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Revista Cultura Euclidiana · REVISTA EUCLIDIANA 2019 “Euclides da Cunha, pioneiro na defesa do meio ambiente no Brasil” Professor Nicola S. Costa O tema geral da Semana Euclidiana

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Revista Cultura Euclidiana81ª Semana Euclidiana / São José do Rio Pardo – SP

Agosto de 2019 / Edição 11

Ernani Christovam VasconcellosPrefeito Municipal

Reinaldo MilanVice-Prefeito Municipal

Iury Feres AbrãoDiretor Presidente do DEC

Ana Paula de Paulo Pereira de LacerdaDiretora de Cultura

Curadora da Casa de Cultura Euclides da Cunha

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REVISTA CULTURA EUCLIDIANA 2019

Prefeitura Municipal de São José do Rio PardoDepartamento de Esportes e Cultura - DECCasa de Cultura Euclides da Cunha - CCECRua Marechal Floriano, 105 / Centro / São José do Rio Pardo SP / CEP 13720-000Telefone (19) 3681-6424casadeculturaeuclidesdacunha@gmail.comcasaeuclidiana.org.br

Conselho EditorialAna Paula de Paulo Pereira de LacerdaMaria Aparecida Granado RodriguesNicola Souza Costa

Organização: Nicola Souza CostaRevisão: Maria Aparecida Granado RodriguesEditoração: Ana Paula de Paulo Pereira de Lacerda Projeto Gráfico e Diagramação: André de Oliveira Lourenço - PraXis Propaganda

Revista Cultura Euclidiana / Casa de Cultura Euclides da Cunha. - Vol. 11 (2019) - São José do Rio Pardo, SP: CCEC, 2019.

Anual

ISSN 2236-8205

1. Letras. 2. Interdisciplinar. 3. Literatura. 4. Cultura. 5. Ciências Sociais. 6. Geografia. 7. História. 8. Educação. I. Prefeitura Municipal de São José do Rio Pardo. Departa-mento de Esportes e Cultura. Casa de Cultura Euclides da Cunha.

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SUMÁRIO

EUCLIDES DA CUNHA E A SEMANA EUCLIDIANA NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE ................................................................................... Ana Paula de Paulo Pereira de Lacerda

SOBRE O TEMA ........................................................................................................................................................................................................................................................ Nicola S. Costa

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................................................................................................................................... Nicola S. Costa

A VALIOSA FORMAÇÃO ESCOLAR DE EUCLIDES DA CUNHA .........................................................................................................................................Marleine Paula Marcondes e Ferreira de ToledoCélia Mariana Franchi Fernandes da Silva

EUCLIDES DA CUNHA COMO LEITOR .................................................................................................................................................................................................Nicola S. Costa

NOMES DE GUERRA (1) ....................................................................................................................................................................................................................................Fausto Salvadori Filho

ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS NA VISÃO DO CRONISTA OLAVO BILAC ....................................................................................... Maria Aparecida Granado Rodrigues

OS SERTÕES EM FRASES DE DESFILE ....................................................................................................................................................................................................... Célia Mariana Franchi Fernandes da SilvaMarleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo

EUCLIDES DA CUNHA: UM GRANDE DEFENSOR DO MEIO AMBIENTE .................................................................................................................... Rosângela Aparecida Gomes Pereira

A AMAZÔNIA “À MARGEM DA HISTÓRIA”: O DISCURSO EUCLIDIANO SOBRE O “PARAÍSO PERDIDO”NA ENCRUZILHADA DA MODERNIDADE ........................................................................................................................................................................................ Ana Beatriz Feltran Maia

DO PENSAMENTO EUCLIDIANO E DA EVOLUÇÃO DA TUTELA JURÍDICO-AMBIENTAL NO BRASIL ................................................ Igor Ferreira dos Santos

EUCLIDES E OS SERTÕES DIANTE DO “CALOR DAS LABAREDAS DO SANTO OFÍCIO DA CRÍTICA” ............................................. Nicola S. Costa

A IMPRENSA E SEU PAPEL NA HISTÓRIA DO BRASIL ONTEM E HOJE ......................................................................................................................... Rachel Aparecida Bueno da Silva

EUCLIDES DA CUNHA E QUESTÕES RACIAIS: APONTAMENTOS SOBRE REPRESENTAÇÕESDE PESSOAS NÃO-BRANCAS ......................................................................................................................................................................................................................Sérgio Luís de Castro JúniorLeandro Leal

EUCLIDES DA CUNHA ENTRE OS SERINGAIS ................................................................................................................................................................................ Maria Olívia Garcia R. Arruda

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EUCLIDES DA CUNHA, PIONEIRO NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE NO BRASIL

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EUCLIDES DA CUNHA E A SEMANA EUCLIDIANA NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

Ana Paula de Paulo Pereira de Lacerda Diretora de Cultura

Curadora da Casa de Cultura Euclides da Cunha ([email protected] )

Iniciado em 1912, o Movimento Euclidiano é considerado o mais antigo e tradicional que homenageia um intelectual brasileiro.

Ele foi criado com o intuito de reunir, discutir e difundir o pensamento euclidiano no município de São José do Rio Pardo/SP, local onde o escritor residiu com sua família durante o período de reconstrução da Ponte Metálica.

E foi em razão da tradição e da importância do Movimento que ele rompeu barreiras e fronteiras, fazendo com que São José do Rio Pardo passasse a ser conhecida e reconhecida como a “Meca do Euclidianismo”.

Euclides da Cunha é considerado o porta-voz do povo brasileiro. Em seus escritos, elaborados há mais de um século, já protestava com indignação contra as situações catastróficas no país, enxergava com altivez os problemas que alertou e que atualmente ainda vivemos.

Naquela época ele já nos alertava, por exemplo, para questões relacionadas ao meio ambiente.

Sempre à frente de seu tempo, deixava claro que nós mesmos destruiríamos a natureza, como afirmou no livro Contrastes e Confrontos, em 1904: “Temos sido um agente nefasto e um elemento de antagonismo terriv-elmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia”.

Nos últimos anos, muitos foram os acontecimentos catastróficos em torno da questão ambiental. Não mui-to longe, estamos ainda em luto pelas “tragédias” que nosso país chorou em Brumadinho/MG e Mariana/MG; a Amazônia, patrimônio mundial, corre perigo. Enfim, são muitas as questões ambientais que devemos olhar com atenção; ou mudamos a maneira de lidar com o meio ambiente, ou o próprio meio ambiente, de alguma forma trágica, irá nos mostrar que precisa de ajuda. Euclides da Cunha já dizia: “O homem é o fazedor de desertos”.

Cada Semana Euclidiana tem uma personalidade própria, portanto, em 2019, o tema que oportunamente será abordado é “Euclides da Cunha: pioneiro na defesa do meio ambiente no Brasil”. O objetivo maior é provocar reflexões sobre a importante relação do homem com a natureza, e despertar nas pessoas o fato de que ela é fonte esgotável. Sem ela não há vida.

Nos 81 anos de memória e história da Semana Euclidiana, agradeço a toda equipe envolvida para a realização do nosso evento! Sejam todos bem-vindos à Semana Euclidiana 2019!

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REVISTA EUCLIDIANA 2019

“Euclides da Cunha, pioneiro na defesa do meio ambiente no Brasil”

Professor Nicola S. Costa

O tema geral da Semana Euclidiana de 2019 será “Euclides da Cunha, pioneiro na defesa do meio ambiente no Brasil”. De fato, isso se justifica porque em todas as suas obras, fossem poesias, ensaios, relatórios, cartas e no clássico Os sertões, Euclides dedicou os seus cuidados, observações e denúncias aos males praticados pelos homens, considerados por ele como “fazedores de desertos”, ao meio ambiente das regiões brasileiras onde esteve, como o sertão nordestino e a Amazônia.

Euclides analisou e denunciou o trabalho predatório dos garimpeiros, as ruínas de lugares onde a riqueza se esgotou e que caíram na letargia, o abandono de regiões inteiras que ficaram entregues a si mesmas, o sertão em chamas devorado pelas queimadas, as florestas devastadas pela ganância dos exploradores, o trabalho desumano e desprotegido nos seringais perdidos no mapa, entre outras coisas. A propósito, convém ressaltar que inspirado na exploração e no sofrimento dos seringueiros da Amazônia, Euclides escreveu a narração “Judas-Asvero”, con-siderado por muitos como a sua página mais lírica.

Inicialmente entusiasta do “progresso” e da “civilização”, que seriam consequências das conquistas materiais, Euclides notou a artificialidade desses rótulos enganosos, constatando que elas não alteravam “o pioramento dos homens”.

Por tudo isso, na sua breve vida de 43 anos, encerrada em 1909, Euclides foi um homem à frente de seu tem-po, já que constatou, denunciou e projetou males que viriam a ser os grandes problemas ecológicos da atualidade do Brasil, aumentados e agravados pela repetição dos mesmos erros cometidos no passado, ou pelas próprias decisões governamentais oficiais ansiosas de obter vantagens de forma imprevidente, ou mesmo à sombra de sua omissão, indiferença e ineficiência em controlar os abusos cometidos.

No Brasil de 2019, queimadas continuam ardendo, represas de resíduos minerais cedem provocando mortes e destruições, regiões estão à margem do interesse oficial, fronteiras estão desguarnecidas, o desmatamento abre clareiras do tamanho de muitos países, áreas florestais viram pastos ou se desertificam, descobrem-se focos com trabalho escravo, áreas protegidas são pressionadas a ceder por interesses econômicos vorazes, rios são contami-nados e mortos por produtos químicos ou esgotos, etc. Confirmando isso, em 1983, o escritor Ignácio de Loyola Brandão fazia a sua denúncia no inquietante romance “Não verás país nenhum”.

Dessa forma, há muitos vínculos ligando o passado denunciado por Euclides e o país na atualidade, em todas as áreas do conhecimento, oferecendo alternativas de abordagens variadas aos especialistas de cada disciplina.

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Os artigos reunidos na Revista Euclidiana 2019 são sintetizados a seguir e foram dispostos na Revista numa sequência em que, sem que cada autor tivesse conhecimento do que os outros autores escreveriam, eles se relacionam e se complementam de alguma forma, já que o referencial é sempre Euclides da Cunha e a obra euclidiana. Basta observar os títulos que imediatamente haverá a percepção de que há um cruzamento dos textos entre si, o que vai facilitando a leitura de todos com a identificação de que um fornece elementos para a compreensão dos seguintes, deixando no final a sensação de que há uma homogeneidade, mesmo que haja uma diversidade de pontos de vista externados autonomamente em cada artigo.

Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo e Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva apresentam o artigo “A valiosa formação escolar de Euclides da Cunha” onde examinam as diversas fases da vida escolar de Euclides da Cunha. Elencam os estabelecimentos de ensino que frequentou, as disciplinas que estudou e atribuem boa parte de seu desempenho como homem de ideias e escritor à rica formação escolar.

No seu artigo, Nicola S. Costa descreve “Euclides da Cunha como leitor”. Procura demonstrar como ele, desde a infância, como Marleine e Celinha ressaltaram no primeiro artigo, era leitor voraz, enumerando os principais autores e obras que conhecia e citava em suas obras, tanto na sua adolescência como na sua idade adulta. São destacados alguns autores e ideias de inegável influência sobre ele a partir de suas leituras e que foram fundamentais para a elaboração de suas obras, ressaltando-se Os sertões.

Em seu artigo “Nomes de Guerra”, Fausto Salvadori Filho analisa como o conflito de Canudos repercutiu nos debates da Câmara Municipal de São Paulo, a partir de análise das atas da época. Em 1897, sob o efeito da derrota da expedição Moreira César, os vereadores paulistanos decidiram alterar os nomes de algumas ruas do centro da cidade para homenagear militares mortos em Canudos e considerados heróis. Finda a guerra, com as denúncias sobre a degola de prisioneiros cometida pelos militares os edis só mantiveram os novos nomes em apenas duas ruas...

No artigo “Antônio Conselheiro e Canudos na visão do cronista Olavo Bilac”, Maria Aparecida Granado Rodrigues menciona e analisa crônicas do poeta e cronista parnasiano Olavo Bilac sobre Antônio Conselheiro e Canudos no “calor da hora”, ou seja, quando a guerra acontecia. A visão de Bilac revela um intelectual que representava totalmente a “civilização de empréstimo” importada da Europa, emitindo juízos apressados e destituídos de fundamentos, e que Euclides da Cunha denunciaria em seu livro Os sertões.

No artigo “Os sertões em frases de desfile”, Célia Mariana Franchi Fernandes da Silvao e Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo enumeram frases significativas d`Os sertões, analisando-as e contextu-alizando-as, possibilitando ao leitor que construa mentalmente um memorial desse livro vingador.

Rosângela Aparecida Gomes Pereira, em seu artigo “Euclides da Cunha: um grande defensor do meio am-biente”, procura ratificar a opinião de que Euclides da Cunha foi um grande defensor do meio ambiente, já que descreveu com fidelidade a paisagem do sertão baiano e da selva amazônica, observando atentamente todos os fatos e os detalhes do ambiente que o cercava. Euclides foi precursor da ecologia e grande defensor da natureza, e já naquela época, mostrava-se contrário à devastação do meio ambiente, deixando sua contribuição à humanidade, construída pelo seu pensamento e pelos caminhos que trilhou.

No artigo “A Amazônia “À Margem da História”: o discurso euclidiano sobre o “Paraíso Perdido” na en-cruzilhada da modernidade”, Ana Beatriz Feltran Maia apresenta algumas reflexões acerca da construção do discurso euclidiano sobre a Amazônia, com base teórico metodológica nos Estudos Culturais, na História Cul-tural e História dos Intelectuais. Para ela, Euclides da Cunha defendeu a incorporação da Amazônia à história nacional, com o intuito de integrá-la à civilização, conforme o repertório mental apreendido em sua formação militar e nos debates intelectuais da época. Além disso, advogou pelo sertanejo seringueiro como o verdadeiro brasileiro capaz de integrar a região à modernidade. Com uso de metáforas como “paraíso perdido” e “infer-no verde”, Euclides da Cunha foi além dos discursos mitológicos-religiosos e científicos estrangeiros sobre a

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Amazônia e seus habitantes, colocando-a como questão para o desenvolvimento nacional nos círculos intelec-tuais da Primeira República.

No artigo “Do pensamento euclidiano e da evolução da tutela jurídico-ambiental no Brasil”, Igor Ferreira dos Santos situa o pensamento ambiental euclidiano na escala evolutiva da proteção ao meio ambiente, abor-dando o desenvolvimento das teses e impressões que ensejaram a criação da tutela jurídico-ambiental e o suposto pioneirismo de Euclydes da Cunha na discussão das relações entre homem e natureza no Brasil.

Em seu artigo “Euclides e Os sertões diante do “calor das labaredas do Santo Ofício da Crítica”, Nicola S. Costa destaca que Euclides e seu livro Os sertões sofreram críticas e elogios sobre os seus mais diferentes aspectos, mas que sua importância literária continuou e continua resistindo até o presente, tamanha é a com-plexidade de assuntos que contêm e que nele se entrelaçam. Por isso, os críticos encontram novas perspectivas de análises, de acordo com a percepção específica de cada um. A interpretação da realidade nacional e da guerra de Canudos dada por Euclides baseou-se em conceitos de pensadores europeus do século XIX, mas que aplicados na análise de nossa realidade não foram adequados, o que exigiu uma adaptação parcial ou in-suficiente para explicá-las. Euclides previu que sua obra provocaria polêmicas e manteve-se aberto a elas, sem dogmatismos. Por isso, críticas, interpretações e análises foram feitas a partir da publicação d`Os sertões, em 1902, em função da riqueza de seu conteúdo e às polêmicas suscitadas por suas inúmeras contradições. São mencionadas várias críticas célebres feitas a Euclides e a Os sertões, de 1902 até a atualidade, favoráveis ou desfavoráveis, e deixa-se a critério dos leitores a concordância ou não com elas.

Rachel Aparecida Bueno da Silva, em seu artigo “A imprensa e seu papel na História do Brasil ontem e hoje”, relembra que “a Guerra de Canudos mobilizou a imprensa no ano de 1897. Aproveitou-se muito do evento para vender notícias e a até fazer publicidade. Porém, os jornais tiveram grande importância no desen-rolar dos acontecimentos, influenciando a opinião pública. Não diferente do passado, hoje a mídia com seu poder e sua parcialidade, determina os rumos da história política e social do Brasil, sendo até chamada de O Quarto Poder.”

Sérgio Luís de Castro Júnior e Leandro Leal, em seu ensaio intitulado “Euclides da Cunha e Questões Raciais: apontamentos sobre representações de pessoas não-brancas”, declaram que “ experienciamos diálo-gos sobre raça e racismo, uma temática presente no pensamento euclidiano e que, muitas vezes, é silenciada, não contextualizada e mal interpretada, produzindo matrizes discursivas divergentes entre seus estudiosos. Num primeiro momento, caminhamos pelo processo construtivo, no passar dos anos, da figura de alguns personagens não-brancos na nossa literatura, enquanto um reflexo social da visão sobre essa população. Não menos importante, abordamos a construção desses mesmos indivíduos sob a ótica da ciência e das correntes interpretativas prevalentes do final do século XIX e início do século XX, quando, de fato, iniciam-se as pri-meiras interpretações sobre a(s) raça(s) brasileira(s). Chegamos, nesse processo, na interpretação de Euclides da Cunha quanto às questões raciais nacionais e o reflexo dela na construção das figuras do sertanejo e do seringueiro. Por fim, (in)concluiremos desdobrando desconstruções, apontando algumas das consequências desses processos construtivos na maneira que (in)visualizamos as populações não-brancas, dentro e fora das Semanas Euclidianas.”

Maria Olívia Garcia R. Arruda, em seu artigo “Euclides da Cunha entre os seringais”, assinala que “ a expe-dição realizada por Euclides da Cunha à Amazônia foi heroica, de grande dificuldade e os artigos e entrevistas que resultaram dela quando retornou ao Rio de Janeiro não tiveram a repercussão merecida, como bem observa Bilac,” em artigo jornalístico que é transcrito. Ela aborda aspectos dessa viagem que tem como objetivo maior reunir documentos que relatem momentos dos percursos que fez o escritor, tanto na ida quanto na volta, além de ressaltar as enormes dificuldades por que ele passou, sendo um homem de saúde frágil, no cumprimento dessa missão; para tanto, este artigo se alicerça em fontes como jornais de 1904 a 1906 e as obras de autores renomados e na Correspondência de Euclides da Cunha.

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RESUMO: este ensaio apresenta as diversas fases da vida escolar de Euclides da Cunha. Elenca os estabelecimentos de ensino que frequentou, as disciplinas que estudou e atribui boa parte de seu desempenho como homem de ideias e escritor à rica formação escolar recebida.Palavras-chave: Colégio Caldeira, Colégio Aquino, Escola Politécnica, Escola Militar, República.

ABSTRACT: this paper describes the several stages of Euclides da Cunha’s scholar career. It specifie the schools he frequented and emphasyzes the subjects he studied. It also explains how his consistent educational background contributed to his performance as a high-performance thinker and writer.Keywords: Caldeira’s College, College, Aquino’s College, Polytechnic School, Military School, Republic.

A VALIOSA FORMAÇÃO ESCOLAR DE EUCLIDES DA CUNHA

Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo (Universidade de São Paulo - USP)[email protected] / [email protected]

Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva (do Ciclo de Estudos Euclidianos)[email protected]

Euclides da Cunha morou em Teresópolis até a morte da tia materna Rosinda Gouveia, em 1871, quando, então, juntamente com a irmã Adélia, vai para a fazenda São Joaquim, nos arredores do hoje Valão dos Milagres, no 5º distrito do município de São Fidélis, Rio de Janeiro, de propriedade de sua tia Laura, esposa do coronel Cândido José de Magalhães Garcez. O casal tinha um filho biológico, Cândido; e outro adotivo, Trajano.

Euclides conhecia a fazenda, onde passara curta temporada, ainda em vida da mãe. Aí inicia a convivência com os primos Cândido e Trajano. O casal recebia muitos convidados, das fazendas vizinhas, de São Fidélis e de lugares um pouco mais distantes, como Monte Verde, a 30 km, e Conceição da Ponte Nova, depois chamada de Cambiasca1, para reuniões sociais e políticas, já que o coronel Magalhães Garcez era um dos líderes do Partido Liberal, o que detinha o poder na região. Quem tomava a dianteira da fazenda, coordenando o trabalho de cento e tantos escravos, fazendo que as lavouras aumentassem e os negócios progredissem, era dona Laura, uma mulher dinâmica, sempre pronta a tomar iniciativas.

Os escravos eram bem tratados pelo casal Garcez, cujo comportamento destoava do habitualmente utilizado por dois fazendeiros vizinhos, que aplicavam o chicote, a palmatória, o tronco, além de oferecer exígua e pobre alimentação. Euclides ouvia o que se comentava sobre essas condições desumanas impostas aos escra-vos. Dizem os biógrafos que o menino, embora com tão pouca idade, percebia muito bem as humilhações impostas aos serviçais e, em represália, não aceitava cumprimentar “aqueles homens maus”, exploradores de negros. E nessa atitude estaria o germe do sentimento de comiseração, de piedade, que nutriria pela vida afora, não só para com os escravos, mas também, genericamente, por todos os humilhados e ofendidos.

Nessa fazenda São Joaquim, também o menino Euclides, então com cinco anos, iria maravilhar-se com a natureza, levar uma vida tranquila e solta, brincando com os primos e os meninos da senzala. Ali, o pequeno Euclides, subindo pelo tronco e fixando-se num galho de um angico encostado ao casarão da fazenda, fazia ao gado, que voltava das pastagens, discursos, meio de ideias (de uma

criança!), meio de histórias contadas pelas mucamas. Um escravo, observando a constância do ato, teria aplainado o galho, para maior conforto e segurança do garoto. Enfim, era uma boa vida naquele ambiente convidativo à soltura, de que tanto gostam as crianças.

Chegados, filhos e sobrinhos, à idade escolar, o coronel Magalhães Garcez trans-fere-se com a família para a cidade, São Fidélis, às margens do rio Paraíba do Sul (com seus dois importantes afluentes: Rio Dois Rios e Rio do Colégio), onde mantinha uma casa de verão, prática comum entre os fazendeiros razoavelmente ou bem endinheirados da época. Agora, a família, que frequentava o casarão poucas vezes no ano, mais por ocasião das festas religiosas, invertia a movimentação: permanecia durante todo o ano escolar na cidade, e, na fazenda, pelas férias. A casa da cidade continuava, contudo, muito frequentada pelos amigos e correligionários do coronel, e as festas aconteciam com frequência na bem cuidada residência.

São Fidélis, hoje cognominada “cidade poema”, é um município brasileiro do estado do Rio de Janeiro, localizado na microrregião de Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, com uma área de 1028,095 km², dividida em cinco distritos. Era, na época, um centro importante, não só por suas riquezas naturais, economia forte, mas também pela proximidade da Capital, o que favorecia alentado inter-câmbio de produtos físicos e imateriais. Com a significativa extensão territorial mencionada, possuía, considerada a condição de vila, robusta economia, baseada no cultivo da cana-de-açúcar e na agropecuária (gado de corte e pecuária leiteira), e agricultura caracterizada pela policultura, com destaque para a cana-de-açúcar, arroz, milho, tomate, banana, algodão e goiaba. A cidade já possuía e tem hoje, sobretudo, vocação ainda para a fruticultura, olericultura, floricultura e silvicultura, além de outros domínios, nos tempos modernos, como indústria, comércio, coop-erativas e pesca. Para auxiliar na evacuação das riquezas, contava o município, então vila à época de Euclides da Cunha, com um bem frequentado porto fluvial, de onde saíam vapores diariamente, com destino à Corte, fazendo paradas em Campos e São João da Barra. Consta que o imperador, viajando pelo Paraíba, en-cantado com as maravilhosas paisagens, visitara a vila. Além do mais, as vibrantes disputas políticas entre conservadores e liberais, grandes magnatas, senhores de escravos, movimentavam a vida local. Três jornais estampavam as contendas e mantinham a população com escolaridade razoável a par das novidades da Corte e de outros acontecimentos. Consequência direta do desenvolvimento material

1 Cf. FREITAS, Evando. Por dentro da história com Evando Freitas: Conheça a história de Cambiasca.Disponível em http://www.saofidelisrj.com.br/Por-dentro-da-historia-com-Evando-Freitas--Conheca-a-historia-de-Cambias-ca/. Acessado em 27 de janeiro de 2019.

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seriam as atividades culturais.Não tardou muito para, com tantos recursos, São Fidélis erigir-se à categoria

de cidade. E ganha estatuto de pequeno centro de cultura. Segundo se lê em Elói Pontes, o club local mantinha biblioteca, onde se encontravam autores clás-sicos portugueses, francezes e ingleses romancistas, poetas e críticos. O Monitor Fidelense, o Jornal da Comarca, a Sentinella, bi-hebdomadarios, publicavam contos, folhetins e poemas. No Theatro Atheneu Fidelense, exhibiam-se peças romanticas. Do Rio, pelos vapores Miracema, Muriahé e Cambucy vinham grupos de actores, que eram acolhidos com enthusiasmo. Duas bandas de musica a Phil’Orphenica e a Eutherpe Commercial organisavam retretas, para gaudio dos melomanos, tocando no Theatro Atheneu e nas festas religiosas. A companhia dos vapores, ás vezes, preparava passeios, com charanga a bordo, Parahyba abaixo, parando nas ilhas, até campos. As grandes famílias, as damas ricas, acompanhadas de mucamas, divertiam-se nesses ensejos (1938, p. 20-21).

Naturalmente o Coronel José Cândido de Magalhães Garcez e seus familiares, vivendo o período de aulas, como foi dito, na cidade, participavam das atrações propiciadas por tão larga oferta, consideradas as limitações da época impostas às cidades que não fossem capitais. E também o solar dos Magalhães já comentamos colaborava com as festividades.

Ahi é ainda Elói Pontes quem diz se reuniam, em épocas de festas, os grandes da cidade e das fazendas circumpostas. Depois da missa, resada pelo conego Guara-cyaba, na igreja secular, batida a dous passos pelos frades capuchinhos, cathechistas e fundadores, quando os índios Corôados ainda se aldeiavam nas vizinhanças, D. Laura Garcez recebia as amizades nos grandes almoços. A’ noite, danças. A vida em São Fidelis decorria animadissima. Era a cidade dos grandes médicos, advogados e políticos de influencia nos destinos do Imperio (1938, p. 2).

Uma cidade com tantos atrativos, por certo, despertaria o interesse de pessoas ligadas à cultura e ao saber. E foi justamente esse o caso de Francisco José Caldeira da Silva, português da Ilha da Madeira, que se exilou no Brasil, em razão de suas ideias republicanas. Homem culto, empreendedor, abriu ali um estabelecimento de ensino - o Colégio Caldeira -, onde ele próprio dava aulas de francês, inglês e história, passando a professores selecionados, com absoluto critério, a incumbência de trabalhar com as demais disciplinas.

O coronel Magalhães e D. Laura não perderam tempo: depois de ouvirem Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, logo matriculam Euclides - que iniciara os estudos no Instituto Colegial Fidelense - no Colégio Caldeira, juntamente com seus filhos Cândido e Trajano.

Podemos dizer, com segurança, que, em termos de carreira, a estada de Euclides no Colégio Caldeira, instalado na chamada “casa da Gamboa”, foi decisivo em sua vida, embora ele tivesse tão pouca idade. Lá aprendeu bem francês, inglês, gramática, retórica. Já o latim não era o forte do menino, entretanto não impediu que os resultados finais fossem satisfatórios ou bons. Mas não ficam por aí a importância e o significado das lições aprendidas no destacado colégio. Embora, como estrangeiro, não pudesse colocar em prática seu ideário político, de republicano confesso, e recebendo em sua instituição filhos de ricos proprietários, na maioria escravocratas e monarquistas, o professor Francisco Caldeira não perdia oportunidade de, em suas aulas de história, apresentar aos alunos os principais episódios da Revolução Francesa. E, com isso, Euclides da Cunha tomará conhecimento de personagens responsáveis por grandes transformações históricas, como Robespierre, Danton, Marat, Mirabeau, que povoarão para sempre seu universo de escritor.

Euclides não se beneficia somente do Colégio Caldeira, base da cultura sólida que adquiriria vida afora. A biblioteca da cidade é como que “um mundo encan-tado” para aquele menino tímido, quieto, tristonho, que, embora não desprezasse as brincadeiras com os primos, colegas e amigos, que apareciam nas alegres festas

em casa da tia Laura, preferia a leitura de um bom livro. Assim, por exemplo, o ensino forte do francês ministrado pelo Prof. Caldeira lhe permitiu a iniciação nos escritores franceses, particularmente Alfred de Musset.

O período da fazenda São Joaquim e de São Fidélis termina em 1877. Foi muito rico, entretanto Euclides da Cunha nunca lhe fará menção, pelo menos nos textos que a nós chegaram, ainda que em 29 de janeiro de 1889, depois de uma estada de um mês e pouco em São Paulo, após o episódio da baioneta, regressasse à fazenda, então sem os escravos e mucamas, lá permanecendo, ao lado da tia Laura, por uma semana, revendo o Valão dos Milagres, as montanhas de São Fidélis e revigorando-se da atribulação de São Paulo.

Manuel Pimenta da Cunha decide transferir o filho para a Corte, onde o aguardava o tio Antônio, irmão de Manuel. Adélia fica com a tia Dona Laura Garcez. Euclides levaria, como mencionado acima, um capital cultural expressivo, adquirido no curso do Colégio Caldeira, nas leituras no “Club dos Aventureiros”, que, paralelamente a atividades sociais, oferecia possibilidades de ampliação do conhecimento, com sua considerável biblioteca e sala de leitura.

Instalado no Rio de Janeiro em 1878, como funcionário de um banco, Manuel Pimenta da Cunha põe abaixo o plano traçado, ainda em São Fidélis, de matricular Euclides numa escola da Corte. Encaminha-o para Salvador, onde residiam os avós paternos, talvez por pedido ou influência da avó. Na capital baiana, permanece por um ano, estudando no tradicional Colégio Bahia, dirigido por Carneiro Ribeiro, um professor de gramática filosófica, e por seu assistente, o cônego Lobo. Desse período pouca, ou quase nenhuma informação se tem a respeito do que aconteceu com Euclides da Cunha. Como no caso de São Joaquim e São Fidélis, o escritor não fará pela vida afora nenhuma referência que elucide qualquer aspecto dessas duas fases.

Novamente no Rio de Janeiro em 1879, Euclides vai viver numa chácara nas imediações do Largo da Carioca, sob os cuidados do mencionado tio paterno, Antônio Pimenta da Cunha, e de sua esposa Carolina, a Carola. É matriculado no Colégio Anglo-Americano (ou Brasileiro), de José Pacífico da Fonseca, para os lados de Matacavalos, bem próximo da casa do tio. No mês de novembro, presta exame de português na Instrução Pública, segundo as normas da época. No ano seguinte, submete-se às avaliações de história, geografia, francês, inglês e retórica, com aprovação nas cinco disciplinas.

Euclides, que vivia de uma casa para outra, também passará de uma escola para outra. Assim é que entre 1880 – 1882 frequenta dois novos colégios, o Vitório da Costa, na rua dos Latoeiros, e um mais conceituado, o Meneses Vieira. Cursa também os preparatórios.

Finalmente, entre 1883-1884, estabelece-se no último colégio por onde passaria, o Aquino, instalado na Chácara da Floresta, ao sopé do Morro do Castelo, com abertura, por meio de grande portão, para a rua da Ajuda, no centro do Rio, onde tem aulas de história com Teófilo das Neves Leão e de matemática com Benjamin Constant, de quem voltará a ser aluno na Escola Militar. Escreve seus primeiros poemas em um caderno, ao qual dá o título de Ondas. Quem dirige a Instituição é o professor João Pedro de Aquino2, homem de bom coração, humanista de

2 Escragnolle Dória, colega de escola de Euclides no Colégio Aquino, pintou seu diretor da seguinte forma: “Educou gratuitamente alunos sem conta.Meigo até a lágrima, puro e generoso, severo como os justos, grave sem ridículo, sempre todo de preto, com um charuto a fumegar entre os lábios, de onde desprendia a mais sossegada das vozes, o Dr. João Pedro de Aquino conheceu a fundo as pobrezas envergonhadas do Rio” ( Escragnolle Dória, “Euclides da Cunha”, no volume memorial da autoria de vários autores, Por Protesto e Adoração: In Memoriam de Euclides da Cunha, Rio de janeiro, 1919, p. 40, apud AMORY, Frederic. Euclides da Cunha: Uma odisseia nos trópicos. Trad. de Geraldo Gerson de Souza, Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2009, p. 36).

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primeira linha, educador exemplar, que levou para sua escola outros mestres de grande valor, entre os quais o citado professor de história Teófilo das Neves Leão, que fez que Euclides percebesse a importância de Marat, Danton, Robespierre, Saint-Juste e sobre eles escrevesse sonetos, e o de matemática, Benjamin Constant Botelho de Magalhães, o propagandista do positivismo francês (lembrar o “Ordem e Progresso” na bandeira do Brasil). Os dois exercerão, incontestavelmente, influên-cia no despertar das inquietações filosóficas e científicas do jovem e, ao lado do generoso Aquino, que não perdia Euclides de vista, contribuirão, em larga escala, para a formação intelectual de Euclides da Cunha.

E, a essa altura, já podemos falar em “aprendiz de escritor”, pois é da época do Colégio Aquino que datam as primeiras investidas de Euclides da Cunha no terreno da composição de textos literários em prosa. A atividade poética se iniciara antes, em 1883, com Ondas, referido anteriormente, cujos poemas – ou alguns deles - declama no Centro José de Alencar, estabelecido no Liceu Literário Português. Também de 1883 dataria um fragmento inédito de ensaio que Leopoldo M. Ber-nucci e Felipe Pereira Rissato intitularam “Sobre a sintaxe”:

“[‘Sobre a sintaxe’]Havendo aparecido por aí em certo dia ruim alguns atentados contra a sintaxe,

dar-se-á em seguida uma definição da mesma, para que não caiam mais em seus semelhantes.

[A] Sintaxe considera as palavras como relacionadas umas com as outras na construção [ilegível] quer sejam simples, quer se componham de membros ou de orações” (2018, p. 14-15).

Esse pequeno texto

constitui uma das primeiras peças em prosa de Euclides de que temos notícia, sendo escrita nos anos em que nosso autor estudava na Escola Militar do Rio de Janeiro (sic)3 e contemporânea à redação do caderno Ondas. Sua preocupação obsessiva para com a gramática e o léxico já evidencia o que se encontrará mais tarde em comentários semelhantes lançados em correspondência para amigos (BERNUCCI; RISSATO, 2018, p. 14-15).

A epistolografia euclidiana dá vários testemunhos desse comportamento cioso do autor: por exemplo, carta de 19 de outubro de 1902 para Francisco Escobar, a propósito das inúmeras gralhas aparecidas na 1ª edição de Os sertões; de 15 de agosto de 1907, dirigida a Domício da Gama, a respeito da reforma ortográ-fica; de 10 de dezembro de 1907, endereçada a Alberto Rangel sobre a palavra “comunhão” usada pelo amigo na obra Inferno Verde, que ele, Euclides, prefaciou.

Relata Elói Pontes o que seria o início (deixando de fora, naturalmente, o “Sobre a sintaxe”) da prosa euclidiana:

Datam desse tempo [do Colégio Aquino] os primordios literarios do futuro escriptor d’Os Sertões. Com os collegas Manoel Francisco de Azevedo Junior, Nathan Servio Ferreira, Reynaldo Jayme Maia, Custodio Ennes Belchior, Ramiro Carvalho Guimarães, Virgilio Las Casas dos Santos e Eurico Jacy Monteiro, publicou O Democrata. [...] Abolicionista e libertario, O Democrata registraria o primeiro trecho de prosa de Euclydes da Cunha, então com dezoito annos. Folhetim, cheio de pessimismo, com horror á cidade e paixão pela natureza, lambugens de Jean Jacques Rousseau, sentimentos que o dominariam ao longo dos anos (1938, 28-29).

Assim, o periódico bimensal O Democrata, de duas páginas apenas, em 4 de abril, estamparia, na primeira página, a matéria que, na edição das Obras

completas, da Editora Aguilar, em grafia atual, vem com o nome de “Em viagem (folhetim)”, e assim se inicia: “Meus colegas: Escrevo-os (sic) às pressas, desorde-nadamente...” (CUNHA, 2009, v. I, p. 84).

Como apontaram vários estudiosos da obra do autor de Os sertões, esse “escre-ver às pressas” - e variantes, mas com o mesmo sentido e intenção - aparecerá seguidas vezes na produção euclidiana, sobretudo na Correspondência, como se “por um complexo de culpa”, ou “falta de confiança” estivesse o escritor a justi-ficar-se antecipadamente.

Já nesse escrito Euclides demonstra sua vocação literária e as ideias democráti-cas que abraçava.

Entre 1884 e início de 1885, Euclides da Cunha dedica-se particularmente ao estudo da matemática, a fim de preparar-se para a entrada na Escola Politécnica, onde, para admissão, presta exames de matemática e desenho nos dias 11 e 15 de março de 1885, e se matricula logo após, em 27 do mesmo mês.

A opção pela Engenharia não foi rápida e espontânea como se poderia pensar. A facilidade na matemática, disciplina capitaneada no Colégio Aquino, conforme relatado acima, pelo mestre positivista Benjamin Constant, abria caminhos, a que o pai do escritor associou a praticidade e quase sempre segurança da profissão de engenheiro, contrariamente ao que acontecia com as humanidades, particular-mente literatura, tão do gosto do jovem estudante, mas que poucos resultados traziam para o dia a dia da vida.

O nomadismo, que então já se instalara na vida de Euclides (mudanças várias de Colégios), volta à cena agora no ensino superior, pois na Escola Central per-manece um ano apenas. Em 26 de fevereiro de 1886, com vinte anos, assenta praça na Escola Militar da Praia Vermelha4, Rio de Janeiro, cadete número 308. Tem como professor, entre vários muito bem preparados, Benjamin Constant, o mesmo do Colégio Aquino, e, como colegas, Alberto Rangel, Lauro Müller, Cândido Rondon, Tasso Fragoso e outros aos quais fará referência sobretudo na Correspondên-cia.

Segundo os biógrafos, as razões de tão rápida passagem pela Escola Politécnica e a entrada na Escola Militar não são claras. Hesitante, tímido, indeciso, muitas vezes não era fácil para Euclides tomar decisões. Diversos momentos de sua vida atestam esse lado inquieto e irrequieto de sua personalidade.

Um motivo pensável poderia ser o reencontro com Benjamin Constant, professor que admirava e com quem se deu muito bem no Colégio Aquino. Uma segunda razão (não necessariamente nesta ordem de importância) poderia estar relaciona-da à flexibilização e liberalidade do currículo da Escola Militar, em que os cadetes tinham oportunidade não só de dedicar-se ao estudo das ciências, das artes e técnicas da guerra, mas também de cultivar as humanidades, contrariamente aos rígidos programas matemático-científicos da Escola Central. Um terceiro determi-nante poderia estar na segurança que a instituição militar lhe ofereceria. Uma possível quarta influência atrelar-se-ia ao que diz Elói Pontes:

Relacionara-se com Benjamin Constant, no Collegio Aquino, admirando-o. A admiração influiria nas preferencias. Certo mesmo mais do que os contatos com

3 IDEM, Ibidem, p.15. Colocamos um sic, porque, em 1883, Euclides da Cunha estudava no Colégio Aquino e não na Escola Militar.

4 “Instituição criada em 1857, no Rio de Janeiro, então capital do Império, como um desdobramento da Escola Central” [que passará por diversos nomes],“localizada no Largo de São Francisco, até então único estabeleci-mento de ensino superior do Exército, e única escola do Império a formar en-genheiros, tanto civis quanto militares. O objetivo do governo era proporcionar, na Praia Vermelha, um ensino prático que complementasse o ensino teórico ministrado na Escola Central. A instituição funcionou até 1904, quando da Re-volta da Vacina”. (CASTRO, Celso. Escola Militar da Praia Vermelha. Disponível em :https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/ESCO-LA%20MILITAR%20DA%20PRAIA%20VERMELHA.pdf. Acessado em 05 de março de 2019.

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Benjamin Constant, chefe de fila no Exercito, por força dos conhecimentos positiv-istas, influiram no animo de Euclydes os conselhos do primo Urbano Gouvêia, filho de D. Rozinda Gouvêa, capitão em 1886, escolhido para auxiliar no ministério da Agricultura. Manoel Pimenta da Cunha teria acolhido bem o projecto, pois o ensino na Escola Militar era gratuito e a carreira das armas uma das mais propicias à data (1938, p. 37).

Neste ponto, entra um quinto possível fator, talvez o mais importante: a gratu-idade da Escola Militar para todos, além do pagamento de soldo para os menos favorecidos, sem contar o alojamento, a comida e quase todo o uniforme, enquanto a Escola Politécnica cobrava taxas.

À Escola Militar acorriam estudantes de condição social elevada, outros de classe média e alguns oriundos de camadas menos favorecidas. Euclides não se incluía entre os últimos, tanto é que da “caixinha” organizada pelos cadetes da Praia Vermelha em auxílio dos colegas mais necessitados ele nunca se valeu. Era o pai (outros familiares?) que acudia com as pequenas despesas, já que o ensino, em si, como afirmado, era gratuito. Assim, é de crer-se que, ainda que sem vocação para a rigidez e disciplina militares, Euclides abraçasse a carreira das armas por razões financeiras, carreira que acabou por ser curta, já que, em 13 de julho de 1896, é reformado pelo Exército no posto de tenente. Passa a receber a terça parte do soldo, por contar apenas com nove anos, quatro meses e oito dias de serviço.

Salienta-se a falta de recursos pelo fato de que, do ponto de vista dos con-teúdos programáticos, não havia diferenças sensíveis entra a Escola Central e a Escola Militar, uma vez que a linha mestra de ambas eram as Matemáticas. O distanciamento entre uma e outra era de nível social. Como muito apropriada-mente lembra Nelson Werneck Sodré,

A Escola Central assemelhava-se em muito, do ponto de vista de classe, aos cursos jurídicos, instalados no Brasil desde 1827, um lustro após a Independência. Nas Faculdades de Direito, realmente a classe dominante de senhores territoriais formava seus quadros, aqueles quadros com que preencheria o aparelho do Estado cuja autonomia empresara. À Escola Militar acorriam de preferência os elementos de classe média, que não tinham recursos para enfrentar o prolongado e relati-vamente dispendioso período de formação jurídica ou técnica e as incertezas da escolha de uma profissão ou de um emprego. O curso da Escola Militar era - foi mencionado - gratuito e, concluído, assegurava subsistência ao aluno, que se fazia oficial do Exército (in CUNHA, 1995, v. II, p. 16).

Já a Escola Central cobrava taxas. Além disso, o currículo da Escola Militar era mais flexível e liberal, pois os alunos se dedicavam também, como assinalado, às ciências e às humanidades, enquanto a Escola Politécnica se concentrava em conteúdos rigidamente matemático-científicos. Além do mais, o corpo da Escola Militar, militar que era, tinha muito que ver com a história do Exército Brasileiro.

Sabe-se que o Exército só ganha força no Brasil após a Guerra do Paraguai5. Antes dela, o Brasil fazia intervenções de natureza militar com elementos locais,

do próprio lugar do conflito, sobretudo na região sul, que dispunha de soldados com acentuada vocação para as lides guerreiras. Enquanto se travava o conflito de longa duração com o país vizinho, verificou-se que o contingente que defendia os interesses do Império era precário; então se começou a valorizar o trabalho de homens pertencentes a classes sociais menos favorecidas, o que fez que muitos deles voltassem promovidos. E como afirma Nelson Werneck Sodré,

o exército voltou com um espírito de classe, como profissão, e também, com um espírito de classe, como parte na sociedade. Daí por diante teria um papel, teria importância. Foi nesse Exército que, três lustros após o fim da Guerra do Paraguai, Euclides ingressou (in CUNHA, 1995, p. 17).

Esses dados explicam o que foi dito acima: que para a Escola Militar afluíssem cadetes de estratos sociais diversos, com predomínio da classe média, da intel-ligentsia da classe média brasileira, desejosa de sintonizar-se com as principais correntes de pensamento em moda na Europa, como, por exemplo, o darwinismo , o evolucionismo, o positivismo comteano. E o estudo predominante das matemáti-cas favorecia a absorção dessas novas teorias, sobretudo se nos lembrarmos da influência de Benjamin Constant e outros mestres sobre Euclides da Cunha e seus colegas.

Desse modo, a Escola Militar constituirá um capítulo à parte na vida de Euclides da Cunha, moldadora, diríamos, de sua personalidade e, paralelamente - pode-se afirmar - uma página especial na história das ideias no Brasil, por razões que se comentarão abaixo.

Os jovens cadetes da escola da Praia Vermelha faziam política, entregavam-se, nos dias de folga e nas férias, às expansões próprias da idade, com serenatas, visitas a casa de mulheres de “vida fácil”, brincadeiras e toda a espécie de rapa-ziadas. Euclides – dizem os biógrafos clássicos – dificilmente compartilhava esses prazeres da juventude com os colegas. “Arredio e grave”, relata Sílvio Rabelo, “ele preferia o silêncio da sala de leitura ou os passeios solitários pela praia ou ainda as cismas ao cair da tarde, junto aos barbetes e aos velhos canhões sem uso” (1966, p. 26). Sentimentos depressivos, manifestações de mau humor, irritabilidade, sofreguidão, tristeza visceral, pessimismo instintivo, distanciamento das camarada-gens fáceis dos colegas, ojeriza aos trotes excessivos praticados costumeiramente nas instituições tudo isso era parte da rotina do jovem cadete.

Mas o hábito da reclusão, do ensimesmamento, por outro lado, propiciou a Eu-clides um mergulho nas atividades do Clube Acadêmico e nos trabalhos literários, em prosa e em verso, que publicava no periódico da Escola, a famosa “Revista da Família Acadêmica”, fundada, segundo indica nota de rodapé da primeira página, em 18 de agosto de 1886 na Escola Militar da Corte, cujo número 1, do ano 1, data de 1º de novembro de 1887, tendo como integrantes da “Comissão de redação” Ataíde Júnior, S. Gonçalves, B. Liberato Barroso, Cândido Mariano e Edmundo de Barros.

Foi dito anteriormente que o currículo da Escola Militar, mais elástico que o da Escola Central, transitava entre as ciências e as humanidades. Pois bem, é só ir ao Sumário, do primeiro número, por exemplo, e se observará a influência na organização dos conteúdos na “Revista”. Confrontemos:

SUMMARIODa redacção – Theoria da eliminação.–A flôr do cárcere, (poesia) – H. Spencer

e o evolucionismo –Abinicio vitae, (poesia)– Umas palavras sobre a concepção mecânica.–Lições de arthimetica. –Metralhadoras.– Livros.–Chronica

A simbiose ciência-arte também se vai encontrar no – digamos assim - “Ed-itorial”:

5 “O surgimento dos movimentos republicanista e abolicionista que marcariam as últimas décadas do regime imperial seria largamente incorporado pelo ideário de boa parte do oficialato do Exército brasileiro, o qual após seu último grande conflito no Paraguai desenvolvera maior sentimento de unidade corporativa, de sua importância para o país e ao mesmo tempo de frustração frente ao bacharelismo civil (SCHULZ, 1971, p. 252)”. (SEIDL, Ernesto. A for-mação de um Exército à brasileira: lutas corporativas e adaptação institucional. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/his/v29n2/v29n2a05.pdf. Acessado em 12/03/2019).

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A revista, cuja publicação hoje iniciamos, é o coroamento prático, indispensável dos fins a que se propõe atingir a sociedade – Familia Academica – como modesta collaboradora de nosso aperfeiçoamento moral e mental.

Historicamente, isto é, quanto ao lado tradicional, de nossa vida academica, ela é a succedanea legítima, o prolongamento necessário da Phenix Litteria (sic) e Club Academico, - antigas e saudosas revistas que já floresceram, com bastante exito nesta Escola, caracterisando duas phases diferentes de sua atividade litteraria, e em cujas paginas brilhantes dignamente souberam se illustrar duas gloriosas gerações de moços entusiastas pela arte e pelas sciencias.

Sem perturbar, porém, a filiação historica desses factos, que são por assim dizer o mais bello patrimônio de nossa tradição escolar, podemos, no entanto, afirmar que, semelhante àquelas, a revista da – Familia Academica – na sua qualidade de fenômeno super-organico e tanto quanto um ser vivo que se modifica no sentido de suas conformações com o meio sob a accção incoercivel da lei biológica da adaptação, ela, em virtude da mesma lei, também há de definir-se – no espaço e no tempo – por conformações adequadas ao movimento espiritual moderno, de modo a adquirir a feição local do momento histórico que atravessamos.

Isto claramente explica como ella deverá ser a tradição escripta, perpetuamente adocumentada de uma das phases evolutivas do pensamento contemporâneo, tanto em suas atividades múltiplas, em suas lutas sem tréguas como em suas mais obscuras ou grandiosas aspirações estheticas ou philosophicas.

Abandonando como frívolas e absurdas as antigas classificações ou distincções empíricas, podemos hoje dizer com mais racionalidade que a vida litteraria de um povo é precisamente formada por todos seus documentos escriptos, quer estes sejam produzidos por sua atividade scientifica ou philosophica, quer religiosa ou artística e os quais nada mais são que a verdadeira tradição viva dos povos e sua maior riqueza espiritual.

Bastam estas idéas para fundamento do nosso programma litterario, que reduz-se ao seguinte: - Cultivar a arte, a sciencia, a filosofia e a religião – tanto quanto nos fôr possível, com plena liberdade para o direcebido (?), porque com verdade podemos e devemos declarar que de muito mais somos devedores á generosidade dos que nos acolhem que ao nosso próprio mérito, aliás limitado ao que possa resultar de nos havermos empenhado em cumprir o nosso dever.

Durante o lapso de tempo decorrido da fundação d’este órgão ate agora temos escrupulosamente afastado das suas paginas, consoante o programma que constitue o nosso compromisso, qualquer referencia á sucessos de ordem politica ou de qualquer outra menos própria às nossas circunstancias.

As sciencias, os assumptos concernentes a nossa profissão, a literatura em suas múltiplas formas, taes têm sido e continuarão a ser, como nos permitem os nossos recursos intellectuaes, os assumptos das nossas preoccupações.

Não há aqui lugar para essas luctas diárias, para essas agitações que abalam sempre um paiz novo e progressivo como o nosso – o que certamente não significa o aniquilamento individual de nenhum de nós, - mas simplesmente uma subordinação honesta a um programma sensatamente organizado.

Foi o que fez a commissão de redacção, cujo mandato acaba de findar-se e a quem a Revista da Familia Academica deve em grande parte a prosperidade que actualmente gosa, e, promettemos, será o que havemos de fazer, nós que assumimos hoje esta posição pedindo benevolência aos nossos leitores, com esperanças de que, acabado o nosso tempo, só lhe precisemos pedir – justiça. A Redacção6.

Os alunos da Escola Militar, paralelamente às leituras técnicas, debruçavam-se sobre obras de literatura7. Assim, formavam-se profissionais da área específica e, vários deles, gente que escrevia muito bem. Euclides que, como afirmamos atrás, tinha leituras dos franceses já do Colégio Aquino, agora se lança ainda mais, o que o leva a receber forte influência francesa, que ditará, por exemplo, muito de seu espírito romântico, presente em diversas ocorrências de sua poesia, prosa e até de vida pessoal8.

Os artigos e poemas de agora são de qualidade superior àqueles estampados em O Democrata. As inquietações de natureza filosófica e social, tanto de Euclides da Cunha, quanto dos colegas, manifestavam-se por todas as páginas da “Revista”, contribuindo para a disseminação das ideias abolicionistas e republicanas.

Para entender melhor o que se está querendo dizer, inicie-se pelo testemunho de Sylvio Rabello:

Em 1886 [matricula-se em fevereiro, como indicado acima] estava ele matric-ulado na Escola Militar, talvez seduzido pelo prestígio da carreira que parecia destinada à direção suprema da vida nacional. Exatamente em 1886, a Escola da Praia Vermelha, velho casarão de cinquenta e quatro janelas, deixava-se contaminar pela indisciplina que vinha perturbando as classes armadas durante os três últimos gabinetes da monarquia. Pode-se dizer que a oficialidade do Exército daquele tempo se dividia em dois grupos: o dos mais velhos, dos que tinham voltado dos campos do Paraguai com um sentimento que até então não possuíam o da superioridade da sua classe sobre a dos civis; e a dos mais jovens, dos chamados “cadetes-filósofos”, predispostos pela formação positivista contra o espírito do regime monárquico (1966, p. 24-25).

Os dois grupos acabam por unir-se em favor das principais causas da época, com o que a monarquia se fragiliza ainda mais. Palavras um pouco agressivas ou disputas de pouca importância saídas da tribuna da Câmara e do Senado contra membros do Exército, as quais, em outro momento, constituiriam rotina de trabalho, tomam, naquele momento, de ânimos exaltados, feição de ato grave, contra uma instituição de prestígio.

Sabe-se que o Marechal Deodoro da Fonseca, àquela altura, presidente e comandante das armas do Rio Grande do Sul, chamaria para si a representação da classe ofendida, tornando-se a figura principal dos que conspiravam contra a Monarquia. E as tensões entre as classes armadas e o governo aumentariam, nos quase três anos seguintes, culminando com o episódio da revolta dos quartéis, em 15 de novembro de 1889, e a consequente queda do Imperador.

Euclides da Cunha não só se apresenta como simpatizante dos movimentos abolicionista e republicano, mas também se torna protagonista do famoso episódio

6 Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/338915/per338915_1887_00002.pdf. Acessado em 25 de fevereiro de 2019.7 “Veja-se, no ensaio de Umberto Peregrino, ‘Euclydes e a Escola Militar da Praia Vermelha’, Dom Casmurro, 10 (22), a relação dos autores mais lidos nas bibliotecas da Escola: ou seja, os literatos portugueses, brasileiros e franceses Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Alexandre Dumas (père ou fils, ou ambos?), Jules Verne e Vic-tor Hugo; o matemático francês Joseph Louis François Bertrand, o astrônomo francês nascido na Itália Joseph Louis Lagrange, o francês Marie François Xavier Bichat, pioneiro na histologia e patologia anatômica, e o francês vul-garizador da astronomia Camille Flammarion; Platão; o materialista alemão Ludwig Buchner, autor de Force and Matter e Man’s Position in Nature; o semiticista francês Ernest Renan; o sociólogo inglês Herbert Spencer; os juristas brasileiros Augusto Teixeira de Freitas e Lafayette Rodrigues Pereira, e o o legista e diplomata argentino Carlos Calvo” (AMORY, Frederic,2009, p. 39, em rodapé).

8 Não é demais lembrar que alguns lances de sua vida nos remetem ao com-portamento do herói romântico, cheio de ideais, altivo na maneira de pensar e de agir. Muito de sua Correspondência confirma o que estamos dizendo.

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da baioneta, de 4 de novembro de 18889, o qual resultou em seu desligamento da Escola Militar. O episódio, narrado em pormenores por quase todos os biógrafos do autor10, é emblemático para a compreensão da personalidade de Euclides, que se recusa a desculpas que justifiquem seu gesto, como, por exemplo, um descontrole, um ataque de nervos, uma baixa ao hospital. Os fatos precipitam-se: transferido para o Hospital Militar, é levado, um pouco depois, à Fortaleza de Santa Cruz, onde fica até 13 de dezembro. Submetido a Conselho de Guerra, é expulso do Exército, em 14 de dezembro, por ato pessoal de Pedro II, de nada valendo o trabalho do pai para dissuadir o Imperador. Conforme muito apropriadamente diz Nelson Werneck Sodré, “Euclides dá ao fato o conteúdo político que lhe emprestou no primeiro momento, e abandona o Exército” (in CUNHA, 1995, v.II, p. 18).

Fora da Escola Militar, o que fazer, para onde ir? Talvez a identificação com as causas abolicionista e republicana, mais uma vez, tenha contribuído para a nova etapa da vida, pois, em 20 de dezembro, viaja para São Paulo, o berço do republicanismo, onde é muito bem recebido, já que seu ato de insurreição diante do Ministro da Guerra era interpretado pelos partidários da República como um gesto de bravura. Corria a favor de Euclides da Cunha outra circunstância. Partamos da seguinte informação de Jorge Caldeira:

Francisco Rangel Pestana, dirigente moderado que comandava o jornal [“A Província de São Paulo”] desde o primeiro dia da publicação, em 4 de janeiro de 1875, deixava de ser o único com poder. Continuaria acionista, detendo cinco contos de ações numa empresa com capital total de 45 contos. Além de ter ações da empresa, se tornaria diretor do jornal. Com um salário de oito contos anuais. Por indicação de acionistas, seria auxiliado por uma pessoa que somaria os postos de redator e gerente da empresa, com um salário anual de 3,6 contos: Júlio Mesquita, republicano radical (2015, p.202).

Pois foi esse republicano radical Júlio Mesquita, nascido 4 anos antes de Eu-clides, por isso chamado de “o irmão mais velho”, quem o convida para escrever em seu jornal A Província de São Paulo, o hoje O Estado De S. Paulo. Logo em 22 de dezembro, ainda de 1888, estreia com o artigo “A pátria e a dinastia”, seguido de dois outros, com o título geral de “Questões sociais”, em que se apresenta sob o pseudônimo Phroudon, um de 29 de dezembro, “Revolucionários”, e o outro, “89”, já de 1º de janeiro de 1889. Ainda com o pseudônimo Phroudon, publica,

entre 10 a 24 de janeiro, “Atos e palavras”, uma série de oito textos, ou “crônicas políticas”, como têm sido chamados.

Apesar de recebido com toda a simpatia em São Paulo e, particularmente, no maior jornal em circulação no país naquele momento, A Província de São Paulo11, Euclides não ficará muito tempo na capital paulistana, embora nunca mais a haja perdido de vista. A Província, de 27 de janeiro de 1889, assim avisa os leitores do jovem jornalista, que acabara (dia 20) de completar 23 anos:

Euclydes da Cunha. – Segue amanhã para o Rio este talentoso ex-alumno da Escola Militar. O Sr. Euclydes da Cunha, que vae concluir o curso de engenharia na Escola Polytechnica, prometeu enviar-nos com regularidade correspondencias politicas. As paginas da Provincia já por diversas vezes têm sido honradas com a brilhante colaboração do distincto moço. Pertencem-lhe todos os artigos que têm sahido como pseudonymo Proudhon e que tanto têm agradado aos nossos leitores. Desejamos boa viagem ao Sr. Euclydes da Cunha e cordialmente lhe agradecemos o poderoso auxilio que nos tem prestado.

De volta ao Rio em 29 (28?) de janeiro, decide passar “uma semana apenas” (segundo Sílvio Rabelo, 1966, p.43) ou “semanas” (conforme Elói Pontes, 1938, p.95) na fazenda São Joaquim, com a tia Laura e a irmã Adélia, a fim de recom-por as energias despendidas na agitação da campanha republicana de São Paulo, que contava com homens de grande prestígio pessoal e social, como Quintino Bocaiúva, Silva Jardim, Prudente de Morais, Américo Braziliense, Rangel Pestana, Campos Sales, Francisco Glicério, Américo de Campos, entre outros. Euclides não fi-caria de fora: respondeu ao chamado da causa antimonarquista como “voluntário”.

O descanso junto às montanhas de São Fidélis, ao Valão dos Milagres, aos lugares onde na meninice pegara passarinhos, de fato, não poderia estender-se de-mais, já que Euclides precisava estudar os conteúdos dos programas de adaptação à Escola Politécnica, de onde saíra em 1885, e para a qual desejava voltar, depois do insucesso na carreira das armas. Entre março e maio de 1889, submete-se a provas de Botânica, Mineralogia, Zoologia, Física, Acústica, Óptica e, de imediato, recomeça a frequentar o curso de Engenharia Civil.

Paralelamente, dá prosseguimento, conforme prometido à direção e ao público de A Província de São Paulo, à colaboração no jornal. Nele publica os artigos “Da corte” (17 de maio/1889), “Homens de hoje” (22 e 28 de junho/1889) e “Definamo-nos” (23 de julho/1889).

Vem a proclamação da República. Euclides da Cunha só toma conhecimento do fato ao sair de casa – uma pensão na rua São Januário - na manhã do dia seguinte, em 16 de novembro, por intermédio de um colega da Politécnica, Edgar Sampaio, que lhe relata os pormenores do movimento militar que tirou do poder o Imperador, e o convida para uma reunião, naquela noite, em casa de seu tio, o major Frederico Sólon Sampaio Ribeiro, onde Euclides conhece Ana Emília, a Saninha, sua futura mulher, e ouve promessa de retorno ao Exército e à Escola Militar, pois todos viam nele o cadete que, com gesto destemido, contribuíra para o êxito da causa republicana. Apresenta-se, de imediato, ao Marechal Deodoro, que o recebeu muito cordialmente, prometendo reparação, justiça no tratamento do caso, além de recompensas. Acrescente-se o apoio do major Sólon, o futuro sogro, dos antigos colegas da Escola Militar, que solicitam sua reintegração a Benjamin Constant, o antigo professor, que assumira, agora na República, o posto de Ministro da Guerra.

9 Relata Sylvio Rabello: “Corriam os últimos meses de 1888 e a Escola vivia o seu tempo de maior trepidação. O tribuno Lopes Trovão chegava da Europa a fim de engrossar o movimento republicano, agora na fase mais acesa. Mani-festações populares tinham sido preparadas para o dia do seu desembarque. Desejosos de participar do regozijo das ruas, os jovens da Escola Militar excediam-se em atos de turbulência que o diretor, general Clarindo de Queirós, mal podia conter. Coincidindo com a indisciplina desses dias, anunciou-se a visita do ministro da guerra, o conselheiro Tomás Coelho” (1966, p. 38), para dar a impressão ao país de que o governo imperial ainda era fonte de disciplina do Exército. “Desfilaram os primeiros pelotões em perfeita ordem. O terceiro ia já bem perto do ministro Tomás Coelho, quando um cadete se destacou da formatura. Era Euclides. Num assomo de rebeldia e supremo protesto, ele atirou o sabre ao chão, depois de tentar vergá-lo inutilmente no joelho (1966, p. 38). 10 O ato de indisciplina de Euclides da Cunha não se explicaria só por suas posições ideológico-políticas. Em última instância, estaria na injustiça de que se considerava vítima, pois, apesar das boas notas que obtinha – condição, segundo o regulamento da Escola Militar para ascensão na carreira – não conseguira subir à posição de alferes, a que tinha direito, permanecendo no posto de simples soldado, enquanto filhos de pessoas abastadas ou personali-dades eminentes galgavam postos superiores, sem nenhum critério, que não fosse o de serem protegidos da Coroa.

11 Leia-se em A Província de São Paulo: “Questões sociaes. – Nesta secção publicamos, hoje, o primeiro artigo de um novo collaborador da Província. É moço de muito talento e de vasta illustração. Se quiséssemos ser indiscretos, diríamos que o seu nome ainda ha pouco andou envolvido no grave incidente da Escola Militar do Rio de Janeiro, que se deu por ocasião da visita que o ministro da Guerra fez áquelle estabelecimento”.

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De fato, é readmitido na carreira militar em 19 de novem-bro/1889. No dia 21, recebe a esperada promoção a alferes-aluno – aquela que dera origem, entre outras razões, a seu protesto um ano antes - com o direito a aumento de soldo. Em 8 de janeiro de 1890, recebe licença para cursar a Escola Superior de Guerra, subdivisão da Escola Militar. Em 11 de fevereiro, conclui o curso de artilharia. Promovido a segundo-tenente, em 14 de abril, assume, em 19 do mesmo mês, o posto de oficial do Batalhão Acadêmico.

Não foi preciso muito tempo para que Euclides se decepcionasse com o novo regime, embora tão novo. Dando vazão a seu lado intranquilo e rebelde, faz críticas e ataques a alguns atos do governo, já em 1890, nas páginas do jornal Democracia, do Rio de Janeiro, entre 3 de março e 2 de junho, com duas crônicas publicadas em 3 (“O ex-imperador”) e 18 de março (“Sejamos francos”) e a série intitulada “Divagando-I, II, III e IV” (12 e 26 de abril, 24 de maio e 2 de junho). Nesse mesmo jornal, publica em 10 de maio “Resposta à Confederação Abolicionista-I” e, em 12 de maio, “Resposta à Confederação Abolicionista-II, ambos em parceria com Saturnino Nicolau Cardoso e Tomás Cavalcânti de Albuquerque, ainda a respeito da abolição da escravatura; em 12 de maio, publica também no Democracia um artigo “Amanhã”, em que assina “2º tenente - Euclides da Cunha”.

Em janeiro de 1891, já casado, desde setembro de 1890, com Ana Emília Ribeiro, a “Saninha”, filha do major Sólon Ribeiro, recebe licença para tratamento de saúde. Viaja com a mulher para a Fazenda Trindade, de seu pai, na região entre Descalvado e São Carlos do Pinhal, no interior de São Paulo. Logo volta ao Rio, a fim de completar os cursos de Estado-maior e Engenharia Militar, na Escola Superior de Guerra.

Em 8 de janeiro de 1892, conclui o curso de Estado-maior e Engenharia Militar, da Escola Superior de Guerra, e é promovido, no dia seguinte, a 1º tenente, seu último posto na carreira. Recebe, no dia 16, o diploma de bacharel em Matemática e Ciências Físicas e Naturais.

O percurso da formação escolar, que apresentamos, mostra que os sólidos conhecimentos demonstrados por Euclides da Cunha em suas obras e, principalmente, em Os sertões, não foram adquiridos de afogadilho; ao contrário, atestam a densa cultura adquirida desde o ensino fundamental até o curso superior, em instituições de prestígio, como o Colégio Aquino, a Escola Politécnica e, principalmente, a Escola Militar, onde esteve por mais tempo.

Vimos que a orientação pedagógica e a filosofia de ensino da Escola Militar nos anos 80, do século XIX, atendiam o objetivo desejado, mas dificilmente alcançado nos modelos da boa educação/instrução: o equilíbrio entre conteúdos científicos e humanísticos, na transmissão do conhecimento.

Com muita propriedade, Lourenço Dantas Mota avalia a Escola Militar da época de Euclides da Cunha:

Ver na Escola Militar dos anos oitenta apenas uma espécie de clube positivista é ter uma visão falsa, apressada e simplista da realidade. Cristalizar em Benjamin Constant a imagem da escola é esquecer de forma imperdoável a influência de Spencer, por exemplo, sobre os alunos. Como é imperdoável fixar-se no prestígio de que gozavam as matemáticas na Escola, em função de Comte, esquecendo ou minimizando a influência poderosa do gosto e do estudo da literatura entre seus alunos (1974, p. 50).

E Mota conclui salientando que a Escola Militar será decisiva na vida de Euclides, tanto pelo “lugar proeminente” que ocupava, quanto pelo “tipo de ensino ali ministrado”. Vejam-se suas palavras:

A insistência na caracterização do lugar proeminente ocupado na época pela Escola Militar, e na compreensão do tipo de ensino ali ministrado, são indispensáveis para o conhecimento de Euclides, pois ambos os fatos irão pesar decisivamente na sua formação. Aos vinte anos, quando de sua matrícula na Escola Militar, e tendo em vista a sua precocidade já referida, Euclides tem uma personalidade definida em seus aspectos essenciais. O que ocorrerá na Escola Militar é, ao mesmo tempo, o aprofundamento, o desenvolvimento e a manifestação – explosiva por vezes – daqueles traços já fixados. É, portanto, uma época não só de formação, como também de afirmação (p. 50-51).

Assim, as diversas atividades que Euclides da Cunha exerceu (escritor, engenheiro, jornalista, professor) ele só as pôde realizar com brilho e eficiência, se considerados seu talento, dedicação, obstinação e - como foi nossa intenção demonstrar - as boas escolas que frequentou.

BIBLIOGRAFIA

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CALDEIRA, Jorge. Júlio Mesquita e seu tempo. V.I: “O jornal de Prelo, locomotores e república [1927/1862-1897]”. 1ª ed. São Paulo: Mameluco, 2015.

CUNHA, Euclides da. Ensaios e inéditos. Orgs. Leopoldo M. Bernucci, Felipe Pereira Rissato; Coords. Leopoldo M. Bernucci, Francisco FootHardman. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

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DÓRIA, Escragnolle. “Euclides da Cunha”, no volume memorial da autoria de vários autores, Por Protesto e Adoração: In Memoriam de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro, 1919)

MOTA, Lourenço Dantas. Euclides da Cunha. São Paulo: Editora Três, 1974 [Col. “A vida dos grandes brasileiros – 11”].

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SODRÉ, Nelson Werneck. Revisão de Euclides da Cunha. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Ed. Organizada sob a direção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S. A., 1995, v. II.

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Em 28 de junho de 1909, apenas 47 dias antes de sua trágica morte, Euclides da Cunha escreveu numa carta ao amigo e historiador Oliveira Lima, referindo-se ao que observava no país naquele momento: “Ninguém lê, ninguém escreve, ninguém pensa.” (Carta 386, p.411) Euclides vivia uma fase triste de sua vida pois encontrava-se muito doente, seus filhos o decepcionavam como estudantes, a política nacional estava prestes a sofrer uma mudança contrária aos seus interess-es, e a sua instável situação conjugal aproximava-se de um desenlace trágico que custaria a sua vida. Mas seu desabafo era válido pois o nível cultural da maioria da população brasileira era pífio. Ainda hoje, 109 anos depois das palavras de Euclides, o sociólogo Reginaldo Prandi assinala que, “somos um país que lê pou-quíssimo. Nossa cidadania é muito frágil” (04/06/2018), o que mantém a atuali-dade do desabafo euclidiano, infelizmente. Sua crítica fundamentava-se no fato de que, desde criança, Euclides da Cunha envolvera-se com leituras que estimularam seus escritos na adolescência e na vida adulta para manifestar seus sentimentos e pensamentos. Euclides foi leitor, escritor e pensador voraz durante sua existência de 43 anos, daí seu diagnóstico amargo em 1909. Neste artigo, nosso objetivo é demonstrar quais foram as leituras feitas por Euclides, mencionadas por ele em suas cartas, artigos, ensaios, crônicas e no livro Os sertões.

Euclides da Cunha sonhava em viver tranquilamente, lendo seus livros prediletos.

RESUMO: Neste artigo descrevemos Euclides da Cunha como leitor a partir da sua frase “Ninguém lê, ninguém escreve, ninguém pensa”, escrita nas últimas semanas de sua vida, em que desabafava sua decepção com a estagnação cultural predominante no país. Procuramos demonstrar como ele, desde a sua infância, era leitor voraz, enumerando os principais autores e obras que conhecia e citava em suas obras; num segundo artigo, tentaremos demonstrar como ele era, desde a sua adolescência, um escritor obsessivo, mencionando as principais obras que escreveu e a variedade delas, em que revelava seu talento de polígrafo; e num terceiro artigo, demonstraremos como ele era, na idade adulta, um pensador crítico, ao de-nunciar em Os sertões, em confissões íntimas, em ensaios e em artigos jornalísticos as mazelas do país. Assim procedendo, temos como objetivo principal fundamentar a frase amargurada de Euclides, reconhecendo nele um leitor, escritor e pensa-dor apto a diagnosticar num desabafo de seis palavras o atraso cultural em que vivíamos no início do século XX e que, após um século e de certa forma, infelizmente, ainda continua longe de ter perdido o sentido manifestado por ele. Palavras-chave: Revolução Francesa - Positivismo – Socialismos – Racismo - Darwinismo ABSTRACT: In this article we describe Euclides da Cunha as a reader from the epigraph, “No one reads, no one writes, nobody thinks,” written in the last weeks of his life, in which he expressed his disappointment at the prevailing cultural stagnation in the country. We try to demonstrate how he, since his childhood, was a voracious reader, enumerating the main authors and works he knew and quoted in his works; in this second article, we demonstrate how he was, since his adolescence, an obsessive writer, mentioning the principal works he wrote and the variety of them, in which he revealed his polygraph talent; and in a third article, we will try to demonstrate how he was, in adulthood, a critical thinker, by denouncing the country’s ills in Os sertões, in intimate confessions, essays, and journalistic articles. In this way, we have as its main objective to substantiate Euclid’s embittered sentence, recognizing in him a reader, writer and thinker able to diagnose in a six-word outburst the cultural backwardness in which we lived at the beginning of the twentieth century and which, after a century and a certain way, unfortunately, still far from having lost the sense he manifested.Keywords: French Revolution - Positivism - Socialisms - Racism - Darwinism

EUCLIDES DA CUNHA COMO LEITOR

Nicola S. Costa (Licenciado em História – PUC-SP)[email protected]

“Ninguém lê, ninguém escreve, ninguém pensa” (Euclides da Cunha, 28/06/1909)“Somos um país que lê pouquíssimo. Nossa cidadania é muito frágil” (Reginaldo Prandi, 04-06-2018)

Em suas poesias, cartas e obras, citou os autores mais diversos, desde os clássicos greco-romanos até os escritores contemporâneos, sem falar nos autores de livros técnicos e científicos relacionados com a engenharia, sua especialidade profissional. Em seu caderno de poesias escritas na adolescência, “Ondas”, que não publicou em vida, Euclides mencionou muitos autores em seus versos: Victor Hugo, Comte, Gonçalves Dias, Castilho, Musset, Boileau, Byron, Dante, entre outros. No poema “A igreja abandonada”, de 1884, por exemplo, enfatizou a importância do livro em sua formação existencial e cívica:

Seria bom morrer... seria a morte bela.../ Me fecharia o lábio o beijo duma estrela/ Seria o meu sudário áureo e vasto – o luar!.../ Mas, não! Sou moço e o livro é o elo cintilante/ Que me escraviza ao mundo – eu devo delirante/ Rasgar c`um raio – a ideia à noute do existir.../ Oh!... sim devo viver – q`em louca ebridade/ Sagrei meu coração – à patria e à Humanidade -/ Meu canto – ao infeliz; meu cérebro – ao porvir... (In Poesia Reunida, págs. 159/160)

Euclides tinha irresistível atração pela literatura, enquanto os livros técnicos causavam-lhe enfado. Os trabalhos temporários que executou como engenheiro, repórter, cartógrafo ou chefe de comissões, raramente deixavam tempo livre para que ele fizesse suas leituras. Assim, queixa-se ou rejubila-se sem interrupção

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através da vida:Na carta anterior falas (Porchat) de ocupações inúmeras que te não deixam

folga para a agradabilíssima dos livros novos que aparecem” (Correspondência de Euclides da Cunha, carta 4, 04/08/1892, p.34); (...) a tua carta encontrou-me rodeado de livros, encontrou-me estudando para um concurso.” (Idem, carta 13, 21/04/1893, p. 46); (...) ao terminar esta (carta) absorver-me-ei nas páginas dos livros que momentaneamente deixei” (idem, carta 53, 28/04/1896, ps. 96 e 97); (...) mal releio as linhas que escrevo, longe da tranquilidade de um gabinete de estudo e da inspiração serena dos livros prediletos.” (In “Diário de uma expedição, Editora Martin Claret, 1ª edição, São Paulo,2003 p.45).”); (...) tenho a aspiração de uma vida tranquila, de todo resumida na convivência dos livros” (, carta 78, 22/02/1901, p.122); “estava doido para tomar pé no emprego, equilibrar a vida, volver às leituras prediletas” (idem, carta 164, 23/01/1904, a Plínio Barreto, p.196). (...) desde que aqui cheguei (Santos) não tive um quarto de hora para me dedicar aos assuntos queridos, nem aos livros prediletos. Estou inteiramente embaraçado e preso numa rede ... de esgotos!” (Idem, carta 165, 15/02/1904); (...) será com a data de setembro que te mandarei (Vicente de Carvalho) o prefácio. Manda-me um exemplar da Rosa de Amor. Duas terças partes dos meus livros estão ainda encaixotadas; e no meio deles, ela. Não te zangues: lá estão também as melhores páginas da minha livraria errante, desde Shakespeare a Antero de Quental. Ao meu lado – enquanto não se fixar a minha posição no planeta – apenas os estúpidos livros profissionais. (Carta 356, 18/09/1908, ps. 375 e 376)

Euclides sentia prazer em estudar, talvez como sublimação para o seu tem-peramento instável, sua precária saúde e sua carência afetiva. O estudo também significava a sua afirmação pessoal de competência profissional e a possibilidade de ascensão social. Em 1884, no soneto “Amor algébrico”, Euclides expressava aos 18 anos a função do estudo diante de sua angústia existencial:

Acabo de estudar – da ciência fria e vã,/ O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,/ Acabo de arrancar a fronte minha ardente/ Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.// Bem triste e bem cruel decerto foi o ente/ Que este Saara atroz – sem aura, sem manhã,/ A Álgebra criou – a mente, a alma mais sã/ Nela vacila e cai, sem um sonho virente.// Acabo de estudar e pálido, cansado,/ Dumas dez equações os véus hei arrancado,/ Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz.// É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso,/ Ir dela descansar no seio venturoso/ E achar do seu olhar o luminoso X. (in Obra Completa, p.706)

Anos depois, em suas cartas, suas palavras enfatizam o estudo como sua obsessão permanente:

(...) estudarei, tratarei de formar melhor o meu espírito e o meu coração e mais tarde, passada essa febre egoística e ruim que parece alucinar a todos, quando sentir-se necessidade de homens e os que atualmente escalam cegamente as posições, conscientes da própria fraqueza, delas abdicarem voluntariamente – aparecerei então, se puder, se quiserem” (carta 1, 14/06/1890, p.29); ou então: (...) após horas de estudo, cansado e com o espírito cheio de fórmulas e de tédio “(carta 6, 20/08/1892, p.36); ou ainda: (...) a tua carta (Porchat) encontrou-me rodeado de livros, encontrou-me estudando para um concurso, encontrou-me meditando sobre a melhor maneira de desenvolver uma tese... (...) interrompi o estudo para escrever-te, encerro esta carta para estudar. ” (carta 13, 21/04/1893, ps.46 e 47); “Tenho-me dado perfeitamente na vida estudiosa que levo – muito contraposta à existência tranquila demais da roça.” (Carta 45, 26/10/1895, p.84); “Comecei, com todo o afinco a estudar para um próximo concurso (ao qual ainda não renunciei)” (carta 52, 23/04/1896, p. 93); “Felizmente me habituei a estudar

nos trens de ferro, nos troles, e até a cavalo!” (12/06/1903, p.166); “Continuo na mesma vida fatigada de sempre. Encontro, entretanto, sempre algumas horas de folga para os estudos prediletos”. (Carta 166, 05/03/1904, p. 198); “Conseguindo aquele serviço (de engenheiro, no Rio de Janeiro), eu poderei continuar os estudos prediletos” (carta 173, 27/04/1904, p. 204)

Ironicamente, no mesmo dia de sua morte, 15 de agosto de 1909, a revista carioca Ilustração Brasileira publicava a última entrevista de Euclides da Cunha, concedida dias antes ao jornalista Viriato Correa, em que reafirmava a sua apli-cação ao estudo e as dificuldades que enfrentava para realizá-lo: “Continuo a ser o estudante que era. Tudo à revelia”. (In Obra completa, Editora Nova Aguilar, RJ, 1995, p.519).

Na impossibilidade de aprofundarmos o estudo de todos os autores menciona-dos por Euclides da Cunha, nos limitaremos a analisar algumas teorias de alguns deles que o influenciaram, e que representavam a tradição racista europeia, e o seu correspondente tradicionalismo social e político, especialmente durante o sécu-lo XIX, quando buscaram fundamentar, embora mistificadamente, bases científicas para suas reflexões e conceitos, especialmente em sua obra principal, “Os sertões”. Do contexto europeu onde surgiram, tais autores e suas ideias tornaram-se con-hecidos nos Estados Unidos e na América Latina, onde existiam grupos sociais e políticos dominantes, elitistas e brancos interessados em assimilá-los para reforçar os preconceitos que já possuíam in loco a fim de continuar preservando seus interesses econômicos e garantir seus privilégios sociais. Assim, destacaremos o racismo e seus sustentáculos teóricos, em maior ou menor escala, como o tradi-cionalismo, o positivismo, o darwinismo, o evolucionismo, a craniologia, o lombro-sionismo e os conceitos de civilização e barbárie que tiveram grande repercussão no continente americano, especialmente nos EUA e no Brasil.

Quando o ex-militar, engenheiro, jornalista, ensaísta e poeta Euclides da Cunha, com formação profissional específica nas ciências exatas, mas também dotado de uma vasta cultura humanista, redigiu o livro Os sertões, entre 1897 e 1901, sobre a campanha de Canudos, publicado em 1902, conhecia os principais autores e suas ideias, muito lidos e mencionados por ele, ou divulgados entre nós por artigos na imprensa e nas revistas dos Museus Etnográficos, Institutos Históricos e Geográficos, Faculdades de Direito e Faculdades de Medicina, onde eram citados com frequência. Euclides da Cunha, além de dedicado leitor, era ligado a vários intelectuais que escreviam artigos inspirados naqueles pensadores e que eram publicados nas revistas daquelas instituições. No entanto, Euclides da Cunha não reproduziu mecanicamente tais ideias em seu livro Os sertões, nem concordava com muitas delas, repudiando-as ou adaptando-as, na medida em que pudessem afetar seus pontos de vista sobre a interpretação que tinha sobre o Brasil e a guerra de Canudos. Por isso, é enganoso identificar sua grande obra a um deter-minado autor e teoria, mas antes devemos considerá-lo ideologicamente eclético que recorreu a muitos teóricos e a muitas ciências, produzindo uma obra de difícil classificação, já que nela encontramos trilhas para o estudo de infinitos aspectos das mais variadas áreas do conhecimento.

Em todas as suas obras e nas 400 cartas escritas por Euclides entre os 24 e os 43 anos, de 1890 e 1909, endereçadas a familiares e amigos, e reunidas em livro por Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti, Euclides citava frequentemente autores e livros, revelando interesses diversificados que revelam a sua erudição. De certa forma, pelos diferentes interesses de conhecimentos científicos e literários que ele tinha, isso acabou influenciando a sua capacidade de abordar os mais diferentes assuntos, ajudando-o a ser um escritor polígrafo, como ele próprio tinha consciência. Também no livro Os sertões colhemos referências a autores e obras que juntamos aos mencionados nas cartas, reunindo-os parcialmente de acordo

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com os temas abordados na listagem parcial abaixo:Biólogos: Cesare Lombroso, Sighele; Psicólogo: Maudsley; Geógrafos: Hartt, Ratzel;

Geólogos: Eschwege; Sociólogos: Durkheim, Auguste Comte, Gumplowicz, Edmund Burke; Naturalistas: Humboldt, Martius, Spix, Agassiz, Dr. Cruls, Saint-Hilaire, Darwin, Ihering, Emilio Goeldi;Pensadores racistas: Buffon, Gall, Ernest Renan, Gobineau, Gustave Le Bon, Gumplowicz, Varnhagen, Cairu, Paul Broca, Raimundo Nina Ro-drigues; Pensadores Evolucionistas: Lamarck, Darwin, T.H. Huxley, Herbert Spencer, Stuart Mill, Haeckel, Oscar Freyre; Historiadores: Tucidides, Tácito, Buckle, Carlyle, Renan, Taine, Michelet, João Ribeiro, Oliveira Lima, John Armitage, Varnhagen, Capistrano de Abreu; Filósofos: Pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, S. Agost-inho, Bacon, Descartes, Espinosa, Hegel, Marx, Comte, Spencer, Thomas Huxley, Stuart Mill, Diderot, Kant, Ernesto Mach, Teixeira Mendes, Nietzsche, Schopenhauer; Engenheiros: Durand-Clayde, Bechmann, Arnold; Teatrólogos: Aristófanes, Molière, Ésquilo, Eurípedes, Shakespeare; Críticos literários e de arte: Taine, José Veríssimo, Cândido de Figueiredo, Araripe Júnior; Cientistas: Newton, Laplace, Gay-Lussac, Claude Bernard; Romancistas e poetas: Emile Zola (romancista, autor de “Germi-nal”), Guerra Junqueiro (autor de “A velhice do Pai Eterno”), Huysmans (autor de “Le Bàs”), Guy Maupassant (contista), Walter Scott (autor de “Ivanhoé”), Byron (poeta romântico inglês), Shakespeare (dramaturgo e poeta, autor de “Hamlet” e mais de 30 peças), Voltaire (pensador iluminista francês do século XVIII), Dante Alighieri (poeta italiano, autor de “A Divina Comédia”), Ernest Renan (pensador francês católico e conservador), Camilo Castelo Branco (romancista português, autor de “Amor de Perdição”), Alphonse Daudet (romancista francês, autor de “Tartarin de Tarascon”), Xavier de Maistre, Victor Hugo (escritor e poeta francês, autor de “Os Miseráveis”, “Trabalhadores do Mar”, “O Corcunda de Notre Dame”), Dostoiévski (romancista russo, autor de “Crime e Castigo”, “ O Idiota”, “Os Irmãos Karamázov”), Ramalho Ortigão (crítico literário e cronista português), Gregório de Mattos (poeta satírico baiano do século XVII), Juvenal (poeta romano clássico), Bocage (poeta português), Coelho Neto (escritor maranhense), Cláudio Manuel da Costa (poeta português, participante da Inconfidência Mineira), Alexandre Dumas (escritor francês, autor de “Os Três Mosqueteiros”), Quintino Bocaiúva (republicano histórico e escritor), Machado de Assis (escritor carioca, autor de “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Esaú e Jacó”, “O Alienista”), Artur Azevedo (escritor e teatrólogo maranhense), Raimundo Correa (poeta simbolista), Afonso Arinos (escritor mineiro, autor de “Pelo Sertão”), Antônio Vieira (padre escritor, au-tor dos “Sermões”), Mont`Alverne (padre e escritor), Castro Alves (poeta romântico baiano), Valentim Magalhães (romancista), Joaquim Nabuco (escritor e diplomata pernambucano, autor de “O abolicionismo”), Heinrich Heine (poeta romântico alemão), Henryck Sienckewicz (escritor católico polonês), John Milton (poeta inglês, autor de “Paraíso Perdido”), Vicente de Carvalho (poeta santista), Alberto Rangel (escritor amazonense, autor de “O Inferno Verde”), Rui Barbosa (advogado, escritor e político baiano), Antero de Quental (poeta português), Ralph Emerson (escritor norte americano), Domingo Faustino Sarmiento (político e escritor argentino, autor de “Facundo: Civilização ou Barbárie”), Proudhon (anarquista francês), etc.

A Europa antes da Revolução Francesa (1789-1799)A situação histórica da Europa ocidental às vésperas da Revolução Francesa

(1789-1799) precisa ser caracterizada em seus aspectos gerais porque as transfor-mações que provocou no cenário europeu repercutiram em todos os aspectos da vida dos povos, inclusive fora da Europa, e no Brasil também. A revolução causou também várias correntes de pensamentos que procuravam entender, analisar e propor alternativas para os problemas políticos e sociais que ela gerou no contex-to europeu. Euclides da Cunha viveu e assimilou várias doutrinas dessas correntes de pensamentos europeus com as quais interpretou os problemas nacionais com que se defrontou na sua existência.

A maior potência da Europa e mundial no final do século XVIII era a Inglaterra que iniciava a chamada Revolução Industrial. Essa nação tinha necessidade de encontrar mercados consumidores para os seus produtos industrializados que fossem fornecedores de matérias primas. Daí a sua simpatia e o seu estímulo aos movimentos de independência das colônias espanholas da América e também do Brasil. Os demais países: europeus não podiam competir com a Inglaterra pois ain-da eram países agrícolas com resquícios ainda feudais e não tinham superado seus obstáculos internos para atingir o desenvolvimento industrial. Somente a França era um rival até certo ponto’ temível aos ingleses, mas a sua industrialização era incipiente e dificultada por obstáculos políticos e sociais que só a Revolução Francesa (1789-1799) removeu.

No geral, os países europeus tinham sociedades aristocráticas em que a posição social dos indivíduos era ‘determinada pela condição de nascimento. A nobreza e o clero eram minorias privilegiadas que detinham a maior parte das terras, não pagavam impostos e ocupavam todos os cargos políticos, militares e religiosos que eram reservados para os seus membros. A burguesia era o grupo intermediário, enriquecido pela indústria e o comércio, mas cujos membros não podiam participar’ dos privilégios reservados à nobreza e ao clero. O grosso da população europeia era composta por camponeses que viviam sobrecarregados de impostos e ‘em situação de’ miséria. Somente na Inglaterra havia uma sociedade dinâmica e politicamente estável com o Parlamento limitando o poder real e onde. a posição do indivíduo era determinada pelo dinheiro, já que a nobreza inglesa aburguesou-se e a burguesia enobreceu-se.

Os outros países europeus eram governados por monarcas absolutistas, isto é, com reis que tinham poderes ilimitados. Todos eram intolerantes contra aqueles que significassem ameaça aos seus poderes’ absolutos e a violência era o meio mais empregado para silenciá-los e impedir as críticas e as contestações. Fora isso, países como a Alemanha e a Itália não eram ainda Estados unificados, mas continuavam fragmentados em pequenos reinos, condados, ducados, independentes uns dos outros, e que só seriam reunidos em Estados a partir de 1870. Esse fato atrasou a industrialização dos dois países em relação à Inglaterra.

Assim, o século XVIII foi o século das ideias iluministas ou liberais que criticavam o absolutismo dos reis, a desigualdade entre os grupos sociais, os privilégios da Igreja Católica e a nobreza hereditária. Os’ pensadores (Adam Smith, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Diderot, D`Alembert, entre outros), quase sempre de origem burguesa, propunham o governo limitado pelo povo, a tolerância, a liberdade de consciência e expressão, a eliminação dos direitos feudais, a igualdade de todos ‘os homens perante a lei, o fim das distinções entre pessoas e grupos sociais, etc. Os livros eram impressos clandestinamente e entravam em circulação burlando o policiamento, sendo que escritores eram ‘perseguidos e presos. Apesar disso, as ideias circulavam na Europa e na América, trazidas pelos estudantes que frequentavam escolas europeias. Tais ideias expressavam a visão de mundo da burguesia europeia e a necessidade de transformação de seus países, enquanto que nas colônias serviam para alimentar o desejo de independência pelos grupos dominantes ou oprimidos.

A Espanha dominava a maior parte das colônias da América, mas Portugal, a Inglaterra e a França também tinham possessões. Todas eram exploradas pelas metrópoles segundo os princípios da política mercantilista (monopólio de comér-cio, altos impostos, proibições, repressão às manifestações de descontentamento, escravidão, etc.). As 13 colônias inglesas da América, por exemplo, que haviam se formado sem conflitos diretos com a Inglaterra, foram a primeira a romper com a Metrópole quando esta tentou impor-se a elas, revoltando-se e conseguindo sua independência em 1776, daí surgindo os Estados Unidos da América. Essa independência foi justificada pelos grandes proprietários e negociantes com as

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ideias liberais e serviu de exemplo para as demais colônias da América dominadas por países europeus.

Assim, durante o século XVIII foram ocorrendo transformações profundas nos países europeus que não foram acompanhadas de reformas para acomodar as novas condições. Tentativas de mudanças encontravam resistências entre os reis e os grupos sociais privilegiados. Na França, a situação tornou-se insustentável e tornou-se revolucionária.

A Revolução Francesa (1789-1799)

Em 1789, como todas as tentativas de reformas encontraram resistências dos nobres e do clero, a burguesia francesa rebelou-se sendo apoiada pelos campone-ses em nome do lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Durante dez anos, de 1789 a 1799, a Revolução burguesa apoiada pelos camponeses radicalizou-se, abolindo os privilégios e decretando a igualdade jurídica de todos os cidadãos, ex-tinguindo os títulos de nobreza, reconhecendo os direitos do homem e do cidadão, elaborando diferentes constituições, proclamando a república, guilhotinando o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta, presenciando uma guerra civil, com destaque para a região da Vendeia, que antepôs burgueses e camponeses contra nobres e padres apoiados pelos países vizinhos, criando um exército para enfrentar os países que temiam a influência da Revolução Francesa que foi sendo espalhada pelas tropas francesas e recebido com entusiasmo pela burguesia e os campone-ses de todos os países. Era o lema burguês Liberdade-Igualdade-Fraternidade que pregava o fim dos governos absolutistas, o fim da desigualdade jurídica e o fim dos privilégios. Aplicado inicialmente ‘na França, esses princípios abalaram todos os países europeus e as relações destes com as suas colônias da América. Assim, da Revolução Francesa emanaram os princípios e os fatos que se irradiaram para justificar a independência das colônias, mas a ajuda material e a simpatia vieram da interesseira Inglaterra que tudo fez para conseguir os novos mercados que se abriam para os seus produtos industriais e que, ao mesmo tempo, forneceriam matérias-primas para as suas indústrias, como acabou acontecendo no decorrer do século XIX.

Finda a Revolução Francesa e o Período Napoleônico (1799-1815), que foi a sua continuidade armada nos princípios revolucionários, desenvolveram-se tendên-cias contrarrevolucionárias e racistas no pensamento europeu, em oposição aos ideais liberais e revolucionários. O racismo, que tinha raízes nos séculos anteriores, no século XIX deixará de se apoiar em observações isoladas de pensadores para adquirir embasamento pseudocientífico, assumindo o caráter de ideologia política em vários países europeus e nos Estados Unidos, com repercussões em áreas não-europeias colonizadas por imigrantes brancos de países do Velho Mundo. O racismo refletirá as condições de cada país e os propósitos específicos de uso social que certos grupos sociais faziam dele. Às ideias iluministas do século XVIII que proclamara a igualdade natural e jurídica (mas não social) dos homens, o racismo do século XIX proclamará a desigualdade social entre os homens baseada na biologia, em fatores naturais deterministas, que explicariam a “legitimidade” da estrutura social desigual existente nos países, entre brancos e negros, europeus e nativos, senhores e escravos, exploradores e explorados.

O conservadorismo francês: positivismo e racismo

Na França, o racismo foi sistematizado por nobres e seus porta-vozes como reação aos ideais da filosofia iluminista do século XVIII, à Revolução Francesa (1789-1799) e ao Império Napoleônico (1799-1815). Isso porque a grande revolução inspirada nas ideias iluministas destruiu a sociedade em que se baseava

o Antigo Regime, apoiado na realeza, no clero católico e na nobreza, apoiado no princípio de hierarquia entre os cidadãos e da submissão dos camponeses à nobreza privilegiada; experimentou constituições que fracassaram em pouco tempo; implantou um regime de Terror (1793-95) que sacrificou milhares de pessoas; provocou emigrações, espoliações, manifestações de irreligiosidade, acabando no Império de Napoleão (1799-1815) que provocou guerras em toda a Europa, sem contudo definir qual seria a nova estrutura social decorrente da ausência de privilégios e na igualdade de todos perante as leis. Dessa forma, a Revolução Francesa teria substituído a ordem pela desordem, pelo caos social. Por isso, os pensadores tradicionalistas franceses irão propor a volta à ordem social pré-revo-lucionária, enquanto outros definirão a criação de uma nova ordem baseada em outros fundamentos, embora quase todos concordassem com o desenvolvimento industrial e urbano que então ocorria. Todos ansiavam reconstruir e restabelecer o equilíbrio social perdido. Seu mal-estar era com os problemas sociais e políti-cos criados pela Revolução Francesa e seus desdobramentos em toda a Europa. Procurava-se definir, no plano ideológico, uma nova filosofia social para conciliar o desenvolvimento industrial irreversível com a correspondente estabilidade social a ser definida em novos termos. Dessa preocupação é que emanaram as propostas positivista e determinista.

Auguste Comte (1798-1857). De todas as doutrinas europeias, foi o positivismo de Auguste Comte a que mais influência exerceu no Brasil na segunda metade do século XIX. Comte não aceitava nem a Revolução burguesa nem a restauração do Antigo Regime para resolver os problemas sociais e políticos. Apesar de considerar que sua doutrina filosófica emanava da Revolução Francesa, Comte discordava de suas tendências revolucionárias. Mesmo assim, valeu-se das ideias de pensadores revolucionários e contrarrevolucionários, criando uma doutrina polivalente, eclética. Absorveu o racionalismo dos Iluministas, a teoria da história de Condorcet, o dogmatismo religioso e o respeito pela hierarquia social de Bonald e De Maistre, o reformismo de Saint-Simon, o romantismo humanitário, o modelo hierárquico católico, etc. Pretendia fundir numa ciência nova e positiva essas ideias filosóficas e sociais aparentemente antagônicas. Achava que o que leva à anarquia política é a divergência de sentimentos provocada pela diferença de ideias, daí querer definir uma doutrina com a qual todos concordassem com a consequente har-monização dos sentimentos. Queria realizar primeiro uma reforma espiritual que conduzisse a uma profunda reorganização social e política que garantisse a ordem e o progresso. Para realizá-la, definiu um programa de educação e de instrução baseado numa filosofia do saber. Seu ponto de partida passou a ser a ordenação das ciências num amplo sistema e a definição de uma filosofia que sustentasse uma verdadeira política científica, ou seja, a política seria uma ciência tão per-feita quanto as demais ciências exatas, e poderia reorganizar cientificamente a sociedade. Comte criou, assim, uma filosofia social científica, a Sociologia. Por isso, repudiava as explicações metafísicas e teológicas, consideradas ilusórias por ele, e só aceitava fatos positivos, isto é, especulações baseadas na observação sensível de objetos reais e úteis e na compreensão das leis que regem as experiências.

Para justificar essa concepção positivista, Comte interpretou a História huma-na formulando a lei dos três estados a que todos os conhecimentos humanos estiveram sujeitos na sua evolução histórica. Segundo ele, “em consequência do próprio espírito humano, cada ramo dos nossos conhecimentos está necessaria-mente sujeito, na sua evolução, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico, ou fictício; o estado metafísico, ou abstrato; por fim, o estado científico, ou positivo”.

O estado positivo, ou científico, repudia as explicações teológicas (religiosas) e metafísicas (abstratas), já que é impossível saber o “porquê” das coisas, a sua substância íntima. Ao invés do “porquê”, devemos perguntar “como” se produzem

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os fenômenos, o que há de permanente e constante neles, segundo os quais leis se desenvolvem, para obter conhecimentos classificados, objetivos e seguros para serem usados e satisfazer as necessidades individuais, familiares e sociais. O estado positivo passou a existir a partir da Revolução Industrial e deve ser dirigido por uma elite republicana, ter o positivismo como ideologia e ser orientada pelos sábios. Estes elaborarão uma física social que considerará os fenômenos sociais da mesma forma que os fenômenos astronômicos, físicos e químicos, como fatos racionais observáveis, com leis inteligíveis. Comte afirma que a inteligência do homem, `reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia à procura da origem e do destino do universo e ao conhecimento das causas íntimas dos fenômenos para preocupar-se exclusivamente com o descobrimento, pelo uso combinado do raciocínio e da observação, das leis efetivas, isto é, das relações invariáveis de sucessão e semelhança (in Cruz Costa, p. 32).

A filosofia positiva de caráter científico nascida daí é que pode dar uma nova ordem permanente à sociedade, já que vai servir de base à moral, à política e à religião. As ciências que formam o conjunto lógico da filosofia positivista são: as-tronomia, física, química, biologia e sociologia (a mais concreta). A matemática foi a primeira ciência a se afirmar desde a Antiguidade. À sociologia estão subordinadas todas as ciências, pois é ela que define as vias da ação humana em relação aos fenômenos sociais. E como a natureza do homem “evolve sem se transformar``, como o estado social nunca pode alterá-la, a sociologia depende da biologia.

Comte criticava o individualismo, afirmando que “o positivismo não admite senão deveres da parte de todos para com todos, porque o seu ponto de vista sempre social não pode comportar nenhuma noção de direito, constantemente fundada na individualidade. Todo o direito humano é tão absurdo como imoral”. A negação de direitos individuais era justificada pela própria natureza do ser humano, já que “a natureza do homem evolve sem se transformar. As diversas faculdades físicas, morais e intelectuais devem ser sempre a mesma em todos os passos da evolução histórica, e sempre ordenadas entre si. O desenvolvimento que recebem no estado social nunca pode alterar a sua natureza, nem, por conseguinte, destruir ou criar nenhuma, nem mesmo inverter a sua ordem de importância” (Levy-Bruhl). Assim, para Comte, o indivíduo não passa de uma abstração, e só ganha sentido quando inserido na sociedade que é a verdadeira realidade, pois permite que o egoísmo seja suplantado pela sociabilidade.

No plano moral e político, a filosofia de Auguste Comte exalta o altruísmo e a sociabilidade e critica o egoísmo e o isolamento. A moral positiva não é especula-tiva, abstrata, dispensando qualquer fundamento metafísico, e seu centro é a vida afetiva, o sentimento, o coração, e não a inteligência. É uma moral formada por leis sociológicas que se constituem em regras de conduta, em uma arte de viver, em uma técnica da ação moral e política. O grande lema moral do positivismo é “Viver para outrem”. A família é que desenvolve a personalidade individual, ordenando nossos sentimentos e instintos egoístas, elevando-a à sociabilidade através do desenvolvimento da afetividade, da continuidade, da veneração dos antepassados e da vida conjugal. É a família que faz a ligação entre a existência individual e social. É dela que depende a submissão do indivíduo à sociedade. É através da moralidade social realizada pela família que Comte pretende chegar à Regeneração da Humanidade. Só o Amor pela Humanidade é que renovará a conduta moral da sociedade, através não das classes sociais dominantes (cheias de preconceitos egoístas e temerosas de mudanças), mas da classe proletária, que compreende e sente a moral real e que pode auxiliar os novos filósofos. Comte procura resolver a questão social não com reformas econômicas nem com a divisão da propriedade, mas apelando para a moral e para a educação.

Os valores da idade positiva devem ser a Humanidade, as ciências, os deveres, a hierarquia, a família, a Pátria e a autoridade para garantir a ordem e o progresso

da sociedade. Comte criou a Religião da Humanidade com base nesses valores e organizou um clero com sacramentos, rituais e calendário afinados com suas ideias. Foram construídos muitos “templos da Humanidade” com padres e vigários casados e assalariados, encarregados de ensinar as verdades fundamentais ad-quiridas em matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral.se

Inspirado nas instituições católicas, Comte construiu sua concepção política que se baseava na separação entre o poder intelectual, formado pelo clero positivista subordinado a um diretor supremo, encarregado da educação, da moral e de orientar os conselhos políticos, e o poder político, que ficaria encarregado da ação. Comte prefere as pequenas repúblicas formadas por quarenta mil famílias e por um grupo de intelectuais, chefes de indústria e trabalhadores. O poder deve pertencer a um triunvirato formado por agricultores, industriais e comerciantes.

É com base na moral positiva que a visão comtiana da sociedade pressupunha algumas condições básicas, como a predominância da ordem sobre o progresso, do estático sobre o dinâmico, a descoberta das condições permanentes da existência social, e a definição da inteligência como recurso da sociabilidade. A ordem e o progresso, que a antiguidade considerava como essencialmente inconciliáveis, constituem, cada vez mais, devido à natureza da civilização moderna, duas condições igualmente imperiosas cuja íntima e indissolúvel combinação caracteriza, doravante, a dificuldade fundamental e o principal recurso de todo verdadeiro sistema político. Nenhuma ordem real pode estabelecer-se e, sobretudo durar, senão é plenamente compatível com o progresso; nenhum grande progresso poderá realizar-se efetivamente, se não tender finalmente para uma evidente consolidação da ordem. (…) Subordinar o progresso à ordem, a análise à síntese e o egoísmo ao altruísmo, tais são os três enunciados, prático, teórico e moral do problema humano``. A solução destes problemas é, no entanto, uma só. Todas estas modalidades do problema humano são ultrapassadas pelo problema moral. A ordem supõe o amor e a síntese não se pode realizar a não ser pela simpatia; a unidade teórica e a unidade prática são, pois, impossíveis sem unidade moral`` (in Cruz Costa, ps. 13, 14, 78 e 79). O lema final do Positivismo era: `` O Amor por princípio; a Ordem como base; o Progresso por fim.

Comte assinalava que as três fontes gerais de variação social eram a raça, o clima e a ação política, embora ressalvasse que a primeira era mais impor-tante que as outras. Assinalou que o clima tinha apenas influência “indireta e secundária” nas modificações sociais, limitando-se a “acelerar ou a retardar, até certo ponto, a marcha natural da civilização”. Advertia, porém, o perigo do uso da “irracional noção de raças”, da inexistência de um “verdadeiro caráter científico” do conceito e criticava os pensadores que procuravam dar às suas ideias raciais “uma aparência científica” universal, quando, na verdade, “tende a não mais rep-resentar do que influência insignificante”. Criticava a ação política considerando-a insuficiente para promover modificações sociais já que estas são produzidas por uma “evolução espontânea” e não deliberada.

Surpreendentemente, o comtismo teve mais influência no Brasil do que na própria França. A partir de 1850, o positivismo começou a repercutir entre nós, principalmente através de teses e de professores da Escola Militar e da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. À educação herdada do período colonial, baseada num ensino retórico, literário, abstrato, dogmático, formal, teológico, divulgador de uma mentalidade católico-medieval anticientífica, passa a contrapor-se o positivis-mo com sua proposta educacional baseada nas ciências, nos conhecimentos objeti-vos, numa postura antimetafísica e antiespeculativa, valorizadora das matemáticas, antimonarquista e republicana. Daí porque muitos membros da elite social, militar e política brasileira que passaram a contestar a monarquia de D. Pedro II e a governar a partir da proclamação da República, em 1889, aderiu entusiasmada ao positivismo e recorreu aos seus argumentos conservadores, que enfatizavam a

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ordem social como pressuposto básico para o progresso material e para justificar a sua dominação social e política.

Temos a impressão de que Euclides da Cunha assimilou o caráter cientificista do Positivismo comtiano, pois o livro Os sertões foi escrito num tom imperativo, de certeza sobre os fatos descritos e interpretados. Basta assinalar que no volumoso livro de 600 páginas só encontramos duas interrogações, na parte O Homem, quando Euclides abre “um parêntese irritante” onde estranha e não encontra res-posta para o surgimento do mestiço sertanejo “enfeixando tendências tão opostas de outras raças”, já que teoricamente acreditava que “todo homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro é uma herança.” (p.124). A segunda interrogação é levantada quando Euclides menciona profecias escritas em papéis encontrados nas ruínas de Canudos, questionando se as pregações messiânicas e apocalípticas não lembrariam “um traço superior do judaísmo” (p.188).

Joseph Arthur de Gobineau, conde, diplomata e escritor francês, publicou entre 1853 e 1855 sua obra determinista “Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas” na qual afirmava:

“a questão racial domina todas as demais questões da História (...), a desigual-dade racial basta para explicar todo o desdobramento do destino dos povos” (…) A história humana assemelha-se a uma imensa tapeçaria (…) As duas variações inferiores da espécie humana, as raças negra e amarela, são a base rudimentar, o algodão e a lã que as famílias secundárias da raça branca maleabi-lizam, adicionando a sua seda, enquanto o grupo ariano, envolvendo-os com suas fibras mais finas, por meio das nobres gerações, desenha em sua superfície uma resplandecente obra-prima de arabescos em ouro e prata” (citado por Banton, Michael, in “Dicionário de relações étnicas e raciais”, Cashmore, Ellis (org), Selo Negro Edições, 1a edição, S. Paulo, 2000, p. 74).

Gobineau enfatizava que “as grandes civilizações humanas não são em número maior que dez, todas elas tendo sido produzidas a partir da iniciativa da raça branca” (idem, p. 238). Após dividir a humanidade em três raças principais, a branca, a amarela e a negra, definia sua preferência: “A História revela que toda a civilização se originou da raça branca, que nenhuma civilização pode existir sem a cooperação desta raça.” Destacava o ariano como a nata da raça branca e identificava os alemães como seus legítimos representantes. Concluía: “O alemão ariano é criatura poderosa (...) Tudo o que pensa, diz e faz é, assim, da maior importância.” (in Shirer, William L., “Ascensão e Queda do III Reich”, 1° vol, p. 166). Gobineau estava preocupado com a degeneração da raça branca, causada e ameaçada, segundo ele, pela mistura de sangue com as raças amarela e negra. Para ele, “o resultado da mistura é sempre um dano”, já que geraria populações “desequilibradas e decaídas”. Essa mistura implica em degeneração da raça branca e na preponderância das raças inferiores. Propunha a criação de uma “elite”, uma “aristocracia natural”, uma “raça de príncipes”, os arianos, para dirigir a sociedade, a fim de proteger-se contra os não-arianos inferiores. Por tudo isso, Gobineau era contra a igualdade, a democracia e o patriotismo (“monstruosidade”), pois representavam os ideais da Revolução Francesa e da participação popular que ele abominava. Gobineau admirava povos aristocráticos como o inglês e o alemão. Essas ideias foram aceitas com entusiasmo pelo músico alemão Richard Wagner e por seu genro inglês Houston Stewart Chamberlain, às quais acrescentaram um antissemitismo acentuado. No regime nazista alemão (1933-1945), Gobineau foi venerado.

Convém recordar que Gobineau viveu uma temporada no Rio de Janeiro, des-frutando da amizade do imperador D. Pedro II, no final do Segundo Reinado, na época em que havia escravidão no país. Coerente com suas ideias, sua impressão sobre a população brasileira era a seguinte: “Trata-se de uma população total-

mente mulata, viciada no sangue e assustadoramente feia” …Ernest Renan (1823-1892) era um aristocrata francês e escritor determinista,

que tendia ao elitismo e ao racismo quando afirmava que a sociedade é forte quando reconhece as superioridades naturais ( “A desigualdade está escrita na natureza”), o que implicava em reconhecer à nobreza o papel de conduzir a sociedade. Por isso, criticava acidamente a democracia e as eleições populares, afirmando que “um país democrático não pode ser bem governado, bem admin-istrado, bem comandado”. Seu ideal político era positivista: (...) formar, por meio das universidades, uma cabeça da sociedade racionalista, reinando pela ciência, or-gulhosa dela e pouco disposta a deixar perder o seu privilégio em proveito duma multidão ignorante”, proposta que denota a influência de Auguste Comte sobre suas ideias. Como este, acreditava que a revolução que mudará a humanidade não será política, mas religiosa e moral, através da educação e não de armas. Renan dividiu a humanidade em três raças: a branca, a negra e a amarela. Considerava as duas últimas como “inferiores não por serem incivilizadas, mas por serem incivilizáveis, não perfectíveis e não suscetíveis ao progresso”. Com uma franqueza brutal, Renan defendia o imperialismo e o colonialismo europeu na África e na Ásia, afirmando o seguinte:

Aspiramos não à igualdade, mas à dominação. O país de raça estrangeira deverá ser novamente um país de servos, de jornaleiros agrícolas ou de tra-balhadores industriais. Não se trata de acabar com as desigualdades entre os homens, mas de ampliá-las e fazer delas uma lei (…) A regeneração das raças inferiores ou bastardas pelas raças superiores se insere na ordem providencial da humanidade. O homem do povo, entre nós, é, na maior parte das vezes, um nobre deslocado de sua classe; sua mão pesada foi feita antes para lidar com a espada do que com a ferramenta servil. Ao invés de trabalhar, prefere bater-se, isto é, regressar a seu estado primeiro. Regere imperio populus, eis a nossa vocação. Que essa atividade devorante encontre seu escoadouro em países que, como a China, solicitam a conquista estrangeira. (…) A natureza fez uma raça de operários, a raça chinesa, com uma destreza manual maravilhosa, quase sem nenhum senti-mento de honra; governe-se essa raça com justiça, extraindo dela, pelo benefício de um governo desse tipo, bens abundantes, e ela ficará satisfeita; uma raça de trabalhadores da terra é a dos negros (…); uma raça de senhores e soldados é a raça europeia (…) Que cada um deles faça aquilo para que está preparado, e tudo ocorrerá bem. (citado por Retamar, Roberto Fernández, in ``Caliban e outros ensaios``, Editora Busca Vida, 1a edição, São Paulo, ps. 22-23)

Hippolyte Taine (1828-1893). Historiador francês determinista, autor da mon-umental “As origens da França Contemporânea”, criticou os “homens reais” re-sponsáveis pela Revolução Francesa, especialmente os radicais jacobinos, e também Napoleão pela autocracia e pelo militarismo guerreiro. Criticou a centralização, o estatismo, a democracia, as eleições e as revoluções. Defendia a liberdade privada, a liberdade de consciência, a honra, o elitismo e a descentralização do poder político. Seu ideal de historiador era o seguinte: “A assimilação das investigações históricas e psicológicas às pesquisas fisiológicas e químicas, eis o meu objetivo e a minha ideia dominante”. Taine dava grande importância para a raça, o meio e o momento dos acontecimentos, daí afirmar que tudo que o homem produz espiritualmente, a literatura, as belas-artes, as instituições políticas, é explicável por fatores biológicos. Em suas palavras: “Entendo as nacionalidades e os temper-amentos como um desdobramento das raças”. Afirmava que os indivíduos e as civilizações procedem de causas comparáveis às do crescimento de um carvalho. Haveria, assim, uma `` botânica dos homens `` e das suas obras. Um de seus personagens afirma: “O que eu mais aprecio no mundo são as árvores”. Também observou que “a natureza e a história escolheram antecipadamente por nós”. Seguindo a concepção de Taine, Euclides iniciou o livro Os sertões com a parte

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intitulada A Terra, onde fez uma descrição exaustiva da geologia, do clima e da flora sertaneja que teriam influência decisiva sobre a psicologia do sertanejo, seus costumes, sua religiosidade e seu modo de vida rústico.

Na Nota Preliminar do livro Os sertões, Euclides mencionou em francês um trecho de Taine sobre o narrador sincero que pretendeu ser ao escrever seu livro sobre a guerra de Canudos:

“Ele está irritado com as meias verdades que são meias falsidades, contra

autores que não alteram uma data nem uma genealogia, mas distorcem timings e maneiras, que mantêm eventos de desenho e mude a cor e se desfigure a alma; ele quer se sentir como um bárbaro, entre os bárbaros e entre os antigos, como velho”

A visão conservadora e racista anglo-saxônica

Na insular Inglaterra, onde a Revolução Industrial triunfa a partir da segunda metade do século XVIII e a estabilidade política é prolongada, ao contrário da França, que era continuamente agitada por revoltas, golpes e guerras, o liberalismo político e social de cunho conservador é aceito internamente sem contestações importantes, mas com declarações racistas manifestadas por pensadores e gover-nantes importantes, para justificar o imperialismo na África e na Ásia. Nos Estados Unidos da América, independente da Inglaterra desde 1776, a elite branca, an-glo-saxônica e protestante, revela temores sobre a presença inquietante dos negros e tenta excluí-los ou ignorá-los de seu projeto nacional. A trágica guerra civil (1861-1865) entre os estados do norte industrial, democrático e abolicionista e os estados do sul agrícola, aristocrático e escravista reforçou a hostilidade contra os ex-escravos nos últimos, que foram derrotados no conflito, gerando ressentimentos que perduram até hoje nas relações sociais de muitos estados norte-americanos. Desde então, os EUA tornaram-se uma potência econômica e militar que passou a tutelar os países da América Latina com intervenções militares diretas ou apoio a regimes conservadores que preservassem seus interesses, e a expandir-se na direção da Ásia através do Oceano Pacífico.

O imperialismo na África e na Ásia manifestou-se nos países europeus e nos EUA através de justificativas feitas por pensadores, políticos, sacerdotes, jornalistas, economistas, cientistas e outros. Vejamos alguns exemplos:

O economista Hobson assim definiu o imperialismo:“O imperialismo é a tentativa dos grandes industriais de aumentar o canal

para o fluxo de sua riqueza excedente, procurando mercados estrangeiros que consumam as mercadorias e o capital que não podem vender ou empregar dentro de seus países”. Por isso, a exploração das outras partes do mundo pela pilhagem dos exércitos, comércio desigual e trabalho forçado foi a condição indispensável do desenvolvimento capitalista europeu”

Leonard Woolf escreveu:“Tal como nas sociedades nacionais na Europa surgiram no último século

classes claramente definidas, capitalistas e trabalhadores, exploradores e explora-dos, também na sociedade internacional surgiram classes claramente definidas, as potências imperialistas do Ocidente e as raças escravas da África e do Oriente, uma governando e explorando, outras governadas e exploradas”.

Benjamin Franklin, um dos fundadores dos Estados Unidos e famoso inventor, em 1751 recorre a um argumento matemático para justificar a superioridade dos brancos sobre os negros:

“Desejaria que (os brancos) aumentassem em números. E visto que, por assim

dizer, estamos limpando nosso planeta, livrando de florestas a América e, com isto, fazendo com que este lado do globo reflita uma luz mais brilhante para quem o contempla de Marte ou Vênus, por que deveríamos escurecer seu povo? Por que incrementar o número dos Filhos da África transportando-os para a América, onde nos é oferecida uma oportunidade tão boa de excluir todos os negros e escuros, e de favorecer a multiplicação dos formosos brancos e vermelhos? “

Thomas Jefferson, que foi o 2º Presidente dos Estados Unidos, que teve vários

filhos com uma escrava negra, apela para uma hipótese a fim de justificar seu racismo:

“Sugiro, portanto, apenas como conjectura, que os negros, quer constituindo originalmente uma raça distinta, quer diferenciados pelo tempo e pelas circunstân-cias, são inferiores aos brancos tanto física como mentalmente”.

David Hume, filósofo inglês, em 1766, não tendo argumentos aceitáveis, recorre

a uma “suspeita”:“Inclino-me a suspeitar que os negros, e em geral todas as outras espécies

de homens (pois existem quatro ou cinco delas), são naturalmente inferiores aos brancos. Nunca houve uma nação civilizada cuja tez não fosse branca, como tampouco houve qualquer indivíduo que se destacasse em ação ou especulação” (idem, p. 28)

Louis Agassiz, naturalista suíço radicado nos Estados Unidos, onde foi professor em Harvard, criticou a miscigenação como um retrocesso, e anotou em 1846:

“A produção de mestiços constitui um pecado contra a natureza, comparável ao incesto, que em uma comunidade civilizada, representa um pecado contra a pureza de caráter… (…) a ideia de uma miscigenação causa repulsa à minha sensibilidade, e considero-a uma perversão completa do sentimento natural…” (idem, p. 36/37). Em 1868, visitando o Brasil, Agassiz alertou: “Que qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua por mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental”. (In Schwarcz, Lilia Moritz. “Retrato em preto e branco”, Companhia das Letras, 1a edição, São Paulo, p. 12).

O jornalista De Bow defendia o imperialismo norte-americano pelo mundo como um destino, como uma missão, escrevendo em 1850:

“ Temos um destino a cumprir, um “destino manifesto” sobre todo o México, sobre a América do Sul, sobre as Índias Ocidentais e o Canadá. As portas do império chinês devem ser derrubadas, e os arrogantes déspotas japoneses, inimigos da cruz, serão iluminados nas ideias do republicanismo e da lei do voto”.

Em 1853, o presidente norte-americano Fillmore, enviou um ultimato ao im-perador do Japão, nos seguintes termos:

“Um grande número de nossos poderosos navios de guerra dirige-se para o Japão e são esperados nestes mares de um momento para outro; o abaixo-assi-nado como prova de suas intenções amigáveis, trouxe consigo tão-somente quatro de seus menores navios; mas está pronto, caso se torne necessário, a voltar na primavera vindoura com uma força bem maior.”

Abraham Lincoln, lendário presidente dos Estados Unidos, que aboliu a es-

cravidão em 1861, também discriminava os negros, tendo declarado em 1858:

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“Existe uma diferença física entre as raças branca e negra que, em minha opinião, sempre impedirá que as duas raças vivam juntas em condições de ig-ualdade social e política. E, na medida em que não podem viver dessa maneira, enquanto permanecerem juntas deverá existir uma posição de superioridade e uma de inferioridade, e eu, tanto quanto qualquer outro homem, sou a favor de que essa posição de superioridade seja conferida à raça branca” (in Gould, p. 21). Em 1859, Lincoln anotou: “Igualdade para os negros! Bobagem! Até quando, no reino de um Deus suficientemente grande para criar e governar o universo, con-tinuarão a existir aventureiros para vender, e tolos para divulgar, uma demagogia barata como esta? “.

É até irônico lembrar, diante das palavras acima, que Lincoln aboliu a es-cravidão nos Estados Unidos em 1861, no início da Guerra de Secessão entre o norte e o sul do país, sendo assassinado dias após o fim do conflito por um racista branco inconformado com a abolição e a derrota dos escravocratas dos estados do sul.

E. D. Cope, paleontólogo e biólogo norte-americana, em 1890, repudiava a miscigenação racial:

“A raça humana superior não pode arriscar-se a perder ou mesmo a comprom-eter as vantagens que adquiriu através de séculos de esforços e fadiga, mesclando seu sangue com o da raça inferior… Não podemos turvar ou extinguir a fina sensibilidade nervosa e a força mental que a cultura produziu na constituição dos indo-europeus (os brancos), mesclando-os com os instintos carnais e a obscuridade mental dos africanos”.

Cecil Rhodes, imperialista inglês na África, justifica-se com o argumento de que Deus seria inglês:

“Sustento que somos a primeira raça do mundo, e quanto mais do mundo habitarmos, tanto melhor será para a raça humana. Se houver um Deus, creio que Ele gostaria que eu pintasse o mapa da África com as cores inglesas”.

O darwinismo e o darwinismo social

Charles Darwin (1809-1882): Naturalista inglês, empreendeu uma longa viagem de cinco anos (1831-1836) através do mundo no navio “Beagle”, observando animais, insetos e plantas, e publicou sua obra “A origem das espécies” em 1859, criando a teoria da evolução onde descrevia a “luta pela vida” que se exerce incessantemente na natureza, pois os animais não devem enfrentar apenas os seus rivais, mas enfrentar intempéries como o calor, a seca etc. Segundo Darwin, os seres vivos geram um número de crias superior ao que as reservas de alimentos podem alimentar. Como existem diferenças chamadas “variações naturais”, só so-brevivem e se multiplicam os filhotes que se revelarem mais fortes que os outros. Assim, a natureza seleciona novas espécies escolhendo sempre os mais aptos à sobrevivência. Os que conseguem se adaptar sobrevivem e se multiplicam, os que não se adaptam, desaparecem. Darwin chamou esse processo de ``evolução por seleção natural`` que levou bilhões de anos para formar novas espécies, inclusive os seres humanos, que evoluíram de outras espécies que existiram anteriormente. Essas ideias causaram grande impacto porque contestavam a versão monogenista, bíblica, da criação do homem, dos animais e das plantas por Deus, que seriam sempre como foram criadas por este, sem mudanças, antepondo-lhe a ideia cientí-fica de evolução de formas inferiores para formas superiores. A teoria de Darwin foi violentamente atacada por religiosos católicos, como o bispo Wilberforce, para quem “o princípio da seleção natural é absolutamente incompatível com

a palavra de Deus”; pelo Cardeal Manning, para quem o darwinismo era “uma filosofia brutal para a razão; não há nenhum Deus e o macaco é o nosso Adão”; para o Bispo Perry, Darwin queria “criar em seus leitores a descrença na Bíblia” (citados por Pyke, Magnus, in “A evolução de um gênio”, O Correio da Unesco, julho 1982, p. 10).

Juan Comas, cientista mexicano, assinala que a teoria da evolução de Darwin foi aproveitada e deturpada pelos racistas e imperialistas para justificar não só para justificar as desigualdades sociais existentes em seus países, mas também a dominação das “raças mais fortes e superiores”, entendidos como os europeus brancos, sobre as “raças mais fracas e inferiores”, entendidas como os africanos negros e asiáticos amarelos:

O darwinismo “exerceu uma influência muito marcada sobre a ideologia rac-ista, que começava a se definir de forma cada vez mais precisa. Os “brancos” acolheram com entusiasmo o darwinismo, que, predicando a sobrevivência do mais apto, vinha afiançar e confirmar sua política de expansão e de agressão, às expensas de povos inferiores; chegando à própria época em que as nações poderosas constituíam o seu império colonial, essa tese vinha justificá-las tanto aos seus próprios olhos quanto aos do resto da humanidade: que grupos humanos “inferiores” estivessem reduzidos à escravidão e caíssem sob as balas das me-tralhadoras e dos fuzis europeus vinha simplesmente confirmar a teoria segundo a qual um grupo humano inferior é substituído por outro grupo que é superior a ele. No plano da política internacional, o racismo desculpa a agressão, porque o agressor não está sujeito a nenhuma consideração sobre os estrangeiros que, pertencentes a “raças inferiores”, devem ser colocados mais ou menos no mesmo nível que as bestas. A ideia, segundo a qual, biológica e cientificamente, o mais forte tem direito a destruir o mais fraco encontra a sua aplicação não só nas rivalidades entre nações, mas também, além disso, nas que surgem no interior do país” (in Revista O Correio da Unesco, julho 1982, julho 1982, ps. 30 e 31).

Hannah Arendt confirma que, “o esmagador sucesso do darwinismo resultou também do fato de ter fornecido, a partir da ideia de hereditariedade, as armas ideológicas para o domínio de uma raça ou de uma classe sobre outra, podendo ser usado tanto a favor como contra a discriminação natural” (in “Origens do Totalitarismo”, Companhia das Letras, 1a edição, São Paulo, 1997, p.208).

Herbert Spencer (1820-1903), filósofo inglês, fundamentou seu liberalismo con-servador nas ideias de Darwin e passou a identificar vida biológica e vida social e política. As leis da biologia de Darwin, que regem os animais e vegetais, são transferidas para a sociedade dos homens, daí ser chamada de ``darwinismo social``. Para Spencer, a sociedade seria um organismo que funciona segundo as leis dos organismos vivos. Estes, por sua vez, seriam de dois tipos: os organismos úteis, aqueles que evoluem e se adaptam ao meio, e os organismos inúteis, que se atrofiam e morrem. A sociedade seria dominada pelos mais aptos, enquanto que os menos aptos seriam os dominados. Assim, a evolução significaria a predominância dos organismos úteis, e o atraso seria a predominância dos organismos inúteis. Para Spencer, a evolução e o progresso da sociedade industrial com base no desenvolvimento científico favorecia a liberdade e a paz. Por isso, a iniciativa privada não deve sofrer interferência do Estado cuja única atribuição deve ser a de fazer justiça. O conceito darwiniano da luta pela sobrevivência e o conceito spenceriano da sobrevivência dos mais aptos favoreceram a formulação de novas teorias racistas, embora nem Darwin nem Spencer tivessem tais preocupações, sendo que essas ideias foram usadas para reforçar a longa tradição racista acumulada há séculos na Europa Ocidental contra classes sociais, e agora contra outros povos. Para Juan Comas, muitos brancos “acolheram com agrado a tese biológica darwiniana e, depois de tê-la simplificado, deformado e adaptado aos seus interesses particulares, dela tiraram o que se chama o “darwinismo social”,

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graças ao qual pretenderam justificar seus privilégios sociais e econômicos, mas que não tem nada a ver com os princípios estritamente biológicos de Darwin” (op. cit., p. 31)

Crânio e fisionomia como argumentos raciais e criminais

No decorrer do século XIX, o racismo apoiou-se no estudo científico das raças que começaram a ser classificadas com base no estudo do crânio (craniologia) ou dos aspectos fisionômicos dos indivíduos. Com base nesses dados, estabeleceu-se uma hierarquia entre elas (branca, amarela e negra), com características biológi-cas e psicológicas inerentes a cada uma (a branca ou ariana seria superior em inteligência e beleza; a amarela seria materialista e sem imaginação, e a negra seria preguiçosa, sensual e incapaz de raciocinar…). Assim, o racismo deslocou o enfoque do conceito de nação, de povo, de língua, de razão e da história, substi-tuindo-as pelas ideias de raça, de sangue, de irracional e de mitos.

Paul Broca, médico francês, em 1866, fez suas caracterizações fisionômicas e seus juízos raciais da seguinte forma:

“O rosto prognático (projetado para a frente), a cor de pele mais ou menos negra, o cabelo crespo e a inferioridade intelectual e social estão frequentemente associados, enquanto a pele mais ou menos branca, o cabelo liso e o rosto ortognático (reto) constituem os atributos normais dos grupos mais elevados na escala humana. Um grupo de pele negra, cabelo crespo e rosto prognático jamais foi capaz de ascender à civilização” (in Gould, p.76).

Em 1861, Paul Broca definiu as mulheres usando critérios cranianos para justificar a sua “inferioridade” natural:

(…) as mulheres são, em média, um pouco menos inteligentes que os homens, uma diferença que não devemos exacerbar mas que, não obstante, é real, Portanto, é-nos permitido supor que o tamanho relativamente pequeno do cérebro feminino depende em parte de sua inferioridade física e em parte da sua inferioridade intelectual” (idem, p.99). Em 1888, define os papéis do homem e da mulher de acordo com uso do cérebro: (o homem) “precisa de mais cérebro que a mulher, que ele deve proteger e alimentar; a mulher é um ser sedentário carente de vocação interior e cujo papel é criar filhos, amar e manter-se passiva” (idem, p.99).

Gustave Le Bon, psicólogo social, em 1879, ataca as mulheres com os seguintes argumentos:

(…) as mulheres representam as formas mais inferiores da evolução humana e que estão mais próximas das crianças e dos selvagens que de um homem adulto e civilizado. Elas se destacam por sua inconstância, veleidade, ausência de ideias e de lógica, bem como por sua incapacidade de raciocínio. Sem dúvida, existem algumas mulheres que se destacam muito superiores ao homem mediano, mas são tão excepcionais quanto o aparecimento de qualquer monstruosidade, como um gorila com duas cabeças; portanto, podemos deixá-las completamente de lado” (idem, p.100).

Césare Lombroso, médico italiano, publicou em 1876 a obra “L’Uomo Delin-quente” criando a antropologia criminal. Influenciado pelo positivismo de Auguste Comte, Lombroso estava convencido de que os fatos da mente, as visões, os sonhos, os pesadelos, as alucinações, a loucura, têm origem em fatores biológicos pré-de-terminados e, portanto, são explicáveis por antecipação. A culpa estaria no crimi-noso, em sua natureza doentia, na sua biologia e patologia, e não no seu ambiente social, na forma como foi criado, na educação que recebeu ou nas dificuldades que podem ter estimulado seus comportamentos. Lombroso estava retomando e modificando a frenologia (= ciência que controla o comportamento humano) de Gall que avaliava as qualidades mentais pela medição do crânio e pela pesagem do cérebro. Lombroso acreditava que os fatores biológicos determinavam o destino

individual e defendia a teoria do criminoso nato, daí ter anotado em 1887:“Somos comandados por leis silenciosas que nunca deixam de atuar e que

regem a sociedade com mais autoridade que as leis inscritas em nossos códigos. O crime parece ser um fenômeno natural” ( idem, p.123). Em 1895, acrescentou: “Uma das descobertas mais importantes de minha escola é a de que na criança, até certa idade, manifestam-se as mais sádicas tendências do criminoso. Nos primeiros períodos da vida humana, observam-se normalmente os germes da delinquência e da criminalidade” (idem, p.126).

A forma do crânio e as características da fisionomia seriam os sinais externos para denunciar o criminoso: mandíbula grande, queixo saliente, crânio desmedido, crânio menor que o das pessoas normais, orelhas grandes, olhar fixo, esbugalhado, feroz, grandes braços, ausência de calvície, rugas precoces, baixa sensibilidade à dor, incapacidade de enrubescer, feiura, enfim. O indivíduo mau seria feio, o indivíduo feio seria mau! Outros indícios seriam as tatuagens, a ociosidade, a maldade compulsiva, o uso de gíria, a tendência à epilepsia, etc. A maldade teria uma configuração geométrica, seria um círculo vicioso, isto é, uma aliança entre a geometria (círculo) e a moral (vício). Para punir os criminosos, Lombroso e seus discípulos sugeriam tratamento diferenciado dos criminosos natos e dos ocasionais: pena de morte (nos casos mais graves), isolamento em lugares bucólicos, confina-mento em colônias penais, liberdade condicional, redução da pena, etc. No último quartel do século XIX vários escritores famosos utilizaram o crime, as doenças e essas imagens como tema de suas obras, refletindo, até certo ponto e com intenções literárias, essas concepções: Emile Zola (“A besta humana”), Dostoiévski (“O idiota”, “Crime e Castigo”), Victor Hugo (“O corcunda de Notre-Dame”, “Os Miseráveis”), Eça de Queiroz (“O crime do padre Amaro”), etc.

Como bem anotou o sociólogo sueco Gunnar Myrdal em 1944,“tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo, elas (as argumentações

biológicas e médicas acerca da natureza humana) se têm associado a ideolo-gias conservadoras e até mesmo reacionárias. Durante sua longa hegemonia, a tendência tem sido aceitar a inquestionável causalidade biológica e admitir as explicações sociais somente nos casos em que as provas eram tão fortes que não havia outra saída. Em questões políticas, esta tendência favoreceu uma atitude imobilista” (in Gould, p. 5).

Civilização e Barbárie

Desses pressupostos conservadores, racistas, cranianos, patológicos e fisionômicos discriminadores enunciados principalmente pelos pensadores europeus do século XIX, formularam-se duas expressões culturais para dividir a humanidade e sob as quais aqueles pressupostos se articulavam em conceitos opostos: civilização, que significava tomar com referência a Europa e seu prolongamento na América, os Estados Unidos, formadas por “homens brancos superiores e dominadores”, e barbárie, que referia-se à África, Ásia e América Latina, com os negros, amarelos, indígenas e mestiços, condenados à inferioridade racial e à submissão aos euro-peus… Inúmeros intelectuais latino-americanos assimilaram essa visão dualista europeia e preconceituosa e com ela analisaram as sociedades de seus próprios países, sem atentar para a fragilidade dessas expressões. Em 1883, o cubano José Martí denunciou essa divisão como o ``pretexto sob o qual a civilização, nome vulgar do estado atual do homem europeu, tem o direito natural de apossar-se da terra alheia, taxando de barbárie o estado atual de todo o homem que não seja da Europa ou da América europeia`` ( citado por Retamar, Roberto Fernández, in ``Caliban e outros ensaios``, Editora Busca Vida, 1a edição, São Paulo, 1988, p. 41). Euclides da Cunha também aliou-se aos críticos dessa dicotomia, sem repudiá-la totalmente, assinalando que o litoral brasileiro, suas grandes cidades e

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suas populações, não passava de uma “civilização de empréstimo”, artificial, que assimilara o verniz da civilizada Europa, enquanto que o sertão, o interior do país, onde vivia uma população rústica que era considerada pelos litorâneos como “barbárie”, representava na verdade, para Euclides, o “cerne da nacionalidade” brasileira. Na Europa, em 1947, após a devastadora Segunda Guerra Mundial, o escritor alemão Thomas Mann admitiu a falsidade dessa divisão ao escrever em seu famoso romance ``Doutor Fausto``: `` A barbárie é o oposto da Cultura somente naquela ordem de pensamentos que esta coloca à nossa disposição. Fora de tal ordem, o oposto pode ser muito diferente e talvez nem seja oposto`` (Editora Nova Fronteira, 1º volume, RJ-SP, s/d, p.81 ).

Além de Euclides da Cunha, outro exemplo de intelectual latino-americano do século XIX que sofreu influência dessas ideias e preconceitos importados da Euro-pa, principalmente, foi o argentino Domingo Faustino Sarmiento, autor de um clás-sico da literatura latino-americana, a biografia do caudilho Juan Facundo Quiroga intitulada “Facundo. Civilização e Barbárie”, publicada em 1845. Essa obra é con-siderada a fundadora da literatura argentina e apresentava um modelo de análise cultural comparada inspirada na “ideologia do colonialismo” que reunia as ideias positivistas, deterministas e evolucionistas oriundas da Europa. Sarmiento estava preocupado em criticar a ditadura de Juan Manuel Rosas e de seu aliado Facundo Quiroga, governador da província de La Rioja, uma das mais pobres do interior do país. Sarmiento considerava Buenos Aires como um centro de civilização, com seu porto e sua grande área urbana, enquanto o pampa interior com sua economia pastoril era a barbárie. Para Sarmiento, Buenos Aires era habitada por brancos de origem europeia, cultos e esclarecidos, defensores do livre-cambismo, enfim, “gente decente” e “cidadãos elegantes”. O interior era povoado por gaúchos, índios e mestiços ignorantes e arbitrários, “grotescos”, violentos, “uma sociedade inculta”, dirigida por caudilhos bárbaros favoráveis a uma política protecionista para o couro e o charque. A imagem predileta de Sarmiento para caracterizar o interior era “o deserto”. Os gaúchos eram considerados “animais bípedes de tão perversa condição”. Sarmiento defendia a abertura da Argentina para a Europa: “Não somos nem industriais nem navegadores, e a Europa nos proverá por longos séculos de seus artefatos em troca de nossas matérias-primas”. Em 1861, Sarmiento chegou a aconselhar o presidente Mitre: “Não trate de economizar sangue de gaúchos, é a única coisa que tem de humano. Este é adubo que é preciso fazer útil ao país”. Anos mais tarde, Sarmiento foi eleito presidente da República Argentina.

Nos seus artigos sobre “Viação Sul-americana” e “Martim Garcia”, incluídos na obra “À margem da História”, publicada em 1909, Euclides da Cunha considera o livro de Sarmiento como “um dos maiores livros sul-americanos” (pág. 115) e seu autor como um “extraordinário escritor” (pág. 114), um “espírito glorioso`` (pág. 145) e “glória sul-americana” (pág. 154). Da mesma forma que Sarmiento opôs Buenos Aires, no litoral, onde vivia uma população urbana e europeizada, “civilizada”, ao interior de seu país, onde vivia uma população rural e mestiça, “bárbara”, Euclides da Cunha também viu na guerra de Canudos um conflito entre presente e passado, litoral e sertão, cidades e deserto, civilização e barbárie, valores europeus e valores arcaicos, ordem e desordem, progresso e atraso, embora ressalvando quase sempre seus excessos quando analisados nas suas relações com a realidade nacional.

Muito antes da guerra contra Canudos, Euclides da Cunha, receptivo às ideias e fatos do final do século XIX, numa carta ao amigo Fábio Porchat, em 15 de dezembro de 1893, pergunta e comenta irônica e indignadamente o que os impe-rialistas europeus faziam na África e na Ásia em nome da “civilização”:

Não vês a maneira pela qual as gentes pseudocivilizadas tratam os selvagens de todo mundo? A França, a Inglaterra, a Alemanha, exercendo miseravelmente o banditismo mais torpe roubando pátrias, saqueando os lares tranquilos dos

bárbaros na África e na Ásia. E ultimamente a Espanha, tão ciumenta da própria liberdade e tão cavalheira para defendê-la, investindo covardemente contra os Cabilas seminus e incultos? Suporão esses países gastos e fúteis, com a sua civilização ridícula de bulevares repletos de boêmios infecundos e desprezíveis, que somos nós uma variedade qualquer dos bôeres ou dos Cabilas? Todas estas interrogações, meu amigo, acodem-me de chofre e com tumulto ao meu espírito. Tenho-as sempre, vivíssimas e insolúveis. Nunca senti tão violento como hoje o que dantes era para mim um sentimento mau, traduzido por uma palavra que eu entendia não dever existir na linguagem humana - o nativismo. Tenho-o hoje, exageradamente. O estrangeiro, o estrangeiro que se diz civilizado - considero-o inimigo. É o inimigo pior e covarde, de luvas de pelica e sorridente, que nos mata e ao mesmo tempo avilta-nos. E eu pressinto que ele tem hoje o olhar cobiçoso sobre a nossa terra. O século XIX porém não testemunhará o desastre do aniquilamento de uma nacionalidade. As usinas dos Krupp, Schneider, Bange e tantos outros (…) do progresso não impedirão a majestosa evolução do espírito democrático confiado à política americana (in Galvão,Walnice Nogueira e Galotti, Oswaldo, “Correspondência de Euclides da Cunha” (Ativa)”, Edusp, 1997, 1a.edição, SP, p.57).

Naquele momento, Euclides não poderia prever que seus comentários re-sumiriam, até certo ponto, aquilo que viria a ser feito quatro anos depois contra Canudos pelos republicanos, em nome da civilização, da ordem e do progresso (morte, banditismo, roubo, saque, aniquilamento de uma comunidade, barbárie) e que ele denunciaria como um “crime contra a nacionalidade”. E se atentarmos para o que se passa neste início do século XXI no mundo, grande parte dessa reflexão euclidiana mantém-se atual e serve como estímulo para comparar duas épocas que, mudando certos aspectos, não são tão diferentes como possa parecer, já que está na ordem do dia “pseudocivilizados” passando-se por agentes da civilização, “bárbaros-selvagens” que se intitulam superiores e invadem países, “racismo” disfarçado de fraternidade, “fanatismo” disfarçado de tolerância, “bandit-ismo” disfarçado de honestidade, “roubo de pátrias” anunciadas como “libertações”, “saques” feitos em nome da legalidade, “covardia” transformada em heroísmo, “civilização ridícula” impondo-se como moda, “olhar cobiçoso sobre a nossa terra” disfarçada de desinteresse e amizade, “espírito democrático” que disfarça as piores injustiças e opressões…

O socialismo utópico e o anarquismo

Assim como a burguesia apegava-se ao liberalismo para justificar suas con-quistas sociais e políticas, a corrente dos socialistas utópicos pretendia resolver o problema social criado pela Revolução Industrial na Inglaterra e na França, a par-tir do que era a sociedade de fato, das condições reais, reformando-a em vários aspectos para evitar conflitos entre as classes sociais, sem alterar profundamente as suas estruturas materiais como alterar a propriedade privada. Por isso, inicial-mente, desenvolveu-se a corrente dos socialistas utópicos, assim chamados pelas propostas de reformas sociais por meios pacíficos, sem violências. À restauração da situação pré-revolucionária dos tradicionalistas e ao reformismo dos utópicos, desenvolveu-se em seguida a corrente do anarquismo, negador do tradicionalismo e do socialismo de todos os matizes. O anarquismo, palavra que etimologicamente significa “sem governo”, propugnava a abolição pura e simples do Estado (en-carregado da opressão), da Religião (encarregada da alienação humana), das leis (garantidora das injustiças), da propriedade privada (base material das diferenças sociais), do casamento formal (símbolo da repressão individual), das fronteiras entre os países (a Humanidade é uma só), etc., para que a humanidade voltasse

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a viver em liberdade natural e absoluta para alcançar a verdadeira felicidade. Finalmente, em oposição ao socialismo utópico e ao anarquismo, desenvolveu-se o socialismo científico dos alemães Karl Marx e Friedrich Engels, que propunha a revolução social dos trabalhadores por meios violentos para conseguir destruir a sociedade capitalista pela abolição da propriedade privada e assim superá-la. Vamos examinar inicialmente os socialistas utópicos e anarquistas:

a) Robert Owen (1771-1858), socialista utópico, poderoso industrial inglês, tinha como ideal “a formação integral, física e moral, de homens e de mulheres que pensem e ajam em todas as circunstâncias racionalmente”. Como acreditava que o caráter é a consequência do meio social e das circunstâncias externas, valorizava muito a educação. Para reformar a sociedade, preconizava as seguintes medidas: melhoria do alojamento e da higiene, construção de escolas, aumento de salário, diminuição das horas de trabalho, regulamentação do trabalho infantil, criação de aldeias-modelos coletivas, fundação de um banco onde se trocariam bônus de trabalho, estímulo ao cooperativismo, etc. Suas experiências, em New Lanark, na Inglaterra, e New Harmony, nos EUA, fracassaram.

b) Saint-Simon (1760-1825), socialista utópico, aristocrata francês esclarecido, definiu a política como `` a ciência que tem como objeto a ordem das coisas mais favorável a todos os gêneros da produção``. Assinalou que a antiga so-ciedade era formada pelos sábios, pelos conservadores (possuidores de bens e posições elevadas) e pelos igualitários (os trabalhadores dominados e explorados que aspiravam à igualdade). As relações entre essas classes baseavam-se na ideia de dominação dos privilegiados sobre a maioria. Assinalava que “ligamos demasiada importância à forma de desigualdade como natural pois cada um está classificado de acordo com a capacidade que tem”. Na nova sociedade, Saint-Simon indica que a dominação e a sujeição serão substituídas pela associação, e a coop-eração regulará as relações entre as classes. Aos poucos, os que trabalham (``in-dustriais``) provocarão o desaparecimento dos ociosos (``zangões``) e o poder real da indústria impor-se-á por intermédio de homens competentes ligados à organização da produção, os técnicos. ̀ ` A classe industrial é a classe fundamental, a classe que alimenta a sociedade``. Assim, o governo do homem (político) dará lugar ao governo das coisas (econômico) e ``as abstrações cedem, finalmente, o lugar às ideias positivas; a moral do senso comum, a política industrial e sensível substituem, decididamente, uma moral de capricho, uma política de revelação`` (citado por Mattoso, Kátia M. de Queirós, “Textos e documentos para o estudo da história contemporâne”, Hucitec-Edusp, 1a. edição, São Paulo, 1977, p. 81). `` A ciência das sociedades passa a ter daqui em diante um princípio. Torna-se por fim uma ciência positiva`` (in HIP, J. Touchard, v. 5, p.134). Apesar disso, Saint-Simon não era um democrata, pois acreditava que a desigualdade é natural e benéfica, achando que cada um ocupa um lugar de acordo com a sua capacidade e recebe em troca o equivalente ao que produz. Não revela nenhuma simpatia pelos militares e políticos, mas coloca os banqueiros em primeiro lugar na sua tecnocracia. Constatava que `` não pode haver modificações na ordem social sem uma mudança na propriedade`` (HIP, J. Touchard, v.5, 137), embora a respeitasse.

c) Charles Fourier (1772 - 1837), anarquista francês, afirmava que foi Deus quem fez o homem como um ser que procura o prazer, enquanto que o dever vem do próprio homem e nada tem a ver com a natureza. A infelicidade do homem provém, portanto, da organização social que o impede de realizar suas paixões. Por isso, é necessário reorganizar a sociedade para possibilitar a realização das aspirações humanas. Criticando a indústria (“tudo é vicioso no sistema industrial”; “ não passa dum mundo ao contrário”; “as manufaturas progridem na razão direta do empobrecimento do operário”), o comércio ( favorece o reinado dos banqueiros) e os comerciantes ( parasitas), e revelando simpatia pela agricultura, Fourier imaginou o Falanstério como o local ideal para reformar a sociedade. Nele

viveriam mil e seiscentas pessoas dedicando-se à agricultura e revezando-se em todas as funções, ocupando quartos individuais ou apartamentos familiares, e onde existiriam cozinhas, salas de jogos, locais de espetáculos, bibliotecas, escolas, etc. O princípio básico do falanstério fundamentava-se na copropriedade, o que seria estimulante para a ação dos indivíduos e para o sentido social dessa organização. Fourier considerava a riqueza e a pobreza como coisas naturais, daí respeitar as heranças e buscar ajuda nos capitalistas, prometendo-lhes lucros fabulosos. Os falanstérios seriam economicamente autossuficientes, podendo realizar trocas entre si quando alguma necessidade o exigisse e também formar federações. O Estado seria apenas uma federação de falanges livres criadas de baixo para cima, pela sociedade e não pelo Estado. Numerosos falanstérios foram criados na França, nos EUA, na Inglaterra e na Rússia, mas falharam, tornando-se mais associações cooperativas do que falanstérios.

No livro Os sertões, Euclides da Cunha faz menção a Canudos como “o fa-lanstério de Antônio Conselheiro” (p.329), revelando que conhecia as ideias do anarquista Charles Fourier.

d) Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), anarquista francês, afirmou que ``a moral é uma revelação da sociedade, do coletivo, feita ao homem, ao indivíduo. (A moral) é para mim a essência social, o ser coletivo que nos contém e nos penetra, e que, por sua influência, sua revelação, conclui a constituição de nossa alma `` (in Daval, ps. 82/83). A atividade moral manifesta-se pelo trabalho que é ``a manifestação mais alta da inteligência e da liberdade`` (idem, p. 83), e não um castigo ou um sofrimento. É pelo trabalho que o homem dá continuidade à obra iniciada por Deus. Fez afirmações escandalosas e sensacionalistas como: `` A propriedade é um roubo`` e ``Deus é o mal``, mas defendia a propriedade e a religião (``Como ela soube enobrecer o trabalho, suavizar a dor, humilhar o orgulho do rico e exaltar a dignidade do pobre``). Criticava a democracia parlam-entar, o sufrágio universal, o Estado, a centralização, a burocracia, a Igreja Católica, o marxismo e qualquer tipo de autoridade. Pregava a liberdade e a igualdade como resultados duma solidariedade fraterna (``A igualdade das condições, eis o princípio das sociedades; a solidariedade universal, eis a sanção dessa lei``; ``O homem mais livre é aquele que tem mais relações com seus semelhantes``). Para ele, o Estado deve ser uma federação de grupos diferentes pela natureza e pelos objetivos. O mutualismo (troca de benefícios entre os membros da sociedade) afastaria a violência e a lutas de classes.

Convém lembrar que no início de sua carreira jornalística, Euclides da Cunha usou o pseudônimo de Proudhon em suas crônicas e artigos jornalístico.

e) Etiene Cabet (1788-1856), socialista utópico, admirador da Revolução Fran-cesa, era entusiasta do sufrágio universal e da educação popular como formas de promover a igualdade e a fraternidade entre os homens, o que conduziria à comunidade de bens materiais. Afirmou ele: ``O comunismo é a realização mais completa e a única perfeita da democracia. A democracia conduz à comunidade e sem a comunidade a democracia é inviável``. As comunidades fundadas com base em suas ideias fracassaram nos EUA.

Como Cabet, Euclides da Cunha considerava a educação como um meio de incorporar o povo sertanejo que conheceu no sertão baiano à cidadania brasileira. Criticou asperamente o envio de soldados para reprimir Canudos, achando que o governo deveria antes ter mandado professores, assim a tragédia teria sido evitada.

f) Louis Blanc (1811-1882), socialista utópico, pretendia organizar o trabalho e acabar com a concorrência entre os produtores. Segundo ele, o Estado e os capitalistas deveriam criar ``oficinas sociais`` cujos operários educados comprariam e seriam donos dos instrumentos de trabalho. Acreditava que assim seriam obtidas grandes vantagens (melhor remuneração, progresso técnico,

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qualidade da produção, etc.) e o sistema iria absorver pouco a pouco as empresas particulares até se estender ao conjunto da economia.

g) Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), socialista utópico, acreditava no pro-gresso e nas ciências, sendo anticlerical e patriota. Para ele, ``a moralidade é o fundamento da sociedade``. Seu lema era: ``Liberdade, laicismo, instrução``. Acreditava numa revolução social para livrar os trabalhadores do regime de exploração capitalista e da ``tirania do capital``, mas seu socialismo era vago e impreciso. Criticava os judeus acusando-os de usura e rapina.

O Socialismo Marxista

Karl Marx era alemão, de pais judeus (repudiou o judaísmo e era ateu), cursou Direito, estudou história e sociologia, conhecia a filosofia hegeliana de quem assimilou muita coisa, virando-a ao contrário (substituiu o idealismo hegeliano pelo materialismo dialético), participou do movimento operário alemão e francês, escreveu artigos em jornais, foi expulso da Alemanha e fixou-se em Londres (ali viveu até morrer). Era amigo de Friedrich Engels, também alemão, com quem escreveu livros importantes, como o Manifesto do Partido Comunista em 1848; Marx escreveu a obra O Capital em vários volumes.

Para Marx, o objetivo não era resolver os “problemas sociais” para o bom funcionamento da sociedade burguesa, como pensavam os positivistas (queriam reforma moral da sociedade) e socialistas utópicos (pensavam na humanidade e não em termos de classes sociais), mas realizar mudanças radicais na sociedade, transformando-a radicalmente, de alto a baixo, destruindo o capitalismo, a pro-priedade privada, as classes sociais e instaurando o socialismo.

A organização social criada pela industrialização é o resultado das relações sociais de produção entre aqueles que detêm os meios de produção (capitalista) e aqueles que vendem sua força de trabalho (operário). No capitalismo as atividades são divididas para favorecer o capitalista, que são os proprietários dos meios de produção, e não os trabalhadores assalariados, que vendem a sua força de trabalho em troca de um salário. O resultado dessa divisão do trabalho são os conflitos de classes motivados pela luta contra a propriedade dos meios de pro-dução do capitalista explorador e as difíceis condições de trabalho dos proletários. O trabalhador não é dono dos meios de produção, mas vende a sua força de trabalho em troca de um salário (injusto e insuficiente, porque o capitalista ficou com a diferença de valor da mercadoria produzida pelo seu trabalho e que deve-ria ser sua). Marx era revolucionário pois pregava a revolta dos trabalhadores para se apropriarem dos meios de produção e socializá-los, acabando com a exploração capitalista, a propriedade privada dos meios de produção e a sua consequente divisão em classes sociais, instaurando uma sociedade igualitária e sem conflitos.

EC escreveu um artigo intitulado “Um velho problema” em que analisa as ideias socialistas. Na sua viagem pela Amazônia, Euclides observou a exploração que os seringueiros sofriam e ao defini-la usou um conceito tipicamente socialista e não mais biológico, como fizera ao escrever Os sertões. Euclides definiu o seringueiro como “o homem que trabalha para escravizar-se”. Note-se que o seringueiro, e Euclides percebeu isso, era o mesmo sertanejo nordestino que encontrara na época da guerra de Canudos e que fugia da miséria da seca para escravizar-se como trabalhador dos seringais da floresta amazônica.

Assim, enquanto os positivistas preocuparam-se com a questão da “ordem social” para manter a “harmonia” social, escondendo as suas contradições, como a luta de classes, Marx denunciou as contradições da sociedade capitalista a fim de justificar a sua destruição pela revolução dos oprimidos e explorados para acabar com a exploração, o antagonismo e a alienação.

No Brasil do século XIX, principalmente a partir da independência, em 1822,

foram sendo criadas instituições culturais elitistas que eram receptivas e divulga-vam as ideias e concepções dos pensadores conservadores e racistas europeus e norte-americanos citados acima entre nós:

a) Museus Etnográficos, como o Nacional -RJ (1808), o Paraense (1866) e o Paulista (1895), que divulgavam em suas revistas artigos de cientistas europeus especializados em questões de botânica, zoologia, geologia, frenologia, etc.; b) Insti-tutos Históricos e Geográficos, como o Brasileiro (1838), o Pernambucano (1862) e o de São Paulo (1894), patrocinados pelo governo imperial ou pelas elites locais, que estavam preocupados em criar uma história oficial ou regional que fizesse a apologia dos colonizadores brancos do Brasil, fossem eles os senhores-de-engenho pernambucanos ou os bandeirantes paulistas, todos “heróis”, segundo essa ótica; c) Faculdades de Direito , a de Recife e de São Paulo, criadas em 1827 para preparar a elite dirigente nacional, e em cujas revistas divulgaram-se artigos inspirados no social-darwinismo, no lombrosianismo ou no liberal-evolucionismo. Laurindo Leão, professor na Faculdade de Recife, afirmou num artigo em 1913, em pleno século XX: “Uma nação mestiça é uma nação invadida por criminosos (…); d) Faculdades de Medicina, a da Bahia e do Rio de Janeiro (1808), que foram aos poucos publicando estudos sobre a miscigenação racial e as doenças tropicais sob a inspiração das ideias lombrosianas, social-darwinistas e eugenistas. A Gazeta Médica da Bahia propunha em 1897: “O código penal está errado, vê crime e não o criminoso. Antes de tudo a identificação mental dos criminosos, pela inspeção médica-física e psíquica e sua qualificação à espécie que pertence é que interessa” (idem, p. 212). O célebre médico Nina Rodrigues escreveu em 1902: “Para um povo de população heterogênea como o brasileiro, a identificação craniológica das raças adquire em medicina legal uma importância máxima “(idem, p.210); e) Pela imprensa. Terminada a longa guerra contra o vizinho Paraguai, a restrita opinião pública brasileira então existente pode entrar em contato com muitas das ideias descritas acima. De 1870 em diante, divulgaram-se entre nós, e a imprensa foi um dos veículos mais dinâmicos de divulgação, as “idéias do século”. Lilia Moritz Schwarcz, na obra “Retrato em branco e negro” (Companhia das Letras, 1a edição, São Paulo, 1987) , assinala que, através de uma terminologia acessível e que permitia fácil popularização, reduziam-se as mudanças na sociedade humana a regras de evolução biológica daquele momento. Para o Brasil essa teoria parecia igualmente oportuna e assimilável, pois dava subsídios a um grupo dirigente confiante e orgulhoso de ``sua sabedoria`` e que nesses momentos de fim de século definia seus conceitos de nação e cidadania (p. 102).

A seguir, destacamos algumas publicações feitas a partir de 1870 em jornais paulistas divulgando o evolucionismo, a craniologia, a submissão da mulher, a criminologia, a loucura e a desigualdade humana pesquisados por Lilia M. Schwarcz:

Letras e Arte. (...) o resultado de descoberta da lei da evolução foi a derrota completa do theologismo (...). A concepção theológica foi brutalmente substituída. O universo inteiro explica-se cabalmente pela lei da evolução. Até o espírito humano, até a humanidade aquella lei geral. Tudo é evolutivo” {Província de São Paulo, 29 de abril de 1 882) (p. 102/103); “Dos crimes por herança e por alcoolismo (...) É hoje supérfluo estabelecer que os criminosos tem escrito no seu cérebro e no seu organismo os vícios hereditarios ou adquiridos, as paixões bestiais ou a degeneração de que estão feridos (...). Os motivos são hereditários mas também a dipsomania, a paixão das bebidas alcoolicas... O alcoolismo é pois a grande chaga dos povos civilizados”. (Provincia de São Paulo. 29 de novembro de 1883) (p. 107); (…) A mulher como o charuto pode ter um exterior lindo e tentador e um interior pessimamente depravado. A capa de hipocrisia que oculta a perversidade da mulher, corresponde à folha que envolve o charuto e sua ruindade. O amor da mulher como fumo de charuto pode evaporar-se. É questão de recepiente… A mulher dentro de casa deve saber e entender de tudo o

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que é útil e preciso à família para assim corresponder à missão de prudência e ternura que fazem com que se chama do anjo do lar…” ( A Província de São Paulo, 19/09/1884) (p. 85); «A responsabilidade dos criminosos. Quaes são as relações entre criminosos e loucura (...) Sentimos que alguns homens não são semelhantes, que faltam atributos essenciais e sympathia e a moral. Sentimo-lo mais quando no juiz revelam uma instabilidade completa diante do cadáver de suas victimas, ou não davam menor sinal de emoção ou pezar. SÃO MONSTROS. Dahi para se dizer que elles são loucos não há mais de um passo e tem sido dado de uma vez. Vê-se por isso que elles não são como os OUTROS que não basta considerá-los como homens, é necessário considerá-los em urna palavra como CASOS PATHOLÓGICOS. Os homens não nascem iguaes absolutamente. SUPPOE- SE uma igualdade presumida pela lei sem o que não haveria lei. Não há excepção senão para os casos pathológicos bem constatados (Correio Paulistano, 17, 18, 19, 20, 21 de dezembro de 1890) ( Citações extraídas de Schwarcz, obra citada, páginas 85, 102, 103, 104, 105 e 107 ).

A sociedade brasileira do século XIX

A repressão contra Canudos e seus habitantes, testemunhada pessoalmente por Euclides da Cunha, ocorrida há mais de um século atrás, não foi gratuita, inédita, sem antecedentes, já que só foi diferente das revoltas anteriores e posteriores ocorridas no Brasil pela repressão brutal sem precedentes que um movimento social sofreu no país. Considerá-la um fato isolado seria relegar ao esquecimento, o que sempre foi tentado inutilmente pelos grupos dominantes, quase quatrocentos anos de violências praticadas pelos donos do poder contra aqueles que desafiavam sua dominação e exploração.

A separação política do Brasil em relação a Portugal, em 1822, pouco ou nada alterou a estrutura econômica e social e a mentalidade patriarcal, elitista, escravista e repressiva herdada dos três séculos anteriores. Aqueles que ousaram questionar a ordem imperial sofreram o mesmo que antes os colonizadores portugueses aplicavam aos que o desafiavam. A Igreja Católica continuou nas suas funções associadas ao Estado, já que pela Constituição de 1824 não havia separação entre eles, pois o catolicismo era reconhecido como a religião oficial do Estado brasileiro.

Proclamada a República, em 15 de novembro de 1889, a Igreja e o Estado são separados, mas a repressão continua contra adversários do regime como os monarquistas e adversários políticos. No Rio Grande do Sul, acontece a Rev-olução Federalista entre partidários de Júlio de Castilhos (positivista) e Silveira Martins (federalista), sendo comum a prática da ``gravata vermelha``, eufem-ismo que designava a degola dos adversários, e que já havia sido praticada em larga escala na Guerra do Paraguai contra os inimigos guaranis. No Rio de Janeiro, a Marinha revolta-se duas vezes e enfrenta o Exército fiel a Floriano Peixoto numa guerra civil que durou seis meses. Jornais são empastelados e monarquistas assassinados. Tudo isso agora justificado em nome da filosofia positivista de Auguste Comte que influenciava inúmeros republicanos e de quem aproveitou-se o lema ̀ `Ordem e Progresso`` que, de conceito filosófico daquele autor europeu conservador, foi petrificado, passando a ser a própria ideologia republicana oficial identificada com a Nação brasileira.

Toda essa herança de repressão oficial contra manifestações de insubordi-nação aos detentores do poder e de violência presente na sociedade brasileira, acumulada durante quase quatrocentos anos, foi canalizada para reprimir a comunidade de Canudos, no sertão da Bahia, no final do século XIX. A justifi-cativa principal utilizada pelos governantes republicanos, principalmente os fed-erais, vai ser o fantasma de uma possível restauração monárquica que estaria

inspirando aquele formidável ajuntamento sertanejo. Embora inicialmente tenha acreditado nessa versão, Euclides da Cunha a desmentiu quando esteve na zona de guerra do sertão baiano. Outro argumento, de caráter religioso, alimentado pela Igreja Católica, é de que se tratava de um grupo de fanáticos guiados por um líder criador de ``um estado no Estado``, conforme as palavras de um frade católico italiano que esteve em Canudos. Os latifundiários (“coronéis”) sentiam-se prejudicados pela perda de mão-de-obra, e denunciavam a presença de significativo número de ex-escravos que haviam seguido para Canudos, além de acharem que suas propriedades corriam perigo de saques e invasões, o que não aconteceu em nenhum momento.

O louco e a loucura no Brasil

O racismo teórico também teve seguidores no Brasil e o maior representante dessa tendência foi Raimundo Nina Rodrigues, médico renomado na Bahia e autor de obras antropológicas célebres na época. Sua obra teve influência sobre Euclides da Cunha quando ele redigiu o livro Os sertões. Nina Rodrigues aliou a antropologia criminal de Lombroso, as ideias raciais de Gobineau e a pesquisa médico-legal nos seus trabalhos. Algumas de suas reflexões expostas em seu livro “As raças humanas”, de 1894, eram as seguintes:

“A civilização ariana é representada, no Brasil, por uma reduzida minoria da raça branca, sobre a qual recaiu o encargo de defende-la, não apenas contra os atos antissociais - ou crimes - de seus próprios representantes, mas, igualmente, contra os atos antissociais das raças inferiores, quer se trate de verdadeiros crimes à luz das raças ou, pelo contrário, quer se trate de manifestações de conflito, a luta pela existência entre a civilização superior da raça branca e os vagos sinais de civilização das raças conquistadas ou submetidas’?; “A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo (...) consideramos a supremacia imediata ou mediata da Raça Negra nociva à nossa nacionalidade, prejudicial em todo o caso a sua influência não sofreada aos progressos e à cultura do nosso povo”. Este juízo que não disputa a infalibilidade ou a inerrância, nem aspira proselitismo, obe-dece, na sua emissão franca e leal, não só ao mais rudimentar dever de uma convicção cientifica sincera, como aos ditames de um devotamento respeitável ao futuro da minha pátria”.

Com base nas ideias acima, Nina Rodrigues defendia, a la Lombroso, a criação de diferentes códigos penais para brancos e negros, já que, para ele, “a cada fase da evolução da humanidade se comparam raças antropologicamente dis-tintas, corresponde uma criminalidade própria em harmonia e de acordo com o grau de desenvolvimento intelectual e moral”. Era contrário à mestiçagem pois o “aumento de raças antropologicamente diferentes resultou em um produto mal equilibrado e de frágil resistência física e moral, não adequado ao clima do Brasil nem às condições da luta social das raças superiores”.

Ao dr. Nina Rodrigues coube examinar depois da guerra de Canudos, o crânio de Antônio Conselheiro para diagnosticar ou não loucura de acordo com os critérios lombrosianos da época. Se antes do exame craniano as opiniões de Nina Rodrigues sobre Antônio Conselheiro eram de que se tratava de um “simples louco”, um “psicótico sistemático progressivo”, que sofria de “delírio crônico”, de “delírio de perseguição”, de “megalomania”, que pregava “uma vida errante e de comunismo”, e Canudos de “loucura epidêmica”, para surpresa geral o renomado médico concluiu, após observar, medir e pesar, que “o crânio

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de Antônio Conselheiro não apresenta nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescência. É, pois, crânio normal” ...

Leituras incessantes, ideias infinitas

Este artigo apenas esboçou a descrição de alguns autores e algumas teo-rias que influenciaram Euclides da Cunha nas suas leituras e que depois ele utilizaria e mencionaria em suas obras. Evidentemente, as leituras citadas pelo próprio Euclides nunca foi total e provavelmente jamais serão conhecidas na integralidade.

Para concluir, vamos destacar um pequeno elenco de eventos, autores e obras mencionadas pelo próprio Euclides da Cunha, destacando as ideias básicas de cada um deles que, com certeza, influenciaram a elaboração de suas obras, concordando ou discordando delas, como tentamos evidenciar ao longo deste artigo.

Da Revolução Francesa, seu modelo histórico preferido, entusiasmou-se com o lema liberal “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, personagens e episódios como a guerra da Vendeia; do Positivismo de Auguste Comte, Euclides absorveu a valorização das Ciências, dos fatos positivos, da ordem, do progresso, do altruísmo, da república, do elitismo, dos deveres em detrimento dos direitos, da sociabilidade, da afetividade, da educação; de Gobineau, a luta de raças e a crítica à mestiçagem; de Ernest Renan, o racismo e o elitismo social e político; de Taine, o determinismo, a valorização do meio, da raça e do momento dos fatos sobre os homens; de naturalistas (Humboldt, Spix, Martius, Saint Hilaire, Goeldi, Agassiz), colheu informações fidedignas e confiáveis para embasar seus argumentos; de Buffon, Gall, Combe e Le Bon, assimilou ideias racistas; modelos e informações históricas, de Tucidides, Tácito, Buckle, Carlyle, Jules Michelet, João Ribeiro,Varnhagen e João Capistrano de Abreu; de Aristófanes, Ésquilo, Eurípedes e Shakespeare, ideias teatrais de alto nível e sentimentos dramáticos da vida humana; de Charles Darwin e Herbert Spencer, ideias evolucionistas como a luta pela sobrevivência natureza e na sociedade, respectivamente; de Paul Broca e de Gustave Le Bon, a superioridade do homem branco europeu sobre os outros homens e a inferioridade das mulheres; de Cesare Lombroso, a origem biológica e inata da criminalidade; do socialismo utópico, do anarquismo e do marxismo, a importância da educação, do Estado, das classes sociais, da propriedade, da religião, da moral, do falanstério, da revolução; de filósofos antigos e modernos, ideias de todos os tipos (idealistas, materialistas, utópicas); de romancistas e poetas como Emile Zola (“A besta humana”), Victor Hugo (“Os Miseráveis”, “ O Corcunda de Notre Dame”), personagens aparentemente anormais e desprezíveis mas capazes de atitudes de superação e generosidade (Euclides comparou os sertanejos de Canudos na sua força, resistência e aparência a “Hércules-Quasi-modo”, o primeiro, um personagem da mitologia grega que realizou 12 difíceis trabalhos, e o segundo, o célebre personagem Corcunda de Notre Dame do romance de Victor Hugo); de William Shakespeare (peças “Hamlet”, “Rei Lear”, “Macbeth”, Othello”), personagens trágicos e complexos; de Walter Scott (ro-mance “Ivanhoé”), personagens de grande idealismo e nobreza; de John Milton (longo poema “Paraíso Perdido”), a ideia de um livro sobre a Amazônia que não chegou a ser concluido; de William Blake (poeta católico inglês), reflexões profundas sobre o ser humano; de Lord Byron (poeta inglês romântico), o engajamento político e a luta pela liberdade; de Charles Dickens (romancista inglês, autor de “David Copperfield”, “Oliver Twist”, “Grandes Esperanças”, “Nich-olas Nickelby”), exemplos de personagens órfãos que superaram seus problemas e se afirmaram como pessoas; de Dante Alighieri (poeta, “A Divina Comédia”), a ideia de Inferno com a qual comparou a guerra de Canudos; de Dostoiévski

(russo, “O Idiota”, “Crime e Castigo”, Os Irmãos Karamázov”), exemplos de per-sonagens desequilibrados e excêntricos; de Leon Tolstói (russo, “Guerra e Paz”), assimilou um modelo de livro que envolvia a história de seu país e de seu povo; de Camilo Castelo Branco (“Amor de Perdição”), o romantismo exasperado e trágico; de Eça de Queiroz (“O crime do padre Amaro”, “A Relíquia”, “Os Maias”), a hipocrisia social; de Bocage (poeta satírico português), a criatividade atormentada do artista; de Luís Vaz de Camões (português, “Os Lusíadas”), o patriotismo poético e a miséria do artista; de Guerra Junqueiro (português, poeta ateu), a revolta contra Deus e tragédia do artista; de Almeida Garret (português, “Viagens à minha terra”), a simplicidade e a sabedoria do povo; de Antero de Quental (português, poeta romântico), o ceticismo poético; de Antonio Feliciano de Castilho (português, poeta romântico), a simplicidade; do padre Antônio Vieira (português), a oratória religiosa; de Gregório de Matos (poeta crítico), a sátira aos poderosos; de Gonçalves Dias (poeta romântico), a paixão avassaladora; de Fagundes Varela (poeta romântico), a dor paterna; de Álvares Azevedo (poeta romântico), a morte precoce; de Claudio Manuel da Costa (poeta barroco), o amor desmedido e a crítica anônima; de Antonio Castro Alves (poeta da escravidão), a crítica às injustiças sociais; de Coelho Neto (escreveu sobre o sertão brasileiro antes de Euclides), o amor pelos humilhados e ofendidos da sociedade; de Machado de Assis (“Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba”, “Memorial de Aires”), a elegância da linguagem e o refinamento estético; de Aluísio e Artur Azevedo (escreveram sobre os excluídos brasileiros, “O Cortiço”), o realismo social; de Afonso Taunay (escreveu sobre o sertão brasileiro, “Inocência”), os costumes sertanejos; de Rui Barbosa (jurista e orador), a importância das leis e da liberdade; de Joaquim Nabuco (crítico da escravidão, “O Abolicionismo”), o exemplo de intelectual engajado; de Domingo Faustino Sarmiento, (argentino, “Facundo: civilização ou barbárie”) os conceitos de civilização e barbárie que utilizou ao explicar a guerra de Canudos; de Rai-mundo Nina Rodrigues (médico), a ideia de que a mestiçagem entre brancos e negros criava um tipo inferior; da Bíblia, personagens como Judas e Asverus que, ambientados na Amazônia, fizeram Euclides escrever o seu texto mais lírico, etc.

A importância de Euclides não foi a de um simples reprodutor desses autores e dessas ideias. Pelo contrário, ao utilizá-las Euclides percebeu em muitas delas inadequação para explicar a realidade brasileira e seus problemas, o que o fez adaptá-las ao seu modo de ver, depurando-as, reinterpretando-as, acres-centando suas intuições e opiniões pessoais, o que impregnou de originalidade e brasilidade as suas obras, das quais se destaca o clássico e consagrado livro Os sertões.

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NOMES DE GUERRA ( 1 )

Fausto Salvadori Filho - Graduado em Jornalismo (Unesp, 1999)([email protected])

Não se falava em outra coisa. Em 1897, a guerra do Exército brasileiro contra um arraial pobre do sertão baiano era tema de tudo quanto fosse roda de con-versa. “É um zunzum que ensurdece, / Um vaivém que nos põe mudos, / Desde que o dia amanhece / Até que acaba: – Canudos!”, escreveu um poeta no jornal A Bahia. Políticos e intelectuais de todas as tendências debatiam o conflito nas tribunas e nos jornais, editoras vendiam mapas do arraial “nitidamente litografa-dos” e lojas, em seus anúncios, usavam o nome Canudos para vender de sapatos a vestidos de seda.

Os habitantes do arraial, comandados pelo líder religioso Antônio Conselheiro, já haviam rechaçado duas pequenas expedições enviadas para combatê-los, entre outubro de 1896 e janeiro de 1897. Mas o que fez o pânico se espalhar por todo o País foi a derrota da terceira expedição, uma força de 1.300 homens comandada por um dos heróis do Exército republicano, coronel Moreira César, o Corta-Cabeças.

Em 10 de março, seis dias após a morte de Moreira César em Canudos, a guerra virou assunto na Câmara Municipal de São Paulo. Além de suspender sessão e fazer voto de pesar, os vereadores decidiram alterar os nomes de seis ruas do centro para homenagear militares mortos em Canudos e heróis da República da Espada. As atas da época registraram:

Deante do inesperado acontecimento que acaba de enlutar a Patria Brazileira e o glorioso exército nacional, pela morte de seus bravos soldados no combate com as hordas monarchistas nos sertões da Bahia, indicamos que a Camara Municipal de S. Paulo suspenda a sessão de hoje, lançando na acta um voto de pesar e protesto ao chefe da nação, por intermédio do presidente [equivalente a governador] d’este Estado, a sua franca solidariedade e apoio incondicional em todos os terrenos em prol da Republica.”

Antes do encerramento dos trabalhos, a Câmara aprovou a mudança dos nomes das Ruas Direita (rebatizada Marechal Floriano Peixoto) e São Bento (Coronel Moreira César), duas das mais conhecidas vias de São Paulo. Na sessão seguinte, no dia 17, o Plenário aprovou propostas dos vereadores Gomes Cardim, Alfredo Zuquim e Roberto Penteado que rebatizavam as Ruas do Quartel (que virou Cabo Roque), João Alfredo (General Carneiro), da Esperança (Capitão Salomão) e das Flores (Coronel Tamarindo), “em homenagem aos patriotas e heroicos soldados

RESUMO: Analisamos como o conflito de Canudos repercutiu nos debates da Câmara Municipal de São Paulo, a partir de análise das atas da época. Em 1897, seis dias após a derrota da terceira expedição do Exército contra o Arraial de Canudos, os vereadores da Câmara Municipal de São Paulo decidiram alterar os nomes de seis ruas do centro da cidade para homenagear militares mortos em Canudos e heróis da República da Espada. Com o fim do conflito, a Câmara decidiu homenagear os vitoriosos, mas as denúncias sobre a degola de prisioneiros cometida pelos militares geraram discordâncias entre os vereadores. Das mudanças nos nomes de ruas operadas em 1897, duas permanecem até hoje.Palavras-chave: Canudos; nomes de rua; história de São Paulo; Euclides da Cunha.

ABSTRACT: We analyze how the Canudos conflict reverberated in the deliberations inside São Paulo City Council, based historical records. In 1897, six days after the defeat of Army third expedition against Arraial de Canudos, city councilors of São Paulo decided to modify names of six downtown streets to honor dead soldiers in Canudos and heroes of the Republic of the Sword. After the end of the conflict, City Council decided to honor thewinners, but complaints about prisioner’s behading committed by military generated disagreements among the councilmen. Of all changes in street names operated in 1897,two remain to nowadays.Keywords: Canudos; streets naming; São Paulo history; Euclides da Cunha

assassinados covardemente na cruzada de Canudos, defendendo a República”.Nem todos os “patriotas e heroicos soldados” homenageados pela Câmara eram

tão heroicos assim. O próprio Moreira César não ganhara o apelido Corta-Cabeças por ser um defensor dos direitos humanos. Ao contrário, era um militar cuja “bravura cavalheiresca” esvaía-se “na barbaridade revoltante”, segundo Euclides da Cunha em Os Sertões. Quando foi capitão, participou do linchamento de um jornalista, Apulcro de Castro. Anos depois, encarregado de reprimir duas rebeliões contra o governo Floriano Peixoto (a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, em Santa Catarina), ficou conhecido pelas execuções de inimigos indefesos.

Em Canudos, muito do fracasso da expedição foi culpa do salto alto com que o coronel entrou na batalha, desprezando os inimigos ao ponto de dizer “vamos almoçar em Canudos” para seus comandados pouco antes de invadir o arraial. O coronel Tamarindo, que assumiu o comando da terceira expedição após a morte de Moreira César, entrou para a história ao falar, diante da batalha perdida, outra frase memorável: “É tempo de murici, cada um cuide de si…”.

Já o Cabo Roque era celebrado como o herói que teria sido morto enquanto protegia o cadáver de Moreira César dos jagunços de Canudos. O heroísmo durou até o cabo ser descoberto, muito vivo, e confessar que, durante o conflito, havia simplesmente largado o corpo do comandante no mato e saído correndo, “vítima da desgraça de não ter morrido, trocando a imortalidade pela vida”, nas palavras de Euclides da Cunha. O personagem teria inspirado o dramaturgo Dias Gomes a criar o Cabo Jorge, protagonista da peça O Berço do Herói, de 1963, um personagem que passa a ser considerado herói após ser falsamente dado como morto. Em 1985, Dias Gomes reaproveitaria o mesmo mote na trama da sua telenovela Roque Santeiro.

Por outro lado, ninguém até hoje desmentiu a história do martírio do Capitão José Salomão da Rocha, que “tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara”, também segundo Euclides da Cunha. Tanto que seu feito é lembrado em um verso da Canção da Artilharia do Exército: “Abraçado ao canhão morre o artilheiro”.

Os outros dois homenageados pela CMSP nunca pisaram em Canudos, mas

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foram lembrados como símbolos da República da Espada (1889-1894), período em que o recém-proclamado regime republicano, comandado por militares, esma-gou uma série de revoltas contra o governo federal. O símbolo dessa fase foi o marechal Floriano Peixoto, segundo presidente do Brasil (1891-1894). Os soldados que enfrentavam Canudos, segundo Euclides da Cunha, “tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória”. O outro homenageado, general Gomes Carneiro, foi encarregado por Floriano de combater a Revolução Federalista no Paraná, onde morreu resistindo, com 600 homens, a um cerco de mais de 3 mil revoltosos, no episódio conhecido como Cerco da Lapa.

Chama atenção o modo como a primeira alteração nos nomes das ruas, em 10 de março, foi realizada. A pedido do vereador Gomes Cardim, as mudanças foram aprovadas sem debate, “pois que sua discussão pareceria pôr em dúvida os sentimentos republicanos da Câmara”. Não havia ambiente para questionamentos. O clima era de guerra.

Como relata a pesquisadora Walnice Nogueira Galvão em No Calor da Hora, matérias jornalísticas retratavam Canudos como um grupo com ramificações em Nova York e Paris que pretendia restaurar a monarquia no Brasil e pediam sua destruição. Canudos era “uma horda de mentecaptos e galés”, segundo Rui Bar-bosa, considerado o principal intelectual brasileiro, ou uma “vergonha que cumpre extinguir de pronto”, de acordo com um manifesto de acadêmicos baianos. “Em Canudos não ficará pedra sobre pedra”, prometia o presidente da República, Prudente de Morais.

A promessa foi cumprida com o envio, em abril, de uma quarta expedição contra Canudos, com mais de 5 mil homens, comandados pelo general Artur Oscar. Em outubro, já haviam destruído o arraial. Não houve rendição. O conflito acabou quando os soldados mataram os últimos defensores de Canudos: um velho, dois adultos e uma criança.

“E assim, com essa mobilização geral da opinião feita pelos jornais, acompan-hando as operações bélicas, a Guerra de Canudos foi, afinal, ganha e o arraial arrasado a dinamite e querosene juntamente com quem não quis se render. Os prisioneiros foram todos degolados, restando apenas algumas poucas centenas de mulheres e crianças que foram dadas de presente ou vendidas. A República estava salva.” (GALVÃO, Walnice Nogueira, No calor da hora)

Com o fim de Canudos, alguns dos setores que haviam pedido a destruição do arraial começaram a perceber que, da mesma forma como muitos militares não foram os heróis que se imaginava, os canudenses também não eram o grupo de conspiradores interessados em derrubar a República que a mídia e os políticos haviam retratado. O arraial era apenas uma comunidade de gente pobre, que, embora houvesse crescido a ponto de virar a segunda maior cidade da Bahia, mantinha-se à margem de todos os poderes da época, fosse do Estado, da Igreja ou dos grandes fazendeiros – e que talvez por isso incomodasse tanto.

Os vereadores de São Paulo voltaram a tratar de Canudos na sessão de 27 de outubro, quando Roberto Penteado propôs “um voto de congratulação com o general Arthur Oscar, pela victoria de Canudos, com as forças em operações e com o brioso 1º batalhão de S. Paulo pela bravura com que revelou o seu patriotismo”. Dessa vez não houve a mesma unanimidade. Vereadores propuseram que a congratulação fosse feita à “Pátria Brasileira” e a “todos os altos po-deres da nação”. Sem acordo, a discussão foi retomada na sessão seguinte, em 3 de novembro, quando o vereador João Bueno afirmou que, “quando se iniciou a questão, teve que manifestar o seu descontentamento contra a degolação dos prisioneiros em Canudos, e que nessa occasião apresentou emenda para que a Camara se manifestasse contra esses factos”. O mesmo parlamentar, contudo, retirou a tal emenda, por entender que cabia ao governo “syndicar os fatos” e

propôs, em seu lugar, uma congratulação “com o Paiz pela victoria da guerra em Canudos, trazendo a paz aos brasileiros”. Novamente, não houve acordo e a votação acabou adiada.

O desconforto com que os vereadores retomaram a questão de Canudos fazia parte de um processo de mudança na mentalidade da “consciência letrada” do País, que, após o massacre do arraial, “termina reconhecendo os jagunços como compatriotas e a guerra como fratricida”, segundo Walnice. O auge desse “mea-culpa” é a obra-prima Os Sertões, publicado em 1902, em que o jornalista Euclides da Cunha relata as execuções de sertanejos prisioneiros, sobre as quais ele mesmo havia silenciado em sua cobertura para o jornal O Estado de Paulo, e afirma que a campanha de Canudos “foi, na significação integral da palavra, um crime”. Para as vítimas, porém, protestos como os de Euclides ou do parlamentar João Bueno, além de ocorrerem tarde demais, nunca levaram a qualquer punição.

Das seis mudanças de nome feitas pela Câmara em 1897, apenas duas perdura-ram – a General Carneiro e a Capitão Salomão. Situação parecida ocorreu no Rio de Janeiro, que na mesma época rebatizou a Rua do Ouvidor como Moreira César, nome que também não pegou. Houve, porém, um nome originado de Canudos que atravessou o século, levado por antigos soldados da Guerra que foram morar no Rio de Janeiro. Descartados pelo Exército após a batalha, os antigos combatentes subiram em um morro para ali erguer casebres onde pudessem morar. Em homenagem a um morro de Canudos, batizaram o local de Favela. O nome “favela” se espalhou pelo País e passou a designar conjuntos de habitações precárias das cidades que, ao longo das décadas seguintes, algumas autoridades tratam do mesmo jeito que trataram Canudos – com a mesma brutalidade e, quase sempre, com impunidade.

(1) Texto originalmente publicado na revista Apartes, da Câmara Municipal de São Paulo, em dezembro de 2013.

BIBLIOGRAFIA:- Atas da Câmara Municipal de São Paulo- DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. A dinâmica dos nomes na cidade

de São Paulo, 1554-1897. São Paulo: Annablume, 1997.- CUNHA, Euclides da. Os sertões: edição crítica. São Paulo: Edições Sesc São

Paulo e Ubu Editora, 2016.- GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora. São Paulo: Ática, 1974.WEBGRAFIA:- CASTRO, Celso. Escola Militar da Praia Vermelha. Disponível em : https://

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ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS NA VISÃO DO CRONISTA OLAVO BILAC

Maria Aparecida Granado RodriguesEspecialista em Análise do Discurso - Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Especialista em Metodologia do Ensino Aprendizagem de Língua Portuguesa -Faculdade de Educação São Luís

Especialista em Formação do Professor Universitário - UNIP, Especialista em La Enseñanza de Español Lengua - Universidade de Brasília

[email protected]

RESUMO: Por meio das crônicas de Olavo Bilac, publicadas na imprensa carioca da época, no Rio de janeiro, ocasião em que aconteceu a Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, entre 1896 e 1897, este trabalho tem como objetivo apresentar uma análise da forma como a Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro eram vistos por esse escritor, em textos jornalísti-cos que misturam jornalismo e literatura.Palavras-chave: Crônicas- Jornalismo- Canudos- Antônio Conselheiro

ABSTRACT: Through the chronicles of Olavo Bilac, published in the Rio de Janeiro press, in Rio de Janeiro, on the occasion of the War of Canudos, in the sertao of Bahia, between 1896 and 1897, this paper aims to present an analysis of how the Canudos War and Antônio Conselheiro were seen by this writer in texts that mix journalism and literature.Keywords: Chronicles, Journalism, Canudos, Antônio Conselheiro

Dentre os inúmeros gêneros textuais existentes, um dos mais populares e fre-quentes para descrever situações do cotidiano é a crônica. É uma narrativa curta, escrita especialmente para veicular na imprensa, em revistas ou jornais, de forma especial em jornais. Isso faz com que a crônica seja efêmera, tendo em vista que outras crônicas serão publicadas nas edições seguintes dos jornais.

A palavra crônica é de origem grega, derivada de “chronos” (tempo) e, por essa razão, uma de suas maiores características é o caráter contemporâneo, sendo muito relacionada com a ideia de tempo e relatando os fatos cotidianos de seu registro numa linguagem conotativa e literária.

Pode-se afirmar que há muitas semelhanças entre o texto informativo e a crônica porque tanto o repórter quanto o cronista baseiam suas produções baseados em acontecimentos do cotidiano. Porém, o repórter se preocupa ex-clusivamente com a informação, enquanto que o cronista dá para o seu texto uma tonalidade pessoal, atribuindo um caráter ficcional, por exemplo, e outros elementos que não se encontram em certos textos de informação.

Dessa forma, pode-se dizer que a crônica está colocada, por muitos estudiosos, numa área intermediária entre a literatura e o jornalismo.

Esta é a particularidade da crônica: o encontro entre a argumentação e a narração acerca de fatos comuns. De tal maneira que se que se concebe uma espécie de jornalismo seguido pela literatura. É exatamente a adesão da literatura que atribui à crônica a capacidade de se perpetuar.

Segundo Massaud Moisés (1982):A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a literatura, entre o, frio e de-

scolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia. No primeiro caso, a crônica envelhece rapidamente e permanece aquém do território literário.

Segundo citação de Daylhane M. Aguiar Cunha, na NEARI EM REVISTA (2015),A crônica é um gênero que chega ao leitor com a força da linguagem coloquial

e, por isso, registra a vida em seus movimentos e nos seus afazeres. O cronista é e continuará sendo um historiador do cotidiano, grande comunicador das nuances, do grotesco, do inútil, das diferenças e permanências que estão nos espaços da

vida dos seres humanos, nas suas dores, nos seus instantes, nos seus sonhos. Assim, a vida é, por si só, uma crônica.

Sobre a linguagem da crônica, direta e despretensiosa, o professor e crítico literário Antônio Cândido afirma, em seu artigo “A vida ao rés-do-chão” (2003):

A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor. “Graças a Deus”, seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica mais perto de nós. E para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura (...).

A crônica foi e é um espaço importante e sedutor para os escritores, pois a

publicação, principalmente em jornais, garante maior acessibilidade a um grande número de leitores.

Olavo Bilac, numa crônica da Gazeta de Notícias, de 13/01/1901, conforme Dimas (2006) dá sua opinião sobre o ato de escrever crônica para os jornais e deixa claro que as crônicas, ao longo do tempo, são muito consultadas e acabam se tornando fonte de pesquisa.

Qual de vós, irmãos, não escreve todos os dias quatro ou cinco tolices que

desejariam ver apagadas ou extintas? Mas, ai! de todos nós! Não há morte para as nossas tolices! Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam –as pérfidas! – catalogadas; e lá vem um dia em que um perverso qualquer, abrindo um daqueles abomináveis cartapácios, exuma as malditas e arroja-as à face apalermada de quem as escreveu…

Alguns escritores se destacaram na época em que ocorreu a Guerra de Canudos.

Além de Olavo Bilac, autor analisado neste artigo, outros se sobressaíram, como: Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Coelho Neto, Artur de Azevedo, Aluízio de Azevedo, etc.

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O estilo de Olavo Bilac

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac nasceu no Rio de Janeiro em 1865 e faleceu no mesmo Estado em 1918. Foi jornalista e poeta. Era da mesma ger-ação de Euclides da Cunha (1866-1909), mas as relações entre eles foram frias, distantes, mal havendo referências recíprocas nas obras de ambos. Bilac foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras. Criador da cadeira 15, cujo patrono é Gonçalves Dias.

Estudou medicina no Rio de Janeiro, mas abandonou a faculdade, antes ter-minar o curso.

Estudou em São Paulo, por dois anos, na Faculdade de Direito, mas não concluiu também.

Voltando ao Rio de Janeiro, ingressou no jornalismo. Foi inspetor escolar e exerceu vários cargos públicos. Fez várias viagens à Europa, e gostava de men-cioná-las em suas crônicas.

Dedicou-se muito ao ensino: traduziu e escreveu versos infantis, escreveu livros didáticos, organizou antologias escolares, fez campanhas pela instrução primária, sobressaindo-se no combate ao analfabetismo, pela cultura física, pelo serviço militar obrigatório e outras de caráter nacionalista.

Segundo Guia do estudante Abril (2012) Olavo Bilac foi um dois maiores representantes do Parnasianismo no Brasil.

Essa escola literária nasceu na França por volta do ano 1850 e tinha como principais características o positivismo e cientificismo da época, o que estava em oposição ao pensamento do Romantismo – movimento literário anterior ao Parnasianismo. Além disso, os escritores parnasianos pregavam pelo rigor da forma escrita, respeito às regras gramaticais, vocabulário rico e erudito, rimas ricas e preferências por formas fixas (como por exemplo, os sonetos). Quanto aos temas, há uma inclinação a tratar de fatos históricos, paisagens e objetos, sendo que há um tratamento destes temas de forma exótica e mitológica. Por fim, é importante lembrar que os poetas do Parnasianismo faziam uma “arte pela arte”, ou seja, eles acreditavam que a arte existia por si só e deveria se justificar por ela mesma.

Dentro deste contexto, o Parnasianismo brasileiro foge um pouco do ideal

parnasiano original francês, pois os poetas brasileiros não tinham a mesma preocupação com relação à objetividade e cientificismo que os franceses tinham. Além disso, os parnasianos brasileiros não fugiram completamente do subjetivismo, que era uma marca do Romantismo. Porém, diferindo do pensamento romântico de antes, os poetas parnasianos tinham uma visão pessimista do homem, pois o enxergam preso à matéria e sem meios de se libertar – o que é um pensamento com influências do cientificismo.

Bilac é um dos poetas mais lidos da língua portuguesa, não só pela qualidade de sua poesia, mas também pela grande popularidade que alcançou em razão da sua luta pela divulgação de valores nacionalistas. Bilac é o autor da letra do Hino à Bandeira. A vida toda escreveu, em prosa e verso, para a imprensa, sendo considerado um dos cronistas mais significativos e polêmicos de sua época.

Estreou como poeta em 1888, com a obra Poesias, com grande aceitação pelo público. Foram importantes na vida intelectual de Bilac as viagens que ele fez à Europa (1890, 1904, 1912, 1913, 1916). Na primeira delas, Olavo Bilac teve contato com o escritor português Eça de Queiroz (1845-1900) que, naquela época, era um escritor muito admirado pelos autores brasileiros.

Em 1907, Bilac foi eleito o Príncipe dos Poetas, em um concurso promovido pela revista FON-FON. Os versos de Bilac destacam-se pela perfeição da forma e alguns se tornaram memoráveis, como “Via-Láctea”, “O caçador de Esmeraldas”, etc.

Segundo Alfredo Bosi, “Hoje parece consenso da melhor crítica reconhecer em Bilac não um grande poeta, mas um poeta eloquente, capaz de dizer com fluência as coisas mais díspares, que o tocam de leve, mas o bastante para se fazerem, em suas mãos, literatura”. (BOSI, 2006, p. 227).

Nem sempre, porém, o poeta manteve-se tipicamente parnasiano. Sua obra apresenta tonalidades românticas. Sua poesia sensual e sensual se expressa em versos vibrantes, cheios de emoção, em alguns poemas de “Via Láctea” e de “Sarças de Fogo.”

Segundo Fenske (2012): “Ao lado do poeta lírico, há nele um poeta de tonali-dade épica, de que é expressão o poema “O caçador de esmeraldas”, celebrando os feitos, a desilusão e morte do bandeirante Fernão Dias Pais.”

Em seu último livro, “Tarde” (1919), há sonetos voltados a acontecimentos e figuras da história do Brasil, sempre conforme a História oficial. Bilac foi também extraordinário conferencista, numa época de moda das conferências no Rio de Janeiro, e produziu também contos e crônicas.

Por meio das crônicas de Olavo Bilac, publicadas em importantes jornais na época em que acontecia a Guerra de Canudos, no sertão baiano, pretendemos mostrar como o escritor pensava sobre a guerra e sobre Antônio Conselheiro. Pretendemos mostrar a posição de Olavo Bilac frente a esse acontecimento histórico, analisando e tentando entendê-la dentro do contexto em que vivia e da posição que ocupava.

Depois de mais de 100 anos, essas crônicas são importantes para esclarecer como era avaliada a Guerra de Canudos pela Capital Federal, como era conhecido o Rio de Janeiro. Olavo Bilac mostra a sua opinião sobre o tema, no que se refere ao contexto e às consequências dos fatos nos meios políticos, na imprensa, principalmente no Rio de Janeiro.

O contexto da guerra de Canudos

Um dos episódios históricos que, seguramente, marcou a história do Brasil foi conhecido como Guerra de Canudos.

Segundo Pedro Lima, “o episódio envolvendo o arraial do Belo Monte, mais conhecido como Canudos, resultou num dos momentos mais dramáticos e trucu-lentos de nossa história.”

Muitos foram os leitores desse acontecimento histórico: escritores importantes, reconhecidos em sua época; alguns por meio de simples depoimentos; outros, por ficção meramente.

Há, no entanto, uma abordagem que, a partir da guerra, pode ser considerada como fundadora de uma memória. Segundo Pedro Lima, (2017) “Foi pela escrita de Os sertões: Campanha de Canudos, que o referido episódio foi imposto à consciência nacional.”

Partindo do episódio acontecido em Canudos, Euclides da Cunha, no livro Os sertões, faz um relato histórico mesclado à literatura, visando nomear e explicar as muitas vertentes do conflito: antropológicas, sociológicas, geológicas, históricas, geográficas, políticas, etc.

Para melhor compreender a Guerra de Canudos, é preciso levar em consid-eração a situação (contexto histórico) do Nordeste no final do século XIX. Para tanto, indicamos alguns pontos principais, que estão relacionados às causas do conflito.

A Guerra de Canudos foi o confronto entre um movimento popular de fundo sócio religioso e o Exército da República, que durou de 1896 a 1897, na então comunidade de Canudos, no interior do estado da Bahia, no nordeste brasileiro.

O episódio foi o resultado de uma série de fatores como a grave crise econômi-ca e social em que encontrava a região à época, historicamente caracterizada pela presença de latifúndios improdutivos, situação essa agravada pela ocorrência

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de secas cíclicas, com longos períodos de estiagem, fator que dificultava a agri-cultura e não permitia a sobrevivência do gado, de desemprego recorrente e os baixíssimos rendimentos das famílias; pela crença numa salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão econômica e social.

Havia também falta de apoio político: os governantes e políticos da região não se importavam com as necessidades das populações carentes.

Os latifundiários empregavam grupos armados para proteger suas propriedades. Eles espalhavam a violência pela região, como estratégia de manutenção do poder dos fazendeiros e forma de repressão a qualquer movimento político ou social, desfavorável aos seus patrões.

No fim do século XIX, a proclamação da República, feita por Marechal Deodoro da Fonseca em 15 de novembro de 1889, não significou transformações estru-turais efetivas nas condições de vida da população que, teoricamente, seguiriam a mudança de nosso regime político. Ou seja, os velhos problemas sociais presentes nos tempos de monarquia permaneceram durante os primeiros anos da República.

E logo após a proclamação da República, em novembro de 1889, o novo regime chefiado pelo marechal Deodoro adotou a federação, dando autonomia aos estados, separou a Igreja do Estado, instituiu o casamento civil, exilou a família imperial, garantia a liberdade de consciência e expressão, adotou uma nova bandeira com o lema “Ordem e Progresso” extraído da filosofia positivista do pensador francês Auguste Comte. O fracasso da política econômica chamada “Encilhamento”, da autoria do ministro Rui Barbosa, e as atitudes atabalhoadas do marechal Deodoro provocaram uma séria crise no Governo Provisório da República.

A economia da Bahia estava em crise desde que os engenhos de açúcar entr-aram em decadência há muitas décadas; o fim da escravidão em 1888 significou a circulação e a formação de uma população numerosa sem trabalho ou moradia, a concentração de terras permanecia na mão de uma minoria de latifundiários poderosos e influentes. Além disso, em 1877-1878, havia tido uma terrível seca, que só veio a aumentar a pobreza e miséria da maior parte da população que lá vivia.

É nesse contexto que surge o chamado “messianismo”, movimento que consistiu no aparecimento de líderes locais com forte discurso religioso, que peregrinavam pelo Nordeste fazendo pregações. Um líder de destaque foi o cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro.

Antônio Conselheiro e a formação de CanudosNão há preocupação neste artigo em fazer análises da figura tão complexa,

com características tão peculiares de Antônio Conselheiro, mas sim em traçar apenas um perfil biográfico de um dos mais conhecidos líderes messiânicos e fundador da chamada “cidade santa” de Canudos.

Antônio Vicente Mendes Maciel, que veio a ser conhecido como Antônio Con-selheiro, nasceu em Quixeramobim, no Ceará, em 1830, na verdade, perdera a mãe quando tinha 6 anos de idade. Seu pai casou novamente e sua madrasta o maltratava. Foi alfabetizado e sabia ler e escrever corretamente, era católico e talvez quisesse ser padre. Com a morte do pai, assumiu o pequeno comércio tocado por ele, mas faliu. Pagou as dívidas que pode, mas não todas, o que o obrigou a fugir de sua cidade. Trabalhou em várias ocupações: domador de cavalos, advogado provisionado, professor em fazendas, perito criminal. Casou com sua pri-ma Brasilina, que o acompanhou nas andanças, mas quando estavam em Ipu, ela fugiu com outro homem, abandonando-o. Disposto a vingar-se, saiu à procura dela e do amante, mas impressionou-se com a atuação do padre José Maria Ibiapina que fazia trabalhos de caridade para ajudar velhos e órfãos. Perdoou sua mulher e mudou sua vida, tornando-se beato. Vestindo um roupão de brim, com os cabelos e a barba crescidos, com um cajado e uma mochila onde guardava uma Bíblia, saiu andando pelo sertão nordestino pedindo trabalhos nas vilas e cidades. Arrumava

cemitérios em mau estado, fazia cisternas para armazenar água, reparava capelas e construía igrejas. Levava vida pacífica e frugal, vivendo do que ganhava pelos trabalhos que fazia. Padres católicos permitiam que ele falasse no púlpito das igrejas. Começou a ter seguidores que deviam levar vida honesta, devota e pacífica.

Antônio Conselheiro tinha cabelos e barbas compridos, usava um roupão azul, e calçava sandálias. Vivia normalmente na sociedade, trabalhando na reparação ou reconstrução de igrejas, cemitérios, capelas, tanques para armazenar água e outras atividades. Segundo o professor Nicola S. Costa:

Ouviram-no dizer em 1873 que havia feito uma promessa de construir 25 igrejas fora do Ceará. Recebeu vários apelidos (Antônio dos Mares, Santo Antônio Aparecido, Bom Jesus), ficando conhecido definitivamente como Antônio Consel-heiro. Dizia ser um pecador a pagar os próprios pecados. Recusava-se a ser adorado e chamava os semelhantes de “irmãos”, sendo chamado de “meu pai” por eles. Aos poucos, superou a timidez e tornou-se um líder popular. Começou a ter seguidores (brancos pobres, negros, índios, caboclos, gente de posse e miseráveis), o que despertou a hostilidade dos fazendeiros, que perdiam trabalhadores, e de grande parte da Igreja Católica, que não via com bons olhos aquele pregador que, embora fosse católico, insistia em fazer prédicas e arrastava seus fiéis.

Antônio Conselheiro ficou conhecido por seus discursos fatalistas, que anuncia-vam o fim do mundo, proferidos por praças e locais públicos do sertão baiano. Além disso, seu discurso religioso tratava a República como um governo indigno por ser laico. Ele repudiava a República e defendia a Monarquia. Para ele, “todo poder legítimo é emanação da Onipotência eterna de Deus e está sujeito a uma regra divina, tanto na ordem temporal como na espiritual, de sorte que, obede-cendo ao pontífice, ao príncipe, ao pai, a quem é realmente ministro de Deus, só a Deus obedecemos”.

A proclamação da República, em novembro de 1889, provocou mudanças inaceitáveis para Antônio Conselheiro que era católico, monarquista, abolicionista e favorável apenas ao casamento religioso. Os republicanos separaram a Igreja do Estado, decretaram a liberdade religiosa, instituíram o casamento civil obrigatório e exilaram a família imperial. Antônio Conselheiro sugeria que os pais de família não obedecessem à lei do casamento civil, evitando uma injúria grave em matéria religiosa que toca diretamente a consciência e a alma.

Assim, Antônio Conselheiro entrou em choque com a República, que consid-erava “um grande mal para o Brasil”, sonhando com a restauração do regime monárquico, o que foi largamente explorado por seus adversários. Atribuía a abolição da escravidão à bondade da princesa Isabel, e não como uma decisão política e social. Ele era pregador leigo, não fazia milagres e não era curandeiro. Escrevia suas próprias prédicas e tinha boa erudição, citando autores clássicos e santos católicos.

Conselheiro passou a pregar contra os impostos republicanos e a incentivar a população a desrespeitar as autoridades locais. Em abril de 1893, em Bom Con-selho, durante manifestações populares contra impostos, o Conselheiro apoiou-as, ordenando aos seus seguidores que quebrassem as tábuas municipais onde eram anunciados os impostos decretados pelas autoridades republicanas, regime político que ele não reconhecia. A polícia foi convocada a pedido do Juiz Arlindo Leoni e atacou os conselheiristas em Masseté, em 26 de maio, que foram dispersados pelos soldados.

Outro agrupamento militar com 80 homens foi mandado, mas o governador Rodrigues Lima mandou-o retornar a Salvador. Nova expedição atacou os consel-heiristas em Uauá, mas a resistência provocou a debandada da tropa, com mortos e feridos dos dois lados. Antes que outro destacamento militar o atacasse, Antônio Conselheiro levou seus seguidores para o nordeste baiano, para um local conhecido como Canudos, que o beato chamou de Belo Monte, às margens do rio Vaza-Barris, entre serras, caatingas e caminhos precários e difíceis. Existiam no local cerca de

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cinquenta casebres habitados por criadores de animais e os comerciantes Antônio da Mota e Joaquim Macambira. Ali aconteceu um fenômeno urbano raro em curto espaço de tempo, a organização da comunidade de Belo Monte-Canudos.

É nesse contexto que Antônio Conselheiro deixou de ser um guia religioso excêntrico e se tornou um perigo iminente para as autoridades do momento, reunindo cada vez mais grande número de seguidores.

A cidade cresceu com o decorrer do tempo, chegando a alcançar talvez um contingente 25 mil habitantes. Isso porque o discurso religioso de Antônio Con-selheiro enfatizava o trabalho, a moral cristã, a vida sem pecados, a oração, a pobreza honrada. Antônio Conselheiro edificou, assim, um resistente poder político e religioso na região. Esse poder e controle exercidos por Antônio Conselheiro passaram a irritar os fazendeiros locais, as autoridades e a Igreja Católica.

As autoridades religiosas também ficaram contrariadas com um pregador religioso leigo, nem formado em Teologia nem pertencente ao corpo oficial da Igreja Católica.

O ajuntamento de todo tipo de gente ao povoado alarmou os fazendeiros das regiões adjacentes. Olivieri (1977) registra uma fala do Barão de Jeremoabo, um dos latifundiários da região, “Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizin-hanças, e até do Estado do Sergipe, ficaram desabitadas, tal o aluvião de famílias que subiam para Canudos.”

A destruição de Canudos

A Guerra de Canudos teve início por influência de autoridades baianas que começaram a espalhar o boato de que Antônio Conselheiro era um fanático monarquista que tinha, inclusive, apoio internacional para maquinar contra a República.

Atendendo ao conluio e à coação das elites locais, e com o be-neplácito da Igreja Católica, além da construção da imagem dos integrantes de Canudos como “perigosos monarquistas”, o Governo da Bahia enviou expedições armadas para desmantelar Canudos.

Foram necessárias quatro expedições armadas para derrotar Canu-dos. A coragem dos integrantes do movimento e os três primeiros fracassos das expedições com tropas e armas do Exército exaltaram o pânico dos representantes republicanos quanto às tentativas da possível restauração da Monarquia no país.

No total, cerca de 12 mil homens foram mandados para derrotar Canudos. A movimentação dos militares com o intuito de destruir Canudos deixa claro o quanto Antônio Conselheiro desestabilizou as autoridades republicanas com o seu discurso contundente.

O governo acabou por alcançar seu objetivo e destruiu a comunidade de Canudos, deixando em torno de 25 mil mortos.

A luta sanguinária contra Canudos seria apontada para sempre como um acontecimento dos mais tristes da História do Brasil, imortalizada na obra Os sertões, de Euclides da Cunha, publicada pela primeira vez em 1902. O desfecho da guerra ainda hoje é lembrado por meio do famoso trecho do livro de Euclides da Cunha, Os Sertões (1902):

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Vencido palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.

A guerra de Canudos na imprensa

Quando a Guerra de Canudos se tornou assunto nacional, os principais jornais

do país passaram a noticiar o desenvolver dos fatos. Os jornais do país inventaram muitas calúnias sobre o que acontecia no sertão baiano: diziam ser um movimento de restauração da monarquia no lugar da República; que agentes estrangeiros monarquistas estavam em Canudos armando e orientando Antônio Conselheiro e seus seguidores; que a população de Canudos era promíscua, que ali o amor era livre; que eram fanáticos os seguidores de Antônio Conselheiro; que ali predomina-va o ócio e a vagabundagem; que Antônio Conselheiro era ignorante e analfabeto, que matara a esposa e a própria mãe, entre outras coisas. Aos poucos, para obter informações mais completas e legítimas dos acontecimentos, muitos repórteres passaram a deslocar-se para a região. Euclides da Cunha foi um dos principais jornalistas enviado para Canudos como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens sobre a guerra que depois serviriam de base para a elaboração do seu livro Os sertões.

Segundo Olivieri (1997), com poucas exceções, a imprensa Brasileira contribuiu para sustentar a rumores sobre Canudos. Como as informações sobre o que verdadeiramente estava ocorrendo no sertão eram insuficientes e difíceis de se conseguir, qualquer balela adquiria dimensões completamente incabíveis.

Segundo Walnice Nogueira Galvão. (in “Gatos de outro saco”, páginas 71 e 72),A Guerra de Canudos invade o editorial, a crônica, a reportagem, o anúncio

e até o humorismo. Como forte veículo de manipulação, antes da era da comu-nicação eletrônica, o jornal, a serviço de correntes políticas a quem interessava criar o pânico e concentrar as opiniões em torno de um só inimigo, prestou serviços inestimáveis. Já que não era caso de invasão, não se podia contar com um inimigo externo; tinha-se aqui, bem à mão, e tão marginalizado que nem poderia protestar contra o papel que lhe atribuíam, um inimigo interno. A função do jornal foi servir como porta-voz das referidas correntes, lançando um brado de alerta e de convocação do corpo nacional ameaçado pela subversão interna (…) no caso do Brasil, foi de um pioneirismo extraordinário. E, se esse pioneirismo é mais para envergonhar que para honrar, todavia nesse momento a eficácia do veículo foi enorme.

Segundo Walnice Galvão (1994), no final do século XX, no Brasil, os jornais eram um espaço de publicação dos mais significativos para os escritores. Dentre os jornais que circulavam na cidade do Rio de Janeiro, capital do país da recém proclamada república brasileira, destacava-se a Gazeta de Notícias, onde autores como Machado de Assis, Raimundo Correia, Raul Pompéia, e outros faziam suas publicações.

Olavo Bilac foi cooperador em muitos jornais por quase 20 anos, entre 1865 e 1918. Seus melhores momentos como cronista foram no jornal Gazeta de Notícias, diário carioca de Ferreira Araújo, tido como um dos responsáveis pela modernização da imprensa na época.

Como cronista, Olavo Bilac tinha, nas palavras de Dimas, (1996) “o olhar bisbil-hoteiro e nem sempre certeiro”. Suas crônicas, “ideologicamente irregulares”, fato compreensível para quem “não se pautava por um credo único, religioso ou políti-co”, têm no conjunto o efeito de uma “linha sinuosa que ora aponta para soluções reacionárias, identificadas como o sistema vigente, ora para sua contestação”. Em outras palavras, Olavo Bilac nada sabia de fato sobre o que acontecia no sertão baiano, então soltou seus preconceitos e sua imaginação ferina em suas crônicas contra Antônio Conselheiro, Canudos e os sertanejos que o apoiavam. Engrossava, assim, a onda sensacionalista da imprensa da época que ajudou a criar um clima beligerante nas camadas sociais das grandes cidades do país.

Coincidentemente, ou não, Olavo Bilac escreve a sua primeira crônica para a coluna que era de Machado de Assis sobre Canudos, datada de 11 de dezembro de 1896, após a derrota da primeira expedição militar a Canudos.

As crônicas preconceituosas de Olavo Bilac sobre Canudos e Antônio ConselheiroOlavo Bilac escreveu suas crônicas sobre Canudos num momento dramático da

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guerra. A primeira crônica, com data de 11/12/1896, cujo título é “Antônio Con-selheiro”, foi escrita assim que a primeira expedição a Canudos, sob o comando do tenente Manoel Silva Pires Ferreira, foi derrotada na cidade de Uauá:

Confesso que nunca entendo bem as cousas que se passam aqui. Tenho viajado tanto, que já não há canto da terra que os meus pés de cabra não tenham calcado, nem recanto de horizonte em que não tenham pousado os meus olhos satânicos: e tenho, em todas as terras, entendido tudo; aqui, porém, o mais insignificante caso se reveste de tão extraordinárias circunstâncias e se complica de tão singulares episódios, que a minha pobre cabeça de diabo, com as ideias baralhadas, se perde, delira, ensandece… Vede-me, para exemplo, este caso do Antônio Conselheiro…

O Conselheiro é (dizem-no todos) um fanático, um desequilibrado, um histérico. Em criança, tinha crises de epilepsia. Casou. A mãe dele desandou logo a ter conflitos, e bate-línguas, e troca de insultos ásperos com a nora. Entre as duas, Antônio Conselheiro penava, querendo em vão reconciliá-las. Um dia, desesperado, foi-se à velha: “Por que briga a senhora com minha mulher? que lhe fez ela? por que não a deixa em paz?”.

A velha, alma danada, para reconquistar o amor e a confiança do filho, não trepida em se valer de uma calúnia. E convence Antônio de que a mulher o en-gana: “Queres a prova? finge uma viagem, volta depois às escondidas, ocul¬ta-te na chácara, e espreita! Verás que, às horas tantas da noite, há de chegar aquele que é mais amado do que tu!”.

Aceita o moço o conselho, diz que vai jornadear, beija a mulher, e parte. Mas, à boca da noite volta, e, dentro de uma moita, fica à espreita. Daí a pouco, vê que um vulto de homem salta o muro e, com passo de gatuno, leve e abafado, se aproxima da casa. Antônio (em todo homem há sempre a fúria de um Otelo!) Antônio não resiste ao primeiro impulso da cólera: põe à cara o clavinote e dis¬para-o. Cai o vulto, baleado. E quando o desgraçado vai ver de perto quem matou, vê estendida por terra, numa poça de sangue, a própria mãe, vestida de homem. A mísera, querendo iludir o filho, tivera a diabólica ideia de combinar toda esta aventura, cujo êxito pagou com a morte…

Isso é o que diz a lenda. E diz mais que Antônio, desesperado, internou-se nos matos bravios, transformando-se desde então neste Conselheiro que é hoje diretor de 3 mil fanáticos que, armados de carabinas Chuchu, devastam a Bahia e estão dando que fazer às tropas do general Sólon.

Há desgraçados que o remorso transforma em frades, ou em criminosos relap-sos, ou em suicidas, ou cm idiotas. Outros, muda-os o remorso em apóstolos… E o Conselheiro não foi impelido para o Apostolado unicamente pelo remorso. Este já achou o terreno preparado na alma do Antônio — alma de inquieto, de agit-ado, de nevrótico. Podia dar para outra cousa o homem: mas deu para se julgar Enviado de Deus, encarregado de regenerar o mundo, de redimir a humanidade, de combater os governos existentes.

Ainda se ele parasse aí! se os 3 mil homens se limitassem a correr os desertos, e a comer gafanhotos como são João Batista, e a jejuar e a orar como santo Antão, na Tebaida!… Mas, não! os fanáticos de Antônio Conselheiro, apesar de se dedicarem à penitência e à reza, e à reforma dos costumes dos homens — não podem passar sem pão, sem carne, sem cachaça, e sem mulheres. E, pois, saque-iam as vilas, assolam as aldeias, matam os ricos, escravizam os pobres, defloram as raparigas, e assim vão vivendo bem, bem combinando os sacrifícios do viver religioso com as delícias do comer à tripa forra.

Ora bem! chegamos agora ao ponto principal do caso. Pelo que todo mundo diz do Conselheiro, ele não é só um fanático: é também um salteador; e salt-eadores, além de fanáticos, são também todos os seus sequazes. E, em qualquer outra parte do mundo, esse pessoal seria baleado, corrido a pedra e a sabre, sem

complicações, sumariamente.Aqui, não! Aqui tudo é política. Aqui não se compreende que se faça alguma

cousa, ou boa ou má, sem ser por política. Houve um incêndio? política! Um bonde elétrico matou um homem? uma senhora fugiu de casa? política. Caiu um andaime? o Prudente tinha uma pedra na bexiga? política! E, assim, o Conselheiro, na opinião da imprensa indígena, nem é um fanático, um Jesus de fancaria — nem é um salteador, um Fra Diavolo da Bahia: é um homem político, é um conspirador, é um restaurador da monarquia…

A Liberdade cala-se sobre ele: manha de monarquista. A República diz que ele é emissário do príncipe do Grão-Pará: recurso de jacobino.

Entre essas duas manias, quem lucra é o nosso Conselheiro, que, sendo, ao mesmo tempo, um maluco acabado e um refinadíssimo patife, deixa de ser tudo isso, para ficar sendo, graças à mania política da terra, um agitador, um Kossuth, um Montt, um não sei quê!

Viva a política! Nada há mais sobre a Terra, debaixo do clarão esplendido do sol! (p.44)

Bilac não entende muito os acontecimentos de Canudos. Ele repetia o que

jornalistas de todo o país falavam sobre Antônio Conselheiro e os seus seguidores, um amontoado de juízos caluniosos e sem nenhuma base real, diante dos quais Bilac se diz confuso porque nunca vira situação semelhante, O autor vangloria-se de ter viajado pelo mundo, o que lhe dificulta entender o que estava aconte-cendo no sertão baiano, sem perceber que encarnava o total distanciamento de intelectual alienado da realidade de seu país e voltado para a Europa, ou como diria Euclides da Cunha, representando “uma civilização de empréstimo” importada de outra realidade para as grandes cidades do litoral, como a capital federal, o Rio de Janeiro.

Ele carrega nos fatores psicológicos e patológicos para explicar o caso de Antônio Conselheiro e dos canudenses: desequilíbrio mental, epilepsia, histeria, matricídio, neurose, fanatismo, banditismo, crimes, estupros.

Com a abolição da escravidão, em 1888, muitos ex-escravos começaram a acompanhá-lo, tornando-se conhecidos como os “13 de Maio”. Fazendeiros não viam com bons olhos o aumento do séquito de Antônio Conselheiro pois perdiam trabalhadores em suas fazendas, enquanto que a Igreja Católica também se incomodava com as pregações de Antônio Conselheiro porque ele não era padre e sim beato, embora jamais tenha se intitulado “enviado de Deus, encarregado de regenerar o mundo, de redimir a humanidade, de combater os governos existentes.”, como escreveu Olavo Bilac.

Assim, segundo Bilac (2006), Antônio Conselheiro era considerado fanático, desequilibrado, histérico, epilético, assassino, fugitivo, agitado, neurótico, salteador, Jesus de Fancaria, maluco, patife, agitador, um profeta de “barbas sujas”, de “força diabólica”, alimentada pela “superstição” e pela “rapinagem”.

Segundo Bernucci (2008, p.84), Olavo Bilac possuía uma maneira de ver in-fluenciada pela “rua do Ouvidor e adjacências parisienses”, o que o levou a não esconder a sua aversão pelo líder Conselheiro.

Ainda segundo Bernucci (2008, p.84);É porque sua concepção de progresso repousava na conformação da cidade

aos padrões urbanos que conhecera pessoalmente em contínuas viagens à Europa que Bilac encarava com horror o levante de Antônio Conselheiro no interior da Bahia. Para o cronista, o líder sertanejo, enfiado em malocas desconjuntadas num arraial perdido no sertão, encarnava aquilo que se opunha à noção de progresso, fosse por seu fanatismo religioso, fosse por sua falta de higiene, fosse ainda pela suspeita de sebastianismo monárquico que o rodeava. Na geografia urbana ideal que arquitetou, Bilac desenhou um arco tenso, cujas pontas que se repeliam eram

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ocupadas por Petrópolis, verdadeiro “oásis de asseio e frescura”, e por Canudos, “a cidadela maldita, o antro negro, a furna lôbrega”.

Bilac parece irônico. No início da crônica, ele fala de Conselheiro e suas tragé-dias, o que o livra um pouco da fama ruim, mas no final, ao fazer referência ao Conselheiro e aos conselheiristas já o faz com depreciação, pois afirma que “em qualquer outra parte do mundo, esse pessoal seria baleado, corrido a pedra e a sabre, sem complicações, sumariamente.”

Numa crônica de 5 de fevereiro de 1897, ele adverte sobre o perigo que representava aquele foco de rebeldes, capazes de tudo, pois enfrentavam a morte e não a temiam porque tinham muita fé na sua religião:

Toda a alma brasileira está ansiosamente voltada para o Norte. Quando, há dois ou três anos, se começou a falar de Antônio Conselheiro, todo mundo encolhia os ombros, com desdém e pouco caso: - um fanático! Um mentecapto! Um profeta de fancaria! Um arrastador de sujeitos parvos e de velhas beatas! – Hoje, o apóstolo de Canudos é general de um exército de mais de mais de cinco mil homens...

O major Febrônio, chefe da coluna derrotada em Uauá, diz terminantemente: “Toda a pólvora encontrada era de primeira qualidade; havia bom e grosso chum-bo, balins, foices e dardos. Todos eles estavam trípla e quadruplamente armados; todos eles traziam armas de fogo, afiados facões e grossos cacetes pendentes dos pulsos. Pela média, sem receio de errar, posso garantir que o Conselheiro tem mais de cinco mil homens, apesar de ter afirmado o tenente-coronel Antônio Reis, residente em Cumbe, que ele tem mais de oito mil”.

Não se trata, pois, de uma simples rebelião, facilmente dominável. A guerra civil de Canudos é muito mais grave que a do Rio Grande do Sul e da revolta naval, - porque é uma guerra feita por fanáticos, por malucos furiosos que o delírio religioso exalta – gente que vem morrer agarrada à boca das peças, tentando tomá-las a pulso.

Ora, nesta gravíssima situação, é que, mais do que nunca, se devia calar a política, com as suas pequeninas paixões e os seus miseráveis interesses. No en-tanto, a política está complicando tudo; e já causou o desastre de Uauá, e queira Deus que ainda não venha a causar outros, terríveis e irremediáveis!

Para ver até que ponto a mania política alucina os baianos, basta ler, com atenção, os dois longos telegramas da Bahia que O País, por um verdadeiro, tour de force, publicou segunda feira.

O primeiro telegrama traz o resultado de uma conversa entre o correspondente de o País com o general Sólon. O general contou ao jornalista a barafunda de ordens, de contra-ordens, de hesitações, de providências disparatadas que houve, e que resultaram na derrota de Uauá.

O segundo telegrama é a reprodução integral da carta que o major Febrônio dirigiu à redação do jornal A Bahia. Leia-se este trecho da carta, onde não se sabe o que mais admirar, - se a violência do ataque, se os arrebiques nefelibatas da frase:

“Nas espinhosas operações de Canudos a incompetência e ambição do autor-itarismo centralizador tem sido à socapa a palavra de ordem como apanágio delituoso de desastres. Daquele tem vindo a facilidade para todo o recurso esca-moteador da dignidade dos que se prezam do mesmo modo como se manejam os capangas para falsificação de atas de eleições na fábrica de galopins sem decência de mandato.

Política torpemente velhaca dos adesos diluídos nos banhos da carnagem monárquica, ignorância perversa das nulidades que a República e a anarquia guindaram por através de fases de filhotismo de importação, a supurar do coração brasileiro, calaram sulcos fundíssimos na vida desta geração, que carrega aos ombros a ferver o sangue dos mártires, o cadáver moral do desbriamento público administrativo

A tropa está morta, extenuada, maltrapilha, quase nua, impossível de refazer-se em Monte Santo. Avalie agora o público as desgraças que podem advir das res-oluções dos incompetentes, das facilidades do governador quando telegrafou ao governo, dizendo que o Conselheiro tinha, quando muito, quinhentos homens mal armados e que o mais eram mulheres beatas.”...........................................................................................................................................

Todo mundo sabe que Antônio Conselheiro engrossou as suas fileiras com os sebastianistas e com os republicanos descontentes. Que os sebastianistas procurem ou adotem todos os meios de ferir a república, - compreende-se: estão no seu direito, e muito idiota seriam se não o fizessem. Mas que os próprios republicanos, apenas porque não são amigos do governador da Bahia, vão apoiar o Conselheiro, isso é que é uma cousa torpe que ainda nos espantaria, se já não tivéssemos certeza de que a preocupação política é mãe de todas as torpezas e de todas as infâmias.

E, ai de nós!, contra o mal não há remédio. Ainda eu lembraria um remédio para o mal: - enforcar todos os políticos, sumariamente, se não me detivesse a consideração de que no Brasil não há ninguém, mas absolutamente ninguém, que não seja político.

Valha-nos o diabo, meu pai! Esta terra só merece, como definição, o verso de Raimundo Correia:

É um vasto hospital de alienados...Bilac continuava divulgando boatos, mentiras e denegrindo Antônio Conselheiro

e seus seguidores, chamando-os de “malucos furiosos”, de “sebastianistas” que queriam restaurar a monarquia e destruir a república, mas também denunciando a politicagem nas operações militares, as batalhas perdidas pelos soldados. Termina chamando o país de “um vasto hospital de alienados”, tamanha era a loucura coletiva em que se encontrava por causa dos boatos, fracassos militares e calúnias de toda ordem que se espelhavam e a que davam crédito.

No mês seguinte, em 21 de março de 1897, Bilac escreve uma crônica eloquente e extensa elogiando o cabo Roque, que teria morrido defendendo heroicamente um companheiro em combate contra os canudenses:

Felizmente, preocupações de outra natureza monopolizaram a atenção do público. E, entre essas, a que mais vivamente avultou, foi a de lembrar e honrar a memória de alguém que nobremente se deixou morrer, - não por amor, não por sede de glória ou de dinheiro, - mas por fidelidade, nobre sentimento raríssimo, tão raro hoje, que a gente até chega a cuidar que ele tenha desertado para sempre a face da terra.

Esse obscuro Cabo Roque, cujo nome agora anda repetido de boca em boca, não pensou nunca que o seu procedimento tivesse de ser louvado de tal modo. Que podia ele esperar, como recompensa e como satisfação, quando, no momento mais grave da retirada da expedição, à hora em que o Brasil não o via, fez com o seu corpo uma barreira para defender o corpo do seu coronel já morto?

Que lhe custava fugir? Que lhe custava abandonar aquele que já não podia dar direção ao combate e exterminar o inimigo, uma vez que já tinha apagado o olhar que inflamava o seu exército, inerte o braço que maneja a espada, parado o coração que amava a República?

Mas para o cabo Roque, aquele cadáver era o despojo sagrado da sua maior afeição. A ter de arrastar pela existência a calceta de um remorso aviltante, preferiu ficar também ali, no chão empapado de sangue, morto também, também picado a facão, ainda mesmo na morte acompanhando e servindo àquele que em vida acompanhara e servira.

Por felicidade, houve quem visse e narrasse esse heroísmo e essa fidelidade. A abnegação daquele pobre, daquele humilde, daquele quase anônimo, não ficou, como a de tantos outros, enterrada no olvido. Por felicidade! Porque a coragem é

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comum, como é comum o desprezo da vida; o que não é comum é esse respeito misturado de amor, que um pequeno vota a seu chefe, e que lhe corta a carreira, porque lhe custa a vida. Que valor teria a morte do cabo Roque se ela tivesse dado em plena apoteose da batalha, quando o fumo dos canhões e o alarido das bandas de música embriagam a alma?

Assim o cabo Roque teria morrido por amor à sua pátria e por querer a glória, visto e admirado pelos seus chefes e pelos seus camaradas, - morte que se não sente... Mas a situação foi outra. A batalha estava perdida. A glória já não estava naquelas gargantas aspérrimas de serra. Ele, sozinho, já não acompanhava o seu general, a caminho da desforra: acompanhava um cadáver, acompanhava fielmente os restos daquele que amara. Em torno havia apenas inimigos ferozes, povoando a rude natureza do sertão brasileiro. E vendeu caro a vida, o glorioso cabo.

A glorificação que dele agora se faz, porém, não é apenas a glorificação de um homem; é a glorificação de todos os humildes, de todos os anônimos, que tendo sempre a menor parte das recompensas e a parte maior dos trabalhos, formam essa espessa massa humana, sem nome, sem fama, sem apoteose, com cujo sangue se fertiliza a vida das nações...

A glorificação de todos esses deserdados da Fama é que se está fazendo, quan-do se glorifica o cabo Roque. E quando aplacada a conflagração da Bahia, já o Brasil puder pagar suas dívidas de gratidão,, é justo que ao lado do monumento consagrado aos que dirigiram a campanha, se levante também o monumento do cabo Roque, com esta pequena inscrição comovida, tão eloquente na sua simpli-cidade: Aos humildes e aos fiéis... (p.227)

Na verdade, não muito tempo depois dessa publicação, descobriu-se que o cabo Roque estava vivo e não praticara nenhum gesto heroico como o descrito na crônica do exagerado poeta Bilac...

Na crônica de 18 de julho de 1897, Bilac fala dramaticamente dos soldados que seguiam contra Canudos, como “gado humano”, como um “bando de bravos”, de “anônimos heróis”, como “vítimas” de políticos baianos conluiados com Antônio Conselheiro... Iriam lutar e morrer “contra bandidos, contra feras, sem fé nem lei, matando à traição os que batem a peito descoberto (...) contra ladrões de estrada e assassinos de emboscada”.

Lá iam eles, os bravos soldados, os anônimos heróis, as vítimas obscuras...Não, iam abatidos, não tremiam, não choravam. Mas, a segui-los e a derramar lágrimas e a torcer os punhos, na sua dor impotente, arrastava-se a multidão de mulheres desgrenhadas, muitas das quais não hão de ter nunca mais a alegria de rever os maridos e os filhos, nem ao menos o consolo de lhes vestir com as mãos piedosas os cadáveres, porque os cadáveres hão de ficar perdidos no sertão agreste, apodrecendo, mutilados, ao sol. Naquele vasto matadouro de Canudos ainda há necessidade de mais gado humano... Ninguém duvida de que a vitória há de por fim coroar o esforço e o heroísmo dos nossos soldados: mas todos têm a certeza de que as catingas vão ficar ensopadas de sangue brasileiro, prodigamente derramado numa luta contra bandidos, contra feras, sem fé nem lei, matando à traição os que batem a peito descoberto...

E, afinal, qual foi a origem, única e terrível daquele horror de Canudos? A política, única e exclusivamente a política...

Tem graça que se esteja a acusar como responsável por aquilo o atual governo da Bahia: a responsabilidade não é dele só – é de todos os políticos da Bahia. Porque o que está provado é que todos os governos que se têm sucedido naquela parte do Brasil, no império como na república, serviram-se do Antônio Conselheiro, e da sua influência local, e do seu ascendente sobre a gente rude do sertão, e do seu espírito de disciplinador, para transformá-lo num aliado político, num fornecedor de votos, num agente de eleições. Quando uma eleição perigava, ali estava o Bom Jesus Conselheiro para engrossar a votação com o sufrágio dos seus

milhares de subordinados. Assim adulado, protegido, solicitado, amimado, o Consel-heiro firmava cada vez mais o seu domínio e, sem achar quem lhe contrariasse os planos, ia pouco a pouco ficando o senhor absoluto do sertão.

Quando viu que tinha força bastante para já não precisar de ninguém, deliberou começar a agir por conta própria: achou que tudo aquilo era seu, legitimamente seu, e principiou a dispor a seu talante da propriedade e da vida de todo mundo. Então é que foi um Deus-nos-acuda! Depois, da casa roubada, tranca na porta da rua! Depois do cavalo morto, alfafa para o cavalo! Depois de todo prédio incendiado, seguro com ele!

Os governos tiveram a mesma ingenuidade daquele sujeito da fábula de La Fontaine, que, achando uma serpente estendida sobre a neve, transida de frio, acolheu-a no seio, acolheu-a no seio, aqueceu-a, deu-lhe vida............................................................................................................................................

Ah! havemos de vencer! Antônio Conselheiro há de ser apanhado como uma besta fera dentro do seu imundo covil! Teremos com certeza a ventura de não assistir à vitória dos ladrões de estrada e dos assassinos de emboscada. (p.236)

Na semana seguinte, em 25 de julho de 1897, a crônica de Bilac radicaliza nas

palavras pedindo a eliminação física de Antônio Conselheiro, a sua morte, à bala:De Canudos... nada de positivo. Isto é, alguma coisa positiva: a notícia de que

o sangue continua a correr. À hora em que escrevemos, os últimos telegramas dizem que Antônio Conselheiro está ferido na mão. Não basta, não basta – por misericórdia! Não é aí que está o veneno da fera: é na cabeça, que governa o bando dos assassinos! É no coração, onde se aninha aquela singular congestão de fé religiosa, exsolvida em crimes e perversidades! É na cabeça e no coração! Bala aí! Bala a fartar! Quando os asseclas virem que o Bom Jesus de Canudos não tem reza que o livre de um pedaço de chumbo – o edifício daquele Poder, aluído e podre, ruirá mais depressa do que o Cascata... (p.239)

Bilac se exalta na crônica ao afirmar qual a sentença que deveria ser aplicada contra o Conselheiro. Ele repete a expressão “Bala aí! Bala a fartar!” para acentuar a necessidade de revide, pois seria uma forma de mostrar para os seus adeptos que o Conselheiro não tinha poder para se livrar e cairia no descrédito. Então, “quando os asseclas virem que o Bom Jesus de Canudos não tem reza que o livre de um pedaço de chumbo – o edifício daquele Poder, aluído e podre, ruirá mais depressa do que o Cascata... (Dimas 2006).

Em outra crônica, datada de 9 de outubro de 1897, (Dimas, 2006, p. 229), percebemos um tom espetaculoso ao noticiar a destruição da cidadela de Canudos com as piores expressões e os piores adjetivos:

Enfim, arrasada a cidadela maldita! Enfim, dominado o antro negro, cavado no centro do adusto sertão, onde o Profeta das longas barbas sujas concentrava a sua força diabólica, feita de fé e de patifaria, alimentada pela superstição e pela rapinagem! (...)Enfim, assaltada e vencida a furna lôbrega, onde a ignorância, ao mando da ambição, se alapardava perversa! Enfim, desmantelada a cidadela-igreja, onde o Bom Jesus facínora, como um cura Santa Cruz de nova espécie, oficiava, tendo sobre o espesso burel a coronha da pistola da pistola assassina! ... (p.229)

A comemoração começara pela madrugada para coroar com êxito a notícia chegada no dia anterior pelo telégrafo. Bilac diz “num sobressalto, acordo, ouvin-do um clamor de clarins e um rufo acelerado de caixas de guerra. Corro à janela, que defronta o palácio do governo.” Bilac assiste à celebração da derrocada de Conselheiro, amimado pela música, e não esconde o seu alívio:

Como é bom despertar assim, em pleno júbilo, já com o coração livre daqueles sustos dos dias passados, quando a gente abrindo os jornais, sentia o coração pressago, cheio de medo, temendo o horror de novas catástrofes, de novos mor-ticínios, de novas derrotas!

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Cinco dias após o fim da guerra contra Canudos, em 10 de outubro de 1897, Bilac exultava em sua crônica:

Em breve, já nem a memória há de restar da afronta: haverá apenas a glória dos que morreram e a glória dos que souberam vingá-los. E esta Crônica voltará a ser alegre...”

O dia da desafronta chegou. O arraial maldito foi desmantelado. A lição foi tremenda. Não é de crer que o resultado da aventura ainda possa permitir que haja na alma de novos fanáticos o desejo de renová-la. Glória à Pátria e aos seus soldados! E volvamos à alegria!

Ontem, o República em editorial, pedia que o crânio do Conselheiro fosse envia-do para o Museu Nacional. Lendo isso, o cronista aplaudiu vivamente a ideia: certo, não podia deixar de ser curioso estudar a caixa óssea daquele cérebro de fanático, que foi durante tanto tempo o diretor da turma satânica de Canudos. E estava o cronista aplaudindo a ideia, quando se lembrou de que seria fácil obter desde já, sem a menor demora, os dados fornecidos pelo crânio do Bom Jesus.(p.246)

Assim, para Olavo Bilac, havia dois caminhos a seguir depois da guerra: a amné-

sia, o apagar da memória a tragédia e só lembrar “a glória dos que morreram e a glória dos que souberam vingá-los”, ou seja, na sua ótica, só os militares mereceriam ser lembrados; e o estudo científico do crânio de Antônio Conselheiro para comprovar a sua loucura.

Olavo Bilac teria duas surpresas desagradáveis para as suas expectativas, o que o levaria nos anos seguintes a não escrever mais nada sobre Antônio Conselheiro, os canudenses, os militares e a trágica guerra. A primeira foi o diagnóstico do exame do crânio de Antônio Conselheiro pelo renomado médico Raimundo Nina Rodrigues, da Faculdade de Medicina da Bahia, que após medir, pesar e observar as características do crânio segundo os conceitos de Césare Lombroso e Paul Broca, concluiu: “O crânio de Antônio Conselheiro não apresenta nenhum grau de degenerescência, é, pois, o crânio de uma pessoa normal.” Quanto à amnésia e a exaltação dos militares, também isso não foi possível, já que cinco anos depois de terminado o conflito, foi publicado o livro Os sertões, de Euclides da Cunha, em que foram descritas as atrocidades praticadas contra os canudenses, as degolas de prisioneiros, os abusos que sofreram os sobreviventes, as mulheres que foram violadas, as mentiras que foram inventadas para justificar os massacres, as calúnias contra os sertanejos, o falso heroísmo, a precária distinção entre civili-zação e barbárie, as crianças que foram distribuídas entre os soldados, a coragem dos canudenses que preferiam a morte à rendição, a violação do cadáver de Antônio Conselheiro que foi decapitado, enfim, “o crime contra a nacionalidade”, a “carnificina”, “a charqueada” praticada por brasileiros contra brasileiros. Pelo que sabemos, Olavo Bilac e Euclides da Cunha raramente ou nunca citaram um ao outro em seus escritos, pois se em muitos pontos de vista eles estiveram de acordo quando a guerra de Canudos começou, depois dela o primeiro se recolheu ao silêncio dos que não podiam se defender do que escrevera, enquanto que Euclides da Cunha procurou entendê-la e explicá-la não com boatos, ofensas, simplificações, mentiras, mas honestamente, sinceramente, com conceitos objetivos de pensadores da época, salvando assim o trágico acontecimento do esquecimento, diferenciando-se de autores contemporâneos e nos legando um dos maiores livros da língua portuguesa, Os sertões.

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OS SERTÕES EM FRASES DE DESFILE

Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva (do Ciclo de Estudos Euclidianos)[email protected]

Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo (Universidade de São Paulo - USP)[email protected] / [email protected]

RESUMO: este artigo arrola frases significativas de Os sertões, analisa-as e contextualiza-as, possibilitando que o leitor construa mentalmente um memorial desse livro vingador.Palavras-chave: denúncia, sertanejos, terra, homem, luta.

ABSTRACT: this paper aims to enlist, analyse and contextualize relevant excerptsfrom “Os sertões”, by Euclides da Cunha. It offers to the reader a memorial of that vindicatory book.Keywords: denuntiation, inlanders, land, man, struggle.

Os sertões é a principal obra de Euclides da Cunha. Seu assunto é a Guerra de Canudos, ocorrida no interior da Bahia, em 1896-1897. Compõe-se de uma nota preliminar e três partes.

A “Nota preliminar” apresenta o propósito de Euclides da Cunha ao escrever o livro: denunciar que fora cometido um crime contra os habitantes de Canudos.

A 1ª parte é “A terra”. Descreve a paisagem física do interior do Nordeste, o sertão: solo árido, montanhas baixas, rios intermitentes, subordinados ao período da chuva, secas cíclicas, vegetação baixa e retorcida – a caatinga, formada prin-cipalmente por cactáceas.

A 2ª parte é “O homem”. Apresenta os habitantes do sertão, na maioria mamelucos: os sertanejos. Afastados da civilização, crédulos e supersticiosos, muito pobres e sem esperança de melhorar a vida aqui na terra, começaram a seguir Antônio Conselheiro, que lhes prometia a vida eterna no céu. Acompanhavam-no, peregrinando, de vila em vila. Vinda a perseguição, rumaram para uma fazenda abandonada, à margem esquerda do rio Vaza-Barris, onde passaram a viver: Canudos. A cada dia, novos adeptos. Atingiram cerca de 5 mil.

A 3ª parte é “A luta”. Narra quatro expedições militares enviadas a Canudos para combater o Conselheiro e seus discípulos, considerados monarquistas, inimigos da República recém-proclamada. Eram, contudo, apenas gente pobre, vítima de isolamento geográfico e cultural, defendendo seu lar e suas tradições. O Consel-heiro morreu doente e os canudenses foram dizimados.

***O tradicional desfile que abre a Semana Euclidiana costuma exibir, todo ano,

uma série de faixas ilustrativas, onde se leem frases famosas extraídas de Os sertões. Persegui-las, acrescentando outras similares, é construir mentalmente um memorial daquele “livro vingador”.

1. “Aquela campanha foi, na significação integral da palavra, um crime. Denun-ciemo-lo” (CUNHA, 1973, p. 30).

A frase é o fulcro da “Nota preliminar”, que abre o livro e patenteia o propósi-to de Euclides: a denúncia. Esse j’accuse12 percorre todas as páginas de Os sertões.

2. “O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas” (CUNHA, 1973, p. 33).

É a abertura da “terra”: uma animização – “desce” - que lhe reivin-dica o status de personagem, apto a dialogar com o homem.

3. “É uma paragem impressionadora” (CUNHA, 1973, p. 40), de ar seco, alternân-cia repentina de altíssimas e baixas temperaturas, solo gretado, secas, aridez. Não é ‘paisagem’, é “paragem” – que não é apenas impressionante, mas “impressiona-dora”, causando assombro, medo. Os gregos, em bela onomatopeia, diriam taráttei, perturba. A denúncia começa a assumir matizes de tragédia.

4. “E o sertão é um paraíso...” (CUNHA, 1973, p. 58), paradoxalmente, quando, depois do cautério da seca, caem as primeiras bátegas de chuva e se instaura, ain-da que de forma provisória, o regime das águas. Revive a flora – mas a tragédia paira sempre, à espera de que “a seca se desenhe outra vez nas ramagens mortas das árvores decíduas...” (p. 59).

5. “[...] um agente geológico notável – o homem, [...] assumiu [...] o papel de um terrível fazedor de desertos” (CUNHA, 1973, p. 61).

Um paradoxo (homem – agente geológico) e uma antítese (fazedor de deser-tos) respondem pelo impacto, que era justamente o que queria o autor.

Euclides está analisando as causas da esterilidade do solo do sertão e já

12 J’accuse (em português: Eu acuso) é o título do artigo redigido por Émile Zola a propósito do caso Dreyfus e publicado no jornal L’Aurore de 13 de janeiro de 1898, sob a forma de uma carta ao então presidente da República Francesa, Félix Faure. Começa:« Mon devoir est de parler, je ne veux pas être complice. Mes nuits seraient hantées par le spectre de l’innocent qui expie là-bas, dans la plus affreuse des tortures, un crime qu’il n’a pas commis. »(Meu dever é falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu) (Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/J%27accuse, acessado em 27/3/2019).

O Caso Dreyfus (em francês: Affaire Dreyfus) foi um escândalo político que dividiu a França por muitos anos, durante o final do século XIX. Centra-va-se na condenação por alta traição, em 1894, de Alfred Dreyfus, oficial de artilharia do exército francês, de origem judaica. O acusado sofreu um processo fraudulento conduzido a portas fechadas. Dreyfus era, em verdade, inocente: a condenação baseava-se em documentos falsos (https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dreyfus, acessado em 27/3/2019).

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declinara várias: o vento Nordeste, a sucção dos estratos, as canículas, a erosão eólica, as tempestades subitâneas (cf. p. 63); inesperadamente, associa a esses fenômenos naturais a colaboração nefasta do homem, que maximiza o semideserto pela ação das queimadas. Um alerta para nossos tempos, em que superabunda essa agressão ambiental.

6. “O martírio do homem ali ... nasce do martírio secular da Terra” (CUNHA, 1973, p. 66), finaliza Euclides, estabelecendo uma relação filial entre os dois actantes trágicos. Daí decorre que a Terra não esteja confinada nessas primeiras páginas, mas reapareça, intermitentemente, em diálogo de amor e morte com o antagonista.

7. “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos” (CUNHA, 1973, p. 72). Afirmação incisiva, das primeiras páginas do “Homem”. Dentro do contexto científico da época, que privilegiava a pureza racial, Euclides considera que o brasileiro, basicamente um mestiço - e de mestiçagem flutuante, visto nela intervirem três raças de combinações múltiplas e aleatórias - nunca poderá definir-se etnicamente como tal. Ergo, nossa raça nunca será biológica – mas histórica: depois de um longo tempo de vida nacional autônoma, seremos a civilização brasileira. Por isso nos urge o progresso, em todos os níveis. O tônus trágico está na ‘condenação’.

8. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” (CUNHA, 1973, p. 99). Começando pela retórica: o sertanejo não é, adjetivamente, forte; a substan-

tivação (‘um forte’) esculpe-o. Prosseguindo pelo paradoxo: o sertanejo deveria ser um fraco, porque mestiço. Algumas linhas atrás, Euclides pontificara que todo mestiço, mulato, mameluco ou cafuz, é “um desequilibrado”, “um decaído” (p. 96), por enfeixar numa individualidade, sem harmonizá-las, as tendências civilizatórias da raça forte e os impedimentos à civilização da raça fraca. Mas a observação direta do sertanejo, “Hércules-Quasímodo” (p. 99) talhado pelo meio para os lances épicos do sertão, impõe uma guinada de pensamento e a introdução de um tertius. O ‘isolamento’ surge, então, como deus ex machina, para tirar o sertanejo da vala comum dos degenerados: o abandono em que jazeu por três séculos, associado à uniformidade da miscigenação (branco e índio, com raras exceções), foi biologicamente benéfico, porque lhe ‘purificou’ a raça. Ironia trágica: sobre esses ‘fortes’ paira a ameaça da dizimação.

9. “É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária - Antônio Conselheiro...” (CUNHA, 1973, p. 120).

‘É natural...’, ou ‘é natural que...’, é um bordão em Os sertões, por conta do cientificismo de Euclides: todos os fenômenos e acontecimentos são os elos de uma cadeia de causas e efeitos. Nessa perspectiva, o Conselheiro sintetiza e enfatiza em sua individualidade os caracteres psicológicos dispersos na comunidade sertaneja, seu misticismo e fetichismo. O temperamento impressionável levou-o a absorver as crenças ambientes e seu carisma de pregador fê-las refluir maximizadas sobre o próprio meio de onde tinham partido: causa e efeito. Linguisticamente, a transfiguração poética de dados geológicos ilustra o estilo simbiótico de Euclides da Cunha: um consórcio indissociável de ciência e arte. As camadas da estratifi-cação de um terreno realmente se erguem algures em anticlinais13; por que não se sublevariam também na anticlinal de uma individualidade as camadas mais profundas de nossa estratificação étnica? Por outro lado, a inevitabilidade do “é natural” antecipa a tragédia.

10. “Canaã sagrada que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma

cintura de serras...” (CUNHA, 1973, p. 143). O símile bíblico faz referência a um êxodo: os sertanejos, galvanizados pelo

líder, acossados pela polícia, depois de um ‘auto de fé’ na vila de Bom Conselho, acompanham a héjira de seu profeta para a Terra da Promissão. “Jerusalém de taipa” (p. 68), entrincheirada por uma cintura de serras, a par da sacralidade, possuía condições táticas excelentes. Entretanto, o locus já antecipa a posição defensiva e a inescapável ofensiva final, evocando, talvez, o cerco de Massada14. Assim, o isolamento dentro de uma cintura de serras é profecia do destino final.

11. “Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados... Requeriam out-ra reação. Obrigavam-nos a outra luta. Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador – a bala” (CUNHA, 1973, p. 155).

O sertanejo, que, algumas páginas atrás, era “um forte”, por resistir a todas as vicissitudes do meio, integra agora a massa de rebelados, que “eram, realmente, fragílimos”. Sofrem a fragilidade do desamparo, do isolamento, da pobreza, do atraso, da credulidade. A escrita de Euclides é antitética, porque sua visão de real-idade é uma sucessão de antíteses: serranias e planuras, matas e desertos, chuvas e secas, raças fortes e fracas, brancos e pretos e índios, mulatos e mamelucos e cafuzos, civilização e atraso, litoral e sertão, exército e jagunços, vitoriosos e vencidos, justiça e “legislador Comblain15”, argumentação e “bala”. Uma reação e “outra reação”, uma luta e “outra luta”: Euclides propõe providências integradoras e evoca o “mestre-escola” a que já se referira na correspondência para o Estado de São Paulo16. A escrita antitética é trágica, porque confronta o real com o ideal – e a realidade adversa é inelutável...

12. “Despertou-os o adversário, que imaginavam ir surpreender” (CUNHA, 1973, p. 172).

Começada a guerra, com um “incidente desvalioso”17 (p. 167), os cem soldados da 1ª expedição, comandados pelo Ten. Pires Ferreira, saídos de Juazeiro, acan-tonaram exaustos em Uauá, antes de investir sobre Canudos. Mas o Conselheiro tinha ali adeptos... Era madrugada de 21 de novembro de 1896. Os soldados dormiam, quando os despertou o inimigo que imaginavam ir surpreender: a antítese linguística é o prelúdio da tragédia prestes a começar. O estandarte de guerra dos jagunços era a bandeira do Divino; suas armas, velhas espingardas, chuços de vaqueiros, foices e varapaus – contra as Comblains do exército. Combate desorganizado e desigual: cento e cinquenta baixas dos jagunços, dez

13 Anticlinal: dobra de terreno formada em estratos de rochas sedimentares, cujas camadas se inclinam para ambos os lados, a partir do eixo, como as abas de um telhado (https://www.infopedia.pt).14 Massada (‘lugar seguro’, ‘fortaleza) é um imponente planalto escarpado a oeste do Mar Morto, fortaleza natural, de difícil acesso. Depois da destru-ição do templo de Jerusalém (ano 70), os judeus zelotes fugiram para lá e cometeram suicídio em massa para não serem capturados pelos romanos (Cf. https://pt.m.wikipedia.org). 15 Carabina, fuzil de fabricação belga então usado pelo exército (cf.http://www.armasbrasil.com/SecXIX/declinio/ArmasFogo/comblain.htm).16 “Que pelas estradas, ora abertas à passagem dos batalhões gloriosos, que por essas estradas amanhã silenciosas e desertas siga, depois da luta, modestamente, um herói anônimo sem triunfos ruidosos, mas que será, no caso vertente, o verdadeiro vencedor: O mestre-escola” (CUNHA, 1995, v. II, p. 534). 17 O Conselheiro encomendara e pagara em Juazaeiro (Ba) um lote de ma-deiras para a construção da igreja nova em Canudos. O juiz da cidadezinha recusou-se a entregá-las. O conselheiro ameaçou invadir o local. A pedido desse juiz, foi enviada para lá a 1ª expedição contra os jagunços.

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mortos e dezesseis feridos da expedição. Mas o embate apavorou os soldados, que debandaram combalidos, em marcha forçada, como se fossem os vencidos. Ironia trágica. E, finaliza Euclides, “as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja...” (p. 174).

13. “Avança! fraqueza do governo!” (CUNHA, 1973, p. 195). Eram os jagunços, provocando os 500 homens da segunda força expedicionária

enviada contra eles, sob o comando do Major Febrônio de Brito. O paradoxo anuncia o inesperado. O exército atravessava penosamente os aclives e declives da Serra do Cambaio, quando foi surpreendido pelo inimigo, tocaiado em esconderijos sobranceiros. Combate desorganizado e desigual: quatro soldados mortos e alguns feridos – em troca de “cento e quinze cadáveres, contados rigorosamente” (p. 197), do lado dos sertanejos. Os soldados do exército, vencedores, porém exaus-tos e combalidos, prosseguem até Tabuleirinhos, quase à orla de Canudos, e ali acampam, adormecendo “sob a guarda terrível do inimigo” (p. 198), sempre de tocaia- e alerta.

14. “A retirada foi a salvação. Mas o investir de arranco com o arraial, arro-stando tudo, talvez fosse a vitória” (CUNHA, 1973, p. 200).

“Retirada” ... “salvação”. A antítese é enfatizada pela aliteração gutural: “retira-da”, “arranco”, “arraial”, “arrostando”. Os soldados levavam vantagem, estavam quase dentro de Canudos – mas debandaram exauridos. Por isso a retirada foi a salvação, porque do contrário tombariam estraçalhados pela caatinga. Contudo, por que o investir de arranco contra Canudos teria sido a vitória?

15. Eis por quê: “Quebrou-se o encanto do Conselheiro” (CUNHA, 1973, p. 201) e o povo de Canudos, apavorado, perdeu em instantes as crenças que até então o tinham empolgado. É que seiscentos homens, capitaneados por João Abade, saídos de Canudos para ajudar os companheiros no combate de Tabuleirinhos, antes de lá chegar, foram estranhamente atingidos por balas de atiradores invisíveis. Acreditando em uma força milagrosa do adversário, debandaram atropeladamente para o arraial. Ora, os tiros milagrosos eram balas perdidas, disparadas a esmo pelos soldados. Mas o pretenso milagre balançou o prestígio do Conselheiro – e se a tropa tivesse continuado o avanço, poderia ter vencido a guerra naquele momento. Paradoxalmente, quando chegou ao arraial a notícia da retirada do exército, o responsável pelo milagre passou a ser o Conselheiro, que teve seu prestígio redobrado.

16. “Vamos almoçar em Canudos!” (CUNHA, 1973, p. 227), exortou temerar-iamente o Coronel Moreira César, comandante dos 1300 soldados da terceira expedição – e recebeu como resposta uma ovação de seus homens. A ânsia de glória cegou-os para as reais condições – cansaço, fraqueza, tocaias – atraindo-os para o desastre. Avançaram sobre Canudos.

17. O arraial “intacto – era fragílimo; feito escombros – formidável” (CUNHA, 1973, p. 232).

Antítese apropriada e esclarecedora: eram casebres de pau-a-pique que podiam ser facilmente derrubados, como o foram, mas cujas ruínas se transformavam em armadilhas, enredando os combatentes em becos sem saída. Era fácil invadir Canudos, mas dificílimo deixá-lo.

18. “Eu vou dar brio àquela gente” (CUNHA, 1973, p. 235), bravateou novamente Moreira César, cavalgando em direção a Canudos para entrar no combate. Mas foi mortalmente ferido, atingido no ventre por uma bala. Foi substituído pelo Coronel Tamarindo, que ordenou a retirada.

19. “A República estava em perigo; era preciso salvar a República” (CUNHA, 1973, p. 247).

Era o grito dominante no país, depois da derrota e retirada surpreendentes da expedição Moreira César e dos fatos sinistros que as precederam: morte do coman-dante, morte de seu substituto, e a macabra paisagem armada pelos jagunços às margens do caminho que medeia entre o sítio do Rosário e o arraial de Canudos18.

Em tom de denúncia de caráter social, Euclides levanta a voz emocionada contra o entendimento político da situação, em defesa do sertanejo:

Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez – bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas (p. 249-250).

Contudo, até poucos meses antes de ir para o sertão, sentir in loco o drama sertanejo e estabelecer empatia com seu protagonista, ele também perfilhara o que agora acusa de erro terrível do galvanismo patriótico. Em sua correspondência privada anterior a Canudos aparece repetidas vezes um grito semelhante, sem a conotação irônica que adquiriu em Os sertões.

Em 7 de janeiro de 1897, escreve a João Luís: Creio que como eu estás ainda sob a pressão do deplorável revés de Canudos

aonde a nossa República tão heroica e tão forte curvou a cerviz ante uma horda desordenada de fanáticos maltrapilhos... (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 103).

Ao mesmo destinatário, lamenta em 1º de abril: “Nunca supus que fôssemos passíveis de desastres desta ordem! NUNCA!” (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p.105).

Ainda a João Luís, em 23 de julho: “Felizmente a República é imortal! Resistirá quand même, a despeito de tudo.” (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p.106).

Por conseguinte, a ironia de Euclides, nesse passo de Os sertões, é trágica; aproxima-se das lamentações dos coreutas19 da Grécia clássica e faz reverter sobre ele mesmo o j’accuse inicial, numa espécie de autopunição catártica.

20. “A caça caçava o caçador” (CUNHA, 1973, p. 291). Estamos na quarta expedição enviada contra Canudos, 5.350 soldados, reparti-

dos em duas colunas, comandadas, respectivamente, pelos generais Artur Oscar e Savaget. À exceção de armas e munições, faltava-lhes tudo. Cercados e tocaiados pelos jagunços no Morro da Favela, arriscavam a vida em caçadas temerárias para ter algo de comer. O paradoxo da frase escolhida exemplifica um desses episódios: o soldado, ouvindo o tilintar de um cincerro, imaginava-se próximo a uma cabra – e arrastava-se pela caatinga, na direção presumível. Surpreendentemente topava com um jagunço de sino pendurado ao pescoço, que o matava no ato. Por isso “a caça caçava o caçador”. A antítese enfatiza a ironia e a aliteração em sibilantes reporta ao deslizar sorrateiro pelas macegas.

21. “Ao empardecer do dia [...], ressudava o salmear merencóreo das rezas...” (CUNHA, 1973, p. 309).

18 Os jagunços decapitaram os cadáveres dos soldados, queimaram-lhes os corpos, alinharam as cabeças ao longo da estrada e penduraram nos arbustos marginais o que restou das fardas coloridas e equipamentos, fazendo que a caatinga desabrochasse “numa florescência extravagante” (CUNHA, 1973, p. 243).19 Membros do coro da tragédia antiga (Grécia antiga, festivais ao Deus Dionísio).Em: https://www.dicionarioinformal.com.br/coreuta/, acessado em 3/4/2019.

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A proximidade do inimigo não modificara o protocolo dos sertanejos. Conforme já deduzira e declarara Euclides, a esperança deles era o céu, Canudos era sua Jerusalém terrestre, prenúncio da celeste, que era preciso conquistar com sacrifício e oração. Estilisticamente, as sibilantes fazem ecoar o chilrear das preces.

22. “A ferocidade do jagunço era balanceada pela selvatiqueza da terra” (CUNHA, 1973, p. 317).

À entrada do verão, os doentes e feridos da expedição Artur Oscar-Savaget retiravam-se penosamente para Monte Santo, alquebrados e famintos. Alguns, premidos pela fome, esqueciam-se do perigo das tocaias e embrenhavam-se na caatinga à cata dos últimos tubérculos, cladódios dos cactos e frutos das árvores desfolhadas – e feriam-se. A terra está sempre presente, aliada do sertanejo, inimiga do soldado, acompanhando a guerra.

23. “Pai! Quero escangalhar a matadeira!” (CUNHA, 1973, p. 326). Trata-se do canhão Withworth, que já vomitara muitos projéteis sobre Canudos.

O filho mais velho do jagunço Macambira, obtido o consentimento do pai, acom-panhado de onze companheiros, deslizou pela caatinga para realizar a façanha. Batem no monstro com ferros, despertando o exército que sesteava. Num instante, os invasores são atacados por espingardas e sabres. Salva-se apenas um, que retorna a Canudos baleado e chamuscado.

24. “O que era preciso combater a todo o transe e vencer não era o jagunço, era o deserto” (CUNHA, 1973, p. 333).

Estilisticamente, o paradoxo impacta e faz a devida preparação para o que segue: o exército, agora com 5.000 soldados, necessitava víveres para robustecer-se. E por isso - outro paradoxo - “o Marechal Bittencourt20, [...] – impassível dentro da impaciência geral – organizava comboios e comprava muares...” (p. 334). De sorte que – ironia - ...

25. “Mil burros mansos valiam na emergência por dez mil heróis” – e “o mais caluniado dos animais ia assentar, dominadoramente, as patas entaloadas em cima de uma crise, e esmagá-la...” (CUNHA, 1973, p. 334). Dispensam-se comentários.

26. “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada” (CUNHA, 1973, p. 367), porque os jagunços feitos prisioneiros, no espernear da insurreição, eram sumariamente degolados, depois de recusarem-se a dar um “viva” à República.

27. Os últimos defensores de Canudos “eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados” (CUNHA, 1973, p. 392).

28. “É que ainda não existe um Maudsley21 para as loucuras e os crimes das nacionalidades” (CUNHA, 1973, p. 393).

Fecha-se o ciclo que se abrira na Nota Preliminar:

20 Ministro da Guerra, comandante em chefe das últimas tropas enviadas a Canudos; Euclides da Cunha, encarregado da reportagem, fazia parte de seu estado-maior.21 Henry Maudsley (1835-1918) foi um psiquiatra inglês, professor de Medicina Legal em Londres. Escreveu inúmeras obras, dentre as quaisO crime e a loucura, muito conhecida.

“Aquela campanha lembra um refluxo para o passado” (CUNHA, 1973, p. 30), porque a população sertaneja, vítima de isolamento geográfico e cultural, vivia como nossos antepassados do século XVI.

“E foi, na significação integral da palavra, um crime” (p. 30), porque, ao invés de ações integradoras e civilizatórias, os sertanejos foram dizimados até o último homem.

“Denunciemo-lo” (p. 30). Cada página do livro é uma denúncia. E um alerta para as gerações futuras, para que se evitem catástrofes semelhantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCUNHA, Euclides da. Obra completa, v. II. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar,

1995. CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Cultrix, 1973.GALVÃO, Walnice Nogueira; GALOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da

Cunha. São Paulo: Edusp, 1997.

REFERÊNCIAS WEBGRÁFICAShttps://pt.wikipedia.org/wiki/J%27accusehttps://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dreyfushttps://www.infopedia.pthttps://pt.m.wikipedia.orghttp://www.armasbrasil.com/SecXIX/declinio/ArmasFogo/comblain.htm).https://www.dicionarioinformal.com.br/coreuta/

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EUCLIDES DA CUNHA: UM GRANDE DEFENSOR DO MEIO AMBIENTE

Rosângela Aparecida Gomes [email protected]

RESUMO: Elaborado a partir de criteriosa revisão bibliográfica, este artigo tem como objetivo principal ratificar que Eu-clides da Cunha foi um grande defensor do meio ambiente. Focalizando em suas obras regiões tidas como pouco propícias ao homem como o sertão baiano e a selva amazônica, Euclides da Cunha descreveu com fidelidade a paisagem a ele apre-sentada, expressando uma mistura de terror e êxtase, desilusão e deslumbramento, observando atentamente todos os fatos e os detalhes do ambiente que o cercava. Euclides foi precursor da ecologia e grande defensor da natureza, e sendo, muito provavelmente, um dos primeiros escritores a discorrer sobre as catástrofes naturais e de como a natureza é tratada pelo ser humano e, já naquela época, mostrava-se contrário à devastação do meio ambiente. E foi assim que, sempre observando atentamente os fatos e o ambiente à sua volta, Euclides da Cunha deixou sua valiosa contribuição à humanidade, construída pelo seu pensamento e pelos caminhos que trilhou.Palavras-chave: Euclides da Cunha; História; Meio Ambiente.

ABSTRACT: Elaborated from a careful bibliographical review, this article has as main objective to ratify that Euclides da Cunha was a great defender of the environment. Focusing on his works, which were considered to be less propitious to man, such as the bahian backlands and the Amazon jungle, Euclides da Cunha faithfully described the landscape presented to him, expressing a mixture of terror and ecstasy, disappointment and wonder, observing all the facts and the details of the surrounding environment. Euclides was a forerunner of ecology and a great defender of nature, and was probably one of the first writers to talk about natural disasters and how nature is treated by the human being and, at that time, was against the devastation of nature. environment. And it was thus that, always observing carefully the facts and the environment around him, Euclides da Cunha left his valuable contribution to the humanity, constructed by his thought and the paths that he walked.Keywords: Euclides da Cunha; History; Environment.

O meio ambiente, na definição de Pinheiro e Monteiro (1992), trata-se do conjunto de elementos favoráveis ou desfavoráveis que envolvem determinado ser vivo, como luz, calor, ventos, chuvas, condições relativas ao solo e a presenta de outros seres vivos. E, como frisam esses autores, o homem tem se preocupado cada vez mais com o meio ambiente e sua sobrevivência na Terra.

No princípio da era industrial, pensava-se no desenvolvimento tecnológico como o caminho para o bem-estar do ser humano, época em que a abundância de recursos oferecidos pelo meio ambiente favorecia a ideia de que estes eram inesgotáveis. Todavia, o próprio desenvolvimento tecnológico revelou ao homem a verdade incontestável de que os recursos disponíveis são, em sua maioria, finitos (PINHEIRO e MONTEIRO, 1992).

Sabe-se, hoje, que a ação do homem e sua complexidade de relações sociais, técnicas, culturais, morais, econômicas e políticas, interferem direta ou indireta-mente no meio ambiente, sinalizando o grau de fragilidade dos ecossistemas, dos quais cada comunidade depende e neles interfere, apontando a necessidade de conhecimento de suas causas e consequências para a implementação de ações que revertam o quadro de poluição e impactos ambientais.

Nos dias atuais, o planeta Terra tem enfrentado sinais de transição, visto que o homem tem repensado os conceitos sobre a natureza, envolvendo uma consci-entização da humanidade que tem resultado em novos paradigmas, estabelecendo novos comportamentos e demandando novas providências quanto aos recursos do meio ambiente (ALVES, 2016). É dentro dessa conscientização que os seres vivos precisam encontrar no meio ambiente, para sua sobrevivência, condições de satisfazer suas necessidades básicas de nutrição, reprodução e proteção.

Contribuindo para essa reflexão, Viana (2006) ensina que a expressão meio

ambiente não se reduz ao meio natural ou físico, mas percorre por todas as demais esferas que venham a ser objeto de relação entre o homem e seu meio.

Sendo assim:

O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreen-dendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arquitetônico. O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas (SILVA apud VIANA, 2006, p. 21).

Ressalte-se que a relação entre meio ambiente e educação tem sido assunto recorrente de análises e reflexões, questionando-se e problematizando-se qual a contribuição do processo educativo na busca de respostas aos diversos e constan-tes problemas socioambientais.

Na atualidade, novas formas de exercício da cidadania integram e avaliam a antiga cidadania e, também, acarretam a formação de um novo educador que atue a partir de novas premissas. Como resultado disso, as ações e discussões correntes que envolvem a educação ambiental tomaram uma perspectiva ética de valoração e respeito ao meio ambiente que contribuem para a construção da cidadania (HENRIQUES et al., 2007).

Prado (2000) garante que o sentido de trabalhar por um meio ambiente sadio assenta-se num fazer diário, no âmbito de uma relação pessoal e grupal e, por essa razão, a tomada de consciência ambiental cidadã só pode traduzir-se em ação concreta quando assistida por uma população organizada e preparada para conhecer, entender e exigir seus direitos e exercer suas responsabilidades.

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Dentro desse entendimento, e realizando uma análise das obras de Euclides da Cunha, constata-se que ele foi precursor da ecologia e grande defensor da natureza.

Refletindo sobre a ecopolítica de Euclides da Cunha, Rosso (2009) afirma que ele, dentro de uma ótica substancialmente voltada para o interior do país foi, seguramente, o primeiro intelectual brasileiro a cultivar e externar preocupações com o meio ambiente fazendo, inclusive, da ecologia um tema político, de propos-tas de ação política.

Frente à sua firme formação, é sob a perspectiva positivista que Euclides reg-istra, observa e critica os choques entre uma civilização com a natureza do país que, na opinião de Rosso (2009) constituem:

Críticas essencialmente liberais, que essencialmente lançavam as bases, inéditas no país, avançadas ao extremo em seu tempo e antecipadoras dos conceitos e elementos do desenvolvimento sustentável, na permanente preocupação euclidiana no conciliar progresso com a preservação ambiental (ROSSO, 2009, p. 30).

Em 1884, quando então contava com dezoito anos de idade, Euclides da Cunha, conforme relatos de Rosso (2009), escrevia um protesto em seu primeiro artigo “Em viagem”, publicado em um pequeno jornal dos alunos do Colégio Aquino, no Rio de Janeiro, revelando seu interesse e sua admiração pela natureza, o que permearia toda sua obra.

Nesse artigo, Euclides descrevia as impressões e maravilhas do cenário natural que se apresentavam durante viagem de bonde para o colégio onde estudava. Nele, o escritor discorria sobre as matas e as florestas da cidade do Rio de Janeiro, e apontava suas críticas ao progresso representado pela estrada de ferro que degradava a natureza.

Em suas palavras: Ah! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador, mas clamarei

sempre e sempre: - o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá! E a humanidade, não será dos céus que há de partir o grande "Basta" (botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa. [...] Tudo isto me revolta, me revolta vendo a cidade dominar a floresta, a sarjeta dominar a flor! (CUNHA apud ROSSO, 2009, p. 32).

O interesse pela natureza tornou-se mais intenso a partir de sua mudança para a cidade de Campanha, no interior de Minas Gerais. Nesta fase, já Engenheiro Mil-itar e Oficial do Exército, Euclides observou as características físicas e geográficas da cidade e região e estudou geologia, lendo a obra de Emmanuel Liais (político, botânico, astrônomo e explorador francês que permaneceu muitos anos no Brasil), citado, posteriormente, em “Os Sertões” (VENTURA, 1998).

É nesse contexto que Euclides dirigia-se à paisagem, à natureza, como modo de superar a desilusão com a República e o Exército. Em suas obras, Euclides focou duas regiões consideradas pouco propícias ao homem: o sertão baiano e a selva amazônica.

Nas considerações de Almeida e Castro (2017, p. 02): “Na esteira de diferentes que nela colocaram seus esforços, inclui-se o escritor Euclides da Cunha. O legado euclidiano em sua faceta amazônica é um vasto campo de investigações e estudos”.

Também Pereira apud Almeida e Castro (2017), em relevante trabalho sobre a Amazônia e estudo sobre Euclides da Cunha, assim expressa:

A obra de Euclides da Cunha, entre as representações geográficas da Amazônia através do ensaísmo, se tornou um marco para outras obras, um clássico e uma

referência obrigatória. Já os títulos das obras em que foram publicados seus ensaios a respeito da Amazônia indicam as representações espaço-temporais sobre a região que ainda navegam em mentes, livros, projeções e intervenções políticas sobre ela. Expressam o imaginário moderno/colonial em relação ao espaço amazônico (PEREIRA apud ALMEIDA e CASTRO 2017, p. 04).

Almeida e Castro (2017) reforçam que no desenvolvimento da discussão sobre a preservação da Amazônia é possível verificar nos escritos de Euclides da Cunha sinais de alguns problemas de ordem ambiental já sofridos pela floresta no início do século XX, como é o caso do desmatamento.

Os textos de Euclides sobre a Amazônia apresentam denúncias sociais das condições de vida dos migrantes nordestinos nos seringais. Nesses textos, de acordo com Guillen (2000), parte-se do binômio natureza e cultura para esboçar a forma que, na visão de Euclides, tem a vida social na floresta, principalmente a vida no seringal. E assim, oscilando entre os encantos que a natureza oferece e o horror das sociedades que nelas se fixam, Euclides acredita que o homem se animaliza, não conseguindo produzir uma cultura que se imponha ao ambiente (GUILLEN, 2000).

Euclides descreveu, tanto sobre o sertão baiano como sobre a selva amazônica, uma paisagem maravilhosa, expressando uma mistura de terror e êxtase, desilusão e deslumbramento (VENTURA, 1998).

Na obra “Os Sertões”, o autor descreveu a região de Canudos, no vale do rio Vaza-Barris, no nordeste da Bahia, numa concepção naturalista, fundamentada no historiador francês Hippolyte Taine que, segundo Ventura (1998), lhe forneceu a base científica para buscar correspondências poéticas entre os fatos narrados e a paisagem que o cercava.

Considerando as ideias de Taine, para quem a história de um povo é de-terminada por três fatores: o meio, ou o ambiente físico e geográfico; a raça, responsável pelas disposições inatas e hereditárias; e o momento, resultante das duas primeiras causas, Euclides dividiu “Os Sertões” em três partes: “A terra”, “O Homem” e “A luta”.

Já naquela época Euclides da Cunha mostrava-se contrário à devastação do meio ambiente gerada pelas queimadas que o colonizador aprendeu com os indígenas, assumindo, dessa forma, o papel de “fazedor de desertos”. Em seu entendimento:

A natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os. Desdo-bram-se, lacunas inexplicáveis, às vezes sob as linhas astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida. Expressos no tipo clássico do Saara – que é um termo genérico da região maninha dilatada do Atlântico ao Índico, entrando pelo Egito e pela Síria, assumindo todos os aspectos da enorme depressão africana ao plateau arábico ardentíssimo de Nedjed e avançando daí para as areias dos bejabans, na Pérsia – são tão ilógicos que o maior dos naturalistas lobrigou a gênese daquele na ação tumultuária de um cataclismo, uma irrupção do Atlântico, precipitando-se, águas revoltas, num irresistível remoinhar de correntes, sobre o norte da África e desnudando-a furiosamente (CUNHA, 1979, p. 46).

Na opinião de Corrêa (2009, p. 01), o pioneirismo do Brasil no que se refere a reportagem ambiental acabou a tiros, no subúrbio carioca da Piedade: “Cham-ava-se Euclides da Cunha, tinha 43 anos, era engenheiro de ferrovias e, autor consagrado. [...] Deixou órfãos os escritores de sua geração”.

A essa compreensão, Corrêa (2009) acrescenta que:Nem o mais devoto dos imitadores seguiu a fórmula que Euclides da Cunha

deixara pronta, um manual completo, e até hoje insuperado, não só de jornalismo,

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como de jornalismo ambiental e investigativo. Como tal, “Os Sertões” deveria constar do currículo obrigatório de todo curso de comunicação. Ensinaria aos bra-sileiros, antes de mais nada, que jornalismo ambiental não é, como parece, aquilo que se publica uma vez por semana sobre o estado do planeta, geralmente como um cantinho do meio ambiente na seção de ciência. Euclides da Cunha praticava o jornalismo ambiental até no campo de batalha, por nunca perder de vista, mesmo em um lugar como Canudos, “esquecido por 400 anos”, os sinais históricos de conflito entre a civilização brasileira e a natureza (CORRÊA, 2009, p. 01).

Raros são os escritores brasileiros que permanecem tão atuais como Euclides da Cunha. Na opinião de Rolando Morel Pinto apud Vanuchi (1980, p. 01), “Os Sertões” “abre o ciclo da nossa maturidade cultural, iniciando, em nível superior, o processo de autoanálise de nossa formação”. Euclides é um pioneiro, um corajoso. Tratou de temas que autores brasileiros refugavam e, agindo assim, abriu caminhos, descobriu fonte inesgotável que até os dias de hoje é seguida, tanto no âmbito do regionalismo quanto no enfoque social.

Fato é que:

Muitas injustiças, situações, desvios, fatos que Euclides profligou, ainda hoje existem e, não obstante, poucas vezes se alteiam contra eles. Mas, precisamente porque o painel geral pouco se alterou é que Euclides da Cunha ainda perman-ece e sempre atual. Hoje qualquer criança discorre sobre ecologia, faz críticas à poluição. Não há quem negue a necessidade de se preservar o meio ambiente. No passado que mal havia em por fogo àsmatas? Quem temia pelo “surgimento” do deserto? Que escritor se colocou com um plano nacional e eficiente contra as secas? E com a geografia que prefigura a História? Que governo se interessou em reter o nordestino na sua gleba, evitando as incessantes migrações? Quem sequer percebeu que, do jeito que as coisas iam, o nosso índio acabaria por se extinguir? (VANUCHI, 1980, p. 01).

Todos esses temas e preocupações foram de interesse e fizeram parte da denúncia de Euclides da Cunha.

É assim que, sempre observando atentamente os fatos e o ambiente à sua volta, Euclides da Cunha deixou sua valiosa contribuição à humanidade, construída pelo seu pensamento e pelos caminhos que trilhou.

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, L. F. R.; CASTRO, J. G. O. Euclides da Cunha e a experiência amazônica: impressões gerais da hileia maravilhosa. Artigo publicado em 2017. Disponível em <http://periodicos.ufam.edu.br/educamazonia/article/view/4583/3711>. Acesso em 10 Jun.

2019.ALVES, L. Impactos ambientais. Artigo publicado em 2016. Disponível em

<https://brasilescola.uol.com.br/quimica/impactos-ambientais.htm>.Acesso em 10 Jun. 2019.

CORRÊA, M. S. Euclides da Cunha, o jornalista ambiental. Artigo publicado em 2009. Disponível em<https://emais.estadao.com.br/noticias/geral,eu-clides-da-cunha-o-jornalista ambiental,409938>. Acesso em 10 Jun. 2019.

CUNHA, E. Os sertões: campanha de canudos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.GUILLEN, I. C. M. Euclides da Cunha para se pensar Amazônia. Artigo publica-

do em 2000. Disponível em < http://www.comciencia.br/reportagens/amazonia/amaz9.htm >. Acesso

em 10 Jun. 2019.HENRIQUES, R. et al. Educação ambiental: aprendizes de sustentabilidade.

Brasília: MEC,2007.PINHEIRO, A. C. F. B.; MONTEIRO, A. L. F. B. P. A. Ciências do ambiente: ecologia,

poluição e impacto ambiental. São Paulo: Makron, 1992.PRADO, F. G. C. P. Ecopedagogia e cidadania planetária. 2. ed. São Paulo: Cortez,

2000.ROSSO, M. Escritos de Euclides da Cunha: política, ecopolítica e etnopolítica. Rio

de Janeiro: Loyola, 2009.VANUCHI, I. Atualidade de “Os Sertões”. In: Gazeta do Rio Pardo – Suplementoeuclidiano, agosto, 1980.VENTURA, R. Visões do deserto: selva e sertão em Euclides da Cunha. In: Revista

História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.VIANNA, J. R. A. Responsabilidade civil por danos ao meio ambiente. Curitiba:

Juruá, 2006.

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A AMAZÔNIA “À MARGEM DA HISTÓRIA”: O DISCURSO EUCLIDIANO SOBRE O“PARAÍSO PERDIDO” NA ENCRUZILHADA DA MODERNIDADE

Ana Beatriz Feltran Maia - Doutora em Educação (Universidade de São Paulo)[email protected]

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apresentar algumas reflexões acerca da construção do discurso euclidiano sobre a Amazônia, com base teórico metodológica nos Estudos Culturais, na História Cultural e História dos Intelectuais. De acordo com nossa compreensão, Euclides da Cunha defendeu a incorporação da Amazônia à história nacional, com o intuito de integrá-la à civilização, conforme o repertório mental apreendido em sua formação militar e nos debates intelec-tuais da época. Além disso, advogou pelo sertanejo seringueiro como o verdadeiro brasileiro capaz de integrar a região à modernidade. Com uso de metáforas como “paraíso perdido” e “inferno verde”, Euclides da Cunha, foi além dos discursos mitológicos-religiosos e científicos estrangeiros sobre a amazônica e seus habitantes, colocando-a como questão para o desenvolvimento nacional nos círculos intelectuais da Primeira República.Palavras-chave: Euclides da Cunha; Nacionalização; Amazônia; Modernidade; Intelectual.

ABSTRACT: The present article aims to present some reflections about the construction of the Euclidean discourse on the Amazon, based on methodological theory in Cultural Studies, CulturalHistory and History of Intellectuals. According to our understanding, Euclides da Cunha defended the incorporation of the Amazon to the national history, with the intention ofintegrating it to the , according to the mental repertoire learned in its military formation and in the intellectual debates of the time. In addition, he advocated the man of the backlands and rubber tapper as the true Brazilian capable of integrating the region with modernity. Using metaphors such as "paradise lost" and "green hell," Euclides da Cunha went beyond the foreign mythological-religious and scientific discourses on the Amazon and its in-habitants, placing it as a question for national development in the intellectual circles of the First Republic.Keywords: Euclides da Cunha; Nationalization; Amazon; Modernity; Intellectual.

Euclides da Cunha (1866-1909), em 1904, partiu em viagem à Amazônia comis-sionado como chefe da expedição responsável pela descrição fisiográfica do Alto Purus, nas divisas do território boliviano, peruano e brasileiro, sob os comandos do Barão de Rio Branco, ministro das Relações Exteriores. Tal empreitada tinha como principal motivo a demarcação dos limites da Amazônia brasileira, ameaça por conflitos internacionais que envolviam usos de seus recursos naturais, como o látex extraído das seringueiras, em pleno auge do ciclo da borracha.

Assumindo o posto dado pelo governo como engenheiro, Euclides da Cunha leva consigo as marcam o intelectual de seu tempo, além de conhecimentos técnicos necessários à missão. Conforme pontuou Gramsci (2000), o século XIX propiciou condições materiais de organização cultural necessárias para que houvesse a formação de uma identidade dos intelectuais como protagonistas públicos. Com a presença de jornais e revistas em ampla circulação foi possível aos intelectuais disseminar suas ideias e mostrar sua capacidade de atuação sobre questões sociais. Criou-se, assim, a noção de engajamento político, de missão e de compromisso civil dos intelectuais perante a sociedade, por meio do surgimento da esfera pública de debates que subsidiava a presença protagonista desses agentes na vida política.

Analisando o conceito de intelectual gramsciano, Carlos Eduardo Vieira (2008, p.74) pondera que os intelectuais são considerados como agentes políticos deter-minantes, isto é, estrategistas responsáveis pelas funções de domínio e de direção cultural, atuando não somente no cenário político mas igualmente na ocupação de púlpitos socialmente valorizados na imprensa, no Estado, nas instituições de ensino e nos círculos de cultura.

No momento em que Euclides da Cunha embarcou para a Amazônia, Os Sertões, publicado em 1902, era laureado pelos críticos literários como obra que unia ciência e arte, o que garantiu ao autor a indicação, no ano seguinte, à cadeira

na Academia Brasileira de Letrase ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Além de articulista no jornal O Estado de S. Paulo, Euclides da Cunha havia alçado ao posto de literato, pertencendo às principais instituições de produção intelectual sobre os temas da brasilidade e da modernidade que despontavam no cenário nacional. Entre os percalços da difícil conciliação entre a “vida superior de pensamento e de arte e a labuta diária” de engenheiro à mercê de contratos temporários e mudanças constantes, Cunha valeu-se de sua rede de sociabilidades intelectuais para receber a nomeação como chefe da comissão de reconhecimento do Alto Purus, atividade que exerceu por dois anos e que lhe renderia material para novas produções literárias em jornais sobre as impressões da Amazônia, com o intuito de escrever sua segunda grande obra, inacabada pela morte prematura (VENÂNCIO FILHO, 1997).

Quando pisou em solo amazônico, Cunha já havia lido diversas crônicas de viajantes e estudiosos que retrataram a Amazônia em grande parte como paraíso exuberante. No entanto, o olhar euclidiano, ao chocar-se com a mata e o rio foi, conforme a tese de Guimarães (2006), uma visão de desencantamento. A imagem da Amazônia mitológica-religiosa que povoava o imaginário interna-cional sobre o lugar desde a chegada dos primeiros colonizadores e missionários espanhóis e portugueses no século XVI ou mesmo da Amazônia como fonte ines-gotável para estudos naturalistas inaugurada como a tradição científica do século XVIII e XIX será matizada por uma nova forma de compreensão da realidade no discurso euclidiano centrado na figura do homem, que está submetido a este meio e que vive à parte da História, entre o paraíso e o inferno verde. Mas que homem é esse? E qual é a compreensão de História que está no repertório mental do autor? Como Euclides da Cunha irá conciliar este estranhamento e esta contradição entre discursos e as sobre a Amazônia com sua experiência pessoal

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e intelectual?No argumento de Guimarães (2006, p.7), o ponto crucial para entender o

discurso euclidiano sobre a região amazônica é analisar sua obra por meio da chave da “invenção de um olhar efetivamente nacional para a Amazônia, naquele momento de inauguração da República”. Diferente do olhar estrangeiro que havia gestado os discursos sobre a Amazônia que antecederam o discurso euclidiano, o relato de Euclides da Cunha, um brasileiro, engenheiro a serviço do Estado, literato e intelectual em ascensão nos círculos culturais e governamentais forjou uma out-ra forma de enxergar a Amazônia. Território para ser demarcado e nacionalizado, Cunha voltou-se para desnudar o homem que ali vivia, não o indígena selvagem e nem o europeizado da Paris dos trópicos (Manaus), mas aquele que povoava e manufaturava a mata, o sertanejo na figura do seringueiro. Este homem seria aquele que em harmonia com a natureza, estaria preparado para civilizá-la -- era um verdadeiro brasileiro.

E por que esse homem e essa mata estavam à margem da História? Amadure-cido pela vivência em Canudos e pelas reflexões sobre a dualidade litoral/sertão apresentada em Os Sertões, Cunha enxergava naquela realidade a importante missão de realizar a conexão entre os dois brasis e assim retirar esse pedaço de “deserto” verde do afastamento da civilização sem a perda de sua essência. Como jovem militar formado no “tabernáculo da ciência”, a história estava incor-porada às leis naturais, era positiva, levava ao progresso e ao desenvolvimento da Humanidade com o mesmo determinismo do mundo natural. Dentro dessa compreensão, a história nacional era pensada como parte do movimento universal (CASTRO, 1995, p.54) e por isso era preciso nacionalizar a Amazônia e colocá-la nos trilhos da modernidade, para que assim o Brasil alcançasse sua evolução como nação moderna como um todo. Era necessário incorporá-la à História, ao movi-mento da evolução da Humanidade e da nação republicana brasileira, retirando-a do campo do mito paradisíaco e superando seus impasses.

Oscilando e por vezes se confrontando entre o pensamento racional e o literário para sintetizar a complexa realidade amazônica, Euclides da Cunha en-sejou uma linguagem que abarcasse as verdades da ciência e da arte por meio de metáforas. “Tanto no caso dos sertões baianos como no da Amazônia, foi a metáfora que redimiu Euclides, dando vigor à sua escrita e oferecendo a chave de acesso a um mundo inacabado para, de algum modo, compreendê-lo” (GUEDELHA, 2013, p.10). A dicotomia metafórica de “paraíso perdido” e “inferno verde” irão perdurar por décadas no imaginário nacional sobre a Amazônia, convivendo com outras ligadas à busca de utilização do solo para produção agrícola -- “celeiro do mundo” -- ou a posterior, da fase do movimento ambientalista -- “pulmão do mundo” (BUENO, 2019).

O fato é que o pioneirismo de Euclides da Cunha ao retratar a Amazônia repousa sobre a necessidade de compreendê-la como uma questão nacional, envolvendo seu lado não apenas natural mas humano, ligado ao embalo da História. Para além dos sertões baianos estava o mitológico “paraíso perdido”

amazônico, à parte da história da civilização brasileira. Sua missão foi defender a integração da porção amazônica à modernidade por meio do trem da História -- a Transacreana, que ao mesmo tempo traria liberdade e condição ao sertanejo de fugir da escravidão e do abandono, incorporando-o ao projeto civilizatório brasileiro. A repercussão da obra de Euclides foi sua defesa, mesmo após sua morte. Conforme Guimarães (2006) e Bueno (2019), seus escritos tiveram um efeito pedagógico no imaginário sobre a Amazônia, sobre o homem que nela vive e sobre o viver no ambiente amazônico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUENO, Magali F. Interdiscurso e representações sobre a Amazônia. Disponível em:http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal9/Procesosambientales/Usoderecursos/

07.pdf. Acesso em: 10 jun. 2019.CASTRO, Celso. Os militares e a República: um estudo sobre a cultura e a ação

política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. V. II. COUTINHO, Carlos Nelson (ed. e

trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.GUEDELHA, Carlos Antônio Magalhães. A metaforização da Amazônia em textos

de Euclides da Cunha. Tese de Doutorado - Universidade Federal de Santa Catarina,Florianópolis, 2013.GUIMARÃES, Leandro Belinaso. Um olhar nacional sobre a Amazônia: apreen-

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VENÂNCIO FILHO, Francisco. Retrato humano. In: Euclides da Cunha: vida e pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 1997, p. 11-28.

VIEIRA, Carlos Eduardo. Intelligentsia e intelectuais: sentidos, conceitos e possib-ilidades para a História Intelectual. Revista Brasileira de História da Educação, n. 16, p.63-85, jan./abr., 2008.

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DO PENSAMENTO EUCLIDIANO E DA EVOLUÇÃO DA TUTELAJURÍDICO-AMBIENTAL NO BRASIL

Igor Ferreira dos Santos - Especialista em Direito Civil e Processual Civil (UNESA)[email protected]

RESUMO: Este artigo objetiva situar o pensamento ambiental euclidiano na escala evolutiva da proteção ao meio ambiente, abordando o desenvolvimento das teses e impressões que ensejaram a criação da tutela jurídico-ambiental e o suposto pioneirismo de Euclydes da Cunha na discussão das relações entre homem e natureza no Brasil.Palavras-chave: Euclydes da Cunha; direito ambiental.

ABSTRACT: Euclydes da Cunha; direito ambiental.Keywords: Euclydes da Cunha; environmental law.

Ressalvados controversos posicionamentos que relegam a discussão da questão ambiental a um lugar secundário nas pautas de interesse global, quer negando a existência de fenômenos cientificamente comprovados, quer relativizando a importância do engajamento para identificação de remédios às adversidades deles decorrentes, predomina, nas mais diversas áreas, a necessidade de se estabelecer ampla discussão sobre as relações entre o ser humano e os fatores bióticos e abióticos que compõem o meio ambiente, tornando-se ponto nodal para as pro-jeções da própria posteridade humana.

A preocupação é justificável, sobretudo se considerada a recorrência com que alarmes naturais expressivos têm soado ao redor do planeta, indicando a imprescindibilidade da alteração de formas de manipulação dos fatores pelo ser humano. O pensamento consolidado nesse sentido, no entanto, é recente, embora não o seja a relação predatória entre homem e natureza.

Como nos lembra Fabiana Corrêa (2012, p. 23), o pensamento ambiental, sob a ótica de expressiva parcela da comunidade acadêmica, se consolidou no início da década de 50, tendo como fatos fundamentais de seu assentamento a criação da União Internacional para a Proteção da Natureza (UIPN), em 1948, e a realização da Conferência Científica das Nações Unidas Sobre a Conservação e Utilização dos Recursos, em 1949.

Adriano Fabri (2014, p. 02), por sua vez, destaca o papel decisivo das organi-zações não governamentais, criadas na década de 60, na difusão das discussões ambientais e na mobilização da sociedade civil e artística no que tange à problematização daquilo que chama de crise civilizatória. Pontua, ademais, de que forma essa atuação em expansão teria auxiliado na tomada de decisões mais coerentes com o pensamento ambiental por parte dos poderes constituídos, a exemplo da proibição de utilização de diclorodifeniltricloroetano nos Estados Unidos. É nesse período, também, que surgem as primeiras menções diretas ao meio ambiente enquanto objeto de proteção jurídica.

Pioneiramente, segundo Roberto Macedo (2014), teria o artigo 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, colocado a necessidade de proteção do meio ambiente como um fator essencial para a construção da saúde humana.

Trata-se, em verdade, de menção indireta, mas que abre portas para o reconhecimento, mais tardiamente, na Declaração de Estocolmo (1972), do meio ambiente como direito fundamental do ser humano, a ser preservado para as gerações vindouras.

A Constituição brasileira de 1988, consagra, igualmente, no Artigo 225, o meio ambiente bem como de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, imputando ao Estado e à coletividade a obrigação por sua preservação.

Reconhece-o, pois, como um direito da solidariedade, ou dos povos, ou, ainda, direito fundamental de terceira geração, pressuposto para o exercício de todos os demais. Não por outra razão é que a Carta Política sujeita os praticantes de lesão a este bem jurídico a punições penais e administrativas, sem prejuízo da responsabilidade pela reparação do dano causado.

O avanço acelerado do pensamento jurídico-ambiental na segunda metade do século XX, fortemente influenciado pelo agravamento das respostas do planeta à atuação desregulada do homem, não pode, contudo, ofuscar as importantes anotações que o antecederam e, embora em escala menor e difusa, criaram as bases para seu real desenvolvimento.

Muito antes de a comunidade acadêmica assentir quanto à relevância da discussão ambiental, e bem anteriormente à criação de um consenso internacio-nal para a proteção legal do meio ambiente, alguns pensadores e estudiosos já levantavam, ainda que sem amparo geral, as primeiras impressões sobre o que, em sua visão precoce, se tornaria um dos principais desafios das sociedades contemporâneas à sua própria expansão. Dentre estes indivíduos, encontra-se Euclydes da Cunha.

José Carlos Barbieri (2004, p. 937) esclarece, sobre isso, que, apesar de parcela abastada da sociedade contemporânea - onde se incluem os empresários – tachar de “modismo dos países ricos” a implementação de práticas ambientalmente adequadas, supostamente sugeridas sem qualquer legitimidade pelos executores de um sistema de imperialismo de responsável pelo agravamento da situação de crise ambiental, já haviam no Brasil colonial pensadores preocupados com a questão ambiental. Cita, entre eles, José Bonifácio (1763- 1838), Joaquim Nabuco (1849-1910), André Rebouças (1838-1898), Alberto Torres (1865- 1917) e Euclydes da Cunha (1866-1909), em sua visão os precursores do ambientalismo socioambiental.

Corrêa (2012, p. 23) corrobora o entendimento. Salienta que a gênese do pensamento ambiental brasileiro teria decorrido da formação, na Universidade de Coimbra, de um grupo de intelectuais nascidos na então colônia e fortemente influenciados pela naturalista italiano Domenico Vandelli (1735-1816). Elenca, ade-mais, a obra de Baltasar da Silva Lisboa, “Discurso histórico, político e econômico dos progressos e estado atual da filosofia natural portuguesa, acompanhado de algumas reflexões sobre o estado do Brasil” (1786) como marco fundador dessa linha de pensamento, dirigido, em seu germe, a contestar de forma intrínseca a estrutura social, pautada em um modelo escravista, e seus impactos no meio ambiente.

Mais uma vez, invoca-se Barbieri (2004, p. 937) para lembrar que estes pensa-dores voltavam sua atenção “para o uso perdulário dos recursos, sendo que para muitos suas críticas se estendiam à escravidão”. Fixavam, pois, suas preocupações

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no rompimento da estrutura vigente, especialmente dirigindo-as ao âmbito rural, onde se desenvolvia com maior expressividade quantitativa a prática escravista e o agressivo modelo de exploração da terra. Nesse sentido, é possível discutir, com o máximo respeito, as conclusões de Mauro Rosso (2009, p. 37) ao elencar Euclydes da Cunha como “o primeiro intelectual brasileiro a cultivar e externar preocupações com o meio ambiente, inclusive fazendo da ecologia um tema político, de propostas de ação política”.

Como se viu, a localização da ecologia como mobilizador e, ao mesmo tempo, dependente do rompimento das estruturas sociopolíticas brasileiras já havia sido providenciada por importantes teóricos antes mesmo do nascimento do consagra-do autor de “Os Sertões”. No entanto, seu pioneirismo, conforme, mais uma vez, preciosa observação da professora Fabiana Corrêa, deve ser reconhecido no objeto de aplicação da ecologia como instrumento político, haja vista que se até o ad-vento da República as preocupações socioambientais eram dirigidas exclusivamente ao ambiente agrário, é em Euclydes da Cunha que se alargam os caminhos para a aplicação desta, até então, visionária interpretação da realidade natural, para o restante do país, a exemplo das cidades e dos sertões.

É no artigo “Em viagem”, amplamente reconhecido como um dos primeiros trabalhos de Euclydes, que este, ainda jovem, dirigindo-se a seus colegas do Colégio Aquino, contrapõe a implementação do desenvolvimento - representada pela expansão da linha férrea no Rio de Janeiro – à preservação ambiental, num evidente anúncio do conflito em que se cimentaria sua obra mais madura, a disputa entre civilização e barbárie. Além disso, o estudante – como nunca deixaria de ser – Euclydes enreda em seu poético artigo o pensamento, ainda não assim nominado, do desenvolvimento sustentável, ao alertar que o próprio homem é sujeito responsável pela consumação de sua existência, já que não será dos céus que há de partir o grande "Basta" (botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa a que chamam vida; mas sim de Londres; não finar-se-á o mundo ao rolar a última lágrima e sim ao queimar-se o último pedaço de carvão de pedra... (CUNHA, 1884)

Euclydes foi igualmente responsável por apresentar, pensador multidisciplinar que era, soluções mais técnicas e concretas à minimização dos graves danos causados pelo sistema exploratório e a sua própria reforma. Como relembra o próprio autor, se o próprio homem produziu o deserto “pode extingui-lo ainda, corrigindo o passado” (CUNHA, 2010, p. 92).

Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo (2012, p. 102) assinala que, ao analisar a questão das secas no sertão baiano, “a solução definitiva, científico-tec-nológica, a seu ver [de Euclydes], é a açudagem, a exemplo dos que os romanos fizeram na Tunísia”, o que, em tese, se encontraria de acordo com o moderno uso humanitário da tecnologia. A autora reconhece que a percepção de Euclydes, naquele momento, apontava para a busca de soluções institucionais, alterando o modelo de desenvolvimento vigente e ofertando sustentabilidade ao planeta.

Não obstante, talvez a mais crucial e adiantada anotação de Euclydes quanto à questão ambiental se espraia por área de conhecimento em que, usualmente, não alocam o pensamento euclidiano: o Direito.

Consídera (2017, p. 3345), ao comentar as impressões euclidianas sobre a extração mineral e a exploração da madeira na Amazônia, destaca que o autor “já intuía tratar-se de crime ambiental e de contrabando de espécies”, conceitos jurídicos que, malgrado possuíssem definição restritiva no período em questão, somente foram ressignificados no final do século XX para alcançar a máxima efetividade da proteção ao meio ambiente.

É importante, portanto, situar a colocação de Euclydes dentro da sistemática jurídica brasileira a fim de validar, como sugerido, o pioneirismo de sua proposta.

A evolução do pensamento jurídico-ambiental brasileiro

Lemos e Bizawu (2014, p.04) defendem que a evolução do Direito Ambiental no Brasil pode ser dividida em três fases: a primeira se estende do início do processo de colonização, em 1500, até o início do período imperial; em sequên-cia, a segunda fase se estende até a Proclamação da República, e a terceira se inaugura naquele 15 de novembro, protraindo-se no tempo até a atualidade e se subdividindo em três outras – exploração desregrada, fragmentária e holística.

À época do descobrimento – termo que, embora contestado por alguns historiadores, é usualmente utilizado para nominar a chegada dos portugueses a terras brasileiras – vigoravam em Portugal as Ordenações Afonsinas (1446) que, conforme lição de Wainer (1993, p. 192), tratava-se de código legal extremamente evoluído na seara ambiental. Invoca a autora, para sustentar sua afirmação artigos que proibiam, por exemplo, o tráfego de alimentos para fora do reino e equiparavam o furto de aves às demais espécies de furto, arbitrando indenização a ser paga à vítima pela subtração de acordo com o tipo de ave levada pelo infrator; soma-se a eles a vedação ao corte de árvores frutíferas, tipificando como crime de injúria ao rei.

Fica claro, contudo, que a intenção legislativa envolvida em todas as prescrições mencionadas não guarda relação com a tutela direta do meio ambiente, nem mesmo com a pretensão de protegê-lo como bem comum, necessário ao equilíbrio das vindouras gerações.

Pelo contrário. Ao proibir o furto de pássaros, arbitrando indenização de acordo com a espécie do animal subtraído, pretende-se proteger o patrimônio daqueles que o detém, não causando surpresa, pois, sua assimilação às demais modalidades de furto e a repetição de tratamento dos animais enquanto coisa, entendimento que somente atualmente vem sendo objeto de transformação. De igual forma, a proibição de transpor alimentos para além das fronteiras do reino se destinava a suprir imediata escassez de alimentos, sem qualquer impacto sobre qualquer tipo de uso desmesurado da propriedade, que à época não carecia de obedecer, sequer, às funções sociais.

Quanto ao corte de árvores frutíferas, Lemos e Bizawu (2014, p. 07) defendem que “a preocupação do reino estava relacionada às madeiras e aos frutos que delas brotavam. Não havia preocupação de conservação, haja vista que o interesse buscado era econômico”, podendo a ele se acrescentar a necessidade de regula-mentar o uso da madeira, diante de seu emprego na construção de navios neste período das Grandes Navegações.

Não se pode negar que tais medidas, inéditas e evoluídas para a época em que se implementaram, impunham ganhos secundários em relação à proteção ambien-tal, ainda que o bem jurídico primário a ser protegido não fosse o meio ambiente.

Tal sistemática foi repetida nas Ordenações Manuelinas (1521) em diversos aspectos, como na vedação à destruição de colmeias, em razão do valor econômico do mel, por exemplo. O novo diploma legal, todavia, trouxe avanço ao proibir a utilização de certos tipos de instrumentos na caça de animais, buscando afastar o sofrimento impingido por muitos deles.

Já com o advento das Ordenações Filipinas (1603), as previsões das ordenações anteriores foram mantidas, a elas se acrescendo a previsão de multas e penas àqueles cujos animais danificassem pomares de outrem e também a proibição de lançamento, em rios e lagoas, de materiais que pudessem matar os peixes, produto econômico indispensável à estabilidade do reino.

Como reconhece a própria Wainer (1993, p. 198), a despeito das diversas regras – que, como visto, não se protegia diretamente a biota, mas oferecia mecanismos secundários para tanto - “não estavam enraizados o conceito e o valor de bem público no espírito e na vida prática do homem que nas terras

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brasileiras se estabeleciam”.O Regimento do Pau Brasil, de 1605, primeira lei “protecionista” florestal bra-

sileira, tampouco demonstrou preocupações reais com o meio ambiente, sujeitando a sanção os que cortassem madeira sem licença real apenas como forma de fiscalizar os recolhimentos dos tributos referentes a este produto que, em especial, despertou interesse dos portugueses em terras brasileiras.

Sobre o tema, faz Juraci Perez Magalhães importante e oportuna digressão histórica:

Tanto no Brasil como nos demais países do mundo, a situação era a mesma. Protegiam-se os recursos naturais por motivos de ordem econômica. A pressão sobre as florestas era grande em razão do alto consumo de madeira como com-bustível e outras utilidades. Isto vinha provocando escassez e fazendo os preços subirem verticalmente. Era preciso, pois, fazer alguma coisa. Por essa razão, os países europeus passaram a editar medidas protetoras. (MAGALHÃES, 2002, p. 25)

Os holandeses, durante a ocupação no Nordeste brasileiro, repetiram o processo (WAINER, 1993, p. 200): vedaram o abate do cajueiro, a poluição das águas e a pesca e a caça cruéis, além de imporem a utilização da propriedade improdutiva, sob pena de sujeição desta a espécie germinativa de “desapropriação” para reforma agrária.

Toda a legislação dita protetiva, em especial a atinente à exploração madeirei-ra, foi inócua diante das crescentes demandas do comércio internacional e da ganância exacerbada daqueles que se assentavam no Brasil, o que importou na transposição da colônia ao Império sem qualquer efetiva modificação do cenário jurídico ambiental.

Com a Independência, a situação agravou-se. A devastação das florestas foi gradativamente ampliando-se para dar lugar às lavouras de cana-de-açúcar e “o desmatamento e o comércio de madeiras eram incentivados pela necessidade de renda para o Tesouro” (LEMOS; BIZAWU, 2014, p. 12).

A extinção do sistema de sesmarias pelo Imperador foi elementar para o aceler-amento da degradação ambiental, na medida em que, ao “democratizar” o acesso à posse e a fragilização da propriedade, reforçou a utilização das queimadas pelos pequenos posseiros, como forma de “limpar sua área e caracterizar sua ocupação com a cultura efetiva e morada habitua” (MAGALHÃES, 2002, p. 33).

A Constituição de 1824 frustrou qualquer perspectiva de proteção do meio ambiente, ficando silente acerca do tema. Diante disso, a lei ordinária acabou se restringindo a repetir a proteção deficiente e secundária antes mencionada, com pontuais inovações no uso da terra e da posse, que deveria importar em cultivo e moradia, sem qualquer menção ao uso sustentável.

A República, que se anuncia no horizonte como um rompimento dos grilhões que impediam o progresso civilizatório, moral e também ambiental, tampouco implementa, em seus primeiros anos, as medidas necessárias à salvaguarda do meio ambiente, ratificando os interesses já indicados pela omissão da Constituição Republicana (1891).

Somente em 1911 começa a se revelar uma preocupação socioambiental real por parte do legislador, por meio da criação da primeira reserva florestal do Brasil, no antigo Território do Acre. Sucede-lhe o Código Civil de 1916, vedando in abstrato a poluição; o Código Florestal, de 1934 e o Estatuto da Terra, de 1964, assegurando a necessidade de observância da função social da propriedade me-diante imposição de restrições; o Decreto-Lei 1.413, de 1975, pelo qual empresas poluidoras ficam obrigadas a prevenir e corrigir os prejuízos da contaminação do meio ambiente; a Lei 6.453, de 1977, delimitando a responsabilidade objetiva por dano nuclear; a Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, exigindo

licenciamento ambiental; a Lei de Ação Civil Pública em 1985, regulamentando instrumento processual específico para a defesa do meio ambiente; dentre tantos outros diplomas que culminaram com a promulgação da Carta de Direitos de 1988 que maximiza a proteção ambiental ao elencar o meio ambiente, como já visto, como direito fundamental, sujeito à proteção direta e vigia constante.

De volta a Euclydes...

Pela sistematização inicialmente proposta, é possível perceber que Euclydes da Cunha nasceu e se desenvolveu, física e intelectualmente, na segunda fase de construção do pensamento jurídico-ambiental brasileiro, vivendo a maior parte de seus curtos quarenta e três anos sob a égide da Constituição do Império e das normas por ela recepcionadas e das que se editaram sob sua vigência.

Como já constatado, as mencionadas disposições legais, codificadas ou esparsas, embora importassem, em segundo plano, na adoção de medidas indiretas de proteção do meio ambiente, tutelavam prima facie direitos eminentemente patrimoniais, destinando-se, em maior parte, a garantir o crescimento do Tesouro e das riquezas de alguns particulares que fomentavam o sistema de exploração da terra e dos recursos naturais, sem comprometimento com a sua conservação ou manejo sustentável.

Em sua frondosa obra socioambiental, Euclydes propõe, no entanto, o rompi-mento com esta atuação exploratória dos recursos naturais e, por consequência, a desconstrução dos principais pressupostos fáticos que ensejaram a edificação do ordenamento jurídico tal como posto. É o que se extrai de seu jovem artigo “Em Viagem” (1884), onde, poeticamente, afirma que “o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá!”.

Igualmente, em “Os Sertões” (1902), ao revisar o que chama de Antecedentes da Luta, Euclydes ponteia que “o jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra” (CUNHA, 2010, p.248) e este se apresentou como “um agente geológico notável”, assumindo o papel de “um terrível fazedor de desertos” (CUNHA, 2010, p.89).

Nesse último, que é um dos trechos mais citados de sua crítica ambiental e se repete em “Fazedores de Desertos” (1901), Euclydes coloca o colonizador como um agravador das queimadas originalmente praticadas pelo indígena, não deixando de provocar a direta relação entre tal medida e os custos de um “progresso” pautado na abertura de campos de pastagem em prejuízo das florestas. É imperiosa a citação do que sucede esta afirmação:

Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; ester-ilizou-a com lastros das grupiaras; feriu-a a pontaços de aluvião; degradou-a corroendo-a com as águas selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda parte, para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas... (CUNHA, 2010, p.90)

Ao abordar a decaída da cultura do café no Vale do Paraíba, no artigo “Entre as Ruínas” (1904), descreve com a precisão imagética que lhe é própria a melancolia do cenário por onde trafega, a terra “cada vez mais desabrigada e pobre” que nada tem a ver com a opulenta riqueza de outros tempos, e as gentes ali deixadas, “as sombras de um povo que morreu, errantes, sobre uma natureza em ruínas”.

A relação entre as ações humanas e as alterações ambientais dá o tom de “Fazedores de Desertos” (1901), mormente ao se apontar as modificações do clima

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- “recrudescer do verão bravio (...) sem mais o antigo ritmo” e a morte da vege-tação, coberta pela poeira – como frutos de uma tendência “primitiva e bárbara” em que insistimos, “plantando e talando”, a despeito das inovações científicas.

Em “Os caucheiros” (1907), contrapõe a relação protocooperativa (CORRÊA, 2012, p. 28) havida entre o seringueiro e a seringa àquela exploração predatória implementada pelo caucheiro. Na primeira, reforça a ideia de simbiose originada da atuação do seringueiro mediante extração do látex sem o fenecimento da árvore, dado reconhecer que a sua sobrevivência necessitaria da conservação do próprio monumento natural. De outro lado, condena o abatimento do caucho, descrevendo o caucheiro como um caçador de árvores, o homúnculo da civilização, motivado pela “preocupação exclusiva de enriquecer e voltar”.

Nesse último artigo, fica visível não só a crítica de Euclydes à exploração predatória em geral, exemplificada pela derrubada dos cauchos. Traz também aqui o renovado espírito de um projeto de desenvolvimento mais eficaz e sustentável; como fizera em “Os Sertões”, sugere, pelo exemplo do seringueiro, o aproveitamen-to da natureza com fincas em sua própria preservação, sem deixar de repercutir na abertura mais equilibrada do caminho do progresso.

O mesmo se repete em “Rios em abandono” (1907), em que se defende a incorporação do “enjeitado” Rio Purus ao progresso nacional.

Sem querer exaurir a análise do discurso ambiental euclidiano por meio dos fragmentos ora destacados – o que, em verdade, demandaria mais páginas do que a própria extensa obra do escritor –, percebe-se bastante forte em Euclydes a ressignificação do desenvolvimento pautado na manipulação dos recursos naturais, pois ao mesmo tempo em que rompe com a visão prevalente no sistema econômi-co de sua época, apontando-o como destruidor de seu próprio fundamento – a natureza -, apresenta alternativas à manutenção desta forma de produzir riquezas sem perdê-las e sem condenar o indivíduo à sua própria destruição.

Como firma na sua juventude, o grande basta, a interrupção da existência humana não virá dos céus, mas sim de Londres – grande potência de seu tempo, responsável pela Revolução Industrial -, com a marca da aniquilação dos recursos naturais em prol de um progresso que só anuncia a barbárie. Assim, Euclydes afasta a concepção consolidada no arcabouço jurídico vigente e defende, mesmo sem fazê-lo diretamente, a criação de normas de proteção que tenham o fator ambiental não como elemento secundário, mas como sujeito de direitos.

Antecipa-se, assim, - tal como fez ao classificar a Guerra de Canudos como um crime, quando sequer existia esta tipificação no próprio âmbito jurídico – construindo uma conclusão que só despontaria com força de lei anos depois de seu trágico falecimento e de forma já bastante tardia, sem grandes poderes para conter os danos provocados no planeta em séculos de exploração, mas com planejamento para impedir o surgimento de novos agravantes.

Dito de outro modo: os crimes ambientais intuídos por Euclydes, embora não existissem formalmente e tampouco sujeitassem seus praticantes a qualquer sanção penal, em função do princípio nullum crimen nulla poena sine previa lege (não há crime sem lei, nem pena sem prévia cominação legal), foram posterior-mente reconhecidos como tal pela evolução da ciência jurídica e da sociedade, implementando, finalmente, as necessárias modificações de pensamento e atuação defendidas pelo cantagalense.

Cumpre assinalar que o reconhecimento desta importante participação de Euclydes na (re)construção do pensamento ambiental brasileiro não suprime a dos que o antecederam, nem desmerece a atuação tardia dos poderes instituídos. Atesta, no entanto, a facilidade com que suas ideias transitam entre os períodos históricos, garantindo, pela via de uma literatura peculiar, a imortalidade da defesa do bem-estar ambiental e, consequentemente, humano.

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DO PENSA EUCLIDES E OS SERTÕES DIANTE DO “CALOR DAS LABAREDASDO SANTO OFÍCIO DA CRÍTICA”

O livro Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902, foi o nono livro publicado sobre a guerra de Canudos. Antes dele, autores elaboraram obras de vários tipos, como artigos psicológicos, romances, relatos romanceados, longos poemas, relatórios militares, descrição de viagem à região da guerra. Convêm conhecer um mínimo de suas opiniões para depois compará-los com a obra Os sertões, de Euclides da Cunha.

Após o fracasso da expedição do coronel Moreira César no sertão baiano, o maranhense Raimundo Nina Rodrigues, etnógrafo, criminalista, médico patologista e sociólogo, escreveu o artigo “A loucura epidêmica de Canudos” na Revista Bra-sileira, que foi publicado em 1º de novembro de 1897. Em maio-junho de 1898, completou o artigo anterior com outro, intitulado “A loucura das multidões”. Am-

RESUMO: Desde a publicação d`Os sertões, Euclides e seu livro sofreram críticas e elogios sobre os seus mais diferentes aspectos, mas sua importância literária continuou e continua resistindo até o presente, tamanha é a complexidade de as-pectos que contêm e nele se entrelaçam. Por isso, os críticos encontram novas perspectivas de análises, de acordo com cada percepção específica. A interpretação da realidade nacional e da guerra de Canudos dada por Euclides baseou-se em conceitos geográficos, geológicos, antropológicos, raciais, psicológicos, religiosos, darwinistas, evolucionistas, entre outros, de pensadores europeus do século XIX que ele leu, mas que aplicados na análise de nossa realidade não foram adequados, o que exigiu uma adaptação parcial ou insuficiente para explicá-las. Euclides previu que sua obra provocaria polêmicas e man-teve-se aberto a elas, sem dogmatismos. Por isso, críticas, interpretações e análises foram feitas a partir da publicação d`Os sertões, em 1902, em função da riqueza de seu conteúdo e às polêmicas suscitadas por suas inúmeras contradições. Neste artigo, mencionamos várias críticas célebres feitas a Euclides e Os sertões, favoráveis ou desfavoráveis, deixando a critério dos leitores a concordância ou não com elas.Palavras-chave: Autocrítica; Critica; Conceitos; Dogmatismo; Opiniões ABSTRACT: Since the publication of the Os sertões, Euclides and his book have been criticized and praised on its most different aspects, but its literary importance has continued and continues to resist to the present, such is the complexity of aspects that contain and intertwine. Therefore, critics find new analytical perspectives, according to each specific perception. Euclid’s interpreta-tion of the national reality and war of Canudos was based on geographic, geological, anthropological, racial, psychological, religious, Darwinian, evolutionist concepts among European thinkers of the nineteenth century that he read, rather than applied in the anal-ysis of our reality were not adequate, which required a partial or insufficient adaptation to explain them. Euclides predicted that his work would provoke controversy and remained open to them, without dogmatism. Criticisms, interpretations and analyzes were therefore made from the publication of the Os sertões in 1902, due to the richness of its contents and the controversies aroused by its innumerable contradictions. In this article, we mention several famous critiques made to Euclides and Os Sertões, favorable or unfavorable, leaving to the discretion of the readers the agreement or not with themKeywords: Self-Criticism; Criticism; Concepts; Dogmatism; Opinions

Nicola S. Costa (Licenciado em História – PUC-SP)[email protected]

``Euclides é inesgotável. Por mais que se queira defini-lo e caracterizá-lo, ainda se descobrem novas veredas emagníficas perspectivas que escaparam à delimitação`` (Oswaldo Galotti)

Um belo livro é aquele que semeia em redor os pontos de interrogação (Jean Cocteau)

Para os amigos da Liberdade: Débora, Dimítria, Jairo, Júlia, Sandro, Thaís e Solange

Para os meus netos Luiza, Matheus e João

bos foram incluídos com outros estudos no livro “As coletividades anormais”, que foi o primeiro livro publicado sobre Canudos e Antônio Conselheiro. Nina Rodrigues atribuía a guerra ao monarquismo arraigado no sertanejo: “ (...) era Canudos a primeira luta pelejada no Brasil em nome das convicções monárquicas que são as convicções do sertanejo”, (...) que, de fato, se batiam pelo seu rei e pela sua fé (...) Foi um verdadeiro estado de multidão vesânico que se formou nesta seita de predispostos, de desequilibrados e de loucos, desde que o governo, intervindo para dispersá-los, lhes forneceu uma poderosa causa adicional.” Antônio Consel-heiro era visto como por Nina Rodrigues como “o louco de Canudos”, “alienado”, “figura anacrônica”, portador de “delírio crônico (Magnan), de psicose sistemática progressiva (Garnier), de paranoia primária dos italianos”, “um delirante crônico

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na fase megalomaníaca da psicose”. Nina Rodrigues não comentou nada sobre os militares e a repressão contra os sertanejos.

O segundo livro foi escrito por Afonso Arinos, um jornalista monarquista, que cautelosamente romanceou o episódio no livro Os jagunços, publicado em 1898, já que Antônio Conselheiro e seus seguidores eram acusados pela imprensa da época de pretenderem restaurar a monarquia deposta em 1889 e suprimir a república. Arinos afirmava que “ninguém quer saber como principiou a guerra, quem a provocou, quais os seus fins”, que Antônio Conselheiro “renascera no dia em que se sentiu incumbido da missão divina; datava daí sua vida”; que os canudenses eram formados por “soldados desertores, tabaréus, velhos, enfermos, aleijados, desamparados”, e que Canudos era “A nova Canaã; cidade santa; era como um domínio à parte”. Mas calou-se sobre a atuação dos militares e sobre a repressão contra os sertanejos, temendo represálias.

O terceiro autor foi o sergipano Manuel Pedro das Dores Bombinho, que acompanhou a quarta expedição a Canudos como fornecedor, e escreveu o longo poema ``Canudos, história em versos``, num total de 5.984 versos, divididos em quatro partes, em 1898, e que, por ser fornecedor dos militares, era detrator de Antônio Conselheiro e de Canudos. Localizava a origem do conflito de maneira difusa, assim: “O governo da Nação/ Sem ter a mínima razão/ Trata do povo avexar/ Manda imposto cobrar”. Antônio Conselheiro, no entanto, era considerado “fanático sem crença nem fé”; “manhoso”; “malvado”; “milagreiro”; “vilão”. Os canudenses não passavam de “feras e não homens os jagunços”; cruéis; traiçoeiros; nada têm de cristãos ou humanos; feras bravias”. Os militares, por sua vez, eram considerados, “heróis, intrépidos, destemidos lutavam com amor, morriam dando vivas à Nação”. Sobre a repressão, no entanto, Bombinho não teve meias palavras: “Crueldade inaudita e monstruosa/Foi aquela que ali se viu então/ Os jagunços eram todos degolados/ Não faziam parte da Nação”.

O quarto autor foi Manoel Benício Fontenelle, militar e repórter, que publicou o romance O Rei dos Jagunços, em 1899. Fontenelle via no conflito “um sintoma de moléstia social”, considerando Antônio Conselheiro como um “velho maníaco” e um “terrível rei de Canudos”. Os seguidores de Antônio Conselheiro seriam um “composto heterogêneo das diversas castas cruzadas do Brasil: tapuias, preto cri-oulo, curibocas, mameluco, mulato, branco, ladrões, possessos”, “hedionda mescla”. Não diz nenhuma palavra sobre os militares e a repressão. Conclui cautelosamente dizendo que “o futuro há de dizer se o governo pode ser desumano antes de ver-ificar qual o crime porque deixa-os ser punidos com o degolamento em massa”.

O quinto autor foi o médico Alvim Martins Horcades, que publicou em 1899 a “Descrição de uma viagem a Canudos”. Horcades considerava a guerra “uma campanha da civilização contra a barbárie”, e Antônio Conselheiro um “bandido chefe da horda canudense”; “um mentecapto, onde abundavam a hediondez e o banditismo vis”. Canudos era visto como “pesadelo angustioso; hediondo e lúgubre Canudos; antro de misérias e de ignorância”. Os militares eram vistos como “gigantes, leões, homens feitos de aço”. Mas denunciou a repressão de forma vee-mente: “Horror! E mais horror! O cúmulo do horror! Em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros”

O sexto autor foi o político e escritor Aristides Augusto Milton, autor A Cam-panha de Canudos, publicado em 1900. Opinava que a guerra foi “explorada por uma politicagem perversa, serviu de pretexto para agressões injustas ao Governo e afrontas ao povo baiano”. Nem por isso poupava Antônio Conselheiro, visto que “não passava de um louco, de um sonhador das coisas do céu”; homem alu-cinado pela doutrina religiosa”. Os canudenses eram considerados como “pessoas crédulas e simples”, desordeiros, criminosos, fanáticos”. Canudos era vista como “aquela Nova Vendéia”. Denunciava a repressão, quando “fuzilavam-se, matavam-se a baioneta, a machado, à faca, por todas as formas, as casas eram devastadas

pelo incêndio. Um horror, em suma!”O sétimo autor foi o acadêmico de Medicina da Bahia, Francisco Cavalcanti

Mangabeira, que seguiu como voluntário na quarta expedição contra Canudos, publicou o livro “Tragédia Épica – Campanha de Canudos”, formada por vinte cantos poéticos, em 1900. Para Mangabeira, a guerra de Canudos foi uma “ assombrosa epopeia de valor que se desenrolou no sertão de nossa terra”, (uma) “tragédia épica, onde todos, soldados e fanáticos, foram igualmente vítimas do mais lamentável erro político”, (uma) “carnificina” e (um) “monstruoso pesadelo da Pátria”

O oitavo autor foi o tenente Henrique Duque-Estrada, que publicou A guerra de Canudos em 1902. Para ele, a guerra “foi o fruto das maquinações de um tresloucado aventureiro”, um “criminoso”, seguido por “desertores, fanáticos, ban-didos”, que se reuniram em Canudos, um “covil de tantos bandidos”. Sobre a repressão, nenhuma condenação, só uma conclusão: “Tudo foi demolido, arrancado e queimado; o arrasamento foi completo”.

Nessas oito obras encontramos, com poucas exceções, a persistência dos mitos e versões históricas oficiais a serviço dos interesses dos grupos políticos e sociais dominantes naquela época contrários a Canudos (militares, fazendeiros, clero católico, coronéis, autoridades, etc), e que repetiam o que havia sido dito e escrito sobre Antônio Conselheiro (desde 1874), os sertanejos e Canudos (desde 1893), e amplamente divulgado pela imprensa nacional durante o conflito. Com exceção de Nina Rodrigues e de Euclides da Cunha, que procuraram embasar suas opiniões em bases científicas correntes na época, tais autores quase sempre ficaram apenas no relato, na descrição dos fatos, sem interpretações aprofundadas, dando opiniões isoladas, fazendo alguns protestos veementes, sem colocar o episódio dentro de uma perspectiva regional ou nacional, deixando o episódio circunscrito a si mesmo, reproduzindo as opiniões comuns, emocionais, sem crítica, sem base científica, sem suportes teóricos, impressionistas, subjetivas, psicologizantes, etc. Com toda certeza, Euclides da Cunha conhecia tais obras, e era conhecido pelos artigos que publica-va na imprensa, partilhava até de certas opiniões, aproveitando alguns argumentos, mas seu livro foi muito diferente dos outros.

As leituras de Euclides da Cunha

Euclides da Cunha era polígrafo, estudou e escreveu sobre diferentes aspectos da realidade brasileira e da guerra de Canudos. Para fundamentar sua obra Os sertões, recorreu aos principais autores de sua época, tanto nacionais como inter-nacionais, das mais variadas especialidades do conhecimento filosófico, científico e literário. Não foi um citador mecânico de autores, mas colocou também seus juízos pessoais, muitos deles veementes, como a indignação contra a brutalidade empregada contra os sertanejos e a degola de prisioneiros. Vamos mencionar uma lista parcial de autores e suas especialidades citadas por ele em suas obras, especialmente no livro Os sertões, para comprovar a sua seriedade intelectual, res-saltando que suas perspectivas naquele momento eram essas, embora no decorrer do tempo e atualmente a maioria delas tenham sido contestadas e ultrapassadas por outras perspectivas.

Nas quase 400 cartas escritas por ele entre os 24 e os 43 anos, de 1890 e 1909, endereçadas a familiares e amigos, e reunidas em livro por Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti, Euclides citava frequentemente autores e livros, revelando interesses diversificados que revelam a sua erudição. Também no livro Os sertões recolhemos referências a autores e obras que juntamos aos mencio-nados nas cartas, reunindo-os parcialmente de acordo com os temas abordados na listagem parcial abaixo:

Biólogos: H. Spencer, Lombroso, Sighele, Nina Rodrigues, Maudsley; Geógrafos: Hartt, Ratzel; Geólogos: Eschwege; Sociólogos: Durkheim, A. Comte, Gumplowicz,

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Edmund Burke; Naturalistas: Humboldt, Martius, Spix, Agassiz, Dr. Cruls, Saint-Hilaire, Darwin, Ihering, Emilio Goeldi; Pensadores racistas: Buffon, Gall, Combe, Renan, Gobineau, Gustave Le Bom, Gumplowicz, Varnhagen, Cairú, Paul Broca, Raimundo Nina Rodrigues; Pensadores Evolucionistas: Lamarck, Darwin, T.H. Huxley, Spencer, Stuart Mill, Haeckel, Oscar Freyre; Historiadores: Tucidides, Tácito, Buckle, Carlyle, Renan, Taine, Michelet, João Ribeiro, Oliveira Lima, John Armitage, Varnhagen, Cap-istrano de Abreu; Filósofos: Pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, S. Agostinho, Bacon, Descartes, Espinosa, Hegel, Marx, Comte, Spencer,Thomas Huxley, Stuart Mill, Gumplowicz, Diderot, Kant, Ernesto Mach, Teixeira Mendes, Nietzsche, Schopenhauer; Engenheiros: Durand-Clayde, Bechmann, Arnold; Teatrólogos: Aristófanes, Molière, Ésquilo, Eurípedes, Shakespeare; Críticos literários e de arte: Taine, José Veríssimo, Cândido de Figueiredo, Araripe Júnior; Cientistas: Newton, Laplace, Gay-Lussac, Claude Bernard; Romancistas e poetas: Emile Zola (romancista, autor de “Germi-nal”), Guerra Junqueiro (autor de “A velhice do Pai Eterno”), Huysmans (autor de “Le Bàs”), Maupassant (contista), Walter Scott (autor de “Ivanhoé”), Byron (poeta inglês), Shakespeare (autor de “Hamlet” e mais de 35 peças de teatro), Voltaire (pensador francês do século XVIII), Dante Alighieri (poeta italiano, autor de “A Divina Comédia”), Ernest Renan (pensador francês católico), Camilo Castelo Branco (romancista português, autor de “Amor de Perdição”), Alphonse Daudet (roman-cista/ francês, autor de “Tartarin de Tarascon”), Xavier de Maistre, Victor Hugo (escritor e poeta francês, autor de “Os Miseráveis”, “Trabalhadores do Mar”, “O Cor-cunda de Notre Dame”), Dostoiévski (romancista russo, autor de “Crime e Castigo”, “Os Irmãos Karamázov”), Ramalho Ortigão (crítico literário e cronista português), Gregório de Mattos (poeta crítico baiano do século XVII), Juvenal (poeta romano), Bocage (poeta português), Coelho Neto (escritor maranhense), Cláudio Manuel da Costa (poeta português, participante da Inconfidência Mineira), Alexandre Dumas (escritor francês, autor de “Os Três Mosqueteiros”), Quintino Bocaiúva (republicano histórico e escritor), Machado de Assis (escritor carioca, autor de “Dom Casmur-ro”), Artur Azevedo (escritor e teatrólogo maranhense), Raimundo Correa (poeta simbolista), Afonso Arinos (escritor mineiro, autor de “Pelo Sertão”), Antônio Vieira (padre escritor, autor dos “Sermões”), Mont`Alverne (padre e escritor), Castro Alves (poeta baiano), Valentim Magalhães (romancista), Joaquim Nabuco (escritor e diplomata pernambucano), Heinrich Heine (poeta alemão), Henryck Sienckewicz (escritor polonês), John Milton (poeta inglês, autor de “Paraíso Perdido”), Vicente de Carvalho (poeta santista), Alberto Rangel (escritor amazonense), Rui Barbosa (escritor e político baiano), Antero de Quental (poeta português), Ralph Emerson (escritor norte americano), Domingo Faustino Sarmiento (político e escritor argen-tino, autor de “Facundo: civilização ou barbárie”), Proudhon (anarquista francês).

Com base na lista acima, que só enumera os autores daquela época mencio-nados por Euclides, podemos constatar que o engenheiro Euclides era dotado de profunda base científica, filosófica e histórica, e também tinha irresistível atração pela literatura, já que a quantidade de romancistas, contistas, poetas e teatrólogos formavam a maioria de suas leituras preferenciais. Era um homem atualizado em relação aos autores clássicos e aos principais autores nacionais e europeus e às obras de seu tempo, que foi a segunda metade do século XIX. Parece-nos impossível filiar Euclides a determinadas escolas filosóficas, históricas, científicas ou literárias para compreender seu livro Os sertões, pois há vestígios de múltiplas influências, muitas vezes contraditórias entre si, mas que foram aproveitadas por ele para interpretar a guerra de Canudos com base numa teoria heterogênea que se propunha a concluí-la como resultado da formação do Brasil. O professor José Calasans, pesquisador que desenvolveu um notável trabalho na Bahia para revelar aspectos desconhecidos por Euclides da Cunha na época da guerra ser-taneja, reconheceu em 1986 a complexidade do livro Os sertões durante uma

mesa-redonda com outros eminentes intelectuais, o filólogo Antonio Houaiss, o médico Oswaldo Galotti e Franklin de Oliveira, dizendo: (...) discutir Os sertões é coisa para séculos” (GALVÃO, “Euclidianos e, p.104)

Dos eventos, autores e obras mencionadas pelo próprio Euclides da Cunha, e que enumeramos na lista acima, convêm destacar ideias básicas de alguns deles que, com certeza, influenciaram de forma evidente a elaboração de suas obras, especialmente Os sertões, mesmo concordando ou discordando deles, e muitas vez-es colhendo delas só o que o interessava para fundamentar seus pontos de vista.

Da Revolução Francesa (1789-1799), seu modelo histórico preferido, entusias-mou-se com o lema liberal “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, e com person-agens e episódios, como a guerra da Vendéia, que comparou ao que acontecia no conflito do sertão da Bahia; do Positivismo de Auguste Comte, Euclides absorveu a linguagem cientificista, a valorização das Ciências, dos fatos positivos, da ordem social como condição para o progresso material e humano, do altruísmo como sentimento básico das relações humanas, da república como forma de governo ideal, do elitismo social, dos deveres em detrimento dos direitos, da sociabilidade, da afetividade, da importância social da educação; de Gobineau, a noção de luta entre raças e a crítica à mestiçagem; de Ernest Renan, o racismo e o elitismo social e político; de Taine, o determinismo, a valorização do meio, da raça e do momento dos fatos sobre os homens; de naturalistas (Humboldt, Spix, Martius, Saint Hilaire, Goeldi, Agassiz), colheu informações fidedignas e confiáveis sobre o meio natural e geográfico para embasar seus argumentos; de Buffon, Gall, Combe e Le Bon, assimilou ideias racistas; para modelos e informações históricas, recorreu a Tucidides, Tácito, Buckle, Carlyle, Jules Michelet, João Ribeiro, Varnhagen e João Capistrano de Abreu; de Aristófanes, Ésquilo, Eurípedes e Shakespeare, colheu ideias e personagens teatrais de alto nível e sentimentos dramáticos da vida humana; de Charles Darwin e Herbert Spencer, aproveitou ideias evolucionistas como a luta pela sobrevivência na natureza e na sociedade, respectivamente; de Paul Broca e de Gustave Le Bon, a superioridade do homem branco europeu sobre os outros homens e a inferioridade das mulheres na sociedade; de Cesare Lombroso, a ori-gem biológica e inata da criminalidade; do socialismo utópico, do anarquismo e do marxismo, a importância da educação, do Estado, das classes sociais, da proprie-dade, da religião, da moral, do falanstério, da revolução dos explorados; de filósofos antigos e modernos, ideias de todos os tipos (idealistas, materialistas, utópicas); de romancistas e poetas como Emile Zola (“A besta humana”), Victor Hugo (“Os Miseráveis”, “ O Corcunda de Notre Dame”), personagens aparentemente anormais e desprezíveis mas capazes de atitudes de superação e generosidade (Euclides comparou os sertanejos de Canudos na sua força, resistência e aparência a “Hér-cules-Quasimodo”, o primeiro, um personagem da mitologia grega que realizou 12 difíceis trabalhos, e o segundo, o célebre personagem Quasímodo, o corcunda de Notre Dame, do romance “Nossa Senhora de Paris”, de Victor Hugo); de William Shakespeare (peças “Hamlet”, “Rei Lear”, “Macbeth”, Othello”), personagens trágicos e complexos; de Walter Scott (romance “Ivanhoé”), personagens de grande ideal-ismo e nobreza; de John Milton (longo poema “Paraíso Perdido”), a ideia de um livro sobre a Amazônia que não chegou a ser concluído; de William Blake (poeta católico inglês), reflexões profundas sobre o ser humano; de Lord Byron (poeta inglês romântico), o engajamento político e a luta pela liberdade; de Charles Dickens (romancista inglês, autor de “David Copperfield”, “Oliver Twist”, “Grandes Esperanças”, “Nicholas Nickelby”), exemplos de personagens órfãos que superaram seus problemas e se afirmaram como pessoas dignas; de Dante Alighieri (poeta, “A Divina Comédia”), a ideia de Inferno com a qual comparou a guerra de Canudos; de Dostoiévski (russo, “O Idiota”, “Crime e Castigo”, Os Irmãos Karamázov”), exemplos de personagens desequilibrados e excêntricos; de Leon Tolstói (russo, “Guerra e Paz”), assimilou um modelo de livro que envolvia a história de seu

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país e de seu povo; de Camilo Castelo Branco (“Amor de Perdição”), o romantismo exasperado e trágico; de Eça de Queiroz (“O crime do padre Amaro”, “A Relíquia”, “Os Maias”), a hipocrisia social; de Bocage (poeta satírico português), a criativi-dade atormentada do artista; de Luís Vaz de Camões (português, “Os Lusíadas”), o patriotismo poético e a miséria do artista; de Guerra Junqueiro (português, poeta ateu), a revolta contra Deus e tragédia do artista; de Almeida Garret (português, “Viagens à minha terra”), a simplicidade e a sabedoria do povo; de Antero de Quental (português, poeta romântico), o ceticismo poético; de Antônio Feliciano de Castilho (português, poeta romântico), a simplicidade; do padre Antônio Vieira (português), a oratória religiosa; de Gregório de Matos (poeta crítico), a sátira aos poderosos; de Gonçalves Dias (poeta romântico), a paixão avassaladora; de Fagundes Varela (poeta romântico), a dor paterna; de Álvares Azevedo (poeta romântico), a morte precoce; de Claudio Manuel da Costa (poeta barroco), o amor desmedido e a crítica anônima; de Antônio Castro Alves (poeta da escravidão), a crítica às injustiças sociais; de José de Alencar (romancista), os tipos regionais de seus romances, como o sertanejo, o gaúcho, o índio; de Coelho Neto (escreveu sobre o sertão brasileiro antes de Euclides), o amor pelos humilhados e ofendidos da sociedade; de Machado de Assis (“Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba”, “Memorial de Aires”), a elegância da linguagem e o refinamento estético; de Aluísio e Artur Azevedo (escreveram sobre os excluídos brasileiros, “O Cortiço”), o realismo social; de Afonso Taunay (escreveu sobre o sertão brasileiro, “Inocência”), os costumes sertanejos; de Rui Barbosa (jurista e orador), a importância das leis e da liberdade; de Joaquim Nabuco (crítico da escravidão, “O Abolicionismo”), o exemplo de intelectual engajado; de Domingo Faustino Sarmiento, (argentino, “Facundo: civilização ou barbárie”) os conceitos de civilização e barbárie que utilizou ao explicar a guerra de Canudos; de Rai-mundo Nina Rodrigues (médico), a ideia de que a mestiçagem entre brancos e negros criava um tipo inferior; da Bíblia, personagens como Judas e Asverus que, ambientados na Amazônia, fizeram Euclides escrever o seu texto mais lírico, etc.

A importância de Euclides não foi a de um simples reprodutor desses autores e dessas ideias. Pelo contrário, ao utilizá-las Euclides percebeu em muitas delas inadequação para explicar a realidade brasileira e seus problemas, o que o fez adaptá-las ao seu modo de ver, depurando-as, reinterpretando-as, acrescentando suas intuições e opiniões pessoais, o que impregnou de originalidade e brasilidade as suas obras, das quais se destaca o clássico e consagrado livro Os sertões.

O livro Os sertões, publicado em 1902, constituiu-se numa obra fundamental não só para a literatura, mas também para a cultura brasileira em geral. Walnice Nogueira Galvão considera Euclides “um abridor de caminhos” com esse livro, já que revelou um Brasil desconhecido e ignorado, o do sertão, rotulado de “bárbaro” na época da guerra, em oposição ao Brasil “civilizado” e europeizado do litoral. Seu livro denunciou a incompreensão, a brutalidade, os preconceitos, as mentiras, a intolerância, os massacres, a desumanidade, os erros praticados contra os sertanejos, a artificialidade da separação entre civilização e barbárie. Monteiro Lobato, entusiasta de Euclides, aproveitou para dizer que lamentava só ter existido um Euclides da Cunha, já que outros episódios brutais da história brasileira, sem outros Euclides, como a Guerra do Contestado (1912-1916), acontecida entre o Paraná e Santa Catarina, ficaram limitados a relatórios oficiais mentirosos. Teria o mesmo caráter, por exemplo, a Semana de Arte Moderna de 1922, vinte anos após a publicação d`Os sertões, sem a influência da obra euclidiana, já que os temas brasileiros passaram a predominar e a inspirar os artistas daquele evento? O modernista Oswald de Andrade, por exemplo, manifestou suas preferências literárias assim: “Nunca fui com a nossa literatura vigente. A não ser Machado de Assis e Euclides da Cunha, nada nela me interessava.” (in “Telefonema”, 30-07-1943, Civilização Brasileira, 1974, p.113). Sem Os sertões, de Euclides, seria

possível existir um clima intelectual na cultura brasileira propício à elaboração de obras como as de Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Cândido Portinari, José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro, Mário Palmério, Érico Veríssimo, Jorge de Lima, Bernardo Élis, Paulo Dantas, Câmara Cascudo, Rachel de Queiroz, Darcy Ribeiro, etc.

Autocrítica de Euclides da Cunha Antes mesmo da publicação d`Os sertões, em 1902, e até a sua morte,

em 1909, Euclides transmitiu em cartas aos amigos explicações sobre as suas intenções e sentimentos ao escreve-lo, bem como suas dificuldades financeiras, suas limitações pessoais, a insuficiência de tempo para pesquisas mais profundas e expectativas em relação às críticas que receberia daí em diante.

A primeira menção que fez foi a existência de “defeitos sérios” do livro causado pelas “condições em que foi escrito”, ressaltando, porém, a “sinceri-dade” com que o escreveu:

(…) o meu livro sobre a interessantíssima luta nos sertões ainda não apare-ceu. Está, porém, agora – finalmente, pronto e ainda que seja o primeiro a con-siderá-lo lardeado de defeitos sérios entre os quais avulta certa falta de unidade oriunda das condições em que foi escrito – tem, preponderante, uma qualidade que o nobilita: a sinceridade com que foi traçado.” (GALVÃO, Correspondência ... carta 74, 15/03/1900, p.118)

A publicação do livro Os sertões foi problemática financeiramente pois Euclides precisou pagar a metade das despesas, já que o editor tinha receio de ter grandes prejuízos com o possível fracasso do livro, o que não aconteceu, pois a primeira edição foi um sucesso e esgotou-se em alguns dias:

(...) contratei, embora em condições pouco vantajosas, a impressão dos “Sertões”, com Laemmert; devendo, por uma das cláusulas, estar pronto e entreg-ue a publicidade, o livro, em fins de abril do ano vindouro. Está, assim, satisfeita uma aspiração que significa apenas o intuito de dizer a verdade sobre uma fase, ainda [ilegível], da nossa história. Repito: não me preocupo com o destino literário daquele livro que é, afinal, um desgarrão na rota da minha engenharia rude; ele tem o mérito único da sinceridade; é o depoimento de uma testemunha e terá extraordinário valor se conseguir fornecer a futuros historiadores uma página única - mas verídica e clara.” (Idem, 24-12-1901, carta inédita)

A presença no sertão e o que observou na guerra contra o arraial de Canudos, levaram Euclides, aos poucos, a mudar certos conceitos que tivera até então, entre eles os que depreciavam Antônio Conselheiro e os sertanejos, embora os conceitos preconceituosos tenham permanecido no livro Os sertões, já que ele nunca alterou nenhuma linha, passando a intitular-se defensor dos sertanejos diante da História. Suas mudanças foram declaradas nas cartas aos amigos, como a de defensor dos canudenses: (...) pobres jagunços (...) (serei) seu advogado diante da História. E este papel satisfaz inteiramente a minha vaidade.” (Carta 86, 25/12/1901, p.129)

O escritor Coelho Neto, amigo de Euclides, mencionou posteriormente um des-abafo dele sobre a expectativa que o livro mereceria da crítica especializada, em que revelava ironicamente tratar-se de uma obra pesada, bruta, mal “amanhada”. Transparece aqui o caráter aberto de Euclides em relação à crítica, seu antidog-matismo, reconhecedor dos infindáveis aspectos que seriam objetos de análise e contestação de seu livro:

Ah! O livro... Isso vai ser lenha para o meu auto-de-fé. Já começo a sentir o

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calor das labaredas que se levantarão assopradas pelo Santo Ofício da Crítica. Não é literatura de bastidor, para românticos, é massa bruta (…) Um livro mal amanhado como esse, feito aos bocados nos intervalos do trabalho... irmão gêmeo da ponte de São José do Rio Pardo. (In Coelho Neto, Livro da Prata, ps. 209 e 211)

Também confiava na permanência de seu livro, embora não o houvesse publi-cado na carta escrita meses antes e mencionada abaixo, sabendo que o assunto e o seu conteúdo permaneceriam como testemunhos da guerra que fatalmente cairia na deturpação dos fatos e no esquecimento, como sempre acontecera na historiografia brasileira: (...) alenta-me a antiga convicção de que o futuro o lerá (“Os sertões”). Nem outra coisa quero. Serei o vingador e terei desempenhado um grande papel na vida - o de advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária...” (GALVÃO, Correspondência..., carta 90/21-04-1902/p.133)

No dia seguinte à publicação d`Os sertões, Euclides fez um juízo forte sobre o livro, excluindo dele qualquer romantismo ou exclusão de fatos dantescos, consid-erando-o um (...) livro mau e implacável” (idem, carta 100, 03/12/1902, p.143)

Três meses depois da publicação, Euclides reconheceu ter delineado apenas o significado histórico e o caráter de Antônio Conselheiro, atribuindo tal falha ao desconhecimento “das circunstâncias especiais do meio” que não pode conhecer com profundidade, da mesma forma que não pode apreender o “caráter essencial do indivíduo”, atribuindo tal deficiências a “causas perturbadoras” que interferiam na sua percepção “do grande agitador sertanejo”.

A significação histórica do grande agitador sertanejo (Antônio Conselheiro) que delineei apenas, ajustando-se à escola antropológica, aparece mais nítida, explicada pelas circunstâncias especiais do meio que não tive tempo de conhecer e pelo caráter essencial do indivíduo que não apreendi com segurança, dadas as causas perturbadoras que radicavam a minha observação. (Idem, carta 111, 09/03/1903, p.153)

Diante da enorme repercussão de seu livro, Euclides reafirma que sua prin-cipal virtude ao escreve-lo foi a sinceridade, que compensou a falta de outros “requisitos que não possuo”: “Sinto-me verdadeiramente feliz notando que o meu livro, em que a sinceridade de pensar substitui outros requisitos que não possuo, vai cativando a simpatia dos melhores espíritos e dos melhores corações.” (Idem, carta 105, 17/02/1903, p.148)

Euclides declara-se francamente simpático aos “nossos extraordinários patrícios sertanejos”, lembrando que escrevera seu livro imbuído por uma “enorme Pie-dade” em relação a eles. Podemos assinalar aqui o caráter contraditório do livro euclidiano, ressaltando que no decorrer da sua escrita, Euclides, que inicialmente defendia a ação militar contra Canudos, que abominava Antônio Conselheiro e os sertanejos, vai após poucos revelando admiração pela resistência, pela coragem, pelo destemor demonstrada por eles no transcurso das batalhas, e denunciando a crueldade empregada para vencê-los.

(...) a minha simpatia pelos nossos extraordinários patrícios sertanejos.” (Carta 116, 30/03/1903, p.159); “Em que pese a sua feição combatente, tracei-o (o livro Os sertões) com uma enorme Piedade pelos nossos infelizes patrícios sertanejos. É um livro destinado aos corações. Devem compreendê-lo admiravelmente os poetas e os bons, se não vai nesta conjunção dispensável redundância.” (Idem, carta 119, 28/04/1903, p.162)

Seis anos depois da publicação do livro, e distanciado dos fatos e circunstâncias

em que a guerra de Canudos acontecera, no entanto, Euclides confessava que o livro Os sertões causava-lhe estranheza: “livro bárbaro de minha mocidade, mon-struoso poema de brutalidade e de força – é tão distante da maneira tranquila pela qual considero hoje a vida, que eu mesmo às vezes custo a entendê-lo” (idem, carta 363/ 13-10-1908/ p. 384)

Assim, entre 1900 e 1908, Euclides reconheceu em cartas que o livro Os sertões tinha “defeitos sérios”, já que o considerava “um livro mal amanhado”, mas que não se poderia negar a “sinceridade com que foi traçado”, pois “a sinceridade de pensar substitui outros requisitos que não possuo”, mas que procurou “dizer a verdade sobre uma fase da nossa história”. Euclides se intitulou “advogado (dos sertanejos) perante a História”, “advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária...” Quanto a Antônio Conselheiro, reconhecia que “a significação histórica do grande agitador sertanejo que delineei apenas, ajustando-se à escola antropológica, aparece mais nítida, explicada pelas circunstâncias especiais do meio que não tive tempo de conhecer e pelo caráter essencial do indivíduo que não apreendi com segurança”. Sem se considerar dono da verdade, nem dogmático, Euclides previa que, “já começo a sentir o calor das labaredas que se levantarão assopradas pelo Santo Ofício da Crítica. Não é literatura de bastidor, para românticos, é massa bruta.” Em 1908, Euclides classificava seu livro Os sertões como “livro bárbaro de minha mocidade, monstruoso poema de brutalidade e de força.”

Críticas e opiniões sobre Euclides da Cunha e Os sertões

Desde a publicação d`Os sertões, Euclides e seu livro sofreram críticas apro-fundadas sobre os seus mais diferentes aspectos, bem como elogios entusiasmados, mas sua importância literária continuou e continua resistindo até o presente, como um livro vivo que precisa ser constantemente analisado e revelado em sua profundidade até então insuspeitada, já que o próprio Euclides o considerava uma “massa bruta”, a que a crítica encarregou-se de polir ininterruptamente a partir de então. Essa obra segue o mesmo destino que as grandes obras literárias universais sofreram e sofrem por parte de seus analistas, sendo essa a função da crítica, analisá-las de todos os ângulos possíveis, mas que nem por isso deixam de ser representativas das culturas onde foram elaboradas. A riqueza de conteúdo do livro permite aos críticos encontrar novas perspectivas de análises, de acordo com a percepção embasada em pressupostos teóricos definidos por cada crítico favorável ou detrator. Muitas interpretações foram dadas desde a publicação d`Os sertões, em 1902, em função da riqueza de seu conteúdo e às polêmicas suscitadas pelas afirmações euclidianas.

A importância de Euclides da Cunha, entre outros fatores, cresce ainda mais quando percebemos que muitos de seus predecessores e pósteros continuaram confiando em relatórios oficiais mentirosos, tendenciosos, apologéticos, de acon-tecimentos históricos cuja principal preocupação é deturpar, silenciar, apagar, escamotear, esconder, enfim, forçar o esquecimento e prolongar a amnésia. Com Os sertões, Euclides golpeou profundamente a indiferença nacional transformando-a em memória, revelando um país desconhecido, arrancando o véu de hipocrisia que encobria falsos heróis, denunciando as atrocidades, mostrando a intolerância e a incompreensão. Euclides compreendia que aos que detinham o poder interessava o esquecimento, a amnésia, e que a memória era uma das armas para lutar contra eles e denunciá-los pelo crime que haviam praticado e que estavam interessados em apagar, como se isso fosse possível não deixando sobreviventes, destruindo e queimando o cenário da guerra, não deixando pedra sobre pedra.

Por isso, desde a sua publicação, em 1902, o livro Os sertões tem provocado as mais diferentes análises, opiniões e debates infindáveis. De acordo com

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o contexto histórico (República Velha, Era Vargas, República Populista, Ditadura Militar e Nova República), e os interesses de intelectuais que representam grupos sociais e ideológicos definidos (oligarquias, fazendeiros, classe média, militares, operários, camponeses, etc.), o livro tem servido de base para as argumentações mais diversificadas nos últimos cento e dezessete anos. Isso porque o autor e o conteúdo da obra são densos e abrangentes, daí o euclidiano Oswaldo Galotti ter anotado: ̀ `Euclides é inesgotável. Por mais que se queira defini-lo e caracterizá-lo, ainda se descobrem novas veredas e magníficas perspectivas que escaparam à delimitação`` (in prefácio do livro À Margem da História). A lista dos que se ser-viram ou se inspiraram n`Os sertões, nele encontrando argumentos para justificar seus interesses ou críticas ideológicas, é ampla, dela fazendo parte positivistas, militaristas, republicanos, monarquistas, liberais, comunistas, fascistas, democratas, populistas, religiosos, geólogos, poetas, romancistas, pintores, cineastas, teatrólogos, críticos, filólogos, filósofos, historiadores, geógrafos, autoritários, neoliberais, etc. Euclides da Cunha também tem sido muito estudado, tanto como intelectual e como homem de vida dramática e trágica.

Até hoje, Os sertões mereceu diferentes juízos da parte dos intelectuais bra-sileiros e estrangeiros, seja exaltando ou criticando o livro. O resultado é uma longa gama de opiniões, que enumeraremos sucintamente aqui, mencionando os autores e o ano em que foram publicadas em artigos ou livros que analisavam o livro como um todo ou seus diferentes aspectos. As críticas ou opiniões favoráveis ou desfavoráveis ao livro euclidiano correspondem aos 117 anos de sua publi-cação, década por década, para demonstrar a sua permanência como objeto de reflexão de intelectuais preocupados em refletir sobre a sua importância para a problemática nacional.

No ano de 1652, o padre Antônio Vieira definiu magistralmente o significado do que seja um livro num de seus Sermões, que vem a calhar com o que sejam os grandes livros, dentre eles Os sertões:

O livro é a mais perfeita imagem de seu autor, tão perfeita, que não se distingue dele, nem tem outro nome; o livro, visto por fora, não mostra nada; por dentro está cheio de misté¬rios; o livro, se se imprimem muitos volumes, tanto tem um como todos, e não tem mais todos que um; o livro está juntamente em Roma, na Índia e em Lisboa, e é o mesmo; o livro, sendo o mesmo para todos, uns percebem dele muito, outros pouco, outros nada; cada um conforme a sua capacidade: o livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive, e não tendo ação em si mesmo, move os ânimos e causa grandes efeitos. (VIEIRA, Antônio, Sermão de Nossa Senhora da Penha de França, p.125)

Uma reflexão do filósofo alemão Nietzsche (1844-1900), definindo a qualidade de um livro, coloca em movimento as palavras de Antônio Viera e coincide com a trajetória da crítica do livro Os sertões desde a sua publicação até hoje, que é o objeto e a elaboração deste artigo:

Livro bom pede tempo” – Todo livro bom tem gosto acre quando surge: tem o defeito da novidade. Além disso, é prejudicado pelo autor vivo, se ele for conhecido e muito se falar dele: pois existe o hábito de se confundir o autor com sua obra. O que nesta houver de espírito, brilho e doçura tem que se desenvolver com os anos, aos cuidados da veneração crescente, depois antiga, e por fim tradicional. Muitas horas terão de passar sobre ela, muitas aranhas terão de nela tecer sua teia. Bons leitores tornam um livro cada vez melhor, e bons adversários o depu-ram. (NIETZSCHE, “Humano, demasiado humano”, p. 72)

- 1902, José Veríssimo:O livro, por tantos títulos notáveis do Sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo

o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto os aspectos da natureza, como ao contato do homem, e estremece todo, tocado até ao fundo da alma, comovido até às lágrimas , em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, das ‘secas’ que assolam os sertões do norte brasileiro, venha da estupidez ou maldade dos homens, como a campanha de Canudos. Pena é que conhecendo a língua, como a conhece, esforçando-se por escreve-la bem, possuindo reais qualidades de escritor, força, energia, eloquência, nervo, colorido, elegância, tenha o Sr. Euclides da Cunha viciado o seu estilo, já pessoal e próprio, não obstante de um primeiro livro, sobrecarregando a sua linguagem de termos técnicos, de um boleio de frase como quer que seja arrevesado, de arcaísmos e sobretudo de neologismos, de expressões obsoletas ou raras, abusando frequentemente contra a índole da língua, e contra a gramática das formas oblíquas em lhe em vez do possessivo direto, do relativo cujo e, copiosamente, de verbos por ele formados, e de outros modos de dizer, que, ainda quando filologicamente se possam justificar, não são, de fato, nem necessários, nem belos, antes, a meu ver, dão ao seu estilo um tom de gongorismo, de artificialidade, que certo não estava na sua intenção. Em uma palavra, o maior defeito do seu estilo e da sua linguagem é a falta de simplicidade que não exclui a força, a eloquência, a comoção, é a principal virtude de qualquer estilo. Mas este defeito é de quase todos os nossos cientistas que fazem literatura, até mesmo de alguns afamados escritores nossos, que mais sabem a língua, é quase um vício de raça, o qual no Sr. Euclides da Cunha, por grande que seja, não consegue destruir as qualidades de escritor nervoso e brilhante, o valor do seu livro. (NASCIMENTO e FACIOLI, ps. 46-47).

- 1903, Araripe Júnior:“Criticar esse trabalho, dizia comigo mesmo, não é mais possível. A emoção por

ele produzida neutraliza a função crítica (...) Os sertões são um livro admirável, que encontrará muito poucos, escritos no Brasil, que o emparelhem – único, no seu gênero, se atender-se à que reúne a uma forma artística superior e original, uma elevação histórico-filosófica impressionante e um talento épico-dramático, um gênio trágico como muito dificilmente se nos deparará em outro psicologista nacional (...) Concluída a leitura desse livro, que não fiz de uma assentada por ser materialmente impossível, causou-me pasmo um fato – a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre variada, que sopra rijo, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas, in-4º, cheia de fatos, de mais em mais empolgantes, pela complexidade misteriosa, cuja suprema expressão atingem e no mais alto grau literário (...) Os sertões fascinam; e essa fascinação resulta de um feliz conjunto de qualidades artísticas e de preparo científico, posto a serviço de uma alma de poeta que viveu, em grande parte, a vida dos agrupamentos humanos que descreve nessas fulgurantes páginas(...) num primeiro livro, a lava do estilo de Os sertões borbota da matriz, trazendo, ainda de envolta, resíduos, vocábulos, modismos assimilados nas leituras prediletas. Mas esses acidentes em nada influem para modificar o tumulto original da frase entusiástica, cintilante, candente, que vibra sob a ação do temperamento arrebatado daquele mesmo cadete da Praia Vermelha, que partia o sabre e atirava-o aos pés de um superior hierárquico; (NASCIMENTO e FACIOLI, idem, ps.56, 57, 85, 86)

- 1903, Coelho Neto:Não sei de páginas mais verdadeiras nem mais empolgantes na literatura

nacional do que essas, que, sendo as dum poema enorme, são, ao mesmo tempo, as dum tremendo libelo. Há nelas um sopro bíblico como o que revolve o livro fremente de Isaías. Euclides é um espírito disciplinado pelo rigor das matemáticas,

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aplicando a tudo o método positivo, iniciando-se na Poesia – porque é um poeta e dos que mais louvores merecem – não abjurou a ciência e foi como pensador, à maneira de Lucrécio, que tomou um lugar entre os iluminadores. Certo de que a melhor e a mais bela inspiração é a verdade – viu e traduziu. O seu livro não é um produto cerebrino, não é desses jardins que crescem espontâneo e viçam em terra virgem, na desordem do solo inculto, é um livro semeado com vagar, tratado com zelo e carinho, abrolhando na leira luminosa da verdade (...) Euclides da Cunha é, em verdade, senhor de um vocabulário portentoso e novo adquirido (...) rico, com uma farta messe e os ouvidos ressoantes de melodias, veio para a sua obra e deu-nos, revestindo um assunto maravilhoso, uma forte e sonora linguagem de boa estirpe em que a ideia é, umas vezes, conscienciosa-mente contida num só vocabulário vivo e outras vezes se alastra largamente e enche todo um amplo parágrafo. Quis ser nobre e original, a crítica recalcitrou protestando contra a técnica científica e contra arcaísmos (¿) e neologismos. O que impressiona no escritor não é o vocábulo, é o que ele exprime e pinta e que outro não exprimiria com o mesmo vigor, nem salientaria com o mesmo relevo. (NASCIMENTO e FACIOLI, idem, p. 104, 108)

- 1919, Afrânio Peixoto:Um livro os concretiza (nacionalismo, independência e autonomia intelectual)

a propósito de tema nacional, em que entra a terra do Brasil, o coração mesmo profundo dele, o sertão do Brasil, a mais legítima gente brasileira, porque nem é mais o íncola, nem o africano, nem o reinol, porém o derivado deles, o brasileiro caldeado e no seu esboço mais definido, - o sertanejo; e esse livro se escreve em estilo brasileiro, com a ênfase, a truculência, o excesso, a exuberância, o brilho, o arremesso, a prodigalidade, a magnificência, que nos caracterizam e talvez nos singularizem. É o livro e o estilo de Euclides da Cunha. Todos os brasileiros se reveem nestas páginas que idealmente todos queriam poder escrever, porque é assim que se exprimiriam, se tivessem o dom e a arte da escrita literária. É por isso o estilo nacional``; (Euclides da Cunha) ... era sertanejo e continuou sertanejo toda a vida, bem caboclo, ainda mais depois de devassar o Brasil, terra única que conheceu e amou, de Minas ao Amazonas, de São Paulo à Bahia, nunca afeito às atitudes urbanas e polidas que a Civilização lhe impunha, obrigando-o, torturado e canhestro, a fugir para a solidão livre dos seus sertões. (Citado in PINHEIRO, p.37)

- 1919, Lima Barreto:No seu escrever, pejado de metáforas e comparações científicas, há sempre

a preocupação de demonstrar saber universal, desdém pelas impressões do pri-meiro instante, desejo de esconder a colaboração do inconsciente sob a crosta espessa das leituras. Não se nota, no seu estilo, cambiantes, abandonos, suaves esbatimentos nas transições. A sua alma era seca e árida, e todo ele cheio de um orgulho intelectual desmedido, que a tornava ainda mais seca e mais árida. Tendo estudado difíceis disciplinas e, certamente, as conhecendo, mas literato até a medula, até à tortura de procurar um estilo original e inconfundível, até ao rebuscamento dos vocábulos raros, tinha a pretensão de filósofo, de homem de ciência que despreza o simples escritor, para ele sempre um ignorante` (BARRETO, in “Marginália”, p. 284);

- 1920, Monteiro Lobato:Estudou Euclides da Cunha um dos dramas de nossa crueldade. Os outros,

que o temos em número maior do que se supõe, jazem em branco, à espera de novos Euclides, suficientemente artistas para fixá-los em obra de verdade e arte. No geral esses dramas permanecem ignorados do País. Mortos os atores, dispersos como grãos de areia os assistentes eventuais, reduzida a voz da vítima a débeis cochichos, deles restam nos arquivos do Estado relatórios insulsos, tão soporíferos

quão mentirosos. E ali irá a história mais tarde beber informe para a estilização, para a moedagem corrente dos fatos, assentando um tijolo a mais no edifício da mentira inconsciente que ela é. Sem a intervenção da arte é impossível transmitir aos pósteros a sensação exata do que se passou. Só a arte sabe perpetuar o que foi vida. Canudos teve a sorte de topar em seu caminho um a serviço de uma consciência. Não fora isso, e o drama lá estaria hoje reduzido à mentiralha de encomenda dum relatório tendencioso, apologético para o vencedor, capaz de me-ter na história, como heróis, a gente que Euclides atou ao pelourinho. O relatório é um mal crônico. É a própria velhacaria humana transcrita em calhamaço. O meio de neutralizá-lo é um só: contrapor-lhe Euclides. Infelizmente os Euclides são raros, e centenas de dramas se desenrolam antes que surja um. Tivemos depois de Canudos uma reprise da peça no Contestado. As mesmas origens: beatice e ignorância. A mesma réplica: farda e incompreensão. O mesmo desfecho: crueldade e covardia. A mesma apoteose: relatórios. Não surgiu, porém, o Euclides, e o país ignora esse novo drama, que não será o último. Que não será o último porque as causas persistem. Cada vez mais o litoral encurrala o sertão, especializando-se em inépcia à medida que este se especializa em miséria moral e ignorância. O beco é sem saída. A República, feita para uso e gozo de uma mediocridade rapinante, não resolve problemas sociais. Digere. Joga pôquer. Percebe porcentagens. Não lhe sobram olhos para ver em Canudos, no Contestado, na permanência do cangaço nortista, nas agitações da Bahia, o tremendo mal-estar de uma pobre sub-raça em via de eliminação, mas capaz de muito no dia em que tiver chefes. (LOBATO, A Onda Verde, pág. 71/72)

- Monteiro Lobato, sem data:Euclides, um gênio americano“Há homens que influem até no vocabulário dos países. Depois de Euclides da

Cunha, a palavra “estupendo” passou a ter no Brasil um consumo triplicado - e um sentido euclidiano. Não há estupendos em José de Alencar; não há um só estupendo em Machado de Assis. A língua literária no Brasil enriqueceu-se desse adjetivo depois que Euclides - o Estupendo, revelou o estupendo de certos con-trastes da nossa tragédia geológica e humana.

O aparecimento d’Os Sertões foi meteórico. Rebentou na lagoa verde do nosso marasmo como um trovão em dia sem chuva, desses que por muitos segundos ecoam pelas quebradas invisíveis. Era o algo nuevo... Na nossa literatura de reflexo, insistentemente água de rosas, cor de rosa, maciazinha, cheia de pequenas cor de batata, de morenas de buço, de “Moreninhas” que se perdem com boêmios velhos e casam com amanuenses de peito afundado; tremendamente burocrática em Machado de Assis; sem um herói não fosse suburbano, sem uma paisagem que não é variante da palmeira com um céu “americanamente azul” atrás, irrompe de súbito Euclides como um Mongol Tonante a chispar raios - raios de metáforas inéditas, uivos de indignação, com asperezas de lixa grossa, com desprezo de todos os veludilhos. A forçar, a reforçar, a dobrar à força dos verbos dessorados com o adminículo do “re” reforçante - ressurte, rebrame, recresce, refoge, ressalta... A enxertar na pobreza do vocabulário beletrístico uma quantidade de termos técnicos de alto efeito analógico - imprimadura, jusante, a montante, incoercivel... A introduzir todas as ciências na literatura - até a Geologia, coisa que os nossos antigos Yates de cabeleira desconfiavam ser alguma irmã esquecida do velho lote das musas gregas. A arremessar à cara do leitor incauto nomes-bombas: Maud-sley, Gumplowicz... A ter a coragem de erguer os olhos dos detalhes meramente pitorescos à grande visão de conjunto - e a ver o país como ele é: sonho de Nabucodonosor. Colosso de pé-no-chão bichento na base (o sertão); de modesta calça de brim no meio (as cidadesinhas); de gravata de seda e cartola no topo (Rio de Janeiro). Indumentariamente civilizado da cabeça ao pescoço (cartola, pastinha, pince-nez de galatite, bigode raspado, colarinho americano, gravata de

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viscose (Capital Federal); semi-civilizado do pescoço ao umbigo nos sentimentos de cordura e aceitação resignada, budistica chinesa do marasmo eterno (o “interior” urbano), barbaresco do umbigo aos pés (no sertão sem fim, lá onde Getúlio acaba e Lampião começa).

E isso num meio geográfico literariamente canaãnesco todo perfumes da “balsamina em flor”, todo sabiás pousados em espanadores em pé (palmeiras), todo borboletas amarelas e aguinhas murmurejantes; mas na realidade, com a exceção do Sul, todo carrascais e caatingas espinhentas, e mandacarus cruéis, e rios que correm para dentro como unhas encravadas, e pantanais que não tem fim, e estiagens re-dantescas, e um sol, ah, que sol! que re-sol! que peste de sol! que eterno Lampião facinaroso!

Euclides, gênio que era, foi o primeiro a ver a realidade do conjunto, a tragédia do homem derrotado pelo meio, e a traçar um grandioso painel à Gustavo Doré no Inferno, mas sem os arredondamentos clássicos de Doré. Quadro estupendo! E pintou-o com tintas inéditas; não com os tubinhos de aquarela Windsor & Newton ou Gunther Wagner, mas com tintas tomadas do chão: a lama negra dos barreiros, o vermelho do sangue em coágulos dos jagunços, as escorrências sépias do cangaço dos sertões e do cangaço pior da mazela administrativa. E não espal-hou essas tintas com pinceisinhos macios de pelo de marta, sim com estupendas brochas de barba-de-bode amarradas com cipó arranha-gato. Na “casa dos dois mil réis” da nossa literatura, Os Sertões de Euclides equivalem a um bloco de pedra, trabalhado a picareta por um Bourdelle mongol e estouvadamente atirado para cima de todos aqueles pentinhos e sabonetinhos e miminhos de celulóide.

Mas como os gênios são por natureza universais, havia dúvida no Brasil sobre a genialidade de Euclides. Faltavam pontos de referência para a comparação. Só um, já longe, na poesia - Castro Alves. E um na música, Carlos Gomes. Mas na prosa? Como saber se Euclides era na realidade gênio, assim sem um ponto de referência em casa e sem que a gente de lá fora se manifestasse?

Mas os, gênios são por natureza universais; e por mais tempo que fiquem de castigo no canto da língua em que plasmaram sua obra, acabam transplantados para todas as línguas decentes. O transplante de Euclides começou. Os Sertões acabam de aparecer em Buenos Aires em espanhol. Quer dizer que Euclides, até aqui gênio duvidoso no Brasil, começa a ter cheiro de gênio de verdade. Já está no mundo hispânico – primeiro passo para a universalização. Há de penetrar no mundo inglês, no francês, no germânico, no eslavo. Porque apesar do tamanho geográfico da sua terra Euclides extravasa do Brasil: fica de pernas e cabeça de fora. Tem que universalizar-se, “para que caiba.”

(...) Sim, aquele primogênito de Euclides, mais saído de sua alma do que feito a canivete e com o metrônomo a marcar o ritmo, foi um parto vulcânico - o grande parto de sua vida. A onda de indignação que o afogou ao presenciar o en-sanguentado choque entre a Estupidez Federal e a loucura coletiva dos jagunços, explodiu em quinhentas páginas dum estupendo libelo, com o remate do apelo a um Maudsley para as loucuras e crimes das nacionalidades. Não apareceu tal Maudsley. O público ouviu o libelo, concordou e moita. A nacionalidade continua pacífica e mansamente nos seus crimes e loucuras. Nada penetra certos couros de anta (...) Os Sertões não passam disso: um uivo de indignação e desespero. Tinha de marcar o ponto culminante, o Guarisankar da vida vulcânica dum gênio.

Passado o assomo de indignação, Euclides caiu em si - e até se acanhou. Virou remanso – catadupa que depois da epilepsia do embate contra a resistência das pedranceiras, remansa em baixo na horizontalidade sem espumas dos remansos. Entraram-lhe na vida coisas dessorantes. Um barão - Rio Branco. E empregos e comissões - essas platitudes que para nós outros, “mede-palmos”, a “aposenta-doria” com seus reumatismos, seus pigarros, sua imbecilidade caquética. O prêmio de Nietzsche foi a loucura. O prêmio de Shelley foi o afogamento. Num mundo

mais mecanizado, como o nosso, está muito bem que o prêmio de Euclides haja sido uma bala de parabelum no peito.”. Felizmente uma bala salvadora livrou-o da ignonímia suprema do apodrecimento gelatinoso da “aposentadoria.” .

Gênios como Euclides não merecem fins de vida sórdidos. São explosões da Natureza - e devem acabar em explosões.

(LOBATO, in “Na antevéspera”, artigo “Euclides, um gênio americano”, ps. 249/255)

- 1929, Mário de Andrade:Verbalistas que eu critiquei são Martins Fontes, um Hermes Fontes (na parte

verbalista da obra dele) e esses tenho certeza que você não pode citar ao lado do verbalismo que de fato existe na obra do Guilherme de Almeida) e do Ronald (de Carvalho) porque estes são infinitamente superiores na perfeição e no saber disfarçar os processos verbalistas. De (Olavo) Bilac destruí a idolatria em que era tido, porém num mesmo artigo em que lhe celebrava o valor. E aliás você deixou passar o nosso maior verbalista, Euclides, e por esse eu tenho uma admiração enorme. (In Cartas a Manuel Bandeira, p.114)

Pois eu garanto que “Os Sertões” são um livro falso. A desgraça climática do Nordeste não se descreve. Carece ver o que ela é. É medonha. O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial porém uma falsificação hedionda. Repugnante. Mas parece que nós brasileiros preferimos nos orgulhar duma literatura linda a largar da literatura duma vez para encetarmos o nosso trabalho de homens. Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopeia… Não se trata de heroísmo não. Se trata de miséria, de miséria mesquinha, insuportável, medonha. Deus me livre de negar resistência a este nordestino resistente. Mas chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação. Os mais fortes vão-se embora. (In “O turista aprendiz”, p.294/295)

Deus me livre de negar que o monumento de Euclides e os outros estejam muito bem e sejam razões de orgulho nosso. São obras-primas literárias. Mas depois que apalpei o Nordeste e uma apenas pequena e passageira seca, sem mortes nem misérias terríveis como consequência, mas com toda a sua ferocidade assustadora, o que me irritou um bocado foi os autores terem feito literatura sobre a seca. Isso me pareceu e continua me parecendo desumano (...) Estou convencido que o livro de Euclides fez um mal enorme pros brasileiros e difi-cultou vastamente o problema das secas. Fez da seca uma obra de arte, e nós adquirimos por causa dele, uma noção derivada, quase que de função puramente literária. A seca virou bonita e os nossos deveres, a própria consciência dos nossos deveres, ficaram bonitos também. Quase que existe dentro de nós uma razão importantíssima e jamais expressa: Deixem a seca como está porque se o problema dela for resolvido, o brasileiro perde a mais bonita razão pros seus lamentos e digressões caritativas. Desconfio que nenhum brasileiro terá coragem de confessar a desumanização de origem artística causada nele pela maravilhosa literatice de Euclides da Cunha, mas, queiram ou não queiram, os fatos estão aí provando esta afirmação urtigante. As soluções diletantes que o problema tem inventado na cabeça de brasileiro, especialmente essa do abandono temporário e despovoamento do Nordeste sertanejo, coisa que no mínimo é uma utopia, o corrimento de discursos e artigos de piedade bons prá gente exercitar a cadência parnasiana das frases, o gosto idiota de enviar socorros quando a desgraça chega, tudo é eloquência, tudo é literatura, tudo é prolongamento do livro de Euclides da Cunha, homem que, embora magnífico, ninguém discutirá que foi literato da maior literaría. (Táxi e Crônicas do Diário Nacional, ps. 251/252)

1940, Roquete Pinto:

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O livro maior da nossa produção, no sentido de que nele se retratam as qualidades e as faltas da terra; Percorro toda a nossa história literária e penso que “Os Sertões” serão no futuro, para o Brasil, o grande livro nacional: o que Dom Quixote é para a Espanha ou Os Lusíadas para Portugal - o livro em que a raça expõe a floração das suas qualidades, o espinheiral dos seus defeitos, tudo o que, em suma, é sombra ou luz na vida dos povos. (…) Tudo n’Os Sertões é grandioso: nem tudo, porém, é certo. Já tive ocasião de mostrar quanto me parecem precárias três afirmativas de Euclides da Cunha sobre a questão do cruzamento, a fatalidade da luta das raças, o autoctonismo do homem americano.

1942, José Lins do Rego:Mais uma vez tenho para mim que Euclides da Cunha deformou a realidade

no interesse do seu temperamento. Mais uma vez a força de poeta viu à sua maneira, os homens e as coisas. O gênio do criador dos Sertões sentira o homem do litoral como um pobre doente, em quadro desolador. Para ele, aquele era de ‘raquitismo exaustivo’, o ‘raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral’, em comparação com o sertanejo antes de tudo um forte. Tudo muito do artista prodigioso que havia em Euclides. Ele queria os homens como a sua imaginação exaltada queria que os homens fossem, seres como cera plástica em suas mãos. Um romântico, do grande tipo, chegando até às extravagâncias no barroco. Nunca um escritor no Brasil foi mais tipicamente barroco do que Euclides. O que havia de grande, de forte, de substancioso no barroco, havia no seu estilo, que Nabuco, outro romântico, sugerira parecer construído com cipó. Havia de fato em Euclides da Cunha a magia do artista barroco. Ele via a realidade, às vezes, como se estivesse possuído, dominado por ela. E os seus poderes de mágico engrandeciam a realidade, transformavam as coisas ao seu jeito, faziam vinho da água; realizavam o milagre (PINHEIRO, in “80 anos…”, ps.44/45);

1943, Oswald de Andrade:Oswald via n`Os sertões, o compacto desenrolar de um Brasil inédito e autên-

tico; Érico (Veríssimo), eu indiquei, em carta aos editores americanos, alguns de nossos bons autores. Ninguém me acusará de fazer política literária, apontando entre os antigos, Castro Alves ou Euclides da Cunha, o próprio Bilac, como sucesso para datilógrafas histéricas, e entre os modernos o sociólogo da gula brasileira, Gilberto Freyre.” (In “Telefonema”, p.83) Em suas memórias), revelou: “Tenho em minha biblioteca Machado de Assis e Euclides da Cunha, cuja trágica morte acom-panhei pelos jornais.” (In “Um homem sem profissão. Memórias e Confissões”, p.89). E num desabafo pessoal, declarou: “Nunca fui com a nossa literatura vigente. A não ser Machado de Assis e Euclides da Cunha, nada nela me interessava. (Idem, p.113)

1944, Gilberto Freyre:A paisagem que transborda d’Os sertões é outra: é aquela que a personali-

dade angustiada de Euclides da Cunha precisou de exagerar para completar-se e exprimir-se nela; para afirmar-se - junto com ela - num todo dramaticamente brasileiro em que os mandacarus e os xique-xiques entram para fazer companhia ao escritor solitário, parente deles no apego quixotesco à terra e na coragem de resistir e clamar por ela. Resistir quando todos desistem. Resistir sempre. Clamar no deserto. Clamar no deserto. Clamar pelo deserto. De modo que é Euclides mais do que a paisagem, que transborda dos limites do livro científico d’Os sertões, tornando-o um livro também de poesia (...) é livro complexo: notável como literatura e notável como ciência: ciência ecológica e ciência antropológica e até sociológica. Mas sobretudo obra de literatura. Obra de revelação. (In Perfil de Euclides e outros perfis, p.55)

1952, Afrânio Coutinho:Uma obra de ficção, uma narrativa heroica, uma epopeia em prosa, da família

de Guerra e Paz, da Canção de Rolando, e cujo antepassado mais ilustre é a Ilíada; Não há modelo que se lhe possa comparar com exatidão, fato, aliás, que se passa com a maioria das obras-primas da humanidade, cada uma realizando-se segundo lei que é a sua própria e criando seu próprio padrão estrutural; É talvez a mais alta interpretação social do Brasil feita em termos de arte; Desde logo se impôs como obra única em nossa literatura, porque nenhuma outra via o Brasil do mesmo modo que ela. (Citado por ANDRADE, Olímpio de Sousa Andrade, in História... p.342)

1956, Augusto Meyer:O que logo ressalta, no estilo de Os Sertões, é certa dissociação entre os

propósitos de objetividade científica e a crispatura, o ardor, o frêmito da frase nervosa, a intumescência lírica do período, em contraste com a atitude que o autor pretende manter, de médico-sociólogo, a examinar com a maior exação um determinado problema de quadro clínico: o paciente, neste caso, é a República e a doença é o fanatismo de Canudos (…) deixa transparecer o abalo profunda-mente humano de que partiu toda a obra: viver em espírito de solidariedade a tragédia do interior desvalido, transformando uma simples reportagem na denún-cia de um crime coletivo (…) Por este lado é que o sentimos grande: abalado, crispado, comovido, apesar da atitude que a si mesmo se impôs, de observador atento e objetivo, aramado de razões científicas, tentando demonstrar num quadro-negro não sei que teorema sociológico (…) Sob o Euclides engenheiro, impregnado do espírito positivo da sua época, transparece o Euclides poeta, isto é, um homem de aguda sensibilidade, insaciado e inquieto, sofrendo as cousas na sua carne, com uma vocação insopitável para traduzir em transfiguração superior de vida poética o espetáculo da natureza, da paisagem humana, da visão histórica (...) Pouco importa o pedante que andava a catar vocábulos raros, o escrupuloso homo faber aparando bem o lápis e notando o termo técnico e preciso; que, afinal, esta é a vitória do sonho e da vida interior sobre as ilusões palpáveis das construções materiais: ele projetava e construía, no país do futuro, os arcos de outra ponte mais duradoura. (MEYER, Augusto, ps. 239-244)

1961, Temístocles Linhares:Euclides teve plena consciência da imensa sombra telúrica que nos resguardava

o corpo e a inteligência no sertão. Com razão foi o seu livro tachado como o nosso grande romance vivo e tanto mais comovente quanto as suas pobres figuras o ignoram. Das páginas desse livro soberbo irrompem, com efeito, criaturas destituídas de personalidade, mas que formam um dos mais poderosos complexos trágicos de nossa literatura. A chave do romance brasileiro do sertão pode, pois, se encontrar aí, em seus termos de desespero, na presença das massas sub ou infraproletárias a vegetarem na hinterlândia ou a borda das cidades, arrastando consigo, a pior das doenças, a que nasce do extravio e esquecimento da própria condição humana. Nesse sentido, Euclides da Cunha foi um dos primeiros a com-preender os rumos da literatura brasileira, que não podia ser tão-somente um divertimento ou um documento, mas alguma coisa de consistente, com base na energia, no compromisso, na liberdade e também na nossa consciência. O homem não era mais o índio retratado fantasiosamente, para cuja definição do brasileiro ele certamente deu a sua contribuição. Mas quem surge agora é o mestiço, de-scendente daqueles homens do Sul que nos séculos XVII e XVIII irradiaram pelo país inteiro, seguindo as trilhas embaralhadas das bandeiras, como diz Euclides. (Citado in ANDRADE, Olímpio de Sousa, p. 351)

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- 1967, Francisco de Assis Barbosa:A presença de Euclides da Cunha, a partir de Os Sertões, tornar-se-á um

imperativo na vida mental do Brasil. Nenhum outro escritor exercerá uma tão avassaladora influência no estudo dos problemas nacionais, dos problemas de base da nacionalidade, daquilo, em suma, que se chamou, nas vésperas de 1930, a “realidade brasileira”. Será ele o mais autêntico dos inconformistas, a voz mais poderosa dentre os pregoeiros das reformas que a República de 89 não realizou. Por isso fez escola. E, a cada passo, na sua imortalidade, deixou discípulos e con-tinuadores. No processo de renovação do pensamento brasileiro, que teve um dos marcos em Os Sertões, repontam os euclidianos: de Monteiro Lobato (não só o do Urupês, como também o das Cidades Mortas) e Hugo de Carvalho Ramos (Tropas e Boiadas) até José Américo de Almeida (A Bagaceira) e Jorge Amado (Cacau e toda a saga dos romances históricos da fase heroica dos grapiúnas)(...) Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas), Herberto Sales (Cascalho), Mário Palmério (Chapadão do Bugre, Adonias Filho Memórias de Lázaro), Bernardo Élis (O Tronco) (...)

Ele não só acrescentou-se aos sertões como acrescentou os sertões para sempre à sua personalidade e ao “caráter brasileiro”, de que ficou um dos exemplos mais altos e mais vivos. Uma espécie de mártir” (Gilberto Freyre). Essa empatia, tomada a palavra no seu sentido sociológico mais amplo, bem mais terrível que a tragédia passional que pôs fim à vida material do grande escritor. É o drama de quem assistia, impotente, à sua pátria transformar-se pouco a pouco num montão de ruínas. O drama de um escritor que via, com a lucidez dos iluminados, “o quadro desanimador da nossa existência política”, em meio à indiferença muçulmana” quase que geral. O drama de um pensador que intuiu, num lampejo genial, que “a tarefa dos futuros legisladores” seria “mais social que política e inçada de dificuldades talvez insuperáveis”. O drama de um republicano que tinha a clara consciência do “artificialismo de um aparelho governamental feito de afogadilho e sem a medida preliminar dos elementos práticos da nossa vida”. O drama de um patriota que ansiava pelas soluções dos problemas brasileiros, a libertação de um povo marginalizado pela doença, pela ignorância e pela miséria. O drama de um idealista, ante a nossa impassibilidade de “mendigos fartos” e “vadios felizardos”. O drama de um estudioso, que clamava pela conservação das nossas reservas florestais, contra os “fazedores de desertos”. O drama de um sociólogo inconformado com o abandono da Amazônia. O drama de um engenheiro que pedia aos governos que o Brasil se empenhasse numa guerra de cem anos contra as secas. O drama, em suma, de um brasileiro – título que não se recebe, mas se conquista – unicamente voltado para o se país, ainda sem rumo, quando não adormecido. Este, sim, foi a marca do drama de Euclides da Cunha. Marca que é, em última análise, a do drama nacional de cada um de nós. Daí a atualidade de Euclides da Cunha e da sua mensagem ainda não encerrada, pois ele continua presente nas páginas mais fortes da literatura do nosso tempo, na obra dos ficcionistas principalmente, que refletem de um modo mais cru e menos alienado a realidade brasileira. Não só no romance social do Nordeste, como no do Brasil Central, a caatinga e os gerais, o apelo de Euclides para uma melhor compreensão do drama do homem brasileiro repercute hoje também no teatro, na obra de um Ariano Suassuna (Auto da Compadecida), Dias Gomes (O Pagador de Promessas), Francisco Pereira da Silva (Cristo Proclamado e Chão de Penitentes), e de um modo mais impressionante ainda na arte maior que é o cinema, nos filmes que na última década vêm mostrando o Brasil ao mundo, desde o veterano Lima Barreto (O Cangaceiro) ao jovem Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol). (BARBOSA, Francisco de Assis, in Revista USP 54, ps. 50, 51)

1967, Afrânio Coutinho:Os sertões é, pois, livro básico da civilização brasileira.; O livro não é um ensaio

histórico-sociológico, porém um poema épico em prosa, participando da natureza

dos poemas heroicos, e o seu autor é um artista de gênio que, partindo da observação da realidade, transfigura-a pela imaginação e pelo processo criador. ; Há de tudo em Os sertões: descrições da terra, estudo do sertanejo brasileiro; clima, flora, fauna, em especial o fenômeno da seca; análise do homem, o sertanejo, nos seus tipos, costumes, crenças, motivações, comportamento étnico e social.; Os Sertões são uma obra de ficção heroica, uma epopeia em prosa. ; Livro único, Os Sertões são dessas obras inclassificáveis dentro dos esquemas simplistas dos gêneros ; Obra de arte, Os sertões oferecem um quadro da vida sertaneja, da psicologia do povo brasileiro das regiões centrais, seu fatalismo, seu sentimento da inutilidade de tudo. ; Em Os Sertões há mistura gêneros, o ensaio, o drama, até a poesia lírico ; De todo esse trabalho reinterpretativo, resultará a reclassificação de Os sertões na história literária brasileira como obra de arte de ficção. (COUTINHO, In “Euclides, Capistrano e Araripe”, Editora Tecnoprint, RJ, 1967, p.)

1973, Antônio Cândido:Livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, Os sertões assinalam

um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira ( no caso, as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior ) (…) O poderoso imã da literatura interferia com a tendência sociológi-ca, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil, e à qual devemos a pouco literária História da literatura brasileira, de Silvio Romero, Os sertões, de Euclides da Cunha, Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, a obra de Gilberto Freyre e as Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

1978, Wilson Martins:Confirma-se a grandeza absoluta desse livro pelo fato de impedir para sempre

que alguém o reescreva, e pelo fato de que o próprio autor foi, em certa medida, paralisado por ele. Os seus outros livros quase não têm existência própria: são os livros do autor de Os Sertões (…) é justamente por seu valor literário e histórico que Os Sertões podem ser considerados uma das grandes obras das literaturas ocidentais e nelas mantêm situação absolutamente incomparável (…) em nen-hum outro país, em nenhuma outra literatura, será possível encontrar qualquer obra que realmente sustente a comparação com a grandeza específica e complexa de Os Sertões (…) o autor e o livro logo se transformaram em mito na vida literária, com todas as consequências aterrorizantes que tal coisa comporta; a presença avassaladora jamais se transmudou realmente em influência. O estilo de Euclides da Cunha, dadas as suas singularidades intransigentes, é daqueles que, pelo simples fato de existirem, fecham todos os caminhos de multiplicação original: repeti-lo será imitá-lo, isto é, negar desde logo ao estilo a possibilidade de realizar-se (…) A ``grande ilusão de Euclides``, dizia Roquete-Pinto fazendo responsável único pelo que era, àquela altura, a verdade científica de todos aceita, ``consistiu em considerar inferior, gente que só era atrasada; incapazes, homens que só eram ignorantes``. Essa opinião resulta, aliás, de uma leitura errada dos Sertões, sendo evidente que Euclides da Cunha afirmava, ao contrário, que aqueles `` inferiores`` eram apenas atrasados, e que aqueles ̀ ` incapazes`` eram apenas ignorantes…(…) Ao contrário da regra comum entre os grandes artistas - que veem o mundo através de outras obras de arte, não diretamente em suas espécies reais - Euclides da Cunha soube vê-lo e traduzi-lo como aquela ``terceira real-idade`` em que o real se transforma quando deixa de ser aparente. (…) Esse ``livro vingador`` conserva ainda hoje toda a sua potencialidade polêmica, toda a sua força de controvérsia - e é o que prova tratar-se de um livro vivo (…) fica demonstrado que, para além do plano em que a coisa escrita é um simples

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repertório, só se perpetuam aquelas obras capazes de crescer com o tempo, isto é, aquelas que representam uma criação de estilo. Nessa concepção superior de literatura, não há diminuição nenhuma em considerar a obra de Euclides da Cunha e, em particular, Os Sertões, como um triunfo literário, isto é, como alguma coisa que se acrescentou às dimensões intelectuais do homem brasileiro. Quaisquer que sejam ou tenham sido as suas repercussões nos domínios imediatos da ação política e social ou ao nível da língua literária, é bem certo que a inteligência brasileira alcançou automaticamente, em 1902, uma cota superior àquela em que se encontrava e situou-se à altura das melhores tradições espirituais do Ocidente. Esse é, creio eu, o significado último da obra de Euclides da Cunha. ``Todo o mundo me reconhece no meu livro, e o meu livro em mim``, poderia ele dizer, como Montaigne; mais rico de consequências, entretanto, é o fato de que uma nação inteira possa reconhecer nessa obra única a síntese mesma de toda a sua história intelectual. (MARTINS...ps.213-217 )

1981, Alfredo Bosi:A atualidade de Os Sertões, ou, melhor dizendo, a sua modernidade, funda-se

principalmente no sentimento de contradição que sai da leitura de todas e de cada uma das suas páginas. Não se trata apenas das contradições objetivamente apontadas por Euclides da Cunha ao descrever o relevo e o clima da região de Canudos, ao narrar a história racial e cultural do sertanejo, ao interpretar a luta entre este e o ``civilizado`` do litoral; trata-se do próprio foco subjetivo que ditou a obra, o ponto de vista do autor, no qual se confrontou, contraditória e dramaticamente, o fatalismo darwiniano de uma ciência que se quer impessoal e a ética da denúncia que trai a indignação, a ``santa ira`` contra o massacre dos inocentes ( In PINHEIRO, p.104)

1982, Paulo Francis, jornalista e romancista:Os sertões são um inferno. Euclydes me provou no único teste verdadeiro de

literatura, o encontro total de autor e leitor, que escreveu, que criou em lingua-gem os sertões, o inferno da terra brasileira. Não há outro estilo possível para ``Os Sertões``, porque ``Os Sertões`` não são os sertões do realismo literário, geológico, etc, e sim uma criação que só existiu na cabeça de Euclydes da Cunha (…) Enquanto lemos Euclydes, a realidade é aquela linguagem que faz os sertões florescerem numa efusão incontrolável de palavras, todas em lugares que nos tocam, nos envolvem à intoxicação na glória e tragédia de Canudos. A obra tem o mesmo efeito que Sófocles, Ésquilo e Eurípedes nos legaram (…) Nunca antes, certamente, e nunca depois, que eu conheça, nossa língua teve tal riqueza, nunca falou tanto por si própria, apesar dos arcaísmos que Euclydes escolheu, quando não precisava, pois viveu em pleno modernismo (…) Euclydes pegou nosso mísero vernáculo e dele forjou em aço a consciência incriada de nossa raça (…) não é consciência social que faz de ``Os Sertões`` um épico. É literatura. Ravel dizia que música é organizar sons agradáveis ao ouvido. Basta substituir música por palavras e temos Euclydes (…) a grandeza de ``Os Sertões``, que faz da obra uma das realizações supremas da literatura mundial, é a linguagem de Euclydes da Cunha, a invenção de palavras que - sentimos - não poderiam ser outras, que transcende o narrativo, que se torna um mundo único, inimitável, impossível de melhorar, de mexer, de mudar a menor vírgula ou ponto. A lingua-gem fez do ser humano um usuário do adjetivo. Nunca na nossa língua foi usada de maneira tão expressiva. Sobrevive de si própria e é imortal. (Suplemento do D.O.E - SP, 18/12/1982 ).

1982, Franklin de Oliveira:(…) Os Sertões é uma assembleia de estilos, um comício de formas e pro-

cedimentos literários. Nele estão presentes desde estilemas barrocas aos impres-

sionistas e expressionistas. Há a frase exasperada, luxuosa, tortuosa, fundada no emprego do oximoro, do paradoxo, das aliterações, assonâncias e onomatopeias, por vezes o predomínio do som sobre o sentido. Há o escultural presidindo a elaboração fraseológica, privilegiando a dicção em relevo, como se ela fosse um sistema ortográfico. Euclydes realiza um tipo de prosa só cultivado no Brasil antes dele por Raul Pompéia: a prosa polifônica. Sua frase é orquestral, com predomínio das vozes metálicas. Por que este gosto pela polyphonic-prose ? Talvez aqui esteja um problema mais de natureza psicológica do que artística. Euclydes era homem de formação científica. A marca da prosa dos cientistas - e o grande modelo é Galileu - é a clareza geométrica. Tal prosa tem um protocolo: o da linha reta. Contra esta norma, Euclydes se insurgia. Ele dá a ideia de um rio - o seu fluxo verbal - que, de repente, salta fora de seu leito - transborda, espraia-se. O tur-bilhão da linguagem surge, então, como uma espécie de vindita contra a ordem e a disciplina da dicção científica. Euclydes contrapunha a opulência verbal à economia do pensar científico (Suplemento do D.O.E. - SP, 18/12/1982)

1986, Oswaldo Galotti:(...) resolvemos dividir o sentido da vida de Euclides da Cunha em seis áreas.

O primeiro aspecto que impressiona em Euclides é a valorização que ele dá à natureza. Ele mesmo disse, no discurso de recepção da Academia Brasileira de Letras, que ele era um enamorado, profundamente, da natureza. Euclides amava a natureza. Foi um grande amor de Euclides. E em toda a obra, em toda a vida, Euclides está envolvido com a natureza, fala da natureza, a natureza está presente. A segunda área que nós gostaríamos de salientar é o problema da valorização do sentido do social de Euclides. Ele achava que que todo o ser humano devia ser defendido do ponto de vista da sua dignidade pessoal. Portanto, é um tema, de fato, universal. Quer dizer: a liberdade, a igualdade, a fraternidade. A terceira área do sentido da vida de Euclides, para nós, é a valorização da ação. Euclides, sempre que produziu, produziu quando estava em ação, quando estava agindo, porque a ação, nele, gerava um tipo de consciência das coisas, mas principalmente quando ele estava em ação. E ele, como a gente vê, na vida dele toda, sempre foi um extraordinário trabalhador. Nunca descansou. Ele foi a Canudos, não ficou em casa pensando em Canudos, ele foi até lá e escreveu o Diário de uma expedição. Mas Os sertões, ele concebeu foi lá mesmo. Vendo, tomando contato com o fato. A mesma coisa aconteceu com a Amazônia. É o que nós chamamos o pragmatismo de Euclides da Cunha. Pragmatismo no sentido de a ação se brir para o contato com a realidade, com as essências. E por isso Euclides era um evolucionador, e não um revolucionário. Quarto aspecto do problema: a valorização do fato, o racionalismo de Euclides. Precisa ficar claro, também, que Euclides era um racionalista, consequência dessa posição pragmática dele. Ele, então, se dedicava ao cientificismo, ecletismo, ensaísmo: eram métodos dele para penetrar, ou para explicar, os assuntos. Quinto: Euclides era um sujeito antirreligioso, não se preocupava com questões de religião, isso é muito importante. Era um realismo crítico. E graças a esse realismo crítico de Euclides, é que nós poderemos, então, dizer que ele nos deu Os sertões, e nos deu o ciclo todo da Amazônia, porque queria entrar na essencialidade dos fatos. E por causa disso ele é muito atual. Sexto: concentrando tudo isso, o que há de maior em Euclides da Cunha é o patriotismo. Aliás, a palavra exata seria nacionalismo, sem ufanismo, respeitando o nacionalismo de todas as nações. (In: GALVÃO, W. N. Euclidianos... p.29 a 32)

1986, Franklin de Oliveira:(...) todas as objeções levantadas em relação a Euclides, pela visão dualista,

todas as objeções a sua ideologia racista, etc., não afetam a grandeza de Os sertões. Porque a grandeza de Os sertões, para mim, antes de qualquer coisa, antes de sua ciência, etc. e tal, está em ser uma obra de arte. E como uma obra

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de arte vai atravessar os tempos. E haver ou não erros não vai afetar essa qual-idade. Pode-se destrinçar toda a ciência dele, e chegar à conclusão de que estava inteiramente fora de foco. Mas se salva porque é uma obra de arte. É – digamos – um monumento estético, e não só um documento social. É as duas coisas. Mas mais importante ainda é o monumento estético em que o documento social está embutido. E essa obra de arte está apoiada, para mim, não só na linguagem, no tratamento da língua, que ele dispensava à matéria, ao escrever Os sertões. Está também na arquitetura interna do livro, e esse é um problema importante (...) ele compõe Os sertões como um compositor comporia uma sinfonia. Não há coisa fora de lugar. Até aquilo que parece repetição, não é: cumpre uma função artística. (In: GALVÃO, Euclidianos e.... ps. 110 a 112)

1986, José Calasans:Os sertões “perdeu um pouco de prestígio depois que as Ciências Sociais, a

partir de 30, chegaram ao Brasil, pois se começou a ver que a coisa era muito fluida. O que ele diz sobre o negro não passa de três ou quatro linhas, dizendo assim que mestre, Nina Rodrigues, estudava, e tal, mas ele não se aprofunda. Sobre os índios, também não se aprofunda. Então, quando se começou a estudar o índio e o negro brasileiro, o livro perdeu muito no que lhes diz respeito. Agora, este livro, no meu modo de ver, ficou como o grande depoimento de um episódio importantíssimo na história do Brasil. Episódio que tem provocado manifestações no cinema, no teatro, na arte popular, na poesia (...) Mas, foi Euclides quem nos permitiu fazer hoje uma reavaliação de Canudos, tendo, portanto, uma importância extraordinária. Eu acho que as críticas feitas são injustas, até certo ponto: a gente tem que pensar que Euclides abriu o caminho! Abriu certos caminhos... Nenhum escritor brasileiro se lembrou de falar de poesia popular, e aproveitar a poesia popular. O que ele disse dos cantadores... Ele não assistiu àquele desafio que descreveu em Os sertões. Ele não assistiu: ele leu em outro livro. Mas, ele valorizou o desafio ( In: GALVÃO, Euclidianos e..., p.67)

1986, Mario Vargas Llosa:Os Sertões é um manual de latino americanismo, quer dizer, neste livro se

descobre primeiro o que não é a América Latina. A América Latina não é tudo aquilo que nós importávamos. Não é tampouco a Europa, não é a África, nem é a América pré-hispânica ou as comunidades indígenas - e ao mesmo tempo é tudo isso mesclado, convivendo de uma maneira muito áspera e difícil, às vezes violenta. E tudo isso resultou algo que muito poucos livros antes de “Os Sertões” haviam mostrado com tanta inteligência e brilho literário. (In SETTI, Ricardo, “Conversas com Vargas Llosa”, p.44)

1999, Antônio Candido:Nos primeiros anos do século XX apareceram algumas obras de gêneros

diversos, que marcam uma espécie de ruptura inconformada com as tendências predominantes. É o caso de Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909), descrição da luta entre grupos rurais dirigidos por um líder messiânico e as tro-pas do exército, que transformaram a repressão em guerra de extermínio, encerra-da em 1897. O autor esteve como correspondente de um jornal na última fase da luta e sentiu toda a tragédia do choque de culturas. Graças à conjunção de um acontecimento dramático, da férvida imaginação de um observador privilegiado e da força de um estilo enfático, a opinião pública sentiu que a sociedade brasileira repousava sobre a contradição entre o progresso material das áreas urbanizadas e o atraso que marginalizava as populações isoladas do interior. Faltou a Euclides da Cunha apenas salientar a miséria que acompanha esta situação de abandono, para mostrar que se tratava de algo quase tão grave quanto a escravidão, que

tinha sido abolida pouco antes. Ele baseou o seu livro no esquema determinista em voga naquele tempo, indicando como o meio físico e a raça condicionavam os grupos sociais, e como a diferença de ritmos da evolução gerava desarmonias catastróficas. A sua escrita transforma a pretendida objetividade científica em testemunho indignado e lúcido, resultando em denúncia do exército e da política dominante. Apesar disso Euclides da Cunha (que tivera formação na Escola Militar) foi glorificado de imediato e o seu livro tornou-se um clássico, conhecendo um dos maiores êxitos editoriais que o Brasil vira até então. Um dos motivos disto pode ter sido o fato de ele haver despertado na consciência das classes médias o sentido de problemas que ela ignorava ou recalcava. Mas deve ter contribuído, também, o voo retórico do estilo, inclusive no rebuscamento do vocabulário e das construções sintáticas, bem-vindos aos “cultores da forma. (CANDIDO, Antônio, “Iniciação à Literatura Brasileira”, Humanitas/ FFLCH/USP, São Paulo, 1999, p. 64)

2000, Luiz Costa Lima:(...) o legado que Euclides traz do sertão de Canudos: voltava convencido

que a expedição militar, em vez de simplesmente provar o acerto da República em dizimar os que a ameaçavam, mostrara que o futuro do país estava na dependência da justa compreensão do que ali se travara. Abandonava assim a cômoda hipóteses com que chegara: não só era descartada a explicação política do suposto complô monarquista, como também a suposição de que a República, pelo funcionamento de suas instituições, por si asseguraria o processo civilizatório do país. Em seu lugar, Euclides voltava convencido de que árduos estudos have-riam de ser empreendidos. Eles se iniciaram ou deles faria parte a tarefa que põe sobre seus ombros: descobrir o país que permanecia desconhecido. Mas como realizá-lo¿ O caminho pareceria árduo e, ao mesmo tempo, indispensável. Árduo pelas leituras que teria de sistematizar, nas horas vagas de uma vida profissional que nada tinha a ver com aquilo e pela quantidade de áreas que deveria min-imamente dominar. Indispensável porque, sem duvidar da razão da “religiosidade indefinível”, da razão pois do fervor em que o messianismo do Conselheiro se sustentava, tratava-se de encontrar no pensamento evolucionista a maneira de extirpá-lo e, por conseguinte, de trabalhar pela “salvação” do país. Pode-se, pois, dizer que, embora curta, a permanência na Bahia fizera surgir outro Euclides. O contato com o interior do país enterrara o republicano ingênuo e fervoroso. Sua impetuosidade agora beirará o trágico (...) A juventude republicana encontrara no positivismo de Comte e no evolucionismo de Spencer uma aparente transgressão da palavra oca e sentimental que dominara no Segundo reinado. Transgressão que se supunha fundada no realce da matemática e no espírito factualista das ciências positivas. Foi neste ambiente que Euclides se educou Era a ele que iria recorrer para a consecução de seu plano. Contudo o enigma que criara para si – como explicar a resistência física e mental de uma sociedade rude e ignorante – exigi-ria um meio intelectual mais exigente, amplo e preparado. É verdade que, como assinalam seus biógrafos, disporá de amigos, que lhe trazem livros e informações especializadas. Sem eles, pode-se dizer, Os sertões não teria alcançado o nível que se lhe reconhece. Mas o problema posto tinha dimensões bastante maiores do que os meios à disposição de Euclides. Contra o ecletismo superficial que herdáramos e adotáramos, Euclides dispunha apenas dos evolucionistas que lia avidamente e, sobretudo, do culto da ciência factual, positiva, quantitativamente orientada. Estava então forçado a resolver o enigma dentro de coordenadas pouco favoráveis. Para fazermos justiça a seu livro maior deveremos levar em conta os obstáculos que se lhe antepunham (...) Em uma época em que o evolucionismo dominava e o país não primava por qualquer densidade intelectual, era explicável que fosse nele que o autor buscasse a resposta. Articular-se-ia, ademais, a uma convicção mais profunda e elementar: para Euclides, a ciência importava por seus resultados.

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(LIMA, 2000, ps.36-37-38-39-40)

2002, Nicolau Sevcenko:Em suas páginas tudo flui, tudo se move, tudo se transforma. Sensação essa

que é ainda acentuada pelo fato de ele próprio, o escritor, ser tomado por uma obsessiva inclinação pela errância, pelo deslocamento a grandes distâncias, pelo apelo irresistível das “peregrinações pelo deserto”. Como ele mesmo diz em carta a José Veríssimo (7-7-1904), “não desejo a Europa, o boulevard, os brilhos de uma posição, desejo o sertão, a picada malgrada e a vida afanosa e triste do pioneiro”. Essa atenção meticulosa à dinâmica dos processos de transformação, seja no âmbito da natureza ou das sociedades humanas, revela a afinidade de Euclides com as teorias científicas do século XIX e em particular com o aguçamento da percepção temporal e histórica que lhes era peculiar. Por outro lado, como o próprio escritor fazia questão de destacar, esse seu sentido atento para com os fluxos naturais e os deslocamentos humanos derivava também da sua condição de mestiço de indígenas, ou, nas sua palavras, de “caboclo”, “tapuia” e “bugre”. Num desses paradoxos muito a seu gosto, no seu caso a sofisticação cultural europeia afinava às maravilhas com a sensibilidade da herança indígena. Essa feliz homologia lhe permitiu inferir, por exemplo, o papel decisivo que as práticas de errância desempenham nas estratégias de resistência e sobrevivência das cama-das populares no Brasil. Nesses termos, os personagens de Euclides são sempre coletivos e se movem numa itinerância incansável (índios e mamelucos, tropeiros, vaqueiros, sertanejos, bandeirantes, seringueiros, caucheiros, migrantes, sitiantes, posseiros, pioneiros, romeiros, peregrinos, flagelados). No Brasil dos latifúndios, fixar-se nalgum recanto implica ser absorvido nos sistemas de clientelismo e da dependência servil. Daí o apelo, ou melhor, o imperativo da errância como recurso de resistência, de busca de alternativas de sobrevivência e de negociação das relações de trabalho. Foi esse o mecanismo que deu origem a Canudos, que no curto espaço de uma década se tornou a terceira cidade mais populosa da Bahia. Se a errância é uma estratégia básica das camadas populares, os espaços que ela demanda empurram essas populações para as áreas virgens ou ermas, assim como para as fronteiras de expansão e de ocupação do território brasileiro. De forma que, ao invés de vislumbrar a história do país da perspectiva das cidades do litoral, Euclides faz um deslocamento de 180 graus e a reformula pelo viés dos grandes espaços interiores, das cadeias hidrográficas e das disposições físicas do relevo, através dos quais fluíam em todas as direções esses contingentes que constituíram o corpo básico da nação. Esse procedimento vira de cabeça para abaixo os discursos nacionalistas do Império. Voltado para o sertão e suas gentes, Euclides renega os pressupostos de uma visão de história lusocêntrica, fundada ademais nos assentamentos litorâneos, nos latifúndios exportadores, no Rio de Janeiro e em última instância nos Pés do Trono. Encarnando a história da nação nas camadas populares, suas itinerâncias e seus processos adaptativos, o escritor dá plena expressão ao seu projeto republicano. (SEVCENKO, p.34)

2008, Valentim Facioli:Os Sertões é um livro escrito com evidente intenção de estruturar o consórcio

de ciência e arte, explicar e comover, discutir e emocionar, condenar o “crime” cometido pela “civilização republicana modernizante” contra a “rocha viva da nossa raça”, isto é, o sertanejo. Mas é também uma grande narrativa de guerra, a guerra recente, portanto, de atualidade, e, como toda narrativa de guerra, o livro de Euclides destina-se dos diversos recursos da tradição literária, de gênero e de forma. Há nele o épico, o trágico e o cômico, a epopeia, o teatro, e mesmo a poesia lírica, embora tratada de maneira prosaica, e ressumos de ironia e sátira. Digamos de modo geral que que o alto e o baixo dos discursos, das dicções e

registros linguísticos, segundo a tradição clássica, convivem, reproduzindo, também nesse nível, o gosto acentuado do autor pelos paradoxos, pelas antinomias e jogos de contrastes que ele narra na formação dividida do Brasil e na luta travada em Canudos. De certo modo é a “linguagem moderna de choque” o que Euclides constrói e expressa para tentar dar conta do conflito que narra em seu livro (...) A mistura de gêneros e formas da arte literária com as ciências físicas, naturais e as humanidades, mais a mistura de raças – com o resultado dramático da mestiçagem -, somando-se com as outras inúmeras misturas de civilização e barbárie, heroísmo e terror, gerando um estilo hiperbólico, com fundamento em figura de intensificação de efeitos e imagens, o gosto pelos superlativos, a combi-nação inusitada de substantivos e adjetivos, muitas vezes beirando o pleonasmo e até o tautológico (“sóis ardentes”, “pequenos arbúsculos”, “fatalidade inexorável”, “apoteose triunfal” etc), e especialmente a prática generalizada das antinomias, dos paradoxos, dos oximoros, das oposições e das contradições retóricas, marcam o estilo e o livro. Mas não o invalidam. Essas múltiplas misturas de aspectos, elemen-tos, circunstâncias, valores, imagens, sugerem no nível mais profundo uma imagem de um Brasil mais misturado, um Brasil híbrido, onde as disparidades convivem sem se resolverem, implicando um país de polos e diferenças não-conciliáveis, ou seja, um Brasil malformado, talvez informado, sem indicar que uma formação completa e burguesamente moderna seria possível algum dia, no futuro (...) Não obstante, é fundamental enfatizar que a vigência e atualidade do livro de Euclides da Cunha têm profunda relação com a situação objetiva do país na atualidade de 2007, conquanto passado mais de um século. Embora as distâncias entre litoral e interior se tenham modificado e em parte atenuado, o problema (ao qual Euclides não parece ter sido muito sensível, pelo menos em Os Sertões) é a distância entre as classes sociais, que permanece assombrosamente grande. Hoje não é evidência entre litoral e sertão, mas realidade multiplicada em todas as cidades, grandes ou pequenas, em todos os lugares, as desigualdades sociais, econômicas, culturais, de saúde e educação, de acesso aos bens modernos e de validade e legitimidade dos valores burgueses de igualdade perante a lei, todo esse cortejo monstruosidade, com nome diferente, está em Euclides.” (FACIOLI, ps. 11, 112 e 113)

2006, Mario Vargas Llosa:Li Euclides da Cunha pela primeira vez por causa de um trabalho cinematográf-

ico: escrevia então um roteiro para um cineasta brasileiro que queria fazer um filme sobre a época em que ocorreu a guerra de Canudos (*), e que esta de alguma forma se refletisse na história. Para me documentar sobre essa guerra, li muitos livros, e um deles, para minha grande alegria, foi Os sertões. Acredito ser esse um dos grandes livros escritos na América Latina e, embora não possa ser chamado de romance, é um dos prodígios narrativos deste século.

Como se sabe, Euclides da Cunha foi expulso do Colégio Militar em razão de suas ideias republicanas na época da monarquia, e que abraçou a causa da República com uma paixão militante. A República foi uma instituição nascida de uma aliança entre militares e intelectuais progressistas enormemente influenciados pelas ideias positivas francesas; uma República que se instalou no país de maneira indolor, com o consentimento generalizado do Brasil urbano e ocidentalizado, e que teve uma grande surpresa quando, poucos anos depois de estabelecido o novo regime, em fins do século XIX, viu levantar-se uma rebelião camponesa numa região afastada, no interior do estado da Bahia. Foi uma rebelião desnaturalizada por preconceitos políticos, por uma ideologia reinante no Brasil oficial, intelectual, que a apresentou como produto de uma conspiração dos monarquistas, dos latifundiários baianos e da Inglaterra, país com o qual a monarquia brasileira havia tido uma relação privilegiada. Essa incompreensão, no final, degenerou numa guerra civil e numa matança, se acredita, de pelo menos 40 mil brasileiros (**).

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Euclides da Cunha foi um desses republicanos que agitou tremendamente e in-toxicou a opinião pública descrevendo a rebelião como produto dessa conspiração de forças retrógradas e reacionárias. Como jornalista que era, escreveu muitos artigos exortando os brasileiros a combater a rebelião da forma mais severa e a se integrarem como voluntários nas forças que saíram à luta contra os rebeldes. Ele, Euclides, participou na quarta expedição, naquela que finalmente perpetrou o massacre e deu fim à rebelião de Canudos. Ele esteve na frente da batalha e, mesmo ali, continuou ofuscado por seus preconceitos ideológicos. Escreveu algu-mas crônicas nas quais descrevia não o que via, mas aquilo em que acreditava: oficiais ingleses vestidos de camponeses, balas com explosivos somente usadas pela armada britânica, e coisas assim.

Contudo, depois da matança, Euclides da Cunha foi um dos primeiros bra-sileiros a abrir os olhos e perceber que tudo aquilo era resultado de um ter-rível mal-entendido, que a rebelião era obra de pessoas humildes e ignorantes, anárquico-religiosas, e que não havia nem conspiração nem laços exteriores. Na verdade, essa guerra civil e a consequente matança haviam resultado de alguns delírios recíprocos, de intolerâncias que cegaram totalmente os dois lados e que os levaram a se exterminar.

Foi assim que, para explicar realmente o acontecido, Euclides escreveu Os sertões, livro extraordinário que é uma indagação, um magnífico esforço para esclarecer um fato histórico utilizando todas as disciplinas e conhecimentos de sua época, uma tentativa um pouco ingênua nesse sentido, mas muito ambiciosa como a de um romance total. E um livro do qual resultou, não sei se uma explicação completa, mas sim um estupendo relato sobre as intolerâncias, os desastres da ideologia e a transformação que às vezes sofrem ideias e instituições europeias ao serem transplantadas ao solo americano.

Acredito que Os sertões é um dos livros mais valiosos para entender, não tanto o que é a América Latina, como o que não é. Esse livro foi para mim muito importante; eu o li, além disso, num momento em que vivia uma crise ideológica, um ceticismo crescente sobre a visão politizada dos problemas sociais e históricos e uma atitude de rejeição total às intolerâncias. Foi uma coincidência extraordi-nariamente feliz que eu lesse Os sertões naquele momento. E, porque li esse livro, escrevi o romance que mais tempo exigiu de mim: A guerra do fim do mundo.

Sempre releio Os sertões com extraordinário entusiasmo. É um dos livros que mais me intrigam. Acredito que, como um grande romance, é ao mesmo tempo um livro que não pode ser definido por nenhum rótulo de forma plena. Não se pode dizer que seja um romance, mas também que o é, no sentido de que os personagens têm vida própria porque há uma língua que os cria. Existe uma história que morde o próprio rabo, um episódio que se fecha sobre si mesmo. Mas, de forma paralela, não é um romance, porque está baseado em fatos históricos e tudo aquilo que conta está muito bem documentado. Há um personagem que faz as vezes de narrador e cuja idiossincrasia se parece à dos narradores dos romances de Victor Hugo: presente, visível, egocêntrico, exibicionista; o narrador todo-poderoso dos romances românticos, neste caso o próprio Euclides da Cunha, que entra constantemente a opinar, exortar, polemizar com o leitor. É um livro muito instrutivo sobre a realidade e, ao mesmo tempo, um livro que, embora essa realidade que descreve já não exista, é absolutamente vivo e persuasivo por si mesmo; um livro seguramente muito diferente do que ele pretendeu escrever, que resultou de uma força profunda, mais poderosa que a inteligência, que as con-vicções, que os desígnios que o levaram a empreender a aventura de Os sertões.

Termino aqui. Acredito que o escritor, pelo menos este escritor que sou, escreve seus romances como escreveu Euclides da Cunha Os sertões, se impondo um determinado objetivo, a partir de um certo paradigma, para materializar uma certa ambição, pondo a serviço dessa iniciativa seus conhecimentos e paixões. E

o resultado sempre escapa de seu controle; não sei se por baixo ou se algumas vezes ˆcomo acho que aconteceu no caso de Os sertões - está muito por cima do que foram os desígnios do autor ao escreve-lo, mas o resultado é alguma coisa que não é, sob nenhuma hipótese, exatamente aquele a que se propôs. Isto é talvez o mais fascinante da criação literária (a criação artística em geral): saber que, por meio desse processo do qual sai um romance, uma obra teatral ou um poema, alguma coisa passa a fazer parte do mundo, algo que nós que o escrevemos - fomos capazes de produzir, mas no qual obviamente entraram outras mãos invisíveis que colaboraram e imprimiram uma certa orientação, e em algum momento desviaram o curso previsto, e no qual algumas vezes o resultado final foi uma surpresa absoluta para o próprio autor.

(*) Ruy Guerra. Diretor brasileiro de origem moçambicana. O filme não foi realizado. (N. do E.) (**) Mario Vargas Llosa exagera ao citar tal quantidade de mortos, pois a maioria dos historiadores citam números que nunca ultrapassam 10 mil as vítimas fatais. (LLOSA, in Dicionário...ps. 125, 126 e 127)

2009, Walnice Nogueira Galvão:(...) Logo de saída, defrontei-me com a constatação de que Os sertões é uma

espécie de colcha de retalhos de uma infinidade de outras narrativas. Euclides estivera pouco tempo em Canudos, nem bem três semanas, e por isso se valera abundantemente de testemunhos alheios. As outras narrativas, mesmo que unifica-das pela tremenda força do estilo de Euclides, transpareciam sob a sua.

Foi preciso, num desbaste inicial, identificar e apartar as fontes que utilizou não diretamente ligadas à guerra – e foram inúmeras: de história, de geografia, de geologia, de ótica, de balística, de zoologia, de botânica, de meteorologia..., até de castrametação. Quase tudo pela rama, coisas que tinha aprendido nos bancos escolares da Escola Militar e que costumava citar de ouvido, deturpando-as (...) Os sertões exibe uma ambição enciclopédica, de compreender, sem aprofundá-los, os saberes da época, bem ao gosto do novecentismo finissecular.

Outro passo foi identificar as narrativas coevas propriamente da guerra que também tinham servido de fonte. Isto posto, restavam as que, não transportadas para livro, tinham desaparecido, e que presumivelmente estariam em jornais (...) Pus-me à cata desses jornais (...) dediquei-me ao levantamento do material periodístico (...) É de admirar que Euclides tenha conseguido escrever seu “livro vingador”, chamando os canudenses de “extraordinários patrícios” e os soldados de “mercenários inconscientes”, insistindo que a campanha foi “na significação integral da palavra, um crime”, conforme consta da Nota Preliminar. Ao contrário de Os sertões, a condenação unânime dos canudenses uniformiza o ponto de vista dos jornalistas. De todas as reportagens Euclides pode aproveitar elementos. E se a intertextualidade é um forte esteio na composição de seu livro, com relação tanto aos materiais de pesquisa quanto à consulta bibliográfica, veio a se revelar em conexão também com as reportagens ora editadas e que tinham ficado perdidas nas páginas dos jornais.”

(...) Sobretudo naturalista e positivista, Euclides vai ser rejeitado pelo modern-ismo. A retórica do excesso, o registro grandíloquo, o tom altíssono só poderiam ser avessos ao espírito modernista. Acrescente-se a isso sua preocupação pelo uso de uma língua portuguesa castiça e arcaizante, ao tempo em que Mário de Andrade ameaçava todo mundo com seu projeto de escrever uma Gramatiquinha da fala brasileira. No entanto, mal sabiam os modernistas que em Euclides contavam com um abridor de caminhos. O modernismo vai dar continuidade a algumas das preocupações de Euclides com os interiores do país e com a repulsa à macaqueação europeia nos focos populacionais litorâneos. Partilha igualmente com ele a reflexão sobre a especificidade das condições históricas do país, na medida em que já em Os sertões Euclides realizara um mapeamento de temas

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que se tornarão centrais na produção intelectual e artística do século XX, ao debruçar-se sobre o negro, o índio, os pobres, os sertanejos, a condição colonizada, a religiosidade popular, as insurreições, o subdesenvolvimento e a dependência. Aí fincam suas raízes não só o modernismo mas também o romance regionalista de 1930 e o nascimento das ciências sociais na década de 1940.

(...) A modernidade d`Os sertões, a tantos títulos nada moderno, nasce de seu ângulo distorcido. Temos aí um épico que também é trágico, um livro cientificista que se realiza como obra de arte literária, um esquema determinista que mimeti-za a Bíblia, um Apocalipse com Gênesis porém sem redenção, uma demanda em que o herói é o autor, um diálogo escrito pelo simposiarca de convivas ausentes, um canto do bode entoado pelo verdugo. Toda essa ironia terá sido deliberada. Ela nasce da conjunção infeliz de elementos que se repelem, e é disso que o livro tira sua melhor força. Há, também, ironia propositada, porém em nível mais imediato, como o escárnio constante de pretensões científicas, do estilo literário das ordens do dia militares, do pedantismo e da erudição alheios, do progresso que põe fé no “legislador Comblain (e no) argumento (...) moralizador – a bala. Esse livro dá conta, por meio de examinar o seu avesso, do início do processo de modernização do país, ao qual é contemporâneo e do qual examina a face não eufórica. (GALVÃO, Euclidiana, páginas 9, 10, 11, 12, 28, 45)

2009, Marco Luchesi:É hora de dizer adeus a Euclides da Cunha. Como quem se liberta de um

incômodo fantasma, perdido nas páginas da história da literatura, que já não assombra – anêmico e distante -, preso nas malhas das antologias, que repisam os episódios de um só livro, como o estouro da boiada, o físico do sertanejo e o rosto do Conselheiro.

Como se a obra de Euclides, cortada em fatias, não fosse mais que uma espécie de relíquia veneranda, afogada na poeira de um século.

Hora de dizer adeus ao Euclides fora de sua própria obra, desfigurado não apenas – e tão tristemente – em seus despojos, como também no vigor de suas ideias.

Dizer adeus ao Euclides parcial para voltar à leitura generosa daquelas páginas vibrantes – que assombram e arrebatam como poucas na literatura brasileira – e reunir aqueles estilhaços num quadro mais profundo e mais articulado.

Apenas Euclides.Mas integralmente. O da grande prosa poética, onde se alternam desertos de

água e pedra. O cartógrafo, de régua e compasso, no gabinete, e o viajante, que põe em risco a própria vida, nos descampados da Bahia ou no inferno verde da Amazônia. O drama do sertanejo lado a lado com o do seringueiro: o Hércules Quasímodo e Judas Asverus. A distância histórica entre o rio Purus e o Vaza-Barris. A visão do Atlântico e do Pacífico, em Peru versus Bolívia. O republicano convicto e o socialista definindo o lugar do Brasil na América do Sul.

E, finalmente, o Euclides das grandes certezas e dos erros formidáveis, quando se perde genialmente nas chamas da utopia e na esfera glacial do desengano.

O Euclides que se compara ao profeta Jeremias, a quem faltam barbas brancas, emaranhadas e trágicas – barbas que, se não lhe cobrem o rosto, simbolizam o drama de uma prosa inconfundível – a fratura do ser no espelho do verbo. Feridas que se abrem para um sertão segundo, na literatura brasileira, onde brilham os olhos de Diadorim.

É hora de voltar ao continente Euclides. Ao pensamento vivo do grande intér-prete do país. À partitura de uma beleza plural e dissonante.

A prosa fluvial de Euclides da Cunha – excessiva e irregular, rica em nutrientes e potencialidade – estende-se por todos os domínios da linguagem. E avança – dramática e vertiginosa, num regime de cheias e vazantes, corredeiras e quedas

d`água – ao coração absoluto da história; tão sinuosa, em seu percurso, e imprevisível; às vezes turva, pela trama da sintaxe; outras, clara, nos afluentes de uma paisagem lunar. A prosa de Euclides arrasta em seu vórtice muitas espécies de peixes, troncos de árvore, sedimentos semânticos, e corre ao delta de uma língua viva, traço de união entre os sermões de Vieira e a matéria flexível de Casa-grande e Senzala

A imagem líquida é uma atenuante das leituras que endossam, de modo radical, a lição de pedra para se chegar a Os sertões, cujas palavras, fragosas e desprovidas de arestas, parecem acusar a condição impermeável da narrativa, dentro da qual só haveria crítica possível nas camadas de um passado tectônico.

A obra de Euclides não seria mais que uma floresta de estalactites. Essa atitude lítica e irredutível criou uma cortina de fumaça, como se es-

condesse ou cristalizasse uma dialética viva, que se revela, a nossos olhos, tanto mais fina e sutil, quanto menos densamente pétrea se defina, mais próxima do magma – líquido, ardente e maleável.

(...) Impressiona o desenho incerto, que rege um acervo de massas formidáveis, na região imprecisa e vasta em que se alonga e sua escritura. Avança e retrocede. Ensaia, estaca e tergiversa. Todo um palimpsesto, cujos estratos podem ser lidos ao correr da página, na superfície da qual flutuam trechos riscados, pentimenti, mudanças de rumo e perspectiva.

Uma nuvem de imagens que persegue núcleos de condensação, como quem parte de um conceito flutuante, duas palavras, ou margens, que se entrechocam, e sondam uma terceira, mais deslocada e, portanto, abrangente. Língua de ação, a de Euclides, que não se reduz a uma demanda geográfica, mas que se explica em termos de uma síntese, nova, insuficiente, voltada para indagar a mimésis. Como se fosse um processo inflacionário, que se dissolve ao atingir o ponto inflexível da representação (...) Não há metafísica na obra de Euclides, mas uma força imperiosa que condensa a trama da história e da poesia. O empíreo de Euclides é o Brasil profundo, sem a promessa de Beatriz. Um estilo de calhaus e de cipós, como se disse outrora, para cobrir todo o silêncio possível.

Espécie de Colombo de esquecidas geografias, Euclides vive o drama da terra e a imensa polifonia de seus habitantes. Donde a transcrição das vozes populares do Brasil, tímida, e, no entanto, a meio caminho do pregão das cocadas, de Bentinho, e do espanto de Riobaldo frente ao mistério do mundo.

Euclides escreve sob o signo do excesso, do Amazonas e do sertão, com os quais parece medir forças, como ninguém veio a fazer antes ou depois dele. Aquela grandeza não o assusta. Precisa de espaço. E aposta no excesso. Um tecido misto cheio de poros, em que a ciência e a poesia se aproximam. Mas é a segunda que predomina fortemente sobre a primeira (...) (LUCHESI, (ps. 165-169)

2013, Milton Hatoum:Euclides da Cunha, um iluminado(…) Não fui um escritor precoce. Mas, por obrigação, tive de ler capítulos d`Os

sertões antes dos quinze anos de idade. Foi literalmente um castigo, um ato de punição disciplinar de um professor de literatura (…). Ainda bem que no sorteio dos capítulos que seriam lidos e fichados tirei a última parte do livro (A Luta), cuja leitura me fascinou. Nessas páginas d`Os sertões há grandes personagens de uma batalha extremamente desigual. O que aconteceu em Canudos foi uma guerra de extermínio. Hoje, seria considerado um verdadeiro “genocídio”, como assinalou Walnice Nogueira Galvão, num artigo publicado no (jornal) Estado de São Paulo (Cultura, 26/07/2009).

Euclides, republicano convicto, percebeu uma das faces mais bárbaras e atrozes da República, que, no entanto, usava a máscara da civilização. Positivista, crente no progresso, na justiça e nos avanços da ciência, o escritor viu nos seringais do Pu-

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rus “a mais criminosa organização do trabalho que engendrou o mais desaçamado egoísmo”. Nesse mesmo artigo (“Terra sem história”), ressaltou a “urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos...”

Um século depois, tempo suficiente para que a República salvasse a sociedade obscura e abandonada, não sei o que Euclides diria sobre a prostituição infantil, milhões de trabalhadores sem carteira assinada, trabalho escravo, o massacre de Canudos, o assassinato de Chico Mendes e outros líderes seringueiros, e a impuni-dade de tantos políticos indecorosos.

Sem dúvida Euclides foi um gênio verbal. Para o crítico Antônio Candido, a força expressiva da linguagem, aliada a uma intuição poderosa, fazem do escritor um iluminado, muito mais que um sociólogo. Augusto Meyer notou que Euclides “dramatiza tudo, a tudo consegue transmitir um frêmito de vida e um sabor patético”. E Gilberto Freyre aponta no estilo euclidiano a “obsessão quase bizan-tina do escultural (…) e da tendência ao monumentalismo que quase nunca o abandona”. De fato, algumas das passagens mais notáveis d`Os sertões evocam combatentes e animais imobilizados em pose patética depois da morte, como se fossem estátuas sinistras no palco macabro da batalha.

Não menos comovente é o texto “Judas-Asvero”, do livro À margem da História, que reúne seus ensaios amazônicos. Nesse belo relato, a desforra dos seringueiros do Alto Purus – uma vingança contra Deus e o mundo – é ma-terializada numa escultura moldada com gestos inventivos por mãos de artistas anônimos. “Judas-Asvero” é um ponto alto da prosa euclidiana, pois nele estão ausentes o determinismo climático e as teorias raciais, dois anacronismos com-preensíveis na obra de um escritor brasileiro do século XIX.

Euclides relutou em publicar “Judas-Asvero” por considerá-lo pitoresco demais. Coelho Neto, que convenceu o amigo a mudar de ideia, teria dito: “Isto é uma das melhores coisas que você escreveu”.

Infelizmente a linha reta da engenharia e do positivismo, e a crença cega no progresso e na “civilização” turvaram um pouco a visão e a análise históri-co-social de Euclides sobre o Brasil. Uma dose de descrença e desconfiança faz bem quando se luta por uma “justiça austera” e por uma sociedade mais justa e civilizada. As tenebrosas transações (como diz uma canção de Chico Buarque) seguem seu curso impunemente, escudadas pela imunidade de tantos representantes dos poderes da República (…) (HATOUM, Um solitário à espreita, págs. 193, 194 e 195)

- 2019, Lilia Moritz Schwarcz: “Os Sertões” é um livro escrito há mais de um século, mas ainda muito atual.

Ele continua a denunciar o crime - e o castigo - de uma sociedade eurocêntrica, violenta, autoritária, desigual e excludente como a nossa. Ao mesmo tempo, desafia as nossas certezas, as respostas simples e denuncia as dicotomias estanques, que produzem mais ódio do que compreensão. Mas atenção: o sertão, definitivamente, há de virar mar (e o mar de virar sertão). (SCHWARCZ, Lilia Moritz)

2019, Jorge Coli:A inteligência da escritaEuclides da Cunha permaneceu fiel a suas concepções, mas seu livro se rebelouArtigo de Jorge Coli, Professor de história da arte da UNICAMPNuma crítica, o importante não é o louvor ou a condenação. Por meio deles,

conhece-se mais o crítico do que a obra. O que conta mesmo é a qualidade da análise.

Ao ler um comentário sobre um filme, ou um livro, não importa muito se o

crítico gostou ou não. Importa o modo como chegou às suas conclusões, e se, graças a elas, podemos tirar as nossas.

(...) releio “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Tive a felicidade de examinar, palavra por palavra, esse imenso livro quando o traduzi para o francês, junto com meu amigo Antoine Seel. Faz tempo isso, foi em 1993. E cada vez que o retomo, volta o mesmo assombro.

A relação de “Os Sertões” com Leroy, e os bons críticos “malgré eux”, está no fato de que eles têm em si o antídoto para seus próprios equívocos. “Os Sertões” torna-se intolerável quando nos deparamos com os raciocínios derivados das teorias racistas, então consideradas científicas.

No espírito hiperdeterminista daquele tempo, o livro distingue o “bom” e o “mau” mestiço, este sendo o fruto da mistura desordenada ocorrida no litoral e aquele de uma depuração que conduz ao “tipo de uma subcategoria étnica”.

É tudo errado, odioso e inaproveitável. Mas Euclides da Cunha avança na busca obsessiva de compreender o conflito de Canudos. Pela descrição, pela observação minuciosa, o livro subverte-se e recusa os dados teóricos iniciais. Digo o livro, e não seu autor. Euclides da Cunha permaneceu fiel, é plausível, às suas concepções conceituais. “Os Sertões”, porém, se rebelou.

Ele contradiz as certezas do autor, revelando inteligência que brota da escrita. Aqui mostra-se a imensa distância em relação ao jornalismo de Louis Leroy, que transpõe suas observações imediatas em linguagem jocosa e transparente. Ao contrário, a formidável inteligência de “Os Sertões” surge de sua beleza. Da poderosa lucidez brotando das mãos que escrevem, e não do cérebro que pensa por abstrações.

O autor faz nascer a força épica da precisão própria à cada palavra. Já que a frase se faz forte pelo rigor, a análise desenha-se com rigor espontâneo. Cada substantivo, adjetivo, verbo, advérbio incendeia-se em contato com o particular. Surge como que uma nova língua, fusionando lirismo e precisão, engendrando formidável inteligência analítica. Língua em revolta contra o conceito e contra as convicções, animada pela beleza estilística que depende da exatidão.

O livro execra o fanatismo dos revoltosos. No entanto, ao descrevê-lo, a admi-ração que sente por eles —corajosos, leais, inteligentes— anula a reprovação. Concebe o Exército como arma da civilização. Todavia, ao narrar suas manobras ineficazes e dolorosamente ridículas, ao detalhar a crueldade desumana de suas práticas, cujo apogeu foi a degola dos prisioneiros —a tremenda “gravata ver-melha” —, expõe a campanha como uma estupidez e um crime: “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada”.

Esse genocídio não foi cometido só pela soldadesca, foi também estimulado ou consentido pelos comandantes mais altos. “O principal representante do gover-no” —ou seja, o marechal Bittencourt, responsável pela vitória definitiva contra Canudos— é acusado de “indiferença culposa”.

Bittencourt compreendera que a vitória não dependia de estratégias engenho-sas, mas de persistência. Os combatentes não podiam ficar isolados; era necessário manter comboios regulares e a compra de burros sucedeu aos gestos heroicos. Depois, de modo bem adequado, o Exército erigiu esse marechal como “patrono da intendência”, dando a ele uma página em seu site. Que ignora soberbamente a degola de Canudos.

(Folha de São Paulo, Caderno Ilustríssima, 21/07/07/2019, p. 3)

A metamorfose dos fatos e impressões em palavrasTemos a impressão de que Euclides transpôs inconsciente e simbolicamente

para o livro Os sertões muitas coisas que percebera quando estivera no sertão baiano presenciando a trágica guerra e que sublimou ao escrever o seu livro

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sobre ela. A mesma firmeza e coragem que notou nos sertanejos que lutaram até o último homem, foi transfigurada em sua denúncia feita de palavras acusatórias e denunciadoras aos excessos cometidos pelos militares com armas pesadas e leves. A resistência aos ataques sofridos pela comunidade, que mesmo atacada e destruída, foi imortalizada como símbolo de luta, foi transfigurada na expectativa euclidiana dos ataques que seu livro sofreria revelando sem meias palavras as in-cômodas violências antes haviam sido discretamente reveladas por outros autores, como ele próprio previra. E Euclides previu que sofreria “ataques” dos críticos, enfrentou alguns enquanto viveu, e deixou seu livro-cidadela tão bem defendido que ele continuou resistindo e defendendo a si mesmo.

Como Antônio Conselheiro, que encarnou a convicção de resistir até o fim com os seus seguidores, e resistiu com eles, Euclides também foi convicto no sentido de escrever e publicar um livro crítico e radical, “vingador”, como ele mesmo o chamou, de suas decepções pessoais com a República e a carreira militar, e sobre a guerra fratricida e brutal. Euclides preparou simbolicamente, por assim dizer, com as ruínas de Canudos, o sangue, as cinzas dos mortos e as dores dos poucos sobreviventes, a argamassa com a qual compôs a base, os pilares e a estrutura de seu livro-cidadela, reconstruindo-as no plano simbólico e literário. Por isso, lendo Os sertões, tem-se a impressão de ouvir através das palavras de Euclides, o estampido das armas, dos canhões, das metralhadoras, das facas degolando, do sangue escorrendo, do fogo crepitando, dos gemidos dos feridos, do choro dos órfãos, dos gritos de horror. Euclides transformou as mortes, os sofrimentos e o silêncio que se fez após a matança, em palavras de fogo imortais que se trans-formaram em denúncias, em acusações, em advertências para as novas gerações e para a consciência nacional

Seu livro se transformou numa defesa do povo brasileiro contra violências e arbitrariedades de governantes conservadores e insensíveis aos excluídos da sociedade, como os que acompanharam Antônio Conselheiro na comunidade de Canudos. Nunca mais, depois da publicação d`Os sertões, a repressão teve as mes-mas proporções e mobilizou tantos recursos oficiais contra movimentos populares.

Ao viver em São José do Rio Pardo durante três anos, entre 1898 e 1901, Euclides encontrou um ambiente propício e circunstâncias favoráveis para elaborar sua obra de engenharia e sua obra intelectual. Precisando desmontar peça por peça e com elas reconstruir a ponte que tombara, Euclides, que vira a destruição de Canudos, talvez visse nessa tarefa uma reconstrução inconsciente e simbólica da comunidade arrasada no sertão baiano e a teria transferido para a ponte e o livro que escreveu. A angústia que sentira no teatro da guerra, agora não existia mais, pois sua família o acompanhara nessa missão profissional e tranquilizadora. Inúmeras vezes, ao voltar para o Rio de Janeiro, Euclides manifestou sua satisfação e saudade pelo que fizera e vivera em São José do Rio Pardo naqueles três anos, não só a ponte, mas também o livro Os sertões, entrelaçando-as de tal forma que as tornaram inseparáveis para sempre.

Em 1912, três anos após a sua morte, Euclides e seu livro passaram a ser celebrados de forma permanente em São José do Rio Pardo, inicialmente com as Romarias que partiam da casa onde morou enquanto viveu na cidade, até a ponte que reconstruiu e a cabana onde escreveu Os sertões, às margens do Rio Pardo. Posteriormente, com a consagração da importância d`Os sertões para a cultura nacional, e para consolidar aquela evocação anual, o médico Oswaldo Galotti orga-nizou a partir de 1938 as Semanas Euclidianas, reunindo intelectuais, professores e alunos para discutir a vida e a obra de Euclides da Cunha. Assim, à tradição das Romarias, que são realizadas há 107 anos, somou-se a das Semanas Euclidianas, que são realizadas há 81 anos, criando uma identidade com a própria cidade que passou a ostentar como símbolos em sua bandeira a ponte e o livro Os sertões.

O prestígio oficial do livro Os sertões, de 1902 à atualidade, oscilou, depen-

dendo das circunstâncias políticas existentes no país e das tendências ideológicas da intelectualidade interessada em identificar no livro e divulgar as suas interpre-tações e aspirações. Durante a República Velha, que se estendeu da proclamação da República até a Revolução de 1930, quando predominou a dominação da política do “café com leite”, São Paulo e Minas Gerais, no plano federal, e das oligarquias estaduais, o livro Os sertões gozou de prestígio inconteste, raramente sofrendo uma crítica contundente. Na década iniciada em 1930, com a existência de grupos ideológicos que representavam ideologias radicais, como o fascismo conservador e o comunismo revolucionário, Os sertões passou a ser interpretado de acordo com essas tendências, uns considerando os acontecimentos descritos no livro euclidiano como uma revolta de mestiços fanáticos, atrasados e desequili-brados, que tornaram a repressão oficial necessária, como Euclides inicialmente informara, enquanto outros criticavam acidamente a repressão sem contudo definir o fenômeno de Canudos em suas causas mais profundas. Na década de 1950, com modernização do país resultante da acelerada industrialização, urbanização, a diversificação social e a polarização política, novas interpretações são desenvolvidas, criticando a visão euclidiana do que aconteceu em Canudos e repudiando com estudos rigorosos e bem fundamentados a sua interpretação cientificista, determinista, preconceituosa, racista e psicologizante. Cada vez mais, autores denunciam a luta de classes que Euclides não conseguiu ver no episódio por utilizar conceitos inadequados para entender o país que se transformava, embora ressaltassem o mérito dele em escrever uma obra sem precedentes na literatura nacional e em denunciar as atrocidades ocorridas contra os sertanejos. Durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, o prestígio do livro Os sertões continua incólume, apesar da vigilância da censura, e continuou sendo referência obrigatória para o estudo, a discussão e o entendimento dos problemas sociais do país. Sintoma de sua importância foi a providência da ditadura militar em acelerar a construção do açude de Cocorobó para encobrir as ruínas da primeira Canudos destruída pela guerra, e da segunda Canudos que ficava nas imediações, e que fora formada por descendentes dos que morreram na guerra. Não foi uma simples coincidência a inauguração do açude de Cocorobó em 1969, no período mais repressivo da ditadura militar, quando vigorava o Ato Institucional nº 5 editado em dezembro de 1968. Cobriram-se duas Canudos, as ruínas da primeira que fora arrasada na guerra de 1897, e a que a sucedeu, mas uma terceira se formou e lá está... Do final da ditadura militar, de meados da década de 80 em diante, os conceitos utilizados por Euclides da Cunha foram superados definitivamente por outros conceitos em quase todos os seus aspectos, mas que não tiraram de sua grande obra a importância permanente como referência obrigatória para os estudos dos problemas do país, e como uma obra literária da maior qualidade, reconhecida por críticos nacionais e estrangeiros, como tentamos destacar no decorrer deste artigo.

***Assim, até hoje, o livro Os sertões recebeu juízos da parte dos intelectuais

brasileiros e estrangeiros, elogios ou críticas aos seus infinitos aspectos. Destaca-mos neste artigo algumas críticas de autores que fizeram análises reveladoras, equilibradas e esclarecedoras da obra como um todo ou sobre aspectos específicos contidos nela. Juntamente a elas, vamos mencionar outras opiniões sobre o livro Os sertões que, desde a sua publicação, foi considerado sucessivamente como:

``livro notável``(1903, José Veríssimo), `` extraordinário” (1902, J. Dos Santos (Medeiros e Albuquerque), ``livro de alto valor científico, histórico, moral e literário`` (1904, Afonso Celso), ``livro emocional`` (1904, Leopoldo de Freitas), “livro único no seu gênero” (1904, Araripe Júnior), ̀ `poema enorme” e ̀ `tremendo libelo`` ` (1904, Coelho Neto)`, ``um dos livros máximos da literatura da língua

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portuguesa” (1907, Silvio Romero), `` livro grave`` (1935, José Maria Bello), `` verdadeiro monumento de nossas letras`` (1939, Manuel Bandeira), “o livro maior da nossa produção``(1940, Roquete Pinto), ``livro monumental, cheio de altos e baixos na sua tocante desigualdade``(1952, Augusto Frederico Schmidt) ,“ livro soberbo”(1961, Temístocles Linhares), “mais que uma epopeia, um poema nacional em prosa ou romântica canção de gesta do sertanejo brasileiro”(1963, Modesto de Abreu), ̀ `poema brasileiro até a raiz``(1967, Paulo Dantas), “estudo clássico sobre rebelião social primitiva”(1970, Eric Hobsbawn), ``obra de gramática``, ``livro genial``(1975, João Etienne Filho), ``livro vivo`` e ``irrepetível``(1978, Wilson Martins),``uma das obras supremas da literatura mundial``, ``uma assembleia de estilos, um comício de formas e procedimentos literários``(1982,Franklin de Oliveira),``polifônico``,``fundador da cultura brasileira``(1982, Gerardo Mello Mourão),``tratado mitológico``(1983, Júlio José Chiavenato), ``manual de latino americanismo``(1986, Mário Vargas Llosa), “libelo terrível”(1995, Darcy Ribeiro), “curioso amálgama de ensaio científico, relato literário e panfleto, denúncia do “crime” da repressão do messianismo sertanejo” (José Guilherme Merquior) etc.

Euclides da Cunha considerou a si mesmo como o “advogado” e o ̀ `vingador`` dos “pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde e assassi-na”, e tem sido considerado pelos críticos como ``poeta``, ``artista``, gênio``, ``áspero historiador dos bárbaros``, ``gênio americano``, ``escritor barroco``, ``artista da poesia pura``, ̀ `mito``, ̀ ` descobridor dos sertões``, ̀ ` paladino de todos os deserdados``, “abridor de caminhos” etc. Quase sempre, as opiniões sobre o livro e sobre Euclides são generosas e favoráveis por ser uma obra realmente impressionante e pioneira na interpretação que deu, não só da guerra de Canudos, como também do próprio país, o que não invalida as opiniões em contrário, que, se ocorresse, seria uma radicalização dogmática, absurda e indigna.

Mas se Euclides e Os sertões não escaparam, como ele próprio ironicamente previra, “do calor das labaredas que se levantarão assopradas pelo Santo Ofício da Crítica”, críticas que apontam equívocos, erros de informações, juízos que foram ultrapassados por novas concepções, preferências, excessos de linguagem, uso de terminologia arcaica, verbalismo, nunca Euclides sofreu ofensas morais como escritor desonesto, de má-fé, já que ele mesmo reconheceu sempre estar aberto às críticas, porque confessava as limitações que teve ao escrever sua obra e os seus próprios defeitos pessoais como escritor, conforme consignou em suas cartas. Rotulá-lo com ofensas morais com a intenção de rebaixá-lo como homem e escritor provavelmente oculte interesses para garantir interesses pessoais ou de autopromoção. Criticar não isenta o crítico de manifestar opiniões favoráveis ou não, desde que a objetividade não dê lugar à subjetividade, à emocionalidade gra-tuita, ao ataque irrefletido, à desfiguração, mas criticar não é ofender moralmente, nem emitir juízos que atinjam a honra pessoal. No caso de Euclides, ele morreu por tentar defender a sua honra, mas seu livro Os sertões permaneceu como um livro íntegro, vivo, influente, resistente, necessário, fundamental, e garantiu a sua imortalidade como escritor, como reconheceram os críticos mencionados no decorrer do artigo.

Inúmeros críticos assinalaram que Os sertões abriu novos caminhos na cultura brasileira, virando a página de uma cultura voltada para a Europa e dela seguindo modelos pouco afinados com a nossa realidade, para despertar temas autentica-mente nacionais nos escritores, poetas, romancistas, músicos, pintores, escultores, dramaturgos, etc. Em 1922, vinte anos após a publicação d`Os sertões, aconteceu em São Paulo a Semana de Arte Moderna, que consolidou a tendência iniciada por Euclides da Cunha de preocupação e reflexão com temas nacionais. Na trilhas abertas por ele, viriam obras de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Tarsila do Amaral, Cândido Portinari,

Gilberto Freyre, Caio Prado Jr, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Érico Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Câmara Cascudo, Jorge de Lima, entre outros.

Portanto, passados 117 anos da publicação d`Os sertões, essa obra e seu autor continuam dando margem a polêmicas, revelações e diferentes interpretações, o que demonstra a riqueza subjacente de ambos, o que dá razão à afirmação do professor José Calasans de que “discutir Os sertões é coisa para séculos”. E discutir o escritor Euclides sempre acompanhará a discussão da sua obra. Todas as críticas são bem-vindas, pois demonstram a inesgotabilidade de ambos, autor e obra. O mais recente biógrafo de Euclides, o norte-americano Frederick Amory, autor de Euclides da Cunha: Uma Odisséia nos Trópicos (1998), dilatou o prazo imaginado por José Calasans para a duração e a discussão d`Os sertões da seguinte forma: “A ponte (reconstruída por Euclides sobre o rio Pardo) permaneceu por cem anos, até hoje, sem mudanças, enquanto sua antecessora caiu em dois meses, e o livro durará enquanto o português for uma língua viva.” (p.154)

O filósofo Nietzsche, no livro “Humano, demasiado humano – Um livro para espíritos livres” (vol. I), de 1878, na reflexão 208, intitulada “O livro quase tornado gente”, definiu a permanência dos grandes livros desafiando a passagem do tempo, como fizeram José Calasans e Frederick Amory em relação a Os sertões:

Para todo escritor é sempre uma surpresa o fato de que o livro tenha uma vida própria, quando se desprende dele; é como se parte de um inseto se destacasse e tomasse caminho próprio. Talvez ele se esqueça do livro quase totalmente, talvez se eleve acima das opiniões que nele registrou, talvez até não o compreenda mais, e tenha perdido as asas em que voava ao concebê-lo: enquanto isso o livro busca seus leitores, inflama vidas, alegra, assusta, engendra novas obras, torna-se a alma de projetos e ações – em suma: vive como um ser dotado de espírito e alma, e contudo não é humano. – A sorte maior será a do autor que, na velhice, puder dizer que tudo o que nele eram pensamentos e sentimentos fecundantes, animadores, edificantes, esclarecedores, continua a viver seus escritos, e que ele próprio já não representa senão a cinza, enquanto o fogo se salvou e em toda parte é levado adiante. – Se considerarmos que toda ação de um homem, não apenas um livro, de alguma maneira vai ocasionar outras ações, decisões e pensamentos, que tudo o que ocorre se liga indissoluvelmente ao que vai ocorrer, perceberemos a verdadeira imortalidade, que é a do movimento: o que uma vez se moveu está encerrado e eternizado na cadeia total do que existe (...) (Companhia das Letras, vol. I, 1ª edição, citação predileta, somos o rio de Heráclito, para quem o homem de ontem...)

Também o poeta, ensaísta e contista argentino Jorge Luis Borges refletiu sobre a magia dos livros:

(Ralph) Emerson disse que uma biblioteca é um laboratório mágico onde vivem muitos espíritos encantados. Eles despertam, quando chamados. Fechado, um livro é literal e geometricamente um volume, uma coisa entre outras. Quando o livro é aberto e se encontra com seu leitor, então ocorre o fato estético. Deve-se acrescentar que um mesmo livro muda em relação a um mesmo leitor, já que mudamos tanto. Voltando à minha citação predileta, somos o rio de Heráclito, para quem o homem de ontem não é o homem de hoje e o de hoje não será o de amanhã. Nós mudamos incessantemente. Mas se pode afirmar também que cada releitura de um livro e cada lembrança dessa releitura renovam o texto. Porque também o texto é o rio mutável de Heráclito. (BORGES, Jorge Luis, Sete Noites, ps. 119, 120)

Se Nietzsche, José Calasans, Frederic Amory e Jorge Luis Borges têm razão no

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que escreveram, Os sertões permanecerá através dos séculos ( já completou um!), enquanto existir a língua portuguesa, pois atrai leitores, inflama vidas, alegra, assusta, inspira novas obras, direciona ações, parecendo ser dotado de espírito e alma sem ser humano, renascendo a cada leitura ou releitura, ardendo como fogo permanente e mantendo-se em movimento pela eternidade, como o rio de Heráclito que sempre se movimenta e nunca para.

Se algum leitor concluiu que este artigo teve a intenção de enu-merar intelectuais que saíram em defesa de Euclides da Cunha e Os sertões, na certa equivocou-se ou fez leitura superficial. Quando o artigo estava praticamente finalizado, encontramos em palavras do romancista e ensaísta sergipano Paulo Dantas aquele que julgamos ser um dos melhores juízos já feitos sobre Euclides e Os sertões, e que coincidiu com o nosso propósito ao redigi-lo:

Os Sertões, que sugiro como um curso completo para a formação do caráter integral brasileiro, é um livro que não carece de defesa, nem necessita de padrin-hos. Sozinho, ele se sustenta, como vem atravessando o século (XX, na referência de Paulo Dantas, e XXI, acrescentamos nós) e a história. É um livro eterna e per-manentemente defendido pelo tempo, crescendo nas releituras. Esta consagração unânime é o seu maior advogado de defesa (...) Os Sertões crescem, desmedida-mente sempre, tal o calibre arrepiado das dimensões brasileiras e sertanejas que o livro guarda no bojo iluminado de suas páginas. Pretensão será, pois, querer fazer uma defesa de Os Sertões, o livro gibão de couro da nossa nacionalidade. O gênio por si mesmo se defende dos espinhos: a armadura das suas intuições é a sua própria proteção. (DANTAS, Paulo, in “Os sertões de Euclides..., págs. 20,21)

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A IMPRENSA E SEU PAPEL NA HISTÓRIA DO BRASIL ONTEM E HOJE

O presente texto foi publicado primeiramente em agosto de 2016. Dado o importante momento político e histórico que vive o Brasil envolvendo a imprensa brasileira, faz-se importante sua republicação para que seja discutido novamente o papel da imprensa em nossa história passada e presente.

RESUMO: A Guerra de Canudos mobilizou a imprensa no ano de 1897. Aproveitou-se muito do evento para vender notí-cias e a até fazer publicidade. Porém os jornais tiveram grande importância no desenrolar dos acontecimentos, influenciando a opinião pública. Não diferente do passado, hoje a mídia com seu poder e sua parcialidade, determina os rumos da história política e social do Brasil, sendo até chamada de O Quarto Poder.Palavras-chave: Jornalismo; mídia; imprensa; guerra; poder.

Rachel Aparecida Bueno da Silva(Mestre em História da Educação - Universidade Estadual de Campinas)

[email protected]

É inegável a importância do trabalho da imprensa, não apenas nos dias atuais, mas desde seu surgimento. Sua atuação e seu papel dentro da sociedade têm sido objetos de estudos em diferentes análises, levando a questionamentos sobre o seu real poder, relevância e a serviço de quem ela está

Essas preocupações e as transformações do nosso tempo fazem com que esses estudos se tornem fundamentais para compreender a sociedade especial-mente quando se trabalha com educação ou movimentos sociais (Roldão 2014).

Conhecido como o quarto poder os meios de comunicação de massa, também identificados como mídia, possuem tanta influência em relação à sociedade quanto os Três Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário, constituídos em nosso Estado Democrático.

A ação midiática sempre esteve presente nos momentos mais importantes e cruciais da vida pública brasileira, formando opinião e ajudando a determinar os rumos da sociedade, de acordo com os interesses de quem detém o poder sobre esses meios de comunicação. Embora o trabalho jornalístico deva ser isento de subjetividade e interesses particulares, não é isso que é observado no decorrer de nossa história.

O jornalista Perseu Abramo (2003) ao falar a respeito do processo de manipulação por parte dos meios de comunicação de massa sobre as notícias, aponta quatro pontos importantes que são: a ocultação, a fragmentação, a inversão e a indução.

Chama de ocultação o fato jornalístico que deve ou não estar na pauta para ser levada ao conhecimento público, segundo o meio de comunicação; fragmen-tação o fato apresentado sem contextualização, sem causas, sem consequências; inversão é a espetacularização que ocupa o lugar da realidade, apresenta informação de modo parcial, a opinião do veículo de comunicação aparece, utiliza-se o juízo de valor sobrepondo a realidade; por último a indução, que resulta do efeito da ação das três anteriores.

Embora a sistematização e análise desse processo sejam recentes podem ser observadas em situações já vividas, em que a presença da imprensa se fez crucial no desenrolar dos fatos históricos.

Nos importantes jornais do ano de 1897 aparecem notícias a respeito do Movimento Conselheirista ocorrido no interior da Bahia, que culminou com a Guerra de Canudos. Nesse ano há um crescente número de periódicos no Rio de Janeiro e também na Bahia, como mostra a pesquisadora Walnice Nogueira Galvão (2003), até no sertão, em pequenas cidades é registrado esse aparec-imento significativo.

Próximo ao fim da guerra, mais especificamente após a derrota da terceira expedição, comandada pelo Coronel Moreira César, em 3 de março de 1897 foi destacado o aumento de notícias sobre Canudos, o Conselheiro e a Guerra que se desenrolava.

Euclides da Cunha, meses antes de conhecer pessoalmente o conflito em Canudos, publica em 14 de março de 1897, no jornal O Estado de São Paulo, artigo intitulado A Nossa Vendéia (I), onde compara o movimento conselheirista com o movimento ocorrido no interior da França, na região da Vendée, entre os anos de 1793 e 1796. Tratava – se de um movimento contra a Revolução Francesa e Euclides comparando ambos aponta o movimento canudense como uma tentativa de restauração monárquica. Em seu texto o autor cita Antônio Conselheiro como “o mais sério inimigo das forças republicanas.” (CUNHA, 1966, p. 575).

Dessa forma Euclides, assim como outros articulistas contemporâneos seus e os respectivos jornais influenciam na construção da imagem e do pensamento a respeito da população de Canudos e do movimento que se desencadeava naquela região.

Em 17 de julho do mesmo ano ele publica, no mesmo jornal, A Nossa Vendéia II reafirmando seu pensamento a cerca da população de Canudos usando para se referir ao homem canudense termos como: jagunço, traiçoeiro, ousado, bár-baro impetuoso e abrupto. (CUNHA, 1966, p. 580).

O perfil sobre a população de Belo Monte, como também era conhecida Canudos, vai ganhando contornos cada vez mais definidos e os jornais levam a público opiniões cada vez mais contundentes sobre a guerra, quando são publicados textos cuja força na definição dos fatos conduzem a uma conclusão, como essa com que Euclides define uma das operações: “As tropas da República seguem lentamente, mas com segurança, para a vitória.”

Ao escrever esses dois textos, com espaço de tempo de três meses, o autor utiliza como fonte, outras notícias publicadas, principalmente as que vinham dos mais importantes jornais do Rio de Janeiro e da Bahia.

Não se pode esquecer que Euclides chegou a Salvador no mês de agosto, permanecendo na capital por cerca de um mês até seguir para o cenário do conflito e ficando lá de 16 de setembro a 3 de outubro. Nesse período pode assistir pessoalmente aos conflitos, tomar depoimentos e tirar suas próprias conclusões.

Do início da Campanha de Canudos até seu desfecho e, mais especificamente após a derrota da terceira expedição, a atuação dos meios de comunicação,

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que nesse momento era representada apenas pelos jornais impressos, teve papel decisivo na formação da opinião crítica a cerca do movimento, como nos mostra Galvão (1994, p. 55):

A luta em que hoje estamos empenhados nos sertões da Bahia não representa, pois, um fato isolado, acidental, sem significação política, uma consequência do de-satino de um punhado de sertanejos ignorantes; porém, um sintoma gravíssimo de perturbação geral, ali revestido do caráter de uma reação religiosa poderosamente organizada, denunciando a execução de um plano de restauração monárquica, inteiramente concebido, e tendo como fim principal preparar a oportunidade desta questão fundamental, cuja solução completa há de marcar o começo da agonia da República – a posse plena do glorioso Estado do Rio Grande do Sul pelo chefe do federalismo. (O País, 9/9/1897.)

Muito se noticia sobre a revolta baiana, causando pânico e exaltando os ânimos, porém muitas das notícias não trazem a realidade dos acontecimentos, aproveita-se para a criação de fatos sensacionalistas, numa clara tentativa de tirar vantagens da situação. Telegramas pessoais, de militares a seus familiares são publicados na imprensa de vários Estados, dando conta dos episódios, aumentando o clima de comoção. (GALVÃO, 1994).

As publicações são escritas de forma a levar ao público o que há de pior sobre os canudenses e suas ações, sensacionalismos, escárnios, e textos apócrifos aparecem frequentemente, tornando o trabalho jornalístico, um serviço perigoso a atender interesses específicos de um determinado grupo, sobrepondo-se ao verdadeiro jornalismo que:

[...] é a técnica de investigar, arrumar, referenciar, distinguir circunstâncias [...] quando se buscam circunstâncias irrelevantes e impertinentes então, sim, temos um jornalismo superficial. Quanto menos profunda for a investigação das circunstâncias, quanto menos cruciais forem as situações apuradas relativas ao evento, mais perecível será este jornalismo. (DINES, 1986, p.18)

Fato no mínimo curioso relatado no jornal República , em 14 de setembro de 1897, segundo Galvão (1994) dá-nos a ideia de como os assuntos relativos a Canudos causam interesse, alvoroço e escárnio, a começar pelo título do artigo: Maluquinha?

O texto trata da história de uma senhora que foi detida e levada diante das autoridades policiais no momento que tentava postar, no correio, uma carta endereçada a Antonio Conselheiro. Ao ser questionada a mulher revela ser uma colecionadora que deseja ter em sua coleção a letra autêntica do Conselheiro, para ela um homem extraordinário, para isso enviava um versinho. Durante o depoimento chegam a conclusão que ela “não regulava”, nas palavras do próprio articulista, por isso do inusitado título, Maluquinha?

Os jornais bombardeiam a opinião pública com cartas conspiratórias sem apurar sua autenticidade, assim como com a utilização de textos apócrifos atribuídos ao Conselheiro que são reproduzidos em vários jornais com ortografia e expressões grotescas na tentativa clara de desmoralizá-lo, como no trecho apre-sentado por Galvão (1994, p. 46-47) publicado em A notícia, do Rio de Janeiro e depois transcrito no Diário de Notícias, da Bahia em 26/7/1897. Lembrando que hoje é de conhecimento público que Antonio Conselheiro era homem instruído, atuou no comércio, exerceu a profissão de rábula, entre outras.

Pra bem da disciplina já mandei picá fêto fumo um canaia dum jagunço de-generado que ando aconceiando os ôtro a fugi pru mato virgi e mi deixa sosinho no arraiá. Mal sabia o burro que cá uma reza queu sei botava logo tudo paralítico de ambas duas perna qui nem cas mão havia di pôde corrê.

O mesmo acontece com o surgimento e publicação, novamente no Diário de Notícias, da Bahia em 22/09/1897, sem maiores explicações, referências ou com-promisso com a autenticidade o texto a seguir:

CREDO DE ANTONIO CONSELHEIRO

Creio no Sr. D. Pedro segundo, ex-imperador e defensor perpétuo do Brasil, criador da constituição monárquica do Império, do Exército e da Armada que o depuseram; creio na Princesa D. Isabel que é a sua filha e legítima herdeira da coroa, que casou-se com o Sr. Conde d’Eu, que nasceu no Rio de Janeiro e foi dali banida com seu velho pai, padecendo este e todos os seus (sic) sob o poder da malvada República, representada pelo governo provisório de Deodoro da Fonseca; que o velho monarca morreu apaixonado na Europa, onde foi sepultado, por ser obrigado a abandonar o Brasil e seus caros filhos, descendo o país ao pântano da miséria, donde ressurgirá em breve com a restauração da Monarquia, subindo ao trono a aludida princesa, onde permanecerá assentada à mão direita de seu marido, que se tornará poderoso e donde há de vir a jul-gar a todas as obras daqueles hereges e conspiradores republicanos que tanto concorreram para a perdição do país; creio na coragem e fidelidade dos meus jagunços, na sua ressurreição; na vitória alcançada por João Abade e Macambira, na restauração da Monarquia e na vida eterna dos meus sonhos. Amém.

Esse mesmo jornal tira proveito da Guerra de Canudos, o que não é ex-clusividade sua, não apenas com as notícias que publica, ou com os textos de natureza e autenticidade duvidosa, mas usa a criatividade para chamar atenção em textos de propaganda e publicidade, como mostra Galvão, (1994, p. 53)

CANUDOS TOMADOS Vozeria, vivas entusiásticos,passos apressados ouviam-seontem à noitinha, à Rua doConselheiro Dantas. O que determinava talmovimento? A notícia de que a loja OMonumento era assaltada poruma avalanche de bons freguesesque se muniam de ótimos calçadospara festejarem A tomada de Canudos.(Diário de Notícias, BA, 23/07/1897) Ou ainda outro, apresentado como se fosse notícia:

ESPANTOSO Por pessoas, recentementechegadas de Canudos, ouvimoso seguinte: Que no último ataque, umgrupo de valentes soldados, depois

de ter esgotado a munição,lembraram –se de correr apontapés os conselheiristas,confiados na resistência docalçado que foi comprado napopular casa O monumento. Que feliz ideia!...(Diário de Notícias, BA, 12/08/1897)

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Pesquisas mostram como a impressa, através da manipulação das informações, atende aos interesses de grupos específicos, numa clara tentativa de fazer com que o governo republicano, centrado na figura do Presidente Prudente de Morais, tome medidas enérgicas e repressivas contra a população canudense.

Apresenta Canudos e seus habitantes como exemplos vivos da barbárie, retro-cesso e atraso, imagens que não condizem com o novo status de modernidade republicana, tão almejado. Para legitimar a ação criminosa de extermínio da população, para atender a interesses de grupos oligárquicos constroem-se ima-gens negativas, criam-se fatos, gera-se grande comoção nacional, e aí justifica e legitima-se o crime.

A mídia continua atuando na sociedade de maneira cada vez mais intensa, prestando importantes e sérios serviços à sociedade, mas muitas vezes agindo de modo precipitado, ao dar informações sem os devidos cuidados e apurações.

Caso emblemático foi o que envolve a Escola Base ocorrido em março de 1994, na cidade de São Paulo, onde seus proprietários são acusados de abusarem sexualmente de crianças de quatro anos, que frequentam a escola.

A mídia noticia amplamente o caso, antes da conclusão dos laudos do IML e da investigação policial, esta por sua vez ao ser pressionada pela imprensa antecipa as conclusões.

Diante da comoção causada pelos meios de comunicação, onde crianças e famílias são expostas como vítimas e da pressão da sociedade, os acusados são presos sem provas e suas casas, assim como a escola são depredadas e saqueadas.

O Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, que foi o primeiro a dar a notícia em horário nobre, chega a falar na possibilidade de ingestão de drogas pelas crianças e em contaminação pelo vírus HIV.

Com a mesma espetacularização o jornal Folha da Tarde chega a apresentar a manchete “Perua carregava crianças para orgia”, numa referência, onde se aventou a possibilidade das crianças serem levadas a outro local onde aconteciam os atos de abusos.

Não apenas os jornais do período da Guerra de Canudos apresentam notícias espalhafatosas, o conhecido tablóide Notícias Populares apresenta em uma de suas edições, na luta pela atenção do público a manchete: “Kombi era motel na escolinha do sexo” num total descompromisso com o jornalismo sério, que investiga as fontes.

Após três meses o caso é arquivado por falta de provas e a imprensa timida-mente começa a se retratar, publicando pequenas notas, porém o desastre causado nas vidas dos envolvidos é irreversível, e o linchamento social inevitável.

Vários órgãos de imprensa são condenados a pagar indenizações num processo que se arrasta há mais de vinte anos e onde alguns dos acusados, agora vítimas já são falecidos.

A mídia brasileira, em todos os momentos se faz presente colaborando com informações e análises sérias, porém muitas vezes atendendo a interesses de grupos políticos e econômicos. Essa atuação na política nacional, só para citar algumas, pode ser observada desde a Campanha de Canudos, passando pelo Estado Novo, pelo Golpe Militar em 1964, até nossa história mais recente, com a eleição do Presidente Fernando Collor de Mello em 1989, a partir de uma campanha midiática intitulando-o Caçador de Marajás, numa ação onde como governador do Estado de Alagoas tenta moralizar o serviço público.

Nesse período a mídia ajuda a construir a vitória do então candidato Fernando Collor de Mello trazendo a público, entre tantos outros, fatos da vida pessoal do então candidato da oposição Luíz Inácio Lula da Silva, como uma ex-namorada que o acusa de ter-lhe proposto abortar a filha que tiveram, ou associarem o sequestro do empresário Abílio Diniz, libertado do cativeiro no dia das eleições, ao Partido dos Trabalhadores, partido político do então candidato Lula.

Da mesma forma importantes jornalistas da grande imprensa se pronunciam de forma preconceituosa contra o ex-metalúrgico, que não tem ensino superior e concorre as eleições presidenciais. A grande mídia assume tempos depois que nas edições dos debates, às vésperas das eleições, favorece a eleição do então candidato Fernando Collor. Utiliza– se do fato da sociedade brasileira, na sua maioria, ser conservadora e confiar nessa mídia e conduz as eleições de forma a construir a ideia de que o candidato melhor preparado era Collor, que viria sofrer um impeachment dois anos após assumir o cargo, acompanhado de perto por essa mesma imprensa, que decide o que vai ou não chegar ao público e de que forma.

Hoje, esse poder de controlar a informação está sob a guarda de alguns grupos como expõe Roldão, (2014, p. 162):

No Brasil, essa mídia é controlada por poucos grupos familiares: Organizações Globo (família Marinho); Rede Record (Igreja Universal – Edir Macedo); Sistema Bandeirantes de Comunicação (família Saad); Sistema Brasileiro de Televisão – SBT (Silvio Santos); Grupo O Estado de São Paulo (família Mesquita); Grupo Folha (família Frias); Grupo Abril (família Civita, responsável por 70% do mercado de revistas do País, incluindo a revista Veja).

A mesma ação midiática vemos desenrolar com a abertura do processo de impeachment da primeira mulher eleita Presidente do Brasil, com mais de 54 milhões de votos, Dilma Vana Roussef, onde a tirania do dinheiro associada a tirania da informação tentam mudar a força os rumos da história do Brasil, cuja elite preconceituosa e retrógrada não aceita os rumos democráticos assumidos pela nação, através de “governos oriundos das chamadas camadas populares” (Roldão 2014, p.169). Porém nem todo o jornalismo tem se entregado a esse tipo de serviço existe a chamada mídia alternativa na internet, que tenta trazer informações sem cortes e sem censuras como é o coletivo Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), o Diário do Centro do Mundo, Jornalistas Livres, Brasil 247, entre outros, numa clara forma de resistência aos processos hegemôni-cos incentivado pela ideia de pensamento único criado pela mídia tradicional.

A mídia brasileira precisa passar a limpo seu trabalho, numa forma de se alinhar com os novos tempos, e com o novo modelo de sociedade que se desenha.

Euclides da Cunha, como citado anteriormente, escreve no jornal O Estado de São Paulo, três meses antes de viajar ao sertão como repórter de guerra, dois artigos expressando opinião sobre o levante em Canudos. Escreve baseado em informações e textos publicados nos mais importantes e influentes jornais da época, reproduzindo o senso comum. A chegada ao palco dos conflitos o faz ter outra visão, a visão do repórter que vai a campo e vive na pele a experiência da guerra, porém como adido a comitiva do Ministro da Guerra se vê impedido de relatar fielmente o que se passava naquelas paragens, com o risco de ter seus textos censurados e ser obrigado a deixar o local, como aconteceu com seu colega repórter do Jornal do Comercio, Manuel Benício, após escrever críticas aos comandantes, tanto nas ações táticas, como na organização e distribuição de suprimentos.

Euclides não relata tudo o que vê, não pode, não naquele momento. Volta de Canudos doente e em conflito, mas procura reparar a sua falta como repórter, escreve Os Sertões, o livro vingador, buscando restaurar o compromisso com a verdade, demonstra isso logo na nota preliminar do livro que torna-se um marco na literatura brasileira.

Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.E foi, na significação integral da palavra, um crime.Denunciemo-lo. (CUNHA, 1966, p.94)

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É indiscutível toda a influência da imprensa no desenrolar da guerra de Canudos, assim como sua influência nas decisões políticas no cenário atual de hoje, resta-nos saber se a atual mídia terá um dia a altivez de vir a público e reconhecer seus erros como fez o iniciante repórter de guerra Euclides da Cunha e produzir obra tão grandiosa como forma de redenção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EUCLIDES DA CUNHA E QUESTÕES RACIAIS: APONTAMENTOS SOBREREPRESENTAÇÕES DE PESSOAS NÃO-BRANCAS

RESUMO: Neste ensaio, experienciamos diálogos sobre raça e racismo, uma temática presente no pensamento euclidi-ano e que, muitas vezes, é silenciada, não contextualizada e mal interpretada, produzindo matrizes discursivas divergentes entre seus estudiosos. Num primeiro momento, caminhamos pelo processo construtivo, no passar dos anos, da figura de alguns personagens não-brancos na nossa literatura, enquanto um reflexo social da visão sobre essa população. Não menos importante, abordamos a construção desses mesmos indivíduos sob a ótica da ciência e das correntes interpretativas prevalentes do final do século XIX e início do século XX, quando, de fato, iniciam-se as primeiras interpretações sobre a(s) raça(s) brasileira(s). Chegamos, nesse processo, na interpretação de Euclides da Cunha quanto às questões raciais na-cionais e o reflexo dela na construção das figuras do sertanejo e do seringueiro. Por fim, (in)concluiremos desdobrando desconstruções, apontando algumas das consequências desses processos construtivos na maneira que (in)visualizamos as populações não-brancas, dentro e fora das Semanas Euclidianas.Palavras-chave: matrizes discursivas; não-branco; racionalismo; racismo científico; raça e literatura. ABSTRACT: In this essay, we experience dialogues about race and racism, a issue that is present in Euclidean thinking and is often silenced, not contextualized and misinterpreted, producing divergent discursive matrices among its researchers. At first, we walk through the constructive process, over the years, of the figure of some non-white characters in our literature, as a social reflection of this population. No less important, we approach the construction of these same individuals from the standpoint of science and the interpretive currents prevalent in the late nineteenth and early twentieth centuries, when, in fact, the first interpretations of the Brazilian race begin. In this process, we arrived at Euclides da Cunha’s interpretation of national racial issues and its reflection on the construction of the figures of the “sertanejo” and the “seringueiro”. Finally, we will conclude by deploying deconstructions, pointing out some of the consequences of these constructive processes in the way we visualize non-white people, inside and outside the event Semana Euclidiana.Keywords: discursive matrices; non-white people; nationalism; scientific racism; race and literature.

Sérgio Luís de Castro Júnior(Mestrando em Engenharia de Sistemas Agrícolas – PPGESA USP)

Da Embaixada [email protected]

Leandro Leal(Doutorando em Educação - PPGE UFSCar)

Da Embaixada [email protected]

Sobre construçõesSeguimos nos nossos afetamentos euclidianos......só que por caminhos outros. Ao longo desta última década que temos

investigado a obra e vida de Euclides da Cunha (1866-1909), nos debruçamos, entre outros assuntos, na interpretação de um dos aspectos euclidianos que nos afeta: a profissão de engenheiro. Tal assunto, pouco discutido durante as Semanas Euclidianas22 que viemos participando, visto às múltiplas facetas do professor-es-critor-jornalista-intelectual, tem nos motivado a construir expressões da figura de Euclides que sejam mais significativos para nós.

Neste ano, depois de muitas reflexões e autoquestionamentos, nos lançamos a outros percursos… Resolvemos encarar, de frente, outra perspectiva euclidiana que nos afeta: seu discurso sobre raças. Enquanto sempre-maratonistas, temos a impressão de que discutir a interpretação de Euclides sobre as questões raciais ainda é algo dificultoso, quase que uma espécie de tabu, sendo este, talvez, um dos motivos pelos quais esse assunto tenha recebido pouca ou quase nenhuma

atenção durante as SEs. E daí surge este ensaio: uma tentativa de buscar respostas às tantas indagações

provocadas por estes silêncios acumulados – questões que atravessam não apenas a nós, mas também a outros maratonistas e participantes da SE. Considerando que a SE se configura enquanto importante espaço de formação multidisciplinar, acreditamos que discussões envolvendo aspectos como raça, gênero, sexualidade e demais dimensões da vivência humana não podem ser desconsideradas – so-

22 Para os não familiarizados com a Semana Euclidiana, e que possivel-mente podem esbarrar com este ensaio por aí, explicamos: trata-se de um evento centenário que ocorre anualmente entre os dias 9 e 15 de agosto. Realizada pela Casa de Cultura Euclides da Cunha, de São José do Rio Pardo-SP, a SE (como passamos a nos referir a partir de agora) é uma oportunidade em que se celebra, discute e atualiza o pensamento euclidi-ano, congregando alguns dos maiores estudiosos de Euclides da Cunha e estudantes (os chamados maratonistas) da cidade e de todo o país.

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bretudo porque estas problemáticas, mesmo que não tratadas especificamente por Euclides, têm relevância social no contemporâneo e oferecem possibilidades de leituras mais aprofundadas e conectadas com a ideia de (re)atualização e contextualização das temáticas euclidianas.

Nesse sentido, considerando este ensaio enquanto um exercício mesmo de pensamento, nos entregamos aos processos de construção dessas linhas, transfor-mando a escrita num pensar-escrevendo… Este é um texto que (nos) ensina enquanto é produzido.

É refletindo sobre esse processo educacional produzido pelo ato de discutir (ou não) questões raciais a partir da vida e obra de Euclides da Cunha, e es-pecialmente nesta Semana dedicada a estes estudos, que conseguimos enxergar o estabelecimento de algumas matrizes discursivas distintas. Assumimos como matriz discursiva aquilo que é construído a partir de diversos agentes sociais, o que pode, entre outras coisas, influenciar nos rumos da produção de saber e do conhecimento científico (que pelo menos deveria ter a pretensão de aproximar-se o mais que puder das realidades estudadas). Eder Sader, importante sociólogo brasileiro e um dos primeiros estudiosos a dialogar sobre o conceito de matrizes discursivas, assim o descreve:

As matrizes discursivas devem ser, pois, entendidas como modos de abordagem da realidade, que implicam diversas atribuições de significados. Impli-cam também, em decorrência, o uso de determinadas categorias de nomeação e interpretação (das situações, dos temas, dos atores) como na referência a determi-nados valores e objetivos. Mas não são simples ideias: sua produção e reprodução dependem de lugares e práticas materiais de onde são emitidas as falas (SADER, 1988, p. 142).

Há, segundo nosso ponto de vista, diferentes modos de abordagens das questões raciais a partir da vida e obra de Euclides da Cunha. Observando espaços e momentos e artefatos diversos, e especialmente tomando como referência o que podemos ver/ouvir/saber a respeito dos discursos de alguns euclidianos que par-ticipam das SEs, conseguimos observar e classificar (até o momento) pelo menos quatro possibilidades de vertentes de interpretação (e difusão) do pensamento euclidiano sobre as questões raciais.

A primeira delas, ironicamente bastante perceptível, é algo que podemos genericamente chamar de silenciamento (por não dispormos, até o momento, de uma palavra mais apropriada). Neste caso, acreditamos que o silêncio e o não-dito pode ser compreendido como possuidor de certa intencionalidade discursiva, seja quando a temática é esquecida (talvez: ou por não ser tomada como relevante ou por não fazer parte do corpus de análise e da abordagem temática estudada ou por não ser um assunto de interesse do sujeito que pesquisa ou...), seja quando ela é deliberadamente evitada - ou, de algum modo, até silenciada, desconsid-erando total ou parcialmente que as questões raciais atravessam sobremaneira o pensamento euclidiano.

A segunda vertente, talvez uma possibilidade mais justa de interpretação, pode ser sintetizada como uma intenção de contextualização - ou seja, é a postura de discutir o ideário racial de Euclides enquanto um pensamento intrínseco às pessoas (sobretudo pertencentes à elite letrada) e à ciência predominante daquele tempo; portanto, também um saber datado e passível de reinterpretações.

A terceira delas, que consideramos um tanto problemática, é algo que reside próximo à uma espécie de “santificação” do escritor, a uma interpretação da obra euclidiana que o destaca apenas e tão somente como um grande mártir da na-cionalidade ao defender os oprimidos e as minorias, sem levar em consideração a própria interpretação de Euclides sobre a construção racial brasileira, que naquele momento histórico pós-abolição ainda estava muito confusa (como abordaremos mais adiante). Nesta matriz, sentimos que há uma separação, quase que artificial, da importantíssima denúncia social realizada pelas letras euclidianas e da inter-pretação racial empregada por Euclides - algo que, a partir da nossa perspectiva, pode “empobrecer” a compreensão do pensamento euclidiano, na medida em

que, baseando-nos em estudos dessa temática desenvolvidos atualmente, podemos perceber que há múltiplas intersecções entre desigualdade social e diferença racial (ou, mais especificamente, pobreza/marginalização e cor de pele23).

Por fim, mesmo não sendo uma postura empregada ao longo dos anos que participamos da SE, não sendo citada (pelo menos explicitamente) pelos atuais estudiosos euclidianos, talvez possamos apontar a possibilidade de uma quarta matriz discursiva: a intenção de concordância e manutenção das interpretações étnico-raciais empregadas à época por Euclides da Cunha e boa parte dos in-telectuais coetâneos – que, tomando-se como referência as discussões pertinentes às questões raciais na contemporaneidade (inclusive no ordenamento jurídico brasileiro), podem ser apontados como posicionamentos, de fato, racistas (e criminosos, portanto).

Caminhando por trilhas entrelaçadas pela engenharia e sociologia, trabalhamos nesse ensaio o intuito de construir (compor/agregar), destacando os processos que levaram essas matrizes discursivas a se estabelecerem. Como militantes, também temos intenções de desconstruir (decompor/refazer), apontando, na nossa per-cepção, quais as falhas interpretativas que permanecem nesses discursos. Para isso, veremos inicialmente como foi construída, ao longo dos anos, a figura do sujeito não-branco na nossa literatura, e consequentemente, a forma como a figura desses sujeitos marginalizados eram reconhecidas na cultura brasileira nestes momentos. Feito isso, abordaremos a figura do personagem não-branco24 a partir da nossa ciência, principalmente nas teorias raciais que foram utilizadas nas interpretações nos primeiros estudos étnico-sociológicos brasileiros, no final do século XIX e início do século XX. Depois, partiremos para a composição empregada por Euclides da Cunha sobre o sujeito não-branco, tomando-o enquanto um escritor e cientista, compreendendo as influências utilizadas por ele e as suas próprias considerações e interpretações sobre o processo de construção étnico no Brasil. E (in)concluiremos com um convite às (des)construções...

A construção do sujeito não-branco na literatura brasileiraComo um primeiro exercício de construção, tentaremos relacionar as questões

raciais com o conjunto das obras clássicas nacionais, perpassando um pouco do histórico literário do nosso país. Quando temos a intenção de compreender e avaliar um determinado processo histórico a partir da ótica da literatura, costu-mamos recorrer à obra Literatura e Sociedade, do influente sociológico e crítico literário Antonio Candido (1918-2017). Como relata o autor, devemos avaliar uma obra não só a partir de seu caráter estético, mas como reflexo do contexto socio-cultural da qual ela pertence (CANDIDO, 1980). Nesse sentido, não podemos des-considerar tal método de avaliação quando falamos da presença dos personagens não-brancos na nossa literatura ao longo dos anos, já que estes nos remetem às conjunturas sociais em que autores viveram e em que suas obras foram escritas.

Começamos esse trajeto com uma breve descrição da construção destes per-sonagens marginalizados no discurso literário brasileiro, através dos estereótipos mais abordados e seus mais conhecidos exemplos. Atual ocupante da cadeira 28 da Academia Brasileira de Letras, Domício Proença Filho, em um artigo intitulado A trajetória do negro na literatura brasileira, de 2004, descreve dois momentos da interpretação das figuras não-brancas da literatura: nas condições de objeto – em versões alegóricas e distanciadas – e enquanto sujeito – em narrações mais realistas.

23 Não desconsideramos, entretanto, outras marcas da diferença quepodem ser acopladas a essas categorias, favorecendo uma compreensão mais ampla e próxima da complexidade/pluralidade da vivência humana(a exemplo de gênero, sexualidade, faixa etária, local de nascimento/residência, religião…).24 É importante destacar que consideramos como sujeitos não-brancos os indivíduos provenientes de grupos étnicos que não possuem características exclusivamente brancas-caucasianas. Podem-se incluir, nesse conceito, a população negra, os indígenas e todos aqueles frutos da miscigenação.

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A objetificação da população não-branca surge no âmago da literatura nacional no século XVII. Ao advogado Gregório de Matos (1636-1696), um dos principais poetas nacionais do nosso período colonial, atribui-se os versos: “Quem são seus doces objetos?... Pretos. Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.’ Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.” Tais registros, catalogados no texto de Proença Filho (2004), mostram a ironia e a ideia de posse dos corpos não-brancos que era empregada pela população branca e elitista frente aos povos considerados seus subordinados.

Contudo, o professor David Brookshaw (1983) relata que um dos primeiros reg-istros literários ao trazer como personagem o negro escravo foi apenas em 1850, já no século XIX, no romance em folhetim O comendador, de Pinheiro Guimarães (1832-1877) - porém, nesta obra são descritos por uma chave negativada, como um misto de desgosto e piedade. Ainda dentro do processo histórico de abolição da escravatura (iniciada em 1850 com a Lei Eusébio de Queiroz e finalizada pela Lei Áurea em 1888), temos como registros literários a escrava Isaura, da obra homônima (de 1872) de Bernardo Guimarães (1825-1884), e Raimundo, do livro naturalista O mulato, de 1881, escrito por Aluísio de Azevedo (1857-1913) - no entanto, figuram como personagens embranquecidos e, consequentemente, aceitos às custas da submissão, humilhação e sacrifício à elite branca. Ademais, como observa o professor Jean-Yves Mérian (2008), muitos apontam A escrava Isaura como uma obra abolicionista, mas é importante destacar que não há consider-ações positivadas, ao longo da narrativa, ao legado cultural e humano africano.

Tais versões desse “não-branco nobre”25, que precisava abdicar de sua cultura para civilizar-se, coexistiram com o estereótipo do “não-branco vítima”, figura representada nos famosos versos de O navio negreiro e A cruz da estrada, de Cas-tro Alves (1847-1871). Também passados por um processo de embranquecimento (só que agora moral), tais personagens tinham o intuito de causar empatia nas plateias burguesas e leitoras da época. Mais uma vez vale destacar que mesmo Castro Alves, assim como os também escritores Bernardo Guimarães e Fagundes Varela (1841-1875), ainda que relatados como abolicionistas, deixaram marcados em suas obras os retratos pessimistas, preconceituosos e por vezes mitológicos da população não-branca, conforme o padrão hegemônico do pensamento intelectual (e branco) da sua época (PROENÇA FILHO, 2004; MÉRIAN, 2008).

Cerne do perfil literário característico do Romantismo, destaca-se o estereótipo do “não-branco dócil”, exemplificado na figura de Iracema, por um lado a virgem dos lábios de mel, por outro a indígena primitiva, ingênua e subordinada da obra de 1865 de José de Alencar (1829-1877). Iracema reforça a personificação do indígena mitificado e amigável, bastante distante dos povos remanescentes marcados pelo genocídio dessa população. O mesmo propósito é visto em Ber-toleza, do romance naturalista O cortiço, de Aluísio de Azevedo, lançado em 1900, representando a mulher negra serviçal, animalesca e subalterna.

O Cortiço também nos oferece as figuras de Rita Baiana e Firmo, representantes do retrato do “não-branco erotizado”. Mérian (2004) destaca a construção desses personagens enquanto projeções de corpos negros sensualizados, frutos do pecado, sem alma, que se tornou perpetuado nas obras de muitos dos nossos maiores escritores ao longo dos anos, como Mário de Andrade (1893-1945) e Jorge Amado (1912-2001). Ainda nesse mesmo período histórico e literário, não podemos deixar de destacar como outro bom exemplo (ironicamente falando) a obra O Bom criou-lo (1894), de Adolfo Caminha (1867-1897), que traz como personagem um homem negro e homossexual caracterizado ao longo do livro como hediondo e perverso.

É na virada de século, do XIX para o XX, que são registradas as primeiras obras que passam a compreender a população não-branca não como objetos, mas enquanto sujeitos (o que não significa, necessariamente, que tenham cessado

os posicionamentos que produzem sentidos estereotipados/racistas - aos olhos contemporâneos). Destacamos duas obras que bastante dialogaram com as incer-tezas étnicas nacionais daquele momento, vistos os reflexos do nosso processo de miscigenação: Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, a qual discutiremos nos tópicos seguintes, e Canaã (1903), de Graça Aranha (1868-1931). Nas prosas dos jovens imigrantes alemães Milkau e Lentz, Graça Aranha propõe, em sua obra, uma reflexão sobre as duas maiores vertentes de discurso sobre raça presentes no Brasil. Por um lado, um dos jovens defende a origem de uma civilização europeia nos trópicos, por meio de uma limpeza racial em favorecimento da população branca. O outro, por sua vez, valoriza o nosso processo de mestiçagem como a solução para se obter raças mais fortes, adaptáveis ao nosso ambiente.

Todavia, a construção de personagens não-brancos não melhorou consideravel-mente a partir daí. No modernismo, dentre os vários escritores, Monteiro Lobato (1882-1948) ganha destaque (por vezes, bastante negativo) acerca de suas opin-iões quanto às questões raciais e o reflexo disso na construção de seus person-agens negros. Consagrando-se enquanto precursor da literatura infanto-juvenil com o Sítio do Pica-pau Amarelo, Lobato retrata seus personagens não-brancos com perfis fortemente estereotipados. No conto Bocatorta, por exemplo, o escritor pau-lista descreve o personagem negro, um escravo “mísero, disforme e horripilante”, que de tão feio mata atordoada uma jovem sinhá. Nas suas coleções infantis, a obra História de Tia Nastácia evidencia o choque cultural entre a matriz africana da personagem analfabeta com a cultura branca, supervalorizada. A personagem, descrita como “macaca de carvão” ainda reforça o estereótipo da mulher preta, gorda, de seios grandes e com lenços escondendo o cabelo mau cuidado26. Outros estereótipos também são reforçados com as figuras do Tio Barnabé, o preto velho isolado “nos confins do Sítio”, e do Saci, o anti-exemplo que encarna os piores vícios de uma criança não educada e não civilizada (BROOKSHAW, 1983).

Contudo, enquanto literatura de resistência, a figura do negro vem grada-tivamente sendo (re)construída utilizando um discurso divergente dos autores brancos que escreviam para o público leitor também branco. A título de exemplo, destacamos Maria Firmina dos Reis (1822-1917), Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Cruz e Sousa (1861-1898), Abdias Nascimento (1914-2011), Solano Trindade (1908-1974) e muitos outros, tantos e tantos quase desconhecidos da grande massa e não catalogados na nossa literatura clássica. Ainda, não podemos deixar de falar de Lima Barreto (1881-1922): negro, suburbano, desleixado e contra-ditório, como ele próprio se descreveu. O autor carioca, relegado muitos anos ao esquecimento, relatou em seus textos a discriminação racial e exclusão social vividas por ele e rarissimamente explorada nas obras contemporâneas. Autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) e Clara dos Anjos (1922)27, Lima Barreto viveu das consequências remetidas ao processo de subalternização racial da popu-lação não-branca: incompreendido (preso entre o parnasianismo e o modernismo), dado ao anonimato (três vezes negado na Academia Brasileira de Letras) e pobre (alcoólatra e com seus últimos dias no manicômio).

25 Partimos de categorias utilizadas por Proença Filho (2004), as quais evidenciam maneiras de se estereotipadamente agrupar personagens marginalizados. No entanto, enquanto o autor emprega somente o termo “negro…”, optamos por expandir essas categorias utilizando a ideia do “não-branco”, no sentido que já expomos anteriormente.

26 A construção estética da Tia Nastácia nos remete ao estereótipo da “Mammy”, fortemente difundido nos Estados Unidos nesta mesma época. A historiadora Suzane Jardim elaborou uma reportagem bastante interes-sante para a plataforma eletrônica Medium, “Reconhecendo estereótipos racistas na mídia norte-americana”, de 2006. De forma bastante didática e acessível, Jardim aborda diferentes estereótipos de raça (a Mammy, o Jim Crow, a Jezebel, entre outros), muitas também presentes na nossa literatura e mídia.

27 Clara dos Anjos, a protagonista negra, é dita ser o alter ego feminino de Lima Barreto: uma garota dos subúrbios, mãe solteira, abandonada pelo rapaz branco. Custou-se muitos anos para compreendermos as problemáti-cas da mulher preta marginalizada e muito mais para representá-la de maneira coerente e fundamentada na literatura e na mídia (algo que ainda hoje está em processo…).

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Dia após dia, novos discursos sobre a população não-branca vêm sendo con-struídos e reconstruídos, seja na literatura, nas músicas, nas artes plásticas, nas ruas... Entretanto, a visão estereotipada e objetificada, cunhada nas nossas obras clássicas, ainda é vigente e permanece no inconsciente coletivo nacional.

A construção do sujeito não-branco na ciência brasileiraNesse segundo processo de construção, abordaremos o desenvolvimento do

pensamento científico quanto à questão racial, movimento imprescindível para compreender a obra de Euclides da Cunha. Mudanças importantes do cenário sócio-político nacional marcaram a história brasileira nos anos de transição do século XIX para o XX: o fim do processo de abolição da escravatura, a intro-dução da República e os primeiros anos do regime militar então adotado. Nesse agitado cenário é que surgiram os primeiros questionamentos sobre a ideia de raça por parte da elite intelectual nacional (importante destacar: composta por homens brancos e ricos), que queriam compreender para qual caminho se dirigia a formação da nação brasileira a partir de uma identidade racial. Não diferente de outras ciências, as bases utilizadas nesse processo foram as teorias raciais importadas da Europa e da América do Norte - gerando, claro, um impasse ao aplicá-las ao nosso contexto bastante singular, que diferia do existente em seus países de origem (BARBOSA, 2016). As pesquisadoras Raquel Amorim dos Santos e Rosângela Maria de Nazaré Barbosa da Silva destacam:

Os debates que mobilizavam a intelectualidade brasileira do final do século XIX e começo do XX expressam a medida da dificuldade de se formular, à época, interpretações do país e, sobretudo, de sua composição étnica, que não tivessem uma forte carga racista. Com efeito, o apoio nas teorias raciais em voga parecia definir o próprio estatuto de cientificidade (SANTOS; SILVA, 2018, p. 254).

Embora os estudos raciais já viessem engatinhando nos séculos anteriores, é nesse momento histórico que a abordagem poligenista28 sobre raça torna-se a visão hegemônica da comunidade intelectual. Em 1859, com o livro A Origem das Espécies, Charles Darwin (1809-1882) apresenta o conceito de evolucionismo, que foi fortemente utilizado (mesmo que com intenções diferentes das pretensões originais do autor) para produzir e justificar as chamadas pseudociências - que hoje interpretamos como de cunho racista - muito para sustentar a “missão civili-zatória” das potências imperialistas. Conforme nos informa a premiada historiadora e antropóloga brasileira Lilia Schwarcz (1993), origina-se, assim, o darwinismo social (ou teoria das raças) ao aplicar os processos de seleção natural abordados por Darwin na constituição social humana. Dos estudos do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), partindo da ideia de “sobrevivência dos mais aptos”, o darwinismo social interpreta que os seres humanos são, por natureza, desiguais, o que fundamenta a classificação e hierarquização das raças também aqui no Brasil.

A pesquisadora Maria Augusta Bolsanello (1996) considera que as ligações entre darwinismo social e o racismo científico foram definidas pelo antropólogo francês Georges Vacher de Lapouge (1854-1936), na obra L’Arien. Marca-se, aqui, a distinção de raça superior (ariana) e raças inferiores. Tal corrente, originada no século XIX, foi a visão mais empregada na interpretação racial no Brasil da época, cunhando com rigor científico as justificativas para as nossas desigualdades sociais devido à hierarquia nos nossos grupos étnicos. Em nossas terras, a constituição

e separação de raças mais fortes (muitas vezes lidas como “mais adiantadas”) de raças mais fracas (no nosso contexto, negros e índios), o racismo científico respaldou a discriminação presente desde a gênese da ocupação portuguesa.

Entretanto, estudar a constituição étnica no Brasil no final do século XIX acrescentava problemáticas não definidas totalmente pelos teóricos estrangeiros. A princípio, nosso país passava por um processo de mistura de raças, singularmente miscigenadas, sem precedentes históricos. Ademais, todo esse processo etnológico ainda estava em plena constituição, levantando questionamentos a respeito de que caminho estava se dirigindo a definição de uma nação a partir do conceito de raça: nos dirigíamos a uma raça única, a longo prazo, numa abordagem con-vergente? Ou iríamos gerar cada vez mais raças, como produtos da miscigenação, num sistema cada vez mais plural e divergente?

De um jeito ou de outro, o pensamento preponderante da época caracterizava a miscigenação nacional de forma bastante negativa. Para o conde francês Arthur de Gobineau (1816-1882), autor do livro Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), a miscigenação seria sinônimo de degeneração, física e intelec-tual. Nas palavras do próprio, “não creio que viemos dos macacos, mas creio que vamos nessa direção”. O naturalista suíço Louis Agassiz (1807-1873), outro estudioso indispensável para entender o racismo científico, partilhava da mesma opinião. Conforme nos relata a pesquisadora Maria Rita de Jesus Barbosa (2016), ao visitarem o Brasil – em momentos distintos –, Conde de Gobineau e Louis Agassiz classificaram nosso país como uma nação improvável, inviável e incapaz de acompanhar os avanços da civilização.

Na utilização do racismo científico para interpretar a miscigenação brasileira, abriram-se duas vertentes. A mais radical, como nos relata a psiquiatra Ana Maria Galdini Raimundo Oda (2000), é similar com as ideias de Gobineu e Agassiz e possui como maior representante nacional o médico Nina Rodrigues (1862-1906)29. Nessa linha explicativa, a miscigenação encarregaria de enfraquecer a constituição étnica brasileira em um processo crescente de degeneração que impossibilitaria o povo brasileiro a ser, de fato, civilizado. A causa seria, nesse ínterim, a contribuição do negro e do indígena como fatores de enfraquecimento racial. E por isso deviam ser extintos.

A outra vertente, também valorizando o arianismo e apoiado pelos estudos brasileiros de Sílvio Romero (1851-1914), João Batista Lacerda (1846-1915) e Oliveira Viana (1883-1951), acreditava que a nossa miscigenação daria a opor-tunidade de regeneração da raça nacional, que culminaria no desaparecimento dos negros e da população de pele escura, em paralelo com a ascensão da população de pele clara (SANTOS; SILVA, 2018). Nesta tese do embranquecimento nacional, acreditava-se que a abertura de portas para os imigrantes europeus favoreceria o embranquecimento, a longo prazo, da população brasileira. Ademais, esse pro-cesso ocorreria organicamente, pois o gene branco era mais forte e as pessoas procurariam, “involuntariamente”, parceiros mais brancos, gerando descendentes mais claros. Contudo, o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2008) e o historiador norte-americano Thomas Skidmore (2012) concordam que a ideia de embranquecimento nacional foi uma tentativa de neutralizar os sentimentos de inferioridade da elite brasileira frente ao padrão europeu, proposto pelo próprio racismo científico.

Entretanto, os discursos sobre raças que abordamos até então não adicio-nam na questão racial um condicionante: o fator ambiente. Nessa perspectiva,

28 Santos e Silva (2018) relatam que os estudos iniciais de raça podem ser divididos em duas correntes científicas principais: a monogenista e a poligenista. A primeira, também chamada de hipótese da origem única, defende que os seres humanos são descendentes de um ancestral comum, e ganhou força a ser incorporada nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. A poligenista, por sua vez, defende a existência de linhagens distintas de seres humanos e que estas podem ter reflexos nas inclinações morais e nas aptidões intelectuais dos grupos étnicos.

29 Raimundo Nina Rodrigues é uma figura dicotômica nos estudos étnicos nacionais. Por um lado, foi pioneiro ao estudar a figura do negro enquan-to uma questão social brasileira, também agente da formação racional nacional. Contudo, seus estudos são marcados por passagens racistas e na-cionalistas, numa linha de raciocínio que embasaram os diversos e futuros regimes autoritários de exceção. Contemporâneo à guerra de Canudos, Nina Rodrigues escreveu A loucura epidêmica de Canudos, uma análise das loucuras individuais e coletivas da população canudense e seu líder, Antonio Conselheiro, abarcando o conceito de raça, degenerescência e atavismo na explicação do fenômeno nordestino.

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o determinismo geográfico/ambiental, do geógrafo e etnólogo alemão Friedrish Ratzel (1844-1904) e do historiador britânico Henry Thomas Buckle (1821-1862), buscava compreender como o meio afetava a fisiologia e psicologia humanas, determinando, de fato, o que seriam as raças promissoras a permanecem em determinado ambiente. Em sua tese de doutorado, Ilton Jardim de Carvalho Junior (2011) complementa:

Para seus defensores, o ambiente físico ou os chamados fatores geográficos (solo, relevo, clima, recursos naturais etc) seria um importante ou principal agente a influenciar a humanidade e alguns de seus fenômenos, como a marcha da história, a formação do caráter das pessoas, a teoria política, a ascensão e queda das civilizações, a migração dos povos, o nível de desenvolvimento das nações e a formação dos traços culturais de uma sociedade (moral, jurisprudência, religião, crenças, hábitos, imigração, entendimento, línguas etc) (CARVALHO JUNIOR, 2011, p. 25).

Outro escritor, que tem papel de destaque nas produções científicas a esse res-peito, é Gilberto Freyre (1900-1987), com a polêmica obra Casa-grande e senzala (1933). Alguns estudiosos apontam que a obra rompe com o racismo científico e o determinismo geográfico - presentes na base científica do pensamento de Euclides da Cunha -, enquanto teorias vigentes na construção dos não-brancos da época. Embora não explícita no livro, Casa-grande e senzala identifica e marca uma nova interpretação das questões raciais nacionais: a tão polêmica e controversa ideia de democracia racial. Por outro lado, críticas ferrenhas de outros autores remontam a uma tentativa de suavização e romantização das relações de poder entre as duas etnias no nosso período colonial.

Conforme apresenta a pesquisadora Fernanda Rebelo (2007), é importante notar que, no contexto brasileiro, as teorias raciais do final do século XIX e primeira metade do século XX se mesclaram com o determinismo geográfico/ambiental, com o intuito de utilizar da má adaptação ao nosso clima para legiti-mar a visão racista dos povos latino-americanos. Mas não se parou por aí. Muitas adaptações e atualizações foram feitas nas teorias raciais, desse período em que demos enfoque até os dias atuais. Das múltiplas interpretações, destacamos a independência cada vez maior dos estudos raciais das ciências exatas, aproximan-do-os das investigações que compreendem o complexo sócio-político-econômico nas questões de raça.

A construção da figura não-branca por Euclides da CunhaAcreditamos que uma boa maneira de iniciar este último processo de con-

strução é resgatando uma fala do professor Leopoldo Bernucci em entrevista para Carlos Juliano Barros (2002): “Ele [Euclides da Cunha] [...] [era] um bom leitor e observador, que combinava as teorias que aprendia”. Concordamos que o escritor, engenheiro, jornalista, professor Euclides da Cunha foi um grande leitor de seu tempo, sendo assim, deveras, influenciado pelas correntes de pensamento positiv-istas, evolucionistas e deterministas vigentes da sua época – incluindo, aqui, suas dimensões para as interpretações raciais. E acrescentamos que, além de combinar teorias, Euclides foi produzindo a sua própria, na medida em que esse processo de composição teórica apresenta características singulares de interpretação e agrupamento de conceitos e categorias e modos de ver as teorias anteriormente estudadas. Vejamos, agora, um pouco de como se deu a constituição desse discurso do Euclides da Cunha para as questões de raça e, consequentemente, o reflexo dessa teorização que está presente em sua obra.

As escolas superiores do final do século XIX destinavam-se à formação de engenheiros, advogados e médicos, o que torna compreensível a incorporação de elementos do direito, das ciências exatas e das ciências naturais na formação de um pensamento social brasileiro produzido naquele momento. Conforme bem destacado pelos sociólogos Gustavo Martins do Carmo Miranda e Victor Augusto Araújo Silva (2013), é nesse universo que se encontra a formação acadêmica de Euclides da Cunha.

Em 1857 era fundada, no Rio de Janeiro, a Escola Militar da Praia Vermelha, destinada à formação de oficiais de engenharia e artilharia. Conforme é relatado com mais detalhes em nosso texto publicado na Revista Cultura Euclidiana de 201630, a Escola era apelidada por seus estudantes-militares de “Tabernáculo da Ciência”, havendo em seu ambiente a promoção das vertentes científicas vigentes da época, muitas delas importadas dos estudiosos estrangeiros. Naquele momento, a Escola Militar era um dos centros nacionais de concentração dos ensinamentos positivistas, sob influência do professor Benjamin Constant31 (1836-1891).

Nesse cenário, como destaca Regiane Cristina Gouveia (2016), em sua tese de doutorado, a influência positivista fundiu-se com os conceitos de racismo científico, evolucionismo e darwinismo social, pois não havia maneira do Brasil alcançar os ideias de civilização e progresso da época – como proposto pelas teorias posi-tivistas – sem, antes disso, repensar e resolver nossos questionamentos de raça.

Euclides da Cunha e Benjamin Constant cruzaram seus caminhos em dois mo-mentos. O primeiro deles, na passagem de Euclides no Colégio Aquino, em 1883, onde foi aluno de Benjamin Constant e, até onde se registra, possuiu o primeiro contato com os ideais pró-República. Em um segundo momento, três anos depois, reencontrou o mestre ao ingressar na Escola Militar, imergindo no pensamento positivista consoante aos demais militares cariocas, em sua maioria abolicionistas e republicanos (SOUZA; GALVÃO, 2007).

De formação cientificista, Euclides da Cunha estabelece, assim, contato com os principais teóricos raciais de sua época. Nos últimos anos de sua formação militar, escreve ao amigo João Luís, em carta de 1895: “Por aí já vês que minha atividade intelectual agora converge toda para os livros práticos – deixando pro-visoriamente de lado os filósofos, o Comte, o Spencer, o Huxley etc. – magníficos amigos por certo…” (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 84).

Ainda assim, Euclides não para por aí. Enquanto um grande estudioso, con-tinuou a dialogar com a Filosofia e com diversas correntes científicas coetâneas a ele. Enquanto engenheiro – o “Mau-Ofício” – e demais atividades/profissões que Euclides tanto se dedicara, o pesquisador perseverou em seus estudos, como é recorrente observar na leitura de suas cartas para amigos e familiares. Para Machado de Assis, em 1904, Euclides escreve:

Mesmo na ordem intelectual, a minha leitura exclusiva tem-se feito nuns pesa-dos calhamaços, onde cada página faz um efeito de uma estrapada inquisitorial, no deslocar o espírito de suscessivas quedas. Durand-Clyde, Bechmann, Arnold (como estamos longe de Taine, Buckle, Comte, Renan...) estes barbados anônimos são os familiares deste Mau-Oficio… (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 197).

Nesta vasta biblioteca euclidiana, dois estudiosos ganham destaque quando discutimos a questão racial: o historiador francês Hippolyte Taine (1828-1823) e o advogado e professor polonês Ludwig von Gumplowicz (1838-1809). Conforme destaca Barbosa (2017), Taine, enquanto um expoente do Positivismo, propôs o Método de Taine – também designado de esquema taitiano -, uma forma de interpretação do homem através de três fatores determinantes: meio ambiente, raça e momento histórico. Como sabemos, esse determinismo geográfico e racial é fundamental para compreender o pensamento euclidiano, como também é refletido na composição da sua literatura – em especial em sua obra mais famosa, Os Sertões.

30 CASTRO JÚNIOR, Sérgio Luís; FREITAS, Leandro Leal. A engenharia de Euclides da Cunha: construindo pontes entre ciência e arte. CulturaEuclidiana, v. 1, p. 32-38, 2016.31 Benjamin Constant Botelho de Magalhães foi um militar, professor e engenheiro, considerado um dos principais discípulos brasileiros de Auguste Comte (1798-1857), fundador do positivismo. Constant torna-se, assim, uma figura fundamental para compreender os ideais – mesmo que não práticos – da instauração da nossa República, baseada na “ordem” e no “progresso”.

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De Gumplowicz, Euclides se utiliza da sociologia evolucionista. Em seu polêmico e principal livro, Struggle of the races (sem tradução para o português), de 1883, Gumplowicz argumenta que o desenvolvimento de uma nação causaria maiores conflitos entre as raças, de maneira que as raças mais fortes dominariam e ex-tinguiriam as raças mais fracas. Nas palavras do professor e historiador Vanderlei Sebastião de Souza, “o sociólogo acreditava que ao longo do processo de contato com o meio físico - o verdadeiro ‘cimento da unidade’ étnica - é que se formaria uma raça histórica, coesa na identidade de sangue e de valores culturais comuns” (DE SOUZA, 2010, p. 7-8). A relevância de Gumplowicz no pensamento euclidiano é evidenciada em carta de Euclides da Cunha ao também escritor Araripe Júnior, de 1903, onde, discordando do autor cearense, Euclides discorre sobre sua inter-pretação para as questões sociais do nosso país. Diz Euclides:

Sou um discípulo de Gumplowicz, aparadas todas as arestas duras daquele ferocíssimo gênio saxônico. E admitindo com ele a expansão irresistível do circulo singenético dos povos, é bastante consoladora a ideia de que a absorção final se realize menos à custa da brutalidade guerreira do “Centauro que com as patas hípicas escarvou o chão medieval”, do que à custa da energia acumulada e do excesso de vida do povo destinado à conquista democrática da terra (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 151).

Discutindo a base filosófica de Euclides, podemos dialogar, mesmo que de maneira breve e até um pouco superficial, sobre os personagens não-brancos pre-sentes na literatura euclidiana: o sertanejo e o seringueiro. Na construção destes dois personagens sociais marginalizados, marcados pela miscigenação racial em pleno andamento no Brasil, Euclides destaca, assim, as diferentes combinações orig-inadas pela nossa “heterogeneidade de elementos ancestrais”, calcados no negro, no indígena e no branco. Tais fontes étnicas, combinadas em diferentes proporções por “dosagens variáveis de sangue”, dariam origem a perfis raciais múltiplos no Brasil, contrariando a obtenção de uma etnia nacional única, conforme seguia a sociologia nacional vigente (baseada nos estudos europeus).

Vamos ao sertanejo, e por isso, falar de Os sertões. Já na nota preliminar da sua obra máxima, Euclides cita Gumplowicz e Taine, portadores de teorias racistas que discutimos agora a pouco. Com algumas contradições32, o escritor utiliza tal pensamento para guiar sua escrita, principalmente na parte O homem, onde Euclides nos oferece o cerne da sua interpretação racial na construção histórica do Brasil, começando pela distinção das nossas raças elementares e do processo de miscigenação que culminou na origem do(s) sertanejo(s).

Desta parte, temos uma das frases mais citadas de Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral (CUNHA, 2009, p. 207).” Temos, neste excerto, a síntese do pensamento racial de Euclides, embora muitos a citem por outros sentidos/mo-tivações. Para ele, o sertanejo é uma sub-raça mais pura, menos influenciada pela “luta de raças” por estar em menor contato com agentes estrangeiros. Com isso, embora a miscigenação, na sua visão, fosse causa de um processo de degeneração nacional, o isolamento daquele povo a fez de maneira uniforme.

No entanto, o sertanejo, mais resistente, mais tenaz, fisicamente mais desen-volvido para sobreviver ao nosso clima/região, é também mais retrógrado quando comparado ao mestiço do litoral. Assim, Euclides da Cunha quebra a lógica nacio-nal em acreditar que o eugenismo seria a nossa grande salvação, e reverencia o sertanejo como “a rocha viva da nacionalidade”. Para o tradutor alemão Berthold Zilly (1999), esta é a contradição de Euclides da Cunha, que por um lado coloca o

sertanejo como um “tipo inferior e pouco idôneo para ser cidadão” e por outro o interpreta como “pronto para constituir a base étnica da futura nação civilizada”.

As interpretações de raça também são empregadas por Euclides da Cunha para compreender a formação étnica do seringueiro. Em parte de seus estudos amazônicos, notadamente no artigo Entre o Madeira e o Javari, constante do livro Contrastes e Confrontos (1907), o escritor identifica a ação exploratória da borracha enquanto um dos “melhores capítulos” da história brasileira até então, ao propor uma “seleção natural dos fortes” aos “admiráveis caboclos do Norte” (CUNHA, 2013, p. 106). O sociólogo e escritor Carlos Alberto Doria (2009), em dossiê para a revista Trópico, destaca que, na Amazônia, ocorre a inversão da luta de raças presente no discurso de Gumplowicz, pois nesse cenário, o “estrangeiro” é absorvido pelo “conquistado”.

É nesse ambiente, uma oportunidade nova até então, que Euclides acreditava que por conta do isolamento desse povo, sem interferência de ações estrangeiras, formar-se-ia a nossa raça nacional, num princípio similar de desenvolvimento racial utilizado para explicar o seringueiro. Com isso, iríamos adquirir a “raça histórica” tanto abordada pelos autores das teorias racistas Ernest Renan, Gustave Le Bon, Gumplowicz, dentre outros. Mas muda-se, aqui, a abordagem. Oswaldo Galotti, em uma nota explicativa de uma edição de A Margem da História, diz:

O mesmo crítico da caatinga, d’Os Sertões, é aqui o arrebatado revelador do sistema hidrográfico da (ainda hoje) desordenada região. E se o sertanejo é antes de tudo um forte, o seringueiro, é um tipo de lutador excepcional. Devido, porém, ao egoísmo desenfreado dos patrões opulentos, o homem ali “trabalha para escravizar-se” (GALOTTI, 1967, p. 7).

Mais de um século avante, vemos hoje que a construção destes personagens não-brancos da obra euclidiana está marcada por interpretações (que hoje podem ser consideradas) racistas, que mesmo “defendendo” tais grupos marginalizados, partem da classificação de raças em uma hierarquia justificada por princípios científicos – práticas, hoje, desaprovadas e refutadas nos estudos das identidades e da promoção racial. Jean-Yves Mérian, na sua interpretação da construção da figura do não-branco na literatura de Euclides da Cunha, sumariza:

Já que na época existia uma gradação na afirmação das qualidades e defeitos das raças, Euclides da Cunha achava superior o sertanejo, mais útil para a conquista dos espaços inóspitos do sertão, e mais tarde do Acre e da Amazônia do ciclo da borracha, do que o negro e o mulato da costa, da Zona da Mata, considerados preguiçosos, viciados, pouco inteligentes, promíscuos e libidinosos, constituindo um mau exemplo, um perigo para a população branca e um fator de atraso. O preconceito da inferioridade do negro imperava. Em Os Sertões, as páginas consagradas aos mulatos e negros da costa são uma bela ilustração das teorias de Gustave Le Bon33 (MÉRIAN, 2008, p. 53).

Conforme salientado por alguns autores (BERNUCCI, 1998; DÓRIA, 2009), a interpretação sobre as raças dada por Euclides da Cunha deve ser observada não sob um aspecto racista, mas sim racionalista. Esse discurso narrativo parte do princípio de que nem todos os estudiosos de raça são, necessariamente, racistas. Um dos principais exemplos que temos é a própria interpretação da obra de Darwin, que estudou as raças humanas para combater o racismo – avaliando as raças como provenientes de um ponto em comum – cujo discurso foi utilizado para promover a hierarquia e dominância de determinadas raças (DÓRIA, 2009).

32 Muitos estudiosos vêm dialogando sobre a interpretação de Euclides da Cunha sobre os estudos de Gumplowicz. Para o professor da PUC-RJ, Luiz Costa Lima, seria necessário revisitar a segunda parte de Os sertões, pois Euclides teria interpretado mal a obra do autor polonês. Em coluna para o Estadão, de 2009, intitulada Autor leu mal ideias de Gumplowicz, Costa Lima compara as linhas de interpretação racial de ambos.

33 Gustave Le Bon (1841-1931) foi um médico e escritor francês, cujo principal trabalho foi A Multidão: Um Estudo da Mente Popular (1895).Le Bon intercala, em seus estudos, a utilização da psicologia e da sociologia na determinação de um “inconsciente racial” de uma multidão, que forma uma nova entidade psicológica através da soma dos indivíduos.

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Contudo, muito além da classificação de Euclides da Cunha enquanto um escritor racista ou racionalista, devemos separar a “boa literatura” da “má ciência” presente em sua obra. É identificar e compreender, assim, aquilo que é datado e que corresponde a um panorama representativo daquele momento histórico. Muito disso se deve, inclusive, pelo caráter científico dos seus textos - que, de acordo com José Veríssimo, é um defeito comum “de quase todos os nossos cientistas que fazem literatura”. É necessário (re)interpretar e (re)discutir sua literatura, abrindo a gaiola de ouro.

Sobre desconstruçõesEm um dos intervalos de escrita deste texto, em um ótimo exercício de pro-

crastinação nas redes sociais, encontramos um link da BBC Brasil que nos chamou atenção: era uma entrevista, de 2018, da jornalista Júlia Dias Carneiro com a escritora negra mineira Conceição Evaristo (1946-). A manchete que nos provocou gritava: “É preciso questionar as regras que me fizeram ser reconhecida apenas aos 71 anos, diz escritora”.

Podemos pensar que esse texto tem ressonância com essa reflexão… Nos questionando sobre possíveis razões da pouca ou quase nenhuma discussão da temática da raça nas Semanas Euclidianas (nos sentidos que expressamos neste ensaio), acabamos sendo compelidos a um processo de imersão nas questões que envolviam aspectos da construção da interpretação sobre a população não-branca na nossa literatura, na nossa ciência e, consequentemente, no nosso imaginário social. O nosso exercício de escrita torna-se, assim, também sobre questionar todas essas regras que levaram Conceição Evaristo a demorar mais de 20 anos para publicar sua primeira obra. E tantas as pessoas e obras ainda silenciadas...

Euclides da Cunha fora, de fato, precursor de pensamentos que trouxeram luz à compreensão de diversas mazelas nacionais, que estão (infelizmente) ainda mal resolvidas e presentes em nosso contexto atual (razão pela qual Euclides é atualíssimo, ainda referência importante para se pensar questões sociais bra-sileiras contemporâneas). Nesse sentido, ao discutir a questão racial na/de sua obra, devemos considerar, sempre, a sua temporalidade de produção - ou seja, é imperioso contextualizar, não incorrendo em posturas anacrônicas e, de algum modo, até injustas. Porque mesmo se tratando de uma pessoa visionária, que pensava à frente do seu tempo, que antecipava questionamentos (como o caso das questões socioambientais), é difícil se imaginar que, tão amparado e baseando-se nas teorias científicas da época, Euclides pudesse se deslocar vertiginosamente do pensamento preponderante naquele período. Mas nos parece que, inclusive diante da relevância atual das questões étnico-raciais e também devido às nos-sas posturas ético-políticas, não podemos (na linguagem popular da juventude) “passar pano” - ou seja, aliviar, acobertar. Isso significa que, em síntese, também somos atravessados pela obrigação de, ainda que olhando pelo retrovisor, retomar e refutar alguns elementos da obra euclidiana que, consideradas as ressalvas já apontadas, podem remeter a posicionamentos racistas.

Todo esse exercício de escrita (e autodescoberta!) foi, também, um processo de (des)construção da nossa subjetividade e das nossas posturas enquanto estu-dantes e pesquisadores - e, neste caso específico, de euclidiano-conselheiristas que participam das Semanas Euclidianas. Este ensaio, que agora se encaminha para um término, se manifesta enquanto um prelúdio para os próximos movimentos de pensamento e escrita. De agora em diante, passaremos a focalizar como essas matrizes discursivas sobre raça, racismo e racionalismo no/do pensamento euclidiano são interpretadas e discutidas atualmente nas Semanas Euclidianas (e também fora delas). Nos colocaremos a refletir sobre as possíveis razões de ainda vermos pouca expressão (inclusive numérica) de maratonistas e professores não-brancos, e porque estes poucos se sentem, muitas vezes, incomodados não pelo texto de Euclides, mas pelas matrizes discursivas utilizadas. E é nesse ponto que a experiência de escrita deste ensaio se torna, também, um projeto coletivo (no compartilhamento de ainda mais experiências quanto a essa temática) e prático (ao repensarmos, enfim, nossos discursos).

Completando 110 anos da morte de Euclides, ainda caminhamos para com-

preender como se dão os processos étnicos de formação do que chamamos de “povo brasileiro”. Ainda não conseguimos responder, devido às complexidades próprias da experiência histórico-social brasileira, quem somos nós, enquanto nação. Num exercício de imaginação sociológica, talvez essa seja uma das razões da persistente dificuldade em equacionarmos questões sociais históricas e de tra-tarmos as pessoas com respeito e empatia. Tivemos uma série de avanços, todos produzidos por intensas (e por vezes violentas) disputas éticas-estéticas-políticas do povo não-branco socialmente marginalizado - construindo um panorama oti-mista (embora ainda complicado e controverso) que, a despeito da atual guinada conservadora e elitista, vêm criando possibilidades de existências mais dignas e representativas dessa parcela da população. Contudo, ainda sofremos pelo racismo estrutural enquanto marca nacional, que origina e fomenta desigualdades sociais, muitas advindas de processos de subalternização amparados nas diferenças de cor. Reflexos de pensamentos raciais que ainda não superamos e, importante destacar, pouco ou sequer discutimos. Ah, há tanto o que desconstruir.

Seguimos nos nossos afetamentos euclidianos....

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EUCLIDES DA CUNHA ENTRE OS SERINGAIS

RESUMO: A expedição realizada por Euclides da Cunha à Amazônia foi heroica, de grande dificuldade e os artigos e en-trevistas que resultaram dela quando retornou ao Rio de Janeiro não tiveram a repercussão merecida, como bem observa Bilac, em artigo aqui transcrito. Este trabalho aborda aspectos dessa viagem e tem como objetivo maior reunir documen-tos que relatem momentos dos percursos que fez o escritor, tanto na ida quanto na volta, além de ressaltar as enormes dificuldades por que ele passou, sendo um homem de saúde frágil, no cumprimento dessa missão; para tanto, este artigo se alicerça em fontes como jornais de 1904 a 1906 e as obras de Hardman (2009), Amory (2009), Diário de Marcha, de Euclides da Cunha, Loivos; Sangenis (2013) e Correspondência de Euclides da Cunha (1997).Palavras-chave: Euclides da Cunha; Acre; Amazônia; seringueiro. ABSTRACT: The expedition carried out by Euclides da Cunha to the Amazon was heroic, with great difficulty, and the articles and interviews that resulted from it, when he returned to Rio de Janeiro, did not have the deserved repercussion, as well observes Bilac in his article here transcribed. This paper discusses aspects of this trip and aims to gather documents that report moments of the routes made by the writer, in the trip and the return, in addition to highlighting the enormous difficulties he has experienced, being a man of fragile health, in fulfilling this mission; for that, this article is based on sources such as newspapers from 1904 to 1906 and the works of Hardman (2009), Amory (2009), Diário de Marcha, Euclides da Cunha, Loivos e Sangenis (2013) and Euclides da Cunha’s Correspondence (1997).Keywords: Euclides da Cunha; Acre; Amazônia; the rubber tapper.

Maria Olívia Garcia R. Arruda (Drª)(Universidade Paulista – UNIP)

[email protected]

Em 1903, Euclides da Cunha já era famoso por sua obra Os sertões, que o levaria à Academia Brasileira de Letras, mas como pediu demissão da Superin-tendência de Obras Públicas de São Paulo e tinha para sustentar a esposa e três filhos, passou por dificuldades financeiras. Em 20 de novembro de 1903, tomou posse no Instituto Histórico-Geográfico do Brasil, mas continuava a procurar um emprego fixo. Pediu ajuda ao ex-colega do Colégio Militar, Lauro Müller, que era Ministro dos Transportes de Obras Públicas, para conseguir um posto de engen-heiro no Rio de Janeiro, mas sem sucesso.

Passou a escrever pontualmente para O Estado de São Paulo sobre o seu mais novo “sertão”: a Amazônia. (LOIVOS, SANGENIS, 2013). Abriu, em seus artigos, um amplo debate sobre os conflitos de fronteira que ocorriam naquela região, defen-dendo uma solução diplomática que incorporasse ao Brasil o território do Acre.

Esses artigos despertaram a atenção do Barão do Rio Branco, que recebeu o escritor em sua casa de verão em Petrópolis. No dia 9 de agosto de 1904, Euclides foi, então, nomeado o chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Começa imediatamente a fazer os estudos e os preparativos para a missão.

A região entre o Purus e o Juruá era de conflitos fronteiriços, onde caucheiros peruanos e seringueiros brasileiros travavam duras batalhas pela posse dos seringais, desde o século XIX. Em 1851, o Brasil firmara os limites com o Peru, depois com a Bolívia, em 1867, no entanto o Peru não reconhecia o Tratado de Petrópolis, de 1903, que estabelecera os limites entre o Brasil e a Bolívia e que incorporava o Acre ao primeiro. Os peruanos instalaram, então, postos aduaneiros na foz dos rios Chandless e Amônia, sobretaxando a borracha em território que consideravam deles. Os peruanos passaram a invadir e se estabelecer naquelas terras, à revelia do Tratado, provocando uma série de conflitos que levaram o Brasil à guerra com o Peru.

Euclides da Cunha passa a escrever artigos para o jornal O Estado de São Paulo, em defesa de uma intervenção governamental diplomática na região, o que levou o Barão do Rio Branco a nomeá-lo como engenheiro chefe da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, delegação que demarcaria definitivamente as fronteiras no Alto Purus.

Em 6 de setembro de 1904, escreve a José Veríssimo:

[...] a partida para o Alto Purus é ainda o meu maior, o meu mais belo e arrojado ideal. Estou pronto à primeira voz. Partirei sem temores; e nada absolutamente (a não ser um desastre de ordem física, que me invalide), nada absolutamente me demoverá de um tal propósito. (CUNHA, 1997, p. 230)

Mas Euclides só partiu do Rio de Janeiro em 13 de dezembro de 1904, no vapor Alagoas, chegando a Manaus em 30 de dezembro daquele ano. Em Salvador e Manaus, o escritor foi aos jornais em busca de informações sobre a região do conflito. Em Recife, visitou Clóvis Beviláqua; foi à Faculdade de Direito e conheceu várias igrejas e conventos de Olinda, porém a notícia que se segue mostra que o escritor se encontrou também com Arthur Muniz.

A 20 de dezembro de 1904, o jornal A Província: órgão do Partido Liberal, de Pernambuco, publica na primeira página:

Tivemos a honra de receber a visita do dr. Euclydes da Cunha, o glorioso autor dos Sertões, um dos mais brilhantes escritores brasileiros.

O dr. Euclydes da Cunha é o chefe de uma das comissões do governo federal no território do Acre e veio do Rio de Janeiro no paquete Alagoas com destino ao Amazonas.

S. Exc. Nos foi gentilmente apresentado pelo dr. Arthur Muniz.

Apresenta, a seguir, os nomes dos integrantes da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus e acrescenta:

Consta que os chefes das comissões receberam hoje, neste porto, telegramas do ministro do exterior, Barão do Rio Branco, recomendando-lhes que se demorassem em Manaus até fevereiro do ano próximo.

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Em 24 de dezembro de 1904 – véspera de Natal – o jornal A pacotilha, do Maranhão, traz na primeira página:

Esteve hoje visitando esta cidade, durante a permanência do vapor Alagoas no nosso porto, o ilustrado sr. Dr. Euclydes da Cunha, chefe da comissão exploradora do Alto Purus, para onde segue.

O erudito e festejado autor dos Sertões, que tantos e justos encômios e franca aceitação lograram em todo o país, visitou, entre outros estabelecimentos públicos, a biblioteca do Estado.

S.s. apresentou pessoalmente os seus cumprimentos à diretoria da Oficina dos Novos, de que é sócio honorário. A Pacotilha apresenta-lhe cordiais saudações.

Euclides sentiu-se mal durante a viagem. Ao pai, em 30 de dezembro de 1904, assim que chegou a Manaus, escreveu que passara a viagem toda, desde o Rio de Janeiro, com enjoo, graças ao seu “estômago incorrigível”.

Nessa mesma missiva, orgulha-se de ter sido recebido em todos os pontos de parada graças à influência de seu livro, Os sertões, o que se pode constatar nas notas que saíram na imprensa do Maranhão, Pernambuco e Bahia. No Pará, o senador Lemos lhe oferecera uma lancha especial. Embora tudo tenha corrido bem, ele comenta: “Direi depois sobre a impressão que me causaram estes de-sconhecidos com os quais terei de passar tantos dias na mais estreita intimidade” (CUNHA, 1997, p. 249)

De Manaus, as primeiras impressões foram bem diferentes de Belém do Pará. Quanto a esta, nessa carta diz o escritor ao pai:

Não se imagina no resto do Brasil, o que é a cidade de Belém, com os seus edifícios desmesurados, as suas praças incomparáveis e com a sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa.

No entanto, sobre Manaus, ele fala a Afonso Arinos que sofrera embaraços naquela “ruidosa, ampla, mal-arranjada, monstruosa e opulenta capital dos se-ringueiros” (p. 250). Estava doente, o que atribuía ao glorious clime, de Bates, que para Euclides era um “permanente banho de vapor” e, para suportá-lo, seria mister possuir “nos músculos a elástica firmeza das fibras dos buritis e nas artérias o sangue frio das sucuruiúbas”. (p. 250)

Queixa-se também do excessivo cosmopolitismo da cidade, onde em cada esquina se ouvia “ranger um português, rosnar um inglês ou cantar um italiano”, mas o brasileiro ainda os dominava com suas “formosas qualidades de coração”.

Sobre o “singularíssimo clima da Amazônia”, o engenheiro escreve a José Veríssimo, em 13 de janeiro de 1905, relatando o “aniquilamento orgânico”, que lhe revelava as “exigências excepcionalíssimas de uma aclimação difícil.” (CUNHA, 1997, p. 252)

A terra, ali, ainda se preparava para o homem, “que a invadiu fora de tempo, impertinentemente, em plena arrumação de um cenário maravilhoso.” (Idem, p. 252) E aqui Euclides também traça as linhas do que seria para ele uma nova obra:

Hei de tentar demonstrar isto. Mostrarei, talvez, esteiando-me nos mais secos números meteorológicos, que a natureza, aqui, soberanamente brutal ainda na expansão de suas energias, é uma perigosa adversária do homem. (Ibidem, p. 252)

Tão adversária quanto o sertão de Canudos? Seguiria ele nessa mesma linha do livro primeiro, influenciado por Taine?

Conforme Hardman (2009, p. 57), a Amazônia, para Euclides, era diferente dos confins baianos, pois estes “enquadravam uma terra e uma história, lenta e silente por três séculos, acelerada e ecoando devastadoramente em todo o país naqueles últimos anos dos oitocentos e primeiros da República”.

Os “sertões amazônicos” eram mais “vastos e dispersos como cenário territorial, mais anônimos e esgarçados como lugar dos choques civilizacionais, mais prob-

lemáticos como parte a ser reconhecida na grande narrativa nacional.”Para Hardman, Euclides jamais acreditou em uma reprodução fácil do “vazio na

selva”, como tentaram imaginá-lo certa ideologia nacionalista e a ideologia “na-cional-brasileira”, deixando de lado a lembrança dos genocídios que ali ocorreram desde os primeiros colonizadores.

Na Amazônia, para Euclides, era inconcebível a “delicada vibração do espírito e a tensão superior da vontade a cavaleiro dos estimulantes egoísticos.” Ali não se poderia pensar, naquela “Meca tumultuária dos seringueiros”, onde ele levava uma vida “perturbada e fatigante” (CUNHA, 1997, p. 252).

A Oliveira Lima, Euclides fala do desapontamento sofrido com o Amazonas, bem menos do que era na imaginação fértil do engenheiro-escritor:

“[...] a estranha tristeza que nos causa esta terra amplíssima, maravilhosa e chata, sem um relevo, onde o olhar descanse; e, principalmente, o tumulto, a desordem indescritível, a grande vida à gandaia dos que a habitam” (CUNHA, 1997, p.255).

Por isso estava ele sob uma “sobrecarga de impressões todas novas, todas vivíssimas e empolgantes”. Reclama que necessitava de uma “situação de equilíbrio para o espírito”.

Incomodava-o ter que ficar parado com a expedição naquela cidade, aguardan-do, “de braços cruzados” consertos nas lanchas dos peruanos, o que retardaria a expedição em dois meses. E ali permanecem, na “Cápua abrasadora, trabalhosa”, que lhe “devora energias” com a sobrecarga de preocupações. A Domício da Gama, em carta datada de 1905 (dia e mês desconhecidos), diz o escritor: (CUNHA, 1977, p. 255)

Estaquei à entrada de meu misterioso deserto do Purus; e, para maior infelici-dade, depois de caminhar algumas três milhas, caí na vulgaridade de uma cidade estritamente comercial de aviadores solertes, zangões vertiginosos e ingleses de sapatos brancos. Comercial e insuportável”.

Em 2 de fevereiro de 1905, em carta a José Veríssimo, Euclides apresenta alguns componentes da missão: o tenente Argolo Mendes, ajudante e substituto; Arnaldo Cunha, auxiliar técnico, o alferes Antônio Cavalcanti e Francisco Lemos; o coronel R. Nunes, encarregado do material, o dr. M. da Silva Leme, secretário, o dr. Tomás Catunda, médico e o fotógrafo E. Florence.

Em 10 de março de 1905, o engenheiro revela a Coelho Neto a intenção de escrever sobre a Amazônia:

Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí, e num livro: Um Paraíso Perdido, onde procurarei vingar a Hiloe maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVIII. Que tarefa e que ideal! Decidid-amente nasci para Jeremias destes tempos. (CUNHA, 1977, p. 266)

Em março de 1905, a Artur Lemos, revela estar começando a compreender a Amazônia, que se escondia em si mesma. “O forasteiro contempla-a sem a ver através de uma vertigem.”

Para ele, a floresta ia se revelando aos poucos, “vagarosamente, torturante-mente”, pois era de uma grandeza que exigia “a penetração sutil dos microscópios e a visão apertadinha e breve dos analistas”. A Amazônia se lhe mostrava como um “infinito que deve ser dosado”. (CUNHA, 1997, p. 276)

A Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus partiu de Manaus no dia 5 de abril de 1905, às 19 horas, juntamente com a Peruana. Compunha-se das embarcações: Lancha Cunha Gomes, Batelão Manoel Urbano e a Lancha nº 4 da Marinha Nacional. As informações que seguem são do Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana e do Diário de Marcha dessa comissão (CUNHA, 2006).

No dia 6 de abril, à noitinha, chegaram a Arapatá. Entraram na Foz do Purus às 7h00 de 9 de abril; em 12 de abril, Euclides presenteou Buenaño com um

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serelepe. Em 7 de abril de 1905, sai à página 2 de O Correio Paulistano: “Telegramas

de Manaus informam achar-se bastante enfermo o fino literato dr. Euclydes da Cunha, chefe da comissão de exploração do Alto Purus.”

No dia 20 de abril, encalharam em São Francisco de Assis por uns 20 minutos. Em 9 de maio, o soldado Sérgio foi lavar o filtro e deixou cair nas águas do rio as 12 únicas velas que tinham do filtro Pasteur, deixando, assim, os brasileiros sem água filtrada.

Em 18 de maio, Euclides foi procurar o Cel. José Ferreira, proprietário da Liberdade, para confirmar se eram verídicas as queixas de alguns peruanos que se diziam presos e servindo de escravos, mas o proprietário não foi encontrado. A partir desse momento o engenheiro-escritor certamente passou a se informar e a observar o que depois seria a sua grande denúncia: a servidão a que se viam obrigados os migrantes que para lá se dirigiam, na esperança de refazer uma vida digna.

Em 21 de maio, o Manoel Urbano trombou com um tronco, que lhe fez “um enorme rombo e as águas invadiram impetuosamente os porões, começando as mercadorias a nadarem” (CUNHA, 2006, p.19).

Nas anotações do Diário de Marcha, Manoel da Silva Leme conta que, graças ao auxílio dos peruanos, conseguiram salvar muito do que se perdera nas águas do rio. Euclides e Argolo decidiram, então, que uma parte da comissão iria com o engenheiro até as cabeceiras e a outra ficaria acampada ali, no local do acidente, esperando o retorno da primeira e a cuidar dos víveres que haviam sobrado.

Seguiram para as cabeceiras: Euclides, Dr. Catunda, Dr. Arnaldo, Alferes Cav-alcanti, 9 praças, Manoel, Otávio e a tripulação da lancha nº 4. Ficaram com o resto da comissão o tenente Argolo, ajudante substituto, o secretário T.M.S. Lima, o comandante do destacamento, alferes F. Lemos, o encarregado do material, Cel. Nunes e 10 praças.

No dia 22 de maio, Manoel da Silva Leme registra que às 9h30 a lancha nº 4 partiu para a boca do Chandless, enquanto Argolo e os que ficaram continuavam acampados na praia do naufrágio do Manoel Urbano. Ali as madrugadas eram ter-ríveis, muito frias, com “cerração fechada” e de uma “evaporação extraordinária”, produzindo muito orvalho.

Leme revela, ainda, a insatisfação por ter ficado ali:

Se não acompanhei o Dr. Euclides da Cunha até as cabeceiras deste rio, como era meu dever, foi única e exclusivamente por deliberação dele, como provo com o ofício de maio do corrente ano, que facilmente se encontrará no registro desta comissão. (DIÁRIO DE MARCHA, p. 19)

O secretário reclama que “justamente a parte deste diário que mais interesse encerra e mais assunto contém” será feita pelo auxiliar técnico da comissão, Arnal-do Pimenta da Cunha, ou seja, de 22 de maio até 20 de agosto, as informações desse registro são do auxiliar técnico.

Da Boca do Chandless, em 25 de maio de 905, Euclides escreve a Rio Branco, noticiando que o Purus, dali em diante, mal tinha profundidade “para uma mon-taria modesta”. A partida tardia de Manaus atrapalhara muito, pois já pegaram o rio em época de difícil navegação.

O engenheiro informa: “A montante estão onze vapores e lanchas encalhados! As nossas seguiram o destino comum. O deserto agarrou-me covardemente, pelas costas, meu bom amigo!” (CUNHA, 1997, p. 281-282)

Ao pai, Euclides explica em carta do mesmo dia:

[...] o Purus vazou exageradamente, prendendo no seu leito quase seco os vapores que aqui estavam. O mesmo sucedeu às nossas lanchas. Teremos que continuar em canoas.

No dia 30 de maio, em “manhã sem sol, fria e triste”, conforme Arnaldo, estavam na Boca do Rio Chandless. Em 5 de junho, o engenheiro escreve ao pai,

contando que haviam chegado bem, mas ele seguia somente com Arnaldo e o médico. Ali estavam em terras habitadas por peruanos.

Em 8 de junho, relata a Rio Branco que em Novo Lugar ocorrera, em 1904, o fuzilamento de vários peruanos. Isso fez com que diante da presença dos brasileiros ali, alguns peruanos fossem protestar naquele cemitério improvisado. Na sepultura rasa do centro foi colocada no lugar da cruz uma folha de zinco, onde escreveram com tinta verde os dizeres:

10-1904F. La FuenteF. Ruizd. OcampaP. ReateguiM. MontalbáuPeruanos fuzilados y quemadosPor bandoleiros brasileiros.

Em 22 de junho os brasileiros estavam muito distantes da Comissão Peruana, pois não haviam acampado juntos na noite anterior, certamente o barco dos peruanos, de maior porte, havia encontrado maiores dificuldades na passagem da cachoeira, conta; Arnaldo.

Chegaram a Catay e foram recebidos pelas autoridades locais, mas tanto Eu-clides quanto Arnaldo estavam doentes, sendo que este último conseguiu ficar bom até o dia seguinte, enquanto Euclides precisou de mais dois dias para melhorar. Deram-lhe, então, um forte caldo de macaco, que o ajudou a restabelecer-se.

No dia 26 de junho houve insubordinação de um soldado. Euclides lhe deu ime-diatamente ordem de prisão, mandando que o amarrassem, mas a isto ninguém lhe obedecia. Veio, então “uma terceira ordem enérgica”, relata Arnaldo da Cunha: o preso desceria amarrado até Catay, onde seria entregue ao Alferes Linhares. Arnaldo conclui: “os demais soldados acompanharam-no covardemente neste ato criminoso” (CUNHA, 2006, p. 31).

Em 28 de junho o auxiliar técnico registou a perseguição de grande número de abelhas, que lhes colavam à pele úmida e agarravam-se às roupas suadas, sugando-lhes o suor.

Em Curanja, no dia 30 de junho, assim registra Arnaldo a forma com que Euclides lidou com a profusão de bandeiras peruanas e a ausência da bandeira brasileira:

O dr. Euclides, em feliz improviso, tirou inteligente partido da grande quanti-dade de bandeiras peruanas que havia na sala e de simples palmitos de cores amarelas e verdes, ali postos casualmente. Depois deste almoço percorremos as povoações que denotam uma grandeza extinta. (CUNHA, 2006, p.33)

Euclides calma e inteligentemente agradece aos peruanos por haverem preferi-do representar a pátria brasileira pelas palmeiras verdes e amarelas que havia na sala, pois o Brasil era assim mesmo, uma pátria “retilínea e alta, como as palmeiras”.

A 5 de julho de 1905, o auxiliar Arnaldo Cunha estava enfermo, porém partiria assim mesmo. No entanto, decidiram adiar a saída para o dia seguinte, devido às discordâncias dos chefes da comissão quanto às observações astronômicas. Leandro Tocantins registra que Euclides partiu de Curanja a 5 de julho, porém foi no dia 6, conforme o Diário de Marcha.

Saíram muito cedo de Curanja para as cabeceiras do Purus, sob densa cerração que os envolveu até as 7h30. Arnaldo observa que possuíam dois grandes batelões, “impróprios completamente para viajarem em um rio completamente esgotado”, como o Purus naquela época. (CUNHA, 2006, p.33)

Conforme Tocantins, Euclides considerava aquele trecho o mais misterioso a percorrer, ali as condições de navegação eram quase impossíveis e o único tipo de embarcação a utilizar eram as ubás dos caucheiros, mais rápidas. Além disso,

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teriam que enfrentar os obstáculos representados pelas “[...] cachoeiras, no leito, e grandes tremedais às margens dos rios esgotados, e cumulando tais empeços, ao cabo, o antagonismo formidável dos campas destemerosos.” (TOCANTINS, 1992, p. 92-93).

Arnaldo registra que os peruanos conseguiram trocar, em Curanja, os batelões que utilizavam e que eram impróprios para aquela navegação em plena vazante, por ubás.

No dia 10 de julho, Arnaldo cai novamente febril, mas registra que “assim mesmo continuou a sua viagem sem embaraço absolutamente algum.” (CUNHA, 2006, p. 34)

No dia 11 de julho a situação começa a se mostrar crítica: fazia muito frio e havia fortíssima cerração, mesmo assim, saíram às 5h40. O estado da tripulação não era bom, ou “já não era lisonjeiro”, como registra Arnaldo. “Além de muito trabalhada e mal alimentada, tinham algumas pessoas com os pés rachados e inchados e outras apresentavam as mãos chagadas”. (CUNHA, 2006, p. 35).

Em Cocama os peruanos conseguiram mais uma ubá, ficando eles, assim, “per-feita e completissimamente preparada para a viagem que estamos efetuando em quadra tão imprópria” (CUNHA, 2006, p. 35)

Em 14 de julho, as desavenças entre Euclides da Cunha e Pedro Buenaño pareciam acirradas. “Argumentavam diariamente” – afirma Arnaldo Cunha. Foram alertados para o perigo dos selvagens, dali em diante.

Em “Cinco Reales”, sítio habitado exclusivamente por selvagens, Euclides e Buenaño tiveram “forte troca de palavras que perdurou algum tempo.” (CUNHA, 2006, p. 36)

Em 18 de julho passaram por uma “índia campa”, morta em um barranco. Arnaldo Cunha comenta: “A história deste assassinato é muito evasiada (sic)” (p. 37). Ao chegarem ao sítio “Aleta”, de propriedade de Carlos Sharff, o mais importante caucheiro peruano, Euclides foi convidado a se hospedar na casa dele, o que aceitou.

É interessante observar que Arnaldo Pimenta da Cunha parece querer dar um destaque à sua atuação na comissão, pois faz algumas anotações interessantes, como a de 5 de julho “O Sr. Auxiliar Arnaldo Cunha, apesar de doente, prosseguia a sua viagem...” (CUNHA, 2006, p. 33); no dia 10 de julho, outra vez registra que adoecera novamente, porém mesmo assim continuou a viagem “sem embaraço absolutamente algum.” (CUNHA, 2006, p. 34). Nos dias 19 a 23 de julho, faz o registro: “O sr. Arnaldo Cunha determinou também a declinação da agulha mag-nética” (CUNHA, 2006, p. 36)

Nesse período também houve uma transgressão do cozinheiro, na qual foi acompanhado por um soldado: roubaram alimentos da Comissão e tentaram molestar as índias de barracas próximas, cujas mães foram fazer a queixa do fato.

A partir do dia 24 de julho, as anotações passam a ser feitas por Antônio Carlos Cavalcante de Carvalho, que anota um fato curioso: Euclides mandara mon-tar a barraca bem próxima ao mato, porém começou a sentir medo de cobra e para tranquilizar-me foi necessário “colocar um pano daquele lado e colocar sob o travesseiro um vidro com sublimado.” (CUNHA, 2006, p. 38)

Na noite de 25 de julho, Euclides e Buenaño travaram forte discussão sobre a viagem, sobre a impossibilidade de os brasileiros prosseguirem com os batelões, sobre a proposta de continuar unicamente o chefe brasileiro, sobre a demora desses batelões, e sobre as atas do Curanja e da Forquilha. Jantaram arroz, peixe e macaxeira.

Em 27 de julho, atravessaram 34 cachoeiras, sendo que a trigésima fora difícil, pois era violenta e se compunha de quatro níveis. É conhecida como “segundo rápido de Chandless”. Acamparam à noitinha, em uma praia na 34º cachoeira, cuja travessia seria feita na manhã seguinte e seria a mais difícil de todas. Em 30 de julho, Euclides e Buenaño planejaram como iriam atravessar o Cavaljani, sendo que este havia conseguido canoas pequenas e repetia: “Yo passo, le garanto usted no passe”. Euclides, então, conseguiu com os peruanos duas ubás.

Na foz, o Cavaljani estava com uma ou duas polegadas d´água e assim era por 800 metros. Arnaldo Cunha precisou tirar as botinas e se jogar na água, tra-

balhando com os remadores, “animando-os, encorajando-os”, até que conseguiram vencer os obstáculos. Mais adiante foi a vez de Euclides fazer o mesmo. Franzino, apesar de uma tuberculose que carregava há tempos e a malária de que foi vítima na floresta, seguia em frente, sem vacilar. É de se perguntar de onde esse homem tirava tanta força para superar obstáculos!

Arnaldo ficou incumbido de fazer o levantamento desse rio, o que era impos-sível realizar por barco e mais ainda andando nas áreas alagadas, então resolveu seguir pelo eixo do rio, contanto os números de passos recorridos. Os obstáculos eram muitos: ora um poço de 4 a 5 metros de profundidade surgia à frente dele, ora “cachoeiras tormentosas impediam por completo a passagem, com o solo macadamizado de agudas e escorregadias pedras.” (CUNHA, 2006, p. 41)

Por terra não era melhor: despenhadeiros escorregadiços, espinhos e mata cer-rada. “Todos os que iam pelo rio lutaram extraordinariamente”. O Otávio passou a nado; o sr. Wertoff prendeu na passagem o sabre e o rifle; Arnaldo foi por terra, com todas as dificuldades que a passagem apresentava, com o agravante de que ele não podia molhar o paletó, onde carregava papéis importantes, inclusive a caderneta do levantamento.

No dia 1º de agosto, o açúcar se acabara no “almoço da manhã” e o arroz só daria até o dia seguinte, por isso passaram a ter apenas meia ração, para todo aquele esforço. No dia 3, o “almoço foi sofrido”: carne seca com “dezenas de grãos de arroz que por acaso ficaram numa lata.” Euclides e seus companheiros fizeram a exploração do varadouro do Pucani e o escritor precisou voltar apoiado no braço do auxiliar.

O engenheiro, que recebera uma ubá cheia de mantimentos, propôs reparti-los com os peruanos, porque Buenaño queria desistir, com a desculpa de não ter mais alimentos. No entanto, à tarde, a dona da ubá, orientada por alguém, foi pedi-la de volta, devolvendo “os vinte soles de aluguel”, devolução não aceita, conforme o relator do Diário de Marcha.

Em 21 de agosto, partiram de Maniche, para regressar após o cumprimento da missão. Está anotado nesse Diário que, antes da partida, Arnaldo Cunha “teve uma longa conferência com o comandante Buenaño”, a respeito de um longo ofício que lhe havia sido enviado por Euclides. “As relações de cordialidade e diplomáticas entre os dois chefes brasileiro e peruano acham-se bastante estreme-cidas”, escreve o relator.

Carvalho entregou ao engenheiro Leme esse diário de marcha, para que ele o completasse com seus próprios apontamentos sobre o incidente de Maniche, porém Leme interrompeu esse trabalho em Manaus, para cuidar da cópia do Relatório e faleceu antes de completar as anotações.

A 19 de outubro de 1905, Euclides escreve ao Barão do Rio Branco sobre o retorno a Manaus, dizendo haver a Comissão cumprido “todos seus pontos essenciais” e dizendo que seguira até vale Ucaiale, atravessando o varadouro Curiuja, “investindo até se esgotarem completamente gêneros e as águas, tendo porém informações certíssimas sobre a pequena parte não percorrida”. (CUNHA, 1997, p. 288)

Euclides e a comissão retornam após atravessarem 6400 km, com “um grupo em frangalhos, diminuído do original de quase 50 pessoas para pouco menos de 10 colaboradores”. (LOIVOS; SANGENIS, 2013, P. 113). Conforme Amory, o mau humor do chefe brasileiro afetou até mesmo o primo e auxiliar, Arnaldo da Cunha, tanto que este, chegado a Manaus, foi direto para Salvador, sem esperar pelo pagamento (AMORY, 2009, p. 250)

No dia 25 de outubro de 1905, o Jornal do Commercio, de Manaus, noticia a chegada da expedição chefiada por Euclides da Cunha e afirma que

Entre a comissão brasileira e a peruana reinou sempre a maior cordialidade no cumprimento de suas ordens e importantes deveres.

Ontem o sr. Dr. Euclydes da Cunha recebeu do Barão do Rio Branco, ministro do exterior, um telegrama que lhe é bastante honroso e aos seus dignos com-panheiros de trabalho. (p. 1)

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O Correio Paulistano, nessa mesma data, publica à página 2:

Refere um despacho de Manaus que chegou hoje àquela capital o sr. Dr. Euclydes Cunha, chefe da comissão brasileira, que, juntamente com uma comissão peruana, esteve procedendo ao reconhecimento do Alto Purus.

Haviam feito o levantamento da planta do rio até as cabeceiras, por duas vezes, retificando muitos pontos das cartas já existentes.

Em 1 de novembro, ainda em Manaus, reporta a Rio Branco que este receberia “um ligeiro relatório” dos trabalhos da Comissão e “a primeira planta” que de-senharam dos levantamentos. Avisa que no dia seguinte ele e Buenaño deveriam começar a redação da carta definitiva, embora discordassem em muitos pontos quanto às coordenadas, porém afirma que “tais divergências, mui ligeiras, de poucos minutos”, não poderia ter consequências prejudiciais. (CUNHA, 1997, p. 289)

A Veríssimo, Euclides se queixa em carta de 8 de novembro, dizendo-lhe do pressentimento que tinha de que os “longos dias de ansiedade, de misérias e triunfos passados nas cabeceiras do Purus” lhe iriam prejudicar a vida. “Misérias e triunfos... somente à viva voz lhe poderei contar como fundi aquelas coisas an-tinômicas, numa batalha obscura e trágica com o deserto.” (CUNHA, 1997, p. 290)

Em Manaus, Euclides adoeceu novamente. Em carta a Firmo, escreve: “O dr. Teixeira não me deixou sair, ontem”, por isso ele pede ao amigo que procure o desenhista que não aparecera. (CUNHA, 1997, p. 291)

Na correspondência de 30 de novembro fala a Rio Branco que havia conse-guido com a sogra de Fritz Carral a “fotografia deste ousado caucheiro”. Afirma que o relatório estava sendo finalizado, redigido por ele e apenas traduzido em modificado em poucos trechos por Buenaño.

O relatório foi concluído somente em 16 de dezembro de 1905; no dia 18, Euclides embarcou no Tennyson, para fazer a viagem de volta. Ao embarcar, envia um telegrama à esposa, avisando do retorno e pedindo que a família fosse rece-bê-lo no porto, pois ele estava saudoso dos seus. Na realidade, quem o recebeu foi o jovem Dilermando Cândido de Assis, a mando de Ana da Cunha, já grávida do amante.

O que se estranha é que Euclides, após arriscar a vida em um feito desse porte, em uma região tão remota, selvagem, desconhecida e perigosa como a Amazônia, arriscando a saúde e muitas vezes a própria existência, foi recebido no cais como um anônimo.

Conforme Loivos e Sangenis, naquele momento o escritor deu início a uma outra viagem, “de retorno (possível?) aos fragmentos de si, de sua família, esposa, filhos e saudades.” (LOIVOS; SANGENIS, 2013, p. 114)

Em 29 de outubro de 1905, Euclides da Cunha concedeu uma entrevista ao Jornal do Comércio de Manaus, publicada na primeira página desse periódico. Começou fazendo um resumo do que fora a expedição, que partira de Manaus em 5 de abril, retornando em 23 de outubro, numa duração de seis meses e meio. “Para muitos isto foi um prodígio de celeridade, dada à quadra imprópria em que seguimos”, acrescenta ele. Informa ainda o escritor esperar que a vasta série de estudos e observações colhidos no menor tempo possível pudessem compensar “o grau inferior de precisão nos resultados conseguidos.” O que importava, de fato, era um “juízo claro e pronto, de conjunto, das regiões atravessadas”.

A comissão demorou um mês para chegar à boca do Acre e quinze dias depois, a 21 de maio, tivera que parar antes da confluência do Chandless, devido ao naufrágio do batelão “Manuel Urbano”, que levava os gêneros alimentícios deles. “Íamos para o misterioso”, diz ele.

Conforme Euclides, as dificuldades com os tripulantes, “que empunhavam pela primeira vez “os varejões e os remos”, foram melhorando “em marcha”. Então o “soldado e o trabalhador bisonho a pouco e pouco se transmudou no varejador desempenado”. Além disso, faziam a observação constante do regime das águas, o que os ajudou a aprender a se desviar dos obstáculos, por isso foram “atingindo celeremente as principais escalas do roteiro. Iam avaliando as distâncias com a “luneta do Lugeal”, daí o “desapontamento e quase desânimo resultantes de um

confronto da nossa marcha ronceira de 3 a 4 milhas diárias e o desmedido da distância a percorrer”.

“A 3 de junho chegamos a «Novo Lugar», onde estacionara a Comissão ad-ministrativa brasileira, tolhida pela vazante; a 21 estávamos em Catay; a 29, em Curanja” – prossegue ele. Até esse dia, não saberiam o que encontrariam pela frente, pois entre eles e as nascentes do Purus havia “um desmesurado telão”, que as escondia e em Curanja, onde se hospedaram, ouviram os mais terríveis relatos de quem se aventurara por aquelas bandas.

Os troncos, pedras e baixios se multiplicavam, atravancando a passagem pelo rio; surgiam os grandes obstáculos das cachoeiras e “grandes tremedais às mar-gens dos rios esgotados e, cumulando tais empeços (sic), ao cabo, o antagonismo formidável dos ‘campas’ destemerosos”.

Chegara até eles a história do homicídio de um empregado da casa Arana, além de outros casos que ajudavam a aumentar o desalento, dando-lhes o pressenti-mento de que não conseguiríamos ir longe.

Um caucheiro experiente lhes garantira que levariam ao menos dezessete dias para chegarem a Forquilha, calcularam que não o fariam em menos de vinte e cinco, porém conseguiram fazê-lo em treze dias. Contribuiu com essa agilidade a mudança do clima, que repentinamente se tornara “superior ao dos lugares a jusante”.

Mesmo a praga dos “carapanãs, piuns e matablancas”, que “para baixo tortura por tanta maneira o viajante, ali desaparece”; a temperatura deixa de sofrer tantas variações e a própria umidade diminui, o que resulta em um revigoramento dos ânimos.

Porém novos obstáculos apareceram no caminho: no rio Cujar, apareceriam os bancos de areias e galhos, além das 74 cachoeiras. Se eles as transpusessem, chegariam ao Cavaljane, onde “os entraves redobrariam ao lado dos mesmos empecilhos das quedas d´água... Depois viria a passagem penosíssima do Pucani, para afinal entrar-se no varadouro”.

No Curiuja os obstáculos seriam semelhantes, além da ameaça dos “infieles”. Duas horas antes eles haviam visto no barranco esquerdo do rio o cadáver de uma mulher, uma amahuaca. Depois souberam que fora “trucidada pelos bárbaros que rondavam por perto numa ameaça permanente e surda”.

Para agravar a situação, começaram a passar com meia ração e os lugares por onde atravessavam eram completamente despovoados, não havia como suprir os mantimentos em falta. O pouco que levaram era carne seca, farinha que se acabou em 12 dias, um pouco de açúcar que, mesmo bem racionado, durou apenas 3 dias; meio garrafão de arroz, restos de bolacha esfarinhada que se dissolveu na chuva e algumas latas de leite condensado. Euclides acrescenta: “Propositadamente apresento esta lista. E’ eloquente”.

O Cujar fez jus à fama: “com suas águas escassas, dificultou a passagem pelos longos e continuados baixios, indo de uma a outra margem, sem o mais estreito canal que evitasse o exaustivo serviço do arrastamento das canoas”. As margens desse rio apresentavam uma nova paisagem, com vegetação característica, onde se viam “buchiticas (calliandra trinervia), leguminosa admiravelmente artística”, cujos ramos pareciam repousar sobre as águas, tomando os trechos de melhor acesso, o que complicava mais ainda a passagem deles, já “engravecida (sic) pela impropriedade das nossas embarcações mui diversas das ubás aligeiradas, únicas que se afeiçoam àquele rio.”

Ao ultrapassarem esse trecho, encontraram uma série de cachoeiras, “vencidas não raro a pulso”, arrastando as canoas sobre as pedras, ou utilizando cabos de segurança, “reagindo à violência tumultuária da correnteza”.

Euclides percebera que a natureza do terreno mudara, pedras afloravam por toda a parte, formando quase todo o leito do rio. Eram rochas sedimentárias, ora “finamente granuladas”, ora em “grosseiros conglomerados”, lembrando a consistência dos quartzitos e dos granitos, de cuja combinação ou separação dependiam as várias formas de quedas, ora abruptas, ora em vários degraus, ou então em “planos clivosos, eriçados de pontas ou atravancados de blocos des-mantelados”, o que os obrigava a variar as táticas para vencer esses obstáculos.

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Afirma o escritor: “nada direi sobre sofrimentos, que se preveem, para refugir à triste contingência de fazer ‘reclame’ de sacrifícios”.

No dia 30 de julho, alcançaram a confluência do Cavaljane, chegaram às cabe-ceiras do Purus. Prosseguiram, chegando a 3 de agosto, às 12h55, à entrada do Pucani e às 12h58, desembarcados, penetravam na estreita quebrada que levava ao varadouro.

Não podiam parar, os gêneros se esgotavam e estavam em pleno deserto. O Pucani, “tortuoso, estreito de uns três metros e em geral raso, foi percorrido a pé, transpostos os profundos poços em que intermitentemente se afunda, pelos atalhos que lhe ladeiam os barrancos, dentro do mato”.

Havia outra quebrada igual, à esquerda, por onde não ousaram passar sem guia e chegaram ao varadouro graças às latas vazias de conservas e de pólvora que iam encontrando pelo trajeto. Assim às 15h15 avistaram, “retilíneo, atrevidamente arremessado por uma vertente fortíssima – o sulco do varadouro”.

No extremo desse sulco, quatro barracas de paxiúba, onde “se acolhem os viajantes e se guardam as mercadorias. E observa: “Em roda, por todos os lados, latas vazias, de conservas, garrafas, e uma velha ferragem espalhada, delatavam a escala forçada dos que por ali passam e um tráfego relativamente grande”.

O varadouro, com um metro de largura, abre-se dali para o sul. “Empina logo em ladeira e, muito mais íngreme do nosso lado, descamba depois, mais suave-mente, em três pequenos socalcos, para o vale do Ucayale”.

Em poucos minutos atingiram o ponto culminante dessa vereda, mas não conseguiram de forma nenhuma observar o aneroide (barômetro para medir a pressão atmosférica). Euclides conclui a entrevista revelando a visão poética da natureza, sempre tão presente em seus textos:

O sol descia para os lados do Urubamba... Os nossos olhos deslumbrados abrangiam, de um lance, os três maiores vales da terra; e naquela dilatação mar-avilhosa dos horizontes, banhados no fulgor de uma tarde incomparável, o que eu principalmente distingui, irrompendo de três quadrantes dilatados e trancando-os inteiramente - ao sul, ao norte e a leste – foi a imagem arrebatadora da nossa Pátria que nunca imaginei tão grande... Fiquemos nesta altura...

No dia 30 de dezembro de 1905, o Correio Paulistano traz na segunda página do jornal: “Referem telegramas da Bahia que passou ali hoje, a bordo do vapor Brasil, com destino a esta capital, o dr. Euclydes da Cunha”.

Em 3 de janeiro de 1906, o jornal Diário do Maranhão noticia na primeira página: “Rio, 2. Chegou o dr. Euclydes da Cunha”. Portanto, o escritor desembarcou na então capital brasileira no dia 2 de janeiro de 1906, e não no dia 5, como consta em algumas de suas biografias. O jornal A Federação corrobora essa informação, pois no dia 2 de janeiro de 1906 publicou na página 2: “Chegou o conhecido engenheiro e literato Euclydes da Cunha”.

Euclides volta ao Rio de Janeiro com a ideia de escrever um segundo livro vingador, ao qual daria, conforme confidencia em correspondências aos amigos, o título de Paraíso Perdido. O primeiro artigo que publica é na revista Kosmos, de janeiro de 1906: “Entre os seringais”.

O artigo revela que no Purus a abertura de um seringal é “tarefa inacessível ao mais solerte agrimensor, tão caprichosa e vária é a diabólica geometria requerida pela divisão dos diferentes lotes”, ou seja, muito diferente de como se fazem as divisões das propriedades no resto do país.

O valor da terra na Amazônia depende exclusivamente das seringueiras que nela haja. Ali a “original medida agrária” é a estrada, que resume em si “os mais variados aspectos da sociedade nova, à ventura abarracada à margem daqueles grandes rios”.

A seringueira, naquelas paragens, substitui o metro. Em geral, a cada 100 árvores dessas, com espaços irregulares entre elas, formam uma estrada e basta ver essa configuração para se compreenderem “todas as disparidades de forma e dimensões do singularíssimo padrão que é, não obstante, o único afeiçoado à natureza dos trabalhos.” A forma irregular do seringal reflete o tipo singular do

seringueiro, cujo trabalho é solitário, no interior da mata “exuberante e farta”, com o único objetivo de explorar essa hévea.

O seringueiro compreende, desde cedo, que se não nortear a sua trilha nessa floresta em roteiros seguros, que lhe deem uma cadência e ritmo a esse tra-balho “tão desordenado e rude”, ficará inutilmente se debatendo “na inextricável trama das folhagens”. Também é importante que os numerosos camaradas que trabalham isoladamente não se confundam nas trilhas, “iludidos pelos desvios da floresta”.

A “estrada” é a solução para esse problema. No entanto, o traçado desta é o primeiro obstáculo para quem desejar ali abrir um seringal. Euclides busca compreender esse delineamento singular de cada uma dessas estradas: a primeira vivenda do barracão é sempre erguida às margens do rio principal, em uma barranca que não possa ser levada pelas águas nas cheias, pois do contrário o serviço seria perdido.

Faz-se, a seguir, um reconhecimento das terras que rodeiam esse barraco; então o dono do local procura um “sertanista experimentado” para abrir os caminhos na floresta, fazer a divisão e a avaliação da fazenda. “E o mateiro lança-se sem bússola no dédalo das galhadas, com a segurança de um instinto topográfico surpreendente e raro.”

Esse homem experiente percorre, então, todo o trecho que necessita ser explorado, observando-lhe os acidentes, apreendendo a “fisiografia complexa, que vai dos igapós alagados aos firmes sobranceiros às enchentes”. Vai, ao mesmo tempo, traçando os varadores futuros, depois avalia com muito rigor as “estradas” e segue, “sem que lhe seja mister traduzir complicadas cadernetas”, marcando os locais em que devem ser erguidas as pequenas barracas dos trabalhadores, às margens dos igarapés.

Esse mateiro contrata, por sua vez, dois auxiliares que, conforme Euclides, são indispensáveis: o toqueiro e o piqueiro. O primeiro é o que vende a borracha ao patrão; o segundo auxilia o mateiro na abertura das estradas. Juntos vão erguer uma cabana, em um daqueles pontos pré-determinados, com as palmas da jarina, que servem para a cobertura, um “papiri”, espécie de abrigo temporário.

O processo é sempre o mesmo: o mateiro marca o primeiro pé de seringa com o qual se depara ao sair do “papiri”, essa árvore será a boca da estrada. Nesse local reúne-se com o toqueiro e o piqueiro, depois o mateiro segue isolado até encontrar a segunda árvore, numa distância aproximada de 50 metros. Grita para o toqueiro, que vai ao encontro do mateiro, seguido pelo piqueiro que, com o facão, vai abrindo e configurando a “estrada”.

O toqueiro também ajuda por um tempo o piqueiro, até ouvir o outro grito do mateiro, para reconhecer a terceira árvore e seguem assim, até completar a volta da estrada. Então, voltando por outros desvios, voltam, de seringueira em seringueira, “fechando a curva irregularíssima que termina no ponto de partida”.

Esse serviço dura geralmente três dias, deixando toda a “estrada” aberta. Partem, então, do mesmo lugar e com o mesmo método, abrem uma segunda “estrada”, depois outra e mais outra, enfim, quantas for possível na floresta cir-cundante, mas todas dando na mesma “boca”, “junto do tejupar que localiza uma barraca”. Essa operação se repete até que o terreno fique totalmente “estradado”, assemelhando-se aos “tentáculos e um polvo desmesurado”.

Para o escritor, o seringueiro “é a imagem monstruosa e expressiva da so-ciedade torturada que moureja naquelas paragens”, é o homem que trabalha sem descanso e sem vislumbrar uma forma de mudar, porque já era miserável quando ali chegou.

Geralmente esse homem é o cearense que, fugindo da seca, ali chega ansioso com a ilusão de fazer fortuna, mas após um breve período, “em que passa de bra-bo a manso”, o que significa perder as ilusões iniciais e cair na apatia do homem vencido pela “realidade inexorável”. Ergue a cabana de paxiúba à margem de um igarapé pitoresco, ou mais para o centro, em uma clareira e longe do barracão onde o proprietário daquele seringal “estadeia o parasitismo farto”, pressentindo que jamais conseguirá se livrar da “estrada” que o envolve, certo já de que irá passar a vida toda indo e vindo, “a girar estonteadamente no monstruoso círculo

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vicioso da sua faina fatigante e estéril”. O “polvo” assustador possui, como o polvo que habita os mares, uma

bocea insaciável servida de numerosas voltas constritoras; e só o larga quando, extintas todas as ilusões, esfolhadas uma a uma todas as esperanças, queda-se-lhe um dia, inerte, num daqueles tentáculos, o corpo repugnante de um esmaleitado, caído no absoluto abandono. (CUNHA, 1906)

A disposição das “estradas” é, para Euclides, a representação daquela sociedade dos seringais, caracterizando-lhe um dos mais tristes atributos, “o da dispersão obrigatória”. Ali o homem é solitário. Mesmo onde há uma densidade maior de seringueiras, onde é possível abrir 16 estradas em uma légua quadrada, embora vastíssima a área é explorada apenas por oito pessoas. Por isso se notam “grandes desolamentos de deserto”, mesmo com uma exploração expressiva.

O escritor explica: um seringal médio de 300 estradas, de vinte léguas quadra-das, comporta, no máximo, 150 trabalhadores, que se espalham pelas estradas abertas.

Conforme Euclides, esse sistema de trabalho, além de outras irregularidades, contribui para a estagnação daquela sociedade que “ali se agita no afogado das espessuras, esterilmente, - sem destino, sem tradições e sem esperanças - num avançar ilusório em que volve monotonamente ao ponto de partida, como as ‘estradas’ tristonhas dos seringais”.

No dia 14 de janeiro de 1906, o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro traz, à página 2, uma entrevista com Euclides da Cunha, cuja impressão está, infelizmente, ilegível em grande parte.

Diz o repórter: O sr. Euclydes da Cunha é um homem simples, que não gosta das molduras

faustosas que convêm a uma entrevista para o público. Quando lhe manifestamos o desejo de uma hora de palestra e lhe pedimos que [...] para esse encontro, estávamos numa livraria. – Aqui, se quiser; agora, se lhe convier – respondeu.

É dessa entrevista que nasceram alguns trechos depois inclusos em À margem da História. Quando lhe foi solicitada a impressão que teve sobre a Amazônia, a pronta resposta foi:

Não creia numa impressão geral acerda do Amazonas. Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o qe nos sobressalteia geralmente, no desembocar do dédalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapon-tamento.

[...]É, sem dúvida, o maior quadro da terra; mas chatamente rebatido num plano

horizontal [...]A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade

positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um inruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem desejado – quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão.

Prossegue falando da “Ilha da Consciência”, nome que dão àquela existente à boca do Purus, assim como a outra existente na foz do Juruá, pois o homem, “ao penetrar as duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica as melhores qualidades maorais e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia formidável”. Acrescenta: “Parece que o seringueiro analfabeto corrifiu o Dante... E leva ainda todas as esperanças...”

Até o final da entrevista Euclides expõe a situação de semiescravidão do seringueiro, como já se conhece através da leitura de À margem da História.

Essa entrevista, somada ao artigo da revista Kosmos, deveria provocar reações no meio intelectual carioca, porém a reação quase solitária foi de Olavo Bilac, que em 21 de janeiro de 1906 publicou em A Gazeta de Notícias, página 3, na seção Chronica, uma resposta ao texto euclidiano, da qual transcrevemos alguns trechos:

Também, já nada admira no Brasil, uma vez que, dezoito anos depois da decre-

tação da lei de 13 de maio, estamos criando no Amazonas uma nova escravidão tão iníqua e miserável como a antiga...

Não teve a repercussão que devia ter, o magnífico artigo de Euclydes Cunha, há dias, no Jornal do Commercio, sobre a Amazônia.

Prossegue dizendo que naquele artigo havia um grito de alarme e “um aviso generoso dado aos poderes públicos por uma alma reta e digna, - revelações que horrorizam”.

Os homens, continua Bilac, que vão trabalhar nos seringais são escravos, “verda-deiros escravos, tão dignos de compaixão como os que outr´ora eram comprados e vendidos para trabalhar nas fazendas”. Cita o trecho de Euclides:

O seringueiro é um degredado que se degrada. Longe do solo nativo que deixou num lance de aventureiro, o próprio afastamento, e a grande cópia de desilusões que o salteiam, acabam por transmudá-lo. Obliteram-se-lhe os mais fortes e generosos sentimentos. Mas isto está longe de ter a generalidade e a fixidez de um atributo social. É um acidente, [...] uma doença aguda, mas transitória – e provém quase toda da mais falsa, da mais revoltante e da mais criminosa orga-nização do trabalho que ainda engenhou o mais absorvente egoísmo.

[...] o seringueiro realiza uma triste anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se.

O Diário do Maranhão de 7 de abril de 1906, publica na primeira página:

Do Rio de Janeiro – Em 14 de janeiro: O Acre já muito tem dado que falar de si, tanto que só a sua história daria mais de 10 grossos volumes, caso hoje alguém se lembrasse de escrevê-la! Os seus seringais e com eles os mais terríveis horrores de escravidão e miséria, suas pequenas revoluções, su aindependência como república e agora os estudos feitos para satisfazer o tratado de Petrópolis e dirimir as pretensões peruanas, logo depois a questão da anexação, têm forne-cido complacentemente assunto em abundância para artigos e à pedidos, livros, folhetos, relatórios e mapas, discursos e meetings!

Esse artigo prossegue dizendo que nada até então se havia escrito de tão interessante quanto a entrevista dada por Euclides da Cunha ao Jornal do Com-mercio, após seu regresso da Amazônia. Euclides havia esboçado, sinteticamente, “a verdadeira situação do Acre e as precárias circunstâncias em que lá se encontram os seringueiros, em sua totalidade cearenses! O quadro é por demais entriste-cedor!”, acrescenta o autor, pois naquela terra muito cobiçada pela Bolívia e pelo Peru, estava se formando uma nova forma de escravidão, mais “hedionda e mais tirânica” do que a dos escravos africanos, graças à mais “terrorista regulamentação de trabalho ali existente”.

O escravo passara a ser, então, o seringueiro, esse

instrumento passivo de trabalho e ambição, entregue pela força do destino às mãos gananciosas de patrões descriteriosos (sic) e maus, conluiados para tornar mais e mais desesperadora e degradante a negra e triste sorte desses infelizes que vão naquela região procurar o pão para o presente e o pecúlio para a velhice!

Desgraçado! Deixa no berço todas as tuas esperanças, lá serás eternamente escravo, eternamente espoliado!

O autor afirma que isso é o que se pode depreender da entrevista de Euclides, que prometera escrever um livro sobre essa situação. “Que venha o quanto antes, talvez possa ele concorrer para a melhoria da nefanda sorte dos seringueiros – esses míseros e pobres escravos de outro gênero!” – afirma, incitando à ação: “Entanto, antes disso não é lícito ficar de mãos cruzadas!”

Antão da Silva, autor do artigo, prossegue dizendo que a ação não precisa

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ser da União, mas dos Estados que enviam os seus filhos para aquela região pantanosa, que chamaria de “morte e de miséria, promovendo perante o governo central da República os meios de pôr cobre à vileza dos possuidores de seringais”, para que fosse melhorada a situação daqueles pobres miseráveis.

Neste artigo não há espaço para a fantasia, porém é impossível não refletir, diante do poder que os “barões da borracha” possuíam na região amazônica e na política em todos os níveis, municipal, estadual e federal. Certo que a eles se juntariam os “coronéis” do nordeste, já insatisfeitos com alguns trechos de Os sertões e o destaque conseguido pelo autor dessa obra que desvendou as entranhas do Brasil.

Algumas questões mereceriam uma reflexão: qual a reação do Barão do Rio Branco diante disso? Qual a reação dos políticos, já que Euclides trabalhava no Ministério do Exterior, portanto devia ter certo conhecimento das manobras que faziam? Essa elite dominante, somada aos generais do Exército, também insatis-feitos com as críticas à falta de tática de guerra ocorrida em Canudos, acrescida dos deputados e senadores pressionados por seus mandantes ficaria submissa às críticas ou tratariam de eliminar de alguma forma quem lhes alardeava os crimes?

E as duas grandes questões que necessitam de resposta: Euclides, conforme seus amigos, carregava nos últimos dias de sua existência um calhamaço, que seria o suposto manuscrito de seu Paraíso Perdido. Pois bem, ele teria se contentado apenas em publicar os artigos reunidos em À margem da História e desistido do segundo livro vingador? E seu filho Solon, teria ido para o Acre e sido assassinado de imediato, por pura coincidência? E a testemunha que publicou em um jornal do Amazonas que esse filho de Euclides fora morto acidentalmente por um soldado que lhe vinha atrás? Ficam as questões a quem conseguir respondê-las.

Fato é que, após a volta dessa missão no Acre, “a tragédia foi se multiplicando”, para usar palavras de Hardman (2009, p.99), até chegar ao desfecho sinistro de ser morto por Dilermando de Assis, amante de Ana, atingindo depois seus dois filhos, Solon e Quidinho.

Concluo com palavras do próprio Euclides a Vicente de Carvalho, em 10 de fevereiro de 1909, seis meses antes de morrer assassinado: “Quem definirá um dia essa Maldade obscura e misteriosa das coisas, que inspirou aos gregos a concepção indecisa da Fatalidade?” (CUNHA, 1977, p. 404).

REFERÊNCIAS:AMORY, Frederic. Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos. Cotia, SP: Ateliê

Editorial, 2009.CUNHA, Euclides. Diário de Marcha. Rio Branco, AC: Printac, 2006.______________. Correspondência de Euclides da Cunha. Galvão/Galotti

(Org.). São Paulo: EDUSP, 1997.HARDMAN, Francisco Foot. A vingança da Hileia. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.LOIVOS, Anabelle; SANGENIS, Luiz Fernando. Euclides da Cunha: da face de um

tapuia. Niterói, RJ: Nitpress, 2013.MELO, Arquilau de Castro. Euclides da Cunha: expedição ao Acre. Rio Branco,

AC: Preview, 2011.TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Rio de Janeiro:

Biblioteca do Exército, 1992.

Periódicos em meio eletrônico:

A Província: órgão do Partido LIBERAL, PE. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=128066_01&pasta=ano%20190&pesq=euclydes Acesso em 20/06/2019.

Correio Paulistano, SP. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docread-er.aspx?bib=090972_06&pasta=ano%20190&pesq=euclydes%20cunha . Acesso em 17/06/2019.

Diário do Maranhão, MA. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/do-creader.aspx?bib=720011&pasta=ano%20190&pesq=euclydes%20cunha . Acesso em 16/06/2019.

Gazeta de Notícias, RJ. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docread-er.aspx?bib=103730_04&pasta=ano%20190&pesq=euclydes%20cunha . Acesso em 18/06/2019.

Jornal do Commercio, AM. Disponível em http://bndigital.bn.br/acervo-digital/jornal-do-commercio/170054 . Acesso em 20/06/2019.

Kosmos: Revista Artística, Scientífica e Literária, RJ, 1906, nº1. Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/146420/per146420_1906_00001.pdf . Acesso em 15/06/2019.

Pacotilha, MA. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx-?bib=168319_01&pasta=ano%20190&pesq=euclydes

Acesso em 20/06/2019.

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