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1 CRESS-MG | Revista Conexão Geraes | 2º semestre de 2014 EDIÇÃO ESPECIAL COM MUITO MAIS CONTEÚDO

Revista Conexão Geraes - 5

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Quinta edição da revista semestral do CRESS-MG.

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1CRESS-MG | Revista Conexão Geraes | 2º semestre de 2014

EDIÇÃO ESPECIAL COM

MUITO MAIS CONTEÚDO

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GESTÃO SEGUINDO NA LUTA - PELO FORTALECIMENTO DA CATEGORIA EM DEFESA DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO (2014-2017)

Sede (BH)

Presidente: Leonardo David Rosa ReisVice-presidente: Jefferson Pinto Batista1ª Secretária: Viviane Arcanjo de Oliveira 2º Secretário: Douglas Alves 1º Tesoureiro: Maykel Marinho Calais de Araújo 2ª Tesoureira: Marisaura dos Santos Cardoso Conselho FiscalDébora Calais Oliveira CorreaThiago Prisco Silva Ana Maria Arreguy Mourão SuplentesDaniela Patrícia Miranda Rezende Gustavo Henrique TeixeiraSimone Gomes da Silva Janaína Andrade dos Santos Sandra Mara Teixeira de Castro Ana Maria Gomes de Souza Bertelli Danielle Vassalo CruzMarília Soares NascimentoRicardo Silvestre da Silva

Seccional Juiz de Fora

Coordenadora: Raquel Mota Dias GaioSecretária: Vanêssa Sales Alves Tesoureiro: Geovane Martins Gonçalves

SuplentesJhony Oliveira Zigato Susana Maria Maia Ana Luíza Avelar de Oliveira

Seccional Montes Claros

Coordenadora: Rosilene Aparecida Tavares Secretária: Viviane de Castro AfonsoTesoureira: Mariana Abiachell Medeiros

Suplentes

Denise Veloso Pinto Grace Aparecida Sarmento Rodrigues

Seccional Uberlândia

Coordenadora: Ana Lúcia Martins KamimuraSecretária: Valdirene Beatriz CardosoTesoureira: Luana Braga

SuplentesAna Carolina Pontes RosGláucia de Almeida RamosCleidislene Conceição Silva

O CRESS-MG, consciente das questões sociais e ambientais, utiliza na impressão deste material papéis certificados pela FSC (Forest Stewardship Council). A certificação FSC é uma garantia de que a matéria-prima advém de uma floresta manejada de forma ecologicamente correta, socialmente adequada e economicamente viável.

Ficha técnica

Comissão de Comunicação (2014-2017) Ana Carolina Ros, Douglas Alves, Geovane Gonçalves, Leonardo David Rosa Reis, Marcela Viana, Marisaura dos Santos Cardoso, Rosilene Tavares e Thiago Alcântara

Comissão de Comunicação (2011-2014)Carla Alexandra Pereira, Cristiano Costa de Carvalho, Janaína Andrade dos Santos, Leonardo David Rosa Reis, Marcela Viana, Marisaura dos Santos Cardoso, Raquel Mota Dias Gaio, Renato Mateus de Santana e Thiago Alcântara

REVISTA CONEXÃO GERAESTiragem: 17.000 exemplaresCoordenação: Comissão de ComunicaçãoProjeto gráfico e diagramação: Thiago AlcântaraIlustração de capa e verso: Rafael de CastroJornalista responsável: Marcela Viana (17.386 MG)Assessor de Comunicação: Thiago Alcântara Assessora Adjunta de Comunicação: Marcela Viana [email protected]

CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL DE MINAS GERAIS(CRESS-MG)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

R454

CDD 362.1CDU 36

Revista Conexões Geraes/ Conselho Regional de Serviço Social de Minas Gerais. v. 3, n.5 (2014). – Belo Horizonte: CRESS 6° Região, 2014. -

Semestral ISSN: 2358-839X

1. Serviço Social 2. Politicas sociais. 3. Cidades. I. Conselho Regional de Serviço Social de Minas Gerais. II Titulo

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Cara/o assistente social,

O III Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais reuniu mais de mil profissionais e estudantes, nos dias 7, 8 e 9 de junho de 2013, em BH, marcando a história do Serviço Social de Minas Gerais.

Os debates realizados instigaram e ao mesmo tempo alentaram a todos que participaram do evento. As palestras proferidas por estudiosos da área contribuíram para solidificar e dar consistência teórica às discussões que o Serviço Social realiza na atualidade.

Esta publicação traz algumas das reflexões realizadas pelos palestrantes convidados. A nossa intenção é, mais uma vez, registrar este momento apresentando alguns dos principais artigos que sintetizaram os debates realizados. Tais discussões deixaram ricas e valorosas reflexões sobre alguns dos temas que compõem o arcabouço teórico desta profissão.

Sabemos que existem muitas descobertas que precisam ser realizadas, muitos desafios a serem superados, como as mudanças socioculturais e econômicas que tanto desafiam nossa profissão em seu cotidiano de trabalho, impelindo-a na busca pela formação continuada e pelo adensamento do seu arcabouço teórico-político e do seu projeto profissional.

Por isso, esperamos que estas reflexões continuem a nos instigar cada dia mais, tornando fecundas as nossas ações, tendo em vista que o ponto de partida é a defesa pela afirmação e materialização dos direitos sociais, a luta contra todas as formas de exploração e opressão e a concretização de um desenvolvimento social que possa contemplar a emancipação dos indivíduos e o princípio da liberdade com equidade e justiça social.

Desejamos que você tenha uma excelente leitura e que continuemos com os ânimos revigorados, na certeza que estamos trilhando caminhos desafiadores e profícuos no que se refere ao acúmulo e solidez do nosso patrimônio intelectual, do nosso projeto profissional e das nossas bandeiras de luta.

Boas reflexões a todas/os.

GESTÃO SEGUINDO NA LUTA: PELO FORTALECIMENTO DA CATEGORIA EM DEFESA DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO (2014-2017)

Índice Configurações da crise capitalista e incidências no mundo do trabalho – página 6Carlos Montaño A ideologia neodesenvolvimentista e as Políticas Sociais no Brasil: apontamentos sobre crise e hegemonia na periferia do capitalismo – página 15Cézar Henrique Maranhão

Política social no Brasil: notas e críticas a partir da teoria marxista da dependência – página 25Rodrigo de Souza Filho

Em defesa da qualidade da formação e do trabalho profissional: materialização do projeto ético-político profissional em tempos de barbárie – página 34Yolanda Aparecida Demetrio Guerra

Serviço Social no campo sociojurídico: possibilidades e desafios na consolidação do projeto ético-político profissional – página 41Eunice Teresinha Fávero e Valéria Forti

Serviço Social, Projeto Profissional e Prática na Saúde – página 49Fátima de Maria Masson

Políticas educacionais e contribuições do Serviço Social – página 56Eliana Bolorino Canteiro Martins

Questão urbana e direito à cidade: reflexões sobre o trabalho social na política urbana – página 63Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz

Questão urbana e Serviço Social – página 70Teresa Hilda Costa

Controle social e planejamento urbano participativo: contribuições do Serviço Social – página 74 Mônica Abranches

Apresentação

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Esta publicação refere-se às valiosas reflexões dos assistentes sociais suscitadas por ocasião do III Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais organizado pelo CRESS-MG, realizado em BH, em junho de 2013. Este encontro teve como eixo central o debate sobre as "expressões socioculturais da crise do capital e suas implicações para a garantia dos direitos sociais".

O III Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais reuniu mais de mil profissionais e estudantes com a finalidade de adensar o debate e as análises sobre a sociedade imersa na égide capitalista, suas crises, os impactos para o mundo do trabalho e, estrategicamente, os desafios para o exercício profissional desta categoria profissional. Uma categoria que se distingue e é reconhecida por suas mentes inquietas, corações apaixonados e espírito lutador.

Oportunamente, registram-se as contribuições de todos os profissionais que se dedicaram à produção de trabalhos e dos conferencistas que, de forma extremamente elucidativa e crítica, trouxeram os fundamentos para um debate profícuo sobre o mote em questão, reafirmando a direção teórica, metodológica, ética e política da profissão.

O objetivo aqui é instigar a leitura das ricas análises estruturadas pelos autores nos artigos, que se dedicaram à arte de interpretar a dinâmica do cotidiano societário, marcada pela contradição de classes. Assim, foram elencados eixos temáticos, no esforço de abarcar os conteúdos elaborados pelo conjunto da categoria, que contribui de forma relevante para adensar o conhecimento nas diversas áreas de intervenção profissional.

É importante destacar o alinhamento dos diversos autores e conferencistas com a perspectiva teórica e metodológica orientada pela tradição marxista.

Destacam-se as palavras de Carlos Montaño nesta ocasião: “O marxismo entende que somente as lutas de classe e as mudanças na correlação de forças, orientadas pela emancipação política e humana, podem enfrentar as sequelas do desenvolvimento capitalista e suas particularidades no momento de crise”1.

Partindo deste entendimento, o leitor encontrará no material aqui disponível, elaborações com aprofundamentos sobre as questões estruturais do modo de produção capitalista e a centralidade do trabalho enquanto categoria fundamental de análise da realidade social, sempre acompanhada de forte componente ideológico que perpassa a compreensão e a explicação das crises cíclicas do capital. O modo de produção capitalista apresenta uma contradição central entre a socialização da produção e a apropriação privada do seu produto, o que conduz a concentração do capital, expulsão constante e paulatina da força de trabalho substituída por maquinaria e tecnologia, e pauperização da classe trabalhadora. Sem dúvida, a crise do capital faz parte da dinâmica do desenvolvimento capitalista e não é antagônica a ele.

No cenário de crise contemporânea, o capital busca reestruturar-se orientado pela estratégia da lógica neoliberal e da programática hegemonia financeira. Observe que a base mais profunda do que chamamos de QUESTÃO SOCIAL é resultado do desenvolvimento do modo de produção capitalista. A economia capitalista cresce e ao mesmo tempo persistem as contradições dos polos de acumulação versus pobreza, exploração, privações, desemprego, flexibilização do trabalho etc, e nestes campos pulsa a atuação profissional dos assistentes sociais.

Enquanto arena de mediação entre o capital e o trabalho, as políticas sociais, em suas diversas áreas, se reafirmam como necessidade à reprodução do capital. Com esta clareza e de forma crítica, os autores buscaram desenvolver, a partir da dimensão investigativa da profissão, análises aprofundadas e complexas sobre a

Prefácio

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realidade social e o papel do Estado na efetivação dos direitos sociais. São diversas as produções no campo das proteções e políticas sociais, com destaque para as reflexões estruturadas em relação à assistência social, saúde, educação, previdência social, habitação, socioambiental, sistema prisional, cultura, planejamento urbano, direitos humanos, financiamento. Ocupam-se também das reflexões que perpassam o judiciário e suas especificidades.Fruto do amadurecimento intelectual da profissão, são expressivas as elaborações que tratam da formação e do exercício profissional dos assistentes sociais, com ênfase nas incursões sobre a materialização do projeto ético-político profissional em tempos de barbárie. As contribuições dos conteúdos sobre o método, a teoria social crítica (materialismo histórico-dialético), as tecnologias do trabalho e a imagem social da profissão, nos chamam ao desafio constante de aprimoramento da práxis profissional, orientada pelos alicerces de base crítica.

Destacam-se também as produções referentes às temáticas intrínsecas ao exercício profissional em seus diversos espaços sociocupacionais, como a gestão, intersetorialidade, pobreza, desigualdade, participação e controle social, famílias e os ciclos de vida, adoção, gênero, propriedade privada da terra, racismo, violência e violações de direitos, sindicalismo e cidadania.

Estes trabalhos delineados sobre as diversas áreas e temáticas demonstram a riqueza de escopo e amplitude dos campos de atuação e reflexão dos profissionais do Serviço Social. Justifica-se deste modo, a importância da direção teórico-metodológica, o significado da expressão ético-política hegemônica da categoria e o compromisso destes trabalhadores na materialização técnico-operativa frente às multifacetadas manifestações da questão social.

Como poderá observar o leitor, os textos aqui apresentados representam a maturidade, a solidez e a sobriedade da profissão que se vincula de forma explícita a um projeto societário que propõe a ruptura com a lógica da sociedade capitalista e que evoca novas bases societárias alicerçadas em

parâmetros de uma emancipação humana e política conforme argumentos gramiscianos.

Arrisca-se, diante do exposto, atribuir a esta categoria qualidades e adjetivos que condensam seus compromissos humanos e profissionais. Suas mentes inquietas por serem desafiadas a todo momento pelas determinações históricas que configuram as expressões da questão social, tendo como perspectiva a dimensão da totalidade. De corações apaixonados que impulsionam a intervenção profissional compreendendo as subjetividades coletivas e buscando alternativas para o fortalecimento da classe trabalhadora. E espírito lutador por considerar as correlações de forças e as contradições sociais e se apropriar de suas multifacetadas dimensões para contribuir com as transformações societárias.

Por fim, reafirmo a gratidão por fazer parte desta história e poder colaborar com a categoria através desta breve elucidação elaborada para ensejar os conteúdos desta publicação. À gestão 2011-2014 do CRESS-MG e a cada um dos trabalhadores desta entidade, expresso minha admiração e respeito pelo esforço permanente e vigoroso em defesa da hegemonia do projeto ético-político desta categoria que nos orgulha e engrandece.

Desejo a todas/os as/os companheiras/os uma ótima leitura!

No suave inverno de Belo Horizonte, 2014.

Fabrícia Cristina de Castro Maciel

Coordenadora da Escola de Serviço Social do Centro Universitário UNA. Conselheira do CRESS-MG na Gestão “Compromisso e Luta: Em Defesa da Categoria e do Nosso Projeto Ético-Político” (2011-2014)

NOTAS

1 - Conferência de abertura realizada no primeiro dia do III Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais, em 07/06/2013, com o tema “Configurações da crise capitalista e incidências no mundo do trabalho”.

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1 - INTRODUÇÃO

Vivemos em tempos onde as afirmações sobre o “fim da centralidade do trabalho”, e a “diversidade das crises” tornaram-se lugares comuns.

Assim:

- o trabalho já não forma identidades nem congrega adesões;- o trabalho assalariado deve ser substituído pelo empreendedorismo;- a crise atual é uma crise do emprego, uma crise do Estado bem-feitor (fiscal e de governança), uma crise da produção fordista e uma crise de ideologias (todas desvinculadas umas das outras e da estrutura social).

Trataremos aqui o trabalho em contexto de crise, seus fundamentos e rebatimentos e impacto no próprio processo e condição de trabalho e nas lutas de classes.

A análise do processo de transformação nas relações e nas condições de trabalho, na relação capital-trabalho, tanto no processo de produção, como no desenvolvimento das lutas de classes, pressupões a clara compreensão dos fundamentos do Modo de Produção Capitalista, na caracterização da sua fase monopolista, e do atual contexto de crise1.

Assim, tendo a crise atual do capital causas fundamentalmente endêmicas, e sendo uma crise eminentemente estrutural, geral e cumulativa, o projeto construído hegemonicamente nos anos pós-45, que conformou o que Harvey (1993) denominou por “regime de acumulação fordista/keynesiano”, onde os interesses do capital são “permeados” por demandas trabalhistas, no que alguns autores chamaram de “compromisso” ou “pacto keynesiano”, parece agora inteiramente desnecessário, ineficiente e até negativo para o capital (e crise e sob o comando financeiro).

Aquele regime (“fordista/keynesiano”) deve ser substituído por uma nova estratégia hegemônica. Uma estratégia que anule as conquistas trabalhistas e que permita a super-exploração do trabalho como um todo; uma estratégia que altera as condições do contexto anterior criando, no pós-70, um novo “regime de acumulação” que Harvey denomina de “flexível”: a ofensiva neoliberal.

Essa nova estratégia sustenta-se em três pilares fundamentais necessariamente articulados, no atual contexto de crise e mundialização do capital:

a) a ofensiva contra o trabalho e suas formas de organização e lutas, b) a reestruturação produtiva e c) a (contra-)reforma do Estado.

Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, 2001). Professor associado e pesquisador da mesma Universidade. Graduado em Serviço Social pela Universidad de la República (UdelaR, Montevidéu-Uruguai, 1989). Realizou estudos de pós-doutorado no Instituto Superior Miguel Torga (ISMT, Coimbra-Portugal, entre 2009 e 2010). Autor dos livros, Microempresa na era da globalização (Cortez, 1997); A natureza do Serviço Social (Cortez, 1998 e 2007); Terceiro Setor e Questão Social (Cortez, 2002 e 2005) e Estado, Classe e Movimento Social (Cortez, 2010). Coordenador da Biblioteca latinoamericana de Servicio Social (Cortez). Professor visitante e conferencista em diversos países da América Latina. Foi membro da Direção Executiva de ALAEITS (2006-2008) e coordenador nacional de relações internacionais da ABEPSS (Brasil, 2008-2010 e 2011-2012). Coordena o Núcleo de Estudos Marxistas sobre Política, Estado, Trabalho e Serviço Social (PETSS/ESS-UFRJ)

Carlos Montaño

Configurações da crise capitalista e incidências no mundo do trabalho

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Desta forma, o “projeto/processo neoliberal” constitui a atual estratégia hegemônica de reestruturação geral do capital – face à crise, ao avanço tecno-científico e às lutas de classes que se desenvolvem no pós-70, e que se desdobra basicamente em três frentes: a ofensiva contra o trabalho (atingindo as leis e direitos trabalhistas e as lutas sindicais e da esquerda), e as chamadas “reestruturação produtiva” e “(contra-)reforma do Estado”.

2 - OS IMPACTOS NA CONDIÇÃO DO TRABALHO E NAS LUTAS DE CLASSES

2 - 1 - Os impactos na condição do trabalhador

1. Direitos trabalhistas/salário (no Brasil de hoje) e “Custo Brasil” (valor da F.T.)

Costuma-se justificar a redução/precarização dos “direitos trabalhistas” e do salário na necessidade de diminuição do “Custo Brasil” (redução do valor da força de trabalho), o que permitiria aumentar o nível de emprego no país. No entanto, não há relação direta (nem teórica, nem histórica) entre valor da força de trabalho (salários e direitos trabalhistas) e nível de desemprego: a redução/precarização dos direitos trabalhistas não traz diminuição do desemprego, pois este não depende do custo de produção, mas da relação produção/comercialização, oferta/demanda. Muito pelo contrário, quanto mais precário for o salário dos trabalhadores, menos poder aquisitivo terá a população, tendendo a cair o consumo interno, o que tende a levar à diminuição do investimento produtivo - derivando em menor produção e maior desemprego.

2. Direitos trabalhistas/salário (no Brasil de hoje) e relação oferta/demanda de trabalho (fatores econômicos e políticos dessa relação)

Observa-se sim, uma relação entre “oferta de força de trabalho” e “oferta de emprego”, ou entre oferta e demanda de trabalho. É a alteração desta relação a que pode incidir na diminuição do desemprego. Tal relação pode ser alterada conforme os seguintes fatores:

a) por fatores econômicos - por exemplo:

- aumento do consumo, que tende a derivar em aumento da produção, e com ela a maior contratação de força de trabalho,

- investimento produtivo/comercial e investimento financeiro,- emprego do trabalho gratuito, voluntário, auto-emprego;

b) por fatores políticos – a través da pressão política das classes para:

- aprovação/eliminação de Leis Trabalhistas, Políticas e Sociais,- ampliação/redução do Tempo de Serviço (idade de aposentadoria),- ampliação/redução da Jornada de Trabalho (a 35 horas/semanais),- sistema tributário (sobre o patrimônio/riqueza, sobre o trabalho ou sobre o consumo).Todos estes fatores, no Brasil atual, tem sido negativos aos interesses do trabalhador. Vejamos isso:

1) o consumo vem caindo desde 1973 (e com a crise tende a continuar);

2) há fuga de investimento da atividade produtivo/comercial para a especulação financeira; com isso vem o menor crescimento produtivo e aumento ainda maior do desemprego (o Brasil tem mais de 12 milhões de desempregados);

3) promoção (por motivos econômicos: estratégia contra o desemprego ou para complemento salarial; e ideológicos: “ócio criativo”, “emprendedorismo”, “economia solidária”, “solidariedade social”, “terceiro setor”) do chamado “trabalho voluntário”; na verdade, de trabalho gratuito para o capital, que substitui o trabalho remunerado;

4) as políticas e serviços sociais vêm sofrendo redução do seu financiamento e precarização (acompanhada da focalização);

5) as leis trabalhistas e salários vem sendo precarizadas no mundo inteiro (países centrais e periféricos), até como parte das exigências do FMI para empréstimos e renegociação da dívida externa (ver Gonçalves, 1994, 1999 e Gonçalves e Pomar, 2000). Na década de 90, a renda média real do trabalhador caiu 8%, segundo o IBGE. Segundo relatórios da OIT, nos governos FHC, os três pilares da regulação trabalhistas foram corroídos: contrato (antes por tempo indeterminado, agora com contratos precários), jornada (antes fixa,

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agora flexibilizada pelo banco de horas) e salário (antes amparado por políticas salariais, agora depende da negociação no mercado, cujo resultado tem sido a redução sistemática do salário base, e a participação no lucro e sistemas de premiação à produtividade). Porém, para a continuidade da sua “flexibilização” se prevê a “reforma sindical” como forma de enfraquecer a resistência dos trabalhadores; sendo assim, a “reforma sindical” é a ante-sala da “trabalhista”;

6) o peso da ação sindical tem perdido força, seja pelo seu enfraquecimento interno, seja pela redução de impacto social, seja pela ameaça de desemprego, ou até pelo elevado nível de desemprego;

7) paralelamente a isto, a chamada “Reforma Sindical” (elaborada no atual governo, em concordância com os governos FHC, através do Fórum Nacional do Trabalho - FNT, criado em 2003), ameaça a possibilidade do instrumento de greve perder efetividade (o projeto prevê: o “aviso prévio” - por escrito ao patrão com 72 horas antes da paralisação - ; a manutenção de “serviços essenciais”; a determinação de que a greve não pode causar “prejuízo irreparável ao patrimônio do empregador ou de terceiros”; a permissão de contratação de substitutos para os grevistas etc.). Também o projeto do FNT prevê a exclusão do “princípio do uso da norma mais benéfica aos trabalhadores” (em caso de conflito entre duas leis, prevalece a que mais beneficia o trabalhador), estabelecendo a prevalência do negociado sobre o legislado (num contexto de correlação de forças desfavorável para o trabalhador, principalmente quando a negociação for por empresas ou até individualmente);

8) em contraste com as possibilidades que abre o desenvolvimento tecnológico (automação etc.), que libera tempo de trabalho aumentando a produtividade, nos governos FHC e Lula, temos assistido ao aumento da idade de aposentadoria, aumentando o tempo de serviço, e a idade de aposentadoria. Paralelamente á extensão formal/legal desta idade, os aposentados tendem a ampliar seu tempo de trabalho para garantir uma renda maior que sua aposentadoria;

9) com a única exceção da França, que nos anos 90 reduziu a jornada de trabalho de 40 para 35h/semanais, observamos a tendência mundial (mais expressiva nos países periféricos) da flexibilização e ampliação

da jornada de trabalho - seja pela terceirização e subcontratação, pelo “trabalho informal”, seja pelo novo “trabalho de escravidão por dívida”, ou pela necessidade e complacência do trabalhador para completar seu baixo salário nominal com horas extras, e até, pelo sistema de “banco de horas” (que de fato elimina a lei de 8 horas);

10) O sistema tributário, que não tributa a especulação financeira, a grande riqueza e o patrimônio, que pesa na atividade produtiva, tende cada vez mais a ser direcionado ao consumo.

11) Estímulo ao “primeiro emprego”, como parte das políticas de “geração de emprego e renda”, claramente orientadas como política compensatória ao setor mais empobrecido, não como, a exemplo da política keynesiana, incentivo à produção e ao consumo, impactando ainda na precarização do emprego - o incentivo às cooperativas, às microempresas, ao aprendiz etc., são formas de fornecer ao capital mão de obra barata, mesmo que possam significar uma renda para a população empobrecida.

Todos estes aspectos mostram uma realidade muito desfavorável para o trabalhador, na correlação de forças com o capital, em relação aos direitos trabalhistas, salário e condições de contrato e de trabalho. A mudança no direcionamento hegemônico atual, nas dimensões econômica, política, ideológica, são as variáveis para pensar qualquer alteração no rumo atual dos direitos trabalhistas e sociais. Vejamos, sinteticamente, algumas das mudanças (regressivas) nos direitos trabalhistas que foram realizadas no contexto de hegemonia neoliberal no Brasil:

a) a Lei n.º 9.601 (de 1998), onde foram ampliadas as possibilidades de contratação temporária e instituído o banco de horas, o que permitiu o tempo de compensação do excesso de jornada para até um ano, sem que haja pagamento de horas extras;

b) a desregulação das relações de trabalho no Brasil pós-90 também permitiu ampliar a jornada de trabalho - seja pela terceirização e subcontratação, pelo “trabalho informal”, seja pelo novo “trabalho de escravidão por dívida”, ou pela necessidade e complacência do trabalhador para completar seu baixo salário nominal;

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c) o decreto 2100 (de 1996), em que o Brasil renunciou a Convenção n.º 158 da OIT (que dava garantias ao trabalhador contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, prevendo, naqueles casos, indenização compensatória);

d) a Medida Provisória n.º 1709 (de 1998), que criou o regime de trabalho com jornada de tempo parcial, definindo remuneração proporcional à duração semanal da jornada;

e) a Emenda Constitucional n.º 20 (de 1998), que limitou o benefício do salário família aos trabalhadores considerados de baixa renda;

f) o Projeto de Lei nº 5.483/01, agora PLC 134/01, (apresentado em outubro de 2001), que altera o artigo 618 da CLT, parte do suposto de que “os instrumentos de negociação coletiva entre sindicato e empresa prevaleçam sobre a lei, salvo em se tratando de preceito constitucional”, eliminando o “princípio do uso da norma mais benéfica aos trabalhadores” (para a qual, em caso de conflito entre duas leis, prevalece a que mais beneficia o trabalhador), estabelecendo a prevalência do negociado sobre o legislado (num contexto de correlação de forças desfavorável para o trabalhador, principalmente quando a negociação for por empresas ou até individualmente);

g) em contraste com as possibilidades que abre o desenvolvimento tecnológico (que libera tempo de trabalho aumentando a produtividade), nos governos FHC e Lula temos assistido ao aumento da idade de aposentadoria, e aumentando o tempo de serviço;

h) finalmente, o sistema tributário, que não tributa a especulação financeira, a grande riqueza e o patrimônio, que pesa na atividade produtiva, tende cada vez mais a ser direcionado ao consumo, pesando no trabalhador cujo consumo representa o total da sua renda.

2 - 2 - A ofensiva neoliberal contra o trabalho

Diversas são as modalidades de combate do capital e do neoliberalismo contra o trabalho, como forma de diminuir e até eliminar qualquer tipo de resistência ao processo de (contra-)reformas neoliberais:

a) O primeiro tipo de medidas adotadas pelo capital, na ofensiva neoliberal contra o trabalho, que caracteriza o claro rompimento com o chamado

“pacto keynesiano” (ou “pacto populista”, como no Brasil) remete ao enfraquecimento das organizações sindicais e trabalhistas. O capital, e o Estado comandado por governos neoliberais, investem nisto de diversas formas: negando-se à negociação com os trabalhadores em greve; reprimindo qualquer medida de luta dos trabalhadores (seja uma manifestação, seja uma paralisação ou uma greve); dilatando as greves dos trabalhadores, ao não responder nem atender qualquer de suas reivindicações, como forma de quebrar financeiramente o movimento e incluso sua organização sindical. Harvey lembra, como resultado do governo da primeira ministra inglesa, Margaret Tatcher (entre 1979 e 1990), que a atividade de greve caiu para 1/10 do seu nível anterior (2008: 69).

b) Um segundo tipo de medidas direciona-se ao desprestígio das lutas e das organizações do trabalhadores perante a opinião pública. Como afirma Mota, “a trajetória política do grande capital no Brasil dos anos 80 e 90, aponta para uma tentativa de construção da sua hegemonia, tendo como instrumento básico a formação de uma cultura marcada pela necessidade de desqualificação das demandas dos trabalhadores, enquanto exigências de classe”, fundamentalmente passando a “idéia de que a crise econômica afeta a sociedade e que, por isso, necessita da colaboração de todos” (1995: 163).

Maciçamente o neoliberalismo investe, com a colaboração das empresas de jornalismo (meios de comunicação de massa), na desinformação e na descaracterização das lutas e resistências dos trabalhadores, apresentando-os ora como “baderneiros”, ora como “preguiçosos”, ora como “marajás” ou “privilegiados”, tratando as lutas trabalhistas, que legitimamente opõem-se aos desmontes neoliberais de seus direitos, às privatizações, às precarizações de serviços e políticas públicas, como negativas para a população (ex.: greves dos transportistas, dos trabalhadores da saúde, da educação etc.). Neste processo, inteiramente ideológico, o linguajar ocupa um espaço fundamental: ocupações de terra improdutivas são tratadas como “invasões”; manifestações populares são informadas como “baderna”, como “caos” nas vias publicas; greves nos serviços públicos como “falta de atendimento à população pobre”.

c) Finalmente, e facilitado pelos mecanismos anteriores, a ofensiva neoliberal contra o trabalho completa-se com a desregulamentação do mercado

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de trabalho e precarização do emprego. Por um lado, com a enorme expulsão de força de trabalho do mercado de formal trabalho (produto da automação e das crises) amplia-se significativamente o excedente de força de trabalho, ou seja, muitos trabalhadores desempregados para poucos empregos; os efeitos disto são: tendência à queda salarial, perda de poder político dos trabalhadores (ver Marx, 1980: 730-743), atitude individualista e defensiva do trabalhador (ver Mota, 1995). Por outro lado, com a crescente subcontratação ou terceirização, o trabalhador se submete à precarização e esvaziamento dos direitos trabalhistas (desenvolvidos para o trabalhador contratado). Finalmente, com o pretexto de “flexibilizar” as relações de trabalho, mediante (contra-)reformas na legislação trabalhista, o neoliberalismo acomete contra os direitos do trabalhador.

Pois bem, se num contexto de expansão capitalista, porém tenso, conflitivo e ameaçador, o capital vê-se obrigado, justamente pelas pressões trabalhistas e lutas de classes, a incorporar demandas dos trabalhadores no interior do seu projeto hegemônico, o que ocorre então num contexto de crise e num clima de inibição dessas lutas, de perda de poder sindical, de falta de apoio popular às lutas de sindicatos, de descrença nos instrumentos de lutas por conta de derrotas sucessivas, de pulverização dos trabalhadores, de extinção dos regimes não-capitalistas (do chamado “socialismo real”), onde a alternativa a curto prazo parece ser, não o aumento salarial ou as melhores condições de trabalho, mas o desemprego ou a perda de direitos e a baixa salarial? A mesma crise que obriga o capital a se reestruturar e a diminuir custos de produção, coloca o trabalho numa atitude defensiva. Essa crise se põe como o campo mais fértil para o capital processar a desconstrução e reversão dos ganhos e conquistas trabalhistas e sociais desenvolvidas ao longo da história.

Assim, o combate ao trabalho é pressuposto para operar os demais “ajustes” com a menor resistência daqueles que poderiam enfrentar tal processo: os trabalhadores.

2 - 3 - A situação atual das lutas de classes2

Se o capital está em crise; seria isso bom para as lutas dos trabalhadores? Se o capital ingressou numa fase de crise, poderia se concluir que este encontrar-se-ia fragilizado, e que a classe trabalhadora então teria

melhores condições de desenvolver sua luta na defesa dos seus interesses? ... À crise capitalista impactaria na correlação de forças entre capital e trabalho, favorecendo esta última?

Uma análise superficial poderia nos levar a festejar a crise capitalista, como fundamento de fragilização do capital, e “empoderamento” da classe trabalhadora.Uma análise superficial... e equivocada. Se a crise golpeia o capital, ela impacta profundamente o trabalhador. O efeito da crise se reverte trágica e imediatamente em aumento do desemprego e da pauperização e miserabilidade a ele associadas, em acirramento da exploração capitalista - que visará retomar e/ou ampliar as formas de extração de mais-valia absoluta, como aumento da jornada de trabalho, da idade de aposentadoria, do trabalho escravo-por-dívida etc. - , na perda de direitos trabalhistas conquistados, na precarização de políticas e serviços sociais estatais, e até na perda ou esvaziamento de direitos políticos e civis. Paralelamente a classe trabalhadora, com os efeitos do aumento do desemprego (e do Exército Industrial de Reserva) passa a desenvolver uma atitude mais individualista e defensiva, até aceitando muitas perdas para garantir seu emprego, o que impacta nas lutas dos trabalhadores e nos seus efeitos sociais.

A crise capitalista, portanto, longe de beneficiar à sua classe antagônica, precariza, inibe e submete ainda mais o trabalhador e suas lutas, contribuindo até a criar as melhores condições para os ajustes e as (contra-)reformas estruturais necessários para os interesses do capital: o projeto neoliberal.

Vejamos alguns desses efeitos reconfigurando as lutas sociais.

1 - A reestruturação produtiva golpeia o trabalhador: os impactos nas condições de trabalho, direitos e salários

A reestruturação produtiva (a automação e a consequente substituição da força de trabalho, a subcontratação e a precarização do contrato de trabalho), as privatizações, as reformas da seguridade social, a redução de políticas sociais, todos esses processos derivados do novo projeto hegemônico do capital não ocorreram com ausência de conflitos, de oposição, com aceitação passiva das classes trabalhadoras.

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A questão não é a “ausência” de lutas de classes, derivada de uma suposta superação dos conflitos ou antagonismos entre capital e trabalho; o ponto a analisar é a diminuição do peso político dos trabalhadores no atual contexto e suas possibilidades de defender seus interesses e de enfrentar o novo projeto hegemônico do capital. Como aponta Cueva: “... na realidade esta aparência de passividade [dos trabalhadores] expressa o predomínio interno das forças mais reacionárias” e não a ausência de lutas de classes (1983: 167).

Com a crescente complexificação da produção, ocorre uma também maior complexificação das relações sociais, o que paralelamente leva a uma heterogeneização dos setores trabalhadores (ver Harvey, 1993: 143 e ss.; Antunes, 1995: 41 e ss. e 1999: 101 e ss.): operários industriais estáveis, servidores públicos, trabalhadores informais e por conta própria, trabalhadores subcontratados, de micro e pequenas empresas, profissionais liberais, diaristas, trabalhadores imigrantes, camelôs (ver Mattoso, 1995: 110; Morice in Malaguti et alii, 1998: 112 e ss.), numa diversidade cada vez maior.

Processo que emoldura a reestruturação produtiva, com impactos nefastos para o trabalhador, é a expulsão da força de trabalho promovida pela automação da produção, substituindo como nunca antes, trabalhadores por maquinaria (apropriada pelo capital). Paralelamente, opera-se a externalização do trabalhador, por via da terceirização, promovido fundamentalmente mediante Programas de Demissão Voluntárias (PDV). O resultado: tendência à queda salarial, à perda de direitos trabalhistas e piores condições de trabalho.

2 - A busca do grande capital por ampliar os lucros em contexto de crise, acirrando a exploração do trabalhador: a tendência à atitude “individual e defensiva” do trabalhador

Em função do anterior, e na tentativa de reestruturar as bases da hegemonia burguesa em contexto de crise econômico-política, o capital hegemônico tende a acirrar sua ofensiva contra os capitais mais fracos e contra o trabalho, o que termina por afetar as lutas de classes e seus impactos sociais. Cueva sustenta a tese de que “as crises do capitalismo, por si sós, não fazem mais do que produzir efeitos negativos nos pontos débeis do sistema” (1983: 167); para Mattoso, é o enfraquecimento (financeiro, político e institucional) do Estado que favorece “a aventura neoliberal de

desestruturação selvagem do início dos anos 90” (1995: 135); Mota afirma que, “em períodos de crise, há um acirramento da ação ofensiva do capital”, e, “o movimento dos trabalhadores tende a assumir posições defensivas em função da agressão que sofre com a ameaça do desemprego, das perdas salariais” (1995: 180).

Mota (1995) caracteriza isso como desenvolvimento de uma cultura da crise. É que, em contextos de crises - de superprodução e superacumulação, para o capital, e de desemprego e subconsumo, para o trabalho - , tanto a tendência à queda da taxa de lucro leva o capitalista a acirrar sua sede de exploração de mais-valia (donde objetiva a redução dos direitos trabalhistas e dos empecilhos à acumulação), quanto a ameaça que pesa sobre o trabalhador, de desemprego, de queda do seu padrão de vida (ver Mattoso, 1995: 77 e ss.), é de tal ordem que ele, individualmente, tende a se preocupar mais por manter, em algum nível, os direitos adquiridos (conquistados historicamente) do que por lutar por um projeto alternativo ou trabalhista, o que o fragiliza na luta/negociação com o capital.

Conforme Mota, “os trabalhadores que permanecem no mercado de trabalho tendem a defender, corporativamente, as conquistas obtidas” (1995: 136); assim, Brunhoff entende que os corporativismos, hoje, são, antes de tudo, uma das formas assumidas pela concorrência da crise entre operários, quando falta uma saída coletiva” (in Mota, ibidem). Assim, continua, “a partir de 1989 [no Brasil], há paulatinamente um deslocamento de natureza ideológica na ofensiva do capital e na posição dos trabalhadores que passam a privilegiar a conjuntura de crise econômica, em detrimento do embate em torno de projetos societais. Aí reside, objetivamente, o campo da formação da cultura da crise que, sob a direção da burguesia, pode desqualificar as demandas dos trabalhadores ...” (1995: 191). Para a autora, “esse deslocamento (...) redireciona o conteúdo das suas reivindicações para o campo das ideologias práticas, marcadas pelas suas necessidades imediatas. Nesse sentido, os trabalhadores terminam por reduzir as suas propostas ao campo da preservação das conquistas ou, tão somente, das possibilidades postas pela conjuntura da crise” (ibidem).

Verifica-se uma acentuada diminuição do número de greves. Como explicita Matos (2009: 28) tomando as greves como mobilizações da classe trabalhadora, os dados revelam significativo recuo: “das quase 4.000

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greves de 1989 (...) passamos a patamares médios de cerca de 700 greves anuais nos anos 1990”. Em 2004, o Dieese “encontrou perto de 300 greves em média nos anos seguintes (até 2007)”.

É de destacar que, “ao exercer os direitos sociais e políticos conquistados ao longo deste século, o proletariado submeteu-se às normas e procedimentos do Welfare State liberal-democrático, perdendo gradualmente a sua identidade socialista e/ou revolucionária dominante ao longo do século XIX” (Abreu, 1997: 66). Para o autor, “é no vazio deixado por esta crise de identidade que os interesses e valores identificados com a desregulação política das relações sociais vêm progredindo. É razoável supor que dificilmente haveria espaço para os valores neoliberais diante de uma identidade coletiva com força e legitimidade para forçar e implementar novos pactos sociais e políticos” (idem: 68).

3 - A crise na consciência de classe do trabalhador: a substituição pós-moderna da classe pela “identidade” e da exploração pela “exclusão”

Para os trabalhadores, além dos impactos objetivos da crise (desemprego, precarização do trabalho, dos salários e dos sistemas de proteção social), ocorreu uma outra também no plano ideológico: o “culto de um subjetivismo e de um ideário fragmentador que faz apologia ao individualismo exacerbado contra as formas de solidariedade e de atuação coletiva e social” (Antunes, 1999: 48).

Essa fragmentação opera refrações na prática organizativa das classes trabalhadoras e pode criar, especialmente em conjunturas de crise, as bases para a institucionalização de formas corporativas de organização e a exclusão de um grande número de trabalhadores da representação sindical. Por outro lado, a descrença nos macro-projetos (típico do pensamento pós-moderno, e da resignada descrença em mudanças estruturais, também produto da crise do “bloco soviético”) provoca expansão dos movimentos “culturalistas” e “poli-classistas” (ecológicos, gays, juvenis, comunitários etc.) que se organizam em torno de demandas e respostas, legítimas e necessárias, porém geralmente pontuais e imediatas, o que desperta maior adesão, aceitação e visibilidade num contexto de descredibilidade dos macro-projetos e que, por isso, não conseguem articular e co-organizar suas ações. Isso levou muitos autores (de Jürgen Habermas a Boaventura de Souza Santos) a acreditarem mais nas mudanças localizadas

e do “mundo da vida”, no “terceiro setor”, do que nas grandes transformações pela via das lutas de classes, tendo como referência as relações econômicas. Sem desconhecer a importância desses movimentos, o fato de retirar a sua dimensão econômica e de luta de classes leva a uma convivência tensa, mas compatível, entre eles e o sistema capitalista.

4 - Pulverização e heterogeneização do trabalho: a substituição das lutas de classes pelas “ações sociais” e “parceria” e a perda do poder de barganha do trabalhador

As formas diferenciadas do uso da força de trabalho, para além da dificuldade de desenvolver laços e consciência de classe, vêm se expressando na expulsão de milhares de trabalhadores das formas de representação de seus interesses, ou seja, estão fora das organizações sindicais. Com isto, há um decréscimo efetivo nas taxas de sindicalização produzido pelo desemprego e pela informalização, causando o processo conhecido por dessindicalização.

Nesta verdadeira dessindicalização e heterogeneização das classes trabalhadoras, os interesses dos trabalhadores aparecem cada vez mais diferenciados, por vezes até opostos, rompendo com a tendência à bipolarização das classes fundamentais que se podia vislumbrar no século XIX. O que ocorre é uma verdadeira “pulverização” e um ocultamento da maioria trabalhadora (ver Montaño, 1999: 44 e ss.).

Com tal (de)composição segmentada e pulverizada das classes trabalhadoras, o poder político das suas organizações cai significativamente: a) primeiramente, temos uma diminuição do espaço fabril que leva à redução do número de membros de cada sindicato;

b) em segundo lugar, a subcontratação, informalização do trabalho3 e a heterogeneização dos setores trabalhadores exclui amplos segmentos destes da organização sindical, fundamentalmente composta por trabalhadores assalariados4;

c) por outro lado, uma onda ideológica de ocultamento das lutas de classes e desprestígio do movimento operário tem, no contexto da empobrecida racionalidade pós-moderna, um campo fértil de

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expansão social; procura inculcar a ideia, sobre as lutas dos trabalhadores, de antiquada e antipopular (substituindo as “lutas de classes” e a “exploração”, por vagas noções de “ação social” e “exclusão social”); d) um quarto aspecto a considerar é a tendência à transformação no nível da organização sindical: com a inexistência de uma forte organização internacional, tal como no final do século XIX e inícios do século XX, propõe-se a passagem de sindicatos nacionais, para sindicatos por indústria (ou ramo industrial) procurando atingir (como ocorre no Japão) a organização sindical por empresa; o que ratifica e enfatiza a perda do poder de luta dos trabalhadores. Ocorre uma “ramificação” e setorialização das medidas de lutas; cada vez mais se pensa em greves (e, até, em negociação) por ramo e categoria, e até o acordo direto entre patrão e empregado, do que em greves gerais, diminuindo o impacto social da medida de luta.

Podemos identificar pelo menos três vertentes que tratam das lutas ou ações sociais para enfrentar o contexto de crise:

1 - primeiramente uma vertente de cunho neoliberal, caracterizada pela “terceira via”, que, a exemplo de Bresser Pereira (1998), promove a desestatização (ou desresponsabilização do Estado) da ação social, passando a ser desenvolvida pelas organizações do setor público-não-estatal, ou “terceiro setor” (o que é tratado como “publicização”);

2 - em segundo lugar, a vertente pós-moderna, que, tendo Boaventura de Souza Santos (1997) como destacado expoente, defende as ações locais, o empoderamento, a Economia Solidária, as ações focalizadas em pequenos grupos, também inseridos no chamado “terceiro setor”;

3 - finalmente, a vertente representada fundamentalmente pelo marxismo, que se orienta nas lutas anti-capitalistas, que a exemplo de Petras, Boron, Chomsky, dentre outros (ver, por ex. Boron, org., 2004; Amin e Houtart, orgs., 2003), entende que só a luta de classes, orientada à emancipação humana, pode enfrentar as seqüelas desta crise e resolver a desigualdade social. Isso significa tanto (no curto prazo) a garantia das conquistas já realizadas, nos direitos trabalhistas, políticos, sociais, e, para tanto, o papel do Estado nas suas responsabilidades constitucionais, como (a longo prazo) as mudanças na

correlação de forças para a superação da exploração e a sociedade dividida em classes.

5 - Com a diminuição do poder do trabalhador, o aumento do poder do grande capital

Como corolário, e reforçando a diminuição do poder dos trabalhadores, ocorre, com a centralização de capital, um processo paralelo de centralização de poder político, concentrado na fração de classe hegemônica, a burguesia monopolista, hoje particularmente ligada ao capital financeiro. Em outros termos, clara reversão dos avanços da cidadania e da democracia, que derivaram do “pacto keynesiano” (ou “populista”).

Com isto, o aumento do poder monopolista vai acompanhado de uma redução do poder do trabalhador: desorganização, desmobilização, segmentação, descrédito. Sendo falsa a afirmação da extinção das lutas de classes, não é errada a constatação de que elas têm-se redimensionado a partir de uma significativa retração dos seus impactos sociais e políticos.

Num exercício analítico, Trotsky afirma que:

Para Trotsky, isto é excessivamente abstrato e unilateral, na medida em que é impossível especular com a ausência das lutas de classes. Porém, não ignorando a real presença destas lutas, mesmo num contexto de tensão social interclasses, o fato é que no período pós-70 o poder político, o nível de organização e adesão das classes trabalhadoras tem diminuído significativamente; nestas condições, a afirmação de Trotsky resulta profética.

Nesse contexto das lutas de classes observa-se, desde o término dos acontecimentos de 1968, um refluxo dos trabalhadores, acumulando derrotas frente ao capital monopolista e aos governos nacionais que

“se admitirmos - e vamos fazê-lo por um momento - que a classe operária deixe de se levantar numa luta revolucionária, e permita que a burguesia dirija os destinos do mundo durante numerosos anos, (...) então certamente alguma espécie de novo equilíbrio será estabelecida. A Europa será violentamente lançada num retrocesso. Milhões de operários morrerão de desemprego e desnutrição. Os Estado Unidos serão compelidos a se reorientar no mercado mundial, a reconverter sua indústria e a sofrer restrições durante considerável período” (in Mandel, 1982: 153-4).

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começam a desonrar o “pacto keynesiano” e que vão perdendo autonomia relativa frente ao capital transnacional, levando a uma significativa retração do movimento trabalhista; alcançando até retrocessos de conquistas históricas, como direitos civis, políticos e sociais, legislação trabalhista, contratos coletivos, protecionismo estatal, negociação tripartite. Przeworski entende que esta é “a crise do capitalismo democrático” (in Netto, 1993: 70), caracterizando o neoliberalismo como “um projeto histórico próprio” da direita que procura “libertar a acumulação de todas as cadeias impostas pela democracia” (idem: 80). Assim, Netto aponta que “é precisamente o conteúdo político desta despolitização [das relações sociais no mercado] que permitiu ao neoliberalismo converter-se em concepção ideal do pensamento antidemocrático contemporâneo” (ibidem).

Como afirma Petras, “o declínio ou avanço dos direitos sociais variam com o nível e intensidade da luta de classe, as mudanças no poder político e o compromisso dos líderes em tomar ações decisivas. O retrocesso dos direitos trabalhistas e sociais não é o resultado de processos globais abstratos, mas o resultado de políticas de Estado, relações de classes e liderança política e social” (1999: 66). Para o autor, “onde o poder de classe do trabalhador permanece coeso, a retirada [dos direitos conquistados] é menos evidente” (idem: 54).

Assim, se na fase inicial do monopolismo, sob o regime de acumulação fordista/keynesiano, a racionalidade hegemônica do capital induziu os indivíduos a pensar que o capitalismo não precisava ser alterado/superado (pois ele tinha se “civilizado”, incorporando as demandas e interesses de todos os setores sociais, a partir de um “pacto social”), no atual contexto de crise e hegemonia neoliberal, induz-se o trabalhador a pensar que o capitalismo não pode ser alterado/superado (pois ele seria a única e última forma possível de desenvolvimento social, moderno e “globalizado”). Na primeira fase do monopolismo (no Regime de Acumulação Fordista-Keynesiano) a estratégia hegemônica do capital aponta à diminuição das resistências operárias mediante a incorporação sistemática de demandas trabalhistas, mostrando um sistema (e um Estado) supostamente capaz de gerar “bem-estar social” para todos. Na segunda (e atual) fase, de crise e financeirização do capital, a estratégia hegemônica aposta na desmobilização mediante a resignação frente a fenômenos

supostamente naturais, irreversíveis, inalteráveis. Aqui, só o “possível” parece ser o horizonte “razoável”.

Isto emoldura a situação das lutas de classes que permitem ao capital, não sem resistências, avançar mais facilmente no seu processo de ofensiva contra o trabalho, de reestruturação produtiva e (contra-)reforma do Estado, no interior do novo projeto hegemônico do capital (financeiro).

NOTAS

1 - Sobre isto ver: Netto e Braz. Economia Política (São Paulo, Cortez, 2006) e Montaño e Duriguetto (São Paulo, Cortez, 2010).

2 - Baseado em Montaño e Duriguetto. Estado, classe e Movimento Social. São Paulo, Cortez, 2010.

3 - Segundo pesquisa do IBGE, nas seis principais regiões metropolitanas do Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador e Recife), o trabalho informal (sem carteira assinada) cresceu 62% na década de 90 (em São Paulo este crescimento foi de 81%), atingindo 4,4 milhões de pessoas trabalhando sem carteira; a eles somam-se os 3,8 milhões que trabalham por conta própria (ver Soares, 2000: 67).

4 - Segundo registra Soares, na América Latina o percentual de trabalhadores sindicalizados está caindo em relação à população ocupada: na Argentina é de 42%, no Peru 7,8% e na Guatemala 2,9% (Soares, 2000: 57).

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No Brasil dos últimos tempos assistimos a taxas de crescimento da economia que giraram em torno de 1,0% a 7,5%, atingindo uma média de 4,06% no período de 2003 a 2010. Se levarmos em consideração a média histórica brasileira desde 1890 que é de 4,5% os números estão longe de figurarem como extraordinários. (Gonçalves, 2010). No entanto, para uma economia que amargou nas últimas décadas um insólito revesamento entre a inflação e a estagnação econômica, as atuais taxas de crescimento trouxeram consigo eufóricos discursos políticos e análises acadêmicas de grupos intelectuais otimistas sobre a retomada do crescimento econômico, a diminuição da pobreza, a geração de novos postos de trabalho, o surgimento de uma nova classe média consumidora e outros elementos que indicariam uma nova etapa de desenvolvimento econômico e social no Brasil.

Nessa conjuntura, vem obtendo sucesso entre diversos setores da sociedade um ideário que defende o surgimento de um suposto novo-desenvolvimentismo brasileiro que traria consigo uma nova etapa de crescimento e avanço para o país. Embora não componha um bloco intelectual coeso e seja integrado por uma inegável heterogeneidade de argumentos, os chamados “novos desenvolvimentistas” possuem uma questão em comum: sugerem que vivemos uma nova fase no modelo de desenvolvimento capitalista no Brasil. Para esse conjunto de ideólogos, superada a fase neoliberal, agora vivemos uma espécie de déjà vu dos esperançosos e conturbados anos da industrialização brasileira, na qual reatualiza-se o antigo mito desenvolvimentista segundo o qual os ganhos civilizatórios da modernização capitalista nos países centrais podem ser finalmente universalizados para os países periféricos. Dito de outra forma, o novo ideário desenvolvimentista pretende recuperar as promessas civilizatórias não alcançadas pelo processo histórico de modernização capitalista no Brasil e que

atualmente, segundo seus defensores, voltam a figurar como horizonte histórico nacional.

1 - O DESENVOLVIMENTISMO COMO EXPRESSÃO IDEOLÓGICA DO PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA

Em uma publicação de 1974, um dos mais proeminentes teóricos do subdesenvolvimento, o economista brasileiro Celso Furtado reconhece a construção e a importância histórica do que chama de “mito do desenvolvimento econômico” como ideologia “diretora” do processo de modernização brasileira. De acordo com o economista cepalino, o mito de que os países periféricos pudessem superar o subdesenvolvimento e atingir as mesmas condições de vida dos países desenvolvidos exerceu uma forte e inegável influência sobre a mente dos homens que se empenharam em pensar os rumos da economia e da política no Brasil. Para o autor a renovação contínua desse mito ao longo da história operou como um verdadeiro farol que iluminou o campo de percepção dos pesquisadores, planejadores, burocratas e governantes indicando o caminho que toda a sociedade brasileira deveria seguir para atingir seu objetivo final: estar entre o rol dos países plenamente desenvolvidos.

Como indica Furtado (1974), levando em consideração o ambiente de país periférico, com altos índices de desigualdade social, o mito do desenvolvimento tornou-se, ao longo da história, uma construção ideológica fundamental para que a classe dominante brasileira elaborasse sua ideologia específica e ao mesmo tempo socializasse com as demais classes e frações de classe as promessas de um futuro de crescimento econômico e de melhoria das condições sociais. Através da elaboração e socialização desse conjunto ideológico, foi possível à burguesia brasileira apresentar seu projeto particular de industrialização

Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ e pesquisador do Núcleo de Pesquisas sobre Política, Estado, Trabalho e Serviço Social - PETSS

Cézar Henrique Maranhão

A ideologia neodesenvolvimentista e as Políticas Sociais no Brasil: apontamentos sobre crise e hegemonia na periferia do capitalismo

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como um projeto de toda a sociedade brasileira, mobilizando amplos esforços e legitimando as ações e estratégias necessárias à condução do processo de industrialização.

Em diferentes fases do processo histórico de industrialização brasileira, a ideologia de superação do subdesenvolvimento, através das políticas desenvolvimentistas, cumpriu o papel de oferecer o horizonte ideológico que possibilitou à burguesia mobilizar as forças políticas necessárias para impulsionar a industrialização brasileira. É assim, que sob o amplo ideário desenvolvimentista, surgem uma heterogeneidade de grupos políticos, representados pelos mais diversos interesses, mas que de uma forma ou de outra adotavam os discursos e as promessas desenvolvimentistas de planejamento econômico, crescimento industrial, defesa da intervenção estatal, universalização do trabalho assalariado, como portadores inerentes da ultrapassagem do subdesenvolvimento e da melhoria nas condições de vida de toda a população brasileira.

Dessa forma, o conjunto heterogêneo de propostas desenvolvimentistas adquiriram força material na condução do processo de industrialização brasileira através de 3 características principais:

1) Em primeiro lugar, possibilitou a burguesia brasileira construir o cimento ideológico necessário para unir as mais diferentes frações da classe dominante nacional numa arena heterogênea de alternativas políticas que permitiu a construção de debates e concertações no interior da classe dominante sobre as alternativas possíveis para os caminhos da modernização brasileira.

2) Por outro lado, a ideologia desenvolvimentista e suas heterogêneas propostas (que aglutinavam nos quadros desenvolvimentistas sujeitos tão diversos como Celso Furtado e Roberto Campos) permitiu à classe dominante brasileira vislumbrar a possibilidade de construir um projeto hegemônico de direção política, que através de um “pacto social” (sob a direção político e ideológica das classes dominantes), conduziria a “modernização conservadora” e o processo de inserção brasileira no capitalismo monopolista avançado.

3) E uma terceira e não menos importante característica, a ideologia desenvolvimentista ao se colocar como único caminho para o processo de

modernização nacional tinha como objetivo principal escurecer, enevoar, colocar nas sombras a construção de uma alternativa socialista para o Brasil. O objetivo oculto era banir do cenário nacional os grupos políticos que reivindicavam uma saída socialista para a modernização brasileira.

De certa forma, nessa época de incertezas e intensas disputas, central para a definição dos rumos políticos do Brasil, o bloco político que compunha a classe dominante brasileira logrou alguns êxitos através da ideologia desenvolvimentista. O maior deles com certeza foi fazer com que parte da esquerda brasileira assumisse como sua uma tese que está no interior do discurso desenvolvimentista: a tese da incompletude do capitalismo brasileiro. Mas naquele período, em seu eixo fundamental, o bloco histórico formado pelas classes dominantes brasileiras não obteve êxito na construção de um consenso amplo e ativo em torno do projeto de modernização conservadora no Brasil. A heterogeneidade da ideologia desenvolvimentista apesar de ter possibilitado a mobilização das mais diferentes forças políticas em torno do esforço de modernização não conseguiu construir um consenso social duradouro em torno dos interesses particulares da burguesia.

Em meados da década de 1960, as contradições do processo de modernização capitalista periférico, somadas a correlação de forças entre as classes sociais, acabaram possibilitando o surgimento de fissuras no consenso burguês. Aos poucos ganharam espaço forças políticas contestatórias que advindas dos setores populares, progressistas e da classe trabalhadora propunham políticas que ultrapassavam os estreitos limites da aliança conservadora burguesa ameaçando o controle ideopolítico das classes dominantes sobre o processo de modernização capitalista. Foi assim que em 1964, a burguesia brasileira, sentindo que a sua direção política do processo de modernização estava ameaçada pela possibilidade de surgimento de um projeto popular-socialista no Brasil, rompeu com o estatuto democrático abrindo mão da tentativa de construção de uma consolidação consensual do capitalismo monopolista no Brasil e desfraldando um golpe de Estado que desnudou toda a sua cultura política contra-revolucionária. Em nome da continuidade do processo de “modernização conservadora”, a burguesia brasileira abandonava qualquer possibilidade de construção ideológica de um consenso em torno de sua hegemonia para novamente adotar uma transição política baseada em soluções predominantemente coercitivas.

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2 - DESTRUTIVIDADE DO CAPITAL, CRISE ESTRUTURAL E RENOVAÇÃO DA IDEOLOGIA BURGUESA

Em 1972, Francisco de Oliveira ao escrever A crítica a razão dualista, um clássico da crítica ao binômio desenvolvimento/subdesenvolvimento, conclui que a ideologia desenvolvimentista a partir da teoria do subdesenvolvimento, elaborada pela CEPAL, analisou toda a questão do desenvolvimento capitalista periférico sob o ângulo dualista contrapondo o Brasil “arcaico” (da desigualdade, da miséria e do subemprego) ao Brasil Moderno (do crescimento econômico, do consumo de luxo e da modernização do mercado). Com seus estereótipos de “desenvolvimento auto-sustentado”, “internalização do centro de decisões”, “integração nacional”, “planejamento”, etc, a teoria do subdesenvolvimento sentou as bases da ideologia desenvolvimentista que, no período de transformação da economia de base agrária para a industrial-urbana, desviou a atenção teórica e a ação política do problema da luta de classes. Ao final da sua conclusão o autor arremata:

A entrada do Brasil no cenário da “redemocratização”, o acirramento das contradições econômicas próprias da fase de crise estrutural do capital e a nova correlação de forças entre as classes e frações de classes nas décadas de 1980 e 1990, reservavam um novo lugar para a ideologia desenvolvimentista na condução ideológica do capitalismo periférico brasileiro. Num primeiro momento, nas décadas de 1980 e 1990, período em que o potencial expansivo de acumulação já oferecia sérios sinais de desgaste e a crise estrutural do capital (Mészaros, 2002) já ameaçava as economias capitalistas, as transformações que se processaram no sistema capitalista mundial e o surgimento do neoliberalismo como direção ideopolitica do processo de restauração do capital em crise fizeram com que as promessas da ideologia desenvolvimentista gradativamente passassem a entrar em contradição com os interesses do projeto burguês. Nesse momento histórico de intensificação da mundialização capitalista, o objetivo da política neoliberal era se apresentar como uma alternativa ideológica viável

ao esgotamento do antigo modelo de substituição de importações e da ideologia desenvolvimentista. O grande compromisso dos neoliberais era restituir um novo cenário de crescimento no continente latino-americano, prometendo acabar com a crise da dívida externa e a alta inflação, através da liberalização econômica e política de privatizações. Foi assim que as promessas desenvolvimentistas de superação do subdesenvolvimento passaram a ser continuamente negadas e substituídas pelo novo consenso político neoliberal, liderado pela oligarquia financeira internacional e organizados em torno do Consenso de Washington.

A essência econômica do processo político denominado de neoliberalismo, que nas últimas décadas intensificou o poder expropriador do capital, está relacionada ao complexo processo de mundialização capitalista que possibilitou a gradativa retomada, sob novas bases, do domínio econômico e político da fração mais reificada do metabolismo capitalista. Tal fração do capital, nomeada por Hilferding (1985) e Lênin (1982) de capital financeiro, com o atual acirramento da crise estrutural do capital e o processo de mundialização capitalista, adquire novas determinações e complexidades oferecendo um patamar ainda mais intenso à lógica destrutiva do capital.

Com a crise e as quedas acentuadas nas taxas de lucro, o capital foi obrigado a desenvolver grandes transformações na sua dinâmica de reprodução ampliada. Diante do futuro crítico, gradualmente emergem soluções que pretendem desregulamentar a economia de mercado, visando impulsionar a liberdade dos investimentos financeiros capitalistas. Ao longo dos anos 1980, a antiga política estatal keynesiana de “eutanásia do rentista”, cede lugar a um conjunto de políticas do Estado que têm como finalidade a reanimação dos investimentos capitalistas e um agressivo pacote de incentivos para a expansão do mercado privado.

Podemos destacar três principais processos históricos que se desenvolveram de forma concomitante e complementar ao longo dos mecanismos que possibilitaram a mundialização do capital:

a) a internacionalização do capital financeiro;

b) a nova gestão da produção capitalista e a intensificação da extração de mais-valia;

A teoria do subdesenvolvimento foi, assim, a ideologia própria do chamado período populista; se ela hoje não cumpre esse papel é porque a hegemonia de uma classe se afirmou de tal modo que a face já não precisa de máscaras. (Oliveira, 1975, pg. 13)

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c) o avanço de novas formas de expropriação capitalista.

O primeiro desses processos históricos se dá a partir dos anos 1980, quando as diversas frações da burguesia internacional promovem uma grande conciliação em torno do projeto de expansão da acumulação financeira, que estabelece a internacionalização e a desregulamentação dos mercados. A partir da hegemonia política neoliberal, a força restauradora do capital para liberalizar e mundializar os mercados capitalistas no mundo se espraia com grande ímpeto e velocidade. Talvez a grande conquista neoliberal tenha sido fazer com que as políticas liberalizantes fossem desenvolvidas não só pela vitória eleitoral dos partidos conservadores, mas também através de governos de esquerda que, ao tentarem manter a política de reformas social-democratas, acabaram cedendo ao poder corrosivo e incontrolável do capital internacional1.

A fase capitalista decorrente da liberalização financeira e da internacionalização dos mercados é uma etapa que cada vez mais produz de forma ágil e rápida, de um lado, mundializando e externalizando as etapas do processo produtivo e, de outro, intensificando os métodos de extração da mais-valia. Como já apontavam Marx (1985-86), Hilferding (1985) e Lenin (1982), o sistema capitalista funciona como “uma economia monetária de produção”, e é sobre essas condições que a produção capitalista passará a exigir uma reorganização da produção capitalista em nível mundial.

Os processos de fusão e incorporação de empresas, desenvolvidos desde a fase monopolista do capitalismo, apesar de tentarem realizar uma unidade entre as diversas formas de capital2, sempre foram acompanhados por uma inconveniente porosidade entre os processos de criação do valor (capital produtivo) e as formas lucrativas de apropriação desse valor já criado (capital-dinheiro). Os diversos momentos do circuito de valorização do capital são quase autonomizados como ramos particulares de produção de mercadorias: o comércio, a indústria, os serviços e os bancos. Com o atual movimento de mundialização dos mercados e reestruturação dos capitais, assistimos a uma busca incessante por um maior controle do processo de valorização e pelo aumento da taxa de lucros dos grandes grupos oligopolistas, através de estratégias renovadas de monopolização dos mercados e reestruturação de ramos inteiros do ciclo de valorização capitalista.

A fusão de vários grupos financeiros e o investimento massivo em ciência e pesquisa possibilitaram a incorporação de maquinários ultramodernos e de tecnologias informacionais no interior dos processos manufatureiros que resultaram num controle e monitoramento ainda maior do processo de trabalho e de todo circuito reprodutivo do capital. Para continuamente deslocar a tendência decrescente dos lucros intensificada pela crise estrutural e, assim, manter os altos níveis de lucratividade, o capitalismo atual deve intensificar constantemente suas formas de produção de mercadorias. Na fase atual do capitalismo o contínuo revolucionamento da produção não se faz acompanhar por uma expansão horizontal dos mercados. Isso não poderia ser diferente num capitalismo que já se transformou em uma grande comunidade internacional produtora de mercadorias.

O que tem ocorrido nos últimos tempos é que o complexo sistema de reprodução ampliada do capital assimilou uma estratégia renovada de expropriações, desenvolvendo-a em escala mundial, não só apropriando-se das áreas geográficas inexploradas, como também expropriando esferas que antes escapavam à dinâmica de acumulação capitalista. O poder expropriador do capital, impulsionado pela avidez de superlucros do capital, manifesta-se atualmente por meio de algumas características facilmente identificadas:

i) uma nova partilha das áreas geograficamente estratégicas e das terras coletivas e públicas no mundo,

ii) a intensificação da extração de mais-valia no mundo,

iii) a mudança nos regimes de manufatura e organização do trabalho,

iv) a criação de uma superoferta de força de trabalho, garantida por uma multidão de trabalhadores que compõe um exército industrial de reserva mundial; e, por fim,

v) a forma de expropriação que é a captura do fundo público dos diversos Estados nacionais e de suas instâncias “democráticas” de controle social.

Nessas condições, entramos numa quadra histórica em que o capital se vê enredado pela sua própria dinâmica contraditória: para impulsionar o crescimento econômico e o avanço civilizatório as soluções e

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ajustes econômicos capitalistas devem paralelamente intensificar seus métodos bárbaros de intensificação da exploração e expansão das expropriações. Segundo Meszaros (2002), a diferença é que no passado tais contradições críticas puderam ser exportadas para setores periféricos da economia e até mesmo para outros países e continentes, mas, atualmente, ela atinge todas as esferas de produção e reprodução do sistema capitalista. Com a crise estrutural, os ajustes anteriormente mobilizados pelos Estados nacionais para os deslocamentos dos efeitos das crises já não apresentam a mesma eficiência. As antigas técnicas keynesianas ou desenvolvimentistas realizadas no passado para retomar o impulso do crescimento e ampliar os ganhos econômicos, em grande parte perderam seu potencial civilizatório. A estrutura e a dinâmica do capitalismo contemporâneo pôs por terra as esperanças de equalização entre crescimento capitalista e ampliação de ganhos civilizatórios significativos.

Tal impulso destruidor do capital que intensifica o antagonismo entre desenvolvimento da acumulação e avanço civilizatório gerou também nefastas consequências cotidianas para a condição de vida e trabalho da população. Em várias partes do planeta, podemos visualizar o saldo da política de liberalização dos mercados que intensificou as contradições típicas da sociedade capitalista3.

Todas as políticas sugeridas pelo Consenso de Washington e executadas pelos governos dos diversos países, principalmente na periferia do sistema, longe de cumprirem suas promessas de expansão dos mercados livres e de desenvolvimento com estabilidade resultaram no aumento das desigualdades em todos os níveis: econômico, político, social e cultural. Não é a toa que as consequências das políticas neoliberais somadas às crises econômicas, cada vez mais frequentes e turbulentas, passam a abrir espaço para o surgimento de lutas de resistência ao neoliberalismo na América Latina.

Os países latino-americanos, nos primeiros anos do século XXI, testemunharam um aprofundamento da luta de classes, das crises políticas de fundo e uma intensa contraposição à intervenção política imperialista nos rumos do continente. Todas as mobilizações e crises políticas latino-americanas formavam um novo quadro político radicalizado. Agora a onda de mobilizações populares não enfrentava ditaduras militares como no passado, mas

os regimes neoliberais “democráticos” desenhados pelos EUA e as burguesias locais.

Logo depois, através de situações diversas, uma parte da esquerda latino-americana chegou ao governo de seus países, diretamente ou em coalizões, impulsionada pela crise política e a bancarrota econômica no continente. As burguesias locais e o capital internacional tiveram que aceitar a virada política que se processava na América Latina, uma verdadeira “virada à esquerda” que remodelou a conjuntura política do continente. (Coggiolla, 2008). Na presença deste quadro de avanço da barbárie social e de resistências políticas aos investimentos das megacorporações, inicia-se um lento processo em que organizações multilaterais como o FMI e o Banco Mundial começam a admitir que a ortodoxia do Consenso de Washington, baseada no louvor aos mercados livres, não vinha oferecendo respostas políticas adequadas para garantir a administração dos conflitos e a boa governança dos mercados emergentes. Até mesmo ideólogos do grande capital, como o ex-presidente do Banco Mundial Joseph Stiglitz (2002), passam a discordar sobre a forma como vinha sendo conduzido o consenso político em torno das propostas capitalistas de globalização econômica.

Na verdade, podemos afirmar que alguns ideólogos capitalistas passaram a perceber que a ortodoxia neoliberal, ao defender tão arraigadamente os valores do livre mercado e da governança coorporativa, subestimou os elementos de consenso político e ideológico que devem acompanhar todo processo de mudanças sociais. Como afirma Mota (1995, p. 84): “Esse fracasso, contraditoriamente, incide sobre a ortodoxia liberal e aponta para a impossibilidade de tratar a economia longe da política, isto é, de implementar as reformas econômicas sem a obtenção de consensos de classe.” (MOTA, 1995, p. 84). Nessas condições, a crise do capital se transforma em uma crise de dominação e as classes dominantes precisam encontrar maneiras de restabelecerem sua direção política e dominação ideológica sobre o conjunto da sociedade4.

Hoje, diante do quadro crítico de deslegitimação do projeto neoliberal, o capital necessita, cada vez mais, de respostas que não só garantam o crescimento exponencial das taxas de lucro (como pregava o receituário neoliberal), mas também amenizem a condição dos derrotados e estabeleçam um consenso mínimo em torno das transformações capitalistas.

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3 - A IDEOLOGIA DO NOVO DESENVOLVIMENTISMO: EXPRESSÃO IDEOLÓGICA DA CRISE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

É de posse dessas contradições sociais intensificadas pela dinâmica de acumulação capitalista atual que a intelectualidade da classe dominante enfrentará uma quadra histórica de deslegitimação do discurso neoliberal e se empenhará na reconstrução política e ideológica de sua dominação de classe. No Brasil, esse processo começa com os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), mas se desenvolve plenamente com a eleição de Luís Inácio da Silva para a presidência da república. Nessa conjuntura se abrirá uma oportunidade histórica para a ampliação do leque de alianças políticas em torno do projeto burguês. As novas diretrizes de “desenvolvimento social e humano”, já defendidas pelos organismos internacionais e agências multilaterais encontrarão sob a gestão presidencial do antigo líder sindical o ambiente econômico e os elementos políticos e ideológicos necessários para continuidade da sua agenda política5.

Em 2002, Luís Inácio Lula da Silva é eleito através de uma heterogênea aliança política que aglutinou importantes setores do sindicalismo nacional, intelectuais, funcionários públicos, movimentos populares, frações da classe média e também setores da burguesia brasileira. O governo Lula sustentava grandes expectativas em parte da esquerda e dos setores progressistas brasileiros. Porém, ainda na ante-sala do poder, com o documento conhecido pelo nome de “carta aos brasileiros”, o governo petista já acenava com a continuidade da política econômica de FHC e depois da posse presidencial ratificou a conciliação com o projeto hegemônico da grande burguesia local e internacional. Aos olhos das megacorporações, optou em desempenhar o papel da esquerda “sensata”, “moderna e aberta” - seguindo a recomendação do mexicano Jorge Castañeda6 - pronta a manter e ampliar os velhos compromissos econômicos de subordinação ao grande capital.

Através dessa conformação de interesses, ao assumir o poder o governo Lula manteve a mesma política econômica do segundo governo FHC: metas de inflação, ajuste fiscal permanente, câmbio flutuante, etc. Assim, o governo Lula reafirmou a política econômica e apoiado no melhor desempenho conjuntural do setor externo e no apoio político de uma ampla base sindical e popular deu novo fôlego

ao “modelo liberal periférico” (ancorado no estímulo à economia exportadora de commodities e atrelada aos desígnios do capital financeiro internacional) legitimando-o politicamente e amalgamando com maior intensidade os interesses do bloco de poder dominante. (Filgueiras; Gonçalves, 2003)

Foram tais determinações econômicas e políticas que possibilitaram ao governo Lula transformar ideologicamente a recuperação da economia em um ”espetáculo do crescimento”, reposicionando o Brasil na vitrine do mercado internacional das chamadas “nações emergentes”. Claro que o crescimento econômico e a melhoria na condição de vida e trabalho dos brasileiros ficou longe de sustentar um momento espetacular, mas deu provas de que seria possível conjugar a continuidade do modelo capitalista periférico com um renovado conjunto de promessas que supostamente trariam um futuro de crescimento econômico e desenvolvimento social para o Brasil.

É a partir desse momento histórico que começa a emergir no cenário brasileiro um ambiente de euforia com o crescimento de setores econômicos ligados à exportação, ao mercado imobiliário e ao crédito bancário. No bojo dessa conjuntura, permeada pelo otimismo nos rumos do país, passa a figurar no Brasil um esforço coletivo das classes dominantes e do Estado para renovarem as promessas de desenvolvimento econômico e social, reatualizando o discurso desenvolvimentista, com o claro objetivo de recauchutar consensos políticos em nome da continuidade da ordem capitalista na periferia do mundo.

Ironicamente, um dos primeiros a participar desse esforço ideológico para readequar as propostas de desenvolvimento econômico e social é o ex-ministro de FHC, e antigo ideólogo da reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira. Depois de reconhecer o desgaste público das políticas neoliberais e se declarar convertido ao ideário político que cunhou com o nome de “neodesenvolvimentista”. Caso permanecesse confinado a alguns poucos intelectuais dispersos o discurso neodesenvolvimentista passaria despercebido. No entanto, de uns tempos pra cá, tal discurso encontrou solo fértil para seu espraiamento na sociedade brasileira. Nos últimos tempos, um conjunto cada vez maior de intelectuais, das mais variadas estirpes políticas, vêm utilizando o conceito de neodesenvolvimentismo para explicar o que chamam de ruptura com a fase neoliberal e a entrada

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do Brasil num novo período “pós-neoliberal” de crescimento econômico e desenvolvimento social. Diante dos claros sinais de desgaste das políticas neoliberais a partir de fins da década de 1990, e com mais vigor nos anos 2000, o chamado “novo desenvolvimentismo” parece assumir a posição de “discurso da moda” nos círculos intelectuais e acadêmicos. O conjunto de intelectuais que passa a assumir o pacote ideológico neodesenvolvimentista gradativamente cresce em quantidade, e com a ajuda de alguns grupos empresariais, fundações privadas e organismos estatais, o tema acaba ganhando destaque em âmbito nacional. Várias correntes começam a surgir no interior do debate; umas mais à esquerda, outras mais à direita. No entanto, a gradativa expansão das mais variadas tendências não implica dizer que houve uma ruptura com o núcleo central das políticas neoliberais ou que estas últimas tenham sido superadas por um novíssimo período histórico. Muito pelo contrário, mesmo no interior de um bloco tão heterogêneo torna-se claro que a maioria das propostas são hegemonizadas por pressupostos do social-liberalismo que, por sua vez, pretende oferecer uma união sincrética entre políticas econômicas incentivadoras dos mecanismos de liberalização do mercado e políticas de proteção social compensatórias e de alívio da condição de miséria. (Castelo, 2012).

Com tais princípios básicos, os arautos do social-liberalismo promovem uma verdadeira reciclagem das ideias liberais acrescentando algumas concessões mínimas aos “de baixo” e garantindo uma sobrevida política e ideológica aos antigos pressupostos econômicos do neoliberalismo. Impossibilitados tanto de recorrerem as antigas soluções golpistas ou bonapartistas (típicas na história da periferia capitalista), quanto também de optarem pelas alternativas social-democratas (bloqueadas pela crise estrutural) para dar continuidade a seu projeto econômico e político os intelectuais da classe dominante, precisam travestir suas intenções com o discurso conciliador do desenvolvimento econômico e social para todos.

A ideologia neodesenvolvimentista responde a necessidades concretas, ela nasce na conjunção de dois movimentos simultâneos: por um lado, enquanto uma expressão ideológica ancorada nas condições reais de países periféricos desgastados pela crise do capital e pelos ajustes neoliberais das últimas décadas e de, outra, enquanto estratégia do atual bloco de poder dominante para transformá-la em uma ideologia que ao

distorcer a real origem dos problemas que enfrentamos direcionará as escolhas políticas pelo estreito caminho do projeto econômico capitalista. Enquanto ideologia, a reatualização das promessas desenvolvimentistas, se transformam em uma força material no sentido de ofuscar os demais projetos societários e direcionar as escolhas dos diversos indivíduos, grupos e classes sociais preocupados em superar a atual crise política, social e econômica gerada pela crise estrutural do capital, fazendo com que tais escolhas permaneçam dentro do escopo de interesses do grande capital.

Torna-se claro que a ideologia do neodesenvolvimentismo no Brasil tenta recuperar, sob novas bases, o velho ideário desenvolvimentista dos primórdios da industrialização tardia. Mas mesmo recorrendo a nomenclatura do passado, as novas promessas desenvolvimentistas permanecem igualmente muito distantes de propostas progressistas que ofereçam ganhos civilizatórios relativos aos trabalhadores brasileiros ou, até mesmo, de políticas econômicas que tentem romper com a histórica dependência externa nacional.

Mas para que o discurso do crescimento econômico associado ao desenvolvimento social ganhe corações e mentes não basta apenas travestir a política econômica com um discurso modernizador, de estímulo a produção, ao crédito e a criação de postos de trabalho, torna-se necessário também a construção de políticas estatais de concessões, que amenizem a situação de miséria e pauperismo que afetam a população trabalhadora. Nessa conjuntura é que as políticas sociais brasileiras são cada vez mais baseadas em ações seletivas que estimulam o desenvolvimento das capacidades individuais dos pobres, para que estes acessem o mercado como alternativa ao quadro de desigualdade social atual.

4 - O NEODESENVOLVIMENTISMO E A CONTINUIDADE DO MODELO PERIFÉRICO DE PROTEÇÃO SOCIAL

Tendo em vista manter a atração de capitais para a compra de títulos da dívida pública brasileira e aprofundar a dinâmica de endividamento estatal pago com os recursos dos contribuintes, nas últimas décadas os governos federais empreenderam uma série de ajustes que desfiguraram a política de seguridade social brasileira, prevista na Constituição Federal de 1988. Como apontou Ana Elizabete Mota (1995), desde meados da década de 1990 a estratégia neoliberal baseou-se em um duplo movimento de

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ações que remodelou o padrão de proteção social brasileira. Por um lado, diminuindo os gastos estatais e abrindo novos espaços de investimentos privados para o grande capital especulativo nas áreas de previdência e saúde. E, por outro, com vistas a aliviar a condição dos derrotados (a população pobre, a que mais sofre com a política de endividamento estatal), o Estado brasileiro lançou mão de uma nova política de proteção social, baseada na seletividade e que ampliou os programas de transferência de renda no Brasil.

O ataque neoliberal ao padrão de seguridade social, previsto na Constituição de 1988, começou pelo coração do sistema: seu financiamento. De acordo com Maria Lucia Werneck Vianna (2000), a Constituição de 1988 não só integrou a previdência ao conceito mais amplo de seguridade social, como também estabeleceu um conjunto de receitas capaz de torná-la superavitária durante todos os anos desde então. A legislação que regulamentou os preceitos constitucionais, porém, tanto quanto sucessivas reformas e leis ordinárias posteriores, centradas ou não em matéria previdenciária, derrogou o princípio da integração inerente a um sistema de seguridade social.

Ainda segundo a autora, com as sucessivas reformas neoliberais, do ponto de vista do financiamento, a seguridade social brasileira deixou de existir formalmente, pois embora a Constituição tenha expandido as fontes de receitas do sistema, a legislação, desde o início dos anos 1990, restringiu as funções de arrecadação do INSS às receitas incidentes sobre folha de salários, setorializando as demais e, ao mesmo tempo, centralizando-as num órgão externo à seguridade, o Tesouro. Esta condição foi somada à criação de mecanismos de desvinculação orçamentária7 que possibilitaram a realocação de recursos da seguridade social (agora nomeados como recursos do tesouro), que foram desviados sobretudo para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Este conjunto de ações resultou assim no atual desmantelamento do orçamento da seguridade social no Brasil.

Em paralelo a esse processo de desvio dos recursos da seguridade social, outras medidas governamentais trataram de abrir espaços para a entrada de investimentos privados em setores importantes da seguridade social, como atestam as medidas levadas a cabo pelas reformas previdenciárias de 1998 e 2003, que abriram caminho ao avanço da previdência

privada complementar, além da aprovação da Lei nº 1.992/2007, que instituiu o regime de previdência complementar para os servidores públicos federais. A Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal - FUNPRESP, nos próximos anos, será o maior fundo de pensão da América Latina, disponibilizando uma fonte quase inesgotável de recursos públicos a serem investidos na ciranda financeira atual.

No âmbito da saúde, além da política de contenção de gastos, as recentes medidas do governo federal, longe de apontar para o aumento no investimento em saúde pública, estão desenvolvendo estratégias para a liberação da gestão privada dos recursos estatais destinados à área. É o que indicam as atuais medidas orquestradas ao final do governo Lula, com a tentativa de aprovação da Medida Provisória nº 520, rejeitada pelo Congresso Nacional, e no atual governo Dilma Rousseff, com a aprovação da Lei nº 12.550/2011, essa última autorizando o poder executivo a criar a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A. - EBSERH. Tal empresa pública passa a ter personalidade jurídica, direito privado e patrimônio próprio para administrar os hospitais universitários de todo o país.

Nesse sentido é que o grande capital busca lotear as políticas de saúde e previdência, tendo em vista a abertura de novas áreas de investimento privado para os ativos financeiros ociosos. No entanto, concomitantemente a esse processo - de abertura de novos espaços de investimento privado em detrimento da consolidação de uma seguridade social pública e universal - são construídas alternativas políticas que visam erigir um novo padrão de proteção social, compatível com a dinâmica de expropriação dos recursos públicos pelo capital financeiro.

Os eixos dessa nova concepção de proteção social que passam a compor o pacote de sugestões (não mais prescrições) dos organismos internacionais, dirigido à América Latina - especialmente àqueles países que, como o Brasil, não cumpriram o pacote de ajustes estruturais recomendados - , são: 1) reformas previdenciárias mais flexíveis, com vistas a introduzir esquemas de capitalização para setores específicos (funcionários públicos, por exemplo); 2) benefícios não contributivos para populações vulneráveis (idosos, deficientes e extremamente pobres);

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3) direitos universais (poucos, para que ocultem a seletividade crescente dos serviços); e 4) programas de transferências de renda condicionados à aquisição, pelos pobres, de capital humano (educação e saúde básicas).

Nessa conjuntura é que, nas últimas décadas, assistimos à ampliação das políticas de assistência social em detrimento da mercantilização das outras áreas que compõem a seguridade social no Brasil. As políticas sociais brasileiras transitaram paulatinamente de ações que previam a construção de instrumentos que permitissem o acesso universal a serviços públicos para ações seletivas que estimulam o desenvolvimento das capacidades individuais dos pobres, para que estes acessem o mercado como alternativa ao quadro de desigualdade social atual. Para essa política de proteção social, o debate de como combater a desigualdade social não passa mais pela taxação dos ricos, especialmente do capital rentista parasitário (como propunham as políticas keynesianas). O que está em jogo atualmente é a capacidade de a classe dominante liderar politicamente o processo de construção de uma nova concepção de desenvolvimento social e econômico que preserve a hegemonia da fração rentista do capital e traga consigo um novo padrão de proteção social, com a profusão de políticas de transferência monetária aliada ao estímulo à capacidade individual dos pobres como principal estratégia de combate à pobreza.

Dessa forma é que a continuidade de um padrão de política social que mercatiliza áreas importantes da seguridade social vem sendo legitimado com o incentivo estatal à proliferação de programas sociais de transferência monetária, como o Bolsa Família. Segundo Marcelo Sitcovsky (2010), a quantidade de famílias atendidas, em 2009 - mais de 12 milhões de famílias - , se comparada ao total de famílias brasileiras - mais de 60 milhões - , revela que a abrangência do Bolsa Família corresponde a 17% das famílias brasileiras.

Além da ampliação dos programas de transferência monetária, a política de combate à pobreza do governo Dilma Rousseff tem apostado também em novas modalidades de “inclusão social”, que visam estimular o espírito empreendedor ofertando linhas de crédito bancário destinadas aos beneficiários dos programas sociais. Um exemplo dessa política é o Programa de Inclusão Bancária da Caixa Econômica Federal,

que tem como objetivo principal a abertura automática de uma conta bancária destinada aos beneficiários do Programa Bolsa Família e a oferta de crédito bancário fácil para pessoas físicas com renda de até R$ 1.000,00 ao mês. Dessa maneira, além de desenvolver políticas sociais compatíveis com a atual política econômica de favorecimento ao capital rentista, o atual padrão de proteção social brasileiro, ao incluir os beneficiários dos programas sociais no sistema de crédito bancário, está operando uma transformação na condição social dos usuários dos programas sociais. De beneficiários das políticas de transferência de renda, eles estão sendo transformados em potenciais devedores dos bancos. A política social, de um direito social baseado na oferta de serviços públicos, passa a operar como uma mediação entre as necessidades da população pobre e as demandas do sistema de crédito bancário nacional8.

Cabe aqui um esclarecimento importante. Apesar de reconhecer o impacto positivo dos programas de transferência monetária na melhoria imediata da situação miserável de muitas famílias brasileiras, o que estamos ressaltando aqui é a funcionalidade de tal padrão de proteção social para a reprodução de uma política econômica que vem favorecendo o aumento da concentração de renda, da expropriação financeira dos recursos do fundo público brasileiro, e que se coloca em nítida contraposição à construção de uma seguridade social pública e universal no país.

Essa realidade mostra que o grau de aprofundamento da crise civilizatória do capital é tal que as classes dominantes brasileiras são obrigadas a lançar mão de “velhas” recordações mitológicas da sua história passada para atualizarem suas “novas” promessas de futuro. Dessa forma, a função social da ideologia neodesenvolvimentista é por um lado garantir a direção política da classe dominante nos processos sociais em movimento, ao mesmo tempo que mistifica o real conteúdo de suas escolhas atuais tentando inviabilizar o surgimento de qualquer projeto antagônico ao capital. Mas até que ponto o discurso neodesenvolvimentista encontrará um terreno fértil para sua ampliação em um quadro cada vez mais intenso de crise e intensificação da exploração? As recentes mobilizações presentes nas “Jornadas de Junho” no Brasil já mostraram a debilidade das “novas” promessas burguesas colocando em cheque a continuidade da frágil hegemonia construída nos últimos tempos. O que importa destacar é que as determinações postas pela crise do capital ao colocarem desafios históricos

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prementes para a sociedade brasileira reivindicam uma alternativa societária realmente nova, mas tal caminho histórico, rigorosamente novo, só poderá ser construído mediante a organização e luta dos próprios trabalhadores.

NOTAS

1 - Este foi o caso de Mitterrand na França, de Bettino Craxi na Itália, de Andrés Papandreou na Grécia e de Felipe González na Espanha. Com isso, no início da década de 1990, em praticamente todos os países centrais as políticas públicas de intervenção estatal são utilizadas para patrocinar a abertura de novos mercados de investimentos financeiros e a maior extração de mais-valia para o incremento dos “superlucros capitalistas”.

2 - Lembramos que na fase imperialista a interpenetração do capital bancário e do capital industrial é uma das tentativas de criar uma unidade que controle todo o processo de valorização capitalista.

3 - Ao reunir e analisar alguns dados das organizações internacionais, o sociólogo argentino Atílio Boron (2010) nos dá uma ideia da situação de vulnerabilidade e miséria que atinge uma parcela considerável da população mundial. “Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação no produto interno bruto mundial (PIB mundial) de 1,16% para 0,92%; enquanto os opulentos 10% mais ricos acrescentaram fortunas em seus bens pessoais passando a dispor de 64% para 71,1% da riqueza mundial.” (BORON, 2010, p. 2, tradução nossa)

4 - No Brasil, um exemplo cotidiano e aparente dessa deslegitimação das saídas liberais para a crise pode ser percebida no próprio nome das legendas dos partidos políticos brasileiros. Nenhum dos partidos políticos regulamentados atualmente em território nacional possui mais o título de “liberal”; os únicos que possuíam tal nomenclatura, o Partido Liberal – PL e o Partido da Frente Liberal – PFL, mudaram seus nomes respectivamente para Partido Republicano – PR (em 2006) e Democratas (em 2007).

5 - Nunca é demais lembrar que durante um longo período, mais especificamente na fase pós-ditadura, o Partido dos Trabalhadores – PT representou a conjugação das forças progressistas nacionais em torno de um projeto político que indicava a ruptura com a histórica desigualdade social e a reprodução da heteronomia econômica na sociedade brasileira. Da mesma forma, no período dos dois mandatos de FHC, o PT liderou a oposição parlamentar e a resistência social aos ajustes estruturais na economia e às políticas neoliberais de privatização e de ajustes do Estado.

6 - Segundo Osvaldo Cogiolla (2008), nos últimos anos, diante da conjuntura de ascensão de uma heterogênea esquerda latino-americana, o mexicano Jorge Castañeda (ex-ministro do conhecido “presidente coca-cola” Vicente Fox) buscou acalmar os ânimos dos assustados porta-vozes e defensores do “capitalismo globalizado”, afirmando que, na realidade, havia duas esquerdas na América Latina: a primeira “com raízes radicais, é hoje moderna e aberta”, a segunda seria “fechada e fortemente populista”. E concluía recomendando ao governo dos EUA “uma ação mais ousada, uma abordagem de estadista”, que consistiria em “fomentar a esquerda correta”, “distinguir a esquerda sensata da irresponsável, apoiar a primeira e conter a segunda”.

7 - Como a conhecida Desvinculação de Receitas da União (DRU), que segundo a Associação de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP, 2004), caso fosse desconsiderada, o saldo do orçamento da seguridade social, em 2003, seria positivo em R$ 31,75 bilhões.

8 - Para um aprofundamento mais qualificado desta tese original sugiro o texto da Prof. Sara Graneman Políticas sociais e financeirização dos direitos do trabalho. Revista Em Pauta. Rio de Janeiro, nº 20, 2007, p. 57-68.

REFERÊNCIAS

BORON, Atílio. Sepa lo que es el capitalismo. Disponível em: http://www.atilioboron.com/. Acesso em: 1 out. 2010.

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INTRODUÇÃO

As breves notas apresentadas neste artigo possuem caráter exploratório e apresentam como hipótese, para futuros desdobramentos, o entendimento de que na América Latina, devido à estrutura da dependência, as demandas e necessidades sociais para a reprodução da força de trabalho são exponenciadas e os recursos do fundo público para atender tais demandas/necessidades são estruturalmente restringidos. Além disso, indicamos que o autodenominado “neodesenvolvimentismo” implementado pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), não passa do modelo neoliberal com ajustes, mantendo, portanto, a dinâmica estrutural da dependência, caracterizada pela superexploração da força de trabalho, nos termos de Marini (2005).

Para o desenvolvimento destas reflexões, partimos da compreensão de que a expansão do fundo público no capitalismo se realiza devido à ampliação das funções econômicas, para intervir na dinâmica monopólica, e da expansão da função de integração do Estado, via políticas sociais, para contribuir com o processo de legitimação da ordem.

A mediação objetiva que estabelece a relação entre a orientação da política econômica e a configuração da política social é realizada através do fundo público. O cenário de expansão das políticas sociais determina, assim, “uma redistribuição considerável do valor socialmente criado em favor do orçamento público, que tinha de absorver uma percentagem cada vez maior de rendimentos sociais a fim de proporcionar uma base material adequada à escala ampliada do Estado do capital monopolista” (MANDEL, 1982: 339).

O processo de expansão do fundo público gerou, na interpretação precisa de Oliveira (1998), a constituição de uma esfera pública em torno do orçamento do Estado, produzindo mais um espaço onde se realiza a luta de classes2. As disputas tanto no campo da

arrecadação quanto na definição dos gastos públicos expressam as lutas entre as classes e frações de classes na sociedade. Obviamente, a existência dessas lutas, não retira o caráter objetivo da necessidade estrutural do fundo público para a reprodução ampliada do capital no quadro do capitalismo monopolista. Contudo, as ações das classes, neste processo, podem produzir, em determinadas conjunturas, uma retração da exploração. Neste cenário, “a fração do trabalho não pago, fonte da mais-valia, se reduz socialmente” (idem, p.26).

O aspecto mais imediato que expressa o limite e a possibilidade da expansão do fundo público para as políticas sociais diz respeito à sua relação com a política econômica (principalmente na sua expressão tributária e na do gasto público indicado na peça orçamentária). Nesse sentido, para um enfrentamento das expressões da “questão social” que venha a atender de forma mais ampla os interesses da classe trabalhadora, exige-se uma política econômica também com este objetivo. Portanto, uma política econômica que reforça as desigualdades sociais, que não potencializa o enfrentamento das iniquidades sociais determina as (im)possibilidades de construção de uma política social voltada para os interesses das classes subalternas.

Assim, uma política tributária regressiva e um gasto público voltado, prioritariamente, para os interesses imediatos do capital, em suas diferentes frações, não irão propiciar a expansão de políticas sociais numa perspectiva universalista. Em linhas gerais, esta configuração vem a ser aquela constituída pelos países dependentes, devido à sua dinâmica estrutural.

1 - A DINÂMICA DO FUNDO PÚBLICO NOS PAÍSES DEPENDENTES: BREVES NOTAS

A inserção dos países periféricos/dependentes na dinâmica do capitalismo tardio é realizada, em geral, a partir de uma divisão internacional do trabalho, onde cabe à periferia a produção de matérias primas,

Doutor em Serviço Social pela UFRJ e professor da Faculdade de Serviço Social da UFJF

Rodrigo de Souza Filho

Política Social no Brasil: notas e críticas a partir da Teoria Marxista da Dependência 1

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De acordo com Marini (2005), diante da sangria de mais valor dos países dependentes e da impossibilidade/dificuldade de aumento de produtividade (não acesso à tecnologia e não condição de desenvolver tecnologia de forma endógena, devido, dentre outras, à necessidade de altos investimentos), a elevação da taxa de mais valia é realizada à custa da extração de mais trabalho não remunerado de seus operários. Esta elevação da extração do mais trabalho é realizada através da violação do valor da força de trabalho3. Sendo assim, o que caracteriza a superexploração da força de trabalho nos países dependentes é seu caráter estrutural de violação do valor da força de trabalho como dinâmica da produção e reprodução das relações sociais capitalistas. Ou seja, a superexploração da força de trabalho é uma particularidade do processo de acumulação capitalista que ocorre nas formações sociais dependentes.

Osório (2009, p. 175) sintetiza esta formulação precisamente quando afirma que a superexploração, nas economias dependentes, se “encontra no centro da acumulação”:

Visando caracterizar a superexploração, o mesmo autor, em artigo mais recente (OSÓRIO, 2013, p. 63), destaca que “a superexploração é a violação do valor da força de trabalho e que ela se realiza sob diversas formas, algumas violando diretamente o valor diário da força de trabalho e outras, mediadas, violando seu valor total”. Amaral e Carcanholo (2012, pp 99 e 100) indicam que os mecanismos de efetivação da superexploração são: a) a intensificação do trabalho, a partir de um patamar; b) prolongamento da jornada de trabalho, também a partir de um determinado nível; c) a redução do salário, através da apropriação, por parte do capitalista, de parcela do fundo de consumo do trabalhador; e d) ampliação histórica do valor da força de trabalho, sem o devido repasse ao trabalhador4.

gêneros alimentícios e bens de consumo não durável. Além dessa característica, os bens de consumo duráveis são produzidos a partir da associação com o capital internacional (empréstimo, investimento externo direto, pagamento de royalties...) e/ou comprando mercadorias do exterior, principalmente relacionadas ao capital constante, necessárias para a produção de bens industrializados (MARINI, 2005 e AMARAL e CARCANHOLO, 2012).

Assim, seja através da construção dos preços de produção (diferencial da taxa de lucro) ou devido à origem do capital e/ou origem de determinadas mercadorias que compõem o capital constante (fixo), ocorre transferência de valor produzida na periferia para o centro. Este movimento para os países centrais do valor produzido na periferia tem como consequência a redução do excedente disponível para a dinâmica interna da produção e reprodução das relações sociais dos países periféricos.

Do ponto de vista do capital, a consequência imediata é a redução da quantidade de mais valor que pode ser apropriado privadamente, seja para o consumo do capitalista, seja para a reprodução e ampliação do capital. Esta situação gera a necessidade estrutural de compensar a perda da mais valia, ocasionada pela transferência de valor. Conforme explicita Marini (2005, p. 154):

Neste sentido, Marini (2005) defende a tese de que a dinâmica da dependência implica na configuração da superexploração da força de trabalho como elemento estrutural do processo de produção e reprodução das relações sociais dos países periféricos. Nas palavras do autor:

Vimos que o problema colocado pela troca desigual para a América Latina não é precisamente a de se contrapor à transferência de valor que implica, mas compensar a perda da mais-valia, e que, incapaz de impedi-la no nível das relações de mercado, a reação da economia dependente é compensá-la no plano da produção interna.

Chamada para contribuir com a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve de fazê-lo mediante uma acumulação baseada na superexploração do trabalhador. É nessa contradição que se radica a essência da dependência latino-americana (MARINI, 2005, p. 162).

E ganha sentido quando se analisa o capitalismo como sistema mundial, que reclama transferência de valores das regiões periféricas para o centro, e quando as primeiras como forma de compensar essas transferências, acabam transformando parte do “fundo necessário de consumo do operário” em um “fundo de acumulação de capital”, dando origem a uma forma particular de capitalismo: o dependente (OSÓRIO, 2009, p. 175).

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Num esforço de síntese, Carcanholo (2013) afirma:

A consequência da dinâmica da superexploração, decorrente da transferência de parte do mais valor produzido nos países dependentes para os países centrais, para o desenvolvimento de políticas sociais é duplamente perverso.

Por um lado, na perspectiva da distribuição da renda nacional, temos a redução das condições objetivas de destinação de recursos, oriundos da produção de riqueza nacional, constitutivos do fundo público, necessárias para expansão/universalização dos direitos sociais.

Em outras palavras, como parte do excedente produzido pelos países dependentes é transferida para os países centrais, há necessidade de o capital compensar esta perda. Uma parcela desta compensação, estruturalmente, é realizada pela superexploração. No entanto, outra parcela é compensada pelo fundo público constituído pelo Estado. Dessa forma, estruturalmente também, há necessidade de o Estado suprir esta demanda do capital, seja para compensar a transferência de valor, seja para subsidiar o processo de industrialização no quadro tardio da expansão das relações capitalistas dos países periféricos.

Em relação a este último aspecto (processo de industrialização), convém sinalizar que Marx, ao tratar do capital inicial necessário para iniciar um investimento, indica que este valor “varia em diferentes graus de desenvolvimento da produção capitalista e, dado o grau de desenvolvimento, é diferente nas diferentes esferas da produção, conforme as condições técnicas específicas de cada uma”. Neste sentido, conforme ressalta o autor, leva o Estado a subsidiar determinadas iniciativas particulares, na medida em que não se encontram capitais disponíveis suficientes “em mãos de indivíduos isolados” (MARX, 1996, p. 423). Este quadro se intensifica ao considerarmos a condição

de inserção dos países periféricos/dependentes na dinâmica do capitalismo tardio, exigindo que parte do fundo público seja destinado à expansão das relações capitalistas, independente da transferência de valor que ocorre devido à situação de dependência.

Como decorrência de todo esse movimento descrito anteriormente, os recursos que poderiam ser disputados para o desenvolvimento de políticas sociais são reduzidos.

Este fato nos parece determinante, do ponto de vista objetivo, para uma tendência de produção, nos países dependentes, de políticas tributárias regressivas, mesmo em condições de baixa capacidade de tributação sobre o trabalho, devido à superexploração.

Por outro lado, a dinâmica da violação do valor da força de trabalho deteriora as condições de vida da classe trabalhadora de maneira substantiva, produzindo um agravamento das expressões da “questão social” e, portanto, ampliando as necessidades fundamentais para a reprodução social do trabalhador.

Sintetizando, o quadro exposto aponta para a baixa condição de vida da classe trabalhadora, gerando aumento das necessidades para sua reprodução social, e uma restrição do fundo público para o desenvolvimento de políticas sociais. Consideramos que esses elementos conformam as determinações objetivas centrais que fundamentam a precarização das políticas sociais nos países periféricos.

2 - FUNDO PÚBLICO E POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL: A ESTRUTURA DA DEPENDÊNCIA NA PARTICULARIDADE BRASILEIRA A Revolução de 1930 é um ponto de inflexão na trajetória histórica do Brasil, na medida em que representa o início de um novo projeto político e social para a sociedade: industrialização e urbanização, sob o comando da intervenção estatal, a partir do pacto conservador entre a oligarquia agrária e a burguesia emergente.

Do ponto de vista da economia política, esse projeto, como muito bem demonstrado por Oliveira (2003), é conduzido a partir da articulação entre a economia agrária e a indústria emergente, constituindo um entrelaçamento entre características pré-capitalistas e capitalistas de produção, através da relação entre a produção agrícola baseada numa intensiva exploração

i) a superexploração é uma categoria que não pode ser confundida com as distintas formas existentes no capitalismo para elevar a taxa de mais-valia (taxa de exploração), ainda que só possa se materializar por meio destas formas; e ii) a superexploração é uma categoria específica da economia dependente – portanto, em um menor nível de abstração do que as leis gerais do modo de produção capitalista –, mesmo que, evidentemente, enquanto forma de elevação da taxa de mais-valia, opere em qualquer economia capitalista, mesmo nas centrais.

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de trabalho e a recente produção industrial que se beneficia daquela exploração. Segundo a análise de Oliveira (2003, pp. 45-47), a relação dialética entre a agricultura e o setor industrial emergente se expressa na funcionalidade da agricultura para o crescimento industrial, via fornecimento da força de trabalho e de alimentos, através da manutenção do padrão “primitivo” de acumulação na agricultura, “baseado numa alta taxa de exploração da força de trabalho” (OLIVEIRA, 2003, p. 45).

De acordo com o analista (IDEM, pp. 55-58), esta mesma articulação que combina “alta taxa de exploração da força de trabalho” na agricultura e ampliação das condições de acumulação urbana-industrial, no início do processo de industrialização brasileiro, ocorrerá, no momento posterior de consolidação do referido processo, entre o setor terciário e o setor industrial. Ou seja, como a industrialização brasileira desenvolveu-se com base numa “acumulação capitalista razoavelmente pobre”, no momento de sua consolidação, a exigência de expansão do setor terciário teve de ser atendida, também, através do “crescimento não-capitalístico do setor Terciário”. Dessa forma, como argumenta Oliveira (IDEM, p.57), “os serviços realizados à base de pura força de trabalho, que é remunerada a níveis baixíssimos, transferem, permanentemente, para as atividades econômicas de corte capitalista, uma fração de seu valor, ‘mais valia’ em síntese”.

Em nosso entendimento - apesar do autor não fazer esta articulação -, essa análise concreta da expansão e consolidação das relações capitalistas no Brasil, fundada na “alta taxa de exploração” e remuneração a “níveis baixíssimos” da força de trabalho, realizada por Oliveira (2003), nos permite indicar, como hipótese, que essa é a singularidade do processo de superexploração em nosso País.

Dessa forma, a dinâmica estrutural da dependência no Brasil, fundada na superexploração da força de trabalho, se realiza objetivamente através das conexões existentes entre o processo de industrialização, responsável pela expansão das relações capitalistas no Brasil, e as funções desempenhadas pelo setor agrícola e pelo setor terciário, tendo como base o rebaixamento do valor da força de trabalho rural e do setor terciário.

Florestan Fernandes (1981: 241) completa a análise mostrando que o desenvolvimento capitalista no Brasil se processa a partir de uma dupla articulação: “1.°) internamente, através da articulação do setor

arcaico ao setor moderno (...); 2.°) externamente, através do complexo econômico agro-exportador às economias capitalistas centrais”. Esse tipo de transição da economia capitalista brasileira produziu uma aliança entre a burguesia industrial emergente e setores da oligarquia agrária para processar o projeto de industrialização e urbanização de forma dependente ao capital internacional.

Neste contexto, criou-se, então, no país um sistema diferenciado de intervenção na área social. Para os trabalhadores urbanos regulamentados estruturou-se um sistema público de proteção social, baseado na previdência social e assistência médica, desenvolvido pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões (SANTOS, 1987); para os demais trabalhadores e o restante da população, ou seja, aos excluídos do sistema público, destinou-se o aparato assistencial existente, fundado nas ações das entidades filantrópicas (laicas e religiosas), apoiando sua expansão, através de subvenções públicas (MESTRINER, 2001). Assim, de forma geral, podemos dizer que a política social no Brasil será constituída tendo como base as concepções de “cidadania regulada” (SANTOS, 1987), na perspectiva da política previdenciária e de assistência médica - destinada aos trabalhadores urbanos que possuíssem sua profissão reconhecida legalmente -, a qual será implementada com base na lógica corporativo-estatal, e a “cidadania invertida” (FLEURY, 1991) como expressão da ação assistencial - destinadas aos demais segmentos da população -, configurando-se como recurso de clientelismo do poder central.

É importante destacar que esse formato de desenvolvimento de políticas sociais no Brasil - incorporação seletiva e limitada das classes subalternas às riquezas produzidas nacionalmente - se adéqua ao processo de desenvolvimento de nosso capitalismo dependente que, conforme descrito acima, por condições estruturais não possuía recursos para a implementação de políticas sociais amplas e abrangentes. Ou seja, as condições objetivas5 postas eram adversas a um projeto de universalização e aprofundamento de direitos sociais. Em linhas gerais, esse padrão de operar as políticas sociais não sofrerá alteração até o advento do golpe de 1964.

Na análise de Fiori (1995), o processo de consolidação monopólica do projeto de capitalismo periférico e dependente, implementado a partir de 1964, se caracteriza, uma vez mais, como uma “fuga para frente”. Para fugir dos conflitos e contradições do projeto de

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economia dependente, o Estado desenvolvimentista projetava-se para frente, buscando ampliar as condições de acumulação, através de sua maior intervenção na economia. A opção política das classes dominantes se orientou, por um lado, para manter a “dupla articulação” e, por outro lado, para excluir as classes trabalhadoras do processo de participação política das decisões sobre o desenvolvimento e da ampliação do acesso às riquezas produzidas, mantendo assim, como destaca Oliveira (2003), o caráter concentrador de poder, renda e propriedade. O sociólogo afirma que a diferença fundamental do sistema pós-1964 do de etapas anteriores talvez se expresse “na combinação de um maior tamanho com a persistência dos antigos problemas. Sob esse aspecto, o pós-64 dificilmente se compatibiliza com a imagem de uma revolução econômica burguesa, é mais semelhante com o seu oposto, o de uma contrarrevolução” (OLIVEIRA, 2003, p. 106 – itálicos no original).

Oliveira (2003, p. 84) afirma que “a aceleração, a partir do período Kubitschek, fundada numa base capitalística interna pobre e nas condições internacionais descritas, requeria, para sua viabilização, um aumento na taxa de exploração da força de trabalho”. Em seguida, afirma o autor: “a repressão salarial é um fato” (Idem, p. 100). Esta repressão é essencial para sustentar a superacumulação necessária para viabilizar a realização da acumulação real.

Oliveira (2003: 100-105) demonstra que a situação de manutenção da desigualdade social durante a expansão capitalista no período pós-1964, mais precisamente a partir de 1967, explica-se pela necessidade de se realizar um processo de acumulação compatível com a estratégia de monopolização e aceleração da industrialização do período, através do aprofundamento da exploração do trabalho como mecanismo central para resolver as contradições entre relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas, na medida em que é “necessário aumentar a taxa de lucros, para ativar a economia, para promover a expansão” (idem: 100). Nesse sentido, afirma o autor, o aprofundamento da taxa de exploração do trabalho se apresenta como requisito estrutural da expansão monopólica.

É reafirmada a opção da burguesia brasileira de se aliar ao capital internacional, mantendo, mesmo que de forma subordinada, as oligarquias

agrárias no poder, em detrimento de uma aliança progressista com a classe trabalhadora voltada para um projeto burguês nacional-democrático. Ao longo desse período (1964-1985), com a restrição dos direitos civis e políticos, os direitos sociais implementados pela ditadura civil-militar, por meio de suas políticas sociais, marcaram o início do desmonte do aparato de regulação da cidadania, unificando, uniformizando e ampliando os serviços sociais, com certa tendência universalizante. Como não se procedeu a uma alteração substancial das bases de financiamento das políticas sociais, devidos ao dilema estrutural da dependência, conforme abordado anteriormente, ampliaram-se os serviços de baixa qualidade.

Conforme sinaliza Werneck Vianna (1998), institui-se uma “americanização perversa” na seguridade social brasileira. A universalização das políticas sociais se processa de maneira combinada à mercantilização de serviços. Forja-se um sistema público de baixa qualidade para a massa da população brasileira. Por outro lado, cria-se um sistema privado (principalmente nas áreas de saúde e educação) para as camadas média e alta da sociedade. Portanto, desenvolvem-se políticas sociais de tendência universalizante, conduzidas pelo Estado, porém constituídas sobre uma estrutura institucional residual e precária para desenvolver tal tarefa.

A não efetivação da universalização dos serviços possibilitou que se mantivesse, dessa forma, a situação de “cidadania invertida” para a grande maioria da população brasileira em combinação com a expansão de serviços sociais públicos de baixa qualidade.

As políticas sociais de baixa qualidade foram organizadas através de uma estrutura administrativa também de baixa qualidade, a expansão de serviços não foi acompanhada por um incremento proporcional nos investimentos para sua implementação, devido, principalmente, ao investimento no processo de consolidação da fase monopólica no País, no contexto da dependência.

Neste sentido, reproduz-se a dinâmica da superexploração como elemento estrutural da acumulação periférica, devido à manutenção da transferência de valor produzida internamente, agora no quadro da consolidação da fase monopólica no Brasil, impactando, as condições de disponibilização do fundo público para as políticas sociais.

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Dessa forma, sobre outras bases, rearticula-se a dinâmica pautada, por um lado, pela deterioração das condições de vida das classes subalternas e, pelo outro, pelos parcos recursos disponíveis do fundo público para o fortalecimento de políticas sociais universalistas, gratuitas e de qualidade, reatualizando as determinações objetivas centrais que fundamentam a precarização das políticas sociais nos países periféricos, conforme já indicado.

3 - CRISE DO CAPITAL E A CONJUNTURA BRASILEIRA DOS ANOS 2000: AJUSTE NO MODELO NEOLIBERAL DA DEPENDÊNCIA OU “NOVO DESENVOLVIMENTISMO”?

No Brasil, os princípios da Carta de 1988 relativos à criação de um sistema de proteção social pública universalista e da criação de espaços institucionais democráticos no âmbito das políticas públicas setoriais deram-se, em concomitância, ao contexto de crise e de rearranjo mundial do capitalismo a partir dos finais da década de 70: a passagem para um novo padrão de acumulação (a chamada acumulação flexível) e para um novo regime de regulação social (as políticas estatais deveriam seguir as políticas de ajuste neoliberais impostas pelos organismos internacionais). A nova agenda política nacional inaugurada com a Carta de 1988 não poderia ser implementada - dada a nossa condição de país de capitalismo periférico e dependente - em face de um pensamento único mundial que enunciava uma política de ajuste dominada por temas como refluxo do Estado e primazia do mercado, desregulamentação e privatização, redução dos fundos públicos para o financiamento das políticas sociais - e a consequente substituição da universalidade pelo binômio focalização/assistencialização - enfim, uma agenda que só podia ser conduzida contra as conquistas de 1988.

A política econômica dos dois governos de Cardoso (1995-1998 e 1999-2002) se caracterizou pela dominância ortodoxo-monetarista, supervalorizando a estabilização e o controle inflacionário e a redução do papel do Estado na área social (FIORI, 1995; SOARES, 2001). Nesse quadro, as estratégias de focalização - via programas de combate à pobreza - e descentralização - apelo à solidariedade voluntária contribuíram, como sinalizam Laurell (1995) e Soares (2001) para a manutenção de mecanismos clientelistas na área social. Dessa forma, é reeditado, de forma orgânica, o pacto de dominação conservadora que implementou o projeto desenvolvimentista, mas que, na conjuntura

da crise daquele modelo, organiza-se para orientar uma intervenção econômica e social pautada nas teses neoliberais.

Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula da Silva, em 2003-2006 e 2007-2010, e Dilma Rousseff, em 2011 até o momento, mantiveram, no geral, a política econômica e social do governo Cardoso (GONÇALVES e FILGUEIRAS, 2007; DRUCK e FILGUEIRAS, 2007; FILGUEIRAS et alii, 2010; GONÇALVES, 2012, 2013a, 2013b; CARCANHOLO, 2010; MARTINS, 2011).

Em relação aos governos do PT, cabe de forma breve, destacar alguns elementos que mostram a continuidade da perspectiva neoliberal como eixo condutor das intervenções econômicas e sociais do Estado, ao longo do período 2003-2013, apesar da existência de melhoras em diferentes indicadores sociais6.

O governo e os intelectuais vinculados ao PT têm difundido a ideia de que o avanço social conquistado está relacionado à mudança do modelo de desenvolvimento produzido pela gestão petista. Ocorreram avanços sociais porque o modelo econômico-social deixou de ser neoliberal, passando para uma perspectiva “pós-neoliberal” (SADER, 2013) de cunho “novo desenvolvimentista” (OLIVA, 2010).

Deve-se questionar essa explicação oficial, ou seja, a questão que deve ser analisada refere-se a como se explicam as melhoras de tais indicadores. Em outras palavras, os avanços sociais estão vinculados, realmente, a uma alteração estrutural do modelo econômico e social brasileiro ou são avanços decorrentes da conjuntura mundial de crescimento econômico que favoreceram a economia brasileira e devido, também, aos ajustes realizados na gestão de políticas e programas sociais?

De forma ilustrativa, podemos sintetizar as análises de Gonçalves (2012) e Carcanholo (2010) que mostram de forma contundente a manutenção da matriz neoliberal pelos governos Lula7. Gonçalves demonstra, a partir de dados empíricos, que os governos do PT não produziram um modelo “novo desenvolvimentista”, na medida em que no “Governo Lula ocorre o ‘nacional-desenvolvimentismo com sinal trocado’ visto que a conduta do governo, o desempenho da economia e as estruturas de produção, comércio exterior e propriedade caminham no sentido contrário ao que seria o projeto nacional-desenvolvimentista” (GONÇALVES, 2012, p.7)8.

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Em relação à estrutura produtiva e ao padrão de comércio, o economista mostra o processo de reprimarização de nossa economia, implementado a partir da “desindustrialização” e “dessubstituição de importação”, impulsionados pela liberalização comercial. Os dados relativos ao progresso técnico explicitam a continuidade de nossa dependência tecnológica frente aos países centrais. Neste mesmo caminho, as informações sistematizadas pelo autor desvelaram a desnacionalização da propriedade no Brasil; a perda de competitividade internacional; a manutenção da vulnerabilidade externa estrutural, a partir do crescimento do passivo externo; a concentração de capital e a política econômica hegemonizada pelo setor financeiro.

Enfim, o autor de forma incisiva apresenta dados empíricos consistentes que indicam a não alteração do modelo de desenvolvimento econômico e social implementado pelos governos do PT em relação aos Governos de Cardoso.

O artigo do economista Marcelo Dias Carcanholo demonstra que os governos do Presidente Lula mantiveram os “dois pilares da estratégia neoliberal do Consenso de Washington, isto é, a estabilização macroeconômica como precondição e as reformas pró-mercado para a retomada dos investimentos privados”, não alterando, dessa forma, o modelo de desenvolvimento em pauta. Além disso, a análise do autor mostra a manutenção da política econômica ortodoxa através das seguintes medidas: a) manutenção dos megassuperávits primários; b) manutenção do regime de metas inflacionárias; c) política cambial flutuante;

d) manutenção da política comercial (CARCANHOLO, 2010, p. 115).

Relacionado a esta última medida, Carcanholo analisa que a melhora das contas externas ocorreu devido a uma conjuntura econômica mundial favorável à economia brasileira, fundada nos seguintes fatores: (i) alta no ciclo de liquidez internacional, que produziu a redução das taxas internacionais de juros e viabilizou um crescimento da economia mundial; (ii) forte crescimento da economia chinesa, elevando a importação de produtos brasileiros (comodities); e (iii) crescimento do preço das commodities. (CARCANHOLO, 2010, p. 122).

Nenhuma destas razões deve-se a ação do governo brasileiro. “É tudo fruto de um cenário externo extremamente favorável, que propiciou o forte crescimento das exportações, a reversão no déficit da balança comercial e de transações correntes e o acúmulo de reservas internacionais que permitiram, dentre outras coisas, o pagamento antecipado de um montante da dívida com organismos internacionais” (idem, ibidem). A situação econômica mundial potencializou o crescimento econômico nacional, favorecendo, assim, o afrouxamento da política monetária, produzindo a redução dos juros, disponibilizando, desta forma, mais recursos para investimentos e programas sociais, principalmente, de recuperação do salário mínimo e de transferência de renda, voltado para o combate à pobreza (FILGUEIRAS et alii, 2010). Portanto, as causas que produziram a melhora dos indicadores sociais, não estão relacionadas à alteração do modelo econômico e social, mas sim a uma conjuntura externa favorável à economia brasileira. Além disso, segundo Osório (2012), os países latino-americanos nas últimas décadas incorporaram o modelo neoliberal sem romper significativamente com o padrão de reprodução do capital do século XX, mantendo a estrutura de dependência de suas economias, agora sob um padrão exportador de especialização produtiva que preserva o peso da produção agromineira na produção e incorpora maior elaboração na produção dos bens exportados.

Do ponto de vista social, neste contexto, temos por um lado, a despeito do aumento real do salário mínimo nos últimos anos, o incremento da superexploração da força de trabalho (MARTINS, 2011a e LUCE, 2013). Por outro lado, a manutenção da lógica que privilegia políticas sociais focalizadas de transferência de renda, em detrimento da expansão e qualificação das políticas setoriais universais, informa a permanência do modelo neoliberal no campo social, indicando, assim, a restrição dos recursos do fundo público para as políticas sociais.

A política social do Governo Lula, dessa forma, é coerente com o modelo econômico adotado. Ganha centralidade a tendência à assistencialização das políticas sociais na conjuntura atual (MOTA, 2008). Esse processo de assistencialização da proteção social brasileira se expressa na tendência à expansão da política de assistência social, via programas de transferência de renda, em concomitância a um processo de restrição e orientação privatizante das políticas de saúde, previdência e educação e ampliação do gasto público com o pagamento dos juros e serviços da dívida.

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Os dados recentes expressam com precisão a manutenção da tendência a assistencialização das políticas sociais. Entre 2011-2013, houve queda das despesas com as funções da área social (assistência social, saúde, previdência social e educação), em relação à despesa total anual, de 31,99%, em 2011, para 28,22%, em 2013. Por outro lado, ocorreu o crescimento das despesas com o pagamento de juros, amortização e refinanciamento da dívida pública, passando de 42,25% para 45,09%. Corroborando esta análise, o crescimento nominal das despesas das funções da área social, no período 2011-2013, é menor (22,58%) do que o crescimento total das despesas (38,9%). Vale ressaltar que o crescimento nominal, no período tratado, das despesas com o pagamento de juros, amortização e refinanciamento da dívida pública é da ordem de 48,2%, o que mostra, inclusive, que a ampliação deste gasto foi maior que o crescimento total das despesas públicas. Além disso, o crescimento que ocorreu com as despesas da Função Assistência Social foi o maior (35,6%) dentre as funções da área social (saúde: 27,8%; previdência social: 19,3% e educação: 26,3%).

Em outras palavras, a dinâmica permanece mantendo o crescimento do orçamento público, com a ampliação do gasto para o pagamento dos juros e serviços da dívida pública, com redução dos gastos da área social, porém garantindo a expansão dos gastos com assistência social, principalmente, via programas de transferência de renda. Ou seja, reafirmação da tendência à assistencialização das políticas sociais.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, podemos concluir apoiando a afirmação de Gonçalves (2012, p.24) de “que dentre os méritos ou pontos fortes [dos governos PT] não se encontram ‘grandes transformações’, ‘reversão de tendências estruturais’ e ‘políticas desenvolvimentistas’”. Na verdade, encontramos a manutenção da estrutura da dependência, reafirmando a superexploração da força de trabalho e, por consequência, a dinâmica de restrição dos recursos do fundo público para a inversão em políticas sociais.

Nas palavras de Osório (2012, p. 104), “o que temos na América Latina são novas formas de organização reprodutiva que reeditam, sob novas condições, os velhos signos da dependência e do subdesenvolvimento como modalidades reprodutivas que tendem a caminhar de costas para as necessidades da maioria da população”.

NOTAS

1 - Este artigo foi elaborado com base na palestra realizada em Brasília, no dia 05 de abril de 2013, por ocasião da Plenária Nacional CFESS-CRESS “Desafios do Trabalho de Assistentes Sociais na Política de Assistência Social” e da intervenção realizada, em Belo Horizonte, no III SIMPÓSIO MINEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS “Expressões socioculturais da crise do capital e as implicações para a garantia dos direitos sociais e para o Serviço Social”, na mesa que abordou o tema “Política Social e Neo-desenvolvimentismo: impactos na estrutura de desigualdade”, no dia 07 de julho de 2013.

2 - Sobre as polêmicas a respeito da formulação de Oliveira (1998) sobre o fundo público, ver a síntese de Salvador (2010).

3 - A possibilidade da superexploração é indicada por Marx no Livro I, volume 1 d’O capital, em pelo menos dois momentos: quando trata do valor da força de trabalho no capítulo IV (MARX, 1996, p. 290) e ao discutir o conceito de mais valia relativa, no capítulo X (MARX, 1996, p.430). Além dessas passagens, no Livro III, volume 4, capítulo XIV (MARX, 2008, pp. 313-314), ao discutir os fatores contrários à queda tendencial da taxa média de lucro, Marx também apresenta indicações sobre a possibilidade da violação do valor da força de trabalho no modo de produção capitalista. Para uma análise acurada dessas indicações marxianas e a categoria superexploração, ver Osório (2013).

4 - Marini (2005) identifica como mecanismos de efetivação da superexploração apenas os três primeiros indicados por Amaral e Carcanholo (2012). No entanto, consideramos adequada a inclusão do quarto mecanismo proposto pelos autores.

5 - Para o interesse do presente artigo, o fundamental é explicitar as determinações objetivas da restrição de utilização do fundo público para as políticas sociais, por isso não entraremos no debate sobre as condições subjetivas.

6 - Ao longo do período 2003-2013, consideramos ser fato a existência de melhoras em diversos indicadores sociais brasileiros, independentemente da crítica que possamos realizar em relação a determinadas metodologias de construção e aferição de indicadores sociais e da qualidade e velocidade dos avanços identificados. Para um panorama da evolução dos indicadores sociais, ver “Indicadores de Desenvolvimento Brasileiro” (BRASIL, 2013).

7 - Neste trabalho não reproduziremos os dados empíricos levantados por Gonçalves, que podem ser encontradas em seu artigo (GONÇALVES, 2012), apenas indicaremos as conclusões analíticas do autor para cada dimensão investigada.

8 - Em relação ao Governo Dilma, ver Gonçalves (2013a e 2013b). A análise do autor em relação ao Governo Dilma ratifica a manutenção do modelo liberal periférico durante o governo da Presidenta petista. “Se, por um lado, é verdade que durante o governo FHC foi aplicado o Modelo Liberal Periférico; por outro, também é verdade que as características marcantes deste modelo persistem, se consolidam e até mesmo avançam nos governos petistas” (Gonçalves, 2013a, p. 22).

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INTRODUÇÃO

Vivemos tempos de barbárie. A hipótese da qual parto é a de que a civilização do capital tem nos conduzido a um tipo de barbarização da vida. Trata-se, pois, de uma manifestação que se constitui no contexto do capitalismo no seu estágio “mais que desenvolvido”. A civilização do capital carrega no seu interior o seu contrário, ou seja, a barbárie, de modo que ela constitui o que alguns analistas vêm chamando de “barbárie civilizada”1. Assim, o maior desenvolvimento tecnológico alcançado pela humanidade até o momento tem, também, empurrando o ser social para um processo regressivo. O que fundamenta este fenômeno? Pretendo argumentar que as novas determinações da barbárie se constituem nas condições atuais do capitalismo. Em outras palavras: a barbárie atual será vista como a civilização do capital, ao tempo em que o capitalismo é aqui considerado a civilização que caminha para a barbárie. As consequências deste processo destrutivo podem ser observadas nas condições e relações de trabalho tendo como resultado uma processual intensificação e precarização que atinge todos os trabalhadores e, dentre eles, as/os assistentes sociais. A respeito destes profissionais, tal precarização incide sobre as condições de trabalho e da formação profissional. Neste artigo pretendo apresentar uma reflexão sobre a materialização do projeto ético-político profissional em tempos de barbárie.

1 - O CAPITALISMO COMO CIVILIZAÇÃO QUE CAMINHA PARA A BARBÁRIE

Considero que a barbárie atual mostra as características de um determinado tipo de sociedade cuja sociabilidade é construída a partir da lógica e da dinâmica do capital na direção da sua reprodução, donde a importância de captar como esta barbárie

se manifesta no cotidiano da nossa vida pessoal e profissional.

Por que a preocupação com a barbárie tem ascendido com tanta força nestes tempos bicudos, a ponto de um intelectual como Michel Lowy (2000) utilizar o termo barbárie civilizada para determinar as condições postas pelo capitalismo contemporâneo?

Há uma condição que marca o tempo presente: uma nova dinâmica no que se refere ao tempo-espaço, uma compressão tamanha que nos causa a sensação de “encolhimento” do tempo e do espaço, o que altera substancialmente o conteúdo da nossa vida (Harvey, 1994). Assim, a lógica do capital “transcende o domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova” (NETTO, 1981, p. 82).

O que muda na condição da barbárie atual é o fato de que o Estado de Direito, constituído com base na regulação da vida social, através do que exerce o controle sobre a sociedade e mantém o ordenamento que define direitos e deveres, não apenas não mais detém a capacidade de manter os direitos conquistados, como se converte no próprio agente de negação destes direitos. No contexto atual, à medida que o braço do Estado, que busca a legitimidade e consenso via a garantia de direitos, especialmente os direitos sociais e culturais, se atrofia, como resultado do modelo de política social, através do que ele fica refém das necessidades e interesses do capital, mais se desenvolve o braço armado, que se utiliza da força, do controle, da violência2. Porém, cabe ao Estado mesclar estas duas estratégias (coerção e consenso) que se complementam, fazendo parte de um mesmo movimento. O Estado, no cumprimento do seu papel de gerenciador dos negócios da burguesia3 (Marx e Engels 1982, p. 23 4) não pode deixar de desenvolver

Assistente social, mestre e doutora em Serviço Social pela PUC São Paulo. Professora associada da UFRJ nos âmbitos da graduação e da pós-graduação

Yolanda Aparecida Demetrio Guerra

Em defesa da qualidade da formação e do trabalho profissional: materialização do projeto ético-político profissional em tempos de barbárie

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sua função social. Neste momento histórico, para além de exercer sua função precípua de intervir no controle da força de trabalho ocupada e excedente, tem que controlar a miséria que a exploração capitalista gera, amplia e aprofunda, decorrência da concentração da riqueza, e o faz pela via da normatização e implementação de políticas e programas sociais de um lado; e, através de seu braço coercitivo, punindo, reprimindo e criminalizando os pobres, de outro. Ambas as táticas, que não são novas, se ampliam e se complementam. Assim, alternam-se estratégias e táticas de coerção e consenso, conformando uma dialética processual para garantir a regulação e reprodução material e ideológica da sociedade burguesa5.

Nossa hipótese de trabalho pode ser comprovada pela maneira como tem sido reprimida toda e qualquer reivindicação dos trabalhadores, que, de classe revolucionária, passam a ser tratados sob designação de “pobre”, bem como, se tem criminalizado os desempregados, agora considerados “classes perigosas”, pela via de medidas de repressão combinadas e complementadas pelos programas assistencialistas, como formas de ocultar a luta de classes.

Aqui, duas estratégias de enfrentamento da questão social se misturam: àquelas à base da repressão e as pautadas na assistencialização (via programas minimalistas6). Ocorre que com a supressão das conquistas históricas da classe trabalhadora, característica dos tempos atuais, as expressões da questão social que se complexificam, são tratadas à base da repressão/criminalização, muitas vezes transvestidas em programas sociais, estratégia que alcança consenso por se revestir do manto da proteção social e sob o discurso do direito.

Há, portanto, uma nova relação protagonizada pelo Estado, dominado pela ideia de garantir a administração da barbárie, via mecanismo repressivos, de regulação e de controle, de um lado, e medidas assistencialistas, via programas focalizados, de outro.

É exatamente este Estado, que se autoreferencia como Estado de Direito, que assume sua condição de Estado Penal e de Estado Gerencial numa articulação que responde às necessidades e exigências do período de crise estrutural.

O primeiro modelo, o Estado gerencial, oriundo da Reforma do Estado do governo Fernando Henrique Cardoso, considerada pelos seus críticos como “contrarreforma, é o modelo que se adéqua perfeitamente as necessidades e interesses do capital. Sob a retórica do Estado Social-Liberal, que, de acordo com o Ministro da Reforma do Estado, Bresser Pereira (1996, p. 21), “continua responsável pelos direitos básicos de saúde e educação da população, mas que de forma crescente os executa por intermédio de organizações públicas não-estatais competitivas”, o que equivale a dizer, mercantiliza os serviços que outrora implementava diretamente.

Assim é que o Estado, a partir da contrarreforma, ou deixa para o mercado tudo o que este pode promover, especialmente saúde e educação, ou assume uma função de administrador. Atua como gerente e cumpre obrigações por meio do instrumento do convênio com as entidades do setor privado.

Esta chamada contrarreforma do Estado brasileiro propõe uma administração pública gerencial, que se organiza em três níveis. Importa-nos enfatizar o que são considerados como serviços não-exclusivos ou competitivos do Estado, dentre os quais, os hospitais, as universidades, os serviços sociais, assistenciais e de saúde. Estes são os serviços que “o Estado realiza e/ou subsidia porque os considera de alta relevância para os direitos humanos, ou porque envolvem economias externas, não podendo ser adequadamente recompensadas no mercado por meio da cobrança dos serviços” (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 283). Para além da retórica, a forma pela qual os subsídios do Estado são prestados às empresas e grupos particulares é profundamente alterada. Segundo o citado Ministro, pretende-se transformar os prestadores de serviços em “organizações sociais”, mediante um programa de publicização. As consequências que daqui decorrem são múltiplas. Dentre outras: o gerenciamento dos recursos públicos por parte das organizações privadas; desresponsabilização do Estado no que tange ao atendimento das seqüelas da questão social. O modelo gerencialista7 do Estado transforma as instituições em organizações sociais, melhor dizendo, em empresas, a exemplo da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) no campo da Saúde e das Fundações Universitárias, no campo da Educação.

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O segundo modelo, o Estado Penal, desenvolve várias formas de violência contra o trabalhador ocupado e excedente. Aqui, a violência do Estado contra os ambulantes e a população de rua são exemplares.

O que há em comum entre eles, apesar das aparentes diferenças, é a concepção de que para manter-se como o comitê para gerir os negócios da burguesia, como dito, faz-se necessário acirrar seu caráter regulador, repressivo e controlista. São as duas estratégias de garantia de consenso, as quais vêm legitimando os últimos governos.

Dois elementos me parecem centrais nesta problematização:

1) A nova forma como o Estado nas suas faces gerencial, penal e assistencial, exerce controle sobre as políticas sociais e altera o conteúdo das mesmas, configurando um determinado espaço de intervenção para o assistente social, determinando o conteúdo dos programas sociais, definindo critérios de elegibilidades dos usuários, padrões e tipo de atendimento, procedimentos que, em geral, são burocráticos. Este Estado não apenas exerce controle, pela mediação das políticas e programas sociais, sobre o exercício profissional do assistente social, mas também sobre o usuário, seu modo de vida, valores, etc. Tais programas definem o conteúdo da intervenção profissional, na qual priorizam-se procedimentos pela via da normatização, padronização, dentro de um modelo de atendimento racionalista formal-abstrato. 2) Paralela a esta forma de intervenção procedimental, as instituições sociais sob o rótulo da “humanização”, acabam exigindo um tipo de abordagem que leva a uma psicologização da relação usuário-profissional, orientada para forjar determinado tipo de comportamento que, no limite, redireciona as soluções das necessidades para o seu portador. Este tipo de abordagem controlista, integradora e adaptativa,

Ocorre que o novo padrão de racionalidade, exigido nestes tempos de barbárie, repõe as demandas antigas sob novas bases, reforça a exigência da “operacionalização de medidas instrumentais de controle social, o controle de técnicas e tecnologias sociais [...] enquanto meios de influenciar a conduta humana, (...), manipulando racionalmente os problemas sociais, prevenindo e canalizando a eclosão de tensões para os canais institucionalizados estabelecidos oficialmente” (Iamamoto e Carvalho, 1986, p. 112).8

Assim, a barbárie do capitalismo põe e repõe a necessidade de intervenções tutelares, que aparece sob o rótulo do “acolhimento”, da humanização, de um lado, e controladoras e repressivas, de outro, através da responsabilização e culpabilização dos sujeitos por “seus próprios problemas” e na cobrança de atitudes na direção de solucioná-los, o que os leva a desenvolverem técnicas de ajustamento e mudança comportamental9, e criminalização dos pobres, disciplinamento, controle, repressão. O que muda na atualidade, em comparação com as formas de intervenção do Serviço Social tradicional, é o fato de que elas vêm revestidas das exigências e conquistas democráticas dos anos de 1980, transformadas em um democratismo que não se sutenta na atualidade a não ser no discurso. Falo aqui das estratégias (do Banco Mundial) de empoderamento (Faleiros) e no “discurso do direito a ter direitos” (Guerra).

Nesta onda neoconservadora de individualização e moralização também se culpabiliza o profissional pela não resolução da demanda que na realidade é irresolúvel. Mas é também imputada uma lógica na própria intervenção, pela via das técnicas e instrumentos orientadores da implementação das políticas sociais e dos sistemas que o assistente social utiliza e que, em geral, se contrapõe a intencionalidade do profissional. Por esta razão, se o assistente social não faz uma leitura crítica da realidade e não percebe a substituição do Estado Social pelo Estado Penal (Wacquant, 2001), pode até, incautamente, se render a estes argumentos que individualizam a questão social e a tomam como questão de ordem moral ou técnica (objetivando mudança comportamental e solução de problemas). Neste contexto, a política social é identificada como técnica de administração da pobreza e da barbárie capitalista.

O que tais determinações do atual contexto sócio-histórico põem para o exercício profissional?

“implica um tipo novo de relacionamento ‘personalizado’ entre ele [ o usuário - YG] e instituições próprias da ordem monopólica que, se não se mostram aptas para solucionar as refrações da ‘questão social’ que o afetam, são suficientemente lábeis para entrelaçar, nos ‘serviços’ que oferecem e executam, desde a indução comportamental até os conteúdos econômicos-sociais mais salientes da ordem monopólica. (NETTO, 1996, p. 38, grifos do autor).

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Como desentranhamos as mediações que vão explicar o que toda essa mudança, originada no modelo de acumulação e que interfere diretamente no Estado, tem relação com o Serviço Social? O que nos reserva este Estado Gerencial?

2 - DEMANDAS ADVINDAS DOS MODELOS DO ESTADO GERENCIAL E PENAL

O Estado Gerencial tem sido pontencializado e exige novas atribuições para o exercício profissional no contexto das políticas sociais, cujo objetivo é a gestão dos “riscos sociais”. O modelo de gestão do risco está focalizado em um determinado grupo da população, cuja condição de se localizar abaixo da linha da pobreza, exerce uma ameaça à sociedade. Cabe ao Estado deter certo controle dos desejos e necessidades sociais e das frustrações dos sujeitos, resultantes da inacessibilidade aos bens e serviços da sociedade. Tal modelo seleciona os mais pobres dentre os pobres, estando no nível de pobreza a centralidade dos critérios de elegibilidade dos programas focalizados.

Tal modelo tanto controla o profissional quanto permite que este exerça seu controle sobre o cotidiano da vida dos usuários dos programas, através dos diversos sistemas que os profissionais das políticas sociais operam, os quais condicionam o seu exercício profissional, atribuindo-lhe a sua lógica constitutiva. Tal lógica se insere tanto nos sistemas, nas orientações de como operá-los, quanto nas metas e nos instrumentos que os determinam. Deve estabelecer instrumentos de controle, de orientações, de fiscalização da população pobre, usuária de tais programas. Como isso se materializa? Chamo atenção para as inalcançáveis metas de produtividade nos atendimentos e para o exagerado número de processos que chegam visando a elaboração de laudos, pareceres e estudos sociais.

Em razão do crescimento de serviços socioassistenciais, absorvendo as outras políticas e pelo tipo de demanda que chega, a inserção do assistente social em tais programas se identifica a um plantão de emergências. A necessária gestão de sistemas, o preenchimento de cadastros, visitas domiciliares, normatizações oriundas dos programas, conduzem à diferentes formas de fiscalização, controle e monitoramento de famílias no acesso e

exige práticas de gestão de condicionalidades que enfatizam o caráter disciplinador das exigências. Tudo isso, a meu ver, é decorrência da lógica gerencial da contrarreforma do Estado brasileiro e das diretrizes de punição e disciplinamento dos pobres10. A tentativa é de utilizar a profissão como uma técnica de mediação de conflitos, de solução de problemas, de inquirição da verdade, tais como a realização do exame criminológico, o depoimento sem dano, as medidas socioeducativas, as visitas domiciliares para apuração da veracidade dos fatos.

Como é possível, neste contexto de barbárie, de violência, de reforço ao individualismo e à psicologização de todas as relações sociais, falar em direitos sociais e humanos? Da mesma forma, como buscar objetivos de longo prazo, falar em projeto profissional numa sociedade de curto prazo, que se baseia em metas e não em projetos? Como materializar valores sociocêntricos afirmados e defendidos no que se convencionou chamar de projeto ético-político profissional?

3 - PROJETO PROFISSIONAL E SUAS FORMAS DE OBJETIVAÇÃO

Neste espaço, pretendo apontar o que entendo como dificuldades reais para darmos concretude ao projeto ético-político profissional em termos da sua apropriação no contexto acima problematizado. Considero que as dificuldades são de duas ordens de questões:

A primeira, de natureza material-concreta: o mundo burguês e sua lógica constitutiva, sua estrutura e dinâmica, limita a construção da contra hegemonia possível pelo projeto, mas não elimina a sua possibilidade. A análise marxista nos mostra exatamente o contrário: é em razão da hegemonia do pensamento burguês, e em confronto com ela, que faz sentido construirmos a contra-hegemonia do nosso projeto profissional. É por isso que nosso projeto tem uma efetividade concreta na vida profissional da categoria como sujeito coletivo e no cotidiano dos profissionais.

Aqui afirmo, enfaticamente, a necessidade e a possibilidade do projeto, apesar das dificuldade, restrições e desafios.

Sem dúvida, os projetos societários que atendem aos interesses das classes trabalhadoras dispõem

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de condições menos favoráveis para enfrentar os projetos das classes dominantes. Trata-se de uma luta, de disputa política, da construção de uma nova correlação de forças.

A segunda, de ordem teórico-intelectual: a ausência de uma correta apropriação dos fundamentos teóricos, éticos e políticos deste projeto profissional. Neste aspecto se põe a tendência de idealização do nosso projeto ético-político ou de tratá-lo como uma carta de princípios.

Por isso, a meu ver, somente a apropriação de uma teoria que está na base da formulação deste projeto, teoria eminentemente crítica radical, que ilumine as contradições, possibilitará depurar o projeto do ethos liberal burguês que atravessa sua formulação, seu alcance e suas possibilidades.

Nosso projeto profissional se expressa claramente nas atribuições e competências socioprofissionais e políticas que fazem parte da Lei de Regulamentação da profissão. Mas ele deve ser também o parâmetro para a aquisição de novas competências.

Se expressa nas campanhas e documentos jurídico-políticos, na nossa rica produção teórica, que atravessa mares e marés, se expressa numa determinada forma de esta categoria se organizar.

Nestes documentos, inscrevem-se tanto os valores que a profissão determina, o conjunto de competências socioprofissionais e políticas quanto a direção político-profissional estratégica. Então, Lei de Regulamentação, Código de Ética e Diretrizes Curriculares da formação profissional não são apenas instrumentos jurídicos, contemplam também orientações técnico-operativa e ídeo-políticas.

Os valores e princípios subjacentes aos documentos: Código de Etica, Diretrizes Curriculares e Lei de regulamentação profissional, subsidiam as reflexões e instigam uma determinada postura profissional.

Traduzindo tais valores e princípios para as particularidades do exercício profissional, o projeto ético-político explicita-se na exigência de competência; a qual não depende somente de uma vontade política e da adesão a valores, mas da capacidade de torná-los concretos, donde a

identificação do nosso projeto profissional como unidade entre as dimensões ético-política, teórico-metodológica, técnico-operativa, formativa e investigativa, na direção da prestação de serviços com qualidade (GUERRA, 2012). Mais ainda, a capacidade de tornar concretos os valores do projeto ético-político profissional exige capacidade de crítica teórica, de compreender o significado do nosso exercício profissional no contexto da sociedade burguesa e de suas determinações contemporâneas, consistência metodológica para realizar a leitura mais correta possível da realidade e capacidade para propor e projetar estratégicas e táticas sociopolíticas e profissionais.

Considero que existem algumas maneiras de fortalecer o projeto ético-político diante da crise e de materializar seus valores. Abaixo cito algumas:

1) Participação nas lutas mais gerais da sociedade brasileira: tais como, as que defendem o modelo de política pública, universal e gratuita, ou seja, a mobilização da categoria e das entidades em defesa da políticas sociais, dos segmentos populacionais subalternizados e das minorias, participação em Fóruns, Conselhos, Comissões, Frentes, e nos diversos Movimentos Sociais (de Negros, Mulheres, Criança e Adolescente, etc).

2) Ações em defesa dos trabalhadores e da educação de qualidade, junto às instâncias governamentais, diversos Ministérios, dentre eles o da Educação, Ministério Público, bem como fornecer para a sociedade parâmetros de qualidade para a educação que deva estar a serviço da classe trabalhadora.

3) Utilizar a comunicação como um veículo privilegiado pelo qual estabelecemos uma determinada relação com a sociedade, esclarecemos nosso posicionamento sobre fatos e processos sociais e prestamos serviço de informações, orientações, ou seja, de utilidade pública. Aqui falo, por exemplo, do Observatório das Lutas Sociais. Falo também das campanhas do CFESS “Em defesa do trabalho” e “Sem movimento não há liberdade” , da campanha da ENESSO “Nem um passo atrás”, da campanha do Conjunto CFESS/CRESS “Contra a precarização do trabalho” e da campanha das entidades (CFESS, ABEPSS e ENESSO) “Educação não é fast food”,

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dentre outras. Aqui se percebe a razão crítica na sua radicalidade. A meu ver, temos que conversar mais com a sociedade brasileira, explicitar quais são nossas lutas, esclarecer as bandeiras que defendemos e buscar adesão a elas.

4) Articulação política com outras categorias profissionais que partilhem de nossos valores, identificando aliados.

5) Adensamento e difusão da rica produção teórica da área. Ela é crítica, de qualidade e tem incidência sobre varias áreas e profissões.

6) Reforço às estratégias de enraizamento das entidades na direção de seu fortalecimento, tais como: Criação dos Núcleos de Assistentes Sociais; Criação de Fóruns de Supervisão, dar continuidade aos Projetos Ética em Movimento, e ABEPSS Itinerante.

7) Promoção de eventos como este Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais, congressos nacional e estaduais, programas de capacitação, tais como cursos, seminários e minicursos.

8) Formulação de legislação, portarias e parâmetros para a atuação profissional, dentre outros documentos das entidades.

Entendo que há ainda algo por fazer para fortalecer o projeto: conhecer cada vez mais a categoria, o atual perfil do profissional e estudante, o cotidiano do trabalho profissional, as novas e antigas demandas que nos chegam. Assim, considero que a propriação de dados via pesquisa da realidade é fundamental. Temos que nos apropriar dos dados da realidade que já possuimos: coletados pelas COFI, pelas Comissões de Ética (denúncias que chegam ao CRESS), questões e sugestões que chegam às secretarias dos CRESS, e temos que investir em pesquisas sobre novas tendências, objetos, a imagem social e autoimagem da profissão. Resgatar dossiês, investir na elaboração de outros. Não há duvidas de que os CRESS possuem o domínio dos dados da realidade sobre os campos de trabalho, condições éticas e técnicas, estágio, etc. A ABEPSS também dispõe de dados importantes. Mas temos que observar que a direção social posta na análise das condições e relações de trabalho profissional deve estar sempre articulada com os dilemas e as lutas dos demais trabalhadores.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO

Quero concluir lembrando algo que me parece central: se o projeto ético-político está na contra mão do projeto capitalista, ele nos ajuda a não tratar a barbárie como algo natural. Este projeto pelos seus valores nos protege do individualismo do ethos liberal burguês, da resignação, dos procedimentos burocráticos e tarefeiros, da formação sem qualidade, do perfil de profissional flexível e perfeitamente adaptado às necessidades do atual regime de acumulação e do mercado de trabalho, ele nos afasta da postura possibilista.

O projeto ético-político é a nossa trincheira. Nos ajuda a ter claro qual é a sociedade que queremos, quais são nossos reais e efetivos compromissos na construção deste projeto, e isso não é pouco.

Temos nos perguntado recorrentemente: para que serve um projeto? A meu ver, um projeto tem o mérito de nos ajudar a caminhar, a entender que a história é um processo de largo curso. Como nos ensina o mestre Florestan Fernandes (1977, p. 5): “Enquanto existir contradição sempre haverá possibilidade de os homens e mulheres abrirem ou fecharem os circuitos da história. Somente em movimento coletivo é que os sujeitos, que lutam no campo da esquerda, podem construir alternativas históricas de emancipação política com vistas à emancipação humana.”

Por isso vou me valer das palavras já conhecidas de Brecht para deixar uma mensagem (...) em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, [o projeto profissional critico nos adverte que] nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.

Assim, os últimos acontecimentos no Brasil que têm envolvido vários sujeitos em mobilizações há muito tempo não vistas, são a prova de que a “velha” touperia continua cumprindo seu compromisso histórico. Cabe-nos, como profissionais e sujeitos políticos, fazermos o mesmo.

NOTAS

1 - Cf. O termo barbárie civilizada é do grande intelectual Michael Lowy, em artigo publicado no Brasil pelo jornal Em Tempo ([email protected]) e originalmente em francês, na revista Critique Communiste nº 157, hiver 2000.

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2 - Faço uma referencia especial a Campanha do CFESS/2013: Toda violação de direitos é violência.

3 - Cabe notar que o Estado também, e acima de tudo, desenvolve uma função econômica direta. Ele investe em setores estratégicos, socorre os setores privados da falência bem como intervêm diretamente na economia através do pagamento da divida e garantia do superávit da balança de pagamento.

4 - Dizem Marx e Engels (1982, p. 23) “o poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia (...) o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão da outra”.

5 - Vários au0tores têm demonstrado que sob a vigência do Estado de Bem Estar Social nos países desenvolvidos gestou-se tanto o fascismo quanto, na periferia, ditaduras civis e militares como formas de repressão aos movimentos revolucionários (Cf. Lessa, 2007; Netto, 1990, dentre outros).

6 - Ver Mota (2010), para quem desde os anos 2000 há uma regressão das políticas distributivistas em favor daquelas de combate a pobreza focalistas, seletivas e fragmentarias. Motta, O mito da assistência social : ensaios sobre Estado, política de sociedade. São Paulo, Cortez Editora, 2010.

7 - Neste trabalho, gerencialismo é entendido como mecanismos de gestão privada introduzidos no setor público, com adoção de critérios, ações e na lógica do calculo racional da relação custo-beneficio. Tal preceito foi amplamente difundido por Bresser Pereira no governo Fernando Henrique Cardoso na Reforma do Aparelho do Estado (1996) através do conceito de administração gerencial para o setor público.

8 - Como diz Antonacci, “As próprias referências teóricas e pragmáticas de discursos, como da Psicologia, Biologia, Fisiologia, Sociologia, Higiene Mental e do Trabalho — que tiveram seus desenvolvimentos articulados à produção de formas de conhecimento e de intervenção para construir a fábrica e a sociedade sob a lógica da razão técnica — canalizaram atenções e projetaram visões sociais a respeito da modernidade industrial dentro destes encaminhamentos” (1993, p. 11).

9 - Se analisarmos apenas o Programa Bolsa Familia, carro chefe dos últimos governos do PT, temos que grande parte das atividades desenvolvidas pelos assistentes sociais e outros profissionais, exige um tipo de relacionamento entre usuário e profissional (em geral, de todos, tendo em vista a tendência a desespecialização, polivalência e uniformidade das funções) na direção de forjar comportamento, disciplinar e controlar a vida do usuário, possibilitadas pelas exigências de critérios e condições que incidem na mudança comportamental, visando o ajustamento dos sujeitos. Basta olharmos para as “condicionalidades” para vermos como os usuários são enquadrados na fôrma dos valores liberais burgueses.

10 - Não é casual que neste contexto crescem os apelos a redução da idade penal dentre as tendências de privação da liberdade e higienização dos pobres. Tampouco o é o crescimento exponencial da população carcerária.

REFERÊNCIAS

BRECHT, B. Nada é impossível de mudar . Disponível em: http://www.consciencia.net/artes/literatura/brecht.html. Acesso 20 de junho de 2013.

BRESSER PEREIRA, L. C. Crise econômica e reforma do Estado no Brasil - Para uma interpretação da América Latina. São Paulo, Ed. 34 Ltda, 1996.

CFESS Manifesta. Campanha de Gestão do Conjunto CFESS-CRESS (2011-2014) “No mundo de desigualdade, toda violação de direitos é violência”. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta2012_campanhagestao_SITE.pdf. Acesso em: 20 de junho de 2013.

FERNANDES, F. Os circuitos da história. São Paulo: Hucitec, 1977.

GUERRA, Y. A racionalidade hegemônica do capitalismo no Brasil contemporâneo: uma análise das suas principais determinações. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.- PUC, 1998. Original inédito.

GUERRA, Y. A dimensão técnico-operativa no Serviço Social: desafios contemporâneo. In: SANTOS, C. BACKX, S eGUERRA, Y. Juiz de Fora, UFJF, 2012.

HARVEY, D. Condição pós-moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 4ª Ed. São Paulo, Loyola, 1994.

LOWY M. Barbárie e modernidade no século 20. Fórum Social Mundial 2001. Porto Alegre: Biblioteca das Alternativas. Publicado no Brasil pelo jornal ‘Em Tempo’ .([email protected]) e originalmente em francês, na revista Critique Communiste n. 157, Hiver 2000.

MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto Comunista. In: Textos, vol. III. São Paulo: Edições Sociais/Editora Alfa-Omega, 1982.

MOTTA, A. E. O mito da assistência social: ensaios sobre Estado, política de sociedade. São Paulo, Cortez Editora, 2010.

NETTO, J.P. Capitalismo e reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981, .

WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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APONTAMENTOS SOBRE O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL

O desenvolvimento do tema proposto, em nosso entender, pressupõe a compreensão do atual projeto, que, a partir de 1998, tornou-se denominado projeto ético-político do Serviço Social no meio profissional brasileiro. Para tanto, partiremos de sintéticas considerações acerca do ser social, destacando o trabalho como atividade que o caracteriza e constitui. O trabalho a que nos referimos é a uma atividade que ultrapassa a dimensão do mero condicionamento biológico, da mera reação adaptativa ou submissão ao mundo ambiental. Isso porque nos referimos a uma atividade considerada não apenas pela realização do produto, mas cujo produto resulta de um processo que contou com a consciência para sua efetivação. Ou seja, para a materialização de um produto, é imprescindível a prévia ideação. Consideramos que a ação consciente visando determinada finalidade é aquisição que viabilizou a ultrapassagem do animal para além da esfera da necessidade, da restrição definida pelo nexo causal do mundo natural. Portanto, processo de constituição do ser social, sem que para isso haja eliminação dos condicionamentos naturais, uma vez que, recorrendo à consciência na busca de satisfação de suas necessidades, o ser social constrói o mundo humano recuando, mas não eliminando, as barreiras naturais.

Podemos nos referir ao trabalho como elemento chave do salto que permitiu a hominização do ser natural. Um processo que, por meio da busca de respostas às carências desse ser que se humanizava, viabilizou o desenvolvimento de novas capacidades, novas qualidades e novas necessidades.

Diante do exposto, parece-nos claro que a capacidade de previamente idear o produto que a ação objetivará é tipicamente humana. A busca incessante pela autorreprodução engendrou tal capacidade, permitindo ao ser social a captação ideal do mundo e a possibilidade de nele poder interferir conscientemente.

Tão-somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação. O que não desmente o fato

Assistente Social. Mestre em Filosofia (UGF). Doutora em Serviço Social (UFRJ). Professora adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - graduação e pós-graduação. Pesquisadora do Observatório dos Direitos do Trabalho da Faculdade de Serviço Social da UERJ

Valéria Forti

Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela PUC SP. Experiência de trabalho no Tribunal de Justiça (SP), e com pesquisa na área judiciária. Pesquisadora e docente na Universidade Cruzeiro do Sul-SP, no Curso de Serviço Social e no mestrado em Políticas Sociais

Eunice Teresinha Fávero

O trabalho foi base “dinâmico-estruturante”1 de um novo tipo de ser - o Ser Social - , todavia, categoria cujo surgimento só foi possível após certo grau de desenvolvimento do processo de reprodução do ser orgânico. Diferentemente dos tipos de atividades que se mantêm fixadas na distinção de espécies biológicas, como as atividades realizadas pelas abelhas, por exemplo (FORTI, 2013, p. 25).

Serviço Social no campo sociojurídico: possibilidades e desafios na consolidação do projeto ético-político profissional

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Diante do exposto, cabe destacar que, segundo Heller, a história é a substância da sociedade e nela estão contidas esferas heterogêneas, por exemplo, a produção, as relações de propriedade, a estrutura política, a vida cotidiana, a moral, a ciência e a arte (1989, p. 3). Daí inferirmos que é na história, na vida em sociedade, que diferentes interesses e concepções são projetados, perseguidos e disputados pelos distintos segmentos, classes sociais. Ou seja, numa perspectiva macrossocial, os projetos societários são forjados pelos sujeitos que compõem a vida social, visando o conjunto da sociedade. Entretanto, mesmo que assim sejam justificados e se dirijam a esse conjunto, não significa que são projetos que atendem toda a coletividade, uma vez que, como dito, vinculam-se a interesses distintos. Em nossa sociedade, por exemplo, não é difícil identificarmos a relação entre projetos societários e interesses da classe dominante, o que torna evidente a inerente dimensão política desses projetos, pois eles são construídos historicamente e evidenciam relações de poder, que exprimem as contradições inerentes ao antagonismo das classes sociais.

No campo profissional, apesar de específico, não há diferença essencial, uma vez que as profissões são partícipes da vida social. Ou seja, seus projetos se relacionam com os projetos societários, mesmo que exista contraposição aos posicionamentos prevalecentes na sociedade, e, não obstante se dirigirem a necessidades sociais, particularizam valores e finalidades profissionais. Conforme Netto,

Assim, voltando nossa atenção para o Serviço Social brasileiro - profissão engendrada em dado período do desenvolvimento do modo de produção capitalista - , cabe destacar que durante longo período seu projeto profissional esteve atrelado, fundamentalmente, aos interesses burgueses, mesmo que dirigisse sua ação à classe trabalhadora. Se nos detivermos nos valores que sustentaram o trabalho desses profissionais, sem dificuldade observaremos que o conservadorismo foi insólito no percurso histórico do Serviço Social e que, mesmo que não possamos falar em erradicação, só captamos referência distinta desse quadro no período posterior à redemocratização política do país. Foi um período em que desdobramentos do chamado Movimento de Reconceituação do Serviço Social se materializaram, conformando um perfil profissional em que a crítica à ordem social tornou-se presente. Dessa maneira, pode-se dizer que a retomada da democracia política no país possibilitou que os assistentes sociais experimentassem significativos avanços, tanto no plano intelectual quanto em nível organizativo, sendo a hegemonia conservadora nessa profissão colocada em questão. Isso fez reacender o veio de inspiração mais crítica e progressista do Movimento de Reconceituação:

Sendo assim, tivemos a partir desse período novas diretrizes curriculares para a formação profissional e a efetivação do Código de Ética Profissional de 1986. Um Código por meio do qual as referências éticas desconectadas da história e a perspectiva alinhada aos valores da fé religiosa foram colocadas em xeque. Em seu último Código de Ética, datado de 1993, o Serviço Social garantiu e buscou ampliar as conquistas profissionais impressas no Código de 1986. Portanto, o Código de Ética vigente firmou importantes valores e diretrizes para o exercício

os projetos profissionais representam a autoimagem de uma profissão, formulam os requisitos (teóricos, práticos e institucionais) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as bases das suas relações com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com

(...) é somente quando a crise da autocracia burguesa se evidencia, com a reinserção da classe operária na cena política brasileira (...), que a perspectiva da intenção de ruptura pode transcender a fronteira das discussões em pequenos círculos acadêmicos e polarizar atenções de segmentos profissionais ponderáveis (...). Cabe notar, en passant, que o seu futuro está hipotecado ao alargamento e ao aprofundamento da democracia na sociedade e no Estado brasileiro (NETTO, 1991, p. 248).

de que tal satisfação só possa ter lugar com a ajuda de uma cadeia de mediações, as quais transformam ininterruptamente tanto a natureza que circunda a sociedade, quanto os homens que nela atuam, as suas relações recíprocas etc.; e isso porque elas tornam praticamente eficientes forças, relações, qualidades etc., da natureza que, de outro modo, não poderiam exercer essa ação, ao mesmo tempo em que o homem - liberando e dominando essas forças - põe em ser um processo de desenvolvimento das próprias capacidades no sentido de níveis mais altos (LUKÁCS, 1978, p. 5).

as instituições privadas e públicas (inclusive o estado, a quem cabe o reconhecimento jurídico dos estatutos profissionais) (1999, p. 4).

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profissional, que se colocam de modo divergente daqueles que vêm sendo propagados e efetivados em alinhamento com a ordem econômica nacional e internacional. São valores e diretrizes que representam os compromissos assumidos pelo Serviço Social nas últimas décadas e fundamentam o que, a partir de 1998, tornou-se conhecido no meio profissional brasileiro como projeto ético-político do Serviço Social.

Mais ainda: podemos dizer que são valores e diretrizes que têm os interesses da classe trabalhadora e a possibilidade de contribuição profissional para construção de uma nova ordem societária como fundamento e norte e, por conseguinte, se colocam em defesa dos direitos humanos, entendendo os limites e possibilidades de sua materialização na sociedade de classes. Posicionamento que, evidentemente, não se coaduna com a lógica atualmente instituída, que

POSSIBILIDADES E DESAFIOS DO SERVIÇO SOCIAL NO CAMPO SOCIOJURÍDICO NA CONSOLIDAÇÃO DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO

Falar em possibilidades e desafios na consolidação do projeto ético-político profissional, nos espaços sociocupacionais do assistente social, que compõem o que vem sendo denominado de campo sociojurídico, pressupõe o entendimento do significado do “projeto ético-político profissional dos assistentes sociais” hegemônico nos dias de hoje, conforme já apontado na primeira parte deste texto, e também entendermos em que consiste esse campo afinal. Que espaços sócio-ocupacionais fazem parte dele, o que têm em comum e o que os diferencia. Qual a demanda institucional direcionada ao assistente social; qual a demanda levada pela população atendida; e como o assistente social responde a elas - com que projeto de profissão, com qual intencionalidade.

Nos últimos anos, a denominação campo sociojurídico tem sido tratada em nosso meio profissional como síntese de espaços sócio-ocupacionais, como o Judiciário, o Sistema Prisional e de Segurança Pública, o Ministério Público, a Defensoria Pública e, por vezes,

também os Sistemas de Acolhimento de Crianças e de Adolescentes - como os que executam medidas protetivas e socioeducativas (FÁVERO, 2003).

Como se vê, todas elas são organizações que, de alguma maneira, vinculam-se ao Estado e desenvolvem ações por meio das quais são provocadas, são aplicadas, ou são executadas medidas geralmente decorrentes dos aparatos legais civil e penal. São espaços de exercício do controle social do Estado em relação à sociedade.

No X Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), em 2001, o “campo sociojurídico” foi pela primeira vez incorporado nas sessões temáticas. Em 2004, a agenda política do I Encontro Nacional do Serviço Social no Campo Sociojurídico, em Curitiba, recomendou que o Conjunto CFESS/CRESS incorporasse a denominação “campo das práticas sociojurídicas” e que fomentasse a articulação de Comissões do Campo Sociojurídico, em todas as regiões do país, com o objetivo de discutir e sistematizar as atribuições, competências e os aspectos éticos relativos a esse campo, em articulação com o projeto ético-político da profissão (FÁVERO, CFESS, 20122).

No que se refere às atribuições e competências dos profissionais que atuam nesse campo, as últimas gestões do Conjunto CFESS/CRESS vêm desenvolvendo ações com o objetivo de sistematizá-las. Recentemente, um grupo de trabalho3 processou a descrição e a análise de contribuições encaminhadas pelos CRESS de todo o país, de maneira a dar base para a elaboração de resolução a ser emitida pelo CFESS, definindo as atribuições e competências dos assistentes sociais que atuam nesse campo.

Os estudos que esse grupo vem desenvolvendo levaram a questionamentos - particularmente por Elisabete Borgianni - sobre a denominação “campo” sociojurídico, e ela vem defendendo a mudança da denominação para “área” sociojurídica. São questionamentos de natureza conceitual, pois até o momento tal denominação não havia sido objeto de análise mais aprofundada. A sugestão para uso de área e não campo, entre outras justificativas, remete aos estudos realizados por Pierre Bordieu sobre “campo jurídico”4. Não vamos aqui entrar nesse debate, mas apenas sinalizar que Bordieu trabalha com a noção de campo como sendo “um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e jogo de poder”5.

pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva em todos os países, tanto do primeiro como do segundo mundo (WACQUANT, 2001, p. 8).

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Como essa análise ainda está sendo processada, e para facilitar a comunicação neste texto, usaremos a denominação “campo sociojurídico” como síntese das várias áreas de trabalho ou espaços institucionais que o integram, conforme se convencionou nos últimos anos no meio profissional.

É possível afirmar que atualmente o Serviço Social está consolidado nas principais instituições/espaços sócio-ocupacionais que compõem esse campo - o que não é o mesmo de dizer que o atual projeto ético-político profissional do Serviço Social está consolidado. O Serviço Social é reconhecido como necessário nos Tribunais de Justiça praticamente desde o início da profissão no Brasil, inclusive com ampliação das possibilidades de atuação após a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso e outras legislações aprovadas nos anos recentes, em especial as relacionadas à área cível/direito de família. No Sistema Prisional e no Sistema de Segurança, há várias décadas o assistente social é chamado a integrar equipes técnicas, atuando especialmente nos espaços das prisões. No Ministério Público, o assistente social vem ocupando lugar, com tendência a atuar sobretudo na assessoria técnica, subsidiando ações que visam a coletivização das demandas individuais. E na Defensoria Pública, vem se inserindo nos anos mais recentes, subsidiando ações, tanto relativas a demandas individuais como coletivas - para ficar apenas em alguns exemplos.

Nos lugares de atuação do assistente social no campo sociojurídico, geralmente são desenvolvidas ações relacionadas à aplicação das leis - para provocar sua aplicação, para subsidiar decisão com vistas a aplicá-las, para executar ações decorrentes da determinação legal, para controlar sua efetiva aplicação. As leis implicam deveres e obrigações, portanto, têm relação com moral, com ética, com valores. Entre esses deveres e obrigações, estão desde a garantia de direitos de um indivíduo até a responsabilização e sanções a indivíduos, Estado, grupos sociais, empresas etc.

Consolidar um projeto ético-político como o do Serviço Social nesse campo, em um tempo de avanço da ideologia neoconservadora, movida sobretudo pela “expansão destrutiva do capitalismo financeiro”, que resulta no “agravamento da desigualdade estrutural e degradação da vida humana e da natureza” (BARROCO, 2012, p. 140), não é evidentemente tarefa a ser efetivada somente por um assistente social ou por uma equipe profissional. Exige organização política

e resistência por meio de lutas coletivas, aliadas ao investimento na capacidade criativa e propositiva para, no dia a dia do exercício profissional, fazer valer ações que se contraponham a manifestações conservadoras, moralistas e preconceituosas.

Nesse sentido, pensamos que vale a pena reproduzir um trecho da fala da professora Lucia Barroco em 2009, no Seminário Nacional dos “30 Anos do Congresso da Virada”, que ocorreu em São Paulo. Ela nos diz:

Essa realidade nos impõe muitos desafios, entre eles a capacidade de organizar estratégias que viabilizem possibilidades de consolidação do projeto ético-político profissional, particularmente de sua materialização no trabalho cotidiano, nas diversas áreas que compõem esse campo sociojurídico.

Como, então, fazer valer os princípios dispostos no Código de Ética do Assistente Social, como os da liberdade - como valor central - , da democracia, da defesa de direitos e em favor da justiça social,

A ideologia neoconservadora tende a se irradiar nas instituições sob formas de controle pautadas na racionalidade tecnocrática e sistêmica tendo por finalidade a produtividade, a competitividade e a lucratividade, onde o profissional é requisitado para executar um trabalho repetitivo e burocrático, pragmático e heterogêneo que não favorece atitudes críticas e posicionamentos políticos. Instituições voltadas à coerção, como prisões, delegacias, casas para jovens infratores, abrigos, instituições jurídicas, demandam ao assistente social atividades de controle e censura: avaliações de situações que envolvem os sujeitos criminalizados moralmente e julgados como irrecuperáveis pelo poder dominante. A ideologia dominante está incorporada nestas instituições de formas diversas, como mostram diversos estudos (Wacquant, 2007; Batista, 1, 2). O discurso dominante é o da naturalização e moralização da criminalidade, as práticas de encaminhamento são seletivas, baseadas, muitas vezes, em critérios que envolvem avaliações morais, de classe e condição social. O assistente social precisa estar capacitado para enfrentar esse discurso, para não reproduzi-lo reeditando o conservadorismo profissional, para não atender as novas requisições do estado policial, para não incorporá-las exercendo a coerção. Esse enfrentamento ético-político supõe estratégias coletivas de entidades e com os movimentos organizados da população usuária (BARROCO, 2012, p. 147-148).

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do compromisso com a qualidade dos serviços e do empenho na eliminação do preconceito e da discriminação (CFESS, 2011), em no nosso dia a dia de trabalho em organizações que foram constituídas historicamente para aplicar o controle social do Estado sobre a população? Controle que, no caso do Brasil, vem se traduzindo na ampliação do Estado Penal, com a criminalização dos pobres, em detrimento do investimento na eliminação da desigualdade social.

Enfim, como efetivar, com base no projeto profissional que o Serviço Social vem construindo nas últimas décadas, a intervenção cotidiana em instituições que, em tese, devem ser espaços de reclamação, de acesso e de garantia de direitos, de distribuição da justiça, mas que podem também interpretar de maneira preconceituosa os acontecimentos vividos pelos usuários, sejam indivíduos ou grupos, e agir coercitivamente, enquadrando, disciplinando e controlando comportamentos individuais e coletivos quando considerados prejudiciais ou contrários às convenções sociais dominantes (FÁVERO, CFESS, 2012)?

Nesse campo - mas não só nele - não raro defrontamos com expressões da questão social que aparecem concretamente, no seu imediato, como transgressões da lei, estando, portanto, os supostos transgressores sujeitos a punições, a responsabilizações no âmbito civil e criminal. Ainda que, em princípio, nosso trabalho seja requisitado para dar suporte a decisões via de regra relacionadas à proteção de direitos fundamentais e sociais, se a forma como trabalhamos, se as entrevistas, reuniões, articulações e registros documentais que realizamos não estiverem fundamentados em conteúdos teóricos e metodológicos consistentes, e em postura ética consequente - alinhados ao nosso projeto profissional - , serão muitas as possibilidades de caminharmos em uma direção contrária a ele.

Vamos trazer um exemplo simples do âmbito do Judiciário que revela fragilidades que nos afetam a todos: há alguns anos, em conversa de uma das autoras deste texto com uma juíza que atuou em Varas da Família, ela afirmou: “Os relatórios que alguns assistentes sociais me apresentavam não me ajudavam na decisão que teria que tomar, pois o que eles continham era a descrição de uma oitiva - e para isso não preciso do assistente social, eu mesma faço a oitiva; o que eu preciso é saber como o Serviço Social analisa aquela situação”. Mais recentemente,

uma discente, graduada em Direito e mestranda em Políticas Sociais, fez a mesma observação sobre a semelhança entre o relatório de um assistente social e uma oitiva ao comentar pesquisa que realizara em autos processuais que envolvem crimes sexuais contra crianças.

Por outro lado, sabemos que nesse campo é possível a efetiva contribuição do Serviço Social para acesso e garantia de direitos humanos e, no interior destes, dos direitos sociais. Falamos em “contribuição” porque o Serviço Social é apenas uma das áreas do conhecimento e do fazer a lidar com a realidade social e, portanto, não cabe tão somente aos profissionais dessa área enfrentar sozinhos as expressões da questão social para garantir a efetivação de direitos. Por isso é necessária a busca da “articulação interprofissional e intersetorial para o avanço do nosso trabalho cotidiano, para além do ‘estudo de caso’ e da perícia social” - que são necessários, mas não podem ser tomados como procedimentos “únicos de algumas das áreas do campo sociojurídico - como é o caso do Judiciário, do sistema prisional”, e mesmo de Defensoria Pública, por exemplo. Essa postura exige que pensemos os desafios e as possibilidades na perspectiva dos direitos “para além da ótica exclusiva do nosso espaço sócio-ocupacional e da nossa profissão” (FÁVERO, CFESS, 2012, p. 131-132).

Nesse sentido das “possibilidades”, queremos trazer também um exemplo de experiência bastante significativa, com repercussão coletiva. Trata-se de trabalho realizado por uma assistente social do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, (Comarca de Maravilha), cujo estudo social com respectivo registro em relatório, fundamentando a necessidade de que adotantes de crianças mais velhas também tivessem direito a licença-maternidade de 120 dias6

nos casos de trabalho sob vínculo da CLT, cuja licença era fracionada, dependendo da idade, serviu de base para “o Ministério Público Federal entrar com Ação Civil Pública contra o INSS (Instituto Nacional de Seguro Social), para aplicação integral do período de Licença Maternidade em benefício das mães adotivas, seguradas da Previdência Social, independente da idade do adotando” (SEGALIN, 2012, s/p). Em maio de 2012 a Justiça Federal decidiu favoravelmente e, após notificação ao INSS, a decisão passou a valer em todo o território nacional.

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Avançando um pouco mais nossa reflexão sobre as possibilidades de conquista e acesso a direitos, é importante lembrar que os direitos humanos - de natureza social, econômica e cultural, em sua configuração moderna, como ensina Barroco (2009) - respaldam-se em conquistas não exclusivas da burguesia. Isso porque a luta de classes possibilita que os trabalhadores incorporem a luta pelos direitos humanos como forma de resistência à exploração e à desigualdade, o que se concretiza em meados do século XX, com a agregação, nas declarações de direitos humanos, dos direitos sociais, econômicos e culturais aos direitos civis e políticos (BARROCO, 2009, p. 57-58).

Assim, entendemos que, mesmo nos limites da atuação cotidiana, uma das formas de materializar a contribuição com a justiça e os direitos nessa perspectiva pode se dar com o desvelamento e a interpretação crítica da demanda trazida e/ou vivida pelos indivíduos sociais, seja na abordagem individual ou coletiva, atendidos pelo assistente social.

No planejamento, é essencial excluir qualquer possibilidade de que os objetivos do trabalho profissional sejam desvirtuados, por exemplo, com a elaboração de um laudo, a realização de uma visita domiciliar ou institucional, ou de uma entrevista, como recursos para obtenção de provas que embasem a responsabilização penal de envolvidos na ação. Ou a elaboração de análise social de uma determinada área de moradia ou uma área de concentração de dependentes químicos (como é o caso da região conhecida como

“Cracolância”, na cidade de São Paulo), para subsidiar ações de reintegração de posse ou de higienização urbana. Ao contrário, no âmbito especialmente da atuação na Defensoria, no Ministério Público, e também no Judiciário, esse trabalho, se fundamentado em base analítica crítica, de natureza investigativa e científica, poderá contribuir com a defesa de direitos coletivos e com subsídios para avaliação e proposição de políticas públicas.

Uma das estratégias centrais do Serviço Social na instituição, conforme concluiu Sílvia Tejadas em pesquisa sobre o Serviço Social no Ministério Público, é “coletivizar demandas individuais, buscando percebê-las como direitos universais”. Essa estratégia, conforme seus estudos,

A investigação rigorosa e fundamentada da realidade social vivida pelos sujeitos e grupos sociais com os quais trabalhamos é essencial para eliminar ou diminuir o risco de fazermos uso do poder dado pelo nosso saber profissional, e pelo poder decisório inerente às instituições que compõem o campo sociojurídico, na contramão do projeto ético-político da profissão.

Para objetivarmos um pouco mais alguns desafios e possibilidades para a consolidação de ações embasadas no projeto ético-político do Serviço Social, consideramos importante o investimento em algumas frentes, como:

- fazer do campo sociojurídico um espaço de pesquisa, de investigação permanente (em articulação com a academia e mesmo sem essa participação), de maneira que a produção de conhecimentos nas áreas que o compõem - sobre particularidades do trabalho e da realidade social - se configure como possibilidade de resistência à criminalização da pobreza e à judicialização dos conflitos familiares e da questão social, e de avanços em direção a um conhecimento qualificado;

- avançar em lutas e articulações com vistas a abrir e ampliar espaços de trabalho para o assistente social no Ministério Público, na Defensoria Pública, na Justiça Federal - neste caso, combatendo a terceirização e

Entender que os processos de trabalho do assistente social têm como objeto as expressões da questão social, e que essas expressões expõem violações de direitos, via de regra provocadas por situações estruturais e conjunturais, exige de nós a análise crítica sobre as dimensões que constituem esse processo de trabalho, ou seja, o objeto sobre o qual a ação acontece; os meios de trabalho, ou seja, os instrumentos, os recursos materiais e, em especial, os recursos intelectuais - o conhecimento da realidade social, de seus movimentos, de suas correlações de força, de suas possibilidades, e a clareza sobre a finalidade do trabalho. (...)

O planejamento do trabalho, articulado ao projeto profissional, essencial nesse processo, é talvez o nosso grande desafio: qual é de fato o objeto do trabalho que realizamos, o que fazer nesse trabalho, para que fazer e como fazer? (FÁVERO, CFESS, 2012, p. 136).

encontra consonância com as reflexões de Iamamoto (2010) quanto ao desafio para o assistente social, no seu trabalho cotidiano, de desentranhar das situações singulares de indivíduos, famílias, grupos e segmentos, atravessadas por determinações de classe, as suas dimensões universais. Com isso, propõe transitar da esfera privada para a cena pública onde se processa a luta por direitos (TEJADAS, 2013, s/p. Grifo da autora)7.

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a exploração do trabalho dos assistentes sociais que atuam precariamente, mediante contratos por perícia realizada;

- continuar investindo em articulações e estudos para que seja definido, nacionalmente, número necessário de profissionais em proporção ao número de habitantes de cada cidade e número de processos, para atuação na Justiça da Infância e Juventude e na Justiça da Família, especialmente sob inspiração dos parâmetros definidos pela Política Nacional de Assistência Social e pela Política Nacional na área da Saúde Mental/CAPS;

- investir efetivamente na luta nacional para conquista da autonomia administrativa em relação aos magistrados, no caso do trabalho no Judiciário, o que, no âmbito da Justiça da Infância e da Juventude, inclusive implica alteração do artigo 1518 do Estatuto da Criança e do Adolescente - alteração que depende de apresentação e aprovação de projeto de lei. Ainda que este artigo resguarde a autonomia técnica, os profissionais que atuam na área sabem que não são raras as situações de ameaças ou concretização de sanções administrativas em razão de posicionamentos técnicos, como decorrência do autoritarismo muito presente nesse espaço sócio-ocupacional. E isso não pode obscurecer a percepção de que, como em outras áreas de trabalho, também podem existir profissionais do Serviço Social coniventes com o autoritarismo, com a banalização da vida humana e com o desrespeito à ética (FÁVERO, CFESS, 2012), questões que também devemos enfrentar.

Uma estratégia que poderá fortalecer o Serviço Social é a definição das competências e de parâmetros para a atuação dos assistentes sociais nesse campo, como o conjunto CFESS/CRESS está organizando, conforme já mencionado, mas que ainda carece de maior participação e representatividade dos vários espaços sócio-ocupacionais que compõem o campo sociojurídico - isso considerando também a diversidade de experiências e de sujeitos significativos, individuais e coletivos, nos tantos territórios que compõem nosso país (FÁVERO, CFESS, 2012).

Ações que viabilizem a materialização dessas e de tantas outras estratégias importantes para a consolidação do projeto ético-político do Serviço Social no campo sociojurídico dependem, fundamentalmente, de nossa organização política. Organização que pode se dar pela participação em grupos de estudos, fóruns de defesa de direitos, conselhos de direitos, conselhos profissionais, em sindicatos, entre tantas possibilidades.

Recentemente teve início uma articulação provocada pela Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP) para a criação e a consolidação da Associação Nacional dos Assistentes Sociais e Psicólogos da Área Sociojurídica (AASP Brasil). Esta associação, que não pretende substituir sindicatos por ramo de atividade, se de fato se fizer representativa, poderá vir a ser um espaço importante para o fortalecimento de nossas lutas coletivas.

São muitos os desafios colocados para esse campo profissional, e não é pretensão aqui esgotá-los, evidentemente. Enfrentar esses desafios, e apostar na riqueza de suas possibilidades, em sintonia com a democracia, a justiça social, o respeito aos direitos humanos, a busca da qualidade dos serviços prestados e a liberdade é tarefa permanente. Uma tarefa de todos nós e que passa tanto pelo atendimento cotidiano (sem nos deixarmos sucumbir à alienação e à banalização da vida a que as rotinas do dia a dia podem nos levar), como pela luta política organizada e articulada a outras organizações e lutas dos trabalhadores. Nessa direção, finalizamos com outra fala da professora Lúcia Barroco sobre o neoconservadorismo como desafio ao nosso projeto ético-político (também proferida no evento de 30 Anos do Congresso da Virada):

NOTAS

1 - Denominação utilizada por Lukács (1978).

2 - Neste texto aparecem alguns conteúdos iguais ou similares à fala apresentada por Eunice Fávero no II Seminário Nacional do Serviço Social no Campo Sociojurídico, tendo em vista que tanto o II Seminário como o 3º Simpósio Mineiro abordaram a mesma temática. A fala proferida no II Seminário está publicada na íntegra em CFESS, 2012.

3 - Composto por Elisabete Borgianni, Áurea Fuziwara, Valéria Albuquerque, e dirigentes de CRESS das cinco regiões do país.

4 - “Campo jurídico é um conceito que foi formulado por Pierre Bourdieu, que o define como um determinado espaço social no qual os chamados ‘operadores do direito’ - magistrados, promotores e advogados - ‘concorrem pelo

A categoria não está imune aos processos de alienação, à influência do medo social, à violência, em suas formas subjetivas e objetivas. Isso coloca um imenso desafio ao projeto ético-político, na medida em que a sua viabilização não depende apenas da intencionalidade dos profissionais, tendo em vista as suas determinações objetivas, nem se resolve individualmente (BARROCO, 2012, p. 146).

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monopólio do direito de dizer o Direito’ (BOURDIEU, apud SHIRAISHI NETO, 2008: 83 e GAGLIETTI, 1999). In: BORGIANNI, Elizabete. Para entender o Serviço Social na área sociojurídica, Revista Serviço Social e Sociedade, n. 115 (Cortez, 2013), no prelo na ocasião da elaboração deste texto.

5 - “O conceito de campo faz parte do corpo teórico da obra de Bourdieu. Trata-se de uma noção que traduz a concepção social do autor. Campo seria um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e jogo de poder. Segundo Bourdieu, a sociedade é composta por vários campos, vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias”. In: SETTON, M. G. J. A teoria do “habitus” em Pierre Bordieu: uma leitura contemporânea. USP/Faculdade de Educação. maio/jun./jul./ago. 2002 Nº 20. Disponível em: <http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/rbde20/rbde20_06_maria_da_graca_jacintho_setton.pdf>. Acesso em: 31 maio 2013.

6 - “A concessão do salário-maternidade para seguradas da previdência social, no caso de adoção, é [era] aplicada de forma fracionada de acordo com a idade da criança até o limite de oito anos do infante. Dessa forma, o prazo integral de 120 dias acaba [acabava] beneficiando somente as mães que adotam [adotavam] crianças até 1 ano de idade”. Andreia Segalin, Comarca de Maravilha/SC, Entrevista, 2012. Mimeo. Em artigo para a revista Serviço Social e Sociedade, n. 115 (no prelo na ocasião da redação deste texto), Andreia apresenta o relato desta experiência.

7 - Abordagem realizada por Sílvia Tejadas, com base em pesquisa sobre o Serviço Social no Ministério Público. Conteúdo a ser publicado em artigo na revista Serviço Social e Sociedade n. 115 (no prelo na ocasião da redação deste texto).

8 - Art. 151. Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico [grifo nosso].

REFERÊNCIAS

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BORGIANNI, E. Para entender o Serviço Social na área sociojurídica. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 115 (no prelo), São Paulo: Cortez, 2013.

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CFESS. Código de Ética do/a Assistente Social. Resolução CFESS n. 273/1993. In: Legislação e Resoluções sobre o Trabalho do Assistente Social. Brasília: CFESS, 2011.

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NETTO, José P. A crítica conservadora à reconceptualização. In: Serviço Social e Sociedade,. n. 5, São Paulo: Cortez, mar. 1981._________. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 1991.

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Este texto se restringe a retratar as principais questões pontuadas no dia 8 de junho de 2013 na mesa de debate sobre “Saúde e Serviço Social: processo de trabalho, desafios, novas demandas e possibilidades do trabalho profissional”, durante o III Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais em Belo Horizonte. Entre as questões pautadas naquele momento, destacamos a necessária e indispensável interlocução dos assistentes sociais com os fóruns democráticos de direitos, com os movimentos contra a privatização dos direitos sociais, aqui, especificamente o direito à saúde, e com as lutas anticapitalistas em curso. Mesmo atentos às pressões sociais em curso, não podíamos prever que em poucos dias, mais precisamente no dia 20 junho, cerca de dois milhões de pessoas ocupariam as capitais deste país levando bandeiras e gritos de indignação e contestações as mais diversas - ainda que pulverizadas - traduzidas em reivindicações pela presença do Estado brasileiro na garantia dos direitos sociais, veiculando críticas ao poder político e econômico das esferas de governos. E assim, o país foi palco de manifestações explosivas provocadas pela faísca do Movimento Pelo Passe Livre (MPL) que desenhou, sem o saber, um circuito de atos públicos, de revoltas, indignações e, assim, agregou as lutas já em curso com diferentes vocações, mas que, na sua maioria, derivaram, direta e indiretamente, das pautas das classes trabalhadoras e da esquerda anticapitalista.

Não há dúvida de que novas formas de confrontos de classe estão a emergir nas áreas urbanas com sinais de convulsão social e disputas de poder1. Mas, pensamos que o desafio de seu impacto histórico

concreto deve contar e se somar às permanentes lutas do Movimento dos Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), Via Campesina etc., de modo a forjar uma composição de forças unificadas que agregue os diferentes segmentos da classe trabalhadora, numa luta anticapitalista, unificada e organizada, com consciência da massa, para que se constituam enquanto forças sociais decididas pelas reais necessidades e interesses do trabalho2.

No limite, podemos fazer referência a uma das mais imediatas evidências, qual seja: em meio à ostensiva fetichização-reificação da vida social e da brutalização das condições da vida cotidiana, desemprego e trabalho precário, as classes trabalhadoras nas urbes brasileiras ocupam as ruas na contra tensão, imediata, pela dor do tempo e energia vitais usurpados do início ao fim do dia na ostensiva precariedade dos transportes coletivos que sustentam o mais valor das empresas parceiras do Estado burguês.

Contraditoriamente, este pode ser um bom tempo para nós, assistentes sociais, tomarmos posições políticas congruentes a estas revoltas. E, na particularidade do campo da saúde pública, as nossas prioridades, os nossos projetos e as nossas intervenções cotidianas podem dirigir-se a dar relevo e focar o tom socializante do SUS e da Reforma Sanitária Brasileira, no marco do que hoje informa a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde3.

Esta nova conjunção de forças e poder, tão diversas, que as classes trabalhadoras estão demonstrando

O capital é o sangue que flui através do corpo político de todas as sociedadesque chamamos de capitalistas, espalhando-se, as vezes como um filete e outras vezescomo uma inundação, em cada canto e recanto do mundo habitado. (David Harvey)

Assistente Social da UFRJ. Graduada pela FSS/UERJ e mestre e doutora em Serviço Social pela UFRJ

Fátima de Maria Masson

Serviço Social, Projeto Profissional e Prática na Saúde

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só vêm reforçar a ideia base que orientou nossas reflexões naquele momento do Simpósio do CRESS-MG de 2013: os assistentes sociais que atuam nas instituições públicas de saúde dispõem hoje de competências e condições históricas favoráveis para intervir e expandir suas ações profissionais por meio de respostas interessadas e capazes de ir além das requisições institucionais e das demandas imediatas de atendimento que requerem a sua intervenção.

Sustentamos que no conjunto das profissões de saúde o assistente social é aquele que é formado com a necessária competência para proceder à ação ideológica e política, contribuindo na formação da consciência social crítica e emancipada. O que lhe capacita a transcender o empirismo da prática profissional que historicamente o predestinou a posições subalternas e a funções conservadoras nas disputas da direção do projeto institucional.

Referimos-nos às oportunidades que o assistente social hoje tem para fixar ações objetivas - materiais, ideológicas e políticas - e conferir à sua atribuição, o seu papel é, portanto, a sua especialidade na equipe de saúde, pela sua faculdade de: 1) realizar projetos de estudos, ou pesquisa, das demandas e diagnósticos em saúde, que edifiquem análises, que pautem temas e teses sobre as determinações e necessidades de saúde da classe trabalhadora; 2) irradiar o pensamento do campo das humanidades (bioética - função social da saúde no projeto de sociedade - democracia substantiva); 3) analisar e propor o que, rigorosa e integralmente pode se definir como problema, ou seja, as expressões da questão social na saúde, com vistas à formação crítica de consciência sanitária; 4) e, principalmente, dar sua contribuição efetiva na formação de consciência social crítica e emancipada, tanto no que diz respeito à sua categoria profissional, aos demais profissionais de nível superior e, essencialmente, aos trabalhadores/usuários.

RECURSOS PARA IR ALÉM DA EMPIRIA DAS DEMANDAS IMEDIATAS DA SAÚDE 4

E o debate de ideias, nesta síntese fervorosa de Netto, só confirma a função ideológica e política da nossa intervenção profissional no cotidiano da vida social/ institucional, espaço de possível identificação das mediações, reconhecidas sob atos, decisões e condições de vida que assentam a ontológica interação entre a objetivação econômica-social e as possibilidades de escolhas de vida de cada um.

Assim, pensamos que no conjunto das profissões de saúde, o assistente social pode ser aquele profissional com condições de realizar uma crítica a respeito dos condicionantes de classe das doenças. Podemos exercer a função de provocar análises expressivas sobre as contradições e conflitos sociais porque, no presente, temos acesso, no processo de formação básica e continuada, aos recursos teórico-metodológicos para apreensão dos principais complexos sociais determinantes da saúde pública. Além de sermos portadores de projeto de profissão com suporte em arcabouço jurídico, ético-político e teórico-metodológico para a defesa da democracia substantiva, projeto que nos capacita para a crítica as propostas neodesenvolvimentistas em curso.6 Somos os únicos a ter assegurado no estatuto profissional a defesa da classe trabalhadora, nossa vocação é marcadamente política - enquanto ato de escolha ontológica-social7. Nos Princípios Fundamentais do Código de Ética Profissional, a democracia é definida como a “... socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida”.

Socializar a participação política é socializar o poder de decisão sobre as questões determinantes da vida social, o que significa que nós, os assistentes sociais, devemos atuar junto à população no sentido de prepará-la para ultrapassar criticamente o fetiche das programáticas institucionais que conduzem e estabelecem parâmetros de participação a partir de variáveis de adesão aos programas de acolhimento, humanização, integrados aos projetos e prioridades definidas pelas instancias de poder político dominante. Mas isto depende da nossa capacidade crítica e contundente a respeito das saídas pós-modernas vigentes8. Vide a subalternidade e fragmentação das práticas das esferas distritais, municipais e estaduais dos Conselhos de Saúde que padecem de recursos para ações críticas e deliberativas como prescrito na Lei 8.142 de 1990.9 Mas, também e principalmente, projetar ações junto à própria equipe de saúde e aos dirigentes das instituições. Ou seja, entendemos que nossa intervenção crítica não se limita a investigar as causalidades das demandas imediatas

“Os dados que nós temos da análise dos últimos 30 anos de neoliberalismo com suas privatizações, desregulamentações e flexibilizações ... o que a gente só viu no mundo aumentar foi o racismo, a xenofobia e o pauperismo. Mas, a gente tem que ganhar os homens e as mulheres, os jovens e os velhos, para o reconhecimento do que aí está.. e isto só se faz com um aberto, franco e direto debate de idéias. Não temamos a realidade!” (José Paulo Netto)*5

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da população, mas, extensivamente, investigar as demandas e expectativas das equipes da assistência e dos responsáveis pela implementação dos programas e projetos de saúde, o que compreende desde os gestores da instituição até os gestores da rede do SUS.

Cabe rever a histórica alusão dos assistentes sociais a respeito do impedimento contundente para o exercício da autonomia da sua prática conforme o projeto ético-político, o desconhecimento das suas competências, funções e atribuições por parte da equipe de saúde. Vejamos algumas citações correntes: “Os profissionais não têm visão integral da saúde, eles fragmentam o social... Existe uma hierarquia que impede trabalho integrado... Parece haver uma percepção de que o Serviço Social realiza tudo e aquilo que não é de nenhum setor... Eles desconhecem o que é Serviço Social”.

É dado inquestionável que o SUS constitui-se como projeto de mudança no modelo de atenção e gestão da saúde pública no país, inscrito na luta pela Reforma Sanitária Brasileira. Ele veio exatamente para romper com a noção hospitalocêntrica capitaneada pelos interesses das corporações capitalistas da saúde, da assistência medicalizante e da hegemonia do pensamento positivista-biomédico na formulação da organização dos serviços e prioridades em saúde. Necessário se faz ter a letra da Lei Orgânica da Saúde como referencia vigorosa à prática cotidiana: “O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doença e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação... A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde de uma população expressam a organização social e econômica do País” (Art. 2 & 1 Art 3, grifos nossos).

Se refletirmos, cuidadosamente, sobre as possibilidades materiais que estas disposições gerais implicam - consideradas no limite do direito - para a ordem política e econômica, poderemos identificar nelas um tom socializante para o debate da “questão social” na saúde. Mas sabemos que a implementação do SUS se faz na contracorrente da expansão e materialização da ideologia neoliberal10, e de outro, arregimentar os

sujeitos históricos que estão na ponta da execução do SUS depende de tempo para embates ideo-políticos, até que se abram espaços e condições objetivas que alterem as referencias socioculturais tanto no campo da formação e da qualificação, como no campo das práticas e do agir profissional. Acrescentando ainda, como condicionante das expectativas correntes que as equipes de saúde têm em relação às intervenções dos assistentes sociais, lembremos que esta condição está relacionada, de alguma forma, à histórica função subalterna e conservadora do serviço social formada na retórica funcionalista e liberal-humanista (Netto: 1996). Portanto, não há razão para surpresas acerca da expectativa equivocada que os profissionais de saúde têm a respeito da inserção do assistente social. Ao contrário, dado como prática histórica da profissão, é desafio para os assistentes sociais alterarem esta práxis e, consequentemente, esta expectativa. E este é um dos objetos da sua intervenção e, é claro, ao lado das investigações sobre as “expressões da questão social” na saúde11. No entanto, além do desconhecimento do que pode ser a função e atribuição do assistente social, há aquilo que percebemos como queixa fulcral e que, portanto, devemos ser provocados para pensar nas possibilidades de ir além das demandas imediatas, onde reside o busílis do ser e da intervenção do assistente social; referimos-nos a nossa capacidade de revelar e pautar o debate institucional sobre as mediações, as interações entre as forças econômico-sociais e a vida cotidiana.

Entre os ideólogos contemporâneos do Serviço Social, seguiremos na trilha da reflexão pautada por Netto, que além da sua vigorosa análise histórica sobre a trajetória do Serviço Social, trouxe, de modo consistente para nossa formação as categorias teórico-metodológicas marxianas a partir da pesquisa do pensador húngaro, George Lukács, pelo seu esforço de “renascimento do pensamento de Marx”. Disto podemos assentar o seguinte ponto de vista: não entendemos a ação profissional como processo de trabalho, mas como prática política e ideológica, posto que o objeto da nossa intenção/intervenção está inscrito no campo da reprodução social, das relações sociais e da consciência social, dirige-se para a reflexão sobre as contradições sociais, tanto para assegurar os direitos instituídos, como para ampliá-los; ou seja, nossa ação está voltada para a consciência social do outro no conjunto das relações sociais, e é por esta razão que a nossa função social está estrita ao conteúdo ideológico e político no âmago dos históricos conflitos e contradições de classe12. Diferente do que ocorre com as práticas

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dirigidas para mudanças na ordem da natureza, mesmo que nelas sempre haja a convocação política na escolha do objeto a ser pesquisado ou transformado. Assim, entendemos que as práticas sociais e profissionais se efetivam na interação dialética causal entre os determinantes sócio-econômicos e as formas de consciência social a partir das posições de classe dos indivíduos.

Os fundamentos econômicos da vida social, institucional, são “determinantes determinados”, ou seja, sempre existe um campo não dominado, um campo relativo a um momento do devir com possibilidade de ruptura e mudança da direção hegemônica das práticas. Neste sentido, a consciência social de classe tem um papel importante nas práticas sociais e profissionais: compreendida a partir da “complexidade da metodologia dialética de Marx”, não supõe consciência adjudicada; ao contrário, forma-se na articulação dialética dos condicionantes econômicos e ideológicos - mesmo com o trabalho alienado e subordinado ao capital. A consciência “tem uma estrutura própria relativamente autônoma” (Mészáros,1993:77), assim como a ideologia no sentido lukácsiano:

Para identificar o sentido e a função social de determinadas práticas, é necessário precisar os elementos predominantes no seu desenvolvimento. As práticas sociais têm a função de, em última instância, influir sobre as decisões, ações e pensamentos dos homens. Sua base material é definida pela estrutura do trabalho - a partir da sua divisão e complexidade, “o trabalho é o modelo da práxis”, é a prática fundante das demais práticas sociais, representa a prioridade ontológica da vida social. Isto constitui a causalidade social das práticas e suas formas de consciência e é por isto mesmo que no agir humano tende a ocorrer uma distância entre a intenção e a ação e, sobretudo, entre a ação e seus resultados. Estas distâncias, expressivas das contradições sociais, são formadas no conjunto das mediações sociais, onde os determinantes econômicos e ideológicos estão imbricados e exercem

um papel central na impressão do sentido social das práticas. Portanto, a centralidade está na “dialética da determinação recíproca”, na unidade das bases materiais e ideológicas. Portanto, o caráter teleológico causal do agir sobre a “consciência dos outros” está relacionado às lutas por interesses de classe.

Na práxis, “o “material” da posição da finalidade é o homem”, no trabalho é a natureza. Ambos possuem caráter causal-teleológico ontologicamente unitário, isto é, o ideal e o material constituem momentos necessariamente interligados, porque a intenção, a consciência, precede a ação, a realização material. Nas duas formas da atividade humana, as chances de acerto correspondem, também, à capacidade de apropriação, conhecimento mais próximo da legalidade, das tendências do objeto:

A congruência do conhecimento com o real compreende a crítica da totalidade, aquela capaz de ligar economia e ideologia. E numa conjuntura socialmente desfavorável ao materialismo histórico, à razão emancipadora, as ideologias tendem a “aparecer” sob formas “desideologizadas”. Por isso, é importante identificar alguns elementos ideológicos que aparecem no agir dos profissionais de saúde de modo a contribuir na reflexão sobre possíveis alternativas, observadas a partir da “dialética das determinações recíprocas” da vida social, porque o cotidiano está intensamente comprometido pela extensividade da manipulação capitalista (Mészáros, 1993).

Não podemos esquecer que, mesmo com a reprodução capitalista nos diferentes momentos da vida social, a manipulação das práticas nunca é indefinidamente

“A ideologia é acima de tudo aquela forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social dos homens consciente e operativa. Deriva daqui a necessidade e a universalidade de alguns modos de ver para dominar os conflitos do ser social. Neste sentido, toda ideologia tem seu ser-precisamente-assim social: ela nasce direta e necessariamente do hic et nunc social dos homens que agem socialmente na sociedade“. (Lukács: O problema da Ideologia, sem data)

“A inconciliabilidade fatual das ideologias no conflito entre si toma no curso da história as formas mais variadas; podem apresentar-se como interpretações de tradições, de convicções religiosas, de teorias e métodos científicos etc., mas se trata sempre, antes de tudo, de instrumentos de luta; a questão a decidir é sempre um “que fazer?’’ social e a sua contraposição fatual é determinada pelo conteúdo social deste “que fazer”. Os instrumentos com os quais é fundada tal pretensão de guiar a práxis social restam instrumentos, cujo método, cuja constituição etc. dependem sempre do hic et nunc social daquela espécie de “que fazer?”. (Idem)

“{...} em ambos os casos, trata-se de posições teleológicas, cujo sucesso ou insucesso depende do conhecimento que o sujeito que põe tenha da constituição das forças que devem ser postas em movimento” (Idem)

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um domínio de “beco sem saída” para o dominado. A saída depende da crítica, do conhecimento e condições para decisão; a saída está na práxis. Por isto, a importância de se discernir sobre a função que a ideologia tem nas posições e relações de classe, porque são posições teleológicas. Estas posições sempre estão permeadas pela ineliminável contradição entre intenção e ação, mas, e ao mesmo tempo, deve-se considerar que a gradação dessa contradição está relacionada ao problema da alienação e da ideologia. Trazer para o debate a preocupação com a função social da ideologia é a possibilidade de enfrentar criticamente o projeto burguês da “terceira via” na saúde pública: a ideologia neoliberal.

Nosso objeto de intervenção se expressa e se realiza no cotidiano; nas palavras de Netto (1996), trata-se de ações dirigidas à manipulação das “refrações da questão social” e, segundo nota de esclarecimento do próprio autor, a “manipulação não recebe nenhuma conotação negativa: a palavra é empregada na sua acepção semântica de interferir para rearranjar” (Idem: nota 24, grifo nosso).

DISPUTA DA DIREÇÃO SOCIAL DO PROJETO INSTITUCIONAL Então, o ponto de vista que nos ancora é a perspectiva teórico-metodológica de que a saúde de um povo está inscrita no condicionamento dialético do trabalho na vida cotidiana e, portanto, expressa a forma da produção e reprodução da vida, nesta medida sua centralidade é ontológica. E é por esta condição histórica que a saúde é objeto de reflexão e ação desde as ciências biomédicas às ciências humanas. Neste caso, a interdisciplinaridade está posta no que o objeto nos provoca a investigar pelas suas dinâmicas e contradições e, assim, constitui-se enquanto ponto de partida para o conhecimento, ao contrário dos neopositivistas que afirmam a interdisciplinaridade a partir da integração das ideias das diferentes áreas do conhecimento.

A congruência dos diversos campos de conhecimento se dá no foco ao que objeto impõe, e não a partir das questões discursivas do campo das representações. E para enfrentar as investidas das ideologias pós-modernas e neoliberais, temos que ocupar o debate da vida institucional nas diversas instâncias, como já mencionado: a pesquisa sobre as condições de saúde, a impostação humanista e a formação de consciência crítica sanitária. Para isto, a definição do projeto institucional do Serviço Social, com plano de ação é a base sobre a qual poderemos avaliar nossas

ações. Sugerimos algumas pistas, a partir da análise crítica da programática em curso na saúde pública, tendo como referência o modelo de gestão inscrito na Lei Orgânica da Saúde e na Lei 8.142 de 1990:

- Intervir no projeto institucional, no seu plano operativo e nas suas rotinas de modo a assegurar espaços para estabelecer uma gestão coletiva e democrática;

- Criar canais que possibilitem a participação dos Conselhos de Saúde na avaliação e deliberação do projeto institucional;

- Garantir o atendimento individual e em grupo como ação em saúde; com projeto, instrumentos de avaliação e divulgação de dados para intervir no planejamento e na organização dos serviços. Fazer a crítica às propostas de “cuidado’, de “acolhimento”, de “humanização”, de “empoderamento” e ”empreendedorismo” que desqualificam e despolitizam a atenção em saúde, no marco da Reforma Sanitária Brasileira e no acesso aos demais direitos sociais;

- Acompanhar e avaliar a implantação do Sistema Nacional de Regulação do SUS (SISREG), identificando os descaminhos burocratizantes que cerceiam o acesso e os direitos dos usuários;

- Criar canais de interação com as equipes da rede de saúde e da gestão central do SUS para pautar os problemas de acesso da população e suas necessidades a partir dos perfis epidemiológicos e social;

- Participar na implementação da Lei de Acesso à Informação, da Ouvidoria Pública e da Carta de Direitos ao Cidadão;

- Incluir no planejamento as questões relativas à biossegurança, à bioética, à ergonomia do trabalho e à saúde do trabalhador;

- Utilizar novas formas e instrumentos de comunicação: vídeos, pôsters, filmes, internet... - Acompanhar a Política Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCTIS), tendo em vista os princípios, a definição de saúde inscrita no SUS como referência inovadora para a pesquisa, a assistência e a gestão.

Estas indicações visam apenas contribuir no planejamento e análise das possibilidades da intervenção profissional.

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Sabemos que o famigerado subfinanciamento do SUS é a manifestação imediata e epidérmica dos resultados obtidos pelo poder que o conjunto de forças históricas representativas dos interesses do capital alcançou na saúde pública brasileira. Resumidamente, podemos lembrar: os grupos de medicina privada e hospitalocêntrica fizeram, e continuam fazendo, lobby que assegurou a “saúde suplementar” na Constituinte de 1988, impedindo que o SUS fosse verdadeiramente único.

O governo de FHC implementou o modelo privatizante, a partir da reforma de Estado prescrita pelo Banco Mundial. Luís Inácio e Dilma, além de não acatarem as deliberações do Conselho Nacional de Saúde (CNS), asseguraram a privatização da saúde mantendo as Organizações Sociais (OS), as Organizações Sociais Civis de Interesse Público (OSCIPs), os benefícios fiscais favoráveis aos grupos privados de saúde e avançaram com a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), a parceria público-privado de desenvolvimento produtivo na saúde com o Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), e por último, o Programa Mais Médicos, um verdadeiro ataque ao SUS, pois no lugar de estabelecer um plano de carreira de Estado no SUS, precariza contratos de trabalho e reduz a atenção à saúde e à ação médica.

Sabemos o poder que a mídia e a propaganda de governo têm sobre a consciência social da massa trabalhadora. No contraponto, podemos ler o que a Auditoria Cidadã revela no documento “Os números da divida” sobre o Projeto de Lei Orçamentária aprovado para 2012: o valor destinado à Dívida Pública corresponde a 47,19% de todo o orçamento, enquanto o valor aprovado para a saúde foi de 3,98%13. Ao lado disto, somos os maiores consumidores de agrotóxicos. Podemos relacionar este dado às doenças crônico degenerativas, cânceres, infertilidade, doenças do trabalho...

A lista seria imensa, mas o que conta é que temos, na dialética destas contradições, um material muito rico para diagnósticos sociais epidemiológicos. E, assim, podemos perguntar: como fazer a análise e o que fazer com o seu resultado? Não há resposta definitiva, há tendências e possibilidades históricas a decidir.

NOTAS

1 - Destacamos as análises de feitas por Leher (2013) e Badaró (2013) durante o calor das ruas.

2 - José Paulo Netto, em 2010, traz reflexões sobre os desafios da luta anticapitalista e assegura que “O déficit da esquerda é organizacional”; o artigo encontra-se em http://resistir.info/

3 - O projeto de extensão e pesquisa coordenado pela Profa. Maria Inês Bravo “Projeto de Políticas Públicas de Saúde” da Escola de Serviço Social da UERJ forjou a articulação de várias lutas nacionais contra a privatização da saúde, hoje consolidado nos Fóruns Estaduais e na Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde. http://www.pelasaude.blogspot.com.br/ http://www.contraprivatizacao.com.br

4 - Parte deste texto encontra-se no capítulo 1 item 1.2 da tese: “A ideologia e prática na saúde. A questão da Reforma Sanitária”. Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da UFRJ, junho de 2007.

5 - IV Seminário Internacional de lutas contra o Neoliberalismo, UERJ/UFF em setembro de 2007. http://youtu.be/KVKYn6vXYdQ

6 - Na Revista Serviço Social e Sociedade, n.112, out/dez 2012, encontramos debate acerca neoliberalismo e neodesenvolvimentismo.

7 - Fazemos a necessária distinção entre Estado e Política. Referimo-nos a política enquanto uma categoria universal e momento inalienável da práxis do ser social. Seguimos a linha da reflexão trazida por Carli a respeito da determinação do complexo da política na obra de Lukács como ato ideológico, cujo intento está situado no campo da transformação social, das práticas e consciências sociais: “A política, no entanto, consegue disponibilizar ao homem a autoconsciência de seu gênero ao mesmo tempo em que se vincula de modo mais imediato à práxis cotidiana” (2013:30).

8 - É vasta a discussão crítica da ideologia pós-moderna. Destacamos: Sokal e Bricmont (2001) Wood e Foster (1990) e Evangelista (2007).

9 - A XIV Conferencia Nacional de Saúde não aprovou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), as fundações públicas de direito privado na saúde e a toda forma de parceria público-privado que desconfiguram e transgridem o SUS, como as OSs e as OSCIPs. E esta deliberação, legal e legítima, foi ignorada pelo poder federal que reafirmou seus contratos e interesses com a burguesia nacional e internacional. Isto só demonstra que o trabalho de base é fundamental em tempos de imperialismo. Tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação de Inconstitucionalidade 4895 impetrada pelo ANDES e FASUBRA, contra a Lei 12. 550/2011, que criou a EBSERH.

10 - Discutimos as seqüelas das respostas do Estado brasileiro para a chamada “crise da saúde pública” em “A Terceira Via na Reforma Sanitária Brasileira”. Temporalis, ano VII, n. 13, p.39-65, jan-jun.,2007.

11 - Vasconcelos (2002) nos proporciona uma reflexão intensa, brilhante e rigorosa a partir de sua pesquisa sobre a prática

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dos assistentes sociais na rede pública no Município do Rio de Janeiro. Ali encontramos reflexões densas, críticas sobre as singularidades das contradições no cotidiano da atividade do assistente social na saúde. E, portanto, esta pesquisa nos proporciona um verdadeiro compendio de reflexão sobre os dilemas das escolhas e competências do assistente social no cotidiano da sua intervenção.

12 - Ver a investida crítica incisiva sobre a apreensão da atividade do Serviço Social como trabalho (Lessa: 2007).

13 - http://www.auditoriacidada.org.br/numeros-da-divida/

REFERÊNCIAS

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CARLI, R. A política em György Lukács. São Paulo: Cortez, 2013.

MATTOS, Marcelo Badaró, A multidão nas ruas: construir a saída de esquerda para a crise política, antes que a reação imprima sua direção. Disponível em: http://a-voz-das-ruas.blogspot.com.br/2013/06/a-multidao-nas-ruas-construir-saida-de.html. acesso em 23 de julho de 2013.

EVANGELISTA, J. E. Teoria Social Pós-Moderna. Introdução Crítica. Porto Alegre: Sulina, 2007.

FRENTE NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE: http://www.contraprivatizacao.com.br/ HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo, SP: Boitempo, 2011.

LEHER, Roberto. As manifestações massivas no Brasil têm origem na esquerda. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8543:submanchete270613&catid=63:brasil-nas-ruas&Itemid=200. Acesso em 27 de junho de 2013. LESSA, S. Trabalho e Proletariado no capitalismo contemporáneo. São Paulo, Cortez, 2007.

LUKÁCS, G. O problema da Ideologia. Segunda Parte- Capítulo 3 da Ontologia do Ser Social. Tradução de Vaissman, E.; Angélica M. Sem data

MASSON, F. M. A ideologia e a prática na saúde. A questão da Reforma Sanitária. Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da UFRJ, 2007.

____________ . A “Terceira Via” na Reforma da Saúde Pública Brasileira. In: Temporalis. Revista Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social: Impasses e desafios. Ano I, n 1.(Jan/jun.2000) São Luís: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS, 2007, (39-65).

MÉSZÁROS, I. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Ensaio de negação e afirmação. São Paulo, Ensaio, 1993.

NETTO, J.P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 2 ed. São Paulo, Cortez, 1996.

_________ . O déficit da esquerda é organizacional. Disponível em: http://resistir.info/ 3 de abril de 2010.

_________ . Uma face contemporânea da barbárie. Texto de comunicação no III Encontro Internacional “Civilização ou Barbárie”. Serpa, 30-31 de outubro /1 de novembro de 2010. Disponível em: http://resistir.info/

___________ . IV Seminário Internacional de lutas contra o Neoliberalismo, UERJ/UFF em setembro de 2007. Disponível em: http://youtu.be/KVKYn6vXYdQ

SOKAL, A. & BRICMONT. Imposturas Intelectuais. O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos.Rio de Janeiro, Record, 2001.

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WOOD, E. M. & FOSTER, J. B. Em defesa da história. Marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.

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INTRODUÇÃO

O presente artigo versa sobre as Políticas Educacionais e contribuições do Serviço Social - temática que foi apresentada no III Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais, com o tema central: “Expressões socioculturais da crise do capital e seus rebatimentos na garantia dos direitos sociais no Serviço Social”. O referido evento, promovido pelo Conselho Regional de Serviço Social de Minas Gerais (CRESS-MG), foi realizado nos dias 7, 8 e 9 de junho de 2013, em Belo Horizonte (MG).

Para abordar sobre a Política de Educação no atual contexto de acumulação do capital, recorremos às fundamentações de Pablo Gentille (2007) que reflete sobre a desintegração da proposta integradora da política de educação iniciada nas décadas de 1980/1990, quando, em resposta à crise global, a ortodoxia neoliberal apresenta um outro projeto educacional.

Nesta conjuntura, recuperamos as determinações que incidem sobre a ampliação da requisição do Serviço Social no âmbito da Política de Educação nas últimas décadas, que coincidem com as transformações societárias em curso e as reformas educacionais, quesofrem influências da égide do neoliberalismo, pautado pelas determinações dos Organismos Internacionais.

Considerando as particularidades postas nestes espaços sócio-ocupacionais, também provocamos a reflexão sobre as contradições entre as demandas

institucionais e profissionais que estão presentes no universo educacional, ponderando sobre os limites e as possibilidades do trabalho profissional da/o assistentesocial.

1 - POLÍTICA DE EDUCAÇÃO NO BRASIL NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO

Gentille (2007) afirma que as alterações no processo de produção capitalista, que impulsionam a ampliação do desemprego, têm um impacto profundo no campo educacional, considerando principalmente o papel econômico desempenhado pela escola.

Ainda segundo Gentille (2007, p. 2):

A proposta integradora da educação, especificamente na dimensão econômica, no auge do desenvolvimento capitalista que ocorreu no período compreendido entre1950-1970, estava fundada em um mercado de trabalho em expansão e na possibilidade de atingir o pleno emprego. Nesta etapa histórica, o processo de escolarização, interpretado como um elemento fundamental para a formação do capital humano1, tinha como principal objetivo garantir a capacidade competitiva das economias e o incremento da renda

[...] a atual conjuntura do desenvolvimento capitalista tem-se produzido um deslocamento da ênfase na função da escola como âmbito de formação para o emprego (promessa que justificou em parte a expansão dos sistemas educacionais durante o século XX) par uma nem sempre declarada ênfase no papel que a mesma deve desempenhar na formação para o desemprego.

Docente do Departamento de Serviço Social e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Serviço Social na Educação - GEPESSE da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Campus de Franca (SP). Doutora em Serviço Social pela PUC SP.

Eliana Bolorino Canteiro Martins

Políticas educacionais e contribuiçõespara o Serviço Social

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individual e da riqueza social. Nesta proposta, o Estado figurava como central, desempenhando a decisiva função de planejamento, captação e distribuição de recursos financeiros destinados ao sistema educacional.

Houve a expansão do sistema educacional, considerando a demanda crescente, do sistema produtivo de trabalhadores preparados para atuarem frente às novas tecnologias.

No contexto contemporâneo de crise global do capital, dentre os vários indicadores do desempenho diverso das economias, figura com destaque o desemprego, que não parou de crescer, acompanhado do aumento da pobreza e da desigualdade social.

A razão que explica esta tendência, de acordo com a perspectiva neoliberal, situa-se nos seguintes fatores: “[...] os mercados eram extremamente rígidos, os custos trabalhistas altos, os sindicatos perigosamente poderosos, o dirigismo estatal irresponsável e as instituições de bem-estar generosas demais” (GENTILLE, 2007, p.3).

Diante dessa perspectiva, o capital recorre a uma profunda reestruturação, considerando que não pode haver emprego para todos, sendo este um item dessa mudança e desta forma vivenciamos, na política educacional, a desintegração da proposta integradora, ou seja,

Não existindo mais a perspectiva do “pleno emprego” restará aos indivíduos a responsabilidade de conquistarem espaço no competitivo mercado de trabalho, portanto a promessa integradora é substituída pela promessa que abarca um novo paradigma - da empregabilidade.2

Essas mudanças no mundo do trabalho, em decorrência das transformações no processo produtivo, resumidas no mote da “acumulação flexível”3, em última instância, preocupam-se fundamentalmente com o lucro através

do controle da força de trabalho, exigindo mudanças na formação profissional e na sociabilidade, portanto também no mundo da cultura.

Diante do novo cenário, os organismos internacionais, destacando o Banco Mundial, assumem a função de definidores de políticas econômicas e educacionais para os países de economia periférica, e estabelecem mundialmente princípios jurídicos políticos e padrões socioculturais.

De acordo com Gentille (2007):

Diante dessas análises que refletimos sobre o empenho da Política de Educação brasileira com o processo de expansão da escolaridade que, nas últimas décadas, está estreitamente atrelado a essa nova concepção da função econômica da escola, ou seja, preparar os estudantes, de forma funcional e ideológica para responder aos novos desafios do mercado de trabalho, altamente exigente, competitivo e excludente.

Diante dessa realidade e pensando na perspectiva da totalidade, é preciso analisar a ‘escola’ como espaço contraditório. Segundo Frigotto (1999), a escola é uma instituição social que, mediante sua prática no campo do conhecimento, dos valores, atitudes e, mesmo por sua desqualificação, articulam determinados interesses e desarticula outros.

Nessa contradição existente no seu interior, está a possibilidade da mudança, haja vista as lutas que aí são travadas. Desta forma, analisar a função social da escola implica repensar o seu próprio papel, sua organização e os atores que a compõem.

Portanto, a principal função da educação, sob o prisma do capital, é a internalização dos consensos visando à reprodução ampliada do capital. A Política de Educação, nos tempos atuais tem se figurado

[...] passou-se de uma lógica, da integração em função de necessidades e demandas de caráter coletivo (a economia nacional, a competitividade das empresas, a riqueza social, etc.), a uma lógica econômica estritamente privada e guiada pela ênfase nas capacidades e competências que cada pessoa deve adquirir no mercado educacional para atingir melhor posição no mercado de trabalho (GENTILLE, 2007,p.3).

Mas do que pensar a integração dos trabalhadores ao mercado de trabalho, o desenho das políticas educacionais deveria orientar-se para garantir a transmissão diferenciada de competências flexíveis que habilitassem os indivíduos a lutar nos exigentes mercados laborais pelos poucos empregos disponíveis. A garantia do emprego como direito social desmanchou-se diante da nova promessa de empregabilidade como capacidade individual para disputar as limitadas possibilidades de inserção que o mercado oferece. (GENTILLE, 2007 p. 4)

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marcadamente na perspectiva economicista, segundoFrigotto (1999, p. 26) “[...] trata-se de subordinar a função social da educação de forma controlada para responder às demandas do capital.”

Contraditoriamente, sob o prisma do trabalho, a Política de Educação também traz possibilidades da construção histórica de uma educação que contribua com a emancipação humana. Porém, é evidente que a sonhada emancipação humana não depende exclusivamente da educação, mas depende de um amplo processo de universalização do trabalho e da educação como atividade humana auto realizadora.

Desta forma, diferente da perspectiva dominante, para a classe trabalhadora

Considerando a reflexão trazida por Frigotto e compreendendo a realidade e a concepção de educação na perspectiva crítica, portanto concebendo o homem na sua totalidade, enquanto ser biológico, psicológico, social e material, que reconhece a política de educação em sua contraditoriedade, em processo contínuo de construção e desconstrução mediante a ação dos homens, enquanto sujeitos históricos.

Neste sentido, pressupondo a educação como prática social desenvolvida nas relações sociais estabelecidas nas diferentes esferas da vida social - inclusive na escola, que se caracteriza este como espaço de disputa hegemônica. Essa disputa ocorre “[...] na perspectiva de articular as concepções, a organização dos processos e dos conteúdos educativos da escola e, mais amplamente, nas diferentes esferas da vida social, aos interesses de classes.” (FRIGOTTO, 1999, p.25).

É nestas relações sociais contraditórias que permeiam o campo educacional nos diversos espaços sócio-ocupacionais que constituem a Política de Educação, que se amplia a requisição da intervenção do assistente social.

Para adentrar na discussão sobre o Serviço Social na educação, sem sucumbir à armadilha da educação como “salvadora” ou como “reprodutora” da sociedade capitalista, é preciso partir do pensamento do grande educador Paulo Freire, quando afirma que:

Assim, acredita-se que é preciso reconhecer a incontestável função social da escola, ou seja, a contribuição no processo de sistematização e socialização da cultura historicamente produzida pela humanidade.

2 - CONTRIBUIÇÕES DO SERVIÇO SOCIAL NA EDUCAÇÃO

Inicialmente é preciso esclarecer que a inserção do assistente social na Educação não é recente, remonta as origens da profissão, porém também é de suma importância considerar as determinações do tempo atual que redesenham a interface do Serviço Social com a Política de Educação, principalmente nas últimas décadas.

Neste sentido a breve reflexão sobre as contribuições do Serviço Social na Educação, no contexto contemporâneo, tem que partir da análise dos determinantes que justificam a requisição desta inserção do Serviço Social nos diferentes níveis de ensino neste momento da história brasileira, em especial da Política de Educação.

Conforme discutido anteriormente, o significado estratégico que a educação vem assumindo nos últimos tempos em decorrência das transformações no processo produtivo, visando à formação de um novo perfil de trabalhador coerente com as demandas do trabalho, reflete no novo desenho que a Política de Educação brasileira está assumindo.

Por outro lado, contraditoriamente, a classe trabalhadora, que sempre lutou pelo acesso à educação escolarizada, amplia essa luta pela universalização do direito à educação principalmente após o processo de redemocratização do Brasil (década de 1980).

[...] a educação é, antes de qualquer coisa, desenvolvimento de potencialidades e apropriação de ‘saber social’ (conjunto de conhecimentos e habilidades, atitudes e valores que são produzidos pelas classes, em uma situação histórica dada de relações, para dar conta de seus interesses e necessidades) (GRYZYBOWSKI apud FRIGOTTO, 1998, p. 26), objetivando a formação integral do homem, ou seja, o desenvolvimento físico, político, social, cultural, filosófico, profissional, afetivo, entre outros.

[...] se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que dizemos e o que fazemos (FREIRE, 1998).

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É notório que a luta pelo acesso à educação escolarizada se fundamenta tanto na ótica de possibilidade de melhorar a inserção no mercado de trabalho como, mais implicitamente, conforme discutem os intelectuais da educação, no sentido de forjar processos de autoconsciência da população contribuindo na construção de uma contra hegemonia, contribuindo na construção de uma nova cultura (de acordo o pensamento de Gramsci).

Por sua vez o Serviço Social - profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho, e que tem em sua gênese o ethos de constituir no processo de intervenção, em várias políticas sociais - a reprodução de consensos necessários à reprodução ampliada do sistema metabólico do capital, vêm sendo requisitado, com maior incidência para atuar nos espaços sócio-ocupacionais em diferentes níveis da Política de Educação.

A marca histórica das políticas sociais brasileiras, entre elas a política de educação, sempre foi a fragmentação, a parcialização do atendimento às reais demandas da classe trabalhadora, porém, com o ideário neoliberal os direitos sociais duramente conquistados pela luta da classe trabalhadora tendem a ser usurpados em decorrência das políticas sociais, especificamente a Política de Educação, que tem se reorganizado sob uma perspectiva ainda mais economicista, mercadológica, privatista.

Nesta abordagem se incluem várias determinações desta requisição para o Serviço Social na educação, tais como: a incidência de projetos e programas assistenciais que possuem como condicionalidade a frequência escolar; a presença acirrada de expressões da questão social no universo escolar com a ampliação da educação escolarizada para classe empobrecida; a necessidade de garantir o acesso, a permanência das crianças/adolescentes e jovens na educação desta forma minimizando os índices vergonhosos de analfabetismo, repetência e evasão escolar que marcam a trajetória da política de educação brasileira, entre outros.

Para pensar o trabalho do assistente social inserido no trabalho coletivo desenvolvido, no âmbito das instituições educacionais, tanto na dimensão do planejamento, gestão e execução, é essencial compreender as demandas institucionais e profissionais existentes no complexo jogo de interesses contraditórios, de classes sociais antagônicas que permeia as relações sociais na sociedade capitalista e,

especificamente as pertinentes ao campo da política de educação.

Inicialmente se faz necessário compreender a concepção de demandas institucionais e demandas profissionais que nortearam as ponderações posteriormente descritas. Segundo Pontes (1995), a demanda institucional representa a requisição de resultados esperados dentro dos objetivos institucionais e colado ao esperado pelos objetivos do profissional, logicamente em consonância com o perfil ideológico da organização. A demanda profissional é estabelecida como a legítima demanda advinda das necessidades sociais dos segmentos demandatários dos serviços sociais. A demanda profissional incorpora a demanda institucional, mas não se restringe a ela, devendo ultrapassá-la.

O referido autor afirma ainda que, a construção da demanda profissional impõe ao profissional a recuperação das mediações ontológicas e intelectivas4 que dão sentido histórico a particularidade do Serviço Social, numa totalidade relativa.

Portanto, é preciso interpretar as reais necessidades sociais dos sujeitos sociais que fazem parte do universo de trabalho do assistente social. Para considerar que as demandas institucionais não explicitam as reais necessidades da classe trabalhadora, desta forma, é primordial recuperar as mediações presentes no tecido social para compreender além do imediato, ou seja, utilizar-se da razão dialética para ter uma perspectiva crítica dos processos sociais.

O assistente social tem que ter clareza da contradição que atravessa o exercício profissional, atuando na tensão entre os interesses do capital e do trabalho, porém tendo como norte os princípios do Código de Ética Profissional. Compreender, conforme nos alertaIamamoto (2008, p. 83) que:

É primordial para o assistente social, comprometido com a materialização do projeto ético-político da profissão, desvelar as reais necessidades da classe

[...] a demanda de sua atuação não deriva daqueles que são alvo de seus serviços profissionais - os trabalhadores - mas do patronato, que é quem diretamente o remunera, para atuar, segundo metas estabelecidas por estes, junto aos setores dominados. Estabelece-se, então, uma disjunção entre intervenção e remuneração, entre quem demanda e quem recebe os serviços do profissional.

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trabalhadora, que não se reduz, conforme nos alerta Heller (1986) a concepção de necessidade apenas no aspecto econômico, de acordo com o significado imposto pela sociedade capitalista.

Ainda segundo Heller (1986), necessidade, conceito complexo, muito além da mera carência material, “[...] necessidade é desejo consciente, aspiração, intenção dirigida em todo momento para certo objeto e que motiva a ação para tal” (HELLER, 1986). Portanto, asnecessidades são sempre ‘sociais’, pois são sempre satisfeitas em um meio social.

É notório que as políticas sociais, na sociedade capitalista, não atendem as reais necessidades dos usuários, porém, contraditoriamente, os assistentes sociais, inseridos nos espaços sócio-ocupacionais dessas políticas sociais, imprimem ações que visam, em última instância, ampliar e universalizar os direitos sociais pertinentes a cada política setorial.

Retomando a problematização da Política de Educação e a inserção do assistente social nos mais diferentes níveis de ensino, com suas particularidades, refletindo sobre as demandas institucionais e profissionais que permeiam este universo, é condição sine qua non para identificar as reais contribuições que este profissional poderá oferecer para a efetivação da educação como direito social.

Conforme descrito no Documento: Subsídios para a Atuação de Assistentes Sociais na Política de Educação (2012), as dimensões que particularizam a inserção dos assistentes sociais na Política de Educação estão voltadas para garantia: do acesso, da permanência, da qualidade da educação escolarizada e da gestão democrática da escola e da Política de Educação. Conforme afirma Almeida (2012), a ampliação da inserção de assistentes sociais na Política de Educação nas últimas décadas respondem:

Tendo como referência as análises formuladas no documento supracitado, destaca-se quais são as principais demandas institucionais na área da educação, mas propriamente nas unidades educacionais sendo:

- a demanda por uma ação educativa que visa a forjar consensos sociais coerentes com a ideologia dominante que é camuflada com rótulo de educação “inclusiva, cidadã”, porém desconexa com as condições concretas para efetivar a inclusão;

- a demanda por atendimento das mais variadas expressões da questão social que, apesar de não estarem diretamente relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem incidem sobremaneira no mesmo. Porém, essas demandas são consideradas de caráter individual, muitas vezes culpabilizando os estudantes e famílias pelas mazelas sociais que vivenciam.

Desta forma, reconhece-se as expressões da questão social, mas sem análise histórica e econômica contextualizada com as transformações societárias em curso;

- no que tange à qualidade da educação se destacam os seguintes discursos hegemônicos: da “pedagogia das competências”, do “empreendedorismo”, da “empregabilidade”, dos projetos voltados para eficiência e eficácia da gestão educacional.

Reveste-se a educação do manto da visão empresarial, tornando a unidade escolar uma “empresa” que precisa atingir aos índices educacionais coerentes com os ditames dos organismos multilaterais, mas sem condições condizentes para tal. Além disso, fica em segundo plano a função primordial da educação, conforme afirma Frigotto (1999), o desenvolvimento das potencialidades e apropriação dos conhecimentos culturais, políticos, filosóficos, historicamente produzidos pelo homem;

- a gestão democrática é privilegiada nas legislações educacionais, porém considerando-se que a escola faz parte da trama societária, numa sociedade em

[...]sobretudo, às requisições socioinstitucionais de ampliação das condições de acesso e de permanência da população nos diferentes níveis e modalidades de educação, a partir da mediação de programas governamentais instituídos mediante as pressões dos sujeitos políticos que atuam no âmbito da sociedade civil. Desse modo, se por um lado resulta da histórica pauta de luta dos movimentos sociais em defesa da universalização da educação pública, por outro se subordina à agenda e aos diagnósticos dos organismos multilaterais, fortemente sintonizados às exigências do capital, quanto à formação e qualificação da força de trabalho.

Inscreve-se, portanto, na dinâmica contraditória das lutas societárias em torno dos processos de democratização e qualidade da educação, cujo resultado mais efetivo tem se traduzido na expansão de condições de acesso e permanência, a partir do incremento de programas assistenciais, o que caracterizou a intervenção do Estado no campo das políticas sociais na primeira década deste século (CFESS-Documento Subsídios para o Trabalho do Assistente Social, 2012).

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que perduram traços de uma cultura autoritária, ainda há uma longa trajetória a percorrer no processo de democratização da gestão educacional envolvendo nesta todos os atores sociais pertencentes à comunidade escolar. Também a gestão democrática é revestida pelaracionalidade gerencial, portanto estritamente voltada à razão instrumental.

Realizar o contraponto das demandas institucionais identificando as reais demandas advindas da classe trabalhadora, ou seja: de todos os segmentos da comunidade escolar (direção, docentes, funcionários, estudantes e suas famílias), considerada demanda profissional, eis o desafio profissional dos assistentes sociais que atuam na Educação.

O primeiro aspecto a ser considerado como demanda profissional é ampliar o conhecimento sobre a Política de Educação, com suas peculiaridades relacionadas aos diferentes níveis e modalidades de ensino, compreendendo-a no bojo da luta de classes sociais, portanto cravejada de ideologias, interesses contraditórios próprios à constituição das políticas sociais na sociedade capitalista. Reconhecer o traço classista que permeia as diferentes políticas educacionais, inclusive as legislações que a orientam.

A demanda profissional do assistente social na educação está relacionada à tarefa de elucidar, desvelar as contradições, as manifestações da desigualdade social existentes na Política de Educação, expressas no contexto das instituições educacionais buscando estratégias na luta pela conquista do acesso, regresso, permanência e sucesso das crianças, adolescentes e jovens em todos os níveis de ensino da educação escolarizada, como um direito social.

Contribuir para decodificar o social através de ação sócio-educativa, envolvendo todos os segmentos da comunidade escolar, é uma demanda profissional essencial, pois contribui com o processo de politização desfazendo mitos, preconceitos e concepções deturpadas sobre o processo de produção e reprodução social referente à sociedade capitalista.

Também proporcionará o acesso dos usuários a informações sobre os serviços prestados pelas políticas sociais facilitando o alcance aos seus direitos sociais. Constitui-se também uma demanda profissional o processo de coletivizar as demandas individuais existentes no espaço educacional dando a elas visibilidade, publicizando-as através da participação efetiva nos espaços democráticos de controle social, como os conselhos de direito, levando

informações que possam contribuir no planejamento das políticas educacionais.

Participar efetivamente da elaboração do projeto político-pedagógico da unidade educacional, oferecendo subsídios referentes ao perfil dos alunos/família e dos próprios educadores se constitui uma demanda profissional essencial. Desta forma será possível ampliar o horizonte pedagógico da escola com os aspectos sociais, inclusive do território onde a instituição está inserida.

Tendo como pressuposto a perspectiva de educação que contribua com a emancipação humana, o trabalho do assistente social no âmbito da Política de Educaçãoconverge para ações interdisciplinares, interinstitucionais, intersetoriais, sempre articulandoa educação a outras políticas sociais e aos movimentos sociais, tendo como principal referência a razão crítica dialética.

À GUISA DE CONCLUSÃO

O desafio posto para o Serviço Social inserido nas diversas instituições que compõem os vários níveis de ensino da Política de Educação brasileira inicia-se peloempenho em analisar e compreender os processos de formulação, organização e efetivação desta política social e desvelar os meandros que a particularizam apesar ser parte integrante da nova forma como o Estado tem desenhado as políticas sociais para garantirconsensos sociais.

Vencida essa primeira etapa, os desafios continuam e requer dos profissionais assistentes sociais competência: teórico-metodológica, técnica-operativa e ético-política, tendo como premissa a razão dialética articulando a dimensão investigativa, educativa e interventiva da profissão para realizar, no trabalho coletivo desenvolvido no âmbito da Política de Educação, ações na conquista desta como direito social. Neste sentido, propor ações de resistência a lógica meramente instrumental, gerencial da Política de Educacional, que vislumbre resgatar a principal função da educação escolarizada, a transmissão dos conhecimentos eruditos acumulados historicamente pela sociedade, suscitando nos sujeitos sociais a visão crítica da realidade social da qual fazem parte.

Para tanto é preciso que os assistentes sociais articulem-se com educadores que comungam essa visão crítica e com os movimentos sociais que lutam pela educação pública, laica, presencial, para todos e de qualidade.

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NOTAS

1 - Teoria do Capital Humano: Segundo Paul Singer a abordagem ‘capital humano’ é produtivista, enfatiza a educação como uma peça da complexa engrenagem do mercado capitalista e, embora não negue a necessidade da sua universalização, prefere que ela resulte da livre preferência dos indivíduos e menos da ação do poder público (SINGER,1996).

2 - Empregabilidade: “[...] necessidade crescente de qualificar-se melhor e preparar-se mais para conseguir trabalho. Parte importante do tempo livre dos trabalhadores está crescentemente voltada para adquirir empregabilidade, palavra fetiche que o capital usa para transferir aos trabalhadores as necessidades de sua qualificação, que anteriormente eram, em grande parte, realizadas pelo capital” (ANTUNES; ALVES, 2004, p.6).

3 - Segundo Antunes, (1998) “[...] um processo produtivo flexível que atenda a esta ou aquela demanda com mais rapidez, sem aquela rigidez característica de produção em linha de montagem do tipo fordista [...] um sistema de produção flexível supõe direitos do trabalhador também flexíveis, ou de forma mais aguda, supõe a eliminação dos direitos do trabalho” (ANTUNES, 1998, p.81).

4 - Segundo Pontes (1995), mediações: são expressões históricas das relações que o homem edificou com a natureza e consequentemente das relações sociais, daí decorrentes nas várias formações sócio humanas que a história registrou. Funciona como condutos por onde fluem as relações entre as várias instâncias da realidade, são elas que possibilitam conceber-se a realidade como totalidade (PONTES, 1995). Para aprofundamento da temática, ver Pontes (1995); Guerra (1997).

REFERÊNCIAS

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______; ALVES, G. Globalização e educação: precarização do trabalho docente. Educação & Sociedade, Campinas, v.25, n. 87, maio/ago. 2004.

CFESS. Conselho Federal de Serviço Social. Subsídios para a atuação dos assistentes sociais na política de educação. Brasília, DF: CFESS, 2012. (Série 3: Trabalho e projeto profissional nas políticas sociais).

GENTILI, P. Educar para o desemprego: a desintegração da promessa integradora. 2007.Disponível em: <http://portalmultirio.rio.rj.gov.br/sec21/chave_artigo.asp?cod_artigo=209> Acesso em: 2 set.2013.

_____.O direito à educação e as dinâmicas de exclusão na América Latina. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n.109, p. 1059-1079, set./dez. 2009.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1999.

HELLER, A. Una revisión de lateoría de lasnecesidades. Barcelona: EdicionesPaidós; 1996.

IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações sociais e Serviço Social no Brasil:esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 25. ed. São Paulo: Cortez, CELATS, 2008.

PONTE, R. Mediação e serviço social: um estudo preliminar sobre categoria teórica e sua apropriação pelo serviço social. São Paulo: Cortez, 1995.

SINGER, P. Poder, política e educação. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 1, 1996.

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CONTORNOS ANALÍTICOS PARA PENSAR O TRABALHO SOCIAL

O trabalho social no campo urbano tem um significado sócio-histórico, e refletir sobre esse significado supõe considerar a realidade social e as contradições presentes nas relações sociais, além de identificar as determinações históricas que conferem legitimidade e direção social à atuação profissional. Em tempos de modernização excludente das cidades (MARICATO, 2011), cujo crescimento acontece com base na mercantilização e na estrutura desigual das classes sociais no acesso ao uso da terra urbana, é preciso apreender as transformações urbanas e as mudanças que as mesmas provocam no processo de produção e reprodução da vida social de segmentos da classe trabalhadora.

Essa abordagem exige problematizar a questão urbana e o direito à cidade, numa sociedade polarizada por interesses de classes, no contexto do capitalismo nas suas formas contemporâneas. A questão urbana traduz-se, na atualidade, como um dos mais complexos desafios no campo das políticas públicas pela forma como explicita, na apropriação do espaço, a desigualdade socioeconômica, expressão do modo de produção capitalista num contexto neoliberal, de flexibilização e transnacionalização da economia, de terceirização e privatização dos serviços que produzem desemprego e precarização das relações de trabalho e transformam as cidades em espaços de reprodução e acumulação do capital.

CONTEXTO TEÓRICO E POLÍTICO PARA EFETIVAR O TRABALHO SOCIAL

Não há dúvidas que as cidades, na atualidade, expressam, de forma brutal, as desigualdades econômicas e sociais, manifestações da crise profunda que vive o sistema capitalista. As últimas décadas do século XX são marcadas por mudanças na dinâmica do desenvolvimento capitalista que, intensificadas a partir da crise da década de 1970, têm suas estratégias desenhadas na ofensiva burguesa de recuperação e manutenção das taxas de lucro e configuradas na reestruturação produtiva com a desterritorialização dos processos de produção, com a precarização e desregulamentação do trabalho e com a mundialização e financeirização do capital, produzindo desequilíbrios e instabilidades em todo o mundo (BEHRING, 2009).

No caso brasileiro, o rápido processo de urbanização, que submeteu a realidade das cidades à racionalidade industrial, às custas da desvalorização do homem (LEFEBVRE, 2008) e da diversidade dos interesses de classes, vem recriando o atraso através de novas formas. O Brasil apresenta um crescimento das cidades (já ultrapassamos os 200 milhões de habitantes, com 80% da população nas áreas urbanas e 40% nas áreas metropolitanas) e aumento expressivo das cidades de porte médio. Trata-se de uma herança resultante de uma urbanização intensa ocorrida entre os anos 1940 e 2000, quando a população urbana era de 23,3% e cresceu para 81,2% do total, o que gerou um

Questão urbana e direito à cidade: reflexões sobre o trabalho social napolítica urbana 1

Assistente Social. Professora doutora da Universidade Federal de São Paulo/BS

Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz

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enorme déficit habitacional, tanto nas cidades quanto no campo, estimado em 7,9 milhões de unidades habitacionais, além do número significativo de assentamentos precários, nos quais se alojam cerca de 3,2 milhões de famílias (MARICATO, 2001; PLANHAB, 2009).

O processo de expansão urbana no Brasil apresenta características singulares, de imensas desigualdades entre as classes sociais, e é resultante da presença de interesses particulares que se materializam nos mecanismos de espoliação urbana que é beneficiada por setores governamentais e pela lógica do mercado. A forma como a organização do espaço urbano se consolida em nosso país contribui para que as cidades, como um produto histórico e social, sejam o lugar onde “a cidade legal (cuja produção é hegemônica e capitalista) caminha para ser, cada vez mais, espaço da minoria” (MARICATO, 2001, p. 39).

São estudos produzidos que contribuem para compreender os traços que desenham o perfil da sociedade brasileira, definidos, historicamente, por uma estrutura fundiária que privilegia a concentração de terra, de renda e riqueza, ao lado de características como o clientelismo e o patrimonialismo, que produzem o espaço urbano como exploração econômica e dominação ideológica. Conforme dados da PNAD/IBGE, ao final da primeira década do século XXI são 1,87 milhões de pessoas (1 %) que detém 13% da renda do trabalho; por outro lado, são 18,7 milhões de trabalhadores e trabalhadoras (10% mais pobres) que ficam com apenas 1,1% da renda do trabalho; os 10% mais ricos concentram 44,7% da renda do trabalho.

Na primeira década do século XXI, a permanência dessas contradições aprofunda a pauperização dos trabalhadores e intensifica as desigualdades sociais.

Vale salientar que, no contexto da relação Estado e sociedade, muitas vezes, interesses capitalistas ameaçados produzem armadilhas teóricas e ideológicas que apartam a pobreza de suas determinações, porque desistoricizam e descontextualizam a problemática que funda a existência da questão urbana, deslocando seu enfrentamento para o nível dos fenômenos a ela conectados, alimentando o argumento da desqualificação do trabalho e da criminalização dos movimentos sociais.

Destaca-se que são aspectos que evidenciam a questão urbana e nos mobilizam para pensar o trabalho social a partir da seguinte indagação: de que cidade se fala quando se defende o direito a ela?

Do ponto de vista formal, podemos dizer que o direito à cidade é um direito coletivo, isto é, direito a tudo que a cidade oferece para a produção social e reprodução da vida de todos e todas que nela habitam, a partir de um sistema de proteção construído através do reconhecimento da vontade coletiva, afirmativa que não é isenta de contradições.

O que se observa na dinâmica urbana atual são as cidades se fundindo para criar assentamentos em escala massiva; há um movimento em curso de famílias indo morar fora das cidades, em zonas residenciais para grupos de renda alta, em condomínios fechados que promovem uma sociabilidade enclausurada de áreas segmentadas e muradas que negam a vida pública da cidade, estabelecendo com ela a evitação (CALDEIRA, 2000). O processo de urbanização brasileiro determinado pela industrialização baseada em salários baixos (MARICATO, 2001), provoca o deslocamento dos setores médios para um periurbano semirural, a presença de cidades satélites, periféricas, reproduzindo a urbanização por periferização, em razão do preço da terra mais barata, o crescimento da cidade ilegal, na ocupação irregular de áreas como as favelas e os cortiços, consolidando a tendência à homogeneização urbana com a apartação e gentrificação.

É a expressão de uma espoliação e vulnerabilidade socioeconômica e civil (KOWARICK, 2009), dados os efeitos perversos do redesenho do Estado e das macro políticas econômicas, respondendo às demandas da ideologia neoliberal: agravamento das desigualdades nas cidades, massificação da pobreza, exclusão crescente (DAVIS, 2006).

A integração urbana toma a forma de inserção no mercado, na medida em que a própria cidade passa a ser concebida como mercadoria. O ideário de uma cidade participativa, que era parte do projeto de democracia social, cede lugar a um imaginário de cidade que se projeta no cenário internacional, como uma mercadoria que poderá ser vendida em proveito de todos os seus habitantes. Para isso, é preciso que as políticas públicas estejam estreitamente vinculadas aos interesses dos grupos empresariais que passaram à condição de sócios privilegiados do governo (FLEURY, 2013)

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Como o diz Harvey (2012), vivemos em tempos nos quais a sociabilidade do capital se sobrepõe aos ideais dos direitos humanos. Ou seja, “vivemos num mundo onde os direitos de propriedade privada e a taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras noções de direito” (HARVEY, 2012, p. 73). O que coloca o debate do direito à cidade na esfera da utopia burguesa, cujos propósitos de classe mobilizam consensos na defesa da cidade espetáculo, da cidade mercadoria, dos conjuntos habitacionais construídos em periferias distantes que afastam os pobres e sua suposta violência dos centros urbanos (RODRIGUES, 2007). Conforme Harvey (2012, p. 81), citando Nafstad et. al., vivemos em “um mundo no qual a ética neoliberal de intenso individualismo possessivo e a correlata renúncia política a formas de ação coletiva tornaram-se padrão para a socialização humana” .

Retomando alguns aspectos da luta pela reforma urbana no Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece parâmetros no art. 182 para a política de desenvolvimento urbano ao definir a função social da propriedade e da cidade e reconhecer a prevalência do interesse coletivo sobre o individual. Essa política deve ser executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes fixadas em lei, tendo como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

A Emenda Constitucional 26/2000, por sua vez, garante entre os direitos sociais o direito à moradia, ainda que regulado pelo acesso ao solo urbano. A promulgação da Lei Federal de Desenvolvimento Urbano, Estatuto da Cidade (2001), regulamentando o capítulo constitucional da política urbana, culmina esse processo de conquistas políticas e sociais no campo urbano habitacional ao definir um conjunto de instrumentos que visam a garantir o exercício da função social da cidade e da propriedade. O Estado brasileiro, nessa conjuntura de democratização, assume e institucionaliza a agenda dos movimentos sociais urbanos, promovendo canais de discussão e decisão - conselhos, orçamentos participativos, conferências, planos diretores participativos - reforçando a participação popular, o que se traduz no atendimento às reivindicações imediatas dos trabalhadores.

Todavia, é importante ressaltar que essas reivindicações têm sido transformadas em políticas

sociais compensatórias e fragmentadas, num movimento significativo de esvaziamento da luta de classes.

Se, por um lado, os avanços promovidos pela Constituição Federal brasileira, ao lado dos processos reivindicativos e as conquistas dos movimentos sociais e organizações populares colocam no horizonte a possibilidade da construção de cidades democráticas, a reorganização do processo de produção e reprodução do capital e a expansão liberal provocam outro conjunto de respostas às exigências da cidade como direito. A propriedade no Brasil obedece à lógica da valorização imobiliária, marcada pelo valor de troca, e assume uma função importante na centralidade da ordem do capital. O que traz uma grande contradição na defesa que se faz da função social da propriedade dentro dos parâmetros da “ordem”, inviabilizando a transformação societária (MELO, 2012). São projetos societários em disputa, alimentando de forma trágica o quadro urbano brasileiro. Segundo Ferreira (2010),

Frente a esse processo é pertinente apontar, em primeiro lugar, as denominadas parcerias entre sociedade civil e Estado neoliberal, as quais, capturadas pela lógica conservadora que imprime seu ideário em todas as dimensões da vida social, transformam as reivindicações por direitos em discursos vazios, que reificam os processos gestionários, abandonam os projetos de políticas públicas estruturais, reforçando, ao contrário, seus aspectos compensatórios e fragmentados. E mais, alimentam a agenda política com políticas setoriais que são pensadas

Se o Estado atacasse a retenção de terras ociosas para fins especulativos, exigisse a construção de habitações de interesse social em imóveis vazios, investisse pesadamente em infraestrutura urbana nas periferias, desse direito de propriedade a moradores de favelas e de loteamentos clandestinos, combatesse a ação desenfreada e destrutiva do mercado imobiliário, ele estaria atuando no sentido contrário ao de sua história, de sua lógica patrimonialista de defesa dos interesses dominantes – interesses que polarizam no extremo oposto, no controle do acesso à terra, na proteção quase sagrada da propriedade fundiária restrita às classes dominantes, na prioridade dos investimentos nos bairros mais ricos, na exclusão socioespacial como instrumento de dominação, questões que têm quinhentos anos de consolidação no Brasil.

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a partir das grandes cidades e das referências das regiões Sudeste e Sul. São discursos que alimentam a crença de que a produção e a distribuição das riquezas só ocorrerão no campo das relações capitalistas.

A participação popular e o controle social em todos os momentos de definição e implementação da política são enaltecidos, orientando discursos que defendem uma modernização conservadora e que traduzem uma participação outorgada para debater o bairro. Porque, por trás desse urbanismo modernizante, reproduzem-se políticas urbanas arcaicas, clientelistas, de expulsão dos pobres e de segregação espacial, no retorno fortalecido da comunidade. (FERREIRA, 2010).

Em segundo lugar, o padrão de urbanização que se consolida no Brasil, expande-se por meio da prevalência de um urbanismo de mercado que produz a marginalização de segmentos sociais, condicionando-os ao exílio em regiões periféricas desprovidas de serviços urbanos e sociais (FERREIRA, 2010). O que se observa é que está em curso um processo intenso de valorização fundiária e imobiliária, que transforma setores das cidades em nichos de oportunidades para o capital, com a ajuda do Estado no desenvolvimento de grandes projetos, promovendo o enriquecimento de grupos minoritários (FERREIRA, 2010).

Em terceiro lugar, o Estado brasileiro, pautado por interesses voltados à defesa de um modelo de desenvolvimento econômico excludente, que aprofunda a desigualdade social e privilegia a concentração da renda, da terra e da riqueza, exerce a função de defensor da vontade dos grupos dominantes, utilizando-se de diversos mecanismos de desmobilização das lutas sociais. Os meios de comunicação, aliados a esses interesses, tornam públicas essas vontades, articulando ações que desvirtuam o ideário dos movimentos sociais e limitam a veiculação de suas reivindicações e de sua existência organizada, alimentando as brutalidades das respostas do Estado. A violência, mascarada pelo discurso da segurança pública, se impõe mesmo em situações limites da vida humana, como no caso dos assentamentos precários e das moradias em áreas de risco, dos despejos e deslocamentos forçados, que ocorrem tanto no âmbito urbano como no campo, tanto em territórios de comunidades étnicas como em áreas ambientalmente degradadas. Formas de opressão e de exploração que se manifestam por meio de diferentes estratégias, que além de criminalizarem, estigmatizam, restringem e reprimem ações de movimentos sociais.

São argumentos que nos desafiam a buscar o enfrentamento da questão urbana, cujas formas tem assumido perspectivas diferentes. Uma perspectiva conservadora, cujos grandes incentivadores são as agências multilaterais de desenvolvimento e os organismos internacionais, que pretendem resolver a questão urbana ao influenciar e fomentar a despolitização dos diferentes segmentos sociais. A título de exemplo, tomemos a pesquisa de Valente (2012) que, investigando sobre os projetos urbanísticos financiados pelo BID, identifica a preocupação com o embelezamento das cidades sob o discurso da diminuição da pobreza e defesa do meio ambiente, escondendo os verdadeiros interesses nos investimentos empresariais. Afirma a autora, referindo-se à lógica da produção e reprodução social no contexto das cidades capitalistas,

Todavia, transformações históricas são delineadas também a partir de uma perspectiva crítica, que orienta o enfrentamento à questão urbana para a luta pela distribuição da terra e da riqueza socialmente produzida, pelo acesso igualitário, universal e justo dos recursos, serviços, bens e oportunidades que as cidades detêm. Assim, não há como enfrentar a questão urbana no interior da ordem burguesa, se não se romper a correlação entre a propriedade privada da terra e o processo de urbanização brasileiro. Maricato (2011, p. 150) assevera que,

Claro está que não se pode reverter esse processo de urbanização sem transformar as relações sociais de produção. Todavia, Netto é enfático ao afirmar

Desenvolve-se a ideia de competitividade entre os lugares, onde as cidades devem ser eficientes e atrativas aos investimentos capitalistas. Para tanto, é fundamental que as cidades sejam administradas eficientemente, daí a necessidade de uma gestão de cidades onde a dimensão técnica sobreponha-se à dimensão política, com a consequente diminuição das possibilidades de efetivação dos direitos de cidadania. O esforço das agências multilaterais, e em particular do BID, é de propagar modelos que sirvam ao planejamento urbano, baseados na racionalidade de gestão técnica, que busque ampliar a capacidade gerencial, especialmente da administração local.

O processo de urbanização será marcado fortemente por essa herança. Embora a urbanização da sociedade brasileira se dê praticamente no século XX, sob o regime republicano, as raízes coloniais calcadas no patrimonialismo e nas relações de favor (mando coronelista) estão presentes nesse processo. A terra é um nó na sociedade brasileira...também nas cidades.

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que uma análise teórica crítica “não significa um aval ao imobilismo”. Ao contrário, lutas sociais que visam ao reconhecimento dos direitos políticos e sociais impactaram significativamente a sociedade capitalista (NETTO, 2009, p. 221).

Essa disputa de significados, dados os desafios do enfrentamento da questão urbana, é ideológica, mas é também político-institucional. Em torno dessas perspectivas, conforme afirmado anteriormente, são tensionados projetos distintos de sociedade.

COTIDIANO PROFISSIONAL E OS DESAFIOS PARA O TRABALHO SOCIAL

No papel de sujeitos coletivos qualificados, um primeiro desafio para o desenvolvimento do trabalho social pelos assistentes sociais na perspectiva da cidade com direitos, é desenvolver análises críticas e interpretar, sistematicamente, os processos sociais, apreendendo suas determinações objetivas e subjetivas em relação às práticas sociais.

Os princípios éticos políticos dimensionam a perspectiva sociopolítica da profissão e na materialidade do exercício profissional é preciso situá-los dentro da totalidade do sistema de produção e reprodução das relações sociais historicamente determinadas, espaço onde os homens constituem sua subjetividade. Assim, o segundo desafio para o trabalho social está na captura do cotidiano nas suas contradições, alimentada pelos princípios éticos.

O terceiro desafio está na resposta profissional construída a partir das seguintes dimensões:

a) Consistente conhecimento teórico-metodológico, que propicie aos profissionais uma compreensão clara da realidade social e a identificação das demandas e possibilidades de ação profissional que esta realidade representa;

b) Realização dos compromissos éticos-políticos estabelecidos pelo Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais, fundado nos valores democráticos da participação política - liberdade, igualdade e justiça social - e nos valores de cidadania;

c) Capacitação técnico-operacional, que possibilite a definição de estratégias e táticas na perspectiva da consolidação teórico-prática de um projeto

profissional compromissado com os interesses e necessidades dos sujeitos, tendo em vista a efetivação dos direitos, mediante o fortalecimento da consciência de classe e da organização político sindical.

São dimensões que se articulam no espaço interventivo, seja numa perspectiva coletiva, junto aos movimentos sociais, com vistas a socialização da informação e organização popular, seja numa perspectiva individual ou grupal, para a construção de respostas às necessidades básicas dos sujeitos usuários da política, de acesso aos direitos, bens e equipamentos públicos. Conforme Guerra (2012, p. 39)

Há uma possibilidade de escolha ética diferente da barbárie. Trata-se de construí-la na práxis cotidiana, identificando as possibilidades de superação no enfrentamento das questões concretas de violação dos direitos. Em outras palavras, “a definição de projetos transformadores da experiência do dia a dia ocupa um lugar fundamental na construção da utopia” (MARICATO, 2011, p. 169). Ou, como afirma Iamamoto (2009, p. 343) “nesse cenário, a questão social e as ameaças dela decorrentes assumem um caráter essencialmente político, cujas medidas de enfrentamento expressam projetos para a sociedade”. Se, conforme Iamamoto (2009, p. 344), o trabalho profissional é “tanto resultante da história quanto dos agentes que a ele se dedicam”, a possibilidade de assumir a luta pelo direito à cidade como lema operacional e como ideal político para interferir na relação existente entre urbanização e formas de utilização do produto excedente na moldagem das cidades ao gosto do capital (HARVEY, 2012) funda-se no estatuto intelectual e político dos assistentes sociais e no ideário presente no projeto ético político profissional, tanto quanto nas exigências postas no mercado de trabalho.

Assim, os assistentes sociais, desafiados a pensar a cidade com direitos, articulando enfrentamentos ao modelo político-econômico que sobrepõe o

Parte-se do pressuposto de que o exercício profissional do assistente social, recebendo as determinações históricas, estruturais e conjunturais da sociedade burguesa e respondendo a elas, consiste em uma totalidade de diversas dimensões que se autoimplicam, se autoexplicam e se determinam entre si.

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econômico aos fins sociais, devem assumir uma agenda cuja prioridade está na ampliação dos espaços democráticos de decisão, ao lado dos movimentos sociais, entendendo o campo minado de tensões, lutas e contradições em que se movem indivíduos e instituições, sob a regência do capital.

Cabe ressaltar que essa agenda materializa-se no âmbito do cotidiano, cujas determinações apresentam características como a imediaticidade, a heterogeneidade e a espontaneidade (GUERRA, 2012). Nesse sentido, o profissional, no exercício de tarefas que, muitas vezes, lhes são impostas e cumprindo regulamentos e orientações nas respostas determinadas pelas exigências da eficácia e eficiência dos programas governamentais, deverá cuidar para não reproduzir práticas tutelares, moralizantes, autoritárias, interessadas em superar os gargalos da burocracia pública que naturalizam a pobreza e delegam aos segmentos sociais envolvidos nos programas e projetos, o enfrentamento da questão urbana.

As demandas postas aos assistentes sociais, na atualidade, são requisições técnico operativas que incorporam exigências de gestão da pobreza e não do seu combate e erradicação. Nessa direção, essas requisições para o trabalho social reiteram a lógica da administração nas exigências de gerenciamento e nos padrões normativos de gestão, tomam corpo na implementação de políticas com funções compensatórias como alternativas estratégicas à crise, que não estão associadas a políticas de emprego e tampouco à universalização dos direitos sociais, impõem o desenvolvimento de programas sociais de corte assistencialista e de serviços desvencilhados da perspectiva dos direitos sociais.

Portanto, tensionado por esse cenário contraditório da sociabilidade capitalista, o assistente social, nas estratégias adotadas para o trabalho social, deverá construir alianças que venham a lhe fortalecer no exercício profissional crítico e compromissado e no enfrentamento dos desafios tais como: a precarização das condições materiais e organizacionais de trabalho, os contratos flexibilizados que interferem no exercício das atividades de forma autônoma, a ausência de concursos públicos, o desenvolvimento do trabalho social restrito à implementação de projetos, com ênfase na produtividade da

economia local e na participação e controle social pelo “empoderamento” da sociedade civil (LIMA, 2008), a exigência de projetos sociais que reafirmam concepções controlistas e burocráticas, nas atividades de caráter informativo, educativo e de promoção social e que visam o desenvolvimento comunitário e a sustentabilidade do empreendimento/projeto, a concepção de trabalho social como processo de aquisição de habilidades para ordenar comportamentos, para o uso correto das moradias, para educar os sujeitos no papel de consumidores que cumprem seus deveres de pagamento de impostos e serviços.

Essa construção de alianças é um exercício político que deve acontecer, a par das atividades cotidianas do trabalho social. São estratégias que convergem para descaracterizar a construção de consensos promovida pela hegemonia neoliberal e requer a qualificação e capacitação continuadas e a intervenção concertada dos diferentes sujeitos coletivos nas iniciativas de resistência, numa perspectiva de totalidade. Ou, como afirma Raichelis (2011, p. 436)

NOTAS

1 - Texto elaborado para o III Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais, realizado pelo Conselho Regional de Serviço Social - MG e apresentado em 08 de junho de 2013, em Belo Horizonte, MG, por Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz, assistente social, professora doutora da Universidade Federal de São Paulo/BS.

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Quanto mais qualificados os trabalhadores sociais, menos sujeitos à manipulação e mais preparados para enfrentar o assédio moral no trabalho, os jogos de pressão política e de cooptação nos espaços institucionais.

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A compreensão da questão urbana e o direito à cidade na conjuntura atual do Brasil, precede a pontuação de elementos e marcos históricos na trajetória da política urbana Nacional.

Historicamente, o desenvolvimento das cidades foi marcado por um processo de urbanização fortemente segregador. Durante a ditadura militar, o país viveu o momento de grande crescimento econômico, através do incremento das exportações de produtos nacionais e do fortalecimento da Industrialização.

No entanto, toda a renda gerada por esse processo era concentrada. As ações governamentais, desde então, foram pensadas e implementadas sem dialogar com as demandas e necessidades que começavam a surgir no processo de desenvolvimento das cidades. Além disso, a criação do BNH - Banco Nacional de Habitação, através do Sistema Financeiro de Habitação para viabilizar moradias para população de baixa renda, significou, na prática, gastos vultosos de recursos públicos no financiamento de imóveis para famílias com faixas de renda alta e em áreas urbanizadas.

Nesse período, as cidades começaram a ser verticalizadas na suas edificações e as famílias de menor renda tiveram pouco acesso aos recursos, restando-lhes morar nas áreas mais distantes e em conjuntos habitacionais.

Importante destacar que também, nesse momento histórico, os movimentos sociais se organizam em torno das lutas pela moradia, saúde e saneamento.

As décadas de 80 e 90 foram de profunda recessão econômica e desmonte de várias instituições públicas. Mas foi, também, um momento, em que os movimentos de moradia se articularam com

outras organizações da sociedade, como sindicatos, universidades, organizações não-governamentais, igrejas e ampliaram a luta pelo direito à moradia para a luta pelo direito à cidade.

A Igreja Católica, através das Comunidades Eclesiais de Base, teve um protagonismo importante nesse período e, nesse processo de ampliação da luta, surge a Rede Nacional de Reforma Urbana que depois se tornou o Fórum Nacional de Reforma Urbana - FNRU. O Fórum Nacional de Reforma Urbana é um grupo de organizações da sociedade civil que lutam por cidades melhores.

São movimentos populares, associações de classe, ONGs e instituições de pesquisa que querem promover a Reforma Urbana a partir da luta por políticas que garantam direitos básicos de todos, como moradia de qualidade, água, saneamento e transporte público de qualidade.

O FNRU mobiliza as pessoas e entidades na busca de combater as injustiças das nossas cidades. Fundamenta-se a partir de três princípios fundamentais:

O primeiro deles é o Direito à Cidade:

Todos/as os/as moradores/as das cidades têm direito à moradia digna, aos meios de subsistência, ao saneamento ambiental, a saúde e educação, ao transporte público e à alimentação, ao trabalho, ao lazer e à informação.

O segundo princípio é a Gestão Democrática das Cidades: Os/as cidadãos/as têm que participar das decisões fundamentais para o futuro das cidades.

Assistente Social e diretora técnica do CEARAH Periferia

Teresa Hilda Costa

Questão Urbana e Serviço Social

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As prefeituras e câmaras de vereadores devem abrir o diálogo com a sociedade antes de decidir os destinos da cidade.

O terceiro princípio é a Função Social da Cidade e da Propriedade:

O espaço das cidades tem que servir, aos interesses coletivos das maiorias.

O Fórum Nacional de Reforma Urbana existe desde 1987. Em todos esses anos, vem incentivando a participação social em conselhos, organizando cursos de capacitação de lideranças sociais, discutindo a elaboração de planos diretores democráticos para as cidades. Uma das maiores conquistas é o Estatuto da Cidade, uma lei que ficou parada 12 anos no Congresso e foi aprovada devido à pressão popular.

Atualmente, nas ultimas décadas, ampliaram-se e acirraram-se os desafios da questão urbana. São muitas facções de interesses e atores com papéis distintos que disputam a construção da cidade. O Fórum Nacional de Reforma Urbana vem fortalecendo, cada vez mais, o foco na luta por políticas de habitação de interesse social voltadas para fortalecer processos autogestionários e de radicalização da participação social na formulação e na gestão das políticas urbanas.

Embora o direito a cidade seja reconhecido internacionalmente como um direito humano, ele não se concretiza como tal. Vivemos uma realidade de desigualdades na distribuição de renda, no uso e ocupação do solo e do espaço urbano, de segregação espacial, e crescente precariedade das condições de vida da população. Segundo Rolnik (2002), vivemos hoje nas cidades “um expoente de privilégios e desigualdades”.

Falta o controle social do orçamento público, falta uma definição das prioridades de investimento e enfrentamos o aumento do valor da terra, a crescente ocupação de áreas periféricas, cada vez mais distantes e ambientalmente frágeis, demandando longos deslocamentos dentro da cidade e trazendo a tona, entre outras problemáticas a questão da mobilidade. Ao mesmo tempo temos vários vazios urbanos em áreas subutilizadas e as regiões com infraestrutura estão sob domínio de especuladores imobiliários. Fazendo parte de toda essa realidade da questão urbana, ainda temos o fenômeno da Violência Urbana.

Elementos como supervalorização do turismo como atividade econômica, associada a processos de especulação imobiliária; a construção de grandes condomínios e resorts e a reprodução de processos que causam degradação ambiental, fazem parte de uma política governamental equivocada onde a estratégia de desenvolvimento revela o poder publico como principal violador dos direitos dos/as moradores/as da cidades e onde existe uma parceria perversa entre ele, o poder público e a iniciativa privada.

Nesse contexto o que temos é poder público e iniciativa privada juntos, mantendo o status quo.

Em tempos de megaeventos - Olimpíadas, Copa do Mundo - projetos e obras previstas e realizadas na perspectiva de “melhorar” as cidades brasileiras para receber os turistas violam direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais da população local. Nesse sentido, os depoimentos são reveladores:

As obras em vias de realização para Copa de 2014, em várias cidades do país, vêm demandando remoções em massa. O RIMA (Relatório de Impacto Ambiental) prevê que a remoção de parte da comunidade quebra elos de convivência social, amizades e possivelmente parentesco, além do enfraquecimento das bases sociais locais, o que provoca uma perda irreparável na memória, nas tradições e nos costumes dos povos locais. “Esse projeto acaba com a nossa identidade, massacra a nossa historia de vida” (Francisco Carlos - Fortaleza/Ce)

Contudo, mediante esse contexto urbano, é necessário destacar também que temos um histórico relevante de conquistas da sociedade civil organizada que rumam em busca de propor, efetivar e incidir nas políticas voltadas para a cidade.

Podemos sintetizá-los em alguns marcos:

• Surgimento do Fórum Nacional de Reforma Urbana;• Emenda Popular de Reforma Urbana na Constituição Federal;

“Uma forma de ação que não é física, mas é real, constrangendo as pessoas a moldarem suas atitudes de forma adequada às necessidades de força que exerce o poder (...) Enquanto as pessoas negociam as indenizações, os tratores permanecem parados a menos de dois metros das casas, à espera da saída dos moradores para dar continuidade à obra” (Ângela Leda, Jornal O Povo , CE- 17/08/2012

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• Nos anos 90, o desafio de construção de uma nova ordem urbanística redistributiva e includente; • 2001, a criação do Ministério das Cidades e do Conselho Nacional das Cidades;

• Participação Popular como obrigatória, através do processo das Conferencias Municipais, Estaduais e Nacional das Cidades.

Podemos citar os principais avanços na Política Habitacional e Urbana a partir da atuação dos Movimentos de Moradia e Reforma Urbana:

• Emenda Popular de Reforma Urbana (1987) e Capítulo Política Urbana na Constituição Federal (1988);

• 1ª Iniciativa popular de Projeto de Lei do Fundo Nacional de Moradia Popular/FNMP (1991);

• Introdução do Direito à Moradia como um Direito Social (art. 6º) na Constituição Federal (2000);

• Aprovação do Estatuto da Cidade (2001);

• Criação do Ministério das Cidades (2003), das Conferências das Cidades (2003) e do Conselho das Cidades/ConCidades (2004);

• Aprovação da Política Nacional da Habitação (2004) no ConCidades;

• Criação do Programa Crédito Solidário (2004), voltado para a Autogestão (Resolução 93/2004 do CCFDS);

• Aprovação da Lei do Sistema e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (2005) e sua regulamentação através do Decreto 5.796/2006;

• Campanha Nacional dos Planos Diretores Participativos, PDP’s (2006);

• Aprovação da Lei 11.578/2007 que incluiu o acesso de entidades sem fins lucrativos (cooperativas e associações autogestionárias) aos recursos do FNHIS;

• PAC Urbanização de Assentamentos Precários (2007);

• Ação de Apoio à Produção Social da Moradia (2008);

• Plano Nacional de Habitação/PLANHAB (2008);

• Aprovação da Lei 11.888/2008 que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social (2008);

• Aprovação da Lei 11.977/09 que cria o Programa Minha Casa Minha Vida e simplifica os processos de regularização fundiária de interesse social (2009);

• Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, (2009);

• Programa Minha Casa Minha Vida Entidades 2, previsto na Lei 12.424/2011, que altera a Lei 11.977/09 (2011);

• Aprovação da Lei 12.587/2012 que institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana (2012);

A atuação da sociedade civil organizada, junto aos movimentos de moradia e reforma urbana, combina a ação de mobilização social (caravanas, atos públicos, jornadas, ocupações, formação, capacitação) e a ação no campo institucional (participação em conferências, audiências públicas e conselhos).

O valor dessa atuação é ímpar no contexto para o estabelecimento da correlação de forças e contra a hegemonia na luta pelo direito à cidade. No entanto, não podemos deixar de reconhecer que, mesmo diante dessas conquistas, têm sido os atores que usam a cidade com interesses econômicos e são as práticas clientelistas e autoritárias que continuam (predominantemente) ditando as regras na cidade.

A questão urbana precisa ser mediada pela gestão democrática e, nesse sentido é preciso redefinir os parâmetros de política urbana, redimensionando os significados dos processos construídos nessa realidade a partir de dois elementos: participação e planejamento.

Chegamos ao Serviço Social, destacando a intervenção dos assistentes sociais a partir de uma atuação orientada para os processos emancipatórios, por meio de ação de cunho socioeducativo e organizativo e de prestação de serviços. O trabalho social é central na elaboração, execução e sustentabilidade das políticas urbanas.

Importante registrar a participação das assistentes sociais no FNRU, somando-se a outras categorias profissionais

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e movimentos sociais na defesa do direito à cidade. O trabalho social apresenta várias dimensões de atuação técnico-política e ética na defesa do direito à cidade ao mesmo tempo num bojo de contradições, limites e desafios.

Abaixo, elementos pertinentes sobre o trabalho social na questão urbana na perspectiva de avançar na busca da autonomia e de superar as condições de precarização a que estamos submetidos:

• O trabalho social precisa ter estratégias inovadoras de atuação sempre propondo e fomentando o senso coletivo;

• O trabalho social deve atuar numa perspectiva, cada vez mais interdisciplinar, considerando as intervenções de outras áreas (direito, urbanismo, engenharia, geografia urbana, arquitetura) no tema da questão urbana e direito à cidade;

• O trabalho social deve, cada vez mais, trazer uma ampla percepção política do contexto urbano no seu todo;

• O trabalho social deve fazer a interlocução com as universidades e outros segmentos para potencializar a força da atuação;

• O trabalho social deve ser agente de mudanças na própria instituição (dentro pra fora) e isso significa ter disposição para ir além do cotidiano padrão. Por exemplo, existe a normativa de atuação do trabalho social no PAC/MC, porém é importante o trabalho social trazer abordagens metodológicas que reforcem o que é previsto na normativa, de acordo com a realidade especifica onde a ação está acontecendo;

• O trabalho social deve ter uma postura criativa para ir além das rotinas institucionais que, na maioria das vezes, são rotinas engessadas, burocratizadas e limitadoras;

• O trabalho social deve estar atento para a importância da intersetorialidade e integração das políticas públicas, na busca de ampliar o alcance e sustentabilidade dos resultados as sua ação;

• O trabalho social deve se orientar para processos emancipatórios (ações socioeducativas e político-

organizativas), o que significa ter que lidar com contradições, limites e desafios.

• O trabalho social precisa apreender as questões de gênero considerando que as mulheres ainda estão submetidas às relações de dominação e opressão em todos os espaços.

Para a defesa da identidade e dos direitos das comunidades urbanas, o Serviço Social precisa estar atuando com ampla articulação em fóruns, redes e conselhos. Precisamos protagonizar a realização de seminários, oficinas nas comunidades, cursos e a formação de novas lideranças, sendo capazes de produzir novos conhecimentos para colocar a disposição da atuação e ainda conquistar mais espaços para visibilizar e sensibilizar a opinião pública.

Reafirmamos sempre nossa luta, pois nossa atuação é estratégica e fundamental para reverter a exclusão nas cidades. Nossa atuação deve contribuir para que as cidades se façam a partir do olhar de quem habita e não a partir de quem mercantiliza!

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1 – INTRODUÇÃO

Vivemos hoje num mundo cada vez mais desigual e heterogêneo e é preciso propor novas formas para analisar os problemas e a qualidade de vida urbanos para que, através delas, possamos tentar reverter esta situação, dando melhores condições de vida à população.

As novas perspectivas teóricas, a partir da década de 90, e as tecnologias sociais inovadoras vêm garantir a consolidação de um novo modelo de elaboração e gestão das políticas sociais para a solução dos problemas urbanos, que passam por dois grandes eixos: a) novos modelos de planejamento, com uma metodologia interdisciplinar e participativa, e com a utilização de diversos recursos tecnológicos para auxiliar os gestores e técnicos nos desenhos urbanos, nas discussões e decisões sobre as cidades; e b) novas formas de gestão que passam pela articulação dos setores governamentais e da sociedade civil, através de um processo democrático das decisões de caráter público.

Neste trabalho aborda-se mais diretamente o modelo de gestão e de planejamento urbano democráticos que vão influenciar diretamente no futuro de nossas cidades, e que podem ser avaliados sob uma perspectiva espacial.

Essa nova tendência democratizante tem sido implementada nas diversas áreas sociais e econômicas da União, dos estados e dos municípios, e tem exercido grande influência nos espaços urbanos que demandam melhores soluções para problemas sociais e articulações políticas para a sua resolução. Essa nova experiência tem transformado a paisagem das cidades através da descentralização de obras, serviços, equipamentos e distribuição da população no espaço urbano.

Portanto, propõe-se uma discussão que inicie uma análise sobre essa condição política de gestão e de planejamento e a importância de iniciativas que fomentem os instrumentos de participação popular, como os Conselhos Municipais que representam, hoje, o maior exemplo da gestão paritária e da intervenção popular na formulação e avaliação de políticas sociais efetivas para o desenvolvimento da cidade.

Este trabalho propõe uma análise das perspectivas de atuação do profissional de Serviço Social junto às comunidades, para garantir a participação de representantes da sociedade civil sobre o espaço urbano de Belo Horizonte nas áreas que discutem e decidem sobre a qualidade de vida dos homens nas cidades e sobre sua influência no planejamento urbano.

Controle Social e planejamentourbano participativo: contribuiçõesdo Serviço Social

Assistente Social. Possui doutorado em Tratamento da Informação Espacial pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2005) e mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP-SP (1998). Professora adjunta IV no Curso de Serviço Social da PUC MINAS e na assessoria da Pró-Reitoria de Extensão Universitária. Tem experiência na Área de Planejamento Urbano e Regional e Gestão Participativa de Políticas Sociais. Atualmente participa como presidente da diretoria da Associação de Rondonistas do Estado de Minas Gerais/Projeto RONDON Minas que atua na área de desenvolvimento urbano e rural, desde 2005, em municípios de Minas Gerais.

Mônica Abranches

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Considerando esse contexto, é preciso compreender qual é a real influência que a atuação da população exerce nos espaços urbanos que demandam soluções mais complexas para os problemas urbanos e sociais, além de articulações políticas para a sua resolução, como elas se distribuem e se organizam no espaço e como intervêm nas diversas áreas, considerando as demandas sociais emergentes e o contexto sociopolítico em que vivemos.

Nessa perspectiva, estamos considerando que os homens estão, constantemente, agindo no seu espaço com objetivo de responder às suas necessidades, e que essas ações no ambiente (natural ou construído) afetam a qualidade de vida de várias gerações.

Portanto, cada indivíduo percebe, responde e age diferentemente, sobre os diversos aspectos em seu meio, e essas reações são fruto das percepções, dos julgamentos e expectativas de cada indivíduo.

Tendo a cidade e suas transformações como foco central, a proposta é trabalhar com a abordagem da percepção ambiental, pois se está considerando uma mudança da paisagem (pelo planejamento urbano) a partir da “visão” de atores com diferentes status e com interesses diversificados, já que as representações da sociedade civil deverão se preparar para discussões e disputas junto a representantes de órgãos públicos e empresas privadas. Essa abordagem trata da investigação das formas como os indivíduos percebem e tomam decisões a respeito da cidade.

O estudo da percepção ambiental dos indivíduos sobre a cidade onde vivem e, recentemente, onde a sociedade e o poder público decidem juntos é de fundamental importância para que seja possível compreender as inter-relações dos homens com o ambiente, suas satisfações e insatisfações e seus valores que afetam seus julgamentos e condutas e, sobretudo, suas escolhas políticas sobre o futuro do espaço urbano.

Em síntese, o objetivo principal deste trabalho é entender, como o profissional do Serviço Social pode trabalhar na ação de mobilização social e como educador junto as comunidades estimulando o trabalho da percepção ambiental, para que a sociedade civil possa se inserir na dinâmica de uma

nova gestão pública do planejamento urbano sobre diversos aspectos (sociais, políticos, econômicos etc.).

2 - O PAPEL DA PERCEPÇÃO AMBIENTAL NO PLANEJAMENTO

Muitas vezes as tentativas de controle da natureza e a elaboração de legislações pela administração pública desconsideram ou não têm conhecimento adequado da influência mútua dos fatores psicológicos, econômicos e ambientais que devem direcionar a tomada de decisões e, portanto, a eficiência dos planos pode ficar comprometida. O melhor modo de tratar das questões urbanas é com a participação de todos os cidadãos interessados.

Segundo CLARK (1985), “a imagem que o indivíduo tem da cidade determina se ela é amada ou odiada, e onde dentro dela, ou se em alguma outra parte, ele escolherá para morar, comprar, trabalhar e passear” (p. 37).

O estudo prévio das percepções ambientais da comunidade com a qual se pretende trabalhar pode indicar características do grupo, levando os planejadores ao seu conhecimento e ao desenvolvimento de programas definidos de acordo com a identidade local, seus valores, sua forma de enxergar, interpretar e se relacionar com o meio ambiente. Dessa forma, será possível promover a participação de todos num processo de decisão sobre a realidade.

As análises sobre a percepção do ambiente resultam em informações mais confiáveis e legítimas para proposições futuras em relação à melhoria da qualidade de vida urbana, ou seja, as propostas estarão mais próximas das expectativas daqueles que vivenciam os problemas dos lugares e que utilizam o ambiente projetado, pois eles estarão participando ativamente do que será planejado.

O conhecimento de como as pessoas agem e porque agem dessa forma, associado ao levantamento da organização comunitária, das redes de influências, da intensidade e forma de participação da comunidade e das suas organizações, permite orientar e direcionar o agir no espaço para promover a participação e a corresponsabilidade de todos os envolvidos nas questões urbanas.

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As pesquisas concernentes à percepção ambiental nas relações entre o homem e a biosfera podem encorajar a participação local no desenvolvimento e na planificação, com vistas a uma realização mais eficaz de uma transformação mais apropriada.

De acordo com FERRARA (1999):

Em relação ao planejamento, é relevante considerar que as profundas transformações da vida urbana obrigam a mudanças na estrutura de governo e gestão local, a reorganização da vida comunitária, o incremento da participação coletiva na construção da cidade, as novas formas de cidadania e convivência e uma administração pública eficaz e eficiente, que estabeleça novas formas de relação e comunicação com o cidadão.

Para CASTELLO (1999):

Esses novos formatos para o planejamento e a gestão urbana têm seu marco no Brasil, como a Constituição de 1988 que promoveu a abertura para o planejamento e orçamentos participativos, entre outras experiências. Através desses processos, avanços importantes têm sido conseguidos com formas mais democráticas de gestão.

Nesse sentido, entende-se que experiências como os conselhos municipais, fóruns de debates ou comitês populares, entre outros, funcionam

como instrumentos importantes para garantir o envolvimento da sociedade nas ações que vão alterar a paisagem da cidade.

Ao mesmo tempo, garantem uma gestão urbana democrática e trazem para o nível de decisão do planejamento os diversos interesses da comunidade pelo espaço da cidade.

3 - DEMOCRATIZAÇÃO, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E PLANEJAMENTO URBANO

Quando tratamos do tema da participação, logo evocamos as experiências dos movimentos populares nas décadas de 70 e 80, que marcaram um importante processo de politização da sociedade civil organizada e conquistaram uma grande visibilidade na cena pública do país, onde discutia-se o papel do Estado, as formas de organização da sociedade, a cultura política do país, os direitos sociais e a democracia. Revendo a literatura sobre o assunto, encontram-se afirmações sobre as estratégias e a forma específica de reflexão imposta pelos movimentos sociais sobre a nossa sociedade, que são distintas daquelas decorrentes das políticas públicas.

Na análise de SANTOS JÚNIOR (1995),

Nos anos 90, análises das práticas coletivas falam da crise desses movimentos e da imobilidade para a participação, e impõem a exploração de temas mais abrangentes, coesivos dos movimentos sociais e resistentes às interpretações lineares desta crise. Paralelo a esses fatos, observa-se uma real desmobilização social e o crescimento da descrença na eficácia da organização.

Para explicar a crise, vêm sendo atribuídas causas de ordem externa, como as políticas neoliberais, a convulsão econômica do país, a descrença na política,

A participação urbana é o resultado da atividade de um conjunto de fatores que revelam a cidade enquanto estrutura de informação e comunicação. A cidade se molda no constante fluxo de suas representações enquanto desafios perceptivos que, se respondidos, levam o morador a interferir sobre os destinos urbanos, transformando-o em cidadão na defesa de interesses coletivos. (p. 80)

No próprio campo de projeto vem sendo ressaltada a importância da percepção da interação comportamental entre homem e ambiente, contextualmente, para definir as pautas de intervenção. (...) No urbanismo, observa-se cada vez mais a importância de perceber com clareza as tendências das relações homem-ambiente, mais ainda do que as necessidades, para instruir a projetação. (p. 25)

(...) as diversas experiências locais de participação em fóruns e conselhos municipais de gestão de políticas específicas, bem como a proliferação de ONGs em áreas de geração de conflitos sociais demonstram que a atuação dos movimentos no âmbito institucional constitui um terreno de significados contraditórios, de disputa política, e é justamente esse processo que contribui para alargar o conceito de cidadania e de espaço público. (p. 131)

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a crise das utopias, etc. Causas internas também vêm sendo consideradas e orientam-se pela discussão de que os próprios movimentos populares não se fundamentaram em projetos políticos próprios, independentes e autônomos, que garantissem, na atualidade, estratégias que assegurassem seu campo de atuação na sociedade civil voltadas para a discussão da transformação social.

De outra forma, alguns autores identificam essa tendência de retração dos movimentos como uma “crise de estratégia” para se adequarem à nova institucionalidade democrática, pois esses movimentos “se constituíram em meio a conjunturas marcadas pelo autoritarismo; consequentemente, percebiam no Estado um inimigo de classe a ser combatido” (SANTOS JÚNIOR, 1995, p. 131).

Portanto, o que caracteriza a conjuntura política atual é a “indefinição” (transição), que explica a proliferação de arenas políticas transitórias que estimulam as metas de curto prazo, que absorvem a energia de diversos atores sociais - que poderia estar voltada para a defesa de transformações mais abrangentes e profundas.

O espaço conquistado pelos movimentos populares em períodos anteriores tende, atualmente, a ser obscurecido por processos sociais caracterizados como fenômenos de multidão, que se fundamentam muito mais no poder de divulgação de determinadas ideias-síntese do que em plataformas coesas de reivindicações.

O que se apresenta neste cenário é, então, a exigência de um novo tipo de atuação social das forças envolvidas com os interesses populares e que estimulasse o reconhecimento das potencialidades de cada comunidade e seus atores sociais frente às disputas políticas em desenvolvimento. É nesse contexto que se insere o trabalho do Serviço Social enquanto agente mobilizador e organizador de prioridades e de ideias coletivas.

Por outro lado, a falta de projetos socialmente consistentes no plano nacional tem estimulado, no poder público, nos últimos anos, a concentração de expectativas em torno da descentralização e da participação social. O próprio conceito de gestão autônoma e colegiada em setores públicos vem

inspirando-se em teorias organizacionais recentes e em inovações administrativas empresariais, frutos de novas formas de organização dos interesses econômicos e da inserção da sociedade em uma nova divisão internacional do trabalho e em uma rígida segmentação entre as classes sociais.

Propostas como estas têm sua origem em processos como a globalização e a revolução técnico-produtiva na economia mundial, somados às alterações no processo de trabalho, nos sistemas de gerenciamento e no consumo.

O fato é que, com o amadurecimento do processo de redemocratização do país, vivenciado em conjunto com os processos de reestruturação da economia e de reorganização do Estado, gera-se uma demanda de envolvimento da sociedade civil e de suas entidades representativas em outras questões como: finanças das administrações públicas, formas de financiamento das políticas urbanas (através, por exemplo, do orçamento participativo), planejamento urbano participativo, resistência frente à privatização de empresas de serviços urbanos, entre outros. O aparelho do Estado tornou-se mais receptivo à participação popular e os grupos populares vêm sendo reconhecidos como interlocutores necessários na implantação de políticas sociais.

Nesse sentido, a sociedade civil vive um novo momento: deve se preparar para responder à institucionalização da participação e repensar sua atuação como indutora de mudanças na “nova cultura política popular”.

Desse modo, considera-se que a proposta de um governo democrático e popular pode significar um processo definitivo de descentralização do poder. E esta concepção, por sua vez, materializou-se, inicialmente, através da proposta dos conselhos populares, surgindo a partir de experiências dos movimentos populares. Esta forma de democratização permite incorporar a participação popular no processo de decisão e de planejamento, além de prover e ampliar as formas de consulta à sociedade civil.

Portanto, um dos canais de participação legalmente constituído para o exercício da gestão democrática são os conselhos paritários de políticas públicas,

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que permitem a participação com a possibilidade interventiva, com inserção da comunidade nas instâncias de decisão. A experiência de conselhos deliberativos confronta-se com as experiências de participação através da simples presença dos usuários dos serviços públicos em reuniões e eventos agendados por órgãos governamentais.

A partir dessas considerações, entende-se que, através de experiências colegiadas, a participação social pode se concretizar e adquirir, finalmente, uma expressão não apenas discursiva, nem jurídica, mas real e operativa. Estes se caracterizam como um espaço político-administrativo onde poderão emergir as representações dos diferentes interesses envolvidos, além de significar uma possibilidade de ascensão e de poder das classes populares excluídas.

Mas, é necessário ressaltar que a constituição desses espaços não é uma panaceia, nem a solução final para a participação social. É, sim, um componente importante do processo de democratização, embora não contemple o conjunto da cidadania. Isso porque ainda teremos o envolvimento de parte da comunidade, uma representatividade de um coletivo mais amplo.

A partir da abertura para a participação, quando os atores sociais passam a ter um papel ativo nas decisões sobre a elaboração, execução e controle das políticas públicas, é prioritário que se criem novas configurações sociais e novos espaços políticos que determinem uma nova relação com o espaço público. E isso é tarefa da sociedade civil, que vai se inserir neste processo. A participação social vai, ainda, depender do grau de organização dos atores sociais, da identificação e agrupamento dos interesses e dos recursos de poder de que esses atores sociais dispõem.

TELLES(1990) apresenta as novas formas de conquista de espaços pela sociedade civil a partir do reconhecimento de direitos que instauram novas formas de contratualidade na vida social e afirma:

Sua reflexão deixa claro que a construção de espaços públicos e a garantia de acesso a eles são resultados de conflitos de interesse e de reconhecimento de direitos que instauram uma permanente negociação entre Estado e sociedade civil.

Partindo desses pressupostos, pode-se afirmar que espaços de convivência e de participação que geram conflitos, que permitem o cruzamento de informações e trocas de experiências, podem caracterizar novos espaços públicos que, possivelmente, viabilizam processos efetivos de aprendizado e amadurecimento político para constituição de uma participação efetivamente qualitativa. Isso resulta no envolvimento dos atores sociais com novos significados no âmbito político e social, estabelecendo uma noção de identidade coletiva, necessária à participação social e à concretização do processo democrático.

A participação será qualitativa à medida que se estabelece uma constância na prática de participar dos atos corriqueiros dos indivíduos e em seus grupos sociais. Pois é no dia a dia que o sujeito se depara com escolhas onde atua e cria sua própria história. É o cotidiano, reflexo da sociedade, o lugar onde se exercitam a crítica e a transformação do próprio meio, do cotidiano, e do próprio processo histórico.

Considerando essas reflexões, acreditamos cada vez mais no potencial das estruturas participativas e da dinâmica da participação em produzir um aprendizado político para os indivíduos e garantir o processo de conquista da cidadania. Os processos de descentralização - enquanto estratégias de democratização - e a participação social estão intimamente ligados e podem proporcionar a constituição de novas forças sociais em sujeitos históricos atuantes.

É preciso ressaltar que a percepção dos indivíduos sobre a cidade é de extrema importância para qualificar a participação dos indivíduos e pode estar relacionada ao seu lugar de morada, ao seu perfil sociodemográfico, a sua trajetória política e à comunidade a que pertence. Como já foi dito anteriormente,

É na dinâmica dessa sociedade civil emergente que uma noção plural de bem público é ou pode ser construída, como invenção histórica e política que depende de espaços públicos democráticos nos quais a pluralidade de opiniões se expressa, onde os conflitos ganham visibilidade e as diferenças

se representam nas razões que constroem os critérios de validade e legitimidade dos interesses e aspirações defendidos como direitos. (In: DAGNINO, 1990, p. 100)

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a percepção ambiental é “uma prática cultural que concretiza certa compreensão da cidade e se apoia, de um lado, no uso urbano, e de outro, na imagem física da cidade, entendidos como fragmentos habituais da cidade” (D’ALÉSSIO, 1999, p. 18) e mais, “é uma forma de conhecimento, processo ativo que vai muito além do que se vê ou penetra pelos sentidos, mas é uma prática representativa de claras consequências sociais e culturais” (D’ALÈSSIO, 1999, p. 264).

A pergunta é: como o profissional de Serviço Social pode atuar junto às comunidades mobilizando as pessoas para o compromisso político com a cidade e participação nesses instrumentos democráticos, e quais estratégias são necessárias para atuar com a metodologia da percepção ambiental que pode otimizar as decisões e a priorização de temas pertinentes ao desenvolvimento social? Considerando a formação dos assistentes sociais, que princípios devem nortear esse trabalho de mediação e educação comunitária?

Para analisar a presença deste profissional no processo, podemos nos fundamentar nas afirmações de GOHN (1992) que, discutindo a estrutura e as conexões em torno dos movimentos sociais, afirma que “não existe movimento social puro, isolado, formado apenas de participantes populares, da base. Sempre há a presença de elementos externos ao grupo demandatário. Externos no sentido de pertencerem a uma outra categoria social, mas existe uma base de coesão ideológica comum que cria laços de afinidades e objetivos únicos”. (grifo nosso)

Nessa perspectiva, o trabalho do assistente social surge como mediador para a formação política e social dos representantes da comunidade afim de que, a realização de um trabalho de mobilização social e o acompanhamento dos processos de participação popular possa desenvolver a autonomia e o empoderamento da comunidade a partir das políticas urbanas.

4 - CONSIDERAÇÕES SOBRE A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL NA DEMOCRATIZAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO

A atuação profissional do Serviço Social, nesse caso específico, deve se fundar no princípio da

descentralização política e da participação social como instrumentos que oportunizam um exercício democrático e que se convergem para elaborar condições favoráveis de surgimento de sujeitos políticos, cidadãos, e de novas formas de organização política, além de proporcionar uma aprendizagem política que pode conduzir para uma participação realmente qualitativa da população nas decisões de caráter público.

De acordo com os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do Serviço Social (1993), a postura profissional deve reconhecer e defender a “(...) liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes - autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais; e o “aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida.”

A partir dessa orientação, os assistentes sociais deverão ser capazes de contribuir para viabilizar a participação da população usuária nas decisões institucionais e estabelecer estratégias para democratizar as informações e o acesso da população aos programas disponíveis no espaço institucional como um dos mecanismos indispensáveis à inserção e a participação dos usuários nas políticas públicas.

Nesse caso, a experiência da gestão colegiada pode representar um momento de construção para a comunidade, pois esta, enquanto sujeito das decisões e discussões dos problemas e questões da cidade e consequentemente de interesses coletivos, pode ser capaz de desenvolver, a partir daí, outros níveis de formação e organização social e política, bem como promover mudanças sociais em seu meio, através do aprendizado adquirido com a experiência participativa. Cabe então, aos profissionais do Serviço Social desenvolver ações de intervenção que permitam a criação de oportunidades de inserção democrática da população nos debates públicos e contribuir para a qualificação dessa participação através da capacitação política e formação para a cidadania daqueles envolvidos nesse processo.

Segundo MATTOS (1996), “o grau de informação do indivíduo irá torná-lo mais ou menos participativo. Não basta a sociedade proporcionar ao cidadão o direito à reivindicação, usufrutos socioeconômicos,

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voto e representação política. Somente informado, o grupo social poderá julgar sobre a validade das oportunidades e instrumentos colocados à sua disposição, aceitá-los ou rejeitá-los e considerá-los adequados ou não”. Nesse sentido, essa é uma das tarefas do assistente social e responsabilidade da categoria profissional que deseja consolidar seu projeto ético-político.

Portanto, a atuação do assistente social como educador comunitário1 tem como propósito ser um mecanismo facilitador de uma transformação social através da geração de processos de aprendizagem que incentivem a elaboração conjunta de ações dirigidas à superação de problemas da vida cotidiana, a partir da instauração de um sentimento coletivo das necessidades de um grupo e da abrangência de suas soluções, além de um trabalho de reconhecimento das necessidades de participação e de valorização cultural.

Defende-se, então, que o trabalho educativo do Serviço Social encontra-se fundamentado por uma concepção filosófica, política e operacional de educação comunitária. Filosófico no sentido de que, incentivando-se a participação comunitária e entendendo esta como um momento de aprendizado, instala-se um processo de superação gradativa das limitações do homem pela exploração contínua de suas virtualidades intrínsecas, um resgate das potencialidades dos indivíduos, além de processar uma maximização da humanidade do homem. Político, se considerarmos que, na experiência de educação comunitária, a comunidade se insere diretamente no contexto das decisões públicas que afetarão as políticas públicas e as relações da sociedade civil com o Estado, incentivando a participação política e consolidando uma cultura democrática para a sociedade. E operacional, porque a educação comunitária distancia-se das rotinas tradicionais de apresentar à comunidade programas prontos, inverte-se a ordem das coisas e prioriza-se a realização de um diagnóstico da comunidade, junto com ela, para conhecer seus anseios, problemas, necessidades e seu potencial para que o planejamento de atividades e de projetos seja realizado.

Aqui, podemos nos reportar a Hannah ARENDT (1989), quando discute a emergência da ação política

que determina a liberdade e a instalação de um espaço público que constrói um mundo comum entre os homens. Segundo ela, apenas a “experiência da pluralidade exige um espaço para que possa emergir, que o mundo pode se constituir como medida que transcende a vida pessoal de cada um”. E é isso que exige das pessoas a capacidade de “julgamento”, que se constitui como “uma faculdade especificamente política, pois, na medida em que implica a capacidade de ver as coisas não apenas do próprio ponto de vista, permite aos homens se orientar no domínio público”.

É com este olhar que estamos analisando as condições e os resultados do trabalho do Serviço Social na comunidade através do planejamento urbano participativo e da utilização da metodologia da percepção ambiental, buscando compreender a partir do questionamento “a quem serve a participação?”, como se dá o aproveitamento deste espaço político e social pela comunidade, o seu nível de compromisso e organização, e a existência ou não da construção de uma identidade coletiva, a partir desta experiência. E também: como os usuários dos serviços públicos podem participar da transformação da sociedade e da paisagem onde moram? As políticas públicas estimulam os usuários para a luta por novas conquistas nas políticas urbanas?

Trata-se de constituir a esfera pública como um espaço de formação de consenso político e publicização dos conflitos sociais, fortalecendo a participação dos sujeitos sociais. Nesse sentido, a prática do Serviço Social pode fazer o elo entre o alcance efetivo das políticas urbanas com as discussões políticas da assistência social que passam pela conquista de direitos, de autonomia e cidadania pelas classes excluídas na sociedade.

O caminho é inserir a política de assistência social na luta pela redistribuição da riqueza social, de recursos e estratégias que garantam os direitos civis, políticos e sociais, sob a luz de uma proposta efetivamente democrática, que apoie e incentive a organização, resistência e luta coletiva de seus usuários, procurando o fortalecimento de um poder popular que efetive o debate e ações capazes de conduzir as mudanças necessárias para o enfrentamento da questão social. É esse o projeto político do Serviço Social que deve ser colocado em prática.

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A ação do Serviço Social, dentro destas propostas, se destaca na atuação direta com a comunidade via organização popular e outras entidades comunitárias. O incentivo e a implantação de assembleias, comitês, grupos de discussão e órgãos colegiados, a promoção de seminários e encontros que atendam às necessidades da comunidade são objetos de trabalho do assistente social. O relevante desta experiência se constitui na elaboração de um projeto político de atuação, procurando conciliar a formação dada pela área de assistência social com a experiência e estudos na área do planejamento urbano.

Atuando na comunidade, o profissional pode dedicar maior atenção ao trabalho de socialização, sensibilização, informação, capacitação e organização social. Ou seja, é possível optar por uma prática política com os usuários, sem se perder somente nas relações necessidades/benefícios e situação emergencial/atendimento social.

Esse trabalho, com base na educação comunitária, resume-se em discutir com a população a emergência de sua participação na gestão da cidade, através de uma administração coletiva, dividindo com o poder público as decisões, o acompanhamento, a execução e a avaliação dos projetos e investimentos públicos na cidade. O fio condutor das discussões no grupo é a possibilidade de transformar as “obras de governo” em espaço público.

Após o trabalho de mobilização para participação as discussões continuam para a reflexão sobre a representatividade. E depois da inserção de representantes nos órgãos de discussão e deliberação passamos ao trabalho de assessoria política, onde o assistente social deve participar das reuniões, mediando e observando debates, e estará, por algum tempo, junto aos representantes da comunidade, realizando capacitações e dando apoio na construção de suas reivindicações e na forma de condução destas nas reuniões. Também faz parte do trabalho reunir os membros dos colegiados/conselhos em fóruns mais amplos para discutir suas experiências e avaliar suas dificuldades e possibilidades de atuação.

A atuação do Serviço Social baseia-se, então, na proposta de construção conjunta com a comunidade. Esta, ao mesmo tempo em que discute e participa de decisões da política pública, pode refletir sobre questões mais amplas - no que se refere à formação

da cidadania, conquista de direitos, mudança de conceitos frente à experiência democrática e formas de organização social - , que podem se estabelecer enquanto possibilidade de conquista de autonomia.

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Avalia-se que esta experiência pode proporcionar um aprendizado que venha promover transformações no âmbito da comunidade, nas suas relações e na sua organização social e política, incorporando-lhe o reconhecimento de suas potencialidades, possibilitando uma maior eficiência e transparência na superação de suas dificuldades e a instalação de uma rede de solidariedade e trabalho coletivo nas comunidades.

Segundo CANIVEZ (1991), a ação política é sempre ação com e sobre os outros, “não posso agir sem me dirigir a outras pessoas. Agir é tomar iniciativa, decisões, é falar, solicitar assentimento e o acordo do outro, é provocar reações. Quando estou agindo provoco nos outros reações diversas e sou agente porque começo algo, e também paciente porque sofro as consequências disso.”

A vivência das relações humanas e seus diferentes interesses permitem a prática e o aprendizado de estratégias de negociação, da correlação de forças existentes entre os diversos grupos e a elaboração de ideias e discursos de cunho político. Tudo isso se configura em um potencial de aprendizado que vai formando e preparando o sujeito político. E o profissional do Serviço Social é, aqui, um condicionante para a mobilização e o fortalecimento dessas práticas.

Fica então, a orientação para os profissionais de Serviço Social que atuam ou pretendem atuar na área da política urbana. O Serviço Social tem um projeto sociopolítico a cumprir que objetiva colaborar para a emancipação e autonomia dos indivíduos frente às situações sociais adversas e às desigualdades, além da busca de interação indivíduo/sociedade nas suas dimensões política, econômica, social e cultural. Portanto, a dimensão educativa da atuação da profissão deve promover espaços onde é possível mobilizar e discutir com maior profusão sobre a conquista de direitos, a defesa da cidadania, as identidades culturais, a consciência crítica, a justiça, e a AÇÃO.

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NOTAS

1 - Em 1979, a III Conferência Interamericana de Educação Comunitária define esta como uma ação “voltada não apenas para os tradicionais programas de educação acadêmica, mas, também para programas de educação para saúde, educação para o trabalho, educação para preservação ou melhoria do meio ambiente, educação para segurança, educação para a cidadania, educação para o desenvolvimento pessoal, social e cultural, educação para criação e utilização de momentos de lazer, educação para a produção e consumo, educação para a democracia e outros programas que a realidade particular de cada comunidade sugerir ou reclamar”

REFERÊNCIAS

CLARK, David. Introdução a geografia urbana (1985). Trad. Lúcia Helena Oliveira Gerardi e Silvana Maria Pintaud. São Paulo: DIFEL.

FERRARA, Lucrecia D’Aléssio (1999). Olhar periférico: informação, linguagem e percepção ambiental. São Paulo: EDUSP; 1999.

ROLNIK, Raquel. Planejamento Urbano nos anos 90: novas perspectivas para velhos temas (1994). In:

SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz César Queiroz; AZEVEDO, Sérgio de. (2004). Governança urbana e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: REVAN/FASE.

SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz César Queiroz; AZEVEDO, Sérgio de (1995). Reforma urbana: por um novo modelo de planejamento e gestão das cidades. Rio de janeiro: FASE/IPPUR-UFRJ, 1995. Série: teses, dissertações e monografias.

SOUZA, Marcelo Lopes de (2003). Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

TOLEDO, Ana Helena (1978). Planejamento Urbano em Debate. São Paulo: Cortez & Moraes,

TUAN, Y. F. Topofilia: Um Estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente (1974).Trad. Lívia de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel.

TUAN, Y. F. Geografia Humanística (1976). Trad. Maria Helena Queiroz. Anais da Associação de Geógrafos Americanos, 66 (2), jun.

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Galeria Ilustração de Carolina Rossetti

Há pouco mais de um ano, a Mata do Isidoro, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, foi ocupada por trabalhadores. Neste momento, os terrenos conhecidos como Esperança, Rosa Leão e Vitória abrigam cerca de oito mil famílias.

O CRESS-MG afirma o seu apoio à ocupação dos terrenos, certo de que a defesa da universalização de acesso a bens e serviços é essencial para a construção de uma sociedade justa e igualitária, conforme preconiza o projeto ético-político profissional da/o assistente social.

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Conselho Regional de Serviço Social de Minas Gerais (CRESS-MG)Sede - (31) 3226-2083 | [email protected] Tupis, 485 - sala 502 - Centro - Belo Horizonte - MG - CEP 30190-060

Conjunto de textos de autoria dos palestrantes do:

Carlos MontañoCézar Henrique MaranhãoRodrigo de Souza FilhoYolanda GuerraValéria FortiEunice Teresinha Fávero

Fátima de Maria MassonEliana Bolorino Canteiro MartinsTânia Maria Ramos de Godoi DinizTeresa Hilda CostaMônica Abranches