5
Latitude, vol. 7, n°1, pp 195-199, 2013. 195 Resenha: a teoria dos jogos em Goffman e a manutenção do eu Jorge Henrique Silvestre Barbosa 1 GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. (Coleção Sociologia). Ainda que os ensaios que compõem o conjunto aqui em questão datem das décadas de 1950 e 1960, e a publicação original do livro que os reuniu, de 1967; estes permaneceram sem tradução para a língua portuguesa até 2011, mais de quarenta anos após sua publicação original. Assim, tendo por base este lapso temporal entre as edições em língua inglesa e portuguesa, alguns podem argumentar acerca da pertinência destes estudos para a contemporaneidade, portanto da utilidade da resenha que aqui começa a ganhar forma. Porém, antes de levantarmos estas questões, devemos levar em conta a barreira linguística que se impôs durante este período em relação ao trabalho aqui abordado, fazendo com que este se mantivesse relativamente desconhecido entre os estudantes e profissionais das Ciências Sociais brasileiros, passando a ganhar maior notoriedade apenas após sua tradução. Destarte, acredita-se ser necessário considerar que a resolução de publicar o livro pela primeira vez no Brasil tanto tempo após ter sido lançado, já demonstra a relevância dos escritos goffminianos para a contemporaneidade. Além disso, este é um autor que tem sido constantemente revisitado, especialmente após os anos 2000, é tanto que figurou em sexto lugar na lista dos autores mais citados na área das Ciências Humanas em 2007 2 . Desta forma, a leitura de “Ritual de Interação” atua enquanto mais uma ferramenta de auxílio ao Cientista Social quando do desenvolvimento de suas pesquisas acerca de fenômenos que envolvem a interação humana face a face, ajudando a notar de modo mais claro e a sistematizar certos aspectos presentes durante determinado momento, bem como perceber as estruturas que envolvem as representações do self postas em prática nestes momentos. Assim, especialmente em tempos de ações e discursos politicamente corretos, cuidadosamente 1 Mestrando em Sociologia, PPGS/UFAL. Membro do Grupo de Pesquisa Afetos, Ambiente e Economia das Simbolizações (GRUPAAES/CNPq). E-mail para contato: [email protected] 2 Cf. <http://www.timeshighereducation.co.uk/story.asp?storyCode=405956&sectioncode=26> [Acessado em 20/08/2012]

Resenha a Teoria Dos Jogos Em Goffman e a Manutenção Do Eu

Embed Size (px)

Citation preview

  • Latitude, vol. 7, n1, pp 195-199, 2013. 195

    Resenha: a teoria dos jogos em Goffman e a manuteno do eu

    Jorge Henrique Silvestre Barbosa1

    GOFFMAN, Erving. Ritual de interao: ensaios sobre o comportamento face a face. Traduo de Fbio Rodrigues Ribeiro da Silva. Petrpolis, RJ: Vozes, 2011. (Coleo Sociologia).

    Ainda que os ensaios que compem o conjunto aqui em questo datem

    das dcadas de 1950 e 1960, e a publicao original do livro que os reuniu, de 1967; estes permaneceram sem traduo para a lngua portuguesa at 2011, mais de quarenta anos aps sua publicao original. Assim, tendo por base este lapso temporal entre as edies em lngua inglesa e portuguesa, alguns podem argumentar acerca da pertinncia destes estudos para a contemporaneidade, portanto da utilidade da resenha que aqui comea a ganhar forma.

    Porm, antes de levantarmos estas questes, devemos levar em conta a barreira lingustica que se imps durante este perodo em relao ao trabalho aqui abordado, fazendo com que este se mantivesse relativamente desconhecido entre os estudantes e profissionais das Cincias Sociais brasileiros, passando a ganhar maior notoriedade apenas aps sua traduo. Destarte, acredita-se ser necessrio considerar que a resoluo de publicar o livro pela primeira vez no Brasil tanto tempo aps ter sido lanado, j demonstra a relevncia dos escritos goffminianos para a contemporaneidade. Alm disso, este um autor que tem sido constantemente revisitado, especialmente aps os anos 2000, tanto que figurou em sexto lugar na lista dos autores mais citados na rea das Cincias Humanas em 20072.

    Desta forma, a leitura de Ritual de Interao atua enquanto mais uma ferramenta de auxlio ao Cientista Social quando do desenvolvimento de suas pesquisas acerca de fenmenos que envolvem a interao humana face a face, ajudando a notar de modo mais claro e a sistematizar certos aspectos presentes durante determinado momento, bem como perceber as estruturas que envolvem as representaes do self postas em prtica nestes momentos. Assim, especialmente em tempos de aes e discursos politicamente corretos, cuidadosamente

    1 Mestrando em Sociologia, PPGS/UFAL. Membro do Grupo de Pesquisa Afetos, Ambiente e Economia das Simbolizaes (GRUPAAES/CNPq). E-mail para contato: [email protected] 2 Cf. [Acessado em 20/08/2012]

  • 196 Latitude, vol. 7, n1, pp 195-199, 2013.

    proferidos, bem como de constante luta por espao e direitos dentro do cenrio social, a compreenso dos ensaios presentes na obra aqui abordada, muitas vezes ajuda o pesquisador a desenvolver uma percepo mais apurada acerca do real panorama que se pe especialmente ao se analisar fenmenos que envolvem temas delicados, tais como questes de raa, gnero, sexuais, envolvendo menores ou menores infratores etc., onde a maior parte dos envolvidos tenta se mostrar em consonncia com o status quo e com o discurso por ele defendido.

    Ento, iniciando a exposio da resenha sobre o livro aqui referido, notamos que o socilogo canadense Erving Goffman pretende nos mostrar como se d o comportamento face a face entre indivduos pertencentes aos mais variados grupos inseridos nas sociedades analisadas. Para tanto, ele vai apontar como aspecto comum a todos os grupos a constante busca por respeito perante os outros participantes de dada configurao. Este fato , na verdade, uma tentativa, por parte de um indivduo, de manter constante a viso que os outros tm dele.

    Durante os seis ensaios presentes no livro o autor nos mostrar que a busca por respeito, realizada por um indivduo dentro de um grupo, est conectada com a necessidade de manuteno da sua vida social e aponta a noo de honra3 (ou respeito adquirido) como central nesta empreitada.

    Mas, medida que seus escritos vo avanando torna-se evidente o fato de que as formas pelas quais cada indivduo busca obter o respeito de seus pares so bastante variadas e apesar disso, muitas vezes algum bastante respeitado em seu meio pode no ter prestgio algum quando em contato com um grupo diferente. Neste sentido, a atribuio de respeito e o reconhecimento do quo respeitvel (ou honrado) se pode ser, varia entre os grupamentos humanos, numa relao assimtrica e muitas vezes vertical4.

    Os ensaios presentes no livro nos apresentam um desenvolvimento argumentativo que gira em torno da observao, por parte do autor, das mudanas nos meios utilizados pelos indivduos para manuteno e obteno de honra ao longo do avano das sociedades analisadas. Nota-se que, em momentos primordiais, frequentemente a honra era mantida atravs de disputas violentas que normalmente acabavam por causar a morte de uma das partes (ofendido ou ofensor). Mas com o desenvolvimento dos processos de pacificao interna das

    3 O termo honra, aqui, utilizado em sentido amplo, visto que cada grupo e/ou sociedade, possui seu prprio cdigo de honra. Um exemplo disso o cdigo de honra presente dentro das prises ou entre jogadores (trapaceiros ou no) etc. 4 Com isto, quero dizer que o conceito de honra varia entre os grupos (um exemplo disso a existncia de um cdigo de honra entre criminosos e prisioneiros), da assimtrica; e muitas vezes um grupamento se acha mais importante que outro por considerar sua viso de mundo mais correta (por isso vertical).

  • Latitude, vol. 7, n1, pp 195-199, 2013. 197

    sociedades, as estratgias que antes eram utilizadas apenas como meios de se obter algum tipo de vantagem dentro destas disputas pela honra passaram a ser prtica comum.

    Esta maior racionalizao dos modos de resoluo de conflitos entre os componentes dos locais e grupos estudados apresentada por Goffman enquanto uma teoria dos jogos. Durante todo o livro, so utilizadas comparaes com jogadores profissionais para demonstrar as estratgias utilizadas socialmente pelos indivduos para obter e garantir reconhecimento perante seus pares. Isto significa que aquilo que antes era resolvido atravs de um conflito violento e por vezes mortal, agora era resolvido atravs de atos minuciosamente pensados e aes arquitetadas baseadas no conhecimento das regras do jogo, por parte dos indivduos inseridos em determinada configurao. Assim, nascem relaes sociais mais coesas e menos caticas, assegurando uma maior proteo da vida dos indivduos.

    Neste sentido, a preservao da fachada5, objeto de estudo do primeiro ensaio, depende de uma srie de rituais que envolvem todo o cuidado, por parte do indivduo, com seus modos de agir socialmente, principalmente considerando seu lugar no mundo social e os modos de agir institucionalmente aceitos. claro que em caso de deslize possvel, por vezes, no perder a fachada6, ou, caso perca, ainda possvel recuper-la, principalmente porque cabe aos outros atores fazerem uso de vrios mecanismos para evitar que se crie uma situao constrangedora (e at mesmo conflituosa) no momento em que a falha acontece.

    A partir deste comportamento expresso no pargrafo anterior que surgem a deferncia e o porte, temas do segundo ensaio apresentado no livro. Quando um ator social consegue manter a fachada correta nas diferentes situaes em que se insere, dizemos que ele age com o porte correto; ao proceder desta forma, os outros atores envolvidos naquela configurao devem trat-lo com deferncia. Esta uma relao de mutualismo onde este comportamento praticado por todos os participantes da interao. Estas so formas coletivas de reconhecimento e atravs destas aes que as noes de eu e outro so formadas. Ou seja: o eu algo construdo pelas aes de algum perante outrem e para manter a viso do eu sempre constante, o indivduo deve agir da maneira esperada, mantendo sua fachada e consequentemente seu porte, para ento, ser tratado com deferncia. O mesmo acontece com o outro em relao ao indivduo: existe porque reconhecido pelo eu enquanto necessrio para sua manuteno.

    Ao mesmo tempo, alguns comportamentos no so socialmente tolerados e provocam a perda da fachada e o consequente descrdito daqueles que agem de

    5 Ou respeito prprio (Cf. GOFFMAN, 2011, p. 9 [especialmente a nota de rodap n 1]). 6 Idem, p. 17

  • 198 Latitude, vol. 7, n1, pp 195-199, 2013.

    determinadas formas. Um exemplo disso, e que objeto do terceiro ensaio presente no volume em questo, o constrangimento. Em situaes de contato social, aqueles que frequentemente ficam constrangidos; gaguejando ao falar; balbuciando em vez de falar alto e claro etc., acabam por gerar uma desorganizao da situao social ali presente, pois acabam por constranger os que esto presenciando seu comportamento um tanto quanto inadequado. Popularmente, dizemos que estes so incidentes ou situaes de vexame e o comportamento do indivduo causador destes conflitos considerado anormal. Pessoas tmidas so repetidamente apontadas como causadoras deste tipo de desarranjo social momentneo, sendo alvo de descrdito perante seus pares.

    Outro comportamento no tolerado aquilo que o autor chama de alienao da interao, tema do quarto ensaio exposto no livro. Com isto, Goffman quer nos mostrar que durante situaes de interao de suma importncia que as duas (ou mais) partes envolvidas demonstrem interesse pelo contato travado7. A alienao da interao consiste em no prestar ateno no outro e por isto ser percebido. Existem vrios meios pelos quais este evento ocorre, alguns mais condenveis, outros menos; mas de qualquer forma este fato considerado uma quebra das regras de etiqueta vigentes. Esta perda de autocontrole, mais uma vez, considerada falta grave e pode causar o descrdito daquele indivduo perante seus iguais.

    No quinto ensaio apresentado, denominado sintomas mentais e a ordem pblica, o autor vai nos mostrar como, por vezes, a perda da honra ou a deteriorao social do indivduo atravs de seus prprios atos est intimamente ligada perda do autocontrole e ao conceito de doena mental. Muitas vezes, aqueles que no agem com certo tato durante suas interaes so considerados portadores de algum desvio psicolgico. Ou seja: neste ensaio, o autor demonstra como, por vezes, aqueles que no respeitam a ordem pblica (i.e. as normas sociais) e portanto no conseguem manter uma fachada, so considerados portadores de sintomas de doenas mentais, numa demonstrao das consequncias de atos imprprios (que ferem as regras dos rituais de interao face a face) sobre os indivduos transgressores.

    Finalmente, no sexto e ltimo ensaio apresentado, Goffman versa sobre os indivduos que esto sempre procurando por ao8, i.e., formas (legais ou no) de vivenciar, de maneira constante, perigos controlados. Aqui so considerados os vrios tipos de grupos sociais, desde os criminosos em geral at os

    7 Por contato, entendemos conversas verbais ou no verbais, audio de palestras ou qualquer outra situao de interao que envolva a necessidade de prestar ateno no objeto da interao por parte dos indivduos envolvidos. 8 Cf. Goffman, 2011, p. 142

  • Latitude, vol. 7, n1, pp 195-199, 2013. 199

    praticantes de esportes tipicamente aristocrticos9, tais como o alpinismo e a caa de grandes animais. Estes agrupamentos so compostos por indivduos que buscam constantemente o sentimento daquilo que o autor chama de arrepio10, ou seja, a excitao causada por perigos controlados. Mas mesmo nestes grupos as questes da honra (reconhecimento de valor atribudo por outros a um indivduo) e do autocontrole quando em situaes de interao social, se mostram deveras importantes.

    O autor demonstra muito bem como, nas sociedades pesquisadas, atores inseridos em interaes sociais onde necessitam manter suas fachadas e assim serem tratados com deferncia por seus pares, bem como, em casos de esportistas, por sua plateia, procuram cumprir um cdigo de aes institucionalizadas. Esta necessidade perpassa os mais diversos grupos, que compreendem desde assaltantes de banco at toureiros e pilotos de corrida. Erving Goffman pretende demonstrar, neste momento do livro, como mesmo em situaes adversas e de competio, mais importante manter da honra (a viso do outro sobre o eu; a fachada) do que vencer.

    guisa de concluso, notrio que durante toda a exposio feita na obra aqui resumida, o autor demonstrou que a observao das normas de interao face a face so de suma importncia para manter a coeso social, alm de fazer com que as interaes fluam com mais suavidade entre os indivduos. Ao necessitar agir com tato e racionalidade dentro das situaes sociais nas quais est inserido, o ator segue certas normas rituais expressas simbolicamente em seus atos e desta forma, tenta manter o fluxo da ordem interativa e consequentemente sustentar sua identidade atravs da manuteno ou reestruturao de sua fachada.

    A recompensa pela interao bem sucedida o reconhecimento de seus pares e com isso o ganho de respeito, traduzido na manuteno da fachada. Desta forma, ao agir estrategicamente de acordo com as regras de seu grupo e/ou sociedade, os atores esto buscando, atravs de suas estratgias de ao, galgar posies melhores dentro do campo no qual est inserido, reestruturando ou mantendo a viso de eu atribuda a ele pelo outro. Estas aes, na maioria das vezes, acontecem de maneira inconsciente, muitas vezes tendo como explicao o fato de que era a coisa certa a fazer; da a importncia dos estudos interacionistas para traduzir, sistematizar e interpretar sociologicamente as mincias presentes nas expresses simblicas dos atores quando inseridos em configuraes especficas, buscando entender a relao entre os indivduos, seus grupos e as normas sociais.

    9 Aqui entendida enquanto classe alta, alta burguesia ou qualquer segmento social financeiramente privilegiado. 10 Cf. Idem, p. 188.