, a prevalnciada tica do interesse pblico e a subordinao das negociaes a critrios deteor abrangente e alcance global. Pode ser certamente eficaz para eliminar osacertos diretos entre grandes empresrios e governo, abalando a prtica doEstado atrelado aos interesses de clientelas privadas, mas no impede a con-tinuidade do antigo padro do Estado a servio de interesses corporativos or-ganizados.

    preciso lembrar que a estratgia empresarial de enfrentamento dacrise que se abateu sobre a economia brasileira nos anos 80, provocando fortereduo do seu ritmo de crescimento, no tratou de reverter a fragmentaoe a setorizao dos interesses, caractersticas do corporativismo brasileiro. Aocontrrio, a evoluo recente acentuou a diferenciao e a disperso. Cria-ram-se novas organizaes, justapostas s antigas, que representaram canaisadicionais de participao, tornando ainda mais complexa a estrutura dual derepresentao historicamente consolidada.9 O maior pluralismo dos rgos

    9 Ver Diniz & Boschi, 1993.

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    de representao empresarial aumentou a diversidade e o conflito, sem a con-trapartida da criao de uma entidade de cpula de carter abrangente etransetorial, capaz de atenuar os efeitos combinados das clivagens setoriais,regionais ou relativas ao porte das empresas. Esse foi, alis, um dos fatoresresponsveis pela inviabilidade dos pactos em torno dos programas de esta-bilizao econmica ensaiados pelos dois primeiros governos da Nova Rep-blica.10 A ausncia de interlocutores reconhecidos pelo conjunto das classesempresariais e trabalhadoras como seus porta-vozes legtimos criaria expec-tativas negativas quanto probabilidade de serem acatados os pactos even-tualmente articulados pelas lideranas. O conjunto de traos aqui resumidosinviabilizaria, no caso brasileiro, o modelo do neocorporativismo, caracters-tico dos pases da social-democracia europia, que se revelou capaz de operarno plano macropoltico, em arenas multissetoriais, produzindo acordos deampla envergadura e cobrindo um vasto espectro de polticas.

    Por outro lado, embora no tenham alterado radicalmente o alcance docorporativismo brasileiro, as cmaras setoriais, que tiveram funcionamentointermitente e transitrio entre 1991 e 1995, constituram importante instru-mento de poltica industrial, representando uma experincia de economic gov-ernance numa burocracia cada vez mais afeita ao estilo tecnocrtico de ges-to. A expresso, introduzida recentemente pela literatura internacional, re-fere-se a uma nova forma de abordar a questo da eficcia da ao estatal,com nfase na sustentabilidade poltica das decises. Nesse sentido, gover-nana significa a capacidade de o governo resolver aspectos da pauta de pro-blemas do pas atravs da formulao e da implementao das polticas per-tinentes, ou seja, tomar e executar decises, garantindo sua continuidade notempo e seu efetivo acatamento pelos segmentos afetados.11 Em outros ter-mos, a noo de governana econmica envolve no s a capacidade de o go-verno tomar decises com presteza, mas tambm sua habilidade de criar coa-lizes de apoio para suas polticas, gerando adeses e condies para prticascooperativas.

    Essa experincia de criao de um espao institucional destinado a in-tegrar processos de formulao de polticas e de articulao de interessesmostrou-se relativamente eficaz no caso dos acordos da indstria automotiva(maro de 1992 e fevereiro de 1993), viabilizando um ajuste criativo em faceda crise acirrada pela abertura comercial.12 Conjugando a reduo dos preose da carga fiscal sobre os automveis consecuo de certas metas bsicas,como a retomada dos investimentos, a manuteno do nvel do emprego e areestruturao produtiva do setor, as negociaes possibilitaram o reergui-

    10 Ver Diniz, 1997:94-104.11 Ver Cohen & Rogers, 1995; Hollingsworth, Schmitter & Streeck, 1994; Conaghan & Malloy,1994; e Locke, 1995.12 Ver Diniz, 1997:169-70.

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    mento e a melhoria do desempenho do complexo automotivo como um todo.Recuperaram-se os nveis de emprego e da produo, e desencadeou-se umadiscusso sobre formas de parceria entre capital, trabalho e governo, tendoem vista a implementao das polticas setoriais concertadas.

    Os efeitos foram, porm, limitados, j que as condies institucionais epolticas do momento no foram favorveis a esse tipo de experimento, queacabou por configurar-se como um esforo localizado, com fraco poder de re-produo, despertando fortes resistncias no interior da prpria equipe eco-nmica do governo, bastante identificada com o estilo centralizado de gestoeconmica. A postura das elites tecnocrticas, francamente contrria aber-tura de espaos de negociao no aparelho estatal para a discusso da pol-tica econmica, seria, alis, um dos fatores responsveis pelo esvaziamentodas cmaras setoriais nos governos subseqentes.

    Consideraes finaisA partir sobretudo de meados dos anos 80, a superposio dos efeitos

    das crises externa e interna ps em xeque a estratgia de industrializao porsubstituio de importaes que por mais de cinco dcadas marcou o padrode desenvolvimento do Brasil e dos demais pases latino-americanos. Essamudana se fez acompanhar da reafirmao dos valores neoliberais.

    No espao de uma dcada, tornou-se generalizada a crena de que asada para a crise de amplas propores que atingiu essas sociedades exigiriao rompimento com as prticas desenvolvimentistas do passado, fortementetributrias da interveno do Estado nos diferentes domnios da vida econ-mica e social. De agente promotor do desenvolvimento, o Estado passou a serencarado como o principal entrave ao desencadeamento de um novo ciclo decrescimento. A reativao do mercado e o refluxo do Estado, como num jogode soma zero, seriam as idias-fora de uma nova era que se impunha emescala mundial. Paralelamente, observa-se um movimento de uniformizaoideolgica em torno de valores legitimadores da nova ordem. O antiestatismoe o repdio do nacionalismo simbolizariam essa postura de rejeio do pas-sado em nome da construo do futuro, num clima marcado pela ideologiza-o crescente do debate. Aprisionados por polaridades e por posies extre-mas, os termos desse debate ficariam circunscritos a frmulas genricas, tra-duzindo-se, no plo liberal, pela primazia de uma agenda padronizada eminimalista, centrada num nmero restrito de prioridades, como a desestati-zao, a privatizao, a abertura da economia e a desregulamentao, tendoem vista os imperativos da reinsero no sistema internacional.

    no contexto marcado pela revivescncia desse iderio que vem tonao tema do fim da era Vargas. A rejeio em bloco da herana de Vargas, comose esta constitusse um todo harmnico e homogneo, contrasta fortementecom as nuanas e contradies associadas sua imagem, indicativas de uma

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    figura poltica multifacetada e de uma poca marcada pela complexidade t-pica de uma fase de transio. Contrasta ainda com a longa capacidade de so-brevivncia denotada pelo arcabouo institucional varguista, revelador de umgrau considervel de enraizamento social.

    Um olhar mais objetivo permite desvendar o significado profundodesse poder de sobrevivncia. Para tanto, preciso examinar o legado de Var-gas em suas vrias dimenses. Tendo em vista os pontos aqui enfatizados,cabe destacar dois aspectos relacionados respectivamente ao sistema de re-presentao de interesses e estrutura do Estado.

    O primeiro, o surto desenvolvimentista verificado entre fins dos anos 60e os anos 70, desencadeou profundas mudanas de natureza econmica e so-cial, esvaziando a fora do corporativismo e dando origem a um sistema h-brido, que se caracterizaria pela coexistncia de antigas e novas configuraesorganizacionais e institucionais.13 Observou-se de fato a extenuao do Estadocomo fator de conteno de uma sociedade que se expandiu e se diferenciou deforma acelerada, ao longo das duas primeiras dcadas do regime militar, ad-quirindo crescente densidade organizacional. Instaurou-se um sistema diversi-ficado e multipolar de representao de interesses, atravs do qual a sociedadeextravasou do arcabouo institucional vigente, erodindo o monoplio da repre-sentao corporativa. Combinando formatos corporativos, clientelistas e plura-listas, esse sistema reflete um profundo processo de reordenamento social e ins-titucional, que ainda est em curso, porm j revela seu carter irreversvel.14

    Portanto, no que se refere a essa dimenso, o legado varguista j est em mu-tao. Trata-se apenas de reconhecer uma realidade, e no propriamente dedesmontar os elementos de determinado padro.

    Por outro lado, sob a primazia do modelo corporativo, a contrapartidada tutela do Estado sobre os interesses organizados seria a criao de umaampla constelao de direitos reconhecidos pelas esferas pblicas como partede um processo mais abrangente que representou, historicamente, uma formade incorporao poltica de atores previamente excludos. A rejeio pura esimples desse passado pode significar no um passo frente em direo modernidade, mas um retrocesso e um distanciamento cada vez maior dopleno exerccio dos direitos de cidadania.

    Deslocando o foco para a estrutura do Estado, preciso considerar doisaspectos. O primeiro refere-se s arenas de representao de interesses no in-terior do aparelho estatal, que marcaram o padro corporativo de articulaoEstado-sociedade, atravs dos conselhos tcnicos, no decorrer das principaisfases da industrializao substitutiva, e das cmaras setoriais, mais recente-mente. O enxugamento do Estado promovido pelo presidente Collor, ao eli-minar os conselhos ainda existentes, extinguiu esses espaos de negociao.

    13 Ver Diniz & Boschi, 1991:24-5.14 Ver Diniz, 1997:178-9.

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    O esvaziamento das cmaras setoriais acentuou a tendncia eliminao doscanais de articulao entre o mundo dos interesses e a esfera estatal. O se-gundo ponto a ser examinado diz respeito ao padro de ao estatal, s re-laes entre os poderes e s caractersticas do processo decisrio. Aqui, o quese observou foi um alto grau de continuidade pelo reforo do estilo tecnocr-tico de deciso, pela assimetria Executivo-Legislativo, pela falta de capaci-dade governativa dos partidos e pelo predomnio de formas coercitivas de im-plementao de polticas. Concluindo, decretar o fim da era Vargas pode serapenas mais um recurso ideolgico a ocultar a persistncia de alguns de seusaspectos menos afinados com a meta da modernidade, se considerarmos queum de seus componentes essenciais a consolidao da democracia, em con-sonncia com a realizao de um projeto coletivo.

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    Do federalismo oligrquico ao federalismo democrtico*Aspsia Camargo**

    O grande desafio, ontem e hoje, num pas continental como o Brasilcontinua sendo a modernizao e o desenvolvimento econmico, social e po-ltico, com descentralizao. Globalizao e descentralizao agora caminhamjuntas. E juntas representam fortes tenses para o sistema poltico e a nacio-nalidade, para a sobrevivncia mesma do conceito de nao. Em pases comoo nosso, considero que a dimenso institucional do federalismo, hoje, s podeser examinada luz da relevncia geopoltica e histrica do regionalismo, umdos pilares mais importantes e mais decisivos para a compreenso dos con-flitos e dos arranjos polticos que marcaram o Brasil entre 1930 e 1937; e quemarcam o Brasil ainda hoje. Quem duvida que as reformas constitucionais so-frem o crivo direto das negociaes regionais, sempre em busca do supri-mento de recursos de que carece a Federao brasileira? Estendendo umpouco mais o vo, possvel constatar que esse legado de 1937 ainda estmuito presente, muito vivo. Algumas coisas mudaram muito pouco ou prati-camente nada, outras mudaram muito, e, como diz o velho ditado, plus achange, plus a devient le mme.

    Quanto mais se muda, mais tudo fica na mesma. O provrbio seaplica bem ao Brasil e serve para designar as poderosas linhas de continui-dade que sempre marcaram a poltica tradicional, a despeito das mudanasimportantes que se processaram nos anos 30 e ao longo deste sculo. Nossodesafio , portanto, lidar com a ruptura e a continuidade ao mesmo tempo. Econstatar que, a cada onda de grandes mudanas, os velhos interesses estopresentes, sempre dispostos a ceder terreno em troca de alguns benefciosimediatos ou para o futuro. Na negociao global incluem-se tanto emendasindividuais de congressistas quanto os portos de Suape e de Sepetiba, vitais

    * Transcrio de exposio oral, revista pela autora.** Pesquisadora da FGV.

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    para garantir a competitividade de regies economicamente marginalizadas,como Pernambuco e Rio de Janeiro. Os arranjos do nosso federalismo muda-ram com excessiva freqncia. Mas a continuidade e a importncia dos pactosregionais no quadro poltico permanecem as mesmas.

    Vou comear pela continuidade, dando aqui um exemplo que considerosignificativo e interessante. Quando fui convidada para organizar o Setor dePesquisa do CPDOC, eu estava ainda em Paris, terminando minha tese sobreas elites agrrias e o movimento campons no Nordeste. E comecei a imaginaro que seria organizar um grupo de pesquisa em torno da era Vargas e da cor-respondncia dos principais colaboradores que o ajudaram a conduzir a Re-voluo de 1930 e a implantar o Estado Novo. J naquele momento a imagi-nao comeou a funcionar. Era bvio que eu, de Paris, achava que os arqui-vos privados iriam registrar como o grande tema poltico os problemas sociaise a legislao trabalhista. Todos ns achvamos isso. Era o fascnio natural dauniversidade pela questo social que alimentava a expectativa de encontrarfartssimo material de correspondncia, de reflexes, de angstias existenciaisda elite brasileira sobre aquilo que foi, sem dvida, uma das maiores contri-buies da era Vargas: a legislao trabalhista. Quando comeamos a decifrara correspondncia do presidente e de seus lderes, praticamente no havia na-da sobre o tema. Nem em extenso ou volume, nem em relevncia.

    A grande surpresa foi a meno exaustiva, nessa mesma correspondn-cia, dos conflitos regionais e das disputas polticas no duro processo de re-construo institucional que tornou possvel a modernizao do Estado, da so-ciedade e da economia brasileira. Os principais atores polticos desse grandeteatro no eram nem partidrios nem sociais. A cena era ocupada por Floresda Cunha e o grupo gacho, e pelo inner circle de lideranas regionais, infor-mantes e conselheiros presidenciais. As pessoas falavam em nome de seus es-tados, e os estados se encarnavam nessas pessoas. Minas Gerais era uma pes-soa, o Rio Grande do Sul era uma superpessoa. Era um grande personagemaquele Rio Grande do Sul, com vrias peas disputando umas com as outras aateno especial do presidente, mas tambm tentando confin-lo realidadegacha. Fazendo o desconto das grandes mudanas que o pas sofreu de lpara c e dos avanos substanciais da democracia, eu diria que o presidenteFernando Henrique, vindo de um grande estado hegemnico como So Paulo,tem tido com o seu estado de origem dificuldades semelhantes s de Vargasem seu domnio gacho. a hegemonia, de um lado, mas o controle dos parese antigos companheiros, de outro. Em 1930, havia, portanto, toda uma teia derelaes e de comunicaes em torno de pessoas e de estados.

    Podemos dizer o seguinte: no Brasil dos anos 30, o grande ator polticoque nos explica a evoluo de 1930 para 1937 de maneira absolutamentefundamental eram os estados. E, evidentemente, os militares centralistas, quepodiam ser reformistas radicais ou reformistas moderados e que se situavamno mesmo eixo, mas no extremo contrrio, contrabalanando as tendncias

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    regionais, puramente polticas e descentralizadas. No estudo sobre A Federa-o acorrentada, procurei fazer um grfico que posicionava no eixo central atenso entre os militares e os polticos regionais; noutro eixo, os intelectuaise a Igreja; e num terceiro, os empresrios e os sindicatos. Porque, na verdade,todo o balano das composies e das coalizes foi em torno disso. A grandeestratgia foi fragmentar ao mximo as velhas e as novas lideranas emer-gentes dos estados para fortalecer o poder central, usando como escudo osmilitares, mas infiltrando aos poucos lideranas mais fiis e dceis ao Estadocentralizado, s suas novas regras e s suas novas composies econmicas esociais. Resumindo, houve estratgias centrais em torno de atores regionaismanipulados e de atores militares; e estratgias de apoio, de alargamento dasalianas, que Eli Diniz descreveu aqui muito bem, e que significaram a incor-porao de atores novos.

    Atores novos so sempre mais manipulveis porque esto ansiosos porinsero e por institucionalizao, mas sem a fora e as resistncias cristaliza-das dos velhos atores na defesa de seus interesses e no controle de seus do-mnios. Porque o grande problema das transies, tanto a de 1930 quanto ados anos 90, que preciso destruir a velha mquina, mas sem descurar demin-la aos poucos, lenta e imperceptivelmente. E sem deixar de construir, si-multaneamente, as novas alianas que sero a ponte para o futuro. O granderisco produzir o vcuo poltico, semelhante ao drama do trapezista que seprojeta no ar, sem nenhuma rede para proteg-lo embaixo e sem ter a cer-teza de que outro companheiro vir ao seu encontro para estender-lhe asmos. Foi o erro que cometeram Jnio Quadros, nos anos 60, e depois Collor,nos 90, contando apenas com sua imagem original e com as manipulaes demarketing e de mdia. Quer dizer, se voc exagerar na dose de mudancismo,sem controlar seus impactos traumticos imediatos, os fantasmas invisveis dovelho sistema viro puxar-lhe a perna de noite, e voc cair da cama. Eis porque so necessrias novas alianas, as mais difusas possveis. Vargas e os tra-balhadores desorganizados, que fizeram dele o pai dos pobres. FernandoHenrique e os filhos do real, antes excludos pelo jogo perverso da inflao. Noentanto, convm no descurar o papel dos atores emergentes; em geral, emer-gentes e frgeis; e s vezes apenas virtuais. O grande desafio criar condiespara que se fortaleam os novos atores, os novos segmentos das classes diri-gentes. Em 1930, havia a polarizao capital versus trabalho, que propiciou aemergncia de um empresariado e de um sindicalismo nacionais, com a medi-ao estatal do Welfare State. Vargas implantou o sistema no Brasil, com os li-mites e as dificuldades bvias de um pas rural, pobre, sem infra-estrutura, depopulao rarefeita e mal distribuda, e politicamente oligrquico. O preodesse enclave modernizante, implantado fora em 1930 e 1937, foi a insta-bilidade poltica crnica que nos acometeu da para a frente, com sucessivasmudanas constitucionais e no sistema partidrio, e surtos de autoritarismoduradouro.

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    Em nossos dias, os atores emergentes no esto mais polarizados emduas metades conflitantes. O jogo de oposioes e contrastes mais fragmen-tado e disperso, como ocorre no mundo inteiro. Os segmentos emergentes sedispem em distintas lideranas de uma sociedade pluralista, mais diversifi-cada, que luta por melhor organizao, mais capacidade gerencial e mais par-ticipao civil, por mais cidadania. Esse modelo participativo o nico quepoder eliminar as desigualdades sociais e civilizar o Brasil em suas bases egrotes, de baixo para cima. A estrutura j em curso so os conselhos comu-nitrios, espalhados pelo Brasil inteiro, na sade, na educao, nos recursoshumanos, incluindo a infncia e o adolescente, alm das diferentes formas deorganizao civil, de carter religioso e voluntrio, como as ONGs. Enquantoos espaos regionais forem de domnio tradicional ou oligrquico, a democra-cia ser apenas