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AFRICANO PAI D’ÉGUA: Um convite lúdico à novos olhares 1 . Ricardo Harada Ono (UFPA/Pará) 2 RESUMO: O presente trabalho trata da elaboração, desenvolvimento e produção de uma História em Quadrinhos sobre a África, especificamente sobre alguns dos países africanos que possuem alunos inseridos no universo discente da Universidade Federal do Pará. Foram mapeadas e sistematizadas as referências cognitivas, em particular de determinadas situações etnográficas, que fazem parte do imaginário destes alunos africanos, para desenvolver e produzir uma publicação sob a forma de Arte Sequencial. Através dos Quadrinhos, o conhecimento e as vivências são apresentados enquanto produto de uma poética artística e como objeto ativo na produção de saberes. O objetivo proposto entretanto, não e a submissão à linguagem mas, principalmente, a apropriação da mesma como forma de comunicação no que tange a produção imagética. Para entender o reconhecimento que a linguagem adquiriu nos últimos anos, o trabalho discorre a respeito da utilização da imagem enquanto ferramenta de estabelecimento ou desconstrução de estereótipos e preconceitos e, sobre o papel dos Quadrinhos no amoldamento destas ações. Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos, Arte sequencial, África. 1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA 2 Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), vinculado ao Instituto de Letras e Comunicação (ILC), na Faculdade de Comunicação (FACOM) e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em 2 Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), vinculado ao Instituto de Letras e Comunicação (ILC), na Faculdade de Comunicação (FACOM) e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES) do Instituto de Ciências da Arte (ICA), da UFPA.

RESUMO - eavaam.com.br · possível observar o relevante papel designado à imagem na construção do conceito sobre o indivíduo. Desta forma a sociedade (meio) foi estabelecendo

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AFRICANO PAI D’ÉGUA: Um convite lúdico à novos olhares1.

Ricardo Harada Ono (UFPA/Pará)2

RESUMO: O presente trabalho trata da elaboração, desenvolvimento e produção de uma História

em Quadrinhos sobre a África, especificamente sobre alguns dos países africanos que

possuem alunos inseridos no universo discente da Universidade Federal do Pará. Foram

mapeadas e sistematizadas as referências cognitivas, em particular de determinadas

situações etnográficas, que fazem parte do imaginário destes alunos africanos, para

desenvolver e produzir uma publicação sob a forma de Arte Sequencial. Através dos

Quadrinhos, o conhecimento e as vivências são apresentados enquanto produto de uma

poética artística e como objeto ativo na produção de saberes.

O objetivo proposto entretanto, não e a submissão à linguagem mas, principalmente, a

apropriação da mesma como forma de comunicação no que tange a produção imagética.

Para entender o reconhecimento que a linguagem adquiriu nos últimos anos, o trabalho

discorre a respeito da utilização da imagem enquanto ferramenta de estabelecimento ou

desconstrução de estereótipos e preconceitos e, sobre o papel dos Quadrinhos no

amoldamento destas ações.

Palavras-chave:

Histórias em Quadrinhos, Arte sequencial, África.

1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre

os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA 2 Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), vinculado ao Instituto de Letras e Comunicação

(ILC), na Faculdade de Comunicação (FACOM) e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em 2 Docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), vinculado ao Instituto de Letras e Comunicação (ILC), na Faculdade de Comunicação (FACOM) e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES) do Instituto de Ciências da Arte (ICA), da UFPA.

INTRODUÇÃO

A Universidade Federal do Pará é uma das instituições de ensino superior

brasileiras que atendem ao programa federal de recepção de alunos estrangeiros

denominado de PEC-G ou Programa de Estudantes-Convênio de Graduação, que

oferece a oportunidade de formação superior, no Brasil, à cidadãos de diversos países

em desenvolvimento3. A UFPA é signatária do Programa, que já completou 50 anos,

desde a década de 70 e, atualmente, atende aproximadamente setenta alunos,

provenientes em sua grande maioria de países africanos4. Estes alunos, inseridos no

universo discente da UFPA, em suas mais diferentes Unidades e Subunidades,

observam de imediato o preconceito gerado contra quem possui uma origem étnica

diferente e revelam desconforto sobre a forma de como no Brasil, a cor da pele está

associada a padrões sociais e culturais, expondo igualmente que algumas crenças pré-

estabelecidas e visões estereotipadas sobre a África e sobre os africanos geram alguma

estranheza.

Com o intento de melhor recepcionar os alunos africanos e afro-brasileiros neste

espaço acadêmico, foram implantadas diversas ações. Uma das mais relevantes foi a

criação da Casa Brasil-África (CBA)5, espaço que possui o objetivo de provocar o

intercâmbio, difundir a cultura africana no Brasil (e vice-versa) e “abordar assuntos no

âmbito das relações étnico-raciais e das relações transatlânticas, contribuindo para a

eliminação de preconceitos e discriminações de todas as ordens.” (VAZ, 2016). A CBA

igualmente trabalha no sentido de promover o Estatuto da Igualdade Racial6 e também

de implementar a Lei 10.639/03, de 09 de janeiro de 2003, que estabelece e respalda a

necessidade da criação de projetos e produtos pedagógicos que tornem o currículo

escolar mais democrático. Foi objetivando a criação de um produto pedagógico, que

inicialmente foi idealizado o “Africano Pai d’égua”, como uma publicação que,

fornecendo informações sobre alguns países africanos – de preferência aqueles que

possuem um número expressivo de alunos inseridos na UFPA – contribuísse para

aumentar o conhecimento sobre o continente na comunidade universitária.

3 Países que mantém acordos educacionais e culturais com o Brasil. 4 Os alunos do PEC-G são provenientes de 11 países africanos. 5 A Casa Brasil-África é vinculada à Pró-Reitoria de Relações Internacionais (Prointer) e localizada no

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

6 Lei nº 12.288/10, de 20 de julho de 2010.

Neste momento surgiu o primeiro desafio: Como produzir uma publicação que

atingisse, dentro de um universo acadêmico cada vez mais jovem, uma quantidade

razoável de pessoas? Pois, já é possível perceber uma boa parcela de rejeição e

questionamentos, por parte dos discentes, em relação aos tradicionais métodos de

ensino e de apresentação de informações, principalmente sob a forma impressa. Essa

inquietação é originada da adoção de novos meios e canais de comunicação, que

necessitam de uma percepção mais imediatista e de velocidade acentuada, formatadores

de um novo público, que prioriza a comunicação primária, por meio de imagens.

Os Quadrinhos por sua natureza lúdica vêm de encontro a este problema, sua

rápida perceptividade e sua grande aceitação dentro do público infanto-juvenil o

caracteriza como um poderoso meio de comunicação e difusão. Além disso, os

Quadrinhos podem ser veiculados de forma tradicional impressa mas também podem

ser distribuídos por meio eletrônico (internet), atingindo com maior expressividade a

parcela mais jovem7 de nosso universo acadêmico e também de fora da própria

universidade. A Arte Sequencial 8 , enquanto recurso comunicacional, oferece a

vantagem de ser de fácil acesso pois não exige mediadores técnicos para a sua

interpretação. Sua apresentação, simples e divertida, convida à leitura. Além disso, a

história nos mostra que não é recente a utilização de imagens para a construção de um

referencial cognitivo que gere conceitos (e preconceitos), estando os Quadrinhos, e a

Arte sequencial, igualmente inseridos neste hall.

1. A IMAGEM COMO FORMADORA DE CONCEITOS

A imagem nos auxilia na formação de conceitos que, por sua vez, nos

influenciam na produção de novas imagens, gerando um ciclo. É possível afirmar que as

raízes dos conceitos e, consequentemente do preconceitos que possuímos, da noção do

que para nós é considerado belo ou agradável e feio ou repugnante, se encontram na

exposição imagética sofrida quando formamos nosso referencial cognitivo dentro de um

espaço de coletividade social. Entretanto, é importante observar que cada um de nós

sofre uma construção cognitiva diferente, sob diferentes parâmetros: econômicos,

sociais, sexuais, locais, estéticos e com profundas influências pessoais. A imagem que 7 Segundo dados divulgados pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da Republica,

divulgados em 2015, “65% dos jovens com até 25 anos acessam internet todos os dias”. 8 Termo cunhado por Will Eisner no livro “Quadrinhos e arte Sequencial”, e que define o uso de

imagens e de seu encadeamento em sequência, como recurso para narrar histórias ou transmitir informações de maneira gráfica. As Histórias em Quadrinhos são o melhor exemplo de Arte Sequencial.

possuímos de nós mesmos e a imagem que construímos sobre o outro influencia

diretamente nosso julgamento, nossas ações e interações. Estas imagens permitem a

origem do preconceito, da prévia conceituação do outro, sem o devido conhecimento e

real julgamento de valores, a absorção dos atributos visuais, inconscientemente define o

que é virtuoso ou maléfico, agradável ou repugnante, belo ou grotesco, dando ao sentido

da visão importância impar na maneira como compreendemos o mundo. Mas, quem é o

outro? Como um preconceito sobre o mesmo pode ser gerado com base na imagem que

percebo?

1.1 O OLHAR SOBRE O “OUTRO”

Ordinariamente, definimos o “outro” como aquele que não faz parte da minha

coletividade, como alguém que possui natureza adversa do meio, daquilo que é, pela

sustentação de um grupo, considerado “normal”. O “outro” é o que difere, o que destoa,

socialmente, intelectualmente ou visualmente.

A construção de uma coletividade portanto invoca questões visuais e imagéticas

inerentes a esta própria construção. Quando nos primeiros agrupamentos humanos,

indivíduos cobriram seus corpos com marcas, pinturas e até mesmo escarificações,

existia uma clara intenção de pertencimento à um grupo específico, comumente à um

grupo que apresenta, ou alega apresentar, qualidades diferenciadas de outros.

Da antiga Grécia, onde havia o culto da imagem ao corpo perfeito9 (ou

fisicamente cultivado e imaculado), a aplicação de marcas10 eram vezes impositivas e

representavam algo a ser cuidadosamente observado e muitas vezes evitado; aos estudos

sobre antropologia criminal, realizados no século XIX, pelo psiquiatra Cesare

Lombroso, que associavam traços físicos a uma possível tendência à delinquência, é

possível observar o relevante papel designado à imagem na construção do conceito

sobre o indivíduo.

Desta forma a sociedade (meio) foi estabelecendo critérios e parâmetros para

julgar, classificar e categorizar os indivíduos, ato que, até os dias atuais, constantemente

realizamos.

9 O conceito da perfeição corporal busca mais tarde raízes no eqilíbrio estético e nas proporções

matemáticas, a exemplo do homem vitruviano. 10 Onde “sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um

criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos.” (GOFFMAN, 1988, p. 11).

Quando nos encontramos frente a um estranho, geralmente utilizamos sua

aparência corporal para classificá-lo em alguma das categorias sociais

preexistentes e que conhecemos. Esta categorização da pessoa faz com que

deixemos de “substantiva-la” para passar a “adjetiva-la”. O que a caracteriza

não é um atributo pessoal (substantivo), senão seu adjetivo estigmatizador

(incapacidade, deformidade). (RIBERA, GARCÍA, RIVAROLA, 2008, p. 38

trad. do autor)

Segundo o sociólogo Erving Goffman (1988), todo elemento que pode ser

percebido no “outro” e que produz descrédito ou repulsa, caracterizado pela relação

entre o atributo real e o estereótipo que a sociedade lhe aplica, é classificado como

estigma. Ainda segundo Goffman, são três os tipos de estigmas produzidos por estes

mecanismos de relação social: As deformidades físicas e abominações do corpo; Os

defeitos de caráter e; Os estigmas tribais de raça, nação ou religião. Sendo o primeiro e

o último tipo, passíveis de uma análise primária meramente visual.

A visão, e portanto a imagem, pode definir aquilo que para cada um é incomum

e imperfeito, atrelado sempre à um estereótipo social. A feiúra é um bom exemplo de

estigma social vinculada à imagem-atributo. “A feiúra, por exemplo, tem seu efeito primário e inicial durante situações

sociais, ameaçando o prazer que, de outra forma, poderíamos ter em

companhia da pessoa que possui esse atributo. Percebemos, entretanto, que

sua condição não deve ter efeitos sobre a sua competência para realizar

tarefas solitárias, embora, é claro, só possamos discriminá-la devido ao que

sentimos quando olhamos para ela. A feiúra, então, é um estigma que é

focalizado em situações sociais.” (GOFFMAN, 1988. p. 50)

Platão definia que o disforme, o imperfeito e desarmônico, se contrapunha a

beleza, sábia e virtuosa11. A questão é que o conceito belo/feio, perfeito/imperfeito,

apresenta diferentes contornos, de acordo com a sociedade onde é aplicada. As

mulheres girafa são um exemplo extremo disso, deformam seus corpos em busca de

uma estética apreciada como bela somente em alguns recantos dos continentes Asiático

e Africano, enquanto para outros seu visual cause estranheza, uma curiosidade natural

diante do exótico12 e uma preocupação com a integridade física destas mulheres. Além

deste, poderíamos listar muitos outros, como a busca por pés femininos minúsculos na

China, a valorização da obesidade em determinadas culturas e até mesmo o

enaltecimento das intervenções cirúrgicas estéticas nos dias atuais. Em resumo, a

11 ECO, 2014, p. 33. 12 Esquisito, excêntrico, extravagante.

sociedade (maioria) define o que é belo e desejado, estando a produção de discursos

imagéticos diretamente atrelados a essa definição. Isso se configura em um problema

social (gerador de estigmas) quando suscitada a dicotomia platônica do belo perfeito x

feio imperfeito, ou seja aquilo que não é belo para mim, necessariamente é feio e o que

não é virtuoso, há de ser nefasto. Reside nesta dicotomia a raiz de todo preconceito.

1. 2 O OLHAR DO “OUTRO”

“Deus fez do homem a sua imagem!”, esta afirmação é provavelmente a mais

emblemática na construção do “eu cognitivo” do mundo ocidental-cristão13. Se sou a

imagem de Deus, sou a imagem da perfeição e todo aquele que difere de mim

provavelmente é imperfeito e deve ser evitado ou combatido. A ampla difusão dos

conceitos religiosos (em especial do cristianismo) refletiu diretamente no julgamento

das aparências, no surgimento e na perpetuação de preconceitos. É mais fácil

percebermos isso quando nos submetemos ao olhar do outro. Para um ocidental, uma máscara ritual africana poderia parecer horripilante -

enquanto que para o nativo poderia representar uma entidade benévola. Em

compensação, para alguém pertencente a alguma religião não europeia,

poderia parecer desagradável a imagem de um Cristo flagelado,

ensanguentado e humilhado, cuja aparente feiura corpórea inspira simpatia e

comoção a um cristão. (ECO, 2014, p. 10)

Minha imagem, sob o olhar do “outro” é fruto de seu referencial cognitivo e o

preconceito sempre existirá, ainda que sob a ótica de pré-conceber a imagem sobre o

outro, sem qualquer julgamento de valores. O julgamento imagético entretanto, é quase

sempre equivocado, seja o que recai sobre mim ou o que recai sobre o “outro”. Os

atributos físicos não devem ser considerados quando adjetivamos algo e devemos nos

abster da adoção de estereótipos nas relações interpessoais ou pelo menos agir no

sentido da ressignificação destes estereótipos, fazer com que o “outro” enxergue o que

eu enxergo, não induzindo-o a enxergar a da forma que eu enxergo.

13 Diversas crenças e religiões teístas apresentam suas entidades e divindades com características

humanas. Fomos criados a sua imagem ou os representamos segundo nosso ideal imagético?

2. AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

Muitos estudiosos de quadrinhos consideram o “Yellow Kid” de 1895,

personagem de Richard Outcault, como a primeira manifestação em formato de

quadrinhos (GOIDANICH, KLEINERT, 2011), talvez pelo fato de que os elementos

próprios da linguagem, como enquadramento, balões e outros elementos gráficos se

fizessem presentes pela primeira vez em conjunto nesta obra. Dizer que quadrinhos são uma forma de literatura é uma maneira de usar um

rótulo social e academicamente prestigiado – o literário - para validá-los ou

de chancelar ao interlocutor a presença ou o uso das histórias em quadrinhos.

Quadrinhos são uma manifestação artística autônoma, assim como o são a

literatura, o cinema, a dança, a pintura, o teatro e tantas outras formas de

expressão. Esse entendimento é corroborado por diferentes autores, como

Moacy Cirne (1977, 200) Will Eisner (1989) e Daniele Barbieri (1998), para

quem os quadrinhos já teriam se “emancipado” e constituído recursos

próprios de linguagem. (VERGUEIRO, RAMOS, 2013, p. 37)

Entretanto, a arte sequencial, uma definição mais ampla onde estão inseridos os

Quadrinhos, remonta à um passado bem mais distante, manuscritos pré-colombianos,

descobertos por Cortés14 em torno de 1519, já apresentavam a estrutura de uma

narrativa conduzida de forma imagética e anterior a isto, na França do século XI já

havia sido produzido um trabalho de características semelhantes a “Bayeaux Tapestry”,

uma peça de tapeçaria de 70 metros que narrava com detalhes a conquista normanda da

Inglaterra. De vitrais contendo cenas bíblicas ordenadas até a pintura em série de Monet

existe uma infinidade de exemplos de quadrinhos se considerarmos esta definição.

(McCLOUD, 2004, p. 12)

A invenção da imprensa contribuiu para popularizar esta nova forma de

expressão, onde a imagem não estava impregnada apenas de conceitos, mas também de

narrativas, alçando-a a uma nova forma de linguagem que viria, nos séculos seguintes

apresentar diversos expoentes – cujo o presente trabalho não tem como foco listar – e

conquistar cada vez mais espaço, visibilidade e reconhecimento acadêmico.

No Brasil, esse reconhecimento atinge seu ápice quando os Quadrinhos foram

inseridos nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, onde são reconhecidos

formalmente no âmbito didático como gênero15 representativo e comunicacional. Outro

14 Hernán Cortés de Monroy y Pizarro Altamirano, conquistador espanhol, conhecido por ter destruído

o Império Asteca de Moctezuma II e conquistado o centro do atual território do México para a Espanha.

15 Gênero na concepção de Mikhail Bakthin (enquanto gênero do discurso)

importante momento para o reconhecimento do potencial didático da linguagem ocorre

em 2006, quando os Quadrinhos são incluídos na lista do Programa Nacional Biblioteca

na Escola – PNBE, responsável pela aquisição de obras de diferentes autores e editoras

para distribuição a escolas de ensino fundamental e médio (VERGUEIRO, RAMOS,

2013, p. 10~12).

2.1 O PODER DE INFLUÊNCIA DAS HQ’S

Segundo McCloud (1995), uma das formas de expressão imagética comumente

utilizada nos quadrinhos, o cartum, apresenta o potencial de exercer grande influência

sobre nós. A forma cartunizada ou simplificada permite um auto reconhecimento e uma

complementação das situações e dos personagens através da incorporação mental do

próprio leitor à narrativa (Fig. 1), isto faz com que nossas identidades e consciências

seja atraídas para o cartum, não apenas como espectadores mas como parte dele.

Figura 1: A percepção do cartum e o convite ao auto reconhecimento.

Fonte: Desvendando os Quadrinhos

Esse convite a inserção é um poderoso mecanismo na difusão de conceitos

imagéticos e consequentemente na formatação de estereótipos visuais, mecanismo este

que reforça a condição dos Quadrinhos como linguagem e como objeto ativo na

produção de saberes e, devido a sua natureza conceitual, também adiciona-lhe um

caráter de produto fruto de uma poética artística.

Historicamente, o poder deste mecanismo não passou despercebido e vem sendo

utilizado para apresentar as mais diferentes narrativas, de histórias humorísticas de

caráter meramente lúdico à biografias e recortes históricos16, com intenção educativa; da

inclusão icônica de elementos fictícios como super-heróis, que atendem ao anseio

inspiracional do mito definido por Campbell17 à manipulação através da inserção de

conceitos ideológicos e estereótipos manipulados de toda natureza18.

O curioso é que, sob certa ótica, ironicamente a utilização de estereótipos nos

quadrinhos municia tanto a construção de conceitos e preconceitos quanto a

desconstrução/reformulação dos mesmos. Para melhor “ilustrar” esta afirmação,

podemos citar diversos exemplos, com diferentes características. Chico Bento19(Fig. 2)

e Ferdinando20 são exemplos do campesino que, embora conceitualmente e visualmente

estereotipados e caricatos, conseguem transmitir ao mesmo tempo a simplicidade e a

sabedoria do morador rural. O Homem-aranha21 e os X-men22, super-heróis dotados de

fantásticos poderes revelam seu lado humano ao se confrontar com problemas

cotidianos como pagar o aluguel, prestar um exame acadêmico, ou sofrer discriminação

por carregar estigmas físicos nitidamente percebíveis23.

16 A exemplo das obras “MAUS”, do americano Art Spiegelman e “GEN: pés descalços”, do japonês

Keiji Nakazawa. 17 Joseph John Campbell, estudioso americano que desenvolveu importantes trabalhos a respeito dos

mitos e de sua constituição. 18 Os quadrinhos servem(iram) de veículo para difusão de uma ampla gama de ideias e ideais, do

combate ao consumo de entorpecentes à propaganda nazista na Segunda Guerra. 19 “Chico Bento” é o apelido de Francisco Antônio Bento, personagem criado pelo quadrinhista

brasileiro Maurício de Sousa, em 1961 e que retrata a vida do interiorano paulistano. O que nos chama atenção no Chico não é o chapéu de palha, nem seus pés descalços e tampouco a calça de barra poida do personagem mas seu caráter simples, puro e ingênuo.

20 “Ferdinando Buscapé” ou “Li’l Abner” (seu nome original), é um personagem que representa de forma caricata o montanhês americano. Foi criado em 1934 pelo ilustrador Al Capp (Alfred Gerald Caplln).

21 Super-herói criado em 1962, pelo escritor Stan Lee e pelo desenhista Steve Ditko. O personagem foi concebido como um jovem órfão criado pelos tios e que desenvolve seus poderes após acidentalmente ser picado por uma aranha radioativa.

22 Criados por Stan Lee e Jack Kirby em 1963, o X-men é uma equipe de super-heróis formada por seres humanos que possuem uma mutação genética, fruto de um salto evolucionário, que lhe concede poderes geralmente manifestados na puberdade.

23 Em relação à constituição de estereótipos, os X-men são particularmente interessantes pois, junto com os poderes, muitos apresentam estigmas físicos e psicológicos. Estigmas estes que servem de “gancho” para remeter a discussões mais amplas, como questões raciais por exemplo.

Figura 2: A evolução do Chico Bento.

fonte: Site da Turma da Mônica

3. O “AFRICANO PAI D’ÉGUA” Selecionada a linguagem, surgiu a necessidade de buscar e sistematizar as

referencias que serviriam de base para a construção do “Africano Pai d’égua”.

A apresentação de situações étnicas pelas quais os alunos passaram ou que

temiam passar e também de sua própria identidade através de uma breve apresentação

de sua terra natal foi o principal foco da publicação. Para tanto foi realizada uma

pesquisa oral, através de entrevistas com alunos africanos, estudantes da UFPA. A

intenção inicial era mapear elementos representativos de seus países de origem, suas

vivências frente ao espaço que se configura como sua nação e traduzir essas

informações de forma ilustrada (fig. 3), para a constituição de um material que

atendesse tanto às necessidades formais como a criação de material pedagógico

respaldada pela lei 10.639/03, quanto às informais como o aumento da autoestima dos

alunos africanos e afro-brasileiros e a desconstrução de um estereótipo equivocado, que

tipicamente possuímos, sobre o continente africano e sobre os africanos.

Figura 3: Exemplos de página de “Africano Pai d’égua”.

Fonte: Acervo do autor.

Os personagens, ainda que fictícios, foram criados baseados nas entrevistas

realizadas com os alunos, e estes apresentam seus respectivos países de origem. A

surpresa na construção do trabalho foi perceber que o preconceito equivocado – termo

novamente evocado aqui como pré–concepção, isenta de julgamentos – se dá por parte

dos alunos africanos também, quando estes revelaram, em suas entrevistas, quais as suas

expectativas em relação a nossa região.

Entender que algumas das crenças estabelecidas não correspondem com a

realidade e, sempre que possível, agir no sentido de desconstruir estereótipos e

preconceitos e, com sabedoria e discernimento, contribuir para a constituição de novos

saberes. Isto é ser Pai d’égua, seja você africano ou brasileiro.

REFERÊNCIAS BAKTHIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Estética da criação Verbal. 3. ed. São

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São Paulo: Martins Fontes, 1995

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RIBERA, Jord; GARCÍA, Gerard; RIVAROLA, Pablo. Los monstruos y El psicoanálisis. Catalunya: Editorial UOC, 2008, 132 p.

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VAZ, Elisa. Intercâmbio oferta oportunidade de estudos no Brasil para alunos

africanos. In: Portal Institucional da Universidade Federal do Pará. 2016. https://

www.portal.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=11802. Acessado em 10.set.2016.

VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (orgs.). Quadrinhos na Educação: da

rejeição à pratica. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2013, 224 p.