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Revista Dasartes Edição 45

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O ano definitivamente começa para o circuito das artes no Brasil e a Dasartes traz com exclusividade todas as novidades das artes visuais em sua nova edição 45. Veja a Agenda com algumas das principais exposições em cartaz, imagens das vernissages na sessão Coluna do Meio e giro das artes em pequenas notas Brasil e mundo afora no De Arte a Z. Alexandre Sá estréia na coluna Alto Falante que dividirá com o já conhecido do público, o autor Guy Amado e ainda a segunda vencedora do Concurso Garimpo, promovido pela Dasartes em 2015, Michele Martinez ganha texto de Elisa Maia. As matérias de destaque ficam para as grandes exposições de Piet Mondrian e Frida Khalo nas capitais paulista e carioca e de Hélio Oititica na Fundação Edson Queiroz em Fortaleza. Imperdível !!!

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Novos títulos para a estante dos amantes das artes

Alexandre Sá estreia na coluna cheio de poesia e arte

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Vencedora do Concurso Garimpo, a artista problematiza o corpo masculino na sociedade

O mundo da arte em pequenas notas

O pintor pelo pintor: Gonçalo Ivo discute a produção de Mondrian

Megaexposição em Fortaleza apresenta o artista fundamental da arte brasileira

Entre o mito e a artista, Frida comove e faz sucesso em mostra itinerante

LivrosDestaques da Agenda

Resenhas

Garimpo - Michele Martines

Coluna do Meio

Alto Falante

De Arte A Z

Paralelo - Proteção Cultural

Capa - Piet Mondrian

Destaque - Hélio Oiticica

Do Mundo - Frida Kahlo

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Rubens GerchmanEspaço-Tempo

Destaques da Agenda

Um dos mais relevantes nomes das artes visuais da segunda metade do século 20 no Brasil. Com curadoria de Paulo Sergio Duarte e Cauê Al-ves e projeto expográfico da UNA Arquitetos, serão expostas mais de 60 obras de colecionadores priva-dos e do espólio do artista, gerido atualmente pela galerista Raquel Arnaud.

Um recorte da obra de Gerchman poderá ser descoberto pelo públi-co. A exposição reúne 20 obras ra-ras, muito pouco vistas em décadas – entre gravuras, obras em papel, pintura e objeto –, em que o artista trata de sua poética visual. Um tema que teve início no fim dos anos 1960 e perdurou até pouco antes de sua morte, em 2008, aos 66 anos.

FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO

PORTO ALEGRE / RSDE 03/03 A 12/06

MUL.TI.PLO ESPAÇO ARTE

RIO DE JANEIRO / RJATÉ 17/03

Sérgio Camargo: Luz e Matéria

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13ª Exposição de Verão “Sem saber

quando virá o amanhecer...”

Nesta exposição apresenta-se um conjunto de obras de diferentes ar-tistas que aludem, questionam e enaltecem a essência de um obje-to corriqueiro tão carregado de sig-nificado, a porta. Obras de Nelson Leiner, Marilá Dardot, Leonor Antu-nes, Rodrigo Hernandez, Frances-ca Woodman, Alek O, Lúcia Koch e Tiago Tebet participam da coletiva.

Cerca de 60 fotografias das déca-das de 1950 e 1960, período em que o artista realizou experimentos no campo da fotografia construtiva e da abstração geométrica. Além de pinturas que serão exibidas ao lado de obras de seu filho Hélio Oiticica e do artista visual Ivan Serpa, o que evidencia, segundo os curadores, como a obra de José Oiticica Filho dialogava com as novas radicaliza-ções estéticas de seu tempo.

José Oiticica Filho

DESTAQUES DA AGENDA

GALERIA SILVIA CINTRA + BOX 4

RIO DE JANEIRO / RJATÉ 19/03

GALERIA RAQUEL ARNAUDSÃO PAULO / SP

ATÉ 23/03

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A Temporada de Projetos 2016 é um programa de fomento, apoio e difusão da jovem arte contemporâ-nea brasileira. Esta edição reúne os trabalhos dos artistas Alex Oliveira, Anaisa Franco e Sergio Pinzón e do curador Philipe F. Augusto, se-lecionados pelo júri composto por Fernando Oliva, Priscila Arantes (di-retora artística e curadora do Paço das Artes) e Thaís Rivitti.

A mostra contemplará 120 obras selecionadas cuidadosamente pelo ex-diretor da Pinacoteca, Fabio Magalhães. Um dos destaques é o primeiro cartaz do artista, intitulado “Equação dos desenvolvimentos”, criado para a 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951.

Temporada de Projetos 2016 Antônio Maluf

DESTAQUES DA AGENDA

PAÇO DAS ARTESSÃO PAULO / SP

ATÉ 27/03

GALERIA FRENTESÃO PAULO / SP

DE 02/04 A 28/05

A exposição coletiva conta com a participação dos artistas da casa Al-berto Bitar, Anita Lima, Ana Mokar-zel Bob Menezes, Danielle Fonse-ca, Ionaldo Rodrigues, Keyla Sobral, Mariano Klautau, Miguel Chikaoka, Octavio Cardoso e Pedro Cunha, que preenchem as paredes do ca-sario histórico, onde está situada a galeria.

O artista, que revolucionou a arte mundial com suas obras criadas por um espírito que encontrava inspira-ção nas manifestações populares do Brasil. Com curadoria de Celso Favaretto e Paula Braga, são cerca de 60 obras que mostram a trans-formação do artista, que partiu da pintura para chegar ao além-da-ar-te (por ele denominado “invenção), saindo da bidimensionalidade para a múltipla experiência sensorial, dan-do corpo teórico e experimental à interação entre o público e a obra, unindo arte e vivência.

De todas as maneiras

Hélio Oiticica -Estrutura

Corpo e Cor

KAMARA KÓBELÉM / PAATÉ 08/04

ESPAÇO CULTURAL EDSON QUEIROZ – UNIFOR

FORTALEZA / CEATÉ 01/05

7DESTAQUES DA AGENDA

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Legenda:

De Arte A Z

Despina | Largo das Artes foi se-lecionada para integrar a rede de parceiros internacionais da ins-tituição holandesa Prince Claus Fund, que já conta com outras 11 organizações de diversas partes do globo. Esta é a primeira vez que uma organização brasileira é convidada a compor o quadro de parceiros do Prince Claus Fund. Através desta parceria, Despina | Largo das Artes irá desenvolver o projeto “Arte e Ativismo na Amé-rica Latina” pelos próximos três anos, que consiste em uma resi-dência aberta a três artistas e um ativista cultural oriundos de várias comunidades na América Latina. A cada ano, a residência irá com-preender uma serie de oficinas, uma palestra pública e uma ex-posição. Após os três anos de execução deste projeto, Despina | Largo das Artes permanece no comitê da rede do Prince Claus Fund com o intuito de aprofundar o conhecimento e a atuação da instituição na região.

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NOVOS ESPAÇOS

Os sócios Ana Elisa Cohen e Felipe Pena inauguraram a Ca-valo, galeria de arte contempo-rânea localizada num belo casa-rão de 130 metros quadrados com duas salas expositivas, em Botafogo - RJ. A Cavalo abre suas portas com a coletiva “Ex-posição Inaugural”, que reúne 25 obras, entre fotografias, pinturas, esculturas, instalações, objetos e vídeos de sete artistas: Adriano Motta, Alvaro Seixas, Felipe Cohen, Marina Weffort, Pedro Caetano, Vijai Patchinee-lam e Wagner Malta Tavares, todos representados pela galeria. A galeria pretende promover debates públicos, encontros com artistas e curadores, performances, projeções de vídeo, e lançar publicações artísticas próprias. “Estamos assumindo um com-promisso com a cena cultural da cidade”, garantem os sócios.

Felipe Pena e Ana Elisa Cohen

Legenda:

DE ARTE A Z

O novo edifício da galeria Casa Triângulo, projetado pela Metro Arquitetos Associados, tem aproximadamente 500m² e uma forte presença urbana. A arquitetura tem traços re-tos, como uma enorme caixa branca suspensa com planos translúcidos e opacos, dando a

impressão de flutuar. O piso do salão principal se estende para o exterior da galeria criando uma praça junto à calçada, permi-tindo o uso dos agradáveis espaços ao ar-livre. O desenho e os materiais contemporâneos estão alinhados à personalidade da galeria, em total sintonia entre estrutura e conteúdo, arqui-tetura e arte. A inauguração oficial será no dia 05 de Março de 2016, com a exposição individual de Sandra Cinto, intitulada Acaso e Necessidade.

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Paralelo

A criação de uma obra de arte é uma fusão de elementos que promovem emoção aos sentidos. Uma obra não só enriquece o ce-nário artístico, mas também toda a humanidade. É que a arte reflete história, cultura, traços de uma civilização, ou seja, ela reflete identi-dade e memória, pois é uma constante releitura feita pelo passado, presente e futuro, e, dessa forma, as obras, principalmente aquelas consideradas bens culturais, devem ser garantidas e protegidas.

Para tanto, instrumentos legais foram criados. Podem-se citar a criação de leis internacionais que proíbem a destruição da proprie-dade cultural, como a Convenção de Haia, responsável por enri-quecer a legislação da proteção da propriedade cultural mundial por meio de seus protocolos e estatutos, e a formação de organizações como a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura), que tem a responsabilidade de monitorar e ajudar a pre-servação da propriedade cultural.

EM ÉPOCA DE BARBÁRIE

POR PIERRE MOREAU

Legenda:

CULTURAL

Page 7: Revista Dasartes Edição 45

12PARALELO

Contudo, mesmo diante dessas

políticas e legislações de proteção ao

patrimônio cultural, ainda nos vemos ameaçados por perdas culturais.

Vale lembrar que esses ataques culturais vêm ocorrendo de forma frequente ao longo dos anos. No começo do século 20, por exemplo, a coleção de arte da Cidade Proibida na China foi transferida para Taiwan pelo líder nacionalista Chiang Kai-Shek, como um esforço de salvá-la da destruição causada pela guerra, primeiro pelas forças armadas japonesas, e, depois, pela guerra civil chinesa. Chiang Kai Shek recuou-se em Taiwan, deixando Mao Tse Tung no controle do comunismo no continente, e assim levou consigo inúmeras obras de arte da antiguidade chinesa. A coleção foi futuramente exposta no Museu do Palácio Nacional, aberto em Taipei, em 1965, ao mesmo tempo em que a Revolução Cultural Chinesa estava em ebulição no continente, onde milhares de obras chinesas foram destruídas. Tal ato é considerado controverso. Enquanto muitos taiwaneses acredi-tam que os tesouros artísticos chineses foram salvos da guerra, os chineses consideram a ação como furto, pois, atualmente, o Museu do Palácio Nacional de Taipei é considerado um dos maiores dos que abrigam antiguidades chinesas, independentemente de prote-ger o patrimônio cultural de uma nação.

PROTEÇÃO CULTURAL 13

Atualmente, pode-se citar o vandalismo cultural conduzido pelo ISIS, a que fomos expostos recentemente. Com o objetivo de uma “limpeza” cultual , o grupo extremista tem causado não só a des-truições de obras, como por exemplo, a da estátua do rei de Hatra, mas também a propagação de saques de artefatos considerados históricos, que gera, depois do petróleo, a segunda maior fonte de recursos do grupo, arrecadando cerca de dez milhões de dólares por ano. Para combater essa prática, o conselho de segurança da ONU apresentou uma resolução que bane a venda de antiguidades vin-das da Síria, e os governos dos Estados Unidos e de alguns países da Europa reforçaram leis que combatem o contrabando. Contudo, tais medidas são insuficientes para frear o mercado negro, haja vista que a maioria das obras de arte de alto valor é vendida diretamente a compradores privados e não por intermédio de um agente.

Tanto é assim que o presidente francês, François Hollande, após os ataques cometidos em Paris no dia 13/11/2015, discursou na Unesco no dia 17/11/2015, que a herança cultural deve ser prote-gida do terrorismo. O presidente disse que 70 bilhões de euros (R$ 283 bilhões) foram destinados para resguardar a herança cultural da Idade Média e ainda propôs a criação de um fundo internacional

Disposições, como as da Unesco, que expõem medidas e condutas legais que garantam

a proteção do patrimônio histórico da humanidade, estão começando a serem

observadas com mais atenção depois desses ataques.

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PARALELO 14

que permita ajudar a preservar as construções artísticas que podem ser alvos de ataques. A ONU, por sua vez, também aprovou recen-temente uma medida em que dispõe que as tropas de paz protege-rão sítios localizados em zonas de guerra ou que estão ameaçados por ataques de grupos extremistas.

O processo de globalização influencia todos os aspectos da vida humana. Dessta forma, com o aumento das conferências interna-cionais, Governos, organizações não-governamentais e, também, a própria comunidade internacional, reconhecem, valorizam e preser-vam o patrimônio cultural de forma mais ativa ao levantarem ques-tionamentos sobre o atual cenário mundial, pressionando assim Po-deres Públicos locais a dispor de instrumentos legais para tanto, como por exemplo o estabelecimento de acordos transnacionais ou convenções que estipulam os tipos, categorias, o regime de prote-ção, o uso do patrimônio cultural, direitos e obrigações dos signatá-rios, etc.

Asseguraria, assim, sua devida proteção legal e o tratamento que lhe é devido, resguardando o sentimento de pertencimento a um lu-gar, a um povo, a uma história, a qualque nunca serão esquecidos.

Esse processo de aprofundamento internacional

das relações econômicas, sociais, políticas e culturais, combinado com a promoção

de políticas públicas pode por fim despertar e promover a

valorização da cultura mundial.

Page 9: Revista Dasartes Edição 45

Legenda:

Capa

POR GONÇALO IVO

PIET MONDRIANUMA SÍNTESEPESSOAL DA PAISAGEM

16 17CAPA

A ideia de evolução e progresso em arte, tão difundida pelo mo-dernismo do século 20 e engastada de forma profunda no pensa-mento e no discurso de preclaras vanguardas históricas, pode pare-cer um útil instrumento a ser aplicado a análises de obras seminais, como as de Wassily Kandinsky, Piet Mondrian, Kazemir Malevitch, Joseph Albers e muitos outros. Esse conceito de triunfo e sobrepu-jança está presente não só no discurso, mas também nas obras de boa parcela da arte ocidental na aurora do século 20.

A construção desse modelo altera substancialmente a ideia e o sentimento da passagem do tempo. Transita-se da fruição à nega-ção da atemporalidade. O tempo passará à condição de matéria.

Se a experimentação não tem o poder de metamorfosear a es-sência da arte, pois somente cobre temporariamente com camada de tinta “nova e fina” o que o tempo, amanhã, revelará de forma inexorável, como estabelecer mecanismos de compreensão e juízo para obras e trajetórias complexas com capacidade de entrever e espiar caminhos próprios, como a de Piet Mondrian?

E se tomamos como via de serviço

o pensamento darwiniano de

evolução, ideias e questões plásticas

intercorreriam em um movimento contínuo

de superação.

Page 10: Revista Dasartes Edição 45

Piet Mondrian, 1906 – 1907. FOTOS: Cortesia Gemeentemuseum, Den Haag, Holanda

A paisagem, a luz local e o “lugar” estão sempre presentes na obra de Piet Mondrian. Os acontecimentos da natureza, fenômenos fugidios como nuvens, dunas, reflexos e árvores em constante ser-penteamento, não são fatos registrados de forma arbitrária. Mon-drian enfatiza nesses eventos suas profundas raízes na paisagem e na história da pintura de seu país natal. A sensação que nos faz intuir a inefável existência do vento que vem do mar do Norte, atra-vés da luz cristalina que perpassa toda a extensão do céu baixo da Holanda na “Vista de Delft”, de Johannes Vermeer, ou mesmo nas suas inúmeras cenas de interior, evoca o mesmo “pathos” e eleva-ção espiritual em Mondrian.

CAPA 19

Pinturas como “A Nuvem Vermelha”, “A Torre da Igreja de Domburg”,

“Duna n°5”, e mesmo suas abstrações planares,

as “Composições”, não ocultam esse gosto

particular de evocação afetiva a lugares e

experiências sensitivas.

Podemos distinguir também a manifesta presença da persona-lidade artística de Vincent Van Gogh como baliza ou guia na obra de Mondrian. O uso das cores puras, a luz intensa, o contorno em negro das linhas ou a frenética vibração cromática de “Brodway” e “Victory Boogie-Woogie” primam esse chamamento.

No caminho percorrido por Mondrian, há misteriosas inflexões que nos fazem inquirir a passagem doce, racional e tranquila rumo à abstração. Um autorretrato datado de 1918, tendo ao fundo uma pintura abstrata, testifica essa observação.

Encontro no poema de João Cabral de Melo Neto, “No Cente-nário de Mondrian” –- primeira versão, revista “Colóquio Letras”, 1972, Lisboa, Portugal – indicações e mesmo pistas que conduzem ao que o construtivismo, o racionalismo e suas derivações escolás-ticas consideram e conceituam como qualidades: rigor formal, con-cretude, economia de meios. Esses axiomas são postulados funda-mentais para engendrar uma arte limpa e racional capaz de eliminar vestígios de elementos supérfluos.

Page 11: Revista Dasartes Edição 45

Piet Mondrian, “Campanário de Zelândia”, 1911

CAPA 21

... e chegar entre as poucas à coisa-coisa e ao miolo dessa coisa, onde fica seu esqueleto ou caroço;

... então, só esse objeto de cores em voz alta, cores em linha reta, despidas, cores brasa,

só teu objeto claro, de clara construção, desse construir claro, feito a partir do não,...

E, nessa operação de subtração do que seja emocional, apontar para o futuro de uma arte do Não e do Menos:

A meu ver, o curioso nesse revelador e engenhoso poema é o último verso citado: “feito a partir do não”. Ao trocarmos a negação pela palavra mão, estabelecemos um sentido diverso não só ao poema, mas para outra compreensão da obra de Mondrian.

Page 12: Revista Dasartes Edição 45

Piet Mondrian, “Autorretrato”, 1918

Pintor de ofício e com pleno domínio técnico, desde seu início na Holanda, à derradeira e proclamada “Victory Boogie-Woogie”, de 1944, Mondrian sempre primou por resultados plásticos estreitos e paralelos à tradição da pintura e à grande arte.

CAPA

Piet Mondrian, “Composição com Oval em cores planas II”, 1914

E mesmo quando em seu apartamento da rue du Départ, em Paris, experimentava cambiantes recortes de cor pelas paredes de seu ate-liê, travava um lúcido e profundo diálogo com a arte que o precedeu.

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Page 13: Revista Dasartes Edição 45

CAPA

Piet Mondrian, “Moinho à noite”, 1917

Entendo Mondrian como um artista que foi capaz de abrir muitas das várias vias na densa e contraditória floresta da arte do século 20. Suas inquietações artísticas foram a semente e a causa de inú-meros movimentos e tendências; entretanto, o corpo de sua obra será sempre maior do que a suposta paternidade dessas sendas.

Afinal, artistas são instrumentos catalisadores das coisas do mun-do e da própria natureza e história de seu ofício. Nesste processo entre ideias eletivas, afetividades, escolhas e decisões, nós nos mo-vemos. E tudo conspira para dar sentido e existência à obra.

A arte de Mondrian deve ser libertada de toda carga premonitó-ria atribuída a ela e, como as de Morandi ou Klee, voltar a habitar o misterioso espaço da subjetividade, suspensão e imobilidade, qua-lidades secretas da contemplação.

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Page 14: Revista Dasartes Edição 45

Destaque

“Passagem da estrutura para o comportamento”. Com essa fra-se, o curador Celso Favaretto definiu o conceito por trás da exposi-ção “Helio Oiticica: Estrutura Corpo Cor”, no Espaço Cultural Airton Queiroz, na Unifor. Ao todo são 60 obras, dispostas de modo a mos-trar o caminho trilhado pelo artista para libertar suas obras de arte

POR LIEGE GONZALEZ JUNG

HELIO OITICICAESTRUTURA CORPO COR

26 DESTAQUE

da moldura, usando para isso a participação do público. O percurso começa com seus primeiros guaches geométricos, feitos a partir de 1954, quando tinha apenas 17 anos. Ainda que apresentem notável execução e composição, são pinturas que pouco destoam do que era feito por artistas consagrados na época, sem indícios da ruptura que viria pela frente.

São palavras de Paula Braga, que, junto com Favaretto, assina a curadoria da mostra. A busca pela quebra com os dogmas vigentes fez parte de sua formação sob a tutela de Ivan Serpa, líder do Grupo Frente e um dos grandes defensores da ruptura na arte. Nos escri-tos de Helio, há várias referências a Mondrian, Malevitch e Tatlin, artistas de movimentos que, quando aportaram no Brasil, nas pri-meiras edições da Bienal de São Paulo, já eram parte do passado em seus países natais e referências temporais muito distantes para um adolescente dotado da efervescência típica da juventude.

O primeiro passo em direção ao “novo” são os “Metaesquemas”, pinturas produzidas entre 1957 e 1958. Nas palavras de Paula Bra-ga, os “Metaesquemas” liberaram a geometria da grade. As estrutu-ras geométricas estão perturbadas, pedem para sair do quadro.

Oiticica entendia que a geometria

e o construtivismo poderiam ser um ponto de partida,

mas que se quisesse deixar ‘o ovo do novo’, teria

que inová-los.

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Page 15: Revista Dasartes Edição 45

HELIO OITICICA

Seria o primeiro passo em direção à sua completa libertação, que viria com a criação dos “Núcleos”, em 1959, e, posteriormente, dos “Relevos Espaciais”. Como nota Favaretto:

Nos “Relevos Espaciais”, a grade desaparece por completo e as obras se libertam inclusive das paredes, pendendo livres no espaço. A cor é trabalhada não em suas variações de tom, mas de sombras, criadas pelos ângulos dramáticos dessas esculturas monocromáticas. Sombras essas que mudam a obra à medida que o observador a con-torna, um primeiro passo rumo a uma arte mais interativa. Essa busca pela transformação de uma obra física, estruturada, para uma experi-ência pessoal, vivida com o corpo, inspirou o nome da exposição.

É em 1963 que essa passagem se dá de forma mais concreta, com o início dos “Bólides”, suas primeiras peças manuseáveis. O título “Bólide” vem de tipo de meteoro. Nas palavras do superlativo Helio, “bolas de fogo, meteoros, os ‘Bólides’ são focos de energia que envolvem seus exploradores e o espaço circundante em modu-lações de cor.” As peças permitem que o indivíduo manuseie terra e pigmentos contidos em gavetas, recipientes de vidro ou plástico, ou que mexa nas partes que compõem as caixas, em um conceito análogo ao dos “Bichos”, que sua amiga e companheira no grupo Neoconcreto, Lygia Clark, vinha criando desde 1960.

Se projetamos os “Núcleos” no plano

bidimensional, temos uma pintura de

Mondrian ou a grade da qual os “Metaesquemas”

queriam se libertar.

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Metaesquema, 1958, Coleção César e Claudio Oiticica.FOTO: Jaime Acioli

Page 16: Revista Dasartes Edição 45

Parangolé P17, Capa 13FOTO: Ares Soares

DESTAQUE

Uma de suas obras mais célebres, “Homenagem a Cara-de-Cavalo” (1966), é parte dos “Bólides”. O bandido Cara-de-Cavalo havia sido exterminado pela polícia, em um episódio amplamente divulgado pela mídia e aplaudido pela sociedade. Sua homenagem sinaliza o desejo de transgressão que fazia parte do espírito daquela época, marcada pelo momento conturbado na política brasileira e pela disseminação das ideias de superação e desobediência que permeavam as obras de muitos escritores então em voga, como Nietzsche e Antonin Artaud, dos quais Helio era leitor dedicado. No extremo da busca pela quebra com o comodismo e o “status quo”, ser marginal era ser herói.

B32 Bólide vidro 15, 1965-1966, Coleção César e Cláudio Oiticica. FOTO Jaime Acioli

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Page 17: Revista Dasartes Edição 45

Visitante veste e dança com ParangoléFOTO: Nely de Carvalho

Os Parangolés se situam no cruzamento entre as intenções da interação com público, da ruptura e da liberdade. Ao se aproximar da escola de samba da Mangueira, encantara-se com o relaciona-mento visceral com a música, uma paixão que inspirava as alegorias mais exuberantes e uma forma de arte marginal ao circuito erudito. O episódio de sua primeira apresentação ao público ficou para a his-tória: Helio trouxe passistas e músicos da Mangueira, vestidos com Parangolés, para participar da mostra “Opinião 65” no MAM Rio e todos foram expulsos. Terminaram sambando e cantando embaixo da marquise do prédio, atraindo ainda mais atenção para sua cruza-da pela desintelectualização da arte.

Os Penetráveis são o próximo passo na busca por uma arte ati-vada pelo público, labirintos de sensações e experiências criadas pelo próprio visitante. O mais famoso deles, a “Tropicália”, introduzia ainda outro elemento: areia e araras e plantas, ícones de uma bra-silidade plebeia com a qual daríamos identidade à nossa vanguarda. Na mostra da Unifor, um dos dois Penetráveis expostos também remete à música. Macaleia foi criado em homenagem ao músico Jards Macalé, grande amigo do artista.

A última obra da exposição é uma montagem das Cosmococas, que Oiticica criou em parceria com o cineasta Neville d’Almeida

Penetrável Macaleia FOTO: Ares Soares

quando os dois moravam em Nova Iorque, nos anos 1970. A dupla queria oferecer uma experiência suprassensorial, afogando os senti-dos em estímulos ao mesmo tempo em que ofereciam um ambiente de relaxamento. O suprassensorial abriria as portas para o desen-volvimento de uma consciência interior mais apurada e criativa, um ponto mais profundo da interação com uma obra de arte. Oiticica morreu poucos anos após seu retorno de Nova Iorque, ainda jovem e irreverente em sua criação e espírito, fiel à sua busca pela ruptura tanto em sua arte como em seus escritos, essenciais para a com-preensão de sua genialidade.

Page 18: Revista Dasartes Edição 45

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Frida Kahlo no hotel Barbizon PlazaFOTO: Photo Gerardo Suter

Do Mundo

Cercada pela polêmica e pela originalidade, Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, ou simplesmente Frida Kahlo, é um íco-ne pop. Sua vida já foi contada pela literatura, pelo cinema e, mais recentemente pelo teatro. Todas as narrativas evocam os aconte-cimentos de sua vida: a poliomielite infantil; o trágico acidente aos

POR ALECSANDRA MATIAS DE OLIVEIRA

FRIDA KAHLOALÉM DO FENÔMENO

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Page 19: Revista Dasartes Edição 45

FRIDA KAHLO 37

Frida Kahlo, “Autorretrato com colar”, 1933FOTO: Gerardo Suter

Na mostra, Frida é a inspiração subversiva. São cerca de 100 obras, sendo 20 telas e 13 desenhos de autoria da artista. Os de-mais trabalhos são de 15 artistas mexicanas ou radicadas naquele país que conectam Frida Kahlo ao seu contexto – é exatamente nesse momento que a obra ganha do ícone. Remedios Varo, Rosa

Page 20: Revista Dasartes Edição 45

DO MUNDO 38

Rolanda, Alice Rahon, Jacqueline Lamba, Maria Izquierdo, Lola Ál-varez Bravo e Lenora Carrigton são algumas das artistas que inte-gram o círculo intelectual de Frida e que tem obras na exposição. Elas compartilham em seus trabalhos das mesmas preocupações da artista: o resgate das raízes populares mexicanas e as dores do universo feminino. Além disso, Frida foi modelo para muitas pinturas e fotografias dessas artistas. Tudo traduzido pela linguagem surrea-lista, pelo onírico e pela subjetividade.

Os trabalhos que não são de mulheres recriam o mundo de Frida, como por exemplo, as fotografias de Nickolas Muray (por sinal, seu amante por quase uma década) e a litografia de Diego Rivera, Nu (Frida Kahlo), 1930. Completam o ambiente suas roupas cheias de cores e ricas em elementos florais. Entre pinturas, esculturas, foto-grafias, catálogos, vestimentas e documentos que integram a mos-tra descobre-se um universo inquietante que contextualiza o ícone Frida Kahlo e onde se revelam outras personagens tão intensas quanto ela. Acima de tudo, a exposição traz uma densa reflexão sobre a estética que emerge dos trabalhos de Frida e de suas con-temporâneas.

Frida sempre negou o surrealismo, dizia que não retratava sonhos,

mas sua própria realidade cercada pelas angústias e

pelas dificuldades de sua própria condição.

Frida Kahlo, “Minotauro”, 1959

Porém, mais uma vez ela subvertia o cânone e assinalava sua pis-que na criação de telas carregadas de símbolos e mitologias pesso-ais. É justamente esse o ponto que une suas obras e as das demais artistas. Todas elas dedicam-se a muitos autorretratos e retratos simbólicos fronteiriços entre o público e o privado. Não há dúvidas que a estética surrealista foi apropriada por essas mulheres para narrar seus dramas e reafirmar sua identidade. Em todos os traba-lhos percebe-se a absorção da tradição artística ocidental e, poste-riormente a busca de autonomia e de especificidade própria.

FRIDA KAHLO 39

Page 21: Revista Dasartes Edição 45

Balada para Frida Kahlo,1956-66Cortesia de Oscar Roman Gallery

Outra conexão entre Frida e suas companheiras está na deman-da por identidade. Filha de mãe católica, mestiça de índio espanhol e de pai judeu alemão, Frida ocupou seu imaginário temático a partir de sua origem mestiça. Ela sempre reafirmou sua identidade, seja a partir de seus trajes, seja em sua obra. O resgate do passado pré--colombiano e a valorização das culturais indígenas do México estão entre as conexões existentes entre essas artistas. Para todas elas, a procura por suas origens (mesmo as estrangeiras que compõem o grupo) representa um gesto político em período de grandes revo-luções e guerras.

Por último, a exposição Frida Kahlo – Conexões entre Mulheres Surrealistas no México, ao desvelar as conexões entre Frida e o gru-po de artistas que a cercavam, tornou-se um fenômeno de público em São Paulo, com filas consideráveis. Porém foi além, conseguiu contextualizar a produção artística de Frida. Deu-lhe um atributo na história da arte do século 20. Sim, o ícone Frida se fez presente. O público foi (e irá) atraído por ele à exposição, porém, sairá conhe-cendo sua vida, obra e influências no cenário artístico do qual foi protagonista.

Page 22: Revista Dasartes Edição 45

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Livros - Lançamentos

Bansky - Por trás das paredesWill Ellsworth-JonesNossa Cultura – 325 p. – R$45,00

Esta “biografia”desvenda a arte do grafiteiro Bansky, já que ninguém sabe ao certo quem ele é. Artista cuja identidade nunca foi revelada, ele permanece como uma incógnita para o público e para a crítica desde 1990. O desafio do au-tor foi reunir peças e mostrar como alguém cujo trabalho era considerado por muitos como mero vandalismo, tornou-se uma espécie de tesouro da Grã-Bretanha. Para escrever o primeiro rela-to completo da carreira de Bansky, o autor con-versou com conhecidos e adversários grafiteiros. Nas entrevistas, não solicitou nenhuma revela-ção sobre a identidade do artista, que, segundo o jornal The Observer, “faz questão de manter e preservar seu próprio mito”.

LIVROS 43

Tropicália + Verdes CorrentesRoberta Camila SalgadoAzougue Editorial - 23 p. e 80 p.

Poucos sabem, mas os “poemobjetos” apresentados por Hélio Oiticica na obra “Tropicália” são de Roberta Camila Salgado. Os poemas, pinçados para a emblemática exposição Nova Objetividade, são lançados em livro pela primeira vez. A edição reúne em um só volume dois livros da autora: “Tropicália” (com poemas de 1965 a 1967) e “Verdes Correntes” (com poemas de 1965 a 2015). Segundo Roberta, a ideia de escrever sobre suportes diversos, elementos industrializados ou não, era levar a poesia para o dia a dia das pessoas, de forma a quebrar a aridez das cidades, distensionar, levar esperança, alegria e despertar o interesse pela poesia.

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LIVROS

Pacto Visual 2Luisa DuarteID Cultural – 204 p. – R$ 80,00

O livro concentra sua atenção no depoimento de sete artistas e seus respectivos processos de forma-ção e interlocução com as referências que forjam suas obras. A premissa do livro é a seguinte: um nome já conhecido, com uma trajetória madura, indica um ar-tista que ainda se encontra no começo ou no meio de sua carreira, sublinhando a importância de um olhar sobre a obra do outro. Assim, Antonio Dias elegeu Fabiano Gonper; Iole de Freitas, Mariana Manhães; Luiz Zerbini, Marina Rheingantz; e Adriana Varejão es-colheu fazer uma homenagem, indicando um artista in memoriam, Ivens Machado (1942-2015). Nas pági-nas da publicação, saem de cena as vozes do cr’tico e curador e entra em pauta o próprio artista falando sobre o seu trabalho.

44 LIVROS 45

Elementos do Design Tridimensional Gail Greet Hannah PUC Rio de Janeiro e Cosac Naify – 192 p. – R$35,00

O livro apresenta um método elabora-do pela professora Rowena Reed Kos-tellow no Pratt Institute, em Nova Iorque, para o ensino e a prática das relações visuais no espaço. O corpo principal da publicação é o registro do programa de ensino. As informações teóricas são acompanhadas por exercícios das rela-ções no espaço tridimensional, - ilustra-dos por fotografias dos objetos desen-volvidos com os alunos - e concluídas com exemplos do trabalho de ex-alunos que se tornaram destaques na área.

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Legenda:

Resenhas

Cigarras, Formigas e Mariposas

“A mesma gente que passa o tempo nas redes, quando o tempo aperta, constrói em três anos, no deserto, uma capital”, escreveu Lucio Costa no texto do catálogo da Trienal de Arquitetura de Milão, que lemos através de uma mesa de vidro em uma das salas da exposição “quando o tempo aperta”, de Raphael Fonseca, em cartaz no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. No pavilhão brasileiro da trienal de 1961, diversas redes convidam os visitantes a se deitar e dedilhar um violão, enquanto uma fotografia de Brasília faz contraponto, ao fundo. Nas entrelinhas do texto do catálogo, podemos ler, se quisermos, sinais de fadiga do projeto modernista: as redes estão ali para “acolher o inevitável cansaço dos visitantes da exposição”. Já começavam os anos 60, combatendo a sisudez do pós-guerra, revirando as estruturas do avesso, rebatendo-as com experiência múltipla, singular e oscilante que evocava pelos penetráveis de Helio Oiticica, as canções da Tropicália e os impulsos

QUANDO O TEMPO APERTA

por Luisa Nóbrega

de maio de 68 – vontade de formas híbridas, que intercalassem preguiça e desejo, transgredindo a lição severa do funcionalismo e o raio x metálico da geometria.

Cinquenta e cinco anos depois, Raphael nos chama atenção para o nó apertado que assombra nosso sossego: depois de nos deitar (algo apressadamente) na cama-bólide de Hélio, damo-nos conta de que a única rede disponível no espaço está ocupada por uma bola áspera de cimento: arquitetura que expulsa em vez de acolher. A rede-armadilha de André Komatsu e Marcelo Cidade nos faz pensar nas rampas pontudas instaladas nos viadutos de São Paulo, que impedem os mendigos caírem no sono.

No texto “Comrades of times”, Boris Groys contrapõe o presente eterno da arte contemporânea ao futuro do das vanguardas: para os modernistas, o presente era apenas etapa provisória, estilingue para um tempo por vir.

RESENHAS

“Camaradas, durmam mais depressa!”, insistia o slogan de Ilf e Petrov, uma dupla de escritores russos, parodiando essa vontade exaltada de pular etapas, fazer o tempo saltar. Anos depois, quando o concretismo russo havia dado lugar ao realismo socialista, quando ainda se sentia no ar o cheiro de gás e os resíduos de cabelos deixados pelos fornos da Segunda Guerra Mundial, a poetisa polonesa Anna Kamienska anotaria em seu caderno: “Dormir é a coisa de que eu vou sentir mais falta quando eu morrer”. Talvez os dorminhocos das fotos

Hábitos e pessoas deveriam ser descascados para abrir

espaço para a cidade do futuro, universal e reluzente, que

prometia instaurar na Terra um paraíso industrial luminoso.

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Legenda:

de Pierre Verger, descendentes da nossa sociedade escravocrata, concordassem, sonâmbulos.

Uma correia circula veloz em torno de dois eixos paralelos na ampulheta mecânica de Gabriela Mureb, que gira sozinha, perpetuando o próprio movimento compulsivo. Seu som permeia toda a exposição, como o ruído de um enxame de cigarras mecânicas – não conseguimos deixar de pensar na fábula cruel de La Fontaine, que ilustra perfeitamente a lógica protestante que moveria as correias dos primórdios capitalismo: quem não produz morre no inverno, quando as formigas fecham as portas. O tema da Trienal de Milão que abrigava o pavilhão de Lucio Costa, “tempo livre”, aludia à esperança modernista de que as máquinas pudessem produzir tempo em abundância – sem desconfiar de que a tecnologia se revelaria um “comedor de tempo” entorpecente e hipnótico, e não uma prótese eficiente e dócil para formigas. Em meio às canções das cigarras eletrônicas, enfeitiçados pela luz branca da tela do computador e os apelos constantes dos aplicativos de celular, rodopiamos como mariposas: a diferença entre atividade produtiva e atividade inútil parece mais e mais impossível de identificar.

Um quadrado vibra constantemente no outro artefato de Mureb, como um despertador sem horas sempre em estado de alerta: “é

QUANDO O TEMPO APERTA 48

tarde, é tarde, é sempre tarde”. Cada e-mail respondido é apenas mais um em meio a uma corrente compulsiva de mensagens que nunca se interrompe; cada projeto concluído dá lugar a um novo projeto, em um eterno retorno compulsivo. O quarto se tornou de certo modo um espaço em negativo, parece dizer Laís Myrra, com sua planta arquitetônica rasurada e os resíduos/escombros de um quarto demolido. Entre os objetos anacrônicos e kitsch das fotografias de Rochelle Costi, os quartos sobrevivem como colagens improváveis de aposentos, estilos e tempos que já se foram, mas que seguem existindo, como em um álbum de figurinhas. Raquel Stolf empilha silêncios campestres com grilos e abelhas e silêncios de quartos de hotel com ar-condicionado: silêncio maquinal e silêncio orgânico se tornam inseparáveis – todo sono é intermitente, todo o quarto é provisório.

Diante das forcas metálicas reluzentes de Ana Maria Tavares, parece difícil criar estratégias para tentar para afrouxar o nó da gravata, da garganta. Em “Encomenda para José”, Leandra Espírito Santo faz circular um enorme barco de papel pelas ruas do Rio de Janeiro, interpelando o gelo derretido de Francis Alys: será que fazer nada leva a alguma coisa? Na sequência de fotos de Sara não tem nome, uma garota realiza um atentado lúdico contra um homem-colchão Ortobom, interrompendo sua performance-encomenda, invertendo as promessas da publicidade: “não quero comprar os colchões da loja, quero descansar na imagem, quero descansar em você”. No papelão depositado no chão, trabalho de Adriano Costa, lemos, em letras maiúsculas, entre letreiros de marcas: “Berço esplêndido”.

RESENHAS

Impossível não reconhecer na frase do Hino Nacional certa morbidez e ironia: um mal-estar ansioso e afoito

parece contaminar a preguiça amoral do herói sem caráter.

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Legenda:

Resenhas

As quatro obras do salão principal da Galeria Anita Schwartz parecem se perder no imenso pé-direito do ambiente. A iluminação dramática, que lança sombras bem delineadas no chão e nas paredes, colabora com esta sensação. Á direita de quem entra está uma escultura intrigante de Carla Guagliardi, “O lugar do ar” (2015). São esferas de espuma de diferentes tamanhos presas por placas de madeira articuladas. Temos que segurar o impulso de mexer nas placas, a escultura parece pedir que o façamos: as placas são presas na parede por dobradiças! Mas freamos, sabemos que as bolas cairão, que a beleza tênue da escultura se desfará. Calo-me, baixo a cabeça, me afasto em silêncio (impuro?).

Á esquerda está “Partitura”, também da artista, uma pauta musical de grade assimétrica. Nas palavras de Felipe Scovino, “a escolha dos materiais (borracha, madeira, espuma) envolve um repertório

SILÊNCIO IMPUROpor Liege Gonzalez Jung

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de fragilidades e um equilíbrio precário”. “Tudo parece ruir ou estar prestes a desabar, mas por outro lado as obras evidenciam uma dinâmica que é própria da natureza do som: querem o ar”. Os metais de Otavio Schipper, familiares na sua semelhança com trompetes e cornetas, pendem do teto como que pra reforçar esta ideia. Ao fundo, uma instalação de Waltercio Caldas une molduras de metal com fios, demarcando o vazio, outro território do silêncio.

No andar de cima, outra “Partitura”, esta de Artur Lescher, uma série de imagens que à primeira vista parecem retratar constelações.

O título nos orienta a enxergar esta música, pronta para ser tocada todas as noites em que não há nuvens. No centro da sala, no chão, Nuno Ramos inseriu em duas rochas de pedra-sabão, meio brutas e meio polidas, um par de baquetas e uma batuta, como fósseis pré-his-tóricos preservados no sedimento. Sua música está presa na pedra.

Das duas obras de Cadu que ocupam as outras paredes, “Fuer Elise” é, obviamente, a mais musical. Partiu de uma caixinha de música que toca esta melodia de Beethoven, que deve ser a mais usada em

RESENHAS

caixas de música ao redor do mundo, e por um processo complexo transformou-se em um desenho plano, uma canção desconstruída. A outra obra usa o sol para “pintar” blocos de papel por meio de uma lente de aumento. De acordo com Scovino, “Não há som, apenas o seu caráter indicial e o processo de excluir ou escavar a matéria para revelar uma outra possibilidade de aparecimento ou ação poética da obra”.

A exposição finaliza com um registro em vídeo do trabalho de Tatiana Blass “Metade da fala no chão – Piano surdo” (2010), Nele, um pianista executa uma melodia enquanto uma miistura de cera e vaselina é derramada sobre o piano, aos poucos impedindo que ele produza sons. Assim termina em silêncio também a exposição.

Pode haver música mais silenciosa que a das estrelas?

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Garimpo

“Tobias”, “Renato” e “Miguel” pertencem à série de pinturas intitu-lada Abuso (2015/16), de Michele Martines. Cada uma das telas, batizada com um nome próprio, exibe uma figura masculina em uma situação que remete aos anúncios publicitários. Para compô-las, Mi-chele parte de imagens fotográficas pesquisadas na internet, mes-clando-as e as manipulando de forma a alterar as legendas, as cores e padronagens de acordo com a proposta de cada trabalho. Com a referência em mão, a artista parte para a pintura, meio que define como um “amor verdadeiro” – “sempre senti prazer no fazer manual, em misturar cores, arrastar o pincel sobre a tela e vencer o desafio da imagem”, conta.

Ao pintar corpos de homens, Michele parece inverter a lógica da extensa iconografia na qual a mulher figura como objeto do olhar masculino. Desde as pinturas renascentistas até as campanhas pu-blicitárias do século 20, que lançam mão de corpos atraentes como

MICHELE MARTINES

POR ELISA MAIA

Legenda:

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GARIMPO 54

elementos centrais de persuasão, predominou uma relação na qual o homem participa como o sujeito que olha, enquanto a mulher, cuja imagem foi associada às noções de beleza, graça e suavidade, com-parece como objeto desse olhar. A artista conta que a série Abuso foi então motivada por um questionamento – “por que a beleza física do corpo masculino ainda é tão pouco explorada na pintura?”

A linguagem publicitária explora a mercantilização do corpo para produzir uma excitação voyeurística. Em alguns casos, a imagem da mulher é equiparada ao próprio produto anunciado, ou pelo menos ao prazer ou à sensação proporcionados pelo seu consumo, como ocorre no caso emblemático dos anúncios de cerveja direcionados ao público masculino. Michele se apropria dessa linguagem e pa-rodia essa estratégia ao retratar o torso nu sexualmente atraente de um homem negro em um anúncio de chocolate, popularmente conhecido como um fetiche feminino. Dessa forma, sua série explo-ra a capacidade de reificação das imagens, mas, ao eleger corpos masculinos, desafia o repertório hegemônico – “Quero expor esses homens lado a lado, para que sejam admirados, comparados e es-colhidos. Como se o espectador estivesse diante de um catálogo”, conta Michele. Para saber mais, acesse www.michelemartines.blogspot.com

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Coluna do Meio

Studio de ideiasAbertura da exposição dos fotógrafos Paulo Greuel e Carlo Alberto RuscaFotos: Angelo Santos

Centro Cultural dos CorreiosAbertura da exposição Ela Não Gostava de Monet, de Walter GoldfarbFotos: Paulo Jabur

Panorâmica

Fernanda Terra e Roberto Padilla Vandinha Klabin e Walter Goldfarb

Nara Reis e Ricardo Duarte

Sara Alonso Gómez e Bruno Devos

Roberto Padilla e Marcelle Pithon

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Museu Nacional de Belas ArtesAbertura da mostra “Roberto, um Certo Rodrigues”Fotos: Divulgação

Inauguração da Gabriel Wickbold Studio & GalleryExposição de Christy Lee RogersFotos: Paulo Otero

Monica e Pedro Xexéo com o colecionador Morris Braun

Bruno Van Enck e Paula Brofman

Ricardo Duarte e Sylvia Carolinne

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Carolina Pirajaú e Juan Morales

Pedro Xexeo e as curadoras da mostra Claudia Rocha e Daniela Matera

Cecilia Madureira

Walter Goldfarb e Edson Thebaldi

Alexandre Murucci

COLUNA DO MEIO 57

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Donna Piedade e Catharina Suleiman

Felipe Rezende e Gleeson Paulino

Karla e Marcelo Felmanas Pedro Barbosa e Bruna Benatti

Gabriel Wickbold e Grazzi Ferraz

Rebeca Gasperini e Rodrigo Nicolau

COLUNA DO MEIO

Museu Nacional de Belas ArtesPassagem da Trezena de São SebastiãoFotos: Divulgação

Luigi Parisi Monica Xexeo, Dom Orani, Riccardo Battisti, Luigi Parisi

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Alto Falante

Um respeitável artigo da revista Piauí de janeiro de 2016, resolve ir à busca de Nathaniel Leff, professor da Escola de Negócios da Columbia University entre o fim dos anos 1960 e meados de 1990. Para além do esforço absoluto de Rafael Cariello e de sua equipe de encontrar o tal professor desaparecido, ou pelo menos conseguir obter informações sobre seu paradeiro, houve algo que me chamou a atenção. Percebe-se, ao longo do artigo, o quão inegável são as contribuições que o tal Leff, apaixonado pelo Brasil, por nossa his-tória e economia, promoveu, quando resolveu investigar, por mais de uma década, a nossa formação e as razões de uma perceptível deficiência econômica.

Nathaniel Leff termina indo contra algumas teorias – como as de Caio Prado Jr. e Celso Furtado –, defendendo que parte da pobreza que nos acompanha historicamente não pode ser responsabilidade absoluta do período colonial, já que existem muitas questões que foram potencializadas no século 19 e, segundo ele, as mais lúcidas razões para o nosso degredo viria de uma “falta de integração inter-na da economia brasileira – e o alto custo de transporte no país”. . Podemos perceber, por um detalhamento minucioso, que a dispa-ridade galopante começa a se estabelecer posteriormente à Revo-lução Industrial, pela inexistência de investimentos estruturais que abrem o abismo entre nós e o mundo. Ali, naquele momento, ainda apostávamos na força do jegue. E tal dificuldade de circulação cul-minará no nosso atual sistema de transporte (de gente, de carga, de esperança) que já sabemos bem o quê é.

UM TEXTO BEM IDIOTA

POR ALEXANDRE SÁ

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Que temos o saque e a lógica do roubo como elementos genéticos

que atravessam nossas constituições e se

estabelecem como hábitos sem culpa alguma.

ALTO FALANTE

Fiquei com tudo aquilo na cabeça e com a tal falta de integração interna como um fantasma que eventualmente me surgia pedindo reflexão. Lembrei-me do vídeo em que o Cazuza afirmava que so-mos, desde o começo, um país do saque.

A essa linda fórmula de cordialidade, talvez eu tenha somado sem querer as últimas imagens das escavações políticas e a quan-tidade absurda de injustiças que nortearam as últimas décadas da história política e econômica do Brasil e que tive a (in)felicidade de acompanhar.

Mas voltando ao Nathaniel Leff, talvez o que me surpreendeu foi a ousadia de repensar o legado da desestruturação operacional que carregamos desde muito e a coragem de, na contramão de certo pensamento corrente, provocar outras possibilidades de compre-ensão, culminando com a sutil afirmação de que nossos dirigentes (e talvez os cidadãos, “why not?”) tenham sido os verdadeiros res-ponsáveis por tudo aquilo que somos. Que, provavelmente, a ânsia de cuidar unicamente de seus projetos pessoais de salvaguarda de uma tradição financeira, amparada em uma lógica inóspita de eco-nomia feudal, foram fundamentais para a manutenção de tantas

60 61UM TEXTO BEM IDIOTA

famílias, tantos nomes e tantas pessoas em seus confortáveis lu-gares de origem. Da mesma forma que os desconfortáveis lugares de sofrimento e de alguma falta de oportunidade. E, meio Pequeno Príncipe, relembro a sutil sentença que agora soa fatídica: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

Antes que o leitor pense que se trata de alguma postura melancó-lica ou cega, obviamente sei que também existiram coisas louváveis e os últimos anos puderam mostrar que um pouco de boa vontade não faz mal a ninguém. Contudo, acredito que a pequena falácia que retumba ao defender que somos um país jovem e com uma história curta não pode vir a ser uma justificativa plausível para tanta desgraça que assola o país com sua lamas, barreiras e impunidade histórica/política/divina.

A impressão que tenho é que as coisas parecem pouco críveis e talvez estejamos ligeiramente cansados. Além de aturdidos com uma quantidade considerável de juros e dívidas a pagar. Sem contar todo o conjunto de impostos que aumentam a responsabilidade da produção infinita de trabalho e dinheiro (Mudando um pouco de as-sunto, nós quem?). Talvez por isso, a mísera questão política parece ser mais um simples elemento de assombro que norteia as reações faciais na leitura dos jornais, dos sites e no compartilhamento in-cólume das informações. Um expressão de surpresa que, quando verídica e mordaz, revela uma mais antiga e geracional: aquela do “já sabia”, “eu imaginava”, “meu corpo acostumou-se com algum chicote vale-tudo”.

E então eis que surge a arte. Aqui. Agora.No texto.

Por certo, seria pertinente que eu não desviasse o fluxo para falar de arte. Inclusive porque a tal relação arte e vida parece útil e utili-zável enquanto conceito banguela quando interessa a quem a cita.

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62ALTO FALANTE

Talvez precisasse então fazer um corte. Como um cão andaluz. Mudando todo o rumo. E, ainda menino, pudesse lançar uma per-gunta sobre o que pode a arte dentro desse panorama hospitalar que invade as notícias e os iates. Mas, além disso, talvez fosse im-portante fazer um novo recorte.

Parando tudo e correndo para pegar um microscópio instalativo qualquer que fosse capaz de aproximar a questão e a pergunta que talvez me aflija de maneira não menos estúpida: O que pode a arte brasileira?

Sim, querida. Eu sei que tudo anda bem e as vendas não tão sur-preendentes ainda não nos causam toda a preocupação necessária. Sim, meu amor, eu sei. Você sabe que eu sei que a arte brasileira vem ganhando força e respeitabilidade. Lógico. Ainda bem. Menos mal. Claro que eu não posso discordar de você ao defender que a arte é um artigo-fetiche e talvez isso seja fundamental para sua constituição e circulação. Sim... Eu adoro vernissages e uma bebi-da boa e uma gargalhada leve e despreocupada enquanto exibimos nossas agendas cheias de compromissos. Essa é parte que nos cabe neste latifúndio da nossa política pouquíssimo pedagógica de editais, patrocínios e “petits fours”.

Mas não me obrigue, querido. Não agora, dentro da noite veloz a concordar inteiramente com todo o jogo de entretenimento pseu-do-altruísta que nós construímos como o fundo de alguma verdade que jamais existirá. Aqui de onde lhe escrevo, suas indicações sa

Originalmente, arte não tem nenhuma relação com política.Originalmente, arte não tem

nenhuma relação com política?

(Silêncio de 2 minutos. Pare de ler. Volte em 120 segundos)

InspireExpireInspireExpireInspireExpire

Prometo que em breve tento escrever com alguma dignidade “La-ranja Mecânica” para abrir seus/meus olhos que, de maneira são Tomé, só acreditam em uma infindável lista de autores.

Este texto é para os que não sucumbiram.E para Nathaniel Leff.

Revista Piauí, n. 112, v. 10, p. 20, jan. 2016.

pientíssimas para um novíssimo programa de formação ou de cur-so, seus conselhos gentilíssimos sobre a parcimônia da crítica de arte no jornal, sua perseguição ferrenha a tudo que é vital e pulsa, sua pressuposta preparação de artistas para o mercado, sua cura-doria que não consegue levantar nenhuma questão sólida, seu tom de voz doce e comedido e todo o resto, não me servem de nada.

Eu não o amo mais, Beltrano.

UM TEXTO BEM IDIOTA 63