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20 revista abendi n o 54 fevereiro de 2013 mulheres nos ends Quebrando tabus E m “A Hora da Estrela”, Clarice Lispector escreveu que “o des- no de uma mulher é ser mulher”. A história calcada nesse aforismo está centrada na personagem Macabéa, uma moça simples do interior que se cobre de coragem e vai para a cidade grande perseguindo sonhos maiores em uma época em que o preconceito tornava as paisagens além do hori- zonte aterradoras. A visão poéca da autora, dota- da de proverbial intuição feminina, anunciava a libertação e consequen- te invasão da mulher no mercado de trabalho, que estaria para acontecer gradavamente alguns anos depois. Para a romancista, a mulher pode ser o que quiser, desde que não se esqueça de ser mulher. As mulheres delicadamente des- mancharam o Clube do Bolinha (Clu- be dos Batunhas para os mais jo- vens) e, com a maquiagem alinhada e o cabelo impecável, foram ocupando cargos antes dominados apenas por homens. Hoje, presenciamos mulhe- res trabalhando como mestras cerve- jeiras, pilotos de corrida, motoristas de ônibus, e inspetoras de END. O preconceito ainda está presente em várias partes da sociedade. Pode ser sul e quase impercepvel, no entanto, ele sempre dá as caras para Edu Oliveira desapontar e desmovar ómas pro- fissionais. Para combater essas opini- ões e senmentos pré-concebidos, apresentamos a seguir um pouco da vida e do trabalho de Juliana Higino Brandhuber, uma paulista de 27 anos, cujo rosto de menina esconde uma invejável experiência no segmento. “Foi a persistência de não desistir na primeira porta fechada que fez as mulheres chegarem onde estão” Juliana realiza inspeção visual em vasos de pressão NR13 durante visita a um cliente de Minas Gerais

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Na série "Quebrando Tabus", Juliana Higino Brandhuber conta como é o dia a dia de trabalho em uma atividade de inspeção que por décadas foi dominada pelos homens.

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20 revista abendi no 54fevereiro de 2013

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Quebrando tabus

E m “A Hora da Estrela”, Clarice Lispector escreveu que “o desti-

no de uma mulher é ser mulher”. A história calcada nesse aforismo está centrada na personagem Macabéa, uma moça simples do interior que se cobre de coragem e vai para a cidade grande perseguindo sonhos maiores em uma época em que o preconceito tornava as paisagens além do hori-zonte aterradoras.

A visão poética da autora, dota-da de proverbial intuição feminina, anunciava a libertação e consequen-te invasão da mulher no mercado de trabalho, que estaria para acontecer gradativamente alguns anos depois. Para a romancista, a mulher pode ser o que quiser, desde que não se esqueça de ser mulher.

As mulheres delicadamente des-mancharam o Clube do Bolinha (Clu-be dos Batutinhas para os mais jo-vens) e, com a maquiagem alinhada e o cabelo impecável, foram ocupando cargos antes dominados apenas por homens. Hoje, presenciamos mulhe-res trabalhando como mestras cerve-jeiras, pilotos de corrida, motoristas de ônibus, e inspetoras de END.

O preconceito ainda está presente em várias partes da sociedade. Pode ser sutil e quase imperceptível, no entanto, ele sempre dá as caras para

Edu Oliveira

desapontar e desmotivar ótimas pro-fissionais. Para combater essas opini-ões e sentimentos pré-concebidos, apresentamos a seguir um pouco da

vida e do trabalho de Juliana Higino Brandhuber, uma paulista de 27 anos,cujo rosto de menina esconde uma invejável experiência no segmento.

“Foi a persistência de não desistir na primeira porta fechada que fez as mulheres chegarem onde estão”

Juliana realiza inspeção visual em vasos de pressão NR13 durante visita a um cliente de Minas Gerais

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Vocações e aspiraçõesJuliana ingressou na área por influ-

ência do seu falecido pai. Júlio César era engenheiro mecânico, especialis-ta em ultrassom, líquido penetrante e partículas magnéticas. Apaixonado pela atividade, certamente imprimiu um pouco de seu trabalho no DNA das filhas, Juliana e Jaqueline.

Com seis anos de faculdade e qua-tro de treinamentos em ensaios não destrutivos, Juliana graduou-se em engenharia mecânica plena e fez cur-sos de ultrassom, inspeção por líqui-dos penetrantes, vasos de pressão e inspeção de equipamentos no IBP, no Cetre e na Abendi. “Estudei muito, mas valeu a pena. Foi um sonho rea-lizado. Gostei muito do que aprendi e estou sempre utilizando conhecimen-tos em termodinâmica e mecânica dos fluidos em meus serviços”, relata a profissional que almeja cursar pós-graduação em gestão empresarial.

Juliana trabalha atualmente como engenheira mecânica na JBI Inspe-ções, empresa que comanda ao lado da irmã Jaqueline, e coleciona metas para os próximos anos. A profissional habilitada em NR13 dedica-se exclu-sivamente ao crescimento da empre-sa. Além de solidificar a imagem de responsabilidade e qualidade na pres-tação de serviços, ela pretende tam-bém entrar no segmento de meio am-biente e sustentabilidade.

Mulheres no trabalhoJBI, ao contrário do que alguns cli-

entes sugerem, não é a abreviação de Jovens e Belas Inspetoras. É a junção das primeiras letras dos nomes e do sobrenome das irmãs com o “i” de inspeções. A empresa existe há quase 10 anos e atende clientes dos merca-dos farmacêutico, químico, metalúr-gico, de gases industriais e de papel e celulose. Presta serviços de inspeção em caldeiras, vasos de pressão e tu-

“Acho o máximo quando vejo mulheres ocupando cargos de comando na polícia, governando países

importantes como Brasil, Argentina...”

O autorretrato foi registradodentro de um tubulão de uma caldeira aquatubular.Juliana fazia inspeção visual das soldas e do casco e testes com líquido penetrante nas conexões e cruzamentos

bulações. Realiza a reconstituição de prontuários e calibração de válvulas. Além de ENDs como partícula magné-tica, líquido penetrante e ultrassom. “É um trabalho essencial, pois garante a integridade física de pessoas e equi-pamentos, prevenindo acidentes”.

Juliana nota que existem poucas mulheres em inspeção. Todavia, tra-ta-se de uma evolução constante, que

está apenas começando. “Temos con-fiança que somos capazes. Acredito muito em três palavras: paciência, ex-periência e esperança. Podemos per-der hoje, mas venceremos amanhã”.

Faz cinco décadas desde que os pri-meiros gritos de Betty Friedan ecoaram na Europa e nos Estados Unidos com a obra “Mística Feminina”. A autora denunciou os papéis sexuais impos-

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tos pela sociedade que presumem ser a domesticidade a maior qualida-de de uma mulher. Betty desafiou os homens a participarem dos serviços domésticos e da criação dos filhos e certamente fez o mundo repensar alguns valores.

Atualmente, não é difícil ver ho-mens cuidando da casa e das crian-ças enquanto a mulher vai ao tra-balho. No entanto, o mais comum é ambos trabalharem e complementa-rem a renda familiar. Juliana acredita que foi a persistência de não desistir na primeira porta fechada que fez as mulheres chegarem onde estão.

Devido a isso, os esforços femini-nos não podem ser vistos como uma competição com os homens. Elas que-rem, segundo a inspetora, conquistar espaço para fazer sua parte. “Acho o máximo quando vejo mulheres ocu-pando cargos de comando na polícia, governando países importantes como Brasil e Argentina, dirigindo veículos de grande porte como ônibus e cami-nhões. Quebramos definitivamente o tabu”. Juliana continua: “Acredito que, com a evolução da sociedade e quebra de mais alguns paradigmas, o mundo evoluiu e atualmente temos uma grande diversidade de profissões sendo ocupadas tanto por homens quanto por mulheres”.

Vivemos o fim das distinções de cargos por sexo. Não existe mais área feminina ou masculina. Homens e mulheres se misturam no mercado de trabalho. Porém, toda minoria chama um pouco de atenção e os preconcei-tos aparecem de todas as formas.

Ossos do ofícioExistem ótimas inspetoras de ENDs.

Mulheres que se destacam e fazem a diferença na área. Para Juliana, a genética faz com que as mulheres sejam mais dedicadas, atenciosas, detalhistas e caprichosas. Contudo, o mundo ainda guarda traços ma-chistas e, entre um e outro trabalho, eles sempre entram em cena. A ins-

“É um trabalho essencial, pois garante a integridade física das pessoas e equipamentos, prevenindo acidentes”

Foto feita por um colega durante o trabalho em um trocador de calor

petora confessou que já sofreu muito preconceito. No caso mais grave, um cliente disse que ela não poderia ser a encarregada chefe em uma equipe com cinco homens. Tentou impedir o acesso dela ao local, pois achou que sua beleza fosse fazer com que todos os funcionários parassem as máqui-nas para acompanhar a inspeção. “Vai atrasar o serviço, tenho certeza”.

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Com outro contratante, o funcioná-rio da manutenção questionou se era ela mesmo que iria fazer a inspeção na caldeira e comentou com o colega: “Nossa, mas será que ela é maior de idade?”. No fim, ele pediu desculpas e disse: “Não é que a ‘bebezinha’ sabe o que está fazendo. Bom trabalho”.

Juliana nem liga mais para os olhares. Segundo ela, onde chega é sempre a mesma coisa. Todos ficam surpresos e curiosos, o que não deixa de ser uma forma de pre-conceito velado. No entanto, algu-mas reações são boas. Ela se lem-bra de um episódio em que chegou

Mapeamento de pontos de medição de espessura em um trocador de calor

para prestar o serviço e o encarre-gado foi muito simpático dizendo: “Apareceu a única flor que enfeita meu contêiner”. Em outro serviço, ela estava concentrada trabalhan-do e, quando se deu conta, os cole-gas do departamento de segurança do trabalho tinham armado uma mesa com café, bolachas e choco-lates. Para uma equipe formada só por homens, certamente eles não fariam algo assim. Mas quando a discriminação envolve chocolate, muito chocolate, as mulheres até que a consideram perdoável (pra não dizer saborosa).

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