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RReeppeennssaannddoo FFlluusssseerr ee aass iimmaaggeennss ttééccnniiccaass Arlindo Machado Ensaio apresentado no evento Arte en la Era Electrónica - Perspectivas de una nueva estética, realizado em Barcelona, no Centre de Cultura Contemporania de Barcelona, de 29.01 a 01.02.97. Organização: Claudia Giannetti. Promoção: Goethe-Institut Barcelona e Diputació de Barcelona. Se existe hoje uma discussão inevitável no círculo dos artistas que experimentam com dispositivos ou processos tecnológicos, essa discussão é certamente a que diz respeito à própria natureza da intervenção artística numa época marcada pelo tecnocentrismo. A primeira questão que emerge é sempre a mais simples e a mais difícil de responder: em que nível de competência tecnológica deve operar um artista que pretende realizar uma intervenção verdadeiramente fundante? Deve operar ele apenas como usuário dos produtos colocados no mercado pela indústria da eletrônica? Deve operar ele como engenheiro ou programador, de modo a poder construir as máquinas e os programas necessários para dar forma a suas idéias estéticas? Ou ainda deve operar ele no plano da negatividade, como alguém que se recusa a fazer uma utilização legitimadora da tecnologia? Edmond Couchot (1990: 48-59) coloca a questão nos seguintes termos: os dispositivos utilizados hoje pelos artistas para a construção de seus trabalhos (computadores, câmeras, sintetizadores etc.) aparecem a eles inicialmente como caixas pretas (boîtes noires), cujo funcionamento misterioso lhes escapa parcial ou totalmente. O fotógrafo, por exemplo, sabe que se apontar a sua câmera para um motivo e disparar o botão de acionamento, o aparelho lhe dará uma imagem normalmente interpretada como uma réplica bidimensional do motivo que posou para a câmera. Mas o fotógrafo, em geral, não conhece todas as equações utilizadas para o desenho das objetivas, nem as reações químicas que ocorrem nos componentes da emulsão fotográfica. A rigor, pode-se fotografar sem conhecer as leis AXILA http://www.iar.unicamp.br/disciplinas/ap858/AXILA/pagarli... 1 de 17 07/06/15 10:54

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RReeppeennssaannddoo FFlluusssseerr ee aass iimmaaggeennss ttééccnniiccaass

AArrlliinnddoo MMaacchhaaddoo

Ensaio apresentado no evento Arte en la Era Electrónica - Perspectivas deuna nueva estética,

realizado em Barcelona, no Centre de Cultura Contemporania de Barcelona,de 29.01 a 01.02.97.

Organização: Claudia Giannetti. Promoção: Goethe-Institut Barcelona eDiputació de Barcelona.

Se existe hoje uma discussão inevitável no círculo dosartistas que experimentam com dispositivos ou processostecnológicos, essa discussão é certamente a que dizrespeito à própria natureza da intervenção artística numaépoca marcada pelo tecnocentrismo. A primeira questão queemerge é sempre a mais simples e a mais difícil deresponder: em que nível de competência tecnológica deveoperar um artista que pretende realizar uma intervençãoverdadeiramente fundante? Deve operar ele apenas comousuário dos produtos colocados no mercado pela indústria daeletrônica? Deve operar ele como engenheiro ouprogramador, de modo a poder construir as máquinas e osprogramas necessários para dar forma a suas idéiasestéticas? Ou ainda deve operar ele no plano danegatividade, como alguém que se recusa a fazer umautilização legitimadora da tecnologia?Edmond Couchot (1990: 48-59) coloca a questão nosseguintes termos: os dispositivos utilizados hoje pelosartistas para a construção de seus trabalhos (computadores,câmeras, sintetizadores etc.) aparecem a eles inicialmentecomo caixas pretas (boîtes noires), cujo funcionamentomisterioso lhes escapa parcial ou totalmente. O fotógrafo,por exemplo, sabe que se apontar a sua câmera para ummotivo e disparar o botão de acionamento, o aparelho lhedará uma imagem normalmente interpretada como umaréplica bidimensional do motivo que posou para a câmera.Mas o fotógrafo, em geral, não conhece todas as equaçõesutilizadas para o desenho das objetivas, nem as reaçõesquímicas que ocorrem nos componentes da emulsãofotográfica. A rigor, pode-se fotografar sem conhecer as leis

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de distribuição da luz no espaço, nem as propriedadesfotoquímicas da película, nem ainda as regras da perspectivamonocular que permitem traduzir o mundo tridimensional emimagem bidimensional. As câmeras modernas estãoautomatizadas a ponto de até mesmo a fotometragem daluz e a determinação do ponto de foco serem realizadas peloaparelho.

Não é muito diferente o que ocorre com o computador. Masa caixa preta que chamamos de computador, como adverteCouchot, não é constituída apenas de circuitos eletrônicos,de hardware (processadores, memória); ela compreendetambém as linguagens formais, os algoritmos, os programas,numa palavra, o software. Assim, enquanto o aparelhofotográfico é programado já na fábrica para realizardeterminadas funções e apenas essas funções, ocomputador, pelo contrário, aparece como uma máquinagenérica, que se pode programar de mil maneiras diferentespara cumprir funções teoricamente infinitas, inclusive parasimular qualquer outro aparelho ou instrumento. Numapalavra, no computador estão sempre implicadas duasdiferentes modalidades de caixa preta: uma "dura", hard,cujo programa de funcionamento já está inscrito nos seuspróprios elementos materiais, e outra "imaterial", soft, quediz respeito ao conjunto de instruções formais, em geralapresentadas em linguagem matemática de alto nível,destinadas a determinar como o computador e seusperiféricos vão operar.

Voltando a Couchot, deve então o artista penetrarobrigatoriamente no interior da caixa preta, para interferirem seu funcionamento interno (seja positivamente, nosentido de colocar a máquina a trabalhar em benefício desuas idéias estéticas, seja negativamente, no sentido dedesvelar as determinações que ela impõe), ou deve situar-seele do lado de fora, no sentido de preservar um savoir faireestritamente artístico? Ou dito de forma mais direta: quemutiliza o computador para criar trabalhos de intençãoartística deve saber programar, ou é suficiente o domínio deum bom programa comercial?

Longe de se reduzir a um problema de ordem metodológicaou a uma questão puramente pragmática, essa pergunta quehoje se repete com tanta insistência esconde problemasfilosóficos importantes e estratégicos para se definir o

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estatuto da arte nas sociedades industriais oupós-industriais. Uma das formulações mais agudas desseproblema foi realizada por Vilém Flusser, importantepensador tcheco que viveu 31 anos no Brasil, tendo sido oprincipal mentor intelectual de várias gerações de artistasbrasileiros que enfrentaram o desafio da tecnologia. Emmeados dos anos 80, Flusser publicou, em duas ediçõesligeiramente diferentes, uma em portugês e outra emalemão, sua obra mais importante, que se chama justamenteFilosofia da Caixa Preta, uma reflexão densa sobre aspossibilidades de criação e liberdade numa sociedade cadavez mais centralizada pela tecnologia. Na Alemanha, essaobra teve ainda um desdobramente posterior, sob o títuloIns Universum der technischen Bilder (1985a). Cinco anosdepois de seu falecimento, Flusser permanece ainda, noscírculos que discutem a arte da era eletrônica, um pensadorpouco conhecido, mas cuja contribuição fundamental nessecampo demanda resgate urgente.

Em Filosofia da Caixa Preta, Flusser dirige suas reflexões nadireção das chamadas imagens técnicas, ou seja, daquelasimagens que são produzidas de forma mais ou menosautomática, ou melhor dizendo, de forma programática,através da mediação de aparelhos de codificação. Flusser serefere amiude à imagem fotográfica, por considerá-la oprimeiro, o mais simples e ao mesmo tempo o maistransparente modelo de imagem técnica, mas a suaabordagem se aplica facilmente a qualquer espécie deimagem produzida através de mediação técnica, inclusive àsimagens digitais, que parecem ser o motivo mais urgente einconfessado dessas reflexões. A mais importantecaracterística das imagens técnicas, segundo Flusser, é ofato delas materializarem determinados conceitos a respeitodo mundo, justamente os conceitos que nortearam aconstrução dos aparelhos que lhes dão forma. Assim, afotografia, muito ao contrário de registrar automaticamenteimpressões do mundo físico, transcodifica determinadasteorias científicas em imagem, ou para usar as palavras dopróprio Flusser, "transforma conceitos em cenas" (1985b:45). As fotografias em preto-e-branco, que interpretam ovisível em termos de tons de cinza, demonstram bem comoas teorias da óptica e da fotoquímica estão em seu origem.Mas também nas fotografias em cores, o colorido pode sertão "teórico" ou abstrato quanto nas imagens em preto-

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e-branco. No dizer de Flusser, o verde do bosquefotografado é imagem do conceito de "verde", tal comodeterminada teoria química o elaborou, e a melhor provadisso é que o "verde" produzido por uma película Kodakdifere significativamente do "verde" que se pode obter empelículas Orwo ou Fuji e do "verde" flamejante que se podeexibir em uma tela eletrônica.

Talvez tenha sido necessário esperar até o surgimento docomputador para que as imagens técnicas se revelassemmais abertamente como resultado de um processo decodificação icônica de determinados conceitos científicos. Nocomputador, tanto a "câmera" que se utiliza para descrevercomplexas trajetórias no espaço, como as "objetivas" de quese lança mão para dispor diferentes campos focais, comoainda os focos de "luz" distribuídos na cena para iluminar apaisagem já não são objetos físicos, mas operaçõesmatemáticas e algoritmos baseados em alguma lei da física.Eis porque, a partir do computador, a hipóstase do projetofotográfico se desvela. As imagens técnicas, ou seja, asrepresentações icônicas mediadas por aparelhos, não podemcorresponder a qualquer duplicação inocente do mundo,porque entre elas e o mundo se interpõem transdutoresabstratos, os conceitos da formalização científica queinformam o funcionamento de máquinas semióticas taiscomo a câmera fotográfica e o computador.

É possível, portanto, definir as máquinas semióticas pela suapropriedade básica de estarem programadas para produzirdeterminadas imagens e para produzi-las de determinadamaneira, a partir de certos princípios científicos definidos apriori. As formas simbólicas (imagens) que essas máquinasconstróem já estão, de alguma maneira, inscritaspreviamente (pré-escritas, programadas) na sua própriaconcepção e na concepção de seus(s) programa(s) defuncionamento. Isso quer dizer que uma máquina semióticacondensa em suas formas materiais e imateriais um certonúmero de potencialidades e cada imagem técnica produzidaatravés dela representa a realização de algumas dessaspossibilidades. Na verdade, programas são formalizações deum conjunto de procedimentos conhecidos, onde parte doselementos constitutivos de determinado sistema simbólico,bem como as suas regras de articulação são inventariados,sistematizados e simplificados para serem colocados à

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disposição de um usuário genérico, preferencialmente leigo.

Ao usuário que lida com essas máquinas e que extrai delasas imagens técnicas, Flusser dá o nome de funcionário. Parao funcionário, as máquinas semióticas são caixas pretas cujofuncionamento e cujo mecanismo gerador de imagens lheescapam parcial ou totalmente. O funcionário lida apenascom o canal produtivo, mas não com o processo codificadorinterno. Mas isso não importa, porque tais caixas aparecem aele de forma amigável (user-friend), ou seja, elas podemfuncionar e colocar em operação o seu programa gerador deimagens técnicas mesmo quando o funcionário que asmanipula desconhece o que se passa em suas entranhas, umpouco como o motorista pode dirigir um carro sem sepreocupar com o funcionamento do motor. O funcionáriodomina apenas o input e o output das caixas pretas. Elesabe como alimentar as máquinas e como acionar os botõesadequados, de modo a permitir que o dispositivo cuspa asimagens desejadas. Assim, o funcionário escolhe, dentre ascategorias disponíveis no sistema, aquelas que lhe parecemmais adequadas e com elas constrói a sua cena. Uma vezque pode escolher, o funcionário acredita estar criando eexercendo uma certa liberdade, mas a sua escolha serásempre programada, porque é limitada pelo número decategorias inscritas no aparelho ou máquina. Para produzirnovas categorias, não previstas na concepção do aparelho,seria necessário intervir no plano da própria engenharia dodispositivo, seria preciso reescrever o seu programa, o quequer dizer: penetrar no interior da caixa preta e desvelá-la.

Máquinas e programas são criações da inteligência dohomem, são materializações de um processo mental,pensamento que tomou corpo, como já defendia, em seutempo, Gilbert Simondon (1969). Mas, desgraçadamente,essas mesmas máquinas e programas, baseiam-se, em geral,no poder de repetição e o que elas repetem até a exaustãosão os conceitos da formalização científica. A repetiçãoindiscriminada conduz inevitavelmente à estereotipia, ouseja, à homogeneidade e previsibilidade dos resultados. Amultiplicação à nossa volta de modelos pré-fabricados,generalizados pelo software comercial, conduz a umaimpressionante padronização das soluções, a umauniformidade generalizada, quando não a uma absolutaimpessoalidade, conforme se pode constatar em encontros

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internacionais tipo Siggraph, onde se tem a impressão deque tudo o que se exibe foi feito pelo mesmo designer oupela mesma empresa de comunicação. Se é natural e atémesmo desejável que uma máquina de lavar roupas repitasempre e invariavelmente a mesma operação técnica, que éa de lavar roupas, não é todavia a mesma coisa que seespera de aparelhos destinados a intervir no imaginário, oude máquinas semióticas cuja função básica é produzir benssimbólicos destinados à inteligência e à sensibilidade dohomem. A estereotipia das máquinas e processos técnicos é,aliás, o principal desafio a ser vencido na área da informática,talvez até mesmo o seu dramático limite, que se buscasuperar de todas as formas através de uma por enquantohipotética Inteligência Artificial.

Numa primeira aproximação, Flusser adverte, portanto, sobreos perigos da atuação puramente externa à caixa preta. Naera da automação, o artista, não sendo capaz ele próprio deinventar o equipamento de que necessita ou de(des)programá-lo, queda-se reduzido a um operador deaparelhos, isto é, a um funcionário do sistema produtivo, quenão faz outra coisa senão cumprir possibilidades já previstasno programa, sem poder, todavia, no limite desse jogoprogramado, instaurar novas categorias. Da parte da críticae do público, o que se percebe é uma crescente dificuldade,à medida que os programas se tornam cada vez maispoderosos e "amigáveis", de saber discriminar entre umacontribuição original e a mera demonstração das virtudes deum programa. Nada pode ser mais desconfortável para umrealizador de trabalhos de computação gráfica ou multimídiado que aquela pergunta inevitável que lhe é desferidaimediatamente após qualquer exibição: que programa vocêusou para fazer isso? Uma vez que permanecemos incapazesde saber o que se passa no interior da caixa preta, "somos,por enquanto, analfabetos em relação às imagens técnicas.Não sabemos como decifrá-las" (Flusser 1985b: 21).

Nesse sentido, assistimos hoje a um certo degringolamentoda noção de valor em arte: os juízos de valorização setornam frouxos, ficamos cada vez mais condescendentes emrelação a trabalhos realizados com mediação tecnológica,porque não temos critérios suficientemente maduros paraavaliar a contribuição de um artista ou de uma equipe derealizadores. Como conseqüência, a sensibilidade começa a

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ficar embotada, perde-se o rigor do julgamento e qualquerbobagem nos excita, desde que pareça estar up to date como estágio atual da corrida tecnológica. A verdadeira tarefada arte (e da filosofia que a ampara teoricamente) seria,ainda segundo Flusser, se insurgir contra essa automaçãoestúpida, contra essa robotização da consciência e dasensibilidade, e recolocar as questões da liberdade e dacriatividade no contexto de uma sociedade cada vez maisinformatizada e cada vez mais dependente da tecnologia.

Quer isso então dizer que uma intervenção artísticarealmente fundante se torna impraticável fora de umposicionamento interno à caixa preta? Flusser parece dizerque sim. "Toda crítica da imagem técnica -- diz ele -- devevisar o branqueamento dessa caixa" (1985b: 21). Couchot,entretanto, aponta alguns casos em que o artista, mesmotrabalhando com programas comerciais e aparelhos que elenão pode modificar, é esperto o suficiente para trazer ocomputador para o seu domínio, em vez de se deslocar elepróprio para o domínio pouco conhecido da informática. Issoacontece naquelas situações em que o computador e aimagem digital aparecem em contextos híbridos, misturadoscom outros procedimentos e outros dispositivos maisfamiliares ao realizador, como nas instalações e também naschamadas poéticas das passagens (Bellour, 1990: 37-56),em que as imagens migram de um suporte a outro, ou entãocohabitam um mesmo espaço de visualização, mesmo sendode natureza distinta (artesanais, fotográficas, digitais).Couchot (1990: 51-2) invoca o caso do artista alemão PeterWeibel, cujo Gesänge des Pluriversums (1986-88) utiliza ahibridização de recursos para "substituir o ponto de vistacentral imposto pelo olho da câmera por um olhar expandidoe flutuante sobre o mundo", e também o do polonêsZbigniew Rybczynski, cujo Steps (1987) insere digitalmenteimagens eletrônicas de turistas norte-americanos num antigofilme mudo de Serguei Eisenstein.

O grande problema de toda a argumentação de Flusser é queele concebe as potencialidades inscritas nos aparelhos eseus programas como sendo finitas: elas são amplas, maslimitadas em número. Isso quer dizer que, mais cedo ou maistarde, com a ampliação de suas realizações, as possibilidadesde uma máquina semiótica acabarão por ser esgotadas. Ora,que há limites de manipulabilidade em toda máquina ou

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processo técnico é algo de que só podemos fazer umaconstatação teórica, pois na prática esses limites estão emcontínua expansão. Que aparelhos, suportes ou processostécnicos poderíamos dizer que já tiveram esgotadas as suasposibilidades? Mesmo a fotografia, com mais de um século emeio de prática efetiva, com uma utilização generalizada emtodas as esferas da produção humana, ainda não se podedizer que tenha sido esgotada e é difícil imaginar que algumdia possamos dizer isso (Machado, 1993a: 37). O próprioVilém Flusser (1983: 6-7) já saudou a obra recente dofotógrafo alemão Andreas Müller-Pohle como um trabalhoque faz saltar o gesto do fotógrafo para além do jogoprogramado das tecnologias da câmera e da película. Dada acomplexidade dos conceitos invocados na concepção de umamáquina semiótica, poderíamos então dizer que sempreexistirão potencialidades dormentes e ignoradas, que oartista inquieto acabará por descobrir, ou até mesmo porinventar, ampliando portanto o universo das possibilidadesconhecidas de determinado meio.

Flusser, na verdade, não ignora isso. Ele reconhece queexistem regiões, na imaginação dos aparelhos, quepermanecem inexploradas, regiões que o artista navegapreferencialmente, para trazer à luz imagens nunca antesvisualizadas. Na sua situação-limite, a relação entre usuário eaparelho aparece como um jogo, em que o primeiro usa todaa sua astúcia para submeter a intenção do aparelho à suaprópria, enquanto o segundo trabalha no sentido de resgataras descobertas do primeiro para os seus próprios propósitos.Flusser reconhece que esse jogo se dá de formasuperlativamente concentrada no campo da arte de caráterexperimental, onde o artista luta por desviar o aparelho desua função programada e, por extensão, para evitar aredundância e favorecer a invenção. Mas, até onde os seustextos permitem avançar nessa direção, Flusser parececonceber de forma demasiado pessimista o destino dessarelação. Para ele, mais cedo ou mais tarde, o universotecnológico acabará por incorporar as descobertas e osdesvios dos artistas para os seus fins programados. Todainvenção, toda rota nova descoberta serão acrescentadas aouniverso de possibilidades do(s) aparelho(s), de modo quese pode dizer que, no fim das contas, as máquinassemióticas se alimentam das inquietações dos artistasexperimentais e as utilizam como um mecanismo de

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feed-back para o seu contínuo aperfeiçoamento.

Aqui talvez se possa corrigir Flusser em alguns aspectos desua argumentação. Existem diferentes maneiras de se lidarcom um aparelho ou um programa e de lançar mão delespara um projeto estético. Algumas dessas utilizações sedesviam em tal intensidade do projeto tecnológico originalque equivalem a uma completa reinvenção do meio. QuandoNam June Paik, com a ajuda de imãs poderosos, desvia ofluxo dos elétrons no interior do tubo iconoscópico datelevisão, para corroer a lógica figurativa de suas imagens;quando fotógrafos como Frederic Fontenoy e AndrewDavidhazy modificam o mecanismo do obturador da câmerafotográfica para obter não mais o congelamento de uminstante, mas um "fulminante processo de desintegração dasfiguras resultante da anotação do tempo no quadrofotográfico" (Machado, 1993b: 105); quando William Gibson,em seu romance digital Agrippa (1992), coloca na tela umtexto que se embaralha e se destrói, graças a uma espéciede vírus de computador capaz de detonar os conflitos dememória do aparelho, não se pode mais, em nenhum dessesexemplos, dizer que os realizadores estão apenas cumprindo"possibilidades" do meio. Eles estão, na verdade,atravessando os limites da máquina e reinventandoradicalmente o seu programa e as suas finalidades.

O que faz um verdadeiro criador, em vez de submeter-sesimplesmente a um certo número de possibilidades impostaspelo aparato técnico, é subverter continuamente a função damáquina de que ele se utiliza, é manejá-la no sentidocontrário de sua produtividade programada. Talvez até sepossa dizer que um dos papéis mais importantes da artenuma sociedade tecnocrática seja justamente a recusasistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos detrabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinassemióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funçõese finalidades. Longe de deixar-se escravizar por uma norma,por um modo estandardizado de comunicar, obras realmentefundantes na verdade reinventam a maneira de se apropriarde uma tecnologia. Nesse sentido, as "possibilidades" dessatecnologia não podem ser vistas como estáticas oupré-determinadas; elas estão, pelo contrário, em permanentemutação, em contínuo redirecionamento e crescem namesma proporção que o seu repertório de obras criativas.

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Mas se é preciso corrigir Flusser nos aspectos maisdeterministas de sua argumentação, não se pode perder devista que o objetivo principal de sua indagação filosófica é acrítica da padronização do ato criador e do embotamento dasensibilidade que caracterizam o ambiente industrial oupós-industrial das máquinas, dos programas e dosfuncionários, crítica essa que é condição sine qua nom detoda intervenção estética renovadora.

Até aqui, examinamos as possibilidades de criação sob o viésdas obras que se pode conceber através da mediação demáquinas não necessariamente inventadas pelos própriosartistas. Talvez seja necessário agora inverter o enfoque eexaminar o problema a partir da consideração das própriasmáquinas e da sua real intervenção na experiência estéticacontemporânea. Antes de mais nada, é preciso considerarque, em geral, utilizamos a palavra máquina para designarum espectro demasiado amplo e diversificado de dispositivostécnicos, como se todos eles fossem da mesma natureza efuncionassem da mesma forma. Heinz von Foerster (1984:2-24) já advertiu, no entanto, que devemos distinguir entremáquinas triviais -- dispositivos conceituais com regras deoperação determinísticas e bem definidas -- e máquinasnão-triviais, cujos mecanismos internos, por serem variáveis,instáveis, auto-alimentados e sujeitos a intervenções doacaso, permitem obter, como resultado, objetos ou açõesimprevisíveis e paradoxais. Lembremo-nos ainda de que, paraSimondon, o automatismo (ou sua forma industrial eeconômica, a automação) corresponde ao grau mais baixode definição dos objetos técnicos. "O verdadeiroaperfeiçoamento das máquinas, aquele que se pode dizerque eleva o seu grau de tecnicidade, corresponde não a umincremento do automatismo, mas, pelo contrário, àintrodução de uma certa margem de indeterminação em seufuncionamento. É essa margem que permite à máquinatornar-se sensível a uma informação exterior" (Simondon1969: 11).

Nesse sentido, um dos casos mais paradoxais na cenaartística contemporânea é o de Harold Cohen, criador deAaron, um programa que capacita o computador a pintarcomo um artista plástico. O caso Cohen é muito especialporque diz respeito a um artista que teve grande prestígiona Inglaterra nos anos 60 e que poderia ter dado

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continuidade a uma carreira estável e confortável, se algumainquietação profunda não o tivesse levado a abandonar apintura, migrar para os Estados Unidos, integrar-se a umcircunspecto grupo de cientistas que promovia pesquisas noterreno da Inteligência Artificial, na tentativa um tantoquixotesca de construir uma máquina de pintar controladapor computador. Carente de formação matemática ecientífica, Cohen teve de amargar mais de uma décadaestudando linguagens de computador, até que estivesse emcondições de mostrar publicamente sua máquinafuncionando ao vivo e produzindo pinturas remotamentefigurativas. O mais curioso nas imagens produzidas peloAaron é que elas não apenas jamais repetem a iconografia eo geometrismo convencionais da computação gráfica, comotambém jamais se repetem a si mesmas. O programa sebaseia em uma série de regras e metas, mas situaçõesrandômicas se encarregam de relativizar a rigidez dessasdiretrizes e um sistema de feedback faz o computador voltarsempre para trás, na tentativa de se corrigir, se aperfeiçoar,checar o seu progresso e determinar os passos a seremdados em seguida. Não existindo uma autoridade central,que controle o cumprimento integral das regras e metas, osistema depende então de agentes autônomos que secomunicam apenas no plano local, como se fossem formasorgânicas tentando se adaptar ao ambiente. Se os quadrosconcebidos pelo Aaron não suportam termos de comparaçãocom obras de Pollock, Newman, Rothko ou Dubuffet, épreciso considerar, entretanto, que Cohen não visaexatamente resultados em termos de imagens, mas oprocesso de construção de Aaron como um meio de exploraras suas próprias idéias sobre arte. Em geral, Cohen sempreevitou expor os desenhos, mas preferia mostrar a própriamáquina produzindo-os, não porque os desenhos não fossembons -- eles o são, isso é o mais surpreendente --, masporque o objetivo principal de Aaron é "clarificar osprocessos envolvidos nas atividades de fazer arte" (Cohen,apud McCorduck, 1991: 41). Atuando, portanto, na fronteiramais indefinida entre arte e ciência, Cohen parece nos quererdizer que sua obra é Aaron e não as imagens que este últimopermite conceber.

Quando Flusser propõe uma atuação direta no interior dacaixa preta ele, com certeza, não estava autorizando umadissolução da arte na técnica e, nesse sentido, sua

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perspectiva é radicalmente diversa daquela que é hoje tãocorrente e que vê a atividade estética passandoprogressivamente das mãos do artista para as mãos doengenheiro ou do cientista. De fato, enquanto a maior partedos analistas afirma que a essência do valor artístico estáagora no desenvolvimento de software (vide, por exemplo,Pearson 1988: 73s), retomando portanto uma antiga idéiade Pound (1996: 57-83), segundo a qual as máquinas eprocessos técnicos podem ser encarados como formasdinâmicas dotadas de beleza estética em si, Flusserdesconfia de que a tecnologia se converte hoje numa formade constrangimento para o criador, numa preocupação, nosentido heideggeriano de Sorge (envolvimento concentradoe exclusivo), que muitas vezes o desvia de sua perspectivaradical e retira a força de seus trabalhos. Na verdade, não épreciso muita filosofia para verificar isso. Basta observarqualquer congresso de arte eletrônica, de música digital oude escritura interativa, ou folhear qualquer revista dedicadaa essas especialidades, para se constatar que o discursoestético, o discurso musical e o discurso literário foramcompletamente substituídos pelo discurso técnico, e quequestões relativas a algoritmos, hardware e softwaretomaram completamente o lugar das novas idéias criativas.O resultado é um panorama extraordinariamente rico demáquinas e processos técnicos que se aperfeiçoam semcessar, mas o que se produz efetivamente com essesdispositivos, com raras e felizes exceções, é limitado,conformista e encontra-se abaixo do nível mediano.

Aqui reside a diferença introduzida por Cohen. O gigantescoempenho na direção de uma máquina de pintar não reduzjamais a sua démarche a um projeto puramente tecnológico,malgrado o desafio técnico tenha sido enfrentado em todasua extensão e profundidade. Ao longo do processo inteirode criação de Aaron, Cohen não se sentiu tentado a refletirou a escrever sobre as soluções técnicas (algoritmos, rotinasde programas) que ele foi encontrando para resolver odesafio da máquina de pintar. Pelo contrário, sua produçãoteórica no período se concentra surpreendentemente numadiscussão densa sobre questões de natureza ontológicasobre o significado da arte. Isso se explica: para construirseriamente uma máquina capaz de produzir arte (e não maisum gadget industrial), Cohen teve de se perguntar o tempotodo o que é arte, o que se passa na cabeça de um artista

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quando ele está criando, que caminhos intrincados eimprevisíveis ele atravessa para chegar a resultadosconsistentes. Mais do que dar forma automática a regras ecânones cristalizados pela história da arte, Cohen teve deenfrentar o desafio de uma máquina permanentemente inprogress, de uma máquina indeterminada e interminável,porque interminável é também a discussão sobre o sentido eo enigma da arte. Aaron é, portanto, um caso raro de"máquina" (agregado de hardware e software) cujo processocriativo pode ser integrado sem constrangimentos aoconjunto de indagações e experiências da arte atual, ondeele ocupa inclusive um lugar privilegiado por apontar parauma via não redutora.

Na verdade, a penetração concreta no interior da caixa pretaé uma possibilidade que Flusser admite, mas não chega aexplorar mais detidamente, preferindo desviar o enfoquepara o campo liberador da filosofia. Couchot, entretanto,enfrenta abertamente a questão e vislumbra exemplos dessaintervenção desveladora na obra de um certo número deartistas contemporâneos. Coincidentemente, a maioriadesses realizadores acumula, ao lado de uma cultura artísticasofisticada, também uma sólida formação científica (uns sãoengenheiros eletrônicos, outros especialistas em física ou emciências da computação), podendo portanto criar os seuspróprios dispositivos e programas em qualquer nível decompetência tecnológica. Alguns deles utilizam programas"abertos", ou seja, programas que aceitam instruções emodificações em linguagens de programação. Outros partempara a autoria de seus próprios programas.

Hervé Huitric e Monique Nahas, por exemplo, conceberamespecialmente para seu trabalho artístico o programa Rodin,um modelador de formas tridimensionais capaz de gerarsutis distorções através de cálculos de curvas paramétricas.Com esse recurso informático, os autores conseguem sedesviar da tendência naturalista da computação gráfica maisconvencional e propor um trabalho mais original e deinegável beleza. Michel Bret escreveu ele próprio o programaAnyflo, que lhe permite colocar em movimento um bestiáriodigno de Borges, provoado de criaturas delirantes eimpossíveis, cujo comportamento não pode ser inteiramenteprevisto, pois depende das interações que vão efetivamenteacontecer na cena (Bret, 1988: 3-9). William Latham, por

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sua vez, utiliza um programa chamado Mutator, concebidopor seus colaboradores Stephen Todd e Peter Quarendonespecialmente para "esculpir" complexas formastridimensionais. Em obras como The Conquest of Form(1988) e The Evolution of Form (1990), Latham pôdecolocar em movimento e em metamorfose formas abstratasde uma beleza incomum, fazendo combinar mutaçõesaleatórias com escolhas precisas efetuadas pelo artista(Popper, 1993: 96). Já Yoichiro Kawaguchi, um dos artistasmais originais no âmbito da computer art, utiliza umprograma desenvolvido por ele próprio, o MorphogenesisModel. Associado a um complexo sistema computacional demodelação e animação chamado Metaball, esse programapermite conceber formas de uma complexidade crescente,formas quase-orgânicas, que parecem obedecer a certas leisnaturais de gênese e crescimento dos seres vivos(Kawaguchi, 1982: 223-230). Tudo muito selvagem,anárquico, irregular e produzido com uma liberdade que nãolembra nem de longe os protótipos lisos e regulares dacomputação gráfica rotineira.

Quer isso dizer então que a intervenção no interior da caixapreta só é possível a uma classe muito especial de artistas,aquela dotada também de competência científica etecnológica? É verdade que muitos dos pioneiros dacomputer art, como Manfred Mohr, Edvard Zajec e DuanePalyka, eram também e coincidentemente engenheiros,programadores e matemáticos, acumulando talentos aomesmo tempo nas artes plásticas e nas ciências exatas.Outros, porém, menos dotados em termos de formaçãotécnica, descobriram os seus próprios caminhos e acabarampor lançar uma luz nova sobre esse problema.

Naturalmente, o caminho mais óbvio dos artistas no universodas competências tecnológicas é o trabalho em parceria.Nam June Paik, por exemplo, soube extrair todos osbenefícios de sua parceria com o engenheiro japonês SuyaAbe e, sem este último, ele provavelmente nunca terialogrado seu sintetizador de imagens eletrônicas, responsávelpor boa parte de sua célebre iconografia. No ambientebrasileiro, seria inevitável a menção de Waldemar Cordeiro,artista que se beneficiou grandemente do trabalho conjuntocom o físico italiano Giorgio Moscati para construir suasimagens digitais, já na década de 60. Nos territórios da arte

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que lida com processos tecnológicos, a parceria possibilitadar forma orgânica aos vários talentos diferenciados eequacionar certeiramente as atuais demandas do trabalhoartístico, que são conhecimento e intuição, sensibilidade erigor, disciplina e anarquia criativa. Artistas, em geral, nãodominam problemas científicos e tecnológicos; cientistas eengenheiros, em contrapartida, não estão a par do complexointrincado de motivações da arte contemporânea.Conjuntamente, ambos podem superar suas respectivasdeficiências e contribuir para recuperar a antiga idéia gregade téchne, que compreendia tanto a invenção técnicaquanto a expressão artística.

Para isso, talvez seja necessário relativizar as contribuiçõesde todas as inteligências e de todas as sensibilidades queconcorrem para configurar a experiência estéticacontemporânea. Isso implica, é claro, uma desmistificação decertos valores convencionais ou até mesmo arrogantes,inspirados na idéia de que a "obra" seria o produto de umgênio criativo individual, que ocuparia uma posição superiorna hierarquia das competências do fazer artístico. Quandohomens como Nam June Paik ou Woody Vasulka sentam-sediante de um sintetizador eletrônico de imagem, em geralassessorados por engenheiros e técnicos de som, e se põema intervir diretamente no fluxo de elétrons de um tubo deraios catódicos, eles estão, na verdade, efetuando umdiálogo com a máquina, um diálogo em que nenhuma daspartes produz uma determinação final. Muitos dos resultadosobtidos jamais poderiam ter sido premeditados ouplanejados pelo artista ou por seus engenheiros, mastambém não poderiam emergir a partir de uma utilizaçãoapenas convencional da máquina, dentro dos seus padrões"normais" de funcionamento. Antes, tais resultados são àsvezes derivados de uma conjugação de fatores, que incluitodos os talentos implicados na materialização de uma obra,incluindo o espectador, e na qual o acaso não deixa de jogartambém um papel importante. Se a "obra" obtida atravésdesse processo é criação da máquina, dos engenheiros que aprogramaram ou do artista que a desviou de sua funçãooriginal constitui questão irresolúvel e por isso mesmoobsoleta. Há cada vez menor pertinência em encarar osprodutos e processos estéticos contemporâneos comoindividualmente motivados, como manifestações de estilo deum gênio singular, do que como um trabalho de equipe,

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socialmente motivado, em que o resultado não podeconsistir em outra coisa que um jogo de tensões entre osmais variados agentes e fatores, uma economia simbólica denatureza dialógica, como diz Couchot (1997).

Aparelhos, processos e suportes possibilitados pelas novastecnologias repercutem, como bem o sabemos, em nossossistemas de vida e de pensamento, em nossa capacidadeimaginativa e nas nossas formas de percepção do mundo.Cabe à arte fazer desencadear todas essas conseqüências,nos seus aspectos grandes e pequenos, positivos enegativos, tornando explícito aquilo que nas mãos dosfuncionários da produção ficaria apenas enrustido,desapercebido ou mascarado. Essa atividade éfundamentalmente contraditória: de um lado, trata-se derepensar o próprio conceito de arte, absorvendo construtivae positivamente os novos processos formativos abertospelas máquinas; de outro, trata-se de tornar tambémsensíveis e explícitas as finalidades embutidas em grandeparte dos projetos tecnológicos, sejam elas de naturezabélica, policial ou ideológica. Voltando a Flusser, a artecoloca hoje os homens diante do desafio de poder viverlivremente num mundo programado por aparelhos. "Apontaro caminho da liberdade" é, segundo Flusser (1985b: 84), "aúnica revolução ainda possível".

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