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Resumo do Livro Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional de Flávia Piovesan Índice PRIMEIRA PARTE – A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos Capítulo I – Introdução Capítulo I – Delimitando e Situando o Objeto de Estudo Capítulo I – A Constituição Brasileira de 1988 e o Processo de Democratização no Brasil – A institucionalização dos direitos e garantias fundamentais Capítulo IV – A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos SEGUNDA PARTE – O Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos Capítulo V – Precedentes Históricos do Processo de Internacionalização e Universalização dos Direitos Humanos Capítulo VI – Estrutura Normativa do Sistema Global de Proteção Internacional dos Direitos Humanos Capítulo VII – Estrutura Normativa do Sistema Regional de Proteção dos Direitos Humanos – O Sistema Interamericano TERCEIRA PARTE – O Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos e a Redefinição da Cidadania no Brasil Capítulo VIII – O Estado Brasileiro e o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos Capítulo IX – A Advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos: Casos contra o Estado Brasileiro perante a Comissão Interamericana de direitos Humanos Capítulo X – Encerramento: O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Redefinição da Cidadania no Brasil PRIMEIRA PARTE A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A proposta do estudo do livro é analisar o modo pelo qual o direito brasileiro incorpora os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, bem como em que sentido esses instrumentos podem contribuir para o reforço do sistema de implementação de direitos no Brasil, ou seja, verificar o modo pelo qual as normas de direito internacional podem, em dinâmica com a Constituição Federal, contribuir para a efetivação dos direitos internacionais no Brasil. 1

Resumo Do Livro Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional

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Resumo do Livro Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional de Flávia Piovesan

Índice

PRIMEIRA PARTE – A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos

Capítulo I – Introdução Capítulo I – Delimitando e Situando o Objeto de Estudo Capítulo I – A Constituição Brasileira de 1988 e o Processo de Democratização no Brasil – A institucionalização dos direitos e garantias fundamentais Capítulo IV – A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos

SEGUNDA PARTE – O Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos

Capítulo V – Precedentes Históricos do Processo de Internacionalização e Universalização dos Direitos Humanos Capítulo VI – Estrutura Normativa do Sistema Global de Proteção Internacional dos Direitos Humanos Capítulo VII – Estrutura Normativa do Sistema Regional de Proteção dos Direitos Humanos – O Sistema Interamericano

TERCEIRA PARTE – O Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos e a Redefinição da Cidadania no Brasil

Capítulo VIII – O Estado Brasileiro e o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos Capítulo IX – A Advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos: Casos contra o Estado Brasileiro perante a Comissão Interamericana de direitos Humanos Capítulo X – Encerramento: O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Redefinição da Cidadania no Brasil

PRIMEIRA PARTE A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A proposta do estudo do livro é analisar o modo pelo qual o direito brasileiro incorpora os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, bem como em que sentido esses instrumentos podem contribuir para o reforço do sistema de implementação de direitos no Brasil, ou seja, verificar o modo pelo qual as normas de direito internacional podem, em dinâmica com a Constituição Federal, contribuir para a efetivação dos direitos internacionais no Brasil.

Assim, o primeiro passo do trabalho é investigar a relação entre a Constituição Federal e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, vislumbrando sempre que a Constituição é um marco jurídico de transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil. Para se chegar ao objetivo do trabalho, é importante se analisar se a Constituição, ao estabelecer novos princípios a reger as relações internacionais do Brasil e ao conferir tratamento especial aos Direitos Humanos, contribuiu para uma nova inserção do Brasil na sistemática internacional de proteção e quais as conseqüências e seus impactos.

Neste diapasão, o livro busca analisar o modo pelo qual a Constituição incorpora os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, atribuindo-lhes um status hierárquico diferenciado, bem como analisando o modo como os tratados internacionais de direitos humanos são capazes de fortalecer o constitucionalismo de direito no país. Os tratado, apesar de serem direcionados aos Estados pactuantes, acabam por beneficiar os próprios indivíduos. Deste modo, a comunidade internacional tenta obrigar os Estados a melhorar as condições de vida dos indivíduos e a garantir a eles direitos fundamentais.

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A análise sobre a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos, lançando mão do exame de suas peculiaridades, limites e possibilidades, adotará como ponto de partida a reflexão sobre os antecedentes históricos do movimento de internacionalização dos direitos humanos. O estudo permitirá perceber que as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial foram as grandes impulsionadoras da universalização dos discursos sobre direitos humanos.

A comunidade internacional passou a perceber que a proteção aos direitos humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional, sendo motivo de transcender e extrapolar o domínio reservado ao Estado ou a sua competência nacional exclusiva. Sobre o tema, há a explanação de Richard B. Bilder, que assim expõe:

“O movimento do Direito Humano é baseado na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e responsabilidade de protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações. O Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas, procedimentos e instituições internacionais desenvolvidos para implementar esta concepção e promover o respeito dos direitos humanos em todos os países, no âmbito mundial. (...) Embora a idéia de que os seres humanos tenham direitos e liberdades fundamentais, que lhe são inerentes, há muito tempo tenha surgido no pensamento humano, a concepção de que os direito humanos constituem objeto próprio de uma regulação internacional, por sua vez, é bastante recente. (...)”

A análise das normas internacionais buscará compreender a forma pela qual o sistema normativo de proteção internacional dos direitos humanos atribui aos indivíduos status de sujeito internacional, conferindo-lhes diretamente direitos e obrigações no plano internacional, com capacidade de possuir e exercer direitos e obrigações de cunho internacional. As atrocidades perpetradas contra os cidadãos na Segunda Guerra significaram uma verdadeira ameaça à paz e à estabilidade internacional, gerando uma revolução no direito internacional. Um novo Código Internacional foi desenvolvido, enumerando e definindo direitos e garantias fundamentais para todos os seres humanos, sendo certo que esses direitos não mais puderam ser concebidos como generosidades dos Estados soberanos, passando a serem inerentes aos indivíduos.

O reconhecimento de que os indivíduos têm os direitos humanos como direitos inerentes à sua existência, implica a mudança na noção de soberania nacional. O Estado que se mostra omissa ou falha na tarefa de proteger os direitos humanos internacionalmente assegurados deve ser responsabilizado na arena internacional, havendo um monitoramento por parte da comunidade internacional. O sistema de proteção internacional, ao constituir uma garantia adicional de proteção, invoca dupla dimensão, quais sejam: a) parâmetro protetivo mínimo a ser observado pelos Estados, proporcionando avanços e evitando retrocessos no sistema nacional de direitos humanos, e b) instância de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas no dever de proteção desses direitos.

Desse modo, a violação dos direitos humanos assegurados por meio de tratado internacional, anteriormente ratificado pelo Estado, é matéria de legítimo interesse internacional, acarretando a submissão à autoridade das instituições internacionais, o que vem a flexibilizar a noção de soberania nacional. Não basta para os princípios regedores dos direitos humanos apenas que o Estado cesse com as violações, mas também que este seja responsabilizado, se garantido os remédios adequados para se assegurar a justiça.

Na parte final deste trabalho, passasse a analisar a posição do Brasil perante os tratados internacionais de direito humano, completando-se o estudo com a observação sobre a advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos no âmbito brasileiro, com enfoque sobre as lides que tramitam perante a Comissão Internacional de Direito Humanos, analisando-se qual a advocacia exercida, quais os atores sociais envolvidos e quais os direitos humanos violados.

CAPÍTULO I – DELIMITANDO E SITUANDO O OBJETO DE ESTUDO a) Delimitando o Objeto de Estudo: A Constituição brasileira e o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

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O livro tem como objeto analisar a forma que a Constituição se relaciona com as normas de direito internacional de direitos humanos, a forma pela qual incorpora os tratados internacionais de direitos humanos e o status jurídicos que ela lhes atribui, sendo certo que o trabalho se interessa, ainda, pelo modo pelo qual as normas internacionais de direitos humanos contribuem para a implementação de direitos no âmbito brasileiro, reforçando, neste sentido, o constitucionalismo de direitos inaugurados pela Constituição de 1988.

Adota-se no trabalho o entendimento contemporâneo de que os direitos humanos são concebidos como uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na qual os valores de igualdade e liberdade se conjugam e se completam. Tendo a Constituição Federal como marco jurídico inicial da democratização, ao institucionalizar os direitos humanos no país, o estudo busca responder a 3 questões:

1.Qual o impacto do processo de democratização do Brasil, iniciado em 1985, sobre a posição do país perante a ordem internacional? O processo de democratização implicou a reinserção do Estado brasileiro na arena internacional de proteção dos direitos humanos, estimulando a ratificação de instrumentos internacionais para esse fim?

2.Como a Constituição brasileira de 1988 ser relaciona com o direito internacional de direitos humanos? De que modo incorpora os instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos, como os tratados adotados pelas Nações Unidas e pela Organização dos Estados Americanos?

3.Qual o impacto jurídico e político do sistema internacional de proteção dos direitos humanos no âmbito da sistemática constitucional brasileira de proteção de direitos? Como esse instrumento internacional pode fortalecer o regime de proteção de direito nacionalmente previstos e o próprio mecanismo de accountability, quando tais direitos são violados?

A partir dessas questões centrais, este trabalho pretende enfocar a relação entre dois termos: a Constituição brasileira de 1988 e o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

b) Situando o objeto de estudo: os delineamentos do direito constitucional internacional

O tema que se desenvolve neste item visa a inserir o estudo do livro em um ramo do direito, ponderando se o ramo é do direito internacional público ou no campo do direito constitucional. Ao tentar responder a questão mencionada, pondera, primeiramente, que, enquanto o Direito Internacional Público visa disciplinar relações de reciprocidade e equilíbrio entre Estados, por meio de negociações e concessões recíprocas que visam ao interesse dos próprios Estados pactuantes, o Direito Internacional dos Direitos Humanos objetiva garantir o exercício dos direitos da pessoa humana, o que, por si só já afasta o estudo do plano do direito internacional de direito público.

Por sua vez o Direito Internacional de Direitos Humanos, ao concentrar o seu objeto nos direitos da pessoa humana, revela um conteúdo materialmente constitucional, apesar de possuir uma fonte de natureza internacional. Deste modo, o enfoque do trabalho, na verdade, é interdisciplinar. É uma interação entre o direito constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, apontando para um resultado: Direito Constitucional Internacional. Isto é, o trabalho se atém a uma dialética da relação entre Constituição e Direito Internacional dos Direitos Humanos, no qual cada um dos termos da relação interfere no outro, com ele interagindo.

C) Justificativa para a opção metodológica

Primeiramente, no estudo que resultou no livro, houve uma avaliação dos avanços introduzidos pela Carta Magna de 1988 em relação aos direitos e garantias fundamentais, examinado como ela interage com os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, bem como o impacto desses instrumentos no direito brasileiro, suscitando uma abordagem aprofundada a respeito do sistema internacional dos direitos humanos.

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CAPÍTULO I – A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL – A INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS.

O objetivo do presente capítulo é avaliar o modo pelo qual a atual Constituição disciplina os direitos e garantias fundamentais, norma que rompeu com o regime autoritário militar, assegurando direitos fundamentais. Para tanto, faz-se necessário a compreensão do processo de democratização no Brasil.

a) O processo de democratização no Brasil e a Constituição brasileira de 1988.

Após vinte e um anos de regime militar ditatorial deflagrou-se o processo de democratização no Brasil, sendo certo que, segundo a classificação de Guillermo O’Donell, no processo de democratização há duas transições: uma primeira do regime autoritário anterior para a instalação de um Governo Democrático, sendo a segunda deste Governo Democrático para a efetiva vigência de um regime democrático. Neste sentido, sustenta-se que, embora a primeira etapa do processo de democratização já tenha sido alcançada, a segunda fase ainda está se concretizando.

Com o processo de abertura iniciado pelos próprios militares em razão desses não mais conseguirem solucionar problemas internos, a sociedade civil começou a se organizar com mobilizações e articulações que permitiram a formação de um controle civil sobre as forças militares, exigindose, ainda, a elaboração de um código que refizesse o paco político-social. Tal processo culminou com a promulgação da Constituição de 1988.

A Constituição de 1988 além de instituir um regime político democrático no Brasil, introduziu um avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e nos setores vulneráveis da sociedade brasileira, sendo certo que, a partir dela, os direitos humanos ganham um grande relevo. A Carta de 1988 é o documento mais abrangente e pormenorizado sobre direitos humanos já adotado no Brasil.

A consolidação das liberdades fundamentais e das instituições democráticas no país muda a política brasileira de direitos humanos, possibilitando um progresso significativo no reconhecimento dos direitos internacionais neste âmbito. O equacionamento dos direitos humanos na ordem jurídica interna serviu como medida de reforço para que questões dos direitos humanos se impusessem como tema fundamental na agenda internacional do país. Por sua vez, as repercussões decorrentes dessa nova agenda internacional provocaram mudanças no plano interno e no próprio ordenamento jurídico brasileiro. Essas transformações geraram um novo constitucionalismo, uma abertura à internacionalização da proteção dos direitos humanos.

b) A Constituição brasileira de 1988 e a institucionalização dos direitos e garantias fundamentais.

Primeiramente, importante salientar que a Constituição de 1988 alargou significativamente o campo dos direitos fundamentais, colocando-se entre as constituições mais avançadas do mundo em relação à matéria. Se, no entender de Joaquim Gomes Canotilho, a juridicidade, a constitucionalidade e os direitos fundamentais são as três dimensões fundamentais do Estado de Direito, percebe-se que a Carta Magna de 1988 consagra amplamente este entendimento.

Em nossa Constituição, dentre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana, fazendo-se claro que os direitos fundamentais são elementos básicos para a realização do princípio democrático, além do que, pela primeira vez uma constituição nacional assinala especificamente objetivos ao Estado brasileiro, sendo certo que uns valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana.

Infere-se desses dispositivos a preocupação da Constituição em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana como imperativo da justiça social. Sendo assim, o valor da dignidade da pessoa humana se impõe como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério de

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valoração e interpretação e compreensão do sistema constitucional. O valor da dignidade da pessoa humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe um feição particular.

Observando-se o prisma histórico, a primazia do valor da dignidade humana é uma resposta à profunda crise sofrida pelo positivismo jurídico, associada à derrota do fascismo, na Itália, e do nazismo, na Alemanha, movimentos que promoveram a barbárie em nome da lei. Neste contexto, ao final da Segunda Guerra Mundial, emerge a grande crítica e o repúdio à concepção positivista de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, confirmando à ótica meramente formal.

É sob o prisma da reconstrução dos direitos humanos que é possível compreender, no Pós-Guerra, de um lado, a emergência do chamado “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, e, de outro, a nova feição do direito constitucional ocidental, em resposta ao impacto das atrocidades então cometidas. No âmbito do direito constitucional ocidental, são adotados textos constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade da pessoa humana. No caso brasileiro, e de toda América Latina, a abertura das constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade humana demarcarão o início do processo de democratização política.

Há uma aproximação da ética com o direito, e, neste esforço, surge a força normativa dos princípios, especialmente do princípio da dignidade da pessoa humana. Há um reencontro dos pensamentos de Kant com a idéia de moralidade, dignidade, direito cosmopolita e paz perpétua. Para Kant as pessoas são um fim em si mesmas, não podendo ser usadas como meios, devendo tratar-se a humanidade na pessoa de cada ser, sendo certo, para Kant, que a autonomia é a base da dignidade humana e de qualquer criatura racional.

Ao definir o que seja uma pessoa autônoma, Kant afirma que “uma pessoa é autônoma somente se tem uma variedade de escolhas aceitáveis disponíveis para serem feitas e sua vida se torna resultado das escolhas derivadas destas opções. Uma pessoa que nunca teve uma escolha efetiva, ou, tampouco, teve consciência dela, ou, ainda, nunca exerceu o direito de escolha de forma verdadeira, mas simplesmente se moveu perante a vida, não é uma pessoa autônoma”.

O pensamento de Kant teve uma alta ingerência no plano internacional, concretizando a emergência do Direito Internacional dos Direitos Humanos, fundamentado no valor da dignidade humana como valor intrínseco à condição humana. Já no plano do constitucionalismo local, a vertente “kantiana” concretizou a abertura das constituições à força normativa dos princípios, com ênfase para o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Sendo assim, há uma verdadeira interação do Direito Internacional dos Direitos Humanos com os direitos locais.

Para Canotilho, enquanto o direito do Estado de Direito do século XIX e da primeira metade do século X é o direito das regras do código, o direito do Estado Constitucional e de Direito leva a sério os princípios, é um direito de princípios. Consagra-se, assim, a dignidade da pessoa humana como verdadeiro superprincípio, a orientar tanto o direito internacional como o direito interno. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, seja no âmbito internacional ou interno, unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial propriedade.

O sistema jurídico define-se, pois, como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na medida em que salvaguardam valores fundamentais. A interpretação das normas constitucionais advém, desse modo, de critério valorativo extraído do próprio sistema constitucional. Os princípios morais, são hoje, integrantes do sistema normativo. Sendo assim, o valor da dignidade da pessoa humana e dos direitos e garantias fundamentais vêm a constituir princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico.

A Constituição resguardar a dignidade da pessoa humana ao privilegiar os direitos fundamentais. Desse modo o Texto de 1988 apresenta em seus primeiros capítulos avançada Carta de direitos e garantias elevadas a cláusulas pétreas, além de alargar a dimensão do que se entende por direitos e garantias

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fundamentas, incluindo, além dos direitos civis e políticos, os direitos sociais. Esta foi a primeira constituição brasileira a prevê os direitos sociais na declaração dos direitos. Nesta ótica, a Carta de 1988 conjuga o direito da liberdade ao da igualdade, não havendo como divorciá-los, além de garantir os direitos difusos e coletivos – aqueles pertinentes a determinada classe ou categoria social e estes pertinentes a todos e a cada um. A Constituição de 1988 estende a titularidade de direitos e, ao mesmo tempo, consolida o aumento da quantidade de bens merecedores de tutela, por meio da ampliação de direitos sociais, econômicos e culturais.

Os direitos e garantias fundamentais são, assim, dotados de especial força expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico. A Carta Magna de 1988 reforça, ainda, a imperatividade dos direitos e garantias fundamentais ao instituir o princípio da aplicabilidade imediata de tais normas, nos termos do art. 5º, §1º da CF/8, o que realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais.

Ao tratar do tema J.J. Canotilho afirma que “os direitos, liberdades, garantias, são regras e princípios jurídicos imediatamente eficazes e actuais, por via direta da Constituição e não através de actoritas interpositivo do legislador. Não são simples norma normarum, mas norma normata, isto é, não são meras normas para a produção de outras normas, mas sim normas diretamente reguladoras de relação jurídico-materiais. (...) Aplicação direta não significa apenas que os direitos, liberdades e garantias se aplicam independentemente da intervenção legislativa. Significa também que eles valem directamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a Constituição”

É neste contexto que se deve fazer a leitura dos dispositivos constitucionais pertinentes à proteção internacional dos direitos humanos, e neste tema a Constituição também registra inéditos avanços.

c) Os princípios constitucionais a reger o Brasil nas relações internacionais.

A Constituição de 1988 é a primeira a constituição nacional a trazer a prevalência dos direitos humanos como princípio a reger o Brasil na ordem internacional. Na realidade, foi a primeira constituição a fixar valores a orientar a agenda internacional do Brasil. O art. 4º da CF/8 traz vários princípios que devem reger o Brasil nas relações internacionais, dentre eles encontra-se a prevalência dos direitos humanos (inc.I).

De fato, a Constituição de 1988 introduz inovações extremamente significativas no plano das relações internacionais. Se, por um lado, esta Constituição reproduz tanto a antiga preocupação vivida no Império, que se refere à independência nacional e à não-intervenção, como reproduz ainda os ideais republicanos voltados à defesa da paz, a Carta de 1988 inova ao realçar uma orientação nacionalista jamais vista na história constitucional brasileira. A orientação internacionalista se traduz nos princípios da prevalência dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e da cooperação para o progresso da humanidade, nos termos do art. 4º, inc. I, II, VII e IX.

Ao romper com a sistemática das Cartas anteriores, a Constituição de 1988, ineditamente, consagra o primado do respeito aos direitos humanos como paradigma propugnado para a ordem internacional. Esse princípio invoca a abertura da ordem jurídica interna ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos. A prevalência dos direitos humanos, como princípio a reger o Brasil no âmbito internacional, não implica apenas o engajamento do País no processo de elaboração de normas vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas sim a busca pela plena integração de tais regras na ordem jurídica brasileira. Implica, ademais, o compromisso de adotar uma posição política contrária aos Estados em que os direitos humanos sejam gravemente desrespeitados.

Uma outra conseqüência da adoção da prevalência dos direitos humanos como fundamento das relações internacionais é uma mudança na concepção tradicional de soberania absoluta, haja vista que a soberania brasileira fica submetida a regras jurídicas, tendo como parâmetro obrigatório a prevalência dos direitos humanos. Há uma relativização e uma flexibilização em prol da proteção dos direitos humanos. Se para o

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Estado brasileiro a prevalência dos direitos humanos é princípio a reger o Brasil no cenário internacional, está-se conseqüentemente admitindo a concepção de que os direitos humanos constituem tema de legítima preocupação e interesse da comunicada internacional. Os direitos humanos, nesta concepção, surgem para a Carta Magna de 1988 como tema global. Cabe ainda ressaltar que o princípio da prevalência dos direitos humanos contribuiu de forma definitiva para o sucesso da ratificação, pelo Estado brasileiro, de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como foi, por exemplo, com a Convenção Americana de Direitos Humanos – o Pacto de San José.

CAPÍTULO IV - A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS a) Breves Considerações sobre Tratados Internacionais

Os tratados internacionais, enquanto acordos internacionais juridicamente obrigatórios e vinculante (pacta sunt servanda), constituem hoje a principal fonte de obrigação do direito internacional, papel anteriormente ocupado pelo costume internacional. Tal como no âmbito interno, em virtude do movimento pós positivista, cada vez mais os princípios gerais do direito passam a ganhar maior relevância no direito internacional contemporâneo.

Os tratados internacionais não necessariamente consagram novas regras de direito internacional. Há casos em que eles são criados apenas para codificar as regras preexistentes, consolidando os costumes internacionais ou, ainda, modificando-os. Diante da crescente utilização dos tratados como norma imperativa nas relações internacionais surgiu a necessidade de se regular o processo de formação dos tratados internacionais, o que aconteceu na Convenção de Viena, concluída em 1969.

Pode-se dizer que a Convenção de Viena é a Lei dos Tratados Internacionais, contudo ela limitou-se a normatizar os tratados internacionais celebrados entre Estados, não incluindo aqueles dos quais participam organizações internacionais. Para o estudo do trabalho do livro, importa tãosomente os tratados celebrados entre Estados. Sendo assim, importa salientar que os tratados internacionais só se aplicam aos Estados-partes, ou seja, àqueles Estados que expressamente consentiram em sua adoção, não podendo criar obrigações para os demais Estados.

Enfatize-se que os tratados são, por sua excelência, expressão de consenso. Apenas pela via do consenso podem os tratados criar obrigações legais, uma vez que Estados soberanos, ao aceitá-los, compromete-se a respeitá-lo, é o que prevê o art. 52 da Convenção de Viena. A Convenção de Viena determina, ainda, que “Todo tratado em vigor é obrigatório em relação às partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé” e que “Uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não-cumprimento do tratado” (art. 27 da Convenção de Viena). Importante ressalta que, para contribuir para a adesão do maior número de Estados, permite-se que o tratado seja formulado com reservas. Nos termos da Convenção de Viena, reservas constituem “uma declaração unilateral feita pelo Estado, quando da assinatura, ratificação, acessão, adesão ou aprovação de um tratado, com o propósito de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas previsões do tratado, quando se sua aplicação naquele Estado”. Entretando, são inadmissíveis reservas que se mostrem incompatíveis com o objeto do tratado, nos termos do art. 19 da Convenção de Viena.

b) O processo de formação dos tratado internacionais

A sistemática de celebração dos tratados internacionais é deixada a critério de cada Estado, o que acarreta uma variação significativa em relação às exigências constitucionais para o processo de formação dos tratados. Em geral, o processo dar-se da seguinte forma:

Primeiramente inicia-se com os atos de negociação, conclusão e assinatura, que são de competência do Poder Executivo. A assinatura do tratado significa um aceite precário e provisório, não implicando efeitos jurídicos vinculantes ao Estado. Via de regra, a assinatura do tratado indica apenas que o tratado é autentico e definitivo. O segundo passo é a apreciação e aprovação pelo Pode Legislativo. Após a apreciação pelos parlamentares vem a ratificação, sob a competência do Poder Executivo. A ratificação significa a

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confirmação formal por um Estado de que está obrigado ao tratado no plano internacional. É o aceito definitivo.

A ratificação é um ato necessário para que o tratado passe a ter obrigatoriedade tanto no plano internacional quanto no plano interno. Como etapa formal, o instrumento de ratificação deve ser depositado em um órgão que assuma a custódia do instrumento.

No Brasil, a Constituição de 1988 determina que é de competência exclusiva do Presidente da República celebrar tratados, convenções e acordos internacionais, competindo exclusivamente ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre os tratados, acordos e atos internacionais. Há uma colaboração entre os Poderes Executivo e Legislativo na conclusão dos tratados internacionais. Logo, os tratados internacionais demandam, para seu aperfeiçoamento um ato complexo no qual se integram a vontade do Presidente da República, que os celebra, e a do Congresso Nacional, que os aprova por meio de decreto legislativo. A colaboração entre os Poderes Executivo e Legislativo é uma tradição na história das constituições do Brasil.

O método adotado pelo Brasil é uma forma de descentralizar o poder de celebrar tratados, prevenindo o abuso desse poder. Para os constituintes, o motivo principal da instituição de uma particular forma de cheks and balances talvez fosse o de proteger os direitos de alguns Estados, mas o resultado foi o de evitar a concentração do poder de celebrar tratados no Executivo, como era então a experiência européia.

Importante observar que a Constituição só prevê a sistemática da formação dos tratados internacionais em duas normas, quais sejam, o art. 84, inc. VIII e o art. 49, inc. I). Sendo assim, em relação ao tema em apreço a Carta Magna ficou lacunosa, sem haver uma normatização, por exemplo, do prazo para que o Congresso Nacional aprecie o tratado já assinado pelo Poder Executivo, ou um prazo para que o Presidente da

República encaminhe ao Congresso Nacional o tratado já assinado. Essa falta de normas acaba por contribuir para a afronta ao Princípio da boa-fé que norteia o direito internacional.

c) Hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos Diferentemente do que ocorria no passado, a relação ente Direito Internacional e Direito Interno não é mais uma problemática apenas acadêmica, mas sim bastante pragmática, haja vista a crescente adoção de tratados cujo escopo não é mais a relação entre Estados, mas a relação entre Estados e seus próprios cidadãos. A eficácia desses tratados depende essencialmente da incorporação de suas previsões no ordenamento interno de cada país.

A Carta de 1988, ao fim da Declaração de Direitos, consagra que os direitos e garantias nelas previstos não excluem outros decorrentes do regime de princípios por ela adotado, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, conforme art. 5º, §2º da CF/8. A Constituição de 1967, previa apenas que os direitos e garantias expressos naquela constituição não outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adotava. Sendo assim, a Carta Magna de 1988 inovou ao acrescentar entre os direitos constitucionalmente protegidos os direitos enunciados nos tratados internacionais. Pois bem, se a Constituição prescreve que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais, a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Esse processo de inclusão implica a incorporação pelo Texto Constitucional de tais direitos. Ela, ao efetuar a incorporação, atribui aos direitos internacionais uma natureza diferenciada, qual seja, uma natureza de norma constitucional.

Fazendo-se uma interpretação axiológica e sistemática no Texto Constitucional, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, chega-se a conclusão de que os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Um outro argumento que reforça a idéia de que os direitos enunciados em tratados internacionais possuem hierarquia constitucional é o fato de que os direitos fundamentais possuem natureza materialmente constitucional.

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A Constituição assume expressamente no seu art. 5º, §2º o conteúdo constitucional dos direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, ainda que não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais. Para J.J. Canotilho, “o programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivista, ao ‘texto’ da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o ‘bloco de constitucionalidade’ a princípio não escritos, mais ainda reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como formas de densificação ou revelação de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas”. Os direitos internacionais integrariam, assim, o chamado “bloco de constitucionalidade”, densificando a regra constitucional positivada no §2º do art. 5º da CF, caracterizada como cláusula constitucional aberta.

José Afonso da Silva também defende o entendimento de que o art. 5º, §2º da CF abre espaço para que hajam cláusulas abertas constitucionais ao lecionar o seguinte: “a circunstância de a Constituição mesma admitir outros direitos e garantias individuais não enumerados, quando, no parágrafo 2º do art. 5º, declara que os direitos e garantias previstos neste artigo não excluam outros decorrentes dos princípios e do regime adotado pela Constituição e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Para o constutucionalista há 3 classes de direitos individuais: a) os expressos, explicitamente individuados no art. 5º; b) os implícitos, subentendidos nas regras de garantias; c) os decorrentes do regime e de tratados internacionais subscritos pelo Brasil.

Contudo, a classificação supramencionada peca pelo fato de equiparar os direitos decorrentes dos tratados internacionais aos decorrentes dos princípios e dos regimes adotados pela Constituição. Enquanto estes últimos não são nem implícita nem explicitamente enumerados, sendo de difícil caracterização a priori, os direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte são expressos, enumerados e claramente elencados, não podendo ser considerados de difícil caracterização a priori. Observe-se que, diferentemente da Constituição Portuguesa, onde a cláusula de abertura faz referência a todo o direito internacional, a Constituição brasileira refere-se especificamente aos tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.

Há a proposta de uma nova classificação dos direitos previstos pela Constituição: a) os direitos expressos na Constituição; b) os direitos expressos em tratados internacionais nos quais o Brasil seja parte e c) os direitos implícitos, que são os direitos que estão subentendidos nas regras de garantias, bem como os decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. Logo, os direitos implícitos são imprecisos, vagos, elásticos, enquanto os direitos expressos na Constituição e nos tratados internacionais de que o Brasil seja parte compõem um universo claro e preciso.

A Constituição de 1988 recepciona os direitos enunciados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte conferido-lhes natureza de norma constitucional. Tal interpretação é consoante com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. No dizer de Jorge Mirando, “a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação”. Para Konrad Hesse, “(...) A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, torna-se inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente”. Importante salientar que toda norma constitucional são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma força útil no ordenamento. Nenhuma norma constitucional se pode dar interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Considerando os princípios da força normativa da Constituição e da ótima concretização da norma, à norma constitucional deve ser atribuído o sentido de maior eficácia lhe dê, especialmente tratando-se de norma de direito fundamental. Para Canotilho, “(...) no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais”. Deste modo, ao entender que os direitos constantes dos tratados internacionais passam a integrar o catálogo dos direitos constitucionalmente previstos, está-se a conferir a máxima eficácia aos princípios constitucionais, em especial ao princípio do art. 5º, §2º da CF/8. É de suma importância enfatizar que, enquanto os demais tratados internacionais têm força de norma infraconstitucional, os direitos enunciados em tratados internacionais de proteção aos direitos humanos apresentam valor de norma constitucional. Observe-se que a hierarquia infraconstitucional dos demais tratados internacionais é extraída do art. 102, I, b

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da CF, norma que confere competência ao Supremo Tribunal Federal para julgar recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal.

Sustenta-se, assim, que os tratados internacionais que não tratem de direitos fundamentais possuem a hierarquia de norma infraconstitucional, contudo com força supralegal. Esse posicionamento busca sua fundamentação no princípio da boa-fé, vigente no direito internacional (o pacta sunt servanda), e que tem reflexo no art. 27 da Convenção de Viena, segundo o qual não cabe ao Estado invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não-cumprimento de tratados.

Contudo, a doutrina brasileira, ao interpretar o mencionado dispositivo constitucional, a tendência é acolher a concepção de que os tratado internacionais e as leis federais apresentam a mesma hierarquia jurídica, aplicando-se o princípio “lei posterior revoga lei anterior que seja com ela incompatível”. Essa concepção compromete não apenas o princípio da boa-fé do direito internacional, mas também afronta a própria Convenção de Viena. O STF, com base no raciocínio da maioria dos doutrinadores, vem adotando desde 1977 o entendimento de que as Leis Federais e os tratados internacionais têm a mesma hierarquia.

Observe-se que, anteriormente a 1977 há diversos acórdãos consagrando o primado do Direito Internacional em que o tratado internacional não pode ser revogado por lei interna. Contudo, a tendência mais recente no Brasil é de que uma lei possa revogar um tratado anterior, posicionamento adotado a partir do julgamento do recurso extraordinário nº 80.004. Em seu voto, o Ministro Francisco Rezek ponderou que a lei interna revoga tratado internacional anterior com ele incompatível, sem embargos das conseqüências pelo descumprimento do tratado no plano internacional.

Sendo assim, esse novo posicionamento adotado pelo STF a partir de 1977 desprestigia o princípio da boa-fé vigente no Direito Internacional, podendo acarretar sanções pelo descumprimento dos tratados. Vale dizer que, para o regime do direito internacional, apenas o ato de denúncia implica a retirada do Estado de determinado tratado internacional. Sem o mencionado ato de denúncia, persiste a responsabilidade do Estado na ordem internacional.

O fundamento utilizado para, que na interpretação do art. 102, inc. I, alínea b da CF, houvesse uma equiparação hierárquica entre as leis e os tratados internacionais foi que inexiste, na perspectiva do modelo constitucional vigente no Brasil, qualquer precedência ou primazia hierárquiconormtiva dos tratados internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo em face das cláusulas inscritas no texto Constitucional, eis que a ordem normativa internacional não se sobrepõe ao que prescreve a Carta Magna. O livro, contudo, defende posicionamento contrário. Acredita-se que, ao conferir aos tratados internacionais de direitos humanos a hierarquia constitucional, com observância do princípio da prevalência da norma mais favorável, é interpretação que se situa em absoluta consonância com a ordem constitucional de 1988, bem como com a sua racionalidade e principiologia.

Além de não concordar com o posicionamento do STF supra, insiste-se que, em relação aos tratados internacionais de direitos humanos não há como rechaçar o seu status constitucional. É aceitável que um tratado internacional comum tenha força de lei, mas em relação aos tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil seja parte não há como se rechaçar a sua hierarquia de norma constitucional. Este tratamento diferenciado, conferido pelo art. 5º, §2º da CF justifica-se na medida em que, enquanto os tratados internacionais comuns tratam de relações entre os Estados-partes, os tratados internacionais de direitos humanos objetivam a salvaguarda dos direitos do ser humano, e não das prerrogativas dos Estados. O Estado que firma um tratado internacional de direitos humanos assume compromissos perante os cidadãos que se encontram sob a sua jurisdição e não em relação ao outro Estado.

Ao lado do caráter especial dos tratados internacionais de direitos humano, pode-se acrescentar o argumento de que os tratados de direitos humanos apresentam caráter mais técnico, formando um universo de princípios que apresentam especial força obrigatória, denominada jus cogens. Na percepção crítica de Hilary Charlesworth e Christine Chinkin, “Jus cogens é definido como um conjunto de princípios que resguarda os

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mais importantes e valiosos interesses da sociedade internacional, como expressão de uma convicção, aceita em todas as nações, satisfazendo o superior interesse da comunidade internacional como um todo, como os fundamentos de uma sociedade internacional, sem os quais a inteira estrutura se romperia. Os direitos humanos mais essenciais são considerados parte do jus congens”.

Em relação ao tema, os autores André Gonçalves e Fausto de Quadros que “um dos traços mais marcantes da evolução do Direito Internacional contemporâneo foi, sem dúvida, a consagração definitiva do jus congens no topo da hierarquia das fontes do Direito Internacional, como uma ‘supra-legalidade internacional”’. Com base nestes argumentos, pode-se sustentar que o direito brasileiro faz a opção por um sistema misto disciplinador dos tratados. Um regime aplicado aos tratados internacionais de direitos humanos, em que, por força do art. 5º, §2º da CF/8, apresentam hierarquia de norma constitucional, e um outro regime para os demais tratados internacionais, que apresenta hierarquia de infraconstitucional. Em suma, a hierarquia constitucionais das normas vinculadas por meio de tratados internacionais de direitos humanos emergem de uma interpretação axiológica e sistemática do art. 5º, §2º da CF em relação à Carta Magna, particularmente da prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Importa salientar que, além das duas correntes já mencionadas, uma que entende que os tratados internacionais de direitos humanos devem ser recepcionados na norma interna com status de norma constitucional e a outra que, ao revés, entende que deva ser integrado ao sistema normativo interno com força equivalente a uma lei - esta última a corrente adotada pelo STF - há duas outras correntes. Uma sustenta que os tratados internacionais de direitos humanos possuem um status supraconstitucional, sendo certo que a outra entende que estas normas possuem força infraconstitucional, porém supralegal.

Em relação à corrente que entende que os tratados internacionais de direitos humanos, os seus defensores fundamentam as suas teses em que os mencionados tratados, em verdade, são normas supranacionais, pois, ao observar que à expressão “não excluem” constante no art. 5º, §2º não pode ser concebido um alcance meramente quantitativo, devendo ser interpretada também em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, devendo ser este último que deve prevalecer.

Para os defensores da última corrente, qual seja, a que entende que os tratados internacionais de direitos humanos devem possuir uma hierarquia infraconstitucional, porém supralegal, equiparar os tratados internacionais de direitos humanos com as leis seria esvaziar em demasia o alcance do art. 5º, §2º da CF. Este grupo recusa a supremacia de qualquer convenção internacional sobre a constituição, porém não se deve chegar ao ponto de igualar o status das leis aos tratados internacionais de direitos humanos, defendendo a tese de que o art. 5º, §2º acabou por traduzir uma abertura dos direitos significativa ao movimento de internacionalização de direitos humanos.

No intuito de dirimir as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, foi criada na Emenda Constitucional nº 45 o §3º do art. 5º da CF, por meio do qual ficou determinado que os tratados internacionais de direitos humanos que formem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos respectivos membros serão equivalentes às emendas constitucionais. Contudo, em face das argumentações já expostas, conclui-se que a hierarquia constitucional já se extrai de interpretação conferida ao próprio art. 5º, §2º da CF/8. Por força da indigitada norma, todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum requerido pelo §3º do art. 5º está apenas proporcionando a constitucionalização formal dos tratados de direitos humanos no âmbito interno. Sendo assim, á hierarquia dos valores deve corresponder a hierarquia das normas, e não o contrário.

Importa salientar que deve ser rechaçado o entendimento de que os tratados que já foram ratificados devem ser recepcionado com força de lei em razão de não terem o quorum determinado pelo §3º do art. 5º da CF. Observe-se que os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados anteriormente à EC nº 45 contaram com a ampla maioria dos deputados e senadores, sendo certo que em muitos casos houve a

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superação do quorum de 3/5, não havendo apenas a votação em dois turnos porque na época não havia esta previsão.

Celso Lafer, ao defender o entendimento que os tratados internacionais, mesmo os ratificados antes da EC nº 45/2004 já possuem status de norma constitucional, argumenta que p novo parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição pode ser considerado como uma lei interpretativa, destinada a encerrar as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais suscitadas pelo parágrafo 2º. Para a doutrina, lei interpretativa é aquela que tão somente declara uma situação pré-existente, ao clarificar a lei existente.

Os argumentos que fundamentam o entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados antes da EC nº 45/2004 possuem força constitucional são os seguintes: a) a interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os § 2º e 3º do art. 5º da CF/8, já que o último não revogou o primeiro, mas deve ser interpretado à luz do sistema constitucional; b) a lógica e racionalidade material que devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da recepção do direito brasileiro.

Sendo assim, com o advento do §3º do art. 5º da CF/8 por meio da EC 45/2004, surgem dois tipos de tratados internacionais de direitos humanos, quais sejam: a) os materialmente constitucionais, que são os que possuem, que por força do § 2º do art. 5º é norma materialmente constitucional independentemente do seu quorum de ratificação; b) os materialmente e formalmente constitucional, que são os tratados internacionais de direitos humanos que tenham sido ratificado com o quorum exigido pelo § 3º do art. 5º da CF/8. Neste último caso, além de natureza material constitucional, a norma será formalmente constitucional.

Resta salientar que entre os tratados internacionais de direitos humanos que são meramente materialmente constitucionais e os que são materialmente e formalmente constitucionais há uma diferença de regimes jurídicos que se aplica aos tratados. Enquanto os tratados materialmente constitucionais podem ser suscetíveis de denúncia, os tratados materialmente e formalmente constitucionais não podem ser objeto de denúncia. Atente-se, ainda, que ao se admitir a natureza constitucional de todos os tratados internacionais de direitos humanos, estar-se-á a admitir que os direitos neles vinculados, assim como os demais direitos e garantias consagrados pela Constituição, tornar-se-ão cláusulas pétreas, nos termos do art. 60, § 4º da CF, não podendo vir a serem modificados por meio de Emenda Constitucional.

Cabe apontar, contudo, que, embora os direitos internacionais sejam alcançados pelo art. 60, §4º da CF, e não possam ser eliminados por Emenda Constitucional, os tratados internacionais de direitos humanos materialmente constitucionais são suscetíveis de denúncia por parte do Estado signatário. Os direitos internacionais apresentam esta peculiaridade. Tendo sido prevista a regra da denúncia no tratado, o Estado parte pode denunciá-lo a fim de não mais ficar vinculado às obrigações assumidas quando da ratificação do tratado internacional de direitos humanos sem o quorum do § 3º.

Devido à peculiaridade mencionada, considera-se mais coerente a aplicação ao ato da denúncia o mesmo procedimento aplicável ao ato de ratificação, ou seja, se para a ratificação é necessário um ato complexo, fruto da conjugação das vontades do Poder Executivo com o Legislativo, para o ato de denúncia mister a aplicação do mesmo procedimento. Entretanto isso não ocorre no Brasil. No direito brasileiro, a denúncia continua a ser ato privativo do Executivo, sem qualquer participação do Legislativo.

Importante salientar que aos tratados internacionais de direitos humanos materialmente e formalmente constitucionais não podem ser objeto de denúncia. Isto se deve ao fato de que os direitos nele enunciados receberam assento no Texto da Constituição não apenas pela materialidade que o vincula, mas também pelo alto grau de legitimidade popular contemplado pelo especial e dificultoso processo de sua aprovação. Sendo assim, não há como se admitir que, após a passagem por um difícil processo de aprovação, um ato isolado do Presidente da República possa subtrair tais direitos do patrimônio popular. Para finalizar, importa examinar de forma breve o modo pelo qual o direito comparado trata da interação dos tratados internacionais de direitos humanos e a ordem jurídica nacional. A sistemática constitucional introduzida pela Constituição de 1988 se situa num contexto em que inúmeras Constituições latino-americanas buscam

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dispensar aos preceitos constantes dos tratados internacionais de direitos humanos uma natureza jurídica privilegiada.

Na Constituição da Argentina, após a reforma constitucional de 1994, enquanto os tratados internacionais em geral possuem uma hierarquia infraconstitucional, porém supralegal, os tratados internacionais de direitos humanos possuem uma força de norma constitucional, completando os direitos e garantias constitucionalmente reconhecidos. Na Constituição da Venezuela, os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pela Venezuela têm hierarquia constitucional e prevalecem sobre a ordem interna, na medida que contenham normas sobre o seu gozo e exercício mais favoráveis às estabelecidas pela Constituição e são de aplicação imediata e direta pelos tribunais e demais órgãos do poder público.

No Peru, a sua atual Constituição de 1993 consagra que os direitos internacionalmente reconhecidos devem ser interpretados consoante a Declaração Universal de Direitos Humanos e os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Peru. Na Nicarágua, a sua Constituição confere hierarquia constitucional aos direitos constantes dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Um outro exemplo é a Constituição da Guatemala, na qual se prevê que os direitos e garantias nela previstos não excluem outros, adicionando, ainda, que os tratados internacionais de direitos humanos têm preeminênica sobre o direito interno. Também a Constituição do Chile, reformada em 1989, consagra o dever dos órgãos do Estado de respeitar e promover os direitos garantidos pelos tratados internacionais ratificados por aquele país.

É nesse contexto que se insere a inovação do art. 5º, § 2º da CF/8. Ao estatuir que os direitos e neles expressos não excluem outros, decorrentes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte, a Constituição de 1988 passa a incorporar os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos ao universo dos direitos constitucionalmente consagrados.

d) A incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos

O art. 5º, § 1º da CF/8 consagra o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais. Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais demandam aplicação imediata e se, por sua vez, os tratados internacionais de direitos humanos têm por objeto justamente a definição de direitos e garantias, conclui-se que tais normas merecem aplicação imediata.

Sendo assim, diferentemente do que ocorre com os tratados internacionais em geral, para os quais se exige a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei para que as suas disposições tenham vigência no ordenamento interno, para os tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles assegurados passam a integrar os direitos constitucionalmente consagrados imediatamente. É o que se extrai da interpretação do art. 5º, § 2º e 3º. Em outras palavras, não será mais possível a sustentação da tese a qual, com a ratificação, os tratados obrigam diretamente os Estados, mas não geram direitos subjetivos. Torna-se possível a invocação imediata dos tratados de direitos humanos sem a necessidade de edição de ato com força de lei.

A incorporação imediata gera pelo menos 3 conseqüências: a) o particular pode invocar diretamente os direitos e liberdades internacionalmente assegurados; b) proíbe condutas e atos violadores a esses mesmos direitos, sob pena de invalidação e c)a partir da entrada em vigor do tratado internacional, toda norma preexistente que seja com ele incompatível perde automaticamente a sua vigência. Ademais, passa a ser recorrível qualquer decisão judicial que violar as prescrições do tratado, haja vista o Recurso Especial a ser interposto contra decisão contrariar tratados, nos termos do art. 105, I, a da CF.

Importa mencionar a lição de Agustín Gordillo, para quem, “não apenas o Tribunal nacional, mas também e especialmente o Tribunal internacional competente, estão expressamente facultados a declarar a antijuridicidade da conduta e, conseqüentemente, invalidá-la, aplicando ainda sanções pecuniárias em favor da pessoa físicas que sofreu violação a direito fundamental, por atos, ações ou omissões de sua país, no plano interno”.

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Mister ressaltar que além da sistemática da incorporação automática do direito internacional, há a sistemática da incorporação legislativa. Pela primeira, o Estado reconhece a plena vigência do direito internacional na ordem interna a partir da ratificação do tratado, passando a viger ao mesmo tempo tanto na ordem jurídica internacional como na interna. Não há a necessidade de uma norma de direito interno. Essa sistemática de incorporação imediata reflete a concepção monista, pela qual o direito internacional e o interno compõem a mesma unidade, uma única ordem jurídica. Já na sistemática da incorporação legislativa, o Estado recusa a vigência imediata do direito internacional na ordem interna, necessitando da sua reprodução por uma norma interna. Neste sistema a ordem internacional e a interna são duas ordens jurídicas distintas, refletindo a concepção dualista há duas ordens jurídicas independente e autônomas.

Em caso de conflito entre as normas nacionais e as internacionais, há de ser perquirir, inicialmente, qual a sistemática adotada pelo país, a monista ou a dualista. Caso seja a dualista não há maiores esclarecimentos a serem feitos, haja vista que, por este sistema há inteira independência entre as ordens jurídicas nacionais e internacionais. Vindo a ser adotada pelo Estado a sistemática monista, há de se observar se o monismo é com o primado do direito nacional ou se é um monismo com primado da norma internacional. No primeiro caso, em caso de conflito entre a norma internacional e a interna, prevalece a norma interna, já no segundo caso, prevalece a norma de direito internacional. Diante dessas duas sistemáticas, conclui-se que no Brasil adota-se uma sistemática mista, na qual, para os tratados internacionais de direitos humanos, por força do art. 5º, § 1º da CF/8, têm vigência imediata, enquanto para os demais tratados se aplica a sistemática da incorporação legislativa, fazendo-se necessário a intermediação de um ato normativo para tornar o tratado obrigatório na ordem interna. Diferentemente do que ocorre em relação aos tratados de direitos humanos, em que há norma expressa na Constituição que determina a sua incorporação imediata ao sistema jurídico interno, art. 5º, § 1º e 2º da CF, em relação aos demais tratados não há qualquer menção sobre a sua vigência no ordenamento interno. Por isso a maioria dos doutrinadores entendem que em relação aos tratados internacionais em geral aplica-se a sistemática dualista, ou seja, há a necessidade de uma norma interna a fim de que o tratado passe a ter vigência interna.

Porém para o trabalho, em se tratando de tratados sobre direitos humanos, os mesmos têm aplicação imediata, sem a necessidade da expedição do Decreto de Execução, conforme determina o art. 5º, § 1º da CF/8. Já para os demais tratados o Decreto de Execução é imprescindível para que as normas internacionais tenham vigência no direito interno. No que pese as argumentação explanadas no presente trabalho, para a jurisprudência do STF a expedição do decreto é essencial para que o tratado internacional seja incorporado ao ordenamento interno.

Em síntese, em relação aos tratados internacionais de direitos humanos, a Constituição, em seu art. 5º, § 1º, acolhe a sistemática da incorporação automática, refletindo a sistemática monista, conferindo-lhes, ainda, o status de norma constitucional, por força do art. 5º, § 2º e 3º. O regime diferenciado, todavia, não se aplica aos tratados internacionais tradicionais, havendo a necessidade, para a sua vigência no ordenamento jurídico interno, da expedição de uma norma interna, além de não possuírem força hierárquica constitucional.

Importa salientar que a sistemática de incorporação automática tem sido uma tendência de algumas Cartas Contemporâneas, como ocorre na Constituição portuguesa, na alemã, na espanhola, na francesa, na holandesa. Diante do que foi exposto, cabe ao Poder Judiciário e aos demais Poderes Públicos assegurar a implantação no âmbito nacional das normas internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. As normas internacionais que consagram os direitos humanos tornam-se passíveis de vindicação e pronta aplicação ou execução perante o Poder Judiciário. Os indivíduos tornam-se, portanto, beneficiários dos direitos de instrumentos internacionais votados à proteção dos direitos humanos.

e) O impacto jurídico dos tratados internacionais de direitos humanos no direito interno brasileiro

Em relação ao impacto jurídico dos tratados internacionais de direitos humanos no direito brasileiro, levando-se em conta a hierarquia constitucional desses tratados, três são as hipóteses que podem ocorrer, quais sejam, o direito enunciado no tratado: a) coincidir com o direito assegurado na Constituição; b)

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integrar, complementar e ampliar o universo de direitos constitucionais previstos; ou c) contrariar preceitos internos.

No caso de coincidir o direito assegurado pelo tratado internacional com o direito assegurado pela Constituição não apenas reflete o fato de o legislador nacional buscar inspiração nesse instrumento internacional, como também revela a preocupação do legislador em equacionar o direito interno, de modo a ajustá-lo, com harmonia e consonância, às obrigações internacionalmente assumidas pelo Estado brasileiro. Nesse caso, os tratados internacionais de direitos humanos estarão a reforçar o valor jurídico de direitos constitucionalmente assegurados, de forma que eventual violação do direito importará em responsabilização não apenas nacional, mas também internacional. O segundo impacto jurídico decorrente da incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo direito interno resulta do alargamento do universo dos direitos nacionalmente garantidos. Vários são os casos em que direitos, embora não previstos no âmbito nacional, encontram-se enumerados nesses tratados, assim, passando a incorporar ao direito brasileiro. Na medida em que os direitos assegurados pelos tratados não são previstos no direito interno, eles inovam e ampliam o universo de direitos nacionalmente assegurados. O Direito Internacional dos Direitos Humanos inova, estende e amplia o universo dos direitos constitucionalmente assegurados.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos ainda permite, em determinados casos, o preenchimento de lacunas apresentadas pelo direito brasileiro. Um exemplo foi o julgamento pelo Pleno do STF do habeas corpus em que o Ministro Sidney Sanches, relator para o acórdão. O caso tratava-se da existência jurídica do crime de tortura contra criança e adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê em seu art. 233 o crime de prática de tortura contra a criança e o adolescente, porém instaurou-se a polêmica dado o fato de esta ser um “tipo penal aberto”. Ocorre que o STF entendeu que os instrumentos internacionais de direitos humanos permitem a integração da norma penal em aberto, a partir do reforço do universo conceitual relativo ao termo tortura. Neste caso ficou comprovado que os tratados internacionais de direitos humanos podem integrar e complementar as normas internas.

Sendo assim, quando as normas dos tratados internacionais de direitos humanos coincidam com os preceitos assegurados na constituição ou quando integrem, complementem ou ampliem as normas constitucionais, elas terão a função de reforçar a imperatividade das normas garantidas e de preencher as lacunas do direito interno, respectivamente. Contudo ainda se faz possível uma terceira hipótese: eventual conflito entre o Direito Internacional de Direitos Humanos e o direito interno.

Para solucionar o possível conflito entre as normas do tratado internacional de direitos humanos e as normas de direito interno, pode-se imaginar, como primeira alternativa, a adoção do critério “lei posterior revoga lei anterior com ela incompatível”, considerando a natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Porém, um exame mais cauteloso do assunto aponta para outro critério de solução. É a escolha da norma mais favorável à vítima. Prevalece a norma que mais beneficia o indivíduo, titular do direito. O princípio da aplicação dos dispositivos mais favorável à vítima é consagrado tanto pelos próprios tratados internacionais de proteção aos direitos humanos quanto pela jurisprudência dos órgãos de supervisão internacionais.

No plano de proteção dos direitos humanos interagem o direito internacional e o direito interno movidos pelas mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas que melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia é da pessoa humana. Os direitos internacionais constantes nos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou deliberar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. Logo, em caso de conflito entre as normas de direito internacional sobre direito humanos e as normas internas, adota-se o critério da prevalência da norma mais favorável.

O próprio art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece que “nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados”. A escolha da norma mais benéfica ao indivíduo é tarefa que

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caberá fundamentalmente aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano.

Exemplificando os casos de conflitos entre normas internacionais de direitos humanos e normas de direito interno, coloca-se o caso do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que estabelece o direito de toda pessoa a fundar, com outras, sindicatos e de filiar-se ao sindicato de sua escolha, sujeitando-se unicamente às restrições previstas em lei e que sejam necessárias para assegurar os interesses de segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger os direitos e liberdades alheias. Já a Constituição Nacional consagrou o Princípio da unicidade sindical, que prevê a proibição de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa da categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial.

Acolhendo o princípio da prevalência da norma mais favorável ao indivíduo e considerando que os direitos previstos em tratados internacionais incorporam a constituição com aplicação imediata, conclui-se que a ampla liberdade de criar sindicatos merece prevalecer, até porque as exceções previstas no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos não são observadas no Brasil, ou seja, no Brasil, a restrição à liberdade de sindicalização não se dá em razão da necessidade de assegurar os interesses de segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger os direitos e liberdades alheias. Como não houve qualquer reserva por parte do Brasil ao ratificar o mencionado pacto internacional, aceitou-se a plena liberdade de criação de sindicatos.

Um outro caso que merece enfoque refere-se à previsão que consta no art. 1 do Pacto Internacional de Direito Humanos. Pela norma, “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”. Enunciado semelhante é o do art. 7º da Convenção Americana, que estabelece que ninguém deve ser detido por dívida, acrescendo apenas uma exceção, qual seja, a dívida de créditos alimentícios. A Constituição Nacional consagra o princípio da proibição por dívida, contudo admite não apenas uma exceção, como na Convenção Americana, mas sim duas: dívida de crédito alimentício e depositário infiel.

Pois bem, se o Brasil ratificou os dois instrumentos internacionais sem qualquer reserva no que tange à matéria, é de questionar a possibilidade de prisão civil de depositário infiel. Pelo critério da prevalência da norma mais favorável ao indivíduo no plano da proteção dos direitos humanos, conclui-se que merece ser afasta tal possibilidade de prisão. Observe-se que se a situação fosse inversa, se as normas constitucionais fosse mais benéfica que a norma internacional, aplicar-se-ia Constituição Federal. As próprias regras de direito internacional levam a esta interpretação ao afirmarem que os tratados internacionais só se aplicam se ampliarem e estenderem o alcance da proteção nacional de direitos humanos.

Em resumo do presente tópico pode-se afirmar que, considerando a natureza constitucional dos direitos enunciados nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, três hipóteses poderão ocorrer. O direito enunciado no tratado internacional poderá: a) reproduzir direitos assegurados na Constituição; b) inovar o universo dos direitos constitucionalmente previstos e c) contrariar preceito constitucional. Na primeira hipótese, os tratados de direitos humanos estarão a reforçar o valor jurídico de direitos constitucionalmente assegurados. Na segunda, esses tratados estarão a ampliar e estender o elenco dos direitos constitucionais, complementando e integrando a declaração constitucional de direitos. Por fim, quanto à terceira hipótese, prevalecerá a norma mais favorável à proteção da vítima. Vale dizer, os tratados internacionais de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos constitucionalmente consagrados, ora reforçando sua imperatividade, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos. Em todas as três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados internacionais de direitos humanos apenas vêm aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno.

Enquanto o objetivo da primeira parte do trabalho foi o modo pelo qual a Constituição de 1988 se relaciona com os tratados internacionais de direitos humanos, nesta segunda parte o objetivo é aprofundar os estudos do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, tanto do âmbito global quanto no regional. Neste

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primeiro capítulo desta segunda parte, o objetivo é desvendar os precedentes históricos que permitiram a deflagração do processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos.

a) Primeiros Precedentes do processo de internacionalização dos direitos humanos – o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho.

Sempre se mostrou intensa a polêmica sobre a natureza dos direitos humanos, se eles são naturais e inatos, direitos positivos, direitos históricos ou direitos que derivam de determinado sistema moral. Tal polêmica ainda hoje é bastante intensa. O presente trabalho defende a historicidade dos direitos humanitários, na medida em que estes não são um dado, mas construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Na lição de Norberto Bobbio, os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direitos) para finalmente encontrar a plena realização como direitos positivos universais. Preleciona ainda Bobbio que, não obstante a importância do debate a respeito do fundamento dos direitos humanos, o maior problema hoje “não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”.

Os primeiros marcos do processo de internacionalização dos direitos humanos foram o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho. Foi necessário uma nova definição do âmbito e o alcance do tradicional conceito de soberania estatal, a fim de permitir o advento dos direitos humanos como questão de legítimo interesse internacional. Foi preciso, ainda, a redefinição do status do indivíduo no cenário internacional, para que se tornasse o verdadeiro sujeito de direito internacional.

Direito Humanitário é o direito que se aplica na hipótese de guerra, a fim de limitar a atuação do Estado e assegurar a observância de direitos fundamentais. A proteção humanitária se destina, em casos de guerra, a militares postos fora de combate (feridos, doentes, náufragos, presioneiros) e à população civil. A Liga das Nações foi criada após a Primeira Guerra Mundial, possuindo como finalidade promover a cooperação, paz e segurança internacional, condenando agressões externas contra a integridade territorial e a independência política dos seus membros. Era também um meio de reforçar a idéia de relativizar a soberania dos Estados, incorporando em seu conceito compromissos e obrigações de alcance internacional no que diz respeito aos direitos humanos. Além do Direito Humanitário e da Liga das Nações, a Organização Internacional do Trabalho também contribuiu para a internacionalização dos direitos humanos. Criada após a Primeira Guerra Mundial, tinha por finalidade promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem-estar.

Apresentando o breve perfil da Organização Internacional do Trabalho, da Liga das Nações e do Direito Humanitário, pode-se concluir que tais institutos, cada qual ao seu modo, contribuíram para o processo de internacionalização dos direitos humanos, seja ao assegurar parâmetros globais mínimos para as condições de trabalho no plano mundial, seja ao fixar como objetivos internacionais à manutenção da paz e segurança internacional, seja ainda ao proteger direitos fundamentais em situações de conflito armados. Tais institutos se assemelham na medida em que protejam o tema dos direitos humanos na ordem internacional.

Com o advento dos institutos supramencionados, chega-se ao fim a época em que o Direito Internacional era confinado a regular meramente relações entre Estados. Passa-se a não mais visar apenas arranjos recíprocos, mas sim o alcance de obrigações internacionais a serem garantidos coletivamente. Essas obrigações visam a salvaguardar direitos do ser humano e não prerrogativas dos Estados. Os novos institutos rompem, ainda, com a antiga concepção de soberania nacional absoluta, na medida que admitem intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos. Aos poucos emerge a idéia de que o indivíduo não é apenas objeto, mas também sujeito do Direito Internacional, passando-se a se aceitar a capacidade processual internacional dos indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos não mais se limitam à exclusiva jurisdição doméstica, mas sim constituem matéria de legítimo interesse internacional.

b) A internacionalização dos Direitos Humanos – pós-guerra.

A verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em decorrência da Segunda Guerra Mundial. É um movimento extremamente recente que surgiu como resposta às atrocidades e aos

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horrores durante o nazismo. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do direito. Diante dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime da moral. Nesse cenário, o maior direito passa a ser o direito a ter direito, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pósguerra deveria significar sua reconstrução. Neste prisma, nasce a idéia de que a proteção aos direitos humanos não devem se reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. O processo de internacionalização dos direitos humanos – que por sua vez, pressupõe a delimitação à soberania estatal – passa, assim, a ser uma importante resposta na busca da reconstrução de um povo paradigma, diante do repúdio internacional às atrocidades cometidas no holocausto. Com a decadência do nazismo, a defesa da soberania ilimitada passou a ser duramente atacada, especialmente em razão das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra. Toda essa barbárie fez com que os doutrinadores concluíssem que a soberania estatal não é um princípio absoluto, mas deve estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos humanos.

A crescente preocupação com os direitos humanos no pós-guerra é perceptível por meio da criação das Nações Unidas, da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral da ONU e com a ocupação de um espaço central na agenda das instituições internacionais. No fim do século X, não era mais possível se afirmar que o Estado pode tratar os seus cidadãos da forma que quiser, sem sofrer qualquer responsabilização na arena internacional. Nesse contexto, o Tribunal de Nuremberg significou um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Com a competência para julgar os crimes cometidos ao longo do nazismo, seja pelos líderes do partido, seja pelos oficiais militares, O Tribunal de Nuremberg teve a sua composição e seus procedimentos básicos fixados pelo Acordo de Londres (Acordo firmado entre os aliados em 1945 para a responsabilização dos alemães pela guerra e pela barbárie cometidas).

O Tribunal de Nuremberg aplicou fundamentalmente o costume internacional para a condenação criminal dos envolvidos na prática de crimes de guerra, crimes contra a paz e em crimes contra a humanidade, previstos no Acordo de Londres. Note-se que, segundo o art. 38 do Estatuto da Corte Internacional, o costume internacional é fonte do direito internacional, juntamente com os tratados internacionais, com as decisões judiciais, com a doutrina e com os princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações “civilizadas”.

Para a existência do costume internacional, faz-se a necessidade de: a) a concordância de um número significativo de Estados em relação a determinada prática e do exercício uniforme dessa prática; b)a continuidade de tal prática por considerável período de tempo; c) a concepção de que tal prática é requerida pela ordem internacional e aceita como lei, ou seja, que haja o censo de obrigação. Sendo assim, não resta dúvidas de que a prática de tortura, de desaparecimento forçado, de detenções arbitrárias, entre outras práticas, cometidas pelo nazismo constitui violação aos costumes. Atente-se para o fato de que o costume internacional tem eficácia erga omnes, enquanto os tratados internacionais só são aplicados aos Estados que os tenham ratificados.

As condenações do Tribunal de Nuremberg, que tiveram como fundamento os costumes internacionais, sofreram críticas sob o argumento de que estariam violando o princípio da irretroatividade da lei, pois os atos punidos não eram considerados crimes no momento em que foram cometidos. Hans Kelsen, embora crítico em relação a vários aspectos do Acordo de Londres e ao próprio julgamento, ao tratar da polêmica sobre a possível violação dos princípios do Direito Penal, de sobremaneira em relação à irretroatividade da lei penal, lecionou o seguinte: “Contudo, este princípio da irretroatividade da lei não é válido no plano do direito internacional, mas é válido apenas no plano do direito interno, com importantes exceções”.

O significado do Tribunal de Nuremberg para o processo de internacionalização dos direitos humanos é duplo: não apenas consolida a idéia da necessária limitação da soberania nacional como reconhece que os indivíduos têm direitos protegidos pelo direito internacional. Steiner, ao se pronunciar sobre o significado do Tribunal de Nuremberg assevera que “(...). Simultaneamente, cada vez mais se reconhece que os

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indivíduos podem ser considerados responsáveis por determinadas condutas. Não mais se acredita que os Estados são os exclusivos perpetradores de condutas que violam o direito internacional. A ficção legal que os indivíduos não participam da arena internacional e, conseqüentemente, não podem ser considerados responsáveis pelos seus atos, tem sido repensada. (...) Crimes de guerra e genocídios são hoje reconhecidos como atos pelos quais os indivíduos são sucessíveis à responsabilização como indivíduos. (...)” c) A Carta das Nações Unidas de 1945

Após a Segunda Guerra Mundial, relevantes fatores contribuíram para o fortalecimento da internacionalização do direito internacional dos direitos humanos. Dentre eles a maciça expansão de organizações internacionais com propósito de cooperação internacional. Com a vitória do Aliados, surge uma nova ordem com importantes transformações no Direito Internacional, simbolizada pela Carta das Nações e palas suas Organizações. A criação das Nações Unidas, com suas agências especializadas, demarca o surgimento de uma nova ordem internacional, instaurando um novo modelo de condutas nas relações internacionais, com objetivos como a manutenção da paz e segurança internacionais, o desenvolvimento de relações amistosas entre os Estados, a adoção da cooperação internacional no plano econômico, social e cultural, entre outras.

Para a consecução dos objetivos supramencionados, as Nações Unidas foram organizadas em vários órgãos, em que os principais são: Assembléia Geral, Conselho de Segurança, Corte Internacional de Justiça, Conselho Econômico e Social, Conselho de Tutela e o Secretariado. Compete à Assembléia Geral discutir e fazer recomendações relativas a qualquer matéria objeto da Carta. Todos os membros das Nações Unidas são membros da Assembléia Geral, com direito a um voto. O Conselho de Segurança é o órgão da ONU com a principal responsabilidade na manutenção da paz e segurança internacionais. É composto por cinco membros permanentes e dez não permanentes. Os membros permanentes são China, França, Reino Unido, Estados Unidos e, desde 1992, Rússia, que substituiu a antiga União Soviética. Os não permanentes são escolhidos pela Assembléia Geral para mandados de dois anos, considerando a colaboração dos membros para os propósitos das Nações Unidas e a distribuição geográfica eqüitativa.

A Corte Internacional é o principal órgão judicial das Nações Unidas, composto por quinze juízes. Seu funcionamento é disciplinado pelo Estatuto da Corte, que foi anexado à Carta. Dispõe de competência contenciosa e consultiva, porém apenas Estados são partes em questões pertinentes ela. O Secretariado é chefiado pelo Secretário-Geral, que é o principal funcionário administrativo da ONU, indicando para mandato de cinco anos pela Assembléia Geral, a partir da recomendação do Conselho de Segurança. O Conselho Econômico e Social, composto por vinte e sete membros, tem competência para promover a cooperação em questões econômicas, sociais e culturais, incluindo os direitos humanos. Cabe ao Conselho Econômico e Social fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos, bem como elaborar projetos de convenções serem submetidos à Assembléia Geral. O art. 68 permite que o Conselho Econômico e Social crie comissões necessárias para o desempenho das suas funções. Sendo assim, foi criada a Comissão de Direitos Humanos da ONU. Ao tratar da Comissão de Direitos Humanos, Thomas Buergenthal afirma que “esta comissão deve submeter ao Conselho Econômico e Social proposta, recomendações e relatórios relativos aos instrumentos internacionais de direitos humanos, à proteção das minorias, à prevenção da discriminação e demais questões relativas aos direitos humanos. (...)”.

Deste modo, a nova agenda internacional passa a conjugar a preocupação na manutenção da paz e de evitar a guerra com preocupação em promover e proteger os direitos humanos. A Carta das Nações de 1945 consolida assim o movimento de internacionalização dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam a promoção desses direitos a propósito e finalidade das Nações. Em definitivo, a relação entre Estado com seus nacionais passa a ser uma problemática internacional, objeto de instituições internacionais e do direito internacional.

1948, veio a definir com precisão o elenco dos “direitos humanos e liberdades fundamentais”

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Importante salientar que, embora a Carta das Nações apresente uma enfática preocupação em defender, promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, ela não define o conteúdo dessas expressões. Daí o desafio em desvendar o alcance e significado da expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais”. Três anos após o advento da Carta das Nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de d) A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada por unanimidade e se qualquer reserva ou questionamento, o que confere à Declaração o significado de um código e plataforma comum de ação. A Declaração consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados. A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. A dignidade da pessoa humana como fundamento dos direitos humanos é concepção que, posteriormente, viria a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direito, que passam a integrar o chamado Direito Internacional de Direitos Humanos.

Além da universalidade dos direitos humanos, a Declaração de 1948 ainda introduz a indivisibilidade desses direitos ao ineditamente conjugar o catálogo dos direitos civis e políticos com o dos direitos econômicos, sociais e culturais. Ao definir o significado do que significa a expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais”, a Declaração Universal estabelece duas categorias: a) direitos civis e políticos e b) direitos econômicos, sociais e culturais, combinando o valor da liberdade com o valor da igualdade.

À luz de uma perspectiva histórica, observa-se que até então era intensa a dicotomia ente o direito à liberdade e o direito à igualdade. No final do Século XVIII, as Declarações de Direitos, seja a Declaração Francesa (1789), seja a Declaração Americana (1776), consagravam a ótica liberal, em que os direitos humanos se reduziam os direitos à liberdade, segurança e propriedade, complementados pela resistência à opressão. Neste momento histórico, os direitos humanos surgem como reação aos excessos do regime absolutista, na tentativa de impor controle e limites à abusiva atuação do Estado. A solução era limitar e controlar a atuação do Estado, que deveria se pautar na legalidade e respeitar os direitos fundamentais. A não-atuação estatal significava liberdade.

Caminhando na história, verifica-se que, especialmente após a Primeira Guerra, ao lado do discurso liberal da cidadania, cresce o movimento social e da cidadania. Sob a concepção marxista e lenilista é elaborada a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na então República Soviética da Rússia, em 1918. Do primado da igualdade se transita para o primado da liberdade. O Estado passa a ser visto como agente de processos transformadores, e o direito à abstenção do Estado, neste sentido, converte-se em direito à atuação estatal, com a emergência dos direitos à prestação social.

Essa digressão histórica tem como objetivo demonstrar quão dicotômica se apresentava a linguagem dos direitos: de um lado, direitos civis e políticos, de outro, direitos sociais, econômicos e culturais. Considerando neste contexto, a Declaração de 1948 introduz extraordinária inovação ao combinar o discurso liberal com o discurso social, passando a elencar tanto direitos civis e políticos quanto direitos sociais, econômicos e culturais. Ao conjugar o valor da liberdade com o da igualdade, a Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível. Os direitos da primeira geração não substituem os direitos da segunda e nem esses os da terceira, pelo contrário. As três gerações se interagem. Não há mais como cogitar da liberdade divorciada da justiça social, como também infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade. Todos os direitos humanos constituem um complexo integral, único e indivisível. Importa agora observar qual o valor jurídico da Declaração Universal de 1948. Ela não é um tratado, sendo certo que foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas sob a forma de resolução, que, por sua vez, não apresenta força de lei. O propósito da Declaração, como proclama seu preâmbulo, é promover o reconhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por isso a Declaração Universal tem sido concebida como a interpretação autorizada da expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais”, constante da Carta das Nações Unidas, apresentando, por esse motivo, força jurídica vinculante. Os Estados

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membros das Nações Unidas têm a obrigação de promover o respeito e a observância universal dos direitos proclamados pela Declaração. A Carta das Nações Unidas nunca definiu os direitos humanos e as liberdades fundamentais que os Estados da ONU se comprometem a respeitar e observar, mas a Declaração traz a definição, com uma clara referência ao compromisso dos Estados em seu próprio preâmbulo.

Há, contudo, quem entenda que a Declaração teria força jurídica vinculante por integrar o direito costumeiro internacional e/ou os princípios gerais de direito, apresentando, assim, força jurídica vinculante. Para essa corrente, três são as argumentações centrais: a) a incorporação das previsões da Declaração atinente aos direitos humanos pelas Constituições nacionais; b) as freqüentes referências feitas por resoluções das Nações Unidas às obrigação legal de todos os Estados de observar a Declaração Universal; c) decisões proferidas pelas Cortes Nacionais que se referem à Declaração Universal como fonte de direito. Exemplo é a proibição à escravidão, à tortura, ao tratamento cruel, entre outros dispositivos da Declaração que assumem o valor de direito costumeiro internacional ou princípio geral do direito internacional, aplicando-se a todos os Estados e não apenas aos signatários da Declaração.

Para esse trabalho, a Declaração Universal, no que pese não tenha a forma de um tratado internacional, apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, na medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão “direitos humanos” constante na Carta das Nações. Ressalte-se que à luz da Carta das Nações, os Estados assumem o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo aos direitos humanos. Ademais, a natureza jurídica vinculante da Declaração Universal é reforçada pelo fato de – na qualidade de um dos mais influentes instrumentos jurídicos e políticos do século X – ter-se transformado, ao longo dos mais de cinqüenta anos de sua adoção, em direito costumeiro internacional e princípio geral do direito internacional.

e) Universalismo e relativismo cultural

A concepção universal dos direitos humanos pela Declaração sofre grandes resistências por parte dos adeptos do movimento do relativismo cultural. Podem as normas de direitos humanos ter um sentido universal ou são culturalmente relativas? Com a internacionalização, e conseqüentemente a relativização do conceito de soberania e jurisdição doméstica, o debate ganha força.

Para os relativistas, a noção de direito está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade, sendo certo que cada sociedade possui seu discurso sobre direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade. Sendo assim, defendem os relativistas que o pluralismo cultural impede a formação de um movimento universa, tornando-se necessário que respeitem as diferenças culturais apresentadas por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral, como ocorre, por exemplo, na diferença cultural entre o mundo ocidental e o induísmo ou com o islamismo. No entendimento de Jack Donnelly, defensor da corrente relativista, há diversas correntes relativistas: “No extremo, há o que nós denominamos de relativismo cultural radical, que concebe a cultura como a única fonte de validade de um direito ou regra moral. (...) Um forte relativismo cultural acredita que a cultura é a principal fonte de validade de um direito ou regra moral. (...) Um relativismo cultural fraco, por sua vez, sustenta que a cultura pode ser uma importante fonte de um direito ou regra geral”.

Para os universalistas o fundamento dos direitos humanos é a dignidade humana, como valor intrínseco à própria condição humana. Nesse sentido, qualquer afronta ao chamado “mínimo ético irredutível” que comprometa a dignidade humana, ainda que em nome da cultura, importará em violação a direitos humanos. Para se ajustar à classificação das correntes relativistas defendidas por Jack Donnelly, poder-se-ia sustentar a existência de diversos graus de universalismos, a depender do alcance do “mínimo ético irredutível”. No entanto, a defesa, por si só, desse mínimo ético, independentemente de seu alcance, apontará para a corrente universalista – seja a um universalismo radical, forte ou fraco.

Na análise dos relativistas, a pretensão de universalismo desses instrumentos simboliza a arrogância do imperialismo cultural do mundo ocidental, que tenta universalizar suas próprias crenças. A noção universal de direitos humanos é identificada como uma noção construída pelo modelo ocidental. O universalismo

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induz, nessa visão, à destruição da diversidade cultural. A essa crítica rebatem os universalistas alegando que a posição relativista revela o esforço de justificar graves casos de violação dos direitos humanos que, com base no sofisticado argumento do relativismo cultural, ficariam imunes ao controle da comunidade internacional. Argumentam, ainda, que a existência de normas universais relativas ao valor da dignidade humana é exigência do mundo contemporâneo, bem como que se diversos Estados optaram por ratificar instrumentos internacionais de direitos humanos, é porque consentiram em respeitar os direitos neles assegurados, não podendo isentar-se do controle internacional em caso de violação desses direitos.

A Declaração de Viena, de 1993, buscou acabar com esse debate ao estabelecer em seu § 5º: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e equânime, com os mesmo parâmetros e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais e bases históricas, culturais e religiosas devem ser consideradas, mas é obrigação dos Estados, independentemente de seu sistema político, econômico, e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”. Para Antônio Augusto Cançado Trindade, “Compreendeu-se finalmente que a universalidade é enriquecida pela diversidade cultural, a qual jamais pode ser invocada para justificar a denegação ou violação dos direitos humanos”. Adotando-se a lição de Jack Donnelly, pode-se concluir que a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 acolheu a corrente do forte universalismo ou fraco relativismo cultural.

Neste debate, destaca-se as ponderação de Boaventura de Souza Santos, o qual entende que há a necessidade de se superar o debate sobre universalismo e relativismo cultural, a partir da transformação cosmopolita dos direitos humanos. Na medida em que todas as culturas possuem concepções distintas de dignidade humana, mas são incompletas, haver-se-ia que aumentar a consciência dessas incompletudes culturais mútuas, como pressuposto para um diálogo intercultural. A construção de uma concepção multicultural dos direitos humanos decorreria desse diálogo intercultural. Este é o mesmo entendimento defendido por Joaquín Herrera Flores, que sustenta um universalismo de chegada e não de partida, nas palavras do doutrinador, “(...) O que negamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes de) um processo conflitivo, discursivo de diálogo (...).” Acredita-se que sem o diálogo entre culturas, respeitando-se a diversidade e com base no reconhecimento do outro, como ser pleno de dignidade e com base no reconhecimento do outro como ser pleno de dignidade e direitos, é condição para a celebração de uma cultura dos direitos humanos, inspirada pela observância do “mínimo ético irredutível”, alcançado por um universalismo de confluência.

a) Introdução

O processo de universalização, com o reexame do valor da soberania absoluta do Estado e com a universalização dos direitos humanos, fazendo com que os Estados consentissem em submeter ao controle da comunidade internacional o que até então era de seu domínio reservado, gerou a necessidade de implementação desses direitos mediante a criação de uma sistemática internacional de monitoramento – a international accountability. O objetivo desse capítulo é enfocar a estrutura normativa do sistema de proteção aos direitos humanos.

Para iniciar este estudo, insta relembrar que a Carta da ONU de 1945 estabelece que os Estados-partes devem promover a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais e que em 1948 a Declaração Universal vem a definir e fixar o elenco dos direitos e liberdades universais a serem garantidos. Todavia, sob o enfoque estritamente legalista, a Declaração Universal não possui força jurídica vinculante. Assumindo a forma de declaração e não de tratado, a Declaração atesta o reconhecimento universal de direitos humanos, consagrando um código comum a ser seguido por todos os Estados. À luz desse raciocínio e considerando a ausência de força jurídica vinculante da Declaração, discutia-se qual a maneira mais eficaz de assegurar o reconhecimento e observância universal dos direitos nelas previstos. Prevaleceu o entendimento de que a Declaração deveria ser “juridizada” sob a forma de tratado internacional, que fosse juridicamente obrigatória e vinculante no âmbito do direito internacional.

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Esse processo de “juridização” iniciou-se em 1949 e foi concluído em 1966 com a elaboração de dois tratados, quais sejam, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que passaram a incorporar os direitos constantes na Declaração Universal. A conjugação desses instrumentos internacionais simbolizam a mais significativa expressão do movimento internacional dos direitos humanos. A partir desses pactos se forma a Carta Internacional dos Direitos Humanos, International Bill of Rights, integrada pela Declaração Universal de 1948 e pelos dois tratados internacionais de 1966. A Carta Internacional dos Direitos Humanos inaugura, assim, o sisyema global de proteção desses direitos, ao lado do qual já se delineava o sistema regional de proteção, nos âmbitos europeu, interamericano e, posteriormente, africano. O sistema global, por sua vez, viria a ser ampliado com o advento de diversos tratado multilateral de direitos humanos, pertinentes a determinadas e específicas violações de direitos, como, por exemplo, sobre o genocídio, a tortura e a violação dos direitos das crianças.

Diversamente dos tratados internacionais comuns, os tratados internacionais de direitos humanos não objetivam estabelecer o equilíbrio de interesses entre os Estados, mas sim garantir o exercício dos direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos. Cabe atentar que o Direito Internacional dos Direitos Humanos, com seus inúmeros instrumentos, não visam substituir o sistema nacional. Ao revés, situa-se como direito subsidiário e suplementar ao direito nacional, no sentido de permitir que sejam superadas omissões e deficiências. Enquanto no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o Estado tem a responsabilidade primária pela proteção desses direitos, ao passo que a comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária, constituindo garantia adicional de proteção aos direitos humanos, quando falham as instituições nacionais.

b) Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

Embora aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966, somente em 1976 o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais entraram em vigor, quando alcançaram o número de ratificações necessário. Primeiramente, faz-se necessário compreender que houve uma discursão sobre a conveniência da elaboração de dois pactos diversos ou um pacto único, que pudesse compreender tanto os direitos civis e políticos quanto os direitos econômicos, sociais e culturais. Inicialmente, a Comissão de Direitos Humanos da ONU trabalhou em um único projeto de pacto, que conjugava as duas categorias de direitos. Posteriormente, sob a influência dos países ocidentais, a Assembléia Geral, em 1951, determinou que fossem elaborados dois pactos em separados.

Não obstante a elaboração de dois pactos em separado, a indivisibilidade e unidade dos direitos humanos era reafirmados pela ONU, sob a argumentação de que sem os direitos civis e políticos, os direitos econômicos, sociais e culturais só poderiam existir no plano nominal, bem como que sem os direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos não deixariam o plano formal.

Um dos principais argumentos adotados pelos países ocidentais em defesa da elaboração de dois pactos distintos foi a forma de implementação das duas categorias de direitos. Enquanto os direitos civis e políticos são direitos auto-aplicáveis e passíveis de cobrança imediata, os direitos econômicos, sociais e culturais são direitos programáticos, que devem ser implementados de forma progressiva. Esse argumento ganhou força a partir de que, para os direitos civis e políticos, o melhor mecanismo seria a criação de um comitê que apreciasse petições contendo denúncia de violações de direitos, instrumento este que seria inaplicável para a tutela dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Contra esse posicionamento os países socialistas responderam que não era em todos os países que os direitos civis e políticos seriam autoaplicáveis e os direitos econômicos, sociais e culturais seriam programáticos. Neste raciocínio, a formação de dois pactos distintos acarretaria a diminuição da importância dos direitos econômicos, sociais e culturais. Contudo, ao final prevaleceu o posicionamento ocidental, sendo adotados dois pactos internacionais, cada qual relativo a uma categoria de direitos. Neste contexto nasceu o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, com um catálogo de direitos civis e políticos mais extensos do que o previsto na própria Declaração Universal.

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O Pacto de Direitos Civis e Políticos, primeiramente, assegura que os Estados-partes possuem o dever de assegurar os direitos nele elencados a todos os indivíduos que estejam em sua jurisdição, adotando medidas necessárias para esse fim. Cabe ao Estado-parte estabelecer um sistema legal capaz de responder com eficácia às violações dos direitos civis e políticos, sendo certo que as obrigações dos Estados são tanto de natureza negativa quando positiva. Ao impor aos Estados a obrigação imediata de respeitar e assegurar os direitos nele previstos, diversamente do que ocorre com o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos apresenta autoaplicabilidade.

Quanto ao catálogo de direitos civis e políticos propriamente ditos assegurados, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos não somente incorpora inúmeros dispositivos da Declaração Universal, com maior detalhamento, como também estende o elenco desses direitos. Constata-se que o pacto incorpora novos direitos e garantias não incluídos na Declaração. Em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais assegurados pela Declaração Universal, esses não são assegurados pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, haja vista tratar-se do objeto do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos apenas excepcionalmente admitem a derrogação temporária dos direitos que enuncia. A derrogação temporária fica condicionada aos estritos limites impostos pela decretação de estado de emergência, ficando proibida qualquer medida discriminatória fundada em cor, raça, sexo, língua, religião ou origem social. O pacto permite, ainda, limitações em relação a determinados direitos, quando necessárias à segurança nacional ou à ordem pública.

No intuito de assegurar a efetividade das determinações do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, foi desenvolvido uma sistemática peculiar de monitoramento e implementação internacional – uma special enforcement machinery. Deste modo o pacto oferece suporte institucional aos preceitos que consagra, impondo obrigações aos Estados-partes. Ao ratificar o pacto, o Estado passa a ter a obrigação de encaminhar relatórios periódicos sobre as medidas legislativas, administrativas e judiciárias adotadas, a fim de ver implementados os direitos enunciados pelo pacto. Por essa sistemática, o Estado-parte esclarece o modo pelo qual está conferido cumprimento às obrigações internacionais assumidas. Os relatórios são apreciados pelo Comitê de Direitos Humanos, instituído pelo pacto, devendo ser encaminhado pelo Estado-parte um ano após a ratificação do pacto, bem como toda vez que o comitê solicitar. Ao comitê cabe analisar os relatórios, tecendo comentários e observações gerais a respeito, vindo posteriormente a encaminhá-lo, com os comentários, ao Conselho Econômico Social das Nações Unidas.

Além da sistemática dos relatórios, o Pacto prevê a sistemática das comunicações interestatais (inter-state communications). Por esse mecanismo, um Estado-parte pode alegar haver outro incorrendo em violação dos direitos humanos enunciados no Pacto. Contudo, o acesso a esse mecanismo é opcional e está condicionado à elaboração pelo Estado-parte de uma declaração em separado, reconhecendo a competência do Comitê para receber as comunicações inter-estatais. Vale dizer, em se tratando de cláusula facultativa, as comunicações inter-estatais só podem ser admitidas se ambos os Estados envolvidos ( denunciador e denunciado) reconhecerem a competência do Comitê para recebê-la e examiná-las. O procedimento das comunicações inter-estatais pressupõe o fracasso das negociações bilaterais e o esgotamento dos recursos internos. A função do Comitê é auxiliar na superação da disputa, mediante proposta de solução amistosa.

c) Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

Conforme se afirmou no tópico anterior, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos apresentou dois mecanismos de implementação e monitoramento: a sistemática dos relatórios encaminhados pelos Estados-partes e a sistemática, opcional, das comunicações interestatais. Segundo Antônio Augusto Cançado, o sistema de petições, “mediante o qual veio a cristalizar-se a capacidade processual internacional dos indivíduos (direito de petição individual), constitui um mecanismo de proteção de marcante significado, além de conquista de transcendência histórica”.

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A importância do Protocolo está em habilitar o Comitê de Direitos Humanos a receber e examinar petições encaminhadas por indivíduos, que aleguem ser vítimas de violação de direitos humanos enunciados pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos. A petição individual só poderá ser admitida se o Estado violador tiver ratificado tanto o Pacto como o Protocolo facultativo, já que só assim o Estado estará reconhecendo a competência do Comitê para tanto. Importa salientar que o Comitê possui uma competência investigativa, sendo limitado a receber e considerar comunicações de indivíduos sujeitos à jurisdição de Estados-partes, no sentido que são vítimas de violações por parte do Estado, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto dos Direitos Civis e Políticos.

Resta salientar que, para o exercício da sistemática das petições, o vínculo exigido, ao invés da nacionalidade, é antes o da relação entre o reclamante e o dano ou violação dos direitos humanos que denuncia, sendo certo que o Comitê já determinou que um indivíduo só pode ser considerado “vítima”, com direito para protocolar reclamação perante o Comitê, se pessoalmente sofreu a violação do direito assegurado. Contudo, embora na linguagem do Protocolo Facultativo a comunicação seja individual, recentemente concluiu que as comunicações podem ser encaminhadas por organizações ou terceiras pessoas que representem o indivíduo que sofreu a violação. Importa ter-se em foco que a petição deve respeitar alguns requisitos de admissibilidade, como, por exemplo, o esgotamento prévio dos recursos internos – salvo quando a aplicação desses recursos se mostram injustificadamente prolongada, ou ainda se não assegurar à vítima o direito aos recursos de jurisdição interna. Outro requisito é a comprovação de que a mesma questão não está sendo examinada por outra instância internacional.

Ao receber a petição individual, o Comitê, após analisar a sua admissibilidade, abre o prazo de seis meses para que o Estado apresente esclarecimentos sobre o caso, bem como as medidas que eventualmente tenham sido por ele adotadas. Tais esclarecimentos serão encaminhados para o reclamante, a fim de que o mesmo possa enviar ao Comitê informações adicionais. A partir de então o Comitê proferirá uma decisão pelo voto da maioria, apesar de sempre buscar uma votação unânime. Essa decisão será publicada no relatório anual do Comitê à Assembléia Geral. Ao decidir, por vezes, além de declarar a caracterização da violação alegada, o Comitê determina a obrigação do Estado em reparar a violação cometida e em adotar as medidas necessárias a promover a estrita observância do Pacto.

As decisões do Comitê não possuem força vinculante, não sendo sequer previsto qualquer sanção ao Estado que não cumprir as suas determinações. Embora não exista sanção no sentido estritamente jurídico, a condenação do Estado no âmbito internacional enseja conseqüências no plano político, mediante o chamado power of embarrassment, que pode causar constrangimento político e moral. Como resultado de fortes pressões, o Comitê adotou, em 1990, uma série de medidas no sentido de monitorar o modo pelo qual o Estado confere cumprimento às suas decisões. O Comitê solicita informações, no prazo de 180 dias, sobre as medidas adotadas em relação ao caso. Assim, o relatório anual do Comitê indicará os Estados que se negaram a responder a solicitação, os Estados que não satisfizeram a decisão, bem como os que satisfizeram a decisão do Comitê. Essas novas medidas foram denominadas de Special Rapporteur for the Follow-up of Views. Contudo, ainda é grande a resistência dos Estados em consentir que os indivíduos tenham o poder de encaminhar petições individuais.

d) Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

ou “ninguém poderá...”, já o segundo pacto usa a fórmula “os Estados-partes reconhecem o direito de cada um a

”. Se os direitos civis e

Assim como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o maior objetivo do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi incorporar os dispositivos da Declaração Universal sob a forma de preceitos juridicamente obrigatórios e vinculantes, além do que, da mesma forma que o Pacto de Direitos Civis e Políticos, ele expandiu o elenco dos direitos sociais, econômicos e culturais elencados pela Declaração Universal. Porém, enquanto o Pacto dos Direitos Civis e Políticos estabelece direitos endereçados aos indivíduos, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelece direitos e

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deveres endereçados aos Estados. O primeiro o pacto determina que “todos têm direito a...” políticos devem ser assegurados de plano pelo Estado, sem escusa ou demora – têm a chamada auto-aplicabilidade – os direitos sociais, econômicos e culturais, por sua vez, nos termos em que estão concebidos pelo Pacto, apresentam realização progressiva.

Como bem observa Thomas Buergenthal, “Ao ratificar esta Pacto, os Estados não se comprometem a atribuir efeitos imediatos aos direitos enumerados no Pacto. Ao revés, os Estados se obrigam meramente a adotar medidas, até o máximo dos recursos disponíveis, a fim de alcançarem progressivamente a plena realização desses direitos”. Os direitos assegurados no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais são direitos que exigem, para a sua aplicação, um mínimo standart técnico-econômico, não podendo ser aplicado sem que apresentem efetivamente uma prioridade na agenda nacional. Ressalte-se, todavia, que o Comitê Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem enfatizado o dever dos Estados-partes de assegurar, ao menos, o núcleo essencial mínimo relativo a cada direito enunciado no Pacto.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também apresentam uma peculiar sistemática de monitoramento e implementação dos direitos que contempla, incluindo o mecanismo dos relatórios a serem encaminhados pelos Estados-partes. Os relatórios exigidos pelo Pacto devem consignar as medidas adotadas pelo Estado-parte no sentido de conferir observância aos direitos reconhecidos pelo Pacto, devendo, ainda, consignar os fatores de dificuldade em implementar as obrigações decorrentes do Pacto. Diversamente do Pacto de Direitos Civis e Políticos, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não cria um comitê próprio, que foi estabelecido posteriormente pelo Conselho Econômico Social.

Uma outra diversidade do Pacto de Direitos Civis e Político, é que no Pacto Econômico, Social e Cultural, não há a previsão do mecanismo de comunicação inter-estatal, tampouco, mediante Protocolo Facultativo, permite a sistemática das comunicações individuais. Em suma, o único mecanismo de monitoramento continua a se restringir à sistemática dos relatórios, embora a Declaração de Viena tenha previsto a incorporação de outros métodos, como o direito de petição, por meio de protocolo adicional, e a aplicação de um sistema de indicadores para medir o progresso alcançado na realização dos direitos previstos no Pacto.

por diversos outros tratados internacionais

Contudo, importa salientar que o Pacto estabelece a obrigação dos Estados de reconhecer e progressivamente implementar os direitos nele enunciados. Da obrigação da progressividade na implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais, decorre a chamada cláusula de proibição do retrocesso social, na medida em que é vedado aos Estados retroceder no campo da implementação desses direitos. Além disso, pela ótica normativa internacional, os direitos econômicos, sociais e culturais não são direitos legais, mas sim autênticos e verdadeiros direitos fundamentais assegurados apenas pela Declaração Universal e pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, mas também

A obrigatoriedade de implementação desses direitos deve partir do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, além do que, por trás dos direitos específicos consagrados nos documentos internacionais acolhidos pela comunidade internacional, repousa uma visão social do bem-estar individual. A idéia de proteção a estes direitos envolve a crença de que o bem-estar individual resulta, em parte, de condições econômicas, sociais e culturais, nas quais todos nós vivemos, bem como envolve a visão de que o Governo tem a obrigação de garantir adequadamente tais condições para todos os indivíduos. Trata-se de uma idéia adotada, pelo menos no âmbito global, por todas as nações, ainda que exista uma grande discórdia acerca do escopo apropriado da ação e responsabilidade governamental e da forma pela qual o social welfare pode ser alcançado em sistemas econômicos e políticos específicos.

Em relação ao debate sobre a acionabilidade dos direito sociais, econômicos e culturais, compartilha-se do entendimento de que a insistência de que as Cortes são incompetentes para tratar de políticas sociais não deve prevalecer. As Cortes criam políticas sociais não apenas quando interpretam a Constituição, mas

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também quando interpretam a legislação de direito econômico, trabalhista, ambientalista, entre outros. Nos ensinamentos de Martha Jackman, “O Comitê já deixou claro que considera muitas previsões do Pacto [sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais] como aptas a ensejar a implementação imediata”. Contudo, continua, o Comitê “é importante, nesse aspecto, distinguir entre acionabilidade (que se refere àquelas questões que são apropriadamente resolvidas pelos tribunais) e normas que ao auto-executáveis (capazes de serem aplicadas pelo tribunais sem maior elaboração). Embora o perfil geral de cada ordenamento jurídico tenha que ser considerado, não há nenhum direito do Pacto [sobre direitos econômicos, sociais e culturais] que não poderia, na grande maioria dos ordenamentos, ser considerado como possuidor de, ao menos, algumas dimensões passíveis de acionabilidade”. Compartilha-se, pois, do entendimento de que os direitos fundamentais –sejam civis, políticos, econômicos, sociais ou culturais – são acionáveis e demandam séria e responsável observância.

Sob o ângulo pragmático, independentemente da retórica, as violações de direitos civis e políticos têm sido consideradas mais sérias e intoleráveis do que a maciça e direta negação aos direitos econômicos, sociais e culturais. As violações aos direitos econômicos, sociais e culturais têm sido uma conseqüência da ausência de um forte suporte e intervenção governamental como da ausência de pressão internacional em favor dessa intervenção. É um problema de ação e prioridade governamental e implementação de políticas públicas, que sejam capazes de responder a graves problemas sociais. Acrescente-se que, segundo dados da própria Nações Unidas, a globalização econômica tem agravado ainda mais as desigualdades sociais, agravando as marcas da pobreza absoluta e da exclusão social. Até o próprio BIRD, em recente relatório, reconheceu que a pobreza tem crescido em virtude da globalização econômica. Fico, porém o alerta do Statement to the World Conference on Human Rights on Behalf of the Committee on Economic, Social and Cultural Rights, o qual concluiu que “(...) Direitos sociais, econômicos e culturais devem ser reivindicados como direitos e não como caridade ou generosidade”.

e) Demais convenções de direitos humanos – breves considerações sobre o Sistema Especial de Proteção

Após o advento da International Bill of Rights, inúmeras outras Declarações e Convenções foram elaboradas, algumas sobre direitos novos, outros sobre determinadas violações e outros ainda sobre determinados grupos caracterizados como vulneráveis. A elaboração dessas inúmeras Convenções pode ser compreendida à luz do processo de “multiplicação de direitos”, para adotar a nomenclatura de Norberto Bobbio. Na visão de Bobbio, esse processo envolveu não apenas o aumento dos bens tutelados, mas também aumentou a titularidade de direitos, alargando o conceito de sujeito de direitos, incluindo os indivíduos, as entidades de classe, as organizações sindicais, os grupos vulneráveis e a própria humanidade. O processo de internacionalização dos direitos humanos, conjugado com o processo de multiplicação desses direitos, resultou um complexo sistema internacional de proteção, marcado pela coexistência de um sistema geral com um sistema especial de proteção.

Os sistemas geral e especial são complementares na medida em que o sistema especial de proteção é voltado, fundamentalmente, à prevenção da discriminação ou proteção de pessoas ou grupos de pessoas particularmente vulneráveis, que merecem tutela especial. Daí se apontar não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo “especificado”, considerando categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça, etc. As convenções que integram o sistema especial são endereçadas a determinado sujeito de direito, ou seja, buscam responder a uma específica violação de direito. Enquanto no âmbito do International Bill of Rights o endereçamento é a toda e qualquer pessoa, o sujeito é visto em sua abstração, no sistema especial o objeto é a proteção de um sujeito ou grupo de sujeitos especificadamente reconhecidos.

Na esfera internacional, sua primeira vertente de instrumentos nasce como vocação de proporcionar uma proteção geral, refletindo o próprio temor da diferença, que na era Hitler foi justificativa para o extermínio e a destruição. Percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir a determinados grupos uma tutela especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. A diferença não seria mais utilizada para aniquilamento de direitos, mas sim para promoção de direitos. Destaca-se, assim, as três vertentes no que tange à concepção da igualdade: a) igualdade formal (“todos são iguais perante a lei”), que ao seu tempo foi

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crucial para o abolimento de privilégios; b) a igualdade material, corresponde ao ideal de justiça social e distributiva, orientada pelo critério sócio-econômico; c) igualdade material, correspondente ao ideal de justiça enquanto ao reconhecimento de identidades, orientada pelos critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios.

Boaventura de Sousa Santos, ao abordar o tema afirma o seguinte: “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. É nesse cenário que surgem as seguintes Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos: Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial; Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; Convenção sobre os Direitos das Crianças; Convenção contra a Tortura; Convenção para a Prevenção e Repressão aos Crimes de Genocídio, dente outros.

Essas Convenções mencionadas apresentam, em regra, como mecanismos de proteção dos direitos nelas enunciados a sistemática de relatórios a serem elaborados pelos Estados-partes. Por vezes apresenta o sistema de comunicação interestatais e o sistema de comunicação individual. Cada uma delas ainda prevê a instituição do órgão “Comitê”, que é responsável pelo monitoramento dos direitos constantes na Convenção.

f) Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial

O ingresso de 19 países africanos nas Nações Unidas em 1960 e a preocupação dos países ocidentais com o ressurgimento de atividades nazifascistas na Europa, em razão da realização em 1961 da Primeira Conferência dos Países Não-Aliados foram compuseram o panorama de influência para a adoção pela ONU, em 21 de dezembro de 1965, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial. Desde o seu preâmbulo, a Convenção em tela assinala a intolerância sobre qualquer doutrina que defenda a superioridade baseada na raça. Pala Convenção, a discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos ou liberdades fundamentais. Logo a discriminação significa desigualdade. Ao ratificar esta convenção, o Estado assume a obrigação internacional de, progressivamente, eliminar a discriminação racial, assegurando a efetiva igualdade.

No combate à discriminação, mister, além do combate à própria discriminação, que seja implantada uma política de compensação que acelerem a igualdade. Não basta a legislação repressiva. São essenciais estratégias de inserção de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. A igualdade, buscada na Convenção, significa a inclusão social, enquanto a discriminação implica a violenta exclusão e a intolerância à diferença e à diversidade. A proibição em si mesmo não resulta automática inclusão. Por essas razões a Convenção prevê em seu art. 1º, §4º a possibilidade de discriminação positiva, também conhecidas como ações afirmativas. As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos socialmente vulneráveis.

Em relação ao seu sistema de monitoramento, cabe ressaltar que esta convenção foi o primeiro instrumento jurídico internacional sobre direitos humanos a introduzir mecanismo próprio de supervisão. A Convenção instituiu o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial, cabendo a este examinar as petições individuais, os relatórios encaminhados pelos Estados-partes e as comunicações interestatais. Contudo, o sistema de petições individuais é cláusula facultativa, fazendo-se necessário que o Estado faça uma declaração habilitando o Comitê a recebê-las e examinálas. Para que seja admitida a petição individual, além da habilitação do Comitê, a própria petição tem que responder a determinados requisitos, dentre eles o esgotamento prévio de recursos internos, requisito este que não é necessário quando os remédios internos se mostram ineficazes ou injustificadamente prolongados. O Comitê se utiliza do mesmo mecanismo do Comitê de Direitos Humanos: solicita esclarecimentos ao Estado violador e, à luz dessas informações, formula a sua opinião, fazendo recomendações às partes. Sua decisão também é destituída de força jurídica vinculante, contudo é publicada no relatório anual do Comitê, que é, por sua vez, encaminhado à

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Assembléia Geral das Nações Unidas. g) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher

Esta Convenção, aprovada pelas Nações Unidas em 1979, teve como impulso a proclamação do ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher e pela Conferência Mundial sobre a Mulher, ambos em 1975. Embora seja uma Convenção com ampla adesão dos Estados, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher é o instrumento que recebeu o maior número de reservas formuladas pelos Estados dentre os tratados internacionais de direitos humanos. Um significado número de reservas está concentrado na cláusula relativa à igualdade entre homens e mulheres na família. Tais reservas foram justificadas com base em argumentos de ordem religiosa, cultural ou mesmo legal. Alguns países acusaram o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher de praticar o imperialismo cultural e intolerância religiosa ao impor a igualdade ente homens e mulheres na família.

A Convenção se fundamenta na dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade. Tal como a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, esta Convenção prevê a possibilidade de adoção das “ações afirmativas” como importante medida a ser adotada pelos Estados para acelerar o processo de obtenção da igualdade. São medidas compensatórias que têm como finalidade remediar as desvantagens históricas. Desse modo a Convenção não objetiva apenas erradicar todas as formas de discriminação contra a mulher, como também estimular a estratégia de promoção da igualdade. Ao ratificar esta convenção, o Estado assume o compromisso de, progressivamente, eliminar todas as formas de discriminação no que tange ao gênero, assegurando a efetiva igualdade. Em suma, a Convenção reflete a visão de que as mulheres são titulares de todos os direitos e oportunidades que os homens podem exercer; adicionalmente, as habilidades e necessidades que decorrem de diferenças biológicas entre os gêneros devem ser reconhecidas e ajustadas, mas sem eliminar das mulheres a igualdade de direitos e oportunidades.

Importante observar que a Convenção não enfrenta a problemática da violência contra a mulher de forma explícita, embora a violência seja uma grave discriminação. A violência contra a mulher é concebida como um padrão de violência específico, baseado no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher. Tal preceito rompe com a equivocada dicotomia entre o espaço público e o privado no tocante à proteção dos direitos humanos, reconhecendo que a violação desses direitos humanos não se restringem à esfera pública, mas também alcança o domínio privado. A Declaração estabelece, ainda, que é obrigação do Estado eliminar qualquer violência contra a mulher, não invocando qualquer costume, tradição ou consideração religiosa para afastar tal responsabilidade. Com a Declaração e Programa de Viena (1993) e a Declaração e Plataforma de Pequim (1995), ao enfatizarem que os direitos da mulher são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais, concluí-se que não há como se conceber os direitos humanos sem a plena observância dos direitos das mulheres.

h) Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis Desumanos ou Degradantes

Quanto aos mecanismos de monitoramento, a Convenção estabelece um Comitê próprio que tem a sua competência limitada a apreciação dos relatórios enviados pelos Estados-partes. O único mecanismo de monitoramento previsto pela Convenção reduz-se aos relatórios elaborados pelos Estados-partes. Apenas em 1999, com a adoção do Protocolo Facultativo à Convenção é que foi ampliada para receber e examinar petições individuais, bem como para realizar investigações in loco. Há a sugestão de ser adotado o mecanismo de comunicação interestal, que permitiria a um Estado-parte a denunciar outro Estado que viesse a violar dispositivos da Convenção.

No art. 1º da Convenção há a definição de tortura, a qual envolve três elementos essenciais: a) inflição deliberada de dor ou sofrimento físicos ou mentais; b) a finalidade do ato (obtenção de informações ou confissões, aplicação de castigo, intimidação ou qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer natureza); c)a vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente, com o Estado. Ao longo da Convenção, são consagrados, dentre os direitos, a proteção contra atos de tortura e outras formas

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de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; o direito de não ser extraditado ou expulso para um país em que a probabilidade de sofrer tortura seja grande; o direito de que a denúncia de tortura seja examinada imparcialmente e o direito a não ser torturado para fins de obtenção de prova ilícita. Na Convenção há a previsão em seu art. 2ºde que “nenhuma circunstância excepcional, seja qual for, pode ser invocada como justificativa para a tortura”.

Considerando que a tortura é um crime que viola o direito internacional, a Convenção estabelece a jurisdição compulsória e universal para os indivíduos suspeitos de sua prática. Compulsória porque obriga os Estados-partes a punir os torturadores, independente do território onde a violação tenha ocorrido e da nacionalidade do violador e da vítima. Universal porque o Estado–parte onde se encontre o suspeito deverá processálo ou extraditá-lo para outro Estado-parte que o solicite e tenha o direito de fazê-lo, independentemente de acordo prévio bilateral sobre extradição.

Em relação ao sistema de monitoramento, esta Convenção estabelece os três mecanismos, quais sejam, as petições individuais, os relatórios e as comunicações interestatais. Assim como na Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial, esta exige que o Estado-parte faça uma deliberação habilitando o Comitê contra a Tortura a receber as comunicações individuais e as interestatais. A comunicação individual deve ter como fundamento a violação a direito reconhecido pela Convenção contra a Tortura e os critérios de admissibilidade da petição são similares aos adotados pelos demais Comitês. As suas decisões, igualmente às decisões dos demais Comitês, também são pautadas nas informações coletadas, sendo certo que, caso conclua pela existência de violação, solicitará ao Estado violador informações sobre as medidas adotadas no sentido de satisfazer cumprimento à decisão do Comitê. Importa observar, ainda, que, no que pese as decisões desses Comitês não terem força de decisão jurídica vinculante, têm efetivamente auxiliado o exercício dos direitos humanos reconhecidos no plano internacional, em face do chamado power of shame ou power os embarrassment.

A diferença mais importante do Comitê contra a Tortura dos demais Comitês é que este tem ainda o poder de iniciar uma investigação própria, na hipótese de recebimento de informações que contenham fortes indicadores de que a prática de tortura seja sistemática em determinado Estadoparte. Acrescente-se que a Declaração de Viena recomenda a adoção de Protocolo Adicional à Convenção contra a Tortura, a fim de que se estabeleça um sistema preventivo de visitas periódicas a locais de detenção, para erradicar, de forma definitiva, a prática da tortura.

i) Convenção sobre os Direitos da Criança

A Convenção sobre os Direitos das Crianças, adotada pela ONU em 1989 e vigente desde 1990, destaca-se como o tratado internacional de proteção aos direitos humanos com maior número de ratificações. Nos termos da Convenção, criança é definida como “todo ser humano com menos de 18 anos, a não ser que, pela legislação aplicável, a maioridade seja atingida mais cedo”. Os direitos assegurados pela Convenção contemplam tanto direitos civis e políticos, (como o direito de deixar qualquer país e de entrar em seu país, o direito de entrar e sair de qualquer Estado-parte para fins de reunião familiar) quanto direitos econômicos, sociais e culturais (como direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito a um nível adequado de vida e segurança social). Neste sentido lecionou Henry Steiner e Philip Alston, para quem “a Convenção é extraordinariamente abrangente em escopo. Ela abarca todas as áreas tradicionalmente definidas no campo dos direitos humanos – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Ao fazê-lo, contudo, a Convenção evitou a distinção entre as áreas e, contrariamente, assumiu a tendência de enfatizar a indivisibilidade , implementação recíproca e a igual importância de todos os direitos”.

Note-se que a Conferência de Viena, ao insistir no objetivo da “ratificação universal” e sem reservas dos tratados e protocolos de direitos humanos adotados no âmbito das Nações Unidas, urge a ratificação universal da Convenção sobre os Direitos da Criança e sua efetiva implementação por todos os Estados-partes, mediante a adoção de todas as medidas necessárias à sua efetiva implementação, inclusive com a alocação do máximo possível de recursos disponíveis. Afirma ainda a Declaração de Viena que a não-

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discriminação e o interesse superior das crianças devem ser consideradas fundamentais em todas as atividades dirigidas à infância, levando, na devida consideração, a opinião dos interessados.

Vale ressaltar que, no tocante à exploração econômica e sexual de crianças e à participação destas em conflitos armados, foram adotados, em 15 de maio de 2000, dois Protocolos Facultativos à Convenção dos Direitos da Criança: o Protocolo Facultativo sobre a Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis e o Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados. Esses protocolos visam fortalecer o rol de medidas protetivas contra as violações sobre as quais discorrem.

Quanto ao mecanismo de controle e fiscalização dos direitos enunciados na Convenção, é instituído o Comitê sobre os Direitos da Criança, ao qual cabe monitorar a implementação da Convenção, por meio do exame de relatórios periódicos encaminhados pelos Estados-partes. Não há a previsão de petições individuais nem de comunicações interestatais, sendo certo que o único meio de monitoramento é realmente os relatórios periódicos. Os Protocolos Facultativos sobre a Prostituição Infantil e sobre o Conflitos Armados apresentam a mesma sistemática, exigindo que os Estados-partes apresentem relatórios ao Comitê sobre Direitos da Criança, fornecendo informações sobre as medidas para a implementação desses Protocolos. O Comitê fica autorizado, ainda, a requerer, no que concerne à matéria dos Protocolos, maiores informações sobre aquelas implementações.

j) O Tribunal Penal Internacional e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio

Como pôde ser comprovado por meio das Convenções já analisadas, no sistema global inexiste qualquer órgão jurisdicional com competência específica para julgar casos de violação de direitos internacionalmente assegurados. Apenas em 17 de julho de 1998, em Roma, com a aprovação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, o sistema global passou a contemplar um órgão internacional penal competente para julgar os crimes mais graves que atentem contra a ordem internacional. Porém, para a análise do Tribunal do Tribunal Penal Internacional, é necessário uma análise anterior da Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio.

Pode-se afirmar que a Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio foi o primeiro tratado internacional de direitos humanos aprovado no âmbito da ONU, datado de 9 de dezembro de 1948. A Convenção teve como principal motivador as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente os genocídios cometidos contra os judeus. O art. 2º da Convenção entende por genocídio “qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: a) assassinato de membros do grupo; b) dano grave a integridade física ou mental de membros do grupo; c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d) medidas destinadas a impedir o nascimento no seio do grupo; e) transferência forçada de crianças de um grupo para outro grupo.

Acrescenta a Convenção que as pessoas que tiverem cometido genocídio serão punidas, sejam governantes, funcionários ou particulares. Pelo seu art. 6º, desde 1948 era previsto a competência de uma Corte Internacional para o julgamento dos crimes de genocídio. O raciocínio era simples: considerando que o genocídio era um crime que, por sua gravidade, afronta a ordem internacional, e considerando ainda que, em face de seu alcance, as instituições nacionais poderiam não ser capazes de processar e julgar seus perpetradores, seria razoável atribuir a uma corte internacional a competência para fazê-lo. Importante notar que a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Genocídio, diferentemente dos demais tratados internacionais de direitos humanos, não estabeleceu um sistema próprio de monitoramento.

Como precedentes históricos da criação da Corte Penal Internacional, há que se destacar os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, além dos Tribunais as hoc da Bósnia e da Ruanda, constituídos por resolução do Conselho de Segurança da ONU, em 1993 e 1994, respectivamente. A importância de um sistema internacional de justiça para o julgamento de graves violações de direitos humanos foi também enfatizada pelo Programa de Ação de Viena de 1993. Note-se que a importância da criação de uma jurisdição internacional para os graves crimes contra os direitos humanos foi revigorada na década de 90, em face dos

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genocídios que a marcaram, como por exemplo nos conflitos da Bósnia, Timor Leste, Ruanda, Kosovo, dentre outros.

A respeito da criação de uma jurisdição internacional, observa Norberto Bobbio que as atividades internacionais de direitos humanos podem ser classificadas em três categorias: promoção, controle e garantia. As atividades de promoção são as atividades correspondentes às ações destinadas ao fomento e ao aperfeiçoamento do regime de direitos humanos pelos Estados. Já as atividades de controle envolvem as que cobram dos Estados a observância das obrigações por eles contraídas internacionalmente. Por fim, a atividade garantia só será criada quando uma jurisdição internacional se impuser concretamente sobre as jurisdições nacionais, deixando de operar dentro dos Estados, mas contra os Estados em defesa dos cidadãos. Neste sentido, conclui-se que, até a aprovação do Estatuto do tribunal Penal Internacional, o sistema global de proteção só compreendia as atividades de promoção e de controle dos direitos humanos, não dispondo de um aparato de garantias desses direitos.

Após 50 anos da aprovação da Convenção para a Prevenção e Repressão ao Genocídio, tratado que já previa a adoção de uma Corte Penal Internacional, em 17 de julho de 1998, foi aprovado na Conferência de Roma o Estatuto da Corte Penal Internacional, de caráter permanente, independente e vinculado ao sistema das Nações Unidas. A Corte Penal Internacional surgiu como aparato complementar às cortes internacionais. Desse modo, a responsabilidade primária, com relação ao julgamento de violação de direitos humanos, é do Estado, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária, ficando, pois, condicionada a incapacidade ou omissão do sistema judicial interno. O Tribunal Penal Internacional é integrado por 18 juízes com mandatos de 9 anos, sendo composto pelos seguintes órgãos: a) Presidência (responsável pela administração); b) Câmaras (divididas em Câmara de Questão Preliminar, Câmara de Primeira Instância e Câmara de Apelação); c) Promotoria (órgão autônomo do Tribunal, competente para receber as denúncias sobre crimes, examiná-las, investigá-las e propor ação penal junto ao Tribunal); d) Secretaria (encarregada de aspectos não judiciais do Tribunal). Conforme o art. 5º do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional é competente para julgar os seguintes crime: I) crime de genocídio (conforme conceituado no art. 2º da Convenção para a Prevenção e Repressão ao Genocídio); I) crimes contra a humanidade; II) crimes de guerra (violações ao direito internacional humanitário, especialmente às Convenções de Genebra de 1949) e IV) crimes de agressão (ainda pendente de definição).

O exercício da jurisdição internacional pode ser acionado mediante a denúncia de um Estado-parte ou do Conselho de Segurança à Promotoria, a fim de que esta investigue o crime, propondo a ação pena cabível. Pode, ainda, a própria Promotoria agir de ofício. Em todas as hipóteses, o exercício da jurisdição é condicionada à adesão do Estado ao tratado, ou seja, é necessário que o Estado reconheça expressamente a jurisdição internacional. Note-se que a ratificação do tratado não comporta reservas, devendo o Estado ratificá-la na íntegra. Como a jurisdição internacional é complementar à jurisdição nacional, o Estatuto de Roma prevê os requisitos de admissibilidade para o exercício de jurisdição internacional. Dentre os requisitos de admissibilidade estão a indisposição do Estado (ou seja, quando houver demora injustificada ou faltar independência ou imparcialidade no julgamento interno) ou a incapacidade em proceder a investigação e o julgamento do crime.

Em relação às penalidades, o Estatuto prevê como penalidade máxima a prisão por 30 anos, admitindo excepcionalmente a prisão perpétua. Além da sanção de natureza penal, o Estatuto impõe sanções de natureza civil, determinando a reparação às vítimas e aos seus familiares. Importante observar que o Estatuto faz referência à existência de igualdade entre todas as pessoas, isto é, o cargo oficial de uma pessoa, seja ela Chefe de Estado ou Chefe de Governo, não o eximirá da responsabilidade penal, tampouco importará em redução da pena.

k) Mecanismos globais não convencionais de proteção dos direitos humanos

Além dos mecanismos tradicionais de proteção aos direitos humanos, já mencionados, são utilizados outros mecanismos não convencionais decorrentes de resoluções elaboradas pelos órgãos criados pela Carta das Nações Unidas, como a Assembléia Geral, o Conselho Econômico, Social e a Comissão de Direitos

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Humanos, entre outros. Neste tópico tratar-se-á especificamente da a Comissão de Direitos Humanos, haja vista esta comissão ocupar posição central no sistema não convencional de proteção aos direitos humanos. Porém, antes de adentrarmos no estudo da Comissão de Direitos Humanos, mister fazer-se a diferenciação entre os sistemas convencionais e não-convencionais de proteção aos direitos humanos, a fim de se elucidar as vantagens e desvantagens de cada sistema.

O sistema convencional caracteriza-se por possuir uma clientela limitada aos Estados-partes da convenção em questão, um número limitado de procedimentos para lidar com as violações; uma preocupação particular com o desenvolvimento de um entendimento normativo dos direitos relevantes; e um processo decisório baseado preferencialmente no consenso. Já o sistema não-convencional, em contraste, geralmente focalizamse em uma gama diversificadas de temas, insistem que todos os países são clientes em potencial e engajam-se, em último caso, em ações conflitantes no tocante aos Estados; pautam-se mais fortemente nas informações fornecidas pelas ONG’s e na opinião pública para assegurar a efetividade de seu trabalho; concedem pouca atenção às questões normativas e são reticentes em estabelecer estruturas procedimentais específicas, preferindo uma aproximação ad hoc na maioria das situações.

Nesta linha, a escolha de mecanismos não convencionais, ilustrativamente, poder-se-ia pautar na inexistência de convenções específicas sobre direito violado, na ausência de ratificação pelo Estado-violador de uma convenção determinada ou na existência de forte opinião pública favorável à adoção de medidas de combate à violação. Já a escolha de mecanismos convencionais poder-se-ia pautar-se na efetiva ratificação de uma convenção específica pelo Estado-violador, na ausência de vontade política dos membros da Comissão em adotar medidas contra as violações cometidas por determinado Estado, na intenção de construir precedentes normativos ou na inexistência de opinião pública suficientemente forte para legitimar um procedimento de elevada natureza política, como são os procedimentos adotados pela Comissão de Direitos Humanos.

Adentrando, agora, no tema do tópico, mais precisamente no estudo da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, cumpre assinalar, primeiramente, a sua composição integrada por 53 membros que são eleitos para mandados de três anos pelo Conselho Econômico Social. O Brasil obteve mandatos sucessivos de 1978 a 1998, sendo novamente eleito em 2000. A Comissão foi criada com a competência genérica de atuar em quaisquer questões afetas a direitos humanos. Na consideração dos casos em que a comissão possui competência, ela tem seguindo basicamente dois procedimentos, o 1235 e o 1503.

O Procedimento 1235 autorizou a Comissão de Direitos Humanos e a Subcomissão sobre Prevenção contra a Discriminação e a Proteção de Minorias, hoje denominada de Subcomissão para a Promoção e para a Proteção de Direitos Humanos, a examinarem informações referentes a violações sistemáticas a direitos humanos. Atualmente essa autorização serve tanto de base para a realização de um debate público anual (em que organizações não governamentais e governos têm a oportunidade de indicar situações que entendem serem relevantes para a análise da Comissão e da Subcomissão), como para a investigação e a análise de casos específicos pela Comissão e pela Subcomissão. A análise dos casos pode ensejar, entre outras medidas, a indicação de serviços de aconselhamento ao Estado, a adoção de uma resolução determinando que o Estado apresente informações ou até o requerimento ao Conselho de Segurança para que este estude o caso e adote eventuais sanções.

Já o Procedimento 1503 foi criado com a finalidade de examinar comunicações relacionadas com violações sistemáticas a direitos humanos. Foi criado um Grupo de Trabalho sobre Comunicações encarregados de selecionar, segundo critérios de admissibilidade, as comunicações que seriam encaminhadas para o Grupo de Trabalho sobre Situações. É este último grupo o responsável pela análise dos casos, pela elaboração de recomendações e pela decisão de submeter ou não os casos à Comissão de Direitos Humanos. Preenchido os requisitos de admissibilidade e encaminhado o relatório pelo Grupo de Trabalho e Situações à Comissão de Direitos Humanos, esta pode adotar uma das seguintes medidas: a) cancelar o estudo sobre a situação determinada; b) manter a situação sob análise, requerendo ao Estado envolvido maiores informações; c) apontar um especialista independente; ou e) canelar o estudo da situação sob a Resolução n. 1503 e iniciar um procedimento sob a Resolução n. 1235. Fundamentalmente, há três críticas a serem efetuadas à

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Resolução n. 1503. Primeiramente se atém ao caráter sigiloso do seu procedimento, em que a única situação em que é excepcionado é na divulgação dos nomes dos Estados que estão sendo investigados e dos que deixaram de ser analisados. A segunda crítica é sobre o fato de que a Comissão tem-se restringido quase que absolutamente ao exame de violações de direitos civis e políticos, embora não haja na Resolução 1503 qualquer exceção feita à análise dos direitos sociais e econômicos. Por fim a terceira crítica enfatiza que não apenas as violações sistemáticas dos direitos humanos devem ser respondidas, mas também as violações graves que não sejam sistemáticas.

Tanto o procedimento 1235 quanto o procedimento 1503 podem envolver a indicação, pela Comissão de Direitos Humanos, de um relator especial com mandato para países específicos, possuindo, ainda a Comissão a atribuição de designar relatores temáticos ou grupos de trabalho com a missão de examinar determinadas violações de direitos humanos.Vários foram os mecanismos temáticos criados, contudo, embora essa proliferação de novos mecanismos visem facilitar a solução de casos envolvendo violações, procurando evitar a intransigência política de órgãos eventualmente existentes, a proliferação desses mecanismos tem resultado uma série de problemas tangentes a recursos financeiros e humanos inadequados à sobreposição de mandados, à insuficiência de coordenação e à diluição da pressão sobre os governos. Um bom exemplo das falhas desses novos mecanismos foi a situação do primeiro mecanismo temático, estabelecido em 1980, a fim de se apurar o desaparecimento forçado na Argentina. Houve uma grande resistência estabelecida por alguns países para a nomeação de um relator, resistência esta que teve como motivo os interesses comerciais e o medo de ser o próximo país da lista.

Importante ressaltar que os mecanismos não-convencionais envolvem medidas urgentes de proteção de caráter essencialmente preventivo. Embora mais comumente utilizadas nos mecanismos temáticos, as medidas urgentes são, por vezes, requeridas em procedimentos envolvendo a indicação de relatores especiais para países determinados. Quando o mecanismo temático refere-se a execuções arbitrárias, o relator especial transmite a apelação aos governos, mesmo nos casos em que não tenham sido exauridos os remédios internos, para que seja efetivada a proteção buscada.

O sistema global de proteção aos direitos humanos consiste, portanto, em mecanismos convencionais e não convencionais, que apresentam características consideravelmente diversas. Essas características podem ser usadas na escolha do melhor instrumento internacional para cada caso específico, levando em consideração ser ou não o Estado-violador parte de uma convenção determinada, haver ou não suficiente pressão política para sensibilizar órgãos de proteção essencialmente políticos, existir ou não em construir precedentes normativos. O reconhecimento de vantagens a essa possibilidade de escolha não retira a identificação falhas em ambos casos, como por exemplo a inexistência de comunicação individual em alguns sistemas de proteção convencional, além da imposição de confidencialidade ao procedimento n. 1503, no sistema nãoconvencional. Porém não há como se negar a evolução e eficácia dos procedimentos globais de proteção aos direitos humanos.

a) Introdução

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos apresenta diferentes âmbitos de aplicação, por isso fala-se em sistema global e regional de proteção dos direitos humanos. Todos os instrumentos analisados no capítulo anterior fazem parte do sistema global de proteção, sendo certo que seu campo de incidência do aparato global não se limita a determinada região, podendo, em tese, alcançar qualquer Estado na ordem internacional, a depender da autorização do Estado no que se atém aos instrumentos internacionais de proteção. Ao lado do sistema global, surge o sistema regional, particularmente na Europa, América e África.

Ao apontar as vantagens do sistema regional, Rhona K. M. Shimth destaca que, “na medida em que um número menor de Estados está envolvido, o consenso político se torna mais facilitado, seja com relação aos textos convencionais, seja quanto aos mecanismos de monitoramento. Muitas regiões são ainda homogêneas, com respeito à cultura, à língua, às tradições, o que oferece vantagens”. Consolida-se, assim, a conveniência do sistema global com instrumentos do sistema regional de proteção, integrado, atualmente,

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pelo sistema interamericano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos, existindo, ainda, um incipiente sistema árabe e a proposta de criação de um sistema regional asiático.

Cada sistema regional de proteção apresenta um aparato jurídico próprio. O sistema interamericano apresenta como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, que estabelece a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. No sistema europeu, em 1950, foi criada a Convenção Européia de Direitos Humanos, que estabeleceu originariamente a Comissão e a Corte

Européia de Direitos Humanos, havendo a fusão dos dois órgãos em 1998 com a finalidade de haver uma maior justicialização do sistema europeu. Já o sistema africano apresenta como principal instrumento a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981, que estabelece a Comissão Africana de Direitos Humanos, sendo criada posteriormente a Corte Africana de Direitos Humanos. Dos três, o sistema europeu é o mais antigo e mais eficiente, vez que estabelece um mecanismo judicial compulsório para apreciar as comunicações individuais por meio da jurisdição da Corte Européia. O mais incipiente é o sistema africano, já que África apresenta uma recente história de regimes opressivos e graves violações aos direitos humanos.

Quanto à conveniência de se adotar o sistema global e/ou o regional, relatório produzido pela Commission to Study the Organization of Peace acentua que o sistema global e o regional para a promoção e proteção dos direitos humanos não são necessariamente incompatíveis, pelo contrário. Ambos são úteis e complementares. Ambos podem ser conciliados em uma base funcional, haja vista que o conteúdo de ambos deve ser similar em princípios e valores, refletindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é proclamada como um código comum a ser alcançado por todos os povos. O instrumento global deve conter um parâmetro normativo mínimo, enquanto o instrumento regional deve ir além, adicionando novos direitos, aperfeiçoando outros, levando em consideração as diferenças peculiares de uma mesma região ou entre uma região e outra. Os sistemas globais e regionais não são dicotômicos, mas sim complementares.

Ante esse universo de instrumentos internacionais, cabo ao indivíduo que sofreu a violação a escolha do instrumento que lhe é mais favorável, tendo em vista que, eventualmente, o mesmo direito pode ser assegurado por dois ou mais instrumentos de alcance regional ou global. Esta é uma conseqüência da primazia da norma mais favorável à vítima, que rege o sistema de proteção dos direitos humanos. O propósito da existência de distintos instrumentos jurídicos garantindo o mesmo direito é ampliar e fortalecer a proteção aos direitos humanos. O que importa é o grau de eficácia da proteção, por isso deve ser aplicada a norma que no caso concreto que melhor proteja a vítima. Na explicação de Henry Steiner sobre conflitos entre normas internacionais globais e regionais, “hoje não tem havido grandes conflitos de interpretação entre os regimes regionais e o regime das Nações Unidas. Teoricamente, os conflitos devem ser evitados mediante a aplicação das seguintes regras: 1) os parâmetros da Declaração Universal e de qualquer outro tratado das Nações Unidas acolhido por um país devem ser respeitados; 2) os parâmetros dos direitos humanos que integram os princípios gerais de Direito Internacional devem ser também observados; 3) quando os parâmetros conflitam, o que for mais favorável à vítima deve prevalecer”.

b) Breves considerações sobre a Convenção Americana de Direitos Humanos

O instrumento mais importante no sistema internacional é a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, assinado em 1969 e entrou em vigor em 1978. Apenas Estados membros da Organização dos Estados Americanos têm o direito de aderir à Convenção. Substancialmente, ela assegura a um catálogo de direitos civis e políticos similar ao previsto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. A Convenção Americana não enuncia de forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico, limitando a determinar aos Estados que alcancem, progressivamente, a plena realização dos direitos, mediante a adoção de medidas legislativas e outras que se mostrem apropriadas. Posteriormente, em 1998, a Assembléia da Organização Geral dos Estados Americanos adotou um Protocolo Adicional à Convenção, concernente aos direitos sociais, econômicos e culturais.

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Em face ao catálogo de direitos assegurados pela Convenção Americana, cabe ao Estado-parte a obrigação de respeitar e assegurar o livre e pleno exercício desses direitos e liberdades, sem qualquer discriminação. Cabe ainda ao Estado-parte adotar todas as medidas legislativas e de outras naturezas enunciados. Um governo possui obrigações positivas e negativas relativas à Convenção Americana. De um lado há a obrigação de não violar direitos e liberdades dos indivíduos, e de outro, superando essa obrigação negativa, a obrigação de adotar medidas necessárias e razoáveis para assegurar o pleno exercício dos direitos garantidos pela Convenção Americana. A convenção Americana estabelece um aparato de monitoramento e implementação dos direitos que enuncia, a aparato esse integrado pela Comissão Internacional de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana.

c) A Comissão Interamericana de Direitos Humanos

A competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos alcança tanto os Estados-partes da Convenção Americana, em relação aos direitos nela consagrado, como aos Estados membros da Organização dos Estados Americanos, em relação aos direitos consagrados na Declaração Americana de 1948. A Comissão é composta por sete membros eleitos a título pessoal para um mandato de quatro anos, podendo ser reeleito apenas uma vez.

A principal função da Comissão Interamericana é promover a proteção dos direitos humanos na América. Para tanto, cabe à Comissão fazer recomendações aos governos dos Estados membros, prevendo a adoção de medidas adequadas à proteção dos desses direitos; preparar estudos e relatórios que se mostrem necessários; solicitar aos governos informações relativas às medidas por eles adotadas concernentes à efetiva aplicação da Convenção; e submeter um relatório anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.

Na lição de Mônica Pinto sobre os relatórios produzidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, “diversamente do que ocorre no âmbito universal, em que o sistema de informes é um método de controle regular, que consiste na obrigação dos Estados-partes em um tratado de direitos humanos de comunicar ao competente órgão de controle o estado de seu direito interno em relação aos compromissos assumidos em decorrência do tratado e a prática que tem se verificado com respeito às situações compreendidas no tratado, no sistema interamericano, os informes são elaborados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Além de se constituir em um método para determinar atos, precisar e difundir a objetividade de uma situação, os informes da Comissão servem para modificar a atitude de Governos resistentes à vigência de direitos humanos, através do debate interno que eles proporcionam ou, a depender do caso, do debate internacional. A CIDH elabora dois tipos de informes: um sobre a situação dos direitos humanos em determinado país e outro que encaminha anualmente à Assembléia da OEA. Os informes sobre a situação dos direitos humanos em um Estado membro da OEA são decididos pela própria Comissão, ante situações que afetem gravemente a vigência dos direitos humanos. (...) Por outro lado, os informes anuais para a Assembléia Geral da OEA atualizam a situação dos direitos humanos em distintos países, apresentam o trabalho da Comissão, elencam as resoluções adotadas com respeito a casos particulares e revelam a opinião da Comissão sobre as áreas nas quais é necessário redobrar esforços e propor novas normas”.

Conforme Hector Fix-Zamudio, de acordo com César Sepúlveda, atual presidente da Comissão Interamericana, a mesma realiza as seguintes funções: a) conciliadora, entre um Governo e grupos sociais que vejam violados os direitos de seus membros; b) assessora, aconselhando os governos a adotar medidas adequadas para promover os direitos humanos; c) crítica, ao informar sobre a situação dos direitos humanos em um Estado membro da OEA; d) legitimadora, quando um Governo, em decorrência do resultado de um informe da Comissão acerca de uma visita ou exame, decide reparar as falhas de seus processos internos e sanar as violações; e) promotora, ao efetuar estudos sobre o tema de direitos humanos, a fim de promover seu respeito; f) protetora, quando além das atividades anteriores, intervém em casos urgentes para solicitar ao Governo, contra o qual se tenha apresentado queixa, que suspenda a sua ação e informe sobre os atos praticados.

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Além do que foi descrito, é também competência da Comissão examinar as comunicações encaminhadas por indivíduos ou grupos de indivíduos, ou ainda entidades não governamentais, que contenham denúncias de violação a direito consagrado pela Convenção. Conforme ensina Thomas Buerguenthal, diversamente do que ocorre com outros tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, na Convenção Interamericana não apenas as vítimas das violações são legítimas a apresentar a comunicação, podendo ser feita também por qualquer pessoa ou grupo de pessoas e certas organizações não governamentais. Observe-se que outra diferença dos demais tratados internacionais de proteção aos direitos humanos consiste no fato de que a Convenção Interamericana estabelece que o Estado ao se tornar parte aceita automaticamente e obrigatoriamente a competência da Comissão para examinar essas comunicações, não se fazendo necessária a elaboração de declaração expressa e específica para tal fim.

A petição, como ocorre nos sistemas globais, deve apresentar alguns requisitos de admissibilidade, como, por exemplo, o prévio esgotamento dos recursos internos, salvo no caso de injustificada demora processual, ou no caso de a legislação doméstica não promover o devido processo legal. Sendo caso de injustificada demora ou de a legislação interna não promover o devido processo legal, é ônus da suposta vítima provar tais pressupostos de admissibilidade. Um outro requisito de admissibilidade é a inexistência de litispendência internacional, ou seja, a mesma questão não pode estar pendente em outra instância internacional.

A tramitação das denúncias podem ser divididas em duas partes: a primeira se refere aos requisitos de admissibilidade e a segunda na observância do contraditório. Após a análise dos requisitos de admissibilidade, a Comissão examinar as alegações do peticionário, buscar informações do respectivo governo, investigar o fato e assegurar a oitiva tanto do peticionário quanto do governo. Caso, após a investigação a Comissão conclua que um dos requisitos de admissibilidade não foi observado, ela pode rejeitar o caso que, em retrospecto, nunca deveria ter sido recebido. Porém, após a investigação, sendo observado todos os casos de admissibilidade, a Comissão julgará o mérito.

Feito o exame do caso, a Comissão buscará uma solução amistosa. Se alcançado o acordo, será elaborado um informe que será transmitido ao peticionário ao Estado-parte, sendo comunicado posteriormente à Secretaria da Organização dos Estados Americanos para publicação. Não sendo alcançado o acordo, a Comissão redigirá um relatório com os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e, eventualmente, recomendações ao Estado-parte, sendo certo que este terá o prazo de três meses para cumprir as recomendações feitas. Durante esse período, o caso pode ser solucionado pelas partes ou encaminhado à Corte Internacional de Direitos Humanos. Observe-se que o encaminhamento à Corte só pode ser feito pelos Estados-partes ou pela Comissão Interamerica, não sendo possível o encaminhamento pelo indivíduo. Se durante esse prazo o caso não for solucionado nem remetido à Corte, a Comissão, por maioria absoluta de votos, poderá emitir a sua própria opinião e conclusão. A Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo para que o Estado tome as decidas providências. Vencido o prazo, a Comissão decidirá por maioria absoluta se as medidas recomendadas foram adotadas pelo Estado e se publicará o informe por ela elaborado no relatório anual de suas atividades.

petição individual é opcional e o procedimento da comunicação interestatal é obrigatório”

Em conformidade com o novo Regulamento da Comissão Interamericana, adotada em 1º de maio de 2001, em seu art. 4, se a Comissão considerar que o Estado não cumpriu com as recomendações do informe aprovado, o caso será submetido à Corte Interamericana, salvo decisão da maioria absoluta dos membros da Comissão. Se anteriormente, caberia a comissão uma análise discricionária sobre a decisão de se remete ou não o caso à Corte Interamericana, com o novo regulamento, tal decisão ficou mais vinculada, dano uma maior tônica de juridicidade. Cabe ressaltar que o caso só poderá ser submetido à Corte se o Estado –parte reconhecer, mediante declaração expressa e específica, a competência da Corte no tocante a interpretação e aplicação da Convenção, embora qualquer Estado-parte possa reconhecer a jurisdição da Corte para determinado caso. Também sob a forma de cláusula facultativa está previsto o sistema de comunicação interestatais. Na lição de Thomas Buergenthal, “(...). A Comissão Americana inverte o padrão tradicional, utilizado pela Convenção Européia por exemplo, em que o direito de

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Por fim, em casos de gravidade e urgência, e toda vez que resulte necessário, de acordo com as informações disponíveis, a Comissão poderá, por iniciativa própria ou mediante petição da parte, solicitar ao Estado em questão a adoção de medidas cautelares para evitar danos irreparáveis. Pode ainda a Comissão solicitar à Corte Interamericana a adoção de medidas provisórias, em caso de extrema gravidade e urgência, para evitar dano irreparável à pessoa, em matéria ainda não submetida à Corte.

d) A Corte Interamericana de Direitos Humanos

A Corte Interamericana de Direitos Humanos é composta por sete juízes nacionais de Estados membros da OEA, eleitos a título pessoal, sendo certo que a Corte apresenta competência consultiva e contenciosa. No plano consultivo, a qualquer membro da OEA, parte ou não da convenção, pode solicitar o parecer da Corte em relação à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos, podendo ainda a Corte opinar sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face de instrumentos internacionais, efetuando, assim, o “controle da convencionalidade das leis”. Na sua função consultiva, a Corte tem desenvolvido, ainda, análises sobre o alcance e o impacto dos dispositivos da Convenção Americana.

Em relação ao plano contencioso, a competência da Corte para o julgamento de casos é limitada aos Estados-partes da Convenção que reconheçam tal jurisdição expressamente, sendo certo que apenas a Comissão Interamericana e os Estados-partes podem submeter um caso à Corte Interamericana, não estando prevista a legitimação do indivíduo. A Corte, reconhecendo que efetivamente ocorreu a violação, determinará a adoção de medidas que se façam necessárias para a restauração do direito violado, podendo, ainda, condenar o Estado a pagar uma justa compensação à vítima. Note-se que a decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento. Se a Corte determinar uma compensação à vítima, a decisão valerá como título executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à execução de sentença desfavorável ao Estado.

Dentre os casos já decididos pela Corte, destaca-se o caso do Presídio Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia, promovido em face do Brasil. Neste caso, 37 internos haviam sido brutalmente assassinados entre 1º de janeiro e 5 de junho de 2002. A Corte ordenou medidas provisórias a fim de evitar novas mortes de internos. Pelo art. 63 da Convenção, a Corte pode dispor de medidas provisórias em acasos de extrema gravidade e quando necessários para evitar danos irreparáveis a pessoas. Caso trate-se de caso ainda não submetido a seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão. Note-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos é o único tratado internacional de direitos humanos a dispor sobre medidas provisórias judicialmente aplicáveis. Considerando os recentes casos submetidos à Corte e a sua atuação, pode-se concluir que, embora recente a sua jurisprudência, o sistema interamericano está se consolidando como importante e eficaz estratégia de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram omissas ou falhas.

Ainda que crescente a justicialização do sistema, faz-se necessárias algumas providências para uma maior avanço. As propostas são as seguintes: I) Exigibilidade de cumprimento das decisões da Comissão e da Corte, com a adoção pelos Estados de legislação interna relativa à implementação das decisões internacionais em matéria de direitos humanos; I) Previsão de sanções aos Estados que de forma reiterada e sistemática, descumprir decisões internacionais; I) Uma maior democratização do sistema, permitindo o acesso direto do indivíduo à Corte Interamericana, hoje restrito apenas à Comissão e aos Estados membros; e IV) Instituição de funcionamento permanente da Comissão e da Corte, com recursos financeiros, técnicos e administrativos suficientes, pois a justicialização do sistema aumentará o universos de casos submetidos à Corte Interamericana.

Nesta terceira parte do livro, busca-se avaliar o modo como o Estado brasileiro se relaciona com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e como este último pode contribuir para o reforço do sistema de proteção de direitos no País. Será analisada a forma que o Brasil se abre às normas de Direito Internacional de Direitos Humanos e como os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos são

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incorporados pela ordem interna nacional e nela repercutem, sendo utilizados pelos mais diversos atores sociais.

a) A agenda internacional do Brasil a partir da democratização e a afirmação dos direitos humanos como tema global.

Para o estudo da posição do Brasil diante dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, haverá uma concentração no período de democratização, deflagrado no Brasil em 1985 e que teve a Constituição de 1988 como o grande marco jurídico. O processo de democratização não implicou apenas mudanças no âmbito interno, mas também na agenda internacional do Brasil. Essas mudanças contribuíram para a reinserção do país no contexto internacional. Esses fatores implicaram um avanço significativo no âmbito do reconhecimento das obrigações internacionalmente reconhecidas.

Ao longo do processo de democratização o Brasil passou a aderir a importantes instrumentos internacionais de direitos humanos, aceitando expressamente a legitimidade das preocupações internacionais e dispondo-se a um diálogo com as instâncias internacionais sobre o cumprimento conferido pelo país às obrigações internacionalmente assumidas. Uma outra vertente do processo de democratização foi a crescente participação e mobilização da sociedade civil e de organizações não governamentais no debate sobre a proteção dos direitos humanos.

O fim da Guerra Fria contribuiu para o processo de disseminação do tema de proteção aos direitos humanos como tema global. Com a Guerra Fria, as denúncias sobre ocorrência de violações de direitos humanos eram escondidas sob o argumento de que as denúncias tinham por finalidade deteriorar a imagem positiva que cada bloco oferecia de si mesmo e, assim, proporcionar vantagens políticas ao lado adversário. Com exceção dos casos mais gritantes, como o da África do Sul, os problemas de direitos humanos, conquanto denunciados, tendiam a ofuscar-se dentro das rivalidades estratégicas das duas superpotências.

Pode-se afirmar que o final da polarização significou uma segunda revolução no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Se a Segunda Guerra Mundial significou a primeira revolução no processo de internacionalização dos direitos humanos, impulsionando a criação de órgãos de monitoramento internacional, bem como a elaboração de tratados de proteção aos direitos humanos, o fim da Guerra Fria significou a segunda revolução, consolidando e reafirmando os direitos humanos como tema global, passando assim a ser preocupação legítima da comunidade internacional. A afirmação dos direitos humanos como tema global vem ainda a acenar para a relação de interdependência existente entre a democracia, desenvolvimento e direitos humanos. A própria Declaração de Viena recomendou que se dê prioridade à adoção de medidas nacionais e internacionais para promover a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos. É nesse cenário que o processo de democratização do Brasil se conjuga com o processo de afirmação dos direitos humanos como tema global, que se desenha a reinserção do Brasil no plano do sistema d proteção internacional dos direitos humanos.

b) O Brasil e os tratados internacionais de direitos humanos

Desde o processo de democratização do país e, em particular, da Constituição de 1988, o Brasil tem adotado importantes medidas em prol da incorporação de instrumentos internacionais voltados à proteção dos direitos humanos. O marco inicial do processo de incorporação do Direitos Internacional dos Direitos Humanos pelo direito brasileiro foi a ratificação, em 1º de fevereiro de 1984, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. Depois desse vários outros se seguiram. A partir da Constituição de 1988, que trouxe importantes inovações jurídicas, principalmente no que tange ao primado da prevalência dos direitos humanos como princípio orientador das relações internacionais, a incorporação de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos no Brasil se intensificou. Em 1992 foram ratificados o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bem como o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o que realça o caráter indivisível e inter-relacionado dos direitos humanos e sua relação com a democracia e o desenvolvimento.

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Além das inovações constitucionais, a necessidade do Brasil de reorganizar a sua agenda internacional de forma mais condizente com as transformações internas decorrentes do processo de democratização, foram de suma importância para a ratificação pelo estado brasileiro dos tratados internacionais de direitos humanos. Conjuga-se com esse esforço o objetivo de compor uma imagem mais positiva do Estado brasileiro no cenário internacional, como país respeitador dos direitos humanos. Adicione-se, ainda, que a adesão do Brasil aos tratados internacionais de direitos humanos simboliza o seu aceite para com a idéia contemporânea de globalização dos direitos humanos, bem como para com a idéia da legitimidade das preocupações da comunidade internacional no tocante à matéria. Por fim, é de acrescer o elevado grau de universalidade desses instrumentos, que contam com significativa adesão dos Estados integrantes da ordem internacional.

Enfatize-se que a reinserção do Brasil na sistemática internacional de proteção aos direitos humanos vem a redimensionar o próprio alcance do termo “cidadania”, haja vista que, além dos direitos e garantias assegurados pela Constituição, no âmbito nacional, os indivíduos passam a ser titulares de direitos assegurados internacionalmente. Assim, o universo de direitos fundamentais se expande e se completa, a partir da conjugação dos sistemas nacional e internacional de proteção aos direitos humanos. Em razão dessa interação, o Brasil assume, perante a comunidade internacional, a obrigação de manter o Estado Democrático de Direito e de proteger, ainda que em situação de emergência, um núcleo de direitos básicos. Aceita, ainda, que essas obrigações sejam fiscalizadas pela comunidade internacional mediante o monitoramento efetuado pelo órgão de supervisão internacional.

Apesar de ser grande o avanço decorrente das ratificações dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, há a necessidade de serem tomadas mais providências a fim de uma maior eficácia na proteção dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Primeiramente, mister a ratificação de outros tratados internacionais que ainda se encontram pendentes, bem como a revisão de reservas e declarações formuladas pelo Estado brasileiro quando ratificaram determinados tratados internacionais. Uma outra providência que deve ser tomada é a reavaliação da posição do Brasil quanto às cláusulas e procedimentos facultativos, que estabelecem, por exemplo, a sistemática de petição individual e de comunicação interestatal no âmbito internacional. De todo modo, com a adesão aos três tratados gerais de proteção aos direitos humanos, o Brasil passou definitivamente a se inserir no sistema de proteção internacional dos direitos humanos. c) Pela plena vigência dos tratados internacionais de direitos humanos: a revisão de reservas e declarações restritivas, a reavaliação da posição do Brasil quanto a cláusulas procedimentais e procedimentos facultativos e outras medidas.

A plena vigência dos tratados de direitos humanos requer a adoção de providências adicionais pelo Brasil, entre elas uma profunda revisão das reservas e declarações restritivas feitas pelo Estado brasileiro quando da ratificação de Convenções voltadas à proteção dos direitos humanos. A própria Convenção de Viena de 1993 encoraja aos Estados a evitar ao máximo a formulação de reservas e, quando formulá-las, que faça da forma mais restritiva possível. Além da eliminação das reservas, cabe ao Estado brasileiro rever determinadas declarações feitas no sentido de restringir o alcance de mecanismos previstos nos tratados internacionais de direitos humanos.

Um exemplo de uma situação em que Brasil deve rever determinada declaração é a declaração que o Estado brasileiro fez ao ratificar a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. O Brasil declarou não estar submetido à cláusula que estabelece que, em caso de disputa entre dois ou mais Estados sobre a interpretação ou aplicação da Convenção, se não for solucionado mediante negociação a questão será submetida à arbitragem e, se ainda assim, não se encontrar um acordo, o caso pode ser levado à Corte Internacional de Justiça por qualquer dos Estados. Ao fazer a essa declaração o Brasil está se furtando de se submeter à Corte Internacional de Justiça para a solução do caso. Sugere-se que o Estado brasileiro modifique essa declaração, até porque é uma situação anacrônica, haja vista que a Convenção sobre a Eliminação de toda as formas de Discriminação Racial possui dispositivo semelhante e que, por sua vez, não foi objeto de qualquer declaração. O Brasil aceitou a competência da Corte Internacional de Justiça.

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Também merece atenção a declaração de interpretação feita pelo Estado brasileiro por ocasião da adesão à Convenção Americana de Direitos Humanos. Por ela o Brasil entende que o sistema de inspeção in loco da Comissão Internacional de Direitos Humanos não é automático, mas sim dependente de uma expressa autorização do Governo. O Brasil buscou, mediante a declaração feita, evitar que a Comissão tenha o direito automático de efetuar visitas ou inspeções sem a expressa autorização do Governo brasileiro. Acrescente-se que, dos vinte e cinco países que ratificaram esta Convenção, o Brasil é o único a fazer tal declaração.

Além da necessária revisão de reservas e declarações restritivas efetuadas pelo Estado brasileiro, é preciso reavaliar a posição do Brasil diante de cláusulas e procedimentos facultativos constantes do sistema internacional de proteção. Lembre-se que o Programa de Ação de Viena de 1993 recomenda aos Estados-partes de tratados de direitos humanos que considerem a possibilidade de aceitar todos os procedimentos facultativos existentes para a apresentação e o exame de comunicações. Sendo assim, no âmbito do sistema global das Nações Unidas, é importante que o Brasil ratifique o Protocolo Facultativo relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de modo a habilitar o Comitê de Direitos Humanos a receber e apreciar comunicações individuais que veiculem denúncias de violação de direitos enunciados pelo Pacto. É importante, ainda, que o Brasil elabore declaração específica aceitando a competência do Comitê de Direitos Humanos para receber e considerar o procedimento facultativo das comunicações interestatais, previsto pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Outras medidas necessárias são o reconhecimento da competência do Comitê contra a Tortura para examinar tanto as petições individuais como as comunicações interestatais relativas às Convenções contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, bem como ratificar o seu Protocolo Facultativo que institui um sistema preventivo de visitas regulares a locais de detenção, com o objetivo de prevenir a prática de tortura. O Brasil deve, ainda, enviar aos competentes órgãos internacionais os relatórios pertinentes às medidas legislativas, administrativas e judiciais adotadas para dar cumprimento às obrigações relativas à proteção dos direitos humanos assumidas perante a comunidade internacional.

Ressalte-se, porém, que junho em 2002, o Brasil ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher e acolheu a cláusula facultativa das petições individuais prevista na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial. Foram dois significativos avanços para o monitoramento internacional dos direitos humanos.

No âmbito do sistema regional, cabo ao Estado brasileiro elaborar a declaração a fim de habilitar a Comissão Interamericana a examinar comunicações interestatais, em que um Estado-parte alegue que outro Estado-parte tenha violado um direito assegurado pela Convenção. Em relação ao reconhecimento pelo Brasil da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ocorreu em 1998, insta ressaltar que foi exatamente a delegação do Brasil que propôs a Criação da Corte na IX Convenção Internacional Americana, ocorria em Bogotá no ano de 1948. Deste modo, o reconhecimento da obrigatoriedade pelo Brasil foi uma exigência para que se mantivesse um mínimo de coerência no posicionamento do Brasil. Tão relevante quanto o reconhecimento da obrigatoriedade da Corte Interamericana, foi a aceitação pelo Brasil da competência do Tribunal Internacional Criminal Permanente, previsto pelo Estatuto de Roma, em 1998, e ratificado pelo Brasil em 2002.

Além das providências supramencionadas, mister que o Estado brasileiro elabore todas as disposições de direito interno que sejam necessárias para tornar efetivos os direitos e liberdades enunciados nos tratados de que o Brasil é parte. A omissão estatal viola obrigação jurídica assumida no âmbito internacional, importando em responsabilização do Estado. Viola ainda a própria Constituição Federal, na medida em que esses direitos e liberdades foram incorporados ao Texto Constitucional, por força do art. 5º, §2º da CF, devendo ter aplicabilidade imediata.

A título de exemplo, ilustrou grave caso de omissão do Estado brasileiro, caracterizadora de violação à Convenção contra a Tortura, ratificada pelo Brasil em 1989, a falta, até abril de 1997, de tipificação do crime de tortura, exceto quando fosse em relação à criança ou adolescente. A inexistência da tipificação autônoma importou em descumprimento de obrigação assumida internacionalmente, além da omissão

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importar, ainda, em violação à própria Constituição, que no seu art. 5º, XLIII, que prevê que a lei considerará a prática de tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia. Logo, a omissão do legislador constituiu violação tanto ao comando constitucional como à Convenção Internacional contra a Tortura. O preenchimento dessa lacuna por parte do Brasil só veio a ocorrer com o advento da Lei nº 9.455/97, que definiu o crime de tortura.

Um outro exemplo de grave omissão estatal concernente à obrigação internacional contraída em matéria de direitos humanos, atém-se à inexistência de normatividade nacional específica em relação à prevenção, combate e erradicação da violência contra a mulher. Ao ratificar a Convenção Internacional para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher, o Brasil assumiu que, sem demora, iria incluir em sua legislação normas penais, civis e administrativas necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. No entanto, até a presente data, não houve a elaboração de tal legislação, o que caracteriza violação ao dispositivo internacional.

Diante desse quadro, todas as medidas apontadas mostram-se essenciais para a institucionalização da proteção internacional dos direitos humanos no âmbito interno brasileiro. Como já se ressaltou, a democratização implica transformação não apenas no plano interno, mas também no internacional, especialmente no momento em que se intensifica o processo de globalização dos direitos humanos. O binômio democracia e direitos humanos se faz premente na experiência brasileira, tendo em vista que o projeto democrático está absolutamente condicionado à garantia dos direitos humanos.

A) Introdução.

Neste capítulo se buscará investigar o modo que a advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos é exercido no Brasil, quais os atores sociais envolvidos e quais os direitos humanos violados. Para tanto, serão apresentados os casos submetidos à apreciação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Essa opção deveu-se ao fato de que, para o Brasil, a Comissão é relevante instância internacional competente para examinar petições individuais que denunciem violações aos direitos assegurados pela Convenção Americana de Direitos Humanos ou outro tratado do sistema interamericano. Atente-se que o Brasil, em 1998, reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana, o que ampliou e fortaleceu as instâncias de proteção dos direitos humanos internacionalmente assegurados. Tendo em vista que o reconhecimento da instância jurisdicional ainda é muito recente, bem como que a Corte Interamericana aceita apenas que a Comissão Interamericana e os Estados-partes podem submeter casos à ela, verifica-se, até o presente momento, um número reduzido de casos sob a apreciação da Corte Interamericana.

Como já mencionado anteriormente, o Brasil não reconhece a competência do Comitê de Direitos Humanos para receber petições individuais, pois não ratificou o Protocolo Facultativo dos Direitos Civis e Políticos, nem acolheu os procedimentos facultativos constantes da Convenção contra Tortura, de modo a reconhecer a competência do respectivo Comitê para examinar petições individuais. Embora o Brasil, desde junho de 2002, tenha ratificado o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher e acolhido o procedimento facultativo da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Preconceito Racial, até a presente data não consta qualquer caso contra o Brasil pendente de apreciação. Por esses motivos é que o estudo se concentrará nas ações internacionais perpetradas contra o Brasil perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, até porque, como já abordado, o Estado membro ao ratificar a Convenção Americana aceita automaticamente a competência da Comissão Interamericana para examinar denúncia de violação de preceito constante na Convenção, dispensando-se qualquer declaração expressa por parte do Estado-parte.

As ações internacionais concretizam e refletem a dinâmicaintegrada do sistema de proteção dos direitos humanos, por meio da qual os atos internos dos Estados estão sujeitos à supervisão e ao controle dos órgãos internacionais de proteção, quando os a atuação do Estado se mostra omissa ou falha na tarefa de garantir esse mesmo direito. De acordo com o direito internacional, a responsabilidade pelas violações são da União, que dispõe de personalidade jurídica na ordem internacional. Nesse sentido os princípio federativo e a

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separação dos poderes não podem ser invocados para afastar a responsabilidade da União em relação à violação das obrigações assumidas no âmbito internacional. Segundo Louis Henkin, “exceções a esta regra podem ser feitas pelo próprio tratado em determinadas circunstâncias”.

Há 68 casos contra o Brasil pendentes de apreciação, sendo certo que desse universo, apenas dois casos apontam responsabilidade direita da União, sendo um deles sobre trabalho escravo (que já foi objeto de solução amistosa) e o outro refere-se à morte de indígena Macuxi em uma delegacia em Roraima, que na época era território federal. Nos demais casos a responsabilidade direta são dos Estados. Todavia, paradoxamente, em face da sistemática até então vigente, a União, ao mesmo tempo que detém a responsabilidade internacional, não é responsável em âmbito nacional, já que não dispõe da competência de investigar, processa e punir violação pela qual estará internacionalmente convocada a responder. Diante desse quadro é que se infere a federalização dos crimes de direitos humanos.

A federalização dos crimes contra os direitos humanos, introduzida pela EC 45/2004, já era vista como meta do Programa Nacional de Direitos Humanos desde 1996. O novo mecanismo permite ao Procurador-Geral da República, nas hipóteses de grave violação a direitos humanos e com a finalidade de assegurar o cumprimento de tratados internacionais de direito humanos ratificados pelo Brasil, requerer ao Superior Tribunal de Justiça o deslocamento da competência do caso para as instâncias federais, em qualquer fase do inquérito ou do processo. Com a federalização dos crimes de direitos humanos cria-se um sistema mais eficaz de combate à impunidade desses crimes.

Primeiramente, a federalização encoraja firme atuação dos Estados, sob o risco de deslocamento de competência, além do que, aumenta a responsabilidade da União para o efetivo combate à impunidade das graves violações aos direitos humanos. A federalização, entretanto, exigirá a elucidação de seus próprios requisitos de admissibilidade (“grave violação dos direitos humanos”, “assegurar o devido cumprimento de obrigações decorrentes dos tratados de direitos humanos”, entre outros). A prática permitirá que tais lacunas sejam gradativamente preenchidas. Importa salientar, uma vez mais, que o sistema de proteção internacional dos direitos humanos é adicional e subsidiário e, nesse sentido, pressupõe o esgotamento dos recursos internos para o seu acionamento.

b) Casos contra o Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Neste tópico serão analisados 78 casos contra o Estado brasileiro que foram admitidos pela Comissão Interamericana no período de 1970 a 2004. Desse total, há casos que já foram apreciados pela Comissão, sendo os respectivos relatórios publicados no relatório anual da Comissão, é há aqueles – a maioria – que estão pendentes perante a comissão Interamericana. Os 78 casos foram classificados de acordo com o direito que foi violado: 1) detenção arbitrária, tortura e assassinato cometidos durante o regime autoritário militar; 2) violação dos direitos indígenas; 3) violência rural; 4) violência policial; 5) violação dos direitos da criança e do adolescente; 6) violência contra a mulher; 7) discriminação racial; e 8) violência contra defensores de direitos humanos.

1) Casos de detenção arbitrária, tortura e assassinato cometidos durante o regime autoritário militar

Do total dos 78 casos, 10 envolvem denúncias de detenção arbitrária e tortura cometidas durante o regime autoritário militar, sendo submetidas à Comissão Interamericana no período de 1970 a 1974, com exceção do caso “guerrilha do Araguaia”, que foi submetido no ano de 1997. Considerando que na época o Brasil não era signatário da Convenção Americana, todas essas ações foram fundamentadas na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. A prática de detenção arbitrária e de tortura foi denunciada mediante petições encaminhadas por indivíduo ou grupos de indivíduos, não se verificando qualquer caso no qual a petição foi submetida por organização não governamental. Constata-se que nesses nove casos, as vítimas eram professores universitários, lideranças da Igreja Católica, líderes de trabalhadores, entre outros, que de alguma forma apresentaram resistência ao regime repressivo que perdurou de 1964 a 1985.

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Dentre os casos, merece destaque o caso 1684, acerca do qual três comunicações foram enviadas à Comissão, em 1970, denunciando a prática da detenção ilegal e de tortura nos anos de 1969 e 1970. Os fatos denunciados foram três: o primeiro denunciou o assassinato de um padre em Recife em 1970; o segundo tratava da detenção arbitrária e tortura de sete pessoas em Belo Horizonte; e o terceiro comunicava a existência de pelo menos 12.0 presos políticos. A comunicação solicitava à Comissão uma investigação cautelosa dos fatos por ela denunciados, que apontavam à prática autoritária do regime militar. Por maioria de votos a Comissão aprovou a Resolução na qual afirmava: “as provas coletadas nestes casos levam à forte presunção de que o no Brasil há sérios casos de tortura, abuso e tratamento cruel de pessoas de ambos os sexos, que foram privadas de sua liberdade”. A Comissão recomendou que o Brasil procedesse com uma investigação para que na próxima sessão pudessem avaliar se os atos de tortura e abusos foram efetivamente cometidos, solicitando ainda informações sobre o resultado das investigações.

recomendadas pela Comissão no sentido de esclarecer se os atos de tortura e abuso foram perpetrados por militares ou autoridades policiais

Em sua resposta o governo brasileiro se limitou a considerar que as bases da presunção de violação dos direitos humanos no país eram demasiadamente frágeis. A partir dessa resposta a Comissão decidiu publicar em seu relatório anual recomendações endereçadas ao Governo brasileiro, reiterando que as provas coletadas no Caso 1684 levam à forte presunção de que no Brasil há sérios casos de tortura, abuso e tratamento cruel de pessoas de ambos os sexos, que foram privadas de sua liberdade. Adicionou, ainda, que o Brasil se recusa a adotar as medidas

Além do Caso 1684, os outros oito casos foram submetidos à Comissão entre o período de 1973 a 1974. Todos denunciaram a prática de detenções arbitrárias e tortura cometidos pelo regime militar, sendo os mais contundentes o caso 1788, referente ao assassinato de 104 pessoas em 1973, e o caso 1835, que denuncia a detenção arbitrária de 53 pessoas pela polícia em 1974. Contudo, ainda que a Comissão tenha admitido todos os oito casos, optou por não publicar em seu relatório anual as respectivas conclusões e recomendações. Adicione-se o caso da guerrilha do Araguaia, ocorrida na década de 70 e que desde 1982 familiares tentam, sem sucessos, obter informações sobre o desaparecimento de mais 20 vítimas.

2) Casos de Violação dos direitos dos povos indígenas

Também de grande impacto foi o caso 7615, relativo à violação dos direitos dos povos indígenas no Brasil, particularmente, da comunidade Yanomami, em 1980. Este caso se distingue dos demais por ser o primeiro caso submetido por organizações não governamentais de âmbito internacional contra o Brasil. Nesta denúncia, afirmaram que os direitos dessas populações à vida, à liberdade, à segurança, à saúde e bem-estar, à educação, ao reconhecimento da personalidade jurídica e à propriedade havia sido afrontados pelo Governo do Brasil. O povo Yanomami, com uma população de 10.0 a 12.0, viviam em terras que ocupavam o território do Estado do Amazonas e de Roraima. Devido ao plano do Governo de explorar economicamente a região, os indígenas estavam sendo impelidos a abandonarem suas terras. Diante desse quadro, no período entre 1979 e 1984 esforços foram empenhados para demarcar as terras dos Yanomamis. Em 1982, sob pressão internacional, o Governo brasileiro declarou interdição de uma área de Roraima e do Amazonas para os povos Yanomamis. Em 1984, expediu-se um decreto prevendo a definição do chamado “Parque dos Índios Yanomais”, que corresponderia ao território desses índios. Esses fatos, no entendimento dos peticionários implicaram a violação dos direitos fundamentais dos Yanomamis, pois a devastação deixou seqüelas físicas e psicológicas, doenças e mortes com a destruição de centenas de índios, o que estava a levar a extinção daquela comunidade.

A comunicação dos peticionários resultou no pedido de informações ao governo brasileiro que respondeu tecendo comentários sobre o estatuto legal dos índios no Brasil, seus direitos civis e políticos e projetos do Governo para estender a proteção aos índios e suas terras. À luz dessas considerações, a Comissão Interamericana resolveu declarar que “há provas suficientes para declarar que, em face do fracasso do Governo do Brasil em adotar medidas tempestivas e efetivas concernentes aos índios Yanomamis,

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caracteriza-se a violação dos seguintes direitos reconhecidos pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem: o direito à vida, à liberdade, à segurança, do direito à residência e ao movimento, e do direito à preservação da saúde e bem-estar”. A Comissão resolveu ainda recomendar ao governo brasileiro que adotasse medidas de proteção à vida dos Yanomamis, procedesse a demarcação do “Parque dos Yanomamis”, conduzisse programas de educação, proteção médica e integração social dos Yanomamis e informasse a Comissão sobre as medidas adotadas em cumprimento às recomendações. Além do caso 7615, foi submetido à Comissão Interamericana o caso 11745, que denunciou a chacina de dezesseis índios Yanomamis em junho de 1993 em razão da negligência e da omissão do governo brasileiro.

3) Casos de violência rural

Dos 78 casos, 13 envolvem situações de violência rural, sendo que a maioria se encontra pendente de apreciação perante a Comissão. Como os casos pendentes são processados em regime de confidência, o estudo se limitará a um breve relato destes casos. Primeiramente, cabe observar que os casos foram encaminhados à Comissão Interamericana por organizações não governamentais de âmbito nacional e internacional.

O primeiro caso foi o do assassinato de João Canuto, presidente dos Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no Estado do Pará. Pelos denunciantes, em razão da insuficiência da resposta governamental no sentido de punir os culpados – a investigação criminal durou oito anos e até o momento não houve culpados – caracterizando-se, assim, o esgotamento dos recursos internos, cabendo à Comissão a declaração da violação pelo Estado brasileiro de suas obrigações internacionais. Em março de 1998 a Comissão Interamericana aprovou o relatório final sobre o caso, condenando o Brasil pela violação dos direitos à vida, à liberdade, à segurança, à integridade e à justiça, com a recomendação de que o Brasil confira maior celeridade ao processo criminal relativo ao caso, a fim de que os responsáveis sejam devidamente processados. Recomendou, ainda, que seja efetuado o pagamento de pensão especial em favor dos familiares da vítima, o que foi efetuado pelo Estado do Pará.

Já o caso 11289 denuncia a tentativa de assassinato de um jovem trabalhador rural por ocasião de tentativa de fuga o regime de trabalho escravo a que estava sendo submetido em uma fazendo no Estado do Pará, em 1989. Considerando que até 1994 não houve punição dos responsáveis, levaram o caso à Comissão, onde foi solucionado o caso de em acordo amistoso. Houve o pagamento de indenização à vítima e compromisso de serem adotadas medidas para a prevenção e combate do trabalho escravo no Brasil. O caso 12066 também revela denúncia de trabalho escravo em fazendas no Estado do Pará. O caso 11405 envolve situação de conflito no campo. Sob a acusação de ocupação de terras e defesa dos direitos dos demais trabalhadores rurais, cinco trabalhadores foram assassinados e dois sofreram lesões corporais, um foi seqüestrado e pelo menos quatro famílias foram compelidas a fugir. Com a ineficiência do governo em apurar e responsabilizar os violadores, foi levado o caso à Comissão interamericana.

4) Casos de violência policial

Do universo de 78 casos, 34 são relativos a violência policial, todos ocorridos a partir de 1982. Como os casos ainda encontram-se pendentes, e por isso sob o regime de confidencialidade, na há como tecer comentários mais aprofundados. Cabe notar que os casos foram submetidos á Comissão Interamericana por organizações não governamentais de direitos humanos. Todos os casos são fundamentados na Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificanda pelo Brasil em 1992. Em todos os 34 casos, os peticionários denunciaram o abuso e a violência policial, que implica o assassinato, sem justificativa, de vítimas inocentes. Denunciam, ainda, a insuficiência de resposta por parte do governo brasileiro, ou mesmo a inexistência de qualquer resposta, em face de punição dos responsáveis pelas violações cometidas. Em todos os casos que denunciam a violência cometida pela polícia militar o pedido é o mesmo: a condenação do Estado brasileiro a processar e punir os agentes responsáveis pelas violações cometidas, bem como indenizar as vítimas das violações nos casos em que isso ainda não tenha ocorrido.

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A impunidade viola o dever de garantir, por completo, o livre exercício do direito afetado. A respeito, decidiu a Corte Interamericana: “se o aparato do Estado atua de modo a que uma violação permaneça impune, não restaurando à vítima, a plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que o Estado está a descumprir o dever de garantir o livre e pleno exercício de direito às pessoas sujeitas à jurisdição. Com respeito à obrigação de investigar, deve ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como uma simples gestão de interesses particulares, que depende da iniciativa processual da vítima ou de seus familiares, sem que a autoridade pública busque efetivamente a verdade”.

Com relação ao direito à justiça e à sistemática impunidade nos casos de violência da polícia militar, assegurada pelo fato de os agentes militares serem julgados por seus pares, no âmbito da Justiça Militar, cabe ressaltar que as pressões internacionais contribuíram para a adoção de Lei 9.299/96 que transferiu para a Justiça Comum a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares. Enfatize-se que a maioria dos casos admitidos pela Comissão Interamericana envolve o assassinato de pessoas inocentes, por vezes adolescentes, em virtude do abuso e violência da polícia militar. Nessas situações se reitera a denúncia de inexistência ou insuficiência de medidas adotadas pelo Brasil no sentido de processar e punir as autoridades policiais responsáveis. Os peticionários querem a condenação do Brasil em razão da afronta ao direito á vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais, assegurados pela Convenção Americana, com o fim da impunidade, para que os responsáveis sejam investigados, processados e punidos.

5) Casos de violação dos direitos de crianças e adolescente

No que tange aos casos de violação dos direitos de crianças e adolescente, os que merecem relevância cinco casos. O primeiro é o da “Candelária”, no qual oito crianças e adolescente foram encontrados mortos nos arredores da Igreja em julho de 1993. A petição alega que os responsáveis são policiais militares. O segundo refere-se a solicitação de medidas de proteção à integridade física e à vida de adolescente internados em três estabelecimentos do Estado do Rio de Janeiro. Apontam como irregularidades a separação dos adolescentes por critério de idade, compleição física e gravidade da infração, à superlotação e às condições subumanas a que são submetidos, vítimas de espancamentos, maus tratos e violência sexual. Na mesma direção aponta o terceiro caso, diferindo apenas que o estabelecimento é situado em Taubaté, em São Paulo. Nesses casos a Comissão Interamericana solicitou a adoção de medidas cautelares para proteger a vida e a integridade física dos adolescentes.

Por fim, os dois últimos são referentes ao caso dos “meninos emasculados no Marahão”, em que crianças e adolescentes têm sido vítimas de asassinato, marcado pela violência e abuso sexual, culminando na extração dos órgãos genitais das vítimas, no Estado do Maranhão. No período de 1991 a 2001, dezenove meninos, entre nove e catorze anos, foram vítimas dessa grave violação.

6) Casos de Violência contra a Mulher

Dos 78 casos, 3 denunciam a violência contra a mulher, apresentando como fundamento central a violação à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Desses três casos, dois denunciam a violência por parte de companheiros contra a mulher, sendo certo que em um culminou com a morte da vítima e o outro teve como conseqüência a paraplegia da vítima. Em ambos os casos os autores encontram-se em liberdade, sem terem cumprido qualquer pena. Já o terceiro caso denuncia o assassinato de uma estudante em que seu algoz, em razão de ser deputado estadual e encontrar-se resguardado pela imunidade parlamentar, só poderia ser processado com a prévia licença da Assembléia Legislativa do Estado. Contudo, por duas vezes a licença foi indeferida, o que resultou no envio do caso à Comissão.

Esses casos distinguem-se dos demais por denunciarem um padrão específico de violência que alcança as mulheres. Trata-se da violência baseada no gênero, capaz de causar morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, seja na esfera pública seja na esfera privada. Recomenda-se, assim, que o domínio do privado não é mais indevassável quando ocorre violação a direitos humanos. Embora esse padrão

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específico de violência seja distinto dos demais padrões até o momento estudados (em que os agentes estatais atuam como agentes perpetradores na esfera pública), os casos se assemelham aos demais casos na medida em que, do mesmo modo, requerem o combate à impunidade, acentuado o dever do Estado investigar, processar e punir os agentes responsáveis.

Além desses três casos, merece menção a denúncia de discriminação contra mãe adotiva e seus respectivos filhos, em face da decisão definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal que negou direito à licença gestante à mãe adotiva.

7) Casos de Discriminação Racial

Só há um único caso de denúncia de discriminação racial contra o Brasil. Refere-se à discriminação racial sofrida por vítima cujo ingresso em emprego foi recusado em virtude de ser negra. Os peticionários requerem que o Brasil seja responsabilizado pela violação do dever de garantir o livre e pleno exercício de direitos dispostos na Convenção Americana, sem qualquer discriminação, bem como pela afronta aos direitos à igualdade perante a lei. Requere, ainda, que seja recomendado ao Brasil que proceda investigação na apuração dos fatos, bem como no pagamento de indenização à vítima pelos danos sofridos, tornando públicas as providências tomadas para prevenir futuras discriminações.

8) Casos de violência contra defensores dos direitos humanos

Para este trabalho, defensores de direitos humanos são todos os indivíduos, grupos e órgãos da sociedade que promovem e protegem os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidas. Destaca-se o assassinato de Gilson Nogueira Carvalho, advogado do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal, por grupo de extermínio. Segunda a denúncia, o advogado tinha destacada atuação em defesa das vítimas de violência policial e atuava como assistente do Ministério Público nos processos que examinavam possíveis atuações de grupos de extermínio no interior da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Norte. Atente-se para o fato de que a Comissão Interamericana, em janeiro de 2005, entendeu por encaminhar o caso à Corte.

c) Análise dos casos – limites e possibilidades da advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos

Para a análise do quadro de ações internacionais, adotar-se-á como critério a demarcação de dois períodos na história política brasileira: o período concernente ao regime militar vigente no período de 1964 a 1985, e o outro concernente ao processo de transição democrática, deflagrado a partir de 1985. As mudanças ocorridas nesta transição democrática implicaram mudanças na própria advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo em vista que outros passaram a ser os direitos violados e outros passaram a ser os atores sociais envolvidos.

Se o objetivo é avaliar o modo como a advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos tem sido exercida no Brasil, primeiramente há que se perquirir quais os atores sociais nela envolvidos. De pronto, será analisado quem são os proponentes das denúncias. Considerando-se a demarcação dos dois distintos períodos, observa-se que durante o regime militar, de 1964 a 1985, 90% das comunicações examinadas foram encaminhadas por indivíduos ou grupos de indivíduos. Em um único caso a denúncia foi encaminhada por entidades não governamentais. Já no segundo período, relativo ao processo de democratização, 100% dos casos foram encaminhados por entidades não governamentais de defesa dos direitos humanos, de âmbito nacional ou internacional, e, por vezes, pela atuação conjunta dessas entidades.

Estes dados, por si sós, ilustram a dinâmica da relação entre o processo de democratização do país e a maior articulação e organização da sociedade civil. Tanto o processo de liberalização do regime autoritário permitiu o fortalecimento da sociedade civil, quanto as reinvenção da sociedade civil contribuiu para o processo de democratização e para a gradativa formação de um regime civil. Também notável é perceber, a partir da democratização, o importante papel assumido pelas organizações não governamentais no que tange

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à defesa e proteção dos direitos humanos, mediante a advocacia dos instrumentos internacionais de proteção.

Após a análise de quais são os proponentes das denúncias, passa-se a analisar, agora, quais os direitos que são violados segundo essas denúncias. Considerando o primeiro período, dos dez casos apreciados, nove denunciam a detenção arbitrária e tortura ocorridas durante o regime autoritário militar, enquanto um caso envolve a violação dos direitos dos povos indígenas. Já no segundo período, dos 68 casos analisados, 34 envolvem violência policial, 13 revelam violência rural, 5 referem-se à violação ao direitos da criança e adolescente, 3 são denúncia contra a mulher, e um menciona violação aos direitos da população indígena, um discriminação racial e mais seis violência contra defensores de direitos humanos.

Dessa estatística, pode-se extrair que no primeiro período, 90% dos casos denunciaram violência policial, já no segundo a violência policial foram 50% dos casos. Esses dados comprova que a democratização ocorrida no Brasil foi incapaz de romper em absoluto com as práticas autoritárias do regime militar, apresentando como reminiscência um padrão de violência sistemática praticada pela polícia, que não consegue ser controlada pelo aparelhamento estatal. A diferença da violência policial do primeiro período para a violência policial do segundo, é que no regime militar a violência era perpetrada direita e explicitamente por ação do regime autoritário. Já no período de democratização, a sistemática violência policial apresenta-se não mais como uma ação Estatal, mas sim como uma omissão do Estado, por não ser capaz de deter os abusos de seus agentes. Tal como no regime militar, não se verifica a punição dos responsáveis. A insuficiência ou até mesmo a inexistência de respostas por parte do Estado brasileiro é fator que, a configurar o requisito do prévio esgotamento dos recursos internos, enseja a denúncia dessas violações de direitos perante a Comissão Interamericana.

Ao dos 34 casos de violência policial no período de democratização, observa-se que os demais 34 casos são violações aos direitos e liberdades fundamentais em face de grupos socialmente vulneráveis, como os povos indígenas, a população negra, as mulheres, as crianças e os adolescentes. Importa destacar que todos os casos apresentados à Comissão Interamericana, seja no primeiro ou no segundo período, referem-se à violação de direitos civis e/ou políticos, sendo ainda incipiente a apresentação de denúncias atinentes à violação a direitos econômicos, sociais e culturais.

Além de se analisar quem são os proponentes e quais os direitos violados, examinar quem são as vítimas dessas violências. No período do regime autoritário militar, em 90% dos casos as vítimas eram líderes da Igreja Católica, estudantes, líderes de trabalhadores, professores universitários, advogados, economistas e outros profissionais, todos, em geral, integrantes da classe média brasileira. No segundo período, relativo ao processo de democratização, 87% dos casos examinados, as vítimas podem ser consideradas socialmente pobres, sem qualquer liderança destacada, o que inclui tanto aqueles que viviam como pedreiros, vendedores, ajudantes de obras ou em outras atividades pouco rentáveis no Brasil. Exceção é feita aos casos de violência contra defensores de direitos humanos e de contra lideranças rurais. Se no período de autoritarismo militar, aqueles que eram acusados de oferecer resistência ao regime eram torturados ou arbitrariamente detidos por razões de natureza política, no processo de democratização o padrão de conflituosidade se orienta por outro critério. Não mais pelo critério político, mas sim pelo critério econômico, com o qual se conjuga um componente sócio-político. Nesse sentido as vítimas, as vítimas, via de regra, não são mais dos setores da classe média, mas pessoas pores, por vezes excluídas socialmente e integrantes de grupos sociais vulneráveis.

Importante é a observação feita por Álvaro Ribeiro da Costa, para quem “A chamada violência específica – cujas formas mais visíveis podem aparecer como homicídios, lesões corporais, tortura, seqüestros – é a que habitualmente pode chamar mais atenção. No entanto, a violência estrutural – a que reside na estrutura econômicas, políticas, sociais, culturais, jurídicas – parecer ser a mais perversa e a de maiores efeitos em detrimento dos direitos humanos e da cidadania, por caracterizar-se pela permanência, pela profundidade e extensão de seu alcance”. Pela análise das datas das proposituras das denúncias, verifica-se que a ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Brasil tenha estimulado a iniciativa de ações judiciais internacionais, haja vista que, no período de 1970 a 1992, apenas 1 casos foram impetrado contra o Brasil.

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Já no período de 1992 a 2004, foram 67 as proposituras. Dessa análise, constata-se que a ratificação da Convenção Americana foi um fator que, definitivamente, estimulou e propiciou a propositura de ações internacionais junto à Comissão Interamericana.

Mister analisar, agora, o impacto da litigância internacional na mudança no âmbito interno. A título ilustrativo, cabe a demonstração de seis mudanças ocorridas por influência direta das litigâncias internacionais. I) os casos de violência policial, especialmente as que denunciam a impunidade de crimes praticados por policiais militares, foram fundamentais para a adoção da Lei 9.299/96, que determinou a transferência da competência da Justiça Militar para Justiça Comum para julgamento de crimes dolosos contra vida praticados por policiais militares; I) O caso do assassinato da estudante por deputado estadual foi de relevante importância para a adoção da Emenda Constitucional 35/2001m que restringe a imunidade parlamentar no Brasil; I) o caso envolvendo a denúncia de discriminação de mãe adotiva e seus respectivos filhos, em face da decisão definitiva do STF que negou o direito da mãe adotiva de gozar de licença maternidade, foi essencial para a aprovação da Lei 10.421/2002, que estendeu o direito á licença maternidade às mães de filhos adotivos; IV) o caso Maria Penha de Maia Fernandes, que culminou na condenação do Brasil por violência doméstica, motivou o encaminhamento, pelo Poder Executivo, ao Congresso Nacional de projeto de lei tipificando o crime de violência doméstica e sugerindo meios adequados de tramitação nas instâncias judiciais; V) os casos de violência contra defensores de direitos humanos contribuíram para a adoção do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos; e VI) os casos envolvendo violência rural e trabalho escravo, contribuíram para a adoção do Programa Nacional para a Erradicação do trabalho Escravo.

Pode-se concluir que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos oferece importantes estratégias de ação, potencialmente capazes de contribuir para o reforço da promoção dos direitos humanos no Brasil. Verificou-se, ainda, que os instrumentos internacionais constituem relevante estratégia de atuação para as organizações não governamentais, nacionais e internacionais, ao adicionar linguagem jurídica ao discurso dos direitos humanos. A experiência revela que a ação internacional tem também auxiliado a publicidade das violações de direitos humanos, o que oferece o risco do constrangimento político e moral ao estado violador, e, nesse sentido, surge como significado fator para a proteção dos direitos humanos. Ademais, ao enfrentar a publicidade e a pressão internacional, o Estado é praticamente compelido a apresentar justificativas às suas práticas, vindo a contribuir para reformas internas.

Enfim, considerando a experiência brasileira, pode-se afirmar que, com o intenso desenvolvimento das organizações não governamentais, a partir de articuladas e competentes estratégias de litigância, os instrumentos internacionais constituem poderoso mecanismos para a promoção do efetivo fortalecimento da proteção dos direitos humanos no âmbito nacional.

Neste último capítulo, com base em toda a análise desenvolvida, importa examinar a dinâmica da relação entre o processo de internacionalização dos direitos humanos e seu impacto e repercussão no processo de redefinição e reconstrução da cidadania no âmbito brasileiro.

Como foi demonstrado, o direito internacional de direitos humanos é um movimento extremamente recente na história, surgindo no pós-guerra, como resposta às atrocidades cometidas durante o nazismo. Foi um esforço de reconstrução dos direitos humanos. Neste sentido, uma das principais preocupações do movimento foi converter os direitos humanos em tema de legítimo interesse da comunidade internacional, o que implicou os processos de universalização e internacionalização desses interesses. Tais processos levaram à normatização internacional de proteção aos direitos humanos, de âmbito global e regional, como também de âmbito geral e específico. Adotando a primazia da pessoa humana, esses sistemas se complementam, interagindo como sistema nacional, a fim de proporcionar a maior efetividade na tutela e promoção de direitos fundamentais. O sistema internacional institui mecanismos de responsabilização acionáveis quando o Estado se mostra falho ou omisso na tarefa de implementar direitos fundamentais.

Ao acolher o aparato internacional de proteção, bem como as obrigações internacionais dele decorrentes, o Estado passa a aceitar o monitoramento internacional no que se refere ao modo pelo qual os direitos

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fundamentais são respeitados em seu território, sendo sempre a ação internacional uma ação suplementar. As transformações decorrentes do movimento de internacionalização dos direitos humanos contribuíram, ainda, para o processo de democratização do próprio cenário internacional, já que, além do Estado, novos sujeitos de direito passa a participar da arena internacional, como os indivíduos e as organizações não governamentais. Na medida em que guardem relação direta com os instrumentos internacionais de direitos humanos – que lhe atribuem direitos fundamentais imediatamente aplicáveis – os indivíduos passam a ser concebidos como sujeitos de direito internacional. Nessa condição, cabe ao sujeito o acionamento direto de mecanismos internacionais.

Importa salientar que se faz necessário democratizar determinados instituições internacionais, de modo que possam prover um espaço participativo mais eficaz, que permita maior atuação de indivíduos e de entidades não governamentais, mediante a legitimação ampliada nos procedimentos e instâncias internacionais. Um exemplo é a própria Convenção Americana que não atribui ao indivíduo ou a entidades não governamentais a legitimidade para encaminhar casos à apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

No Brasil, a incorporação do Direitos Internacional dos Direitos Humanos e de seus importantes instrumentos é conseqüência do processo de democratização, iniciado em 1985. Esse processo possibilitou a reinserção do Brasil na arena internacional de proteção dos direitos humanos, contudo importantes medidas ainda necessitem ser tomadas para o completo alinhamento do país com a plena vigência dos direitos humanos. Nesse sentido, constatou-se a dinâmica e a dialética da relação entre democracia e direitos humanos, tendo em vista que, se o processo de democratização permitiu a ratificação de relevantes trtados internacionais de direitos humanos, por sua vez, essa ratificação permitiu o fortalecimento do processo democrático, por meio da ampliação e do reforço do universo de direitos fundamentais por ele assegurados. Atentouse, assim, para o modo pelo qual os direitos humanos internacionais inovam a ordem jurídica brasileira, complementando e integrando o elenco dos direitos internacionalmente consagrados e nele introduzindo novos direitos, até então não previstos pelo ordenamento jurídico interno.

Enfatize-se que a Constituição de 1988, marco jurídico da institucionalização dos direitos humanos e da transição democrática no país, ineditamente consagrou o primado do respeito aos direitos humanos como paradigma propugnado para a ordem internacional. Esse princípio invoca a abertura da ordem jurídica brasileira aos sistema internacional de proteção dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, exige nova interpretação de princípios tradicionais, como a soberania nacional e a não-intervenção, impondo a flexibilização e relativização desses valores. Se a prevalência dos direitos humanos é princípio a reger o Brasil no cenário internacional, conclui-se que se admite a concepção de que os direitos humanos é tema global para a CF/8. É tema de legítima preocupação e interesse da comunidade internacional.

O Texto democrático inova em relação às demais constituições quando estabelece um regime jurídico diferenciado aplicável aos tratados internacionais de direitos humanos. Por força do art. 5º, § 2º da CF, todos os tratados internacionais de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado introduzido pelo § 3º do mesmo artigo (fruto da Emenda Constitucional nº 45/2004), ao reforçar a natureza constitucional dos tratados de direitos humanos, vem a adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Nesta hipótese, os tratados internacionais de direitos humanos formalmente constitucionais são equiparados às emendas à Constituição, isto é, passam a integrar o Texto Constitucional. Conclui-se, que a Constituição de 1988 acolheu um sistema misto, que combina regimes jurídicos diferenciados: um aplicável aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e outro aplicável aos tratados internacionais tradicionais.

A conclusão da existência desse sistema diferenciado em relação aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos é uma conseqüência de uma interpretação axiológica e sistemática da própria Constituição, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compensação do fenômeno constitucional. Com esse raciocínio se conjuga o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, particularmente das normas

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concernentes a direitos e garantias fundamentais, que hão de alcançar a maior carga de efetividade possível. Já em favor da natureza constitucional dos direitos enunciados nos tratados internacionais, adicione-se também o fato de o processo de globalização ter implicado a abertura da Constituição à normatização internacional. Tal abertura acarreta a incorporação de preceitos ao bloco de constitucionalidade. Em suma, todos esses argumentos se reúnem no sentido de endossar o regime constitucional privilegiado, conferido aos tratados de proteção de direitos humanos.

Quanto ao impacto jurídico do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Direito brasileiro, acrescente-se que os direitos internacionais, por força do princípio da norma mais favorável à vítima, que assegura a prevalência da norma que melhor e mais eficazmente proteja os direitos humanos, apenas vêm a aprimorara e fortalecer, jamais a restringir ou deliberar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. A sistemática internacional de proteção vem, ainda, a permitir a tutela, a supervisão e o monitoramento de direitos por organismos internacionais.

Em relação à advocacia dos Direitos Internacional dos Direitos Humanos, embora seja incipiente no Brasil, tem sido capaz de propor relevantes ações internacionais, invocando a atenção da comunidade internacional para a fiscalização e o controle de graves casos de violação de direitos humanos. No momento em que tais violações são submetidas à arena internacional, elas se tornam mais visíveis, salientes e públicas. Diante da publicidade casos de violação de direitos humanos e de pressões internacionais, o Estado se vê “compelido” a prover justificativas, o que tende a implicar alterações na própria prática do Estado em relação aos direitos humanos, permitindo, por vezes, um sensível avanço na forma pela qual tais direitos são nacionalmente respeitados e implementados. A ação internacional constitui, portanto, importante estratégia para o fortalecimento da sistemática de implementação dos direitos humanos.

Em razão da sistemática de monitoramento internacional e do extenso universo de direitos que assegura, o Direito Internacional de Direitos Humanos vem a instaurar o processo de redefinição do próprio conceito de cidadania no âmbito brasileiro. O conceito de cidadania se vê, assim, ampliado, na medida em que passa a incluir não apenas direitos previstos no plano nacional, mas também direitos internacionalmente anunciados. A sistemática internacional de accountability vem ainda a integrar esse conceito renovado de cidadania tendo em vista que às garantias nacionais são adicionadas garantias de natureza internacional. Hoje se pode afirmar que a realização plena e não apenas parcial dos direitos da cidadania envolve o exercício efetivo e amplo dos direitos humanos, nacional e internacional assegurados.

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