100
REVEJ@ 1 REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@_4_completa

Embed Size (px)

Citation preview

REVEJ@

1

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

2

Expediente

REVEJ@ - Revista de Educação de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008 NEJA-FaE-UFMG. Belo Horizonte. Dezembro de 2008. ISSN: 1982-1514 CAPA

Máscaras em argila dos artistas Mestre Ciça, de Mauro Cassiano e Silvana Gonçalves, expostas no Centro de Cultura Popular Mestre Noza, em Juazeiro do Norte (CE).

Fotos de Juliana Gouthier.

A REVEJ@ é uma publicação eletrônica do Grupo de Estudos e Pesquisas em EJA, vinculado ao Núcleo de Educação de Jovens e Adultos da Faculdade de Educação da UFMG. Sua periodicidade é quadrimestral. Sua distribuição é gratuita e está disponível para acesso e download no endereço http://www.reveja.com.br.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

3

Equipe Editorial Coordenador: Leôncio José Gomes Soares

Editor Responsável: Luiz Olavo Fonseca Ferreira

Jornalista Responsável/Revisora: Mirella Augusta Carvalho

Revisora: Ângela Pinto

Comitê Editorial: Ana Paula Ferreira Pedroso

Comitê Editorial: Emmeline Salume Mati

Comitê Editorial: Isamara Grazielle Martins Coura

Comitê Editorial: Lígia Vilela Félix

Comitê Editorial: Raquel Miranda Vilela

Comitê Editorial: Cristiane Fernanda Xavier

Comitê Editorial: Fernanda Aparecida Oliveira R. Silva

Comitê Editorial: Analise de Jesus da Silva

Comitê Editorial: Jerry Adriani da Silva

Comitê Editorial: Magda Antunes Martins

Comitê Editorial: Sônia Maria Alves de Oliveira Reis

Layout e Arte: Juliana Gouthier Macedo

Conselho Editorial Presidente: Leôncio José Gomes Soares (UFMG)

Edna Castro de Oliveira (UFES)

Eliane Ribeiro (UNIRIO)

Jane Paiva (UERJ)

Liana Borges (ONG Diálogo - Assessoria e Pesquisa em Educação Popular)

Maria Amélia Giovanetti (UFMG)

Maria Aparecida Zanetti (UFPR)

Maria Clara Di Pierro (USP)

Maria Margarida Machado (UFG)

Maria Luiza Pereira Angelim (UnB)

Osmar Fávero (UFF)

Sônia Couto Souza Feitosa (Instituto Paulo Freire)

Tânia Maria de Melo Moura (UFAL)

Timothy Denis Ireland (UFPB)

Consultores Ad hoc Analise de Jesus Silva (UFMG)

Domingos Leite Lima Filho (UTFPR)

Inês Assunção de Castro Teixeira (UFMG)

Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca (UFMG)

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

4

Sumário

Editorial ............................................................................................................................... 05

História e memória dos Encontros Nacionais dos Fóruns de EJA no Brasil: dez anos de luta pelo direito à educação de qualidade social para todos

Adán Pando Moreno.............................................................................................................. 07

Compromisso renovado para a aprendizagem ao longo da vida - Proposta da América

Latina e do Caribe

UNESCO .............................................................................................................................. 14

Desejos e desafios de pessoas da terceira idade no processo de escolarização

Isamara Grazielle Martins Coura........................................................................................... 19

O Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de EJA no CEFET-GO: uma análise a partir da implantação do curso técnico integrado em serviços de alimentação

Mad´Ana Desirée R. de Castro - Jacqueline M. Barbosa Vitoretti ....................................... 31

Formação de Educadores de Jovens e Adultos: saberes na proposição curricular

Rosa Aparecida Pinheiro ....................................................................................................... 44

A Educação de Jovens e Adultos semipresencial: leituras do cotidiano escolar

Liliam Cristina Caldeira - Doralice A. Paranzini Gorni ........................................................ 56

Um olhar sobre a postura do educador da Educação de Jovens e Adultos numa perspectiva freiriana

Maria Teresinha Kaefer e Silva ............................................................................................ 67

“Mulher não precisava estudar”: relatos de vida e de violência simbólica

Andréia da Silva Pereira - José Carlos Miguel ...................................................................... 74

Os caminhos da linguagem: possibilidades de aprendizagem por meio do audiovisual na

EJA

Michel Silva ........................................................................................................................... 86

REVEJ@ o filme: A Última Hora

Kelen Rezende - Maria Andréia A. Leandro - Rosângela Cristina Barbosa ......................... 95

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

5

Editorial

Esta edição da REVEJ@ comemora os dez anos de dois movimentos que se

entrelaçam na construção da história da Educação de Jovens e Adultos no Brasil: o Encontro

Nacional de Educação de Jovens e Adultos – ENEJA e o Grupo de Trabalho de EJA (GT 18)

da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED. O ENEJA,

desdobramento das ações preparatórias à V CONFINTEA, iniciou-se em 1999 e, desde então,

vem sendo realizado anualmente congregando diferentes segmentos que atuam na educação

de jovens e adultos. O primeiro Encontro Nacional foi sediado no Estado do Rio de Janeiro e,

ao completar uma década, retornou ao estado fluminense, dessa vez no município de Rio das

Ostras. Para marcar a ocasião, transcrevemos nesse número a palestra do representante do

CREFAL, Adán Pando, que abordou as concepções de EJA na América Latina enquanto

direito público.

Damos também informações sobre as reuniões preparatórias para a VI CONFINTEA,

a ser realizada no mês de maio em Belém, com a publicação do documento final do Centro de

Cooperación Regional para la Educación de Adultos en la América Latina y el Caribe

(CREFAL), ocorrida na Cidade do México, em setembro de 2008, intitulado “Compromisso

renovado para a aprendizagem ao longo da vida - Proposta da América Latina e do Caribe”.

Em comemoração aos dez anos do GT 18 da ANPED, publicamos artigos de pesquisadoras

que apresentaram seus trabalhos na última reunião anual. Dentre elas, Isamara Grazielle

Martins Coura discute os casos e percalços quando alunos idosos chegam à educação de

jovens e adultos. Mad’ana Desirée Ribeiro de Castro e Jacqueline Maria Barbosa Vitorette

analisam a implantação do curso técnico integrado em Serviços de Alimentação no PROEJA

do CEFET-GO. Rosa Aparecida Pinheiro relata o estudo de uma proposta curricular de

formação de educadores de jovens e adultos que teve como foco o diálogo entre os saberes da

experiência e os saberes acadêmicos dos educadores. Por fim, Lílian Cristina Caldeira e

Doralice A. Paranzini Gorni analisam a relação estabelecida entre os documentos oficiais que

regulamentam a EJA e o real da vivência escolar a partir da visão dos educandos e educadores

na modalidade semipresencial. Continuando essa edição, Maria Teresinha Kaefer e Silva

aborda a postura do educador da EJA, bem como o medo e a ousadia que permeiam suas

ações, baseando suas reflexões no pensamento de Paulo Freire. As relações que se

estabelecem entre família, gênero e educação são analisadas por Andréia da Silva Pereira e

José Carlos Miguel, por meio de relatos orais de vida de educandas.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

6

O papel do áudio-visual como ferramenta da prática de ensino e do letramento de

jovens e adultos é a questão que Michel Silva apresenta. O autor aponta que nas diferentes

fases de criação e elaboração do material pode-se perceber a contribuição do áudio-visual no

processo de ensino-aprendizagem e formação de alunos jovens e adultos.

.A sessão REVEJ@ o Filme apresenta um relato a partir do documentário Última

Hora, narrado e produzido por Leonardo Di Caprio, sob a direção de Leila e Nadia Conners, o

qual provocou um debate em sala de aula sobre os desastres naturais causados pela própria

humanidade e o atual estado de risco ambiental do planeta.

Desejamos a tod@s que nos acompanham uma boa leitura e que o ano de 2009 possa

ser promissor para a Educação de Jovens e Adultos.

Equipe Editorial

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

7

História e memória dos Encontros Nacionais

dos Fóruns de EJA no Brasil: dez anos de luta

pelo direito à educação de qualidade social

para todos

Adán Pando Moreno1

Devo começar fazendo um profundo e

sincero agradecimento à Comissão organizadora

do X ENEJA e, em particular, à Jane Paiva e ao

nosso amigo em comum Timothy Denis Ireland

por nos ter colocado em contato e pela

desmerecida deferência com a qual nos

convidaram e nos tem tratado, tanto ao CREFAL

quanto a mim. A eles e a todos vocês nossos

agradecimentos e nossa amizade. Recebam

também nossas congratulações pela realização

deste X Encontro de alcance não só brasileiro,

mas também latino-americano.

Antes de começar quero me desculpar por

não poder fazer esta apresentação em português.

Já é bastante o dano que faço ao espanhol quando

falo e tenho certeza de que ao terminar minha

estadia neste país maravilhoso, vou ser a pessoa

mais perseguida pelas Academias de Línguas

espanhola e portuguesa.

Em seguida quero aproveitar esta

oportunidade para compartilhar a perda que

sentimos no CREFAL e, de um modo geral, todos

aqueles que trabalham no âmbito da educação no

México pelo recente falecimento de nosso amigo

1 Diretor de Docencia y Educación para la Vida. do Centro de Cooperação Regional para a Educação de Adultos na América Latina e Caribe (CREFAL).

Juan Manoel Gutiérrez. Juan Manoel foi um

notável educador mexicano, organizador de

muitas iniciativas de grande importância no

âmbito da educação no México. Dentre elas,

fundou o Departamento de Investigação

Educativa (DIE) do Instituto Politécnico Nacional

e também a Universidade de Ciénega; foi

fundador e diretor, até os últimos dias, da revista

Decisio, de grande alcance na educação de

adultos e, também até seu falecimento, foi

pesquisador e assessor do CREFAL. Quero

dedicar esta apresentação à memória de Juan

Manoel.

Não pretendo fazer uma exposição

acadêmica. Mas somente uma espécie de resenha

que vincula aquilo que é considerado público com

aquilo que chamemos de modelos de imbricação

entre o Estado e a educação de adultos na

América Latina. O tema da educação de jovens e

adultos tem, como sabem, vários pontos de vista e

proporções. Primeiro, penso que seria melhor

olhar a EDJA a partir da perspectiva sociológica

de campo de Pierre Bourdieu. Sem dúvida há

muitos outros enfoques, mas tomo este porque

creio que uma das características que tem a EDJA

na América Latina é que não se trata somente de

um campo, senão de vários campos intercalados e

sobrepostos.

Se nós dissermos “a Universidade”, isso

se constitui um só campo. Podendo conter vários

subcampos, por exemplo, o da pesquisa e da

docência; ou disciplinas como as humanas, as

tecnológicas, etc. Mas é reconhecida como algo

instituído com suas próprias regras de jogo e com

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

8

o capital cultural comum que possui e distribui de

alguma forma. Todo campo tem uma fronteira

definida em relação a outros campos do entorno.

A EDJA, por outro lado, não parece ser

assim. Penso que é possível distinguir três

grandes campos: um campo que é o tema

específico da pedagogia de adultos (ou

andragogia se assim preferem, não seria agora o

momento de discutir isso); há outro campo que é

o da condição social-sociológica da EDJA; há um

terceiro campo que é o das políticas públicas

sobre EDJA.

Nem todos os “temas” da EDJA

concorrem de forma igual nos três campos. Há

“temas” que estão construídos conceitual e

metodologicamente em apenas um dos campos.

No entanto, é fácil reconhecer que há temas que

dizem respeito a mais de um desses campos. Se

falarmos, por exemplo, do problema da formação

dos educadores, implicaria os três campos. Se

falarmos do problema do financiamento da

EDJA, abordamos, sobretudo, os dois últimos

campos.

E ainda mais, esses campos não têm a

mesma lógica, a mesma dinâmica nem o mesmo

discurso. Por isso, precisamente, afirmo que se

trata de campos diferenciados. Por exemplo,

enquanto que nas políticas públicas se fala em

“combater o atraso educativo” e busca-se que os

programas tenham um impacto preferencialmente

quantitativo, a teoria da educação ou pedagógica

e a sociologia da educação renegam justamente a

expressão (porque oculta um processo social de

exclusão), a direção e o tipo de resultados que

buscam a maioria das políticas públicas.

Mas, de certa forma, o campo das

políticas públicas é o campo da diretriz (em

outras palavras diríamos hegemonia) dentro da

EDJA.

De um lado, porque na América Latina

herdamos uma teoria pedagógica proveniente do

Iluminismo, a qual privilegiava o ensino infantil e

só tardiamente se ateve aos jovens e adultos. Por

outro, porque a EDJA nasceu na América Latina

como um conjunto de iniciativas internacionais e

de cada Estado, para enfrentar um problema

social que afetava gravemente a incorporação de

nossos países aos esquemas internacionais de

produção, trabalho e distribuição. A EDJA nasceu

ligada à capacitação para o trabalho e à geração

de competências mínimas de “integração

nacional”. Não é o momento de tecer comentários

superficiais sobre a questão, mas creio que

aproveitaria para ler a história recente da EDJA a

partir desse ponto de vista.

E, finalmente, porque o que às vezes

chamamos de economia política da educação de

adultos, geralmente começa seus caminhos

financeiros como investimento público (nacional

ou internacional).

Ontem à noite escutei no programa do

Canal 10 o físico José Bautista Vidal. Afirmava o

senhor Vidal que a educação deveria estar ligada

ao trabalho, que a educação não deveria estar

colocada como uma condição, a priori,

verticalizada. Queixava-se de que as políticas

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

9

públicas colocavam muita ênfase e recursos na

educação e, em contrapartida, não havia uma

política da mesma magnitude para o petróleo.

Trata-se obviamente de uma concepção

utilitarista, puramente funcional da educação. A

educação reduzida a ensino e o ensino visto como

um meio e não como um fim. E, ademais, como

um meio subordinado a diversos fins.

Agora o fato de que as políticas públicas

reconheçam – em maior ou menor grau – a

educação de adultos como uma questão social,

não quer dizer que seja plenamente considerada

como uma questão pública. O público é uma

espécie de âmbito ou espaço que abarca aquilo

que não pode ser de ninguém em particular e,

além disso, aquilo que é de todos. Certamente, o

público começa por definir-se por negociação,

por exemplo, com preceitos como “ninguém deve

fazer justiça com as próprias mãos”. Esta espécie

de “terra de ninguém” supõe o intento de

equilíbrio entre os interesses do privado, aqueles

mínimos nos quais – seguindo a hipótese

rousseauniana – estamos de acordo em que não

ocorram.

De maneira paralela, o público se define

como o que é de todos sem ser “de cada um”.

Uma praça ou uma rua é de todos. Eu não posso –

nem vocês nem ninguém – chegar a reclamar

minha parte proporcional da praça, meu meio

metro quadrado de praça. Quando alguém

usufruir privadamente de algo que é de todos, isso

faz com que o objeto perca o caráter de público.

Desse modo, se alguém desrespeita uma

das regras proibitivas fere o direito individual de

alguém e, ao mesmo tempo, o direito público. Se

alguém se excede no direito público e toma como

particular algo que é de todos fere o direito

público e, seguramente, o individual. Neste

momento, no México, discute-se a reforma

energética e se diz que uma das propostas é

vender títulos de petróleo aos cidadãos “para

fazê-los partícipes dos benefícios”. Assim se

contradiz o direito público, ainda que cada um

dos mexicanos pudesse ter a mesma quantidade

de títulos de petróleo, estes permaneceriam já

propensos ao uso individual, mesmo que

minimamente. Na teoria liberal clássica supõe-se

que o Estado é a garantia - a cada momento - do

equilíbrio entre as partes, do direito público, de

evitar a transgressão dele e de resguardar os

direitos individuais. Nesta concepção o Estado é

o corpo do público.

Por ele, se uma pessoa, um particular,

transgride o direito público comete delito. Mas, é

duplamente grave se o faz o Estado e seus

funcionários. Inclusive, um particular pode não

atuar diante de certas situações sem incorrer em

uma falta, pode fazer um exercício passivo de

seus direitos, mas o Estado não pode não atuar,

seria negligência. É a mesma lógica de quando os

representantes públicos (os deputados, senadores,

prefeitos, etc) e os funcionários opõem-se a

cumprir e fazer cumprir as leis. Para o cidadão

comum basta que cumpra a lei, o representante do

público deve, portanto, fazer com que seja

cumprida.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

10

Essa é a teoria sobre o que é público. A

teoria clássica, liberal e republicana, ainda que

sem fazer críticas. Mas é evidente que na

Constituição de cada país estão presentes

determinações historicamente diferentes sobre o

que é, de fato, o âmbito público. Na Europa

ocidental foi um processo que aconteceu entre os

séculos XVII e XVIII. Na América Latina, entre

o século XIX e inicio do XX. No caso do México,

essa definição do que é público se deu

marcadamente com a Constituição de 1857 e com

as Leis de Reforma durante o governo de Benito

Juarez.

Seguindo a idéia de que um Estado se

compõe de população, território e governo, a

administração de Juarez se propôs a reformar o

governo, sobretudo, nos órgãos de justiça, ou

seja, decretar leis para a população (o registro

civil obrigatório para os recém-nascidos, os

cemitérios públicos e os atestados de óbito) e

confiscar terrenos (uma forma de expropriação

que atingiu os terrenos baldios, as propriedades

da Igreja Católica e das comunidades indígenas).

Entretanto, fez algo mais: percebeu que não se

podia construir um Estado nacional forte sem

uma escola pública, isto é, uma educação básica

dada por instituições escolares do Estado, que não

atendesse a interesses privados, que fosse de

acesso para todos, bem como gratuita e

obrigatória.

Quase todos os países da América Latina

têm tido sistemas semelhantes de ensino público.

Na maioria destes países a educação ou ensino

público está em crise. Não somente pela

qualidade da educação que se oferece, senão

porque o conceito do que é público e a forma

como se construiu historicamente está em crise.

Provavelmente pela conjunção de três tendências:

Primeira, a confusão do público com o

aumento de penetração da mídia de massa,

especialmente a televisão, a qual cria uma falsa

impressão do “público”. Os meios de

comunicação de massa são isso: de massa, não

públicos. Ficar sabendo da vida privada dos

políticos, se têm um ou uma amante, ou filhos

fora do casamento, etc, não faz estes fatos nem

mais nem menos públicos, seguem sendo

privados ainda que muita gente fique sabendo.

A segunda tendência tem a ver com a

primeira, mas de maneira ambígua, dual. Nas

últimas três ou quatro décadas tem havido um

movimento crescente de cidadania que tem posto

em marcha diversas causas dependendo das

condições de cada país. Em geral, uma luta contra

os autoritarismos que chegavam ao extremo com

as ditaduras militares, uma luta pela

democratização, às vezes por mudanças radicais

na estrutura social, às vezes reclamando somente

maior participação social; uma sociedade aberta e

com melhores níveis de existência e

sustentabilidade. Particularmente desde os anos

oitenta, tem havido uma ascensão das ações das

organizações da sociedade civil. Porém, digo que

é ambígua porque uma maior participação ou

protesto da sociedade civil não é

automaticamente um assunto público. No México

existem muitas organizações de caráter

assistencialista ou filantrópico que atuam no setor

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

11

educativo, de saúde, etc, mas que não querem ter

a menor ingerência na questão pública. Também

existem organizações que tratam de converter em

assunto público aquilo que deve ser questão de

consciência privada, como as que propõem

legislar para moderar a forma de vestir das

mulheres evitando que sejam “provocativas”.

Terceira, o neoliberalismo e o reajuste

estrutural reduziram o Estado. Ou, como foi dito

no início dos anos de noventa, “afinaram” o

Estado. Como sabemos, este emagrecimento não

constituiu em uma diminuição da burocracia,

senão na venda do mercado – mais ou menos

aberto – de muitas empresas e serviços do Estado.

Junto com a venda de instituições foram áreas

estratégicas e se perdeu toda a responsabilidade

pública sobre esses temas. Neste contexto, a

educação recebeu sua parte de privatização.

De tudo o que falei até agora, quero

destacar dois aspectos:

Primeiro, toda diminuição do âmbito

público é uma perda de soberania dos Estados (e

soberania foi o tema que primeiro apareceu

teórica e historicamente em relação ao público).

Mas que o público não é algo imutável e que só

existe no Estado. Há formas coletivas de resgate e

construção daquilo que é público. Atualmente não

se pode nem se deve pensar formas autoritárias. A

participação e a democracia são indispensáveis na

construção do público, ainda que por si só não

sejam suficientes. Reitero, a privatização não é o

fato de que companhias privadas operem alguns

serviços ou programas. A privatização é,

essencialmente, o abandono do espaço público.

Um estado pode privatizar-se ainda assim não ter

vendido nada, devagar vai deixando de lado suas

responsabilidades públicas. Hoje sabemos,

citando Aníbal Quijano, que não se trata de mais

ou menos Estado, senão de melhor Estado.

Segundo, não é possível falar de direito a

educação (de todas as idades, não só de adultos)

sem pensar no direito público para a educação

pública. A questão educativa e o direito a

educação estão no centro do debate sobre o

público. O direito à educação não é somente o

problema de cobertura, é um assunto de

governabilidade.

Este conjunto de idéias serve de marco

para examinar, grosso modo, a situação da

educação de jovens e adultos na América Latina a

respeito de suas políticas públicas. Cabe dizer

que, não obstante a planetarização das

comunicações, a abertura comercial de algumas

fronteiras, e isso que chamam acriticamente

globalização, os Estados nacionais continuam

sendo sistemas bastante consolidados e funcionais

para se abrirem a isso.

O primeiro fato que se deve destacar é que

o direito à educação não tem um grau de

desenvolvimento muito diferente em cada país.

Ainda que todos o reconheçam, não há em todos

a mesma escala legislativa. Assim, em alguns está

presente em sua Constituição, em outros em leis

secundárias, etc.

Do mesmo modo, as instituições e

políticas públicas são diferentes de país a país. Há

quase 60 anos, quando o CREFAL foi fundado

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

12

em Pátzcuaro, Michoacán, no México, existia

uma política dos organismos internacionais para

atender de maneira urgente a desvantagem

educativa em que se encontrava a região latino-

americana. Atualmente, já não é assim. Tanto os

países como as articulações dos organismos

internacionais modificaram-se; não podia haver

nenhuma política internacional (ainda bem que

não há um direito internacional neste âmbito)

uniforme ou que chegasse de cima. É preciso

conhecer bem as políticas de educação de cada

país, a fim de tentar modificá-las com as

iniciativas internacionais e pelas vias de

financiamento de programas.

É urgente compilar, organizar e

sistematizar uniformização sobre a EDJA no

âmbito das questões econômicas e construir

indicadores mais exatos no cumprimento do

direito à educação.

Seguindo algumas das conclusões

provisórias que emergem de uma pesquisa

patrocinada pelo CREFAL, sobre o estado da arte

da EDJA nos países da América Latina, parece

que temos quatro grandes conjuntos ou formas

(não quero dizer modelos) de integração das

políticas públicas de EDJA na América Latina.

O primeiro é o esquema no qual o governo

absorve as instituições e é o indutor das políticas

públicas, mas sem que cheguem a ser políticas de

Estado. É o caso do México. Uma instituição

sólida, muito grande, opera os principais

programas federais contra o analfabetismo e o

atraso escolar: o INEA. Porém, tem como

limitações uma concepção muito estreita da

EDJA, a centralização que não permite uma

participação efetiva em quase nenhum nível

institucional ou programático e uma enorme

dificuldade na gestão e operação de programas. O

esquema possui marcada preocupação pela

cobertura.

O segundo, do outro lado do espectro, é

um esquema de privatização da educação. Poderia

ser o caso do Chile. As grandes instituições são

melhores na avaliação e fiscalização, somente

oferecem linhas gerais e agentes diversos, muitos

deles do setor mercantil, operam os programas e

serviços. Não obstante, investiram quantidade

considerável de recursos em certos aspectos como

a reforma curricular e a avaliação de políticas. Tal

esquema possui marcada preocupação pela

eficiência.

Entre estes dois pólos há outros esquemas.

O terceiro é um esquema híbrido - no qual o

Estado e o governo assumem parte da educação

de adultos - que subcontrata ou dá concessão à

operação dos programas. Pode ser o caso da

Colômbia. Não recai no governo o financiamento

de toda a EDJA. Há uma marcada preocupação

assistencialista neste esquema.

O quarto esquema pode ser o do Brasil. O

governo financia a EDJA em esquemas

compartilhados, as políticas públicas e os planos

estabelecidos são agendados com participação da

sociedade, mas uma parte importante da operação

dos programas é realizada por agentes

governamentais. Há uma marcada preocupação

participativa.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

13

É provável que este seja o esquema de

mais êxito para as condições de países como o

Brasil - muito extensos, com grande população,

com economias dinâmicas e produtivas, uma

república federal muito heterogênea em seu

interior. Mas deve-se levar em conta que o Brasil

tem dez vezes mais Encontros Nacionais de EJA

e, antes disso, uma larga tradição de mobilização

civil pela EDJA.

A quinze dias da reunião preparatória para

a VI CONFINTEA no México, há poucos meses

para a realização da CONFINTEA aqui no Brasil,

a realização deste X Encontro Nacional de EJA se

reveste de um significado particular. Trata-se não

só de festejar, vocês brasileiros primeiro, como

também nós os demais latino-americanos, os anos

de esforço e os frutos alcançados. Trata-se

também de projetar para ao futuro o dinamismo e

os ensinamentos dos ENEJAs.

Notas

1. Conservei as siglas “EDJA” por duas

razões principais: por antecedência histórica do

termo; porque me parece mais próximo ao uso em

português que o atual “EPJA” (educação de

pessoas jovens e adultas). Por suposto, não tenho

nenhum inconveniente em fazer a adequação

necessária.

2. Em geral conservei o tom da oralidade

da exposição, porque assim foi pensada a

primeira versão. Portanto, qualquer citação

bibliográfica ou de textos acadêmicos.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

14

Conferência Regional da América Latina e do Caribesobre Alfabetização e Preparatória para a CONFINTEA VI

“Da alfabetização à aprendizagem ao longo da vida: desafios do século XXI”

Cidade do México (México), 10-13 de setembro de 2008

Documento Final:

COMPROMISSO RENOVADO PARA A APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA

Proposta da América Latina e do Caribe

I. CONSIDERAÇÕES GERAIS

Da alfabetização à aprendizagem ao longo da vida é o grande desafio ao qual nos convoca esta Conferência Regional.

Em outras palavras, o desafio de passar de uma alfabetização inicial – que é como continua a ser entendida a alfabetização de pessoas jovens e adult as em muitos países da região – a uma visão e uma oferta educativa ampla que inclua o ensino, ao mesmo tempo em que reconheça e valide as aprendizagens realizadas pelas pessoas, não some nte na idade adulta, mas ao longo da vida1: na família, na comunidade, no trabalho, pelos meios de comunicação de massa, na participação social, no exercício da própria cidadania.

A educação é um direito fundamental, uma chave que permite o acesso aos direitos humanos básicos, tais como saúde, habitação, trabalho e par ticipação, entre outros, possibilitando assim o cumprimento das agendas globais2, regionais e locais de desenvolvimento.

Isto implica em reconhecer que estamos diante de um paradigma que concebe o ser humano como sujeito da educação, portador de saberes singulares e fundamentais, criador de cultura, protagonista da história, capaz de produzir as mudanças urgentes e necessárias para a construção de uma sociedade mais justa.

1 Nota do tradutor: o original utiliza a expressão “ao longo e ao largo da vida”, para designar aprendizagens que se realizam ao longo do tempo e em todos os âmb itos da vida social. Optou-se por empregar a expressão “ao longo da vida” porque a tradução lite ral ao português não agrega o significado pretendido. 2

Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) e da Educação para Todos (EPT), a Quinta Conferência Internacional de Educação de Adultos (C ONFINTEA V), a Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (DEDS), o Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe (PRELAC), o Plano Ibero-americano de Alfabetização e Educação Básica de Pessoas Jovens a Adultas (PIA), entre outros.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

15

Concepção que contempla não somente a educação form al, mas que incorpora e valoriza a educação não-formal e popular, e supera a visão ind ividualista da aprendizagem, ao propor uma construção social do conhecimento em comunidades de aprendizagem que propiciem o encontro intercultural, intergeracional e intersetorial e a proteção do meio ambiente.

Nessa perspectiva, a alfabetização é um ponto de partida necessário, mas não suficiente, para que cada sujeito do século XXI possa continuar e complementar suas aprendizagens ao longo da vida e exercer os seus direitos de cidadão.

A ESPECIFICIDADE E HETEROGENIEDADE DESTA REGIÃO

A América Latina e o Caribe constituem uma região com grandes especificidades e enormemente heterogênea, formada por 41 países e territórios, onde são faladas cerca de 600 línguas, com realidades muito diferentes em todos os sentidos, incluindo o educativo e especificamente o de educação de pessoas jovens e adultas (EPJA). Essa diversidade entre países e dentro de cada país exige cautela quanto às generalizações e um grande esforço de diversificação, elaboração e melhoramento de políticas e programas, adequando-os a contextos e grupos específicos, considerando entre outras diferenças, idade, gênero, raça, região, língua, cultura e pessoas com necessidades educativas especiais.

Esta é também a região mais desigual do mundo com 71 milhões de pessoas vivendo na indigência e cerca de 200 milhões de pobres. Exclus ão educativa e exclusão política, econômica e social são todas faces da mesma moeda. A EPJA situa -se exatamente nessa problemática, entendendo que a educação é uma ferramenta fundamental para lutar contra a pobreza e a exclusão social, mas considerando também a impossibilidade de resolver tal problemática exclusivamente do campo educativo, na ausência de m udanças estruturais e sem a convergência de outras políticas.

Os diversos contextos socioeconômicos, étnicos e culturais da região estabelecem cada vez mais obstáculos à alfabetização e outras formas de apren dizagens entre as pessoas jovens e adultas. Entre esses fatores figuram o desemprego, a exclusão social, as migrações, a violência, as disparidades entre homens e mulheres, todos esses vinculados, em grande parte à pobreza estrutural. Esta situação tem sido agravada, nos úl timos tempos, pela crise alimentar, pela crise energética e pelas mudanças climáticas.

AVANÇOS

Nos últimos anos, a EPJA ganhou impulso renovado na região, após um período de recesso nos anos 90, tanto por parte dos governos como dos organismos internacionais. Na maioria dos países ocorreram avanços significativos no plano legal e das políticas, em termos do reconhecimento do direito à educação, à diversidade lingüística e cultural destas nações. Em particular, têm-se retomado as agendas nacionais e internacionais, os planos, programas e campanhas de alfabetização. Foram institucionalizadas, deste modo, ofertas para completar e certificar os estudos de educação primária e secund ária para as pessoas jovens e adultas, em alguns casos, vinculados a programas de capacitação e formação para o trabalho.

A oferta educativa não-formal ampliou-se considerav elmente, abrangendo tópicos muito diversos, vinculados a direitos, cidadania, saúde, violência intrafamiliar, HIV/Aids, proteção do meio ambiente, desenvolvimento local, economia social e solidária etc. Em alguns países houve avanços na eqüidade de gênero. Também começou a ter visibilidade a atenção a grupos especiais, como imigrantes e pessoas privadas de liberdade. Os meios audiovisuais e o uso das TICs penetraram no campo da EPJA, em alguns casos a partir de investimentos e intervenções governamentais e de cooperação internacional.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

16

Em alguns poucos países, a EPJA obteve avanços importantes em termos de construção de sistemas de informação, documentação, monitoramento e avaliação dos programas. Também houve, nos últimos anos, estímulo à pesquisa tanto nacional como regional. A cooperação Sul-Sul iniciou-se em muitos desses contextos, com iniciativas regionais e sub-regionais de diversas naturezas.

DESAFIOS

Não obstante, cada um dos avanços apresenta ao mesmo tempo, novos e velhos desafios. Continua sendo grande a distância entre o previsto nas leis e políticas e o efetivamente realizado, colocando-se a necessidade de uma construção mais participativa das políticas e de sua vigilância social por parte da cidadania, em geral, e por parte, especificamente, dos sujeitos da EPJA.

A cobertura dos programas governamentais e não-gove rnamentais continua sendo, em geral, limitada para as necessidades e a demanda efetiva, e continua marginalizando as populações rurais, indígenas e afrodescendentes3 , migrantes, pessoas com necessidades educativas especiais e pessoas privadas de liberdade mantendo ou aumentando a exclusão, em vez de reduzi-la.

A estratégia de integrar pessoas jovens e adultas em uma mesma categoria, não pode deixar perder de vista a especificidade e os desafios de cada grupo etário, considerando que os jovens são um grupo majoritário na região. Entretanto, a oferta educativa para certos segmentos por idade vem sendo priorizada, de maneira geral até os 35 ou 40 anos, deixando de fora a população de mais idade e negando, assim, seu direito à educação, e contrariando a própria adoção do paradigma da aprendizagem ao longo da vida.

A diversificação e descentralização da oferta educativa requerem coordenação e articulação entre os diferentes atores: governos nacionais e locais, sociedade civil, sindicatos, igrejas, empresa privada, organismos internacionais, entre outros.

A igualdade de gênero em vários países surge como u ma necessidade, que afeta particularmente as mulheres de populações indígenas e os meninos e homens do Caribe anglófono, desde a educação inicial até a universitária, e também para o campo da EPJA, exigindo políticas e estratégias de ação positiva.

Falta aproveitar melhor, com maior sensibilidade e com espírito comunitário, as novas tecnologias para fins educativos, e aprender lições práticas pr ovenientes das experiências dos países que têm desenvolvido iniciativas pioneiras neste terreno. Também é preciso avançar em termos de monitoramento e avaliação, especialmente na avaliação das aprendizagens, assim como divulgar mais e aproveitar melhor os resultados de pesquisa já existentes, tanto para alimentar a política como para melhorar a prática.

Permanecem como problemas pendentes, entre outros: o sub-financiamento crônico da educação de pessoas jovens e adultas, sua grande vulnerabilidade em termos de participação, institucionalização e continuidade de políticas e programas.

Também, é preciso prestar especial atenção à formação de educadores e educadoras, à pesquisa para a EPJA, em um marco pedagógico-didático que permita atender os contextos e a especificidade da área, apoiando-se para isso nas u niversidades.

3 Especialmente na América Latina

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

17

Do ponto de vista de sua coerência com a eqüidade, é necessário reverter as tendências atuais, dando prioridade e atenção com qualidade e pertinên cia às áreas, aos setores e grupos em desvantagem, como são nesta região as populações ru rais, migrantes, indígenas, afrodescendentes e pessoas privadas de liberdade e com necessidades educativas especiais.

II. ESTRATÉGIAS E RECOMENDAÇÕES

Reconhecer que a realização plena do direito humano à educação de pessoas jovens e adultas está condicionada à implementação de políticas de s uperação das profundas desigualdades econômicas e sociais dos países e da região, torna-se imperativo em matéria de:

POLÍTICAS

1. Reconhecer a EPJA como um direito humano e cidadão que implica maior compromisso e vontade política dos governos nacionais e locais, na criação e fortalecimento de ofertas de aprendizagens de qualidade ao longo da vida, assegurando que a EPJA desenvolva políticas orientadas para o reconhecimento dos direitos à diversidade cultural, lingüística, racial, étnica, de gênero, e inclua programas que s e articulem com a formação para o trabalho digno, a cidadania ativa (DDHH) e a paz, de maneira a fortalecer e promover o empoderamento das comunidades.

2. Promover políticas e legislação que integrem a EPJA nos sistemas de educação pública e garantir sua aplicação, estimulando mudanças nas estruturas que as tornem mais flexíveis, promovam a adequação das normas com as metas e desafios, com a criação de observatórios cidadãos de acompanhamento das políticas e uso dos recursos.

3. Construir mecanismos de coordenação em nível nacional, que ajudem a estabelecer uma política integral para promover um trabalho intersetorial e interinstitucional, que articule as ações do Estado com a sociedade civil (movimentos sociais organizados, igrejas, sindicatos, empresários, entre outros), e possibili te uma abordagem holística, assim como o acompanhamento e o controle social.

4. Continuar buscando enfoques que fortaleçam e garantam a aprendizagem ao longo da vida, que incluam a alfabetização e a educação bási ca; o fomento à leitura e à cultura escrita para a criação de ambientes letrados, como diferentes ferramentas para a superação da desigualdade e da pobreza na região, e de construção de alternativas de desenvolvimento. Nesse sentido, a valorização da educação popular e não-formal é fundamental.

5. Elaborar políticas de formação inicial e continuada de educadores de pessoas jovens e adultas, com a participação das universidades, dos sistemas de ensino e dos movimentos sociais, para elevar a qualidade dos processos educativos e assegurar o melhoramento das condições laborais e profissionais dos educadores e funcionários.

FINANCIAMENTO

6. Recomendar percentuais mais significativos para os orçamentos nacionais de educação – pelo menos 6% do PIB – e assegurar nos mesmos recursos específicos para a EPJA – pelo menos 3% do orçamento educativo – que permitam ser executados com transparência, eficácia e eficiência.

7. Assegurar recursos intersetoriais – nacionais e internacionais de origem pública e privada – para planos, programas e projetos da EPJA, com perspectiva de gênero e reconhecimento da diversidade, que possibilitem o desenvolvimento de políticas de ação positiva e o financiamento de estudos que demonstrem o custo social e econômico de manter amplos setores da população com baixos níveis educativos.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

18

FERRAMENTAS

8. Desenvolver políticas de pesquisa e sistematização de experiências educativas, promover a divulgação do conhecimento, de documentação e circulação das práticas relevantes da EPJA. Fortalecer as redes latino-americanas e caribenhas de pesquisa em EPJA.

9. Desenvolver um sistema de avaliação, informação, registro e monitoramento com parâmetros internacionais, que possibilitem a formu lação de políticas a partir da avaliação dos processos, sistemas e métodos, que assegurem a certificação, validação e homologação dos conhecimentos e habilidades.

10. Promover de forma intersetorial e interinstitucional o desenho e a elaboração de material escrito na língua materna que reflita a diversidade cultural dos povos.

INCLUSÃO

11. Desenhar e implementar políticas educativas que favoreçam a inclusão, com eqüidade de gênero e qualidade que contemplem, com enfoque inte rcultural, as diferentes especificidades de todos os grupos populacionais dos países da região: indígenas, afrodescendentes, migrantes, populações rurais, pessoas privadas de liberdade e pessoas com necessidades educativas especiais.

PARTICIPAÇÃO

12. Fomentar maior participação, em especial dos sujeitos da EPJA, e cooperação entre a sociedade civil, os setores privados e os diferentes órgãos do Estado, mediante a promoção e fortalecimento da modalidade da cooperação horizontal entre os países, e reforçar a cooperação internacional a favor da EPJA.

13. Propor que a UNESCO assuma papel relevante e central para a garantia do direito à educação e, em particular, coordenar as metas estabelecidas nas conferências internacionais e monitorar seus resultados.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

19

Desejos e desafios de pessoas da terceira idade

no processo de escolarização1

Isamara Grazielle Martins Coura2

Resumo: O artigo é um recorte feito em relação aos

resultados de uma pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da

UFMG, objetivando investigar que expectativas e

motivações que levam as pessoas da terceira idade a

retornar às salas de aula. Através dos relatos dos educandos

percebeu-se que estudar, na maioria das vezes, fazia parte

de um sonho, mas que concretizar este desejo, exigia

contornar desafios. Percebeu-se ainda que o ato de

escolarizar-se promove melhorias na qualidade de vida

destes sujeitos.

Palavras-Chave: Terceira Idade – Educação de Jovens e

Adultos – desejos e desafios frente à escolarização

Introduzindo o tema

O presente trabalho trata-se de alguns

dados obtidos através de uma pesquisa de

mestrado intitulada A Terceira Idade na

Educação de Jovens e Adultos: Expectativas e

Motivações. A referida investigação de caráter

qualitativo, que para ser realizada teve como

critérios para escolha dos sujeitos pesquisados a

idade – ter mais de 60 anos e estar em diferentes

tempos de escolarização na Educação de Jovens e

Adultos (EJA). Sendo assim, a pesquisa foi

1 Este artigo é uma versão do trabalho apresentado e publicado nos anais da 31ª Reunião anual da ANPED realizada em outubro de 2008. 2 Graduada em História pela UFMG, mestre em Educação pela UFMG e professora da Faculdade Pitágoras.

realizada com sete educandos3, sendo três

homens e quatro mulheres, com idades entre 60 e

81 anos no período da realização das entrevistas.

Dentre estes, dois já se encontravam no Projeto

de Ensino Médio de Jovens e Adultos (PEMJA),

e os demais freqüentavam diferentes períodos do

curso no Projeto de Ensino Fundamental de

Jovens e Adultos - Segundo Segmento (PROEF

II), ambos os projetos fazem parte do programa

de educação básica de jovens e adultos da

UFMG.

Através dos relatos dos educandos, foi

possível perceber os desafios encontrados e os

desejos existentes em seu cotidiano para

continuarem seu processo de escolarização nesta

etapa da vida. Ao contarem suas trajetórias,

relatando os sonhos, as expectativas, os

obstáculos e as alegrias vividas neste retorno à

vida escolar, foi possível perceber o que a escola

representa para esses sujeitos e ainda, apontar

algumas melhorias na qualidade de vida dessas

pessoas a partir da volta aos estudos.

Na terceira idade o momento de estudar

Os sujeitos pesquisados apresentam

histórias similares. Vieram de famílias humildes e

numerosas, em que trabalhar para “ajudar em

casa” era uma necessidade vivenciada desde

muito jovens. Soma-se a este fato a falta de

escolas públicas para que pudessem estudar

quando se encontravam na chamada “idade

regular”. Sendo assim, apesar do desejo de

escolarizar-se ter perpassado toda a vida dessas

3 Os nomes aqui apresentados são todos fictícios.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

20

pessoas, este só pode ser concretizado ao

chegarem à terceira idade.

Elvira afirma que, com a morte do pai, ela

e os irmãos tiveram que trabalhar. Já Perpétua

conta que aos quatorze anos trabalhava em uma

fábrica de tecidos em Itabirito. A vida de

trabalho para Isabel e seus irmãos também

começou cedo, uma vez que os pais adoeceram e

ficaram inválidos tornando-se, assim, o trabalho

dos filhos fundamental para a manutenção de

uma renda familiar. Claudina, apesar de em seu

relato não dizer ter “saído para trabalhar”, e

assim, auxiliar no sustento da casa, conta que, por

ser a única menina de um total de seis irmãos, era

quem ajudava a mãe nas tarefas domésticas.

Para os homens a questão do trabalho

também se mostrou presente muito cedo. Ivan

passou por dificuldades financeiras, era órfão de

pai e mãe e vivia com seus irmãos, tendo todos

que trabalhar para prover seu próprio sustento.

Quanto à falta dos pais em relação à interrupção

de sua escolarização enquanto criança, ele não

aponta apenas a questão do trabalho como único

responsável, mas afirma também que faltou quem

lhe orientasse sobre a importância de se estudar

naquela época: Eu não tinha quem me orientasse,

né? Era órfão de pai e mãe e a gente vivia com os

irmãos com muita dificuldade, a gente tinha

mesmo era que trabalhar.

Raimundo, em sua entrevista, relata que

foi criado por uma madrinha após a morte de sua

mãe e que, por serem pessoas criadas na roça,

não só não era incentivado por ela a estudar como

também era criticado quando demonstrava seu

interesse em freqüentar as salas de aula.

Comumente sua vontade de sair da roça e ir para

cidade em busca de uma escola era interpretada

por sua madrinha como uma estratégia para fugir

do trabalho.

Além da falta de escolas públicas gratuitas

para que pudessem estudar, e de terem que

enfrentar as jornadas de trabalho precocemente, a

relação da família com o significado do saber

escolar foi outro fator relevante destacado por

muitos dos entrevistados que os levaram a deixar

ou ficar longe da escola.

O desejo pela escolarização esteve

presente durante a vida desses sujeitos desde a

infância, quando não tiveram a oportunidade de

concluir seus estudos em “idade regular”, até

chegarem à Terceira Idade. A privação que

sofreram, seja por terem que sair para trabalhar

ainda muito jovens, ou por falta de escolas

públicas, levou-os a uma condição de excluídos.

Sobre a exclusão Martins (1997) define:

A exclusão é apenas um momento da percepção que cada um e todos podem ter daquilo que concretamente se traduz em privação: privação de emprego, privação de bem-estar, privação de direito, privação de liberdade, privação de esperança. (MARTINS,1997, p. 18, grifos do autor)

A exclusão, primeiramente de um direito,

levou esses sujeitos a serem excluídos em

diversas outras situações vivenciadas como, por

exemplo, de uma melhor oportunidade de

emprego, de uma maior e mais efetiva

participação social, de conhecer de forma mais

ampla seus direitos como cidadãos e lutar por

eles. Foram privados até mesmo de, muitas vezes,

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

21

poder sonhar com dias melhores e de usufruir de

uma melhor qualidade de vida.

Com o passar do tempo, o desejo pela

escolarização se mantinha e com ele os

enfrentamentos do cotidiano que o tornava

distante. Cresceram, casaram e as obrigações com

o trabalho e a família continuavam. O desejo de

completar sua escolarização só pôde ser realizado

na Terceira Idade. Vários fatores contribuíram

para que isto fosse possível nesta fase da vida.

Quanto à questão econômica essas

pessoas já não pagam passagens para freqüentar

uma escola. No que se refere à questão política e

à oferta de vagas, têm seu direito à educação

garantido por leis federais. A Terceira Idade vem

lhes permitindo buscar a escolarização, uma vez

que a maioria desses sujeitos já se encontra

aposentada e suas famílias já “estão criadas”. É

isso o que Elvira aponta: eu resolvi voltar a

estudar em 2002. Porque os meninos já não

precisavam tanto de mim, meus netos, né. E eu

tinha parte da tarde disponível.

Entre receios e sonhos

Apesar dos fatores apontados acima, os

quais propiciam estes sujeitos a freqüentar uma

escola na Terceira Idade, há também, por estar

nesta fase da vida, um certo receio do que está

por vir. Ao envelhecerem, muitas pessoas

chegam a acreditar que realizar seus sonhos não é

mais possível, que o tempo que têm pela frente

não seria suficiente para concretizar seus desejos.

A questão da idade foi, sem dúvida, uma

grande fonte de preocupação ao pensarem em

voltar a estudar. Perpétua, por exemplo, ao ser

questionada sobre como viu a possibilidade de

voltar a estudar, conta que, como primeira reação,

acreditou que poderia nem ser aceita na escola

devido ao preconceito contra os idosos: Mas eu já

estou velha, eles não vão me aceitar, e mesmo

depois de chegar à escola a preocupação com a

idade ainda existia:

Eu achava, no inicio, eu achava assim: Nossa! Eu no meio dessa turma toda, eu sou bem mais velha. Tinha hora que eu ficava meia sem saber, falei: “Gente, que bobagem minha, eu sou nova igual eles. Pronto! Tirei aquele negócio de falar que sou mais velha do que eles, sou igual eles. (Perpétua)

Perpétua demonstra em seu relato mais do

que a preocupação quanto a sua capacidade de

realizar as atividades. Estando em boas condições

físicas e mentais questionou a sua ida à escola por

causa do preconceito social contra os idosos. Não

se questionou se estaria apta a freqüentar o curso

por ter que aprender coisas novas ou por ter que

se locomover todos os dias até a escola à noite.

Não eram questões referentes à suas limitações

que a preocupavam, mas se seria aceita, como

idosa, em um local “destinado” socialmente aos

jovens.

A fala de Perpétua leva-nos a refletir

sobre a necessidade de se repensar qual é o lugar

do idoso na sociedade em que vivemos. Uma

sociedade que vê não apenas nos dados

estatísticos, mas também no dia a dia, nas ruas,

praças, bancos e nos demais locais públicos o

aumento da população idosa e, entretanto, ainda

os trata com certo preconceito, limitando suas

possibilidades de viver bem. É verdade que

políticas públicas que assegurem direitos aos

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

22

idosos vêm sendo criadas, como é o caso do

Estatuto do Idoso de 2003. Mas não basta apenas

que sejam criadas, é necessário que as garantias

estabelecidas nas leis sejam cumpridas.

Mais do que isso, é fundamental uma

mudança de pensamento e de postura de todos

nós em relação aos papéis sociais dos idosos. Não

basta garantir a eles acesso a lugares como

teatros, cinemas, transportes gratuitos e educação.

É importante garantir também respeito para que

eles possam usufruir de tais benefícios. As

pessoas, de modo geral, precisam perceber essas

pessoas como seres sociais que são. Sujeitos que

precisam de lazer, de cultura e de se relacionar

socialmente como qualquer outro ser humano em

qualquer outra etapa da vida. Precisam perceber

que as pessoas idosas fazem e vão, cada vez mais,

fazer parte da sociedade.

Mesmo após terem passado por diversos

desafios, os sujeitos pesquisados souberam

contorná-los para chegar a uma escola. O que

demonstram é que têm consciência de suas

idades, dos seus limites, mas que pretendem

aproveitar cada ano de vida realizando seus

projetos e, assim, buscar uma velhice mais feliz.

Isabel, em seu relato, retrata bem esse momento:

Mas sempre lá dentro de mim eu tinha um sonho de estudar, sabe? E esse sonho foi passando, né? Até que um dia eu acreditei que tinha morrido esse sonho, mas só que adormece. E quando eu me vi com setenta anos já e pensei assim: Puxa vida! Eu pensava que já estava muito velha. Engraçado, eu já estou com setenta anos, num estudei, num morri e o que eu estou fazendo aqui? Vou estudar. Voltei a estudar. (Isabel)

Percebe-se, através da fala de Isabel que,

estar na Terceira Idade, não tendo mais que

cumprir um horário no emprego ou se preocupar

com a criação dos filhos, podendo contar com

transporte gratuito para se chegar a uma escola de

EJA, também gratuita, não é o suficiente para

levar essas pessoas a freqüentarem um banco

escolar. É preciso um elemento mais forte, que

venha do interior de cada uma delas. É preciso

sonhar, desejar esta escolarização. Em relação à

importância dos sonhos Freire (2001) afirma:

Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma boa conotação da forma histórico-social de estar no mundo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se... não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança... (FREIRE, 2001, p. 13)

Sonhar é, portanto, um importante

constitutivo da natureza humana que nos

impulsiona a viver. Para todos os seres humanos,

em qualquer etapa da vida em que se encontrem,

a motivação e os sonhos são necessários. Para as

pessoas da Terceira Idade não é diferente, muito

pelo contrário, é um fator importante para

garantir a vontade de viver. Foi a partir dos

sonhos, nutridos durante toda uma vida, que esses

sujeitos buscaram a escolarização, tendo nela um

objetivo de vida.

A escola significava para cada um, uma

forma de completar algo que julgavam deficitário

em suas vidas. A maior parte dos entrevistados

tem como expectativa inicial de sua volta à escola

o aprendizado de conteúdos próprios de uma

instituição escolar, como é o caso de Elvira: Eu

tinha essa meta de vida. Eu quero aprender,

apesar de ter dificuldades, eu quero aprender, eu

vou aprender. Já Antônio desejava ter

explicações sobre as matérias através dos

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

23

professores, uma vez que lia livros didáticos em

casa, mas nem sempre entendia o que estava

lendo. Também foi o desejo pelo saber escolar

que levou Perpétua à escola: Oh, eu acho que é

porque eu queria tanto, tanto saber, sabe?

Já Claudina aponta outro elemento

motivador para que fosse a busca de uma escola.

Ela conta que já fazia parte das atividades de um

grupo de Terceira Idade da Faculdade de

Educação Física da UFMG, mas que ao ficar

sabendo do PROEF II, através de sua filha, viu

uma nova possibilidade de ocupar seu tempo e

exercitar sua mente. Ela afirma:

Então fui para o projeto porque ficar em casa fazendo o quê? Ficar, por exemplo, numa cadeira de balanço, aí fazendo um crochê, fazendo um tricô, cochilando, lendo um livro. Às vezes lendo, cochilando por cima do livro, né? Eu acho que eu tenho que fazer alguma coisa. Então menina, foi a melhor coisa do mundo que me aconteceu foi isso: voltar a estudar! Quando eu pensei em voltar a estudar, foi para não ficar parada porque eu acho que um carro parado enferruja, uma máquina parada enferruja. (Claudina)

As falas desses educandos sobre os

motivos que os levaram a voltar a estudar vão ao

encontro da afirmação de Dayrell (1996) sobre a

presença dos alunos jovens na escola (...)

afirmamos que todos os alunos têm, de uma

forma ou de outra, uma razão para estar na

escola, e elaboram isto de uma forma mais

ampla, ou mais restrita, no contexto de um plano

de futuro (DAYRELL, 1996, p.144). No entanto,

esse mesmo autor acredita que os projetos que

levaram essas pessoas a procurarem por uma

escolarização não são imutáveis ou permanentes:

Um outro aspecto do projeto é a sua dinamicidade, podendo ser reelaborado a cada momento. Um fator que interfere nesta dinamicidade é a faixa etária e o que ela

possibilita enquanto vivências. Essa variável remete ao amadurecimento psicológico, aos papéis socialmente construídos, ao imaginário sobre as fases da vida. (DAYRELL, 1996, p.144)

No caso da pesquisa aqui apresentada

pode-se confirmar que, de fato, os projetos

iniciais destes educandos, ao chegar à escola,

foram ampliados. Se chegaram à escola

desejando aprender, conhecer mais os conteúdos

escolares para “não morrer burro”, a o fato de

estarem na escola lhes proporcionou um

redimensionamento dos sonhos, levando-os a

acreditarem mais em si mesmos e a se permitirem

ousar mais nos seus desejos e projetos de vida na

Terceira Idade.

Muitos alunos, ao chegarem às salas de

aula de EJA, após um bom tempo fora da escola,

sentem-se inseguros. Imaginam que não terão

condições de acompanhar o aprendizado da

turma. Isso também ocorreu com os entrevistados

da pesquisa. Elvira, por exemplo, afirma que

tinha medo de não conseguir: Era um dos meus

sonhos, mas eu tinha medo de não conseguir.

No entanto, com o passar dos dias, foram

percebendo-se capazes e, a partir de então,

puderam ampliar suas metas em relação aos seus

estudos. Se as expectativas iniciais giravam em

torno de aprender e de ocupar um tempo ocioso,

agora as metas são de conclusão de ensino médio

e até mesmo de fazer uma faculdade. Santos

(2001) ao escrever sobre o desejo de continuidade

dos estudos dos educandos, em sua pesquisa

afirma:

Por outro lado, não se pode deixar de ressaltar que, provavelmente, o fato de obterem êxito, na vivência da experiência de escolarização tardia no CP (Centro

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

24

Pedagógico), tenha atuado também como um forte motivador para que a continuidade dos estudos se transformasse em desejo e necessidade. (SANTOS, 2001, p. 228)

Os sonhos que alimentaram internamente

de ter uma profissão, no primeiro momento de

chegada à escola, não eram ao menos expostos.

Eram guardados somente para eles, pois os viam

distantes de serem realizados. Ao perceberem seu

desempenho no ensino fundamental, foram

acreditando mais que seria possível chegar à

concretização de seus ideais. No relato de Perpétua

pode-se notar que os objetivos educacionais vão se

ampliando. Após ter feito a viagem para a Europa

desejava ir para escola aprender mais. Agora já vê o

ensino médio como uma realidade e a faculdade

como uma possibilidade. Acredita que apenas

poderá ter como empecilho questões relacionadas

ao financeiro:

Eu vou para o ensino médio que é o PEMJA, né? E se eu tiver oportunidade, vou fazer pedagogia, sabe? Isso se eu conseguir lá na escola. Porque assim, condições financeiras de pagar eu tenho certeza que eu não tenho. (Perpétua)

Para Raimundo, a meta agora é concluir o

ensino médio. Acredita em si, mas revela ter na sua

idade um possível problema para concretizar este

objetivo:

... pelo menos a oitava série, o segundo grau eu quero fazer sim. Depois, terminando a oitava série, né, se Deus quiser, eu quero fazer o segundo. Agora, se Deus quiser, o ano que vem eu vou terminar a oitava, né? Por um lado, se eu não morrer muito depressa, né? Porque setenta anos você espera... igual o Raul Seixas, você fica de boca aberta esperando a morte chegar. (Raimundo)

A questão da idade não preocupou apenas

Raimundo. Claudina também se refere à sua

idade como um elemento que poderia limitar a

conclusão de seus estudos: Tem hora que eu fico

pensando assim: gente, vai ser com oitenta e três

anos que eu vou me formar. Será que eu chego

lá? Por mais que saiba que ter seus mais de

oitenta anos de vida poderia reduzir suas chances

de se formar, ela não parou. Tem consciência da

sua condição etária, mas não deixa de estudar por

isso:

Meu tempo está muito curto, porque eu se eu pudesse ter uma formação mais cedo seria melhor para mim. Por quê? Não é para eu chegar a lugar nenhum não. É para eu completar aquilo que eu sempre sonhei. Realizar aquilo que eu sempre sonhei que foi estudar, né?(...) Menina, eles me perguntam: “Dona Claudina, a senhora vai continuar?” Sabe o que eu falo? Ainda que esteja de bengalinha eu chego lá. Assim, eu falo porque eu tenho que dar um incentivo para os outros, né? (Claudina)

Em suas reflexões acerca da velhice

Bobbio (1997) afirma: enquanto o ritmo da vida

do velho fica cada vez mais lento, o tempo que

tem pela frente fica dia a dia mais curto

(BOBBIO,1997, p.49). Apesar da consciência de

ter seu tempo diminuído em função da idade,

estes sujeitos têm procurado viver suas vidas sem

deixar que tal fato se torne um empecilho na

realização de seus projetos. O que percebem é

que procuram trilhar seus caminhos, deixando

que o destino se encarregue de determinar se

atingirão ou não os objetivos almejados. É isto

que demonstra o relato abaixo:

Quando acabar o PEMJA? Aí vem o vestibular, né? Eu não sei... Nós estávamos até discutindo isso aqui. Eu gosto muito de geografia, sabe? Eu não tenho expectativa assim... perspectiva assim... vamos ver...eu estou estudando. Vamos ver até onde vai dar para ir. (Ivan)

A partir de suas expectativas iniciais eles

têm ampliado suas metas, gerando novos desejos,

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

25

dando cada vez mais sentido a suas vidas,

proporcionando-lhes novas motivações para

continuar lutando por seus ideais. A atitude aqui

apresentada desses educandos vai ao encontro do

que afirma Simone de Beauvoir (1990) quando

esta diz que é necessário buscar objetivos que

dêem sentido à vida para que a velhice não se

torne um fardo.

No entanto, apesar da vida escolar estar

lhes oferecendo tais benefícios, continuar os

estudos, para eles, não é uma tarefa simples. É

necessário saber contornar diversos problemas

que vão surgindo ao vivenciarem a experiência

escolar que tanto desejaram.

No tópico seguinte trato das experiências

vividas no dia a dia da escola por esses

educandos, levando em consideração as alegrias e

as dificuldades apresentadas.

A realidade e os enfretamentos na volta à escola

O desejo pela escolarização, que tiveram

desde criança, hoje se torna uma realidade para

essas pessoas da terceira idade aqui apresentadas.

Enxergam como uma grande oportunidade o fato

de poderem freqüentar a escola, uma vez que

foram privados do acesso a uma instituição

escolar por muitos anos ao longo de suas vidas. É

isso o que revelam as palavras de Raimundo:

Eu nunca pensei assim... de ter essa chance de estudar principalmente na universidade, né? Porque eu sempre levava os filhos dos meus chefes pra fazer vestibular. Não é o meu caso, porque vestibular eu acho que não vou fazer nunca. Mas eu sempre falava assim: “Engraçado, eu nunca tive oportunidade de estudar assim”, mas hoje graças a Deus eu me sinto feliz de estar lá.

Porque eu não tive oportunidade, né? Então eu acho que o estudo é a melhor coisa. (Raimundo)

No entanto, ter acesso a uma escola

púbica para que possam concluir seus estudos não

é o suficiente para garantir que esses sujeitos

permaneçam nela. Ter o direito de freqüentar uma

escola pública e gratuita, de qualidade, é o

primeiro dentre outros fatores que podem

promover, efetivamente, a escolarização destes

educandos, podendo proporcionar-lhes uma

forma de sair do lugar de exclusão a que foram

pré-destinados por tantos anos. Sobre o direito

desses alunos em relação à educação escolar,

Giovanetti (2006) ressalta:

Este direito é aqui entendido não apenas como o do acesso das camadas populares à escola, mas também como propiciador de sua permanência em uma escola que proporcione um processo educativo marcado por sua inclusão efetiva; enfim, o direito a uma educação de qualidade, por parte daqueles excluídos. (GIOVANETTI, 2006, p. 246)

O cotidiano da população brasileira de

camada popular exige que tenham que viver

contornando obstáculos. No caso da Terceira

Idade, os valores pagos pelas aposentadorias são

defasados e, no entanto, em grande parte, são eles

que colaboram com o sustento e a organização

familiar. As dificuldades com a família e a parte

financeira somam-se à questão da saúde. Nesta

fase da vida, nem sempre esta se encontra em sua

melhor forma. Portanto, garantir o direito de

freqüentar uma escola é, para eles, apenas o

primeiro passo rumo à conclusão de seus estudos.

As escolhas e renúncias feitas a favor da

escolarização são muitas e os enfrentamentos

para que isso se concretize são diários.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

26

No que toca à família, freqüentar a escola

noturna acaba por restringir o tempo destinado ao

convívio familiar. Isabel, por exemplo, conta que

com a escola, o momento de encontro familiar

ocorre nos fins de semana:

E pretendo continuar estudar, sabe? Mas talvez eu estava pensando seriamente... em arrumar um curso a tarde.(...) quase não estou vendo meus filhos, eu quase não tenho tempo de ver meus filhos. E depois que eu perdi uma é que eu vi o quanto é importante a gente estar sempre junto. (Isabel)

A fala de Isabel retrata bem a afirmação

de Zago (2000, p.39): para permanecer na escola

são feitos grandes sacrifícios, pois ser estudante

não é um ofício que possa ser exercido sem ônus.

Além da questão da família, Isabel ainda se refere

a um outro desafio diário para chegar à escola: a

distância entre sua casa e o ponto de ônibus, para

ir à aula, lhe exige uma caminhada de dez

quarteirões. Entretanto, ela não reclama. Vê esse

desafio como uma forma de realizar um exercício

físico. Certamente é preciso uma força de vontade

muito grande para reverter essa distância

percorrida em algo que ela aponta como

agradável:

Eu moro aqui, eu atravesso essa cidade para ir para UFMG. Aí veio a questão: a distancia. Eu falei: “Ah, distância,?! Para mim não vai ter distância não”. Tem. Eu ando dez quarteirões a pé todos os dias. E esses dez quarteirões para mim é uma caminhada que eu faço. Estou unindo o útil ao agradável, né? (Isabel)

Outro que aponta dificuldades para viver

seu processo escolar é Raimundo. Ele conta que

sua memória não tem lhe auxiliado no

aprendizado. Mas que continua indo às aulas

também para melhorar esse aspecto: mas também

minha cabeça tem hora que não dá não, sabe? Às

vezes eu estou estudando um negócio hoje,

amanhã eu já esqueço. Mas o que me levou a

estudar é justamente para melhorar isso.

Além da memória, outro desafio que

Raimundo, assim como Antônio, tem que superar

para escolarizar-se é a oposição de sua esposa. A

falta de apoio dos cônjuges apareceu somente na

fala dos homens. Apenas Raimundo e Antônio

revelaram essa relação conflituosa advinda da

posição contrária das esposas ao fato de voltarem

a estudar.

No entanto, Antônio e Raimundo

encontram nos ciúmes de suas respectivas

esposas a explicação para tal oposição. As

esposas tentam desmotivá-los referindo-se à

idade deles. No entanto, a força de vontade de

estudar é maior e os dois acabam levando as

críticas com certo bom humor para assim

poderem, ao mesmo tempo, manter uma boa

relação em casa e continuar os estudos.

Os enfrentamentos cotidianos apontados

pelos sujeitos como necessários para que

continuem seus estudos são de ordens diversas.

Para concretizar a realização de seu curso cada

um deles tem que saber contornar as dificuldades.

É necessário fazer escolhas e renúncias usando,

sobretudo, de muita força de vontade.

No entanto, há também as condições que

contribuem para que estes sujeitos, apesar dos

desafios que têm que contornar, continuem a

buscar por esta escolarização. De acordo com o

que pude analisar, as grandes motivações que

levam esses sujeitos a continuarem a freqüentar a

escola, apesar de algumas condições adversas,

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

27

encontram-se no fato da escola, hoje, estar

respondendo às suas expectativas. Isso pode ser

observado, por exemplo, quando destacam os

momentos preferidos na educação atual.

Os sujeitos entrevistados, ao falarem da

sua relação com a escola que atualmente

freqüentam, sempre ressaltam que raramente

faltam às aulas. Ainda que tenham que enfrentar

os desafios, ir à escola é tido por eles como uma

atividade prioritária. Até mesmo aqueles que

participam de atividades destinadas à Terceira

Idade, como exercícios físicos, como é o caso de

Claudina e Perpétua, afirmam que se um dia

tivessem que escolher entre as duas atividades

ficariam com a escola. Tais depoimentos

reforçam a idéia de que a escola vem

correspondendo às suas expectativas. A

afirmação de Carlos e Barreto (2005) aponta

nesta direção:

A disparidade entre a visão que o aluno tem do que seja a escola e uma educação que efetivamente sirva esse aluno pode gerar conflito. Não são incomuns casos até de desistência do curso. Não encontrando uma escola que corresponda às suas expectativas, o aluno se frustra e como não é uma criança que os pais levam obrigatoriamente à escola, acaba abandonando o curso. (CARLOS e BARRETO, 2005, p. 67)

Assim, levando-se em consideração que

os alunos que chegam à escola têm previamente

uma idéia do que encontrariam lá, através dos

momentos relatados por eles como os preferidos,

pode-se perceber se a escola que vêm

freqüentando corresponde ao que desejavam

encontrar. Cada educando, a partir de sua

vivência até chegar à escola, vai escolher um

determinado momento ou atividade que considera

como o que mais gosta ou que considera o

importante para sua vida. Sobre este aspecto

Maria da Conceição F. R. Fonseca (2005)

destaca:

Como grupo sociocultural, os alunos da EJA têm perspectivas e expectativas, demandas e contribuições, desafios e desejos próprios em relação à educação escolar. Em particular, nas interações que têm lugar, ocasião e estrutura oportunizada pelo contexto escolar e, mais do que isso, num contexto de retomada da vida escolar os sujeitos tendem a privilegiar os modos de relação com a escola que possam ser social e culturalmente compartilhados e, a partir desse marco sociocultural, valorizados. (FONSECA, 2005, p.325)

As expectativas iniciais da maioria dos

entrevistados giravam em torno da aprendizagem

de conteúdos considerados como próprios de uma

instituição escolar. As respostas, referentes ao

que destacam como o que mais gostam no seu

processo de escolarização, vão nessa direção.

Claudina, por exemplo, refere-se sempre às aulas

e conteúdos disciplinares, quando questionada

sobre o que mais gosta na escola:

Por exemplo, eu gosto muito de português. Não sei se desenvolvo bem o português, mas eu gosto muito de português, gosto de ciências, gosto das outras matérias. E a gente, a gente vibra muito com as notas, com as avaliações. Isso é muito bom! (Claudina)

A princípio, estes entrevistados pensaram

na escola apenas como um lugar para o

aprendizado de conteúdos. A pergunta se referia

apenas à palavra escola - Qual o momento na

escola que você mais gosta? Por quê?- não

tratava de forma mais direta sobre as aulas ou

qualquer outra atividade escolar como trabalho de

campo, festas ou o intervalo. No entanto, a maior

parte dos entrevistados referiu-se a momentos na

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

28

escola como os tempos e espaços durante as

aulas.

Destacam o aprendizado da matemática e

do português. Ao se referirem às tais disciplinas,

dão a entender que percebem que dominar bem

estes conteúdos significa dominar bem o saber

escolar. Sobre isto Carlos e Barreto (2005)

afirmam:

Sabendo porque busca a escola, o adulto elege também seu conteúdo. Espera encontrar, lá, aulas de ler, escrever e falar bem. Além é claro das operações técnicas e aritméticas. Espera obter informações de um mundo distante do seu, marcado por nomenclaturas que ele considera próprias de quem sabe das coisas. (CARLOS e BARRETO, 2005, p. 63)

Dayrell (1996) destaca os diferentes

significados atribuídos pelos educandos ao seu

processo educativo e ressalta:

Sobre o significado da escola, as respostas são variadas: o lugar de encontrar e conviver com os amigos; o lugar onde se aprende a ser “educado”; o lugar onde se aumentam os conhecimentos; o lugar onde se tira um diploma e que possibilita passar em concursos. Diferentes significados para um mesmo território, certamente irão influir no comportamento dos alunos, no cotidiano escolar, bem como nas relações que vão privilegiar. (DAYRELL, 1996, p.144)

Assim como aponta Dayrell (1996), ainda

que esteja se referindo aos jovens, pode-se notar

que cada um dos entrevistados tem suas

atividades e momentos preferidos, dando um

significado para sua permanência no ambiente

escolar. No caso dos idosos, Isabel destaca os

trabalhos de campo, tidos por ela como passeios,

como os melhores momentos da escola. Destaca,

entre outros, a ida ao Museu de Artes e Ofícios e

a visita à cidade histórica de Sabará.

Ivan também declara como um dos

momentos importantes no seu processo de

escolarização a realização de atividades em

espaços fora da escola. Conta que foi a partir de

sua inserção na escola que passou a freqüentar

museus e teatros. Espaços que, mesmo morando

em Belo Horizonte desde sua infância, não sabia

que existiam e, provavelmente, não sabia nem da

possibilidade de alguém como ele, integrante de

uma classe popular, pudesse usufruir:

Vou em museu. Eu não ia em museu. Há quanto tempo que não ia a um museu?! Agora vou sempre no museu. Na praça da estação tem um museu muito bom, né? Eu nem sabia que tinha um museu lá na estação central. Não, não ia não. Outro dia nós fomos no teatro lá na Serra da Piedade. Você vê, é coisa que eu não freqüentava eu estou freqüentando agora. (Ivan)

A escola vem permitindo a estes

educandos ampliar seus horizontes, a conhecer e

freqüentar lugares que antes não faziam parte do

seu mundo. Sobre este fato, afirma Gómez (1997,

p.46): No podemos olvidar que los grupos

sociales más desfavorecidos probablemente sólo

en la escuela peuden encontrar el espacio para

vivir y disfrutar la riqueza de la cultura

intelectual. É exatamente isso que nos revela o

relato de Ivan. Participaram de espaços que eram

de improvável acesso a quem estava numa

condição de exclusão como a que viviam antes de

retornar aos estudos.

Para Ivan o que a escola tem de melhor é a

oportunidade de proporcionar o convívio entre

pessoas diferentes: Eu acho que é o convívio com

os professores, com as pessoas diferentes, né? É

outra família da gente. A gente forma outra

família. As relações sociais que tem estabelecido,

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

29

a partir do convívio escolar, têm tanta

importância para Ivan que ele considera os

amigos da escola como parte de sua família. Vale

lembrar que Ivan não teve como intenção inicial

ir à escola para aprender determinados conteúdos,

como é o caso de alguns dos outros entrevistados.

A princípio, como já foi dito, foi para escola

apenas para acompanhar sua esposa e ocupar seu

tempo ocioso. Pode-se inferir que suas

expectativas vêm sendo correspondidas e, além

disso, vêm lhe proporcionando uma ampliação

em suas redes de amizade.

A partir da vivência de tempos e espaços

escolares estabelecendo novas relações sociais,

vários elementos da vida desses educandos têm se

modificado. Para Raimundo a convivência

estabelecida entre as pessoas através do ambiente

escolar fez com ele se tornasse uma pessoa menos

impulsiva. Consegue contornar melhor os

momentos de desavenças em casa ou em outro

ambiente social. A diversidade encontrada na

escola pode ter auxiliado nesse processo de

mudança de postura de Raimundo. Ao conviver

com pessoas diferentes, procurando respeitá-las,

foi reformulando suas atitudes ao lidar com

conflitos. Sobre esta mudança de comportamento

provocado pela escolarização, reflete Dayrell

(1996)

Vista por esse ângulo, a escola se torna um espaço de encontro entre iguais, possibilitando a convivência com a diferença, de uma forma qualitativamente distinta da família e, principalmente do trabalho. Possibilita lidar com a subjetividade, havendo oportunidade para os alunos falarem de si, trocarem idéias, sentimento. Potencialmente, permite a aprendizagem de viver em grupo, lidar com a diferença, com o conflito. (DAYRELL, 1996, p.144)

Além disso, apontam outros benefícios

trazidos pela volta à escola em suas vidas, como

por exemplo, uma percepção quanto à reativação

da memória. Afirmam ainda ter havido uma

maior integração entre os membros de suas

famílias. O fato de estarem na escola vem

aproximando-os mais de seus filhos, genros,

noras e netos, seja pelas caronas, por auxiliarem

na realização de pesquisas e atividades escolares

ou ainda por ter possibilitado aos educandos

maiores subsídios teóricos para participarem de

discussões acerca de assuntos atuais ampliando,

assim, o diálogo na família.

Poder ter acesso a novas informações e a

novos lugares, conhecer e conviver com outras

pessoas, ampliando seu campo de amizade, ter

liberdade e confiança na relação professor/aluno,

assim como aprimorar seus conhecimentos e

habilidades torna a frequência à escola uma coisa

prazerosa para os alunos. Além de terem suas

expectativas iniciais atendidas, estas vêm sendo

ampliadas após sua volta à escola. Surgem

momentos, espaços e atividades que vão lhes

dando novas alegrias e, conseqüentemente, os

motivando a estarem ali.

Os relatos analisados nessa pesquisa

demonstram que a educação vem lhes

promovendo uma ampliação de aprendizagens,

provocando mudanças em seus modos de ser, agir

e pensar. O retorno à escola tem aumentando seus

espaços de convívio social, intensificado as

relações familiares, além de promover o desejo

por aprender coisas novas e fazer novos cursos,

melhorando a auto-imagem desses sujeitos e,

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

30

conseqüentemente lhes permitindo uma maior

inserção social. Potencializou não apenas suas

capacidades relativas ao aprendizado de

conteúdos curriculares, mas também seu

potencial de relacionar-se com o mundo e fazer

parte dele ativamente.

O que se percebe, portanto, é que os

resultados apresentados vêm refutar a idéia

lançada por Darcy Ribeiro, no encerramento do

Congresso Brasileiro organizado pelo Grupo de

Estudos e Trabalhos em Alfabetização (GETA),

no ano de 1990, ao falar: Deixem os velhinhos

morrerem em paz!, quando tratava da educação

de jovens e adultos. As pessoas da Terceira Idade

desejam ter suas vidas ativas e estão em

condições de usufruir de todos os benefícios

gerados pela educação. Além de se constituir em

um direito, a educação tem se mostrado

promotora de qualidade de vida. A educação vem

promovendo para estes sujeitos uma forma de se

manterem vivos não apenas biológica, mas

também socialmente.

Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1990.

BOBBIO, Norberto. O tempo de memória: de senectute e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CARLOS, José e BARRETO, Vera. Um sonho que não serve ao sonhador. In: Construção coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos. Brasília: UNESCO, MEC, RAAAB, 2005.

COELHO, Ana Maria S.; EITERER, Carmem L. A didática na EJA: Contribuições da epistemologia de Bachelard. In: SOARES, Leôncio J. G., GIOVANETTI, M. A. G. de C. e GOMES, N.

L.(Orgs.) Diálogos na educação de jovens e adultos. Belo Horizonte:Autêntica Editora, 2006, 2ª ed.

DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In: DAYRELL, Juarez(Org.). Múltiplos olhares sobre a educação e cultura.Belo Horizonte: UFMG,1996.

FONSECA, Maria da C. dos Reis. Educação matemática de jovens e adultos – especificidades, desafios e contribuições. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

_________________________. Educação matemática e EJA. In: Construção coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos. Brasília: UNESCO, MEC, RAAAB, 2005.

FREIRE, Ana Maria. A. (Org) Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001.

GIOVANETTI, Maria A. G. de C. A formação de educadores de EJA: o legado da Educação Popular. In: SOARES, Leôncio J. G., GIOVANETTI, M. A. G. de C. e GOMES, N. L.(Orgs.) Diálogos na educação de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, 2ª ed.

GÓMEZ, Angel I. Perez. Socilización y educación en la época postmoderna. In: Ensayos de Pedagogia Crítica. Madrid: Editorial Popular, 1997.

MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus. 1997.

SANTOS, Giovania Lúcia dos. Educação ainda que tardia: A exclusão da escola e a reinserção em um programa de educação de jovens e adultos entre adultos das camadas populares. Belo Horizonte: Faculdade de Educação: UFMG, 2001. (Dissertação de Mestrado)

SIRVENT, Maria T. Poder, participacion y multiples pobrezas: la formacion del ciuda dano en un contexto de neoconservadurismo, politicas de ajuste y pobreza. Disponível em: www.crefal.edu.mx/bibliotecadigital. Acesso em 23/03/2007

ZAGO Nadir. Processos de escolarização nos meios populares: As contradições da obrigatoriedade escolar. In: NOGUEIRA, Maria Alice & ROMANELLI, Geraldo & ZAGO, Nadir. Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares.Petrópolis,R.J:Vozes,2000.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

31

O Programa Nacional de Integração da

Educação Profissional com a Educação Básica

na modalidade de Educação de Jovens e

Adultos (PROEJA) no Centro Federal de

Educação Tecnológica de Goiás (CEFET-GO):

uma análise a partir da implantação do curso

técnico integrado em serviços de alimentação

Mad´Ana Desirée Ribeiro de Castro1

Jacqueline Maria Barbosa Vitoretti2

Resumo: O presente trabalho procura explicitar como se

deu o processo de implantação do Curso Técnico Integrado

em Serviços de Alimentação e as implicações dele

decorrentes para o CEFET-GO, na unidade de Goiânia,

buscando identificar as suas características e as

manifestações internas em relação ao PROEJA, no

momento da assunção do Programa pela Instituição. Para a

realização desta análise, serão considerados: o nível de

adesão das áreas profissionais ao Programa, a construção

histórica da implantação do curso e os primeiros desafios

colocados para a consolidação do Curso e do PROEJA.

1- O PROEJA no CEFET-GO: reacendendo conflitos e estabelecendo novas perspectivas

O Programa Nacional de Integração da

Educação Profissional com a Educação Básica na

modalidade de Educação de Jovens e Adultos

(PROEJA), finalmente instituído por meio do

1 Graduada em História (licenciatura), Especialista em História do Brasil Contemporâneo e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Goiás, é professora de História do PROEJA e professora efetiva do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás - CEFET-GO. 2 Graduada em Química (licenciatura e bacharelado), possui Especialização em Ciências, Mestrado em Tecnologia, Educação Tecnológica pela Universidade Federal Tecnológica do Paraná. Coordenadora do Programa de Educação Profissional Integrada a Educação de Jovens e Adultos e Ações Inclusivas do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás e professora de Química do PROEJA.

Decreto n. 5.840, de 13 de julho de 20063, teve

pouca repercussão no interior do Centro Federal

de Educação Tecnológica de Goiás. As

justificativas para não ofertar cursos destinados a

pessoas jovens e adultas, num primeiro momento,

voltaram-se para o fato de que seria muito difícil

assumir mais uma modalidade de ensino em

função da falta de professores, da oferta de

grande quantidade, níveis e modalidades de

cursos - ainda não consolidados -, da falta de

infra-estrutura e do interesse das áreas em

oferecer cursos de pós-graduação, como indica

pesquisa realizada para identificar o perfil dos

alunos da primeira turma do PROEJA no

CEFET-GO, na unidade de Goiânia (SILVA e

OLIVEIRA, 2007).

As alegações das áreas profissionais

podem ser compreendidas como desdobramentos

das transformações ocorridas na Educação

Profissional da Rede Federal, em especial a partir

de meados da década de 1990. Tais mudanças,

ancoradas numa política educacional baseada no

ideário de Estado Mínimo, resultaram na

ampliação do número de Centros Federais de

Educação Tecnológica em substituição às Escolas

Técnicas Federais, no fim da oferta dos cursos

técnicos integrados, na drástica redução da

contratação de servidores efetivos, na

desarticulação de um tipo de educação

3 Este Decreto é originário da Portaria 2.080, de 13 de junho de 2005, e do Decreto que a substituiu, o de n. 5.478, de 24 de junho de 2005. As modificações jurídicas se deram em função das impropriedades legais, da redefinição da abrangência do Programa, antes restrito à Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, bem como do Ensino Médio, e da sua ampliação para outros sistemas de ensino e outros níveis da Educação Básica.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

32

profissional que não correspondia mais às

demandas do mercado; o que forçou a construção

de itinerários formativos fundados nos princípios

da flexibilização e da fragmentação do processo

de aprendizagem, expressos na adoção de

arranjos curriculares no formato de módulos

(FILHO, 2003).

Percebe-se, contudo, que as justificativas

acabaram por se constituir em elemento

construtor de uma nova orientação para a

educação profissional no interior do CEFET-GO:

a de se firmar enquanto instituição de ensino

superior, ofertando cursos de graduação e pós-

graduação4. Nesta perspectiva, torna-se relevante

o fato de que desde 2004, quando já havia a

possibilidade legal de se voltar a ofertar cursos

técnicos integrados – historicamente definidores

da identidade da educação ofertada pela Rede

Federal -, somente em 2008 a Instituição passou a

oferecê-los de maneira mais significativa e, até o

momento, apenas o Curso Técnico Integrado em

Serviços de Alimentação destina-se a pessoas

jovens e adultas. Há ainda uma forte presença de

cursos técnicos seqüenciais, ofertados para quem

já terminou o Ensino Médio e uma tendência à

ampliação dos cursos de bacharelado (CEFET-

GO, 2007).

A configuração de um contexto interno

profundamente dividido em relação às

4 Foram criados, de uma única vez, 13 cursos superiores de tecnologia logo após a transformação da Escola Técnica Federal de Goiás em CEFET e promoveu-se a desarticulação dos cursos técnicos integrados, apesar das resistências internas ao Decreto 2.208, de 17 de abril de 1997. Entre 2.000 e 2.001 foram ofertados cursos superiores de graduação em Gestão Turística e Gestão Hoteleira, mantidos, em parte, por meio da cobrança de mensalidade e administrados pelo extinto Caixa Escolar.

concepções, princípios e funções da educação

profissional e tecnológica ressalta a vitória das

proposições políticas educacionais de âmbito

estrutural que procuraram desarticular uma

orientação educacional de cunho formativo,

assentada na integração entre conhecimentos

gerais e técnicos, e por isto, potencialmente

humanizadora e emancipatória - mesmo que de

significativa tradição histórica – assim como

rearticulá-la em outra perspectiva, cujo caráter se

fundamenta no produtivismo, na fragmentação e

no economicismo.

Mesmo o Decreto 5.154 de 23 de julho de

2004, decorrente de um outro contexto

governamental, que possibilitou a volta da oferta

da educação profissional integrada, não

conseguiu restabelecer, no interior da Instituição,

de maneira enfática, ações contrárias aos

princípios que atrelam a educação profissional e

tecnológica à lógica do mercado. Como afirma

Frigotto e Ciavatta:

A reforma da educação profissional, por ser de interesse direto do capital, talvez expresse esta regressão de forma mais emblemática, bem como um tecido cultural na área, no plano dirigente, mas não só, dominantemente conservador. Isso talvez possa nos ajudar a entender tanto a pouca produção acadêmica sobre escola unitária e politécnica quanto a acomodação silenciosa, especialmente da rede CEFET, após a revogação do Decreto 2.208/97 e a publicação do Decreto 5.154/04.(p. 49, 2006).

Tal lógica se justifica hoje por meio da

necessidade de formação trabalhadores para

ajudarem a enfrentar os desafios do crescimento

econômico5. A formação para o mercado

5 Ver, em específico, as orientações para a educação profissional e tecnológica contidas no Plano de

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

33

transformou-se em formação para o crescimento

econômico, que pode indicar a reedição de uma

“outra” idéia - mais sedutora e fetichizada - da

relação entre capital e trabalho: a que se assenta

na ausência de conflitos e oposições estruturais

entre eles, pois ambos combinam-se na promoção

de um bem comum. Nesse sentido, a construção

da qualidade da educação deve ser um

compromisso de todos6: governos, empresários e

trabalhadores7.

Em outra perspectiva, o PROEJA tem

conseguido aglutinar pessoas e projetos, no

interior da Instituição, cujos interesses vinculam-

se à promoção da educação pública, gratuita, de

qualidade acadêmica e social. Estes princípios

podem ser concretizados, na educação

profissional e tecnológica, por meio da afirmação

de uma escola unitária e politécnica, de formação

unilateral, pelo desmonte de aparatos político-

administrativos e organizacionais facilitadores de

ações de cunho privatista, pela retomada de

discussões acerca do papel social da Instituição e

da necessidade da incorporação, nos seus

Desenvolvimento da Educação (PDE) (BRASIL, 2007a.). Disponível em www.mec.gov.br. 6 Ver livreto “Compromisso Todos pela Educação: passo-a-passo”. Disponível em www.mec.gov.br. 7 Neste aspecto, ainda há de se considerar a movimentação de grupos de empresários preocupados com a educação brasileira que, neste sentido, lançaram a agenda “Compromisso Todos pela Educação”, no dia 06 de setembro de 2006, no Museu do Ipiranga, em São Paulo. O documento apresenta cinco metas para a educação: a) Todas as crianças e jovens de 4 a 17 anos deverão estar na escola; b) Toda criança de 8 anos deverá saber ler e escrever; c) Todo aluno deverá aprender o que é apropriado para a sua série; d) Todos os alunos deverão concluir o ensino fundamental e médio; e) O investimento necessário na educação básica deverá estar garantido e bem gerido. (SAVIANNI, 2007)

espaços, de setores sociais historicamente

excluídos das benesses e direitos sociais.

O PROEJA, apesar da ainda fragilidade

em relação a sua constituição enquanto política

pública apresenta-se, hoje, no CEFET-GO, como

um espaço concebido muito em função das

contribuições teórico-práticas do campo da

Educação de Jovens e Adultos e da própria

natureza histórica desta modalidade de educação8,

de reflexão e proposição de novas formas de

relações entre os sujeitos da educação e de

estruturação do trabalho pedagógico. Afirma-se,

pois, que a inserção do Programa na Instituição

tem ajudado a retomar a educação técnica

integrada9, a aguçar os sentimentos e a

compreensão sobre as características dos sujeitos

da aprendizagem, a repensar as possibilidades de

promoção curricular dos educandos, a forma

como a Instituição tem estabelecido a sua

Organização Didática e o acesso aos cursos

ofertados, dentre outras questões. O Programa

tem colocado, ainda que timidamente, discussões

sobre outros princípios e maneiras de se pensar e

realizar processos educativos.

8 Para Arroyo (p. 36), “Um ponto importante na história da EJA é de ter sido um rico campo da inovação da teoria pedagógica. O Movimento da Educação Popular e Paulo Freire não se limitaram a repensar métodos de educação-alfabetização de jovens-adultos, mas recolocaram as bases e teorias da educação e da aprendizagem. A EJA tem sido um campo de interrogação do pensamento pedagógico. O que levou a essa interrogação? Perceber a especificidades das trajetórias dos jovens-adultos”. 9 Apesar do Decreto 5.840 de 13 de julho, que institui o PROEJA garantir outras formas de articulação entre a Educação Básica e Profissional, a defesa é que a Educação de Jovens e Adultos – que consta no Projeto Pedagógico do curso implantado - na sua aproximação com a Educação Profissional se dê de maneira integrada porque é ela que potencialmente pode conduzir a formação de trabalhadores na perspectiva de uma emancipação real, prática e final (Marx, s/d).

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

34

A perspectiva de retomada de uma práxis

pedagógica da educação profissional

historicamente de qualidade – e não uma

educação pobre para os pobres -, a inserção de

outras possibilidades políticas e pedagógicas no

âmbito da educação realizada no CEFET-GO e o

envolvimento de servidores e alunos na

consolidação do PROEJA fundamentam-se nos

princípios orientadores do Programa, que

apontam para a inclusão da população que tem

pouco acesso à educação profissional, a inserção

orgânica da modalidade EJA integrada à

educação profissional nos sistemas educacionais

públicos, a ampliação do direito à educação

básica e a universalização do ensino médio, a

assunção do trabalho como princípio educativo, a

pesquisa como fundamento e para a compreensão

de que as identidades sociais e a formação do

sujeitos da aprendizagem devem ser consideradas

a partir da sua condição de trabalhador e das

questões relativas ao gênero, à etnia e à geração.

Ressalta-se, por fim, que esses princípios

pressupõem a adoção de uma concepção de

educação cuja finalidade seja a formação integral

do educando, que, assim pensada,

Contribui para a integração social do educando, o que compreende o mundo do trabalho sem resumir-se a ele, assim como compreende a continuidade de estudos. Em síntese, a oferta organizada se faz orientada a proporcionar a formação de cidadãos-profissionais capazes de compreender a realidade social, econômica, política, cultural e do mundo do trabalho, para nela inserir-se e atuar de forma ética e competente, técnica e politicamente, visando à transformação da sociedade em função dos interesses sociais e coletivos especialmente os da classe trabalhadora (BRASIL, 2007b, p.35).

Os documentos-base assinalam princípios

e concepções que indicam a necessidade de

superação da atual configuração “societal”

brasileira, profundamente desigual e excludente.

O desafio colocado é o de potencializar as

possibilidades colocadas pelo Programa em

relação à construção de uma educação libertadora

– como apontava Paulo Freire – ampliando-o de

maneira que possa garantir condições de

igualdade formativa para as pessoas jovens e

adultas, num momento em que a educação para o

mundo do trabalho tem se constituído em

fundamento para a inserção social.

Tendo como pressupostos o que acima se

expôs, é que vem se implementando no CEFET-

GO, a partir de 2006, a realização de uma série de

ações que buscam fortalecer a oferta da Educação

Básica integrada à Educação Profissional, na

modalidade de Educação de Jovens e Adultos. A

compreensão é a de que o seu fortalecimento não

se encerra em si mesmo, ou seja, a concepção, os

princípios e as finalidades do Programa,

concretizado por meio da implantação do Curso

Técnico em Serviços de Alimentação, acabam por

revelarem-se como universais, pois podem

referir-se também a outros sujeitos que, em maior

ou menor grau, de modos diversos e diferentes,

sofrem com os processos de exclusão social e

com os efeitos de uma formação incompleta, que

dificulta a ampliação da competência técnica e

política dos trabalhadores, condição importante

para a viabilização de movimentações sociais que

visem manter os direitos sociais conquistados

e/ou a serem conquistados.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

35

2. O processo e a implantação do Curso Técnico Integrado em Serviços de Alimentação: O PROEJA no CEFET-GO

Compreende-se que a explicitação da

construção histórica do curso é um processo que

visa registrar a efetivação de um projeto que se

fundamenta na perspectiva de afirmação dos

direitos sociais, particularmente relacionados à

educação, daqueles sujeitos que historicamente,

no Brasil, foram excluídos das benesses sociais -

uma revelação da história dos de “baixo”,

lembrando Thompson (1987). Visa também,

como desdobramento da própria natureza do

curso, detectar as dificuldades de criação de

possibilidades educativas que se colocam, pelo

menos num primeiro momento, na contramão dos

interesses e perspectivas dominantes dentro da

Instituição e da sociedade.

O Decreto 2.208, de abril de 1997,

enquanto vigorou, impossibilitou a oferta, aos

brasileiros e brasileiras, de uma educação com

orientação para superar a dualidade entre o

conhecimento escolar e o mundo do trabalho. Na

ebulição desse processo, diversas críticas foram

elaboradas em relação à formação de nível médio.

Várias foram as resistências e lutas pela

revogação do referido Decreto, pois entendia-se

que este não constituía o melhor caminho para a

formação dos trabalhadores desescolarizados e

desempregados do Brasil (FRIGOTTO,

CIAVATTA e RAMOS, 2005). Uma nova

regulamentação, o Decreto nº. 5.154/2004,

elaborado pelo atual governo, substituiu o

Decreto nº 2.208/1997. Por ele houve a

possibilidade de retomada do ensino técnico

integrado ao ensino médio. Na seqüência da

publicação de Decretos, seguiu-se o de nº.

5.478/2005 que regulou a criação do PROEJA

(Programa de Integração da Educação

Profissional Técnica de Nível Médio no Ensino

Médio, na Modalidade de Educação de Jovens e

Adultos). Houve uma ampliação do seu

atendimento para toda a Educação Básica, com o

Decreto nº. 5.840, de 13 de julho de 2006. A

partir daí, o PROEJA passou a ser chamado de

Programa Nacional de Integração da Educação de

Profissional com a Educação Básica, na

Modalidade de Educação de Jovens e Adultos.

Com a implantação do PROEJA, o Centro

Federal de Educação Tecnológica de Goiás –

CEFET-GO passou a oferecer um Curso Técnico

Integrado ao Ensino Médio profissionalizante

para Jovens e Adultos, um tipo de programa

ímpar no Brasil, que pode ajudar a reconfigurar10

a EJA.

A elaboração do projeto-pedagógico do

Curso Técnico Integrado em Serviços de

Alimentação na modalidade de EJA ocorreu

durante uma greve, num trabalho, em princípio

coletivo, que durou cerca de oito meses. Nesse

período, houve a participação de professoras e de

um professor da Coordenação de Turismo e

Hospitalidade, uma professora da Coordenação

de Português, uma da Coordenação de Química e

outra da Coordenação de Ciências Humanas.

10A Educação de Jovens e Adultos, no Brasil, historicamente é marcada por ações parciais, campanhas de alfabetização (MACHADO, 1997). O PROEJA aponta para a possibilidade de inserção da Educação Básica com Educação Profissional na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos nas redes de ensino nas três esferas: Municipal, Estadual e Federal.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

36

Participaram da implantação da nova proposta do

Curso educadores comprometidos com a

educação pública, gratuita e de qualidade para

todos.

Uma vez elaborado, o Projeto do Curso

foi enviado para o Conselho Diretor11 do Centro

Federal de Educação Tecnológica de Goiás.

Diversos percalços ocorreram para a

aprovação do Projeto do Curso. Foram três

reuniões com o Conselho Diretor, quando

ocorreram questionamentos em relação aos

autores citados na referência bibliográfica, à

quantidade insuficiente de pratos fundos, xícaras

e pires para ensinar os alunos a servir uma mesa,

à formação técnica do curso, e outros obstáculos.

Participaram destas reuniões as autoras do já

referido projeto.

A morosidade na aprovação do curso

implicou em um “desgaste” por parte do grupo

que elaborou o projeto, uma vez que houve

intensos debates para convencer os Conselheiros

sobre a importância da retomada do curso técnico

integrado12 e da necessidade de atender Jovens e

11 São membros do Conselho Diretor do CEFET-GO: Diretor-Geral (Presidente); Representante da Diretoria de Ensino; Representante da SETEC/MEC; Representante da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Goiás; Representante da Federação das Indústrias do Estado de Goiás; Representante da Federação do Comércio do Estado de Goiás; Representante do Corpo Docente; Representante do Corpo Técnico-administrativo; Representante do Corpo Discente e Representante dos Técnicos Egressos. 12 “O que é integrar? [...] No caso da formação integrada ou do ensino médio integrado ao ensino técnico, queremos que a educação geral se torne parte inseparável da educação profissional em todos os campos onde se dá a preparação para o trabalho: seja nos processos produtivos, seja nos processos educativos como a formação inicial, como o ensino técnico, tecnológico ou superior. Significa que buscamos enfocar o trabalho como princípio educativo, no sentido de superar a dicotomia trabalho manual/trabalho

Adultos que tiveram os seus estudos

interrompidos (existem, hoje, milhões de pessoas

com 15 anos ou mais, no Brasil, que não

cursaram a educação básica), realidade esta que

indica o grau de dificuldade que se tem no país de

se efetivarem os direitos sociais13. Isto significa,

no mínimo, que milhares de brasileiros e

brasileiras, com baixo nível de escolaridade,

enfrentam o mundo do trabalho despreparados

(BRASIL, 2007b).

Diante dos enfrentamentos ocorridos para

a implantação, dois fatos concorreram para a

baixa procura pelo curso: o processo seletivo para

o preenchimento das vagas desvinculado da

seleção de candidatos dos outros cursos e a falta

de tempo hábil para fazer a sua divulgação na

comunidade.

Os atropelos também se fizeram presentes

na elaboração do edital, pois, no geral, a entrada

dos alunos no CEFET - GO ocorre por vestibular.

Reivindicou-se que a seleção dos alunos do

PROEJA fosse por sorteio, com inscrição

gratuita. Entretanto, apesar dos questionamentos,

a inscrição foi realizada pela Internet, o que

acabou por dificultar o acesso dos candidatos ao

processo seletivo. Ocorreram problemas na hora intelectual, de incorporar a dimensão intelectual ao trabalho produtivo, de formar trabalhadores capazes de atuar como dirigentes e cidadãos”. (GRAMSCI, 1981, p.144 apud CIAVATTA, 2005, p. 84). 13 “Historicamente, nem sempre o direito à educação esteve resguardado, nem tem sido automática a assunção do direito à educação como dever de oferta pelo Estado, e em inúmeros momentos a sociedade civil assume um protagonismo social essencial na conquista de direitos. Apesar da formulação, o texto constitucional em 1988 não se prática. A forma como as políticas públicas conceituam a EJA e como vêm desenvolvendo ações como oferta pública merece atenção especialmente quando vinculam ações de educação ao utilitarismo do voto, ou defendem este último, sem precisar da primeira” (PAIVA, 2006, p.30).

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

37

de efetivar a matrícula dos alunos, em função de

uma rígida exigência de documentos, sem levar

em consideração as particularidades de um

público que não se encontra inserido nem mesmo

nas estruturas burocráticas e formais da

sociedade, e também por não se compreenderem

as especificidades do processo seletivo desse

público, mesmo elas estando explicitadas no

primeiro edital de Seleção do PROEJA14.

Nesse processo, houve ainda mudança na

composição da Coordenação de Turismo e

Hospitalidade, o que implicou na desarticulação

do trabalho que já vinha sendo desenvolvido em

relação ao curso e ao PROEJA. A reivindicação

junto à Direção passou a ser a constituição de

uma Coordenação Pedagógica que pudesse

acompanhar o processo de implantação do curso,

buscando garantir as possibilidades de efetivação

dessa nova modalidade de educação. Somente

após um ano e depois de intensas movimentações

é que se conseguiu a criação de uma Coordenação

que ficasse responsável pelo Programa no âmbito

do CEFET-GO.

O Curso Técnico Integrado em Serviços

de Alimentação na Modalidade de Educação de

Jovens e Adultos, na Área de Turismo e

Hospitalidade, implantado em agosto de 2006,

ainda sob a vigência do Decreto nº 5.478/2005,

destina-se a estudantes que tenham concluído o

Ensino Fundamental e com idade de dezessete

anos ou mais. A duração do curso é de três anos 14 Nesse momento, alguns servidores não sabiam explicar o que era esse “tal PROEJA”, conforme pesquisa sobre o Perfil dos Alunos da Primeira Turma do Curso Técnico Integrado em Serviços de Alimentação do PROEJA (SILVA e OLIVEIRA, 2007).

e ele apresenta uma carga horária de 2.130 horas.

São ofertadas trinta vagas semestrais e o acesso,

para a primeira e segunda turma, deu-se por meio

de sorteio, definido em edital (CEFET-GO,

2006).

O enfoque nos serviços de alimentação

proposto teve sustentação em pesquisa de

demanda da sociedade por profissional

qualificado na área. Levantaram-se dados da

Associação Brasileira de Bares e Restaurantes

(ABRASEL), do Sindicato de Hotéis,

Restaurantes, Bares e Similares do Estado de

Goiás (SINDHORBS), da Associação Brasileira

da Indústria de Hotéis (ABIH) e da Agência

Goiana de Turismo (AGETUR). Os dados

apontaram para a oferta da Educação Profissional

integrada ao Ensino Médio, voltada para o

público de EJA, no setor de bares e restaurantes.

Após estudos sobre o horário de saída da

maioria dos trabalhadores em bares e

restaurantes, decidiu-se que as aulas seriam

oferecidas nos turnos vespertino e noturno, de

segunda a sexta-feira, em número de 05(cinco)

por dia, com duração de 45min (quarenta e

cinco), com intervalos de 15 (quinze) minutos, e

que seriam ministradas no horário de 16h30min

às 20h30min.

O técnico em serviços de alimentação

estará capacitado a trabalhar em todos os locais

onde são servidos, comercialmente ou não,

alimentos e bebidas, como bares, restaurantes,

night-clubs, danceterias, pizzarias, lanchonetes,

padarias, churrascarias, fast-foods, escolas, meios

de hospedagens, hospitais, residências, bem como

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

38

a realizar trabalhos autônomos na área (CEFET-

GO, 2006).

Seguindo as orientações do Documento

Base (BRASIL, 2007b), os professores que se

dispuseram a elaborar o projeto de implantação

do curso optaram por formatá-lo a partir da

articulação integrada da Educação Básica de

Nível Médio com a Educação Profissional, com

matrícula única.

Dada às especificidades do Curso Técnico

Integrado em Serviços de Alimentação, tais como

seu público alvo, as orientações legais e o

convencimento de que é necessário; estruturar

uma trajetória formativa que estimule, de um

lado, o início de um rompimento do isolamento

das disciplinas e de uma aprendizagem centrada

numa visão de mundo fragmentada, e de outro,

buscar, por meio de conhecimentos das diversas

áreas, pensar, refletir e propor alternativas de

aprendizagem mais próximas da experiência dos

jovens e adultos; estabeleceram-se quatro eixos

temáticos como estratégia metodológica. Assim,

pensou-se numa matriz curricular a partir da

definição destes eixos: Trabalho, Cultura e

Alimentação; Conhecimento, Tecnologia e

Alimentação; Sujeito, Desenvolvimento e

Responsabilidade Sócio-ambiental e Serviços de

Alimentação e Mercado X Gestão e Alternativas

de Trabalho e Renda. Esta matriz curricular tem

como objetivo proporcionar um maior diálogo

entre as disciplinas e possibilitar uma formação

profissional que extrapole a aprendizagem do

saber fazer e que compreenda o mundo do

trabalho a partir das reflexões acerca das

condições de vida do trabalhador, associadas à

política e à cultura (CIAVATA, 2005).

Para a implantação dos cursos vinculados

ao PROEJA foram disponibilizados, pelo MEC,

R$ 1.100,00 (mil e cem reais) para cada vaga

aberta em edital, até o limite máximo de oitenta

vagas. O financiamento abrangia exclusivamente

a categoria de custeio, contemplando, assim,

reforma e reparos em infra-estrutura física e de

instalações, adequação de espaços físicos,

serviços de consultoria, elaboração e produção de

material pedagógico, capacitação de pessoal,

serviços técnicos especializados, aquisição de

material de consumo, e insumos para laboratórios

e unidades educativas de produção (BRASIL,

MEC/SETEC, 2005).

Avaliando os dois primeiros processos

seletivos que se deram por meio de sorteio, a não

matrícula de alunos que tiveram o direito à vaga,

a tentativa de chegar ao público de jovens e

adultos, e o perfil do egresso do curso, foi

realizada uma reunião com o coletivo de

professores e reformulou-se o processo seletivo.

Este passou a ser realizado em três etapas:

sorteio, palestra e entrevista. Processo que foi

conduzido pela Coordenação do Programa dos

Cursos Técnicos Integrados na Modalidade de

Educação de Jovens e Adultos, PROEJA/CEFET-

GO (CEFET-GO, 2007a). Ainda com

dificuldades para divulgação do curso, no terceiro

processo seletivo, em julho de 2007, o número de

candidatos não foi suficiente para completar a

turma. Isto implicou na realização de uma

chamada pública para sua formação. O processo

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

39

se deu já dentro dos novos parâmetros de seleção.

Para cinco vagas, houve a inscrição de 120

candidatos. No processo seletivo de janeiro de

2008 foram 300 candidatos inscritos para 30

vagas, ou seja, 10 candidatos por vaga; resultado

do esforço coletivo de professores do PROEJA,

maior apoio do CEFET-GO, da participação dos

alunos e professoras na divulgação do Curso nas

reuniões do Fórum Goiano de Educação de

Jovens e Adultos (EJA) e em instâncias e núcleos

de pesquisa relacionados ao PROEJA.

Nos dias 27 e 28 de junho de 2007, duas

técnicas do SETEC fizeram um levantamento de

dados em relação ao curso do PROEJA no

CEFET-GO, unidade de Goiânia. Conversou-se

com a coordenadora do Programa, a diretora de

ensino, professores e estudantes do curso e

funcionários. O relatório desta visita apresentou

os seguintes problemas: divulgação do curso;

coordenação do curso; processo seletivo; horário

do curso; aprendizado dos jovens e adultos;

capacitação do corpo docente; material didático;

infra-estrutura do curso, currículo e avaliação

(BRASIL, 2007c).

As estratégias utilizadas para superar

alguns dos problemas apontados foram:

� Confecção de cartazes grandes e pequenos

que foram distribuídos nas coordenações

do CEFET-GO, escolas do município,

igreja, sindicatos, reunião do Fórum

Goiano de EJA, reunião do Núcleo de

Pesquisa em Ensino de Ciências –

NUPEC/UFG, restaurantes próximos à

Instituição, vídeos-locadora, padarias e

em outros locais;

� Realização de reuniões ordinárias com o

coletivo de professores do curso;

� Efetivação, por meio da Coordenação do

PROEJA, de um trabalho de aproximação

junto aos alunos do curso, a existência de

um local de referência ao qual os alunos

poderiam se dirigir, a criação de um mural

para colocação de recados e móveis para a

composição do espaço da coordenação;

� Mudança do horário de funcionamento do

curso das 16h30min às 20h30min para o

horário das 18h15min às 22h15min;

� Em relação ao aprendizado dos Jovens e

Adultos, procurou-se, por meio das

reuniões, aproximar os professores,

estudar e selecionar materiais - a Coleção

Cadernos de EJA da Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade - SECAD, Projeto Integrar da

CUT e outros -, para construir no coletivo

uma linha de intervenção de forma

orgânica na construção do processo de

ensino e aprendizagem dos educandos,

questão esta que ainda é um desafio para o

coletivo de professores do curso;

� Capacitação de alguns professores do

curso que tem se dado através do

acompanhamento e participação em

pesquisas. Por ocasião da implantação do

Curso Técnico Integrado em Serviços de

Alimentação para Jovens e Adultos no

CEFET-GOIÁS, solicitou-se ajuda ao

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

40

NUPEC-UFG15 para contribuir na

elaboração do programa do curso, com as

aulas de química acompanhadas durante o

primeiro semestre por uma aluna de

iniciação científica e um aluno de

mestrado da UFG. As aulas foram

registradas em VHS e em diário de

campo. A partir dos dados coletados,

escreveu-se um artigo que permitiu

visualizar as especificidades de

aprendizagem desse significativo grupo

social, assim como as dificuldades do

professor em lidar com elas. Os resultados

desse trabalho de investigação serão

considerados na reelaboração curricular

do curso;

� Participação na elaboração e execução de

especialização destinada à capacitação de

profissionais para atuarem no PROEJA.

“A incorporação pela Instituição de uma nova

modalidade de educação, com características próprias

e de caráter inclusivo, indicou a necessidade de se

produzirem conhecimentos acerca das pessoas Jovens

e Adultas que passaram a freqüentar o curso” (SILVA

e OLIVEIRA, 2007). Nesta perspectiva, é que outras

ações vêm sendo desenvolvidas pelo coletivo de

professores do curso, a saber:

� Produção de Pesquisa sobre PROEJA: A)

Pesquisa de iniciação científica

(PIBIC16/CEFET-GO) cujo tema foi: “O

15 Núcleo de Pesquisa de Ensino em Ciências da Universidade Federal de Goiás. 16 Primeiro Programa de Iniciação Científica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás.

perfil dos alunos da primeira turma do

Programa de Educação de Jovens e

Adultos (PROEJA)”, na unidade Goiânia,

realizada por duas alunas do Curso

Superior de Tecnologia em Hotelaria; B)

Aprovação do Projeto NUPEC-UFG e

Engenharia Civil (CIEENG17/UFG), com

financiamento FINEP, cujo tema é “O

ensino de ciências para a conservação de

recursos naturais e o ambiente

construído”. O CEFET-GO entrou neste

projeto em co-execução com o Projeto “A

construção de um Biodigestor e

Biodecompositor Doméstico: uma

proposta em construção para o Curso

Técnico Integrado em Serviços de

Alimentação PROEJA – na perspectiva da

economia solidária”, a ser desenvolvido

pelos alunos da turma do quarto período.

Espera-se que o desenvolvimento do

projeto permita uma construção

interdisciplinar e trabalho com os eixos

temáticos propostos no curso, tirando as

disciplinas do isolamento e repensando o

currículo; C) Participação em projeto de

pesquisa sobre o PROEJA, com duração

de quatro anos, de 2007 a 2010; D) Outro

projeto vincula-se ao Programa

Institucional de Bolsa de Iniciação em

Desenvolvimento Tecnológico e Inovação

PIBIT/CNPq - CEFET-GO, desenvolvido

por aluna do terceiro período do Curso

17 Sigla do Projeto “O ensino de ciências para a conservação dos recursos naturais e o ambiente construído”, desenvolvido pela Escola de Engenharia Civil da Universidade Federal d Goiás juntamente com o NUPEC/UFG.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

41

Técnico Integrado em Serviços de

Alimentação, na modalidade de Educação

de Jovens e Adultos.

� Participação dos alunos do PROEJA em

encontros temáticos promovidos pelo

Fórum Goiano de EJA, nos quais foram

abordados os seguintes temas: 1) EJA e a

qualificação profissional e 2) EJA e o

Mundo do Trabalho: O que é isso?

� Por fim, a construção do Projeto

‘Incrementar o Programa de Educação de

Jovens e Adultos’ – PROEJA DO

CEFET-GO, fruto da visita da SETEC na

unidade de Goiânia. Para a execução

desse projeto houve um aporte financeiro

de R$ 250.000,00 (duzentos e cinqüenta

mil reais) provenientes da SETEC, que

tem possibilitado ofertar transporte

coletivo para todos os alunos do PROEJA.

No mês de fevereiro, eles receberam R$

36,00 cada e, nos outros meses do ano até

o final de 2008, receberão mensalmente

R$ 79,20. Foram selecionados seis

bolsistas do Curso Técnico Integrado em

Serviços de Alimentação – PROEJA –

que receberão durante o ano de 2008 R$

300,00 cada, para desenvolverem

atividades formativas relacionadas aos

seguintes projetos: ‘Construção de

Biodigestor’; ‘Construção de

Biodecompositor’; ‘Construção de Horta

de Ervas Finas’; ‘Tecnologia de

Informação e Comunicação’. Houve

ainda a aquisição de 22 computadores e

móveis (mesas e cadeiras giratórias,

armários), livros, dicionários, material

para o laboratório de química e

gastronômico, carteiras novas e mais

confortáveis para os educandos, mesas

para o refeitório, bebedouro, prateleiras

para almoxarifado, impressora a laser,

scanner, filmadora digital e máquina

fotográfica digital.

3- Considerações finais ou desafios para a consolidação do Curso Técnico Integrado em Serviços de Alimentação do CEFET-GO e do PROEJA:

Compreende-se que pensar os desafios

postos para o Curso Técnico em Serviços de

Alimentação e para o PROEJA é uma tarefa que

não se limita à afirmação de um projeto restrito a

uma Instituição e nem a uma ação governamental.

Ela amplia-se para a construção de alternativas

que buscam consolidar um tipo de sociabilidade

que se funda nas premissas da igualdade e da

justiça social, da democracia e do reconhecimento

e efetivação dos direitos sociais.

Nesse sentido, o desafio básico é

transformar o PROEJA em uma política pública,

com previsão orçamentária regular e garantidora

de ações que não se tornem reféns das

alternâncias de governo. Somente assim será

possível dar seqüência ao conjunto de iniciativas

que compuseram o lançamento do Programa –

detalhadas no item 2 do presente trabalho -,

constituindo-se em um corpo de ações integradas

em nível nacional, a partir da articulação das

diversas redes de ensino e lócus formativo,

capazes de fomentar novos parâmetros e práticas

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

42

educacionais, com o objetivo de fortalecer e

ampliar a educação pública, gratuita, de qualidade

acadêmica e social para todos.

Outra proposição é a de que se consolide

uma sociabilidade fundamentada em relações

democráticas e no trabalho coletivo, dentro e fora

dos espaços formativos. De um lado, percebe-se

que é somente por meio deste tipo de

sociabilidade que se pode estabelecer a

construção dos princípios e fundamentos de

políticas públicas voltadas para a democratização

do acesso e permanência dos sujeitos cujos

direitos foram historicamente negados. Por outro,

sabe-se que as relações sociais estabelecidas

nestes parâmetros pressupõem a efetivação da

gestão democrática, enquanto promotora de

instrumentos de participação e de reafirmação de

uma educação popular, no interior dos espaços

formativos, única via possível para construir um

ambiente em que os sujeitos da aprendizagem

possam ser percebidos em suas especificidades e

universalidades, por meio do diálogo e das suas

interações, entendendo que somos sociais de

ponta a ponta (BAKHTIN, 1999). Diante disso, é

primordial a construção de metodologia

apropriada para o desenvolvimento de processos

de aprendizagem para pessoas Jovens e Adultas.

Há de se pensar também que, do ponto de

vista formativo, é preciso compreender o trabalho

como fundamento das relações sociais e, de

forma extensiva, como princípio educativo. Nesse

caso, a proposição é de que a “educação geral

seja parte inseparável da educação profissional

em todos os campos onde se dá a preparação para

o trabalho” (CIAVATTA, 2005, p.84). Pensar o

itinerário educativo de pessoas Jovens e Adultas,

nesta perspectiva, poderá ampliar as

possibilidades de se formar, de maneira mais

completa e reveladora da sua posição social,

trabalhadores-cidadãos cuja competência técnica

e política se revelem mais substantiva quanto às

questões relativas ao mundo do trabalho e as

decisões que dele se acercam.

4- Referências biblbiográficas

ARROYO, M. G. Educação de Jovens e Adultos: um campo de direitos e responsabilidade pública. In: Diálogos na Educação de Jovens e Adultos. SOARES, L. GIOVANETTI, M. A., GOMES, N. L. (orgs). Belo Horizonte, Autêntica, 2005.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.

BRASIL. Congresso Nacional. Decreto nº 2.208, de 17 de abril de 1997.

_____. Congresso Nacional. Decreto nº 5.154, de 25 de julho de 2004.

_____. Ministério da Educação. Portaria nº 2.080, de 13 de junho de 2005.

_____. Congresso Nacional. Decreto nº 5.478, de 24 de junho de 2005.

_____. Congresso Nacional. Decreto nº 5.840, de 13 de julho de 2006.

BRASIL. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Tecnológica e Profissional. Ofício-Circular nº 061/2005 aos Dirigentes de Instituições da Rede Federal de Educação Tecnológica e Profissional. Assunto: repasse de recursos para a implantação do PROEJA. Brasília, 26 de outubro de 2005.

_____. Ministério da Educação. Plano de Desenvolvimento da Educação: Razões, princípios e programas. Brasília, 24 de abril de 2007a.

_____. Ministério da Educação. Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

43

Modalidade de Jovens e Adultos – Documento Base, Brasília, 2007b.

_____. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Relatório Visita PROEJA SETEC, CEFET – GO, Goiânia, de 27 e 28 de junho de 2007c.

Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás (CEFET-GO). Projeto de Implantação do Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrado em Serviços de Alimentação na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Goiânia, CEFET-GO, 2006.

_____. Edital n.020, de setembro de 2007.

_____. Portaria nº 234. Institui no âmbito do CEFET-GO a Coordenação do Programa dos Cursos Técnicos Integrados na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, PROEJA/CEFET-GO, Goiânia, 11 de julho de 2007a.

CIAVATTA. M. A formação integrada: a escola e o trabalho como lugares de memória e de identidade. In: FRIGOTTO, G., CIAVATTA, M., RAMOS, (orgs.). Ensino Médio Integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

FILHO, D.L. A desescolarização da escola: impactos da reforma da educação profissional (período 1995-2002). Curitiba, Torre de Papel, 2003.

FRIGOTTO, G. Anos 80 e 90: a relação entre o estrutural e o conjuntural e as políticas de educação tecnológica e profissional. In: A formação do cidadão produtivo: a cultura de mercado no ensino médio técnico. FRIGOTTO, G., CIAVATTA, M. (orgs). Brasília, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006.

MACHADO, M. M. Política Educacional para Jovens e Adultos: a experiência do projeto AJA (93/96) na SME/Go. Dissertação de Mestrado, FE/UFGo/1997.

MARX. K. A questão judaica. In: MARX, K. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Ed. 70, s/d.

PAIVA, J. Histórico da EJA no Brasil: descontinuidades e políticas públicas insuficientes. In: EJA: formação técnica integrada ao ensino médio. Brasília:

MEC/SED/Salto para o Futuro/TV Escola, Boletim 16, Setembro 2006.

SAVIANNI. D. O Plano de Desenvolvimento da Educação: análise do projeto MEC. 2007. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

SILVA. Z. C., OLIVEIRA, L. C. D. O Perfil dos Alunos da Primeira Turma do PROEJA do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás, da unidade de Goiânia. Relatório Final de Pesquisa. PIBIC, CEFET-Go, 2007.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

44

Formação de Educadores de Jovens e Adultos:

saberes na proposição curricular

Rosa Aparecida Pinheiro1

Resumo: Este trabalho apresenta a investigação realizada

em nossa tese de doutoramento, em que nos reportamos

aos elementos constituintes de uma proposta curricular

para formação de educadores de jovens e adultos, no que

concerne à relação entre os saberes acadêmicos e os

saberes da experiência. Nossa atuação como formadores

educacionais se deu junto a um grupo de alfabetizadores

egressos das comunidades periféricas da cidade do Natal –

RN, onde se concentram migrantes que se estabelecem na

zona urbana em busca de trabalho.

A formação dos alfabetizadores de

educadores de jovens e adultos, das comunidades

periféricas da cidade do Natal – RN, ocorre de

forma diferenciada e descontínua, com cursos de

preparação em instituições responsáveis por

programas de alfabetização de adultos como as

Universidades, SESI e órgãos governamentais.

Apresenta-se, portanto, um grupo eclético, que

tem em comum as ações comunitárias e um saber

experiencial daí advindo e acumulado. Essa

formação descontínua, que inclui o

reconhecimento da experiência, propicia também

a reflexividade crítica sobre as práticas

1 Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos, possui Especialização em Avaliação - Cátedra UNESCO de Educação à Distância/Universidade de Brasília, Mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba e Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É professora assistente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

educativas, pois a formação não se constrói por

acumulação, mas na reconstrução permanente de

uma identidade pessoal no processo educativo.

Ao partir dessa consideração, vivenciamos

a experiência formativa fundamentada em

subsídios teóricos, metodológicos e experienciais

com o objetivo de contribuir para a construção de

um referencial de conhecimentos necessários à

prática do alfabetizador. Objetivamos promover

um processo de ensino-aprendizagem

significativo nas salas de aula, assim como

colaborar para a formação intelectual da equipe

de formadores. A configuração de um processo

que mantenha uma continuidade de formação

implica em um desafio constante para os que

compartilham de uma proposta pedagógica

pautada na dialogicidade, na interação dos

participantes, na apropriação e construção de

conhecimentos. Nesse contexto, entendemos ser

essencial constituir um repertório de saberes

próprios ao ensino-aprendizagem, revelando e

validando o saber experiencial dos

alfabetizadores como o fundamento de sua prática

e de sua competência.

A noção de saber se exprime conforme a

época, campos disciplinares, lugares de

elaboração e perspectivas teóricas, apresentando

uma polissemia que denota a impossibilidade de

uma definição consensual. O saber diferencia-se

da crença, da ideologia ou do habitus, no sentido

empregado por Bourdieu (2001) como modelo de

ação e de pensamento interiorizado no âmbito da

vida do individuo, quer seja na família, no

trabalho, etc. Concordamos com Charlot (2000)

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

45

que a natureza do saber deve englobar

argumentos, discursos, idéias, juízos e

pensamentos que obedecem às exigências da

racionalidade. Compreendendo por saber o que,

para um determinado sujeito, é adquirido,

construído, elaborado através do estudo ou da

experiência, na formação educacional de

alfabetizadores pressupomos que a fusão entre

seu saber existente e uma nova informação resulta

em um saber diferenciado e reelaborado em

função de seus valores e linguagens específicas.

Para valorizarmos esse saber, entendendo,

como Freire (1996), a natureza formadora da

docência como a exigência ético-democrática de

respeito ao pensamento e curiosidade dos

educandos, buscamos uma forma de organização

do ensino onde a percepção da memória e dos

conhecimentos próprios do grupo de

alfabetizadores são parâmetros para processos de

ensino-aprendizagem. Na Educação de Jovens e

Adultos (EJA), como tratamos com cidadãos

trabalhadores e jovens que têm condições de

repensar criticamente sua relação com o mundo,

se acentua a percepção do campo educativo como

espaço de ação política. Com base nesse

pressuposto, ao concretizarmos nossa intervenção

não devemos negligenciar os aspectos

organizativos dessa modalidade; pois, como

enfatiza Paulo Freire, o pensar o quê das coisas, o

para que, o como, o em favor de quem são

exigências fundamentais de uma educação

democrática à altura dos desafios do nosso tempo

(FREIRE, 1997, pg. 274).

Esse exercício encontra na organização

curricular seu espaço privilegiado como

enfatizam as concepções no campo do currículo,

que o compreendem construído socialmente como

artefato e veículo cultural, como aponta Goodson

(1997). O embate cultural e ideológico se

manifesta nesse campo, em que se valida e

transforma conhecimentos, intenções político-

educativas, normas, valores e atitudes.

Entendendo esse espaço como possibilidade de

contradição e produção cultural, em nosso

trabalho de formação na área da EJA

concretizamos a elaboração curricular

subsidiando-nos pela necessidade de considerar a

apropriação, a re-significação e a produção de

conhecimentos por parte dos formadores e

alfabetizadores.

Em nossa ação educativa, no âmbito da

Universidade, para que essa prática se consolide

prescindimos de uma cultura escolar diferenciada,

uma reformulação do pensamento, como defende

Morin (2003). Esse autor aponta a resistência

pelo nosso sistema de idéias (teorias, doutrinas,

ideologias) às informações e inferências que não

nos convém ou que não podem ser assimiladas.

Mesmo que as teorias científicas aceitem a

possibilidade de serem refutadas, tendem também

a manifestar resistência.

Ao priorizarmos a relação entre os saberes

acadêmicos e experienciais, de que são portadores

os alfabetizadores comunitários, nos aportamos

em Morin (2003) ao afirmar que a racionalidade

existe em qualquer cultura em que se encontram

presentes mitos, religião e magia em diferentes

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

46

formas de manifestação e os indivíduos

conhecem, pensam e agem segundo paradigmas

neles inscritos culturalmente. O paradigma efetua

a seleção e determinação da conceitualização e

das operações lógicas, designando assim as

categorias fundamentais da inteligibilidade e

operando o controle de seu emprego.

Nossas ações são pautadas pela

racionalidade construtiva que ao elaborar teorias

coerentes verifica o caráter lógico de sua

organização, bem como a compatibilidade entre

as idéias que compõe essa teoria e a concordância

entre suas asserções. Quando se perverte em

racionalização (que se crê racional porque

constitui um sistema lógico perfeito,

fundamentado na dedução ou indução) se

transforma em doutrina que obedece a um modelo

mecanicista e determinista, em que o mundo não

é racional, mas racionalizador.

Para se desestruturar o imprinting cultural

racionalizador demanda um tempo a ser

percorrido para a introjeção de uma nova

mentalidade, principalmente no campo educativo

como no trabalho da educação de pessoas jovens

e adultas. Essa dificuldade se manifestou em

nossa atuação junto aos alfabetizadores formados

na óptica da educação infantil, pelo próprio

direcionamento da maioria dos cursos

universitários. A organização do trabalho ainda

com parâmetros da escola moderna, em que o

modelo taylorista impregna a organização

científica do trabalho educativo, cria

circunstâncias em que o alfabetizador repassa o

conteúdo de forma linear e hierarquizada em

detrimento dos modos, ritmos e necessidades

diferenciadas de aprendizagem dos alunos.

Em contraponto, na organização

curricular em uma dimensão ampliada - que não o

restringe a instituição escolar, mas o percebe

enquanto estruturante na ligação dos saberes -

buscamos entender como os formadores de

alfabetizadores na EJA pensam a articulação dos

saberes populares com o conhecimento científico

que deve ser mediado nas salas de aula. A

questão principal é o entendimento pelo

alfabetizador da razão de ser desses saberes em

relação com o ensino, como explicita Freire

(1997). Segundo esse autor, os procedimentos

metodológicos específicos para jovens e para

adultos são inadequados, pela crença errônea que

estes têm maiores dificuldades de aprendizagem,

o que acarreta o desperdício da memória de sua

cultura e do diálogo reflexivo.

Enquanto equipe de formação

preocupamo-nos como o conjunto de saberes

recuperados no refazer dos laços comunitários,

pelas manifestações existentes nas comunidades,

pode ser imbricado com o conhecimento

cientifico. Como a organização desses

conhecimentos se dá a partir de lógicas

diferenciadas, devemos compreender a forma de

dialogar com o tempo linear e parcializado da

escola em contrapondo ao tempo recursivo

comunitário. Ao priorizarmos o planejamento

curricular colaborativo, visamos o sentido de

socialização e, partindo dos valores comunitários,

repensamos situações cotidianas.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

47

Compreendemos que o processo de

formação organizado em encontros de reflexão

sobre a cultura escolarizada deve fundamentar-se

nas capacidades de contextualizar e globalizar -

intrínsecas ao ser humano. O desenvolvimento

dessas capacidades possibilita o diálogo entre os

saberes diferenciados, tendo como referência não

apenas uma racionalidade única, mas

racionalidades diversas e possíveis de

complementação com o enriquecimento de

relações.

Saberes experienciais como propulsor na ação

pedagógica

Na formação de educadores salientamos a

importância da mobilização de saberes, que o

educador utiliza na resposta às situações

concretas em sala de aula. Esses saberes

específicos que fundamentam a organização do

trabalho escolar, segundo Gauthier (1998), se

apresentam, entre outros, como o saber

disciplinar, o saber curricular, o saber

experiencial e o saber da ação pedagógica. Na

relação entre esses saberes, que se organizam no

saber curricular e se concretizam no saber da ação

pedagógica, verifica-se que é no saber disciplinar

que a lógica da ciência se manifesta nas analogias

e metáforas que o educador produz para o ensino

em suas áreas, com base no pensamento científico

em sua objetividade e generalização.

No saber curricular os educadores

selecionam e organizam saberes produzidos pelas

ciências, transformando-os num corpus que será

ensinado nos programas escolares. A questão

principal se relaciona a quais seriam os elementos

constituintes para o alfabetizador elaborar seu

programa e como a formação desse educador

trabalha esse ponto. Um elemento de forte

conotação relaciona-se ao saber experiencial

enquanto manifestação da experiência e do hábito

que estão intimamente relacionados, pressupondo

que aprender através de suas próprias

experiências significa viver um momento

particular, sendo registrado como tal em nosso

repertório de saberes. Mas o que limitaria o saber

experiencial seria exatamente o fato de que ele é

feito de pressupostos e de argumentos que não

são verificados por meio de métodos científicos

que delimita a validade de um conhecimento.

Essa relação do saber experiencial e do

saber cientifico / disciplinar se concretizará no

saber da ação pedagógica que o educador produz

com base na organização do saber curricular,

como espaço de interconexão nessa produção de

conhecimento. No processo de alfabetização de

pessoas jovens e adultas o saber experiencial do

alfabetizador torna-se primordial, em função de

ser uma clientela diferenciada no sistema de

ensino, detentor de conhecimentos profissionais e

relacionais apropriados.

Nossa dificuldade no papel de formador

originou-se em como articular esse saber com o

saber cientifico e disciplinar o qual a escola é

portadora, pois a lógica de ação impregnada na

atuação de nossos formadores encontrava-se na

estruturação de uma organização do currículo a

partir dos procedimentos científicos, o que se

invertia na concepção dos alfabetizadores que

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

48

têm acumulado o saber experiencial de sua

comunidade.

O debate sobre os saberes essenciais para

o processo educativo, e dentre eles a importância

do saber experiencial, tem suas raízes na filosofia

de Hume (1973), no século XVIII, em que a única

fonte de conhecimento é a experiência e o objeto

desta não é a ocorrência externa, mas sua

representação. Apoiando-se neste princípio,

Hume afirma que as representações ou as

impressões constituem o dado último do

conhecimento humano, o limite contra o qual o

homem se choca e no qual deve deter-se.

Retomando o debate sobre o experiencial

no pensamento contemporâneo, encontramos em

Arendt (1997) o pensar sobre as estruturas da

experiência humana, que não seriam facilmente

identificáveis e se exporiam apenas por

investigações pormenorizadas. Esta autora

enfatiza que “el pensamiento mismo nace de los

acontecimientos de la experiencia viva y debe

mantenerse vinculado a ellos como los únicos

indicadores para poder orientare”. (ARENDT,

1996, pg. 20). O saber experiencial envolveria

aspectos como a utilidade, mas em uma critica ao

filisteu que vê apenas a função de utilidade a

todos os objetos; envolveria também as normas e

regras, que devem prevalecer para estruturar o

mundo dos objetos em que nos movemos, mas

que podem, por sua vez, perder sua validade e se

voltar perigosas quando se aplicam ao próprio

mundo como produto. Referem-se também ao

gosto, que orienta como decidir não apenas que

aspecto tem o mundo, senão também quem

pertence a ele conjuntamente.

Para as condições específicas da

modalidade EJA, Lovisolo (1996) estabelece a

utilização dessas três linguagens sociais da

norma, da utilidade e do gosto, em uma síntese

integradora. Nessa síntese, a norma

corresponderia às condutas estabelecidas

socialmente formando o campo das atitudes que

referendam a ação coletiva, referindo-se a um

fundamento que pode ser negativo, como evitar

apenas uma sanção, por exemplo, ou positivo,

tendo como base a crença de respeito aos valores

comuns. Essas normas se dariam em um tempo

histórico, sendo modificadas de acordo com o

contexto social e com a moral e a ética vigente.

Quanto à utilidade, demanda

conhecimentos de natureza variada com base na

reflexão sobre verdade e utilização de um

conhecimento ou técnica como situacional e

histórico. A construção de saberes é relacional,

sendo útil apenas para determinados fins ou

objetivos e em função de seu tempo e espaço. A

linguagem da utilidade não deve ser imediatista,

pois saber perguntar e responder é mais

importante do que ter um estoque de respostas

prontas. Essa óptica é preponderante na

preparação do aluno que visa à elaboração de

competências, entendida por Perrenoud (2001)

como a capacidade de mobilizar seus saberes

adquiridos na aplicabilidade para a qualificação

social.

Na linguagem do gosto é onde

expressamos a formação de nossa personalidade,

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

49

vinculando-a a satisfação de anseios

particularizados. Sendo o gosto profundamente

individual, ao mesmo tempo em que é

compartilhado socialmente, tem a função da

construção das identidades coletivas, na

sociabilidade que se organiza pelas afinidades.

Em nossa ação educacional podemos valorizar as

linguagens da norma e da utilidade, mas o apoio

na linguagem do gosto torna-se o espaço para

acatar estas linguagens, pois é o respeito à

diversidade de alunos jovens e adultos que

referenda as práticas educativas que mobilizam

para a construção de elementos comuns no

trabalho educativo.

A associação dessas linguagens sociais,

expressas no saber experiencial com os eixos

possíveis de organização do currículo, se constrói

a partir da definição de um conceito, de um

problema geral ou particular e da temática a ser

tratada. A elaboração dos eixos temáticos, em sua

relação com os conteúdos, tem na

heterogeneidade própria das salas de EJA, em

função de faixa etária, princípios religiosos ou

opções sexuais, a busca de manifestações comuns

que possibilite a formação de valores e atitudes.

O princípio básico são os eixos estruturantes das

áreas de ensino que façam dialogar o

conhecimento global com o conhecimento local,

em uma abordagem que contemple as

experiências vivenciadas na organização

curricular.

A diversidade passa a ser considerada

ponto central para a organização do ensino,

possibilitando aos alunos a interação das

estratégias de raciocínio, padrões de

comportamento e aquisição de saber. Nessa

perspectiva, o foco central de nosso processo de

formação do alfabetizador foi o de exercitar sua

autonomia e criatividade para novas

possibilidades de respostas, em momentos

diferenciados e com um tempo próprio de

raciocinar e relacionar saberes, mesmo que de

forma preliminar. O alfabetizador, como

mediador, tem a possibilidade de construir algo

em comum, não como padrão institucionalizado,

mas como reconstrução em sua prática cotidiana.

A ação reflexiva na elaboração curricular da

EJA

O campo dessa pesquisa se inseriu no

Programa de Alfabetização Geração Cidadã,

vinculado como projeto de Extensão da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), em parceria com a Prefeitura Municipal

da cidade do Natal (RN) e o Programa Brasil

Alfabetizado (MEC). A equipe de formação,

como campo de investigação, constituiu-se por

formadoras que desenvolvem trabalhos na área

com uma prática e experiência acumuladas que

são referenciais para o desenvolvimento de

material didático e realização de oficinas

pedagógicas de formação de alfabetizadores. O

grupo desenvolveu discussões temáticas, com

foco na organização do conhecimento, baseando-

se nas ações vivenciais para a ação pedagógica.

Em nossa investigação utilizamos como

diretriz metodológica os princípios da Pesquisa

Colaborativa, em integração com a Entrevista

Compreensiva que deu suporte na análise das

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

50

falas dos educadores participantes. Os

procedimentos de pesquisa aportaram-se

basicamente à Pesquisa Colaborativa, como

modalidade de Pesquisa-ação na Educação, em

que o campo de pesquisa se amplia com a

colaboração dos educadores na construção da

problemática, bem como na elaboração e

utilização de dispositivos para a produção de

conhecimentos. Essa modalidade de pesquisa

possibilitou às formadoras um processo de

reflexão sobre aspectos de sua prática, em que o

desafio colaborativo é responder às necessidades

de desenvolvimento e/ou aperfeiçoamento dos

mesmos. Com aporte interacionista, a Pesquisa

Colaborativa tem em seu princípio básico o

processo de colaboração entre os participantes, ou

os colaboradores, sendo uma atividade coletiva a

partir da participação de cada sujeito envolvido

no trabalho.

Cada grupo de pesquisa deve elaborar sua

própria dinâmica de colaboração, pois as

situações são particularizadas. Os procedimentos

básicos podem, aplicando-se o critério de

transferibilidade, servir como referência à

organização para grupos com ações diferenciadas

em seus componentes de hierarquização,

interesses e modos de ação diferenciados. Em

complementaridade, para a expressão de cada

individualidade, utilizamos a Entrevista

Compreensiva, em que cada sujeito pode refletir,

através de sua fala sobre seu processo de

apropriação e implicação nas ações de formação

da equipe.

Faz-se necessário, para um melhor

entendimento, o discernimento da Entrevista

Compreensiva enquanto metodologia e da técnica

de entrevista como instrumento de coleta de

dados. Entendendo-se método como conjunto de

procedimentos que organizam operações, em

função de opções filosóficas e políticas, e técnica

como conjunto de processos para execução desses

procedimentos, podemos identificar

diferenciações quando se colocam as duas

conceituações de entrevista. Enquanto técnica, a

entrevista pode ser utilizada em diferentes

metodologias, como outros instrumentos que

respondam a preceitos básicos da organização do

conhecimento científico. Quanto à Entrevista

Compreensiva, nos referimos a uma metodologia

com suas formulações teóricas e conteúdos

procedimentais elaborados e referendados em sua

utilização. É um procedimento de interação social

entre entrevistado e entrevistador para obtenção

de informações, como afirma Kaufmann (1996).

A Entrevista Compreensiva pressupõe

envolvimento ativo do pesquisador na

problemática, sendo intrínseco um engajamento

na pesquisa.

Realizamos, no desenvolvimento dessa

investigação, reuniões quinzenais, durante dez

meses de trabalho, para chegarmos a um

consenso sobre nossa pesquisa colaborativa e

entrevista compreensiva com os membros do

grupo sobre sua trajetória pessoal e a constituição

do grupo de formadores. As discussões se

encaminharam na ótica da formação de

educadores enquanto pesquisadores e na

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

51

necessidade da ação reflexiva para a elaboração

de uma nova práxis educativa.

A concepção de professores-

pesquisadores, segundo Elliott (1998), tem como

foco a organização do currículo escolar e as

mudanças pedagógicas voltadas para a melhoria

do ensino. Essa construção deve se dar em um

ideário que priorize o coletivo, em que a

participação e a inovação na perspectiva da

formação profissional são questões chave na

constituição de um educador que entenda a

complexidade das relações educacionais e sociais.

Em nossa atuação, tanto o formador educacional

quanto o alfabetizador assumem o papel de

educador reflexivo e pesquisador de sua própria

ação, em detrimento dos papéis que

tradicionalmente lhes são atribuídos, com ênfase

em sua formação como agente de transformação

social.

Como toda perspectiva de trabalho, em

nossa ação formadora defrontamo-nos com

empecilhos a serem transpostos, como a

abordagem tradicional do paradigma científico

ainda ressonante com seu aporte na razão

instrumental. Como já apontado, a racionalidade

técnica como legitimadora de uma organização de

trabalho hierarquizada em relação ao domínio do

conhecimento científico e a falsa dicotomia entre

pensar e fazer ou entre teoria e prática prevaleceu

por longo tempo. Como os alfabetizadores

comunitários tiveram sua formação com foco

nessas premissas, a postura crítica passaria pela

reformulação da relação entre a construção de

teorias e a prática educativa.

Nessa ótica, prevalece a compreensão de

que a contextualização social e cultural se

constrói na relação em grupo, em que a prática

reflexiva não significa individualizar

responsabilidades. Quando o formador e o

alfabetizador têm possibilidade de refletir sobre

sua ação no coletivo a percepção sobre sua

prática se amplia na reestruturação e incorporação

de novos conhecimentos, possibilitando a re-

significação de suas ações e respaldando as

escolhas e o entendimento de como as decisões

aparentemente rotineiras podem contribuir para a

sustentação ou transformação de uma proposta

curricular vigente.

As experiências relatadas, associadas aos

estudos teóricos, possibilitaram a construção dos

elementos centrais em uma proposição curricular

para ações educativas a partir de intervenções

comunitárias. Nesse sentido, nosso trabalho como

educadores pressupôs a formação de uma atitude

de investigação, de problematização em cada

relação estabelecida com a comunidade, assim

como com as instituições escolares que dela

fazem parte.

Nessa formação, a composição do

currículo teve como enfoque a relação de saberes

que se apresentou em cada prática educativa e, no

decorrer das discussões, construímos e

analisamos os elementos referenciais que se

destacaram como temas em nossa problemática.

No currículo, articulador do conhecimento

acadêmico com os saberes experienciais,

colocaram-se como centrais: o movimento de

formação continuada, os espaços e tempos

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

52

formativos, a memória social, a reflexão e o

diálogo na relação de saberes.

No componente apontado na

categorização do tempo linear, como o

acadêmico, e do tempo recursivo, como o

comunitário, a divisão não se colocou como

determinante, mas orientadora para a

reorganização e produção de conhecimentos. As

aprendizagens se deram em um tempo possível,

quando o tempo humano de elaboração para a

reflexão sobre nossas ações necessita de

amadurecimento na constituição de um saber.

Nosso tempo de formação foi

condicionado pelos padrões institucionalizados,

com uma delimitação prevista para determinada

ação. As rupturas e reelaborações se deram na

relação do tempo coletivo, direcionado pelos

referenciais gerais do Programa GerAção Cidadã,

e do tempo individual, ou o tempo próprio de

aprendizagem de cada sujeito.

Lidar com essa temporalidade, que é

objetiva e subjetiva ao mesmo tempo, implicou

na escolha de conteúdos que necessitávamos

relacionar com a nossa prática. Consideramos

para essa seleção a participação dos

alfabetizadores, suas sugestões e nossa própria

experiência como formadoras na relação dos

saberes envolvidos. Os pontos de interação

surgiram das práticas cotidianas como eixos de

interconexão com sua explicação científica.

O princípio da temporalidade, ao nortear

uma elaboração curricular que abrangesse lógicas

de organização temporal diferenciadas, foi

trabalhado em um movimento em espiral

(Rosnay, 1995), no qual a linearidade sequencial

em níveis de abrangência diferenciados retorna

aos pontos de relação, em rupturas, superação e

reorganização em um crescente de aprendizagens.

Por exemplo, os trabalhos nas áreas de arte e os

projetos pedagógicos com temas de interesse da

comunidade ofereciam suporte para uma

aprendizagem em tempos diferenciados que se

adequavam a uma programação pedagógica

elaborada no desenvolvimento do Programa

GerAção Cidadã.

Ao organizarmos a formação em um

tempo determinado, estávamos inseridos em uma

política educacional que delimitava esse

Programa a um tempo, uma ordem, um espaço.

Entendemos que toda a discussão deve ter esses

elementos, mas, além dos eixos da discussão da

formação, foi no exercício de pensar essa

formação e problematizar a realidade da EJA e

das comunidades que nossa proposta se

concretizou.

A priorização de conhecimentos possíveis

se dá em um lugar específico em que existam

composições singulares, como coloca Augé

(2005), como situações que encontramos no

Programa GerAção Cidadã na organização das

salas de aula. Ao pensarmos a questão da

reapropriação dos lugares, em como os alpendres

de moradias se transformaram em espaços

escolares, visualizamos uma postura do

alfabetizador em seu papel social de educador

comunitário.

Essa transformação de lugares

particularizados em espaços comunitários

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

53

institucionalizados aponta a aproximação dos

sujeitos na mudança do seu locus para satisfazer

uma necessidade da comunidade. A reordenação

do território repercutiu também no pensamento de

todos os envolvidos, reorganizando-se as

formulações técnicas e uma herança cultural

formada de saberes, hábitos e valores culturais

em relação ao espaço físico comunitário.

Em nossa prática educativa, não nos

restringimos aos espaços escolares, realizando

também exposições em centros comunitários.

Entendemos que os espaços curriculares se

instituíram no respeito às delimitações das áreas

de trabalho e relações de grupo, em que se

fomentou o diálogo como compreensão do outro.

Esse diálogo que foi primordial na prática da

formação não ocorreu de maneira simétrica e

harmoniosa, mas se constituiu de significações,

experiências e valores sócio-culturais

diferenciados.

Nesse contexto, o diálogo e a reflexão

foram temas que permearam todo o movimento

de articulação dos saberes. O diálogo se

concretizou no respeito aos saberes

experienciados nas comunidades, expressos nas

formas variadas nos discursos próprios aos

grupos constituídos em sua apropriação

específica. O respeito se refere também a

pensarmos como relacionamos essas expressões

com o acadêmico de nossa formatação, sem

menosprezarmos a capacidade de compreensão

dos educadores comunitários.

Ao nos referenciarmos às práticas

culturais e aos saberes experienciais, reportamo-

nos às memórias coexistentes, enquanto função

biopsicossocial do indivíduo e como memória

coletiva no espaço social de manutenção das

tradições. No saber experiencial as referências às

práticas culturais influenciam mudanças sociais,

adequando ou transformando concepções

diferenciadas. Essas concepções, como

experiência individual, quando não refletida, pode

se tornar tanto um hábito ou um costume, quanto,

a partir da reflexão, uma memória coletiva como

um saber experiencial compartilhado pela

comunidade.

Nossa questão central não era apresentar

uma proposta curricular para todas as situações,

mas pontos ou elementos que podem se adequar à

elaboração de uma proposta específica para cada

vivência dos alfabetizadores e necessidades da

comunidade. Cada planejamento curricular deve

ser um campo próprio de pesquisa para sua

própria constituição.

Ao apontarmos a sistematização de

conhecimentos, na constituição de saberes mais

amplos, entendemos ser necessária uma

organização que, assegurada através de

negociação e consenso dos grupos envolvidos,

possa representar as fontes distintas, respeitando

as diferenças intrínsecas em função de sua

utilidade social e vivências culturais.

A relação dos saberes presente nos

encontros de formação teve como base uma

lógica instituída a partir de determinados

contextos e dos conhecimentos identificados

como essenciais, estabelecendo uma

convergência desses com nossa proposta de ação.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

54

O grupo de elementos proposto não constituiu,

por si mesmo, uma teoria da formação, mas uma

reflexão no intuito de estabelecer componentes

que propiciassem a construção de um saber

curricular.

Esse saber curricular imbricado ao saber

experiencial tem em sua formulação a memória

coletiva como eixo que perpassou o diálogo e a

reflexão, sendo contextualizada em um tempo e

um espaço comunitário. A memória coletiva se

materializa como espaço de respeito à tradição,

em que podem ocorrer mudanças relacionadas a

uma ação específica ou a um contexto

diferenciado em posturas impregnadas no

imaginário social.

A tradição na organização curricular

implica em pensar o presente em relação aos

acontecimentos remotos, em que a tradição não

pode ser entendida como passado definitivo, pois

nos chegam através de palavras, símbolos,

ciências, ritos, que mesmo sendo modificados

conservam sua matriz no decorrer da história.

Toda ação cultural é uma forma de sistematização

deliberada de intervenção, como afirma Freire

(1997), em que a experiência anterior traz a

possibilidade de realizarmos uma seleção de

conhecimentos que leve à mobilização de saberes,

em um percurso de formação.

O trabalho com os alfabetizadores e nossa

vivência com as comunidades nos possibilitou

redimensionar nossa formação acadêmica na

compreensão da necessidade de, através da

formulação do saber curricular, criar um canal de

articulação com as práticas culturais comunitárias

em seus saberes experienciais. O saber curricular,

nesse contexto, não é um saber delimitado, mas

se estabelece na relação entre outros saberes.

Nas reflexões realizadas no grupo

colaborador concluímos que o processo formativo

continuado se consolidou na discussão sobre o

currículo e na reflexão sobre os conhecimentos e

aprendizagens em cada situação vivenciada. Não

temos, portanto, a constituição de uma proposta

que se aponte como modelo aplicativo para os

cursos de formação em geral, mas priorizamos a

análise de elementos que podem se articular em

proposições específicas para os grupos de

formadores. Essa articulação deve se dar em um

processo de interação, pois todos os cursos de

formação e capacitações de educadores são

constituídos sobre um saber curricular, nas

relações de saberes próprios a cada grupo

componente dessas formações.

A proposição trabalhada pelo grupo, na

relação de saberes, trouxe também uma alteração

significativa na participação das formadoras e

demais educadores participantes do Programa

GerAção Cidadã na lógica funcional da academia.

A Universidade, como instituição privilegiada de

produção do conhecimento, ao receber pessoas de

várias comunidades pôde modificar seus

parâmetros de ação, na inter-relação de visões de

mundo diferenciadas e, na inserção reflexiva,

buscar aportes que possam transitar pelos campos

de saberes diferenciados, mas não excludentes.

Essas vivências contribuem com ações

pedagógicas necessárias a uma constituição social

e política de uma Universidade aberta a novas

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

55

posturas e à incorporação e produção de

conhecimentos que atendam a ação educacional

em sua totalidade, superando fragmentações de

saberes e identidades coletivas.

Ao finalizarmos nossa investigação,

comparando metas propostas e o que realizamos,

nos apoiamos em Morin (1996) quanto a nossa

consciência do inacabamento em uma pesquisa

científica que deve ser retomada continuamente a

partir de novas referências e mudanças em nossa

práxis educativa.

Concluímos que essa investigação foi

instigante para o grupo colaborador, com a

possibilidade de reflexão sobre o trabalho de

formação de educadores para EJA e trazendo

pontos essenciais a serem considerados em um

planejamento curricular para além do espaço

acadêmico. A articulação de saberes pressupõe o

processo criativo dos alfabetizadores na

formulação de conceitos e procedimentos, em que

o currículo é integrador de um saber que o

educador traz e não como fator externo a ser

dominado.

Referências Bibliográficas

Arendt, H. Entre el Pasado y el Futuro: ocho ejercicios sobre la reflexión política. Barcelona: Ediciones Península, 1996.

_________. ?Que és la Política? Barcelona: Ediciones Paidós. I.C.E. de la Universidad Autónoma de Barcelona, 1997.

Augè, Marc. Não Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 5. ed. Campinas, SP: Papirus ,. 2005.

Bourdieu, P. Compreender. In: A Miséria do Mundo. 4a. ed. Petrópolis: Ed. Vozes,2001.

Charlot, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

Elliott, J. Recolocando a Pesquisa-Ação em seu lugar original e próprio. in: Geraldi, C.; Fiorentini, D; Pereira, E. M. (Org.) – Cartografias do Trabalho Docente. Campinas: Mercado de Letras – ALB, 1998.

Freire, P. Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos. 5ª. ed. Rio de Janeiro, 1981.

__________ Desafios da Educação de Adultos frente à nova reestruturação tecnológica. In: anais – Seminário Internacional de Educação de Jovens e Adultos. Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário. Brasília: MEC, 1997.

Gauthier, C. (Org.) Por uma Teoria da Pedagogia: Pesquisas Contemporâneas sobre o Saber Docente. Porto Alegre: Editora UNIJUI, 1998.

Goodson, I. A Construção Social do Currículo. Lisboa: Educa – Currículo, 1997.

Hume, D. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Tradução: Anor A. In: Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1973.

kaufmann, J. A Entrevista Compreensiva – Tradução Livre de Rosália de Fátima e Silva. l’Entretien Compreensif,. Paris: Nathan, 1996.

Lovisolo, H. Linguagens Sociais e Currículo. Seminário Internacional de Educação de Jovens e Adultos. São Paulo, MEC, 1996.

Morin, E. Complexidade e Transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental. Natal: Editora da UFRN, 1999.

________. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 8ª. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco: 2003.

Nóvoa, A. (Org.). Os professores e sua Formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997

Ribeiro, V. M. Ensino Fundamental de Jovens e Adultos: idéias em torno do currículo. Seminário Internacional de EJA. São Paulo: MEC, 1996.

Rosnay, Jöel. O Macroscópio - para uma visão global. Portugal: Estratégias Coletivas, 1995.

Zabala, A. Enfoque Globalizador e Pensamento Complexo: uma proposta para o currículo escolar. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

56

A Educação de Jovens e Adultos

semipresencial: leituras do cotidiano escolar

Liliam Cristina Caldeira 1

Doralice A. Paranzini Gorni 2

Resumo: Este artigo apresenta o recorte de uma pesquisa

que investigou, por meio de um estudo de caso, a EJA

semipresencial, analisando-a a partir das políticas públicas

e da perspectiva dos sujeitos inseridos no contexto escolar.

O recorte aqui apresentado foca a visão dos sujeitos sobre a

EJA semipresencial e revela os limites impostos à prática

pedagógica em razão de uma carga horária cumprida

grande parte a distância, bem como a visão dos sujeitos

sobre a experiência educativa que vivenciam e suas

expectativas.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, Educação

Escolar, Semipresencial.

1. A origem desse estudo

O trabalho que deu origem a este estudo

trata-se de uma pesquisa de mestrado,

desenvolvida na Universidade Estadual de

Londrina – UEL, cujo foco foi a relação entre a

perspectiva da Educação de Jovens e Adultos

(EJA), presente nos documentos oficiais e a

perspectiva que emana da vivência escolar na

configuração semipresencial, a partir da visão de

educandos e educadores.

O objetivo central da referida pesquisa foi

desvelar as contradições existentes na EJA, assim

como seus limites e possibilidades no contexto

atual. Essa investigação foi realizada sob a forma

1 Doutoranda em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. 2 Profa. Dra. do mestrado em educação da Universidade Estadual de Londrina – UEL.

de estudo de caso em um Centro Estadual de

Educação Básica de Jovens e Adultos (CEEBJA)

do Paraná, focalizando a EJA semipresencial

referente ao segundo segmento do ensino

fundamental.

Para delinear a configuração política que

norteia a prática educativa investigada e conhecer

a perspectiva do discurso oficial, foram

analisados documentos específicos que a

subsidiam em âmbito estadual e federal.

No recorte aqui apresentado tratamos da

produção da EJA semipresencial na visão dos

educandos e educadores. Portanto, nesse

momento, nosso foco está centrado na

perspectiva dos sujeitos inseridos nesse processo

de educação escolar e nas relações estabelecidas

nesse cenário.

2. O percurso investigativo

Nossa desenvolvida no mestrado teve

início com um levantamento da trajetória

histórica do desenvolvimento da EJA no Brasil e

da criação dos espaços de discussão acerca dessa

modalidade de ensino na Europa, na América

Latina e no Brasil. Em seguida, foram analisados

documentos oficiais estaduais e federais com o

intuito de delinear o contorno oficial que

respaldou a EJA semipresencial naquele dado

contexto histórico.

Já a perspectiva que emana da vivência

escolar foi dada a conhecer através das

observações e entrevistas realizadas, com

educandos e educadores da escola, nosso lócus de

pesquisa. As observações foram direcionadas

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

57

tanto para as condições materiais de produção da

EJA quanto para as relações estabelecidas entre

seus sujeitos na vivência escolar.

O cenário observado encontrava-se,

naquele momento, marcado por improvisações

para o desenvolvimento das atividades da EJA.

Cabe citar como exemplo a divisão do espaço em

salas pequenas, com pouca ventilação, algumas

separadas por divisórias, tendo assim acústica

deficitária.

Em certos momentos, professores de

diferentes disciplinas lecionavam

simultaneamente no mesmo espaço, promovendo

uma nítida redução da liberdade do educador e do

educando para a realização de discussões sobre as

temáticas estudadas, exposição de dúvidas, etc.

Com isso, os diálogos revelaram-se como

impedimentos para a realização a aula, gerando o

que Freire (2005a) concebeu por cultura do

silêncio. Mas a cultura do silêncio não condiz

com o que preconiza o discurso oficial, que

anuncia a formação de um cidadão crítico e

autônomo.

A experiência educativa calcada no

silêncio, centrada na atividade do professor,

pouco pode contribuir para o desenvolvimento de

uma democracia autêntica, pois como confirma

Freire (2005a, p.103) “[...] quanto menos

criticidade em nós, tanto mais ingenuamente

tratamos os problemas e discutimos

superficialmente os assuntos.” As instalações

encontradas na ato da pesquisa mostraram-se

menos precárias do que outras já ocupadas pelo

Centro, conforme evidencia P7, ao comparar dois

lugares ocupados anteriormente: “Aqui foi

otimizado em relação ao outro lugar. No outro

tinha três, quatro, cinco professores juntos,

porque tinha poucas salas para as disciplinas e era

só um salão grande. Eram três, quatro, cinco

professores de disciplinas diferentes dando aula

todos juntos.”

Essas condições concretas de produção da

EJA encontradas no caso estudado corroboraram

para visões que a relacionam a um prática

educacional informal, espontaneísta. A concepção

de A4 sobre a EJA, evidenciou esse entendimento

quando em seu relato posicionou-se dizendo que

“a modalidade desse tipo de ensino é bom (sic),

mas não é como na escola”. Para ele, a EJA está

distante do sistema formal de ensino, distancia-se

do processo de escolarização.

3. A EJA semipresencial na perspectiva dos sujeitos

No período de realização desse estudo, as

atividades pedagógicas desenvolvidas no Centro

estiveram organizadas em momentos presenciais

e não presenciais. Ao tentar compor a

configuração dos momentos de estudos à

distância, verificou-se que estes se trataram de

estudos desenvolvidos pelos próprios alunos, com

alguns poucos encaminhamentos do professor no

intuito de exercitarem o “autodidatismo”.

Já as aulas, ou melhor, os encontros

presenciais ocorreram de duas formas: através de

atendimento individual, ou coletivo. O momento

denominado “coletivo” dizia respeito àqueles

organizados por projetos didáticos relacionados a

uma dada disciplina. Neste formato de aula, os

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

58

alunos costumavam receber direcionamento e

explicações comuns, pois o planejamento do

encontro visava trabalhar com todos

simultaneamente.

Nos encontros individuais observados,

percebeu-se que a rotina estabelecida é composta

por momentos para sanar dúvidas acerca de

atividades desenvolvidas em casa pelos

educandos.

Porém, o próprio ato de verbalizar a

dúvida comporta um aprendizado à parte para

aqueles que estavam por anos consecutivos

distantes do universo escolar, carecendo com isso

atenção especial. Para alguns alunos, essa

configuração revelou-se como empecilho no

decorrer do processo de aprendizagem, como

indica A4:

[...] numa escola assim normal que você vai todos os dias, você tem um professor todo dia que explica aquilo que você não entende. Sendo que aqui você vai pela cabeça, você tem que fazer mais força para aprender e o professor te explica o básico, não o que você realmente necessita saber. Então, se quiser passar de ano e se quer aprender, tem que fazer força por si mesmo, ou não vai para frente [...].

Dessa forma, A4 chamou a atenção de seus

interlocutores para a distância existente entre suas

necessidades educativas e a organização do

trabalho pedagógico da modalidade

semipresencial, evidenciando uma dimensão

solitária desse processo.

Os encontros chamados de coletivos

destacam-se por uma maior vivência de situações

de diálogo, de troca de experiência e socialização

de conhecimentos entre os educandos e destes

com o educador.

Nesses momentos, eles acompanhavam

uma mesma aula, participando das mesmas

lições, tirando suas dúvidas com o professor ou

com um colega de sala, vivenciando diversas

oportunidades de interação.

No período em que o estudo foi

desenvolvido, o Centro possuía recursos de

aparelho de vídeo e televisão; porém, as apostilas

didáticas eram essencialmente os únicos materiais

bibliográficos disponíveis para estudo e pesquisa

na escola, uma vez que a biblioteca existente se

resumia a um pequeno acervo disposto em uma

estante na sala ocupada pelos supervisores, então

Professores Pedagogos.

Essas limitações materiais

contraditoriamente aproximam essa experiência

dos tempos marcados pela informalidade que

historicamente esteve presente na EJA, mas que

não condiz com o contexto atual. Sobre isso,

Arroyo (2005, p.32) lança o alerta de que

“vivemos um momento em que a configuração da

EJA é vista como deixar de ser educação não-

formal para entrar na formalidade escolar.

Somente assim, os direitos dos jovens e adultos à

educação seriam levados a sério”.

A maior parte das matrículas efetivadas no

decorrer do estudo foi de jovens por volta de

vinte anos de idade, sendo acompanhados, em

segundo lugar, pelos adultos com

aproximadamente trinta anos. Entretanto, cabe

destacar que o grupo nascido na década de 90

apresentava uma crescente e significativa procura

pela EJA, em razão da redução da idade de

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

59

ingresso nessa modalidade de ensino, viabilizada

pela LDB 9.394/96.

Dentre esses adolescentes muito jovens,

encontramos aqueles como A5, que não

apresentavam ter clareza sobre as razões que o

levaram para a EJA, como foi possível constatar

em seu depoimento: “É bom, né, porque [...] você

tem o dia inteiro para ficar em casa”. Trata-se de

jovens que não estão no mercado de trabalho e

migraram do ensino fundamental popularmente

chamado de “regular”.

Preocupados, alguns pais e mães se

matricularam na EJA oferecida no Centro no

intuito de acompanhar os filhos jovens, tanto no

trajeto entre escola e casa, quanto nos próprios

estudos, como descreveu A5: “Meu pai estuda

aqui também [...] Estuda na minha sala”. Mas

nem todas as investidas dos pais tiveram êxito, no

que se refere à permanência dos filhos nos

estudos, como narrou A6: “para puxar ele, eu vim

para escola, eu voltei [...]. Só que eu vim e ele

não veio, quem sabe o ano que vem?”.

A expressão: “Quem sabe o ano que vem”

denotou que na visão desse sujeito sempre é

momento de estudar e que não há na vida das

pessoas uma fase exclusiva para aprender,

conhecer e produzir. Também evidenciou o

sentido: uma porta sempre aberta para aqueles

que, em razão das lutas travadas diariamente pela

sobrevivência, estiveram à margem da escola.

Notamos que o deslocamento dos

adolescentes para a EJA, impulsionados pela

própria escola de origem, tem desvirtuado as

razões da existência dessa modalidade de ensino.

Para fazer frente a essa problemática foi

desencadeado um processo de reflexão sobre a

EJA em todo estado do Paraná, resultando na

reformulação da legislação local e elaboração do

Projeto Político Pedagógico das escolas.

Sobre o ingresso dos jovens à EJA,

Dayrell (2005, p.63) indica que “grande parte dos

jovens [...] vêm de uma experiência educativa

formal diversificada, alguns tendo sido excluídos

da escola nos mais variados estágios,

frequentemente ainda no Ensino Fundamental,

com uma história marcada por repetências,

evasões esporádicas e retornos, até a exclusão

definitiva”.

A trajetória de A8 exemplificou essa

realidade: “Eu aprendia com facilidade de

primeira a quarta, mas quando foi na quinta eu

não consegui aprender mais não [...]. Eu chegava

dentro da sala, eu nem fazia nada, eu ficava na

carteira assim e deixava o dia passar e [...]

reprovava”.

Esses percursos que levam à EJA

evidenciam o distanciamento entre a educação no

mundo vivido pelo educando e o ilustrado

universo dos princípios e fins da educação

nacional, que segundo a LDB 9394/96, em seu

Título II, art. 2o “A educação, dever da família e

do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e

nos ideais de solidariedade humana, tem por

finalidade o pleno desenvolvimento do educando,

seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para o trabalho”. (BRASIL, 1996)

Seja jovem ou adulto, o ingresso na EJA

semipresencial apresentou-se, na maioria das

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

60

vezes, relacionado a expectativas limitadas à

satisfação das necessidades básicas de

sobrevivência por meio da chance de

empregabilidade em um futuro incerto, como se

percebe no relato de A1: “Eu espero que eu

aprenda bem para mim(sic) fazer o meu segundo

grau. Se não fizer o segundo grau, não arrumo

serviço, não arrumo nada. [...] assim você pode

arrumar um serviço melhor, num escritório”.

Níveis de escolarização mais elevados

passaram a ser exigidos para o exercício de

funções menos complexas, que antes não

comportavam tal demanda. Ao aprendizado

foram condicionadas as possibilidades futuras de

trabalho, como mencionam o educando A2 e o

professor P1 “[...] as empresas estão exigindo

cada vez mais estudo da gente, então eu voltei a

me matricular” (A2); “Eles querem estudar, a

primeira expectativa é um emprego bom. Eles

falaram também que tem firma que está pedindo

o segundo grau, se não tem também não faz nem

ficha”. (P1).

A configuração atual do mundo do

trabalho segue na contra mão das esperanças e

expectativas dos alunos sem emprego, dos

despossuídos do campo ou da cidade, dos

assalariados precarizados, pois tem perdido seu

lugar para uma corrente de destrutividade da

força humana através do descarte e daquilo que

Antunes (2002) intitula de superfluidade do

trabalho.

Entretanto, nesse movimento de busca

pelo emprego, os sujeitos concebem a EJA como

uma abreviação do tempo de estudo, como um

processo educativo com resultados rápidos e

imediatistas através da certificação em curto

prazo, aprisionando-a as experiências do passado.

Neste sentido, a configuração

semipresencial da EJA representa sonho e

desilusão simultaneamente, pois viabiliza a

permanência dos educandos ao mesmo tempo em

que não garante a devida instrumentalização para

uma transformação social.

O desemprego, a pressão do mercado de

trabalho - juntamente com a insolidez das

políticas públicas no campo da EJA - colaboram,

no contexto atual, para desvirtuar as

possibilidades formativas dessa modalidade de

educação.

Desta forma, nesse cenário marcado pelas

impressões do passado, diversos atores

caracterizaram a EJA como uma escolarização

que além de breve é mais fácil do que a escola

dita regular, como ficou evidente com A9 ao

justificar seu ingresso: “É para mim(sic) adiantar,

porque senão eu vou ficar muito atrasada [...]

porque eu já tenho dezesseis anos”.

Na necessidade de promover mudanças na

sua condição social e de suas famílias, alguns

educandos que procuram a EJA semipresencial

ocupam o papel de consumidores de uma

mercadoria, cujo tempo de produção foi reduzido

ao seu limite mínimo.

Com isso, o trabalho enquanto atividade

humana constituinte do ser deixa de representar

uma fonte de expressividade, pois estes jovens já

não vislumbram uma carreira profissional

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

61

atrelada às escolhas relacionadas à realização

pessoal, desalienação, mas sim a nada além do

que sobrevivência. A satisfação se limita a um

âmbito mínimo de aprendizagem como se

percebe por A10: “Quando eu entrei aqui não

sabia quase nada, agora eu estou sabendo, eu não

sabia somar [...] quando eu saí daqui eu já posso

fazer as coisas, já sei somar [...]”.

O abismo de carências evidenciado nas

falas dos educandos possibilitou-nos legitimar

nos tempos atuais o pensamento de Freire (2005b,

p.75) ao alegar que “a tarefa pedagógica da escola

é ampliar nos jovens alunos a sua condição de

humanos”.

Esses jovens demandam mais do que a

escolarização, “eles demandam redes sociais de

apoio mais amplas, com políticas públicas que os

contemplem em todas as dimensões, desde a

sobrevivência até o acesso aos bens culturais”,

como bem conclamou Dayrell (2005, p.65).

Os grupos de educandos que frequentam a

EJA no contexto analisado apresentaram uma

rotatividade dinâmica, no que diz respeito à

permanência na instituição e conclusão dos

estudos, pois cada educando tem rotinas e

demandas específicas de sobrevivência. Como foi

observado, o atendimento a essa diversidade no

formato semipresencial constitui um fator que

dificulta aos educadores um acompanhamento

sistemático da freqüência e aprendizagem desses

atores.

A dificuldade para fazer um

acompanhamento mais aproximado da

aprendizagem do aluno revelou ser um ponto

problemático no ensino semipresencial, trazendo

à tona a necessidade da construção de alternativas

para solucioná-lo.

O próprio educando também não possui as

ferramentas necessárias para encaminhar com

autonomia seu processo de estudo, como aponta

A9: “Eu aprendi pouca coisa, porque não tem

explicação [...] devido aos alunos que têm uns

que precisam de mais assim, que são os mais

velhos que precisam de mais explicação e então

acaba nem tendo tempo assim do professor

chegar e explicar para você”.

Esse formato não viabiliza a mediação e

intervenções do professor por não dispor da

condição de tempo necessária a um processo de

avaliação contínua e formativa dos progressos na

aprendizagem desse sujeito.

4. A percepção dos sujeitos sobre si mesmos e sobre a aprendizagem na EJA semipresencial

Os educandos presentes na situação

escolar estudada podem ser explicados a partir

das características políticas, econômicas e sociais

produzidas historicamente e que delineiam o

momento atual em que estão inseridos. Mas mais

apropriado do que classificá-los é lê-los por suas

autonarrativas, que revelam trajetórias tão

díspares, tão singulares e tão comuns ao mesmo

tempo, como as apresentadas em seus relatos.

As biografias dos educandos da EJA têm

marcas em comum: a da exclusão. Em todas, o

retorno à escola tem um por que e para que

também, como pode se notado em: “[...] é uma

nova vida surgindo que às vezes você fala assim,

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

62

é mais um curso que eu fiz que me abriu

caminhos, pra saber do passado por exemplo, do

meio ambiente, da língua inglesa, da matemática,

como também para servir de pedreiro (A5).”

O tempo já vivido, marcado por

conquistas pessoais, por sonhos, expectativas, por

tempo de trabalho, de desemprego, de criação dos

filhos, dos afazeres domésticos, religiosos, etc. é

também concebido pelos atores como tempo de

recomeçar.

Ao definirem os educandos e como se

relacionam com eles, encontramos

posicionamentos como esse, por parte dos

educadores: “Relação de igual para igual. O aluno

vê o professor como um orientador, como um

amigo que está disposto a tirar suas dúvidas. E o

professor vê no aluno um cidadão com vontade

de vencer. Eu pelo menos vejo isso. Aqui para

eles é a solução, ele vê no professor uma

solução”. (P3).

Da mesma forma se posicionaram alguns

educandos, que muitas vezes, por não terem tido

acesso à escola anteriormente, ou por terem

interrompido esse processo por vários anos,

sentiram-se enaltecidos pela possibilidade de

retornar à escola. Ao posicionarem-se assim, eles

tomaram para si a responsabilidade por não terem

concluído os estudos na idade apropriada e

também por qualquer dificuldade que vivenciam

durante o processo de escolarização.

Por outro lado, os educadores também se

definiram pelos aspectos afetivos, emocionais,

enfim, aqueles elementos que dão à relação

professor-aluno uma maior proximidade e

cumplicidade, como comentaram P2, ao descrever

o professor da EJA: “Eu acho que eu sou uma

amiga, filha, às vezes mãe do aluno. Você tenta

levar, dar a mão, dar forças. Porque às vezes são

muito pessimistas, negativos. Então você tem que

estar sempre reanimando, dando forças”.

Para outros educandos como A5, é na

própria relação professor-aluno que se

reabastecem para enfrentar as árduas lutas

cotidianas: “[...] eles são muito melhores do que

numa escola. Eles dão mais atenção”.

A motivação por parte do professor aos

educandos da EJA constituiu, no nosso percurso

investigativo, um dos fatores de acolhida e

motivação para darem continuidade aos estudos e

ao empenho para alcançar seus objetivos.

Dada à carência por reconhecimento e a

baixa autoestima que muitas vezes apresentaram,

o desempenho dos docentes chegou a ser

considerado por alguns educandos como quase

uma dádiva e não uma atribuição profissional.

Sem descartar o valor da relação afetuosa

e dedicada dos professores da EJA com seus

educandos, não pôde deixar de ser percebida a

fragilidade da intervenção pedagógica do

professor.

Com secundária importância atribuída à

apropriação de conhecimentos, como foi possível

verificar nos relatos de alguns educandos, a EJA

passa a configurar mais uma forma de

aprisionamento do ser ao invés de libertá-lo.

Ao serem indagados se sentem

dificuldades para aprender e/ou estudar, diversos

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

63

educandos comentaram que em razão das

dificuldades que sentem, contam com a ajuda de

amigos, professores particulares ou filhos, como

relatou A4: “[...] às vezes eu procuro um

professor particular [...] ele me ajuda, me ensina

algumas matérias”.

Relatos como esses geram reflexões sobre

o quanto uma carga horária cumprida, em sua

maior parte à distância, contribui para o

acompanhamento devido da aprendizagem e o

quanto é possível contar com o apoio pedagógico

adequadamente direcionado, por parte da escola.

A este respeito A7 referiu-se ao que

poderia ser melhorado: “Tem professor que não

explica bem a matéria, porque é à base de apostila

[...]. E tem um tempo para você estudar, para

fazer as provas, então acho que a professora

deveria dar a apostila e explicar o conteúdo”.

Concordamos com a ideia de que o

objetivo central da educação é o de que ao

possibilitar ao indivíduo relações com as

objetivações e apropriações de elementos da

esfera não cotidiana, implicando assim numa

caminhada rumo à superação da alienação. A

educação escolar constitui, assim, uma prática

determinada “[...] mediadora entre o cotidiano e o

não cotidiano na vida do indivíduo [...]”

(DUARTE, 1999, p.43). Nesse sentido, a

aprendizagem por si é uma prática social histórica

produzida a partir de necessidades específicas,

dirigida aos fins determinados e que envolve a

mobilização do sujeito, atribuição de sentido,

significado e emoção.

Entretanto, pelos relatos como o de A3,

verificamos que as possibilidades de mediação

produzidas nesse cenário muitas vezes não

contribuem para a formação de um sujeito não

alienado, incidindo então em uma prática

reprodutivista, como relatado a seguir:

[...] tem muitas pessoas que não lêem que não fazem o trabalho, que chegam na sala pedem o gabarito vão corrigir [...] Ela passa o gabarito, ele vai corrigir e mesmo se ele não fez ou se ele errou ele não vai falar para o professor se ele errou ou não. E às vezes ele nem fez, ele pegou o gabarito, deu uma olhada na prova e no gabarito e fala: professora dá a prova. Então ele começa a apagar a apostila, ela não viu se ele fez ou não fez e ele vai direto para a prova.

Concebendo que a aprendizagem do

indivíduo se dá desde o seu nascimento, uma

pessoa adulta é desta forma possuidora de longa

vivência social, ou seja, se apropriou fora da

escola de elementos culturais da sociedade da

qual faz parte, por meio das relações

estabelecidas com os demais indivíduos.

Mas, além de ser uma prática social, a

aprendizagem também tem uma dimensão

subjetiva, pela qual o educando autor do processo

traz à tona momentos de subjetivação produzidos

em outros espaços e momentos da vida, conforme

Rey (2006).

Ao tomar para si o conhecimento a ser

apropriado, o sujeito resignifica aquilo que está

sendo objetivado e assim reorganiza internamente

um conhecimento que foi primeiramente externo

e social, antes de ser internalizado singularmente.

A aprendizagem assume tanto formas

históricas, com elementos singulares postos pelas

relações e organização sociais de um dado

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

64

momento, quanto formas universais compostas

pelos elementos pertinentes ao gênero humano.

Aprender redunda em apropriar-se de

elementos da cultura que traz em si, conforme

Alves (2003), elementos de singularidade e de

universalidade como indissociáveis.

A educação escolar tem a finalidade de

promover o indivíduo, instrumentalizá-lo para

superar o senso comum, de forma que este se

torne “capaz de conhecer os elementos de sua

situação para intervir nela transformando-a no

sentido da ampliação da liberdade, da

comunicação e colaboração entre os homens”

(SAVIANI, 2002, p.38).

Diferentemente das formas espontâneas de

educação, o trabalho educativo é uma atividade

intencionalmente dirigida por fins, de acordo com

Duarte (2003). Mas o educando da EJA portador

de autonomia para solucionar problemas e

aprender com as questões cotidianas, ao inserir-se

na escola, percebe não poder contar tanto com

ela, como mostrou A9: “Esse ensino do supletivo

você não aprende muita coisa porque é uma coisa

bem mais rápida, tipo assim, já num colégio

assim normal onde você já frequenta cinco aulas

num período assim maior, você aprende

explicações bem melhor das coisas [...]”.

Entre os próprios adolescentes foi possível

verificar tanto aqueles que vislumbram a EJA

como caminho mais fácil para a conclusão dos

estudos, quanto outros que criticamente apontam

a fragilidade do exercício da prática educativa do

professor como fator de impacto sobre o processo

de ensino e aprendizagem. Podemos tomar como

referência disso a recente passagem pelo ensino

regular, como se vê em A8:

Eu entrei aqui mesmo por causa do curso e já que eu estou atrasado. [...] as escolas ensina mais, tem diploma que vale mais pra entrar nas firmas, no caso aqui [...] eles já não valoriza tanto. [...] você não aprende aqui não. Por causa que aqui eles não explicam nada. Eles dão a apostila assim e falam:“ Estuda”. Mas estudar o quê? “Lê”. Elas num fala nada. Aí você lê, faz a prova e do nada você já passa.

Entre esses sujeitos soou a cobrança por

ensino de qualidade, por uma prática docente

apropriada ao educando da EJA, por processos

avaliativos e currículos coerentes, enfim, por um

processo formativo eficaz.

As visões dos sujeitos presentes nessa

investigação deixaram evidências de que, mesmo

com toda sua trajetória de aprendizagens ao longo

da vida, o educando da EJA necessita de

intervenções didáticas eficazes, direcionadas e

coerentes. Tal fato revela um dos limites da

configuração semipresencial com a qual nos

deparamos nesse caso, uma vez que se percebeu o

destaque para uma prática educativa que continua

atribuindo ao sujeito o sucesso ou o fracasso no

processo de aprendizagem.

5. Considerações finais

A concretização da EJA sob a

configuração semipresencial apresentou

limitações materiais muito próximas àquelas

oriundas da sua condição não-formal, tão

marcada historicamente. Não obstante, a

perspectiva dos sujeitos, em sua maioria, não

evidencia as transformações já produzidas no

campo da EJA a partir das pesquisas, vivências e

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

65

debates produzidos ao longo da história da

educação no Brasil.

Um relevante indício que evidenciou

aspectos como este foi a cultura do silêncio tão

presente no contexto de sala de aula,

descaracterizando o diálogo como ferramenta

primordial a serviço do processo de ensino e

aprendizagem de jovens e adultos.

A visão de educação que permeia esse

cenário tende a reduzi-la à escolarização, ao invés

de expandi-la num panorama de formação

humana. A partir dessa visão reducionista,

constatamos que ao sujeito professor tem sido

delegado a função de instruir e mensurar,

deixando de lado a tarefa de educar e formar.

Notamos que a organização

semipresencial, nos moldes em que se encontrava

no estudo, constituiu um dos fatores de

dificuldade para o educador acompanhar a

aprendizagem do educando, não contribuindo,

desse modo, para uma intervenção pedagógica

coerente com as reais necessidades do processo.

Outro elemento de destaque foi a presença

da cumplicidade essencial à relação professor-

aluno anunciada pelos sujeitos entrevistados.

Nesse sentido, o respeito, a admiração e a

cooperação entre os atores continuam sendo

preponderantes na realimentação da EJA como

resgate social.

Porém, demonstrou ser esse mesmo

destaque de acolhimento o que a distancia da

objetividade que deve permear a educação

escolar, no que se refere ao alcance de propósitos

como o de garantir a apropriação, a socialização e

a produção de novos conhecimentos para

contribuir efetivamente com a superação da

condição de marginalidade social de seus

educandos.

Os educandos da EJA que colaboraram

com o estudo chegaram a essa modalidade de

ensino mobilizados pela necessidade de trabalho,

pela conquista de uma condição mais digna de

vida, pelo desenvolvimento de seu potencial e

pela elevação da autoconfiança e autoestima.

No entanto, o ensino semipresencial no

formato estudado também ocupa uma condição

de marginalidade, dado aos limites materiais,

estruturais e pedagógicos que comumente o

assolam. As fragilidades pedagógicas não estão

instaladas por falta de vontade ou

descompromisso de seus atores, mas sim devido à

insuficiência da formação inicial e continuada

dirigida ao educador de jovens e adultos e,

consequentemente, à atenção voltada a EJA no

terreno das políticas públicas.

Nesse processo educativo verificou-se que

os educandos que chegam à EJA excluídos pelos

mais recentes mecanismos e anulados ao longo da

vida, enquanto atores sociais, passaram a

incorporar a responsabilidade pelo próprio

insucesso escolar e pela sua condição marginal

em distintos espaços da sociedade. Ou seja,

enquanto atores sociais demonstraram sentir-se

culpabilizados pelo fracasso e pelas limitações

geradas pela própria estrutura capitalista, num

processo de naturalização de suas formas de

exclusão e alienação.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

66

Tem sido notável a consolidação histórica

dos espaços de produção da EJA e da construção

de suas políticas, que podem ser comprovadas

através da sua oferta regular pela rede pública de

ensino, mesmo com seu insuficiente

financiamento.

Apesar disso, sua mais nobre riqueza: seu

teor político e as metas de transformação social

não encontram eco na experiência de EJA

semipresencial materializada no contexto escolar

aqui estudado.

Referências Bibliográficas

ALVES, Gilberto. Luis. O universal e o singular: em discussão a abordagem científica do regional. In: ALVES, G. L. Mato Grosso do Sul: o universal e o singular. Campo Grande: Editora Uniderp, 2003.

ANTUNES, Ricardo. Trabalho e Superfluidade. In: LOMBARDI, José Claudinei. SAVIANI, Dermeval, SANFELICE, José Luís (orgs.). Capitalismo, Trabalho e Educação. Campinas: Autores Associados, HISTEDBR, 2002.

ARROYO, M. G.. Educação de jovens e adultos: um campo de direitos e de responsabilidade pública. In: SOARES, L. J. G.; GIOVANETTI, M. A.; GOMES, N. L. (Orgs.). Diálogos na Educação de Jovens e Adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n.9.394. Brasília, 1996.

DAYRELL, J. T. A juventude e a formação de jovens e adultos – Reflexões iniciais Novos sujeitos. In: SOARES, L. J. G.; GIOVANETTI, M. A.; GOMES, N. L. (Org.). Diálogos na Educação de Jovens e Adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

DUARTE, N. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 1999. (Col. Polêmicas do nosso tempo, v.55).

DUARTE, N. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões. Campinas: Autores Associados, 2003.

FREIRE. P. Educação como prática da liberdade. 41. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005a.

FREIRE. P. Pedagogia do Oprimido. 28. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005b.

REY, Fernando Luis González. O sujeito que aprende – Desafios do desenvolvimento do tema da aprendizagem na psicologia e na prática pedagógica. In: TACCA, Maria Carmem Villela Rosa. Aprendizagem e trabalho pedagógico. Campinas: Alínea. 2006.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 14. ed. Campinas: Autores Associados, 2002.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

67

Um olhar sobre a postura do educador da

Educação de Jovens e Adultos numa

perspectiva freiriana

Maria Teresinha Kaefer e Silva1

Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. [...] não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê.[...] Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura da direita ou da esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais.[...] Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo.[...] (Freire1996, pág.115).

Resumo: Este artigo refere-se à postura do educador da

Educação de Jovens e Adultos, do medo e da ousadia que

permeia suas ações. Traz para a reflexão possibilidades

teóricas e concretas para mudanças da prática educativa, a

luz do legado de Paulo Freire. È parte da sistematização de

minha experiência como educadora popular da EJA no RS.

Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos,

Formação continuada de educadores, Legado de Paulo

Freire.

Introdução

Não se pode criar um país democrático e

desenvolvido sem que a educação tenha se

estendido a todos. “Um país democrático não

precisa de grandes luminares da ciência e da

1 Professora da Rede Estadual de Ensino do RS, atualmente diretora do Neejacp Metamorfose(Núcleo de Educação de Jovens e Adultos e Cultura Popular) Metamorfose de Bento Gonçalves/RS.Especialista em PROEJA/UFRGS. Mestranda na linha de pesquisa Educação Popular e Movimentos Sociais/UFRGS.

técnica, como precisa de um povo esclarecido e

instruído” (Gadotti, 1985, p. 125). Precisa-se de

clareza para desenvolver um país culturalmente,

deve-se ter uma leitura política e social da

educação, sendo então, uma tarefa coletiva,

popular e democrática. É nesta perspectiva que

incluo a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e o

PROEJA2 como pequenos fragmentos

esperançosos de uma ação cultural.

Nesse contexto, pensar numa oferta de

EJA que considere as características individuais,

os limites e possibilidades de cada sujeito do

processo é articular a proposta pedagógica com o

respeito aos saberes dos educandos, sobretudo

quando estes jovens e adultos são na sua

totalidade oriundos da classe trabalhadora,

marginalizados, pobres, subempregados e

oprimidos.

Como fazer isso? Certamente esta é uma

pergunta que não quer calar. Procuram-se

respostas em cursos, formações, diálogos e troca

de experiências com colegas, tudo isso é parte do

repensar a prática pedagógica, de refletir sobre a

postura do professor, de avaliar que tipo de

pedagogia norteia a sua prática: a que dá mais

força ao silêncio ou a que procura, de alguma

maneira, criar oportunidade de dar-lhes a palavra.

2 Programa Nacional de Integração de Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Jovens e Adultos-do governo federal, envolvendo as escolas federais brasileiras, implantado em 2006.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

68

Educação de Jovens e Adultos – um desafio...

Ao longo da história da EJA, pode-se

considerar a idéia de movimento3desta

modalidade, articulado entre o saber acadêmico e

o construído em sala de aula de forma criativa,

corajosa, cheia de ressignificações. Assim, ao

tecer ligações de coragem e destemor,

relacionando os atos pedagógicos com a política,

não só percebendo as relações escola -

comunidade, mas também estabelecendo relações

entre o que se ensina e o conteúdo ideológico do

que se ensina, os sujeitos educadores e educandos

da EJA contemplam possibilidades diferentes de

aprender e ensinar, respeitando a diversidade e a

pluralidade de idéias.

Transportar para a EJA um olhar

esperançoso, de resgate dos direitos negados aos

sujeitos trabalhadores, grande demanda desta

modalidade, é sem dúvida pautar no espaço de

escolarização o direito à cidadania ativa desses

homens e mulheres. Nesse sentido é que trago

para reflexão um pequeno texto de nosso grande

sociólogo Betinho, retirado do Almanaque do

ALUÁ n. 02, de 2006, p.87:

São cinco os princípios da democracia, são cinco e juntos totalmente suficientes. Cada separado já é uma revolução. Pensar a liberdade, o que acontece em sua falta e o que se pode fazer em sua presença.

A igualdade, o direito de absolutamente todos e a luta sem fim para que seja realidade. E assim o poder da solidariedade, a riqueza da diversidade e a força da participação. E quanta mudança ocorre por meio deles.

3 O processo que norteia a educação popular é o movimento que dá um caráter dialético para a educação, contextualizando o processo real dos sujeitos envolvidos nele.

Se cada separado quase daria para transformar o mundo, imaginem todos eles juntos. O desafio de juntar a igualdade com diversidade, de temperar com solidariedade conseguida pela participação. Essa é a questão da democracia, a simultaneidade na realização concreta dos cinco princípios, meta sempre irrealizável e ao mesmo tempo possível de se tentar a cada passo, em cada relação, em cada aspecto da vida [...].

Cidadania e democracia se fundam em princípios éticos e, por isso, tem o infinito como seu limite. Não existe o limite para a solidariedade, a liberdade a igualdade, participação e diversidade... democracia é uma obra inesgotável.

Seguindo a linha de pensamento do

Betinho, trago para consideração atenta alguns

princípios que me são caros4 na discussão da

Educação de Jovens e Adultos: Igualdade de

acesso e permanência a escolarização para todos:

trabalhadores, desempregados; todos que não

tiveram acesso à educação em idade adequada.

Uma educação de qualidade que realmente faça a

diferença na vida dos sujeitos, que parta do

princípio da riqueza da diversidade, que possa

trabalhar com os limites e possibilidades de cada

um, pressupondo respeito às diferenças, as

particularidades, e ao mesmo tempo, ser feito um

trabalho coletivo, que venha ao encontro de uma

prática que viabilize a transformação da realidade

micro e macro em que está inserido o cidadão, na

construção de um mundo mais solidário e justo

para todos.

Chamo atenção para estes princípios que

se misturam, não existindo limites para tal. A

democracia se faz presente no cotidiano da EJA

quando educador e educando reconhecem-se

como interlocutores do processo, Estando no 4 Que são tidos em grande importância, que são imprescindíveis para esta modalidade.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

69

mundo (expressão freiriana), buscando um

diálogo verdadeiro, na perspectiva da ação-

reflexão–ação, certos de seu inacabamento.

Acredita-se veementemente que se pode transpor

essas palavras para o cotidiano da Educação de

Jovens e Adultos.

Formação continuada na EJA: garantia da possibilidade de mudança de paradigmas

Sem dúvida, percebe-se ruídos em relação

à concepção de EJA, ainda hoje - como ensino de

segunda categoria, herança trazida pela história,

pela falta de políticas públicas para a educação de

adultos em nosso País. Segundo Haddad e Di

Pierro (1999 e, apud caderno da EJA1, 2000,

p.9)” a preocupação com a EJA não se distinguia

como fonte de pensamento pedagógico ou de

políticas educacionais específicas”. Certamente, a

Educação de jovens e adultos mexe e desestrutura

o modelo arcaico de educação que a escola ainda

insiste em desenvolver.

Tenho a convicção que à EJA está

diretamente ligada à formação da cidadania ativa

dos sujeitos jovens e adultos, contribuindo de

forma direta na trajetória de vida das pessoas, na

projeção de diferentes possibilidades. Tem um

caráter transformador de mudanças reais na vida

dos sujeitos e da comunidade, contribuindo na

busca de uma vida com qualidade social. A EJA,

na maioria das vezes, aparece vinculada a um

projeto de educação e sociedade voltado para a

Gentetude5 do ser humano ,na qual o sujeito tem

o direito de optar , decidir e fazer suas escolhas.

5 Gentetude - expressão freiriana que quer dizer “gente com atitude”.

A EJA é parte da educação popular que

representa com exatidão a imediata e permanente

participação popular.

[...] ampliação de possibilidades de vida e de condição para a emancipação individual, reflexão e transformação da realidade, acesso ao conhecimento sistematizado. Ela não é neutra nem estéril, vai sempre tomar parte e gestar repetição se estiver voltada para a manutenção do sistema; transformação se estiver voltada para as classes populares, para a libertação. (Borges, 2005, p.24)

Muitas são as limitações que surgem no

desenrolar de uma ação que envolve rompimento

de paradigmas, no caso da EJA, dificultando o

processo de evolução no campo educacional,

criando uma espécie de proteção a qualquer tipo

de sedução possível, na intenção de quebrar

protótipos até então tidos como únicos e

absolutos. “O desrespeito à leitura de mundo do

educando revela o gosto elitista, portanto

antidemocrático, do educador que, desta forma,

não escutando o educando, com ele não fala. Nele

deposita seus comunicados.” (Freire, 1996,

p.139)

Quando se fala no modo elitista de ser

educador, fala-se na falta de consciência do

educador sobre seu espaço e sua classe. De uma

educação pautada na perpetuação da ordem social

vigente, na qual há uma visão dicotômica sobre a

questão do direito à educação: uma educação para

ricos, educação para excelência; e outra para

pobres, educação para a certificação e a serviço

do mercado de trabalho, como se o saber popular

não pudesse completar o científico e ambos

serem instrumentos para recriar o mundo de

forma esperançosa.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

70

Importante que se esclareça a centralidade

da ênfase curricular na EJA, que não corresponde

à mera aquisição de conhecimentos e, tampouco,

a uma menor “profundidade” ou a uma

abordagem resumida. O currículo da EJA deve

agregar um caráter desafiador, esperançoso e de

real importância para aqueles trabalhadores a

serem “atingidos” por ele.

É uma transgressão dizer que é necessário

construir uma relação dialógica entre os sujeitos

do processo ensino-aprendizagem, se há uma

distância entre o educador e o cotidiano dos

educandos em nome de uma “qualidade

mercantilista e conteudista”, não respeitando o

caráter humanista da educação.

O ato de ensinar e de aprender, dimensões do processo maior-o de conhecer -fazem parte da natureza da prática educativa. Não há educação sem ensino, sistemático ou não, de certo conteúdo. E ensinar é um verbo transitivo-relativo.Quem ensina, ensina alguma coisa-conteúdo-a alguém-aluno. A questão que se coloca não é a de se há ou não educação sem conteúdo, a que se oporia a outra, a conteudística porque, repitamos, jamais existiu qualquer prática educativa sem conteúdo. (Paulo Freire, 1992, p.110)

Cabe buscar a medida exata entre o que se

quer como educador e o que os educandos

querem como agentes do processo. É preciso ter

um “outro olhar” para esses sujeitos (educandos),

ir além da superfície do conteúdo como

conhecimento. Transpor os olhares para uma

educação humanizadora, vinculada ao desejo de

ensinar e aprender, construindo um projeto

educativo, voltado para as classes populares na

tentativa de contribuir na construção de uma

sociedade auto-sustentável, com a preservação

dos direitos do ser humano na sua totalidade.

Para isso o educador precisa reeducar os

olhares e as escutas, relacionando o significado

do vivido e do percebido. Fazendo conexões com

a realidade micro e macro, apreendendo os

significados de cada fala, cada olhar, num nível

de consciência crítica de estar no mundo (como

diz Paulo Freire), olhando para aqueles sujeitos

como únicos, construtores da história, que se

relacionam no meio social em que vivem. Ana

Maria Freire (2000, p.26) chama atenção para o

fato de “que o ato de escutar, em Freire, supera o

ato de ouvir, indo além deste, pois incorpora, ao

ouvir, o sentir e o sistematizar o que ouve”.

Durante o processo de docência o

professor constrói sua prática reflexiva,

pesquisando, investigando, numa relação dialética

entre o “já conhecido“ e o “desafio do novo”,

constituindo uma mediação da teoria com a

prática, visualizando de forma coletiva e

interativa a reelaboração do saber.

Portanto, é na atitude reflexiva que o professor reencontra suas perspectivas, enquanto um dos sujeitos do trabalho educativo. Refletindo, ele torna consciente o que poderia parecer apenas preconceito, sem embasamento científico. Ao mesmo tempo refletindo, o professor busca a clareza suficiente para acreditar em sua proposta educativa e, de antemão, sabe-se que sem um ideal, sem uma crença a educação ecoa no vazio (Goller, 1996,p.7)

Entre docentes da EJA (e mesmo entre os

docentes de outras modalidades) percebe-se, em

alguns momentos, o medo de ousar, de correr

riscos, que implica na tomada de posição a

respeito da opção desejada, desconstruindo

saberes dados, talvez pela academia, ou

amarelados pelo tempo, como importantes e

únicos. Faço minha as palavras de Paulo Freire

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

71

quando, em diálogo com Ira Shor, no livro Medo

e ousadia (1987, p.68), refere-se ao medo do

educador como algo concreto e não uma

abstração:

Na medida em que tenho mais e mais clareza a respeito da minha opção, de meus sonhos, que são substantivamente políticos e adjetivamente pedagógicos, na medida em que reconheço que, enquanto educador sou um político, também entendo melhor as razões pelas quais tenho medo, porque começo a antever as conseqüências desse tipo de ensino. Pôr em prática esse tipo de educação que prova criticamente a consciência do estudante, necessariamente trabalha contra alguns mitos, que nos deformam.Esses mitos deformadores vem da ideologia dominante na sociedade. Ao contestar esses mitos também contestamos o poder dominante. [...] Devemos estabelecer limites para nossos medos. Antes de mais nada, reconhecemos que é normal sentir medo. Sentir medo é uma manifestação de que estamos vivos. Não tenho que esconder meus temores. Mas o que não posso permitir é que meu medo seja injustificado e que me imobilize.[...] O medo pode ser paralisante.

Uma nova compreensão sobre a prática

educativa vem do reconhecimento da

mundanidade6 de homens e mulheres capazes de

protagonizar sua história, reconfigurando-a. De

fato, nesse aspecto, a prática educativa da EJA

contempla a multiplicidade dos educandos,

homens e mulheres, jovens e adultos, com

trajetórias diferentes, níveis de escolarização

diversificados, esforços e tempos diferenciados

de construção de conhecimento, assim como uma

estreita relação entre educação e trabalho, tendo

como intencionalidade a educação ao longo da

vida.

É nesse contexto que trago alguns

elementos do livro Pedagogia da autonomia de

6 Mundanidade é uma expressão freiriana que denota o sentido do homem e da mulher na sua totalidade de sujeito, com seus limites e possibilidades.

Paulo Freire (1996), para voltarmo-nos à

formação continuada dos educadores,

desencadeando um debate com densidade teórica

necessária, ao mesmo tempo em que reforça a

intencionalidade da mudança, do olhar do

educador de jovens e adultos, no importante

processo de direito e consolidação como política

pública desta modalidade, quer em âmbito

municipal, estadual ou federal.

Humildade - Exige de nós decência e

seriedade, que não constitui fraqueza, apatia, ou

falta de consideração consigo mesmo. A

humildade é característica dos sujeitos sábios,

seguros e de bom senso. É certamente

característica essencial para um educador

democrático. A humildade exige que tenhamos a

coragem de rever nossas práticas, de não termos

uma verdade única. No contexto do educador da

EJA, a humildade traz ressignificações para a

prática educativa, no sentido da ação-reflexão e

ação.

[...] Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar meu desconhecimento. Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. (Freire, 1996, p.75)

Capacidade para correr riscos – É

legítimo dizer que quem corre risco na educação,

ousa, busca, pesquisa, inova com seriedade,

coopera na transformação e produz saberes,

abortando de vez a desesperança, assume seu

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

72

papel de estar no mundo. “É próprio do pensar

certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do

novo, que não pode ser negada ou acolhida só

porque é novo, assim como o critério de recusa ao

velho não é apenas cronológico.” (Freire,

1996,39).

Acreditar numa proposta de EJA voltada

para a ousadia de transformar é correr riscos, é ter

a coragem de trilhar por caminhos desconhecidos,

é pesquisar e dessa pesquisa criar novas teorias,

fazer releituras das já existentes. Na medida em

que vão surgindo os obstáculos é saber buscar

soluções para cada um, na medida certa. Correr

riscos é uma virtude primordial, que implica em

ousadia, perseverança e atitude do educador.

Rigorosidade metódica – Enfatizamos a

importância do princípio da rigorosidade que

nada tem a ver com autoritarismo, com o mero

exercício repetitivo de transferir conteúdos, com

discurso bancário.

O educador que, segundo Paulo Freire

(1996), se pauta pela rigorosidade metódica dá

sinais de sabedoria e de segurança; sabendo o que

faz, com o olhar democrático, voltado para a

transformação do saber popular em saber

científico, na perspectiva de uma educação que

emancipe o sujeito e o torne, cada vez mais,

construtor de seu conhecimento e

consequentemente protagonista de sua história.

A rigorosidade de que falo não é aquela

que se escamoteia na superficialidade do

conteúdo, mas que vislumbra a possibilidade de

aprender criticamente, que perceba a totalidade e

a importância das relações entre todos os

instrumentos e estratégias adotadas.

O educador ou a educadora crítica, exigente, coerente, no exercício de sua reflexão sobre a prática educativa, ou no exercício da própria prática, sempre a entende na sua totalidade. Não centra a prática educativa, por exemplo, nem no educando, nem no educador, nem no conteúdo, nem nos métodos, mas a compreende nas relações de seus vários componentes, no uso coerente por parte do educador ou da educadora dos materiais, dos métodos, das técnicas. (Freire, 1992, p.110)

Tecendo algumas conclusões...

Estou convencida que, de fato,

aprendemos e ensinamos diariamente e, em todas

as situações, precisamos construir uma nova

cultura de formação entre os educadores,

fortalecendo ainda mais a formação continuada.

Para isto é imprescindível a pesquisa, o debate e o

aprofundamento sobre o contexto no qual são

tecidas as relações sociais, econômicas e políticas

dos envolvidos.

Certamente, é necessário que se reveja a

importância da relação professor-aluno na

construção de uma prática educativa

humanizadora, calcada na possibilidade de

mudança das relações de poder.

O processo de formação se dá de acordo

com o perfil de cada grupo de educadores,

considerando suas possibilidades e limitações,

sendo necessário e fundamental não perder de

vista, a construção metodológica baseada na

ação-reflexão-ação. Penso que a formação de

professores é uma construção cheia de boniteza,

edificada com dores e desafios, mas voltada para

a mundanidade dos sujeitos educadores e

educandos.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

73

Por isso, é extremamente fundamental que

na EJA, corajosamente, o poder público invista

fortemente na formação continuada de

educadores, tornando-a parte essencial na

implantação de uma política pública para esta

modalidade.

As reflexões que perpassaram nosso

diálogo nestas páginas apontam na direção de

alguns caminhos. Em minha experiência,

enquanto educadora e pesquisadora, pude

contatar a importância da formação inicial para

educadores da EJA, pautando princípios e

concepções, estendendo esta formação para uma

prática continuada semanal ou quinzenal, com

uma concepção voltada para a educação como

ação cultural. A pesquisa, os estudos, as reflexões

são fundamentais na escolha de uma metodologia

que traga para dentro da escola o cotidiano dos

sujeitos - seus saberes feitos (saber popular) - e os

transformem (saber científico), assim como o

fortalecimento do coletivo dos educadores e a

certeza de que o mais certo é não ter a certeza de

tudo, construindo permanentemente e de forma

coletiva o cotidiano da EJA.

Termino minha escrita com um parágrafo

do livro Pedagogia da esperança; um reencontro

com a Pedagogia do oprimido:

Não posso entender os homens e as mulheres, a não ser mais do que simplesmente vivendo, histórica, cultural e socialmente existindo , como seres fazedores do seu “caminho” que, ao fazê-lo, se expõem ou se entregam ao “caminho” que estão fazendo e que assim os refaz também.” (Freire, 1999, p.97)

Referências bibliográficas:

Almanaque do Aluá. Rio de Janeiro: SAPÉ, n. 2, jan. 2006.

BORGES, Liana; BRANDÃO, Sérgio (orgs.). Alfabetização de Jovens e Adultos do Século XXI - Sapo que virou Princesa. Tramandaí: Isis, 2004.

_________. Diálogos com Paulo Freire. Tramandaí: Isis, 2005.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 10ª ed. São Paulo: Paz e Terra. 2000

__________. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 32ª ed. São Paulo: Cortez, 1996.

__________. Educação e Mudança- 24ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

__________. Pedagogia da Autonomia. 12ªed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

__________. Pedagogia da Esperança. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

__________. Pedagogia do Oprimido. 20ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987.

_________.Conscientização: teoria e prática da libertação. 3ª ed., São Paulo:Centauro, 2001.

FREIRE, Paulo; SHOR.Ira. Medo e Ousadia - O cotidiano do Professor. 2ª ed.,Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GADOTTI, Moacir. Educação e poder: introdução à pedagogia do conflito. 6ª ed. São Paulo: Cortez &Autores Associados, 1985.

__________ Pedagogia da práxis. São Paulo: Corte &. Instituto Paulo Freire, 1995.

GOLLER,Liliana. Conhecimento, docência e escola. Ijuí: Ed. Unijuí, 1996.

HADDAD, Sérgio; DI PIERRO, Maria Clara. Escolarização de Jovens e Adultos, 1999. (xérox).

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

74

“Mulher não precisava estudar”: relatos de

vida e de violência simbólica

Andréia da Silva Pereira1

José Carlos Miguel2

Resumo: Neste artigo objetivamos apresentar os relatos

orais de vida de três educandas do Programa de Educação

de Jovens e Adultos (PEJA) e discutir as relações entre

família, feminino e educação. Tendo como categorias de

análise as teorizações sobre gênero e violência simbólica,

observamos as mudanças e permanências em relação à

pluralidade de identidades das mulheres participantes da

pesquisa realizada; identidades essas que são sociais e que

remetem ao que significa a educação escolarizada para as

entrevistadas.

Palavras-chave: Educação de Adultos. Escolarização de

mulheres. Relações de gênero.

Mulheres em sala de aula

Estudar o feminino implica em tomar

demasiadas precauções a fim de não vitimizar ou

heroicizar os sujeitos da pesquisa3, pois as

mulheres são atrizes de sua história, mas não

compreendem sujeitos isolados dos

acontecimentos. Foram, por muitas vezes,

sujeitos silenciados, mas têm as suas vozes, as

suas versões dos fatos. E fatos que, no contexto

da pesquisa, tomaram proporções diferenciadas,

pois são mulheres de uma história em construção,

num distrito denominado Padre Nóbrega. Mas,

1 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista e pesquisadora em alfabetismo funcional. 2 Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista, coordenador geral do PEJA (Programa de Educação de Jovens e Adultos). 3 Soihet (1997) e Louro (1997) são autoras que alertam para esta precaução quando os estudos referem-se ao feminino.

que olhar focaria a sua atenção para um distrito a

9 Km da cidade de Marília – localizada no

interior do estado de São Paulo– e com pouco

mais de 5000 habitantes?4 E que realidade

poderia revelar a emergência de um estudo

naquela localidade?

Ao fim do ano de 2001, com diversas

questões sobre os motivos que configuravam o

feminino como perfil dos educandos do PEJA5

em Padre Nóbrega, iniciamos pesquisa na área da

educação de jovens e adultos que relacionou

mulher e educação, num estudo sobre os motivos

que impulsionavam as mulheres residentes no

distrito de Padre Nóbrega a freqüentarem as aulas

do programa.

Foram quatro anos de pesquisa em que,

considerando a peculiaridade do PEJA em Padre

Nóbrega, reorganizamos nossas observações

acerca dos motivos que impulsionavam a

presença das mulheres no Programa. A presença

feminina reconfigurava não somente o espaço

físico da sala de aula, mas também os modos

como os discursos das educandas retratavam uma

visão de mundo acerca do feminino e do

masculino de um ponto de vista biológico da

diferença que, em verdade, fora construída

cultural e historicamente.

4 Dados fornecidos pela Comissão Organizadora dos Registros Históricos da Câmara Municipal e da cidade de Marília no último levantamento feito, em 1994. 5 O Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA) está vinculado ao Programa UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Integração Social e Comunitária da PROEX (Pró Reitoria de Extensão Universitária). No campus de Marília – cidade em que se localiza a Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista - é desenvolvido desde 2001.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

75

De posse dessas considerações, de um

universo de 16 educandas, foram selecionadas 3 -

por meio de sorteio – para a realização de

entrevistas, baseadas nos relatos orais de suas

vidas6. Todas as entrevistas foram realizadas no

ano de 2003, com duração média de três horas

cada, realizadas na casa de cada uma das

educandas, conforme as condições abaixo

descritas (nome da entrevistada, idade, grau de

escolaridade, estado civil e condições de

entrevista):

� Clarinda, 58 anos, freqüentou a escola

regular por menos de seis meses, casada.

A entrevista transcorreu bem, sendo que o

marido da entrevistada levou as netas para

passear, deixando a sua esposa mais à

vontade para falar. Ela não demonstrou

vergonha e falou de várias passagens de

sua vida, indo além das questões básicas

feitas.

� Benedita, 72 anos, freqüentou a escola por

um ano, casada. Foi uma entrevista

realizada na casa da aluna, que se sentiu

insegura durante a entrevista ao falar do

seu marido e das violências cometidas por

ele há anos atrás. Demonstrou rancor

quando relatava as pressões sofridas para

6 Todas as educandas permitiram a publicação de seus relatos orais por meio do Termo de Livre Consentimento, aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Filosofia e Ciências – Campus de Marília. As entrevistas foram realizadas na residência de cada educanda por solicitação das mesmas. O argumento das entrevistadas para tal solicitação teve base no fato de que, como donas de casa, não poderiam se ausentar do lar no período diurno e vespertino. O período noturno ficava reservado para a freqüência das aulas do PEJA.

que não estudasse; houve seleção rigorosa

por parte da entrevistada sobre o que

relataria ou não para mim e do que

desejava ou não que fosse publicado. No

início da entrevista estávamos somente eu

e ela, mas o marido da entrevistada

chegou e, quando notou a presença do

gravador, passava pela cozinha a todo o

momento para pegar copos de água.

� Aparecida, 70 anos, nunca freqüentou a

escola, casada. A entrevista foi realizada

na cozinha da casa da aluna e a sua

preocupação era com o que ela deveria

falar. No início das questões, ela ainda me

tratava hierarquicamente como professora

e não como entrevistadora. O filho da

entrevistada saiu da casa para que a

entrevista pudesse ser realizada. A

entrevistada solicitou o desligamento do

gravador para relatar momentos de sua

vida que não desejava ver publicado.

Para a realização das entrevistas, as

abordagens e os métodos e materiais adotados

qualitativamente tiveram base fundamental nos

autores que abordam e discutem os relatos orais

de vida, tais como Queiroz (1987, 1988) e Trigo

(1992). Os materiais utilizados para o andamento

da pesquisa tiveram relação direta com o tipo de

abordagem adotada. Nesse sentido, as entrevistas

realizadas com as três educandas selecionadas

foram gravadas, sendo que seus dados foram

registrados em fichas de identificação,

contemplando informações como idade, sexo e

estado civil.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

76

Partindo do embasamento teórico

fundamental e dos materiais utilizados, a pesquisa

teve como método inicial adotado a análise

bibliográfica e documental, aprofundando os

temas referentes ao desenvolvimento histórico da

educação de jovens e adultos, bem como gênero e

educação feminina.

Esses elementos serviram de base para a

análise das entrevistas com as educandas que

foram transcritas e analisadas tematicamente,

com base em Queiroz (1987), de modo que foram

destacados os tópicos em comum nos relatos –

considerando que o eixo fundamental está

relacionado a seus relatos orais, a partir do acesso

e permanência à educação e a atual freqüência

nas salas de EJA, na perspectiva de gênero.

As entrevistas foram recompostas a partir

da importância e da seqüência dos temas

encontrados nos relatos, considerando que eles

poderiam encaminhar as análises para outros

temas, relacionados à EJA e aos motivos que

impediram as três educandas entrevistadas de

freqüentarem a escola em idade escolar. Os

depoimentos, assim, foram reunidos a partir da

temática a que pertencem, numa análise-síntese

documental, desejando captar nos relatos orais de

vida extra-escolar e aspectos nos relatos que são

relevantes e poderiam ser considerados em sala

de aula.

As entrevistas foram realizadas nas casas

das educandas, em momentos que elas julgaram

mais adequados, sendo as falas gravadas em fitas

cassete. Inicialmente era comum a vergonha

tomar conta das alunas, mas elas iam se

acostumando e quando víamos, elas já estavam

falando até de outros assuntos, transformando as

entrevistas em conversas agradáveis.

As entrevistas tiveram base para serem

realizadas em LÜDKE, considerando que:

Parece-nos claro que o tipo de entrevista mais adequado para o trabalho de pesquisa que se faz atualmente em educação aproxima-se mais dos esquemas mais livres, menos estruturados [...] Há uma série de exigências e cuidados requeridos em qualquer tipo de entrevista. Em primeiro lugar, um respeito muito grande pelo entrevistado. Esse respeito envolve desde um local e horário marcados e cumpridos de conveniência até a perfeita garantia do sigilo e anonimato em relação ao informante, se for o caso. (LÜDKE, 1986, p. 34-35)

Foi adotada, assim, a entrevista com

questões semi-estruturadas para que as educandas

pudessem discorrer melhor em seus relatos. Em

respeito ao sigilo e individualidade de cada

entrevistada, foi questionado às mesmas sobre a

autorização ou não da divulgação de seus nomes.

As autorizações foram dadas, conforme

explicitado no início deste texto, a partir do

Termo de Livre Consentimento.

Para que a abordagem em gênero e

educação de jovens e adultos contemplasse, de

fato, a relações entre homens e mulheres e a sua

possível relação com o processo educativo no

projeto Educação de Jovens e Adultos, a

perspectiva do relato oral de vida tornou-se

fundamental. Isso porque é através dele que se

torna possível conhecer a forma como o sujeito se

vê e como a sua vida tem relação direta com a

falta de acesso à educação escolarizada.

Outro aspecto relevante foi a abordagem

da vida dos alunos na perspectiva de sujeito ativo

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

77

da sociedade e como aluno que busca na EJA

uma tentativa de retorno aos estudos. Isso

considerando o jovem e adulto em diferentes

enfoques, pois estes carregam diversas

experiências de vida, sejam elas escolares ou não,

que não podem ser excluídas do ambiente em que

as aulas ocorrem; isso abarca a necessidade de

conhecer, de fato, os motivos que configuram um

determinado alunado nas salas de EJA em Padre

Nóbrega.

Esses aspectos tornam-se importantes ao

passo que conhecer os relatos das educandas

promove a obtenção de elementos para a

construção de uma proposta pedagógica nessa

modalidade de educação e suas realidades.

Reconhecer o relato oral de vida como

instrumento de análise do cotidiano dos alunos e

também dos motivos que impediram seu acesso

e/ou permanência à educação escolarizada,

ampliando o campo de pesquisa e a

multiplicidade de objetos a serem analisados.

A perspectiva adotada partiu do conceito

de gênero como categoria de análise, conforme

proposto por Louro (1997), Benoit (2000), Priore

(2000) e Muraro (1993), tendo sido possível,

assim, a realização de pesquisa de campo que

privilegiava as relações que impediram o acesso

das entrevistadas à educação escolarizada.

Gênero e violência simbólica

Para compreender as questões que

relacionam violência simbólica e os discursos das

educandas entrevistadas fundamentamos as

análises nas considerações de Pierre Bourdieu,

mais especificamente em seus conceitos de

habitus, campus e violência simbólica, que

elaboram um conjunto de disposições do agir,

pensar e sentir de determinada maneira

(BOURDIEU, 1989). O habitus gera as práticas e

as representações, e é imposto, porque o habitus

gera práticas e representações pertinentes às

instituições, inclusive a familiar, que condiciona

o aprendizado e, no caso de gênero, cria

identidades de feminino e masculino. Tais

identidades são construídas social, histórica e

culturalmente e orientam e constituem as ações

de homens e mulheres, sendo também construídas

nas relações entre homens e mulheres. Nesse

contexto, acaba por existir um sistema de

disposições que dão significado às ações e às

representações do indivíduo. Esse sistema adentra

as consciências e perpassa as práticas e estruturas

sociais e individuais (BOURDIEU,1989). Nas

constituições de feminino e masculino o conceito

de violência simbólica se apresenta de diversos

modos, incluindo gestos e falas, pois a própria

construção de identidades feminina e masculina

se dá na interiorização das categorias que

expressam e reproduzem uma forma de violência.

Ou seja, são violentados simbolicamente, homens

e mulheres, para que os papéis socialmente

construídos sejam reproduzidos. Não é necessário

que exista agressão física para que seja

caracterizada a violência:

A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante ( e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

78

dominação, fazem essa relação ser vista como natural. (BOURDIEU, 1999, p. 41)

A própria violência simbólica tem

modalidades. O discurso é uma delas, pois

evidencia e reforça as representações de feminino

e masculino. Inserida nessa consideração, uma

questão fundametal que envolve a discussão em

torno da violência simbólica está nas relações

entre homens e mulheres, pois a sutileza com que

a violência atinge os gêneros permite

compreender melhor como a força física e a

imposição pela agressão passam a ser elementos

menos convincentes que um discurso ou gesto.

Esses elementos é que buscamos analisar na

pesquisa.

Dos conceitos que discutimos - a partir da

análise dos dados - elaboramos um esquema de

como a violência simbólica pode se materializar

nas relações entre homens e mulheres:

De modo geral, a construção social da

polaridade feminino X masculino acaba por se

justificar na diferença física e, assim, a adesão

dos que são dominados. No caso das mulheres,

ocorre, entre outros fatores, porque a

naturalização do processo de dominação, pois a

naturalização das relações de gênero transforma o

que é histórico e imposto em algo entendido

como um processo comum, é visto/tido como

correto. É como nascer homem ou mulher, ou,

feminino ou masculino a partir da diferença

anatômica. O social toma o biológico e faz dele a

justificativa para as mais variadas formas de

dominação e a masculina passa a ser determinada

pela força física, oposta ao sexo frágil, à

feminilidade.

No campo das relações de dominação, no

entanto, deve-se considerar, ainda, que

Por outro lado, a incorporação da dominação não exclui a presença de variações e manipulações por parte dos dominados. O que significa que a aceitação, pela maioria das mulheres, de determinados cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente, construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a relação de dominação. (SOIHET, 1997, p. 12)

Em relação à violência simbólica, a

construção do ideal de feminino e masculino ao

longo da história, na história das mulheres em

geral ou na das educandas entrevistadas,

exemplifica como as representações tomam as

consciências e transformam a violência evidente

em mascaração e conseqüente naturalização do

social, ou seja, como a diferença meramente

sexual deixa de ser primordial para dar lugar ao

construído social e historicamente através de

discursos e ações normatizadoras.

O poder, nesse contexto, toma forma nas

relações de dominação, no construído e

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

79

reformulado, na troca das posições de dominação,

na violência simbólica contra si mesmo. O

dominar e ser dominado surge e se reforça nas

relações construídas e é, nesse ponto, que as

relações de poder têm importância, uma vez que

Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais do que se possui, que não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito do conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. (FOUCAULT, 1987, p. 29)

Há uma relação e não um elemento que se

possui. Interessa então as relações de poder, que

são múltiplas e estão em troca a todo o momento.

Ela se dá de forma sutil e contínua. Nas relações,

tem-se poder sobre a ação sem estar diretamente

agindo sobre o sujeito e isso se dá de forma

mascarada. O poder não precisa estar explícito

para ser exercido. Ao contrário, ele tem mais

influência quando exercido sem chocar, sem ferir

diretamente, em uma espécie de convencimento,

de naturalização.

Violentar o outro significa, no contexto

das questões de gênero, diferenciar atitudes

femininas e masculinas. Ser homem é ser

masculino, no sentido social da palavra, ou, ter

atitudes ditas de machos. Ser mulher, ao

contrário, é ter atitudes frágeis, femininas, de

fato. Dessa forma, o que não é naturalizado,

normal, perde o seu valor.

Esse poder não só reprime como constrói

nas mentes conceitos de normal e anormal. O

julgamento do que é ser feminino ou masculino é

construído, reformulado e reforça as relações de

poder existente entre os gêneros.

Isso ocorre porque o poder é forte. O

poder reprime, mas essa não é sua exclusividade,

pois ele convence nas relações. Ao mesmo tempo

em que cria hierarquias, ele fabrica, adestra,

molda, constrói necessidades, opiniões, ações

(FOUCAULT, 1979). Ele modela o ser e o sentir,

feminino e masculino, nas formas mais sutis da

construção, da normatização.

Os meios de manutenção das relações de

poder são os mais diversos. Além dos discursos,

temos meios de comunicação e instituições

diversas. Quantas vezes jornais, revistas, músicas,

igrejas, escolas e a família não ditaram o ser

feminino e masculino?

No caso das educandas entrevistadas,

esses elementos permitiram a análise dos modos

como o feminino e suas relações sociais são

permeados pelas construções sociais. As

necessidades de estudo, trabalho, de exercer a

maternidade e outras, transformam a negação ou

o impedimento de acesso à educação escolarizada

em um conjunto de permanências e mudanças,

em que ser mulher, por vezes, significou

transgredir e/ou silenciar.

Mulher e educação: permanências e mudanças

Por que entrevistar três mulheres? O que

as havia impedido de estar na escola

anteriormente? Essas questões deram início à

pesquisa sobre gênero e educação de jovens e

adultos.

As respostas a essas questões foram

obtidas a partir das educandas que, contando suas

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

80

histórias, revelaram a família como elemento

fundamental no processo de constituição das

identidades femininas pautadas nas

representações de maternidade e casamento.

Educação para elas se tornava uma

impossibilidade, visto que os discursos sobre o

ser mulher determinaram sua exclusão da

educação escolarizada e da aprendizagem da

leitura e da escrita por décadas e décadas.

Ser mulher era, por muitas vezes, estar

confinada ao espaço doméstico, privado. Essa foi

a educação recebida pela maioria das educandas.

Desse modo, representações se consolidaram e

transformaram homens e mulheres em seres

dicotômicos e privados de atitudes e/ou palavras

que representassem uma divergência no papel

dito natural e correto a ser seguido. As histórias

das educandas se confundem com a condição

feminina no Brasil:

Talvez em nenhum outro lugar tenha sido a distância entre os sexos, que caracterizou a estrutura patriarcal, mais claramente articulada que em suas imagens de macho e fêmea [...] as relações entre os sexos sob o sistema patriarcal eram baseadas num princípio de extrema oposição e diferenciação [...] O homem e a mulher e, por extensão, os próprios conceitos de masculinidade e feminilidade foram assim definidos, em termos de sua oposição fundamental, como uma espécie de tese e antítese. (PARKER, 1991, p. 57-58)

Posto que nos relatos orais de vida das

educandas, a família se constitui como principal

elemento ou fator de freqüência dos alunos à

educação, torna-se necessário buscar nos

discursos das entrevistadas possíveis formas

sofridas ou reproduzidas de violência simbólica

no que se refere à educação.

A violência simbólica (BOURDIEU,

1989; 1999) foi investigada nas relações das

educandas com seus familiares, primordialmente,

e com pessoas diretamente ligadas a elas. A

violência simbólica investigada nos discursos das

educandas incluiu o que as mesmas entendiam

como ser mulher e do modo como se davam as

relações de gênero em suas práticas sociais.

Desse modo, para que a abordagem de

gênero em educação de jovens e adultos

contemplasse, de fato, a relações entre homens e

mulheres e a sua possível relação com o processo

educativo no PEJA, os relatos orais de vida das

educandas foram fundamentais, visto que, através

deles, foi possível conhecer a forma como as

entrevistadas se viam e como as suas vidas

tinham relação direta com a falta de acesso à

educação escolarizada.

Outro aspecto que necessita de ressalvas

se refere à necessidade de uma análise que

reconhecesse em cada relato a dinamicidade das

relações envolvidas no acesso, negação e/ou

permanência à educação escolarizada.

Foram diversos os motivos relatados pelas

entrevistadas para o não acesso e/ou permanência

na escola, sendo que a questão de gênero sempre

esteve presente nos relatos, fosse pelos discursos

que justificavam o lugar da mulher na sociedade

como aquele destinado ao lar, fosse pelas atitudes

das próprias educandas, ao cumprirem funções de

mãe ou esposa diante da constituição da vida

junto a um companheiro.

Os relatos, assim, retratam as variáveis

que envolveram o analfabetismo das

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

81

entrevistadas, sendo que todas elas dividiram a

questão da escolarização em suas vidas em três

períodos fundamentais: 1) infância, 2) casamento,

3) freqüência ao PEJA. As análises, assim,

priorizaram a reconstrução dos momentos

relatados pelas educandas, interpretando as suas

dificuldades, resistências, transgressões e

manutenções do papel da mulher na sociedade e

sua relação com a educação escolarizada. Neste

artigo selecionamos alguns extratos de seus

discursos para análise:

Infância e escola

Quando eu era pequena, a gente morava na fazenda... na fazenda São Paulo e não tinha escola e meu pai era daqueles velhos ignorantes que não estudava e também não deixava estudar. Só estudava homem na família do meu avô. Quer dizer, mulher não precisava estudar. (Clarinda)

Eu tinha que colher o arroz antes da chuva e era assim, uma desculpa atrás da outra... E aí era assim, eu ia para a escola uns dois meses, faltava mais do que eu ia... (Clarinda)

Eu não estudei porque naquele tempo a gente morava na fazenda e não tinha escola e mesmo quando tinha era muito longe. Às vezes tinha escola assim, na casa dos outros, mas a gente não podia ir porque meu pai não deixava. Ele falava que a gente que era mulher não precisava estudar. Ele falava assim que eram só os homens que estudavam, que mulher só podia trabalhar [...] um dia, mais velha eu fui escondida do meu pai numa escola na outra fazenda. Aí ele descobriu e foi atrás de mim. Ele ficou tão bravo! Me levou de lá e me xingou, que mulher não precisava estudar. Minha mãe não falou nada. Ela não podia falar nada... (Aparecida)

A perspectiva de educar perpassa pela

criação de necessidades diretamente ligadas ao

que é aceito pela sociedade. Mais que uma forma

de organização, a família se apresenta, em alguns

momentos, como fonte de impedimentos para o

estudo. Outros fatores, tais como trabalho,

condições sociais e econômicas também se

relacionam com os impedimentos de acesso à

educação escolarizada. A família, não sendo um

todo homogêneo, se mostra como aquela que

impede, mas, também, como fonte de incentivos e

transgressões no que se refere à educação

escolarizada.

No caso de Aparecida as construções

sobre o ‘ser’ mulher – entendido como as

representações sobre as funções femininas na

sociedade – e o impedimento de estudar pelo pai

tiveram relação com as necessidades de trabalho,

em que a sobrevivência dependia do trabalho e

não do estudo.

Em outros momentos, como no relato de

Clarinda, o trabalho surge como necessidade,

porém, as questões de gênero são mais explícitas.

O fato de mulher não precisar estudar foi a ênfase

dada pela entrevistada. Cabe ressaltar que, nesses

discursos, as questões econômicas e de classe

também se mostraram relevantes, porém, quando

as justificativas para o não acesso à educação

escolarizada surgiam, se referiam ao papel da

mulher na sociedade.

A violência simbólica, nos relatos, se

misturou às condições sociais das entrevistadas,

configurando as submissões que, conforme já

explicitamos com base em Soihet (1997),

permitia, também, a subversão da relação de

dominação, como no relato de Aparecida que foi

à escola escondida do pai.

Outro momento marcante na vida das

educandas entrevistadas tem relação direta com o

casamento, momento em que seus companheiros

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

82

e a família se mostraram fundamentais para o

retorno e/ou abandono da escola:

Estudo e casamento

Meu marido era meio estúpido, né... não gostava muito. Ele bebia muito. Quem trabalhava era eu. Ele bebia demais, bebia mais de um litro de pinga por dia. E ele ficava deitado na cama ou no sofá, ele tinha coleção desses livrinhos policiais. Ele ficava deitado lendo e eu ia trabalhar. O único lugar que ele não falava nada era para trabalhar, mas de resto... eu não podia sair para nada. Eu só saía para trabalhar... Às vezes, para brigar, ele judiava das meninas. Brigava com as meninas ou batia nelas para poder brigar comigo. Aí numa briga feia que nós tivemos eu peguei um pau que estava na porta e, quando ele veio para cima de mim, eu levantei o pau e ele saiu correndo de medo... Mas ele era terrível, terrível, terrível... eu pedia às vezes, que eu tava na escola para ele olhar as meninas. Ele judiava muito das meninas para eu faltar. A vida é essa... a vida minha não foi fácil ... (Clarinda)

Quando casada eu precisei trabalhar também, para ajudar meu marido. A gente morava em fazenda e eu nunca deixei de trabalhar, tinha meus filhos pra cuidar também. Era diferente, eu trabalhava, mas eu tava casada e tinha liberdade. Era diferente. (Aparecida)

Quando eu entrei na escola eu estava com 44. Depois eu saí né, porque o véio ficava me enchendo o saco ... é que ele brigava muito, bebia muito e aí eu saí da escola, porque quem bebe briga ... ele brigava porque gostava de brigar. Eu tava aprendendo bem, tava aprendendo a fazer conta, aprendendo tudo. Depois eu larguei mão, porque ele falava para mim que eu ia atrás de homem. A gente brigava quase toda noite, ele me tocava de casa ... (Benedita)

Aparecida relata uma disparidade: a falta

de oportunidade em freqüentar a escola atrelada à

necessidade de auxiliar o marido no trabalho. A

liberdade aparece como principal elemento que

constituiu sua vida durante o casamento. Apesar

de não estudar, a entrevistada enfatizou o termo

liberdade, numa referência ao pai, que a impediu

de estudar durante sua infância e início da

adolescência.

Nos casos de Clarinda e Benedita, os

relatos se tornam mais enfáticos, dado que as

lembranças são de companheiros que –

explicitamente – impediam seus estudos. A

questão patriarcal se mostrou latente nesses

relatos, que fizeram com que as entrevistadas

abandonassem o MOBRAL (Movimento

Brasileiro de Alfabetização).

Os relatos, salvo o de Aparecida, foram os

mais difíceis para as entrevistadas, porém,

Clarinda e Benedita relataram suas mudanças,

transgressões e, também, as permanências. Esses

elementos se mostravam latentes à época da

freqüência dessas educandas ao Programa de

Educação de Jovens e Adultos (PEJA):

Freqüência ao PEJA

O Toni? Ele tira um sarro, né. Ele fala: 'Ah, você não vai aprender coisa nenhuma. Você é durona, você é ruim, não vai não’. Mas a minha mãe, os outros... todos incentivam. Ele também. Fica tirando sarro, mas ele gosta que eu vou. (Clarinda)

O véio falou que eu não ia aprender nada, que já estava velha, mas eu falei que ia, que ele não mandava [...]. Agora ele fala se depois de velha eu vou aprender alguma coisa. Se eu der moleza ele quer mandar e desmandar e fala: 'Depois que começou a estudar ficou bocuda'. Eu era boba. Ele falava, falava e eu só escutava. Comecei a estudar e fiquei mais sabida e aí eu comecei a responder para ele. (Benedita)

Ah, meu marido, meus filhos e meus netos dá a maior força! Eles vêm aqui e falam: “a vó ta lendo!”. Meu marido gosta que eu aprenda. Porque antes eu não estudava por causa dos filhos, mas agora eu to lendo já. (Aparecida)

Em relação à freqüência às aulas do PEJA

os relatos são variados. Há a violência simbólica,

relatada por Benedita nas discussões com o

marido, assim como os incentivos e os

comentários das famílias de Aparecida e

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

83

Clarinda. Embora Tony, esposo de Clarinda, fale

do possível não aprendizado, as relações se

estabelecessem sem embates diretos. Mesmo

Benedita relata momentos menos violentos que os

de outros anos de seu casamento.

Os desafios de aprendizagem, no

momento das entrevistas, agregavam o fator da

idade. Todas as educandas relataram as

dificuldades de atenção, aprendizagem e

memória. Porém, os desafios da idade se

recompensavam pela oportunidade de estudar,

conhecer os escritos, ler o mundo.

Essa questão, quando relacionada com as

educandas entrevistadas, remete às possibilidades

de mudança em relação ao que as próprias

consideram como ser mulher: a possibilidade de

aprender, de transgredir, de possuir identidades

múltiplas.

Assim como a mudança, existe a

permanência, a construção de representações

pautadas no modo como homens e mulheres se

relacionam nas situações cotidianas. São os

meandros das relações entre homens e mulheres.

A busca pela educação escolarizada para

as entrevistadas pareceu, durante a pesquisa, mais

que uma busca pela leitura das palavras: pareceu

uma busca pela leitura de suas próprias histórias,

ou, nas palavras de Aparecida:

Um dia, antes de dormir eu fui rezar e prometi pra Deus que eu ia estudar e que eu não ia morrer analfabeta. Que eu ia aprender a ler, nem que fosse um pouquinho. E eu to lendo né? Tô lendo bem...

Algumas considerações

Desde a infância até o momento de

retorno aos estudos, o que notamos foi a

construção acerca do ser homem e ser mulher que

está arraigada na mentalidade das educandas

entrevistadas. É revelador como a problemática

do gênero percorre as mentes dessas educandas e

o modo como a diferença se constituiu em suas

vidas, muitas vezes, em elemento fundamental

para a permanência ou não na educação

escolarizada. É a diferença que exclui e determina

qual direção ‘deve’ ser tomada.

A diferença a que nos referimos se

constitui no sentido em que, uma vez impedidas

de estudar, as entrevistadas viram no ‘ser’

mulher, uma diferença fundamental quanto ao

acesso e permanência à educação escolarizada.

Pertencer ao gênero feminino significou, por

vezes, ter a função de maternidade.

Reconhecer a importância das

representações sobre gênero e suas relações com

o acesso à educação escolarizada remonta à

compreensão das necessidades de quem busca as

salas de EJA. Afinal, o que significa aprender a

ler e a escrever para mulheres que passaram a

vida sendo impedidas de estudar? Qual a

importância da aprendizagem da leitura e da

escrita para essas mulheres?

Para buscar algumas respostas

necessitamos, em nossa pesquisa, ouvir as

educandas. E mais, compreender suas concepções

sobre as relações de gênero. E dessa pesquisa

surgiram duas questões essenciais.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

84

A primeira tem relação com violência

simbólica e representações de gênero. A segunda

remete ao papel do educador na problemática que

envolve a violência simbólica sofrida e

reproduzida pelas entrevistadas, que se relaciona

diretamente com a educação escolarizada. No

caso específico das nossas discussões, gênero e

educação estabelecem relações fundamentais para

a pesquisa, uma vez que

Para promover a cidadania das mulheres, então, é essencial oferecer contradiscursos nos quais a possibilidade do engajamanto ativo de mulheres em transformação social nos níveis micro e médio seja locada. Isso implica planejar as aulas de alfabetização de modo a encorajar o engajamento do estudante por meio de pedagogias alternativas e não autoritárias tais como conversas, jogos, dramatizações e teatro popular. Também implica que os professores de alfabetização tenham consciência das questões envolvendo gênero e que sejam treinados para administrar aulas de alfabetização que utilizem as experiências e habilidades dos adultos em lugar de reproduzir as formas escolares de educação, freqüentemente semelhantes às de uma sala de aula de primeiro ano. (STROMQUIST, 2001, p. 312, grifo da autora)

A perspectiva de uma educação

diferenciada, com vistas a não-reprodução da

sociedade que polariza homens e mulheres em

suas práticas sociais se torna elemento importante

para a questão que envolve feminino e educação,

pois essa perspectiva envolve trabalhar também

com os valores negativos do feminino em relação

ao sexo masculino. É a necessidade de pensar a

relação de gênero em sua concepção de

construção, contrário a uma abordagem feminista

da condição da mulher (MATOS, 2000).

Educar para a igualdade e não para uma

nova polaridade. É compreender-se como vítima

e como opressor, como produtor de discursos e

reprodutor da diferença construída socialmente.

Por esse motivo é que as discussões se pautaram,

primeiramente, na análise dos discursos das

educandas para depois buscar a relação entre

família, educação e violência simbólica.

Outra consideração relevante se refere à

forma como a família imprime nos sujeitos o ser

feminino e masculino. É a perspectiva de uma

educação voltada para a criação de pessoas ditas

normais para os padrões sociais. Tudo no

processo de violentar ao outro e a si mesmo,

sendo que a educação passa a constituir-se como

mantenedora da representação vigente.

Ser parte de uma família implica, muitas

vezes, em abdicar de vontades e estabelecer

prioridades que não permitem que o estudo seja

visto como uma forma necessária de reflexão e

questionamento da própria realidade.

Considerar homens e mulheres como

membros de uma sociedade brasileira patriarcal é

uma forma de questionar essa condição. E esse é

o papel fundamental da educação. Mais que o

ensino das letras, a perspectiva de ensino é a da

humanização e da consciência.

Referências Bibliográficas

BENOIT, Lelita Oliveira. Feminismo, gênero e revolução. Crítica marxista. São Paulo, n. 11, p. 76-88, out. 2000.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico Tradução de Fernando Tomaz 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S. A, 1989.

______. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1999.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

85

BRIOSCHI, Lucila Reis; TRIGO, Maria Helena Bueno. Família: representação. São Paulo: CERU/CODAC/USP, 1989.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 7. ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Ligia M. P. Vassallo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

LÜDKE, Menga. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da mulher. Bauru, SP: EDUSC, 2000.

MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio: uma história da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o futuro. 3. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.

PARKER, Richard G. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo Tradução de Maria T. Cavallari. São Paulo: Best Seller, 1991.

PRIORE, Mary Del. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: SOUZA, Laura de Mello e. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000, p. 217-235.

QUEIROZ, Maria Izaura. Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. Ciência e cultura, v. 39, n. 3, p. 272-286, mar. 1987.

SOIHET, Rachel. Violência simbólica: saberes masculinos e representações femininas. Estudos feministas, Rio de Janeiro, v.05, n 1/97, p. 7-29.

STROMQUIST, Nelly P. Convergência e divergência na conexão entre gênero e letramento: novos avanços. Tradução de Denise T. R. de Souza. Educação & Pesquisa, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 301-320, jul/dez. 2001.

TRIGO, Helena Bueno; BRIOSCHI, Lucila Reis. Interação e comunicação no processo de pesquisa. In: LANG, Alice da S. G. (org.). Reflexões sobre a pesquisa sociológica. São Paulo: CERU, 1992, p. 30-41.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

86

Os caminhos da linguagem: possibilidades de

aprendizagem por meio do audiovisual na EJA

Michel Silva1

Resumo: Neste ensaio, tomando como ponto de partida o

estágio realizado em uma das unidades da Educação de

Jovens e Adultos (EJA) de Florianópolis, pretende-se

analisar a utilização do audiovisual como ferramenta na

prática de ensino. Dessa forma, refletindo acerca do

letramento dos sujeitos da EJA, explicita-se o papel que o

audiovisual, nas suas diferentes fases de criação e

realização, pode cumprir no processo de ensino-

aprendizagem e a contribuição desta ferramenta na

formação de jovens e adultos.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos;

linguagem audiovisual; letramento.

Abstract: In this trial, taking as its starting point the stage

held in one of the units of Education for Youth and Adults

(EJA), Florianopolis, it is intended to examine the use of

audiovisual as a tool in the practice of teaching. Thus,

reflecting on the subject of literacy EJA, explicitly is the

role that the audiovisual media, in its various stages of

creation and implementation, can meet in the learning

process and how these tools can help in the training of

young people and adults.

Key-words: Education for Youth and Adults; language

audiovisual; literacy.

Introdução

Causa-nos receios, temores e

preocupações uma primeira aproximação com

sujeitos da Educação de Jovens e Adultos (EJA);

afinal, se não temos contato com esses sujeitos,

descritos em estudos de caso disponíveis para

leitura nos mais variados volumes e coletâneas, 1 Graduando em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e em Ciências Sociaia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

eles realmente não passam de interpretações dos

pesquisadores. Cada sujeito pesquisado, em cada

local, em cada tempo, é diferente, por isso, estar

frente a frente com pessoas desconhecidas, sobre

as quais temos algumas poucas informações

genéricas, pode causar inclusive espanto.

Sabemos que essas pessoas trabalham, que estão

fora da idade escolar regular, que têm suas vidas

marcadas pelas mais variadas dificuldades, que

cada uma tem um motivo específico para procurar

novamente a educação formal. Mas, mesmo tendo

uma grande variedade de estatísticas e algumas

descrições, as pesquisas disponíveis pouco ou

nada dizem acerca das pessoas concretas com as

quais nos deparamos quando entramos numa sala

de aula para falar de assuntos sobre os quais

talvez aqueles sujeitos nem sequer tenham

interesse.

Mas receios, temores e preocupações

talvez sejam menos nocivos do que ideias

concebidas previamente ao contato com esses

sujeitos. Criar estigmas e preconceitos, produtos

do desconhecimento da realidade daquelas

pessoas, pode originar barreiras ainda maiores ao

processo de ensino e aprendizagem, seja da parte

do educador, seja da parte do educando.

Para se evitar a estigmatização do aluno, não se pode condicionar a deficiência da aprendizagem humana à condição de pobreza, à necessidade de trabalhar e ao estudo noturno, entre outras. Observa-se que sejam quais foram, a condição socioeconômica do aluno, o tipo de trabalho que realiza e seu turno de estudo, a aprendizagem sempre se efetua, dependendo muito mais de como o trabalho pedagógico é articulado com essas variáveis (PICONEZ, 2005, p. 33).

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

87

Nas descrições disponíveis acerca das

motivações que levam esses sujeitos a procurar

novamente a educação formal, temos que

as expectativas dos alunos giram em torno da valorização profissional e da ampliação de conhecimentos. As principais vantagens mencionadas pelos alunos quanto a esse tipo de curso são: a rapidez, o enxugamento de conteúdos e a ampliação da visão de mundo, ligada ao “pensar e agir diferente” e à valorização profissional (PICONEZ, 2005, p. 36).

No estágio realizado em um dos núcleos

da EJA, em Florianópolis, era nossa intenção

trabalhar com os alunos como a linguagem

audiovisual se faz presente no seu cotidiano e na

sociedade, concluindo o processo com a produção

de um vídeo. O estágio foi realizado entre julho e

outubro de 2007, no Centro de Educação

Continuada, Núcleo de Educação de Jovens e

Adultos, localizado no Centro de Florianópolis, a

partir de projeto apresentado à cadeira de “Prática

Curricular em Imagem e Som”, no curso de

graduação em História, da Universidade do

Estado de Santa Catarina. Durante o estágio,

procuramos criar situações que possibilitassem a

esses sujeitos se tornarem produtores de uma obra

audiovisual, um vídeo curto que seria a conclusão

de um letramento audiovisual, entendido como

processo de aproximação com a gramática e os

mecanismos de construção dessa forma de

expressão.

Nosso objetivo geral era proporcionar a

esses sujeitos uma reflexão em torno do

audiovisual, tocando nos âmbitos prático e

teórico, e que fosse parte constitutiva do processo

de aprendizagem da própria EJA. Pretendíamos

“possibilitar aos sujeitos da EJA a tomada de

contato com a linguagem audiovisual, de um

ponto de vista teórico e prático, participando do

seu processo de aprendizagem e fazendo-os

conhecer a construção, os recursos e as regas da

linguagem audiovisual e da tecnologia do vídeo”

(BRAMORSKI; RIPARDO; SILVA, 2007). Esse

objetivo é corroborado por Durante (1998, p. 31),

quando afirma que, “para o ensino de

características discursivas da linguagem, é

necessário introduzir os diferentes tipos de textos,

atos de leitura e escrita como existem e são

utilizados no mundo, criando-se situações

educativas semelhantes às práticas sociais”.

Partíamos da compreensão presente na Proposta

Curricular do Estado de Santa Catarina, de que na

EJA o processo de aprendizagem deve ser

encarado como “interativo e interdiscursivo de

apropriação de diferentes linguagens (escrita,

matemática, das ciências, das artes e do

movimento) produzidas culturalmente” (SANTA

CATARINA, 1998, p. 42).

Em contato com os sujeitos da EJA, no

campo de estágio, percebemos que no processo

de ensino e aprendizagem era dada maior ênfase

ao exercício da escrita, ou seja, à aproximação

mais permanente e sistemática com a produção

textual.2 Nosso desafio seria mostrar aos sujeitos

da EJA uma gramática diferente, apresentando a

eles a escrita audiovisual, tomando como ponto

2 Outro aspecto importante, apontado em um material de orientação aos professores, se refere ao curso, que “é planejado e organizado, principalmente, através de pesquisas em grupo de poucos alunos (...) pesquisas que originam-se a partir de perguntas (problemáticas) do interesse e necessidade dos mesmos” (FLORIANÓPOLIS, 2007, p. 39). Nesse sentido, tínhamos a necessidade de nos inserirmos no processo de realização da pesquisa, de um ou mais grupos.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

88

de partida uma reflexão mais aprofundada sobre

seu processo de criação. No projeto de estágio,

afirmamos que

nossa principal problemática, nesse sentido, passa pela formulação de uma metodologia que dê conta de ser parte orgânica no processo de aprendizagem da EJA. Também passa pela análise de suas potencialidades e pela definição de quais são os principais desafios presentes nessa aprendizagem. Um outro aspecto fundamental é perceber a receptividade dos sujeitos à proposta apresentada e quais as formas possíveis dessa interação. E também vemos como fundamental perceber que ganhos, de um ponto de vista pedagógico, trouxeram aos sujeitos essa aproximação com a linguagem audiovisual que estamos propondo (BRAMORSKI; RIPARDO; SILVA, 2007).

Neste ensaio procurarei apresentar uma

discussão teórica acerca do processo que estou

chamando de letramento audiovisual, tomando

como ponto de partida a prática realizada na EJA.

Uma sociedade audiovisual

Não é difícil constatar a presença do

audiovisual, em suas mais variadas formas, na

sociedade contemporânea, especialmente em

função da massificação da televisão nas últimas

décadas. O audiovisual, desde o início do século

passado, vem se tornando presente no cotidiano

das pessoas, sendo, desde os primeiros anos de

existência do cinema, uma mercadoria consumida

maciçamente pela maior parte da população,

primeiro nos países mais industrializados,

espalhando-se mais tarde pelo mundo. Desde os

últimos anos do século XIX, com o surgimento

do cinema, temos algo que poderíamos chamar de

espetáculo popular. Segundo Alea (1984, p. 26,

grifos do autor), o cinema “rapidamente se fez

‘popular’, não no sentido de ser expressão do

povo (...) mas porque conseguia atrair um público

indiferenciado, majoritário, ávido de ilusões”.

Outros espetáculos, como o teatro e a ópera,

continuavam a ser ainda formas eruditas, portanto

restritas.3 O cinema, que se ocupava inicialmente

de pequenas seqüências do cotidiano, como a

chegada de um trem a uma estação ou a saída dos

operários de uma fábrica, era uma diversão para

grandes massas, que viviam encantadas (ou

assustadas) pelas maravilhas que brilhavam na

tela à sua frente. O cinema “foi se desenvolvendo

adotando as formas de uma verdadeira indústria

de espetáculo e começou a produzir em série uma

mercadoria apta a satisfazer os meios mais

variados de gostos” (ALEA, 1984, p. 25). Foram

necessárias algumas décadas para que o cinema

fosse apontado como grande arte e inclusive

passasse a ser sinônimo de “bom gosto”, o que

não significa que tenha deixado de ser,

“essencialmente, uma Indústria de

Entretenimento, que também faz uso de meios

estéticos para obter determinados efeitos e para

satisfazer um grande mercado de consumidores”

(ROSENFELD, 2002, p. 35). Durante o século

XX, o papel de audiovisual de massas também

passaria a ser exercido pela televisão, que

3 Para Rosenfeld (2002, p. 63-5), o cinema “não teria eventualmente ultrapassado o estágio de mera curiosidade e de instrumento científico para reproduzir o movimento se a sua invenção não tivesse coincidido com o desenvolvimento de um grande proletariado demasiadamente pobre para frequentar o teatro e os espetáculos não mecanizados. (...) O sistema [capitalista] que criara as grandes aglomerações populares e, ao progredir, lhes dera algumas horas diárias de ócio, produziu também o espetáculo barato, pleno de maravilhosos poderes, para distrair essas mesmas massas e para organizar convenientemente as horas de lazer; à atividade manual padronizada e controlada tinha de associar-se uma atividade espiritual igualmente padronizada e controlada”.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

89

gradativamente chegou aos setores mais pobres e

marginalizados das populações em todo mundo,

articulado a um influente sistema publicitário.4

Após constatarmos a presença do

audiovisual nas sociedades contemporâneas, fez-

se necessário, como primeiro passo do estágio na

EJA, tentar entender sua relação com a vida

cotidiana dos sujeitos com os quais pretendíamos

trabalhar. Considerando a massificação dos meios

de comunicação, da televisão em particular,

deduzimos que certamente os sujeitos da EJA

tinham algum contato com as produções

audiovisuais. Mas, mesmo partindo dessa

hipótese, não tínhamos condições de dimensionar

os gostos e interesses dos sujeitos nem a

importância e o papel que a televisão exercia no

cotidiano de cada um, cabendo-nos, em um

primeiro momento, tentar mapear esses aspectos.

A partir de recortes de revistas,

propusemos aos educandos que montassem uma

programação televisiva de domingo considerada,

por eles, “perfeita”. Poderiam ser selecionados no

máximo dez programas, que seriam organizados

4 Essas questões são analisadas por Ramos (1995), que afirma: “o sistema televisivo brasileiro foi implementado a partir dos anos 50 seguindo o modelo americano, e, portanto, construído em íntima relação com a publicidade. (...) De início, a ação dos anunciantes foi mais direta, caracterizando os chamados ‘programas de patrocinadores’, tendo sido comum a participação das agências na criação e produção dos programas televisivos. (...) Esse tipo de utilização do meio televisivo pela publicidade é chamado pelos profissionais da área de ‘patrocínio americano’, e o processo da sua transformação para o sistema atual no Brasil foi análogo ao dos Estados Unidos. O surgimento do que lá se chama de magazine concept de publicidade consiste na venda de espaços nos variados programas, desaparecendo a figura do patrocinador privilegiado no intervalo comercial, o controle passando para as mãos das redes, que vão ou produzir ou comprar programas de realizadores independentes” (RAMOS, 1995, p. 44-5).

em uma cartolina da forma que eles desejassem.

O objetivo mais específico desta atividade era

dar-nos uma primeira noção do contato que eles

mantinham com a televisão e da forma como

manifestavam seus gostos. Conseguimos, com

isso, perceber a forte preferência pelo

entretenimento e pela diversão, em especial o

gosto pelas novelas e pelos chamados “programas

de auditório”, como Gugu e Faustão. Eles

também demonstraram interesse, ainda que

menor, por programas de notícias. Os esportes

foram pouco mencionados, diferente dos

programas “educativos”, cuja escassez na

programação televisiva gerou queixas,

demonstrando uma grande preocupação daquelas

pessoas em “adquirir conhecimento”, como se

quisessem recuperar o tempo que “perderam”

enquanto estiveram afastados da educação

formal. O universo de ficção daqueles sujeitos era

povoado principalmente pelas novelas, havendo

pouco espaço para os filmes, mesmo aqueles

exibidos na televisão.

Partindo desses dados, pôde-se ter como

primeiras conclusões que os sujeitos da EJA

observados, pessoas mais velhas e que trabalham

um grande número de horas durante o dia,

atribuem à televisão um sentido bastante

utilitário, seja para uma distração mais imediata,

seja como ferramenta para a aprendizagem de

novos conhecimentos.

Letramento e audiovisual

Diante destas conclusões, pode-se afirmar

que esses sujeitos são pouco letrados, não com

relação à linguagem escrita, mas à linguagem

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

90

audiovisual. Os sujeitos da EJA com os quais

tivemos contato no estágio não eram analfabetos,

se entendermos o analfabetismo como

“desconhecimento das técnicas de utilização da

escrita” (SANTA CATARINA, 1998, p. 39),

afinal na vida social e profissional essas pessoas

utilizam a escrita, a leitura e o cálculo, ou seja,

possuem conhecimentos específicos, ainda que

muitas vezes limitados, dessas ferramentas. Não é

correto, portanto, caracterizá-las como

analfabetas.

Conceitualmente, um dos caminhos

possíveis seria caracterizar estes indivíduos como

iletrados. O iletramento é “entendido como a falta

de familiaridade com o mundo da escrita, uma

exclusão quanto ao todo ou a parte desse modo de

comunicação” (SANTA CATARINA, 1998, p.

39). Mas, partindo de Tfouni (2006, p. 23),

concluímos que

não existe nas sociedades modernas o letramento “grau zero”, que equivaleria ao “iletramento”. Do ponto de vista do processo sócio-histórico, o que existe de fato nas sociedades industriais modernas são “graus de letramento”, sem que com isso se pressuponha sua inexistência.

Portanto, por mais que existam pessoas

que não têm ou não tiveram um contato escolar

permanente e sistemático com a “cultura letrada”,

enquanto sujeitos elas participam do mundo

“letrado”, interagem com esse ambiente social e

atuam sobre ele, desenvolvendo mecanismos

próprios de leitura e interpretação da realidade e

de seus signos. Nesse sentido, não é possível

afirmar que esses sujeitos sejam iletrados e,

menos ainda, analfabetos. Então, a explicação

não está em ser, ou não, alfabetizado enquanto indivíduo. Está sim, em ser, ou não, letrada a sociedade na qual esses indivíduos vivem. Mais que isso: está na sofisticação das comunicações, dos modos de produção, das demandas cognitivas pelas quais passa uma sociedade como um todo quando se torna letrada e que irão inevitavelmente influenciar aqueles que nela vivem, alfabetizados ou não (TFOUNI, 2006, p. 27, grifos da autora).

Mas, no âmbito do audiovisual, o baixo

grau de letramento não é uma característica

apenas dos sujeitos da EJA: é realidade

lamentável que a maior parte das pessoas

desconheça a gramática da linguagem

audiovisual. No geral, as pessoas que têm uma

obra audiovisual à sua frente se limitam a análises

superficiais, como os cortes de uma sequência de

cenas ou as cores utilizadas. O cinema e a

televisão - indústrias que reproduzem

mercadorias - criaram um público acostumado a

assistir às obras audiovisuais de forma passiva,

um público que dá maior atenção à narrativa e à

“mensagem” que o audiovisual pretende expor ou

às emoções que as cenas podem provocar. Com

isso, temos o “espectador contemplativo”, cuja

relação com o audiovisual “se produz só no

primeiro nível”, ou seja, “o espetáculo é

contemplado como um objeto em si e nada mais”

(ALEA, 1984, p. 49). O espectador pode

“satisfazer uma necessidade de desfrute, de gozo

estético, mas sua atividade, expressa

fundamentalmente numa aceitação ou rejeição do

espetáculo, não supera o plano cultural” (ALEA,

1984, p. 49). Portanto, como no caso da

linguagem escrita, falar de um baixo grau de

letramento audiovisual significa falar da falta de

familiaridade dos sujeitos sociais com a escrita

dessa linguagem, desconhecendo as ferramentas

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

91

que possibilitam uma melhor interpretação desta

linguagem e, principalmente, de sua gramática.

Assim, o processo que direcionou nossa

prática de estágio na EJA era justamente o de

letramento dos sujeitos, entendido como processo

que “focaliza os aspectos sócio-históricos da

aquisição da escrita” (TFOUNI, 2006, p. 9), tendo

como centro de nossa atividade a linguagem

audiovisual.

O letramento, conforme Tfouni (2006, p.

9-10), “procura estudar e descrever o que ocorre

nas sociedades quando adotam um sistema de

escrita de maneira restrita e generalizada”. Esse

conceito, portanto, auxilia-nos na investigação e

compreensão dos processos psíquicos

relacionados ao contato dos sujeitos com o

audiovisual, em especial para desvelar seus

significados e produzir uma compreensão

reflexiva acerca dos mesmos. Essa linguagem

“secreta”, tão simples em sua composição como

complexa em sua interpretação, pode ter seus

significados conhecidos para além de um restrito

grupo de especialistas e estudiosos de cinema. O

processo de letramento, portanto, pode permitir à

pessoa se postar à frente do audiovisual como

“espectador ativo”, que, “tomando como ponto de

partida o momento da contemplação viva, gera

um processo de compreensão crítica da realidade

(...), e, conseqüentemente, uma ação prática

transformadora” (ALEA, 1984, p. 48).

Linguagem audiovisual e prática reflexiva

Em nosso estágio na EJA procuramos

trabalhar também o processo de letramento como

ação crítica. No projeto afirmamos que, “nesse

processo, o conhecimento histórico produzido

tem a ver com a atitude do sujeito, que se

posiciona no mundo de uma forma particular e

constrói sua leitura sobre sua circunstância”

(BRAMORSKI; RIPARDO; SILVA, 2007). Seria

preciso, portanto, orientar o conhecimento

histórico “no sentido de indagar a relação dos

sujeitos com os seus objetos de conhecimento,

provocando seu posicionamento, questionando as

formas de existência humana e promovendo a

redefinição de posicionamentos dos sujeitos no

mundo em que vivem” (KNAUSS, 1996, p. 28).

Era também necessário “estabelecer e reconhecer

a dinâmica entre os conhecimentos prévios,

anteriores à escolarização, e os conhecimentos

formais da educação escolar” (PICONEZ, 2005,

p. 96). Durante o estágio procuramos desenvolver

atividades que priorizassem a necessidade da

criatividade, da interação entre os sujeitos e da

prática enquanto ferramentas de aprendizagem,

tendo em mente as particularidades na formação e

no cotidiano daquelas pessoas.

Tendo a clareza de que os alunos

trabalhavam durante grande parte do dia e

chegavam cansados na EJA, propusemos

atividades que fossem divertidas e pouco

cansativas. Nesse sentido, após constatarmos o

interesse daqueles indivíduos, enquanto grupo,

pelas questões referentes à degradação ambiental,

pedimos que eles pensassem em uma situação de

destruição do meio ambiente. Depois disso,

pedimos a eles que criassem uma pequena

narrativa, incluindo um personagem de desenho

animado preferido na situação antes pensada. No

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

92

encontro seguinte, desta vez utilizando o

equipamento de vídeo, realizamos um exercício

de mímica, no qual um dos alunos representava a

mímica proposta, enquanto um outro, ao mesmo

tempo em que operava a câmera, tentava

adivinhar. Em outro encontro, solicitamos aos

alunos que criassem uma pequena narrativa e que

gravassem-na, sendo que cada um deles teria a

opotunidade tanto de representar a narrativa

criada quanto de operar o equipamento. Por fim,

como fechamento de nossa prática, partimos para

a realização de um vídeo curto, composto por

várias cenas, na qual os alunos representaram e

operaram o equipamento.

Tínhamos a clareza de que não bastaria

apresentar uma nova forma de escrita para os

sujeitos educandos da EJA, mas, para que a

gramática audiovisual fizesse sentido neste

processo de aprendizagem, seria preciso fazê-los

escrever, propor a eles uma dimensão prática, ou

seja, realizar uma produção. O desafio, portanto,

passava justamente por mostrar àqueles sujeitos

(e para nós mesmos) que qualquer pessoa tem a

capacidade de realizar um filme, desde que tenha

à sua disposição os equipamentos necessários

para tal e conheça alguns aspectos da linguagem

audiovisual. Essa linguagem não surgiu como

invenção genial e isolada de uma pessoa nem

pode ser entendida como algo consolidado e

estático. Ela está ligada de forma indissociável à

própria história do cinema, sendo produto da

prática de profissionais e artistas há mais de um

século. Se quisermos uma definição mais simples

dessa linguagem, partindo de Bernardet (1991, p.

37), podemos defini-la como “sucessão de

seleções”, “um processo de manipulação que vale

não só para a ficção como também para o

documentário”. Essas seleções são escolhas feitas

com ideias e objetivos claros: “escolhe-se filmar

o ator de perto ou de longe, em movimento ou

não, deste ou daquele ângulo; na montagem

descartam-se determinados planos, outros são

escolhidos e colocados em determinada ordem”

(BERNARDET, 1991, p. 37). Essa linguagem,

que no seu início “escrevia antes de saber como

escrever” (CARRIÈRE, 1995, p. 27), se

modificou ao longo do tempo, ganhando novos

elementos, se metamorfoseando, década após

década. “Não surgiu uma linguagem

automaticamente nova até que os cineastas

começassem a cortar o filme em cenas, até o

nascimento da montagem, da edição”

(CARRIÈRE, 1995, p. 14). Depois disso,

deixamos de ter uma simples sucessão de cenas,

passamos a planos complexos, sequências cheias

de detalhes e cores, movimentos e

enquadramentos, enfim, uma “linguagem apta a

contar qualquer coisa” (CARRIÈRE, 1995, p.

27). Uma linguagem que é universal e cuja escrita

pode ser interpretada em qualquer parte do

mundo.

Deste modo, quando observamos a

trajetória da linguagem audiovisual, um elemento

que salta aos olhos é seu vínculo com uma prática

reflexiva. Não haveria hoje uma gramática

audiovisual, diversa, controversa, complexa, se o

cinema não fosse marcado pela experiência

prática, criativa e teórica. Não haveria linguagem

audiovisual se os cineastas, muitas vezes sem

intenção, não inovassem na forma de cortar, nos

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

93

movimentos de câmera, na composição das cores

ou na utilização do som. Sua prática, reflexiva ou

não, foi o que possibilitou o surgimento de uma

linguagem compreensível em todo mundo e em

permanente movimento. Segundo Carrière (1995,

p. 19), em meados da década de 1920 “já existia

uma linguagem verdadeiramente nova, tanto

assim que os efeitos específicos que ela utilizava

logo se tornaram sinais de convenção

internacional, uma espécie de código planetário”.

Mesmo que não se conheça o sentido de todos os

signos, mesmo que não seja possível ter uma

compreensão plena da complexidade de uma

produção, pelo menos é possível entender

aspectos da narrativa e alguns dos seus sentidos,

pois a linguagem utilizada em qualquer lugar do

mundo é semelhante àquela que conhecemos em

nosso próprio ambiente cultural.

Mas, embora universal e acessível a

qualquer pessoa, essa forma de escrita, produto

do acúmulo de experiências e reflexões de mais

de um século, continua a ser “secreta” para a

maior parte das pessoas. Isso se dá não pela sua

diversidade e complexidade, mas pela ausência de

mecanismos que propiciem uma prática reflexiva

e que possam torná-la ainda mais acessível,

permitindo que todos possam ser não apenas

espectadores, mas também criadores do

audiovisual. Quando falamos em “criador”, o

entendemos num sentido bastante amplo, ou seja,

essa criatividade passa tanto pela produção

audiovisual como pela postura crítica do

espectador frente às imagens em movimento,

tomando-as como ponto de partida para uma

reflexão e mesmo para a transformação social.

Refletindo acerca do cinema, Alea (1984, p. 44)

afirma que essa forma de espetáculo “pode

aproximar o espectador da realidade sem deixar

de assumir sua condição de irrealidade, ficção,

realidade-outra, sempre que estenda uma ponte

em direção a ela, para que o espectador retorne,

carregado de experiências e estímulos”.

Nesse ponto localiza-se a importância das

pequenas oficinas de audiovisual que realizamos

com os sujeitos que procuram a EJA,

possibilitando a eles não apenas uma reflexão

crítica, mas também a prática da linguagem

audiovisual enquanto ferramenta de

conhecimento. Os exercícios propostos, que

davam conta tanto da criação de narrativas como

da utilização de equipamentos, deram aos sujeitos

a possibilidade de entrar em um universo

diferente daquele em que viviam. Eles puderam,

com todos os limites possíveis, ir além da

linguagem escrita, tornando mais complexo ou

mesmo mais criativo o processo de letramento na

EJA. Assim, corrobora-se a hipótese de que

“quando os alunos têm respeitados os seus

conhecimentos prévios à escolarização ou

anteriores a ela, uma espécie de ponte pode ser

criada para que a aprendizagem se torne cada

mais significativa” (PICONEZ, 2005, p. 131).

Esses sujeitos da EJA com os quais realizamos o

estágio, a partir de alguns conhecimentos

introdutórios, passaram a ter condições de olhar

uma novela ou um filme e, tendo dimensão de

que aquele é um discurso produzido socialmente

e com certa intenção, melhor refletir acerca

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

94

daquela produção e talvez realizar uma crítica que

se coloque para além da mera análise da narrativa

ou do conteúdo mais imediatos.

Referências bibliográficas

ALEA, Tomás Gutiérrez. Dialética do espectador: seis ensaios do mais laureado cineasta cubano. São Paulo: Summus, 1984.

BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. 11ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BRAMORSKI, Natasha; RIPARDO, Larissa; SILVA, Michel. Possibilidades de aprendizagem através do audiovisual na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Florianópolis: UDESC, Projeto de Estágio, Departamento de História, 2007.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

DURANTE, Marta. Alfabetização de adultos: leitura e produção de textos. Porto Alegre: ARTMED, 1998.

FLORIANÓPOLIS. Secretaria Municipal de Educação. Fundamentação e prática na EJA. Florianópolis: Departamento de Educação Continuada, 2007.

KNAUSS, Paulo. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa. In: NIKITIUK, Sonia. Repensando o ensino de história. São Paulo: Cortez, 1996.

PICONEZ, Stela Bertholo. Educação escolar de jovens e adultos: das competências sociais dos conteúdos aos desafios da cidadania. 4ª ed. Campinas: Papirus, 2005.

RAMOS, José Mario Ortiz. Televisão, publicidade e cultura de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.

ROSENFELD, Anatol. Cinema: arte & indústria. São Paulo: Perspectiva, 2002.

SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto. Proposta Curricular de Santa Catarina: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio: Temas Multidisciplinares. Florianópolis: Coordenadoria Geral de Ensino, 1998.

TFOUNI, Leda Verdiani.. Letramento e alfabetização. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

95

A Última Hora

Kelen Rezende1

Maria Andréia Alves Leandro2 Rosângela Cristina Barbosa3

A Última Hora é um documentário

narrado e produzido por Leonardo DiCaprio, cuja

direção é de Leila e Nadia Conners. O filme

aborda os desastres naturais causados pela própria

humanidade e o atual estado de risco ambiental

do planeta. Seu roteiro apresenta entrevistas com

muitos cientistas, especialistas e diretores de

ONGs que fazem análises e apontam soluções

consideradas economicamente viáveis e

ambientalmente sustentáveis, para que a Terra

controle seus problemas de poluição,

superpopulação e aquecimento global, uma vez

que a destruição do ecossistema pelo homem tem

gerado catástrofes naturais devido ao

desequilíbrio ecológico. Tal fato é resultante de

atividades humanas desordenadas que causam

danos à natureza a curto, médio e longo prazo.

Sem água potável, sem ar, sem florestas, sem

fauna e flora em equilíbrio, a qualidade de vida

do próprio homem estará ameaçada.

Esse documentário é uma forma de

chamar a atenção para as consequências que o

planeta está sujeito devido às ações do homem. O

1 Professora da Rede Municipal da Prefeitura de Belo Horizonte, com Licenciatura Plena em Geografia / EJA-BH e na Rede Agostiniana – Meio Ambiente, pós-graduada em Psicopedagogia. 2 Graduanda do 10º. Período do curso de Psicologia no Centro Universitário Newton Paiva e estagiária em licenciatura. 3 Professora da Rede Municipal da Prefeitura de Belo Horizonte, Pedagoga e pós-graduada em Educação de Jovens e Adultos.

conteúdo alerta para o fato de a espécie humana

correr o risco de desaparecer em um futuro

próximo, se nada for feito para reverter o quadro

caótico no qual estamos inseridos. A narrativa

apoia-se em uma perspectiva que varia do

consumismo devasso ao capitalismo selvagem e

da necessidade do ser humano de ter em

detrimento de ser. Agrupa imagens de tragédias

naturais a imagens do meio ambiente devastado,

bem como de povos de diversas etnias para

mostrar que o mundo está hipertrofiado4, em

termos populacionais, e nem por isso está

aceitando passivamente tal ocupação, uma vez

que se tornam mais escassos os recursos para

suprir as necessidades de sobrevivência e

qualidade de vida dos seres humanos.

Considerando o comportamento humano a

partir de alguns padrões de consumo, o

documentário A Última Hora pode ser explorado

para além das catástrofes naturais e suas

consequências. Nesse sentido, conforme aponta

Duarte (2002, p. 105), os filmes são fontes ricas

de pesquisa sobre temas e problemas que

interessam aos pesquisadores da área da educação

haja vista que “[...] pode fornecer um vasto

material para estudo e reflexão acerca de

estratégias de escolarização e de transmissão de

saberes adotados por diferentes culturas em

diferentes sociedades”.

O filme como recurso didático, num primeiro momento permite ao espectador a percepção de impressões, de sentimentos que tomam significados, de acordo com o conhecimento que o sujeito adquire de si próprio, das suas concepções. Num segundo momento busca a

4 Significa cidades "inchadas" ou excessivamente cheias de pessoas, superlotadas.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

96

associação das novas experiências às aprendizagens e aos saberes o que permite significar e (re) significar as percepções deixadas pela relação com a narrativa fílmica. (DUARTE, 2002, p.105).

Tomando como referência as

potencialidades do filme como recurso didático

conforme apontado por Duarte (2002), o

documentário A Última Hora foi exibido em sala

de aula para os estudantes de duas turmas da

EJA/BH5, da Escola Municipal Luiz Gonzaga

Júnior, na Região do Barreiro.

A questão que estava em pauta neste

trabalho era a identificação das percepções e das

concepções dos estudantes da EJA sobre a

5 EJA/BH é um programa da Rede Municipal de Belo Horizonte destinada à Educação de Jovens e Adultos de Belo Horizonte. A Constituição de 1988 assegurou a Educação de Jovens e Adultos, ao afirmar que “o dever do estado com a educação deverá ser efetivado mediante garantia de ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada inclusive a oferta para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria” (art. 208). A Educação de Jovens e Adultos torna-se inclusa como direito de obrigação e deveres: os artigos 37 e 38 da LDB em vigor dão à EJA uma dignidade própria, mais ampla, e elimina uma visão de externalidade com relação ao assinalado como regular. O art. 4º VII da LDB é claro: o dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: “oferta de educação regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola”. Também no art. 214, da Constituição fica clara a necessidade de efetivação de planos nacionais de educação para a erradicação do analfabetismo.

temática ambiental. Essa atividade revelou um

processo de interpretação dos estudantes a partir

das suas próprias histórias de vida e do contexto

social em que estão inseridos, permitindo

aproximar o tema em debate das questões

relativas aos processos de alfabetização e

letramento entre os sujeitos da EJA.

“O pobre polui, mas não polui tanto como

as maiores empresas. A gente polui, mas as

maiores empresas polui mais. Vocês deviam

gravar um documentário desse e distribuir nas

escolas, nas favelas e nas comunidades. Isso

conscientizava mais o pessoal a reciclar. Ensinar

o próprio pai e mãe de família a cuidar mais do

seu lixo também que polui muito. E o que polui

mais são os donos de empresa” (Laura Diniz6, da

turma EJA/BH).

“A pessoa tem que colaborar e ajudar.

Aquele que não ajuda, procura atrapalhar. E

aquele que atrapalha nunca vai adiante, porque o

importante é a gente ajudar, contribuir uns com

os outros para as coisas consertar no país. Por

isso é que as coisas não consertam no país,

ninguém colabora. Quando chama uma pessoa

para colaborar ela não quer saber do assunto

que está se tratando. Por que existe o negócio do

meio ambiente? É porque o pessoal está

estragando, a maioria dos homens estraga o meio

ambiente, não somos só nós pobre, é todo mundo,

a humanidade é a culpada. Porque estraga

mesmo, ninguém quer cooperar. Cada um

fazendo a sua parte o mundo pode consertar,

6 Os nomes utilizados para identificar os autores das falas são fictícios com a finalidade de preservar a identidade dos sujeitos envolvidos na discussão do filme exibido.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

97

cada um colaborando. Se não colaborar o mundo

não tem conserto e vai por água abaixo”. (André

Lucas Alves, da turma EJA/BH).

“Eu acho que o povo devia deixar o luxo.

O luxo é que está destruindo a natureza”. (Alexia

Silva, da turma EJA/BH).

As evidências das falas acima revelam um

universo de conteúdos pessoais que indicam, em

conformidade com Paulo Freire (1996, p.123),

que “o educador que é capaz de escutar e

respeitar a leitura de mundo que o aluno faz

através de sua linguagem, também é capaz de

transformar seu discurso e romper com a barreira

em prol do conhecimento”.

Reconhecer pois o lugar da linguagem

como um instrumento interpretativo à maneira

freiriana é afirmar a linguagem como mediadora

das práticas humanas que envolvem as relações

com os outros, seja através das artes, trocas,

mitos, religiões, comunicação, etc. Ao nascer,

encontramos a língua e esta nos é imposta; cabe a

nós respeitar as suas regras, pois ela é um código

fruto de um contrato social inscrito numa

dinâmica histórica e cultural que independe da

vontade do sujeito falante. Ela esta aí, insiste e

persiste. Ela é social e não apenas interior7.

No caso dos jovens e adultos da EJA/BH,

o movimento de interpretação do documentário

através do diálogo, do debate e da análise,

evidenciou modos singulares de lidar com a vida,

com as suas perdas e ganhos. Permitindo 7 Fala interior, no sentido de que a linguagem, para a psicanálise, não é protótipo do mundo, mas um novo mundo, inconsciente, subjetivo, do próprio homem único, simbólico.

reconhecer como, inclusive, velam e desvelam

suas tramas familiares.

“Antigamente a gente era mais feliz. Tem

que voltar igual era antes, um saco branco - o

bornal maior e vários pequenos para colocar

cada coisa e tudo separadinho. Minha mãe fazia

assim e ensinou a gente assim, aí veio as

sacolinhas”. (Maria das Graças dos Santos, da

turma EJA/BH).

“Antes a gente não tinha ganância por

dinheiro e por causa do dinheiro o homem polui.

Isso aí é coisa de monopólio, de gente da alta”.

(Raimundo Ávila, da turma EJA/BH).

“Somente com a conscientização de cada

um, o governo que falar mais sobre a questão é

que pode mudar o pensamento. Hoje, eu vejo

muita gente reciclando e isso é muito importante.

Então você vê aquelas geleiras, lá no pólo norte,

o aquecimento global ta destruindo. Então tem

que começar com a gente, nós que somos as

donas de casa, vamos reciclar e isso é muito

importante. Você vê que já vem chuva, os bueiros

entope tudo, leva os barraquinhos embora. Tudo

é culpa de quem ? É nossa mesmo. O petróleo

também. Então é somente a conscientização da

família e também ser mais divulgado para a

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

98

população para conscientizar do problema aí”.

(Marcos Pereira, da turma EJA/BH).

“Gostei do documentário. É difícil. Os

próprios homens estão acabando com o nosso

país. Eles desmata, agora nem chove mais, olha

esse calorão. O mundo ta acabando. Sabe o que

acontece, cada bairro devia ter uns quatro fiscal

olhando a sujeira”. (Maria José Alvarenga, da

turma EJA/BH).

Do conjunto dos alunos que participaram

da análise do documentário e o seu tema, muitos

não possuem domínio da alfabetização em termos

da apropriação de um sistema ordenado de regras

gramaticais, mas por outro lado também não

podem ser considerados analfabetos, pois

possuem uma leitura de mundo, dentro do

contexto sócio-cultural em que vivem e, portanto,

fazem uso do letramento que privilegia a língua

falada ao se comunicarem.

O fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes. (KLEIMAN, 1995, p. 21)

Na mesma perspectiva de Kleiman,

Tfouni (2000, p.86) afirma que “o sujeito do

letramento, no entanto, não é necessariamente

alfabetizado”. Entretanto, Soares (2004) afirma

que, embora alfabetização e letramento sejam

conceitos diferentes, eles devem ser trabalhados

simultaneamente na escola. As diferenças entre

os conceitos estão relacionadas com concepções

distintas de ensino de língua. Como exemplo, ela

cita as matérias publicadas na mídia, nas quais se

considera que ser alfabetizado é mais do que

saber ler e escrever um simples bilhete, condição

que até algum tempo tida como satisfatória para

tirar uma pessoa da lista dos analfabetos. Mas

para ela não basta apenas alfabetizar, isto é,

ensinar os aspectos da língua como código,

também é preciso trabalhar a língua em seus usos

sociais.

A perspectiva de alfabetização e

letramento tratadas por Soares (2004) convergem,

segundo a autora, para a concepção de

alfabetização desenvolvida por Paulo Freire que

enfatiza a alfabetização como meio de

democratização da cultura, como oportunidade de

reflexão sobre o mundo e a posição e lugar do

homem.

Só assim a alfabetização cobra sentido. É a conseqüência de uma reflexão que o homem começa a fazer sobre a sua própria capacidade de refletir. Sobre sua posição no mundo. Sobre o mundo mesmo. Sobre seu trabalho. Sobre seu poder de transformar o mundo. Sobre o encontro das consciências. Reflexão sobre a alfabetização, que deixa de ser algo externo ao homem, para ser dele mesmo. Para sair de dentro de si, em relação ao mundo, como uma criação. Só assim parece válido o trabalho de alfabetização, em que a palavra seja compreendida pelo homem na sua justa significação: como uma força de transformação do mundo. Só assim a alfabetização tem sentido. Na medida em o homem, embora analfabeto, descobrindo a relatividade da ignorância e da sabedoria, retira um dos fundamentos para a sua manipulação pelas falsas elites. Só assim a alfabetização tem sentido. (SOARES, 2004 apud FREIRE p.119).

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

99

Os estudantes da EJA/BH apresentaram

várias leituras do documentário de acordo com a

leitura de mundo que possuem. A possibilidade

de agregar o recurso visual ao trabalho

pedagógico é algo viável, pois - além de ser um

ato reflexivo - contribui para o desenvolvimento

de uma consciência crítica de cidadania,

permitindo que ocorra retificação subjetiva.

Lembra Quinet que “a retificação subjetiva de

Freud consiste em perguntar ‘qual é sua

participação na desordem da qual você se queixa?

’”8 . Enfim, a retificação subjetiva diz respeito à

responsabilidade que cada sujeito deverá ter sobre

suas escolhas e sobre sua implicação diante da

realidade através de novas interpretações feitas a

partir do diálogo entre os pares.

Dados do filme:

Título Original: The 11th Hour

8 Quinet, A. As 4+1 Condições da Análise. JZE: Rio de

Janeiro, 1991, p. 38.

Gênero: Documentário

Duração: 95 min.

Ano: EUA - 2007

Distribuidora: Warner Independent Pictures

Direção: Nadia Conners e Leila Conners Petersen

Roteiro: Nadia Conners, Leila Conners Petersen e

Leonardo DiCaprioProdução: Chuck Castleberry,

Leonardo Di Caprio, Brian Gerber e Leila

Conners Petersen..

Fotografia: Peter Youngblood Hills.

Edição: Luis Alvarez y Alvarez e Pietro Scalia.

Música: Jean-Pascal Beintus.

Sinopse

Causadas pela própria humanidade, enchentes,

furacões e uma série de tragédias assolam o

planeta cotidianamente. O documentário mostra

como a Terra chegou nesse ponto: de que forma o

ecossistema tem sido destruído e, principalmente,

o que é possível fazer para reverter este quadro.

Entrevistas com mais de 50 renomados cientistas,

pensadores e líderes ajudam a esclarecer estas

importantes questões e a indicar as alternativas

ainda possíveis.

Elenco

Leonardo DiCaprio (Narrador - Voz), Kenny

Ausubel, Janine Benyus , Sylvia Earle, Gloria

Flora, Michel Gelobter, Mikhail Gorbachev,

Thom Hartmann, Paul Hawken, Stephen

Hawking, Wangari Maathai, William

McDonough, Bill McKibben, Wallace J. Nichols,

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008

REVEJ@

100

David Orr , David Suzuki, Greg Watson, Andrew

Weil, James Woolsey.

Referências Bibliográficas

A Última Hora. Direção: Nadia Conners e Leila Conners Petersen. Produção: Warner Independent Pictures. Roteiro: Nadia Conners, Leila Conners Petersen e Leonardo DiCaprio . EUA, 2007. 1 DVD ( 95 min), dvd, son., color., legendado.

CORREA, Mário Braga. Desenvolvimento Sustentável: um paradoxo para a educação ambiental resolver. Revista Ao Pedaletra. Santa Luzia: Faculdade da cidade de Santa Luzia, vol. 3, n. 2, p. 17-21, Nov. 2007.

DUARTE, Rosália. Cinema & educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1996. 148p.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O planeta em perigo. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/ecologia/planetaemperigo.html. Acesso em 14 nov. 2008.

KLEIMAN, Angela B. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: SP. Mercado das Letras, 1995. 294p.

QUINET, A. As 4+1 Condições da Análise. JZE: Rio de Janeiro, 1991, p. 38.

SOARES, Magda Becker. Letramento e Alfabetização: as muitas facetas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2004. 114p.

SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Legislação. Disponível no site: http://portal.mec.gov.br/secad/index.php. Acesso no dia 25 nov. 2008.

TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2000. 104p.

REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 2, n. 3, p. 1-100, dez. 2008