33
1 INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DE FETO ANENCEFÁLICO: UMA ANÁLISE SÓCIO-JURÍDICA EM FACE DOS PRECEITOS FUNDAMENTAIS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 1 Caroline Teles Witt 2 RESUMO: O presente estudo tem como objetivo analisar a interrupção da gravidez de feto anencéfalo sob a ótica dos preceitos fundamentais integrantes do Estado Democrático de Direito. O aborto tem-se mostrado um dos temas mais controversos e polêmicos da sociedade, encontrando tanto aqueles que defendem a descriminalização total da conduta quanto os que lutam e almejam pela sua proibição incondicional e absoluta. O Código Penal pátrio permite a realização do aborto em apenas duas hipóteses: em caso de estupro, com o consentimento da mãe e quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Portanto, o aborto seletivo (aquele realizado em fetos que apresentam alguma má-formação ou deficiência, onde se enquadram os casos de anencefalia), não encontra amparo na legislação brasileira. O cerne da discussão reside no conflito entre os princípios constitucionais vigentes, principalmente ao que tange ao direito à vida e a dignidade da pessoa humana, e a conseqüente primazia de um preceito sobre o outro. Neste diapasão, é importante relembrar que a Carta Magna garante a todos os seres humanos o direito à vida desde a concepção até a morte, sejam estes bem ou malformados, sem distinção. Entretanto, por outro lado, a Constituição Federal considerou a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Diante deste quadro, cabe questionar se o aborto anencefálico deve continuar a ser tipificado como crime contra a vida pelo ordenamento vigente. 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e aprovado, em grau máximo, pela banca examinadora composta pela Orientadora Profª. Drª. Márcia Andrea Bühring, Profª. Drª Denise Pires Fincato e Profª. Ms. Mariângela Guerreiro Milhoranza, em 29 de junho de 2011. 2 Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais – Faculdade de Direito – PUCRS – Contato: [email protected]

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo analisar a ... · gravidez de feto anencéfalo sob a ... encontrando tanto aqueles que defendem a ... a expulsão do produto do aborto

  • Upload
    vunhi

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

1

INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DE FETO ANENCEFÁLICO: UMA ANÁLISE

SÓCIO-JURÍDICA EM FACE DOS PRECEITOS FUNDAMENTAIS DO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO1

Caroline Teles Witt2

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo analisar a interrupção da

gravidez de feto anencéfalo sob a ótica dos preceitos fundamentais integrantes do

Estado Democrático de Direito.

O aborto tem-se mostrado um dos temas mais controversos e polêmicos da

sociedade, encontrando tanto aqueles que defendem a descriminalização total da

conduta quanto os que lutam e almejam pela sua proibição incondicional e absoluta.

O Código Penal pátrio permite a realização do aborto em apenas duas

hipóteses: em caso de estupro, com o consentimento da mãe e quando não há

outro meio de salvar a vida da gestante. Portanto, o aborto seletivo (aquele

realizado em fetos que apresentam alguma má-formação ou deficiência, onde se

enquadram os casos de anencefalia), não encontra amparo na legislação brasileira.

O cerne da discussão reside no conflito entre os princípios constitucionais

vigentes, principalmente ao que tange ao direito à vida e a dignidade da pessoa

humana, e a conseqüente primazia de um preceito sobre o outro.

Neste diapasão, é importante relembrar que a Carta Magna garante a todos os

seres humanos o direito à vida desde a concepção até a morte, sejam estes bem ou

malformados, sem distinção. Entretanto, por outro lado, a Constituição Federal

considerou a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado

Democrático de Direito.

Diante deste quadro, cabe questionar se o aborto anencefálico deve continuar

a ser tipificado como crime contra a vida pelo ordenamento vigente.

1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e aprovado, em grau máximo, pela banca examinadora composta pela Orientadora Profª. Drª. Márcia Andrea Bühring, Profª. Drª Denise Pires Fincato e Profª. Ms. Mariângela Guerreiro Milhoranza, em 29 de junho de 2011. 2 Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais – Faculdade de Direito – PUCRS – Contato: [email protected]

2

O assunto é de suma importância, na medida em que tramita no Supremo

Tribunal Federal uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental que

pretende a legalização do aborto anencefálico, encontrando-se o processo concluso

com o relator.

Deste modo, faz-se necessária a expedição de uma decisão final neste

sentido, de modo urgente, uma vez que, atualmente, evidencia-se uma enorme

insegurança jurídica a respeito do assunto.

Palavras-chave: Aborto. Anencefalia. Direitos Fundamentais. Conflito.

INTRODUÇÃO: O debate acerca da tipificação do aborto anencefálico como

crime contra a vida gera grandes discussões na seara do direito penal e

constitucional, na medida em que o tema carece de fundamentação por parte do

ordenamento pátrio.

Trata-se de um grave embate ético-moral entre o direito à vida do feto

anencéfalo e a dignidade da pessoa humana, neste caso, representada pela

gestante.

Nesse contexto, pode-se ressaltar a tamanha complexidade que acompanha

este tema, permeado de dúvidas, contradições e polêmicas. Os posicionamentos

que predominam entre os juristas e doutrinadores são divergentes, por vezes até

mesmo antagônicos, tornando-se inerente a concretização imediata de um

regramento jurídico acerca da referida problemática.

Pretende-se, ainda, com este trabalho, analisar os enfoques mais relevantes

pertinentes ao assunto, na tentativa de vislumbrar, mesmo que de forma ínfima,

uma possível solução para o desenvolvimento desta questão, dada a atualidade da

temática apresentada e a dificuldade de consolidação de um posicionamento ético,

moral e jurídico para tanto.

Com a referida intenção, o presente artigo parte de uma estrutura

consolidada em três capítulos, buscando-se analisar, inicialmente a evolução

histórica e conceitual no que tange ao tratamento dado à problemática do aborto no

decorrer dos anos.

Seqüencialmente, num segundo momento, a questão da interrupção de

gestação de feto anencéfalo será analisada à luz das normas e princípios

fundamentais vigentes no ordenamento jurídico, de forma a evidenciar a presente

dicotomia e contradição existentes na legislação.

3

Por derradeiro, relevam-se as questões eminentemente jurídicas relativas à

prática abortiva decorrente da anencefalia fetal, no que tange à análise das

condições que legitimam a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

nº. 54, bem como o posicionamento dos Tribunais brasileiros frente à questão.

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL DO ABORTO

O aborto é caracterizado pela destruição da vida antes do início do parto, com

ou sem a expulsão do feto do útero materno.

Sua origem provém do latim “aboriri”, cujo significado é “separar do lugar

adequado”3.

Pode-se afirmar, assim, que o aborto ocorre quando, por algum motivo, há a

interrupção da vida intra-uterina, sem que esta aconteça devido ao nascimento do

feto.

Na visão do jurista Júlio Fabbrini Mirabete4:

Aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes de sua expulsão. Não deixará de haver, no caso, o aborto.

Da mesma forma, Paulo José da Costa Jr.5, afirma:

Entende-se por aborto (de ab-ortus, privação do nascimento) a interrupção voluntária da gravidez, com a morte da concepção. Não distinguiu a lei entre óvulo fecundado, embrião e feto. Contentou-se a lei com a interrupção da gravidez.

A esse respeito, Maria Helena Diniz6 assegura:

O termo “aborto”, originário do latim abortus, advindo de aboriri (morrer, perecer), vem sendo empregado para designar a interrupção da gravidez antes de seu termo normal, seja ela espontânea ou provocada, tenha havido ou não a expulsão do feto destruído. Deveras, é preciso lembrar que a expulsão do produto do aborto poderá tardar ou até mesmo deixar de existir se, por exemplo, ocorrer sua mumificação, com formação de litopédio.

Cezar Roberto Bitencourt7, por sua vez, faz a seguinte conceituação:

3 DINIZ, Maria Helena. O Estado do Biodireito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 29. 4 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 23ª ed. São Paulo: Atlas S.A, 2005, p. 262. 5 COSTA JR., Paulo José da. Direito Penal Objetivo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 203. 6 DINIZ, op. Cit, p. 29.

4

Aborto é a interrupção da gravidez antes de atingir o limite fisiológico, isto é, durante o período compreendido entre a concepção e o início do parto, que é o marco final da vida intra-uterina.

À mesma idéia, filia-se Aníbal Bruno8: “Provocar aborto é interromper o

processo fisiológico da gestação, com a conseqüente morte do feto”.

O ato de abortar é milenar e existe desde os primórdios da humanidade.

Pode-se afirmar que a interrupção do estado gravídico sempre foi empregada

nos quatro pontos do planeta. O aborto, através da história, era utilizado como forma

de contracepção e mantido como prática reservada até o século XIX, estando

sempre acompanhado por questões morais, éticas e religiosas, as quais perduram

até os dias atuais.

Para o antigo direito romano, a conduta era considerada crime apenas contra

a mulher, “porquanto o ser humano em vida intra-uterina era tido como uma porção

do corpo da mulher ou parte de suas vísceras (mulieris pars vel viscerum)”,

consoante Ivanildo Ferreira Alves9, em sua obra “Crimes contra a vida”.

A Igreja Católica, por sua vez, sempre firmou posição contrária ao aborto,

através de várias encíclicas papais. Os Papas João Paulo I e João Paulo II

excomungaram a prática de forma efusiva, condenando, inclusive, o aborto em

casos de estupro e o denominado aborto terapêutico. A idéia de destruição da vida

em formação foi sedimentada pela religião cristã, que sempre almejou pela

criminalização e proibição incondicional da prática.10

No Brasil, o regramento em relação ao aborto foi elucidado pela primeira vez

com a promulgação do Código Criminal do Império, em 1830, no capítulo referente

aos "Crimes contra a segurança da pessoa e da vida". O artigo 199 do referido

diploma definia o crime: “Ocasionar aborto, por qualquer meio empregado, interior

ou exteriormente, com consentimento da mulher pejada”. A pena cominada era a

prisão com trabalho, de um a cinco anos. Para os cúmplices, aplicava-se a sanção

de três anos e quatro meses de prisão cumulada com trabalho. As penas eram

dobradas se houvesse o consentimento da gestante e se o delito fosse praticado por

médico, boticário, cirurgião ou praticante, conforme determinação do legislador da

7 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 135. 8 BRUNO, Aníbal. Crimes Contra a Pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1976. p. 160 apud BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 135. 9 ALVES, Ivanildo Ferreira. Crimes Contra a Vida. Belém do Pará: Editora Unama, 1999. p. 56. 10 Ibidem.

5

época. Nesta época, o auto aborto não era considerado um delito, pois a prática

abortiva integrava os costumes e o cotidiano das pessoas, onde importava punir

apenas aquele que atentasse contra a necessidade de crescimento de uma

população em nível nacional.11

Em 1890, o Código Penal da República, expandiu a imputabilidade nos crimes

de aborto, derrogando a legislação até então vigente, prevendo punição para a

mulher que praticasse o auto aborto. Neste caso, estabeleceu atenuantes para a

prática quando esta tivesse como finalidade "ocultar a desonra própria". Aludiu, pela

primeira, vez os conceitos de aborto legal ou necessário.12

O Código Penal brasileiro de 1940, inspirado nos precedentes do Código

Penal Italiano, incluiu o aborto no Capítulo I – Dos Crimes Contra a Vida,

criminalizando a conduta em todas as hipóteses, apenas afastando a punibilidade do

aborto necessário – se não há outro meio de salvar a vida da gestante – e do aborto

no caso de gravidez resultante de estupro (CPB, art. 128, I e II), desde que

precedido do consentimento da gestante ou, em caso de incapacidade, de seu

representante legal.

1.1 AS MODALIDADES DE ABORTO NO BRASIL

A vida humana encontra acolhimento especial na legislação brasileira. A este

propósito, preceitua o artigo 141 da Carta Magna13:

A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade.

O artigo 2º do Código Civil14 assegura: “A personalidade civil da pessoa

começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os

direitos do nascituro.”

Por outro lado, o artigo 227 da Constituição15 brasileira, afirma:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

11 SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.) Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 32. 12 Ibidem. 13 ABREU FILHO, Nylson Paim de (org.). Vade Mecum. 5 ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010. p. 61. 14 Ibidem, p. 177. 15 Ibidem, p. 78.

6

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Nesta seara, pode-se afirmar:

A norma constitucional trata, portanto, do direito à vida como o fundamental, como pré-requisito para o exercício dos demais direitos. É assim, uma norma importantíssima no sistema jurídico brasileiro, base e fundamento para as demais normas que tratam dessa matéria. É norma que serve de fundamento na aplicação das demais outras que tutelam a vida humana.16

Dentro destes precedentes, o Código Penal17 pátrio assegura, em relação ao aborto

e, implicitamente, ao direito à vida:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos Aborto provocado por terceiro Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos. Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos Parágrafo único: Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Forma qualificada Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I. se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II. se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Diante do exposto, Maria Helena Diniz18 dá a seguinte definição ao crime de

aborto:

O aborto criminoso constitui um delito contra a vida, consistente na intencional interrupção da gestação, proibida legalmente, pouco importando o período da evolução fetal em que se efetiva e a pessoa que o pratica, desde que haja morte do produto da concepção, seguida ou não da sua expulsão do ventre materno.

16 SILVA, José Carlos Sousa. Direito à Vida. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006. p. 42. 17 ABREU FILHO, op. cit., p. 528. 18 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 5ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 35

7

O Código Penal brasileiro, no artigo 128, incisos I e II, prevê duas causas de

excludente especial da ilicitude, quais sejam o aborto necessário e o denominado

aborto humanitário.19

O aborto necessário, também conhecido como aborto terapêutico, conforme

elucidado anteriormente, é aquele praticado quando não existir outro meio de salvar

a vida da gestante. Os requisitos necessários para sua ocorrência são dois: real e

iminente perigo de vida da mulher grávida e inexistência de outro meio mais

adequado para salvá-la.

Cezar Roberto Bitencourt20 sustenta que o aborto necessário pode ser

praticado mesmo contra a vontade da gestante, pois a intervenção médica estará

agindo de acordo com o “estrito cumprimento do dever legal.” À mesma idéia, filia-se

o jurista Julio Fabbrini Mirabete, no sentido de que o consentimento da gestante

para intervenção não é necessário, pois não há disposição legal para tanto, uma vez

que somente o inciso II, do artigo 128 do Código Penal exige esta condição.

Por outro lado, o aborto humanitário ou ético (parte da doutrina ainda utiliza a

denominação “sentimental”) é aquele autorizado na gravidez decorrente de estupro

e tem como requisito fundamental o consentimento da gestante, ou sendo esta

incapaz, a autorização do seu representante legal.

Neste sentido:

Tem-se entendido que, no caso, há, também, estado de necessidade ou causa de não-exigibilidade de outra conduta. Justifica-se a norma permissiva porque a mulher não deve ficar obrigada a cuidar de um filho resultante de coito violento, não desejado. Além disso, freqüentemente o autor do estupro é uma pessoa degenerada, anormal, podendo ocorrer problemas ligados à hereditariedade.21

Assim sendo, caso a gravidez resulte de atentado violento ao pudor (artigo

214 do Código Penal), é possível a permissão para realização do aborto nestes

moldes, pela aplicação da analogia.

Por derradeiro, o denominado aborto eugenésico, é aquele “executado ante a

suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos pais”,

consoante Julio Fabbrini Mirabete22. Para esta modalidade de aborto, não há

excludente de ilicitude.

19 ABREU FILHO, Nylson Paim de (org.). Vade Mecum. 5 ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010. 20 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 143. 21 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 223. 22 Ibidem.

8

Entende-se como anomalias graves os casos de má formação congênita do

feto, como ausência de órgãos vitais (os rins, por exemplo), abertura da parede

abdominal e os casos de anencefalia (ausência ou má formação do cérebro). Alguns

juristas, como Mirabete e Adriano Marrey, acreditam que há uma tendência à

descriminalização do aborto eugênico, baseada na inviabilidade da vida extra-uterina

do feto e nos danos psicológicos causados à gestante nesta situação.

Pode-se afirmar, pelos fundamentos até aqui explicitados, que o bem jurídico

tutelado pelo ordenamento jurídico brasileiro é a vida do ser humano em formação,

embora, conforme posicionamento do jurista Cezar Roberto Bitencourt23, o aborto

praticado nos casos em que não há excludente de ilicitude não se trate,

especificamente, de crime contra a pessoa, senão vejamos:

O produto da concepção – feto ou embrião – não é pessoa, embora tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como alguns doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica. Quando o aborto é provocado por terceiro, o tipo penal protege também a incolumidade da gestante.

Note-se que é aceitável concluir que o nascituro ocupa uma posição atípica

dentro da legislação pátria, pois, embora encontre amparo nos ordenamentos legais,

quais sejam Constituição Federal, Código Penal e Código Civil, este não detém

todos os requisitos necessários da personalidade jurídica.

Na realidade, a idéia de que a proteção à vida do nascituro não é equivalente

àquela proporcionada após o nascimento com vida se faz presente na ordem jurídica

atual.

Assim sendo:

A tese que aqui se defenderá é a de que a vida humana intra-uterina também é protegida pela Constituição, mas com intensidade substancialmente menor do que a vida de alguém já nascido. Sustentar-se-á, por outro lado, que a proteção conferida à vida do nascituro não é uniforme durante toda a gestação. Pelo contrário, esta tutela vai aumentando progressivamente na medida em que o embrião se desenvolve, tornando-se um feto e depois adquirindo viabilidade extra-uterina. O tempo de gestação é, portanto, um fator de extrema relevância na mensuração do nível de proteção constitucional atribuído à vida pré-natal.24

É possível traçar um paralelo, inclusive, entre o aborto e o crime de homicídio,

tipificado no artigo 121 do Código Penal, que estabelece como sanção a pena de 6

23 BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 134. 24 SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.) Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 30.

9

(seis) a 20 (vinte) de reclusão. Pode-se constatar, com clareza, a distinção feita pelo

legislador entre as duas espécies de delito (ambos relacionados à vida humana),

quando se compara a pena atribuída à gestante pela prática do aborto (1 a 3 anos

de detenção) e a pena cominada em caso de homicídio simples.25

É irrefutável, deste modo, a dicotomia e contradição existentes no

ordenamento pátrio, pois, ao mesmo tempo em que a norma legal exerce a tutela

jurisdicional sobre vida do nascituro, permite seu sacrifício em prol da dignidade da

gestante, podendo ceder mediante uma avaliação de interesses, como é o caso da

permissão para realização do aborto nas gestações decorrentes de estupro.

1.2 A CONCEITUAÇÃO DA ANENCEFALIA E SUA CARACTERIZAÇÃO

A anencefalia trata-se de uma anomalia diagnosticável, porém, sem

explicação plausível para justificar sua origem, consistente em uma má-formação

caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana,

proveniente de defeito no fechamento do tubo neural.26

A conseqüência deste fato é o desenvolvimento mínimo do encéfalo e a

ausência parcial ou total do cérebro (região do encéfalo que comanda o

pensamento, o movimento, os sentidos, etc.).

A definição mais completa seria:

Anencefalia é um defeito no tubo neural (uma desordem envolvendo um desenvolvimento incompleto do cérebro, medula, e/ou suas coberturas protetivas). O tubo neural é uma estreita camada protetora que se forma e fecha entre a 3ª e 4ª semanas de gravidez para formar o cérebro e a medula do embrião. A anencefalia ocorre quando a parte de trás da cabeça (onde se localiza o tubo neural) falha ao se formar, resultando na ausência da maior porção do cérebro, crânio e couro cabeludo. Fetos com esta disfunção nascem sem testa (a parte da frente do cérebro) e sem um cerebrum (a área do cérebro responsável pelo pensamento e pela coordenação). A parte remanescente do cérebro é sempre exposta, ou seja, não protegida ou coberta por ossos ou pele. A criança é comumente cega, surda, inconsciente, e incapaz de sentir dor. Embora alguns indivíduos com anencefalia talvez venham a nascer com um tronco rudimentar de cérebro, a falta de um cerebrum em funcionamento permanente deixa fora de alcance qualquer ganho de consciência. Ações de reflexo tais como a respiração, audição ou tato podem talvez se manifestar. A causa da anencefalia é desconhecida. Embora se acredite que a dieta da gestante e a ingestão de vitaminas possam caracterizar uma resposta, cientistas

25 SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.) Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 30. 26 TERRUEL, Suelen Chirieleison. Anencefalia Fetal: Causas, Conseqüências e Possibilidades de Abortamento. 15 mar. 2008. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/4787/1/Anencefalia-Fetal-CausasConsequencias-E-Possibilidade-De-Abortamento/pagina1.html> Acesso em: 05 abr. 2011.

10

acreditam que há muitos fatores envolvidos.27

A anencefalia sempre existiu, entretanto, somente com os avanços

tecnológicos da medicina foi possível diagnosticar a anomalia de forma precoce.

Antigamente, os fetos com esta disfunção só eram assim reconhecidos no momento

do nascimento.

Segundo a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e

Obstetrícia (FEBRASGO), a anencefalia é uma patologia muito comum e acredita-se

que a causa mais provável para este problema seja a deficiência de ácido fólico

durante a gravidez. Seu diagnóstico pode ser realizado a partir da décima segunda

semana de gestação, através de ultrassonografia. Estimativas apontam para a

incidência de aproximadamente 1 (um) caso a cada 1.600 (mil e seiscentos)

nascidos vivos.28

A anomalia acontece no período de formação do sistema nervoso fetal, que

se encerra em aproximadamente 25 dias desde a concepção.29

Diante disso, em relação às causas e à recorrência da gestação de feto

anencéfalo:

O Conselho Federal de Medicina (CFM) considera o anencéfalo um natimorto cerebral, por não possuir os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral, mas somente o tronco. Como causas de tal problema podem ser apontadas anormalidades genéticas, fatores ambientais, entorpecentes, enfermidades metabólicas, interação de fatores genéticos e ambientais e deficiências nutricionais e vitamínicas, especialmente a baixa ingestão de ácido fólico. A incidência pode ser maior também em mulheres muito jovens ou de idade muito avançada. A exposição da gestante no início da gravidez a produtos químicos, solventes e irradiações e o consumo de tabaco e bebidas alcoólicas também são apontados como elementos capazes de influenciar na má-formação fetal.30

A ultrassonografia detecta, até o fim do primeiro trimestre da gravidez, a

ausência simétrica dos ossos da calota craniana, ou seja, a acrania, o que autoriza

um diagnóstico específico e seguro de anencefalia31

27 SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.) Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 114. 28 GOLLOP, Thomaz Rafael. O Descompasso entre o Avanço da Ciência e a Lei. Revista da USP, SP, v. 24 dez – fev 1994/95. p. 54 apud TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: Descriminalização e avanços tecnológicos da medicina contemporânea. São Paulo: Juruá, 2002. 29 SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.) Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 113. 30 Ibidem, p. 114. 31 COUTINHO, Luiz Augusto. Aborto em casos de anencefalia: crime ou inexigibilidade de conduta diversa? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6423>. Acesso em: 26 mar. 2011.

11

Uma vez detectada a ocorrência da má-formação, não há meios disponíveis

na medicina para revertê-la, podendo ser considerada uma patologia letal. Em

metade dos casos, o feto morre antes de nascer e, na metade que chega ao parto, a

maioria não consegue sobreviver às primeiras 48 (quarenta e oito) horas.

Existem evidências, porém, de casos raríssimos de anencéfalos que se

mantiveram vivos por vários meses, com capacidade para executar funções de

alimentação e movimentos básicos e instintivos, como bocejar, chorar, seguir

objetos com os olhos, etc.

Em relação à definição da gravidade da anencefalia, pode-se assegurar que

esta é, de uma maneira geral, complexa, pois a patologia apresenta vários níveis de

má-formação, passando por quadros que apresentam menor gravidade àqueles que

representam a total incompatibilidade com a vida extra-uterina.

Note-se que:

O processo de formação e fechamento do tubo neural é suscetível a diversos erros, podendo originar malformações ao sistema nervoso consideradas letais, severas ou menores. As malformações serão consideradas letais quando incompatíveis com a vida; severas, quando causarem morte precoce, anormalidades ou paradas sérias no desenvolvimento físico ou mental; menores, quando geralmente associadas a uma variável quantidade de deformidades ou "doenças", mas permitindo quase sempre determinado tempo de vida. O grau máximo de severidade da formação de tubo neural é aquele em que há total falha da neurulação primária e que origina a craniorraquisquise total. O feto que é acometido desta malformação não sobrevive senão poucas horas de vida, pois todo o sistema nervoso central fica exposto e malformado.32

Nestas condições, é imprescindível estabelecer as distinções entre o que

pode ser considerado um feto malformado e um feto inviável.

Deste modo:

As malformações fetais, dependendo da gravidade, não provocam a morte do feto ao nascer. Ainda que estejam presentes anomalias congênitas, é possível que o feto mal formado sobreviva, porém com certas limitações no que diz respeito a sua qualidade de vida. Em alguns casos, existem tratamentos clínicos ou cirúrgicos que podem mitigar ou até curar os efeitos dessa malformação. A fenda lábio-palatina é um exemplo de anomalia fetal compatível com a vida. Porém, esta malformação pode ser tão severa, ou estar associada a outras anomalias, que torna o feto inviável, ou seja, o prognóstico morte é certo e irreversível. São casos, por exemplo, em que um ou vários órgãos vitais (tais como o cérebro, bexiga ou rins) não se

32 LIMA, Ricardo O. de Oliveira. O aborto de fetos anencéfalos. 07 fev. 2007. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/1101/2/O-Aborto-De-Fetos-Anencefalos/pagina2.html>. Acesso em: 10 abr. 2011.

12

formaram, ou da Síndrome de Patau, em que a fenda lábio-palatina está combinada a defeitos de formação do cérebro.33

Fica claro, pois, que nem toda a anomalia fetal implica necessariamente em

morte do feto, pois a criança mal formada pode manter-se viva, sob determinados

cuidados. Aos fetos considerados inviáveis, porém, a situação é diversa, uma vez

que a gravidade da má formação mostra-se incompatível com a vida, fazendo a

criança nascer e falecer em seguida.

Ainda assim, existem alguns casos de anencefalia (considerados menos

severos) que possibilitam ao anencéfalo condições primárias sensoriais e de

consciência, em razão da neuroplasticidade do tronco cerebral.34

A propósito disto, preconizou o autor A. Shewmon35:

Não se trata, obviamente, da possibilidade por parte do tronco de suprir as funções do córtex faltante, mas de admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencéfalo, pelo menos, nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento que o anencéfalo enquanto privado dos hemisférios cerebrais não está em condições, por definição, de ter consciência e provar sofrimentos.

Outro aspecto que merece relevância é aquele relacionado aos riscos físicos

e efetivos que podem acometer as gestantes, mães de fetos anencéfalos.

Thomas Gollop36, médico obstetra, faz a seguinte contribuição quanto à

questão:

Uma gestação de feto com anencefalia acarreta riscos de morte à mulher grávida. (...) Em primeiro lugar, há pelo menos 50% de possibilidade de polidrâmio, ou seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no pós-parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso de líquido, a possibilidade de deslocamento prematuro de placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade. Além disso, os fetos anencéfalos, por não terem o pólo cefálico, podem iniciar a expulsão antes da dilatação completa do colo do útero e ter o que nos chamamos de distorcia do ombro, porque nesses fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um acidente obstétrico na expulsão no parto do ombro, o que pode acarretar dificuldades muito grandes no ponto de vista obstétrico. Assim sendo, há inúmeras

33 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo. Descriminalização e avanços tecnológicos da medicina contemporânea. São Paulo: Juruá, 2002. p. 25. 34 LIMA, Ricardo O. de Oliveira. O aborto de fetos anencéfalos. 07 fev. 2007. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/1101/2/O-Aborto-De-Fetos-Anencefalos/pagina2.html>. Acesso em: 10 abr. 2011. 35 Ibidem. 36 Thomas Gollop é médico obstetra, especialista em Medicina Fetal e professor da Universidade de São Paulo (USP). [FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 115-116.]

13

complicações em uma gestação cujo resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de sobrevida. A distorcia de ombro acontece em 5% dos casos, o excesso de líquido em 50% dos casos e a atonia do útero pode ocorrer em 10% a 15% dos casos.

Paradoxalmente, escreveu a Dra. Maria José Miranda Pereira37, Promotora de

Justiça do Distrito Federal:

A má formação fetal não acarreta qualquer risco à gestante além daqueles inerentes a outras gestações em que a criança é sadia, conforme resposta oficial do Conselho Federal de Medicina a um questionamento do Ministério Público. Confirma a Associação Nacional dos Ginecologistas / Obstetras que o defeito físico do feto NÃO implica por si só risco para a gestante.

Neste tocante, embora a posição do Conselho Federal de Medicina permita

concluir que não há uma potencialidade de dano à saúde e à vida da gestante

(deixando de lado, por ora, o aspecto emocional) em razão da anencefalia, é

inegável que a gestação de um feto portador deste defeito congênito não é nada

tranqüila para a futura mãe.

Há divergência, portanto, sobre o fato da gestação de feto anencéfalo ser

prejudicial ou não à mulher. A maior vertente, porém, se posiciona no sentido de que

a manutenção da gestação pode acarretar maiores riscos, se comparada a uma

gestação de feto saudável.

A orientação da FEBRASGO38 nestes casos é: tão logo seja diagnosticada a

ocorrência de anencefalia, se a decisão da mulher for favorável à interrupção da

gravidez, deverá ser dada esta possibilidade à gestante, já que é notável a

expedição de autorizações judiciais neste sentido, observado o caso concreto.

A propósito disto:

Quando a decisão da mulher ou do casal for favorável à interrupção da gestação, deverão ser elaborados documentos para obtenção de autorização judicial para que o procedimento seja legalmente realizado. Os documentos necessários são: relatório médico solicitando autorização judicial, explicando no relatório que a doença é letal em 100% dos casos; exames de ultra-som morfológico com avaliação de idade gestacional e descrição da patologia; avaliação psicológica e assinatura do casal. Sendo concedida a autorização judicial, a gestante deverá retornar ao hospital a fim de ser internada e o parto induzido com medicamentos. Realizado o procedimento cirúrgico, o médico obstetra emitirá o atestado de óbito. Conduta especial deverá ser oferecida à puerpéria, incluindo

37 PEREIRA, Maria José Miranda. Aborto, Revista Jurídica CONSULEX, ano VIII, n° 176, 15 maio 2004, p. 37. 38 ANDALAFT NETO, Jorge. Anencefalia: Posição da FEBRASGO. 06 fev. 2007. Disponível em: <http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm>Acesso em: 25 mar. 2011.

14

tratamento psicológico que vise evitar o quadro depressivo que, na maioria das vezes, acomete o estado puerperal do parto de anencéfalo.39

A formalização do pedido para a autorização do aborto nestes casos se faz

necessária em razão da proibição da prática, pois a norma penal pátria permite o

aborto somente em duas situações, já elencadas anteriormente.

Logo, o aborto em decorrência da anencefalia não está previsto na legislação,

tampouco outras situações de malformação do feto encontram respaldo jurídico no

ordenamento, obrigando as famílias que se encontram nestas situações a

recorrerem às vias judiciais.

Todavia, a problemática é complexa e abarca diversas opiniões e

posicionamentos dos mais variados setores da sociedade, principalmente no

universo jurídico.

2. O ABORTO ANENCÉFALO À LUZ DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Conforme anteriormente mencionado, sabe-se que o debate jurídico acerca

da tipificação do aborto anencefálico como crime contra a vida gera grandes

discussões na seara do direito penal e constitucional. Há evidentes contradições

relativas ao assunto, principalmente no que tange à permissão expressa do Código

Penal em relação ao abortamento em casos de estupro e se não houver outro meio

de salvar a vida da gestante. Não se admite interpretação extensiva da norma,

tampouco qualquer tipo de analogia, devendo prevalecer nesses casos o princípio

da reserva legal.

Por um lado, se autorizada a interrupção da gravidez, o princípio do direito à

vida e ao nascimento do feto estariam sendo violados. Contudo, caso seja mantida a

gestação, o princípio da dignidade da pessoa humana, neste caso representada

pela gestante, seria infringido, bem como as garantias constitucionais da proteção à

saúde física, psíquica e a autonomia da vontade.

Note-se que aqui ocorre uma colisão entre os direitos fundamentais.

Diante deste quadro, cabe questionar se o aborto anencefálico deve continuar

a ser tipificado como crime contra a vida pelo Código Penal vigente. Afinal, na ação

real, do dia-a-dia, esta prática é socialmente e juridicamente considerada legal ou

ilegal? Quais os princípios constitucionais que merecem mais valia? O direito à vida

39 ANDALAFT NETO, Jorge. Anencefalia: Posição da FEBRASGO. 06 fev. 2007. Disponível em: <http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm>Acesso em: 25 mar. 2011.

15

e a dignidade da pessoa humana são do feto ou da gestante? A problemática deve ser

analisada em todos os seus detalhes, à luz das normas e princípios constitucionais vigentes

no ordenamento jurídico pátrio.

2.1 O ABORTO ANENCÉFALO E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

2.1.1 O Direito à Vida

O legislador constituinte atribuiu à vida humana uma posição de elevada

superioridade dentre os bens jurídicos que o sistema brasileiro protege.40

Indubitavelmente todas as argumentações contrárias ao aborto e também à

antecipação terapêutica do parto estão fundamentadas no direito à vida do feto.41

Desta maneira, o cerne da problemática está em averiguar se a interrupção

da gravidez de feto anencefálico afronta o artigo 5º, caput, da Constituição Federal,

que garante a todos a inviolabilidade do direito à vida42, in verbis:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Nesse diapasão, partindo da premissa de que o feto anencéfalo é

considerado um ser humano, pois existe desde o momento da concepção e tem

seus direitos resguardados pela Constituição Federal e, sendo o direito à vida

consagrado como direito supremo e fundamental pelo ordenamento jurídico

brasileiro, é possível afirmar que somente a Carta Magna pode prever a pena de

morte.

Logo, se a tipificação penal abrange somente aquelas hipóteses elencadas na

norma do texto legal para os casos de interrupção da gestação, não haveria motivo

para incluir o aborto terapêutico nas causas excludentes de ilicitude, restando finda

a questão, uma vez que sendo a Constituição a lei máxima do país, nenhum dos

Poderes da República poderá afrontá-la.

Entretanto, sabe-se que a questão não é tão simples assim, eis que são

diversas as particularidades que circundam essa problemática. Sob a ótica jurídica, 40 SILVA, José Carlos Sousa. Direito à Vida. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. p. 26. 41 FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 133. 42 FERNANDES, op. cit., p. 133.

16

a questão é identificar, dentre outros aspectos, se a viabilidade da vida extra-uterina

do feto anencéfalo faz jus à proteção constitucional e, em caso positivo, se esta

proteção deverá ocorrer na mesma medida e grau de igualdade dos outros seres

humanos, se sobrepondo, inclusive, aos direitos da gestante.43

Note-se que:

Através de uma primeira argumentação, conclui-se que inexiste afronta ao direito à vida, por se tratar de um ser “biologicamente vivo (porque feito de células e tecidos vivos), mas juridicamente morto”, já que o conceito de morte adotado pela legislação brasileira – respaldado na literatura médica e no parecer do CFM sobre o assunto – não se restringe à cessação dos movimentos cardio-respiratórios, incluindo a ausência de atividade cerebral. Assim, diante da gravíssima má formação fetal incompatível com a vida extra-uterina, estar-se-á diante de um ser considerado morto desde a constatação de sua anormalidade. Por óbvio, não pode então receber a garantia constitucional do direito à vida, pois, para tanto, é indispensável que se esteja vivo. Sob esse prisma, não haverá, igualmente, que se falar em crime de aborto, já que o artigo 124 do CP tutela o direito à vida do nascituro. Vale registrar também que, para se configurar o crime de aborto, é necessário sobrevir, da ação de interromper a gravidez, a morte do feto; isto é, deve haver uma inequívoca relação ato/conseqüência, o que não se verifica em se tratando de anencéfalo, pois a morte é certa e inevitável.44

Por outro lado, embora evidentemente constatada a “morte cerebral” destes

indivíduos, portadores desta anomalia irreversível, é inquestionável o fato de que a

morte encefálica não significa que os demais tecidos e órgãos estejam mortos. A

criança anencefálica apresenta atividade no tronco cerebral e sobrevive por algum

tempo, logo estes indivíduos não estão mortos. Eles respiram, choram, se

movimentam e se alimentam. Dentro destes precedentes, é possível fazer o

seguinte questionamento:

Para que interromper gravidez de anencéfalo ou de qualquer feto portador de moléstia grave e incurável? Ninguém é tão desprezível, inútil ou insignificante que mereça ter sua morte decretada, por meio de interrupção da gestação, uma vez que a natureza é sábia e se encarregará de seu destino se não tiver condições de vida autônoma extra-uterina. Se nascer, surgirá outra questão: a possibilidade de os pais doarem seus órgãos e tecidos para transplantes em crianças.45

Sabe-se que existem relatos médicos, embora sejam considerados

raríssimos, de casos em que anencéfalos sobreviveram por um tempo relativamente

43 FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 133-134. 44 Ibidem. 45 DINIZ, Maria Helena. O Estado do Biodireito. 5ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 51.

17

longo. Em um dos registros, reconhecido pelo governo italiano, um anencéfalo

sobreviveu 14 (quatorze) meses sem recorrer à respiração artificial.

Sob esse prisma, é inquestionável o fato de que o bebê anencéfalo nascido

com vida possui direitos irrenunciáveis relativos a sua personalidade jurídica, como

por exemplo, direito ao nome, à imagem, à maternidade, à paternidade, aos

alimentos, bem como aos direitos de herança e sucessão. Esses direitos lhe são

negados quando ocorre a interrupção da gravidez.

Não obstante o mencionado, pode-se afirmar, ainda:

Nem se invoque, no particular, em prol da conclusão contrária à vida desse ser humano doente, que a ciência está apontar-lhe existência extra uterina breve, se nascer com vida. O tempo mais ou menos longo de previsão de vida humana não autoriza, em qualquer caso, antecipar a morte. A eutanásia é, em nosso sistema, crime de homicídio, vale dizer, delito contra a vida. A interrupção da gravidez, com a morte do feto, constitui aborto (CP, arts. 124 a 126), crime também contra a vida, não se enquadrando o aborto do anencefálico no art. 128, I, do Código Penal. Não há sequer regra legal a excluir a aplicação de pena a quem provocar essa interrupção da gravidez, em qualquer de seus estágios, com a conseqüente morte do feto, pouco importando que, para isso, se use, de forma imprópria, o nome de "antecipação de parto", pois o efeito é da mesma intensidade, ou seja, a morte provocada do ser humano, que está vivo no ventre materno e, aí, se vem desenvolvendo.46

Conclui-se, com base nos argumentos acima explicitados, que a má-

formação, seja ela física ou mental, não pode ser utilizada como justificativa para se

sobrepor ao direito fundamental de que todos possuem gozo à vida. A Declaração

Universal dos Direitos do Homem reconheceu, em seus artigos 1º e 2º, que todos os

homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e que todos têm capacidade

para gozar os direitos e as liberdades sem distinção de raça, cor, sexo, entre outros.

Desta maneira, sendo um ser humano vivo e em desenvolvimento no útero

materno, o feto anencéfalo é revestido de proteção legal e dotado de dignidade e,

embora acometido de uma anomalia irreversível, a patologia não justifica seu

desamparo à luz do ordenamento jurídico.

Neste sentido, apesar do direito à vida do nascituro se dar após o nascimento

com vida deste, o feto anencéfalo possui um potencial direito à vida, que é protegido

pelo Estado. Realizado esse potencial através do nascimento com vida, o

anencéfalo passa a ser o titular efetivo do direito à vida.

46 SILVEIRA, José Néri da. Néri da Silveira é contra o aborto de anencéfalos. Jus Navigandi, Teresina, nº 413, 24 ago. 2004. Disponível em:<HTTP://jus.uol.com.br/revista/texto/16602> Acesso em: 04 mar. 2011.

18

2.1.2 A Dignidade da Pessoa Humana

De outro lado, a Constituição Federal considerou a dignidade da pessoa

humana um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF\88),

in verbis:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a dignidade da pessoa humana.

A principal conseqüência deste princípio é que, em um Estado Democrático

de Direito, as políticas e decisões devem ser laicas, visando sempre a resguardar os

direitos e garantias fundamentais.47

Igualmente, o princípio da dignidade da pessoa humana abarca, de forma

correlata, os princípios da autonomia da vontade e a liberdade de crença.

O conteúdo da dignidade da pessoa humana, por sua vez, implica em:

Um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.48

Nesse tocante, a afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana

relaciona-se ao fato de que impor a gestante o desenvolvimento de uma gravidez de

feto anencéfalo causaria muito sofrimento, dor e angústia, tanto a própria mãe

quanto à família. Parte-se da premissa de que o bebê não sobreviverá por muito

tempo fora do útero. Parte da doutrina afirma que esta situação é uma ameaça à

integridade física e psíquica da gestante.

O jurista Luís Roberto Barroso49 equipara o sofrimento psíquico à própria

tortura psicológica: “A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança

ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo,

podem ser comparadas à tortura psicológica”.

Neste sentido:

47 TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo. Descriminalização e avanços tecnológicos da medicina contemporânea. São Paulo: Juruá, 2002. p. 88. 48 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 32. 49 BARROSO, Luis Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 279.

19

Receber a notícia de que o feto gerado em seu ventre sofre de má-formação cerebral irreversível, que não tem nenhuma chance de sobrevivência, sem dúvida é um momento de incomensurável sofrimento para a mulher. O caso da gravidez de feto anencefálico guarda peculiaridades dramáticas, inexistentes no caso de uma gestação de feto viável, pois pode representar a dor de receber a triste notícia sobre a anomalia fetal, numa fase em que a gestante poderia estar fazendo planos sobre o nascimento do feto que só então saberá: não vai viver. Difícil também é imaginar o instante em que essa mulher, após ter esperado por nove meses um bebê, tiver que voltar para casa sem seu filho. Mais triste ainda será o fato de ter que lhe dar um nome e sobrenome, apenas para constar do túmulo e do registro funerário de um ser que, paradoxalmente, chegou apenas a existir por alguns breves instantes após o parto.50

Paradoxalmente, Maria Helena Diniz traz a seguinte discussão ao assunto:

(...) Seria possível ainda alegar que o prosseguimento da gravidez de feto anencéfalo poderia causar dano à higidez psíquica da gestante, situação que tornaria o aborto necessário? Parece-nos que não, uma vez que a vida da mãe não está em jogo, embora, em certos casos, sua saúde física ou mental possa abalar-se. Assim sendo, seria legítimo sacrificar alguém, mediante antecipação ou interrupção terapêutica do parto ou da gestação com o escopo de beneficiar outrem, camuflando um aborto de feto portador de anencefalia ou de alguma malformação genética (interrupção seletiva da gestação).51 (...)

Quanto à referida questão, outro aspecto relevante desponta no ordenamento

jurídico: quando o Estado autoriza o aborto em gestação oriunda de estupro, por

exemplo, coloca o princípio da dignidade da pessoa humana acima do direito à vida.

O feto é sacrificado para garantir os direitos constitucionais, em especial a honra da

mãe. A liberdade e a autonomia da vontade da gestante norteiam esta decisão, que

sob todos os fundamentos, é revestida de legalidade e legitimidade.

Por esta premissa, conclui-se que nem sempre o direito à vida está acima dos

demais princípios constitucionais.

É importante frisar, ainda, que parte da doutrina e jurisprudência tem

classificado o aborto de anencéfalo como caso de inexigibilidade de conduta

diversa, que exclui do agente toda a culpa por um ato ilícito praticado, em razão da

impossibilidade de agir de modo diferente naquela ocasião.

Com efeito, é este o entendimento de Cezar Roberto Bitencourt52:

Concluindo, não se pode falar em reprovabilidade social nem em censurabilidade da conduta de quem interrompe uma gravidez ante a

50 FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. 1ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 137-138. 51 DINIZ, Maria Helena. O Estado do Biodireito. 5ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 51. 52 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. 8ª ed., São Paulo: Editora Saraiva. p. 154.

20

inviabilidade de um feto anencéfalo, que a ciência médica assegura, com cem por cento de certeza, a absoluta impossibilidade de vida extra-uterina. É desumano exigir-se de uma gestante que suporte a gravidez até o fim, com todas as conseqüências e riscos, para que, ao invés de comemorar o nascimento de um filho, pranteie o enterro de um feto disforme, acrescido do dissabor de ser obrigada a registrar o nascimento de um natimorto.

Alberto Franco53 também defende a exclusão da ilicitude desta conduta:

A vida do nasciturus é um bem jurídico protegido pelo art. 5º da Magna Carta, mas isto não significa que tal bem jurídico não possa entrar em conflito com “direitos relativos a valores constitucionais, como a vida e a dignidade da mulher”. Estes conflitos não podem ser considerados a partir da perspectiva dos direitos da mulher ou da proteção da vida do nasciturus. Na medida em que nenhum desses bens pode afirmar-se com caráter absoluto, impõe-se a sua ponderação e harmonização. Bem por isso, em situações, singulares ou excepcionais, rigorosamente delimitadas, mostra-se perfeitamente adequado do ponto de vista do respeito constitucional do direito à vida, a não-punibilidade do aborto com a exclusão da proteção penal do embrião ou feto. (grifo do autor)

Pelo exposto, pode-se concluir que a argumentação jurídica em prol do aborto

anencefálico parte da premissa de que o anencéfalo não é (e jamais será) pessoa.

Por esta razão, a dignidade da gestante se sobrepõe à dignidade do feto,

havendo uma individualização do bem-estar da mãe em detrimento da vida em

potencial do feto anencéfalo.

Todavia, deve-se reconhecer o efetivo sofrimento que acomete as gestantes

que se encontram nesta situação.

Note-se que:

É inquestionável que a saúde psíquica da mulher passa por graves transtornos após o diagnóstico da anencefalia, que contagia a si própria e a seu núcleo familiar. A gravidez é uma fase de transição na vida de uma mulher, em que há grandes transformações físicas e vulnerabilidade emocional. A gestante portadora de um feto anencéfalo, pode experimentar sentimentos de choque, negação, tristeza, raiva e ansiedade. Assim, uma equipe multidisciplinar evidencia a importância dos aspectos emocionais da família e faz com que toda a equipe seja cuidadosa em relação a esses aspectos, respeitando o difícil momento que eles enfrentam.54

53 FRANCO, Alberto da Silva. Estudos Jurídicos em homenagem a Manoel Pedro Pimentel. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 95 APUD TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: Descriminalização e avanços tecnológicos da medicina contemporânea: São Paulo: Juruá, 2002. p. 89/90. 54

MARQUES, José Manoel de Souza. Anencefalia: interrupção da gravidez é uma liberdade de escolha da mulher? Revista de Direito Sanitário. Vol. 11, nº 1. São Paulo, jun. 2010. Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S151641792010000200010&script=sci_arttext> Acesso em 21 abr. 2011.

21

Igualmente, o ato de decidir sobre a interrupção da gestação é, por si só

delicado. Torna-se, porém, traumatizante, quando a escolha da mulher sofre a

intervenção do Estado repressor.55

Entretanto, embora a autonomia seja um princípio fundamental garantido pela

legislação, esta deve ser exercida dentro de certos limites. A supremacia da vontade

individual não poderia, em tese, invadir a esfera jurídica de terceiros. O embrião ou

feto representa um ser individualizado com uma carga genética própria, sendo

inexato garantir que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe.

2.1.3 O Direito à Saúde

Outro aspecto relevante a ser levado em consideração é a questão do

direito à saúde. Esse direito englobaria a integridade física e psíquica da gestante e

sua violação representaria uma afronta ao princípio da dignidade humana. A

Organização Mundial da Saúde classifica a saúde como “o completo bem-estar

físico, mental e social”, assim sendo, negar à gestante o direito de praticar a

interrupção da gravidez nestas ocasiões seria o mesmo que negar-lhe o direito à

saúde, um bem jurídico constitucionalmente tutelado.

Conforme anteriormente exposto, sabe-se que existem divergências quanto

aos efetivos riscos que acometem as gestantes, mães de fetos anencéfalos, todavia,

a maior parte dos doutrinadores, médicos e juristas acreditam na existência de

maiores complicações à saúde, decorrente desta situação, se comparada a uma

gestação de feto saudável.

Neste sentido, é a afirmação de Maíra Costa Fernandes56:

A vida da gestante também corre sérios riscos, já que, não raras vezes, o feto morre ainda dentro do corpo da mulher caso em que o atendimento médico deve ser de maior urgência. Ademais, elevados são os riscos de hemorragia deslocamento prematuro de placenta, entre outras complicações. Uma vez diagnosticada a referida anomalia, não há nada que se possa fazer para reverter o quadro fetal. Nem todo o avanço da Medicina e da Ciência, nem mesmo o enorme sacrifício suportado pela gestante poderão alternar o dramático fim destinado ao anencéfalo.

55 FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.145. 56 Ibidem, p. 139.

22

Além das complicações anteriormente já elencadas, tais como as chances de

contrair doenças hipertensivas, maiores riscos de ocorrência de eclâmpsia e

complicações decorrentes do parto, é de se ressaltar que o aspecto psíquico é um

dos maiores causadores de transtornos às gestantes.

Corroborando a tese, colaciona-se relato de uma gestante cujo filho é

portador de anencefalia:

Paciente com 22 anos, solteira, auxiliar de enfermagem, com 20 semanas de gestação e diagnóstico de um feto anencéfalo. Recebeu acompanhamento psicológico, desde o referido diagnóstico, e tem revelado ser uma pessoa bastante madura e equilibrada. Tem verbalizado que está “difícil de tolerar” as 20 semanas que restam, pois a barriga está crescendo e os movimentos do feto irão aumentar. Diz ser difícil tolerar a idéia de que irá apegar-se a este bebê e que quando nascer irá morrer quase que imediatamente. Diz que, se soubesse que ele teria chances, mesmo que malformado, não se importaria em levar a gravidez adiante. Porém, a idéia de que está fazendo “um esforço psíquico em vão torna tudo mais difícil”. Diz que não irá “enlouquecer” se chegar aos noves meses, mas que cada dia da gestação “é uma eternidade, é um martírio”.57

Com efeito, à luz dos direitos humanos, mostra-se necessário garantir a essas

mulheres condições dignas e seguras para a resolução da gestação. O sofrimento

psicológico ocasionado pela ansiedade com relação ao fim da gravidez, em uma

situação onde não haverá as esperadas recompensas da maternidade, é enorme. É

importante frisar, ainda, que o término da gravidez representa um período de risco

particular, associado a situações de perigo para a vida materna.58

Com propriedade, Maíra Costa Fernandes59 acredita que o Estado deveria

autorizar a antecipação do parto nestas ocasiões. A autora afirma, ainda, que o ente

estatal deveria colocar este tipo de procedimento a disposição da rede pública

hospitalar, uma vez que a ocorrência de gravidez de feto anencéfalo atinge muitas

57 GIL, Maria Estelita. Medicina Fetal: questionamentos bioéticos do psicólogo frente às questões do diagnóstico de malformação fetal. Palestra proferida na VIII Jornada do ESIPP: os sonhos na psicoterapia psicanalista. Porto Alegre: julho de 1999 apud TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: Descriminalização e avanços tecnológicos da medicina contemporânea: São Paulo: Juruá, 2002, p. 63-64. 58 MARQUES, José Manoel de Souuza. Anencefalia: interrupção da gravidez é uma liberdade de escolha da milher? Revista de Direito Sanitário. Vol. 11, nº 1. São Paulo. jun. 2010. Disponível em <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S151641792010000200010&script=sci_arttext> Acesso em 21 abr. 2011. 59

FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 139-140.

23

mulheres pobres, possivelmente em virtude da carência nutricional que as

acomete.60

Neste ponto, outro problema decorrente desta situação reside no fato de

algumas gestantes optarem pelo aborto clandestino, de modo a evitar o acesso ao

Judiciário para pleitear a interrupção da gestação pelo caminho legal, já que recorrer

às vias judiciais representaria mais um processo doloroso. Entre os principais

problemas decorrentes deste tipo de abortamento, destacam-se a perfuração do

útero, hemorragia e infecção, que podem acarretar diferentes graus de morbidade,

seqüelas permanentes e até mesmo a morte.61

Desta forma, cumpre ver o tema em debate como um problema de saúde

pública, a ser discutido pela sociedade e pelo Poder Público em conjunto, na busca

de uma medida eficaz que não entre em conflito com os princípios constitucionais

ora postos em questão.

3. ASPECTOS SÓCIO-JURÍDICOS DO ABORTO ANENCÉFALO

3.1. ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADPF

nº. 54

A ação de Descumprimento de Preceito Fundamental é um instituto jurídico

utilizado quando há o desrespeito de algum preceito fundamental garantido

constitucionalmente, como, por exemplo, violação aos princípios da liberdade e

dignidade, estando prevista no artigo 102, § 1º, da Constituição Federal62.

Em junho de 2004, foi proposta uma ação de Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental (ADPF/54), em nome da Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Saúde (CNTS), perante o Supremo Tribunal Federal, requerendo

a autorização, em todo o território nacional, da prática do aborto em casos de fetos

portadores de anencefalia, assegurando aos médicos, uma vez atestada a anomalia

60 FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. 1ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 139-140. 61 Ibidem. 62 ABREU FILHO, Nylson Paim de (org.). Vade Mecum. 5 ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.

24

por um profissional habilitado, a possibilidade de realizar a interrupção da gestação

sem a necessidade de prévio alvará judicial.63

A entidade coletiva pretende, através da ação constitucional, uma nova

interpretação acerca da legislação relativa ao aborto anencéfalo, com a finalidade de

descaracterizar a ilicitude penal da prática, e conseqüentemente atribuir novo

entendimento, à luz da Constituição Federal, aos artigos 124, 126 (caput) e 128,

incisos I e II, do Código Penal64.

A confederação entende que a interpretação dada pelos órgãos

jurisdicionais, atualmente, aos referidos dispositivos legais, ofendem os princípios

constitucionais da dignidade da pessoa humana, a legalidade, a autonomia da

vontade, a liberdade e o direito à saúde.

A Procuradoria Geral da República suscitou, preliminarmente, a inadequação

da via eleita, em razão da impossibilidade de atribuir nova interpretação aos

dispositivos legais invocados, eis que as hipóteses arroladas no artigo 128 do

Código Penal são numerus clausus de exclusão de ilicitude.

Quanto ao mérito, alegou que “o direito à vida é posto como marco primeiro,

no espaço dos direitos fundamentais”, razão pela qual não poderá ser sacrificado em

prol da “dor temporal da gestante”.65

Em princípio, a liminar da ADPF/54 foi deferida pelo ministro Marco Aurélio de

Mello em favor da CNTS, tento em vista tratar-se da admissibilidade da argüição,

para reconhecer “o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação

terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir do laudo médico atestando a

deformidade e a anomalia que atingiu o feto” e para determinar “o sobrestamento

dos processos e decisões não transitadas em julgado” nos casos em que a gestante

estivesse respondendo processo penal pela prática de aborto, tipificada pelo artigo

124 do Código Penal Brasileiro.66

A medida liminar causou grande polêmica e vigorou por pouco tempo, sendo

revogada, em parte, em outubro de 2004, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal,

63 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoinicial.asp?base=ADPF&s1=anencefalia&processo=54> Acesso em 20 abr. 2011. 64 ABREU FILHO, Nylson Paim de (org.). Vade Mecum. 5 ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010. 65 LOPES, Silvia Regina Pontes. Vida Humana e Esfera Pública: contribuições de Hannah Arendt e de Jürgen Habermas para a questão da anencefalia fetal no Brasil. Belo Horizonte: Argumentum, 2008, p. 91. 66 ABREU FILHO, Nylson Paim de (org.). Vade Mecum. 5 ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.

25

mantendo-se apenas a decisão atinente ao sobrestamento das ações judiciais,

suspendendo-se o direito à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.67

Entendeu-se que não havia justificativa para a manutenção da liminar, em

razão da discussão pendente acerca da admissibilidade da referida ação.68

Alguns meses depois, em 27.04.2005, foi aprovada a admissibilidade da

ADPF/54, por sete votos a quatro, retornando os autos ao Ministro relator para a

instrução do processo.69

Em seguida, algumas entidades requereram o ingresso como amici curiae na

referida ação, dentre elas, destacam-se a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB), Católicas pelo Direito de Decidir, Associação de Desenvolvimento da

Família (ADEF), Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos.70

Considerando-se a relevância da matéria, bem como a necessidade de

conferir à sociedade ampla participação na análise da questão, o Ministro Marco

Aurélio determinou a oitiva das entidades mencionadas, bem como da Federação

Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, da Sociedade Brasileira de Genética Clínica,

da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, do Conselho Federal de Medicina, da

Rede Nacional Feminista da Saúde, da Igreja Universal, do Instituto de Biotécnica,

entre outras entidades.71

Até a presente data, não foi realizada a audiência pública, estando o processo

concluso com o relator e pendente de uma decisão final.

É importante ressaltar, ainda, outra polêmica suscitada em torno da ADPF/54,

que se refere ao desrespeito à tripartição dos poderes, uma vez que o Supremo

Tribunal Federal não poderia agir como legislador, eis que invadiria a competência

própria do Poder Legislativo.

67 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoinicial.asp?base=ADPF&s1=anencefalia&processo=54> Acesso em 20 abr. 2011. 68 LOPES, Silvia Regina Pontes. Vida Humana e Esfera Pública: contribuições de Hannah Arendt e de Jürgen Habermas para a questão da anencefalia fetal no Brasil. Belo Horizonte: Editora Argumentum, 2008. p .159. 69 FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: Uma Análise Constitucional. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 126-127. 70 LOPES, Silvia Regina Pontes. Vida Humana e Esfera Pública: contribuições de Hannah Arendt e de Jürgen Habermas para a questão da anencefalia fetal no Brasil. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. p. 160. 71 Ibidem.

26

Neste caso, a sua competência estaria restrita a própria esfera judicial, no

que tange à análise dos casos concretos.

3.2 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL E O POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS

Conforme anteriormente mencionado, estimativas apontam que já foram

proferidas mais de três mil autorizações permitindo a interrupção da gestação de

fetos portadores de anomalias irreversíveis e incompatíveis com a vida extra-

uterina.72

A jurisprudência relativa à problemática é vasta e já ultrapassa os vinte anos

de existência.

Dos pedidos judiciais interpostos para interrupção da gestação em caso de

anencefalia, raros são os casos em que as autorizações não são concedidas.

No que tange à análise jurisprudencial em si, é de se ressaltar que a maioria

das decisões proferidas nos tribunais utilizam, após justificar a lacuna legislativa

referente à questão, a interpretação extensiva dos dispositivos penais, afastando a

ilicitude do abortamento em casos de anomalias fetais incompatíveis com a vida.

3.2.1 Algumas decisões judiciais emitidas pelos Tribunais brasileiros:

Para melhor elucidação do entendimento acerca da questão no Tribunal de

Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, colacionam-se algumas ementas:

Ementa: APELAÇÃO. PEDIDO DE INTERRUPÇÃO DE GESTAÇÃO. FETO ANENCÉFALO E COM MÚLTIPLAS MAL-FORMAÇÕES CONGÊNITAS. INVIABILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA COMPROVADA POR EXAMES MÉDICOS. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 128, I, DO CÓDIGO PENAL, POR ANALOGIA IN BONAM PARTEM. Comprovadas por variados exames médicos a anencefalia e as múltiplas mal-formações congênitas do feto, de modo a tornar certa a inviabilidade de vida extra-uterina do nascituro, é possível a interrupção da gestação com base no Princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e, por analogia in bonam partem, no artigo 128, I, do Código Penal. No caso dos autos, exames médicos demonstram, inequivocamente, estar o feto com seus órgãos vitais (encéfalo, coração, estômago, fígado e alças intestinais) em contato com o líquido amniótico, para fora da caixa torácica. O aborto eugênico, embora não autorizado expressamente pelo Código Penal, pode ser judicialmente permitido nas hipóteses em que comprovada a inviabilidade da vida extra-

72 FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.). Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 111.

27

uterina, independente de risco de morte da gestante, pois também a sua saúde psíquica é tutelada pelo ordenamento jurídico. A imposição de uma gestação comprovadamente inviável constitui tratamento desumano e cruel à gestante. 3. Parecer favorável do Ministério Público, nas duas instâncias. RECURSO PROVIDO. (Grifo nosso)73

O apelo acima foi julgado pelo Desembargador Nereu José Giacomolli através

de decisão monocrática, em razão da urgência do pleito, uma vez que a apelante

encontrava-se em estágio avançado da gestação (29 semanas).

O eminente relator, em sua decisão, deu provimento ao recurso interposto,

autorizando a interrupção da gestação, com base no princípio constitucional da

Dignidade da Pessoa Humana e no artigo 128, I, do Código Penal, por analogia in

bonam partem.

Igualmente, outras decisões favoráveis foram proferidas pelo Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul:

Ementa: APELAÇÃO CRIME. ABORTO EUGENÉSICO. ANENCEFALIA. Inviabilizada a vida do feto, prenunciada sua morte por malformação anencefalia comprovada, hão de volver-se, os cuidados, àquela que o gera, então permitindo-se a interrupção da gravidez, que nestes casos a faz exposta a risco. Inteligência do artigo 128, do Código Penal. PROVIDO O RECURSO. (Grifo nosso)74

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro coaduna do mesmo

entendimento quanto à questão, conforme a ementa reproduzida abaixo:

Processo No: 0043030-08.2008.8.19.0000 (2008.059.07542) ANENCEFALIA .INTERRUPCAO DA GRAVIDEZ .IMPOSSIBILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA. ORDEM CONCEDIDA HABEAS CORPUS. Gestação de feto anencéfalo. Pleito de autorização para interrupção da gravidez. Pedido anteriormente indeferido em sede de medida cautelar por falta de amparo legal. Há comprovação nos autos de que o feto não traz qualquer possibilidade de vida extra-uterina. Considerando-se que o Direito tutela é a vida intra e extra-uterina, nunca a morte nem a mera possibilidade de vida extra-uterina imediatamente seguida de morte e, desde que cientificamente comprovado que o feto não virá a ter vida extra-uterina ou, ainda, que

73 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 70016858235. Terceira Câmara Criminal do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 30/12/2010. Disponivel em <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?q=70040663163&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields=tribunal%3ATribunal%2520de%2520Justi%25C3%25A7a%2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C3%25A1tica%29.Secao%3Acrime&requiredfields=&as_q=> Acesso em 10 maio 2011. 74 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 70016858235. Terceira Câmara Criminal do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, Julgado em 28/12/2006. Disponível em <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?q=70016858235&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields=tribunal%3ATribunal%2520de%2520Justi%25C3%25A7a%2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C3%25A1tica%29.Secao%3Acrime&requiredfields=&as_q=> Acesso em 10 maio 2011.

28

tal manutenção de vida não ocorrerá, a tutela jurídica não tem mais como ser exercida por falta de vida a preservar e assegurar. Concessão da ordem.75 (Grifo nosso)

A análise das ementas elencadas permite concluir que muitos magistrados

tem dado provimento aos pedidos de interrupção da gestação de feto inviável com

base no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Isto posto, a tendência é que cada vez mais casos cheguem aos tribunais, eis

que, conforme as evidências, observa-se que a ocorrência de patologias

irreversíveis, como a anencefalia, é muito mais comum do que inicialmente se

acreditava.

Deste modo, faz-se necessária a expedição de uma decisão final neste

sentido, de modo urgente, uma vez que, atualmente, evidencia-se uma enorme

insegurança jurídica a respeito do assunto, pois a atuação dos magistrados

necessita ter como fundamento tão somente os pressupostos legais, devendo ser

afastada qualquer tipo de analogia, bem como as convicções pessoais,

eventualmente presentes nas referidas decisões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Diante do exposto, tendo como ponto de partida a

evolução histórica e conceitual da problemática do aborto, desde os primórdios até a

contemporaneidade, imprescendível se faz reconhecer este como um dos temas

mais polêmicos e controversos da atualidade.

O advento de uma nova forma de sociedade, com o desenvolvimento das

ciências biológicas, aliado ao aperfeiçoamento dos métodos diagnósticos da

medicina fetal, possibilitou a constatação precoce de quaisquer tipos de patologias,

inclusive aquelas incompatíveis com a vida.

Sob este aspecto, vários países como Estados Unidos, Alemanha, França,

Inglaterra, Espanha, dentre outros, adaptaram suas normas jurídicas ao novo

axioma, legalizando a interrupção voluntária da gravidez, dentro de determinados

prazos e condições.

No Brasil, a discussão acerca da prática abortiva voltou a ter destaque em

decorrência da interposição de autorizações judiciais pleiteando a antecipação do

75 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n°. 0043030-08.2008.8.19.0000 (2008.059.07542). Sexta Câmara Criminal. Relator: Antônio Jayme Boente, Julgado em 09/12/2008. Disponível em: <http://webserver2.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=200805907542> Acesso em 10 maio 2011.

29

parto quando constatada a anencefalia fetal, uma vez que a legislação

infraconstitucional ainda não possui um dispositivo regulamentador da matéria.

A argumentação em prol da descriminalização do aborto anencéfalo tem

como principal alicerce o princípio da dignidade da pessoa humana em relação à

gestante, sopesando seu sofrimento decorrente desta situação.

De outro lado, coloca-se em pauta o princípio primado do direito à vida. A

proibição do aborto anencéfalo encontra amparo na própria legislação, uma vez que

a conduta não se enquadra no rol dos casos de exclusão de ilicitude, como o aborto

necessário e o abortamento realizado nos casos de estupro.

Trata-se de uma realidade penosa, pois a mãe carrega em seu ventre um ser

humano desprovido de cérebro, cuja viabilidade extra-uterina é praticamente nula,

sendo irrefutável concluir que tal situação é permeada por dor e angústia, eis que as

famílias acometidas por esta anomalia tem o conhecimento de que o (a) filho (a)

poderá nascer e falecer em seguida ou, quiçá, nem chegar ao momento do

nascimento.

Todavia, com o afastamento da ilicitude do aborto anencéfalo, corre-se o risco

de que o direito à dignidade da pessoa humana seja sobreposto ao direito à vida de

forma irrestrita, pois um novo precedente surgirá no ordenamento legal vigente,

possibilitando a eliminação de fetos com má-formação, o que poderá ocorrer de

forma impetuosa e injustificada.

Somando-se a isto, a complexa relação entre vida e direito reacende-se,

ainda, em situações consideradas raras pela medicina, de sobrevida, por vários dias,

ou meses, de crianças anencéfalas.

Isto posto, tem-se que a discussão acerca da interrupção da gestação de

fetos anencéfalos transcende à simples questão de ser contra ou a favor do aborto,

em razão da necessidade de se estabelecer um parâmetro diferenciado entre as

instâncias morais e éticas, na medida em que estas sirvam de embasamento para

as diretrizes eventualmente adotadas.

Nesse contexto, torna-se inerente a expedição de uma norma

reguladora acerca da problemática, com a conseqüente adequação da legislação à

nova realidade social, de forma a resguardar ao máximo os interesses que se

posicionam em dissonância.

Com o referido intuito, acredita-se que o aborto anencéfalo deverá incidir tão

somente nos casos em que houver a evidente constatação de que o produto

30

concebido apresenta completa inviabilidade de vida extra-uterina, uma vez que,

conforme já elucidado, existem inúmeras evidências de fetos que, sendo

inicialmente diagnosticados com anencefalia, alcançaram uma sobrevida muito

maior do que as expectativas.

Nestes casos, a criminalização da prática abortiva permaneceria como regra,

abrindo-se uma exceção, entretanto, para os casos excepcionais de total

incompatibilidade com a vida, de forma a evitar a primazia de um princípio

constitucional sobre outro.

Por fim, é imperativo que se faça uma ponderação dos preceitos e

normas principiológicas inerentes à problemática do aborto anencéfalo, através da

relativização dos postulados ora postos em questão, a fim de que se possa

estabelecer as diretrizes e mecanismos que possam regulamentar efetivamente a

construção de uma norma penal compatível com o mínimo de equilíbrio e justiça.

REFERÊNCIAS

ABREU FILHO, Nylson Paim de (org.). Vade Mecum. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010. ALVES, Ivanildo Ferreira. Crimes Contra a Vida. Belém do Pará: Unama, 1999. ANDALAFT NETO, Jorge. Anencefalia: Posição da FEBRASGO. 06 fev. 2007. Disponível em: <http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm> Acesso em: 25 mar. 2011. ANDRADE, Edson de Oliveira. Resolução CFM nº 1.752, de 8 de setembro de 2004. Disponível em: <http://www.ghente.org/doc_juridicos/resol1752.htm>. Acesso em: 22 abr. 2011. BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=anencefalia&processo=54> Acesso em 20 abr. 2011. CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce. Em Defesa da Vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. CNT NOTÍCIAS. TJ-MG nega pedido de casal para abortar bebê com anencefalia. Sem indicação de autoria. 10 jun. 2010. Disponível em

31

<http://www.cntnoticias.com.br/cnt/mostra_noticia.php?NotID=4330>. Acesso em: 11 maio 2011. COIMBRA, Celso Galli. Anencefalia, morte encefálica e o Conselho Federal de Medicina. 23 dez. 2004. Disponível em: <http://www.biodireitomedicina.com.br/website/internas/anencefalia.asp?idAnencefalia=158>. Acesso em: 22 abr. 2011. COSTA JR., Paulo José da. Direito Penal Objetivo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. COSTANZE, Advogados. Negado habeas corpus impetrado para autorizar aborto por anencefalia do feto. 30 jul. 2007. Disponível em:<http://buenoecostanze.adv.br/index.php?option=com_content&task=view&id=372&Itemid=74>. Acesso em: 11 maio 2011. COUTINHO, Luiz Augusto. Aborto em casos de anencefalia: crime ou inexigibilidade de conduta diversa? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6423>. Acesso em: 26 mar. 2011. CRISPIN, Mirian Cristina Generoso Ribeiro. A dignidade da pessoa humana da gestante e o problema dos fetos anencefálicos. 26 out. 2005. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2325/A-dignidade-da-pessoahumanadagestante-e-o-problema-dos-fetos-anencefalicos>. Acesso em 22 abr. 2011. DINIZ, Maria Helena. O Estado do Biodireito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise constitucional. In.: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.) Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. LIMA, Ricardo O. de Oliveira. O aborto de fetos anencefalos. 07 fev. 2007. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/1101/2/O-Aborto-De-Fetos-Anencefalos/pagina2.html>. Acesso em: 10 abr. 2011. LINO, Maria Helena (org.). OAB: interrupção de gestação de anencefálico não é aborto. Disponível em: <http://www.ghente.org/doc_juridicos/parecerer_oab_anencefalo.htm>. Acesso em: 10 abr. 2011. LOPES, Silvia Regina Pontes. Vida Humana e Esfera Pública: contribuições de Hannah Arendt e de Jürgen Habermas para a questão da anencefalia fetal no Brasil. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. MARQUES, José Manoel de Souza. Anencefalia: interrupção da gravidez é uma liberdade de escolha da mulher? Revista de Direito Sanitário. vol.11, nº.1. São Paulo. jun. 2010. Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S151641792010000200010&script=sci_arttext>. Acesso em 21 abr. 2011. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2005. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970.

32

PEREIRA, Maria José Miranda. Aborto. Revista Jurídica CONSULEX, ano VIII, n° 176, 15 maio 2004, p. 37. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº. 0043030-08.2008.8.19.0000 (2008.059.07542). Sexta Câmara Criminal. Relator: Antônio Jayme Boente. Julgado em 09/12/2008. Disponível em: <http://webserver2.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=200805907542> Acesso em maio 2011. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 70026698019. Segunda Câmara Criminal, Relator: Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julgado em 16/10/2008. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?q=70026698019&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields=tribunal%3ATribunal%2520de%2520Justi%25C3%25A7a%2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C3%25A1tica%29.Secao%3Acrime&requiredfields=&as_q=> Acesso em 10 maio 2011. ______. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 70040663163. Terceira Câmara Criminal, do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 30/12/2010. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?q=70040663163&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields=tribunal%3ATribunal%2520de%2520Justi%25C3%25A7a%2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C3%25A1tica%29.Secao%3Acrime&requiredfields=&as_q=> Acesso em 10 maio 2011. ______. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 70011918026. Terceira Câmara Criminal. Relator: Elba Aparecida Nicolli Bastos, Julgado em 09/06/2005. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?q=70011918026&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields=tribunal%3ATribunal%2520de%2520Justi%25C3%25A7a%2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C3%25A1tica%29.Secao%3Acrime&requiredfields=&as_q=> Acesso em 10 maio 2011. SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Apelação Criminal n°. 2008.021736-2. Relator: Torres Marques. Juiz prolator: Rudson Marcos. Órgão julgador: Terceira Câmara Criminal Data: 18/06/2008. Disponível em: <http://tjsc6.sc.gov.br/cposg/pcpoSelecaoProcesso2Grau.jsp?cbPesquisa=NUMPROC&dePesquisa=20080217362&Pesquisar=Pesquisar> Acesso em 10 maio 2011. SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (coord.) Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SILVA, José Carlos Sousa. Direito à Vida. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006. SILVEIRA, José Neri da. Néri da Silveira é contra o aborto de anencéfalos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/16602>. Acesso em: 04 mar. 2011. SCHMITZ, Joana. Vitória de Cristo. 17 nov. 2010. Disponível em: <http://www.anencephalie-info.org/p/vitoria.php>. Acesso em: 10 abr. 2011. TERRUEL, Suelen Chirieleison. Anencefalia Fetal: Causas, Conseqüências e Possibilidades de Abortamento. 15 mar. 2008. Disponível em:

33

http://www.webartigos.com/articles/4787/1/Anencefalia-Fetal-CausasConsequencias-E-= Possibilidade-De-Abortamento/pagina1.html> Acesso em: 05 abr. 2011. TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo: Descriminalização e avanços tecnológicos da medicina contemporânea. São Paulo: Juruá, 2002.