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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
ELTON SILVA RIBEIRO
REVERBERAÇÕES DE UM CORPO NA CIDADE: RUÍDOS E
SILÊNCIOS DA DIFERENÇA NO CONTEMPORÂNEO
Niterói Agosto de 2013
ELTON SILVA RIBEIRO
REVERBERAÇÕES DE UM CORPO NA CIDADE: RUÍDOS E
SILÊNCIOS DA DIFERENÇA NO CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Luis Antonio dos Santos Baptista
Niterói
Agosto de 2013
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
R484 Ribeiro, Elton Silva.
Reverberações de um corpo na cidade: ruídos e silêncios da diferença no contemporâneo / Elton Silva Ribeiro. – 2013. 87 f.
Orientador: Luis Antonio dos Santos Baptista. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2013.
Bibliografia: f. 84-87.
1. Cidade. 2. Diferença (Psicologia). 3. Ética. 4. Narrativa. I. Baptista, Luis Antonio dos Santos. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título. CDD 158
REVERBERAÇÕES DE UM CORPO NA CIDADE: RUÍDOS E SILÊNCIOS DA DIFERENÇA NO CONTEMPORÂNEO
ELTON SILVA RIBEIRO
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Luis Antonio dos Santos Baptista
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________
Profª. Drª Analice de Lima Palombini
Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul
_________________________________
Prof. Dr. Marcelo Santana Ferreira
Universidade Federal Fluminense
Niterói-2013
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, além de tudo parceiros, por todo apoio, incentivo e gosto pela vida. Pelo amor incondicional que me sustenta, mas também me joga para o mundo. A Luis Antonio Baptista, por ter topado essa parceria, pela amizade e atenção em nossos encontros. Pela leveza e sagacidade do pensamento... e por me mostrar que um pesquisador pode ter alegrias, mas nunca estar em paz. A Analice Palombini, que aceitou tecer conversas a partir deste trabalho. Pela leitura generosa e cuidadosa que me possibilitou seguir caminho desde a qualificação. A Marcelo Santana, pela amizade e carinho, pelas provocações do pensamento e cuidado na leitura destes escritos. Ao meu irmão, que, seguindo por caminhos diferentes, é alguém que sei que sempre posso contar. A toda minha família por fazer de nossos encontros momentos de tantas alegrias.
Ao todos do Coletivo Jurema , Luis-Veri-Bia-Maicon-Helmir-Alex-Jefté-Poliana-Cris, por terem forjado esse corpo-pesquisador junto comigo, pelos bons encontros que tornaram estes dois anos tão mais leves e intensos.
A Veridiana, companheira para todas as horas, pela amizade e inquietude da
alma que nos convoca. A Maicon, vagabundo forasteiro, pela amizade e força, da feitura do projeto até a finalização destes escritos. A Helmir, pelas conversas e por ter partilhado os primeiros meses numa cidade nova em busca de moradia.
A Edson e Marília, minha família do lado de cá, por nosso dia-a-dia, pelas discussões e alegrias que vivemos juntos. Edson, por me mostrar que cada um tem seu tempo. Marília, pelo cuidado e por me auxiliar vez ou outra indicando saídas para a escrita. A Hevelyn, amiga recente, mas que já é de muito tempo. Pelas revisões, traduções e leituras cuidadosas. E acima de tudo pelo carinho e amizade. A João e Kleber, amigos que me chamaram para a cidade, pelo gosto pela pesquisa e pelas conversas nos bares e academias da vida. Por terem tanto me estimulado a seguir para o mestrado. A Priscilla, pelo incentivo desde a época da seleção do mestrado, pelo carinho e força que longe e perto tornaram meus primeiros meses aqui mais tranquilos. A Lázaro e Marcel, pelas inúmeras parcerias. Companheiros de tantos momentos que eu quero levar para sempre.
A Michele, Dagoberto e Mônica, pela atenção e por partilharem momentos vividos junto a Maria. A turma da pós, que entre idas e vindas me acompanhou nestes dois anos. Por terem compartilhado tantas experiências. A Corina, seu Alan e Dani, pela amizade, por me acolherem tão bem e me feito sentir em casa logo que cheguei à cidade. Aos amigos diversos que fiz nestas andanças: Diogo, Gui, Renato, Janaina, Tiago, Jorge, Cadu, Rafael, Lívia, Andrea. A CAPES, que financiou esta pesquisa e me possibilitou seguir de forma mais tranquila o mestrado. Enfim, a todos aqueles que fizeram desta caminhada algo tão bom de viver e que por algum motivo me fogem a memória.
E a Maria, pela força de seu silêncio.
Entre o corpo da cidade e os corpos que a percorrem, a cidade é uma folha, jamais totalmente branca, sobre a qual corpos contam histórias. Olivier Mongin, A condição urbana: a cidade na era da globalização.
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo trazer à tona um acontecimento urbano,
ocorrido em uma cidade do nordeste brasileiro, que coloca em cena relações de poder
entre loucura, cidade, diferença, assim como, questões éticas sobre modos de pesquisar.
A escrita que aqui se delineia narra uma história de uma usuária do serviço de saúde
mental e tem como propósito tensionar as tramas da produção da diferença no
contemporâneo. A cidade, neste trabalho adquire o sentido de lugar praticado, lugar de
tramas do cotidiano que teria muito a dizer sobre as relações que produzem a diferença
no tempo presente. Aliados ao pensamento de Michel Foucault, Walter Benjamin,
dentre outros autores, visamos, através da utilização dos chamados detritos da urbe, da
vida dos infames, problematizar dilemas éticos sobre a criação e o aniquilamento da
força da alteridade.
Palavras-Chave: Cidade; Diferença; Ética; Acontecimento.
ABSTRACT
This master thesis aim to bring to surface a urban happening, which took place in a
brazilian northeast city. Power relationships between madness, city, difference and
ethical questions about the researching ways are put in discussion by this happening.
The writing which came to life here tells a history of a mental health service user and
intend to tension the imbrication of the difference production in the contemporary. The
city in this paper earns the meaning of a place of practices, place of daily imbrications
that has too much to say about the relationships that produces difference in the present
time. Connected to the thinking of Michel Foucault and Walter Benjamin, among
others, we aim to - through the use of the, so called, urban detritus, life of infamous –
discuss ethical questions about the creation and the impoverishment of the otherness
power.
Key-words: City; Difference; Ethics; Happening.
SUMÁRIO
Prólogo 11 1. Primeiros passos 16 2. Para internar 23 3. Encontros em um shopping 42 4. Sobre rastros e restos ou sobre informar, narrar e estilhaçar 55 5. A mulher que tentou se desfazer: reverberações de um corpo na cidade 71 Epílogo 83 6. Referências Bibliográficas 84
Não é por contar acontecimentos extraordinários que a narrativa se distingue do diário. O extraordinário também faz parte do ordinário. É porque ela trata daquilo que não pode ser verificado, daquilo que não pode ser objeto de uma constatação ou de um relato.
Maurice Blanchot, O Diário Íntimo e a Narrativa.
11
Prólogo
Nas produções da diferença no contemporâneo, trajetos que se dão sobre o chão
marcado da urbe comportam forças que extrapolam o domínio do perceptível. Passos na
rua ressoam lutas, desejos de ordem, sandices, planos e acasos. Corpos no contato com
a cidade não estariam imunes à história, nem esta a eles. Ao andar por ruelas sujas,
sobre elevados ou por um piso liso e asséptico, o transeunte carrega modos distintos de
relacionar-se com a cidade e com o outro. As cidades incitam mobilidades adequadas ao
corpo saudável tutelado pela ordem urbana, o equilíbrio das emoções, porém algo pode
suceder inesperadamente. Despossuído do atrito dos pés com o chão, a queda de um
corpo ao flutuar pode nos narrar histórias inusitadas. Histórias de diferenciados
silêncios.
Em uma cidade nordestina que se vende como “capital da qualidade de vida”,
cenas veiculadas por jornais locais dizem algo sobre relações com a alteridade no
contemporâneo. Alguns homens e mulheres nus ofendem olhares puros que respeitam a
diferença, mas longe de seu alcance1. Os gritos de uma criança incomodam o
harmonioso cotidiano de seus vizinhos2. Uma voz, aparentemente muda, faz barulho em
um espaço que se queria controlado. Sua presença destoante incomodou, tornou-se alvo
de contemplação e tempos depois de intervenção.
Em meio ao constante embate de forças que compõe o cotidiano das urbes, mais
do que cenas, acontecimentos insistem em ser produzidos e interpelam o presente,
1 No início do ano de 2012 um portal de notícias local publicou que em um bairro da cidade de Aracaju algumas pessoas reclamavam da presença de moradores que faziam muito barulho e por diversas vezes apareciam nus na parte de frente da casa. Logo em seguida houve um esclarecimento da prefeitura dizendo que se tratava de uma residência terapêutica da secretária municipal de saúde. Não muito tempo depois o mesmo jornalista publicou que o “abrigo para doentes mentais” da prefeitura estava causando transtorno aos moradores da proximidade e deixando a vizinhança temerosa. É transcrito aqui um trecho da reportagem: “O problema maior é que muitos ficam mostrando seus órgãos genitais e a vizinhança está cheia de crianças. Imagine o desconforto para os pais. Uma situação difícil. A quem recorrer? Não seria o caso de pelo menos preservar que a comunidade não tivesse que conviver diretamente com cenas explicitas? Ninguém é contra a ressocialização, mas deve-se também preservar a integridade da família. Ou não?”. Disponível em: <http://www.infonet.com.br/claudionunes/ler.asp?id=126607&titulo=claudionunes>. Acesso em: 16/08/2012. 2 Em meados deste mesmo ano uma mãe recebeu uma carta anônima onde fora ameaçada de ter uma bomba atirada em sua casa, devido aos gritos que seu filho de 11 anos dava. Segundo o jornal que publicou a notícia, tratava-se de uma criança “especial” que devido a paradas cardiorrespiratórias quando mais nova adquiriu dificuldades na fala e se expressa por meio de gritos. A carta anônima dizia que os vizinhos estavam cansados dos gritos daquela “aberração”. Disponível em: <http//www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=128138>. Acesso em: 16/08/2012.
12
envolto pelo crescente acúmulo de informações. Neste, muitas vezes, as coisas surgem e
se esvaem sem adquirir consistência e o cotidiano acaba tornando-se uma “coleção de
fatos sem cheiro nem sabor”3. Entretanto, alguns acontecimentos teimam em provocar
rupturas e, aos poucos, abalam as formas endurecidas de saberes convictos. Existências
simples, sem nenhuma glória, por astúcias ou até por um descuido, frequentemente
questionam mundos naturalizados da vida ordinária. Algumas narrativas, ao diferirem
das informações por não terem compromisso com fatos comprováveis, podem
intensificar sutis abalos.
Na cidade de Aracaju um episódio provocou aturdimento. Um acontecimento
singular, imprevisível, retirou as coisas de seus lugares e fez entrever outros possíveis.
Um corpo ao cair provocou desassossegos. O barulho ecoado no encontro deste com o
chão, contudo, teve seu volume diminuído, quando não emudecido. Fora ouvido por
muitos como pedido por segurança, previsão confirmada, confissão, contribuição da
loucura com mais um dado estatístico. Os efeitos desta vida, traduzida em informação
jornalística, desvaneceram-se quase imediatamente. Uma mulher cai do viaduto com
seus silêncios; transeuntes fazem falar o corpo imóvel agora impedido de silenciar. O
que este episódio teria a dizer sobre o silenciar e o calar de um corpo? Qual trama da
produção da diferença estaria sobre o asfalto?
Tal acontecimento aturdiu o pesquisador, provocou desvios em um caminhar que
ainda se iniciava. Após o encontro com o corpo no chão, ele passou a estranhar sua
cidade. Um turbilhão de imagens e sensações passou a provocar efeitos distintos em seu
corpo nas ruas da cidade que conhecia desde criança, mas que agora o surpreendia a
cada esquina. A cidade planejada, a cidade da qualidade de vida, a cidade de mapa
esquadrinhado sobre a qual era pronunciada uma série de virtudes, passava a dar lugar a
inesperadas cidades invisíveis; cidades que também se faziam por meio de detritos, por
meio de vidas infames.
3 MACHADO, Leila. Subjetividades contemporâneas. In: BARROS, M. E. Psicologia: questões contemporâneas. Vitória: EDIUFES, 1999.
13
O projeto de pesquisa submetido a este programa de pós-graduação, cujo título
era Modos outros de subjetivação nas cidades contemporâneas: a experiência da
loucura nas ruas, no que tange a afirmação de um modo de pesquisar, esteve vulnerável
a encontros e, desta forma, sofreu alterações. Tal projeto apontava o desejo de narrar
algumas cenas que constituíam o espaço urbano de Aracaju, de dizer de vidas ordinárias
que compunham seu cotidiano, não de forma harmoniosa como um detalhe compõe um
cenário, mas provocando estranhamentos. Queria saber que cidades aqueles que eram
tidos como loucos contariam. Quais experiências urbanas ativavam e que poderiam
desestabilizar cidades-modelos, cidades-paisagens, cidades-violentas...
Contudo, uma mulher, uma daquelas que antes suscitara seu interesse em
produzir narrativas com a loucura nas ruas, se deixou cair após provocar
estranhamentos, sair do anonimato e ser alvo de intervenção. O corpo ao cair interpelou
seus entendimentos acerca da loucura, da cidade e da diferença. O excesso de ruídos
produzidos sobre a vida e morte desta mulher o incomodou e convergiu para o
deslocamento de formas instituídas. A partir disto, de encontros com o grupo de
pesquisa e com alguns pensadores, aquela mulher deixava de ser vista como
personagem; a loucura rompia, assim, as bordas que lhe atribuíam e passava a tensionar
as relações que produzem a diferença no contemporâneo.
A presente dissertação passou a ter como objetivo interpelar a produção da
diferença na experiência urbana. Atentos aos paradoxos que emergem no cotidiano
citadino, visamos problematizar dilemas éticos sobre a criação e aniquilação da força da
alteridade. Partindo de um acontecimento singular, acreditamos ser possível interpelar
relações fascistas, bem como modos inclusivos no contato com aqueles que
experienciam a loucura.
Dizer de um pequeno acontecimento, de uma vida comum, mas que por sua
intensidade possa nos interpelar é, portanto, a aposta que se quer percorrer. E para isso,
dentre os possíveis riscos, pretende-se escapar as armadilhas classificatórias e
identitárias por quais aqueles que decidem falar da vida, falar do outro, podem se ver
presos.
Alguns caminhos serão necessários para dar corpo a esta escrita. Os Primeiros
passos do texto expõe como o pesquisador, em sua caminhada pela cidade, é perturbado
14
com o encontro com um corpo no chão. Afirmando a força deslocadora de um
acontecimento, mostramos como o pesquisador-caminhante passa a estranhar sua
cidade, e como seu próprio corpo torna-se outro à medida que a urbe vai deixando
entrever outras cidades que crescem sobre o solo da capital nordestina da qualidade de
vida. Neste curto capítulo apontamos para um método de pesquisa que se faz ao
caminhar e para uma narrativa que se constrói a partir de detritos encontrados na cidade.
O encontro com um pedaço de papel, onde está escrito Para internar, traz à
cena os jogos de forças que produziram, a partir do século XVII, novas práticas acerca
daqueles tidos como degenerados, criando e excluindo toda uma gama de experiências
distintas sob a alcunha do desatino, entre elas a loucura. Tais estratégias, como
observado, estariam conectadas a uma tecnologia de poder que se estendeu por toda
sociedade e que alcança os dispositivos psis de hoje. Ressaltamos que tais ações que vão
incidir sobre estes corpos estavam intimamente conectadas a um problema maior de
organização e conformação do espaço urbano. Observa-se, deste modo, a emergência,
também no Brasil, de uma sensibilidade que vai temer a urbe como local fecundo de
perigos para uma boa vida social, engendrando violentas práticas de exclusão e
normalização.
Seguindo sua errância, no terceiro momento do texto, o pesquisador tem
Encontros em um shopping que trazem distintas narrativas para compor a história de
Maria José. História montada a partir de diversos fragmentos – conversas, notícias -
que narra a sua aparição à cidade de Aracaju, o encontro com as luzes da cidade que a
espetacularizaram, a transformação por qual passou quando acionados, entre outros, os
dispositivos de atenção psicossocial e o fim a que teve destino na urbe.
Sobre rastros e restos ou sobre informar, narrar e estilhaçar problematiza
questões-chaves para este trabalho no que diz respeito a um caminho metodológico e a
uma aposta ética no pesquisar em ciências humanas. À luz de contribuições teóricas de
Michel Foucault e Walter Benjamin, trazemos neste capítulo um modo de encarar o
tempo presente, atento aos restos, àquilo que escapa e que pode, assim, ser utilizado
para causar rasgos nas aparentes linearidades e nas cômodas convicções dos grandes
discursos. Além disso, se aposta na produção de uma narrativa de vida que possa se dar
sem que isso signifique a construção de um discurso que pretenda falar sobre ou pelo
outro, e, assim, acabar desembocando em um discurso identitário e normalizador.
15
A mulher que tentou se desfazer: reverberações de um corpo na cidade compôs o
último momento do trabalho. Como o título sugere, visamos trazer neste as
reverberações produzidas pelo corpo de Maria José ao encontrar com o chão. Ou
melhor, de que forma tais reverberações foram ouvidas. Ao levantar problematizações
acerca deste caso, não tencionamos produzir análises explicativas do que aconteceu, ou
do por que aconteceu, mas fazer desta uma história aberta, história que possa se
desdobrar em diversas outras e, assim, concorrer para o enfrentamento dos fascismos
diários que perpassam as relações que produzem a diferença no contemporâneo. Aqui,
intensificamos a aposta ética em um modo de estar com o outro, no campo das ciências
humanas, que escape a tais fascismos muitas vezes perpetrados ao se desejar incluir.
Visamos opor aos ruídos e às luzes impostas às vidas infames na cidade, formas de
silenciar que permitem retirar-lhes do papel de vítima, ou de herói; e lhes legar certa
opacidade frente a estas luzes da ciência e da mídia que as carregam de um peso, às
vezes insustentável, e as encarceram em sólidas identidades.
Entendemos que acompanhar os trajetos e intensidades da experiência urbana
torna possíveis análises sobre quais são as forças que estão constituindo o tempo
presente, bem como pensar as diferentes possibilidades relacionais que se abrem no
contemporâneo. Quer se aqui então, ao perceber a cidade enquanto lugar de
acontecimentos, catar seus detritos e usá-los para retirar as coisas de sua aparente
ordem.
16
1. Primeiros passos
É início da noite em uma cidade que é muitas e que poderia ser tantas outras,
mas podendo não deixa de sê-la. Ela fervilha alimentada por passos, barulhos, cheiros,
incômodos, acasos, imagens, desejos. Transeuntes caminham para as mais variadas
direções sentindo na pele o abafado produzido pelos poluentes que se adensam e se
juntam ao clima típico de uma cidade ao nordeste do país. O dióxido de carbono e o
calor advindo dos motores à combustão pairam no ar e convivem com a vontade de
alguns de logo chegar a seus destinos. Já outros, parecem traçar caminhos ao acaso e em
suas desnorteantes imprevisibilidades são chamados por tempos e espaços ordenados a
compor uma harmônica sinfonia urbana. Em meio a tudo, ele se desloca como quem
sabe para onde ir. É sua cidade natal, tem rumo e percurso traçado em sua memória. A
avenida pela qual passara diversas vezes durante a infância, no trajeto casa-escola,
embora com algumas mudanças, continua a mesma. Ares de familiaridade trazem o
conforto do conhecido. Aos poucos diversas luzes começam a ser acesas e uma
sensação de segurança parece acomodar aqueles receosos pela nascente penumbra.
Outdoors luminosos passam a compor o cenário e um misto de opacidade e intensas
luzes coloridas, por vezes, provoca certo incômodo. Sobre um viaduto que corta aquela
avenida, automóveis passam acelerados, mas logo são obrigados à lentidão devido ao
tráfego intenso. Na maioria dos veículos, o que convoca a atenção de seus condutores
são outros autos que em determinados momentos obrigam a reduzir a velocidade e em
outros proporcionam a chance de uma ultrapassagem. Neles, a temperatura amena
produzida pelo ar condicionado e o som emitido pelos alto-falantes diminuem a
presença incômoda da rua.
Naquela grande avenida que liga trechos importantes e de crescente valorização
da cidade, passantes como ele, em seus trajetos caminhados, sentem os vapores e de
forma mais vulnerável a imprevisibilidade da urbe. Debaixo do viaduto pintado com
cores e motivos alegóricos locais, algo parece convidar a demorar-se. É produzido um
rallentando4 em um ritmo que por diversas vezes captura. A harmônica sinfonia urbana
fracassa. Ao longe, avista dezenas de pessoas que formam um círculo em torno daquilo
4 Termo em italiano utilizado na linguagem musical para indicar redução da velocidade. O uso que aqui se dá visa indicar a possibilidade de distintas temporalidades que emergem no espaço urbano, mesmo diante de uma certa “ditadura da velocidade” presente no contemporâneo.
17
que ainda não consegue distinguir. Sua crença inicial de que seria uma intervenção
artística na rua é rapidamente desfeita devido à expressão de alguns ao deixar aquele
amontoado de gente. Um homem com uma câmera e outro com um microfone em mãos
se encontram presentes no local. Almejam registrar algo, transformar em informação. A
presença de um automóvel do órgão de fiscalização de trânsito da cidade e uma faixa de
listas pretas e amarelas parecem dizer tratar-se de algum acidente. Elas isolam um
pequeno espaço e impedem que se chegue mais próximo. Curiosidade, conjecturas,
diagnósticos, tristeza e até previsões confirmadas parecem perpassar o corpo daqueles
que observam. Entre as pessoas, ele nota um grande plástico preto, uma pedra, uma
bolsa branca e um saco plástico, compondo o que a baixa luminosidade do local
dificultaria ainda mais identificar não fossem as luzes projetadas pela câmera do
cinegrafista e pelo farol do carro. Por baixo daquele grande e aparentemente
improvisado cobertor de plástico, ao lado da bolsa e do que parece um guarda-chuva,
permanece um corpo imóvel.
Um desacômodo invade o corpo do pesquisador-caminhante ao ver aquela
imagem e o faz cambalear. Estranha e forte sensação que o desestabiliza e parece
desmanchar certezas. Segue andando, mas agora como que desnorteado e sentindo que a
qualquer momento poderia perder o de si, deixar de ser5. Percebe-se envolto em uma
grande massa na qual passantes em um vaivém contínuo o deixam cada vez mais
confuso. A exposição às inúmeras sensações provocadas pela urbe o faz ofegar. Procura
algo a que possa reconhecer, mas de repente parecia ter perdido suas referências. O
mapa cortado por diversas linhas retas, que detinha em sua memória, tornava-se
precário. A cidade que até então lhe proporcionara ares de familiaridade passava em um
pequeno instante a plasmar-se em outras, totalmente estranhas ao seu olhar. Sentia-se
trôpego. Por entre ruas estreitas e largas avenidas, casas e arranha-céus, cores fortes e
tons envelhecidos, sentia-se como a olhar um caleidoscópio e caminhava incerto com o
5 ROSA, Guimarães. Sorôco, sua mãe, sua filha. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
18
que ia se desvelando ao seu olhar, ao mesmo tempo distraído e encarnado. Que cidades
habitariam aquela?
Em alguns momentos reconhecia as ruas por onde passava, recordava-se dos
tantos caminhos percorridos; alguns prédios, esquinas, pontos comerciais, lhe eram
familiares. Nestas ocasiões voltava aos poucos a se acomodar e ia realocando-se dentro
de si. Porém, ao mínimo encontro com algo estranho a sensação de comodidade logo se
desvanecia e um choque o fazia voltar a uma tensa atenção. Placas “proibido
estacionar”, “retorno à esquerda”, “Luzia”, “cuidado, travessia de pedestre”, “Grageru”,
“shopping a 500 metros”; cartazes “ensina-se banca”, “trago o amor de volta”, “quer
perder peso pergunte-me como”, “aproveite a promoção”, “vende-se o terreno”. Na
maioria das vezes a diversidade de estímulos durante sua caminhada produzia
pensamentos rápido que não adquiriam consistência. Letreiros, propagandas, anúncios
despejados por alto-falantes, barulho de carros, vozes, toques de celular, dificultavam
seu pensamento. As pessoas por quais passava pareciam sempre andar apressadas e ao
mínimo sinal de um contato elas desviavam de forma sutil ou demonstravam a falta de
tempo indicando o relógio.
Caminhava já sem noção do tempo e o excesso de estranhamentos fazia seu
corpo estremecer. Sentiu então um desejo de voltar àquele lugar, já que até lá tudo
parecia comum; o reconhecimento traria o conforto da segurança. Não devia estar tão
longe de onde se dera o acontecimento. Acreditava poder distinguir o local, pois passara
por lá diversas vezes. Uma imagem intensa vinha a seu corpo, mas desaparecia rápida e
fulgurante. Continuou perambulando e intrigando-se com o que via até que entrou em
uma estreita rua pavimentada com grandes paralelepípedos; aquela rua parecia não fazer
parte da cidade. Avistou duas folhas de papel rolar em sua direção e serem paradas pelo
encontro com um banco, daqueles de madeira que se encontram nas antigas praças.
Apanhou os papéis e olhou em volta, meio desconfiado, para ver se alguém se
encontrava por ali. Sentou-se procurando o ângulo com melhor incidência de luz e leu
em letras impressas:
19
6
6 CALVINO, Italo. As cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990ª, pp.65-66.
20
21
Levantou-se do banco ainda mais aturdido com o que vinha acontecendo. Que
cidade seria esta que tem por nome Aglaura? Curiosamente o nome de sua cidade-natal
começava com a mesma vogal e tinha igual quantidade de letras, mas era outro... Por
um pequeno instante estremecia com a possibilidade de não ser. Será que pelo excesso
de dizeres ela passara a existir menos? Será que também era ela Aglaura?
Sua cidade possuía também um sortimento de qualidades. Recorda que ela já
nascera carregando muitos dizeres. Primeira capital planejada do Brasil! O até então
povoado de Santo Antonio de Aracaju, em 1855, por favorecer a criação de um porto - o
que facilitaria o escoamento de produtos, algo fundamental para uma capital na época -
foi escolhido como local para a nova sede da província de Sergipe del’Rey. A região
que comportava o povoado, mas também mangues, lagos, aterros, foi tomada por
desejos de ordem e progresso e esquadrinhada, tendo sobre si traçado um tabuleiro de
xadrez de onde retilíneas ruas dariam os bons ares da nascente capital.
Contudo, nos tempos de agora seriam outras as qualidades, a série de virtudes e
as comparações com outras cidades. Capital nordestina da qualidade de vida7, cidade
limpa e moderna, mas com ares de cidade do interior, devido a sua tranquilidade e ao
povo hospitaleiro. Cidade com um dos melhores sistemas de saúde e modelo de uma
nova política de saúde mental. Eram muitos os dizeres e a todo momento uma imagem
sólida e compacta da cidade tentava manter-se firme.
Resolveu seguir andando na tentativa de retornar ao local. Esforçava-se por
reconhecimentos ao mesmo tempo em que tentava se desvencilhar daquilo cuja origem
desconhecia, mas que sentia como uma força tentando colocá-lo numa enxurrada que
jogaria todos para um mesmo espaço. Passara, não sabe quando, a desconfiar de coisas
que pareciam ter um único destino. Ao dobrar a esquina daquela rua finalmente avistou
o viaduto colorido, ele estava a apenas alguns metros. Perguntava-se como nunca teria
passado por aquela estreita e singular rua que parecia carregada de histórias. Acelerou o
passo na ânsia de alguma resposta, contudo, já embaixo do elevado, um cheiro forte
penetrou em suas narinas e o fez novamente cambalear. Titubeou. Um desejo de recuo
irrompeu. Mas, já estava sujo por aquela andança; escorregara em algo viscoso naquele
7 Segundo pesquisa realizada em 2008 pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), a cidade de Aracaju possuiria o melhor Índice de Desenvolvimento Municipal entre as capitais do Nordeste. Tal índice leva em questão os quesitos saúde, educação, emprego e renda. Dados de outra pesquisa realizada no mesmo ano pela Fundação Getulio Vargas sob encomenda do Ministério da Saúde, mostrou que Aracaju seria a capital da qualidade de vida do país.
22
chão rasurado. Um rastro de sangue, vivo, parecia se espraiar dali, no entanto ninguém
se achava mais lá. Encontrara somente um guarda-chuva quebrado. De repente, um
inesperado vento soprou forte e elevou diversas sacolas plásticas, que até então ele não
tinha se dado conta de existirem, das mais variadas formas, compondo um pequeno
redemoinho multicor. Entre as sacolas surgiam papéis pequenos, rasgados e algumas
folhas inteiras, fazendo-o suspeitar da origem do escrito anterior. Pareciam recortes de
jornais, bilhetes, receitas médicas, documentos antigos. Indagou-se de onde viriam e
que histórias contariam. A cidade parecia comportar mais do que procurava mostrar.
Aquele chão, mesmo com camadas de asfalto, aquele monte de concreto que compunha
o viaduto, podiam ainda ser marcados por corpos e múltiplas narrativas. A cidade que
até então existia mais, em certos momentos parecia dar lugar a invisíveis cidades
coexistentes, cidades de raridades e daquilo que não tem nome, cidades indizíveis,
cidades de pequenos acontecimentos.
Estava agora de frente a um turbilhão de sacolas e papéis. Tentou alcançá-los,
mas eles se espalharam e voaram para as mais diversas direções. Correu e antes que um
deles caísse em um bueiro o resgatou: era um pedaço de uma velha folha de papel.
Rasgado e amarelado, este era bem diferente do que encontrara anteriormente, parecia
um fragmento de documento antigo de onde se delineavam letras formais. Logo abaixo
de um texto pouco legível, acima de uma pomposa assinatura e de uma data meio
apagada - parecia 1807 -, estava escrito: “Para Internar”.
23
2. Para internar
Sentença curiosa e ao mesmo tempo perigosa esta que durante séculos enviou
para o mundo da exclusão uma diversidade de sujeitos, uma gama de experiências
distintas que viriam a constituir excêntricos parentescos, sobretudo a partir da era
clássica8, e que viriam, assim, compor o quadro geral do múltiplo universo do desatino.
Para internar, ou uma de suas sutis variações, mantiveram uma aproximação e uma
significação nunca muito distantes: retirar corpos considerados inaptos da livre
circulação nas cidades, reduzir a probabilidade destes de escandalizar, ou pode se dizer,
de provocar transtornos.
Tendo refreada a sua violência, na medida em que cortada a sua ligação a
obscuras forças do mundo – relação que fora atribuída durante a Idade Média – a
loucura, exemplo mor do estranho e diverso mundo do desatino, foi enclausurada no
domínio do humano e referida àquilo que este teria de mais baixo. Passou a ser contida
na lógica binária razão-desrazão e, assim, foi subjugada e logo mais seria asilada.
Aqueles considerados loucos, no século XVII, desembarcaram da Nau renascentista9,
que vagava pelos mares da Europa, em meio aos sólidos muros das grandes casas de
internamento. A loucura, na era clássica, fora então reduzida ao silêncio por um
estranho golpe de força. A Renascença teria libertado as vozes da desrazão, porém
controlado sua violência, já a era Clássica vai silenciá-la10.
Cabe ressaltar que não se pretende aqui tecer uma relativização buscando
entender como um suposto fenômeno foi tratado em distintas épocas, mas entender que
imbricado jogo de forças produziram e intensificaram práticas acerca daqueles tidos
como degenerados, desatinados, inaptos etc. Perceber que tais ações que vão incidir
nestes corpos estarão, de início, intimamente conectadas a um problema maior de
governo do espaço urbano.
Neste contexto, não se observa experiências homogêneas no trato com o que
compunha uma espécie de quadro geral do desatino, e sim distintas práticas, mas que
iriam formar, de modo geral, uma nova percepção daquilo que poria em risco uma
8 FOUCAULT, M. História da loucura na Idade clássica . São Paulo: Perspectiva, 2010. 9 A Nau dos Loucos surge como objeto na paisagem artística da Renascença a partir do século XV. Tais embarcações, onde alguns loucos eram abandonados à própria sorte em longas viagens pelos mares, tiveram existência real. 10 Ibid.
24
determinada ordem das cidades. Por toda a Europa surgia uma sensibilidade social que
atingiria seu limiar na segunda metade do século XVII, isolando toda uma categoria de
sujeitos destinados a povoar os lugares de internamento.
A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o inicio, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade11.
Um conjunto de rostos de diferentes silhuetas foi, desta maneira, colocado do
outro lado dos muros do internamento. Entretanto, o gesto que excluiu, como se poderia
imaginar, não isolava estranhos desconhecidos, mas os criava “alterando rostos
familiares na paisagem social a fim de fazer deles figuras bizarras que ninguém
reconhecia mais”12. Assim, ao mesmo tempo em que era produzida a diferença,
anulava-se seu potencial político de transtornar enquadrando-a em personagens bem
delimitados. Mais do que um papel negativo de exclusão o internamento representou um
papel positivo de organização. Tal prática reuniu toda uma série de experiências, das
quais antes não se encontrava nenhum parentesco, em um mesmo domínio, o da
alienação mental.
E se verá que “nesse espaço factício criado inteiramente em pleno século XVII
constituíram-se alianças obscuras que cento e tantos anos de psiquiatria dita “positiva”
não conseguiram romper, alianças que se estabeleceram pela primeira vez, bem
recentemente, na época do racionalismo”13. Doentes venéreos, devassos, homossexuais,
alquimistas, suicidas, toda uma população matizada se viu rejeitada para além de uma
linha de divisão e reclusa em asilos. Abre-se e delimita-se neste momento um novo
espaço social que nasce da inquietação com a pobreza e que será um dia confiscado pela
doença. E o asilamento, como se verá, será herdado exclusivamente por aquilo que
11 FOUCAULT, 2010, p. 78. 12 Ibid., p. 81. 13 Ibid., p.87.
25
haveria de mais grave no mundo do desatino, aquilo que juntaria um erro moral, comum
a toda espécie de desatino, a uma bestialidade no humano, a loucura.
Importante lembrar, contudo, que mesmo com o que era considerado loucura,
podia se notar práticas heterogêneas. Nem todos os considerados loucos eram tratados
da mesma forma, pois alguns, se acreditava, podiam ser curados e eram recebidos em
locais específicos; ainda que rudimentares era possível observar alguns tratamentos
médicos. Durante o período da Renascença aqueles avaliados como passíveis de cura
foram alvo de um certo humanismo médico e viu-se surgir hospitais que reservavam
algumas salas para tais insanos. Porém, a grande maioria, considerada incurável, era
destinada às grandes casas de internamento e não recebiam qualquer tratamento médico.
Segundo Foucault, se levados ao pé da letra os textos e documentos por ele
analisados, haveria então de se supor que uma análise médica seria sempre necessária
para decidir pelo internamento de alguém. Seria, portanto, o juízo da medicina que
introduziria no mundo da loucura. Entretanto, não é o que ocorria na prática, pois é raro
encontrar documentos que contenham algum certificado médico justificando a
internação. Situação que se intensificaria ainda mais em 1667, quando, em Paris, cria-se
o cargo de tenente de policia e os internamentos, na maioria dos casos, passam a ser
realizados sob seu pedido.
Já a partir de 1692, o procedimento que se tornará mais frequente será a lettre de
cachet14. (Ver-se-á mais adiante como este instrumento vai ser importante para a
intensificação de uma rede de controle na sociedade). Serão pessoas próximas, como
familiares ou vizinhos, que solicitarão ao rei, o internamento, e este vai ordená-lo após a
assinatura de um ministro, que normalmente a concedia após uma inspeção do caso.
“Tanto isto é fato que no século XVII a loucura se tornou assunto de sensibilidade
social; aproximando-se do crime, da desordem, do escândalo, ela pode ser julgada,
como estes, pelas formas mais espontâneas e mais primitivas dessa sensibilidade”15.
Ver-se-iam assim, de forma geral, duas experiências distintas, mas
concomitantes, com a medicina, de um lado uma teoria jurídica acerca da loucura que
recorre à medicina para legitimá-la e de outro uma prática social, quase policial, mais
14 Tratava-se de documentos emitidos em nome do rei, mas que na maioria dos casos eram respostas a pedidos vindos “de baixo”, a solicitações dos súditos, muitas vezes os próprios familiares ou vizinhos, que evocavam o poder real para que este se exercesse sobre aqueles considerados indesejáveis, e que assim os sujeitassem a medidas de segurança tais como a prisão ou o internamento. 15 FOUCAULT, 2010, p. 128.
26
comum, que vai utilizar formas de internamento e independe da teoria. E um dos
esforços daquele século, segundo o pensador francês, vai ser o de ajustar estas duas
experiências, a de um sujeito de direito com a do homem social. “A doença mental, que
a medicina vai atribuir-se como objeto, se constituirá lentamente como a unidade mítica
do sujeito juridicamente incapaz e do homem reconhecido como perturbador do grupo,
e isto sob o efeito do pensamento político e moral do século XVII”16.
Importante ressaltar também, que tais práticas médicas, vistas de forma bem
localizadas nesta época, estavam muito mais ligadas a tratamentos morais do que a
cuidados terapêuticos ou medicamentosos fundados sobre algum saber médico. Pois,
antes mesmo de um saber e uma instituição efetivamente psiquiátrica, o que emerge é
uma forma de poder que não apenas as garantirá, como produzirá aqueles sujeitos sobre
quem este saber vai incidir. Tramas se estabeleceram e possibilitaram a produção da
loucura como doença mental, bem como a instauração de uma lógica disciplinar que
estaria presente até os dias hoje.
Em curso proferido no Collège de France, nos anos 1973 e 197417, Foucault
propõe uma análise diferente da que tinha realizado em A História da Loucura , obra na
qual teria dado um privilegio ao que se pode chamar de percepção da loucura, caindo
assim no risco de uma análise das representações. Agora o objetivo seria outro,
interessaria saber “em que medida um dispositivo de poder pode ser produtor de certo
número de enunciados, de discursos e, por conseguinte, de todas as formas de
representações que podem posteriormente daí decorrer”18. Ou seja, Foucault iria analisar
a emergência de uma tecnologia de poder que será a condição de possibilidade para todo
um saber e uma prática psiquiátricos. Mas, não somente para isso.
Uma cena. Algo singular, mas que deixa entrever os jogos de força que
atravessam uma interessante disposição do poder, um novo modo de intervir junto ao
corpo e assim produzir sujeitos. Aparecimento de uma ordem disciplinar que vai se
espalhar por toda a sociedade e possibilitar saberes, discursos e práticas. É o que se
entrevê com a cena de cura do rei George III19, da Inglaterra, que para Foucault é muito
16 FOUCAULT, 2010, p.131. 17 FOUCAULT, M. O Poder Psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 18 Ibid., p.17 19 Cena relatada por Pinel em seu Tratado médico-filosófico e analisada por Foucault. (FOUCAULT, 2006).
27
mais sinalizadora de uma época do que a cena considerada um marco da psiquiatria, a
famosa cena de Pinel libertando os loucos das correntes do asilo. Tal episódio de cura
do rei serve para mostrar a emergência de um tipo de exercício de poder político que vai
se sobrepor às relações de soberania. Episódio que marcaria a passagem de um estado
soberano para o estado moderno20, onde o poder que emanava do rei é substituído por
um poder anônimo e individualizador ao qual o próprio monarca vai ser submetido. Na
cena referida, a loucura do rei
o faz cair sob um poder que não é um outro poder soberano; [...] É um poder anônimo, sem nome, sem rosto, é um poder que é repartido entre diferentes pessoas; é um poder, sobretudo, que se manifesta pela implacabilidade de um regulamento que nem sequer se formula, já que, no fundo, nada é dito, e está bem escrito no texto que todos os agentes do poder ficam calados. É o mutismo do regulamento que vem de certo modo ocupar o lugar deixado vazio pela descoroação do rei21.
Observa-se assim a constituição de um poder disciplinar, e de um poder
psiquiátrico, antes mesmo do surgimento de discursos de verdade sobre a loucura ou de
instituições para a sua cura. Foucault mostra como, com a constituição de certa ordem,
de determinada disciplina aplicada ao corpo, foi possível a fabricação tanto do doente
mental, como a de um “olhar médico” - relação de objetividade que teria por alvo a cura
do doente. E para isso, fora necessário o ordenamento dos espaços, dos gestos, dos
comportamentos, dos discursos; o assujeitamento dos corpos para que estes surgissem
na sua individualidade e, assim, tornassem possível o seu conhecimento.
Esta nova microfísica do poder, assegurada por uma multiplicidade e não mais
pela figura do soberano, garantida por uma disposição estratégica, onde diferentes
indivíduos exerceriam determinadas funções, é o que vai, desde o início do século XIX,
criar as condições de possibilidade não somente para a prática psiquiátrica, mas para a
emergência de todos os discursos psi.
Já com relação aos procedimentos de cura, o que se vê são cenas de
enfrentamento entre a vontade do médico e a vontade do doente, na qual o psiquiatra,
20 PALOMBINI, Analice de Lima. Vertigens de uma psicanálise a céu aberto: a cidade. Contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica na reforma psiquiátrica. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007. 21 FOUCAULT, 2006, p.27.
28
atuando como guardião da verdade, vai agir como intensificador de uma realidade. Ele
vai impor o real à loucura em nome de uma verdade detida por esse poder sob o nome
de ciência médica. Mesmo que os discursos científicos que a psiquiatria tinha se
preocupado em constituir na época, como o discurso nosológico e o discurso
anatomopatológico, não mantivessem nenhuma relação com a prática psiquiátrica; estes
serviam apenas como legitimadores desta prática que se queria detentora de uma
verdade inquestionável22.
Desta forma, a cura nas instituições asilares era, de modo geral, esperada como
um processo reativo a partir da combinação de alguns elementos, como o isolamento no
asilo, a aplicação de alguns medicamentos de ordem fisiológica, as restrições próprias
da vida asilar (a disciplina, alimentação definida, trabalho, instrumentos físicos de
coerção) e uma espécie de “medicação” psicofísica, ao mesmo tempo punitiva e
terapêutica, como a ducha e a cadeira rotatória23. Exemplar destes elementos que
definiam o âmbito terapêutico, Foucault cita um caso que permitiria compreender os
mecanismos gerais aplicados pelos psiquiatras da época, em torno de 1840, e que podia
ser dividido em quatro ou cinco manobras24.
Primeiro, um desequilíbrio do poder, faz-se que o poder passe logo de saída para
o lado do médico. Dissimetria fundamental a disciplina. O doente deve perceber que
toda a realidade está concentrada na vontade do médico, assim deve aceitar tudo aquilo
que o médico quer. Além disso, esse desequilíbrio minaria a afirmação de onipotência
que se acreditava existir em toda forma de loucura. A segunda manobra seria a
reutilização da linguagem. É necessário que o doente reconheça o nome de cada um, do
médico, do enfermeiro, do vigia, e que reconheça, a partir daí, a hierarquia do espaço
disciplinar. Terceiro, uma organização das necessidades. Mantêm-se o doente abaixo de
certa linha de sua existência, privando-o de coisas que ele teria acesso normalmente, de
modo que se estabeleça um sistema de carências. O doente tem que perceber que ele
precisa trabalhar para comer, para pagar os cuidados que lhe dispensam. O que também
vai fazer com que o mundo exterior torne-se desejável, em oposição ao mundo asilar.
Por último, o dispositivo do enunciado da verdade. É preciso que o doente diga a
22 FOUCAULT, 2006. 23 Ibid. 24 Terapia efetuada pelo psiquiatra francês Leuret, num tal senhor Dupré, e que para Foucault seria um caso bem desenvolvido que deixa entrever como se dava a terapêutica da loucura nesta época. (FOUCAULT, 2006).
29
“verdade”, que ele confesse seu erro perante a realidade médica; e é através do
reconhecimento de certo número de episódios biográficos que ele deve primeiramente
enunciá-la. Dispositivo, por conseguinte, que cada vez mais impede de silenciar.
Construção de uma realidade biográfica, portanto. O interrogatório vem
funcionar, neste contexto, como um importante instrumento de realização da loucura.
Deve-se perguntar ao doente quais as doenças de seus antecedentes, buscando encontrar
um substrato patológico no corpo constituído pela família. Procuram-se episódios pelos
quais a loucura se mostraria antes de ser realmente loucura, informações de vida que
poderiam identificar sinais anunciadores de sua doença. Organiza-se uma espécie de
trato, no qual o psiquiatra pede ao doente que assuma sua loucura, para que, assim, ele
possa isentá-lo de sua responsabilidade moral e jurídica e retirar sua culpa. E por último,
organiza-se uma confissão central: o sujeito interrogado não apenas deve reconhecer sua
loucura, mas atualizá-la no interior do interrogatório. Situa-se o sujeito em um ponto de
estrangulamento, em que ele “se vê obrigado a dizer “sou louco” e desempenhar
efetivamente sua loucura”25.
Logo, poder que faz falar, que exige uma confissão para que todo o “teatro”
psiquiátrico se valide. Mais do que reprimir, portanto, o poder disciplinar produz.
Produz práticas, saberes, sujeitos, discursos, faz falar e faz agir. E nesta conjuntura, a
escrita se torna fundamental, pois ela permite o acúmulo de informações sobre um
corpo, permite que se constituam arquivos, permite, assim, uma eficácia maior desta
forma de poder.
Para que o poder disciplinar seja global e contínuo, o uso da escrita me parece absolutamente necessário, e parece-me que se poderia estudá-lo da maneira como, a partir dos séculos XVII-XVIII, se vê, tanto no exército como nas escolas, nos centros de aprendizagem, igualmente no sistema policial ou judiciário, etc., como os corpos, os comportamentos, os discursos das pessoas são pouco a pouco investidos por um tecido de escrita, por uma espécie de plasma gráfico que o registra, os codifica, os transmite ao longo da escala hierárquica e acaba centralizando-os. Vocês têm aqui uma relação nova, creio, uma relação direta e contínua da escrita com o corpo.26
25 FOUCAULT, 2006, p.356. 26 Ibid., p.61.
30
Em A vida dos Homens Infames27, Foucault vem mostrar como, a partir de finais
do século XVII, este investimento em uma escrita, a construção desta rede de
dizibilidade da vida, passa a tomar forma, tornando-se um importante instrumento de
controle do cotidiano. O antigo mecanismo da confissão, caro ao cristianismo e que
fazia passar pelo fio da linguagem o minúsculo mundo de todos os dias - “tudo dizer
para tudo apagar” - passou a ser enquadrado por um outro mecanismo; não mais
agenciamento religioso, mas administrativo. As mínimas práticas diárias, aquilo que
poderia fugir a uma determinada ordem da moral e da razão, deveriam vir ao
conhecimento dos mecanismos de poder. O objetivo: criação de uma rede de
discursificação do cotidiano; revista do universo ínfimo das irregularidades e das
desordens visando o esquadrinhamento da vida.
A partir do uso de instrumentos como as lettres de cachet - enviadas em nome
do rei, mas em grande parte por homens comuns, às vezes os próprios familiares, para
que o poder soberano viesse a incidir sobre aqueles considerados indesejáveis - o
insignificante vai deixando de pertencer ao silêncio. O ordinário, a obscuridade, a vida
comum deve ser dita, e mais, escrita. O discurso vai atravessar vidas e produzir
monstros. E no lugar da confissão religiosa, utiliza-se a denúncia, a queixa, o relatório,
o interrogatório. Deste modo, tudo que se diz é registrado por escrito, acumulado,
constitui arquivos. Surgem diferentes formas de relação entre o poder, o discurso e o
cotidiano, um entrelaçamento ainda não visto e que vai almejar geri-los e ordena-los de
forma intricada, e por isso mais eficiente. Distribuição, assim, num complexo circuito
de poder28.
Para Foucault “é aí que, pelo menos em parte, tem a sua origem um certo saber
do cotidiano e, com ele, uma grelha de inteligibilidade que o ocidente se encarregou de
assentar sobre os nossos gestos, sobre as nossas maneiras de ser e agir”29. No entanto, é
importante ressaltar que nesta época, passagem do século XVII para o XVIII, ainda era
necessária a presença, ao mesmo tempo real e virtual, do Rei. Na sua forma primeira
esses mecanismos de discursificação do cotidiano só existiam dentro de uma relação de
poder dominada pela figura do monarca, pois era a ele que os discursos se dirigiam.
27 FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: ______. O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. 28 FOUCAULT, 1992. 29 Ibid., p.118.
31
Virá o dia em que o poder que se exercerá na vida cotidiana já não será o de um
monarca todo-poderoso, fonte de toda justiça. Os corpos dos miseráveis não mais se
defrontarão quase diretamente com o do rei. O poder que se exercerá será constituído
por uma rede fina, contínua, onde se disseminam as instituições da medicina, da justiça,
da política, da psiquiatria. Fará agir e falar. O discurso que irá se formar terá a
presunção da observação e da neutralidade. “O banal será analisado de acordo com a
grelha eficaz mas cinzenta da administração, do jornalismo e da ciência”30.
Tal dia chegou, como visto, atingindo sua concretude em fins do século XVIII,
início do XIX, e com algumas modulações alcançou o tempo presente. A tecnologia de
poder disciplinar espalhou-se por toda a sociedade por meio do esquadrinhamento dos
corpos e dos espaços; atuou produzindo assujeitamentos e possibilitou, assim, o
surgimento das chamadas ciências humanas. A justiça e a psiquiatria ao punir mesmo
que virtuais desvios e excluir toda uma espécie de “degenerados” permitiu uma
classificação social hierarquizada, fundando práticas de disciplina e controle social. Para
tanto, junto às práticas asilares viu-se a constituição de uma medicina social que
transformou as cidades de modo a investir contra aquilo que se acreditava colocar em
risco a vida das pessoas.
Surgem estratégias que incidiriam não apenas sobre o corpo individualizado,
mas no corpo da população, do homem em relação com tudo aquilo que o rodeia.
Mecanismos que tencionam dar conta da totalidade da vida humana, ordenar seus
comportamentos, seus gestos, seus discursos, normatizar a relação deste com o espaço
urbano, a água, o ar e com outros corpos; tudo isso, em nome de um ideal de
salubridade31.
Tais mecanismos, de tal modo, já indicariam outra tecnologia de poder, que se
tornou preponderante sobre estes outros tipos de poder já existentes - a soberania e a
disciplina - mas não os excluindo. Para o pensador francês seria possível afirmar que se
vive em uma “era da governamentalidade”32 desde o século XVIII. Decorrente de
30 FOUCAULT, 1992, p.122. 31 “Salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível. Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos”. ( FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social. In: _________. Microfísica do poder . Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979c). 32 FOUCAULT, M. A governamentalidade. In: _________. Microfísica do poder . Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979b.
32
análises dos dispositivos de segurança, Foucault investiga o surgimento deste novo
corpo sobre o qual irá incidir tal nova forma de poder, no caso a população.
Nasce, portanto, um saber de governo absolutamente indissociável de um saber
sobre todos os processos referentes à população. E isto não significa que a soberania e a
disciplina deixaram de desempenhar seus papéis. Nunca, conforme Foucault, a
disciplina foi tão importante e tão valorizada quanto a partir do momento em que se
procurou gerir o corpo da população. Deste modo, não haveria uma substituição de uma
sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e depois por uma sociedade de
governo. Mas atualizações, sobreposições de estratégias características de cada forma de
poder, que passam, a partir de então, a ter na população seu principal alvo.
É nesta era da governamentalidade, envolta por uma necessidade de melhor
governar os corpos, portanto, que se vê aparecer, no final do século XIX, o que não é
apenas uma “anátomo-política” do corpo humano – procedimentos de poder que seriam
característicos das disciplinas – mas, o que Foucault chama de uma “bio-política” da
espécie humana, com toda uma série de intervenções e controles reguladores dos corpos
no espaço33. Surgia, assim, a necessidade de um controle social, de esquadrinhar o
espaço público visando à higienização das cidades e de gerência dos corpos enquanto
força de produção. Procedimentos biopolíticos possibilitados por diversas estratégias
que se situariam na articulação do homem com o coletivo, a exemplo da medicina
social.
Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente ao contrário; que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e inicio do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política34.
A biopolítica vai lidar com a população, e a população como um problema a um
só tempo científico e político. Vai assegurar sobre os indivíduos não mais apenas uma
disciplina, mas uma regulamentação. Em vez de, como na soberania, “fazer morrer e
33 FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber . Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. 34 FOUCAULT, 1979c, p.80.
33
deixar viver” aparece um poder, chamado por Foucault de regulamentação ou biopoder,
que consiste em fazer viver e deixar que morra. E toda esta regulamentação da vida não
apenas dita normas, mas produz necessidades, desejos, formas de sentir, formas de ver e
modos de se portar na cidade. Atua, importante ressaltar, de forma a “qualificar” a
cidade, a vida dos homens, de forma a produzir saúde e o que era entendido como
melhores formas de habitar a urbe.
O espaço urbano deveria, portanto, ser unificado e organizado de modo a
possibilitar uma melhor circulação do ar, das águas e das pessoas. Tornar-se-ia
necessário controlar os locais de amontoamento que poderiam se tornar fontes de
doenças, como cortiços, hospitais, cemitérios, presídios. Logo, toda uma reordenação do
tecido urbano ia se dando, tendo como pressupostos validadores alguns discursos
científicos. A forma de relação com aqueles considerados inaptos e que não se
ajustavam ao ideal do homem da cidade moderna, com aqueles que não se enquadravam
no mercado de trabalho, como apontado, vai se dando a partir de determinadas práticas
de controle dos corpos, normatização das condutas e exclusão.
No Brasil, é com a proclamação da República e com os emergentes ideais
positivistas de ordem e progresso que a preocupação com a ordenação do espaço urbano
e com as figuras consideradas desviantes vai se tornar intensa. Ver-se-á que somente em
finais do século XIX as práticas com relação à loucura vão adquirir efetivamente um
sentido médico.
Em Cidadelas da Ordem35, Cunha afirma que, no século XIX, existiam muitas
figuras populares que trariam a marca da “vesânia” incorporadas à paisagem urbana e
ao cotidiano das cidades. Figuras como o Príncipe Oba II, reverenciado e admirado nas
ruas do Rio de Janeiro, cuja morte foi noticiada pelos principais jornais da cidade, o
Príncipe Natureza e o Praia Grande, mostram como, nesta época, estes pitorescos
personagens eram, de certa forma, aceitos em sua diferença.
Até meados do século XIX, o tema da loucura era um item de menos
importância numa pauta nascente que incluía a questão dos esgotos, dos cemitérios, das 35 CUNHA, M. Cidadelas da Ordem: A doença mental na República . São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.
34
habitações coletivas das classes pobres; da higienização e modernização das cidades.
Foi apenas na década de 1880 que surgiram os especialistas no campo da loucura: os
alienistas. A partir de então a loucura passa a entrar na ordem do dia e tonar-se uma
doença de fundo orgânico, perigosa e invisível aos leigos, cabendo aos alienistas
promoverem sua cura.
Tais especialistas chegavam inspirados por modernas concepções de ciência,
importadas da Europa. A teoria da degenerescência, formulada pelo psiquiatra austríaco
Benedict Morel, foi um dos principais referenciais teóricos destes profissionais e
conferiu a psiquiatria uma amplitude e um potencial de controle social extremamente
ampliado. Segundo a teoria de Morel, construída a partir de observações de pobres e
proletariados parisienses, a loucura seria um subproduto da degeneração e, logo, de
natureza hereditária. Deste modo, os pobres, que eram constantemente submetidos a
condições de existência propiciadoras de degeneração, passavam a ficar sob
generalizada suspeita e começavam a ser intensamente combatidos nas grandes cidades.
Preocupado com questões relativas ao rápido crescimento urbano e industrial
que transformava as cidades, o regime republicano encontrou na teoria da
degenerescência um eficaz instrumento de controle social. Esta concepção tida como
científica acabou tornando-se uma forma de justificação e estigmatização da pobreza.
Além disso, uma inversão foi produzida, afirmava-se que não era a pobreza ou a
insalubridade que criavam a degeneração do proletariado, e sim a degeneração que seria
responsável pelo “detrito social” composto de setores marginalizados, pobres ou
perigosos36.
O pensamento alienista, essencialmente voltado para a profilaxia do meio
urbano, considerava, deste modo, a cidade como um ambiente ideal para deflagrar uma
verdadeira epidemia social. Para os alienistas, “A cidade esconderia multidões anônimas
de degenerados em seus becos, vielas [...] nas multidões de pobres laboriosos cuja
fronteira com os degenerados seria teórica e praticamente imperceptível”37. Pobreza e
loucura passavam a possuir entre si um contrato até então inexistente em terras
brasileiras.
A atribuição de uma natureza orgânica e hereditária à loucura possibilitou,
portanto, à psiquiatria a inauguração de um conjunto de práticas que ultrapassavam o 36 CUNHA, 1990. 37 Ibid., p.27.
35
campo restrito do que seria a sua especialidade. As práticas dos alienistas se voltavam
contra os comportamentos condenados pela moral das elites, contra comportamentos
definidos como antissociais, contra a loucura identificada pelo critério de
improdutividade de seu portador, contra todas as condutas que fugissem aos padrões e
normas definidas como boas pela ciência.
Diante dos graves problemas de higiene e de falta de controle sobre o corpo
social, duas estratégias eram propostas ao estado, pelo alienismo. Esquadrinhar o espaço
urbano para localizar os pontos de degenerescência e poder sequestrar os degenerados.
E em segundo lugar, defender a sociedade. Devia-se proteger os sãos, introjetando neles
a ideia de sua própria defesa contra a degeneração, incutindo-lhes princípios de moral e
de higiene para torná-los aptos à disciplina das grandes cidades e capazes de perceber a
degenerescência. Este saber, capaz de criar eficazes instrumentos de disciplinarização,
foi, assim, rapidamente apoiado não só pelo Estado, mas por toda a população. Os
alienistas podendo perceber a loucura e a degeneração por trás daqueles corpos
suspeitos, em breve incutiriam em todos o medo e a “sabedoria” para percebê-los.
É envolto por este cenário que surge o asilamento científico no Brasil. Já que os
asilos que existiam, a exemplo do Hospício Dom Pedro II, eram, sobretudo, casas de
assistência e caridade, onde praticamente não havia enfretamento médico da loucura.
Em 1890, ele se separa da Santa Casa de Misericórdia, por quem era administrado, e
transforma-se no Hospício Nacional de Alienados, passando, assim, a ter tratamento
médico-científico. Tratamento médico que ainda terá um significado moral de
recuperação e readaptação à ordem e a disciplina exigidas para a vida nas grandes
cidades. O Hospício, que teve como seu principal modelo o de Juquery, idealizado por
Franco da Rocha, em São Paulo, vai se tornar um microcosmo idealizado de uma
harmônica e funcional cidade, onde os ideais produzidos pelo razão científica serão
propagados e feitos cumprir à revelia da vontade de seus internos.
O asilamento “cientifico” contrapunha-se à temível imagem da desordem urbana, da sujeira, da subversão dos valores mais caros às elites pela imposição de uma versão higiênica, disciplinada, pacífica e capaz de restaurar no próprio mundo do desatino a imagem da ordem almejada. Assim o hospício médico surge como
36
uma promessa de um mundo regulado que, do caos da loucura, podia fazer renascer o triunfo da razão38.
Tais ideais seriam ainda fortalecidos com o surgimento de outro dispositivo, nas
primeiras décadas do século XX, que vai atuar como mais um eficaz gerenciador da
ordem urbana, a chamada Liga Brasileira de Higiene Mental. Tida como marco inicial
da Psiquiatria científica no Brasil, ela mostra como os psiquiatras da época, visando
tratar os “degenerados”, elaboraram programas de “higiene mental” fortemente
influenciados pela ideia de uma medicina social e por ideais eugênicos39.
Segundo Costa, a Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923, pelo
psiquiatra Gustavo Riedel, com o objetivo inicial de promover uma melhor assistência
aos doentes mentais, acabou confundindo, se é que é possível falar em confusão, os
problemas psiquiátricos com os problemas culturais em geral. Após 1926, os psiquiatras
começaram a elaborar projetos que ultrapassavam as aspirações iniciais da Liga e que
visavam à prevenção, à eugenia e à educação dos indivíduos na cidade. Atenção maior
não a uma possível cura, mas à profilaxia.
O regime republicano ainda atravessava um intenso período de convulsões no
início do século XX. A abolição da escravatura, a imigração de camponeses e o grande
crescimento industrial geravam grandes aglomerados de pessoas nos centros urbanos, e
levaram os psiquiatras a, visando ao controle de possíveis desvios causados por essa
massa, criarem projetos de higienização e “purificação” da sociedade.
Para os intelectuais da época, contudo, essa desordem atravessada encontraria
sua principal justificativa nas condições “naturais” constitutivas do estado brasileiro. O
brasileiro não se desenvolveria porque era formado por raças inferiores, e por isso era
preguiçoso, ocioso, indisciplinado e pouco inteligente. Decorre dessas afirmações, a
adoção da ideia de eugenia criada pelo fisiologista inglês Galton. O termo designava o
estudo dos fatores sociais que influenciavam nas qualidades raciais das gerações futuras,
tanto físicas quanto mentais. De acordo com os psiquiatras, o indivíduo doente ou sadio
seria referido à sua matriz biológica e não cultural. Portanto, enquanto não se
extinguisse essa miscigenação malévola, enquanto ainda se aceitasse a intrusão de
negros e mestiços, seres biologicamente inferiores, o Brasil não iria evoluir socialmente.
38 CUNHA, 1990, p.49. 39 COSTA, Jurandir Freire. História da Psiquiatria no Brasil, 3ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1980.
37
O médico encarregado de assistir aos doentes mentais deveria, assim, ser
eugenista antes de ser psiquiatra. “A eugenia, desde então, passa a ser considerada
“higiene social da raça” e a higiene mental passa a ser entendida como uma aplicação
dos princípios eugênicos à vida social”.40 Vê-se aí como a Liga Brasileira de Higiene
Mental, criada com o objetivo de promover uma melhor assistência aos doentes
mentais, tornou-se mais um dispositivo de controle social e higienização da cultura
brasileira, adotando os ideais eugênicos de hierarquização das raças.
Tais episódios demonstram que a cidade, e as incontáveis formas de relação que
poderia comportar, aparecem, neste momento, como principal alvo de preocupação dos
alienistas, misto de urbanistas e psiquiatras da época. O esquadrinhamento do tecido
urbano é um projeto que se inicia fortemente entrelaçado ao surgimento de uma
terapêutica da loucura no Brasil. Esquadrinhar a urbe, o corpo da população, era
principalmente sujeitar a um escrutínio cientifico o corpo da pobreza, da loucura, o
corpo daqueles que portariam o signo da diferença.
Palombini41 ressalta a existência de alguns pontos divergentes com relação à
apreensão da teoria da degenerescência e seus desdobramentos práticos, no inicio do
século XX, como mostrada por Cunha, e o modo como a psiquiatria eugenista, surgida
na década de 20, encarou este fenômeno. Segundo a autora, para o alienismo nascente
com a República, a degeneração poderia contaminar de modo difuso todo o tecido
social, sendo papel dos alienistas identificarem tais agentes e excluí-los da sociedade. Já
para os eugenistas, a degeneração estaria mais restrita a um setor específico da
sociedade, o proletariado, assim, eram exigidas medidas preventivas e profiláticas a
serem operadas com esta população.
Entretanto, comum a todas as formas de percepção é o modo como o espaço
urbano será apreendido e o sequestro que se efetuará daquelas populações consideradas
perigosas; incluída nesta e herdeira quase exclusiva do internamento a loucura - que
deste momento em diante é considerada doença mental e asilada sob a tutela de um
alienismo bastante eclético com relação à importação de teorias. Observa-se, assim, a
emergência, em terras brasileiras, de uma sensibilidade que vai temer a urbe como local
fecundo de perigos para uma boa vida social, engendrando violentas práticas de
exclusão e normatização legitimadas por um poder-saber científico. 40 COSTA, 1980, p.50. 41 PALOMBINI, 2007.
38
O confronto com a diferença, com o imprevisível, manteria o homem moderno
constantemente alerta sob o risco de desestabilizá-lo. O louco, o proletariado, o
vagabundo, entre outros, passavam a ser encarados como virtual fonte de perigo,
agentes causadores de uma possível epidemia urbana. O homem burguês, com a
emergência das grandes massas nas cidades modernas, pretendia-se neutro nas ruas.
Julgava que o conforto do seu lar o protegeria das ameaças mundanas, permitindo a
segurança de um eu individualizado, longe daqueles riscos que provocavam medo. A
medicina, a psiquiatria e o urbanismo misturavam-se e corroboravam tais temores
prescrevendo profilaxias que se estenderiam até tempos bem recentes.
Parte desta história não pertencera apenas a tempos remotos, da proclamação da
República no Brasil, ao século XIX ou às primeiras décadas do século XX. O
pesquisador-caminhante notara práticas e discursos semelhantes não somente em livros,
mas através de relatos, de testemunhos, de narrativas de trabalhadores e daqueles que
mais sofreram com o regime manicomial. Conhecera, já fora dos muros asilares, antigos
internos de hospícios e vira marcas naqueles corpos cansados e saturados de tanto
manicômio. Lembra-se de ter pensado em como às vezes seria muito mais difícil os
manicômios deixarem aqueles corpos do que os corpos saírem dos manicômios.
Contudo, existiram também acontecimentos que romperam com tal lógica.
Ouvira dizer de histórias de ingleses, franceses e italianos que chegaram ao Brasil antes
mesmo deles porem os pés aqui. Histórias que em solo brasileiro adquiriram tons
peculiares e contribuíram para desmantelar o que estava instituído em relação à loucura.
Narrativas de lutas que provocaram mudanças, mas que ainda dizem de um processo, de
algo que permanece em movimento.
Experiências que surgiriam mais fortemente após a Segunda Guerra e passariam
a colocar em xeque os modos até então instituídos de cuidado com a loucura, bem como
as instituições asilares. A psiquiatria de setor na França, a psiquiatria comunitária nos
Estados Unidos, entre outras experiências, estabeleceram críticas quanto ao modelo
hospitalar e propuseram reformas no modo como se dava o tratamento daqueles
considerados doentes mentais. E ainda mais, com a Antipsiquiatria na Inglaterra e com
39
o movimento de desinstitucionalização na Itália começa-se a por em análise não
somente a instituição asilar, mas o próprio saber médico e os modos como a sociedade
se relacionava com o sofrimento e com a diferença.
O movimento da Psiquiatria Democrática italiana, iniciado por Franco Basaglia,
na década de 1970, veio a influenciar bastante as transformações que ocorreram no
sistema de saúde pública brasileiro e as consequentes mudanças no modo de atenção ao
portador de transtorno mental. Tal movimento ofereceu condições de sustentabilidade
para alternativas ao modelo manicomial, através da lei de extinção dos manicômios e
implantação de outros mecanismos institucionais que mostravam distintos modos
possíveis de cuidado. Subsidiou assim, de certa forma, a implantação do modelo de
atenção psicossocial, com dispositivos de cuidado como território, vínculo,
responsabilização, etc.
Os movimentos que culminaram na chamada Reforma Psiquiátrica Brasileira
envolveram diversos segmentos da sociedade e fizeram parte de lutas não só pelo fim
dos manicômios, mas pela redemocratização do país e por um sistema de saúde
universal, integral e equânime. O Movimento da Luta Antimanicomial passou a discutir
a reestruturação da atenção em saúde mental, primeiramente justificada pelo fato de os
serviços prestados por hospitais psiquiátricos se mostrarem segregadores, ineficazes e
iatrogênicos. Mas não apenas isso, os muros institucionais deveriam ser demolidos, e
também novas formas de relação com a diferença forjadas. O novo viés
desinstitucionalizante, entre outros objetivos, pretendia acabar com os manicômios e
com a relação de tutela entre os profissionais e os, agora, usuários dos sistemas
substitutivos, além de produzir uma mudança cultural profunda na sociedade, visando
transformar a atitude com relação à loucura.
A partir de 2001, com a aprovação da Lei 10.216, denominada Lei Paulo
Delgado, a Reforma Psiquiátrica se consolida. A nova legislação determinava o
fechamento gradativo dos hospitais psiquiátricos, o respeito a normas preconizadas de
internação e cuidado para os ainda existentes, e a substituição destes por uma rede
integrada de atenção à saúde mental. Toda uma rede de serviços destinados ao
atendimento aos portadores de transtornos mentais passou a ser implantada, tendo como
serviço de referência e principal equipamento o Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS).
40
Apesar de tais transformações, o pesquisador-caminhante se dá conta de que
não apenas muros visíveis fabricam modos de exclusão nas tramas da produção da
diferença no contemporâneo. Mesmo com reformas, paredes invisíveis insistem,
violentam e normalizam corpos que se querem desviantes. Aquela curiosa sentença –
para internar - tão frequente no século XVII, ainda hoje aparece, embora de forma sutil
entre humanismos respeitadores da diferença. Discursos psis extrapolam o âmbito da
medicina e atravessam o corpo dividindo-o, porém não estilhaçam seus contornos;
recortam-no, mas para manter sua totalidade, para um melhor agir sobre. Práticas
totalizantes do passado não estariam totalmente soterradas, algumas forças continuam
interpelando o cotidiano e solicitam atenção ao contemporâneo. Ele começava a
estranhar aquilo a que se sentia tão ligado, o seu presente.
Naquela errância passava a estranhar seus próprios pés que o levavam para onde
não sabia. Talvez fosse a única possibilidade já que quase tudo lhe parecia alheio.
Aqueles encontros faziam-no pensar se algo estaria se dando ou se começava a perceber
o que antes não conseguia. Agora caminhava de forma diferente, mais atento as coisas
chãs, talvez encontros com mais restos pudessem produzir algo. Sua cidade deixava de
ser apenas o cenário onde ele teria circulado durante tanto tempo. As ruas, passagens
por quais passara e que seriam definidas somente por facilitar ou não a travessia. Agora
a urbe o interpelava solicitando atenção ao que poderia irromper.
Depois de tanto caminhar seu corpo já não era o mesmo, ele ia se transformando
no contato com aquelas histórias. Sua cidade também não seria a mesma. Cidades
visíveis e invisíveis apareciam e desapareciam na medida em que seu olhar tornava-se
outro. A série de coisas repetidas a respeito daquela cidade parecia não mais dar conta
da cidade que ali pulsava e marcava seu corpo. Cidades-modelos, cidades-ditas,
cidades-qualificadas esmoreciam diante de cidades-vivenciadas que se fazem no
cotidiano, em meio às tramas e paradoxos do contemporâneo. Cidades outras tomam as
ruas e crescem sobre o solo, aprisionando palavras que tentam abrangê-las em
totalidades. Distintas Aracajus e Aglauras, múltiplas cidades invisíveis, permaneciam à
espreita.
Entender a cidade como palco, como lugar passivo que somente facilitaria ou
não a mobilidade humana, seria retirar seu caráter intensivo e engessá-la como
paisagem. A cidade passava aqui a ser entendida não como puro assentamento objetivo,
41
mas como espaço heterogêneo atravessado por múltiplas forças e que possibilitaria a
emergência de diferentes modos de relação em seu cotidiano. Espaço, contudo, onde
lógicas biopolíticas visariam anular o potencial político da alteridade que ali mesmo é
produzida. A urbe atua, portanto, como vetor de subjetivação e em seu espaço - lugar de
tramas onde se dão inúmeros acontecimentos - distintos processos são ativados. O
espaço urbano, agora poderia dizer, produzia e ao mesmo tempo era produzido por
inúmeros modos de existência que transbordavam o tabuleiro de xadrez.
Ao seguir em sua caminhada, ele percebera que acabara de cruzar uma imensa
avenida, olhava para trás e não via começo ou fim. Estava ao lado de um canal, mas por
onde passava não um rio, mas esgoto. Restos daquele local de grandes construções
escoavam ali. O cheiro desagradável destoava dos modernos e ostentosos prédios que
abundavam naquela rua. Nela não havia espaço para mais nada, carros aos montes eram
ali estacionados. Deparou-se com uma enorme construção, de cores claras e com
brilhantes letreiros, na qual portas automáticas divisavam o que era interior do que era
exterior. Avistou mais um pedaço de papel que estava ali na soleira impedindo que as
portas se fechassem totalmente. Abaixou e pegou o papel onde estava escrito:
Sorriu rapidamente com aquilo que não lhe fazia sentido algum e guardou o
bilhete no bolso. Neste momento desconfiou se não estaria fazendo parte de uma
brincadeira ou teria se tornado personagem em uma história de detetive. Seriam rastros
ou restos?
42
3. Encontros em um shopping
O ambiente fechado, climatizado e com iluminação artificial refletindo no piso
claro e limpo gerava uma sensação de segurança e conforto que rompia de forma brusca
com o lado de fora. O calor aos poucos ia abandonado o seu corpo e uma temperatura
condicionada tomava conta. Aquelas portas automáticas pareciam interpor uma fronteira
visando não deixar a rua entrar. Lá dentro dezenas de pessoas caminhavam produzindo
um intenso barulho de vozes que não tinham para onde fugir.
Resolvera seguir em uma direção e no caminho avistara diversas lojas que bem
enfeitadas convidavam a uma visita. Mais a frente, em um local central daquele espaço,
um jardim fabricado e visualizado através de enormes e nítidos vidros indicava a
exaltação da natureza. Famílias, casais de namorados, pessoas solitárias, encontravam o
destino que, para a maioria, era de conforto e lazer; passeavam sem pressa e pareciam
consumir sonhos vendidos em embalagens decoradas. Rostos sorridentes, vitrines com
roupas da última estação, vidas a serem vividas nas grandes telas, redes de fast food,
convidavam todos a se sentir bem e a consumir.
Aquele espaço parecia não possuir referências urbanas. Local simbólico de um
período de exacerbado consumismo, o Shopping Center mostrar-se-ia, para alguns
autores, como exemplo ideal destes espaços que se configuram no contemporâneo onde
a normatização, a segurança e o consumo são os ideais mais almejados. Também tido
como não-lugar42, está dentro da cidade, mas parece não querer fazer parte dela, uma
vez que nele tentariam se apagar suas características. Tal espaço se desejaria indiferente
à história local. Padronizado e, em muitos pontos, igual em qualquer parte do mundo,
estes estabelecimentos quando ocupam um local marcado pela história usam-na como
decoração, apropriam-se da história como um souvenir. Desta forma, o shopping seria
“todo futuro: constrói novos hábitos, vira ponto de referência, faz a cidade acomodar-se
á sua presença, ensina as pessoas a agirem no seu interior”43.
Ao lado daquele bonito jardim desenhado através de caminhos d’água e protegido
por vidraças, onde a todo o momento as pessoas pousavam para fotos, encontravam-se
42 AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. 43 SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina . Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000, p. 17.
43
diversas lanchonetes e restaurantes, pequenas lojas onde se podia comprar o que comer
e o que beber. Uma pequena placa indicava que ali era a praça de alimentação.
Resolvera sentar, pois há muito andava e seu corpo começava a dar sinais de cansaço.
Ao sentir alguns cheiros descobria que também sentia fome. Seria uma boa chance para
um descanso, para sanar a fome e tentar colocar alguns pensamentos em ordem, se é que
isso seria possível.
A mesa na qual sentara possuía um porta-guardanapo moderno com propaganda
colorida de uma das redes de lanchonete presentes no local. Abaixo de tal objeto avistou
mais um pequeno pedaço de papel dobrado. “O que traria?”. Nele, escrito a caneta preta,
se delineavam letras que davam a entender:
Ria desconcertado novamente. Veio ao seu pensamento que não seria uma má
ideia tomar uma bebida daquela gelada acompanhada de algo para comer. Mirou a sua
frente e escolheu aquela vitrine gastronômica que mais lhe agradara no momento.
Contudo, antes de se levantar, uma senhora que trabalhava na limpeza do local e
recolhia a bandeja da mesa ao lado perguntara a ele amigavelmente o que o fazia rir
assim “meio sem graça”. Sem saber o que responder, mostrou a ela o pequeno bilhete.
Ela, ao ler o que estava escrito, num misto de curiosidade e susto indagou-o com um
olhar. Aquele bilhete, disse, a remetia a um outro tempo e lhe fazia lembrar de outra
pessoa...
44
Com suas diversas sacolas de compras e presença constante naquele local, ela poderia
passar despercebida como as centenas de pessoas que circulam todos os dias nestes
tipos de estabelecimentos. Porém, a sua aparência incomum e o seu silêncio a
retiraram do anonimato. O rosto coberto por diversas camadas de base escondiam seus
traços e contrastavam com a pele morena que se deixava entrever pelo seu pescoço.
Aquela face mesmo coberta parecia carregar muitas marcas. Com cabelo crespo,
penteado singular, roupas gastas, muitas vezes blusas sobrepostas a outras e uso
constante de óculos escuros, passeava pelo ambiente higienizado destoando do padrão
estético da maioria de seus frequentadores. Devido a sua presença quase diária não
demorara muito para ser dito pela cidade que uma senhora com um visual extravagante
circulava pelos dois shoppings da cidade.
Passeava pelos estabelecimentos frequentemente com sacolas plásticas em mãos ou em
um carrinho de compras. Algumas pessoas afirmavam com certo espanto que ela teria
dinheiro, que deveria possuir alguma fonte de renda. Constantemente lanchava ou
almoçava lá, fazia compras no supermercado e aos poucos se tornava conhecida pelos
funcionários do local. Tranquila, andar vagaroso, quase não falava, comunicava-se
algumas vezes através de bilhetes. Normalmente bilhetes já prontos e que em algumas
ocasiões, quando interrogada, eram entregues, mesmo sem fazer algum sentido para
quem a estava interrogando. Usando quase sempre as mesmas roupas, podia-se sentir
próximo a ela um acre odor, talvez devido a grande quantidade de base usada no rosto.
Aquela estranha personagem provocava curiosidades e aos poucos se tornava figura
folclórica na cidade. Histórias sobre sua vida começavam a surgir. Procuravam
produzir uma narrativa linear na tentativa de explicar aquele modo de ser. Muitos
jovens pediam para tirar fotos juntos a ela. Alguns queriam saber de sua vida e
aproximavam-se com perguntas, na maioria das vezes estes eram rechaçados. Não
demorara muito e ela passou a gerar também incômodos no local. Certa vez, um
segurança do shopping a teria convidado a se retirar.
Passava assim aos poucos a ser conhecida por todos, quem não a conhecia ao menos
ouvira falar. Recebeu o apelido de “velha do shopping” e logo depois ganhou até
45
comunidades em sites de relacionamentos – “Vocês já viram a velha do shopping?” -
notícias em jornais locais e, posteriormente, ganhou até uma música. Mesmo nada
dizendo passava a ser um espetáculo.
Curiosos e jornais passaram então a especular uma história de vida para ela, buscando
um “sentido” para aquilo que viam. Já diziam que ela seria enfermeira e também
teóloga, e que há cerca de oito anos um acontecimento trágico em sua vida - a morte de
alguém próximo, “parece que sua mãe” - teria deixado-a “desorientada”. Contavam
que ela teria ficado vários dias com o corpo da pessoa morta em casa. Entre
sentimentos de repulsa, pena, medo e curiosidade, ela tornava-se figura popular.
O Ministério Público fora acionado por familiares e vizinhos que acreditavam que ela
pudesse causar algum problema para as pessoas nos lugares que frequentava, ou até
para si mesmo. Ela estaria afastada da família há algum tempo e precisando de
cuidado, alegavam. Sua história chegava então a Rede de Atenção Psicossocial (REAP)
do município, solicitava-se que pudessem fazer uma avaliação do caso e produzissem
alguma intervenção.
A equipe do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) responsável pelo território na qual
ela se incluía, junto com outros trabalhadores da rede, reuniu-se diversas vezes para
análise daquela demanda. Descobriram que ela havia sido internada compulsoriamente
em clínicas psiquiátricas duas vezes antes e, por isso, não queria contato com nenhum
serviço de saúde mental; ela negava-se a ir ao CAPS. Após estes dois episódios de
internamento ela teria expulsado alguns parentes que moravam com ela e se afastado
da família. Disseram que ela havia desenvolvido uma mania de perseguição depois das
duas internações.
Uma série de estratégias foi pensada pelo coletivo visando um maior contato e, com
isso, já a produção de algum cuidado. Pessoas da equipe se revezavam na
aproximação: em almoços no shopping, circulando de ônibus pela cidade e tentando
conversas sobre temas que lhe interessavam, como cinema etc. Após diversos encontros
com ela e reuniões o coletivo dizia ao Ministério Público que ela era capaz de gerir sua
46
própria vida de forma autônoma. Porém, estrategicamente afirmaram o diagnóstico de
transtorno mental, pois assim ela continuava de licença de seu emprego e ainda
recebendo o seu ordenado. Já há algum tempo ela ia mensalmente ao posto de saúde
que trabalhara como enfermeira para assinar o ponto e assim receber o salário, o que
lhe garantia uma vida independente.
O Ministério Público determinou, a partir disso, que ela deveria frequentar o CAPS e
comparecer ao local de trabalho mensalmente. Como ela não cumpriu a determinação,
teve seu salário bloqueado, o que impossibilitava sua autonomia. Alguns familiares
afirmavam que doido não poderia viver sozinho. Além do mais, sem cumprir a
determinação do Ministério Público ela ficava sujeita a interdição e internamento, e o
CAPS passava a ser responsável juridicamente por qualquer incidente que ela
provocasse ou da qual fosse vítima.
Criavam-se um novo entrave e novas discussões para aquele coletivo. Eles
conseguiram negociar com a justiça que seu salário fosse desbloqueado afirmando em
troca que promoveriam o acompanhamento diário dela. Para isso, como ela se
recusava a frequentar o serviço de saúde, iniciaram um trabalho de acompanhamento
terapêutico no qual dois membros da rede, que eram apoiadores institucionais, se
comprometeram a acompanhá-la diariamente. Um longo processo, envolvendo não só
os dois apoiadores, se desenrolava a partir de então. O coletivo esforçou-se para
aposentá-la, pois assim ela teria garantido seu salário todo mês. Como ela não ia aos
serviços de saúde, conseguiu-se que uma psiquiatra fosse até ela, consultando-a no
shopping, para que pudesse dar o laudo psiquiátrico que garantiria sua aposentadoria.
No entanto, ela dizia não querer aposentar-se por invalidez, sua doença era a
hipertensão.
Aos poucos, um maior vínculo foi sendo produzindo e uma relação de confiança se
estabelecendo, na qual ela era informada a todo o tempo, pelos dois acompanhantes
terapêuticos, do processo que estava acontecendo. Alguns funcionários do shopping
preocupados queriam saber daquele pessoal da saúde o que aconteceria com ela. O
Ministério Público insistia que ela deveria frequentar algum serviço de saúde mental.
47
Os dois acompanhantes perguntavam a ela o que deveriam fazer diante de tal demanda.
Ela, uma vez, teria respondido que eles deveriam fazer como ela, fingir que não
entendiam nada.
Perguntada certa vez sobre a quantidade de base que usava no rosto, disse que já tinha
sido assaltada algumas vezes e que com aquela aparência ninguém mais a perturbava.
Espiritualidades lhe protegeriam e lhe diziam o que fazer. Diziam-lhe o que comer, o
que comprar e quando sair de casa, entre outras coisas. Outro dia ela abrira suas
sacolas plásticas que sempre carregava para o pessoal do CAPS. Dentro destas
encontravam-se outras, cada uma com algum objeto: remédios, base para o rosto,
receita médica, roupas. Sacolas que carregavam outras. Tudo bem compartimentado.
Porém, ela estava com um problema na perna e reclamava de uma dor de dente. Sua
casa, onde ainda morava, estava com sérios problemas, incluindo o risco de
desabamento do teto de um quarto. Algo somente descoberto após uma visita feita pelos
profissionais da saúde tempos depois. Só depois de muito tempo ela abrira a porta de
sua casa para eles. O coletivo, depois de muita conversa e insistência, conseguiu então
convencê-la que seria interessante ela passar a frequentar o CAPS - explicando que era
um serviço de portas abertas - para que pudesse cuidar de sua saúde e também para
evitar uma ordem de internação vinda do Ministério Público.
Antes de ela ir pela primeira vez ao serviço, quando os dois acompanhantes
terapêuticos teriam conversado com ela sobre a pressão do Ministério Público com
relação ao caso dela, de uma possibilidade dela continuar sua vida sem interferência,
mas que para isso deveria camuflar alguns comportamentos, ela teria dito aos dois
acompanhantes terapêuticos: “vocês querem que eu finja, eu finjo”. Fora, logo depois,
sua primeira visita ao CAPS, na qual ela se recusou a ir na ambulância do SAMU que
estava lhe esperando e fora de carona no carro dos apoiadores.
Após, então, dois anos de negociação, ela finalmente concordava em passar a visitar o
serviço uma vez na semana. Iria para pegar medicamentos e se consultar com o
48
médico. Dizia, contudo, que não ali era seu lugar e recusava-se a participar das
atividades que lá eram desenvolvidas em conjunto.
Teria voltado também a procurar, espontaneamente, a família e a morar com sua tia.
Cortara o cabelo, adotara um visual mais comum e surgiu aos olhos da população
como “normal”. Logo, ela apareceria à cidade com nova feição e os jornais
publicavam informações sobre sua vida44.
A mulher, que até então contava a história de maneira astuta enquanto
continuava a trabalhar, pausou sua fala e caminhou até um pequeno móvel que ficava no
canto daquela praça de alimentação, algo que parecia destinado a guardar os pertences
de funcionários. Apanhou uma grande sacola e veio na direção dele, disse que gostava
de recolher as coisas ali esquecidas, objetos perdidos e pedaços de histórias que
remetiam a alguém que conhecera. Revirou a sacola e entre alguns jornais retirou um e
lhe entregou dizendo “acho que é este”.
Velha do shoppi g uda de vida45.
Força tarefa composta por profissionais da área de saúde da
Prefeitura de Aracaju, familiares e membros da Igreja
Assembleia de Deus foi responsável pela reviravolta já
percebida por muita gente.
A teóloga e enfermeira formada pela Universidade Federal de
Sergipe Maria José Menezes Santos – que durante anos atraiu a
atenção dos aracajuanos pelo visual curioso que adotou
44 Tal narrativa foi construída a partir de conversas com alguns trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial de Aracaju que acompanharam o caso de Maria José, de notícias de jornais, da experiência do pesquisador em sua cidade e ainda de dois artigos que abordaram sua história: BATISTA, G. C. & NOBRE, M. T. (2013). O caso “Estrela”: práticas de desinstitucionalização na Reforma Psiquiátrica. Psicologia & Sociedade, 25(1), 240-250; VASCONCELOS, M. F de F. de. MACHADO, D de O & MENDONÇA FILHO, M. C. Acompanhamento Terapêutico e Reforma Psiquiátrica: questões, tensões e experimentações de uma clínica antimanicomial. Psicologia e Sociedade. (No prelo). 45
Disponível em: <http://www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=84772&titulo=cidade> Acesso em: 20/06/2011
49
andando pelos corredores do Shopping Jardins, sempre com
sacolas de compras, um cabelo chamativo e muita base no
rosto – virou uma página de sua história e mudou de vida. Além
da iniciativa própria, a força tarefa composta por profissionais
da área de saúde da Prefeitura de Aracaju, familiares e
membros da Igreja Assembleia de Deus foi responsável pela
reviravolta já percebida por muita gente.
Na última quarta-feira, a equipe de reportagem encontrou
Maria José em um templo da Assembleia de Deus, que há cerca
de dois meses ela passou a freqüentar uma vez por semana
com a tia, Maria Elze Menezes Santos. Maria José preferiu não
dar entrevista, mas autorizou a tia a contar sua história, que
virou alvo de especulação até mesmo na Internet, em quatro
comunidades criadas no Orkut. O martírio dela teve início há
cerca de oito anos, quando ao chegar do trabalho se deparou
com a mãe morta em casa.
áàtiaàdeàMa iaàJoséà o touà ueàelaà fi ouàdeso ie tada à o àaàsituação e foi socorrida por vizinhos. Há quem diga que até esse
socorro chegar passaram-seàdoisàdias.à Nãoàteveà adaàdisso.àElaànunca passou dias com minha irmã morta dentro de casa. Mas
é verdade que depois da morte da mãe minha sobrinha
mudou ,à o touàMa iaàElze.àápesa àdeàtodaàaàate çãoàdispensada por tios e sobrinhos, Maria José se fechou em seu
próprio mundo, sem aceitar a ajuda dos parentes. Chegou a ser
internada por duas vezes em um hospital psiquiátrico, depois
morou por um tempo na casa da tia Maria Elze e acabou
voltando para casa acompanhada de outra tia.
Elaà otouà i haài ãàpa aàfo aàeàfoiàseàafasta doàdeàtodoàmundo, inclusive do trabalho. Só Deus sabe quantas lágrimas a
gente derramou por vê-la naquelas condições. O povo falava
que a família não dava atenção. Eu orava muito pedindo a Deus
para que um dia ela viesse à igreja comigo. Mas ela passou
esses anos todos assim. A gente ia na casa dela e ela não abria
oàpo tão.àTe àvizi hosà ueàp ova àisso.àFoiàdu o ,àle ouàMaria Elze, deixando escapar algumas lágrimas.
A reaproximação com a família e o início da mudança começou
50
h àpou oà aisàdeàdoisà eses.à U àpessoalàdaàsaúdeàa o douàela e levaram- aàpa aàoàCaps.àNoàout oàdiaàelaàfoiàl àe à asa ,à
revelou Elze, referindo-se à equipe do Centro de Apoio
Psicossocial da prefeitura. Nesse dia, vendo que ela estava mais
aberta a uma possível ajuda, a tia resolveu jogar as roupas
velhasàdaàso i haà oàlixoàeà o ta àoà a eloàdela.à Qua doàaàpsicóloga chegou lá em casa no outro dia nem acreditava que
e aàela ,àdisseàso i doàElze,à ueà o vidouàMa iaàJoséàpa aài à àigreja e ela aceitou.
Para a irmã Zélia Rocha, da Assembleia de Deus, a força de
vontade de Maria José e a fé dos familiares foram os fatores
espo s veisàpelaà uda ça.à Jesusàfazàaàtransformação. A
gente é que não entende. Para Deus nada é impossível. Basta a
ge teàa i àaàpo taà ueàeleàe t a ,àe fatizouài ãàZélia.àOut aàintegrante da igreja disse que Maria José participa ativamente
do Culto das Causas Impossíveis, lendo a Bíblia e
a o pa ha doàasà úsi as.à Pa aà ósàéàu aàfeli idadeà uitoàg a deàa o pa ha osàaàt a sfo açãoàdela ,àa es e tou.à
Acompanhamento
Profissionais da área de saúde mental da Prefeitura de Aracaju
fizeram um verdadeiro trabalho de formiguinha para ajudar
Maria José. O acompanhamento, mesmo a uma certa
resistência e distância, começou há cerca de dois anos.
Co segui osà hega àpe toàdelaàpelaàp i ei aàvezàpo ueàdescobrimos que ela gosta muito de música e cinema. Isso
favoreceu a aproximação. Mas também houve momentos de
evita e to.àNossasà o ve sasàe a àse p eà oàshoppi g ,àrevelou a psiquiatra e coordenadora de um dos Caps mantido
pela prefeitura.
áàa o dage àfoiàle ta,à asàp og essiva.à átéà ueàpude os,àe àalgum momento, falar sobre a existência do serviço. Foi
estabelecida uma relação de confiança e respeito e ela aceitou
se àa o pa hadaàpelaàe uipe ,àle a doà ueàMa iaàJoséàéàuma pessoa muito culta e inteligente. A psiquiatra afirmou
ainda que mesmo nos quadros mais agudos de problemas
51
psicológicos e exclusão social há recursos na área de saúde que
podem reverter a situação de maneira bastante satisfatória.
Estereótipos
Assim como o personagem que foi atribuído à enfermeira
Maria José, centenas de pessoas também sofrem com a criação
de estereótipos. Muitasàvezesàa uelaàpessoaàest àape asàrefletindo uma expressão de medo e angústia. Isso está sendo
mostrado agora na novela Caminho das Índias, pelo
personagem Tarso. Ele é apenas um jovem que está saindo da
adolescência, mas submetido a diversas tensões ,àexe plifi ouàa psiquiatra.
Para ela, os exemplos dados pela novela chamam a atenção da
sociedade para problemas que estão perto de todos e que,
uitasàvezes,à ãoà e e e àaàate çãoà e e ida.à áà ovelaàte àuma consultoria muito boa. Está mostrando que pessoas que
estiveram adoecidas podem alcançar um nível de saúde e
i lusãoàso ialà uitoàpositivo ,àafi ouàaàpsi uiat a.
Após estas noticias, a funcionária do shopping disse que pouco se ouviu falar
dela. Morando com a tia ela estaria usando o seu salário para a reforma de sua casa, na
qual vivera com sua mãe. Estaria bem. Vez ou outra ainda a viam passeando pelo
shopping, mas muitos nem a reconheciam. A alguns, a quem ela conhecia, respondia o
olhar com um breve sorriso.
A mulher então calou e ficou olhando para o teto. Disse que acabava de lembrar-
se da primeira vez que tinha conversado com Maria José. Era hora de sua pausa -
“descanso rápido, 15 minutos só pra tomar um fôlego” - e sentara-se em uma das mesas
para beber um suco de laranja. De repente, aquela senhora que já conhecia de vista
estava vindo em sua direção e falava com ela. Surpreendeu-se. Maria José dizia se
lembrar dela de outros lugares e perguntou-lhe onde morava. Descobriram que
moravam perto e tinham alguns conhecidos em comum. A mulher a convidou para
sentar-se e tomar um suco junto com ela. Ela aceitou. Maria perguntava muito com uma
fala sempre coerente, mas não gostava de responder a perguntas sobre sua vida. A
52
mulher que queria aproveitar a oportunidade para conhecer um pouco mais dela, para
saber por que ela andava sempre lá e daquela forma, saber como ela estaria de saúde,
não tinha sua curiosidade saciada. Quando questionada sobre si ela calava-se ou mudava
de assunto.
Ele ouvia com atenção o que aquela mulher narrava. Já nem lembrava mais da
coxinha na vitrine. Repentinamente ela cortou a narrativa dizendo que tinha que
trabalhar na parte interior da loja, despediu-se bruscamente e saíra sem lhe dar a chance
de agradecer e de se despedir. Ele nem perguntara o seu nome. Estava absorto com
aquela história. Aquela vida encontrava seu corpo e de alguma forma mexia com ele.
Lembrou-se então que conhecera aquela mulher. “Claro!” A viu tantas vezes
pelas ruas e no shopping quando ia ao cinema. Certa vez ele teria tentado aproximar-se
dela e puxar conversa. Ela, que percebera a intenção, somente olhara para ele e sem
dizer nada parecia deixar escapar: “não, não vai rolar”. Desde então não ouvira mais
falar daquela senhora.
Resolvera sair daquele estabelecimento. Algo ali já o deixava incomodado, teve
vontade de respirar o ar, mesmo que não puro, das ruas. Passou a caminhar rapidamente
atravessando a multidão que falava e ria euforicamente. Sem olhar para nenhum
daqueles rostos, apenas visualizava dezenas de pés a serem ultrapassados. Avistara uma
primeira saída e quando conseguiu alcançá-la se deu conta de que já era noite
novamente. Um mormaço de fim de tarde ainda pairava e invadia seu corpo causando
uma sensação confusa de alívio e incômodo.
Na saída daquela enorme construção havia uma pequena banca de jornal com
aspecto sujo e bem antigo. Um senhor de cabelos brancos sentado em um tamborete
retirava da caixa jornais e revistas que pareciam ter acabado de chegar. Não costumava
comprar jornais impressos, tinha se habituado a ver notícias e tudo o mais que lhe
interessava em sites na internet. Porém, eis que se percebia passando os olhos naqueles
jornais pendurados por pregadores em uma linha de náilon. Em meio a indicativos
econômicos, escândalos políticos, anúncios culturais, fotos do último carro a ser
lançado, o qual a manchete prometia tornar-se um sucesso, uma imagem lhe chamou a
atenção. Não conseguia distinguir muito bem o que ali estava, era uma imagem escura.
O jornal era de sua cidade. Forçou o olhar na tentativa de compreender aquela imagem
53
até que sentira novamente uma vertigem. A imagem que durante todo o dia vinha rápida
a sua mente parecia estar ali estampada. Reconhecera aquele local, o viaduto, aquelas
pessoas, o plástico preto, a bolsa, o guarda-chuva, a sacola plástica, o corpo.
'Velha do Shopping' cai de viaduto e morre46
.
Enfermeira aposentada, conhecida como 'Velha do Shopping' cai de viaduto e morre.
Por volta das 18h desta segunda-feira, 20, a teóloga e
enfermeira aposentada, Maria José Teles de Menezes Santos, 62 anos, caiu do viaduto sobre a avenida Hermes Fontes, em á a aju,àeà o eu.àMa iaàJoséàfi ouà o he idaà o oàaà Velhaà
doà“hoppi g .
De acordo com testemunhas, a mulher que passava por um tratamento psiquiátrico teria se debruçado na cabeceira do
viaduto e se jogado.
Agentes da SMTT – Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito e Samu - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
- foram acionados, mas quando chegaram já encontraram a enfermeira aposentada sem vida. O corpo foi levado para o IML
– Instituto Médico Legal.
Maria José Teles enfrentou problemas psicológicos após encontrar sua mãe morta em casa. Após passar um período
isolada da sociedade, adotou um visual extravagante usando muita maquiagem no rosto e passou a frequentar um shopping
dia ia e te,àdaíàsu giuàoàapelidoà Velhaàdoà“hoppi g .
Em 2009, Maria José foi levada por sua tia a uma igreja evangélica e deixou o visual extravagante para trás e começou
a fazer um tratamento psicológico.
46 Disponível em: <http://emsergipe.globo.com/noticias/visualizar/164916/sergipe/Sergipe>. Acesso em: 20/06/2011.
54
Ficou parado diante daquela imagem, até que o velho da banca perguntou se ele
iria ou não comprar o jornal. Não conseguiu responder. Enfiara a mão no bolso e
reparou que estava sem dinheiro. Pediu desculpas e saiu andando. Estava bem cansado,
seu corpo carregado. Um turbilhão de sensações o acometera. Não conseguia entender
muito bem o que acontecia. O sangue daquele corpo ainda estava pelas ruas. Quis ir pra
casa e caminhava com o pensamento tomado por aquela imagem. Aquilo de alguma
forma sacudia suas convicções, crenças, práticas, vontades, projetos.
Não sabe bem que caminho seguira, quando se deu conta já estava chegando a
sua residência. Foi direto ao computador em busca de mais informações sobre o
acontecido. Em vários sites locais a mesma notícia com aquela imagem se repetia, da
mesma forma, parecia que uma era copiada da outra. A produção de informações era
veloz. Diversos comentários de visitantes do site se encontravam logo abaixo do
noticiado. Resolvera ler. Alguns se lamentavam, outros alegavam que ela deveria estar
passando por uma depressão, alguém escreveu que “ela era doida mesmo e aí já viu
né?”, uma menina dizia que era melhor que a tivessem deixado em paz desde a época
que ela frequentava o shopping, que “era melhor louca que morta”, um rapaz
perguntava de quem seria a culpa, um senhor argumentava que não há cura para
loucura, uma senhora chamava a atenção para o fato de ter sido o segundo caso no
mesmo mês de suicídio naquele mesmo viaduto e cobrava medidas da prefeitura, outra
dizia que, por causa disso, era preciso mais segurança: “aquele viaduto necessitava de
grades de proteção”.
Eram muitos os dizeres e ele não sabia o que pensar daquilo tudo. Percebia que
olhavam para a imagem e a saturavam de sentidos, não permitindo o revide do olhar.
Carregavam aquele corpo de ruídos não deixando espaço para mais nada.
Afinal, não será um dos traços fundamentais da nossa sociedade o fato de o
destino tomar aqui a forma da relação com o poder, da luta com ou contra
ele? O ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra a sua
energia, encontra-se efetivamente onde elas se confrontam com o poder, se
batem com ele, tentam utilizar-lhe as forças ou escapar-lhe às armadilhas47.
47 FOUCAULT, 1992, p. 99.
55
4. Sobre rastros e restos ou sobre informar, narrar e estilhaçar
Haveria um caráter paradoxal no conceito de rastro, pois indica a ausência de
uma presença e a presença de uma ausência. E mais, o rastro que se queria deixado pelo
homem, na iminência do perigo de se dissolver em meio à multidão, nas modernas
cidades capitalistas, e o rastro utilizado visando o não aniquilamento do passado, um
uso político da história. Neste, os rastros serviriam para impedir que a barbárie de
outrora não se perpetue no tempo presente, permitindo assim que os mortos sejam
enterrados; o que possibilita não apenas o luto, mas a própria continuação da vida.
Segundo Walter Benjamin48, o homem burguês, diante da ameaça de
desaparição daquilo que garantiria sua identidade resguardada, buscava compensação e
conforto na estabilidade de seu lar. Como se tornava quase impossível deixar rastros de
si mesmo nas ruas, frente à multidão anônima que deambulava diariamente nas
crescentes cidades-luzes, estes procurariam no aconchego de sua morada a proteção
contra os temores urbanos, assim como a tentativa de manutenção daquilo que lhe seria
próprio e individual. Como afirma o filósofo alemão:
Desde Luís Felipe, a burguesia se empenha em buscar uma compensação pelo desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande. Busca-a entre suas quatro paredes. É como fosse questão de honra não se deixar perder nos séculos, se não o rastro dos seus dias na Terra, ao menos o dos seus artigos de consumo e acessórios49.
Tomando as análises da noção de rastro em Benjamin, realizadas por Jean Marie
Gagnebin50, uma dupla apreensão desta imagem-conceito dar-se-á aqui: rastro enquanto
indício e rastro enquanto resto. O primeiro aproximar-se-ia daquilo que o detetive
recolhe na ânsia de fechar uma história linear, de compor um dossiê sobre algo ou
alguém, vestígios de uma individualidade. O outro, de detritos, de restos de uma cidade
ou de uma vida, daquilo que escapa e que pode interpelar o curso harmonioso da
história; algo que serviria também para tensionar o tempo presente.
48. BENJAMIN, W. Paris do Segundo Império. In: __________. Charles Baudelaire um Lírico no Auge do Capitalismo. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. 49 Ibid., p.43. 50 GAGNEBIN, J. M. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SEDLMAYER, Sabrina. GINZBURG, Jaime (org.). Walter Benjamin: rastro, aura e história . Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
56
Seriam rastros ou restos tais escritos encontrados pelo pesquisador em sua
errância? O uso dado a estes detritos poderia, assim, se aproximar ao do psicólogo-
detetive, na procura de montar a veracidade dos fatos e construir um perfil, ou pode vir
a servir para o estilhaçamento de limites individualizantes.
Inspirado pela historiografia benjaminiana51, a utilização de restos pretendida
neste trabalho serviria para procurar “por aquilo que escapa ao controle da versão
dominante da história, introduzindo na epicidade triunfante do relato dos vencedores um
elemento de desordem e de interrogação”52. Ao almejar romper com as grandes
narrativas lineares, através do uso de pequenas histórias, o papel do pesquisador se
aproximaria ao do chiffonier, do trapeiro, figura que cata o lixo em que tropeça na
cidade; deste modo, não pretende compor uma história oficial, mas, atento as coisas
chãs, àquilo que escapa, recolher detritos que possam causar rasgos nas aparentes
linearidades e nas cômodas convicções da história. Tal seria a proposta ao lidar com
bilhetes, com restos de uma vida, e até mesmo com alguns discursos oficiais e com
informações, pois, sabe-se, a cidade não é somente composta por detritos.
Arrisca-se outra questão: é possível tecer um narrar como uma produção de
restos? Uma narrativa que não somente sirva-se de detritos, mas que possa desacomodar
saberes instituídos e promover interrupções na história? Nesta direção, como
dizer/escrever uma vida? Poderia o pesquisador das ciências humanas, no contato com o
outro, escapar de procedimentos que conformam a vida atribuindo essências, definindo
contornos e destinos previsíveis?
Ainda de acordo com o pensador alemão53, o advento da imprensa, importante
instrumento para a consolidação da burguesia, tornou a informação a principal forma de
comunicação no mundo moderno e fora, junto com o fortalecimento do romance, um
dos principais fatores que concorreram para o empobrecimento da arte de narrar. Tais
51 “O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas para no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história”. (BENJAMIN, W. Sobre o conceito da História. In: __________. Magia e técnica, arte e política . São Paulo: Brasiliense, 1994b, pp.230-231). 52 GAGNEBIN, 2012. p,33. 53 BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: __________. Magia e técnica, arte e política . São Paulo: Brasiliense, 1994a.
57
modalidades de comunicação, diferente da narrativa tradicional, possuiriam a
necessidade de encontrar uma explicação real ou ficcional para o acontecimento. O
romance partiria da procura de um sentido para a vida e traria em si a necessidade de
concluir a história, já a informação, só teria valor no momento em que é nova e deveria
ser plausível e controlável, compreensível por si só. O que não ocorreria com a
narrativa, pois esta, advinda da tradição oral, não aspira a uma verificação imediata e é
aberta a imprevisíveis desdobramentos.
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. [...] Metade da arte narrativa está em evitar explicações. [...] O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação54.
O extraordinário e o miraculoso atravessaram os relatos durante muito tempo na
sociedade ocidental. O cotidiano, até certa época, teria acesso ao discurso apenas
quando atravessado pelo fabuloso; ele era dito somente na medida em que continha um
toque de impossível55. Entretanto, no decorrer do século XVII, aquilo que fascinava
justamente por ser indiferente ao verdadeiro e ao falso passa a ser substituído por
formas de narrar que deveriam ilustrar a vida de forma a deixar entrever o que estaria
escondido, aquilo que não seria evidente e, assim, diria de um sujeito psicológico.
Nascia aí uma arte da linguagem que devia dizer o ínfimo. Como alega Foucault: “na
viragem dos séculos XVII e XVIII, as relações entre o discurso, o poder, a vida
quotidiana e a verdade se estabeleceram de um modo novo, no qual a literatura se
encontrava também ela comprometida”56.
A literatura, o jornalismo, a justiça, a ciência, todos estariam envolvidos nestas
novas relações. Tais relações não estavam, portanto, descoladas de estratégias
biopolíticas que, intensificadas e atualizadas de distintas maneiras, operaram
produzindo uma malha ininterrupta de dizibilidade. Malha que pretende dar conta de
cada pulsar de vida e ditar modos de se relacionar com si mesmo e com o mundo,
54 BENJAMIN, 1994a, p.203. 55 FOUCAULT, 1992. 56 Ibid., p.124.
58
produzindo faltas, às vezes até excesso – excesso de identidade e de classificação -
àqueles que desviam. Em tal rede, discursos fortalecidos pelo saber científico e
reproduzidos em pequenas práticas no cotidiano citadino criam um domínio do
tolerável, fazem falar e evocam para os corpos origens e destinos.
Profissionais do campo psi e demais pesquisadores das ciências humanas viriam
a contribuir com tais práticas ao produzirem racionalidades sobre o homem, na tentativa
de desvelar aquilo que seria a verdade, o imutável, intensificando um escrutínio
individualizante e normalizador da vida. Observa-se que “nos escritos sobre a alma
humana, a razão médica, psicológica ou jurídica faz falar o que antes era um possível
silêncio, um provável ainda não, um por vir, um nada ou o que a luz da razão não
suporta quando confrontada pelo seu próprio brilho. São textos de sequestro. Nas
páginas sobre a psique, ou sobre os fora da lei ou da norma, histórias são contadas,
dissipando a impertinência ou o incômodo do inominável”57.
No ato de dar a voz, no falar sobre, muitas vezes carregado de humanismos e
boa vontade, o inominável passa a tomar forma e adquirir uma designação. Atingidas
pelas luzes da razão, vidas infames são sequestradas e dissecadas de modo que aquilo
que pulsaria como força de diferenciação se esvazia, em nome de uma vontade de
conhecer que violenta e as marca de forma definitiva. De encontros marcados por uma
pretensa neutralidade, operadores do conhecimento saem ilesos, seus corpos
permanecem intactos no embate com o outro, seus contornos ainda definidos, uma vez
que, na maior parte, tais profissionais não permitem que aquilo que não tem nome
desacomode seus rígidos limites e certezas.
Dito isto, uma questão se faz pertinente: “Estaríamos, aqueles ligados às ciências
humanas e sociais, condenados a uma espécie de fascismo brando consubstanciado num
atravessamento narrativo identitário-normalizador? O fascismo de dizer do outro, pelo
outro e, ademais, contra o outro – essa estratégia insidiosa e apequenadora da vida?”58.
57 BAPTISTA, L. A. Noturnos Urbanos: interpelações da literatura para uma ética da pesquisa. Estudos e Pesquisas em Psicologia (Online), v. 10, p. 103-117, 2010, p.104. 58 AQUINO, Julio. G. A (auto)biografia como estilística da existência: o caso de Santiago de João Moreira Salles. In: I Colóquio Nacional Michel Foucault: educação, filosofia, história - transversais, 2008, Uberlândia, MG. Anais do I Colóquio Nacional Michel Foucault: educação, filosofia, história - transversais. Uberlândia: EDUFU, 2008.
59
O pensador que discorreu sobre a constituição do sujeito em meio a relações de
poder-saber indica saídas a tal lógica quando diz que o trabalho da filosofia, e aqui se
estende ao trabalho do pesquisador, não seria o de descobrir verdades ocultas, mas o de
diagnosticar o presente. Ou seja, conceber as forças que constituem a atualidade e ainda
a movimentam. Michel Foucault, nas palavras de Artières59, queria devolver ao presente
ingenuamente silencioso e imóvel suas rupturas, sua instabilidade, suas falhas. Tudo
aquilo que seria descartado pela história tradicional. Queria tornar visível o que está tão
perto, tão ligado aos homens que por isso mesmo eles não percebem.
Ao apontar a potência dos escritos de Gilles Deleuze e Felix Guattari, Foucault
tomou o Anti-Édipo como uma obra que se mostraria ético-política, apontando que seria
um erro tomá-la enquanto uma nova referencia teórica a que tudo englobaria. Tal livro
seria contrário a todas as formas de fascismo que perpassam as práticas cotidianas; deste
sutil fascismo que faz desejar o poder e que se incrusta no corpo de todos, mesmo
daqueles que se querem revolucionários. Foucault afirma que, se pretendesse fazer de
tal obra um guia da vida cotidiana, poderia ser proposto um determinado número de
princípios, princípios que ele diz essenciais ao exercício de uma vida não fascista, entre
eles: “preferir o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade”; “liberar a ação
política de toda forma de paranoia unitária e totalizante”; “não utilizar o pensamento
para dar a uma prática política o valor de verdade” e “não se apaixonar pelo poder”60.
Tais princípios não parecem simples de ser adotados, pois colocam em questão
todo um modo de produção de conhecimento até então predominante. Poriam em risco
o sujeito centrado do saber, já que ao lidar com a multiplicidade e a diferença os seus
contornos são ameaçados. Porém, por isso mesmo, seriam indicativos de modos que se
pode operar para ir de encontro a estes fascismos que atravessam toda a sociedade e
comumente levam a procedimentos individualizantes, normalizadores e excludentes -
mesmo que hoje estes tomem a forma de procedimentos inclusivos.
Outras pistas de como escapar de tais fascismos engendrados por relações de
poder-saber são legadas pelo próprio Foucault, e também por Benjamin em seus
escritos. Tendo em conta que a escrita da história não está descolada de certas práticas
59 ARTIÈRES, Philippe. Dizer a atualidade: o trabalho de diagnostico em Michel Foucault. In: GROSS, Fréderic. Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. 60 FOUCAULT, M. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. In: Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP . – v. 1, n. 1 – São Paulo, 1993.
60
políticas61, ver-se-á como alguns usos da história podem interpelar modos fascistas no
pesquisar e podem contribuir para uma outra postura ético-política frente à vida. É nesta
direção que tais usos interessariam a escrita que aqui se delineia. Através de distintas
historiografias vislumbra-se a recusa de narrativas “oficiais” - que trazem grandes
acontecimentos, heróis e vítimas – e deste modo, a chance de encontrar no passado, mas
também no presente, a possibilidade de um outro porvir.
Foucault, em A vida dos homens infames62, afirma logo de início que seu texto
não constitui uma obra de história, mas uma antologia de existências. Seria uma coleção
de vidas ínfimas achadas a esmo em livros e documentos. Ao recolher tais linhas
oriundas principalmente de lettres de cachet, ele tencionava montar uma coletânea de
vidas singulares, de vidas menores que foram transformadas em cinzas no contato com
o poder. Vidas que só chegaram a ele devido a este contato, por terem sido iluminadas
por esse feixe de luz. Tais existências seriam exemplos, mas “exemplos que têm menos
de lições a seres meditadas do que de breves efeitos cuja força se desvanece quase
imediatamente”63.
O alerta de Foucault, “Isto não é uma obra de história”, chama atenção. Em
outro trecho do mesmo escrito o autor diz que este não iria agradar aos historiadores:
“livro de humor e puramente subjectivo?”. Foucault parecia antecipar as críticas a um
texto no qual, segundo ele mesmo, a regra obedecida para a reunião dos “fragmentos de
vida” fora nada mais importante que uma emoção, um certo assombro ou outro
sentimento qualquer cuja intensidade era difícil de justificar naquele momento.
Tais ditos talvez constituíssem mais uma estratégia do pensador francês. A ele
fora atribuída a figura do filósofo em perigo e sabe-se de sua astúcia em circular pela
academia frente a modos engessados de pensamento e a críticas possíveis. Mas, além
disto, tal alerta chama a atenção para os discursos que ditam o que deve ou não
constituir a História. Por que, naquele momento em que Foucault escreve sua obra, um
texto dizendo de vidas infames, reunindo relatos selecionados pela força de um
sentimento que o acometeu, não compõe uma obra de história? E que história?
61 GAGNEBIN, 1994. 62 FOUCAULT, 1992. 63 Ibid., p.90.
61
Foucault encontra em Nietzsche qual seria seu método historiográfico, a saber, a
genealogia64. O filósofo alemão faz uma crítica da história tradicional, história que
compõe linearidades e que acredita na existência de uma verdade pura presente na
suposta origem dos acontecimentos. No lugar de tal história, propõe uma “história
efetiva”, ou seja, uma história que não se apoia em nenhuma constância – já que nada
no homem teria tal característica – e que se demora nos acasos dos começos. Assim, em
vez de acreditar na metafísica, o genealogista deveria fazer entrever que o que há por
trás das coisas é “o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi
construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas”65.
A genealogia estaria, portanto, interessada não na análise dos grandes feitos,
muito menos na busca de uma hipotética origem para fatos, mas na singularidade dos
acontecimentos, naquilo que estes teriam de único e agudo. O que interessa são os
abalos, as surpresas, os acasos, os acidentes, que formaram o que hoje se toma por
verdade. Além disso, o olhar desse historiador, para Nietzsche, deveria ser capaz de
dissociar, de rasgar, de apagar até mesmo a suposta unidade deste homem que dirige seu
olhar soberano para o passado.
O método genealógico pode servir, assim, como uma importante ferramenta para
interrogar a aparente linearidade e calmaria daquilo que forma o presente. Serviria aqui
como inspiração metodológica para uma pesquisa que se quer atenta as pequenezas do
cotidiano e tenciona cortar aquilo que se mostra evidente, trazendo a loucura, a
diferença e a cidade não como essências, mas como artefatos, como elementos
constantemente produzidos por um jogo de forças que não cessam de se modular. A
genealogia pode perturbar, deslocar, intensificar os abalos, uma vez que:
Ela não deixará nada abaixo de si que teria a tranquilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar66.
64 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, genealogia e a história. In: _________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979a. 65 Ibid. 66 Ibid., p.28.
62
Corte efetuado por Foucault em muitas de suas obras. Este filósofo, ao inserir os
acasos e as contingências nas análises históricas, teria operado uma revolução neste
saber. Na visão de Paul Veyne67, a história proposta por Foucault seria constituída por
raros modos de viver, por pequenos e raros objetos em diferentes épocas, por aquilo que
escaparia ao discurso tradicional. No lugar da análise dos grandes nomes e dos grandes
acontecimentos, ele descreveria as práticas, as raridades, ou seja, aquilo que realmente
fazem as pessoas. Pois, como afirma, não são os objetos que determinam nossa conduta,
mas sim nossas práticas que determinam os objetos.
Expor os acasos, trazer à tona as práticas e disputas que produzem a atualidade,
conceber o jogo de forças que a constitui e não para de transformá-la, este seria o papel
de um filósofo, atuar como um diagnosticador do presente68. Sugere Foucault, deste
modo, substituir o intelectual “universal” pela figura de um verdadeiro técnico da
atualidade, que, ao invés de expor um discurso sobre os acontecimentos, atravessa-os
fisicamente. Logo, outra relação com o seu tempo e com o corpo do pesquisador.
Por isso, as pesquisas foucaultianas partiam de elementos de sua própria
experiência e possuíam um caráter de crítica local, uma vez que ele não visava à
universalidade de seus ditos. Seu interesse era falar daquilo que atravessava o seu
tempo, e isto poderia se dar através da insurreição de saberes subordinados, de
conhecimentos locais, desqualificados pelos discursos científicos; saberes dos homens
comuns, infames. Nesta direção, “a elaboração de certas narrativas (ou a luta pelo
encerramento das grandes)” teria, para Rodrigues69, “a possibilidade de se constituir em
algo muito distinto de uma atitude blasée, desencantada ou quietista. Representa, ao
contrário, valiosa inquietação em face do que é considerado dado, coerente, óbvio,
lógico, previsível, evidente, funcional ou nobremente científico [...]”.
Foucault fora, assim, um dos filósofos que mais batalhou para incorporar a
experiência a sua reflexão filosófica e historiográfica. Em entrevista ao jornalista
italiano Duccio Trombadori, em 1978, Foucault70 expõe que seus livros são, para ele,
67 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. In: VEYNE, P. Foucault revoluciona a história . Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. 68 ARTIÈRES, 2004. 69 RODRIGUES, Heliana de B. C. Para desencaminhar o presente psi: biografia, temporalidade e experiência em Michel Foucault. In: GUARESCHI, Neuza. E HÜNING, Simone. Foucault e a psicologia . Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, pp.18-19. 70 FOUCAULT, Michel. Conversazione con Michel Foucault. Il Contributo, Vol. 4, nº 1, p. 23-84, jan./mar. 1980.
63
experiências em seu sentido mais pleno. Livros-experiência ao invés de livros-
demonstração. De modo que os escrevia sem saber direito o que pensar sobre o que iria
escrever, para neste empreendimento transformar o seu pensamento e a si mesmo.
Pretendo, isso sim, fazer, eu próprio, e convidar outros a fazê-lo comigo, uma experiência do que somos através de um determinado conteúdo histórico, daquilo que não apenas é o nosso passado, mas igualmente o nosso presente, uma experiência da nossa modernidade de tal maneira que dela saiamos transformados71.
Uma experiência do que somos e do que estamos nos tornando, Foucault
também irá dizer.
Aproximar-se-á aqui, de forma sucinta e sem pretensão de estabelecer sinonímia,
a noção de acontecimento, inferida de discussões de Blanchot e Deleuze, a de
experiência, como é referida por Foucault e de forma não muito distante por Jorge
Larrosa. Experiência não como aquilo que somente acontece, mas que se passa com,
acontece com aquele que se expõe aos acasos e, neste movimento, acaba sendo
transformado72. Algo que se configuraria como um processo de “des-subjetivação” para
Foucault73. É neste sentido que o pensador francês almejava fazer de suas obras livros-
experiência. Pois não pretendia expor discursos sobre algo ou elaborar um sistema geral
de análise do mundo, mas, ao atravessar os acontecimentos, produzir uma escrita-arma
para a emergência de outras relações com o já dado.
Experiência que estaria cada vez mais impossibilitada em um mundo saturado
por uma enxurrada contínua de fatos e informações. Ideia quase apocalíptica trazida por
alguns autores. “A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase
nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos
aconteça” expõe Larrosa74, claramente tomando como interlocutoras análises feitas por
Walter Benjamin em alguns de seus textos. É possível, entretanto, como afirma Georges
Didi-Huberman75, inspirado pelo próprio Benjamin, e como se verá mais adiante, fazer
deste mesmo empobrecimento uma experiência, não tomando o declínio da experiência
71 FOUCAULT, 1980, p. 27. 72 BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 19, abr. 2002. 73 FOUCAULT, 1980. 74 BONDIA. 2002. 75 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
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como um fim e sim como movimento, como um processo que não impediria as
ressurgências.
Constituir uma experiência seria, portanto, se “expor” a um acontecimento
tomando-o em sua possibilidade transformadora, sem amortecer sua capacidade de
deslocar. Acontecimento como aquilo que pode retirar de um embevecimento em si
mesmo e provocar uma ruptura numa dada ordem comum das coisas. Algo singular que
irrompe e assim pode produzir estranhamentos com relação a aparente naturalidade do
cotidiano. John Rajchman76, com relação à noção de acontecimento na obra de Deleuze,
afirma: “O acontecimento não chega nunca ao sujeito; é por isto que o sujeito se torna
outro que aquele que ele é. [...] É sempre o distanciamento de si e não a identificação de
si que nos acontece. O acontecimento não chega nunca ao nosso “espírito” ou ao nosso
senso comum, mas ao nosso outro devir”.
Acontecimento que, para Albuquerque Junior77, os historiadores poderiam
aprender a valorizar com Franz Kafka. O historiador brasileiro concebe alguns
atravessamentos interessantes entre as narrativas do escritor tcheco e os escritos
foucaultianos. Foucault, assim como Kafka, produziria histórias abertas, histórias que
não findam em si mesmas e se abrem a um futuro incerto; histórias, portanto, que, como
as narrativas tradicionais, comportariam diversos desdobramentos. Além disso, o ponto
de partida de suas narrativas seria sempre um acontecimento, logo, uma prática que se
altera e se diferencia da ordem. E seria através desta ruptura, de um singular
acontecimento, que ao desviar instala uma descontinuidade na aparente “ordem natural”
do mundo, que se pode perceber aquilo que é contínuo, a uniformidade das estruturas
que conformam o homem comum. Tal evento inaugural que coloca a história em
movimento - um jogo de forças que se subleva, uma morte, a metamorfose de um
homem em um inseto – estaria, assim, sempre ligado a outros acontecimentos.
Este fato que se passa no mais íntimo dos cômodos de uma casa, o quarto, que parece ser apenas um acontecimento interior a uma vida, a uma família, a uma residência, vai deixando entrever conexões insuspeitas com processos externos, processos que se
76 RAJCHMAN, John. Lógica do sentido, ética do acontecimento. In: ESCOBAR, Carlos Henrique (org.) Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991, p.61. 77 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: PASSETTI, Edson. Kafka, Foucault: sem medos. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.
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passam em outros lugares, que se passam em outros tempos, que se passam com outras personagens78.
Kafka e Foucault falaram, portanto, do intolerável do seu tempo, do peso das
identidades e burocracias a que o homem comum é submetido cotidianamente.
Discorreram sobre um mundo onde a disciplina age nos corpos dos homens de forma
semelhante à ação das finas agulhas de cristal, que inscrevem na carne dos presos suas
sentenças, narrada no conto Na colônia penal. Por isso, são muitas vezes acusados de
descreverem situações-limites onde suas personagens são arrastadas por estruturas de
poder das quais não têm consciência. Não à toa, o termo kafkiano é utilizado para
narrativas consideradas absurdas onde o personagem não se dá conta do que está
acontecendo e parece não conseguir escapar.
Contudo, para eles, estas estruturas não seriam determinantes, pois elas não
impedem que por uma mínima prática se produza um acontecimento desviante, que um
simples acaso possa instaurar novos processos e fazer com que os sujeitos possam se
metamorfosear. Ambos os pensadores indicam, portanto, a possibilidade de encontrar
frestas, da construção de saídas para outros mundos possíveis79. Na esteira destas ideias,
argumentariam que uma das tarefas do pesquisador é estar atento aos acontecimentos,
estar atento às interpelações do seu tempo.
“Vocês não têm o direito de menosprezar o presente”, é o que diz Charles
Baudelaire aos pintores de sua época. Baudelaire exemplificaria uma atitude de
modernidade, afirma Foucault80, não por pertencer inteiramente ao seu tempo, mas por
estabelecer com este uma atitude de distanciamento que o permitia perceber aquilo que
há de “heroico” nele, ou seja, permitia transformá-lo captando-o naquilo mesmo que ele
é. Tal relação diferenciada com o presente surgiria no pensamento filosófico pela
primeira vez com Kant, quando ele relaciona suas reflexões críticas a uma análise sobre
o momento singular em que estava vivendo. Seria em um texto menor, em uma resposta
a pergunta “Was ist Aufklärung” (O que são as Luzes?) de um jornal berlinense, que
78 ALBUQUERQUE JUNIOR, 2004, p.16. 79 Ibid., 2004. 80 FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In: ________. Ditos e escritos II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Trad. Elisa Monteiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
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Kant proporcionaria um esboço do que o pensador francês chamou de atitude de
modernidade81.
A modernidade deixa então de ser percebida como um período e passa a ser
entendida como uma relação que se deveria estabelecer com o seu tempo. É a partir
desta atitude que poderíamos conceber o que somos - o que somos não como identidade,
mas enquanto sujeitos históricos constituídos por determinadas práticas. Este êthos
filosófico permitiria, assim, uma crítica daquilo que somos e daquilo que estamos nos
tornando; crítica que seria ao mesmo tempo “análise histórica dos limites que nos são
colocados e prova de sua ultrapassagem possível”82.
Poder-se-ia dizer, portanto, que Kafka e Foucault foram modernos. Eles evocam
a atenção para os acontecimentos que podem irromper no cotidiano e que assim podem
questionar mundos. Tais pensadores produziram histórias escritas do ponto de vista dos
homens mergulhados em seu cotidiano, histórias que possuem sujeitos menores,
anônimos, não heróis aos quais se voltam os holofotes da história tradicional. Infames
que podem interromper verdades imaculadas da história.
As ideias de Walter Benjamin acerca da história e da narrativa também se
aproximam desta interrupção. Pois, para o autor, as melhores narrativas seriam aquelas
que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos. Homens comuns, a exemplo do camponês sedentário que conhece as
histórias de seu país e do marinheiro que traz na bagagem histórias de mundos outros e,
através de suas experiências, narram vidas.
E mesmo ao discorrer sobre o empobrecimento da arte de narrar, devido a
raridade de se constituir uma experiência em seu sentido pleno – dada as condições de
vida nas nascentes metrópoles capitalistas83 – em detrimento de uma outra forma de
experiência, a experiência vivida característica do indivíduo solitário, Benjamin não
adota um tom de lamentação pelo que se perdeu. Ele afirma um declínio da experiência
81 FOUCAULT, 2008. 82 Ibid., p.351. 83 Tais características que concorreriam para o declínio da experiência, presentes no capitalismo moderno - como os ritmos de trabalho e a ausência de uma tradição e estilo de vida comum entre os homens – seriam atualmente, com algumas modulações intensificadas, pois como escreve Neves: “O modo de produção capitalista, hoje, materializa-se não só em toda a sociedade e em todas as relações sociais, mas também, e, primordialmente, no governo da “natureza humana” e da vida em sua virtualidade. Os afetos, o conhecimento, o desejo são fortemente incorporados ao atual regime de acumulação capitalista” (NEVES, Cláudia A. B. Pensando o contemporâneo no fio da navalha: entrelaces entre desejo e capital. In: Lugar Comum. Rede Universidade Nômade. v. 19/20, p.135-157, 2004, p. 139).
67
enquanto processo e não sua impossibilidade. O próprio autor cita em sua época dois
exemplos da possibilidade de experiência e narratividade, mesmo que não as
tradicionais, com Proust e Kafka.
Deste modo, aproximando-se da figura do narrador, o historiador, para
Benjamin84, deveria fundar uma experiência com o passado. Ao invés de propor uma
história linear onde um passado homogêneo e vazio desembocaria em seu presente, ele
deveria ser capaz de perceber os indícios de uma outra história; tornando o presente
repleto de “agoras”, de momentos singulares nos quais o encontro do passado com o
tempo presente pode produzir outros porvires. Tal historiador, portanto, não concebe a
história como uma concatenação de fatos ligados por um nexo causal que se
encaminhariam em direção a um futuro “glorioso”, ele constitui com o passado uma
experiência única e faz, assim, “saltar pelos ares o continuum da história”.
A aliança com tais pensadores contribuiria para a recusa de uma história, e
também de uma produção de conhecimento, asséptica e acomodada aos grandes
discursos. Eles remetem a importância daquilo que escapa, dos restos, do que passa
despercebido de tão próximo que está. O uso da história, a utilização de bilhetes, de
informações e discursos como detritos podem intensificar, portanto, uma aposta política
de pesquisa que se dá no campo dos estudos da subjetividade. Aposta que pretende
afirmar a potência disruptiva que é capaz de irromper em encontros com a cidade, com a
diferença e no próprio caminhar de uma pesquisa, vulnerável aos acasos e que se faz
atenta ao presente - em meio ao campo heterogêneo de forças que o constitui.
Nesta direção, querer intensificar breves efeitos de uma história singular visa
fazer com que tal narrativa possibilite entrever forças que atuariam aniquilando o vigor
político da alteridade, e que, ao fazer isto, sirva para tensionar formas engessadas de
pensar o outro e a cidade, bem como fascismos que se dão na produção da diferença no
contemporâneo.
Tal contexto, logo, se distanciaria da produção de informações. O uso de cenas
do cotidiano e a utilização de notícias como fonte para o trabalho não se propõe a um
84 BENJAMIN, 1994b.
68
acúmulo de verdades do mundo as quais digam o que somos, enquanto identidades, ou
nos deem uma aterradora visão das misérias de nosso tempo. Uma abordagem
jornalística ao lidar com acontecimentos, algo deveras recorrente hoje, poderia
amortecer a sua capacidade de deslocar, de retirar o sujeito de si. Correr-se-ia o risco de
transformar acontecimentos singulares em fatos necessitados de verificabilidades e
explicações, as quais por diversas vezes são solicitadas aos “portadores do
conhecimento” - a exemplo de profissionais “psi” que no contato com a vida e com a
morte acabam gerenciando a ordem e a moral, retirando a possibilidade da criação de
outras maneiras de existir e produzindo mais sujeitos para o rol das vitimizações.
Na trilha de Kafka e Foucault seria possível esboçar modos de dizer o mundo
que não aspiram à verdade e que não portam em si um fim alcançável, narrativas
“abertas”. Dimensão que, segundo Gagnebin85, parece fundamental na obra de
Benjamin e que estaria presente na estrutura da narrativa tradicional: um certo “não-
acabamento essencial” onde cada história é o ensejo para uma outra história. Bem
como, investir na produção de uma escrita que possa falar do contemporâneo, mas sem
a intenção de ilustrar ou representar, um falar que seja cortante. Um uso de cenas, mais
do que cenas, de acontecimentos que interpelam, que possam estilhaçar os limites do
particular permitindo estabelecer conexões com acontecimentos outros, assim como as
narrativas kafkianas.
A história, os distintos “usos” do passado, podem ser aliados de tal aposta no
sentido de possibilitar a emergência de formas outras de narrar e de se apropriar do
passado, tomando-o não como homogêneo e vazio, mas fundando uma experiência com
ele, tornando-o, assim, repleto de “agoras”, de acontecimentos inusitados que podem
tensionar o presente. A cidade, a diferença, o pesquisar e o próprio presente adquiririam
assim um caráter processual onde suas variadas “formas” podem explodir e abrir
caminho para outros modos de relação. Entende-se que:
As cidades de nossos dias, como as do passado, são territórios de fecundos conflitos, experimentações, lugar onde se produz a face do diverso, do estranho, do familiar, do estrangeiro. Local ao mesmo tempo de fabricação de práticas para acolhê-los, dar corpo
85 GAGNEBIN, 1994.
69
às suas faces ou dissipá-los. Porém, sem o uso da História, essa rica usina urbana perderá sua força, transformando-se em cenário86.
Voltar-se ao passado, portanto, pode dizer respeito ao tempo atual e ao futuro,
pois não se trata de conhecer o passado como ele de fato foi, mas de “apropriar-se de
uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo”87. Trata-se de estar
atento aos restos da história que podem desacomodar o presente em um momento
singular e concorrer para a emergência de um outro porvir. Remete, por conseguinte, a
uma relação de contemporaneidade com o presente, relação que permite que ao mesmo
momento em que o pesquisador se distancie de seu tempo o possa apreendê-lo de
maneira crítica e transfiguradora.
Tal atitude requereria, segundo Giorgio Agamben88, coragem e a capacidade de,
mediante o excesso de informações e de luzes que ofuscam os olhos, apreender nessa
mesma luz aquilo que existe de obscuro, de inominável. Escuro que diria, na verdade,
de uma luz que vem até nós, mas que nunca nos alcança. Assim,
O contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora89.
A produção de uma determinada narrativa pode se apresentar como um meio de
potencializar uma atitude de contemporaneidade, mostrando-se como encaminhamento
metodológico para o engendramento de uma pesquisa que não sirva a um ideal
normalizador, mas que seja sensível às interpelações cortantes do agora. Longe das
perspectivas que acreditam possível um “falar de” distanciado e observador - em que o
corpo do pesquisador é imune às interpelações do outro -, e de um narrar fiel a fatos e
interessados em verdades que seriam reveladas através da fala do outro, a escrita de vida 86 BAPTISTA, Luis Antonio. A Reforma Psiquiátrica e a Presença da Cidade. In: _________. A cidade dos sábios: Reflexões sobre a dinâmica social nas grandes cidades. São Paulo: Summus, 1999, p.123. 87 BENJAMIN, 1994b, p. 224. 88 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. 89 Ibid., p. 72.
70
aqui proposta confabula, atenta às pequenezas e às possibilidades de abertura de um
narrar com. Aposta em um desmanchamento de formas ao invés da formatação de um
corpo. Uma política do pesquisar onde não se quer criar limites, mas estilhaçá-los.
Confabula no sentido do fabular junto, já que a escrita, ou o narrar uma vida, é
sempre algo fictício e só possível em um encontro. É algo que, como a narrativa
tradicional para Benjamin, se faz junto e na qual quem ouve, ou escreve, é tão
importante como quem conta. Daí emergiria nem um eu, nem o outro, mas um terceiro,
um corpo que os habita e que difere.
Sobre a escrita de uma vida, o “bio-grafar”, afirma Costa:
Trata-se de misturas de corpos, na relação entre o corpo do escritor com o corpus da obra, ou o que se trava na fronteira entre os dois: lutas, rapinas e pactos diabólicos. Disto resulta sua política do abandono, na dissociação do Eu soberano, fazendo-o pulular no vazio pleno que é sua constituição – Deleuze e Guattari falam em corpo sem órgãos. Nem o grande Eu do biógrafo, tampouco a figura sacra do Eu a ser biografado90.
Tratar-se-ia, ao lidar com livros, fotos, entrevistas, documentos, conversas,
rastros, de outros usos, tomando-os não como elementos para compor um dossiê, mas
como um conjunto de signos soltos “prontos para pontilharem outros rostos”91. Tomá-
los como restos, signos deixados sem intenção de serem pistas e que frustrariam as
expectativas daqueles afeitos a totalidades. Restos para uma narrativa que se quer
singular, mas que, neste mesmo caminho, possa cortar aquilo que a prende a uma vida e
permita a ela dizer de forças que acometem o contemporâneo.
90 COSTA, Luciano Bedin. Estratégias Biográficas: o biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller. Porto Alegre: Sulina, 2011, p.71. 91 Ibid., p.34.
71
5. A mulher que tentou se desfazer: reverberações de um corpo na cidade
Compreende-se, então, que uma experiência interior, por mais “subjetiva”, por mais “obscura” que seja, pode aparecer como um lampejo para o outro, a partir do momento em que se encontra a forma justa de sua construção, de sua narração, de sua transmissão.
Didi-Huberman, A sobrevivência dos vaga-lumes.
Loucura, cidades, corpos, histórias, diferença, informações, narrativas,
acontecimentos. Tais imagens produziram impactos no corpo do pesquisador-
caminhante, semelhantes talvez às sensações físicas que Michel Foucault experimentou
ao ler aqueles tantos fragmentos de vidas infames. Detritos, restos de vidas comuns que
só chegaram a ele devido ao encontro com o poder, por terem sido retiradas da noite de
onde talvez nunca devessem ter saído. Noite não como o lugar de criaturas obscuras e
assustadoras, mas como espaço do inominável, lugar onde os limites são permeáveis e
pode se dar a criação. Noite na qual vaga-lumes92 poderiam ser vistos.
Na cidade que poderia ser outras, as luzes da razão incidiram sobre um corpo
exigindo confissão. Em seu shopping mais frequentado, a diferença que a loucura
coloca em cena, de alguma forma, perturbou o espaço que se desejava previsível. A
aparência daquela mulher maculava a assepsia e a atmosfera harmoniosa do local. A
rua, figurada pela sua imprevisibilidade e pela possibilidade de encontros que
propiciaria, invadiu o interior higienizado e insistiu em turvar aquele espaço que
desprezava as misturas da cidade.
Aquela que até determinado momento não teria nome nem voz passou a ser
“dita”, e logo mais a fariam falar. A loucura, “explicada”, começava a habitar o
shopping. O silêncio da mulher, que muitas vezes preferia usar bilhetes, gradativamente
era emudecido. Depois de espetacularizada diziam que ela deveria ser cuidada e, assim,
ela atravessava a emaranhada malha do poder. Para internar insistia sub-repticiamente.
Maria José Menezes dos Santos, 60 anos, teve parte de sua vida capturada e exposta.
Uma história linear carregada de explicações e contornos era produzida. 92 “Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco mil vaga-lumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela.” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.52).
72
Ao escreverem diversas linhas sobre a sua vida e articularem possíveis motivos
para o seu “surto”, ela deixava de ser a estranha anônima para tornar-se a mulher
vulnerável que sofria, portadora de transtorno mental. Os espaços e pessoas não
suportavam a mácula daquela diferença. Claras fronteiras a esta começavam a ser
delimitadas. Maria José era incitada a confessar o que era, a despossuir a potência do
seu silêncio. No contemporâneo, como afirma Deleuze, o falar seria constantemente
evocado, “de modo que o problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam,
mas arranjar vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo
a dizer. As forças repressivas não impedem as pessoas de se exprimir, ao contrário, elas
as forçam a se exprimir”93.
Faziam-na, deste modo, ruidosamente falar. Uma “força-tarefa”, composta de
profissionais da saúde, familiares e uma igreja evangélica, em breve seria a responsável
pela “reviravolta” em sua vida. Ela estaria sendo “curada”. Os muitos ruídos talvez a
impedissem de continuar ouvindo as espiritualidades que lhe diziam o que fazer e que
ninguém mais escutava. Silere e tacere94, o silenciar e o calar-se, ocupavam os traçados
de Aracaju. A partir deste momento, a escrita de sua vida ia deixando o âmbito
jornalístico; sua história deixava de ser novidade e o frenético fluxo de informações
continuava a ser alimentado. Sua vida começava a adquirir mais o aspecto cinza dos
arquivos da justiça e da psiquiatria. Ela estaria mais incluída na rede. Alguns
humanistas respeitadores da diferença se apaziguavam com a inclusão.
Sua aparência, agora “comum”, parecia não despertar mais a curiosidade de
todos, livrara-se, pelo menos em parte, do peso dos olhares. Na tarde do dia 20 de junho
de 2011, talvez caminhasse sem ser notada em meio à multidão anônima da cidade. Não
se ouvira falar de encontros com ela, de que tenha sido vista em seu percurso. Ela teria
ido ao shopping neste dia. Uma sacola, com uma blusa comprada em uma das lojas do
shopping, fora encontrada ao lado de seu corpo. A subida de tantos metros não deve ter
sido rápida, seu andar era vagaroso, causava um descompasso no ritmo acelerado da
cidade. Além disso, os automóveis não cessam de cruzar o elevado no qual não há
passagem para pedestres. A cidade grita ao fim da tarde, era o horário do rush. Talvez,
alguns tenham estranhado uma pessoa a caminhar por ali. Será que fora notada? O
93 DELEUZE, Gilles. Os intercessores. In: Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992, p.162. 94 BARTHES, Roland. O Neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Tais ideias serão retomadas mais adiante no texto.
73
guarda-chuva que fora encontrado ao seu lado, quebrado, estava aberto. Será que, por se
acreditar mais leve, o guarda-chuva a ajudaria a voar para outro lugar?
Dois anos após as luzes dos holofotes da cidade terem diminuída a força de sua
incidência sobre ela, o imprevisto aconteceu questionando mundos. Seu corpo carregado
de dizeres caía solicitando atenção às tramas da produção da diferença no
contemporâneo. Especulou-se novamente. Agora sua morte era o alvo. Ao saber da
notícia muitos demonstraram preocupação com a insegurança, já que não seria o
primeiro caso do ano de suicídio naquele viaduto. Solicitavam uma grade de proteção
nos viadutos para que episódios assim não mais ocorressem. Perguntas, pena, lástima,
choque, aturdimento, compaixão, pedidos por segurança. O barulho do corpo ao chocar-
se com o chão fora ouvido de diversas formas... E uma vez mais pediram por segurança.
O pesquisador-caminhante fora aturdido com o impacto daquele corpo com o
chão. O sangue se espraiou pela cidade e o impregnara. Tal acontecimento veio a
intensificar o caráter processual de uma pesquisa que se faz ao caminhar. Provocou
desvios no trajeto pretendido e interpelou entendimentos acerca da loucura, da cidade,
da diferença. O excesso de ruídos produzidos, que a fizeram confessar, incomodou a
impessoalidade de seu corpo e concorreu para o deslocamento de instituídos. Contudo,
ao pretender falar de uma vida, encontros outros atentavam para os riscos que poderiam
se dar em seu caminho. Perigo que continua a espreita enquanto tal escrita se delineia e
que exige cautela: como falar de uma vida sem fazê-la cair na mesma armadilha a que o
poder constantemente a submete, como narrar sem espetacularizar95 mais, sem inflar sua
psicologização?
Em meados do século XVII, se encontrava, nos registros das casas de
internamento, a menção “Quis desfazer-se”96 referindo-se àqueles que teriam tentado o
suicídio. Esta tentativa indicaria uma desordem da alma e deveria ser coagida. Tais
95 De forma rápida, a noção de espetacularização a que nos remetemos refere-se a um modo de relação, recorrente no contemporâneo, que toma o outro como imagem banal a ser consumida. Relação de consumo e apropriação daquilo que nos chega, a todo momento, ao conhecimento, mas que não permite a concretização de uma experiência. Segundo Debord: “Considerando em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade.” (DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p.14). 96 FOUCAULT, 2010.
74
pessoas passavam, deste modo, a estar sujeitas à sentença “para internar”. Entre os
muros do asilo, aqueles que buscavam desfazer-se teriam o seu lugar, ajudando a
compor o variado universo do desatino.
Desmanchar, despedaçar, dissolver, dispersar, reduzir a fragmentos, esvair-se,
são termos encontrados no dicionário quando se pesquisa o verbete desfazer.
Interessantes noções associadas àqueles que procuravam alguma escapatória a vida. Sob
uma carga ruidosa de origens, tipos, destinos, luzes, alguns homens ordinários do
cotidiano citadino talvez procurassem se desfazer ao se confrontarem com as armadilhas
do poder. Submetidos a identidades e classificações, estes carregariam sobre o ombro
definições sufocantes que produziriam um caminhar mais vagaroso e curvado.
Insustentável peso do viver. Maria, louca, excêntrica, suja, sofredora, digna de pena,
objeto de tratamento, transformada em informação, depois curada. Recebera novamente
nome, sobrenome, família, ganhara música, prontuário e um deus evangélico. Teria ela
buscado se desfazer? Teria, à maneira de Perseu97, desejado alçar voo para outros
espaços, nos quais lhe fosse possível ver as coisas de outra maneira, onde lhe fosse
permitido ser leve?
Sob o inelutável peso de contornos e classificações, ao serem retirados da noite e
lhe exigirem uma confissão, seres infames teriam reduzidas sua capacidade de se
deslocar, de sair de si mesmo. Seriam encarcerados em limites individualizantes. As
luzes da razão, da mídia, da cidade-luz, não comportam o que não tem nome e pode
escapar. Os poderes não sabem lidar com o indefinido, com uma singularidade
qualquer, inominável. Desta maneira, corpos têm sobre si engendrada uma alma, e esta,
a todo o momento, é bombardeada por saberes que, muitas vezes, violentam ao
desejarem incluir.
Estes homens infames poderiam desejar uma fuga de tais luzes; destes holofotes
que intentam revelar a essência daquilo sobre o que incidem e nada, assim o querem,
deixam escapar. Holofotes que não são mais aqueles dos sistemas totalitários de
governo com os quais o cineasta e escritor Pier Paolo Pasolini se deparara em sua
juventude na Itália98. Aquelas grandes luzes que buscavam, na noite, os menores sinais
de resistência, ou as dos projetores de propaganda aureolando o ditador fascista. Agora,
97 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990b. 98 DIDI-HUBERMAN, 2011.
75
uma claridade diferente, que incide sobre os corpos dos homens comuns tornando-os
corpos superexpostos, através das câmeras da televisão, dos shows políticos, do reino do
mercado, da ciência. Luzes de um outro fascismo, o qual, Pasolini, em 1975, acreditava
ter surgido sobre as ruínas do fascismo dos anos 1930 e 1940. Um fascismo ainda mais
profundo e devastador, no qual passara a inexistir qualquer lampejo, a menor
possibilidade de resistência. Fascismo este, como diria outro pensador, que se
incrustaria na alma de todos.
Pasolini decretava, deste modo, no texto que ficou conhecido como “O artigo
dos vaga-lumes”, o desaparecimento de tais seres luminosos99. Vaga-lumes que, anos
antes, conseguira perceber de forma tão bela e intensa pelas ruas da Itália, e que
estiveram presente em vários de seus filmes. Clarões erráticos, frágeis lampejos de
resistência; breves momentos em que seres humanos comuns emitiam seus sinais pela
noite, transformando-se em lucciole, em pequenos vaga-lumes tentando escapar à
ameaça da grande luz do governo fascista. Época em que, segundo o cineasta italiano,
ainda era possível resistir e iluminar a noite com pequenos lampejos de pensamento.
Contudo, sob o novo fascismo, surgido no período pós-guerra, tais insurgências
estariam impossibilitadas:
O “verdadeiro fascismo”, diz ele, é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que “conduz, sem carrascos nem execuções em massa, à supressão de grandes porções da sociedade”, e é isso que é preciso chamar de genocídio “essa assimilação (total) ao modo e à qualidade de vida da burguesia”100.
É compreensível o desespero político que tomou conta de Pasolini e o levou a
teorizar a morte dos vaga-lumes, o desaparecimento da menor forma de resistência
diante deste emergente fascismo. Tempo no qual os “conselheiros pérfidos” assumiriam
as mais variadas formas atuando em prol de uma sociedade de controle, ilusoriamente
cada vez mais libertária. Porém, afirma Didi-Huberman, assumir esta trágica fatalidade
seria desistir de ver apesar de tudo, apesar da apropriação das práticas de resistência
popular, apesar da cultura, ela própria, ter se transformado em ferramenta da barbárie
totalitária e ser apreendida pelo reino do mercado. Postular este assujeitamento total
99 DIDI-HUBERMAN, 2011. 100 Ibid., p.29.
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seria somente ver a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. “É portanto, não ver
o espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das
aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo”101. Seria, deste modo,
perder a capacidade de ser contemporâneo; disposição que o pesquisador, como citado
anteriormente, deveria assumir.
Didi-Huberman nos alerta para a possibilidade de práticas insurgentes mesmo
quando tudo parece estar submetido às malhas deste controle sutil e conformador da
atualidade; controle não descolado de determinadas práticas científicas, como analisado
de forma perspicaz por Michel Foucault e Gilles Deleuze. Ele chama a atenção, logo, à
possibilidade de se constituir uma experiência em meio ao domínio de um mercado de
consumo e de informações.
Ser contemporâneo se mostraria, deste modo, como a possibilidade de manter
uma constante e intranquila atenção ao presente, mas também como a possibilidade de
investir na produção de um encontro em que o outro não sofra a intensidade das luzes
que o carrega de identidades e categorizações. Ir, portanto, na contramão de práticas que
não suportam o caráter deslocador que emerge na relação com a diferença e a
conformam em embalagens manuseáveis: o louco, o pobre, o travesti, etc. Formas de
estar com o outro que, ao dar voz, ao falar sobre ou ao pedir que se fale, acabam
atuando como dispositivos homogeneizantes. Seria possível contrapor um determinado
silêncio à informação e ao falar constantemente evocado pelas práticas de poder
contemporâneas. Mas, que silêncio?
Silenciar e calar não possuíam o mesmo significado na antiguidade. Roland
Barthes102 adverte que o silêncio e o calar-se teriam nuances diferenciadas: "tacere,
como silêncio da fala, opõe-se a silere, como silêncio da natureza". Silere seria
empregado para a noite, o mar e o vento; silêncio que afirmaria intensidades das forças
naturais, ou o que ainda não surgiu, o ainda não, ou o que despontará; silere também
seria o sentido da morte. O silere não se restringiria a natureza. Nuances deste silêncio
estariam também na literatura e na política. Para Maurice Blanchot103, "uma obra
literária é, para aquele que sabe penetrar nela, uma preciosa morada de silêncio, uma
101 DIDI-HUBERMAN, 2011, p.42. 102 BARTHES, Roland. O Neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.50. 103 BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.321.
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defesa firme e uma alta muralha contra essa imensidade falante que se dirige a nós,
desviando-nos de nós".
Tais autores legariam a possibilidade de pensar a diferença como silere e tacere,
isto é, o silêncio da diferença que escapa da captura que a aprisiona em significados
definitivos, a que vai ao encontro do ainda não, ao que virá, em contraste com a
diferença ruidosa, plena de significados claros e previsíveis, encontrada nas práticas do
poder que faz falar; estridência do eu solitário, das confissões íntimas, das identidades
imobilizadas em si mesmas; ruídos imunes a qualquer deslocamento advindos da
potência do inesperado. Diversidade imóvel, intocável quando fixada na soberania das
suas bordas. Para Blanchot104, "a poesia se torna então o que seria a música, se reduzida
à sua essência silenciosa: um andamento e um desdobramento de puras relações, isto é
mobilidade pura”. Mobilidade transgressora de compactas fronteiras, de discursos
conclusivos presentes na produção do outro ou de um futuro carregado de esperanças ou
de pessimismos imóveis. Tais silêncios da diferença estariam, portanto, presentes como
paradoxos tramados na cidade. Que silêncio teria reverberado a partir do encontro do
corpo desta mulher com o chão?
A escuta, o deixar falar, o encontro com os infames da cidade, exercícios
valorizados no campo das ciências humanas bem como nos documentários, podem,
acreditamos, contribuir para tornar visíveis os mínimos desvios que surgem no
cotidiano e que escapam a domesticação da vida, colaborando, assim, para a emergência
de formas mais livres de constituição de si e do mundo. Contudo, é necessário atenção à
linha tênue em que se caminha ao ocupar tais posições, para que não se acabe
reproduzindo os fascismos de que nos alertam alguns autores anteriormente citados.
“Estar com o outro, tornar visível um modo de vida sem fazer com que essa
aproximação se confunda com um modo de gestão da vida do outro, um modo de
inventariar mais uma excentricidade”, seria um desafio do documentário, afirma Cezar
Migliorin105. Desafio que é estendido às ciências humanas. É preciso, logo, estar atento,
afim de que não se escute apenas uma ruidosa diferença.
104 BLANCHOT, p.330. 105 MIGLIORIN, Cezar. Documentário recente brasileiro e a política das imagens. In: Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 12.
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Uma forma de encarar este desafio, de esquivar à produção de ruídos efetivada
pelas práticas do poder que faz falar, seria apostar no silenciar desdobrador de sentidos.
Silenciar que não significa um calar-se diante das tantas formas de opressão perpetradas
no dia-a-dia das cidades. Ouvir o silere contribuiria para uma postura que não anula
aquilo que haveria de mais radical na diferença, sua força desacomodadora. Potencial
que permite o estilhaçamento de contornos, um tornar-se outro. A diferença é, deste
modo, tomada fora das bordas que a engessam em sua produção cotidiana e passa a ser
entendida como algo que emerge na relação. Diferença apreendida como artefato,
portadora de contornos temporários e permeáveis.
Ouvir o silêncio desta mulher e o impacto de seu corpo com o chão como silere,
silêncio do ainda não, mostra-se como uma recusa a considerar sua morte como
confissão. Confissão que a faria dizer “sou louca”, que comprovaria diagnósticos e a
estrangularia numa identidade. Algo comum e exigido da loucura nos antigos hospitais
psiquiátricos, como mostrou Foucault em suas pesquisas. O suicídio, não descartando o
caráter trágico que possui a perda de uma vida, ao ser encarado como confissão de um
eu, tornar-lhe-ia apenas uma vítima. A morte produziria incômodos, mas correria o risco
de permanecer exclusivamente no âmbito das emoções. Provocando tristeza, lamentos,
pena, porém impedindo-a de recusar aquilo que “era”. Retiraria, logo, sua possibilidade
de deslocar, de aturdir, ou seja, de ser tomada como acontecimento que pode questionar
mundos e interpelar as formas de relação que produzem a diferença no contemporâneo.
É nesta direção que não se deseja, com este trabalho, ceder mais luz a sua
história. Dar visibilidade assim como a mídia que transforma homens comuns em heróis
ou vítimas. Ao contrário, queremos lhe legar certa opacidade, característica que possa
lhe garantir a capacidade de responder aos olhares carregados que incidem sobre o seu
corpo. Possibilidade de opor-se aos ruídos que a tornaria imune a qualquer
deslocamento. Possibilidade, assim, de lhe desfazer, de tornar-lhe anônima. Operação
que não apaga suas singularidades, mas que permite o estilhaçamento dos limites que a
mantém em si mesma. Retirar-lhe do papel de uma personagem que carrega em si
marcas individualizadas de uma personalidade bem delimitada - fazendo com que sua
história possa comportar uma intensidade impessoal na qual é possível remetê-la a
outras histórias - pode ser um modo de estar com outro sem que lhe seja atribuído mais
peso.
79
As estratégias biopolíticas também buscariam forma de se desfazer dos
considerados indesejáveis. Desfazer excluindo-os, anulando a singularidade daqueles
que não se enquadravam em um modo de vida idealizado para os espaços citadinos. O
desfazer aqui problematizado se mostraria como uma alternativa a tais práticas de
poder. Mesmo porque as formas de exclusão, hoje, se dão cada vez mais por inclusão,
inclusão em tipos, em classificações, em estatísticas, ou seja, como um constante fazer,
contínua edificação de formas bem acabadas, ininterrupta produção de existências
capturáveis. Apostamos em um desfazer como possibilidade de retirar dos corpos esta
compacidade legada pelos dispositivos gerenciadores da vida, que recortam, mas para
melhor examinar e conhecer, não deixando espaço para que algo inesperado possa se
dar. É necessário certo vazio para que o imprevisível possa acontecer, para que sentidos
outros possam emergir. É preciso espaço e certa leveza para que um constante refazer
de formas seja possível.
Afinados com a proposta de Italo Calvino, buscar a leveza não indicaria uma
fuga da realidade, mas um modo de ver as coisas de outra maneira, sob outro ponto de
vista. Uma forma de retirar-se do fatalismo da atualidade e da naturalidade com que
tudo que pesa sobre a existência é encarado. Leveza que permite escapatória a esta rede
de constrições cotidianas que aprisionam a vida em malhas cada vez mais intricadas.
Proposta que apontaria, assim, uma ética de pesquisa. “Cada vez que o reino do humano
me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia
voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional.
Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo
sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle” 106.
Importa alertar também que não interessa a este trabalho incorrer em uma escrita
denunciativa, apontando possíveis falhas ou erros que teriam se dado por parte da rede
de cuidados produzida em torno de Maria José. Nem mesmo pretende sugerir formas
mais “eficientes” ou elaborar propostas de cuidado “efetivas” para com aqueles que
experienciam a loucura. O objetivo desta pesquisa é tensionar as relações que produzem
a diferença na experiência urbana contemporânea, e toma, para isto, este caso como
disparador. É reconhecido o trabalho implicado com uma política de saúde mental não
106 CALVINO, 1990b, p.19.
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violenta e conformadora, realizado por vários profissionais da Rede de Atenção
Psicossocial de Aracaju, muitos dos quais fizeram parte do coletivo que lidou com o
caso de Maria José. Trabalhadores militantes que reconhecem que a Reforma
Psiquiátrica é um processo, algo em constante movimento, e que a lógica manicomial
continua presente e exigindo atenção.
Todavia, interessa sim, chamar a atenção para a aposta - aposta já colocada em
prática por muitos daqueles que vivenciam os espaços de produção de saúde - em
produzir um encontro no qual as formas de estar com o outro, as formas de acolhimento,
ideia avivada pelas políticas de inclusão, se dê de forma a não anular o potencial
político de um encontro poroso. Encontro que permita deslocamentos e no qual não se
retire a força criativa de uma vida.
A luz das contribuições teóricas de Foucault, Barthes, Benjamin, entre outros
pensadores, considera-se que o narrar pretendido, sobre o acontecimento citadino que
direciona este trabalho, difere do dizer do outro, pelo outro ou contra o outro, estratégias
das quais nos alerta Aquino. Tomando a diferença enquanto portadora de uma
capacidade de alterização, afirmamos que a ética que deve balizar o modo de se fazer
pesquisa deve possibilitar um encontro; encontro desestabilizador com a loucura, com a
diferença, com a cidade, com o tempo presente. Encontrar-se assim, como seria
característico na urbe, com o outro, com aquilo que difere e que permite que saiamos de
nós mesmos. “Um encontro marcado por nenhuma volúpia descritivo-normalizadora e
alguma porosidade à diferença e à variância que esse tipo de acontecimento pode nos
ocasionar, ou ao que quer que a alteridade nos afete e nos faça deslocar”107.
O narrar tornar-se-ia uma potente ferramenta na medida em que tais casos
narrados possam remeter a um plano político. Quando faz explodir os limites de uma
particularidade permitindo conceber as forças que a atravessam. Narrativa feita de
restos, daquilo que escapa, mas que possibilita que uma história possa se desdobrar em
diversas outras e contribuir para o enfrentamento dos fascismos que nos perpassam.
Histórias abertas, portanto. Singulares, mas que têm a força de produzir o inacabamento
do silêncio.
107 AQUINO, 2008, p.5.
81
A queda da “velha do shopping” traduzida em tacere, o silêncio da palavra, o
calar-se, foi mais um suicídio fruto do sofrimento psíquico de uma usuária da saúde
mental. Suicídio ruidoso que a faz confessar e a engessa em suas bordas. Apostamos
aqui no silere deste ato, no silêncio desdobrador de sentidos, que a permite se desfazer e
que é impossível de ser concluído como uma história linear. A queda daquele corpo
pode interromper compactas convicções, exigir o estranhamento de otimismos e
pessimismos da atualidade. Ouvir seu silêncio talvez seja uma proposta ética que faça
da diferença um promissor aturdimento.
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Algo chama à parada, solicita uma pausa em um caminho feito ao caminhar.
Trajeto escrito/percorrido durante um tempo que o pesquisador não se dera conta que
passou. Cidades ruíram e outras emergiram ao tomar as ruas. Questões, dentre as tantas
surgidas, e entre tantas não respondidas, continuam insistindo e provocando. Talvez a
melhor escolha seja também o silenciar. Silenciar que permite às perguntas e às histórias
permanecerem inconclusas e continuarem tensionando e interpelando práticas e
discursos que se constituem no contemporâneo. Silêncio que possibilita a história
manter-se aberta. Lembramos mais uma vez de Walter Benjamin, quando este afirma
que outra experiência estaria se perdendo no mundo moderno: a experiência de dar
conselhos. Segundo Benjamin, aconselhar seria menos responder a uma pergunta do que
sugerir a continuação de uma história que está sendo narrada. Apostamos, portanto,
nesta abertura, na força de uma narrativa que admite conselhos e histórias por vir.
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Epílogo
Debaixo do viaduto, o rastro de sangue deixado por aquele corpo que se deixou
cair, mesmo após diversas tentativas de limpeza e camadas de outras informações, não
fora eliminado. O sangue se espraiou pelas ruas, adentrou territórios seguros e penetrou
nas artérias pulsantes da cidade. Tal sangue aqui não diz somente da mistura de
substâncias que corre pelas veias, mas de uma formada por práticas e histórias que
atravessam o corpo. Talvez por trazer uma radical força de alterização, este insistiu em
provocar transtornos. Teimou em incomodar relações estabelecidas, boas-vontades,
indiferenças, credos. O corpo ao cair não deslocara somente uma massa de ar e o
barulho de quando se encontrou com o chão, embora tendo sido abafado, provocou
ruídos e silêncios que sutilmente reverberaram. Sem se preocupar em confirmar ou
refutar diagnósticos interpelou o contato com a diferença. A loucura deixou de ser
personagem e desmanchou seus limites convocando o questionamento de certezas e
incertezas em suas lidas diárias.
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