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1 UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATU SENSU” PROJETO A VEZ DO MESTRE ABORTO DE FETO ANENCÉFALO Orientador Professora Valesca Rodrigues Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATU SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

ABORTO DE FETO ANENCÉFALO

Orientador

Professora Valesca Rodrigues

Rio de Janeiro

2008

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATU SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

ABORTO DE FETO ANENCÉFALO

Apresentação de monografia à Universidade

Cândido Mendes como requisito parcial para

Conclusão do Curso de Pós-Graduação “Latu

Sensu” em Direito e Processo Penal

Rio de Janeiro

2008

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AGRADECIMENTOS

Ao Mario Cesar, companheiro de sonhos e conquistas, marido, amigo e amor da minha vida, pelo apoio incondicional em todas as horas.

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DEDICATÓRIA

Ao meu filho, maior felicidade da minha vida e ao Mario Cesar, meu grande ponto de apoio, por toda força e incentivo, e por jamais me permitir o erro de desistir.

E aos meus pais e irmão por sempre acreditarem em mim.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................p.06

METODOLOGIA..................................................................................................................p.08

CAPÍTULO I: DA PUNIBILIDADE DO ABORTO............................................................p.09

1.1 CONTEXTO HISTÓRICO.................................................................................p.09

1.2 O ABORTO NO BRASIL..................................................................................p.12

CAPÍTULO II: AS CONCEPÇÕES JURÍDICAS DE VIDA E MORTE.............................p.15

2.1 A PROTEÇÃO VIDA NO DIREITO PENAL..................................................p.22

CAPÍTULO III: DO ABORTO..............................................................................................p.24

3.1 DEFINIÇÃO.......................................................................................................p.24

3.2 O CRIME DE ABORTO PARA A DOUTRINA JURÍDICA............................p.28

3.AS HIPÓTESES JUSTIFICADORAS LEGAIS – EXCLUDENTES DE ILICITUDE................................................................................................................p.31

CAPÍTULO IV: DA PERMISSÃO LEGAL PARA A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ NOS CASOS DE ANENCEFALIA......................................................................................p.35

4.1 JURISPRUDÊNCIA............................................................................................p.37

4.2 O ENTENDIMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO...................................................................................................................p.38

4.3 O ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL..................................................................................................................p.41

CAPÍTULO V: DOS ARGUMENTOS RELIGIOSOS.........................................................p.46

CAPÍTULO VI: CONCLUSÃO............................................................................................p.51

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Introdução

Tem este trabalho, precipuamente, o escopo de analisar, sem entanto suportar a

ousadia de esgotar tão controverso e instigante tema, o contexto atual do debate sobre a

autorização judicial da interrupção da gestação de feto anencéfalo, com todas as nuances

históricas e conseqüências jurídicas. Fatal para o nascituro ainda no útero ou logo após o

nascimento, a anencefalia, ou a ausência de encéfalo (cérebro, com hemisférios e cerebelo),

cuja continuidade em nada contribuirá para o bem estar da gestante, é objeto de acalorado

debate em nossa sociedade, ultrapassando os limites dos tribunais, visto trata-se de questão

controversa desde os primórdios da sociedade hoje conhecida. O denso querela, consiste em

ainda recear-se em autorizar tal procedimento, judicialmente, não obstante estarem presentes

potenciais graves complicações médicas, psicológicas, sobretudo para a mãe. A controvérsia

ganhou dimensão quando o Supremo Tribunal Federal envolveu-se na questão, como não

poderia deixar de se prever, chamado que foi a se pronunciar-se em sede de habeas corpus,

pendente ainda de julgamento final. A abordagem do tema é baseada em inicial pesquisa

histórica sobre o tema, sob a ótica da punibilidade, relatando o entendimento das antigas

sociedades, e como não poderia deixar de ser, da posição da igreja, com o advento do

cristianismo. Posteriormente, analisamos o tema dentro do Brasil, onde é focado a formação

do pensamento jurídico sobre a questão, cuja essência, mais que outras normas, resultou

pressionada pela sociedade e pela igreja. Dentro da área jurídica, o estudo passa a detalhar os

pensamentos dos doutrinadores sobre as concepções jurídicas de vida e morte, ampliada então

pelo pétreo conceito de proteção à vida. Logo, entramos no estudo do aborto e suas

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considerações feitas pela doutrina jurídica, assim como suas definições, exemplificando a

hipóteses justificadoras, e as excludentes de ilicitude. Neste ponto, apresenta-se então a

interrupção da gravidez como possível no Brasil, ensejando a discussão sobre a importância

das causas, fato é que em alguns conhecidos casos pode-se autorizar e em outros não.

Seguindo a pesquisa, analisamos as permissões legais para o aborto de fetos anencéfalos,

colando as principais jurisprudências dos tribunais de justiça doutrinadores desde país, assim

como o célere caso que hoje faz história dentro da mais alta corte desta nação. Por fim,

abrimos espaço para um estudo dos argumentos religiosos, pois não se pode esgotar este tema

sem trazer a palavra da igreja, cuja representatividade dá voz aos fortes ventos contrários da

sociedade para a autorização da interrupção da gravidez nos casos estudados. Concluímos o

trabalho com opinião formada, sobre a importância da questão para os operadores do direito,

baseando-se no estudo da conduta delitiva e do bem jurídico protegido, em face do grau de

lesão provocada na mãe do feto anencéfalo e do que nossa norma hoje poderia modernizar-se

para deixar de seguir premissas de sociedades seculares, mesmo ciente que tal mudança se

fará, caso o faça, através de muitos anos de estudo.

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METODOLOGIA

Visando a elaboração deste trabalho acadêmico, foi realizada pesquisa e leitura em diversos

livros, códigos e revistas jurídicas relativos ao tema abordado, bem como pesquisa e leitura de

revistas acadêmicas da área de medicina, cujo suporte ao entendimento do tema foram

essenciais. Hoje ferramenta indispensável, a rede mundial de computadores não pode ser

descartada, servindo também como fonte de pesquisa e coleta de dados, bem como atalho para

pesquisas em bibliografia jurídica e médica, antes da atuação em bibliotecas. Logicamente a

internet hoje não pode substituir os livros assim como não o fez, porém, é a ferramenta mais

capaz no campo da pesquisa jurisprudencial, sendo certo o avanço que originou nesta área.

Após a coleta de dados, foi elaborado um roteiro que possibilitou a montagem dos respectivos

dados, da pesquisa bibliográfica, sintetizando-se então a alta gama de informações sobre tão

controverso tema, a fim de concatenação e apresentação deste trabalho.

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1. DA PUNIBILIDADE DO ABORTO

1.1 Contexto Histórico

É fato que a prática abortiva não era incomum entre os povos antigos. O povo brâmane

tinha a prática de abandonar as crianças que, após dois meses de nascimento, aparentavam má

índole, evidenciando assim uma política diferenciada para com os recém nascidos portadores

de anomalias.

Para os Gregos, havia uma divisão de pensamentos quanto à prática. Enquanto alguns

governantes a proibiram, e Hipócrates, no seu famoso discurso decantava: «a nenhuma

mulher darei substância abortiva» [...], Aristóteles e Platão foram predecessores de Malthus:

Platão entendia o aborto possível para todas as mulheres que engravidavam após os quarenta

anos1 e Aristóteles até aconselhava a prática, desde que o feto ainda tivesse alma, visando

equilibrar os recursos de sobrevivência entre a população e seu próprio controle.

Devido ao predominante ambiente belicoso, em Esparta, os nascidos fracos eram

mortos, de forma somente que os fortes poderiam crescer e servir ao Estado em suas

intermináveis guerras.

Até mesmo o Direito Romano2, em seus primeiros momentos, não vislumbrava

punição para o aborto. Somente em momento posterior, a abactio partus passou a ser tratada

como possível lesão do direito à prole, para os maridos. Possível pois os recém-nascidos com

deformidades ainda eram passíveis de serem atirados de penhascos. A Lei das Doze Tábuas,

1 PLATÃO, A República. São Paulo: Martin Claret, 2003, pp. 155-156

2 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em defesa da vida. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 10.

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dispunha: “É permitido ao pai matar o filho que nasceu disforme, mediante o julgamento de

cinco vizinhos”. E ainda. “O pai terá sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito

de vida e de morte e o poder de vendê-los”.

Somente com a chegada do cristianismo, o império romano passou a punir a prática

do aborto, devido à influência religiosa.

Esta matéria ganhou então intenso debate no período do direito canônico, nascendo

novamente a querela sobre a punibilidade do aborto devido a aquisição de “alma” por parte da

criança recém-nascida. Neste caso, a Igreja e o Estado se preocupavam, principalmente nos

séculos iniciais do Cristianismo, com a constituição do casamento monogâmico para toda a

sociedade, como regra, tendo o aborto ganho um significado de revelação da prática de sexo

extraconjugal. Tomando como exemplo os casos de adultério, estes eram punidos de forma

mais grave que os casos de homicídio. Logo, a punição da prática do aborto era ligada ao

adultério que esta prática representava, sendo perfeitamente possível asseverar que o

crescimento do casamento monogâmico como única união legítima perante a igreja e o estado

era mais importante como alicerce social do que o direito de proteção da vida.

A época dos concílios do século III marcou a condenação moral do aborto agora na

forma jurídica, que decretaram que a mulher que praticasse o aborto ficaria excomungada até

o fim da vida. Após esta época, todos os concílios posteriores da Igreja católica confirmaram

a pena de excomunhão.

O Papa Sixto V, à época da Renascença, ainda condenou o aborto com maior

severidade, mas tal condenação não perdurou absoluta: seu sucessor, Gregório IX, retrocedeu

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e decidiu que o embrião não formado não poderia ser considerado ser humano e, portanto,

abortar era diferente de cometer um homicídio.3

Esta visão legitimadora da prática do aborto perdurou até 1869, no período do papa

Pio IX, quando a Igreja renovou sua posição contrária. Teólogos e cientistas da época não

concordavam sobre o momento exato em que a vida começava, e Pio IX decidiu não arriscar

e proteger o ser humano desde o momento mais precoce, isto é, o da concepção.

Cristalino então que a influência da religião católica foi fundamental para a

formulação da punibilidade do aborto.

A simples idéia de alteração das normas proibitivas da prática do aborto, inclusive em

casos de anencefália, encontra grande resistência junto aos mais variados setores sociais, nos

países de tradição católica, cuja maioria absoluta da população segue os princípios

ministrados por essa religião A América Latina, comporta-se como um grande exemplo, pois

foi colonizada pelos países ibéricos, nos quais a Igreja Católica exerceu publicamente grande

influência, inclusive, política.

3 MUTO, Eliza, e NARLOCH, Leandro: o primeiro instante. Revista Super Interessante. Rio de Janeiro, novembro de 2005. Reportagem da capa, p. 59.

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1.2 O aborto no Brasil

Através do texto da Carta de 1824, o império brasileiro já previa a religião Católica

Apostólica Romana como oficial. Porém, permitia que outras fossem praticadas apenas em

culto particular ou doméstico, vedando manifestações públicas.

Quando o Brasil se encontrava submetido ao status de colônia, Antes do Império, não

era admissível qualquer manifestação que atentasse contra a fé católica, visto que o país

colonizador representava um dos maiores pilares do catolicismo em todo o mundo.

Ocorrido o desmembramento entre a Igreja e o Estado4, que ocorreu quando da Carta

de 1891, o Brasil adotou, até os dias de hoje, o estado laico, isto é, sem adoção de uma

religião oficial.

Contudo, ainda que laico o Brasil abriga uma grande parcela da população católica,

em razão do legado da colonização portuguesa, sendo as legislações sobre o aborto manifesto

resíduo desta influência.

Desta forma, estudiosos do tema consideram a influência moral e política da igreja na

América Latina uma das principais causas do enorme repúdio a interrupção da gravidez em

quaisquer hipóteses aventadas

Vigente até hoje, a parte especial do Código Penal de 1940 estabelece, como causas de

exclusão da antijuridicidade, o aborto para salvar a gestante (que pode ser considerado uma

especialidade do estado de necessidade) e os casos em que a gravidez é resultante de estupro.

Nesta última forma de exclusão da antijuridicidade é desvendado, claramente, que o critério

moral permeia a seleção das condutas justificadoras relacionadas especificamente ao tema,

4“Art. 72. (...) § 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados”

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pois o escopo único de tal previsão é não submeter à mulher à agonia de ver nascido o fruto

de uma grave violência contra ela cometida.

Sendo assim, não é difícil verificar que o estilo jurídico brasileiro sobre a questão,

ainda é ambíguo, pois sob efeito da maciça influência do catolicismo por séculos de História,

é possível verificar a manifestação de argumentos morais e religiosos a todo o tempo.

Como prova de tal assertiva, é a crescente discussão sobre o anacronismo ético e

sociológico destas normas, datadas de 1940, e por outro lado, há também um movimento que

visa ao retrocesso legislativo, como o de meados de 1990, que visam a proibir totalmente a

ocorrência do aborto.

Evidências levam a crer, especificamente em caso da anomalia fetal, que o primeiro

caso brasileiro de autorização de realização de um aborto por anencefalia fetal foi proferido

em 1991, na Comarca de Rio Verde do Mato Grosso do Sul. O magistrado acudiu a

legitimidade do pedido de alvará através da própria interpretação hegemônica contrária ao

aborto: se o que fundamentaria a proibição do aborto seria o princípio de proteção à vida, este

princípio não estaria sendo violado com a autorização da interrupção da gestação de um feto

anencéfalo, uma vez que a anencefalia é uma má formação que impede objetivamente a

sobrevida.

Vale ressaltar que nos últimos dez anos o sistema judiciário autorizou mais de 3000 de

autorizações para a interrupção da gravidez em todo o país. Tal número diz respeito aos

abortos executados dentro de hospitais e serviços públicos de saúde, onde o trâmite legal é a

condição para sua realização, acrescentando-se este número aos abortos realizados pela

própria vontade da gestante, em hospitais e clínicas particulares, de forma não autorizada.

Vale ressaltar ainda, que informações das áreas de saúde comunicaram tentativas

infrutíferas de solicitação de autorização de interrupção da gravidez para diagnósticos de má-

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formação fetal grave, porém absolutamente compatíveis com a vida extra-uterina. No Brasil,

até o momento, não há qualquer registro de concessão legal para os referidos casos, o que

torna o procedimento brasileiro de modificação da legislação bastante cauteloso. As

permissões, até onde se sabe, foram apenas para casos de anomalias fetais gravíssimas em que

a sobrevida do feto se mostrou cientificamente inalcançável.

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2. AS CONCEPÇÕES JURÍDICAS DE VIDA E MORTE

O momento em que pode-se determinar com exatidão quando existe “vida” é uma das

questões mais difíceis e controversas do Direito. No Brasil e em todos os países do mundo.

Certo é que as ciências jurídicas procuram na ciência médico-biológica respostas para suas

teorias. Logo, diante da necessidade de delimitar o começoo da vida para correta

normatização dos crimes que contra ela atentam, surge o problema inevitável: mesmo a

ciência não consegue se manifestar de forma unida sobre o assunto, uma vez que a questão

não comporta uma só “verdade”.

A vida humana começa na fertilização, de acordo com a visão genética, à qual se filia

a Igreja Católica, , quando então espermatozóide e óvulo se encontram e combinam seus

genes pra formar um indivíduo com um conjunto genético inédito. Um novo ser humano é

criado nesse momento, segundo defendem, com os mesmos direitos aos de qualquer outro.

Para a visão embriológica, a vida começa na 3ª semana de gravidez, quando é

estabelecida a individualidade humana. Explicam que até 12 dias após a fecundação o

embrião ainda é apto de se dividir e dar origem a duas ou mais pessoas. Com base nestes

argumentos é que se encontra a idéia que justifica a pílula do dia seguinte e os contraceptivos

administrados nas duas primeiras semanas de gravidez.

Já a visão neurológica, por sua vez, adota para a vida o mesmo princípio da morte, e

parece ser o que norteou a elaboração da Lei 9.434/97, que regula o procedimento de

transplantes no Brasil. Para ela, se a vida termina quando cessa a atividade elétrica no

cérebro, então ela começa quando o feto apresenta atividade cerebral igual à de uma pessoa.

Nesse ponto, os cientistas se dividem alguns afirmam que esse momento se dá na 8ª semana,

enquanto outros, na 20ª.

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A Suprema Corte Americana adotou o critério ecológico, quando da célere decisão

que autorizou o aborto, e este assume que a capacidade de sobrevida fora do útero é que faz

do feto um ser independente e determina o início da vida. Seus defensores consideram que um

bebê prematuro só se mantém vivo se tiver os pulmões prontos, o que acontece entre a 20ª e a

24ª semana de gravidez. Muitos países europeus também adotam esta visão, que permite o

aborto até o período mencionado.

A visão metabólica, por derradeiro, é mais radical e afirma que a querela sobre o início

da vida humana não é relevante, uma vez que não existe um momento único e no qual a vida

tem início. Essa corrente diz que espermatozóides e óvulos são tão vivos quanto qualquer

pessoa. Ademais, o desenvolvimento de uma criança é um processo contínuo, não devendo

receber um marco inaugural.5

O momento em que se completa a fase da “nidação” na verdade, é o ponto que a

maioria dos doutrinadores das ciências médicas adota para o início da vida, quando então o

óvulo fecundado consegue se fixar nas paredes do endométrio, enquanto outros, em minoria,

defendem que ela começa quando o coração do feto passa a ter pulsação.

Afora o exposto, inexiste preceito legal no ordenamento jurídico, um conceito

conclusivo sobre o que é “vida”, havendo somente teorias relacionadas, como, por exemplo, o

reconhecimento de personalidade jurídica e outras correlatas às sucessões no âmbito civil.

Contudo, não se ocupando o ornamento jurídico brasileiro em definir o conceito

preciso de vida, ele precisamente o faz quanto à concepção de morte.

Acerca do momento da morte existem duas concepções que são plenamente aceitas,

tanto no universo jurídico, quanto na comunidade científica. São essas a morte encefálica e a

morte clínica. A primeira importa na cessação da atividade elétrica do cérebro por mais de

5 MUTO, Eliza, e NARLOCH, Leandro: o primeiro instante. Revista Super Interessante. Rio de Janeiro, novembro de 2005. Reportagem da capa, p. 61.

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cinco minutos, enquanto a morte clínica exige, ainda, a parada irreversível da atividade

cardíaca.

A parada cárdio-respiratória e cerebral são sinônimo de morte, desde o século XVII,

entendendo-se que o coração inativo levaria à disfunção dos outros dois órgãos. Na década de

50, desenvolveram-se técnicas que permitiram o suporte das funções vitais artificialmente,

através de aparelhos. Em vista disso, em 1957, o Papa Pio XII sugere que se incrementem

debates éticos relativos a essa nova situação.

Desde então, a ciência médica passou a adotar o diagnostico da morte tomando por

base a cessação da atividade cerebral, visto que a ausência de batimentos cardíacos e da

respiração poderiam ser suplantados pela tecnologia de suporte avançado de vida.

O conceito de morte cerebral não era uma unanimidade e gerou alguma discussão.

Alguns defendiam que esta definição surgira em resposta à necessidade de aumentar o número

de doadores, sendo considerada, unicamente, um objetivo utilitarista. Outros admitiam que os

objetivos eram de caráter humanitário e eqüitativo. Perante este conflito, o Conselho Nacional

de Ética para as Ciências da Vida, órgão português de grande alcance dentro do mundo

científico, emitiu o parecer 10/CNEVC/95, referindo que o diagnóstico clínico de morte

resulta de uma avaliação científica e ética que comprova a irreversibilidade das funções do

tronco cerebral, as quais são as únicas que permitem o funcionamento do corpo como um

todo.

Nesta linha, entrou em vigor a lei 9.434, de 1997, que versa sobre a remoção e

transplante de órgãos de cadáveres humanos, a qual, em seu artigo 3º, estabelece exigências

para autorização da doação de órgãos.

“Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a

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utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.”

A matéria foi regulamentada na Resolução nº 1480 do Conselho Federal de Medicina,

em 08 de agosto de 1997, na qual consta textualmente que “...a parada total e irreversível das

funções encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabelecidos pela

comunidade científica mundial...”.

Esta mesma resolução ainda estabelece que os critérios que deverão ser seguidos no

protocolo de diagnose da morte cerebral são compostos de exames clínicos e complementares,

sendo os clínicos referentes à inércia respiratória e os complementares todos dirigidos à

constatação da inatividade cerebral.

“Art. 1º - A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias”.

[...]

“Art. 4º - Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia”.

[...]

“Art. 6º - Os exames complementares a serem observados para constatação da morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou; b) ausência de atividade metabólica cerebral ou; c) ausência de perfusão sanguínea cerebral”.

Logo, no caso de doador sem vida, a lei citada estabelece a possibilidade de doação de

órgãos, mediante o cumprimento de uma condição que é o atestado de cessação de atividade

encefálica do doador.

Assim, conclui-se que o indivíduo é considerado morto quando sua passagem pelo

protocolo não admite qualquer grau de sobrevivência. Este conceito médico é adotado

juridicamente para permitir o transplante de órgãos. Ou seja, ao atestarem os peritos a

cessação da atividade cerebral, isso representa, objetivamente, não existir vida, ao menos na

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visão jurídica, visto que o paciente perde o direito sobre seu próprio corpo, cedendo-o ao

transplante de órgãos.

Destarte, se não há precisa indicação quanto à vida para o direito brasileiro, sob um

aspecto conceitual, esta definição jurídica pode ser alcançada pela via da exclusão, isto é,

morte, juridicamente falando, é, portanto, a ausência de vida, que se faz representar pela

atividade cerebral da qual depende a realização de todas as funções do encéfalo, soma do

tronco e do cérebro, e, por conseguinte, de todo o corpo humano.

Relativamente à anencefalia, ainda que não haja uma absoluta congruência entre o

conceito médico de morte encefálica e a situação neurológica derivada desta anomalia, é

normal que se estabeleça uma relação de correspondência entre eles, pois, em ambos os casos,

ocorre o término de atividade cerebral que não viabiliza o funcionamento de todo o

organismo.

Ao contrário do que sua nomenclatura sugere, a anencefalia não é derivada da

ausência absoluta do encéfalo, o qual compreende várias partes, sendo as principais o

telencéfalo (cérebro ou hemisférios cerebrais), o diencéfalo (do qual fazem parte o tálamo e o

hipotálamo), tronco encefálico (mesencéfalo, ponte e medula oblonga). A doença atinge,

como explicitado, a formação dos hemisférios cerebrais.

Assim, ainda que o tronco cerebral se mantenha funcionando, produzindo

determinadas ações essenciais como o batimento cardíaco e o movimento pulmonar , além de

diversos outros movimentos involuntários e ou relacionados à atividade cerebral, certo é que a

permanência desta atividade depende de outras que incumbem ao cérebro. O funcionamento

de glândulas e o movimento muscular que facilita a própria respiração são exemplos. Sem

estas, a própria atividade do tronco paulatinamente perece.

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Dito isto, o bebê anencéfalo, ao nascer, encontra-se primitivamente em estado

vegetativo, ou seja, sua respiração e batimento cardíaco estão associados ao tronco, ocorrendo

exclusivamente ações mecânicas. Não há, entretanto, atividade cerebral propriamente dita, por

ausência do cérebro, restando inviabilizado o desenvolvimento dos sentidos e,

conseqüentemente, de uma vida extra-uterina tal qual se espera.

Tendo em vista então que o protocolo clínico-médico que autorizaria o transplante

exige a comprovação da extinção também de atividade do tronco cerebral, seria possível,

então, argumentar que, no anencefálico, tal funcionamento subsiste a despeito da má-

formação dos hemisférios que compõem o cérebro; é igualmente inegável, entretanto, que seu

perecimento, como explanado, se dá em 100% dos casos de ocorrência da má-formação, visto

que o regular funcionamento do tronco encefálico somente se opera se coordenado à atividade

cerebral, sendo esta inexistente no anencefálico após o parto. O único meio, portanto, de

manter ativo o troco do anencefálico seria condicionando-o a aparelhos e medicamentos, ou

seja, situação idêntica à daqueles cuja vida é mantida artificial e inutilmente após acidentes ou

enfermidades, permitindo concluir que a situação clínica de ambos é absolutamente

semelhante.

A morte do anencefálico decorre da ausência de atividade cerebral, assim como a do

doador de órgãos. Portanto, se, para efeitos da Lei 9.434/97, morte é a cessação completa da

atividade cerebral, vida é a existência, por mais sensível que seja, da função cerebral. O

diagnóstico de anencefalia é, portanto, um diagnóstico a respeito da certeza da morte imediata

ou, na melhor das hipóteses, iminente, equivalendo, precisamente, à morte identificada pelo

protocolo necessariamente cumprido para viabilizar o transplante.6

6 “Alberto Silva Franco, apoiado em lições médicas sustenta não haver coincidência absoluta entre a anencefalia e a falta de atividade do tronco cerebral, já que, a anencefalia apresenta alguns rudimentares reflexos do tronco, motivo pelo qual não cumpre com os critérios médicos e biológicos vigentes. Comenta o jurista: ‘anencefalia, que significa a ausência no feto dos dois hemisférios cerebrais, não corresponde no plano médico à morte cerebral, cujo sinal inequívoco ‘side na verificação da ausência de função total e definitiva do tronco

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Existem duas distinções teóricas, pelo menos, mas sem maiores efeitos: primeiro, que

o anencefálico mantém a atividade cárdio-respiratória sem auxilio de aparelhos, enquanto a

pessoa acidentada ou enferma o faz através deles; segundo, que o indivíduo acometido pela

enfermidade ou acidente já demonstrou alguma atividade cerebral um dia, conservando o

órgão necessário para tanto, ao passo que o anencefálico sequer chegou a formar o cérebro

completamente, inexistindo, por óbvio, funcionamento do próprio. Assim é que a anencefalia

é considerada, nos tratados médicos, como “uma deformação incompatível com a vida”.

cerebral”. Embora esse esteja presente, nos fetos anencefálicos – o que permite em alguns casos a sobrevivência desses fetos, por tempo mínimo, fora do claustro materno – força é convir que as duas situações são similares ‘A ausência de hemisférios cerebrais, no primeiro caso, e a afetação definitiva do cérebro, no segundo, suprimem para sempre o suporte indispensável para toda forma de consciência e de relação com o outro. No segundo caso, reconhece-se a morte da pessoa. Não há razão para a afirmação de que a vida, no primeiro caso, subsista como vida humana, isto é, como a vida de um ser humano destinado a chegar a ser (ou já) pessoa humana’ (Patrick Vespieren, ‘diagnóstico prenatal y aborto selectivo. Reflexión ética’ La Vida Humana, Origen y Desarrollo, Madrid: Universidad Pontifícia Comillas, 1989, p. 178)’. Porém, ainda assim, o professor paulista se inclina por admitir que uma eventual proteção à gestação de um anencéfalo não se traduz em proteger a vida, ao afirmar que ‘mulher, gestante de feto anencefálico, não tem em seu útero um ser vivo, mas sim carrega, em seus entranhas, um ser condenado irreversivelmente à morte. Impedi-la de antecipar o parto, significa deixá-la, meses a fio, convivendo com a expectativa de um nascimento frustrado, o que constitui, sem nenhuma margem de dúvida, agravo à saúde física e psicológica”, citando FRANCO, Alberto Silva. “Um Bom Começo”. In Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ano 12, nº 143, Outubro/2004, São Paulo: IBCCrim, 2004, p. 2.

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2.1 A proteção à vida no Direito Penal

Suplantados os pensamentos acerca dos conceitos de vida e morte para o direito, faz-se

essencial alcançar estas definições à luz do Direito Penal. Afinal, se este ramo do direito se

ocupa, em especial, da proteção do bem jurídico “vida”, é necessário saber, antes de tudo,

qual seria esta concepção segundo o Direito Penal, o qual, não se pode olvidar, representa a

ultima ratio de controle social pelo Estado.

Estando a prática do aborto no capítulo de Crimes Contra a Vida no Código Penal,

percebemos claramente que o bem juridicamente tutelado é a vida, sendo a objetividade

jurídica fundamental a vida da pessoa humana. No auto-aborto, por exemplo, só há uma tutela

penal: o direito à vida, cujo titular é o feto.7

Passando por cima das inúmeras filigranas jurídicas sobre o início e o fim da

personalidade jurídica para o Direito Civil, as quais, embora relevantes, não se prestam tanto

ao objetivo do presente estudo, fato é que, para a maior parte da doutrina do Direito Penal, o

feto é sujeito passivo nos crimes de auto-aborto e no aborto consentido, previstos nos artigos

124 e 126 do CP, visto que, conforme ensina Cláudio Heleno Fragoso8, não seria plausível a

gestante ser, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo nesses tipos penais, por não haver crime

na auto-lesão.

A vida do ser humano em formação é bem jurídico protegido, embora, rigorosamente,

não se trate de crime contra pessoa. De acordo com a acepção dada pelo Direito Civil, o

embrião pode não ser considerado “pessoa”, mas tampouco pode ser considerado mera

7 Alguns doutrinadores, com base nas teorias do Direito Civil sobre a personalidade, não admitem que o feto possua personalidade jurídica e, portanto, determinam que o sujeito passivo do crime de aborto seja a sociedade em geral. Porém, conforme ensina Bitencourt, o objeto da proteção legal “não é pessoa que se protege, mas a sua formação embrionária”. BITENCOURT, Cezar Roberto, Manual de Direito Penal, Parte Especial, v. 2. São Paulo: Saraiva, 2001, p.157)

8 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal; Parte Especial, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, v.1, p.80.

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esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como sustentam alguns, pois tem

vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica.9

Logo, é quase pacífico o entendimento de que o bem jurídico vida merece proteção

penal desde o ventre contra possíveis ataques que se voltem contra ele e contra a vontade de

quem o gera.

9 O Brasil, em 1982, assinou conjuntamente com outras nações o Pacto de San José da Costa Rica, o qual prevê, em seu art. 4º, I, que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida” e que tal direito “deve ser arbitrariamente.”

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3. DO ABORTO

3.1 Definição

Os Códigos Penais, em geral, não dão definição sobre o que consiste o aborto, dando

origem à dúvida sobre se é suficiente a expulsão do feto ou se é necessária a ocorrência da

morte para caracterizá-lo. Nosso atual Código Penal também não o define, limitando-se a

fornecer uma fórmula neutra e indeterminada “provocar aborto”, algo semelhante a, somente

para exemplificar, ‘provocar homicídio’ em vez de ‘matar alguém’10.

O Direito Penal protege a vida humana desde o momento em que o novo ser é gerado.

Formado o ovo, evolui para o embrião e, depois, para o feto, constituindo a primeira fase da

formação da vida. A destruição dessa vida até o início do parto configura o aborto, que pode

ou não ser criminoso. Após iniciado o parto, a supressão da vida constitui homicídio, salvo se

ocorrerem especiais circunstâncias que caracterizam o infanticídio, que é uma forma

privilegiada do homicídio.11

Juridicamente, o aborto é a interrupção da gravidez antes de se tocar no limite

fisiológico, isto é, durante o período compreendido entra a concepção e o início do parto, que

é o marco final da vida intra-uterina. Segundo Aníbal Bruno, “provocar aborto é interromper

o processo fisiológico de gestação, com a conseqüente morte do feto”12.

Para melhor esclarecimento do que seria o aborto, as ilustrações da antropóloga

Débora Diniz13 mostram-se uma boa referência, que podem ser reduzidas a quatro grupos:

10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p.158. 11 “Art. 123: Matar, sob influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após” 12 BRUNO, Aníbal, Crimes Contra Pessoa, 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979 ,p.160 13 DINIZ, Débora. Bioética y Aborto. Disponível em: http://www.msu.edu/~hlnelson/fab/bioetica_y_aborto.rtf., acesso em 15/05/08.

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a) Interrupção eugenésica (ou profilática) da gestação (IEG): são os casos de

abortos ocorridos em nome da eugenia, isto é, situações em que se interrompe a gestação por

valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente, apontam-se os atos praticados pela

medicina nazista como exemplo de aborto eugenésico, quando as mulheres foram obrigadas a

abortar por serem judias, ciganas ou negras;

b) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos de abortos ocorridos

em homenagem à saúde materna, isto é, em situações onde a interrupção da gravidez visa

salvar a vida da gestante. Hoje em dia, com o avanço científico e tecnológico na medicina, os

casos de aborto terapêutico são cada vez em menor número, sendo raras as situações

terapêuticas que exijam tal procedimento;

c) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de abortos ocorridos em

virtude de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação pela constatação

de lesões fetais. Em geral, os casos que motivam as solicitações de aborto seletivo são de

patologias incompatíveis com a vida extra-uterina, sendo exemplo clássico o da anencefalia;

d) Interrupção voluntária da gestação (IVG): são os casos de abortos ocorridos

em nome da autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, ou seja, onde a gestação é

interrompida porque a mulher ou o casal não deseja a gravidez, seja por ser ela fruto de um

estupro ou de uma relação consensual. Geralmente, a legislação que admite esta modalidade

de aborto impõe limite cronológico à prática.

Outros dois tipos de aborto não englobados nesta classificação são conhecidos : o

aborto sentimental, humanitário ou honoris causa, que se define como aquele em que a

gravidez é decorrente de estupro, o qual se encontra previsto no art. 128, inciso II, do CP; e o

espontâneo (involuntário ou casual), o qual ocasionado por causas naturais, alheias à vontade

humana.

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Todavia, ainda dentro da definição de aborto seletivo (ISG), insta-se diferenciar e

tratar de forma absolutamente diferente os casos em que o feto vai se tornar uma criança

portadora de deficiência dos casos nos quais o feto não possui qualquer viabilidade para vida

extra-uterina. O nascimento de uma pessoa portadora de deficiência é merecedor de proteção

legal plena como outro qualquer, posto que se trata aqui de viabilidade plena para a vida,

mesmo que possa haver alguma limitação. Entretanto, tratando-se de anomalia fetal

incompatível com a vida, a tutela jurídica, ao impedir que a interrupção da gravidez se faça,

não se prestará ao objetivo de garantir o direito de aquela vida embrionária vingar, pois a

anomalia em questão não permite sua sobrevivência para além de algumas horas após o parto,

como já extensamente esclarecido.

Para o ordenamento jurídico vigente, é bem verdade, conforme ilustra o jurista Cezar

Roberto Bitencourt, "modernamente, não se distingue mais entre vida biológica e vida

autônoma ou extra-uterina. Pouco importa a capacidade de vida autônoma, sendo suficiente a

presença de vida biológica"14. Esta máxima, contudo, somente se justifica quando carreada ao

contexto do aborto seletivo por anomalia fetal compatível com a vida. Trata-se de um

silogismo: a premissa verdadeira de que o anencefálico possui batimentos cardíacos e

circulação sanguínea e, por isso, poderia ser caracterizado como “vida biológica”, conduz à

ilação equivocada de que não poderia ter sua gestação interrompida precocemente, sob pena

de incidência no crime de aborto. Entretanto, o que eiva esta conclusão é desconsiderar que

feto somente constitui a chamada “vida biológica” porque ainda se encontra relacionado ao

metabolismo da mãe, sendo patente a inviabilidade da referida “vida biológica”

posteriormente ao seu nascimento.

14 BITENCOURT, Cezar Roberto, Código Penal Comentado, Saraiva: São Paulo, 2002, p. 123.

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Não bastassem tais provações, as duas únicas hipóteses de aborto assentidas pela

legislação pátria são o aborto terapêutico e o aborto sentimental, permanecendo a vedação, até

hoje, do aborto seletivo, por qualquer razão médica, como adiante verificaremos.

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3.2 O crime de aborto para a doutrina jurídica

Ao discorrer sobre o crime de aborto, o Código Penal o tipifica em três figuras: o

“aborto provocado” ou “auto-aborto” (art. 124), o “aborto sofrido” (art. 125) e o “aborto

consentido” (art. 126). Na primeira hipótese, tem-se que a própria mulher assume a

responsabilidade pelo abortamento; na segunda, repudia a interrupção do ciclo natural da

gravidez, ou seja, o aborto ocorre sem o seu consentimento; e, finalmente, na terceira, embora

a gestante não o provoque, consente que terceiro realize o aborto.

Para se tipificar o crime de aborto, a simples expulsão prematura do feto ou a mera

interrupção do processo de gestação não se mostram suficientes, sendo indispensável que,

além de ocorrerem os dois fenômenos, sobrevenha, ainda, a morte do feto, pois somente com

ela o crime se consuma, como se verá logo em seguida.

Nesse sentido, Hélio Gomes15 define de forma completa o aborto criminoso como

sendo “a interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja ou não expulsão,

qualquer que seja seu estado evolutivo, desde a concepção até momentos antes do parto”. Tal

proposição, além de destacar que a interrupção deve ser ilícita, ou seja, não autorizada por lei,

sustenta, com absoluto acerto, a irrelevância de eventual expulsão do feto e estabelece o

momento derradeiro em que a conduta pode tipificar o crime de aborto, qual seja, “momentos

antes do parto”. No mesmo entendimento, Júlio Fabrini Mirabete o corrobora ao afirmar que

“o produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até

mumificado, ou pode a gestante morrer antes da sua expulsão. Não deixará de haver, no caso,

o aborto.”16

15 GOMES, Hélio. Medicina legal. 11ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1968, p. 405. 16 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. 14ª. ed. São Paulo: Atlas, v. 2, 1998, p. 93.

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Por se tratar de crime de forma livre, quaisquer meio e forma de comportamento

podem ser utilizados na “provocação” do aborto, desde que tenha idoneidade para produzir o

resultado. Logo, rezas, benzedeiras, despachos e similares não são idôneos para provocar o

aborto e caracterizam crime impossível, por absoluta ineficácia do meio (art. 17, do CP).

Sendo exercida sobre o próprio feto ou sobre a gestante, a ação de “provocar o aborto”

tem que ter a finalidade de interromper a gravidez e eliminar o produto da concepção.

Portanto, é um crime que só admite a forma dolosa, sendo essencial que se verifique a livre

vontade e consciente de interromper a gravidez, matando o embrião (dolo direto) ou, no

mínimo, assumindo o risco de matá-lo (dolo eventual). O aborto culposo é impunível,

respondendo o agente apenas por eventuais danos causados.

Por se esgotar no momento em que se verifica a morte do feto, sem continuidade

temporal, classifica-se como um crime instantâneo; e de dano, visto que sua consumação

somente se dá com a lesão efetiva do bem jurídico, isto é, a vida do embrião, e não como o

mero risco de lesão.

Configura um crime de mão própria, na forma do art. 124, tanto quando há

consentimento da gestante (pois só ela poderia dar o consentimento), quanto na figura do

auto-aborto, praticado pessoalmente pela mãe, sem interposição de terceiro. Nas figuras dos

artigos 126 e 128, isto é, o aborto sofrido e o consentido, vislumbra-se a ocorrência de um

crime comum, pois qualquer pessoa pode se revestir de agente.

O crime de aborto, por fim, é um crime classificado como material ou de resultado,

pois o resultado integra o próprio tipo penal: para sua consumação, é indispensável a

produção do dano, isto é, a morte do embrião. Tal consideração é de suma importância para

que se descaracterize o crime de aborto nos casos de interrupção da gravidez de feto

anencefálico, pois, partindo-se do pressuposto que este embrião não possui vida (já que a

morte, para o ordenamento jurídico, é a ausência de atividade cerebral), não haverá a

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produção do efeito “morte do feto” prevista no tipo penal, não se configurando a ocorrência

da conduta tipificada.

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3.3 As hipóteses justificadoras legais – excludentes de ilicitude

O art. 128 do CP dispõe que: “não se pune aborto praticado por médico: I – se não há

outro meio de salvar a vida da gestante [aborto necessário]; II – se a gravidez resulta de

estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu

representante legal [aborto sentimental ou humanitário]”.

Tal previsão constitui uma forma diferente e especial de o legislador excluir a ilicitude

de uma infração legal sem afirmar expressamente “não há crime”, como faz no art. 23 do

mesmo diploma legal. Em outros termos, o Código Penal, quando prevê que “não se pune o

aborto”, está afirmando que o aborto é ilícito nessas duas hipóteses excepcionadas, afinal,

como assevera Damásio de Jesus, “fato impunível, em matéria penal, é fato lícito”. E

sedimenta a questão ao constatar que “haveria causa pessoal de exclusão de pena somente se o

CP dissesse ‘não se pune o médico’, o que não é o caso”.

Chama atenção, neste mérito, a justificação do aborto em gravidez resultante de

estupro, a qual não se alinha a qualquer critério médico, tampouco visa a preservar o bem

jurídico “vida”, mas sim a honra subjetiva da parturiente ou, até mesmo, de sua sanidade

psicológica, mediante o sacrifício de uma vida em gestação, independentemente de ser ela

sadia e perfeita. No mesmo sentido se orienta o aborto necessário, em que basta o risco à

saúde da gestante, pouco importando o estado do feto.

Entretanto, quando se refere à gravidez de um feto anencefálico, o ordenamento

jurídico não reserva tal proteção da sanidade psicológica da mulher dispensada à hipótese de

estupro, ainda que seja igualmente evidente o sofrimento que se impõe à gestante pela

determinação de que o parto deva chegar a termo.

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Em verdade, o fundamento pelo qual nosso Código não abriga a possibilidade de

exclusão da antijuridicidade nas hipóteses de anencefalia deriva simplesmente da época de

sua edição, quando a ciência médica ainda não avançara a ponto de oferecer um diagnóstico

seguro sobre a inviabilidade fetal em casos de anencefalia.

À época, o problema do chamado “aborto eugênico” se referia às deformidades físicas

e mentais que o feto poderia apresentar, e, nestes casos, defender o aborto equivaleria a

legitimar as práticas eugênicas nazistas legalmente admitidas, em que não havia, nem de

longe, o prognóstico de morte. É Magalhães Noronha quem comenta que “falibilidade do

prognóstico: no caso concreto, não haverá fatalidade do efeito pernicioso no ente em

formação: é mais uma razão para não se admitir sua morte antecipada”.17

Assim sendo, certo é que as hipóteses de exclusão de antijuridicidade do aborto

legalmente determinadas, vinculadas aos casos de estupro e ou risco para a gestante, não mais

refletem atualmente os anseios da sociedade brasileira, nem a realidade do avanço científico.

Por tratar de uma causa especial de exclusão da antijuridicidade, a interpretação, em princípio,

seria restritiva e não comportaria ampliação.

Todavia, convém ressaltar que, como de regra, o direito culmina pela absorção das

razões sociais em constante e gradual evolução. Tanto assim que, uma vez já reconhecida

socialmente e tecnicamente, como circunstância que justifica a prática interruptiva da

concepção, a hipótese em apreço já é contemplada no anteprojeto de nova parte especial do

Código Penal que atualmente tramita como projeto no Congresso Nacional. A situação é,

portanto, de conhecimento comum, somente não figurando no mundo jurídico dados os

trâmites legislativos, que sempre vem a reboque ou como resultado de um prévio

posicionamento social.

17 NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1987-1988, p. 62.

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A matéria já vem, inclusive, suscitando comentários de doutrinadores da área, cabendo

citar passagem da obra de Paulo Lúcio Nogueira, intitulada “Em Defesa da Vida”:

“O médico Thomaz Rafael Gollop, em artigo bastante esclarecedor sobre o assunto, e com sua experiência no atendimento de mais de três mil casais em exames pré-natais para diagnóstico de malformações fetais, examina a questão do aborto eugênico sob o prisma médico e informa que «na área de minha especialidade, a ultra-sonografia e outros exames de alta precisão fornecem dados muito seguros sobre a saúde do feto nos casos de risco, nos quais, dado um quadro adverso, o casal deveria ter o direito de escolher livremente pela continuação ou interrupção da gravidez». (Boletim do IBCCrim - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 12, jan., 1994). Informa o ilustre médico que ‘recente levantamento comparativo feito pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia mostra que, em 1970, cerca de 35% dos médicos eram favoráveis a uma lei que permitisse a interrupção da gravidez por anomalia fetal. Hoje, 90% dos obstetras pensam da mesma forma. Houve uma revolução do pensamento médico, ditada por todo o tipo de informação e pelos avanços tecnológicos, mas não acompanhada pela lei penal nem por setores influentes da sociedade.’ E acrescenta que ‘o que nós temos observado é que em 95% dos casos, diante de uma anomalia fetal grave, a opção do casal é a interrupção da gestação ainda que ela não seja legal em nosso meio’. E conclui, mencionando dois precedentes jurídicos da mais alta importância. “Em dezembro de 1992, o Juiz Dr. Miguel Kfoury Neto, de Londrina, autorizou a interrupção de uma gestação na qual havia sido diagnosticada anencefalia. Em dezembro de 1993, entramos com ação e obtivemos do Juiz de Direito Dr. Geraldo Francisco Pinheiro Franco autorização para interromper gravidez de 23 semanas em feto portador de acrania. A nosso ver, são essas demonstrações claras, onde o avanço da ciência médica procurou e obteve apoio e sensibilidade da classe jurídica.”18

Bitencourt refere justamente que “o Código Penal de 1940 foi publicado segundo a

cultura, costumes e hábitos dominantes na década de 30”19. Não são mais aceitáveis os

critérios sociais ou científicos da época como parâmetro para os dias atuais. Afinal, continua

Bitencourt, “passaram sessenta anos, e, desse lapso, não foram apenas os valores da sociedade

que se modificaram, mas principalmente os avanços científicos e tecnológicos, que

produziram verdadeira revolução da ciência médica”. A precisão dos diagnósticos clínicos

atuais faz com que haja “condições de definir com absoluta certeza e precisão eventual

anomalia do feto e, conseqüentemente, a inviabilidade de vida extra-uterina”.

18 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em defesa da vida. São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 15 et seq. 19 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. p. 156.

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As duas situações, da gravidez resultante de estupro e da gestação de um anencefálico,

no que tange ao período gestacional, produzem semelhante aflição psicológica na mulher. A

primeira, porque os nove meses de gestação representam uma suprema exigência e sofrimento

da mãe que a cada instante estará revendo as cenas horrendas que produziram esta gravidez. A

segunda, porque a cada dia estará vendo o desenvolvimento agônico de um ser que dá mais

um passo no inexorável caminho da morte. Inexiste distinção, portanto, no âmbito destas duas

situações, do ponto de vista dos valores jurídicos a serem preservados, merecendo ambas

idêntico tratamento por parte do Direito.

Todavia, a despeito de patente equiparação, o ordenamento jurídico, por ora, apenas

justifica as práticas do aborto enumeradas no art. 128 do CP.

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4. DA PERMISSÃO LEGAL PARA A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ NOS

CASOS DE ANENCEFALIA

É preciso que anteriormente ao esmiuçamento das justificativas jurídicas em que se

baseia a defesa da legalização da antecipação terapêutica do parto nas hipóteses de

anencefalia, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca dos elementos que compõe

a noção jurídica de crime segundo a doutrina brasileira.

Como será demonstrado adiante, alguns fundamentos favoráveis ao aborto terapêutico,

os quais se apóiam, sobretudo, nos princípios do ordenamento jurídico pátrio, poderiam

atingir o cerne de um dos elementos do crime, comprometendo sua existência e

inviabilizando, eventualmente, o próprio ajuizamento da ação penal correspondente.

Ilustra o exposto, por exemplo, o voto do Ministro Sepúlveda Pertence na última

audiência referente à ADPF 54, realizada em abril de 2005, na qual constava em pauta a

discussão sobre a adequabilidade deste instrumento constitucional para o fito de tornar legal a

interrupção da gravidez do anencefálico. O Sr. Ministro, após manifestar-se favoravelmente à

legitimidade da ADPF para o debate em questão, refutou, ao final, o fundamento de que a

ADPF se reduziria a requerer que fizesse incluir um terceiro inciso no art. 128 do CP, por

considerar que a pretensão formulada é no sentido de se declarar, em homenagem aos

princípios constitucionais aventados, não a exclusão de punibilidade através de um acréscimo

no texto legal, mas a atipicidade do fato.

O adendo se justifica. Se o objetivo da ADPF fosse incluir expressamente a

autorização do aborto por anencefalia no rol de excludentes de ilicitude do art. 128, ao lado do

aborto necessário e do humanitário, o texto do Código Penal deveria ser modificado para

atender a essa decisão e isso corresponderia ao Poder Judiciário fazendo as vezes de Poder

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Legislativo, o que é vedado em nosso ordenamento. Em razão dessa exposição é que os

Ministros Eros Grau, Cezar Peluso e Ellen Gracie não conheceram da APDF, por

considerarem, em síntese, que o pedido de interpretação conforme os artigos implicaria ofensa

ao princípio da reserva legal, ao criar mais uma hipótese expressa de excludente de

punibilidade.

Como se vê, revela-se essencial que seja definida sobre que elemento do crime recai o

argumento invocado, sobre a tipicidade ou a antijuridicidade (ou, ainda, à culpabilidade, a

depender da orientação doutrinária adotada para definição de crime), pois condicionado a isto

se encontra o ajuizamento da devida ação penal.

Cumpre esclarecer que este trabalho apenas se ocupará de explicitar as interpretações

que devem ser atribuídas aos dispositivos do Código Penal que tratam do crime de aborto, em

consonância com todos os princípios norteadores do Estado Democrático de Direito, uma vez

que a mudança do texto da lei, como muito bem salientaram os Ministros vencidos na última

sessão realizada para julgamento da ADPF/54, depende de processo legislativo, o qual não

pode ser suplantado pela voz do Judiciário.

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4.1 Jurisprudência

Procurou-se demonstrar, através de uma pesquisa jurisprudencial, como a autorização

para antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia vem sendo deferida com maior

freqüência quando levada à apreciação do Poder Judiciário.

A pesquisa jurisprudencial limitou-se aos Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro, do

Rio Grande do Sul e de São Paulo, uma vez que certamente configuram as instituições de

maior repercussão no que tange às decisões proferidas sobre temas polêmicos. O

posicionamento destas cortes, parece indicar uma evolução do pensamento jurídico no sentido

de entender o aborto do anencefálico como um tratamento terapêutico capaz de dar fim à

angústia de gestantes que se vêem diante de tal situação e que à máquina judiciária recorrem.

À exceção apenas de São Paulo, o qual, na contramão do entendimento firmado pelos outros

tribunais citados, divide-se entre autorizar e indeferir a interrupção da gravidez na hipótese

ventilada. Infelizmente, no que se refere a este Tribunal, o inteiro teor dos acórdãos não se

encontra disponibilizado para consulta geral, o que possibilitou que apenas algumas ementas

fossem transcritas.

“ABORTO EUGENÉSICO - Pedido judicial visando a interrupção da gravidez em decorrência da anencefalia do feto - Não-concessão - Situação não contemplada pelo direito infraconstitucional que, se permitida, resultaria em afronta à Lei Maior (TJSP) - RT 806/540”

“AUTORIZAÇÃO JUDICIAL - Interrupção da gravidez - Admissibilidade - Anencefalia - Constatação médica de inviabilidade de vida pós-parto, dada a ausência de calota craniana do feto - Ausência de previsão autorizativa para o aborto que não impede que o Judiciário analise o caso concreto e o resolva à luz do bom senso e da dignidade humana (TJMG) - RT 842/291”

Transcreve-se, ainda, a decisão monocrática emitida pelo Ministro do STF Marco

Aurélio, cujos fundamentos levam a crer que a controvérsia se encontra próxima à solução

mais equânime e em consonância com os valores da Estado Democrático de Direito.

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4.2 O entendimento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

Analisando os julgados proferidos pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, denota-

se que o entendimento desta Colenda Casa se faz, em uníssono, no sentido de autorizar a

antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia. Seguem transcritas algumas dessas

decisões.

”ABORTO. ANENCEFALIA. AUTORIZACAO JUDICIAL. AGRAVO REGIMENTAL. NEGADO PROVIMENTO.

Agravo Regimental. Agravo interposto contra decisão que autorizara gestante a interromper a gravidez ante a patologia apresentada pelo feto, de natureza irreversível e incontornável, que impossibilita a vida pós-natal. Argumenta-se que a CF/88 assegura como inviolável o direito à vida, não condicionando ‘a norma à fase da vida em que se encontra o individuo humano’. Dizem os agravantes que é discriminatório desconsiderar ou desrespeitar o direito à vida do nascituro. Juntam decisão anterior deste Tribunal e requerem a reconsideração da decisão que autorizara a interrupção da gravidez. Realmente não há' previsão legal para a hipótese versada nos autos. Mas, atento ao principio da razoabilidade, tem-se como desumana e ilegal a decisão que, imotivadamente, suspendera os efeitos da autorização judicial concedida por esta Relatora. Desumana porque ignora totalmente o sofrimento suportado por uma jovem de apenas 18 anos (e seu marido), que tem plena ciência de carregar no ventre um ser condenado à morte, não havendo a menor possibilidade de sobrevivência, apos o parto. Ilegal porque somente esta Relatora (a quem, alias, foi dirigido o agravo regimental, conforme determina o art. 200 em seu parágrafo 2º do Regimento Interno desta Corte) poderia nele se manifestar. Ressalte-se que a condição de Presidente da Câmara não confere ao prolator da decisão poderes para suspender decisão adotada por outro Desembargador, pelo simples motivo de inexistir hierarquia entre quaisquer dos membros da Câmara. Todos são Desembargadores: as decisões têm a mesma eficácia e um não pode revogar o que o outro decidiu. Só o Colegiado pode modificar o decidido monocraticamente. Se assim age, pratica invasão de competência e esta decisão nenhuma eficácia tem porque prolatada por quem não tinha competência para tal. A justificativa de que era o único membro da Câmara presente no Tribunal dá a falsa idéia de desídia dos demais integrantes da Câmara. A pauta do dia de hoje já tinha sido publicada em 19 de novembro e dela constavam vários processos de que somos relatores e revisores. Logo, aqui estaríamos presentes (embora em férias) e de pronto seria julgado o agravo regimental, mostrando-se desarrazoada a intervenção de outro Desembargador no feito. Ressalte-se que a decisão de cunho suspensivo somente teve o efeito inquestionável de causar mais sofrimento e revolta ao casal, já tão fragilizado pela situação dolorosa que enfrentam. A decisão agravada (que autorizava a interrupção da gestação) é de ser mantida por seus próprios fundamentos. Não lograram os agravantes trazer qualquer argumento que evidenciasse equívoco na fundamentação da decisão

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guerreada. Invocam genericamente a Constituição como garantidora do direito à vida, nada mais. Ignoram completamente o desespero da mãe por saber frustrada a chegada de um filho, pois é positivado nos autos por laudo medico que o feto apresenta ‘malformação grave do sistema nervoso central (cabeça fetal com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar) que é incompatível com a vida pós-natal’. Ora, versando os autos sobre questão cientifica, não cabem aqui divagações sobre o tema. Cabe sim ao Judiciário decidir e decidir sem medo de contrariar os que pensam diferente, pois o casal recorreu ao Judiciário buscando obter a interrupção legal da gestação. Não agiram na clandestinidade, demonstrando respeito pelas instituições e pela ordem jurídica vigente. Não podem e não merecem permanecer com este sofrimento de saber que o filho tão desejado não sobreviverá tão logo venha ao mundo por padecer de patologia incontornável. Argumento algum foi invocado para justificar a reforma da decisão autorizadora da interrupção da gravidez. Os agravantes somente invocaram os velhos e surrados argumentos de defesa pura e simples da vida de quem já está inexoravelmente condenado à morte, ignorando-se por completo o sofrimento, a angustia dos pais e o risco de vida que corre a mãe, abatida por intensa depressão, a esta altura intensificada pela constatação dolorosa de que recorrer à Justiça nem sempre significa solução rápida para problemas cruciais. Nego provimento ao agravo e mantenho a autorização para que a agravada submeta-se ao aborto, interrompendo-se a gravidez em curso. Vencido o Des. J.C. Murta Ribeiro.” DES. GIZELDA LEITAO TEIXEIRA - Julgamento: 25/11/2003 - SEGUNDA CAMARA CRIMINAL

Da decisão ora invocada, infere-se que o Órgão Julgador houve por bem negar

provimento ao agravo regimental interposto contra decisão monocraticamente proferida, a

qual autorizava o aborto, baseando-se não somente na questão processual de competência, a

qual seria bastante para fundamentar a denegação, mas também no fato de o casal envolvido

estar decerto passando por profunda angústia em virtude da anencefalia e da impossibilidade

de vida para o feto por ela carreada. Através de trechos tais quais “não podem e não merecem

permanecer com este sofrimento de saber que o filho tão desejado não sobreviverá tão logo

venha ao mundo por padecer de patologia incontornável”, demonstram a sensibilidade do

Poder Judiciário diante de circunstâncias que, embora não previstas de forma expressa na

legislação pátria, pelos motivos já expostos, não podem deixar de receber a atenção do

Estado, o qual prima pela dignidade da pessoa humana, como é o caso do Estado Democrático

de Direito.

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”HABEAS CORPUS. ANENCEFALIA. ABORTO. ALVARA DE AUTORIZACAO.

‘Habeas Corpus’. Anencefalia. Alvará de autorização para intervenção cirúrgica. Presença do "fumus boni iuris" e do "periculum in mora". Feto portador de anencefalia, observada a presença de diversas anomalias. A Comissão de Ética Medica do Instituto Fernandes Figueira, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz, emitiu parecer favorável à interrupção da gravidez, por se tratar de concepto portador de graves más formações no sistema nervoso central, incompatíveis com a vida extra-uterina, tornando a gestação freqüentemente complicada por polidramnia, que acarreta graves conseqüências à saúde da gestante. Precedentes jurisprudenciais. A intervenção se faz necessária, justificada a realização da intervenção cirúrgica para remoção de feto anencefálico pelo estado de necessidade, reconhecendo-se o perigo de grave dano à pessoa, em face das conseqüências morais, familiares e sociais do parto. Conduta atípica por não atingir qualquer bem jurídico penalmente tutelado. Ordem concedida.” DES. SUELY LOPES MAGALHAES - Julgamento: 27/01/2005 - OITAVA CAMARA CRIMINAL

Visando consubstanciar esse julgado, foi utilizado o argumento da ausência de

tipicidade material, o qual se extrai da expressão “conduta atípica por não atingir qualquer

bem jurídico penalmente tutelado”. O órgão julgador reconheceu, neste caso, que a vida do

feto, uma vez inviável após o parto, não deveria ser preservada inutilmente em detrimento da

saúde física e psicológica da gestante, sobretudo porque, pelo conceito neurológico de morte

adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, o bem jurídico “vida” a ser tutela seria inexistente

nesse caso.

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4.3 O entendimento do Supremo Tribunal Federal

Nesse ponto, é transcrito o interior teor da decisão emitida pelo Ministro do STF

Marco Aurélio, relator da ADPF/54, através da qual restou deferida a liminar que autorizava a

interrupção da gravidez em casos de anencefalia.

DECISÃO-LIMINAR ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - LIMINAR - ATUAÇÃO INDIVIDUAL - ARTIGOS 21, INCISOS IV E V, DO REGIMENTO INTERNO E 5º, § 1º, DA LEI Nº 9.882/99. LIBERDADE - AUTONOMIA DA VONTADE - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - SAÚDE - GRAVIDEZ - INTERRUPÇÃO - FETO ANENCEFÁLICO. 1. Com a inicial de folha 2 a 25, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS formalizou esta argüição de descumprimento de preceito fundamental considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto. Em nota prévia, afirma serem distintas as figuras da antecipação referida e o aborto, no que este pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Consigna, mais, a própria legitimidade ativa a partir da norma do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, segundo a qual são partes legítimas para a argüição aqueles que estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República, alusivo à ação direta de inconstitucionalidade. No tocante à pertinência temática, mais uma vez à luz da Constituição Federal e da jurisprudência desta Corte, assevera que a si compete a defesa judicial e administrativa dos interesses individuais e coletivos dos que integram a categoria profissional dos trabalhadores na saúde, juntando à inicial o estatuto revelador dessa representatividade. Argumenta que, interpretado o arcabouço normativo com base em visão positivista pura, tem-se a possibilidade de os profissionais da saúde virem a sofrer as agruras decorrentes do enquadramento no Código Penal. Articula com o envolvimento, no caso, de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, em seu conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde. Citando a literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana - a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde - o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Já os profissionais da medicina ficam sujeitos às normas do Código Penal - artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II -, notando-se que, principalmente quanto às famílias de baixa renda, atua a rede pública. Sobre a inexistência de outro meio eficaz para viabilizar a antecipação terapêutica

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do parto, sem incompreensões, evoca a Confederação recente acontecimento retratado no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, declarado prejudicado pelo Plenário, ante o parto e a morte do feto anencefálico sete minutos após. Diz da admissibilidade da ANIS - Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero como amicus curiae, por aplicação analógica do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99. Então, requer, sob o ângulo acautelador, a suspensão do andamento de processos ou dos efeitos de decisões judiciais que tenham como alvo a aplicação dos dispositivos do Código Penal, nas hipóteses de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-se o direito constitucional da gestante de se submeter a procedimento que leve à interrupção da gravidez e do profissional de saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia. O pedido final visa à declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal - Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Sucessivamente, pleiteia a argüente, uma vez rechaçada a pertinência desta medida, seja a petição inicial recebida como reveladora de ação direta de inconstitucionalidade. Esclarece que, sob esse prisma, busca a interpretação conforme a Constituição Federal dos citados artigos do Código Penal, sem redução de texto, aduzindo não serem adequados à espécie precedentes segundo os quais não cabe o controle concentrado de constitucionalidade de norma anterior à Carta vigente. A argüente protesta pela juntada, ao processo, de pareceres técnicos e, se conveniente, pela tomada de declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria. À peça, subscrita pelo advogado Luís Roberto Barroso, credenciado conforme instrumento de mandato - procuração - de folha 26, anexaram-se os documentos de folha 27 a 148. O processo veio-me concluso para exame em 17 de junho de 2004 (folha 150). Nele lancei visto, declarando-me habilitado a votar, ante o pedido de concessão de medida acauteladora, em 21 de junho de 2004, expedida a papeleta ao Plenário em 24 imediato. No mesmo dia, prolatei a seguinte decisão: AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - INTERVENÇÃO DE TERCEIRO - REQUERIMENTO - IMPROPRIEDADE. 1. Eis as informações prestadas pela Assessoria: A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - requer a intervenção no processo em referência, como amicus curiae, conforme preconiza o § 1º do artigo 6º da Lei 9.882/1999, e a juntada de procuração. Pede vista pelo prazo de cinco dias. 2. O pedido não se enquadra no texto legal evocado pela requerente. Seria dado versar sobre a aplicação, por analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também processo objetivo - ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade. Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito subjetivo a tanto. Fica a critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de ofício, não é suscetível de impugnação na via recursal. 3. Indefiro o pedido. 4. Publique-se. A impossibilidade de exame pelo Plenário deságua na incidência dos artigos 21, incisos IV e V, do Regimento Interno e artigo 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, diante do perigo de grave lesão. 2. Tenho a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS como parte legítima para a formalização do pedido, já que se

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enquadra na previsão do inciso I do artigo 2º da Lei nº 9.882, de 3 de novembro de 1999. Incumbe-lhe defender os membros da categoria profissional que se dedicam à área da saúde e que estariam sujeitos a constrangimentos de toda a ordem, inclusive de natureza penal. Quanto à observação do disposto no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, ou seja, a regra de que não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, é emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo, gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação. Na oportunidade, salientou: A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero. O Presidente da Câmara Criminal a que afeto o processo, desembargador José Murta Ribeiro, afastou do cenário jurídico tal pronunciamento. No julgamento de fundo, o Colegiado sufragou o entendimento da relatora, restabelecendo a autorização. Ajuizado habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça, mediante decisão da ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar, suspendendo a autorização. O Colegiado a que integrado a relatora confirmou a óptica, assentando: HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO. DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO. 1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro. 2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal. 3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal. 4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador. 5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental. Daí o habeas impetrado no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, na assentada de julgamento, em 4 de março último, confirmou-

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se a notícia do parto e, mais do que isso, de que a sobrevivência não ultrapassara o período de sete minutos. Constata-se, no cenário nacional, o desencontro de entendimentos, a desinteligência de julgados, sendo que a tramitação do processo, pouco importando a data do surgimento, implica, até que se tenha decisão final - proclamação desta Corte -, espaço de tempo bem superior a nove meses, período de gestação. Assim, enquadra-se o caso na cláusula final do § 1º em análise. Qualquer outro meio para sanar a lesividade não se mostra eficaz. Tudo recomenda que, em jogo tema da maior relevância, em face da Carta da República e dos princípios evocados na inicial, haja imediato crivo do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam enfoques diversificados. A unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal, gerando insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e sofrimento ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação jurisdicional. Atendendo a petição inicial os requisitos que lhe são inerentes - artigo 3º da Lei nº 9.882/99 -, é de se dar seqüência ao processo. Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoáes em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie. 3. Ao Plenário para o crivo pertinente. 4. Publique-se. Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas. Ministro MARCO AURÉLIO Relator”

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Apesar dos efeitos desta liminar estarem atualmente suspensos, impossível negar a

relevância jurídica que seu deferimento representa, tendo em vista ser uma manifestação

oficial do entendimento da Corte Maior do ordenamento jurídico brasileiro perante a questão.

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5. DOS ARGUMENTOS RELIGIOSOS

Analisando os casos, até então registrados, cujos pedidos da gestante para interromper

sua gravidez maculada pela anencefalia restaram negados, é possível perceber que se trata de

decisões arbitrárias, na maior parte das vezes fundamentadas em premissas religiosas pessoais

do juiz ou do promotor e, equivocadamente, anunciadas como fundamentos jurídicos para

negar o pedido.

Na verdade, o que ocorre é que autorização judicial para a antecipação terapêutica é

negada com fulcro no art. 128 do CP, o qual não prevê esse permissivo, mas a moralidade do

pedido é justificada através de argumentos puramente fundados em crenças religiosas.

Expressões como “sou um juiz vinculado a tal religião” ou “minhas crenças religiosas não me

permitem autorizar um pedido de aborto” são recorrentes em processos cujo pedido é negado.

Neste contexto, entende-se que, mesmo para magistrados pouco sensíveis à

legalização do aborto em geral, esta prática em razão dessa anomalia fetal constitui uma

situação tão peculiar, que o mero apelo aos dispositivos do Código Penal para embasar a

negativa da autorização se mostra insuficiente para instruir o processo: carece o magistrado de

razões morais que estão além da lei, como é o caso das premissas religiosas.

Os valores religiosos são trazidos à baila através de memoriais e intervenções

realizadas pelos ditos meros interessados em ações que versem sobre a matéria, como é o caso

da ADPF/54.20 e não somente nas sentenças proferidas nos processos individualmente

ajuizados para obtenção de autorização em casos específicos. E nem poderia ser diferente,

diante da forte influência que a religião católica sempre exerceu e exerce na formação dos

20 Na ADPF/54, solicitaram admissão no feito, na qualidade de “amicus curiae”, a ADEF - Associação de Desenvolvimento da Família, CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, Associação UNIVIDA, chegando, por vezes, a endereçar petição solicitando a improcedência da demanda ou a extinção do processo sem análise do mérito.

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contornos morais do ideário de seus seguidores, os quais compõem a maioria absoluta da

população brasileira, como já informado.

É entendido que a matéria em apreço suscita, muito além de toda a questão jurídica,

implicações morais, sociológicas e de diversas outras ordens, ensejando manifestações

apaixonadas que, muitas vezes, pecam pelo abandono total de premissas racionalmente

estabelecidas em prol de argumentos carentes, por vezes, de simples lógica, como é o caso da

defesa do direito à vida de um ser cuja vida, em si mesma, se mostra inviável.

Muito embora se compreenda que o contexto histórico-cultural e a própria natureza da

questão trazem para o cerne da discussão, inevitavelmente, crenças e idéias de cunho

religioso, não se pode perder o foco de que o Direito Penal trata dos atentados mais graves aos

bens jurídicos de maior relevância para a sociedade, não podendo sua aplicação e

interpretação ser condicionada a convicções que variam de indivíduo para indivíduo. Os

questionamentos filosóficos e religiosos devem, portanto, ser afastados de plano na busca da

solução desta controvérsia, a qual deve encontrar seus fundamentos dentro dos conhecimentos

da medicina em seu estágio atual e em conformidade com os princípios que norteiam o

ordenamento jurídico.

Ademais, conforme explicitado anteriormente, a separação entre Estado e Igreja está

estabelecida constitucionalmente, conforme dispõe o artigo 19, inciso I, da Constituição da

República de 1988, ao passo que os incisos VI e VII de seu artigo 5º, garantem a liberdade de

culto constitucionalmente. Desta forma, não pode prevalecer a doutrina católica, ainda que

represente a maioria dos cidadãos brasileiros, em detrimento de toda uma diversidade de

concepções religiosas, as quais podem, eventualmente, se posicionar diversamente diante do

aborto por anomalia fetal irreversível e letal. Os ateus, ímpios, hereges e agnósticos, por sua

vez, têm, ainda, o direito de viver livre da influência religiosa se assim o desejarem.

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Desta forma não é possível que qualquer religião, por mais seguidores e praticantes

que possua, imponha, de forma unilateral, seus pontos de vista a toda a sociedade de um país.

As certezas ou convicções religiosa de uns não devem ser entendidas como verdade para

todos, ou ser colocadas acima do Direito. O laicismo do Estado, ou seja, a neutralidade

religiosa do Estado, é uma qualidade imprescindível para que haja democracia e para que as

leis e políticas se destinem a todas as pessoas, independentemente de seus preceitos morais ou

crenças religiosas. Ao Estado laico cabe garantir a todos os cidadãos o exercício da liberdade

de consciência e o direito de tomar decisões livres e responsáveis, o qual se limita apenas pela

observância das regras do Direito que visam ao respeito e amplo exercício dos direitos

fundamentais, bem como a tutela dos bens jurídicos de maior valor. Consoante comentário de

Silva Franco, “num Estado Democrático de Direito, de caráter laico, com compromissos

assumidos com a dignidade da pessoa humana e com o pluralismo moral e cultural, não há

razão justificadora para confundir questões jurídicas com questões morais”21.

Além disso, cabe ressaltar que os próprios representantes da religião católica não se

manifestam em uníssono contra a prática do aborto, mesmo em circunstâncias diferentes da

anencefalia. Ainda que a posição oficial desta Igreja se oriente no sentido de condenar a

prática em absoluto, há, atualmente, teólogos e religiosos que fazem a defesa da validade

moral de um ato abortivo. Daniel Maguire, professor de teologia moral formado em Roma,

afirma:

"A anticoncepção é não somente lícita, como pode ser moralmente obrigatória. Da mesma forma, a opção por um aborto - uma opção que, ironicamente, faz-se mais necessária quando se proíbe a anticoncepção artificial - e, em muitas circunstâncias, uma opção moral para as mulheres".

21 FRANCO, Alberto Silva. Op. Cit. p. 2.

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Também a Irmã Ivone Gebara, em 1993, assumiu uma posição de concordância com a

liberalização da legislação em vigor com relação ao aborto, ao lado de inúmeros outros casos

de menor expressividade que inegavelmente ocorrem no dia-a-dia.22

Portanto, se mesmo dentro da própria instituição é possível constatar dissidências

quanto à matéria, é impensável que se submeta toda uma coletividade aos dogmas de uma

crença que sequer gozam de unanimidade.

Por fim, cumpre notar que alguns defensores da não autorização do aborto do

anencefálico, como o Dom Odilo Pedro Scherer, secretário geral da CNBB, assim se orientam

sob a justificativa de temerem que, com essa concessão específica, sejam abertos precedentes

para que a prática seja feita de forma indiscriminada.

Nesse sentido, cabe esclarecer que tal perspectiva se encontra muito longe de ser

concretizada, caso um dia venha a ser, visto que a anencefalia é uma hipótese excepcional, em

que, como exaustivamente explicado, não há possibilidade alguma de vida do feto após o

parto. O diagnóstico de qualquer má-formação fetal, principalmente as incompatíveis com a

vida, como é o caso, não compõe o rol de expectativas das mulheres grávidas, dando causa a

uma angústia de difícil comparação a qualquer outra. E parte importante dessa angústia

decorre exatamente da precisão fornecida pelas técnicas de diagnóstico: há uma limitação

técnica da medicina fetal, pois não há possibilidades terapêuticas disponíveis para o caso.

A impossibilidade de experiência de vida extra-uterina nos casos de anencefalia

configura a fronteira com as outras situações de aborto voluntário. Para grande parte das

pessoas que consideram o aborto uma prática imoral, o argumento central é de que o feto já é

pessoa, sendo o fundamento do status moral de pessoa a capacidade ou potencialidade de 22 “Era 21 de outubro de 2004 quando Severina – aos quatro meses de gestação – estava internada em um hospital de Recife para antecipar o parto, conforme autorização uma liminar em vigor. O diagnóstico era definitivo: anencefalia. Não há cura para o mal, que mata a maior parte dos fetos ainda no útero. Alguns vivem minutos, mas nenhum sobrevive. (...)Não teve dúvidas de que precisava tirar. O padre acabou apoiando. ‘Ele disse que a Igreja não permite, mas que, se não tinha vida, não era pecado tirar’, conta Severina.”. Extraído de “Revista Criativa”, Edição 199, Nov 2005.

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viver a vida, não importa de que forma. Esse é um fundamento, infelizmente, inexistente para

os casos de anencefalia.

Desta forma, forçoso entender que, mesmo que se discriminasse a prática da

antecipação do parto no caso da anomalia fetal em evidência, a legalização do aborto em

qualquer hipótese ainda estaria muito distante da realidade jurídica e até mesmo social

brasileira, pelo simples motivo que, ao contrário da anencefalia, haveria uma vida extra-

uterina em potencial, existindo todo um arcabouço jurídico e cultural para tutelá-la, cuja

superação se mostraria, no mínimo, difícil e demorada.

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6. CONCLUSÃO

Nos dias de hoje, a anencefalia é uma doença que atinge 1 a cada 1000 bebês, estando

a causa de sua ocorrência ainda desconhecida das ciências biológicas. O sistema nervoso

central é seriamente comprometido por esta anomalia, sendo certo que os dois hemisférios

cerebrais não são desenvolvidos dentro da caixa craniana, acarretando, por conseqüência,

atividade cerebral ausente.

Apesar do Direito Brasileiro não ter definido o conceito de vida, definiu, entretanto,

quando se dá seu ocaso, ao promulgar a Lei 9.434/97, a Lei de Transplantes, a qual adota,

para fins de autorização da doação de órgãos, o critério neurológico para fixação da

concepção de morte.

A autorização para o aborto de feto anencefálico reavivou as intermináveis discussões

doutrinárias travadas recentemente entre os que defendem o início da personalidade civil

apenas após o nascimento com vida e aqueles que admitem que a vida do nascituro goza de

proteção desde o momento de sua concepção. Todavia, em que pese ser louvável o debate em

apreço para dirimir outras controvérsias, fato que é a anencefalia configura uma hipótese

extraordinária e merecedora da atenção redobrada por parte dos operadores do Direito, que

não devem se limitar a conclamar suas convicções sem antes analisar as circunstâncias

peculiares a esta anomalia. Afinal, em resumo, pouco importa a tese adotada para defender o

direito do nascituro à vida: ante o cenário da anencefalia, a discussão sempre esbarrará na

verdade irrefutável de que o que existe é a inviabilidade absoluta da vida humano daquele

feto, sendo ele sujeito de direitos ou não.

Não havendo vida, na hipótese, tal qual ela pode ser entendida, sendo tal fato atestado

por pareceres clínicos, realizada a conduta interruptiva da gestação, não é possível que o

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sujeito logre atingir o bem jurídico protegido em questão, com o que, cuida-se de fato

materialmente atípico.

O aborto não pode ser caracterizado, porque este é um dispositivo jurídico que se basta

no capítulo dos delitos dolosos contra a vida. Sendo a vida é o bem jurídico tutelado crime de

aborto e, se onde há cessação da atividade cerebral não há vida, não há objeto jurídico, e,

nesse caso, não há justificativa para proteção jurídica justificada. Como tal, não pode existir

responsabilidade penal.

E mais. O transtorno de ordem psicológica que a gestação de um feto inviável provoca

na mãe é pelo menos igual, senão mais grave, do que outras razões de ordem moral

albergadas pela legislação brasileira. O aborto autorizado no caso de estupro visa

exclusivamente a preservar a saúde psicológica da gestante, a qual deve ser resguardada,

portanto em qualquer situação, inclusive quando constatada a anencefalia fetal.

Compreensível que a parte especial do nosso Código Penal, datada de 1940,

corresponda a uma realidade técnico-científica em muito defasada em relação aos avanços

médicos dos dias de hoje, porém tal aspecto não é motivo para o Direito, como instrumento de

justiça e controle social que é, esquivar-se de reinterpretar suas leis à luz dos princípios

atemporais e perenes que norteiam o ordenamento jurídico.

É certo que não há como ignorar por completo os preceitos religiosos e éticos que

permeiam a questão, porquanto fazem parte da cultura do povo, a qual, por seu turno, se

encontra representada implicitamente nas leis promulgadas pelos representantes políticos.

Contudo, uma vez que o Brasil é um estado laico, em que as religiões têm sua manifestação

constitucionalmente asseguradas, a decisão de cunho religioso que se fizer no sentido de não

interromper a gravidez de um feto anencefálico deverá partir da própria gestante e em

consonância com suas convicções íntimas, sendo garantido, na mesma medida, que mulheres

filiadas a outras crenças ajam de modo diverso.

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Tampouco merece prosperar o argumento de que a autorização para aborto em caso de

anencefalia poderia abrir precedente para o retorno das práticas eugênicas nazistas. Apesar de

a anencefalia configurar uma anomalia fetal incompatível com a vida, e não uma mera má-

formação física, é cediço que a opção de interromper a gravidez parte de pressupostos muito

mais sentimentais do que racionais. Diversos estudos etnográficos, realizados com mulheres

após o recebimento de diagnóstico de má-formação fetal, mostram que a maioria delas opta

pelo aborto somente em condições extremas, como é o caso da anencefalia ou de outras

anomalias graves. Ao contrário da fantasia de que as técnicas de diagnóstico pré-natal iriam

permitir o surgimento de um mundo onde não existiriam doenças ou deficiências, não é com

base em perspectivas como esta que futuros pais utilizam as técnicas diagnósticas e,

conseqüentemente, optam ou não pelo aborto seletivo. Em geral, casos de má-formação leve,

como ausência de membros ou o lábio leporino, não são considerados pelos futuros pais como

razão suficiente para o aborto seletivo, mesmo em países onde seria possível e legal executá-

los. Nos casos de diagnóstico da Síndrome de Down, por exemplo, o sistema judicial

brasileiro tem rechaçado veementemente a autorização do aborto, muito embora tenha havido

pedidos judiciais nesse sentido.

Desafortunadamente a realidade é tal que ao negarem suporte às gestantes vitimadas

pela incidência da anencefalia, seja através da postura preconceituosa e discriminatória diante

da decisão da mulher de interromper a gravidez, seja sob a forma de decisões jurídicas

denegatórias de autorização, os grupos que se dizem contrários a essa espécie de aborto

terapêutico acabam por contribuir para incrementar as já impressionantes estatísticas

referentes ao aborto clandestino, o qual se situa como causa de 10 a 15% dos óbitos maternos

em todo o Brasil.

Desta forma, tem-se por certo que a solução mais equânime para a questão, sob todos

os aspectos, reside em facultar, às gestantes de fetos anencefálicos, a oportunidade de pôr

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termo ao sofrimento de que padecem desde o momento em que tomaram ciência da anomalia

que acometeu sua gravidez, porém garantindo, concomitantemente, que aquelas que queiram

prosseguir na gestação, pelo motivo que for, tenham esse direito igualmente assegurado. Tal

perspectiva só poderá ser alcançada caso a antecipação terapêutica do parto, nessas hipóteses,

esteja constitucionalmente garantida.

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