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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ MESTRADO EM DIREITO SILVIA ARAÚJO AMORIM PEREIRA BARETTO O ABORTO DO FETO ANENCÉFALO: CONFLITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Rio de Janeiro 2008

SILVIA ARAÚJO AMORIM PEREIRA BARETTO O ABORTO DO FETO … · direitos fundamentais no caso do aborto do anencéfalo, com o método da ponderação de interesses ... O Código Penal

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ MESTRADO EM DIREITO

SILVIA ARAÚJO AMORIM PEREIRA BARETTO

O ABORTO DO FETO ANENCÉFALO: CONFLITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Rio de Janeiro

2008

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SILVIA ARAÚJO AMORIM PEREIRA BARRETTO

O ABORTO DO FETO ANENCÉFALO: CONFLITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito Público, pela Universidade Estácio de Sá.

Orientadora: Profa. Dra. Renata Braga Klevenhusen

Rio de Janeiro

2008

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PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÀO EM DIREITO

A dissertação

O ABORTO DO FETO ANENCÉFALO: CONFLITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

elaborada por

SILVIA ARAUJO AMORIM PEREIRA BARRETTO

e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado

em Direito como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, 26 de agosto de 2008.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________ Profa. Dra. Renata Braga Klevenhusen

Presidente Universidade Estácio de Sá

_________________________________________________ Prof. Dr.Vicente de Paula Barretto

Universidade Estácio de Sá

___________________________________________________ Profa. Dra.

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

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Agradeço à minha mãe, Evangelina, que sempre me incentivou a estudar e me proporcionou essa possibilidade.

À minha paixão, meu filho José Edgard, pela abdicação diária a que se propôs.

À Professora Doutora Renata, pela condução da pesquisa e inúmeras verificações.

Aos amigos que pude fazer e que levarei para a vida.

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RESUMO

Essa dissertação tem como objetivo analisar a colisão dos direitos fundamentais envolvidos em face da possibilidade jurídica ou não da realização do aborto do feto anencefálico. A anencefalia é um defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária que provoca a inviabilidade de vida fora do útero materno. Mas o direito a vida é inviolável e sua proteção começa desde a concepção. A legislação infra constitucional prevê o crime de aborto, exceto nos casos de estupro e risco de vida da mãe. O aborto neste caso não está previsto. A manutenção da gravidez de um feto sem viabilidade de vida infringiria o direito fundamental da mãe de escolha sua liberdade e autonomia. Inicialmente, analisa-se o conceito de vida, o início da vida humana e a definição de anencefalia. Verifica-se a tutela da vida humana intra-uterina, definindo os direitos fundamentais e os direitos humanos, o direito à vida, o direito da personalidade e a atribuição da personalidade civil. Analisa-se o aborto, a viabilidade de vida. Discute-se o direito ao planejamento familiar previsto no artigo 226, da Constituição Federal, a Lei 9263/96, perpassando pelo critério da afetuosidade, pela liberdade e a autonomia da gestante na escolha de manter ou não a gravidez. Aborda-se a colisão de direitos fundamentais no caso do aborto do anencéfalo, com o método da ponderação de interesses no caso de princípios que se colidem sob este fato, com base no princípio da proporcionalidade. Palavras-chaves: Viabilidade. Ponderação de interesses. Dignidade da pessoa humana. Planejamento familiar. Gestante.

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ABSTRACT

This thesis aims to analyze the collision of fundamental rights involved in legal or

face the possibility of not completing the abortion of the foetus anencefálico. The anencephaly is a defect of closing the neural tube during training embryonic causing the unfeasibility of life outside the womb mother. But the right to life is inviolable and its protection begins from conception. The legislation provides below the crime of abortion, except in cases of rape and danger of life of the mother. Abortion in this case is not expected. The maintenance of pregnancy of a fetus without viability of life infringe the fundamental right to choose their mother's freedom and autonomy. Initially analyzes the concept of life, the beginning of human life and the definition of anencephaly. There is a protection of human life intra-uterine, defining fundamental rights and human rights, the right to life, the right of personality and allocation of civil personality. The article analyses the abortion, the viability of life. It discusses the right to family planning under Article 226, of the Federal Constitution, Law 9263/96, perpassando by the criterion of afetuosidade, for freedom and autonomy of pregnant women in the choice of keeping or not a pregnancy. It is a collision of fundamental rights in the case of abortion anencéfalo, with the method of balance of interests in the case of principles which would collide in this fact, under the principle of proportionality Keywords: Feasibility. Balancing of interests. Dignity of the human person. Family planning. Pregnant.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 6 1 O INÍCIO DA VIDA HUMANA.................................................................................... 10 1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS..................................................................................... 10 1.2. A VIDA E A REPRODUÇÃO HUMANA.................................................................. 14 1.3. ANENCEFALIA........................................................................................................... 21 2 A TUTELA DA VIDA HUMANA INTRA-UTERINA............................................... 27 2.1. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DOS DIREITOS HUMANOS...................... 27 2.2. O DIREITO À VIDA........ ........................................................................................... 36 2.3. A VIDA COMO UM DIREITO DA PERSONALIDADE........................................... 41 2.4 ATRIBUIÇÃO DA PERSONALIDADE CIVIL........................................................... 44 2.5. ABORTO...................................................................................................................... 47 2.6. VIABILIDADE COMO CRITÉRIO CARACTERIZADOR DO DIREITO À VIDA 54 2.7. FETO ANENCÉFALO: EXISTÊNCIA DE VIDA?.................................................... 56 3 A VIDA HUMANA E O PLANEJAMENTO FAMILIAR......................................... 60 3.1. O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR....................................................... 60 3.2. LEI 9263/96.................................................................................................................. 65 3.3. AUTONOMIA DA GESTANTE.................................................................................. 68 4 COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CASO DO ABORTO DO ANENCÉFALO..................................................................................................................

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4.1. PONDERAÇÃO DE INTERESSES: PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.... 77 4.2. OBJEÇÕES À APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO.................................................... 82 4.3. ANÁLISE DOS ARGUMENTOS DA ADPF 54......................................................... 84 4.4. APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO NO CASO DO FETO ANÉNCEFALO............. 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 98 BIBLIOGRAFIA................................................................................................................ 102

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INTRODUÇÃO

O desenvolvimento tecnológico vem ocorrendo nas várias áreas do conhecimento,

inclusive na medicina, e, conseqüentemente, atrai a atenção dos aplicadores do Direito.

Entretanto, algumas descobertas não trazem somente benefícios aos seres humanos e à

sociedade. Elas acabam provocando polêmicas de grande monta, como no caso das más

formações congênitas.

A medicina fetal reconhece o nascituro como um paciente, inclusive submetendo-

o, em certas situações e quando necessário, a tratamento intra-uterino. O diagnóstico pré-natal

deve servir para o beneficio do nascituro, com a realização de tratamento preventivo de

doenças e enfermidades. A questão que se debate é a descoberta de defeitos congênitos e

anomalias incuráveis.

Atualmente, tem-se discutido muito a possibilidade jurídica ou não da realização

do aborto do feto anencefálico. A anencefalia consiste na malformação caracterizada pela

ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de

fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Trata-se de patologia fetal letal

na maioria dos casos. Os fetos com anencefalia não possuem cérebro e, portanto, não têm

como sobreviver fora do útero materno. A viabilidade de vida de forma autônoma é zero. A

morte após o parto é imediata.

Por outro lado, o direito à vida é o mais importante dos direitos fundamentais do

homem, pois é inerente à pessoa humana, já que dela decorrem todos os outros direitos

humanos fundamentais. Por isso, a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5°, declara que

o direito à vida é inviolável. Além disso, é sabido que a vida humana começa desde a

concepção. Portanto, é nesse momento que tem início a sua proteção – e o Código Civil

Brasileiro põe a salvo todos os direitos do nascituro.

O Código Penal Brasileiro, na parte especial dos crimes contra a pessoa, prevê o

aborto, prática proibida no ordenamento jurídico, que pode ser espontâneo ou provocado,

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conforme verifica-se no artigo 124, exceto nos casos de estupro e risco de vida da mãe,

também previstos no mesmo código, no artigo 128, I e II. O aborto deve ser entendido como a

interrupção prematura de um processo mórbido ou natural; é a interrupção da gravidez pela

morte do feto ou embrião, junto com os anexos ovulares.

Diante disso, a realização do aborto em fetos anencefálicos estaria infringindo o

direito fundamental à vida, mas, no caso da gravidez ser mantida, onde se localizaria o direito

fundamental da mãe de escolher pela interrupção, a sua liberdade e autonomia de escolha?

Ambos são considerados direitos fundamentais, pois reconhecidos, outorgados e protegidos

pelo direito constitucional interno. Verifica-se, então, uma colisão de diretos fundamentais a

serem analisados e discutidos.

O objetivo desse trabalho, desenvolvido no âmbito do Curso de Mestrado em

Direito da Universidade Estácio de Sá, na linha de pesquisa “Diretos fundamentais e Novos

Direitos”, corresponde à análise jurídica, com base nos princípios fundamentais, da

admissibilidade ou não do aborto, nos casos em que o feto apresenta malformação

incompatível com a vida, mais especificamente nas hipóteses de fetos portadores de

anencefalia.

A relevância do presente estudo está baseada na contraposição de princípios

fundamentais que envolvem o caso do aborto do anencéfalo, pois, de um lado, verifica-se o

direito à vida do feto e, de outro, o direito à liberdade e à autonomia da mãe de manter ou não

a gravidez desse feto que não terá qualquer possibilidade de vida extra-uterina.

A metodologia utilizada para execução dos objetivos relativos a este trabalho foi à

dedutiva, tendo a dissertação como subsídios diversas doutrinas referentes aos temas

abordados, especialmente livros, revistas, periódicos e publicações eletrônicas.

Já a justificativa da escolha do tema se dá pela possibilidade de aprofundamento

teórico acerca de um tema atual e de relevante importância no cenário jurídico nacional, qual

seja o confronto de princípios constitucionais, bem como procurar esclarecer alguns pontos

ainda muito divergentes na doutrina e na jurisprudência.

Para tanto, em um primeiro momento, analisou-se o conceito de vida, a partir de

que momento se dá o início da vida humana e a definição de anencefalia.

No segundo capítulo, verificou-se a tutela da vida humana intra-uterina. Desse

modo, fez-se necessário o entendimento dos conceitos dos direitos fundamentais e dos

direitos humanos, passando ao conceito sobre o direito à vida, o direito da personalidade e a

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atribuição da personalidade civil garantidos no ordenamento jurídico pátrio. Discutiu-se ainda

sobre o aborto, a viabilidade de vida como critério caracterizador do direito à vida, para

concluir que o feto anencéfalo, apesar da malformação, é um ser humano e possui vida.

No terceiro capítulo, passou-se a discutir sobre o direito ao planejamento familiar

previsto no artigo 226, da Constituição Federal, remetendo-se à analise da Lei 9263/96, que

possibilitou a realização do planejamento familiar com base no critério da afetuosidade. Para

terminar esse ponto, abordou-se a liberdade e a autonomia da gestante na escolha de manter

ou não a gravidez do feto anencéfalo.

Por fim, no último capítulo, discutiu-se a colisão de direitos fundamentais no caso

do aborto do anencéfalo. Para tanto, analisou-se o método da ponderação de interesses no

caso de princípios que se colidem sob o mesmo fato, com base no princípio da

proporcionalidade. Algumas objeções a este método da ponderação são apresentadas. Na

seqüência, passou-se à análise dos argumentos contidos da ADPF 54, que tramita atualmente

no STF, contendo o pedido baseado na violação da dignidade da pessoa humana em submeter

a gestante a levar a termo uma gravidez inviável.

Por derradeiro, discutiu-se a aplicação da ponderação no caso do aborto do feto

anencéfalo, possibilitando à mãe, com fundamento no direito fundamental à liberdade, à

autonomia e à saúde, a responsabilidade de optar pela interrupção ou pelo prosseguimento da

gravidez do feto anencéfalo.

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1 O INÍCIO DA VIDA HUMANA

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A vida não se trata de um simples acontecimento biológico, pois tanto a vida

como a morte geram, provocam um acontecimento simbólico, ou seja, possuem um sentido. A

vida é algo completo e complexo, devendo ser gozada em sua plenitude, mas desvinculada de

tempo e, de certa forma, de condições. A vida é relacionar-se tanto com outros da mesma

espécie, como também manter uma ligação com o meio em que se está inserido.

A relação e a ligação devem ser pautadas por atitudes1 e atos2 considerados éticos,

pois, somente assim, a sociedade poderá ser próspera e desenvolver-se de forma salutar. Mas

como fazer isso, quando há várias posições, pensamentos, idéias sobre o que seja vida e

morte? Quando se determina que um ser está vivo ou morto? Há a limitação para a vida de

cada ser humano? A viabilidade é um critério que deve ser considerado?

O judiciário brasileiro tem sido procurado pela sociedade para dirimir questões

relativas à gravidez de fetos anencefálicos. A anencefalia é um defeito basico do ser humano,

é uma malformação congenita que se caracteriza geralmente pela ausência total ou parcial do

da abóboda craniana e, a massa encefalica é reduzida. Esta anomalia ocorre durante a fase

embrionária e é proveniente de defeito de fechamento do tubo neural, ocasionada pela falta de

ácido fólico . É uma patologia fetal letal. Os fetos com anencefalia não possuem condições de

sobreviver fora do útero materno e não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão

do quadro.

Por sua vez, para a caracterização do aborto, pouco importa a interrupção

prematura de um processo mórbido ou natural, dado que o aborto é a interrupção da gravidez

pela morte do feto ou embrião, junto com os anexos ovulares. Pode ser espontâneo ou

provocado, mas é prática proibida no nosso ordenamento jurídico, conforme verifica-se no

1 Atitude: termo amplamente empregado hoje em dia em filosofia, sociologia e psicologia para indicar a orientação seletiva e ativa do homem em face de uma situação ou um problema qualquer. 2 Ato possui dois significados: primeiro, de ação, no sentido restrito e específico da palavra, como operação que emana do homem ou de um poder específico dele; segundo, de realidade que se realizou ou se vai realizando, do ser que alcançou ou está alcançando a sua forma plena e final, em contraposição ao que é possível.

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artigo 124, do Código Penal, exceto nos casos de estupro e risco de vida da mãe, também

previsto no mesmo código, no artigo 128, I e II.

Diante da legislação em vigor, a mãe de feto anencefálico estaria obrigada a

manter a gravidez pelo período de nove meses, até que o evento do nascimento ocorresse.

Assim, onde se localizaria o direito fundamental da mãe em escolher ou optar pela interrupção

deste estado gravídico, baseado na sua liberdade e autonomia? É claro que o feto possui o

direito a vida, mas a mãe deste feto também possui direitos fundamentais que necessitam ser

analisados. Nota-se uma colisão de diretos fundamentais a serem analisados e discutidos, bem

como os princípios fundamentais envolvidos.

Para tanto, a Constituição criou mecanismos, como a Argüição de

Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista no artigo 102, parágrafo primeiro, Trata-

se de um instrumento de fiscalização abstrata e controle de constitucionalidade que se destina

a proteger os preceitos fundamentais para dirimir, por exemplo, a controvérsia existente no

caso concreto da possibilidade ou não do aborto do feto anencéfalo, sem que este fato atente

contra o princípio fundamental da vida.

Diante da impossibilidade da realização do aborto no caso do feto anencéfalo, a

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde ajuizou, junto ao STF, a ADPF N. 54, na

qual se discute a legitimidade ou não da interrupção da gestação na referida hipótese. Tal ação

possui, como “pedido principal”, a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126

e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-Lei N. 2848/40) e a declaração de

inconstitucionalidade com eficácia erga omnes e efeito vinculante da interpretação de tais

dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de

feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo

da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de

autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.

Essa ação ainda aguarda julgamento pelo STF. Contudo, outra ação que versa

sobre tema semelhante está sendo discutida pela suprema corte, fornecendo um horizonte

sobre alguns pontos controversos na legislação brasileira e na doutrina. Exemplo disto é a

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510, que discute a legalidade das pesquisas com

células-tronco embrionárias. A ação foi ajuizada no STF pela procuradoria-geral da República

e pedia a revogação de dispositivos da Lei 11.105/05, conhecida como Lei de Biossegurança,

os quais permitiriam a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias. Na prática,

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trata-se de realização ou não de pesquisas científicas com o uso das células-tronco

embrionárias em laboratórios.

O ponto basilar da ação ADPF N. 54, que trata do aborto do anencéfalo e tramita

na suprema corte brasileira, está na análise e determinação do início da vida humana. O marco

inicial sobre a existência ou não do ser humano é essencial na discussão sobre a possibilidade

ou não da realização do aborto do anencéfalo.

No dia 28 de maio de 2008, o STF voltou a discutir na Ação Direta de

Inconstitucionalidade (ADI) 3510, que trata sobre a legalidade das pesquisas com células-

tronco embrionárias e, para tanto, analisou o início da vida humana. O relator da ação votou a

favor das pesquisas e qualificou como “perfeito” e “bem concatenado bloco normativo” o

dispositivo em questão3.

Para o relator, “a Constituição Federal, quando se refere aos direitos e garantias

constitucionais, fala do indivíduo pessoa, ser humano, já nascido, desconsiderando o estado

de embrião e feto” 4. Ele fundamentou seu voto em dispositivos da Constituição Federal que

garantem o direito à vida, à saúde, ao planejamento familiar e à pesquisa científica. Além

disso, o ministro relator exarou consideração sobre a legislação infraconstitucional,

esclarecendo que esta “cuidou do direito do nascituro, do ser que está a caminho do

nascimento” 5.

O STF decidiu, por maioria, no dia 29 de maio do presente ano, que as pesquisas

com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida, tampouco a dignidade da pessoa

humana. O ministro Carlos Ayres Britto6 fundamentou seu voto em dispositivos da

Constituição Federal que garantem o direito à vida, à saúde, ao planejamento familiar e à

pesquisa científica. Sustentou a tese de que, para existir vida humana, “é preciso que o

embrião tenha sido implantado no útero humano” [grifos nossos]. Para ele, o zigoto

(embrião em estágio inicial) é a primeira fase do embrião humano, a célula-ovo ou célula-

mãe, mas representa uma realidade distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro

formado.

3 Disponível on-line em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/listarNoticiaSTF.asp>. Acesso em: 8 jun. 2008. 4 Disponível on-line em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/listarNoticiaSTF.asp>. Acesso em: 8 jun. 2008. 5 Disponível on-line em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/listarNoticiaSTF.asp>. Acesso em: 8 jun. 2008. 6 Disponível on-line em: <http://www.stf.gov.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp>. Acesso em: 3 jun. 2008.

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A ministra Ellen Gracie7 acompanhou o voto do Ministro Carlos Ayres Britto,

dizendo que “Nem se lhe pode opor a garantia da dignidade da pessoa humana, nem a garantia

da inviolabilidade da vida, pois, segundo acredito, o pré-embrião não acolhido no seu ninho

natural de desenvolvimento, o útero, não se classifica como pessoa” [grifos nossos]. Para a

ministra a qualidade de pessoa é dada àquele “nascido com vida” [grifos nossos]. E completa

dizendo: “Por outro lado, o pré-embrião também não se enquadra na condição de nascituro,

pois a este, a própria denominação o esclarece bem, se pressupõe a possibilidade, a

probabilidade de vir a nascer, o que não acontece com esses embriões inviáveis ou destinados

ao descarte”.

De forma diversa, o ministro Menezes Direito8 entende que as pesquisas com as

células-tronco podem ser mantidas, mas sem prejuízo para os embriões humanos viáveis, ou

seja, sem que sejam destruídos. Para ele “as células-tronco embrionárias são vida humana

e qualquer destinação delas à finalidade diversa que a reprodução humana viola o direito à

vida” [grifos nossos].

O ministro ainda disse que “A vida humana é autônoma, independente de

impulsos externos”; sustentou também que “O embrião é, desde a fecundação, desde a união

do núcleo do óvulo, um indivíduo humano, que será criança, adulto e velho, um indivíduo”.

Portanto, segundo ele, a ciência deve trabalhar para “fazer o bem a partir do bem, e não o bem

a partir do mal”.

O ministro Marco Aurélio9 apresentou seu voto no sentido de “que não há,

quanto ao início da vida, baliza que não seja simplesmente opinativa, historiando

conceitos, sempre discordantes, desde a Antiguidade até os dias de hoje” [grifos nossos]. Para

ele, “o início da vida não pressupõe só a fecundação, mas a viabilidade da gravidez, da

gestação humana”. Observou também que “dizer que a Constituição protege a vida uterina já

é discutível, quando se considera o aborto terapêutico ou o aborto de filho gerado com

violência”. E concluiu que “a possibilidade jurídica depende do nascimento com vida”.

7 Disponível on-line em: <http://www.stf.gov.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp>. Acesso em: 3 jun. 2008. 8 Disponível on-line em: <http://www.stf.gov.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp>. Acesso em: 3 jun. 2008. 9 Disponível on-line em: <http://www.stf.gov.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp>. Acesso em: 3 jun. 2008.

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O ministro Celso de Mello10 entendeu que

O luminoso voto proferido pelo eminente ministro Carlos Britto permitirá a esses milhões de brasileiros, que hoje sofrem e que hoje se acham postos à margem da vida, o exercício concreto de um direito básico e inalienável que é o direito à busca da felicidade e também o direito de viver com dignidade, direito de que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado. [grifos nossos]

Diante das colocações apresentadas por alguns ministros do STF no referido

julgamento, evidencia-se o entendimento de que o início da vida ocorre com a fecundação do

óvulo pelo espermatozóide, sem a necessidade obrigatória de um local apropriado para que

ele se desenvolva. Sob essa ótica, a partir desse momento, já existiria um ser humano e,

conseqüentemente, a sua proteção seria inevitável. Nesse caso, qualquer ato praticado

atentando contra este sujeito seria considerado um atentado contra a vida e, nessa situação,

estaria configurado o aborto.

Por outro lado, os ministros Carlos Ayres Britto, Ellen Gracie e Celso de Mello,

que argumentam sobre necessidade não apenas da fecundação para que este aglomerado de

células seja considerado um ser humano, entendem a necessidade de sua implantação no útero

ou o início da atividade cerebral. Eles, enfim, se reportam à viabilidade ou não do embrião.

Ora, nessa situação, somente seriam considerados abortos os atos praticados após a fixação do

embrião no útero.

Por fim, há de se comentar que, na análise dos argumentos contidos nos votos dos

ministros do STF, paira ainda a controvérsia, ou seja, não existe uma posição unânime e

pacífica sobre o instante exato do início da vida.

1.2 A VIDA E A REPRODUÇÃO HUMANA

Com o intuito de dar maior sentido ao trabalho e poder responder ao problema já

apresentado, se faz necessário conceituar a palavra vida, apresentando suas várias acepções. O

vocábulo vida possui inúmeros significados, dificultando por demais um sentido pronto e

acabado. Trata-se de assunto cuja conceituação é tida como inextrincável por muitos autores.

Todavia, diligenciar-se-á no sentido de buscar diferentes concepções de tratadistas para iniciar

esse deslinde. 10 Disponível on-line em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/listarNoticiaSTF.asp>. Acesso em: 16 jun. 2008.

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Pode-se referir ao significado da palavra vida como sendo o processo em curso do

qual os seres vivos são uma parte; ao espaço de tempo entre o nascimento e a morte de um

organismo; a condição de uma entidade que nasceu e ainda não morreu; e aquilo que faz com

que um ser vivo esteja vivo11.

De acordo com o dicionário Houaiss12, a palavra vida é um substantivo feminino

que indica o modo de viver; conjunto de hábitos, propriedade que caracteriza os organismos

cuja existência evolui do nascimento até a morte, como exemplo, os animais e vegetais. Sob o

ponto de vista biológico, o mesmo dicionário apresenta o conceito de vida como um sistema

capacitado a submeter-se ao processo de evolução por seleção natural, que envolve

replicação, mutação, ou ainda o conjunto de atividades e funções orgânicas que constituem a

qualidade que distingue o corpo vivo do morto13. Aponta-o como um conjunto das funções

vitais que colocam o indivíduo em relação com o meio externo, que não necessita de um outro

organismo, hospedeiro ou simbionte, para se desenvolver. Enfim, entende que vivo é aquele

organismo capaz de se mover livremente.

Além disso, por meio de uma derivação por extensão do seu sentido, pode-se

entender o significado da palavra vida como o período compreendido entre o nascimento e a

morte de um ser vivo. E, em um sentido figurado, o tempo de existência ou de funcionamento

de uma coisa. Há ainda acepções correspondentes ao conjunto de seres vivos classificados do

ponto de vista da espécie, do meio ambiente, da época etc; à motivação que anima a

existência de um ser vivo, que lhe dá entusiasmo ou prazer; à alma, espírito impulso ou

dinamismo que determina o desenvolvimento, o progresso de alguma coisa; ao conjunto dos

acontecimentos mais relevantes na existência de alguém; ao meio de subsistência ou sustento

necessário para manter a vida; ao relato de fatos da biografia de uma pessoa, qualquer um dos

aspectos que integram o processo de viver de alguém. Metafisicamente, a vida é um processo

constante de relacionamentos.14

Pode-se dizer que vida é a caraterística que certos fenômenos possuem de se

produzirem ou de se gerarem por si mesmos. O ponto essencial do significado da palarava diz 11 Disponível on-line em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=vida&stype=k>. Acesso em: 26 nov. 2006 12 Disponível on-line em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=vida&stype=k>. Acesso em: 26 nov. 2006. 13 Disponível on-line em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=vida&stype=k>. Acesso em: 26 nov. 2006. 14 Disponível on-line em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=vida&stype=k>. Acesso em: 26 nov.2006.

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respeito ao fato de se poder identicar se algo está vivo ou não. A caracterização do que é vida

ou não implica o reconhecimento de um princípio ou de uma causa, ponto de acordo entre

filósofos e cientistas15. Observa-se que, em certos níveis, a própria distinção entre o que é

vida e o que não é torna-se muito difícil.

Desde a Antiguidade16, os fenômenos relacionados à vida têm sido caracterizados

pela capacidade de auto-reprodução, ou seja, na naturalidade com que os seres vivos se

movem, se nutrem, crescem, se reproduzem e morrem. Para Platão17, a palavra vida está

intimamente ligada à alma humana, colocando-a em um lugar superior e dipensando um

tratamento à parte. Já para Aristoteles18, a vida é algo próprio dos animais, que possuem a

possibilidade de crescimento e destruição em si mesmos.

Na época Cristã, São Tomás de Aquino afirmava que no homem existe uma alma

espiritual, unida ao corpo, mas transcendendo-o, porquanto além das atividades vegetativa e

sensitiva, que são materiais, se manifestam nele atividades espirituais, atos do intelecto e atos

de vontade19.

Com Descartes20 e Hobbes21, o conceito de vida passou a ser visto sob outro

ângulo, surgindo a comparação do organismo vivo do homem com a de uma máquina muito

bem montada, apenas negando a existência da ligação entre a alma e a vida, como alegava

Platão, entendendo que a vida poderia se mover e desenvolver por si só.

Na filosofia contemporânea, Kant afirma que “a vida é a capacidade de atuar

segundo a faculdade de desejar”22. Nota-se que, para esse filósofo, a existência da vida está

ligada à vontade humana.

A própria medicina tem recorrido aos fenômenos vitais para caraterizar a vida. De

um modo geral, considera-se, tradicionalmente, que uma entidade é um ser vivo se exibir

todos os fenômenos pelos quais se verifica o caráter de uma auto-regulação, pelo menos uma 15 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 1001. 16 Idem, ibidem. 17 Disponível on-line em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/platao.htm>. Acesso em: 20 jan. 2008. 18 Disponível on-line em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/aristoteles.htm>. Acesso em: 20 jan. 2008. 19 Disponível on-line em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes.htm>. Acesso em: 20 jan. 2008. 20 Disponível on-line em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/hobbes.htm>. Acesso em: 20 jan. 2008. 21 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 1001. 22 Idem, ibidem.

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vez durante a sua existência. Estes fenômenos são o crescimento, o metabolismo, o

movimento, a reprodução e a resposta a estímulos. O metabolismo significa o consumo,

transformação e armazenamento de energia e massa. Já o crescimento, a absorção e

reorganização de massa e a excreção de desperdício. O movimento é o movimento próprio ou

movimento interno. A reprodução é a capacidade de gerar entidades semelhantes a si mesma.

Por fim, a resposta a estímulos inclui as capacidades de avaliar as propriedades do ambiente

que a rodeia e de agir em resposta a determinadas condições.23

O fato é que a vida está em constante movimento, acontecendo a todo instante

diante da sociedade. Diniz declara que a melhor estratégia para definir a vida humana é a

exclusão do contrário, do oposto, ou seja, é tudo aquilo que apenas um ser vivo pode

experimentar – ou: é um ser humano vivo aquele que não está morto24. Para a autora, é

preciso estar vivo para ser pessoa e poder ter direito à vida.

Contudo, se faz mister delimitar o início da vida humana segundo a biologia. Um

dos pontos mais controversos é o da caracterização do início da vida de uma pessoa. O

estabelecimento de critérios biológicos sobre o início da vida de um ser humano, ou

filosóficos, sobre o início da vida de uma pessoa, ou ainda, critérios sob aspectos legais é uma

discussão difícil e desafiadora. Assim, para melhor compreensão do assunto, por se tratar de

matéria não apenas jurídica, se estabelecerá algumas noções, sob o ponto de vista da

embriologia médica, com base em Moore25.

Nesse ponto, faz-se necessário esclarecer a significação dos verbetes fertilização e

fecundação. Conforme o dicionário Michaelis26, as palavras fertilização e fecundação têm a

mesma significação, ou seja, geração, reprodução. Mas sob o ponto de vista biológico, ambas

apresentam como significado a união entre gameta masculino (espermatozóide) e gameta

feminino (ovo), com a fusão dos respectivos núcleos, formando o zigoto27, célula resultante,

portanto, da união do ovócito ao espermatozóide durante a fertilização.

23 Disponível on-line em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Vida>. Acesso em: 20 jan. 2008. 24 DINIZ, Débora. Aborto por anomalia fetal. 1. reimpr. Brasília: Letras Livres, 2004, p. 34. 25 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 26 Disponível on-line em: <http://Michaelis.uol.com.br/busca>. Acesso em: 30 abr. 2008. 27 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

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Para Moore28 “Um zigoto é o início de uma novo ser humano (ou seja, é um

embrião)”. De acordo com o mesmo autor29, e ocorrendo na primeira semana de gestação,

O desenvolvimento humano inicia-se na fertilização, mas vários eventos importantes acontecem antes da união do ovócito com o espermatozóide, por exemplo, a gametogênese. Os ovócitos são produzidos pelo ovário (ovogênese) e dele são expelidos durante a ovulação.

Moore30 ressalta que o processo de fertilização demora, em média, 24 horas e é

uma sequência complexa de eventos coordenados, além de esclarecer que

A fertilização é uma complexa sequência de eventos moleculares coordenados que se inicia com o contato entre um espermatozóide e um óvócito e termina com a mistura dos cromossomas maternos e paternos na metáfase da primeira divisão mitótica do zigoto, um embrião unicelular.

No caso humano, a célula reprodutora feminina, denominada óvulo, possui a

coroa radiata, uma barreira para a penetração dos espermatozóides, mas os gametas

masculinos possuem na cabeça o acrossomo, que começa a liberar enzimas hidrolíticas ao

entrar em contato com tais barreiras. Após vencê-las, ocorre a fusão entre as membranas dos

dois gametas. Imediatamente após a fecundação, as células foliculares glandulares, que

envolvem a célula reprodutora feminina, retraem-se, e liberta-se o conteúdo dos grânulos

corticais, formando a membrana de fecundação, a qual impedirá a entrada de outros

espermatozóides.

Se a mulher estiver fora do período fértil, os espermatozóides, geralmente, não

têm qualquer possibilidade de entrar sequer no útero, visto existir um muco cervical muito

rico em fibras que impossibilita a entrada de espermatozóides. Mas se ela se encontrar no

período fértil, o colo do útero estará mais aberto e conterá um muco cervical mais fluido,

permitindo que os espermatozóides entrem e dirijam-se para as trompas ao encontro do

ovócito, podendo ocorrer a fecundação.

Após a fecundação (singamia), os núcleos dos dois gametas fundem-se e forma-se

o ovo ou o zigoto (cariogamia), decorrendo daí uma nova associação de genes, que vai

28 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 2. 29 Idem, ibidem, p. 45. 30Idem, ibidem, p. 35.

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caracterizar o indivíduo por toda a sua vida, do ponto de vista genético. Em seguida, passa-se

à fase embrionária, com uma duração aproximada de 16 semanas, que se inicia ainda na

trompa, com a divisão celular dando origem à formação do embrião, ao mesmo tempo em que

se dirige para o útero. Moore define embrião31 como “O ser hunamo em desenvolvimento

durante os estágios iniciais. O período embrionário estende-se até o final da oitava semana (56

dias), quando os primórdios de todas as principais estruturas já estão presentes.”

Chegando ao útero, a camada que envolve o embrião é destruída e este começa a

crescer em virtude do fornecimento de nutrientes pelas glândulas do endométrio32. O embrião

começa a afundar no endométrio por ação de enzimas que libera, sendo, ao mesmo tempo,

envolvido por outras células endométricas. Ocorre, assim, a nidação, ou seja, o início da

gravidez. Após a ocorrência do fenômeno da nidação, tem início a formação das estruturas

embrionárias, como a placenta, o cordão umbilical, o saco aminiótico, que contém o líquido

aminiótico que serve de proteção ao novo ser.

Nota-se que todo esse processo é desenvolvido pelo próprio embrião formado. Por

volta da quinta semana, a placenta passa a produzir os estrogênios e a progesterona para

manter o endométrio. Essa fase tem seu término quando se verifica esboços dos diferentes

órgãos do novo indivíduo. Segue-se a fase fetal, na qual ocorrem, essencialmente, o

crescimento e a maturação dos órgãos, terminando, aproximadamente, ao fim de 40 semanas,

seguindo-se o nascimento.

De acordo com Moore, a vida humana possui etapas de desenvolvimento,

dividindo-se nos períodos pré-natal (antes do nascimento) e pós-natal (após o nascimento)33.

Para ele, “o nascimento é meramente um evento traumático durante o desenvolvimento

31 Idem, ibidem, p. 3. 32 Endométrio: mucosa que reveste a parede uterina, formado por fibras musculares lisas e estimulado por hormônios ováricos chamados estrogénio (poduzido pelos folículos) e progesterona (produzida pelo corpo lúteo ou amarelo), e que tem um aumento na sua espessura devido à grande concentração dessses hormônios no sangue (ocorrendo o contrário na menstruação). É o endométrio que permite o alojamento do embrião na parede do útero (nidação). É ele também que, durante os primeiros meses de gravidez, permite a formação da placenta, que proporciona, ao longo de toda a gestação, nutrientes, oxigénio, anticorpos e outros elementos ao feto, bem como elimina todos os produtos tóxicos resultantes do metabolismo, essencial à sobrevivência, saúde e desenvolvimento do novo ser. Disponível on-line em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Endom%C3%A9trio>. Acesso em: 20 jan 2008. 33 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 2.

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resultante de mudanças de ambiente”34. Ressalta ainda que as principais alterações ocorrem

antes do nascimento, ou seja, na fase embrionária35.

Dessa forma, Moore esclarece:

O desenvolvimento embrionario inicial é descrito em estágios em razão do intervalo de tempo variável que o embrião leva para desenvolver certas características morfológicas. O estágio 1 do desenvolvimeto inicia-se na fertilização e o desenvolvimento embrionário termina no estágio 23, que ocorre no 56° dia. O período fetal começa no 57° dia e termina quando o feto está fora do corpo da mãe. Os estágios do desenvolvimento embrionário podem ser determinados por ultra-sonografia.36

Diante do exposto, faz-se mister deixar claro e de forma suscinta o conceito

relacionado ao concepto, denominado de forma generalista, que irá ser utilizado neste

trabalho. Inicialmente, há a feduncação, a junção de gametas que resulta na formação de um

zigoto, ou seja, a fertilização. Após, há a fase denominada de embrionária, na qual se tem o

embrião, e que ocorre da segunda à sétima semana depois da fecundação, quando este está

em sua fase de diferenciação orgânica, ocorrendo diversas transformações e adquirindo uma

estrutura cromossômica própria. Tal fase termina na oitava semana depois da fecundação. No

desenvolvimento intra-uterino, a proxima fase é a do feto, que tem início após oito semanas

de vida embrionária e vai até o fim da gestação. Já a nidação corresponde ao momento em

que o embrião fixa-se no endométrio, mucosa que recobre a face interna do útero.

A vida humana é o bem mais importante no mundo e sua proteção é inevitável e

inquestionável. Essa vida está pautada em etapas de desenvolvimento que chegam ao termo

final, a morte. Contudo, nota-se que não existe um consenso cientifico e filosófico sobre o

início da vida. Assim, o ponto crucial que se discute é qual o momento preciso do início da

vida humana.

Verificam-se duas situações: ou se considera o início da vida quando da

ocorrência da nidação, ou seja, da fixação do óvulo no útero materno, ou da concepção,

fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Se se considerar o começo da vida na nidação, os

óvulos fecundados (in vitro) em laboratórios, por exemplo, podem ser descartados após certo

período, por não possuirem vida humana. No caso da lei de biossegurança, o prazo é de três

34 Idem, ibidem, p. 2. 35 Idem, ibidem, loc. cit. 36 Idem, ibidem, p. 3.

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anos para o descarte. Se se tomar por ponto inicial da via a fecundação, o descarte de

embriões seria considerado um crime contra a vida, ou seja, homicídio.

Na realidade, observa-se que não há consenso na ciência, na filosofia ou no direito

sobre o conceito de vida, mas teorias sobre o assunto para nortear as decisões que sejam

tomadas no âmbito judicial.

1.3 ANENCEFALIA

O núcleo da discussão do presente trabalho está baseado na contraposição do

direito à vida do feto anancfálico e o direito à liberdade e à autonomia da mãe em manter ou

não a gravidez. Ocorre que, antes de se discutir que princípio fundamental deve ter

supremacia, há a necessidade de entender o que é a anencefalia e se um feto portador de tal

anomalia possui ou não condições de vida extra-uterina.

No final do século passado, uma nova área da medicina se desenvolveu e recebeu

o nome de Medicina Fetal, com a função de diagnosticar malformações em fetos e, diante

disso, passou-se a prestar atenção aos casos de fetos anencefálicos. Na atualidade, as

definições sobre esse assunto são fornecidas pela medicina. Com isso, verifica-se a

necessidade de um entrelaçamento entre as disciplinas para a obtenção de uma decisão justa

no caso da possibilidade ou não do aborto no feto anencéfalo.

Segundo o médico José Aristodemo Pinotti37, a anencefalia é resultado da falha de

fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e ambientais,

durante o primeiro mês de embriogênese, ou seja, é uma malformação congênita que se

caracteriza geralmente pela ausência da abóbada craniana e massa encefálica reduzida. Pode

ser diagnosticada a partir de doze semanas de gestação, fazendo uso de equipamentos

modernos de ultra-som. O reconhecimento da anencefalia é imediato. Não há ossos frontal,

parietal38 e occipital39. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contêm globos

oculares salientes. O cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é

deformado. Ainda, de acordo com o médico acima mencionado, “As gestações de anencéfalos

37 Professor Titular de Ginecologia da USP e Deputado Federal. Disponível on-line em: <http://www.febrasgo.org.br/anencefalia2.htm>. Acesso em: 29 mai. 2007. 38 Diz-se de ou cada um dos dois ossos curvos e achatados que se situam em ambos os lados do crânio, articulando-se entre si na sutura sagital e também com os ossos temporal, frontal, occipital e esfenóide. 39 Relativo a ou o próprio osso do occipúcio, e também da veia, do nervo e do músculo ditos occipitais.

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causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâminio (excesso

de líquido amniótico), levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado”.

Smith afirma sobre a anencefalia:

A malformação primária que dá início a esta seqüência parece ser um defeito do fechamento do sulco neural ao se transformar em tubo neural, cuja fusão normalmente se encerra até o 28° dia de gestação. A anencefalia é devida à falta de fechamento da extremidade anterior do sulco neural. Resultam daí as seguintes conseqüências: 1) na falta de fusão, a porção anterior do encéfalo não se desenvolve completamente e tende mais tarde a degenerar; 2) a abóbada craniana não se desenvolve normalmente; 3) a face e o desenvolvimentos dos pavilhões auriculares sofrem alterações secundárias de intensidade variável, entre as quais figuram a fenda palatina, as anomalias freqüentes das vértebras cervicais e, em alguns casos, o desenvolvimento incompleto do lobo anterior da hipófise.40

Trata-se de um defeito básico do ser humano, referente à falha no fechamento do

sulco neural, durante a formação embrionária, sendo ausentes os dois hemisférios cerebrais,

que podem dar origem à anencefalia – malformação fetal mais freqüentemente relatada pela

medicina – e a outras malformações secundárias.

Durante a terceira ou quarta semana de gravidez, entra-se na fase denominada por

Moore de neurula41, ou neuralização42, e se desenvolve o tubo neural a partir da placa neural.

É o primeiro indício do sistema nervoso. Uma vez que a placa neural dá origem ao Sistema

Nervoso Central (SNT), formado pelo encéfalo e pela medula espinhal, surgem as pregas

neurais e o início do tubo neural. Nessa fase, podem surgir graves anomalias no encéfalo e

medula espinhal. Com relação à neuralização anormal, Moore esclarece que:

Os defeitos de tubo neural (DTN) constituem as anomalias congênitas mais comuns. A incidência de DTN foi estimada em 16 por 10.000 nascimentos no leste dos Estados Unidos. A ausência parcial de encéfalo – a meroanencefalia ou anencefalia – é a mais grave DTN e é também a anomalia mais comum do SNC. Embora o termo anencefalia seja comumente usado, ele é um termo errôneo, pois o encéfalo não está completamente ausente. As evidências disponíveis sugerem que o distúrbio primário (por exemplo, uma droga teratogênica) afete o neuroectoderma, resultando

40 SMITH, David W. Síndromes de malformações congênitas. Aspectos genéticos, embriológicos e clínicos. Trad. Hildegard Thiemann Buckup. 3. ed. São Paulo: Manole, 1989, p. 41 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 3. 42 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 73.

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na ausência de fusão das pregas neurais e da formação do tubo neural, na região do encéfalo.43

Trata-se de patologia fetal letal na maioria dos casos, como já dito. Os fetos com

anencefalia não possuem condições de sobreviver fora do corpo da mulher. Não há qualquer

possibilidade de tratamento ou reversão do quadro. O prognóstico nessas hipóteses é de

sobrevida de no máximo algumas horas após o parto, embora haja relatos de crianças que

sobreviveram por alguns dias e, excepcionalmente, por mais tempo.

Luiz Celso Vilanova44, professor e chefe do setor de neurologia infantil da

Universidade Federal de São Paulo, explica que, na anencefalia, uma parte do cérebro, o

córtex cerebral, responsável pelas funções mentais superiores, não chega a se formar. Existe

apenas tronco cerebral, uma estrutura primitiva que coordena reações a estímulos, batimentos

cardíacos e respiração, entre outras funções. Segundo o professor, os fetos anencéfalos são

incapazes de sentir, mas são capazes de reagir a estímulos, possuir reações reflexas, como

aquelas típicas do estado vegetativo, sem traço de consciência. O médico afirma que emoções,

sentimentos e pensamentos estão fora do horizonte do ser humano anencéfalo..

Como já dito, a anomalia fetal pode ser diagnosticada, com muita precisão, a

partir de doze semanas de gestação, por meio de um exame de ultra-sonografia ou ecografia45,

quando é possível a visualização do segmento cefálico fetal. Uma vez verificada e confirmada

a anomalia, inicia-se um longo e doloroso percurso para a mulher, e também para o pai da

criança, que sabem que estão gerando um ser sem qualquer possibilidade de autonomia de

vida extra-uterina.

Nos últimos anos, com os avanços tecnológicos que permitem exames

considerados precisos para este tipo de malformação fetal, em face justamente dessa precisão

juízes têm dado autorizações para que a mulher com gravidez de feto anencéfalo possa efetuar

a sua interrupção, com base na inviabilidade de vida extra-uterina.

A maioria dos anencéfalos sobrevive, no máximo, 48 horas após o nascimento,

não havendo qualquer possibilidade de tratamento ou reversão natural do quadro que garanta

ao bebê uma vida digna, já que estes pequenos seres não possuem nenhum dos cinco sentidos.

Eles não vêem, não ouvem, não falam, não sentem gosto, nem sentem qualquer tipo de 43 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 76. 44 Disponível on-line em: <http://www.smp.org.br/atualizacao/view.php?id=3117>. Acesso em 20 jan. 2008. 45 Método de diagnóstico que aproveita o eco produzido pelo som.

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sensação, seja dor ou prazer. Não possuem aspectos cognitivos. Além disso, estes fetos são

totalmente desprovidos de qualquer tipo de emoção.

Entretanto, alguns recém-nascidos podem sobreviver um pouco mais, como é o

caso raro e excepcional da Marcela de Jesus, filha de agricultores da pequena cidade do

interior do Estado de São Paulo, nascida em 20 de novembro de 2006, na Santa Casa de

Patrocínio Paulista, que até o presente momento sobrevive ligada a aparelhos, respira e se

alimenta através de tubos.

Este caso tem surpreendido médicos do mundo inteiro. A menina está sendo

monitorada por médicos, respira e se alimenta através de tubos. Ela não tem o córtex cerebral,

não possui a calota craniana e o espaço que seria ocupado pelo cérebro é preenchido por

líquido, mas ela possui o tronco cerebral, responsável pela respiração e pelos batimentos

cardíacos. Desse modo, ela é capaz de segurar objetos e reconhecer a presença da mãe,

características que a medicina não consegue justificar em um quadro de anencefalia. O caso

dessa menina já desafiou a medicina, é uma exceção e trouxe novos elementos à discussão

sobre o aborto de fetos anencéfalos.

Incialmente, no caso acima, o diagnóstico foi de anecefalia, entretanto, segundo a

pediatra Márcia Barcellos, o tronco cerebral de Marcela realiza algumas funções e ela interage

com o ambiente, portanto, ela não apesenta uma anencefalia clássica, mas outro tipo de

anencefalia46. Ela nasceu com os olhos projetados para fora do rosto e, no lugar da testa e da

cabeça, com uma massa de tecido mole sem forma e sem função. O tronco cerebral se

responsabilizou pelas reações automáticas como piscar, sugar, apertar objetos, reagir à dor.

Mas, na literatura medica clássica, um bebê em tais condições não desenvolve emoções,

sentimentos e pensamentos.

Conforme declara a pediatra Márcia Barcellos,

Ela é um bebê sem encéfalo, essa região do cérebro dela está preenchida por líquido, mas não é um exemplo da anencefalia descrita na literatura médica porque ela, de alguma maneira, ainda interage com a mãe, interage com o ambiente, seu tronco cerebral realiza funções. Um caso clássico da má-formação não teria sobrevivido por tanto tempo ou estaria vegetando, o que não é o caso dela desde que nasceu47 [grifos nossos]

46 Disponível on-line em: <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL12587-5605,00.html>. Acesso em: 3 mai. 2008. 47 Disponível on-line em: <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL12587-5605,00.html>. Acesso em: 3 mai. 2008.

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Contudo, por meio de exame de ressonância magnética com boa definição,

verificou-se a presença de mesencéfalo, parte intermediária do cérebro que, para especialistas,

é o principal indicativo ou prova de que o bebê não é anencéfalo. Além disso, Marcela tem a

base do crânio formada, estrutura na parte de trás da cabeça (com pele e cabelos, inclusive),

indícios de que não se trata de um caso de anencefalia. A parte de cima da cabeça da menina é

recoberta por uma pele mais espessa e disforme, que se assemelha a uma bolha. Em bebês

anencéfalos, não existe nenhum revestimento, não há proteção de osso, pele ou qualquer tipo

de membrana, ficando essa parte do encéfalo totalmente exposta.

A afirmaçao feita pela médica Márcia Barcelos, de que a menina Marcela não

deve ser considerada anencéfala, coloca em discussão a precisão do exame de ultra-sonografia

realizado durante a gravidez para verificação das condições e formação do feto. Nessa

perspectiva, não se poderia considerá-lo totalmente seguro para diagnosticar anomalias fetais

desse tipo e, com isso, justificar a realização de aborto. No caso de Marcela, somente exames

realizados após seu nascimento, contanto já com certo desenvolvimento e crescimento, é que

se pôde verificar a extensão da anomalia.

Aliado a isso, o caso de Marcela surpreende o mundo médico porque a menina

apresenta um comportamento nada usual para um bebê supostamente anencéfalo,

manifestando dor, conseguindo sentar e chorar. O prognóstico ainda é delicado, pois, por

meio da ressonância magnética já mencionada, constatou-se que a menina tem os nervos

auditivos bem desenvolvidos, sendo possível que ela interprete sons.

Nos casos clássicos de fetos anecéfalos, o bebê nasce com estruturas do cérebro

expostas, sem membrana, o que impede que sobreviva fora do útero materno. No caso de

Marcela, tudo indica um outro tipo de malformação, a encefalocele (defeito no fechamento do

crânio), associada a uma microcefalia, redução do tecido nervoso. O fato é que essa menina

não é anencéfala, pois ela tem parte do cérebro e possui algo com que faz com que viva,

porque sem o encéfalo, ou algo que lhe subtituísse, ela não poderia viver – só está vivendo

porque tem algum tipo de estrutura ainda não especificada.

Atualmente, Marcela se alimenta por sonda, embora, às vezes, aceite umas

colheradas de papinha, com auxilio de sua mãe. E usa o capacete de oxigênio, para se manter

viva, ou seja, sem a possibilidade de uma vida autônoma.

Diante desse fato inédito, muitas mães se deparam com a difícil decisão de manter

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ou não a gravidez, e, portanto, de realizar ou não o aborto, colocando em embate dois

princípios humanos fundamentais: a vida do feto versus a liberdade da mãe, incluindo a sua

autonomia e saúde e, até mesmo, sua dignidade.

É sob esse prisma que se efetiva a presente pesquisa. Para tanto, no próximo

capítulo, tratar-se-á da tutela da vida humana intra-uterina, da personalidade jurídica, do

aborto e da viabilidade de vida do feto anencéfalo.

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2 A TUTELA DA VIDA HUMANA INTRA-UTERINA

A vida é um direito fundamental do homem, assim, o presente capítulo abordará

os direitos fundamentais, seus aspectos conceituais e suas dimensões, envolvendo a origem, a

construção e o conceito dos direitos humanos fundamentais.

2.1 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DOS DIREITOS HUMANOS

A República Federativa do Brasil possui seus fundamentos pautados nos

princípios da república, do estado federativo, do estado democrático de direito, da soberania,

da cidadania, na dignidade da pessoa humana, e nos valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa, além do pluralismo político, da representatividade e separação dos poderes.

Os direitos fundamentais podem ser entendidos como o conjunto de normas e

princípios que garantem uma vida digna, livre e igualitária, independentemente do credo, da

raça, da origem, da cor, da condição econômica ou do status social. São essenciais para o

convívio e a sobrevivência do homem em sociedade. Podem ser observados como direitos de

defesa do cidadão para a sua proteção, no caso de alguma lesão ou quando a esfera privada

dos indivíduos é invadida. A dificuldade verificada reside no momento em que estes diretos

não estão positivados, ou não atingem de forma direta o fato da atualidade.

Os direitos fundamentais surgiram da necessidade de proteger o homem do poder

estatal, pois, por vezes, o Estado acabava por interferir na vida dos indivíduos. Uma das

grandes aspirações do liberalismo48 foi a limitação do poder. Apesar de exaltar a garantia dos

direitos do homem como razão de ser do Estado, exigia limites do poder público, para coibir a

interferência na esfera individual dos seus súditos. Na Europa dos séculos VXII e XVIII,

surgiu uma visão mais humanista da política, redundante da nova concepção jusnaturalista dos

48 Doutrina segundo a qual o melhor meio de salvaguardar a liberdade e os direitos da iniciativa particular é restringir o mais possível as atribuições do Estado.

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direitos do homem. Assim, os direitos fundamentais surgiram da necessidade de proteger o

homem do poder estatal, a partir dos ideais advindos do iluminismo daquela época.

Originalmente, recebeu a designação de direitos naturais, pois essa categoria de

direitos era tida como universal e imutável, decorrente da própria natureza humana, enquanto

criada à imagem e semelhança de Deus ou enquanto um ser racional. Com a evolução

histórica e a positivação desses direitos, passou-se a preferir, nos países anglo-saxões e

latinos, a expressão direitos do homem. Contudo, na Segunda Guerra Mundial e com a

fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), acabou-se substituindo a expressão

mencionada por direitos humanos, uma vez que aquela não necessariamente contemplava as

mulheres.

Como já dito, uma das causas do surgimento dos direitos fundamentais está ligada

à opressão que o Regime Absolutista provocava em seus súditos, inicialmente decorrendo dos

dogmas cristãos, em que tudo era considerado vontade de Deus, e, posteriormente, pela obra

dos Racionalistas do século XVII, na qual a fonte a ser utilizada passou a ser a razão humana.

As primeiras declarações de direitos, que aconteceram nos séculos XVIII e XIX,

apresentam uma indisfarçável hostilidade contra o poder, armando os indivíduos como meios

de resistência contra o Estado. Sob esse prisma, surgem dois grupos de direitos: o primeiro,

das liberdades de oposições, serviu de meio de oposição política, exemplificado pela

liberdade de imprensa, de reunião, entre outros; o segundo, das liberdades limites,

corresponde ao impedimento da ingerência do Estado na esfera íntima da vida humana.

Diante disso, os direitos fundamentais passaram a ficar consubstanciados em documentos

constitucionais – e desse modo vieram a ser reconhecidos pela sociedade.

As constituições escritas que se seguiram passaram, então, a cuidar desses direitos

fundamentais. A atual Constituição Federal, vigente desde 1988, enumera os direitos

fundamentais, mas não de forma exaustiva. Eles constituem uma categoria jurídica voltada à

proteção da dignidade humana em todas as suas dimensões – liberdade, necessidades e

preservação.

Ao longo do tempo, os direitos fundamentais foram sendo agrupados em classes.

Inicialmente, para a classificação dos direitos fundamentais, costumava-se recorrer ao critério

das gerações, baseado numa ordem cronológica em que os diversos direitos foram sendo

reconhecidos ao longo da história moderna. Tal divisão deve ser interpretada tão-somente

como um recurso metodológico para melhor compreensão de certos aspectos. Tal

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classificação é interessante para que se tenha uma noção da formação histórica do conjunto

dos direitos humanos reconhecidos. Na medida em que cada geração foi reconhecida a partir

de lutas políticas, essa classificação permite também que se tenha em mente as influências

ideológicas subjacentes a cada direito.

Num segundo momento, mister se faz esclarecer a utilização do vocábulo

“dimensão”, em detrimento de “geração”. Sarlet49 esclarece muito bem a diferença existente

entre os dois vocábulos, demonstrando seu desapego ao termo “gerações”, bem como por

parte da doutrina nacional, pois a utilização dessa expressão traria a idéia de substituição

gradativa de uma geração por outra. Já a utilização da expressão “dimensão” possui um

carácter cumulativo em relação ao processo evolutivo e à natureza complementar dos direitos

fundamentais e sua indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno. Assim, para

esse autor, há uma relevância para a utilização da expressão “dimensão”, uma vez que a

compreensão do conteúdo e das características dos direitos fundamentais deve estar atrelada a

uma visão panorâmica que gerará uma clareza maior. Sendo assim, o vocábulo será utilizado

no presente trabalho.

Bonavides50 afirma que, inicialmente, na evolução dos direitos fundamentais,

verificaram-se três dimensões de direitos: da liberdade, da igualdade e da fraternidade. A

doutrina atual identifica cinco dimensões de direitos fundamentais, sendo que os dois últimos

se relacionam aos chamados novos direitos, e tratam de assuntos que surgiram por meio do

progresso tecnológico, em especial nos campos da medicina e da informática. Tal posição foi

liderada por Bobbio, e seguida também pelo próprio Bonavides.

Os direitos fundamentais de primeira dimensão, baseados na doutrina liberal, é

produto do pensamento liberal burguês do século XVIII, e está apoiado no direito que cada

indivíduo possui frente ao Estado, mais especificamente como direito de defesa, em que seria

estabelecida uma área de não intervenção do Estado, respeitando a autonomia individual dos

seus súditos. São os direitos de liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo

constitucional, que apenas constituem limitações ao poder de legislar.

Segundo Rogério José Bento Soares do Nascimento, “A primeira geração

corresponderia a direitos de liberdade (individuais e políticos) tendo por titular o indivíduo,

são oponíveis ao Estado e contemplam faculdades e atributos da pessoa, direito de resistência 49 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 47. 50 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 563.

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ou de oposição perante o poder público”51. De acordo com o exposto, direitos fundamentais

de primeira dimensão são apresentados como direitos de cunho negativo, considerando-se o

direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade formal (perante a lei) e a algumas

garantias processuais, devido processo legal, habeas corpus, direito de petição52.

Após a conquista e a confirmação dos direitos fundamentais de primeira

dimensão, surgiram os direitos fundamentais de segunda dimensão. De acordo com

Bonavides53, esses direitos nasceram abraçados ao princípio da igualdade. Nessa fase, houve

um redirecionamento do poder do Estado, no sentido de atendimento às necessidades mínimas

da pessoa humana. Tais direitos, em contraposição aos negativos, são denominados de

positivos, pois estão voltados a atender aos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como

aos direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas

formas de Estado Social depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão

antiliberal do século passado.

Assim, a segunda dimensão envolve os direitos da igualdade, no que se refere aos

direitos sociais, econômicos e culturais, decorrentes de aspirações igualitárias, inicialmente

vinculadas aos Estados marxistas e social-democratas, que dominaram o período pós II

Guerra Mundial, marcando o advento do Estado-social. Essa dimensão de direitos têm como

objetivo garantir aos indivíduos condições materiais consideradas imprescindíveis para o

pleno gozo dos direitos de primeira dimensão e, por isso, exigem do Estado intervenções na

ordem social segundo critérios de justiça distributiva54, conforme comentado acima.

O que distingue esses direitos de segunda dimensão é sua dimensão positiva, pois

visam a propiciar o direito de participar do bem-estar social, cuidam de liberdade por

intermédio do Estado e caracterizam-se por outorgarem ao indivíduo direitos a prestações

sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, liberdade de

sindicalização, direito a férias.

Assim como os direitos de primeira geração, os direitos da igualdade reportam-se

51 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 70. 52 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 48. 53BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 564. 54 A teoria da justiça de John Rawls segue sendo a mais importante tentativa, neste século, de acomodar as exigências que derivam dos valores centrais da tradição política ocidental – liberdade, igualdade, solidariedade e auto-respeito – em uma visão normativa que tem credenciais liberais genuínas.

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à pessoa individual.55 Nessa perspectiva, “A segunda geração integraria os direitos da

igualdade (sociais, culturais e econômicas), exigindo do Estado determinadas prestações

materiais, nem sempre acessíveis, por ausência ou carência de meios materiais.”, de acordo

com Nascimento56.

Após as lutas pelo direito de liberdade e o anseio de satisfação das necessidades

mais básicas do ser humano, vieram os direitos fundamentais de terceira dimensão, baseados

na consciência de um mundo dividido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas. Nota-

se a preocupação com o destino da humanidade, dadas as diferenças encontradas.

Nessa fase, busca-se uma outra dimensão de direitos fundamentais, até então

desconhecida, uma geração de direitos que se baseia na solidariedade, completando o tripé

basilar da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Assim, os direitos de

terceira dimensão são os direitos da fraternidade ou solidariedade, envolvendo o direito à paz,

ao desenvolvimento sustentável, à posse comum do patrimônio comum da humanidade, o

direito ao meio ambiente. Segundo Bonavides57, “Trata-se daquela que se assenta na

fraternidade”.

Esses direitos são conhecidos como direitos transindividuais, possuem um teor de

universalidade, não se destinando especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo,

mas sim de um grupo ou de um determinado Estado. São também observados como direitos

coletivos ou difusos, relacionados aos temas de meio ambiente e desenvolvimento, da paz, da

comunicação e do patrimônio comum da humanidade.

É mister fazer referência a uma corrente nova que defende a existência de uma

quarta dimensão de direitos fundamentais, liderada no Brasil pelo respeitável Paulo

Bonavides. De acordo com Sarlet58, essa quarta dimensão seria o resultado da globalização

dos direitos fundamentais, no sentido da universalização no plano institucional, que

corresponde à derradeira institucionalização do Estado Social. Seria composta pelos direitos à

democracia, à informação, o direito ao pluralismo. Conforme Bonavides59, “São direitos da

55 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 50. 56 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 70. 57 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 569. 58 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 52. 59 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 571.

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quarta geração direito à democracia, à informação e o direito ao pluralismo”.

Além desses, também se deve considerar os direitos de manipulação genética,

relacionados à biotecnologia e à bioengenharia, que cuidam de questões sobre a vida e a

morte, sendo que estes pontos requerem uma discussão ética prévia. Tais direitos, chamados

de novos direitos, ainda exibem uma quinta dimensão, a qual envolve os direitos relativos à

realidade virtual, fruto do desenvolvimento da cibernética, implicando no rompimento de

fronteiras como atualmente estamos habituados a ver, dados o desenvolvimento e a

disseminação da internet.

As quatro primeiras dimensões de direito, de acordo com Nascimento60, foram

contempladas pelo ministro Celso de Mello no pleno do Supremo Tribunal Federal, sendo que

tal voto não sofreu oposição, o que demonstra sua aceitação. Entretanto, Manoel G. Ferreira

Filho critica essa divisão, salientando que poderá acarretar vulgarização e desvalorização dos

direitos fundamentais.

Ora, o assunto do presente trabalho diz respeito à contraposição de direitos

fundamentais do feto anencéfalo, cuja vida extra-uterina é improvável, e o direito de liberdade

da mãe e do pai também. Envolve, portanto, uma clara e nítida contraposição de direitos

fundamentais. De um lado, o direito do feto em se manter no ventre materno, sendo quase

nula a sua possibilidade de vida externa, possuindo apenas breve expectativa de vida; de outro

lado, a mãe, que, suportando os nove meses de gravidez, correrá riscos à sua saúde, sofrerá

desgastes psicológico e emocional em face a uma expectativa de vida frustrada e tendo

afrontada sua dignidade, sua liberdade e sua autonomia. Desse modo, os direitos fundamentais

envolvidos na questão principal desse trabalho referem-se aos direitos de primeira dimensão,

que entrariam em embate entre si de forma vertiginosa.

Entretanto, há que se comentar sobre os direitos humanos, os quais não vigoraram

desde sempre. Eles têm sua origem histórica na Grécia, embora houvesse uma noção

rudimentar de direitos fundamentais já no Egito Antigo, na Mesopotâmia, na Índia. Não

obstante, foi com os gregos que os direitos humanos ganharam status filosófico. Os primeiros

filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, aqueles que, como o nome sugere, são

anteriores a Sócrates, tinham a crença radical de que por trás da multiplicidade e mudança

incessante das aparências, existia uma realidade oculta invariável: a physis, a natureza.

60 NASCIMENTO. Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 70.

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Na verdade, o povo grego contribuiu fortemente com o tema direitos humanos, no

que se refere às idéias, como as de liberdade, política, racionalidade, princípios de moralidade

universal e dignidade humana. Outros povos da Antigüidade não chegaram à idéia de uma

natureza por trás das aparências, porque acreditavam que essa realidade última era Deus ou os

deuses. É na órbita pré-socrática, com os estóicos, que surge a idéia de leis eternas, imutáveis,

ligadas à natureza humana, cuja concepção conduz às idéias de liberdade e de igualdade

naturais. Essa nova perspectiva leva ao resultado prático, uma vez que se passou a verificar a

supremacia do direito natural sobre o direito positivo.

Com o Cristianismo, um novo modelo social surgiu baseado na igualdade e na

fraternidade entre os homens, de modo que a pessoa passou a ter um valor intrínseco, o valor

da essência. Nota-se que foi a doutrina cristã que mais valorizou a pessoa humana. Criou-se o

vínculo entre o indivíduo e a divindade, superando a concepção do Estado como única

unidade perfeita. O homem-cidadão foi substituído pelo homem-pessoa na escola de Santo

Agostinho. Greco Filho61 afirma que “O direito natural era manifestação pura da vontade de

Deus, à qual os direitos terrenos deveriam submeter-se”. Contudo, não houve

instrumentalização às garantias ou mecanismo de proteção aos direitos da pessoa humana.

Na seqüência,surge, então, a Escola do Direito Natural, que abandonou toda a

fundamentação religiosa que preconizava a natureza humana. Na Europa, emerge “uma

tradição de garantias do indivíduo, que propiciou o surgimento da doutrina contratualista, a

qual inverteu a fonte e a origem do poder de Deus para os próprios homens”62. De acordo com

Abbagnamo63, a doutrina do contratualismo “reconhece como origem ou fundamento do

Estado (ou, em geral, da comunidade civil) uma convenção ou estipulação (contrato) entre

seus membros”. Nessa doutrina, verifica-se que a vontade é a base fundamental da sociedade.

É exatamente nessa fase da história que aparece o conceito de Contrato Social e

que se verifica uma primeira aproximação, de forma mais moderna, aos direitos humanos.

Nesse período, os indivíduos passaram a pactuar comportamentos e condutas individuais e

coletivas, renunciando a alguns direitos em prol da preservação de outros, como a vida, a

propriedade, a liberdade, a igualdade, de forma a saírem de um estado primitivo. Com isso,

61 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades: direitos individuais na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 27. 62 Idem, ibidem, p. 28 63 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 205.

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tais direitos preservados vincular-se-iam a todo sistema estatal e social, tornando-se eternos e

inalienáveis, e existindo, para o Direito Natural, independentemente de seu reconhecimento

pelo Estado, já que estavam diretamente relacionados à essência do homem.

Em face dessas influências, surgem a Revolução Francesa e a Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, marcos dos direitos humanos. A burguesia, como

nova classe social, ascende; o homem passa a ser visto como centro do universo; instaura-se

um forte apelo à razão natural, considerando como base não mais Deus, mas o próprio

indivíduo. Com isso, surge uma nova concepção jurídica, baseada no jusnaturalismo, com

princípios da igualdade formal e da universalidade do direito, carcaterizando a preocupação

com a construção de elementos sólidos, efetivadores dos direitos humanos.

Desde então, a evolução dos direitos do homem consolidou-se por meio de

concepções liberais, até 1914, data da I Guerra Mundial – e, após a guerra, por uma

concepção mais social da liberdade. Depois da II Guerra Mundial, em especial com a

Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, foram enumerados os direitos que

todos os seres humanos possuem e, conseqüentemente, houve uma enormidade de

documentos exarados sobre o assunto, tanto no âmbito nacional, como no internacional. A

partir desse momento, nota-se uma alteração com relação à situação dos Direitos Humanos no

Direito Constitucional nacional, bem como no Direito Internacional.

A Comissão de Direitos Humanos, principal órgão das Nações Unidas sobre a

matéria, foi incumbida de elaborar uma Carta Internacional de Direitos. Em 10 de dezembro

de 1948, iniciou-se a discussão sobre os Direitos Humanos, que alcançou seu apogeu com a

aprovação, em Paris, da "Declaração Universal dos Direitos do Homem", indicando, em seu

artigo 1°, que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados

de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade".

Tais princípios revitalizam os pressupostos da dignidade da pessoa humana e do

respeito à integridade. Foi esse o documento que definiu os direitos humanos e as liberdades

fundamentais pela primeira vez na esfera internacional. A partir daí, notou-se o destaque por

parte da Comissão de Direitos Humanos da ONU, no sentido da chamada internacionalização

e universalização dos direitos humanos, tendo sido o ápice de tal conferência o

reconhecimento da universalização dos direitos definidos na Declaração dos Direitos

Humanos de 1948.

Sob esse viés, os Direitos Humanos deixaram de ser interesse particular e

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exclusivo do Estado, passando a ser matéria de interesse internacional e objeto próprio de

regulamentação do Direito Internacional. E a ONU firmou-se como uma instituição

internacional, formada por 192 Estados soberanos, cujos propósitos são: manter a paz e a

segurança no mundo, fomentar relações cordiais entre as nações, promover o progresso social,

melhores padrões de vida e direitos humanos, tornando-se a mais veemente divulgadora e

enunciadora desses direitos pelo mundo.

Rogério Gesta Leal conceitua tal direito, no seguinte sentido:

O conceito de direitos humanos é, pela tradição no Ocidente, tratado principalmente pelo marco do direito constitucional e do direito internacional, cujo propósito é construir instrumentos institucionais à defesa dos direitos dos seres humanos contra os abusos do poder cometidos pelos órgãos do Estado, ao mesmo tempo em que busca a promoção de condições dignas de vida humana e de seu desenvolvimento […] isso proporciona uma das bases importantes a saber: que os direitos humanos dizem respeito tanto ao homem, quanto ao cidadão; que os direitos humanos protegem o indivíduo que não está em conflito com o Estado, pois existe unicamente através de seus órgãos [grifos nossos]64

O mesmo autor65 esclarece que os direitos humanos se apresentam como uma

questão filosófica e política, intimimante ligada à forma como as sociedades atuais os

encaminham, delimitam e, principalmente, protegem.

Destarte, a expressão "Direitos Humanos" atualmente possui vários significados,

sendo que, num Estado Democrático de Direito, deve ser entendida como o conjunto

institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, cujas finalidades básicas são o

respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o

estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.

Esse direito também está fundamentado na preservação da vida sob o aspecto da integridade

física, moral e social.

Sob esse prisma, os direitos humanos devem ser vistos como uma declaração mais

minuciosa daquilo que se entende por “dignidade”, e é justo que os homens reconheçam-se

uns aos outros. Os direitos humanos nasceram como direito fundamental à liberdade, e foram

se ampliando e estendendo com a reivindicação dos direitos chamados econômico-sociais. O

direito ao trabalho, a um salário digno, à educação, à cultura, ao lazer, a um nível de vida

64 LEAL, Rogério Gesta. Direitos humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1997, p. 19. 65 Idem, ibidem, p. 68.

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adequado à protecção da saúde constitui uma especificação mais concreta do direito geral e

abstrato à igualdade, estando, nesses direitos, a base fundamental para a vivência saudável na

sociedade democrática. Os chamados Direitos Humanos são as raízes de todos os direitos,

inclusive do biodireito66.

Ressalta-se que, em geral, as normas constitucionais dos países do bloco

Ocidental, proclamadas no século XX, introduziram os princípios protetivos dos direitos

humanos nas regras jurídicas expressas. Essa positivação princípiológica estruturou os

dispositivos jurídicos relativos aos direitos humanos, e, quando positivados, transformaram-se

em Direitos Fundamentais. Ou seja, a consagração desses direitos humanos

constitucionalmente no ordenamento jurídico adquiriu a designação Direitos Fundamentais.

Diante disso, resumidamente, a expressão direitos humanos é uma forma sintética

de referência aos direitos fundamentais da pessoa humana, àqueles que são essenciais à

pessoa humana, que precisa ser respeitada como pessoa. São aqueles necessários para a

satisfação das necessidades humanas fundamentais.

2.2 O DIREITO À VIDA

Em razão da importância do direito fundamental à vida, nesse item serão

analisados o seu desenvolvimento histórico, a sua conceituação e a proteção na Constituição

Federal de 1988, o seu enquadramento no rol dos direitos fundamentais e direitos humanos.

O século XX foi abatido por várias ideologias que, juntamente com um grande

desenvolvimento tecnológico, provocaram violentas guerras. Após a II Grande Guerra,

buscando a paz mundial de forma sólida, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, afirmando direitos iguais e inalienáveis a todos,

fundamentados na liberdade, na justiça e no estabelecimento da paz no mundo.

Num Estado Democrático de direito, no qual o povo escolhe seus representantes

para decidirem os caminhos e destinos da nação, onde há investidura e alternância no poder, e

66 Biodireito: “denominação atribuída à disciplina no estudo do Direito, integrada por diferentes matérias, que trata da teoria, legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana em face dos avanços da Biologia, da Biotecnologia e da Medicina”66. Éo ramo do Direito que se associa à Bioética, estudando as relações jurídicas entre o Direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina; peculiaridades relacionadas ao corpo, à dignidade da pessoa humana. Biodireito se associa a cinco matérias: Bioética, Direito Civil, Direito Penal, Direito Ambiental, Direito Constitucional. BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 101.

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conseqüente respeito ao pluralismo, o poder delegado aos representantes não é absoluto,

conhecendo-se várias limitações, dentre as quais a previsão de direitos e garantias individuais

e coletivos.

Os direitos fundamentais consagrados nas cartas magnas necessitam ser

respeitados por todos, mas, algumas vezes, não o são. Como conseqüência, verificam-se as

garantias. Bonavides67 ressalta a necessidade de diferenciar direitos de garantia, em que pese

o fato de muitos dicionários confundirem seus significados. Direitos devem ser entendidos

como os bens, que são inerentes à vida, como a faculdade de praticar ou não algum ato,

podendo ser também as vantagens previstas na norma constitucional. Desse modo, são

principais, enquanto as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens e, por isso,

são acessórias e adjetivas. Assim, direitos fundamentais são aqueles considerados

indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna e

livre. Portanto, podem receber o nome de direitos humanos fundamentais. E dentre esses está

o direito à vida.

O direito à vida é inerente à pessoa humana, posto que dele decorrem todos os

demais direitos humanos fundamentais. Por isso, a Constituição Federal de 1988 declara que

o direito à vida é inviolável. Ives Gandra da Silva Martins entende-o como inerente à pessoa

humana, no sentido de ser um direito não criado pelo Estado, mas pelo mesmo reconhecido,

dado que pertence ao ser humano não por evolução histórico-axiológica, mas pelo simples

fato de ter nascido68. Nota-se aí um viés jusnaturalista.

A Convenção Americana sobre Direitos do Homem (Pacto de São José da Costa

Rica), promulgada no Brasil pelo Decreto N° 678/92, é lei no Brasil. Dispõe o Art. 1.2: “Para

os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano”. Também dispõe o Art. 4.1: “Toda

pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Esse direito estará protegido pela lei e, em geral,

a partir do momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Observa-se que está sendo dado o mesmo sentido, com a mesma amplitude, à expressão ser

humano e à palavra pessoa, e protegendo o direito à vida expressamente desde a concepção.

A Constituição Federal de 1988, seguindo o mesmo rumo da Declaração

Universal dos Direitos Humanos, proclama, no seu Art. 3o, o direito à vida: “Toda pessoa tem

direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Diz o artigo 5° da Constituição que “Todos 67 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 526. 68 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin; Centro de Extensão Universitária, 2005, p. 182.

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são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, [...]”.

No Estado Democrático de Direito Brasileiro, ninguém pode ser privado de sua

vida, não se pode retirar a vida de nenhum ser humano, nem determinar trabalhos forçados ou

pena de morte. Diante disso, verifica-se que este direito fundamental foi devidamente

reconhecido pelo Estado e, conseqüentemente, a sua proteção é inevitável, já que se trata de

um bem indisponível. Sendo assim, tanto o aborto como a eutanásia e a tortura devem ser

vistos como uma infração ao direito natural da vida, apesar do primeiro ser previsto pela

legislação infraconstitucional brasileira em dois casos específicos e excepcionais.

Alguns direitos fundamentais não se ligam a toda e qualquer pessoa, sendo

necessárias algumas condições para a sua ocorrência, mas há outros que são de todos os

homens. Modernamente, os direitos fundamentais estão indissoluvelmente ligados à noção de

limitação do poder. Os direitos fundamentais constituem gênero, abrangendo as seguintes

espécies: Direitos Individuais, Coletivos, Sociais, Nacionais e Políticos.

Os direitos fundamentais são considerados absolutos, mas apenas no sentido de

estarem situados no mais alto patamar de hierarquia, posto que gozariam de prioridade

absoluta sobre qualquer interesse coletivo69. Contudo, essa afirmação não pode mais ser aceita

sem qualquer questionamento, já que os direitos fundamentais podem sofrer limitações

quando enfrentam outros valores também de ordem constitucional, inclusive de outros direitos

fundamentais.

Verifica-se que a definição de direito à vida possui um alcance muito amplo, pois

envolve privacidade, integridade e também o direito à existência. Além disso, outros direitos

também enquadrados no rol dos direitos fundamentais são conexos a este, como o direito à

liberdade, à igualdade, à dignidade, à segurança, à propriedade, à alimentação, ao vestuário,

ao lazer, à educação, à cidadania, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Conforme a tutela jurisdicional, o direito à vida é inviolável e protegido, alcançado o direito

individual de estar vivo, bem como o direito de uma vida digna e justa.

O direito à vida como um direito fundamental é reconhecido pelo Estado e desse

modo qualquer fato ou ato que se manifeste contrário à vida deve ser expurgado da sociedade.

Neste rol, enquadram-se o aborto e a eutanásia, no tocante às violações do direito natural à

vida. 69 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 230.

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Reitera-se que o foco do presente trabalho corresponde aos direitos individuais –

em especial o direito à vida do feto anencéfalo e o direito à liberdade e à autonomia da mãe –,

que podem ser considerados os valores para a proteção e dignidade da pessoa humana, bem

como para a existência de uma sociedade livre e democrática. Contudo, Mendes70 deixa claro

que “Os direitos individuais enquanto direitos de hierarquia constitucional somente podem ser

limitados por expresssa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei

ordinária promulgada com fundamento imediato na própria Constituição (restrição mediata).”

Assim, tanto a Constituição como lei infraconstitucional podem limitar e ou restringir um

direito fundamental, sendo ambas consideradas legais, posto que possuem autorização

constitucional para tanto. Mas o seu núcleo essencial deve ser protegido, em que pese o

legislador brasileiro não ter definido expressamente o seu significado.

Apesar disso, a idéia de núcleo essencial sugere a existência clara de elementos

centrais ou essenciais. Nesse trabalho, utiliza-se a idéia de que o núcleo essencial dos direitos

fundamentais seria medido caso a caso, mediante o processo de ponderação de bens71, com

base no princípio da proporcionalidade, analisando o mínimo insuscetível de limitação,

restrição ou redução.

O Direito necessita ter um posicionamento sobre o momento inicial da vida

humana, para manter a segurança jurídica. Desse modo, avalia-se qual das concepções é mais

adequada aos seus princípios e objetivos fundamentais, sem a negação de fatos que são

absolutamente comprovados. Essa análise baseia-se, então, em matéria técnica e não jurídica.

O Direito brasileiro sempre se apoiou nos conceitos biológicos de concepção, gravidez,

nascimento, aborto, para falar sobre a vida humana. Contudo, é possível extrair do sistema

jurídico um posicionamento objetivo, racional e coerente com as modernas concepções

biológicas, sem deixar de lado os princípios fundamentais que são basilares.

Conforme a análise do caput do Art. 5 ° da Constituição Federal, o direito à vida

tem seu início a partir da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando em um ovo ou

zigoto. Aliado a isso, a carta magna dá mesmo sentido e mesma amplitude à expressão ser

humano e à palavra pessoa, e protege de forma expressa e clara o direito à vida desde a

concepção. Assim, todo feto no ventre materno e também aqueles que se encontram em

laboratórios são seres humanos e devem ser protegidos e tutelados. Entretanto, verificam-se

70 Idem, ibidem, p. 292. 71 Idem, ibidem.

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outras teorias que determinam diferentemente o início da vida, proporcionando subsídios

outros para o aplicador do direito.

Uma dela é a teoria da nidação. Após a fecundação, o zigoto inicia um processo

denominado clivagem, que “é a série de divisões celulares motóticas do zigoto, que resultam

na formação das primeiras células embrionárias – os blastômeros”72. Trata-se de uma massa

sólida com 12 a 15 blastômeros, chamada de mórula. Segundo Moore, o nome mórula se deve

à semelhança com a amora. Este estágio ocorre entre 3 a 4 dias após a fecundação,

coincidindo com a entrada dessa massa no útero. Após a entrada da mórula no útero, ela

forma no seu interior uma cavidade com líquido, denominada cavidade blastocística. Com o

aumento desse fluido no seu interior, separa-se em duas partes, uma que recebe o nome de

trofoblasto, dando origem à placenta, e outra denominada massa celular interna, que será o

primórdio de um embrião. Passados dois dias, o blastocisto fixa-se, adere ao endométrio,

membrana mucosa que reveste o útero, e se implanta. Em torno de 6 dias, o período de pré-

implantação do desenvolvimento embrionário, o blastocisto começa a se proliferar e, por volta

do sétimo dia, o blastocisto já está implantado e se alimentando do tecido73. Essa corrente

entende que só há vida quando do término da nidação, no décimo quarto dia, posto que, antes

disso, só se tem uma massa celular que dará origem ao embrião. Somente com a formação do

embrião é que se teria um verdadeiro ser humano, no sentido ontológico de pessoa.74. Os

adeptos dessa teoria subentendem a necessidade e existência do útero materno, de um local

específico, para que exista um ser humano.

Outra teoria sobre o início da vida é a da formação ou início da atividade do

sistema cerebral. Tal teoria entende que a vida só começaria a se desenvolver a partir de 15

dias da fecundação, com a formação do sistema nervoso central. Essa corrente entende ser de

grande relevância a atividade nervosa como parte do processo vital. A própria legislação

brasileira determina o término da vida quando cessa a atividade elétrica do encéfalo, mas não

utilizou o mesmo critério para determinar o início da vida.

Diante dessas colocações relativas às teorias existentes sobre o início da vida, bem

como da análise tanto da Constituição Federal como do atual Código Civil, observa-se que o

72 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 2. 73 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 43-45. 74 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 101.

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ordenamento jurídico brasileiro reconhece alguns direitos ao nascituro, como a vida, a

integridade física e a honra, mas independente e desvinculada do evento nascimento.

Por outro lado, em conformidade com o Código Civil Brasileiro, nem todo ser

humano possui personalidade jurídica, pois a aquisição desse atributo depende de um

acontecimento, o nascimento com vida, em que pese o fato de os direitos dos nascituros

estarem salvaguardados. Moreira75 argumenta que o vocábulo “direitos” pode ser entendido

como “interesses”. De qualquer forma, torna-se necessário abordar a personalidade jurídica, o

que será feito no próximo item.

2.3 A VIDA COMO UM DIREITO DA PERSONALIDADE

Conforme já dito, a vida humana começa na concepção, isto é, no momento em

que o espermatozóide entra em contato com o óvulo, formando o zigoto. Portanto, é nesse

momento que deve se iniciar a sua proteção sob o ponto de vista do Estado. Nesse sentido,

reconhecendo que a vida começa na concepção, o Código Civil Brasileiro, em consonância

com o que afirmam a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica, em seu Art.

2° preceitua: “A personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a

lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” [grifos nossos].

Nota-se que a lei põe a salvo todos os direitos do nascituro, embora alguns

autores, como Washington de Barros Monteiro e Teixeira de Freitas, adeptos da teoria da

personalidade condicional, não lhe concedam personalidade, posto que a sua obtenção só

ocorrerá com o nascimento com vida. Mesmo assim, todo e qualquer ataque à vida intra-

uterina ou sua eliminação devem ser entendidos como uma violação ao direito humano

fundamental da vida.

Bittar76 considera os direitos da personalidade como “os diretos reconhecidos à

pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no

ordenamento jurídico exatamente para a defesa dos valores inatos77 no homem, como a vida, a

75 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin; Centro de Extensão Universitária, 2005, p. 115. 76 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 1. 77 Inato: que pertence ao ser desde o seu nascimento; inerente, natural, congênito Ex.: talento. Disponível on-line em : <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=inato&stype=k&x=20&y=10>. Acesso em: 15 dez. 2007.

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higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos”. E ainda, o mesmo

autor78 indica: “São direitos ínsitos na pessoa, em função da sua própria estruturação física,

mental e moral”. Assim, é possível entender que os direitos da personalidade são aqueles que

têm por objeto os atributos físicos e psíquicos da pessoa natural.

Esse direito, como conjunto de caracteres do próprio indivíduo inerentes à pessoa

humana e ligados de forma permanente – portanto, poderes que o homem exerce sobre a sua

própria pessoa –, é considerado um direito irrenunciável e intransmissível. E todo indivíduo

tem de controlar o uso de seu corpo, nome, imagem, aparência ou quaisquer outros aspectos

constitutivos de sua identidade.

Verificam-se na doutrina duas correntes sobre os fundamentos jurídicos dos

direitos da personalidade. A corrente positivista considera os direitos da personalidade

aqueles reconhecidos pelo Estado e não aceitam a existência dos direitos inatos; a corrente

jusnaturalista considera como direitos da personalidade aqueles exercidos naturalmente pelo

homem, como verdadeiros atributos inerentes79 à condição humana. Nesse ponto, por serem

considerados direitos inatos, de acordo com Bittar80, caberia ao Estado apenas reconhecê-los e

sancioná-los no plano do direito positivo.

De acordo com Bittar81, “por direitos do homem, ou da personalidade, devem

entender-se aqueles que o ser humano tem em face de sua própria condição. São – como

anotados – os direitos naturais, ou inatos, impostergáveis, anteriores ao Estado e inerentes à

natureza livre do homem”. Desse modo, mesmo que o Estado não os contemple na legislação,

em face de sua natureza, deverão ser respeitados e seguidos.

Os direitos da personalidade, como direitos ínsitos à pessoa, possuem

características próprias, conforme discorre Gagliano82 de forma sucinta. Eles são absolutos:

sua oponibilidade erga omnes e indisponíveis, seus efeitos devem ser impostos a todos e a

78 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 5. 79 Inerente: que existe como um constitutivo ou uma característica essencial de alguém ou de algo, que só existe em relação a um sujeito, a uma maneira de ser que é intrínseca a este. Disponível on-line em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=inato&stype=k&x=20&y=10>. Acesso em: 15 dez. 2007. 80 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 7. 81 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 23. 82 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. Parte geral. 8. ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1, p.145

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coletividade deverá respeitá-los; possuem a característica da generalidade, referem-se a todas

as pessoas; são extrapatrimoniais – a princípio, verifica-se ausência de conteúdo patrimonial

direto; sua indisponibilidade abarca a intransmissibilidade, pois não podem ser abdicados, e a

irrenunciabilidade, pois não podem ser cedidos a outros. São ainda considerados

imprescritíveis, impenhoráveis e vitalícios.

Com tais características, e baseado na tríade corpo/mente/espírito, Gagliano83

classifica os direitos da personalidade em três grupos no tocante à sua proteção, embora não

se possa considerar isso de forma taxativa. O primeiro grupo diz respeito à vida e à

integridade física; o segundo grupo, à integridade psíquica e às criações intelectuais; e o

terceiro grupo, à integridade moral.

O direito à vida, como já dito anteriormente, é um dos direitos mais importantes,

sendo que a sua falta inibe a efetivação de qualquer outro dos direitos fundamentais pleiteados

pelos homens. Além disso, destaca-se como um dos atributos mais importantes dos direitos da

personalidade. Os dois conceitos se unem, vida e personalidade se fundem de tal forma que

quase se tornam indissolúveis em uma análise conceitual e fática, pois a vida só tem sentindo

quando existe a personalidade. Ambos, no entanto, devem ser desenvolvidos com dignidade.

Não há como discutir que o titular do direito à personalidade é o ser humano,

sendo que os direitos do nascituro também são ressalvados pela lei, desde a concepção,

incluindo-se aí, portanto, os direitos da personalidade do feto. Ainda, os direitos da

personalidade estão vinculados de forma indissociável ao reconhecimento da dignidade

humana, qualidade necessária para o desenvolvimento das potencialidades físicas, psíquicas e

morais.

O direito à vida como um direito à personalidade compreende o direito que todo

indivíduo considerado em si mesmo tem ao alcançar o seu desenvolvimento pessoal,

intelectual, espiritual e material. Desse modo, de acordo com Szaniawski84, o direito à vida

não existe por si só, como um direito especial de personalidade. Ele está vinculado à

qualidade de vida. O simples fato de dizer que a pessoa tem vida não basta, é necessário que

ela seja vivida dignamente. Esse autor aponta:

83 Idem, ibidem. 84 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.157.

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O direito à qualidade de vida consiste no direito de todo indivíduo poder levar uma vida digna, uma vez que não se pode admitir um direito à vida isento de uma mínima qualidade de vida. A pessoa que não possui boa qualidade de vida não está exercendo verdadeiramente seu direito à dignidade humana. Estas reflexões conduziram o atual pensamento jurídico a sustentar que o princípio da dignidade da pessoa humana, ao ser efetivamente exercido, acaba de sofrer uma parcial diluição em seu valor absoluto. O valor absoluto do princípio é abalado quando concorre com outros direitos fundamentais, especialmente quando confronta com as liberdades, com as liberdades públicas e econômicas.85

Nesse ponto, Szaniawski esbarra no ponto-chave do presente trabalho: a tensão

entre o direito à vida do feto anencefálico e o direito à liberdade de manutenção ou não da

gravidez pelos pais. Como dito anteriormente, não basta viver, não basta manter uma gravidez

de um feto sem nenhuma expectativa de vida extra-uterina, sem que haja qualidade de vida.

Esse autor ainda menciona que “o direito à qualidade de vida é constituído sobre o princípio

da dignidade da pessoa humana, sendo abarcado também pelo direito à autodeterminação do

indivíduo, pelo direito à identidade pessoal, pelo direito à saúde, pelo direito de constituir

uma família e pelo direito de acesso a um patrimônio mínimo”86.

Para tanto, se faz mister verificar a partir de que momento o feto possuiria a

personalidade civil, ponto a ser comentado no próximo item.

2.4 ATRIBUIÇÃO DA PERSONALIDADE CIVIL

O início da atribuição da personalidade é um tema que suscita inúmeros debates

entre os juristas brasileiros. Almeida e Chinelato apresentam e destacam três teorias

fundamentais na doutrina brasileira para determinar o início da personalidade jurídica: a

natalista, a da personalidade condicional e a concepcionista87. As autoras esclarecem:

A primeira sustenta que a personalidade começa no nascimento com vida. A segunda afirma que a personalidade começa com a concepção, com a condição do nascimento com vida (doutrina da personalidade condicional ou concepcionista imprópria); a terceira considera que o início da personalidade se inicia com a concepção.88

85Idem, ibidem, p. 157. 86 Idem, ibidem, p. 158. 87 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 145 88 Idem, ibidem, p. 145.

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A primeira delas, a teoria natalista – também chamada de a teoria da

potencialidade da pessoa –, considera o embrião um ser humano em potencial, posto que, na

primeira fase intra-uterina, o embrião possui autonomia “embrionária”, não como ser humano,

nem biológica. Ainda serão necessários os nove meses de gestação para o desenvolvimento

adequado e em condições imprescindíveis para a formação desse ser humano89. Para essa

doutrina, a personalidade tem início a partir da concepção, sendo que o nascituro não tem

qualquer direito antes do nascimento. Tal fato pode ser observado em acórdãos dos tribunais

brasileiros que negam indenização pela morte do nascituro. Para essa teoria, como também

para o Código Civil, o nascituro teria então apenas uma expectativa de direito, já que ainda

lhe falta o fato do nascimento com vida, apenas ficando a salvo direitos patrimoniais90.

Almeida e Chinelato, mencionando Antonio Junqueira de Azevedo91, adepto

dessa teoria, entende que o nascituro possui direitos, como o direito à vida e da personalidade,

mas que é uma pessoa ontologicamente que ainda não tem personalidade. O começo da

personalidade possui como marco inicial o nascimento com vida. Desse modo, o embrião

possui uma expectativa de direito92.

Por sua vez, a teoria da personalidade condicional entende que o nascituro,

pessoa em formação, é pessoa desde a concepção, sob a condição do nascimento com vida, ou

seja, é necessário que ocorra o nascimento com vida, posto que a aquisição da personalidade

depende dessa condição suspensiva. Daí, se o nascimento não for com vida, o feto não terá

personalidade, não será considerado pessoa e não terá direitos, apenas capacidade sucessória,

caracterizando uma exceção.

Por fim, Conti relata a teoria concepcionista, a qual considera a personalidade

desde a concepção, independentemente de qualquer condição suspensiva, ou seja, ao

nascimento com vida. Ela defende que o embrião deve ser considerado como pessoa desde o

momento da concepção93, como algo distinto da mãe e com uma autonomia genética

89 MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida embrionária e a sua proteção jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 90 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 146 91 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 172 92 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. Parte geral. 8. ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1, p. 82. 93 CONTI, Matilde Carone Slaibi. Biodireito: a norma da vida. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 12

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biológica própria. Para essa teoria, a proteção jurídica à vida do nascituro existe na sua

plenitude antes do nascimento e a proteção dos direitos do nascituro tem aplicação vasta em

vários campos do direito, como o civil, o penal e o constitucional94. São adeptos dessa teoria

Ives Granda da Silva Martins e Renata Braga Klevenhusen.

Almeida e Chinelato, seguidora dessa teoria, afirma que:

a personalidade do nascituro não é condicional; apenas certos efeitos de certos direitos dependem do nascimento com vida, notadamente os direitos patrimoniais materiais, como doação e herança. Nesses casos, o nascimento com vida é elemento do negócio jurídico que diz respeito à sua eficácia total, aperfeiçoando-a.95

A referida autora96 entende que a personalidade do nascituro existe desde a

concepção e independe do evento nascimento, posto que se trata da atribuição de um status. É

uma condição desvinculada do nascimento com vida, não se deve entender como algo

condicional, apenas seus efeitos e direitos resultantes da personalidade é que dependeriam do

nascimento com vida.

Desse modo, somente os direitos patrimoniais, como doação e herança, ficariam

condicionados ao nascimento com vida e, assim, um fato social gera efeitos patrimoniais a

serem zelados pelo legislador. A autora indica de forma muito clara e explicativa que, para os

adeptos da teoria natalista, não seria admissível aceitar qualquer tipo de indenização ao feto,

já que sua personalidade só começa com o nascimento com vida e, até lá, ele não é

considerado pessoa.

Por fim, em concordância com a respeitável autora acima citada, por entender que

pessoa e personalidade civil constituem um binômio, sendo impossível a sua dissociação, “o

nascituro tem direitos desde o momento da concepção, e não expectativas de direitos”97.

Considerando os diversos aspectos que envolvem a vida humana, pode-se afirmar

que a Constituição Federal protege todas as formas de vida, com seu duplo aspecto, ou seja, o

direito de nascer e o direito de desenvolver-se e sobreviver, inclusive na fase uterina. Essa

proteção é verificada ao longo da carta magna, mas, em especial, no capítulo relativo aos

94 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p.172. 95 Idem, ibidem, p. 169. 96 Idem, ibidem, p. 166 97 Idem, ibidem, p. 175.

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direitos e garantias fundamentais.

A proteção ao direito à vida foi tratada, também, pela Convenção Sobre os

Direitos da Criança, realizada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro

de 1989, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, bem como pelo Estatuto da

Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/90). No Art. 7° do ECA fica explícita a proteção à

vida e à saúde da criança e do adolescente, sendo que a sua efetivação deve ser realizada por

meio de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e

harmonioso desse ser humano. Ressalta a mesma lei que a vida e o desenvolvimento da

criança devem ocorrer em condições dignas de existência, e, para tanto, a lei também assegura

o atendimento pré e perinatal, incluindo o apoio alimentar à gestante. Ao Estado também

compete proceder a exames visando ao diagnóstico de anormalidades no metabolismo do

recém-nascido e, principalmente, prestar orientação aos pais, tanto médicas como jurídicas,

nos casos especiais, como o do feto anencéfalo.

Analogicamente ao ECA, a criança portadora de anomalias, e aí se inclui a

anencefalia, deve receber atendimento especializado e integral por intermédio do Sistema

Único de Saúde, garantido, assim, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para

promoção, proteção e recuperação da saúde.

Desse modo, todo feto concebido possui o direito à vida, deve ser considerado

pessoa e, conseqüentemente, possui o atributo da personalidade civil, devendo ser garantido a

ele todo e qualquer benefício que a sociedade e o Estado possam oferecer, independentemente

ou não do seu nascimento.

2.5 ABORTO

O aborto será abordado no presente item, em razão da sua ligação com a temática

da tutela da vida intra-uterina.

A prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação, sendo comum a sua

realização entre os povos antigos, como hebreus e gregos98. Dava-se fim à gestação com ervas

abortivas, objetos cortantes, aplicação de pressão no abdômen. Na antiga Roma, as legislações

não cuidavam do aborto, pois consideravam o produto da concepção como parte do corpo da

98 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transsexualidade, transplantes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 23.

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mulher e não como ser autônomo, de modo que a mulher que abortava nada mais fazia que

dispor do próprio corpo99. Posteriormente, o aborto passou a ser considerado uma lesão ao

direito à prole. Com o Cristianismo, o aborto passou efetivamente a ser reprovado no meio

social.

A história conta100 que, na Idade Média, havia uma divergência sobre a

incriminação do aborto. Para Santo Agostinho, o aborto só seria considerado um delito se o

feto fosse animado, o que ocorreria quarenta ou oitenta dias após a concepção, dependendo

também do sexo do mesmo, masculino ou feminino. Nota-se que o tema do aborto é antigo,

complexo e gera muitas polêmicas. Apesar do direito fundamental à vida estar de forma clara

e simples garantido na carta magna e a vida do feto ser o bem jurídico tutelado, mister se faz

ressalvar que também há a vida da mãe a ser tutelada, bem como as arestas físicas e psíquicas

que envolvem a vida de qualquer ser humano, em especial das que se encontram nesse estado

especial.

Conceituar o termo aborto não é uma tarefa muito simples, tendo em vista não ser

um conceito uniforme entre os juristas e médicos. Aborto é um substantivo masculino, que,

no âmbito da medicina, pode ser entendida como ação ou efeito de abortar; abortamento,

interrupção prematura de um processo mórbido ou natural, ou ainda feto prematuramente

expelido. Segundo Mirabete101, “aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do

produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três

semanas a três meses) ou do feto (após três meses) não implicando necessariamente a sua

expulsão”. Chaves102 conceitua o aborto como “a interrupção voluntária da gravidez, com a

expulsão do feto, provocada pela gestante ou por terceiro, com ou sem consentimento dela, e

a conseqüente morte do produto da concepção”.

Damásio de Jesus103 faz a distinção entre os termos aborto e abortamento (aborto

provocado), salientando que “a palavra abortamento tem maior significado que aborto. Aquela

indica a conduta de abortar: esta, o produto da concepção cuja gravidez foi interrompida”.

99 Idem, ibidem, loc. cit. 100 Disponível on-line em: <http://www.aborto.com.br/historia/HISTABORTONE-1.htm>. Acesso em: 28 jun. 2008. 101 MIRABETE, Julio Fabbini. Manual de direito penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 92 102 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transsexualidade, transplantes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 23. 103 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Parte Especial. Dos crimes contra a pessoa. Dos Crimes contra o patrimônio. 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 115.

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Mirabete104 também apresenta essa diferença, indicando que “preferem alguns o termo

abortamento para a designação do ato de abortar, uma vez que a palavra aborto se referiria

apenas ao produto da interrupção da gravidez”. Diz ainda que outros autores entendem ser

aborto, o termo legal, melhor, por ser corrente na linguagem popular e cotidiana.

De acordo com Moore105, o aborto significa uma interrupção prematura do

desenvolvimento e a expulsão do concepto106 do útero, ou expulsão de um embrião ou de um

feto antes de se tornar viável, ou seja, capaz de viver fora do útero, resultando na sua morte.

Isso pode ocorrer de forma espontânea ou artificial, provocando o final da gestação e, como

conseqüência, o fim da vida do feto. Existem diferentes classificações de aborto, as quais são

tratadas a seguir.

O Código Penal regula sete figuras de aborto107. Damásio de Jesus108 os classifica

como sendo natural, acidental, criminoso e legal ou permitido. Ressalta-se, contudo, que o

aborto natural e o acidental não são considerados crimes. No primeiro caso, também chamado

de espontâneo, ocorre a interrupção da gravidez naturalmente, sem qualquer intervenção

humana, e é mais comum durante a terceira semana após a fertilização, em função da saúde da

gestante ou de problemas de desenvolvimento do ovo109. Cerca de 15% das gestações

terminam em aborto desse tipo, freqüentemente durante as primeiras doze semanas. O aborto

acidental é decorrente de um acidente sofrido pela gestante, como, por exemplo, a queda de

uma escada110. Dentre os abortos legais ou permitidos no Art. 128 do Código Penal Brasileiro,

verificam-se os tipos elencados, apresentados a seguir.

Na primeira metade da década de 1950, médicos já alertavam que certos casos,

como o da gravidez extra-uterina, nos quais a gestante corre sérios riscos de vida, o nascituro 104 MIRABETE, Julio Fabbini. Manual de direito penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 93. 105 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.7. 106 O embrião e seus anexos ou membranas associadas. O concepto inclui todas as estruturas embrionárias e extra-embrionárias que se desenvolvem a partir do zigoto. Portanto, inclui o embrião e também a parte embrionária da placenta e suas membranas associadas. 107 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transsexualidade, transplantes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 29. 108 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Parte Especial. Dos crimes contra a pessoa. Dos Crimes contra o patrimônio. 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 155. 109 Do ponto de vista da biologia, ovo é o mesmo que zigoto. É uma célula que se forma após a fusão do núcleo do óvulo (pronúcleo feminino, haplóide) com o núcleo do espermatozóide (pronúcleo masculino, haplóide) por cariogamia, o que dá origem à célula diplóide denominada ovo ou zigoto 110 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernandes Sales. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.7.

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não tem possibilidade de sobreviver, posto que não é viável. Desse modo, para salvaguardar a

vida da mãe, realiza-se a intervenção cirúrgica para a retirada do feto. Contudo, tal conduta

está fundada no estado de necessidade, que é uma excludente de ilicitude, na qual o legislador

opta pela proteção da vida da mãe em face da vida do feto.

Desse modo, esse tipo de aborto também é conhecido como aborto legal,

respaldado na lei, baseado nos princípios fundamentais e individuais, a saber: a vida do feto e

a vida da gestante. Além do motivo acima comentado que permite a sua realização, pode-se

ressaltar a necessidade de preservar a saúde física ou mental da mulher, para dar fim a uma

gestação que resultaria numa criança com problemas congênitos, os quais seriam fatais ou

associados a graves enfermidades, ou, ainda, para reduzir seletivamente o número de fetos, a

fim de minorar a possibilidade de riscos associados a gestações múltiplas. Em qualquer dos

itens elencados, somente o médico poderá prescrever e realizar o aborto.

Salles Junior111 esclarece: “Deve ser executado por médico. Na falta desse, por

terceira pessoa, amparada no estado de necessidade em favor de outrem.O médico decide

acerca da necessidade”. Como última observação sobre esse tipo de aborto, é dispensável a

concordância da gestante ou do representante legal, tendo em vista o imimente perigo de vida

que a gestante pode sofrer.

O aborto sentimental também é conhecido como aborto ético ou humanitário. Está

previsto na legislação brasileira, mais especificamente no inciso II do Art. 128 do Código

Penal, no qual não se pune o médico que o realizar, posto que a gravidez é em decorrência de

estupro. A vítima teve a sua honra ofendida devido ao atentado sexual e procura se livrar da

maternidade indesejada112. Contudo, ressalta-se a necessidade premente do consentimento da

gestante, quando esta for capaz civilmente, ou do seu representante legal, quando ainda não

atingida a capacidade.

A fundamentação para a realização desse tipo de aborto, segundo Chaves113 reside

no conflito de interesses que se origina entre a vida do feto e a liberdade da mãe,

especialmente as cargas emotivas, morais e sociais que derivam da gravidez e da maternidade,

de modo que não lhe é exigível outro comportamento. Sob esse aspecto, seria desumano

111 SALLES JUNIOR, Romeu de Almeida. Curso completo de direito penal. 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 188. 112 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transsexualidade, transplantes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 31. 113 Idem, ibidem, p. 31.

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impor à mulher carregar por nove meses em seu ventre um ser que não foi feito com um

mínimo de amor, carinho e afeto, sendo que, quando do seu nascimento, este ser só lhe traria

recordações de horror, medo e pavor vividos.

Além disso, crianças não desejadas possuem um nível de felicidade inferior às

outras crianças, incluindo problemas que se mantêm mesmo quando adultas. Entre esses

problemas, incluem-se doenças e morte prematura, pobreza, problemas de desenvolvimento

escolar, emocional e psicológico, que acabam gerando, como consequência, baixa auto-

estima, abandono escolar, necessidade de apoio psiquiátrico, sem falar nas consequências

sociais que tal ser humano pode vir a provocar, como a delinquência juvenil, abuso de

menores, entre outros.

O fato é que a justificativa básica para a realização do aborto decorrente de

estupro é a garantia da integridade fisica e psíquica da mulher. Para que esse tipo de aborto

seja realizado, faz-se necessário o consentimento da gestante, ou daquele que a represente.Por

outro lado, a lei não exige autorização judicial.

Já o aborto eugênico é a interrupção da gravidez quando há a suspeita de que o

feto possui graves anomalias transmitidas pelos pais. Esse tipo de aborto é indicado quando se

verifica riscos fundados de que o embrião ou feto seja portador de anomalias genéticas de

qualquer natureza ou de defeitos físicos e psíquicos decorrentes da gravidez. É realizado para

impedir que a criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável. Não é previsto em

nossa legislação no tocante à sua permissão, portanto, se realizado, seria considerado ilícito. A

palavra eugenia é apropriada para indicar a produção de boa prole, visando ao melhoramento

da raça de acordo com a sua significação.

Segundo Chaves114, o conceito do aborto eugênico foi desvirtuado e

desmoralizado pelos nazistas ao utilizá-lo sob a alegação de higiene racial, a fim de manter a

“raça” ariana. Esse tipo de aborto, não confundível com o terapêutico, faz lembrar as práticas

nazistas de "purificação da raça", consideradas execráveis; os especialistas que as incluíam

em seus objetivos e em suas práticas vieram a ser caçados para serem condenados como os

mais abomináveis criminosos contra a humanidade.

Existem diversos fatores capazes de provocar lesões no feto, e uma delas seria a

ingestão de drogas, como a talidomida, utilizada para o tratamento do mal de Hansen, que

provocou o nascimento de milhares de crianças com ausência congênita de membros 114 Idem, ibidem, p. 33.

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superiores e inferiores (braços e pernas). Além disso, há as doenças infecciosas, como a

hepatite, a rubéola e outras transmitidas por animais domésticos. Realmente, com o aborto

eugênico, pretende-se impedir que nascituros venham a sofrer, por fatores diversos,

deformações físicas ou anomalias psicofísicas, verificadas no exame pré-natal, ou que, por

doença da mãe, correm o risco de nascerem defeituosos ou doentes. Só teriam direito de

nascer os nascituros normais, isentos de qualquer defeito ou distúrbio da saúde.

Diante de situações desse tipo, em que o feto não terá condição de sobrevida fora

do útero materno, consubstanciada em laudos médicos, verifica-se, em situações fáticas,

pedidos ao poder judiciário para autorizar a realização do aborto. Contudo, isso não tem sido

contemplado pelo direito infraconstitucional para os casos de anencefalia do feto como uma

das hipóteses de aborto legal, pelo fato de ser uma afronta à lei maior.

De qualquer sorte, o aborto pode ser entendido como a morte de uma criança no

ventre de sua mãe, a sua destruição produzida durante qualquer momento da etapa em que

este se encontra no ventre materno, desde a fecundação, a concepção (união do óvulo com o

espermatozóide), até o momento prévio ao nascimento. Apesar das várias definições dos

doutrinadores sobre o que seja o aborto, é necessário ressaltar o conceito oferecido pela

medicina.

Na definição de Moore sobre o que seja o aborto, apresenta-se o termo

viabilidade, ou seja, a possibilidade de o ser humano se desenvolver fora do útero materno e

de forma autônoma, tema a ser abordado no próximo item. Entende-se que cabe à medicina

conceituar e determinar o que seja o aborto. Desse modo, também se faz necessário o

entendimento sobre o feto ser ou não viável, ou seja, ter ou não possibilidade de viver fora do

útero materno, sem a necessidade de utilização de aparelhos e equipamentos, de se

desenvolver de forma sadia, a ponto de atingir a sua capacidade plena de vida de forma digna.

Como já mencionado anteriormente, a Constituição Brasileira protege o direito à

vida e este deve ser entendido como o direito à existência humana, que surge desde o

momento da concepção, como marco inicial da vida, sob o ponto de vista jurídico. Considera-

se que desde o momento da concepção se tem vida e, portanto, a eliminação do feto seria

impossível, considerada um crime, um ilícito diante da lei maior, e ninguém pode retirar a

vida de alguém.

O Código Penal considera o aborto como crime desde 1940, mas prevê a

interrupção da gestação em situações específicas: risco de vida da mãe e gravidez resultante

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de estupro. Com isso, observa-se uma relativização do princípio da vida, em especial, da vida

intra-uterina, nos casos acima mencionados.

Apesar disso, a realização do aborto nos casos não previstos pelo Código Penal,

sem que se constitua um ilícito penal, ainda não é possível. Mas como tratar então a

possibilidade de realização de aborto no caso de fetos anencéfalos, os quais, segundo a

medicina, não possuem qualquer possibilidade de vida extra-uterina? A realização do aborto,

nesse caso específico, deve ser analisada pela ponderação de valores e princípios, entre o

direito da vida do feto e a autonomia da mãe.

Barcellos115 define ponderação como sendo “a técnica jurídica de solução de

conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão insuperáveis pelas

formas hermenêuticas tradicionais”. A atividade da ponderação é a otimização da aplicação

dos princípios quando se encontram contrapostos, em posição adversa. Observa-se que a

ponderação é forma de análise não apenas de enunciados normativos ou normas, mas também

a verificação de todos os argumentos que envolvem o fato em si. Barcellos116 entende que a

ponderação acaba por confundir-se com a atividade de interpretação, e que a interpretação

envolveria a ponderação.

Diante disso, quando ocorre a colisão de direitos fundamentais, como no caso da

possibilidade de aborto do feto anencéfalo, em que a vida do feto se contrapõe ao direito da

mãe à liberdade, à sua autonomia de escolha quanto à manutenção da gravidez de um feto

considerado inviável pela medicina, cabe a utilização da ponderação com vistas a se obter

uma solução para o caso concreto. Destarte, como já dito anteriormente, faz-se necessária

uma análise do que seja a viabilidade de vida, próximo tema a ser discutido.

115 BARCELLOS. Ana Paula de. Poderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 23. 116 Idem, ibidem, p. 27.

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2.6 VIABILIDADE COMO CRITÉRIO CARACTERIZADOR DO DIREITO À VIDA

Como já mencionado desde as primeiras linhas desse trabalho, a anencefalia é

uma malformação congênita em decorrência de um defeito no fechamento do tubo neural, ou

seja, a ausência de um hemisfério cerebral ou de ambos, o que impede a sobrevivência do feto

fora do útero. O feto anencéfalo possui apenas o tronco cerebral, motivo pelo qual não

mantém relação com o mundo exterior, não apresenta qualquer tipo de consciência nem sente

dor. Também chamada de acefalia, pode ser diagnosticada precocemente através de um

exame de ultra-sonografia, por volta de doze semanas de gravidez.

De acordo com o presidente do Conselho Federal de Medicina, Dr. Edson de

Oliveira Andrade117, um feto anencefálico tem chance estatística de praticamente 100% de

morrer durante a primeira semana após o seu nascimento, mesmo que esteja ligado a

aparelhos mecânicos que possam prolongar de forma relativa a sua vida. Determinar o

momento inicial de vida, como já se comentou anteriormente, não é tarefa fácil, tendo em

vista as inúmeras posições e marcos existentes na biologia e na medicina. Da mesma forma,

determinar o instante de morte também não é tranqüilo. A situação se mostra mais delicada

quando se trata de feto com malformações congênitas, como no caso dos fetos anencefálicos.

As discussões médicas e jurídicas sobre o início ou término da vida sempre estiveram em

pauta.

O momento final da vida se faz importante na atualidade, em especial no tocante

ao transplante de órgãos. De acordo com a medicina, há dois tipos de morte: a morte

encefálica e a morte clínica. A morte encefálica118 consiste na cessação da atividade elétrica

do principal órgão do corpo humano, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente

funcionando; a morte clínica, por sua vez, tem um conceito mais rígido, exigindo algo mais,

como a parada da atividade cardíaca de forma irreversível e a parada respiratória.

Independentemente da identificação do momento da morte de um ser humano, já é

claro que a falta do córtex cerebral do feto anencéfalo não é fato suficiente para ser

reconhecida a morte encefálica, mas é fato notório que o feto não conseguirá sobreviver após

117 Disponível on-line em: <http://www.providaanapolis.org.br/agrandif.htm>. Acesso em: 9 jun. 2008. 118 ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond de. Anencefalia e aborto. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 324, 27 mai. 2004. Disponível on-line em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5167>. Acesso em: 9 jun. 2008.

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desligar-se do útero materno em razão de tal deficiência. A vida fora do útero materno é,

portanto, inviável119.

Mas do que se trata vida viável? O que significa a viabilidade? Sob o aspecto

etimológico120, o vocábulo viável pode ser entendido como sendo o bom estado dos caminhos

destinados à circulação. Para a biologia121, viável é aquele capaz de viver, crescer, germinar

ou se desenvolver, referindo-se tanto à semente como ao embrião. Já para a obstetrícia, é

apresentar o suficiente desenvolvimento e a conveniente regularidade de conformação para as

exigências da vida extra-uterina (diz-se do feto)122. Por fim, ainda para a medicina, a

significação da palavra viável – ou a viabilidade do feto – diz respeito à apresentação de

suficiente desenvolvimento e à conveniente regularidade de conformação para as exigências

da vida extra-uterina123, ou seja, a aptidão normal de se manter vivo por um certo tempo.

Bourguet comenta a posição do Comitê Consultivo Nacional de Ética francês

sobre a viabilidade de vida de um feto ou embrião, reconhecendo-o como uma pessoa em

potencial. Para o Comitê, “todos os estágios de desenvolvimento do zigoto desde a

fecundação do óvulo até o estágio da maturação que permite uma vida autônoma”124. Para

Bourguet, a interpretação feita pelo dito comitê sobre a viabilidade humana é “o limiar

significativo da personalidade por inteiro, isto é, […] a aquisição, pelo feto, de uma vida

autônoma em relação a mãe”125.

O critério da viabilidade é necessário para possibilitar ou não a atuação de uma

pessoa no mundo de forma autônoma. Para Bourguet, “a viabilidade não é um acontecimento

como o nascimento, mas um estágio abstrato que remete ao mesmo tempo ao próprio

desenvolvimento fetal e às nossas possibilidades técnicas”126. O mesmo autor faz uma

119 BARBATO JR., Roberto. O aborto dos fetos anencéfalos: o direito e a realidade atual. Revistas dos Tribunais, ano 96, volume 865, p. 437. 120 Disponível on-line em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=vi%E1vel+&stype=k&x=12&y=7>. Acesso em: 9 jun. 2008. 121 Disponível on-line em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=viável>. Acesso em: 9 jun. 2008. 122 Disponível on-line em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=vi%E1vel+&stype=k&x=12&y=7>. Acesso em: 9 jun. 2008. 123 Disponível on-line em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=viável>. Acesso em: 9 jun. 2008. 124 BOURGUET, Vincent. O ser em gestação. Reflexões bioéticas sobre o embrião humano. Trad. Nicolas Nymi Campanário. São Paulo: Loyola, 2002, p. 109 125 Idem, ibidem, p. 110. 126 Idem, ibidem, p. 111.

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diferenciação sobre as significações da viabilidade e da maturidade, esclarecendo que um feto

pode ser imaturo, mas viável, dependendo daí as técnicas médicas utilizadas.

Diante do colocado acima, cabe manifestação no seguinte sentido: viabilidade

significa o desenvolvimento necessário do ser humano para a vida extra-uterina, de forma

independente e autônoma. Quando se reflete sobre autonomia, refere-se aos critérios

apresentado pelo filósofo Kant: a pessoa autônoma é aquela que vive e se mantém sem

depender de outro ou de qualquer técnica do mundo atual e, com isso, após o evento do

nascimento, passa por todas as fases de desenvolvimento até atingir o último estágio da vida

humana, ou seja, a morte.

Nessa perspectiva, conclui-se que a anencefalia é uma malformação congênita que

gera a inviabilidade de vida humana extra-uterina de forma independente e autônoma.

2.7 FETO ANENCÉFALO: EXISTÊNCIA DE VIDA?

A problemática desse ponto está em responder à questão relativa ao fato de o feto

anencéfalo possuir ou não vida. Diante do que foi relatado até o presente momento, não se

trata de tarefa simples. Parte-se do princípio de que o significado da palavra vida de um ser

vivo envolve o período compreendido entre o seu nascimento e a sua morte, lembrando que

há o período intra-uterino. Não se questiona a afirmação de que a vida humana tem início por

meio da concepção, ou seja, da fecundação, cerca de quatorze dias após o início do último

ciclo mestrual. Contudo, como já comentado anteriormente, é possível encontrar, tanto na

doutrina médica como na doutrina jurídica, a idéia de que a vida humana deveria iniciar com

o início da função cerebral127.

Diante do exposto, cabe a questão: para o direito, quando começa a vida? Qual o

seu marco inicial? Muitos juristas entendem que a vida tem seu início na fecundação, sendo o

embrião considerado um ser humano. Desse modo, considera-se um crime qualquer ato que

atinja este sujeito, mesmo que no útero materno, pois o Art. 5° da Constituição garante a

“inviolabilidade do direito à vida”. Além disso, a proteção do direito à vida, com relação

àquele ser humano já nascido, também é clara no mesmo artigo, sendo esse direito

considerado o mais importante dos direitos fundamentais do homem, pois é inerente à pessoa

humana. 127 Ação natural e própria do cérebro.

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Não há também como questionar a necessidade de tutelar o nascituro, sob o

prisma legal, já que a sua vida intra-uterina, ou a expectativa de vida extra-uterina, depende

da manutenção da gravidez por parte, principalmente, da mãe, na medida em que o feto é

hipossuficiente. Desse modo, o Código Civil colocou a salvo os diretos do feto, desde que

nasça com vida, e garantiu a proteção jurídica para que tenha condições de vir ao mundo e

tornar-se um indivíduo capaz de ampliar suas potencialidades.

Por outro lado, o judiciário passou a receber pedidos de aborto para os casos dos

fetos anencefálicos. Como já dito, a anencefalia é a malformação congênita do sistema

nervoso central, na qual o encéfalo não se desenvolve e a calota craniana está ausente, ficando

a massa cerebral mal-desenvolvida e exposta. Além disso, como resultado da falha de

fechamento do tubo neural, identificando-se apenas um resíduo do tronco encefálico,

diagnosticada a partir de doze semanas de gestação, o ser humano não possuirá consciência,

cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Como o feto anencéfalo

não tem a estrutura encefálica necessária à realização das atividades que possibilitarão a

manutenção de uma respiração autônoma e o desenvolvimento de outras funções essenciais à

sua existência, a possibilidade de vida extra-uterina é remota, praticamente nula.

Martins esclarece que:

No caso do anencéfalo, permanece a questão sobre se se trata de vida humana, como colocam aqueles que defendem a possibilidade de sua supressão. Sabe-se que, no momento da concepção, pela fecundação do óvulo pelo espermatozóide, o embrião que surge passa a ter um código genético distinto da mãe, o que mostra-se trata-se de ser diferente da mãe e não mero apêndice do organismo feminino. Se a ciência chega para demonstrar essa realidade (como o fez o Prof. Jerôme Lejeune, descobridor da síndrome de Down), não é possível se pretender dizer que não se está diante de uma vida humana, pois de dois gametas humanos não procedem macacos ou elefantes.128

Ocorre que a anencefalia “é definida na literatura médica como a má-formação

fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o

feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco

encefálico”129. Para Diniz e Ribeiro,

128 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin; Centro de Extensão Universitária, 2005, p. 177. 129 BEHRMAN, Richard E.; KLIEGMAN, Robert M. e JENSON, Hal B.. Nelson/Tratado de pediatria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.

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Conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro”, a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal130.

Segundo Barroso, “Como é intuitivo, a anencefalia é incompatível com a vida

extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. Não há controvérsia sobre o tema na literatura

científica ou na experiência médica”131. Partindo-se do princípio que o início da vida ocorre

por meio da fecundação, é inquestionável a existência de vida intra-uterina do feto anencéfalo,

pois se trata de um ser biologicamente vivo, composto de células e tecidos. Contudo, há

aqueles que entendem que a vida se encerra com a morte encefálica e, diante disso, esse feto

não teria vida, posto que lhe faltaria a atividade cerebral, em virtude da sua malformação.

Como se trata de uma anomalia fetal grave, sendo que alguns médicos consideram o feto

como um “natimorto cerebral”, a vida extra-uterina é inviável. O que muitos discutem, tanto

juristas como biomédicos, é a viabilidade desse feto fora do útero materno, o desenvolvimento

de uma vida saudável e digna. Há muita discussão sobre o aspecto da viabilidade de vida

extra-uterina independente da mãe.

Para fins deste trabalho, entende-se que o feto, mesmo sendo anencéfalo, deve ser

considerado um ser humano e vivo. Por outro lado, cabe ressaltar que o presente trabalho não

visa a discutir ou concluir sobre ponto inicial da vida, para aí justificar a sua proteção. O

trabalho está voltado para os argumentos constitucionais, a ponderação de princípios e valores

que envolvem o direito à vida do feto de se manter vivo, desde o ventre materno até o

momento do nascimento, e o direito da gestante de não precisar manter a gravidez, passando

pela angústia, pelo sofrimento, por riscos à própria saúde, sofrendo a afronta ao seu direito de

liberdade de escolha e autonomia e, principalmente, à sua dignidade.

Nessa situação, Martins132 enfoca a necessidade de analisar “o principal valor e o

direito mais fundamental” a ser protegido. Mais uma vez, coloca-se a importância da

manutenção da vida humana, na sua completude e com dignidade. Para o neurologista Clóvis

130 DINIZ, Débora. Aborto por anomalia fetal. 1º reimpr.Brasilia, Letras Livres, 2004, p. 101. 131 BARROSO, Luis Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, t. 3, p. 562. 132 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin; Centro de Extensão Universitária, 2005, p. 177.

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Francesconi, do serviço de neurologia do HCPA e professor da UFRGS, os simples atos de

respirar e manter o coração batendo não constituem a integralidade do ser humano.

Diante do apresentado, apesar de algumas posições adversas, observa-se uma

certa unanimidade em torno de que o feto anencéfalo é um ser humano em gestação e que

possui vida; entretanto, sem a possibilidade de desenvolvimento completo, integral e

independente fora do útero materno, ou seja, sem viabilidade de vida extra-uterina.

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3 A VIDA HUMANA E O PLANEJAMENTO FAMILIAR

O legislador do início do século XX certamente não imaginava que a ciência

pudesse se desenvolver a ponto de identificar com precisão a partenidade de um filho, ou a

doença congênita de um feto ainda no ventre materno.

Com as transformações sociais ocorridas nos últimos anos, a Constituição Federal

de 1988, baseada no modus vivendi atual, tratou de modo inovador o assunto que trata da

família, da criança, do adolescente e do idoso, criando um capítulo próprio. Assim, o objetivo

dessa seção é analisar os limites do direito ao planejamento familiar, com o fim de se

investigar se o ordenamento jurídico brasileiro contempla a liberdade da gestante ou do casal

de interromper a gestação fora das hipóteses previstas pelo legislador.

Diante disso, nota-se a necessidade de analisar a filiação, fruto da procriação

humana, parte integrante da familia. A filiação, por se tratar de fato natural na maioria da

vezes, é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos, como a criação da familia.

Alguns desses efeitos serão abordados neste capítulo.

3.1 O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR

Na atual carta magna, promulgada em 1988, foi descrita, no Art. 226133, entre

outros conceitos vinculados a esse ponto, a concepção de família e determinada a sua proteção

especial em função de ser a base da sociedade. Assim, a família pode ser entendida como a

comunidade natural composta de pais e filhos, aos quais são imputados direitos e deveres

recíprocos.

133 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

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De acordo com a doutrina clássica civilista, o conceito de família pode ser

entendido em sentido amplo, como parentesco, ou seja, o conjunto de pessoas unidas por

vínculo jurídico de natureza familiar, e em sentido restrito, no qual família compreende o

núcleo formado por pais e filhos que vivem sob o pátrio poder ou poder familiar. Já no texto

constitucional de 1988, o conceito de família foi ampliado para efeito de proteção do Estado,

sendo reconhecido como entidade familiar também a união estável134 entre homem e mulher,

propiciando a sua conversão em casamento. Nesse ponto, a Constituição também reconheceu

a família monoparental, ou seja, a entidade familiar formada apenas por um dos pais, pai ou

mãe, e seus descendentes, anteriormente considerada “ilegítima” por não estar organizada

segundo a lei135.

Mas nem sempre esse protótipo de família existiu. Segundo Barreto, “No direito

ronamo, as relações familiares colocavam casal, filhos, servos e escravos sob uma única

autoridade: a do pater familias”136. Já no Direito Canônico, a família passou a ser

matrimonializada. Nota-se que a família clássica estava baseada na hierarquia e no

autoritarismo, e a norma jurídica que cuidava desse assunto servia como instrumento para

determinar a inferiorização de alguns de seus membros e a exclusão de outros137. Com base

nesse pensamento arcaico, verificou-se o padrão patriarcal monogâmico, sendo que essa

forma de construção familiar desempenhou um papel de impluso à criação da prole e ao

exercício do poder paterno138.

No curso da história, fenômenos sociais acabaram por provocar a alteração desse

preceito de simples monogamia para criação da prole com a idéia de produção para auferir

valores e criar fortuna. A criação da familia, sua subordinação e manutenção vinculadas a

laços de sangue, passou à idéia também de educação dos filhos.

Contudo, com a crise sofrida pela burguesia, outra alteração na estrutura da

família foi verificada, passando a ter como atributo essencial a economia própria, ou seja, a

possbilidade de cada um de seus membros de manter o seu sustento. Com isso, a autoridade

dos pais sobre qualquer membro que tivesse condições de se manter economicamente 134 Convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família. 135 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Direito de família. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 4, p. 166. 136 BARRETO, Vicente de Paulo (Coord). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 314. 137 Idem, ibidem, loc. cit. 138 VENOSA, Silvio da Salvo. Direito civil: direito de família. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 3.

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terminava – e, por conseqüência, a simples obediência dos filhos. A família passa a ser, então,

apenas uma entidade cultural.

Gonçalves139 comenta que o Código Civil de 1916 regulava a família constituída

unicamente pelo casamento, sob o modelo patriarcal e hierarquizado, sendo que, com o

decorrer do tempo, um novo enfoque foi sendo desenvolvido e novos elementos, anexados às

relações familiares.

Diante da alteração fática social, da construção de uma nova ordem de valores,

descatando-se os vínculos afetivos no seio familiar, a Constituição Federal de 1988 realizou

grandes modificações no direito de família, sendo aí abordados novos horizontes. Por meio da

análise do parágrafo 7° do Art. 226 da Constituição Federal, é possível extrair dois

posicionamentos que merecem comentários especiais no tocante à criação e à manuenção da

família na atualidade. O primeiro, relativo ao planejamento familiar, está fundamentado nos

princípios da dignidade da pessoa humana e da partenidade responsável; o segundo, à

liberdade dada ao casal de planejar a sua família.

Planejar o próprio núcleo familiar, sua formação e desenvolvimento baseia-se no

princípio da dignidade da pessoa humana. A limitação da natalidade é relativa à dignidade,

qualidade intrínseca ao ser humano, que faz com que ele seja merecedor de respeito e

consideração por parte da sociedade, de todos seus membros, bem como do Estado. A

dignidade da pessoa humana é um atributo da pessoa humana que deve ser considerado de

forma individual. Tal conceito envolve direitos fundamentais capazes de assegurar proteção a

qualquer pessoa quanto a qualquer ato que seja considerado degradante ou desumano, bem

como garantir condições mínimas para uma vida saudável.

Dessa forma, toda pessoa que possuir condições de tomar decisões de forma

autônoma140 e responsável terá o direito à dignidade. Observa-se, aqui, que decisões

autônomas somente são possíveis e aceitáveis por seres humanos considerados capazes, sendo

que, para aqueles que não atingiram tal condição, seu destino está condicionado às decisões

de seus representantes.

Um ser humano não pode ser tratado como “coisa”, pois ao lado dele se verifica 139 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Direito de família. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 4. 140 Autonomia é a capacidade de se autogovernar. No âmbito da filosofia, segundo Kant (1724-1804), capacidade apresentada pela vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível.

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outro ser humano, com vida humana, com vontades e desejos, com as mesmas necessidades e

valores éticos, já que são universais. Conforme Sarlet141, muitos direitos fundamentais

encontram seu fundamento na regra da dignidade da pessoa humana. Como principal objeto

de reconhecimento e proteção, esse princípio foi considerado um guia para toda a ordem

constitucional. A constituição de 1988 referiu-se a ele, adotando-o como fundamento da

forma de governo, ou seja, a República e o Estado Democrático de Direito.

Diante disso, o princípio em questão possui a qualidade de princípio fundamental,

não sendo considerado apenas nos direitos fundamentais, mas em toda a ordem jurídica

nacional, pois possui característica de princípio constitucional. Assim considerado, é princípio

constitucional, e o conteúdo verificado no seu centro, no seu bojo, vai depender do processo

de ponderação para a verificação de valores, o qual o aplicador do direito terá que realizar

para a sua aplicabilidade e efetividade.

A dignidade da pessoa humana está vinculada ao direito à saúde, tanto física como

psíquica, da mãe do feto anencéfalo, como também ao direito à liberdade que reverterá na

autonomia da mãe quanto à própria limitação da natalidade que o artigo acima comenta. A

dignidade da mulher quanto à escolha ou não de ter filhos diz respeito ao planejamento

familiar, em especial a escolha de ter ou não um filho anencéfalo, objeto central deste

trabalho.

Outro ponto a ser analisado no planejamento familiar diz respeito à paternidade

responsável. Tanto a paternidade como a maternidade são de responsabilidade do casal, e não

do Estado. Ao Estado compete propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício

desse direito, ou seja, o exercício efetivo da paternidade e/ou da maternidade, proibindo

qualquer forma de coerção por parte de qualquer instituição oficial ou privada142. Diante

disso, entende-se que cabe ao casal a escolha dos critérios e do modo de agir quanto à sua

família. Portanto, por esse entendimento, com base no parágrafo 7° do Art. 226 da

Constituição Federal, seria da escolha do casal a manutenção ou não da gravidez do

anencéfalo.

O termo paternidade é utilizado de forma genérica na doutrina jurídica para

expressar a relação de pai e de mãe referentemente a seus filhos, pressupondo um nexo

141 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4. ed. rev. Atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 69. 142 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 1327.

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biológico ou genético entre eles. Esse termo também convoca os pais a assumir uma realidade

familiar concreta, na qual os vínculos de afeto se sobrepõem aos vínculos biológicos.

Por outro lado, conforme Bulos143, a paternidade responsável remete também a

outros aspectos: o dever de alimentar e a submissão compulsória ao exame de DNA para

comprovação da paternidade, já que a maternidade é aparente. Reconhecida a paternidade,

cria-se a obrigação de alimentar e em caráter definitivo, sempre analisando o binômio da

necessidade e possibilidade das partes envolvidas. Além disso, tendo em vista que as

liberdades públicas são relativas, e até mesmo em função do princípio da dignidade da pessoa

humana, nada pode obstar a realização do exame de DNA, seja por meio da coleta de sangue,

saliva ou fio de cabelo. Destarte, não se pode utilizar de métodos evasivos com o possível pai,

ou seja, algo que discrepa das garantias constitucionais implícitas e explícitas, como o

princípio da intimidade e da intangibilidade do corpo humano para a realização de tal exame.

É necessário comentar sobre a liberdade do casal em planejar a sua própria

família. A liberdade humana, como direito fundamental, baseia-se no livre arbítrio. O homem

se sujeita às leis objetivas das quais ele mesmo é o criador, em função das suas relações

sociais. Assim, a cada instante ele pode fazer uso delas e, até mesmo, transformá-las com o

intuito de beneficiar-se. Verifica-se aí efetivação do princípio de liberdade. Segundo Silva144,

o conceito de liberdade humana deve ser entendido como “um poder de atuação do homem

em busca da realização pessoal, de sua felicidade”.

A exigência mundial de respeito e consideração aos direitos fundamentais,

incluindo o direito à liberdade e à autonomia, é verificada em várias situações de encontros

mundiais, além das manifestações realizadas pelos próprios organismos internacionais, como

a ONU. Desse modo, o fato de se ter ou não filhos faz parte do planejamento familiar e está

vinculado estritamente à vontade das partes envolvidas, ou seja, à autonomia e ao livre-

arbítrio do casal, não sendo possível nem admissível que o Estado intervenha em tal decisão,

mas apenas que proporcione meios para assegurar a criação, o desenvolvimento e a

manutenção da família de forma digna.

Por fim, no mesmo sentido, caberia ao casal a decisão de manter ou não a

gestação de um feto anencéfalo. De qualquer sorte, para a análise do tema deste trabalho, faz-

143 Idem, ibidem, loc. cit. 144 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006.

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se mister verificar a Lei 9263/96, que tratou especificamente do planejamento familiar, objeto

do próximo item.

3.2 LEI 9263/96

A Lei 9263/96 é a norma jurídica infraconstitucional que veio dar oportunidade

não só a casais, mas também a homens e mulheres solteiros, de realizar o planejamento

familiar como um instrumento de tornar a vida em família mais responsável e, principalmente,

afetuosa.

Analisando a história, verifica-se que a maternidade apresentou uma carga cultural

no instituto da família, bem como uma superioridade do poder masculino sobre o feminino de

forma pública. Essa superioridade masculina e a conseqüente inferioridade feminina foram

justificadas pela menor força física e pela maternidade da mulher. Contudo, as manifestações

culturais ocorridas principalmente na segunda metade do século XX levaram à pregação de

práticas de liberdade no exercício da sexualidade, as quais estavam relacionadas diretamente

ao corpo da mulher.

Por outro lado, fatores sociais e econômicos, como a pobreza e a miséria, fizeram

vir à tona o “planejamento familiar”145, tema que se encontra ligado aos direitos reprodutivos,

os quais se vinculam ao livre exercício da sexualidade e da reprodução humana. A postura

reprodutiva do homem, vinculada ao direito de privacidade, e a possibilidade de livre decisão

do casal quanto ao número de filhos e o espaçamento entre eles estão baseadas na preservação

e estimulação da auto-estima de cada indivíduo, tanto no que refere ao homem quanto à

mulher, com base no princípio fundamental da igualdade proclamado na Constituição Federal.

Os direitos reprodutivos e sexuais da mulher estão especialmente ligados à

condução de questões pessoais, relacionadas ao exercício da sexualidade e da procriação.

Desse modo, homem e mulher, gozando de saúde reprodutiva, podem exercer seu direito de

liberdade sexual no campo da reprodução humana. Gama146 comenta a definição fornecida

pela Organização Mundial da Saúde sobre saúde reprodutiva: trata-se de um estado de bem-

145 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípio da patermidade responsável. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 5, n. 18, abr./jun. 2004, p. 22. 146 Idem, ibidem, p. 23.

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estar físico, mental e social, e não de mera ausência de enfermidades ou doenças, em todos os

aspectos relacionados ao sistema reprodutivo e suas funções e processos.

Alguns dispositivos da Constituição Federal de 1988 relacionam-se de forma

direta com o planejamento familiar, como parágrafo 7° do Art. 226. Por esse dispositivo,

reconhece-se, de forma clara e ampla, a importância do Estado em atuar nessa área de forma

preventiva, no que se refere à informação, ao ensino e à educação das pessoas sobre as

técnicas para o exercício dos direitos reprodutivos, e também de forma promocional, no

sentido de empregar recursos para proporcionar a opção de escolha do casal em ter ou não os

filhos. Com isso, nota-se claramente que o planejamento familiar corresponde à livre decisão

do casal e ressalta-se que a responsabilidade pela paternidade compete ao casal, e não ao

Estado.

Tal fato foi reconhecido pelo direito brasileiro de forma explícita, tanto que em

1996 foi aprovada a Lei 9.263, cujo ponto principal diz respeito ao planejamento familiar

exercido não só pelo casal, mas também por aquele homem ou mulher que deseje

individualmente constituir uma família. A referida lei apresenta no seu Art. 2° o conceito de

planejamento familiar como “conjunto de ações de regulamentação da fecundidade que

garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo

homem ou pelo casal”. O termo fecundidade deve ser entendido como possibilidade de

produção, faculdade reprodutora147.

Observa-se que a referida lei não tem um caráter de controle demográfico, nem

tampouco procura apoiar a prática do aborto ou da eugenia, muito menos se reporta ao fato da

mulher estar no mercado de trabalho de forma efetiva. Sua finalidade está fundada no direito à

saúde e à liberdade e na autonomia do casal em definir o tamanho da prole e a oportunidade

que julgar mais apropriada em ter filhos148. A lei pretende efetivar os princípios fundamentais

consubstanciados na carta magna, principalmente os princípios da liberdade, da paternidade

responsável e da dignidade humana.

A Lei 9.263 cuida das atividades de assistência à concepção, com a adoção de

métodos e técnicas que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas. Contudo, as

novas tecnologias na área da reprodução humana – e, nesse ponto, devem-se incluir exames

147 MACHADO, Paulo Affonso Leme; PERROTTI, Maria Regina Machado; PERROTTI, Marcos Antonio. Direito do Planejamento familiar. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 87, v. 749, mar. 1988, p. 49. 148 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 142.

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pré-natais de ultra-sonografia –, devem ser utilizadas, observando o princípio da dignidade da

pessoa humana.

Os avanços científicos e tecnológicos a que recorre a mãe durante o período de

gravidez, visando a detectar anomalias genéticas, em especial a anencefalia, devem

possibilitar aos pais a decisão consciente e responsável da manutenção ou não da gestação até

seu término, ou seja, o nascimento. Desse modo, se efetiva o princípio da dignidade humana,

desde que não haja a possibilidade de vida do feto após o nascimento.

Gama149 comenta que a paternidade responsável prevista na lei ora discutida,

quando trata da reprodução, se funda também na responsabilidade individual e social do

homem e da mulher, quando do exercício da liberdade inerente à sexualidade. Os pais devem

priorizar o bem-estar físico, psíquico e espiritual da criança. Ainda, segundo este autor150, “ao

direito individual da mulher de exercer sua sexualidade e optar pela maternidade se

contrapõem as responsabilidades individuais e sociais que ela assume ao se tornar mãe”. Tal

afirmação não pode ser entendida de modo absoluto quando se trata da gravidez de feto

anencéfalo, pois, como já dito, dois princípios constitucionais estão envolvidos: a vida do feto

e a liberdade e autonomia da mãe em manter ou não a gravidez até seu término, ressaltando

também o princípio da dignidade da pessoa humana. A consciência sobre a paternidade

envolve não só o aspecto voluntário da decisão de procriar, mas também os efeitos posteriores

ao nascimento do filho, como a responsabilidade pela formação e pelo desenvolvimento de

sua personalidade, que surtirão efeitos na fase adulta.

Nesse ponto, caberia a atuação preventiva do Estado, no sentido de fornecer

informações e recursos que dêem condições aos pais de saber as conseqüências de seus

comportamentos individuais, em especial quando se trata de um feto anencéfalo, após cujo

nascimento é nula a probabilidade de se manter vivo. Como se sentiria uma mãe nessa

situação: carregar no ventre, por nove meses, uma criança que, com certeza, falecerá logo

após seu nascimento?

O direito à liberdade de escolha, ou seja, a autonomia da vontade da gestante

quanto a manter ou não a gravidez até o seu término é a discussão que será analisada no

próximo item.

149 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípio da patermidade responsável. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 5, n. 18, abr./jun. 2004, p. 30. 150 Idem, ibidem, loc. cit.

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3.3 AUTONOMIA DA GESTANTE

Como já dito desde as primeiras linhas do presente trabalho, o direito à vida é o

mais importante dos direitos fundamentais do homem, pois é inerente à individualidade da

pessoa humana, posto que é dele que decorrem todos os outros direitos humanos

fundamentais. Por isto, o Art. 5° da Constituição Federal afirma que todos os seres humanos

são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a inviolabilidade do

direito à vida e do direito à liberdade, entre outros. É o ocupante da posição de primazia,

como bem maior, tanto na esfera natural do homem, como também na esfera jurídica.

Diante disso, verifica-se que o direito fundamental “vida” foi devidamente

reconhecido pelo Estado e, conseqüentemente, a sua proteção é inevitável, já que se trata de

um bem indisponível. Sendo assim, o aborto e a eutanásia devem ser vistos como uma

infração ao direito humano natural da vida, apesar do primeiro ter previsão

infraconstitucional151 em casos específicos e excepcionais, no sentido de assegurar o próprio

direito à vida.

Com o desenvolvimento da democracia no século XX, baseada nos princípios da

igualdade e, principalmente, da liberdade, o tema aborto voltou à tona como uma exigência do

direito que tem a mulher de exercer sua autonomia em relação à gestação e, com isso, em

diversos países o direito ao aborto foi legalizado. Posições favoráveis e contrárias à realização

do aborto acabaram por assumir uma luta de princípios: de um lado, o princípio a favor da

vida; de outro, o princípio a favor da livre escolha.

A batalha travada no caso do aborto é muito mais princípiológica e ética do que

propriamente jurídica. Em se tratando de uma discussão ética, faz-se mister compreender os

pressupostos que envolvem o fato, lastreados, principalmente, na reflexão e no diálogo.

Segundo Barreto152, o diálogo sobre o aborto significou um aprendizado de

esclarecimentos das próprias posições e de compreensão da posição contrária, bem como a

construção de pressupostos e princípios para a criação de uma metodologia de diálogo

151 Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 152 BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 20.

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respeitoso sobre o aborto. Por meio desse diálogo, chegou-se à conclusão de que as duas

posições envolvidas no caso do aborto são irreconciliáveis. Contudo, em uma sociedade

democrática, a melhor posição adotada por seus membros são a participação nas discussões

com clareza e pertinência dos seus próprios argumentos e, principalmente, o respeito à

posição contrária.

Assim, a possibilidade do aborto do feto anencéfalo merece um diálogo de forma

clara e envolvente. Habermas153 afirma que, “Com a rejeição de uma gravidez indesejada, o

direito da mulher de autodeterminação colide com a necessidade de proteção do embrião”. No

rol dos direitos fundamentais, verifica-se o direito à liberdade. A palavra liberdade pode ser

entendida como o estado da pessoa livre e isenta de restrição externa ou coação física ou

moral, ou o poder de exercer livremente a sua vontade, ou, ainda, independência, autonomia.

Sob o ponto de vista filosófico, há várias concepções de liberdade, distintas umas das outras.

As teorias da liberdade dizem respeito à metafísica e à ética, à filosofia política,

assunto que vem sendo amplamente tratado nos vários segmentos da sociedade e quetionados

por todos os homens, visto que o entendimento maior que se tem de liberdade é que seja algo

bom, sem amarras. De acordo com Barreto154, no século XX, “o conceito de liberdade vai ser

problematizado de forma singular pelo existencialismo”. Tal colocação se baseia na idéia da

essência humana, de que o homem possui total responsabilidade sobre o sentido de sua vida,

como resultado de suas escolhas e decisões, não havendo mais ninguém a quem se possa

transferir a responsabilidade de um ato pessoal, tornando-se totalmente responsável pela sua

definição como sujeito.

Abbagnano155 apresenta para o termo liberdade três significados fundamentais: o

primeiro, autodeterminação, no sentido de ausência de limites; o segundo, necessidade, mas

baseado também na autodeterminação; e o terceiro, possibilidade ou escolha, mas limitada ou

condicionada. A liberdade, analisada de uma maneira negativa, significa ausência de

submissão156, de servidão e de determinação, podendo ser qualificada como a independência

153Idem, ibidem, p. 22. 154 BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 537. 155 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 605. 156 Ato ou efeito de submeter (-se) a condição em que se é obrigado a obedecer; sujeição, subordinação; disposição para obedecer, para aceitar uma situação de subordinação; docilidade, obediência, subalternidade. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=submiss%E3o&stype=k>. Acesso em: 27 jan. 2008.

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do ser humano. Em tempos mais antigos, procurava-se por liberdade demasiadamente, como

na época da escravidão, ou ao final da II Grande Guerra, quando a tortura e a violência

atingiram a humanidade de forma tão atroz. De maneira positiva, a liberdade designa a

autonomia e a espontaneidade de um ser humano, considerado um indivíduo racional, ou seja,

aquele que possui a faculdade de raciocinar, de apreender, de compreender, de ponderar, de

julgar, enfim, inteligente157. A liberdade sob esse prisma qualifica e constitui a condição dos

comportamentos humanos voluntários, desenvolve as potencialidades de cada um e aproxima

o homem de si mesmo, motivando-o a ter alta auto-estima158.

Mendes159 comenta que “Liberdade e igualdade formam dois elementos essenciais

do conceito de dignidade da pessoa humana, que o constituinte erigiu à condição de

fundamentos do Estado Democrático de Direito e vértice do sistema dos direitos

fundamentais”. O mesmo autor160 explana ainda que “As liberdades são proclamadas,

partindo-se da perspectiva da pessoa humana como ser em busca da auto-realização,

responsável pela escolha dos meios aptos para realizar as suas potencialidades”. Não há como

negar que a democracia está intimamente ligada ao direito de liberdade.

Nesse sentido, Silva161 esclarece que é no regime democrático que se realizam os

direitos humanos fundamentais e é na democracia que a liberdade encontra campo de

expansão. Nota-se que a liberdade, no sentido de resultado de escolhas e decisões, só tem

sentido enquanto tiver como foco principal o homem, ou seja, enquanto a pessoa humana for a

destinatária direta desse direito fundamental.

A cada momento, o homem amplia seus conhecimentos e domina mais a natureza

e as relações sociais. É em um cenário democrático que o ser humano, ultrapassando os

obstáculos por meio da liberdade, dispõe de meios necessários para alcançar a felicidade

pessoal.

A declaração universal dos diretos do homem, de 1948, já proclamava nos seus

artigos 1° e 3° o direito à liberdade. A Constituição brasileira não poderia ser diferente e, no

157 Capacidade mental de raciocinar, planejar, resolver problemas, abstrair e compreender idéias e linguagens, aprender. 158 Avaliação subjetiva que uma pessoa faz de si mesma. 159 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 349. 160 Idem, ibidem, loc. cit. 161 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006.

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seu Art. 5° e incisos seguintes, positiva esse direito nas suas diversas ramificações ou

modalidades, como Direito de Resposta, Art. 5°, V; Liberdade de Consciência; Liberdade de

Expressão da Atividade Intelectual; Liberdade de Culto, de Cátedra, de Informação

Jornalística, Científica e Artística; Liberdade de Locomoção; Liberdades de Expressão

Coletivas (reunião, associação); Liberdade de Ação Profissional.

Outra peculiaridade sobre a liberdade que se deve comentar é a liberdade interna

e a liberdade externa. A primeira, também chamada de liberdade subjetiva, liberdade

psicológica ou moral, é caracterizada pelo livre-arbítrio162, como manifestação da vontade no

mundo interior do homem. Quando o sujeito se vê entre duas possibilidades opostas, poderá

decidir de acordo com a sua vontade. É o poder de escolha que estaria baseado nas mais

profundas sensações e emoções. São aquelas consideradas mais puras e intactas, pois são

oriundas da alma humana. Já a liberdade externa, ou a denominada de liberdade objetiva,

significa a exteriorização livre de um querer interno do homem. Para Silva163, “liberdade

consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da

felicidade pessoal”.

A dificuldade que se verifica é quando a exteriorização da liberdade atinge a

outros, identificados como indivíduos mais fracos ou desprotegidos. Assim, há a necessidade

de um Estado para limitar essa liberdade em função de outrem, mas sem obstaculizá-la. Desse

modo, nota-se que a faculdade que uma pessoa possui de fazer ou não fazer alguma coisa

envolve o direito de escolher segundo sua própria vontade, não se tratando, assim, de um

direito absoluto.

No âmbito da teoria política clássica dos liberais164, John Rawls relembra a

prioridade do princípio da liberdade, defendendo a idéia do liberalismo político sem a

realização de excessos individuais praticados pelo liberalismo econômico. Esse pensador

atirticulou o conceito de liberdade negativa com a exigência de maior igualdade de

distribuição das riquezas produzidas. Tal teoria foi criticada por aqueles considerados

comunitaristas165, pois enfatizam as várias identidaes culturais e sociais com contraposição à

162 Possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante. 163 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 233. 164 BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006. 165 Adeptos do movimento clássico do liberalismo.

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idéia do sujeito universal e abstrato. Contudo, Habermas defende uma posição intermediária

sobre a liberdade, no sentido dos indivíduos serem autores e participantes da ordem jurídica.

O direito à liberdade deve ser entendido com o Princípio da Legalidade,

enunciado na Constituição Federal no Art. 5°, II166, pois, no atual sistema jurídico, somente

leis podem limitar a liberdade individual do ser humano. Contudo, esse princípio remete à

idéia de ação livre e ética, ou seja, aquela oriunda da alma. Com isso, aparece a autonomia ou

o princípio da autonomia da vontade.

O conceito de autonomia, filosoficamente, confunde-se com o de liberdade,

consistindo na qualidade de um indivíduo de tomar suas próprias decisões, com base em sua

razão individual. Mas esse termo deve ser entendido como indicação de concessão de poder

por parte da alguém ou de um governo para outrem. Barreto167 apresenta inicialmente como

conceito de autonomia o direito de se determinar independente de outro poder.

Já para Kant168, um dos filósofos que mais se preocupou com a autonomia

pessoal, ser livre é ser autônomo, isto é, a liberdade se explica pela vontade. Para ele, a

autonomia está baseada na vontade, na liberdade de aproveitar, sem bloqueios. A utilização

do livre-arbítrio deve ser feita de forma pura, sem dependência ou vinculação a leis. Desse

modo, um sujeito com autonomia é aquele que age sem intervenções de outrem, porém atua

de forma clara com relação ao seu conhecimento e consciência. Para esse filósofo, a

autonomia da vontade é a faculdade de dar a si mesmo a sua própria lei. Nesse sentido,

entende-se autonomia como a capacidade de autodeterminação.

Interessante a reflexão de Fabriz169 no tocante ao princípio da automonia. Para ele,

esse princípio encontra seus limites de atuação livre e autônoma com relação à colocação no

fim da própria vida, devendo, assim, ser relativizado em função do princípio maior, que é o de

preservar a vida. Por outro lado, o princípio da autonomia privada do indivíduo diz respeito à

166 Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; […]. 167 BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 76. 168 Immanuel Kant ou Emanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 – Königsberg, 12 de fevereiro de 1804): filósofo alemão geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes. 169 FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

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capacidade da pessoa autogovernar, escolher, dividir, avaliar, sem restrições, qualquer tipo de

restrição, seja ela interna ou externa.

Uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos

pessoais e de agir na direção desta deliberação. Respeitar a autonomia é valorizar a

consideração sobre as opiniões e escolhas, evitando, da mesma forma, a obstrução de suas

ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para outras pessoas, aqui subentendidas

como homem ou mulher individualizado.

O homem tem a liberdade de determinar o curso de sua vida para atingir seu bem-

estar e, conseqüentemente, a dignidade. Como a dignidade da pessoa humana é um dos

pressupostos do Estado Democrático de Direito, o princípio da autonomia deve ser entendido

como um princípio democrático, no qual a vontade e o consentimento livres do indivíduo

devem constar como fatores preponderantes para a sua efetividade.

O princípio da autonomia da vontade implica responsabilidade, atos de escolha,

devendo-se respeitar a vontade, os valores morais e as crenças de cada ser humano que

pertença àquele grupo social. Apesar disto, Habermas170 define “o princípio liberal de que

todos os cidadãos devem ter a mesma chance de moldar sua própria vida de maneira

autônoma”.

Deve-se ressaltar que o presente trabalho não pretende tratar da defesa da livre

realização do aborto no país, ou da sua legalização perante criações ou alterações de leis

infraconstitucionais. Propõe, sim, uma discussão sobre os direitos fundamentais que

envolvem o tema.

Diniz asseva que,

Para muitos pesquisadores da bioética, o argumento do conflituo de interesse entre a mulher e o feto é absolutamente nulo, indiferente ao fato de o embrião poder ser, em outras situações detentor de alguma moralidade. O que se pretende garantir é a autonomia das pessoas para deliberar sobre suas próprias vidas, e no caso do aborto, a garantia de que as mulheres que não consideram o aborto amoral devam ter condições sociais e sanitárias de realizá-lo se assim desejarem, ao passo que mulheres que consideram o aborto imoral devam ser livres para jamais o realizarem.171 [grifos nossos]

170 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho da uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannimi. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 35. 171 DINIZ, Débora. Aborto por anomalia fetal. 1. reimpr. Brasilia: Letras Livres, 2004, p. 42.

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Nesse sentido, reporta-se ao aborto sentimental, permitido nos casos resultantes de

estupro, em que a gravidez é fruto de ato indesejado e o aborto é uma saída para solucionar o

mal ocorrido. Neste ponto, o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da mulher, sob o

aspecto da sua autodeterminação.

Nos casos de malformação fetal, que levaria à impossibilidade incondicional da

vida extra-uterina, o impedimento à gestante da opção pela interrupção da gravidez seria um

contra-senso frente ao princípio da liberdade e autonomia da mulher. Cabe a ela o direito de

escolha sobre a manutenção ou não da gestação, respeitando-se o princípio da liberdade de

escolha e autonomia da mulher. Além disso, há que se ressaltar a compreensão moderna da

sociedade pautada na autonomia dos indivíduos. Cabe ao Direito o papel de garantir a cada

um dos indivíduos o direito à privacidade e a autonomia em suas decisões pessoais, para a

condução de sua própria vida.

Para Barreto172, os direitos fundamentais do homem, baseados no direito à

liberdade, fonte da autonomia, são preexistentes à ordem constitucional, e são inalienáveis,

imprescritíveis, impenhoráveis e intributáveis, devendo ser considerados instrumentos

basilares para a verificação e efetivação do princípio da dignidade humana. A dignidade

humana exige respeito tanto pelos indivíduos quanto pelo Estado, de acordo com a sua

história e valores normativos.

172 BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006.

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4 COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

NO CASO DO ABORTO DO ANENCÉFALO

A eventual realização do aborto de feto anencéfalo envolve uma série de direitos

fundamentais que, por vezes, chocam-se entre si e acabam gerando uma insegurança em

relação a qual dos direitos fundamentais envolvidos deve ser seguido ou prevalente. Esse é

considerado um caso difícil, pois se, de um lado, há o direito do feto de se manter vivo no

ventre materno até o evento do nascimento, mesmo que sem possibilidade de vida extra-

uterina, de outro, há a liberdade da mãe de escolher manter ou não a sua gravidez, ciente de

que, quando do nascimento do seu filho, ele morrerá por falta de possibilidade de vida

autônoma.

Nota-se que existe incerteza para a sua solução, porque ou existem várias normas

que determinam atuações distintas para o fato, ou as normas existentes no ordenamento

jurídico são contraditórias, ou inexiste norma exatamente aplicável ao fato. Em razão disso,

faz-se necessário recorrer aos princípios fundamentais.

Surge, então, outra dificuldade, quando tais direitos ou princípios fundamentais se

contrapõem sobre o mesmo ponto. Esse tipo de fato é denominado por Dworkin173 como hard

cases, também chamados de casos duvidosos. Entretanto, para ele há uma resposta correta. A

colisão de direitos fundamentais é um dos mais difíceis e apaixonantes temas do direito

constitucional da atualidade, não sendo possível uma simples aplicação da norma jurídica ou

uma simples interpretação. Exige do intérprete, do operador do direito, a difícil tarefa de

harmonização de valores em conflito, primordiais para o ser humano, pois, em se tratando de

casos difíceis ou duvidosos, a solução não é a conseqüência de um enquadramento normativo,

além do que não há uma única solução.

A discussão travada entre os direitos fundamentais do homem ou da pessoa

173 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades e individuais. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Marins Fontes, 2003.

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humana toma corpo quando os direitos de duas partes entram em colisão. Conforme

Nascimento174, pode haver colisão de direitos fundamentais entre si e colisão de direitos

fundamentais com outros direitos públicos ou coletivos. Para resolver conflitos dessa monta,

há vários critérios e métodos a serem utilizados para uma decisão justa.

Moraes afirma que:

O conflito ente direitos e bens constitucionalmente protegidos resulta do fato de a Constituição proteger certos bens jurídicos (saúde pública, segurança, liberdade de imprensa, integridade territorial, defesa nacional, família, idosos, índios etc.), que podem vir a envolver-se numa relação de conflito ou colisão. Para solucionar-se esse conflito, compatibilizando-se as normas constitucionais, a fim de que todas tenham aplicabilidade, a doutrina aponta diversas regras de hermenêutica constitucional em auxílio ao intérprete.175

Verifica-se, assim, a possibilidade de aplicação de critérios de hermenêutica176,

entre outros, em que um direito se sobrepõe ao outro, sem que uma norma seja excluída do

ordenamento jurídico. Entretanto, entende-se que o método mais adequado para a situação ora

comentada, ou seja, a existência de uma autêntica colisão de direitos fundamentais, seria a

ponderação dos bens envolvidos, buscando a prevalência de um deles, com o sacrifício

mínimo dos direitos que se colidem. Devem-se buscar critérios, bem como a construção de

teoria que justifique a decisão, a opção de um direito perante o outro. Para tanto, entende-se

que a melhor maneira seria recorrer à ponderação dos princípios.

A partir disso, faz-se necessária a análise da ponderação de interesses envolvidos

que permeiam o assunto em tela, com o intuito de tomar uma posição acerca do tema, bem

como a verificação dos critérios de resolução existentes.

174 ALEXY, apud NASCIMENTO, 2004, p. 73. 175 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 45. 176 Qualquer técnica de interpretação. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p.497.

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4.1 PONDERAÇÃO DE INTERESSES: PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

A discussão sobre a possibilidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo

está pautada em argumentos constitucionais. Os princípios que envolvem esse fato atingem

tanto às mães de alto poder aquisitivo, que podem realizar o aborto em clínicas particulares,

mas de forma ilícita e clandestina, já que tal prática não é permitida pela legislação, como às

menos favorecidas. Em que pese diferenças sob o aspecto econômico, as reflexões sobre o

assunto devem estar pautadas nos princípios, quando a norma positiva não atende ao fato

concreto.

Como já dito, desde as primeiras linhas do presente trabalho, o direito à vida é o

mais importante dos direitos fundamentais do homem, pois é inerente à pessoa humana. Por

isto, o Art. 5° da Constituição Federal afirma que todos os seres humanos são iguais perante a

lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo inviolabilidade do direito à vida e ao

direito de liberdade, entre outros. É o ocupante da posição de primazia, como bem maior,

tanto na esfera natural do homem, como também na esfera jurídica. Contudo, não deve ser

entendido como absoluto.

A atenção da doutrina constitucional moderna está voltada, na atualidade, para as

colisões de direitos fundamentais ou para os conflitos de direitos com valores constitucionais,

como no caso do aborto do feto anencéfalo, em que duas posições protegidas como direitos

fundamentais diferentes (vida do feto versus liberdade e autonomia da mãe) atuam sobre o

mesmo fato.

O direito fundamental, um direito prima facie, em confronto com outro direito

enseja a ponderação com vistas a estabelecer uma preferência. Assim, como já dito, os

direitos fundamentais não são absolutos ou ilimitados, encontrando seus limites em outros

direitos fundamentais que também se encontram consagrados na carta magna, sendo que, por

vezes, a escolha de um deve ceder a interesses preponderantes. É o caso do aborto do

anencéfalo, no qual o direito à vida do feto se contrapõe ao direito de liberdade e autonomia

da mãe. Diante disso, inicialmente, devem-se analisar as normas jurídicas em dois grandes

grupos: o dos princípios e o das regras.

As regras correspondem às normas que exigem, proíbem ou permitem alguma

coisa, como requisitos quanto à atitude do indivíduo na sociedade diante de um fato da vida

cotidiana. A regra jurídica é um critério de qualificação, de decisão e de conduta, aplicável da

forma como está prescrita. Assim, quando se verifica conflito de uma regra com outra, a

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solução está baseada no termo da validade da regra, posto que duas normas não podem

conviver simultaneamente no ordenamento jurídico177. Desse modo, somente uma delas será

considerada válida, e a outra deverá ser retirada do ordenamento jurídico, pois será inválida.

Por sua vez, os princípios são ensinamentos básicos e gerais que delimitam de

onde se deve partir em busca de algo. São determinações para que certo bem jurídico seja

satisfeito e protegido178. Princípios jurídicos são os pilares, alicerces, as bases do

ordenamento, eles traçam as orientações, as diretrizes que devem ser seguidas por todo o

Direito, por isso são mandados de otimização. Além disso, os princípios informam as normas

jurídicas concretas, como exemplo das normas contidas na Constituição Federal. Contudo, a

literalidade da norma pode ser desatendida pelo aplicador do direito, quando viola um

princípio que, no caso específico, é considerado importante.

As regras trazem a descrição de certa situação, baseada num fato e, com relação

aos princípios, há uma referência direta a valores. Assim, se pode dizer que as regras se

fundamentam nos princípios, os quais não se fundamentam diretamente em nenhuma ação,

pois dependem da regra concretizadora, ou seja, da norma positivada para a eventual

produção de efeitos. Nota-se que os princípios possuem um grau de generalidade

incomensuravelmente maior do que as regras.

No caso de eventual confronto de princípios que incidam sobre a mesma situação,

deve-se buscar a conciliação entre eles, sem que nenhum seja excluído do ordenamento

jurídico. Desse modo, Mendes179 coloca que “Para solucionar o conflito, hão de se considerar

as circunstâncias no caso concreto, pesando-se os interesses em conflito, no intuito de

estabelecer que princípio há de prevalecer naquelas condições específicas, segundo um

critério de justiça prática”. O mesmo autor ainda comenta que “As situações de embates entre

princípios podem assumir tanto a forma de colisão de direitos fundamentais, como a de

conflito entre um direito fundamental e um outro valor consagrado na Constituição”180.

Sabe-se que as situações de colisão de princípios, também denominadas conflito

de direitos, surgem sempre que se encontram dois valores ou bens, regularmente e

simultaneamente tutelados pela ordem constitucional, numa situação concreta, como é a

177 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 2.ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. 178 Idem, ibidem. 179 Idem, ibidem, p. 274. 180 Idem, ibidem, p. 276.

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verificada no caso do aborto do feto anencéfalo. Assim, a Constituição Federal não pode

conter normas constitucionais que se contrariem e, de fato, não contém. Porém, no caso dos

direitos fundamentais, poderá haver uma aparente contradição entre os mesmos, em que,

então, propõe-se a utilização da ponderação de princípios.

No caso concreto de colisão de princípios, a decisão será dada em função de um

princípio que tenha maior peso relativo, sem a invalidação ou exclusão do outro princípio com

peso menor. Cabe ao poder judiciário, excluindo-se o poder executivo, pronunciar-se sobre

qualquer questão, em especial nas hipóteses de colisão de direitos fundamentais que ocorrem

no caso concreto, como o tratado no presente trabalho. Para tanto, deve-se fazer uso da

ponderação, levando-se em consideração outros fatores. Tal juízo de ponderação a ser

realizado liga-se ao princípio da proporcionalidade.

A solução na colisão dos direitos fundamentais, inicialmente, não deve ocorrer

por meio de uma hierarquia de princípios, pois a ordem constitucional não é hierárquica.

Steinmtetz181 define ponderação de bens como “método que consiste em adotar uma decisão

de preferência entre os direitos e bens em conflito; o método que determinará qual o direito ou

bem e em que medida prevalecerá solucionará a colisão”. O mesmo autor ainda lembra que,

para a hipótese de colisão, a interpretação constitucional não é suficiente, sendo necessária a

produção de uma norma mediante a ponderação de bens, no sentido de equilibrar e ordenar os

direitos ou bens conflitantes de forma concreta.

Por outro lado, a ponderação de bens não pode ser confundida com a

interpretação, pois a ponderação possui pressupostos básicos para a sua realização, segundo

Steinmtetz182. O autor comenta que o primeiro pressuposto diz respeito à “colisão de direitos

fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a realização ou otimização de

um implica a afetação, a restrição ou até mesmo a não realização do outro”. O segundo

pressuposto refere-se à “inexistência de uma hierarquia abstrata, a priori, entre os direitos em

colisão, isto é, a impossibilidade de construção de uma regra de prevalência definitiva ex ante,

prescindindo das circunstâncias do caso concreto”.

O exercício da ponderação ou a operacionalização da ponderação deve levar em

conta o grau de interferência sobre o direito pretendido. A ponderação pode ser realizada tanto

181 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 140. 182 Idem, ibidem, p.142.

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pelo juiz como pelo legislador para a solução do caso concreto183. Além disso, é importante

lembrar que a prevalência de um direito sobre o outro é determinado em função do caso

concreto por meio da aplicação do princípio da proporcionalidade184.

No tocante ao conceito do princípio da proporcionalidade, não há um consenso

exato. Algumas vezes, ele equivale ao termo razoabilidade; outras vezes, é utilizado no

sentido do princípio da proporcionalidade. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal tem

utilizado a expressão razoabilidade. De qualquer forma, o que se nota é que tal princípio serve

para a averiguação da constitucionalidade ou não de leis que venham a interferir na órbita da

liberdade humana.

Mendes185 ressalta a necessidade de análise dos componentes da realidade da vida

que estão sendo abrangidos, ou seja, a observância das questões cotidianas. Para tanto, faz-se

necessária uma autocompreensão da pessoa humana, como mencionado por Larenz186.

Entretanto, percebe-se a dificuldade, na prática, em distinguir ou separar a ponderação de

bens e o princípio da proporcionalidade, havendo uma unidade entre eles. Mas, com relação à

a posição majoritária na doutrina, Steinmetz aponta o que segue:

Considera-se que a ponderação concreta de bens, na colisão de direitos fundamentais, realiza-se mediante o controle de proporcionalidade em sentido amplo, de modo especial ou propriamente dito por meio do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, o terceiro subprincípio constitutivo do princípio da proporcionalidade em sentido amplo. Assim, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo compreende a ponderação de bens. 187

No século XX, o princípio da proporcionalidade tomou posição de relevância no

direito, como técnica de controle dos limites aos diretos fundamentais188. Dele emana as

idéias de justiça, eqüidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de

excessos, direito justo e valores afins. Esse princípio, entendido como um mandamento de

otimização do respeito máximo a todo direito fundamental, em situação de conflito com outro

183 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. 184 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 185 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. 186 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. 187 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 44-45. 188 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

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princípio, na medida do possível, determina que, para alcançar o fim desejado, o meio

utilizado deve ser proporcional, sem excesso. Por isso, ele é constituído por três outros

princípios parciais ou subprincípios: o da adequação, o da necessidade (ou exigibilidade ou

indispensabilidade) e o da proporcionalidade em sentido estrito.

Também denominado de princípio da idoneidade ou da conformidade, o

subprincípio da adequação determina que o meio a ser aplicado ao caso concreto deve ser

adequado ao fim pretendido. Steinmetz189 esclarece que nem sempre haverá um único meio

idôneo, adequado para a realização do controle da constitucionalidade, apenas se verificará o

meio mais apto, útil, apropriado para se obter o resultado perseguido.

O segundo subprincípio da necessidade comentado por Steinmetz190 é conhecido

também por princípio da exigibilidade, da indispensabilidade, da intervenção mínima, o qual

determina a escolha do meio menos gravoso ao exercício do direito fundamental, ou seja, a

medida a ser tomada só pode ser admitida quando for efetivamente necessária.

Por fim, o último dos subprincípios que complementam o princípio da

proporcionalidade é o princípio da proporcionalidade propriamente em sentido estrito.

Segundo Steinmetz, ele exige que na relação meio-fim haja uma reciprocidade razoável, uma

correspondência, ou seja, a justa medida, impedindo que sejam adotadas medidas legais

restritivas desproporcionais.

Diante disso, nota-se que todos esses subprincípios devem ser observados para a

solução de conflito de direitos fundamentais, sendo certo que o princípio da proporcionalidade

pode ser utilizado para sopesar que direito deve ser resguardado em detrimento de outro

direito fundamental baseado no caso concreto. Como já dito, o Supremo Tribunal Federal tem

feito uso desse princípio como instrumento para a solução de colisão entre direitos

fundamentais, sob a expressão “razoabilidade”. Entretanto, a Suprema Corte tem ressaltado a

existência de utilização de outros meios de provas também válidos191.

Contudo, qual seja a decisão de escolha de um direito fundamental, observada

pelos juízes ou tribunais, cabe observar sempre o princípio da dignidade humana como basilar

de todo ordenamento jurídico, posto que a dignidade é um valor maioral e supremo do ser

189 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 190 Idem, ibidem. 191 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

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humano, e dele todos os outros princípios são decorrentes.

Nota-se, na doutrina e na jurisprudência, que nem todos os aplicadores do direito

são favoráveis à utilização desse princípio e, no ponto a seguir, verificar-se-ão alguns pontos

contrários à sua utilização.

4.2 OBJEÇÕES À APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO

A doutrina e a jurisprudência não negam a existência do princípio da

proporcionalidade, nem tampouco a sua difusão no ordenamento jurídico. Contudo, é possível

verificar algumas objeções contra ele. Não se trata de uma negação ou inexistência, mas uma

divergência quanto ao seu fundamento normativo.

Steinmetz dedica, em seu livro “Colisão de direitos fundamentais e princípio da

proporcionalidade”, um capítulo às objeções ao princípio da proporcionalidade, ressaltando

três pontos. O primeiro refere-se à ameaça à separação dos poderes, ou seja, o exame e a

aplicação do princípio da proporcionalidade nos direitos fundamentais seria uma ameaça ao

equilíbrio entre o poder legislativo e o poder judiciário, pois acarretaria um enfraquecimento

do legislativo.

Ele comenta a posição de outros autores sobre o assunto, como Schmidt, que

entende que o uso e emprego do princípio da proporcionalidade poderiam instaurar uma

ditadura. Trata-se de alerta e observação extremamente úteis, contudo não se pode deixar de

resolver um conflito entre direitos fundamentais postos no texto constitucional, sob a alegação

da separação dos poderes.

A segunda objeção relatada pelo autor acima citado diz respeito à violação dos

princípios da segurança jurídica e da igualdade. Devem ser entendidos como imperiosos no

direito o tratamento igualitário e a previsibilidade das decisões. Entretanto, diferença de

tratamento não significa discriminação, lembrando aqui o princípio da isonomia. Quanto à

segurança jurídica, ressalta a necessidade de seguir o princípio da legalidade e não a

previsibilidade e exatidão da decisão que o juiz irá tomar.

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A última objeção relatada por Steinmetz – e talvez a mais grave delas – diz

respeito à metodologia utilizada na ponderação de bens. Segundo o autor192, “As objeções

metodológicas põem em questão a ponderação de bens enquanto método, enquanto

procedimento racional”. Nota-se aqui o objetivo claro em refutar a utilização da ponderação

de bens que induza a valores subjetivos, não controláveis dos órgãos superiores, a um

subjetivismo irracional, o que provocaria um esvaziamento do conteúdo material dos direitos

fundamentais. Apesar disso, há que se comentar que a ponderação de bens é um procedimento

racional e válido para a colisão de princípios e direitos fundamentais, com a utilização de

todos os argumentos possíveis, inclusive jurídicos.

No julgamento ocorrido no dia 28 de maio do presente ano, no STF, da Ação

Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510, que discutiu a legalidade das pesquisas com

células-tronco embrionárias, o ministro Eros Grua iniciou sua manifestação no seguinte

sentido:

Tenho reiteradamente insistido que o intérprete do direito não se limita a compreender textos que participam do mundo do dever ser; há de interpretar também a realidade, os movimentos dos fatores reais do poder, compreender o momento histórico no qual as normas da Constituição e as demais, infraconstitucionais, são produzidas, vale dizer, o momento da passagem da dimensão textual para a dimensão normativa.193

Sem sair do tema do presente trabalho e do ponto em questão, o Ministro Gilmar

Mendes se manifestou na mesma ação no seguinte sentido, fazendo referência a uma decisão

do tribunal alemão:

Na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, a utilização do princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente pode ser encontrada na segunda decisão sobre o aborto (BverfGE 88, 203, 1993). O Bundesverfassungsgericht assim se pronunciou: “O Estado, para cumprir com seu dever de proteção, deve empregar medidas suficientes de caráter normativo e material, que levem a alcançar – atendendo à contraposição de bens jurídicos – uma proteção adequada, e como tal, efetiva (proibição de insuficiência). […] É tarefa do legislador determinar, detalhadamente, o tipo e a extensão da proteção. A Constituição fixa a proteção como meta, não detalhando, porém, sua configuração. No entanto, o legislador deve observar a proibição de insuficiência […].

192 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 199. 193 Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp#resultado>. Acesso em: 30 jun. 2008.

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Considerando-se bens jurídicos contrapostos, necessária se faz uma proteção adequada. Decisivo é que a proteção seja eficiente como tal. As medidas tomadas pelo legislador devem ser suficientes para uma proteção adequada e eficiente e, além disso, basear-se em cuidadosas averiguações de fatos e avaliações racionalmente sustentáveis […].194

Diante do exposto, observam-se a aceitação e a utilização clara do princípio da

proporcionalidade pela Suprema Corte Brasileira para a solução de casos complicados, em

especial, quando se verifica a colisão de princípios.

4.3 ANÁLISE DOS ARGUMENTOS DA ADPF 54

A Constituição Federal de 1988, no Art. 102, § 1°, dispõe que “A argüição de

descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciado pelo

Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. Observa-se, assim, que a legislação pátria

instituiu mais um instrumento de fiscalização abstrata e controle de constitucionalidade, que

se destina a proteger os preceitos fundamentais. Entretanto, tratava-se de uma norma

constitucional de eficácia limitada, que dependia de lei estabelecendo a forma de apreciação.

Em 03 de dezembro de 1999, foi editada, pelo Congresso Nacional, a Lei N°

9.882, que regulamentou a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

Essa ação pode ser proposta por aqueles mencionados no Art. 103, I a IX, da Constituição

Federal, abrangendo somente os atos do Poder Público, de qualquer natureza, sejam

normativos ou não, inclusive as omissões.

Silva assim define preceitos fundamentais:

Preceitos fundamentais não é expressão sinônima de princípios fundamentais. É mais ampla, abrange a essas e todas as prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são, por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais.195

194 Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp#resultado>. Acesso em: 30 jun. 2008. 195 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 559.

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Nota-se que preceitos fundamentais se diferem de direitos fundamentais. Ferrari196

esclarece: “os preceitos englobam os direitos e garantias fundamentais da Constituição, bem

como os fundamentos e objetivos fundamentais da República, de forma a consagrar maior

efetividade às previsões constitucionais”.

O Art. 1° da Constituição Federal consagra a forma federativa do Estado; o voto

direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; os direitos e garantias

individuais, sendo vedada a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir qualquer um

desses princípios (Art. 60, § 4°), vigas-mestras do Estado Democrático Brasileiro.

A esses princípios ligam-se outros e, como conseqüência, gera-se a estabilidade

da ordem jurídica nacional, proporcionando preceitos como a soberania, a cidadania, a

dignidade da pessoa humana, a família, o matrimônio, a liberdade de locomoção, de

expressão, de pensamento, os valores sociais do trabalho, a livre iniciativa, o pluralismo

político, a distribuição de competências entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios. Doutrinadores como Gilmar Ferreira Mendes atestam a dificuldade em conceituá-

los, mas esse autor ressalta que alguns estão enunciados de maneira explícita na Constituição.

Sobre o conceito de preceito, Ferrari197 recorre às palavras do Ministro Oscar Dias

Correa:

Cabe exclusivamente e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, porque promulgado o texto constitucional é ele o único, soberano e definitivo intérprete, fixando quais são os preceitos fundamentais, obediente a um único parâmetro – a ordem jurídica nacional, no sentido mais amplo. Está na sua discrição indicá-los [...]

Diante disso, conclui-se que “preceitos fundamentais” é expressão que abrange

mais do que princípios fundamentais, pois o instituto tutela a lesão e a ameaça de lesão de ato

emanado de qualquer um dos poderes, de forma que sempre será possível a argüição de

descumprimento de preceito fundamental (ADPF), para preservar ou prontamente restabelecer

a efetividade do princípio constitucional da segurança jurídica.

O objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) é fazer

cessar o descumprimento de preceito fundamental por ato do Poder Público, posteriormente

196 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 434. 197 Idem, ibidem, p. 440.

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declarado inconstitucional ou incompatível com a Constituição, se tratar de ato

administrativo, ou, ainda, ato do Poder Judiciário, desde que se comprove a controvérsia

judicial relevante.

De acordo com o Art. 1° da Lei 9.882/99, a nova ação tem por objeto “evitar ou

reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público” e “quando for

relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre a lei ou ato normativo federal,

estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”. Compete ao Supremo Tribunal

Federal (STF) o processamento e o julgamento da argüição de descumprimento de preceito

fundamental, tendo como paradigma a Constituição Federal. No âmbito estadual, tendo como

paradigma a Constituição Estadual, o controle pode ser exercido pelo Tribunal de Justiça do

Estado, caso haja previsão desse instituto na respectiva Constituição do Estado.

A Lei 9.882/99 estabeleceu três hipóteses de cabimento da argüição de

descumprimento de preceito fundamental (ADPF), a saber: para evitar lesão a preceito

fundamental resultante de ato do Poder Público; para reparar lesão a preceito fundamental

resultante de ato do Poder Público; e quando for relevante o fundamento da controvérsia

constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os

anteriores à Constituição. O ilustre professor Streck entende que, “Desse modo, a argüição

será cabível quando houver controvérsia instalada acerca de descumprimento de preceito

fundamental, descumprimento este acarretado por uma lei municipal, estadual ou federal,

inclusive os anteriores à Constituição”198.

Ressalta-se que a referida ação tem caráter subsidiário, ou seja, é vedada a

propositura da mesma, se for possível a utilização de outro meio eficaz, como habeas corpus,

habeas data, mandado de segurança, entre outros, para sanar a lesividade. O autor supracitado

entende que “a ADPF consiste em instituto dirigido especificamente ao cidadão buscar

proteção constitucional quando um direito seu é violado pelos poderes públicos”.

De acordo com o Art. 2° da Lei N° 9.882/99, os legitimados para propor a

argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) são os mesmos legitimados

para propor a ação direta de inconstitucionalidade relacionada no Art. 103, incisos I a IX, da

Constituição Federal. É possível dividi-los em legitimados ativos universais e especiais. São

legitimados universais: o Presidente da República, as Mesas do Senado e da Câmara de

198 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 810.

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Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados

do Brasil e partido político com representação no Congresso Nacional. Os legitimados

especiais compreendem o Governador de Estado, a Mesa da Assembléia Legislativa do

Estado, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Já os legitimados passivos da argüição de descumprimento de preceito

fundamental (ADPF) são as autoridades ou entidades responsáveis pela prática do ato

questionado ou pela omissão impugnada. O Advogado-Geral da União deve desempenhar o

mesmo papel exercido no caso da ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) genérica,

atuando como curador da presunção de constitucionalidade do ato questionado, seja ele

normativo ou não.

Os efeitos da declaração de argüição de descumprimento de preceito fundamental

(ADPF) de lei ou ato normativo proferida pelo STF, segundo Moraes199, “terá eficácia contra

todos – erga omnes – e efeitos vinculantes aos demais órgãos do Poder Público, cabendo,

inclusive, reclamação para a garantia desses efeitos”. Tal fato esta determinado no Art. 11° da

Lei N° 9.882/99.

A decisão obtida é irrecorrível, não sendo aceita a possibilidade de interpor ação

rescisória, sendo certo que as soluções obtidas por esse tipo de ação fornecerão diretrizes ao

ordenamento jurídico, impedindo diversas e distintas interpretações jurídicas.

Desde a aprovação da Lei 9882/99 até dezembro de 2005, haviam sido propostas

oitenta e seis ADPFs. No caso do aborto do feto anencéfalo, foi proposta a ADPF 54 que

possui como pedido central a interpretação do Código Penal à luz da Constituição, declarando

os artigos nele previstos que tipificam o crime de aborto que não se aplicassem nem à gestante

nem aos profissionais de saúde, no caso de antecipação terapêutica do parto de feto

anencefálico. Além disso, foi solicitado o reconhecimento às gestantes que se encontrassem

nessa situação do direito de interromperem a gestação, sem necessidade de autorização

judicial prévia ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.

O pedido da ADPF 54 está baseado na violação da dignidade da pessoa humana,

na medida em que submete a gestante ao enorme e inútil sofrimento de levar a termo uma

gravidez inviável, fato que afetaria sua integridade física e psicológica (CF, Art. 1°, IV); na

violação do direito de liberdade da gestante – “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei” –, em que se aplica a ela a vedação do Código Penal 199 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 667.

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relativa ao aborto, quando de aborto não se tratava, à vista da falta de potencialidade de vida

do feto (CF, Art. 5°, II); e na violação do direito à saúde da gestante, ao obrigá-la a levar a

termo uma gravidez inviável, quando há procedimento médico adequado para minimizar seu

sofrimento físico e psicológico, sendo certo que em relação ao feto nada se pode fazer (Arts.

6° e 196, CF).

A ação foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio de Mello, que concedeu liminar

para reconhecer o direito das gestantes portadoras de fetos anencefálicos de se submeterem à

antecipação terapêutica do parto, uma vez atestada em laudo médico a anomalia. O Ministro

determinou ainda o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado sobre

a matéria, tendo em vista a relevância da matéria. Para ele, “diante de uma deformação

irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à

disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos,

mas, justamente, para fazê-los cessar”200. Até a deliberação pelo plenário do Supremo

Tribunal Federal, essa será a decisão que prevalecerá.

Sobre esse ponto, Streck esclarece:

Não vislumbro a inconstitucionalidade nos termos proprostos. Com efeito, como ficará mais claro no seguimento, o inciso I do parágrafo único do Art. 1° apenas estendeu as possibilidades de utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Ao contrário do entendimento de alguns juristas, entendo que a ADPF é, sim, uma forma de controle (difuso e concentrado) de constitucionalidade. Por isso, o exame de atos normativos (federais, estaduais ou municipais, inclusive anteriores à Constituição) que afrontem preceitos fundamentais e sobre os quais exista controvérsia relevante, pode ser objeto de instituto em tela.201

Alguns ministros do STF deram evidências sobre suas posições a favor do direito

da mulher em optar pela interrupção da gravidez no caso de fetos anencefálicos, mencionando

que a legislação penal data de 1940, portanto, ultrapassada para o século XXI. Outros,

entretanto, entenderam pelo arquivamento da ação, pois estariam substituindo o Congresso

Nacional na tarefa de legislar, posto que estariam criando uma hipótes de aborto não prevista

no Código Penal.

200 Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp#resultado>. Acesso em: 30 jun. 2008 201 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 809.

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O fato é que se torna fundamental, diante da existência de várias decisões

contraditórias em todo o país a respeito do assunto, que o STF possa dar uma solução

definitiva para os casos de pedidos de aborto de fetos anencefálicos e garantir, assim, a

segurança jurídica e, principalmente, o Estado Democrático Brasileiro, por meio de decisões

firmes e de peso, dentro dos preceitos da laicacidade e liberdade.

4.4 APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO NO CASO DO FETO ANENCÉFALO

Após a análise da ponderação de interesses, do princípio da proporcionalidade,

dos argumentos apresentado na ADPF 54, torna-se possível tecer algumas considerações no

sentido da ponderação de valores de prevalência dos direitos da gestante quando

diagnosticada a anencefalia do feto, sob o prisma do princípio da dignidade da pessoa

humana. A dignidade da pessoa humana deve ser utilizada como critério de interpretação,

tanto no que se refere ao feto como à mãe, já que se trata de um direito basilar do Estado

Democrático e Republicano do Brasil.

Sarlet202 aponta que a dignidade é uma qualidade intrínseca da pessoa humana e,

sendo assim, é inalienável e irrenunciável como elemento qualificador do ser humano, é algo

intangível. A própria ONU, por meio do Art. 1° da Declaração Universal de 1948, reconhece

que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Trata-se de um

valor da alma da pessoa, inerente à pessoa, cuja manifestação se dá pela autodeterminação

sobre a própria vida, ou seja, pela autonomia de vontade. Diante disso, Sarlet203 afirma que o

elemento nuclear do conceito de dignidade da pessoa humana está baseado na matriz

kantiana, concentrando-se na autonomia da vontade da pessoa. Ele destaca:

[…] verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina majoritária conforta esta conclusão – primordialmente à matriz Kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa).204

202 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, 4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 203 Idem, ibidem, p. 45. 204 Idem, ibidem, loc. cit.

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Assim, todos os seres humanos estariam protegidos pela sua dignidade, incluindo

aí o nascituro, como também a pessoa que esteja à beira da morte. Desse modo, a carta magna

consagra, no Art. 1°, inciso III, o princípio da dignidade humana como um dos fundamentos

da República, posto que é próprio do indivíduo, sujeito pertencente ao Estado. Diante disso,

só são válidos a manutenção e o desenvolvimento de uma vida quando ela seja digna. Fabriz

bem define o significado e a importância do princípio da dignidade da pessoa humana:

[…] a dignidade da pessoa é a pessoa concreta, na sua vida real e cotidiana; não é de um ser ideal e abstrato. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível e insubstituível e cujos dire3itos fundamentais a constituição enuncia e protege. Em todo homem e em toda a mulher estão presentes todas as faculdades da humanidade. 205

Como já dito anteriormente, a dignidade da pessoa humana é de tamanha

relevância que se encontra consagrada expressamente no título dos princípios fundamentais e

como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Observa-se que esse princípio

deve respeitar a autodeterminação de cada mulher ou homem, posto que devem poder tomar

decisões fundamentais sobre suas próprias vidas sem a interferência do Estado ou de terceiros.

Desse modo, se toda pessoa humana tem dignidade como qualidade intrínseca, que a

acompanha desde a sua fase embrionária até a sua morte, é exigido respeito por essa vida,

sendo um dever do Estado a sua efetivação.

Considerando o caso do feto anencéfalo, que princípio fundamental deve ser

garantido ou privilegiado em detrimento do outro, já que se tem como partes ou sujeitos o

nascituro e a mãe? Tratam-se de direitos absolutos ou não? Nesse caso, a solução do problema

estaria na ponderação de valores, levando-se em conta a necessidade de uma análise

interdisciplinar, entre o direito e a medicina. De um lado, o nascituro com o diagnóstico de

anencefalia possui a garantia constitucional do direito à vida, mas poderá não se desenvolver

o suficiente, devido à sua malformação, e morrer ainda no ventre materno, ou, se chegar ao

momento do nascimento, não terá possibilidade de vida extra-uterina, pois logo após o

nascimento morre em 100% dos casos analisados – uma potencialidade de vida, mas de fato

uma vida real fracassada. Por outro lado, a mãe gestante, obrigada a manter a gravidez até o

seu término, conhecendo que esse filho não terá qualquer possibilidade de vida autônoma e

livre fora do seu útero, com um ciclo de desenvolvimento sadio e independente, experimenta 205 FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 274.

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algo semelhante à tortura, tendo em vista o sofrimento insuportável pelo qual terá que passar,

correndo riscos à sua saúde e à sua integridade mental, sem qualquer bem-estar psicológico.

Além dos riscos físicos e psíquicos que podem ocorrer para a mãe, ela não poderá

exercer seu direito à liberdade de escolha em manter ou não a gravidez, sob pena de responder

por crime de aborto, já que a anencefalia não é excludente de ilicitude penal.

Ao analisar a situação de conflito existente, faz-se necessário elaborar uma

autocompreensão existencial206. Cabe considerar os direitos da gestante sob o prisma do

princípio da dignidade humana, além do fato de que o feto com diagnóstico de malformação

fetal é incompatível com a vida extra-uterina de forma potencial, uma vez que inexiste

qualquer terapia médica capaz de reverter ou alterar o quadro clínico apresentado. Assim, na

ponderação de valores envolvidos, é evidente que o direito de escolha da mãe, baseado na

autonomia da vontade, deve prevalecer, sob pena de atentar contra sua integridade física e

psíquica, contra sua saúde. A retirada desse feto anencéfalo seria o mais aceitável, enfocando

o direito fundamental da vida de forma relativa para essa situação específica.

Sobre esse ponto, Habermas afirma:

Por um lado, sob as condições do pluralismo ideológico, não podemos atribuir ao embrião, “desde o início”, a proteção absoluta da vida, de que as pessoas enquanto portadores de direitos fundamentais desfrutem. Por outro, existe a intuição de que não podemos simplesmente dispor da vida humana pré-pessoal como um bem submetido à concorrência.207

Com o direito fundamental à liberdade, à autonomia e à saúde, a responsabilidade

de optar pela interrupção ou pelo prosseguimento da gravidez deve ser dado ao sujeito do

direito, ou seja, à mãe, sob pena de se cometer um crime contra a vida ainda mais grave: o de

tortura, por meio da violação da integridade física e psíquica. A vida não se trata de um

simples acontecimento biológico, pois tanto a vida como a morte provocam acontecimentos

simbólicos para o próprio indivíduo208 e para os seus. Possui um sentido para os humanos, é

algo completo, devendo ser gozado em sua plenitude, mas desvinculado de tempo. É

relacionar-se com os outros, é o enlace, a intersubjetividade, ou seja, cada ser humano está 206 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho da uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannimi. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 207 Idem, ibidem, p. 60. 208 Indivíduo, para Aristóteles, é a espécie, porquanto sendo resultado da divisão do gênero, não pode ser dividida.

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interligado aos outros e não está só; se comunica sempre de alguma forma ou no mesmo

espaço e tempo, ou pela herança genética, bem como pelas decisões, pelos fatos históricos,

pelos resultados de pesquisas científicas, por crenças, por ideologias… Enfim, há elos

metafísicos que interligam os seres humanos, que, interpretados, fazem compreender

situações inexplicáveis da realidade.

Ressalta-se que a vida é uma premissa maior, mas deve estar amparada pelo

princípio da dignidade da pessoa humana. A vida da mãe durante a gravidez só terá sentido se

for desenvolvida com dignidade. A falta de integridade física e, principalmente, psíquica, pelo

fato de ser obrigada a manter uma gravidez em que, findo o prazo de nove meses, o produto

de todo um esforço não sairá em seus braços da maternidade, ataca de forma veemente a sua

dignidade. A gravidez de um feto sem qualquer anomalia fetal é entendido como um bem209

ou honra210. Entretanto, a gravidez de um feto anencefálico pode ser visto como um

sacrifício211. Trata-se de uma verdadeira tortura psicológica.

A agressão ao corpo humano também deve ser entendida como uma agressão à

vida. A integridade física e psíquica ou mental do ser humano está ligada ao direito à vida, à

liberdade, à personalidade e, sem dúvida, ao princípio da dignidade. A vida humana é objeto

assegurado no Art. 5°, caput da Constituição Federal, e implica o direito à integridade física e

mental. O direito à integridade física e psíquica conforma os direitos de personalidade, não

podendo ser alienado ou transmitido a outrem, pois são erga omnes.

De acordo com Bittar,

De grande expressão para a pessoa é também o direito à integridade física, pelo qual se protege a incolumidade do corpo e mente. Consiste em manter-se a higidez física e a lucidez mental do ser, opondo-se a qualquer atentado que venha a atingi-las, como direito oponível a todos.212

209 Em geral, tudo o que possui valor, preço, dignidade, a qualquer título. Na verdade, bem é a palavra tradicional para indicar o que, na linguagem moderna, se chama de valor. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 107. 210 Toda manifestação de consideração e estima tributada a um homem por outros homens, assim, como a autoridade, o prestígio ou o cargo de que o reconheçam investidos. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, tradução Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 517. 211 Destruição de um bem ou renúncia ao mesmo, em honra a divindade. O sacrifício é uma das técnicas religiosas mais difundidas. Seu objetivo é a purificação de alguma culpa ou pecado: neste caso, é desinteressado, ou seja, não tem objetivo utilitário imediato. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 866. 212 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 76.

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Sobre a integridade física e psíquica, Fernandez comenta:

Forçar a mulher a manter a gestação de feto contra a sua vontade é uma manifesta afronta ao seu direito à integridade física, já que representa verdadeira ameaça a sua vida e um desperdício a sua autonomia reprodutiva e aos seus direitos sobre o próprio corpo. Também representa uma violação à integridade moral da gestante (protegida pelo Art. 5, X, da CRFB), que terá a sua imagem abalada e a sua moral atingida por todo tipo de constrangimento perante a sociedade, seja no ambiente de trabalho ou no familiar. Não raras vezes a mulher passará pelas mais delicadas situações e se verá obrigada a responder a perguntas que, tão prazerosas em outras circunstâncias, tornam-se traumatizantes no caso da gestação de um feto que, de antemão, já se sabe que não sobreviverá: “como vai o neném?”, “quando será o chá de bebê?”. Esta não é uma questão simples, como poderiam asseverar alguns, mas extremamente penosa para quem a vive.213

A integridade física compreende a proteção jurídica à vida, ao corpo vivo ou

morto, quer na sua totalidade, quer em relação a tecidos, órgãos e partes suscetíveis de

separação e individualização, quer ainda ao direito de alguém submeter-se ou não a exame e

tratamento médico. O direito à integridade física compreende a proteção jurídica também ao

corpo sem vida, o cadáver. É correlato ao direito à vida, no momento em que se repelem as

lesões causadas ao funcionamento normal do corpo humano. Consiste no direito do ser

humano a um corpo saudável, sem qualquer dano físico. O direito à integridade física

compreende, também, a saúde individual, tanto orgânica como mental, mas não se confunde

com o direito à saúde, previsto no Art. 196 da Constituição Federal.

A palavra Saúde significa o “estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e

seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do organismo dentro

dos limites normais para a forma particular de vida. É o estado de boa disposição física e

psíquica; de bem-estar”214 [grifos nossos]. A saúde é um direito de todos e uma obrigação do

Estado, que deve garanti-la por meio de políticas públicas, com base também no princípio da

igualdade. O direito à saúde se consubstancia como um direito de segunda dimensão, posto

que se trata de um verdadeiro direito à prestação, ou seja, um direito social prestacional, uma

vez que necessitam de uma atuação positiva por parte do ente estatal para evidenciar a sua

garantia e efetividade.

213 SARMENTO, Daniel (Coord.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 142. 214 Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm>. Acesso em: 27 jan. 2008.

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O direito à saúde é tutelado pela Constituição Federal nos artigos 196 a 200, mas

com uma peculiaridade: atualmente é considerado um direito fundamental, no qual o estado

de higidez215 do indivíduo passou a ser um ponto de destaque. A proteção constitucional

envolve não só o tratamento de doenças instaladas no ser humano, mas também a manutenção

da saúde por meio de realização de políticas públicas, com a adoção de algumas medidas

preventivas. Exemplo atual é a obrigatoriedade de vacina contra febre amarela para aqueles

que se deslocam para as regiões norte e centro-oeste do país.

Silva216 esclarece que “O direito à saúde rege-se pelos princípios da

universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e

recuperam”. A proteção à saúde é necessária à manutenção do próprio direito à vida, bem

como a integridade física e psíquica. Nota-se também que o direito à saúde tem vinculação

direta com os princípios da bioética e, principalmente, com o princípio da Justiça, os quais

buscam a igualdade na distribuição dos serviços de saúde.

Relembra-se que, a partir no momento em que se discute saúde de modo geral,

cabe pensar tanto na saúde física, como na saúde psíquica e emocional do ser humano. A

integridade psíquica ou mental implica manter a mente incólume para que se preserve o

pensamento humano, aspecto do interior da pessoa, elemento integrante do psiquismo

humano. Ainda, o direito à integridade psíquica ou mental consiste na proteção que a ordem

jurídica concede à pessoa no tocante aos componentes identificadores da estrutura interna da

pessoa, ou seja, aos elementos da sua mente, para que não haja interferência no aspecto

interno da personalidade, nas suas idéias, concepções e convicções. Psicologicamente, é a

percepção do mundo interno e externo ao indivíduo. Ambos, integridade física e psíquica,

completam a defesa da personalidade humana.

Sobre a integridade psíquica ou mental, Bittar217 comenta que deve ser verificada

pelo respeito à não-interferência ao aspecto interno da personalidade de outrem, e qualquer

meio externo – como a psicoterapia ou o uso de drogas químicas – que tente alterar, aprisionar

a mente ou inibir a vontade do indivíduo, com o cerceamento da liberdade interna, que

provoque medo ou dor, não deve ser aceito, posto que os elementos psíquicos de cada pessoa

215 Hígido: que diz respeito à saúde; salutar, que goza de perfeita saúde; sadio, são. 216 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 831. 217 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

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devem ser resguardados. Fabriz218 ainda se manifesta no sentido de que “A consciência deve

ser preservada, em decorrência do direito à intimidade”.

Contribuindo com a necessidade de proteção à integridade psíquica, Radbruch219

assevera que “a conduta exterior só interessa à moral na medida em que exprime uma conduta

interior”. Assim, nota-se mais uma vez a necessidade de manter a “alma” do ser humano

intocável. Nesse sentido, a vontade da mãe no caso do aborto do feto anencéfalo deve ser, ao

menos, observada.

Um dos maiores problemas de saúde na sociedade do século XXI está pautado nas

doenças de fundo emocional/psíquico. Elas foram ganhando espaço e se tornando mais

presente no cotidiano do ser humano, chegando atualmente a estarem relacionadas com até

90% das doenças conhecidas220. As doenças psicossomáticas221 são aquelas que têm um

componente psíquico. São as denominadas “doenças da moda”. Elas surgem como

conseqüência de processos psicológicos e mentais de indivíduos desajustados, refletindo-se

nas funções somáticas. É a manifestação de doenças orgânicas provocadas por problemas

emocionais, tais como o nervosismo, a ansiedade, o estresse, a depressão. Quando se

somatizam essas emoções, há a consciência de que se força o organismo sob o aspecto físico

além da conta. E então o corpo expressa, põe para fora as emoções que, por vezes, o ser

humano esconde dele mesmo, por meio de enfermidades. O corpo humano reflete os

pensamentos e sentimentos. Quando se reprimem as emoções, elas vão se represando e

causando machucados e feridas profundas no organismo humano, o que pode se transformar

em doenças crônicas.

A saúde emocional da mulher, desde a década de 40, já era motivo apreciação. O

Art. 123 do Código Penal relata o crime infanticidio em função do estado puerperal. O estado

puerperal é um momento de influência por uma situação específica pós-parto. A medicina-

legal “tenta provar se a mulher era física ou psiquicamente normal, durante toda a sua vida,

218 FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 275. 219 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. In: BARRETO, Vicente. Apostila produzida para a disciplina de Filosofia do Direito do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa. Curso de Mestrado em Direito Minter Unesa/Unoesc Xanxerê, 2006, p. 100. 220 Disponível em: <http://intra.vila.com.br/sites_2002a/urbana/Juliana/sitepsicossoma1.htm>. Acesso em: 24 jan. 2008. 221 Disponível em: <http://www.brtprev.org.br/inst/multiplicadores/multipsicossom.pdf>. Acesso em: 24 jan. 2008.

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ou se a reação ocorreu somente naquele momento”222 [grifos nossos]. De forma resumida, o

estado puerperal consiste na situação em que a mãe pode estar abalada emocionalmente,

portanto, sua saúde necessitaria de cuidados.

A manutenção da integridade física e psíquica da mãe de um feto anencéfalo

reporta-se à vida saudável exigida na sociedade do século XXI. Saudável é tudo que traz

benefícios à saúde, entretanto, definir “vida saudável” não é tarefas das mais fáceis. “Na

verdade, a definição ideal é criar um ‘contexto’ de vida saudável”, afirma o fisiologista e

professor da Unicamp, Miguel Arruda223. Não se trata apenas de melhora ou evolução nas

condições fisiobiológicas, mas vale levar em conta o psicológico do ser humano, aquilo que

se verifica na própria alma, não se aplicando simplesmente uma visão utilitarista de um bem-

estar máximo e egoísta.

Assim, no caso da manutenção da gravidez do feto anencefálico, a mãe pode ter

sua saúde abalada, já que o estado emocional e psicológico tem vinculação direta com o

estado físico diferenciado em que se encontra. Ressalta-se que a gestante deverá suportar,

desde o diagnóstico até o momento do parto, por aproximadamente cinco meses, a angústia, a

ansiedade, a insegurança, o ressentimento, a dor e a ferida na alma de não poder levar para

casa seu filho após o nascimento.

Diante do acima comentado, verifica-se que a integridade física e psíquica ou

mental é um dos direitos fundamentais envolvidos no caso do aborto do feto anencéfalo. Ao

se determinar a manutenção da gravidez, a integridade física e psíquica da mãe será atingida

diretamente, pois será obrigada a carregar o feto em seu ventre pelos nove meses, suportando

a idéia da morte do feto no momento do seu nascimento.

Desse modo, no caso do aborto do feto anencéfalo, o direito à integridade física e

psíquica da mãe, como materialização dos direitos fundamentais do homem, baseados no

direito a liberdade, que, segundo Barreto224 são preexistentes à ordem constitucional, é

inalienável, imprescritível, impenhorável e intributável. E tais aspectos devem ser

considerados instrumentos basilares para a verificação e efetivação do princípio da dignidade

humana, compreendido por muitos autores como um princípio absoluto.

222 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_puerperal>. Acesso em: 24 jan. 2008. 223 Disponível em: <http://www.universia.com.br/html/materia/materia_gfia.html>. Acesso em: 7 fev. 2008. 224 BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006.

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Por fim, ressalta-se que não se pretendeu, neste trabalho, uma banalização da

realização do aborto, nem tampouco a alteração legislativa, de forma drástica, para a liberação

indiscriminada do ato. O que se pretende colocar em pauta é a discussão dos princípios

colidentes, já que a norma positivada não prevê expressamente a interrupção de gravidez de

feto anencefálico, e tal fato acaba por provocar uma enorme insegurança jurídica e afetar o

Estado Democrático de Direito.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As novas tecnologias que vêm sendo desenvolvidas na atualidade, mormente na

área da biomedicina, têm proporcionado a descoberta de importantes inovações, capazes de

trazer grandes benefícios ao ser humano, razão maior de todas as pesquisas.

Às vezes, porém, essas inovações trazem consigo muitos dilemas sociais, éticos e

jurídicos, como é o caso da constatação do feto com anencefalia, que pode ser diagnosticada

nas primeiras semanas de vida. A anencefalia consiste em uma anomalia fetal congênita,

incompatível com a vida extra-uterina.

Ao se deparar com uma situação como essa, algumas mulheres decidirão levar até

o fim a sua gravidez, mesmo sabendo que seu filho, se chegar a nascer com vida, sobreviverá

por pouco tempo. Outras, porém, não se sentirão preparadas psicológica e fisicamente para

enfrentar nove meses de angústia e sofrimento e, por isso, preferirão optar pela interrupção da

gravidez.

Tal situação gera um conflito entre direitos fundamentais consagrados na carta

magna, uma vez que, de um lado, estará o direito do feto à vida e até mesmo à integridade

física e, de outro, estarão os direitos da gestante, como liberdade e autonomia de escolha,

saúde e também a sua integridade física e mental.

Por conta disto, neste trabalho, procurou-se analisar os aspectos fundamentais que

dizem respeito ao problema, principalmente os princípios fundamentais envolvidos, para, ao

final, poder exarar uma opinião acerca de qual direito deve prevalecer diante da colisão

apresentada.

Inicialmente, analisou-se o marco inicial da vida humana, considerado pela

medicina e, conseqüentemente, pelo direito, para que a vida seja protegida. Para tanto, foi

necessário definir o que é vida. Entendeu-se que a vida se inicia com a fecundação do óvulo

pelo espermatozóide, momento em que se tem um novo ser humano, distinto de sua mãe,

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apesar da necessidade de se manter no ventre materno até o evento do nascimento. Após o

nascimento, essa vida vai desenvolver-se ao longo do tempo, até atingir o evento morte.

Ocorre que, ainda no ventre materno, a vida começa a ser protegida, em que pese

a necessidade do nascimento com vida para que esse ser humano se torne um sujeito de

direito amplo e completo. Contudo, durante o seu desenvolvimento intra-uterino, há o risco de

ocorrer a falha no fechamento do sulco neural, durante a formação embrionária, que pode

originar a anencefalia e outras malformações secundárias, provocando a falta de condições de

vida extra-uterina.

Como o ponto essencial do presente trabalho diz respeito à contraposição de

princípios constitucionais, em um segundo momento, procurou-se analisar a tutela da vida

humana intra-uterina e, para tanto, fez-se necessária uma abordagem dos direitos

fundamentais, com a sua conceituação como o conjunto de normas e princípios que garantem

uma vida digna, livre e igualitária, independentemente de credo, raça, origem, cor, condição

econômica ou status social. Também se fez uma pequena análise dos direitos humanos, seu

conceito e sua distinção em face dos direitos fundamentais.

Em razão da importância do direito fundamental à vida, analisou-se a evolução

desses direitos fundamentais e as suas diversas dimensões, para, posteriormente, verificar o

seu desenvolvimento histórico, a sua conceituação e a proteção na Constituição Federal de

1988, o seu enquadramento no rol dos direitos fundamentais e direitos humanos.

A partir daí, verificou-se a vida como um direito da personalidade. Já que a vida

humana começa na concepção, a legislação coloca a salvo todos os direitos do nascituro, mas

garante a sua personalidade apenas quando do evento nascimento com vida. Passou-se, então,

à análise do início da atribuição da personalidade, posto tratar-se de um tema que suscita

inúmeros debates entre os juristas brasileiros. Apresentaram-se três teorias fundamentais na

doutrina brasileira para determinar o início da personalidade jurídica: a natalista, a da

personalidade condicional e a concepcionista.

Após, definiu-se o aborto como sendo a interrupção da gravidez com a destruição

do produto da concepção. Analisaram-se as figuras de aborto encontradas no Código Penal

Brasileiro e observou-se que, em nenhuma delas, está vislumbrada a possibilidade da

realização do aborto de feto portador de anencefalia, sendo, portanto, a sua realização um

ilícito penal.

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Na seqüência, fez-se necessária a análise do que seria a viabilidade de vida como

um critério de desenvolvimento do ser humano para a vida extra-uterina de forma

independente e autônoma. Conforme relatado, a anencefalia é uma anomalia fetal

incompatível com a vida extra-uterina, portanto, inviável. Mas restou ainda uma dúvida: o

feto anencéfalo possuiria vida ou não? Concluiu-se que o início da vida ocorre por meio da

fecundação e, portanto, é inquestionável a existência de vida intra-uterina do feto anencéfalo,

pois se trata de um ser biologicamente vivo, composto de células e tecidos, mas sem chance

de sobreviver autonomamente.

O terceiro capítulo foi dedicado à análise dos limites do direito ao planejamento

familiar, com o fim de investigar se o ordenamento jurídico brasileiro contempla a liberdade

da gestante ou do casal de criar uma família e, principalmente, a possibilidade de interromper

a gestação fora das hipóteses previstas no Código Penal. Para tanto, verificou-se o Art. 226,

parágrafo 7° da Constituição Federal, no tocante ao planejamento familiar, fundamentado nos

princípios da dignidade da pessoa humana, e à partenidade responsável, e o princípio da

liberdade dada ao casal de planejar seu próprio núcleo familiar, sua formação e

desenvolvimento.

Na sequência, fez-se a análise da Lei 9263/96, norma jurídica infraconstitucional

que veio dar oportunidade não só a casais, mas também a homens e mulheres solteiros, de

realizar o planejamento familiar como um instrumento de tornar a vida em família mais

responsável e, principalmente, afetuosa.

O direito à liberdade consagrado na Constituição Federal no Art. 5°, II, foi um

ponto verificado nesse capítulo. O direito à liberdade remeteu à idéia de autonomia, ou o

princípio da autonomia da vontade, autonomia esta ressalvada pelo filósofo Kant como sendo

a autonomia vinculada à vontade, ou seja, no direito de se determinar independente de outro

poder ou na liberdade de se utilizar a sua vontade seguindo seus objetivos pessoais. Portanto,

por se tratar de um direito fundamental garantido na carta magna, deve ser respeitado.

Por fim, analisou-se a colisão de direitos fundamentais envolvidos, por meio da

ponderação dos bens e interesses e/ou o princípio da proporcionalidade, na prevalência de um

deles para solucionar o fato da possibilidade ou não do aborto do anencéfalo de forma justa e

adequada. Contudo, também foram apresentadas algumas objeções à aplicação da ponderação.

Além disso, fez-se necessáris uma análise dos argumentos utilizado na ADPF 54,

que tramita junto ao STF, contendo como pedido principal a interpretação do Código Penal

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em face da Constituição, declarando os artigos nele previstos que tipificam o crime de aborto

que não se aplicassem nem à gestante nem aos profissionais de saúde no caso de antecipação

terapêutica do parto de feto anencefálico.

Por derradeiro, analisou-se a aplicação da ponderação no caso do aborto do

anencéfalo, concluindo que o direito à integridade física e psíquica da mãe seria atingida

diretamente, caso a mesma fosse obrigada a carregar o feto em seu ventre pelos nove meses

suportando a idéia da morte do filho no momento do nascimento, já que esse ser humano não

possuiria qualquer viabilidade de vida extra-uterina. Além disso, a impossibilidade do

exercício de escolha pela mãe e pelo pai atingiria o princípio da dignidade da pessoa humana,

princípio basilar do Estado Democrático de Direito.

Karl Larenz, abordando este tema, reconhece, na dignidade pessoal, a prerrogativa

de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência

(a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio.

Há que se destacar que o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar o

assunto, mas pretende, sim, apresentar algumas contribuições a tema tão polêmico. Ressalta-

se que não se defende, em momento algum, a liberação ou banalização da realização do

aborto de forma indiscriminada; afinal, o direito constitucional da vida é um bem supremo.

Contudo, diante da total inviabilidade de vida extra-uterina, bem como em face do exercício

da liberdade de escolha, deve, ao menos, ser dada a possibilidade de escolha à mulher.

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