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Revista de Direito Trabalho, Sociedade e Cidadania
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM DIREITOS SOCIAIS E PROCESSOS REIVINDICATÓRIOS/PPG-MPDS - ISSN: 2448-2358
[1]
Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.
As lentes cínicas do trabalho assalariado e os
grilhões da forma jurídica
“Saber é poder, porém, tal poder, ainda que permita a
identificação de determinadas máscaras ideológicas, não
necessariamente se
converte em ações
concretas direcionadas à
destruição de tais
máscaras. Como se
opera o aprisionamento
prático das massas a
partir da sua
representação jurídica é o
que efetivamente será
debatido aqui”. Por José
Rossini Campos do
Couto Corrêa e Guilherme da Hora Pereira. Imagem “Casa
dos Loucos” (1814), de Francisco José de Goya y Lucientes
(1746-1828), pertencente ao acervo da Academia San
Fernando, Madrid/Espanha.
Revista de Direito Trabalho, Sociedade e Cidadania
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Centro Universitário Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB
R454
Revista de Direito: trabalho, sociedade e cidadania
[online]/ Curso de Direito, Centro Universitário IESB. – v.7,
n.7, (jul./dez.2019) - Brasília: IESB, 2019.
Semestral
ISSN: 2448-2358
Disponível em: iesb.br/revistadedireito/
1.Trabalho. 2.Cidadania. 3.Sociedade. 4.Democracia. I.
Departamento de Direito. II. Centro Universitário IESB. IV.
Título.
CDU 340(05)
Revista de Direito Trabalho, Sociedade e Cidadania
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ÍNDICE
Guilherme da Hora Pereira
José Rossini Campos do Couto Corrêa 05
AS LENTES CÍNICAS DO TRABALHO ASSALARIADO E OS GRILHÕES DA FORMA JURÍDICA
Álvaro Augusto Cerqueira Mangabeira
Any Ávila Assunção 43
A POLÍTICA DO RECONHECIMENTO NAS ABORDAGENS DE NANCY FRASER E AXEL
HONNETH: JUSTIÇA OU AUTORREALIZAÇÃO?
Hugo Silva de Aguiar
Augusto César Leite de Carvalho 61
A LEI Nº 13.146/2015 E O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA
Arlene Pereira da Silva Sacco
Augusto César Leite de Carvalho 79
OS IMPACTOS DA JORNADA DE TRABALHO NA VIDA DOS MOTORISTAS
PROFISSIONAIS DE CARGAS DO BRASIL: UMA ANÁLISE DA FLEXIBILIZAÇÃO DA
LEGISLAÇÃO SOCIAL E A CONFIGURAÇÃO DO DANO EXISTENCIAL
Eth Cordeiro de Aguiar
Diogo Palau Flores dos Santos 93
O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS COMO INSTRUMENTO DE
ESTABILIDADE, COERÊNCIA E INTEGRIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS EM PROCESSOS
DE MASSA
Jair Vanderlei Krewer
Douglas Henrique Marin 116
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE: A
(IN)DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
José Henrique Ferreira Bona
Paulo José Leite Farias 163
O AUXÍLIO-RECLUSÃO É UM DIREITO DO PRESO CIVIL?
Aldo Matos Moreno
Ulisses Borges de Resende 179
A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE NA CÂMARA DOS DEPUTADOS – UMA ANÁLISE DA
CONTRIBUIÇÃO SOCIAL NA COMISSÃO DE LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA EM 2018
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Luíza Griebler
Douglas Henrique Marin 213
A BANALIDADE DO MAL NAS UNIDADES DE INTERNAÇÃO DO DISTRITO FEDERAL
Theobaldo Eloy de Carvalho Neto
Douglas Alencar Rodrigues
Augusto César Leite de Carvalho 234
AS RELAÇÕES TRABALHISTAS EM CONSONÂNCIA COM O DESENVOLVIMENTO
EMPRESARIAL SUSTENTÁVEL – A RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA COMO
INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA
Maria Marclane Bezerra Vieira
Any Ávila Assunção 260
TRABALHO DOCENTE E SAÚDE: UM ESTUDO COM PROFESSORES DO INSTITUTO
FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE BRASÍLIA
André Luiz Batista da Costa
Douglas Henrique Marin 279
OS PROCESSOS DE GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E SUAS INFLUÊNCIAS
NOS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO
Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho 298
APRENDENDO DIREITO – DIREITOS SOCIAIS E LIBERDADES DEMOCRÁTICAS
Suzana Cristina Leite
Neide Teresinha Malard 305
O VIÉS IDEOLÓGICO DA REFORMA TRABALHISTA DE 2017
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AS LENTES CÍNICAS DO TRABALHO ASSALARIADO E OS GRILHÕES DA
FORMA JURÍDICA
GUILHERME DA HORA PEREIRA
Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário
IESB; especialista em Direito e Processo do Trabalho (AVM) e Direito Sindical pelo Centro
Universitário IESB; integra o Grupo de Pesquisa Justiça e Filosofia Política do Curso de
Direito IESB, Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Sociabilidade e Serviço Social
pela Universidade de Brasília (UnB); membro da Associação Brasileira de Juristas pela
Democracia (ABJD); advogado.
JOSÉ ROSSINI CAMPOS DO COUTO CORRÊA
Doutor em Teologia ThD pela Faculdade de Teologia Antioquia Internacional, em
Theology pela Antioch Christian University, em Sociologia pela Universidade de Brasília
(UnB); doutor e pós-douto em Direito Internacional pela American World University; Livre
Docente em Direito pela Emill Brunner World University (2015); ambassador da American
Diplomatic Mission of International Relations Intergovernmental Organization; mestre
em Ciência da Religião pelo Instituto de Ensino Superior Evangélico; mestre em Direito
Canônico pela Faculdade Teológica Panamericana; mestre em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); bacharel em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bacharel em Direito pela Universidade
Católica de Pernambuco (UNICAP); professor do Centro Universitário Instituto de
Educação Superior de Brasília (IESB); membro correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico do Maranhão-IHGM e da Academia Maranhense de Letras Jurídicas-AMLJ;
pertence à Associação Nacional de Escritores-ANE e é membro titular da Academia
Brasiliense de Letras-ABrL; membro Titular da Comissão Especial de Educação, do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil-CFOAB
Resumo
O presente artigo busca retomar a perspectiva da crítica da forma jurídica empregando a
dialética materialista marxiana à expressão do direito na sociedade burguesa e, dessa
maneira, analisando as medidas em que ele se relaciona estruturalmente com as condições
reais de exploração estabelecidas entre os homens proprietários de mercadorias. Para
tanto, a partir do emprego do magistério de Evguiéni B. Pachukanis como principal
expoente do marxismo jurídico e das formulações advindas da sua obra fundamental, A
teoria geral do direito e marxismo (1919), articulada com a base fundamental do
pensamento marxiano acerca do trabalho assalariado, lançado em Salário, preço e lucro
(1865) e Trabalho assalariado e capital (1849), buscar-se-á retirar o véu do cinismo da
razão jurídica burguesa para, analisando o estreito vínculo entre a forma-mercadoria e a
forma jurídica, recuperar a crítica radical do direito e demonstrar a sua natureza
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irremediavelmente burguesa, servil aos modelos de exploração do homem pelo próprio
homem e condescendente com o domínio da classe proprietária dos meios de produção
por sobre a classe daqueles que nada possuem.
Palavras-Chave: Mercadoria. Trabalho assalariado. Marx. Pachukanis.
THE CYNICAL LENSES OF WAGE AND THE JURIDICAL FORM CHAINS
Abstract
The present article seeks to take up the perspective of the critique of the legal form by
applying the Marxian materialist dialectic to bourgeois-law society and, consequently,
investigating the measures in which it is structurally related to the actual conditions of
exploitation established among good-owner men. To this purpose, by utilizing the guide
of Evguiéni B. Pachukanis as the main exponent of legal Marxism and the formulations
obtained from his fundamental work, The General Theory of Law and Marxism (1919),
articulated with the fundamental basis of Marxian theory about the wage labor, launched
in Wage, Price and Profit (1865) and Wage Labor and Capital (1849), will seek, by analyzing
the close link between commodity form and legal form, to remove the veil of cynicism
from bourgeois legal reason to reclaim the radical critique of law and prove its fatally
bourgeois nature, servile to the men's exploitation of men and condescending to the
power of the production means owner class over the no-good owners.
Keywords: Law. Commodity. Labour. Pachukanis. Marx.
Introdução
“A história é um paradoxo andante. A contradição move-lhe as pernas.
Talvez por isso os seus silêncios digam mais que as suas palavras e muitas vezes as suas palavras
revelam, mentindo, a verdade. ”
Eduardo Galeano
Como se apresenta a forma jurídica na sociedade burguesa, e em que
medidas ela se relaciona estruturalmente com as condições reais de exploração
estabelecidas entre os proprietários de mercadorias? A resposta ao problema ora
identificado deve ser encontrada, em nosso ver, na trilha do caminho filosófico
desmistificador capaz de elucidar as controvérsias em torno da base material da
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forma jurídica e da sua relação com a infraestrutura das relações econômicas
inerentes às relações de produção no capitalismo.
Nesse sentido, o método de Marx revela, com relativa facilidade, a
viabilidade de se explorar as possibilidades de uma crítica às formas de dominação
de classe que se realizam por meio do direito e da forma jurídica, particularmente
no que diz respeito à representação jurídica da política consagrada pelo Estado
burguês. Vale dizer, é exatamente nesse sentido que se direcionam as páginas
vindouras, sem, contudo, nenhuma pretensão de esgotar o debate, mas, ao
contrário, de incita-lo a partir da identificação de elementos que afastem a razão
cínica do direito enquanto sistema autônomo natural, perene e imutável, revelando
a sua constituição pela forma-mercadoria assim apreendida em seus momentos
constitutivos mais importantes: a troca e a circulação.
Para tanto, a leitura propõe-se a revisitar obras fundamentais do marxismo
jurídico, habilitando-se a enfrentar a problemática em torno do sujeito de direitos
e do trabalho (ou da força de trabalho) como mercadoria, trazendo à superfície a
reflexão em torno dos problemas da relação salário-capital-trabalho, dentre as
quais destacam- se as formulações advindas da obra fundamental de Evguiéni B.
Pachukanis, A teoria geral do direito e marxismo (1919), e sua íntima relação com
os escritos marxianos publicados em Salário, preço e lucro (1865) e Trabalho
assalariado e capital (1849).
Nessa toada, já na primeira seção apresentaremos ao leitor o modelo da
dialética dos olhos, direcionada a identificar a crueza dos fatos ensejadores do
fazer, contrapondo-os ao saber coletivo e individual, assim revelando o cinismo da
razão consciente. O olhar kynikos, resgatado da filosofia clássica de Diógenes, se
apresenta como acessório essencial em toda a caminhada crítica, pela sua
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capacidade de enxergar através das ilusões e formatar o saber social a partir da
superação da falsa consciência ideológica.
Porém, o mero saber social empoderado pelo olhar consciente da razão
cínica não é suficiente para retirar as máscaras das estruturas burguesas de
dominação. Saber é poder, porém, tal poder, ainda que permita a identificação de
determinadas máscaras ideológicas, não necessariamente se converte em ações
concretas direcionadas à destruição de tais máscaras. Como se opera o
aprisionamento prático das massas a partir da sua representação jurídica é o que
efetivamente será debatido aqui.
Assim, na segunda seção, afasta-se o leitor da reflexão acerca do conteúdo
material do direito para leva-lo a analisar a forma jurídica em si, a sua genealogia
e a natureza da determinação suportada pelo direito enquanto chave da explicação
histórica do modo de pensamento conceitual abstrato, da divisão entre o trabalho
intelectual e manual e das suas relações de equivalência juridicamente admitidas.
Na terceira seção, apresenta-se o pensamento de Pachukanis como
formulação teórica fundamental ao estabelecimento de uma teoria capaz de
criticar a forma jurídica a partir de uma análise marxista do direito enquanto forma
histórica determinada, assim consagrando a natureza do direito como a correlação
jurídica destinada a conservar as relações de equivalência típicas de um modelo
produtivo fundamentado em processos de troca e de circulação de mercadorias.
O modelo estrutural do pensamento jurídico formulado por Pachukanis se
apresenta como o mais adequado a revelar a transposição do fetichismo da
mercadoria ao fetichismo normativo destinado a repartir valores abstratos
universalmente admitidos e preservados por um Estado impessoal.
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Tal modelo é complementado, na quarta seção, pela concepção do átomo
da forma jurídica - o sujeito de direito -, e a sua inserção no conceito de liberdade
mercantil burguesa, limitada a sua inserção na esfera de circulação como
proprietário de si mesmo, capaz de dispor da sua força de trabalho (e do seu tempo
de vida) como mercadoria, adjudicando-a a terceiros por intermédio de uma
abstração da forma-mercadoria mediatizada pelo direito, naquela que é a
manifestação cínico-concreta mais elementar da forma-mercadoria juridicamente
mediatizada: o trabalho assalariado enquanto elemento fundamental do
metabolismo socioeconômico da produção capitalista.
1 Os olhos sob as lentes do cinismo e a falsificação da consciência
Os olhos possuem um estatuto cognitivo privilegiado em relação aos
demais órgãos do corpo humano: podem ver o mundo, mas, também, podem ver-
se vendo. Não por acaso, Peter Sloterdijk (2012) afirma serem os olhos os modelos
orgânicos da filosofia. Nesse contexto, o pensamento filosófico (ou ao menos parte
dele) constitui uma dialética dos olhos (SLOTERDIJK, 2012) conformada no sentido
de que “nos olhos se acha localizado uma parte de nossa estrutura de pensamento,
particularmente a dialética da direita e da esquerda, do masculino e do feminino,
do reto e do oblíquo” (SLOTERDIJK, 2012, p. 207).
O modelo da filosofia dos olhos adotado nestas linhas exige da crítica e do
crítico o olhar sobre superfícies reflexivas bem definidas, através das quais “a visão
da visão se faz visível” (SLOTERDIJK, 2012, p. 206). Nesse sentido, tomando
emprestada de Diógenes de Sínope a alegoria do olhar kynikos, capaz de observar
a sociedade sem máscaras, e orientando a visão crítica partir da nudez e da crueza
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dos fatos (sejam estes belos ou feios), busca-se afastar as máscaras da presunção
da crítica idealista e, assim, aproximar a presente reflexão da verdade em relação
às realidades concretas sob análise.
Porém, o problema abordado não se resolve meramente a partir do
afastamento das máscaras idealistas, mas passa, primordialmente, pela
identificação de tais máscaras e pelo isolamento das lentes do cinismo que
insistem em pender sobre os olhos do crítico, falseando-lhe a consciência e
tornando a sua crítica “mais ingênua do que a consciência que ela quis
desmascarar” (SLOTERDIJK, 2012, p. 31). Vale salientar, a fórmula de abstração
crítica e observação científica pelo olhar kynikos, o olhar filosófico em direção à
nudez (aqui compreendida como essência), em muito nos parece semelhante ao
paradoxo do sonho de Freud1 - inclusive em sua desmistificação em duas etapas2
- segundo o qual “no fundo, os sonhos nada mais são do que uma forma particular
de pensamento, possibilitada pelas condições do estado de sono. É o trabalho do
sonho que cria essa forma, e somente ele é a essência do sonho – a explicação de
sua natureza peculiar” (FREUD apud ZIZEK, 1996, p. 300).
1 Zizek explica o paradoxo freudiano do sonho da seguinte forma: o desejo in consciente, aquilo que
supostamente constitui o seu núcleo mais oculto, articula-se precisamente através do trabalho de dissimulação
do núcleo do sonho, de seu pensamento latente, através do trabalho de disfarçar esse conteúdo-núcleo por
meio de sua tradução no rébus do sonho. (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 299.) 2 “Primeiro, devemos eliminar a aparência de que um sonho nada mais é que uma simples confusão sem
sentido, um distúrbio causado por processos fisiológicos e, como tal, nada tem a ver com a significação. Em
outras palavras, devemos dar um passo crucial em direção a uma abordagem hermenêutica e conceber o
sonho como um fenômeno dotado de sentido, como algo que transmite uma mensagem recalcada, que tem
que ser descoberta por um método interpretativo; Depois, temos de nos livrar do fascínio desse núcleo de
significação, do ‘sentido oculto’ do sonho - isto é, do conteúdo escondido por trás da forma de um sonho - e
centrar nossa atenção nessa forma ela mesma, no trabalho do sonho a que ‘os pensamentos oníricos latentes’
foram submetidos.” (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 300.)
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Caracterizando as lentes do cinismo, Sloterdijk (2012) ensina que o cultivo
do cinismo moderno dá-se a partir do estabelecimento da ponte entre o saber de
cima e o saber de baixo, pela sociedade civil burguesa, ambicionando erigir a sua
imagem de mundo como realismo e as suas verdades como naturais, refletidas em
esferas públicas universalmente aceitas e auto-evidentes. Em Sloterdijk (2012) a
razão cínica se apresenta como a falsa consciência esclarecida, reproduzida,
sobretudo por seus representantes principais (ocupantes de postos-chave difusos
por toda a sociedade burguesa - diretores, parlamentos, universidades, redações,
mídia, bancos, etc.) a partir de um posicionamento conscientemente falso diante
de uma determinada objetividade estrutural.
Aqui a dialética dos olhos é novamente consagrada, uma vez que este
cinismo dos senhores, referido inicialmente por Sloterdijk (2012) reproduz-se com
o sentido de cinismo da classe dos senhores3, assumindo o papel de uma lente
posta sobre os olhos dos poderes, capaz de agir como superfície reflexiva
propositalmente rachada. Isso porque tais lentes, ainda que admitam o
esclarecimento da consciência crítica e, ato contínuo, permitam ao crítico
reconhecer, em seu saber-poder, que a ilusão projetada sob seus olhos (de que
por trás das leis que garantem o exercício do poder pela burguesia escondem-se
fatores materiais não-perenes, não-naturais e, muito menos, eternos ou universais
- mas que se manifestam como tal), não afasta dessa ilusão o seu fazer-poder.
3 O que nos permite introduzir ao conceito uma tintura da dialética-materialista, conforme veremos adiante.
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Sloterdijk vai ainda mais além na sua metáfora dos olhos, afirmando que a
manifestação reflexiva do cinismo dos senhores frequentemente leva-os ao
estrabismo:
Os olhos dos cínicos autênticos se traem por um brilho argênteo, uma
sutil convergência ou uma sutil divergência. (...) Entre os intelectuais,
acha-se com frequência uma estranha apatia nos olhos. Ela provém, em
boa parte, do fato de, nos estudos, os olhos serem constantemente
obrigados a ler coisas que jamais aceitariam se dependesse deles. Devem
servir como simples instrumentos de leitura, e não é de se admirar que,
habituados às linhas negras, o olhar desses homens sob ré o mundo se
distancie da realidade. (...) Esse olhar fixa coisas nas quais ele não penetra
e cuja existência verdadeiramente não o satisfaz. Há nesses olhos uma
expressão semelhante ao falso sorriso. O olhar cínico faz as coisas
saberem que, por meio dele, elas não existem realmente, senão como
fenômeno e como informação. (...) Ele as apreende, as registra, e apenas
pensa na conservação de si mesmo (SLOTERDIJK, 2012, p. 207-208).
A fórmula da razão cínica proposta por Sloterdijk pode ser explicada,
portanto, pela seguinte proposição: eles (os críticos em sua falsa consciência
esclarecida) sabem que, em sua atividade, estão seguindo uma ilusão, mas fazem-
na assim mesmo.
É verdade que, em sua interpretação mais ambiciosa, a razão cínica anseia
por superar a crítica marxiana da ideologia enquanto falsa consciência. Inclusive, é
com esse objetivo que Sloterdijk tenta caracterizar a ideologia como “um
desconhecimento da realidade social que faz parte dessa mesma realidade” (ZIZEK
In ZIZEK (Org.), 1996. p. 312), e que, por isso mesmo, estaria superada na medida
em que o próprio desconhecimento já teria sido superado no cinismo.
Nesse ponto, cabe salientar que Marx, de fato, pensa a ideologia a partir de
uma espécie de ingenuidade constitutiva básica em relação à realidade social. As
lentes da ideologia em Marx distorcem a representação do real e falseiam a
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consciência apreendida a partir da experiência concreta. O método marxiano
clássico (e posteriormente todas as críticas da ideologia) tem por objetivo,
portanto, elevar a consciência ideológica ingênua “a um ponto em que ela possa
reconhecer suas próprias condições efetivas, a realidade social que ela distorce e,
mediante esse ato mesmo, dissolver-se” (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 312). É
exatamente esse o ponto atacado pela crítica de Sloterdijk, na medida em que esta
dissolve a ingenuidade da consciência ideológica em um caldo de perversão da
consciência, de moralidade posta a serviço do imoral em uma espécie de “negação
da negação da ideologia oficial” (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 313).
Segundo Zizek, o cinismo “reconhece, leva em conta o interesse particular
que está por trás da universalidade ideológica, a distância que há entre a máscara
ideológica e a realidade, mas ainda encontra razões para conservar a máscara”
(ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 313). Nesse cinismo da razão, a atividade torna-se
transcendente ao seu próprio autor, e a alegada universalização da liberdade, que
parece ter sido conquistada pelo homem, se transforma em ficção, mera aparência
refletida no espelho das leis infraestruturais, uma verdadeira histeria de conversão
normativa, idealista e ideológica, que, simultaneamente, regula e aprisiona a
sociedade burguesa, similar à teia cujos fios representam a liberdade fictícia que,
no pensamento espinosista, uma pedra lançada teria se possuísse consciência
(MOREAU, 1982).
Porém, e eis um ponto fundamental, a crítica da razão cínica, ainda que
consiga justificar a conservação das máscaras ideológicas sob uma perspectiva
consciente-teimosa de nítida inspiração no saber é poder baconiano - em que as
lentes do cinismo são deliberadamente empregadas pelos agentes da
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racionalidade para justificar moralmente uma determinada conduta social4 - não
é, por si só, habilitada a lançar as relações sociais em um círculo de mera
instrumentalidade pós-ideológica, vez que “deixa intacto o nível fundamental da
fantasia ideológica, o nível em que a ideologia estrutura a própria realidade social.”
(ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 314).
Destarte, a crítica da razão cínica em torno da alegada superação da
ideologia não resiste à avaliação em duas etapas de Freud e Marx, vez que explica
apenas parcialmente - no plano do saber - a problemática da estruturação da
consciência suscitada por Marx, deixando intacto o plano do fazer, em que impera
a fantasia estrutural da ideologia como fundamento da realidade social e do fetiche
prático, para onde o cinismo da razão empurra a atividade real cotidiana a
espontânea dos indivíduos e, mesmo, das classes em luta.
A esse respeito, apresenta-se tal distinção pela observação o segredo da
forma-mercadoria a partir da articulação analítica em duas etapas formulada por
Marx5, sobretudo quando tal análise é centrada na expressão jurídica da forma-
mercadoria e sua expressão material da fantasia ideológica: o trabalho assalariado.
2 O cinismo da forma jurídica e a circulação de mercadorias
A forma-mercadoria em Marx deve ser articulada em duas etapas:
4 Em Sloterdijk “o senhor cínico retira a máscara, sorri para seu frágil adversário – e o oprime.
C’est l avie. Nobreza obriga. É preciso haver ordem. A pressão da realidade ultrapassa
frequentemente a compreensão dos afetados, não é verdade? Pressão do poder, pressão da
realidade! O poder hegemônico, em seu cinismo, revela um pouco dos seus segredos, pratica um
autoesclarecimento e fala de suas práticas secretas. O cinismo dos senhores é uma insolência que
trocou de lado.” (SLOTERDIJK, 2012. p. 166) 5 Que em muito se assemelha à articulação da desmistificação do paradoxo do sonho freudiana, já referida.
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Primeiro, devemos eliminar a aparência de que o valor de uma
mercadoria depende do puro acaso – de uma interação acidental entre a
oferta e a procura, por exemplo. Devemos dar o passo crucial de
conceber o “sentido” oculto por trás da forma-mercadoria, a significação
“expressa” por essa forma; devemos penetrar no “segredo” do valor das
mercadorias.
(...)
Contudo, como assinala Marx, existe um certo “ainda”: o
desmascaramento do segredo não basta. A economia política burguesa
clássica já descobrira o “segredo” da forma-mercadoria; sua limitação
consiste em que ela não é capaz de se desligar desse fascínio do segredo
oculto por trás da forma-mercadoria – sua atenção é cativada pelo
trabalho como a verdadeira fonte da riqueza. Em outras palavras, a
economia política clássica interessa-se apenas pelos conteúdos
escondidos por trás da forma-mercadoria, razão por que não consegue
explicar o verdadeiro segredo, não o segredo por trás da forma, mas o
segredo da própria forma. A despeito de sua explicação bastante correta
do “segredo da magnitude do valor”, a mercadoria permanece, para a
economia política clássica, como uma coisa misteriosa e enigmática – tal
como sucede com o sonho: mesmo depois de havermos explicado seu
sentido oculto, seu pensamento latente, o sonho continua a ser um
fenômeno enigmático; o que ainda não está explicado é simplesmente
sua forma, o processo mediante o qual o sentido oculto disfarçou-se
nessa forma (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 300-301).
Tal modelo analítico é fundamentalmente caracterizado pelo afastamento
do fascínio fetichista do “conteúdo supostamente oculto pela forma” (ZIZEK In
ZIZEK (Org.), 1996. p. 297), de modo que a análise recai não sobre o conteúdo
oculto, mas sobre segredo da forma em si. 6 O passo crucial que oferece a
6 Zizek é quem melhor relaciona a análise da forma em Freud e Marx ao dissecar a noção de sintoma marxista
revelada por Lacan: “O entendimento teórico da forma dos sonhos não consiste em desvendar, a partir do
conteúdo manifesto, seu “cerne oculto”, os pensamentos latentes do sonho; consiste na resposta à pergunta:
por que os pensamentos latentes do sonho assumiram essa forma, por que foram transpostos para a forma de
um sonho? O mesmo acontece com as mercadorias: o verdadeiro problema não é penetrar no “cerne oculto”
da mercadoria – na determinação de seu valor pela quantidade de trabalho consumida em sua produção -,
mas explicar por que o trabalho assumiu a forma do valor de uma mercadoria, por que ele só consegue afirmar
seu caráter social na forma-mercadoria de seu produto.” (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 297).
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possibilidade de olhar através da fantasia ideológica é direcionado, nessa esteira,
à gênese da forma. A análise formal da mercadoria fornece não apenas o ponto
fundamental da crítica da economia política, mas também a chave da explicação
histórica do modo de pensamento conceitual abstrato e da divisão entre o trabalho
intelectual e manual (SOHN-RETHEL, 1978), e todas as relações de equivalência daí
derivadas, inclusive o direito.
Ainda segundo Zizek, e daí a relevância da análise genealógica da forma-
jurídica em Marx:
É como se a dialética da forma-mercadoria nos apresentasse uma versão
pura – destilada, por assim dizer – de um mecanismo que nos oferece
uma chave para a compreensão teórica de fenômenos que, à primeira
vista, nada têm a ver com o campo da economia política (direito, religião,
etc.) (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 301).
É nessa perspectiva que Evguiéni B. Pachukanis, ao empregar o método
desenvolvido por Marx em O capital, habilita-se a apontar as “razões pelas quais
uma relação social determinada se configura, em determinadas condições, na
forma específica do direito” (NAVES, 2008, p. 11). Pachukanis é bastante preciso
em sua intenção de estabelecer uma teoria geral do direito a partir da análise
marxista da forma jurídica enquanto forma histórica determinada, assim
ultrapassando o mero conteúdo material da regulamentação.
Tal contexto é claro na seguinte passagem de sua principal obra, Teoria
geral do direito e marxismo:
É preciso notar que, em geral, os autores marxistas, ao falar dos conceitos
jurídicos, tem em vista, essencialmente, o conteúdo concreto da
regulamentação jurídica inerente a uma ou outra época, ou seja, aquilo
que as pessoas consideram o direito em dado estágio de
desenvolvimento. (...) Entretanto, não resta dúvida de que a teoria
marxista deve não apenas examinar o conteúdo material da
regulamentação jurídica nas diferentes épocas, mas também oferecer
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uma interpretação materialista da própria regulamentação jurídica como
uma forma histórica determinada (PACHUKANIS, 2017, p. 72).
A genealogia da forma jurídica encontra em Pachukanis a sua
correlação com as categorias formadoras da totalidade concreta marxiana,
desenvolvendo-se como um sistema específico de relações que sujeita os
indivíduos não por suas próprias escolhas, mas por força de um conjunto de
relações sociais de produção, pois “o homem se transforma em sujeito de direito
por força daquela mesma necessidade em virtude da qual o produto natural se
transforma em mercadoria dotada da enigmática qualidade do valor”
(PACHUKANIS, 2017, p. 83).
Enquanto Marx revelou, nas suas glosas marginais ao programa de
Gotha, o vínculo interno entre a forma do direito e a forma da mercadoria,
identificando a condição fundamental da existência da forma jurídica na igualação
dos dispêndios do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes (MARX,
2012), Pachukanis, na sua teoria geral do direito, aprofundou a perspectiva
marxiana ao preconizar
uma sociedade que, devido às condições de suas forças produtivas, é
forçada a conservar a relação de equivalência entre o trabalho gasto e a
remuneração, que ainda remotamente lembra a troca entre valores e
mercadorias, será forçada a conservar também a forma do direito.
(PACHUKANIS, 2017, p. 80).
Nesse ponto, é interessante destacar a relativa aproximação da forma
jurídica em Pachukanis com a definição instrumental de Piotr Ivanovich Stuchka,
segundo a qual “o Direito é um sistema (ou uma ordem) de relações sociais, que
corresponde aos interesses da classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo
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seu poder organizado (o Estado)” (STUCHKA, 2001, p. 76). O Direito é, assim,
concebido sistematicamente como ordem de fenômenos sociais e políticos
organizados em torno de relações econômicas juridicamente contextualizadas a
partir de uma forma concreta (a relação econômica propriamente dita) e de outras
duas formas abstratas (a proclamação legal e a ideologia) (STUCHCKA, 1988).
Destarte, a manifestação dialética do materialismo-histórico é revelada na
medida em que a primazia da relação econômica frente às demais formas abstratas
de manifestação do Direito é expressa pela clássica fórmula marxiana da base-
superestrutura (STUCHKA, 1988) e em suas relações reciprocamente estruturadas
em torno da economia social vigente. É exatamente neste recorte da teoria da
forma jurídica marxista que se solidifica a sua relação com o olhar kynikos: a crítica
burguesa vê e aborda somente o reflexo de uma existência material representada
pelas relações sociais de troca e pela circulação de mercadorias juridicamente
contextualizadas.
O ponto central, aqui, é o fetichismo prático - a fantasia ideológica da
universalização de uma prática materialmente condicionada - bem apreendido a
partir da crítica marxiana à lógica do conceito de Hegel, consistente na inversão
especulativa entre o universal e o particular, referenciada já no primeiro capítulo
da primeira edição de O Capital nos seguintes termos:
A inversão mediante a qual o que é sensível e concreto conta apenas
como uma forma fenomênica do que é abstrato e universal, ao contrário
do verdadeiro estado de coisas, em que o abstrato e o universal
importam apenas como uma propriedade do concreto, essa inversão é
característica da expressão do valor, e é essa inversão que, ao mesmo
tempo, torna tão difícil compreender essa expressão. Se digo que o
direito romano e o direito germânico são ambos leis, isso é uma coisa
evidente. Mas se, ao contrário, digo “A lei, essa coisa abstrata, realiza-se
no direito romano e no direito germânico, isto é, nessas leis concretas”, a
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interconexão torna-se mística. (MARX apud ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996.
p. 315).
Interagindo com Marx e Pachukanis (ainda que jamais referencie o
segundo), Zizek desnuda a ilusão da ideologia burguesa cotidiana - da qual a
forma jurídica é uma constante - ao analisar o indivíduo burguês-médio, que age
como se as coisas particulares (especificamente as mercadorias) fossem apenas um
punhado de personificações do valor universal:
A pergunta a fazer é, mais uma vez: onde está a ilusão? Não devemos
esquecer que o indivíduo burguês, em sua ideologia cotidiana,
definitivamente não é um hegeliano especulativo: ele não concebe o
conteúdo particular como resultante de um movimento autônomo da
Idéia universal. Ao contrário, é um bom nominalista anglo-saxão, que
acha que o Universal é uma propriedade do Particular – isto é, das coisas
que realmente existem. O valor em si não existe, há apenas coisas isoladas
que, entre outras propriedades, têm valor. (...) Reformulando a frase de
Marx: Ele sabe muito bem que o direito romano e o direito germânico
são apenas dois tipos de lei, mas, em sua prática, age como se a Lei em
si, essa entidade abstrata, se realizasse no direito romano e no direito
germânico (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 315).
As passagens acima selecionadas revelam a profunda relação entre
as formas do Direito, o modo de produção capitalista e o Estado, “precisamente
porque só na sociedade burguesa a forma jurídica alcança o seu mais alto grau de
abstração” (NAVES, 2008, p. 50). A confirmação teórica dessa observação vem nas
passagens de O Estado e a Revolução, de Lenin, no ponto em que o líder
bolchevique enuncia: “o direito burguês, no que concerne à repartição dos bens
de consumo, pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é
nada sem um aparelho capaz de impor a observação de suas normas” (LENIN,
2017, p. 187-188).
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Não obstante, é Pachukanis quem, confirmando a sua filiação marxista-
leninista, disseca a relação entre o desenvolvimento da forma jurídica e o
desenvolvimento da sociedade burguesa 7 , sintetizando-o no fenômeno da
circulação:
Assim, o princípio da subjetividade jurídica e os alicerces de sua
esquemática, que para a jurisprudência burguesa representa o esquema
da vontade humana a priori, decorre com absoluta inevitabilidade das
condições da economia mercantil-monetária. A compreensão
estritamente empírica e técnica da ligação entre esses dois momentos é
expressa na reflexão de que o desenvolvimento da mercadoria demanda
a garantia de propriedade, de bons tribunais, de boa polícia etc. Contudo,
quando mais profundamente se examina a coisa, mais fica claro que não
apenas este ou aquele dispositivo técnico do aparato estatal cresce no
terreno do mercado, mas que entre as próprias categorias da economia
mercantil-monetária e a forma jurídica existe uma ligação interna
indissociável. Em uma sociedade em que existe o dinheiro, em que,
portanto, o trabalho privado isolado torna-se social apenas por
intermédio de um equivalente universal, já se colocam todas as condições
para a forma jurídica e suas contradições: entre o subjetivo e o objetivo,
o privado e o público (PACHUKANIS, 2017, p. 63).
Destaque-se que é precisamente na sua capacidade de identificar
satisfatoriamente como as relações sociais infraestruturais se transformam em
relações jurídicas que Pachukanis supera Stutchka. Segundo aquele jusfilósofo
soviético, a forma jurídica pressupõe, necessariamente, uma sociedade na qual
impera o princípio da divisão do trabalho, ou seja, “uma sociedade na qual os
trabalhos privados só se tornam trabalho social mediante a intervenção de um
7 Segundo o teórico soviético, “o desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos fundamentais
não apenas nos oferece a forma do direito em seu aspecto mais exposto e dissecado, mas, ainda,
reflete o processo de desenvolvimento histórico real, que não é outra coisa senão o processo de
desenvolvimento da sociedade burguesa” (PACHUKANIS, 2017,p. 76).
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equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o circuito das trocas exige a
mediação jurídica (...)” (NAVES, 2008, p. 57).
Aqui repousa, talvez, a maior das controvérsias em torno da natureza teórica
do direito para o marxismo. O próprio Marx, em sua Crítica ao Programa de Gotha,
discorre sobre as distorções do igual direito e do princípio que regula a troca de
mercadorias enquanto troca de equivalentes, veja-se:
A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma forma,
agora ele a obtém de volta em outra forma. Aqui impera, é evidente, o
mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que
esta é troca de equivalentes. Conteúdo e forma são alterados, porque,
sob as novas condições, ninguém pode dar nada além de seu trabalho e,
por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios
individuais de consumo. No entanto, no que diz respeito à distribuição
desses meios entre os produtores individuais, vale o mesmo princípio que
rege a troca entre mercadorias equivalentes, segundo o qual uma
quantidade igual de trabalho em uma forma é trocada por uma
quantidade igual de trabalho em outra forma. Por isso, aqui, o igual
direito é ainda, de acordo com seu princípio, o direito burguês, embora
o princípio e prática deixem de se engalfinhar, enquanto na troca de
mercadorias a troca de equivalentes existe apenas em média, não para o
caso individual. Apesar desse progresso, esse igual direito continua
marcado por uma limitação burguesa. O direito dos produtores é
proporcional a seus fornecimentos de trabalho; a igualdade consiste,
aqui, em medir de acordo com um padrão igual de medida: o trabalho.
Mas um trabalhador supera o outro física ou mentalmente e fornece,
portanto, mais trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar por mais
tempo; e o trabalho, para servir de medida, ou tem de ser determinado
de acordo com sua extensão ou sua intensidade, ou deixa de ser padrão
de medida. Esse igual direito é direito desigual para trabalho desigual. Ele
não reconhece nenhuma distinção de classe, pois cada indivíduo é
apenas trabalhador tanto quanto o outro; mas reconhece tacitamente a
desigualdade dos talentos individuais com privilégios naturais e, por
conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores. Segundo seu
conteúdo, portanto, ele é, como todo direito um direito da desigualdade.
O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão
igual de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam
indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos
segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo
ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado,
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por exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas
como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros
aspectos são desconsiderados. Além disso: um trabalhador é casado, o
outro não; um tem mais filhos do que o outro etc. etc. Pelo mesmo
trabalho e, assim, com a mesma participação no fundo social de
consumo, um recebe, de fato, mais do que o outro, um é mais rico do
que o outro etc. A fim de evitar todas essas distorções, o direito teria de
ser não igual, mas antes desigual. Mas essas distorções são inevitáveis na
primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um
longo trabalho de parto, da sociedade capitalista (MARX, 2012. p. 30-31).
É, afinal, a relação de equivalência que revela a forma específica do direito
e suas distorções intrinsecamente burguesas, nos moldes do que Marx referia ao
afirmar que “o direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o
desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade” (MARX, 2012, p.
31).
São as considerações de Pachukanis que escancaram os elementos
coercitivos da forma-mercadoria cinicamente ocultos por detrás de uma forma-
jurídica mediatizada pela alegada vontade geral abstrata do Estado8:
A máquina do Estado se realiza de fato como ‘vontade geral’ impessoal,
como ‘poder de direito’ etc., na medida em que a sociedade representa
um mercado. No mercado, cada comprador e cada vendedor é um sujeito
de direito par excellence: A partir do momento que entram em cena as
categorias de valor e valor de troca, a vontade autônoma das pessoas
que participam da troca passa a ser o pressuposto. (...) A coerção como
prescrição de uma pessoa sobre outra, sustentada pela força, contradiz a
premissa fundamental da relação entre os possuidores de mercadorias e
8 Evidentemente que a representação jurídica do Estado Burguês em Pachukanis acompanha aquela expressa em Marx, fundando-se na separação entre o Estado (esfera pública) e a sociedade civil (esfera privada), advinda da distinção jurídica entre o público e o privado que habilita a exclusão da órbita estatal de toda a representação de classe. A melhor análise sobre o corte burguês entre sociedade/Estado e a separação homem/cidadão, além do óbvio Sobre a questão judaica, de Marx, é aquela formulada por Michel Miaille em seu L’État du droit (ano).
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dentro dos limites do ato de troca, a função de coerção não pode
aparecer como função social, já que não é abstrata e impessoal. (...) É por
isso que a coerção não pode aparecer aqui em sua forma não mascarada,
como um simples ato de conveniência, ela deve aparecer como coerção
proveniente de uma pessoa abstrata e geral, como uma coerção que
representa não os interesses do indivíduo da qual provém – já que na
sociedade mercantil toda pessoa é egoísta -, mas os interesses de todos
os participantes das relações jurídicas. O poder de uma pessoa sobre
outra é exercido como poder do próprio direito, ou seja, como o poder
de uma norma objetiva e imparcial (PACHUKANIS, 2017, p. 146).
Isso porque a forma jurídica é a forma particular que as relações sociais
adquirem no capitalismo, o que demonstra a plausibilidade da tese pachukaniana
da especificidade burguesa do direito na medida em que o princípio da
equivalência transparece a constituição da forma jurídica sob o modelo da fábrica,
o que somente se revela possível em uma sociedade na qual o trabalho humano
medido pelo tempo – o funcionamento social sob o controle do cronômetro - é a
forma social dominante (NAVES, 2008). É o direito como mediação entre sujeitos
que trocam inseridos nas relações de produção capitalistas que põe o capitalismo
industrial, a declaração dos direitos do homem e do cidadão, a economia política
ricardiana e o sistema de prisão com prazo de encarceramento em um mesmo
compasso histórico, aprisionados sob uma mesma forma jurídica (PACHUKANIS,
2017).
Curiosamente, é Max Weber quem ilustra com mais acuidade o princípio
fundamental do desenvolvimento do fenômeno jurídico enquanto correspondência
estrutural entre a objetivação das atividades humanas e as necessidades do moderno
Estado capitalista:
O Estado moderno, de um ponto de vista sociológico, é uma ‘empresa’
tal como uma fábrica; é justamente o que tem de específico no âmbito
histórico. E as relações de dominação na empresa também estão, nos
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dois casos, submetidas a condições da mesma espécie. Do mesmo modo
como a relativa autonomia do artesão ou industrial domiciliar, do
camponês proprietário, do comendatário, do cavaleiro e do vassalo
baseava-se no fato de que eram proprietários dos instrumentos das
reservas, dos meios financeiros, das armas, com o auxílio dos quais
realizavam sua função econômica, política e militar, e da qual viviam
enquanto a cumpriam, a dependência hierárquica do operário, do
balconista, do empregado técnico, do assistente, de um instituto
universitário e do funcionário do Estado e de um soldado tem o mesmo
fundamento, a saber: os instrumentos, as reservas e os meios financeiros,
indispensáveis tanto a empresa quanto à vida econômica, estão nas mãos
do empresário, num caso, e do chefe político, no outro.
(...)
A empresa capitalista moderna baseia-se internamente sobretudo no
cálculo. Para existir, ela precisa de uma justiça e de uma administração,
cujo funcionamento também possa ser, pelo menos em princípio,
calculado racionalmente segundo as regras gerais sólidas, tal como se
calcula o trabalho previsível efetuado por uma máquina. Sua capacidade
de tolerar (...) um julgamento ministrado pelo juiz conforme seu senso de
justiça nos casos particulares ou conforme outros meios e princípios
irracionais de criação jurídica (...) é tão fraca quanto a de suportar uma
administração patriarcal que procede a seu bel-prazer e por misericórdia
e, quanto ao resto, conforme uma tradição inviolavelmente sagrada mas
irracional (...). Pois essas formas modernas de empresa, com seu capital
fixo e seus cálculos exatos, são muito sensíveis às irracionalidades do
direito e da administração para que se tornem possíveis. Só poderiam
surgir onde o juiz, (...) como no Estado burocrático, com suas leis
racionais, fosse mais ou menos distribuidor automático de parágrafos,
nos quais os documentos com os custos e os honorários fossem inseridos
por cima, para que ele vomite por baixo a sentença com considerações
mais ou menos sólidas, e cujo funcionamento, portanto, fosse em geral
calculável (WEBER, 2014, p. 140-143).
Nesse mesmo diapasão, Pachukanis explica o princípio da legalidade:
O infrator deve saber de antemão por que deve e o que deve: nullum
crime, nulla poena, sine lege. O que isso significa? Que seria necessário
que todo infrator em potencial fosse informado precisamente sobre os
métodos de correção que lhe serão aplicados? Não, o caso aqui é bem
mais simples e rude: ele deve conhecer com qual quantidade de sua
liberdade pagará como resultado da transação judicial. Ele deve conhecer
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antecipadamente as condições nas quais o pagamento lhe será exigido.
É esse o sentido dos códigos penais e processuais penais (PACHUKANIS,
2017, p. 179).
Aqui o ponto capital do pensamento pachukaniano: a forma jurídica
acompanha o movimento da circulação de mercadorias e a sua sujeição às esferas
das relações de produção, pois “o poder estatal confere clareza a estabilidade à
norma jurídica, mas não cria seus pressupostos9, os quais estão arraigados nas
relações materiais, ou seja, de produção.” (PACHUKANIS, 2017, p. 104).
Assiste razão também à Marcio Bilharinho Naves (2008) na medida em que
remete a organização da concepção teórica de Pachukanis à noção primária de
sujeito de direito, cuja forma reveste o homem da condição de proprietário, titular
e destinatário de todas as pretensões possíveis na cadeia de pretensões recíprocas
da sociedade capitalista, privatizando-o no controle dos objetos da circulação e
garantindo-lhe a liberdade e a igualdade necessárias para que se constitua uma
esfera geral de trocas mercantis fundadas em atos voluntários inseridos na
divisão/exploração do trabalho.
3 Trabalho e forma jurídica da mercadoria
A forma jurídica é apresentada, portanto, a partir da manifestação, por um
sujeito de direitos, de um ato voluntário realizador do valor em um determinado
processo de trocas: “é a esse ato de vontade, constitutivo da categoria de sujeito
9 A problemática do direito posto e direito pressuposto foi magistralmente abordada por Eros Grau em O Direito posto e o direito pressuposto.
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de direito, que Marx empresta importância decisiva” (NAVES, 2008, p. 65-66), uma
vez que a especificidade da regulação jurídica somente encontra a circulação
mercantil quando veiculada por uma relação de vontade economicamente
representada.
A liberdade burguesa, amparada pela sua especificidade jurídica, apresenta-
se como atributo da personalidade do homem enquanto sujeito de direito,
existente por e para a troca, na condição de elo constituinte do circuito de
transações mercantis. É a especificidade do direito burguês que garante a
possibilidade de sujeitos contratantes contraírem obrigações privadas, exigíveis e
quantificáveis em tempo de trabalho, realizando o seu valor na troca mediante a
expressão do seu respectivo ato voluntário juridicamente respaldado. Então,
apresentada a liberdade privada e mercantil como atributo da personalidade do
homem-bourgeois10, este “só é livre uma vez inserido na esfera da circulação (...)
de tal modo que a expressão mais acabada, a mais completa, a mais absoluta de
sua liberdade, é a liberdade de disposição de si mesmo como mercadoria” (NAVES,
2008, p. 67).
Demonstra-se, desta forma, a medida segundo a qual as relações sociais
existentes na troca e na participação no conjunto da produção variam
naturalmente de acordo com o caráter dos meios de produção condicionados pela
estrutura organizacional de uma determinada constituição econômica criada por
uma determinada modalidade de trabalho específico, donde se extrai a conclusão
lógica marxiana no sentido de que é somente no interior de determinados vínculos
10 Spencer ensina que “numa transação comercial, ambas as partes fazem aquilo que desejam e não dispõem
de mais liberdade do que a que reservam para os outros” (SPENCER, 2019).
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e condicionamentos que se realiza a produção (e a caracterização dos homens
enquanto sujeitos de determinada relação social):
Que é um escravo negro? Um homem da raça negra. [...] Um negro é um
negro. Só em determinadas condições é que se torna escravo. Uma
máquina de fiar algodão é uma máquina para fiar algodão. Apenas em
determinadas condições ela se torna capital. Fora dessas condições, ela é
tampouco capital como o ouro, por si próprio, é dinheiro, ou como o
açúcar é o preço do açúcar.
Na produção, os homens não agem apenas sobre a natureza, mas
também uns sobre os outros. Eles somente produzem colaborando entre
si de um modo determinado e trocando entre si as suas atividades. Para
produzirem, contraem determinadas ligações e relações mútuas, e é
somente no interior desses vínculos e relações sociais que se efetua a sua
ação sobre a natureza, isto é, que se realiza a produção. (MARX, 2010, p.
45).
Pachukanis aborda de forma lógica o sentido geral do processo histórico
ora referenciado:
Ao cair na dependência escrava das relações econômicas que se impõem,
a suas costas, na forma das leis de valor, o sujeito econômico, já na
qualidade de sujeito de direito, recebe como recompensa um raro
presente: uma vontade presumida juridicamente que faz dele um
possuidor de mercadorias tão absolutamente livre e igual perante os
demais quanto ele mesmo o é. ‘Todos devem ser livres e ninguém deve
atrapalhar a liberdade do outro (...) Cada qual possui seu próprio corpo
como livre instrumento de sua vontade’. Eis o axioma do qual partem os
teóricos do direito natural. E essa ideia de isolamento, de encerramento
em si da pessoa humana, esse ‘estado natural’ do qual emana ‘Widerstreit
der Freiheit ins Unendliche’ [a contradição infinita da liberdade], que
corresponde inteiramente ao modo de produção mercantil, no qual os
produtores são formalmente independentes uns dos outros e não estão
ligados por nada além de uma ordem jurídica artificialmente criada
(PACHUKANIS, 2017, p. 121-122).
O homem-bourgeois se apresenta como tal na medida em que se configura
como sujeito-proprietário (de si mesmo). Caso não o fosse, seria para o outro
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escravo, isto é, incapaz de vender a si próprio (e a sua força de trabalho), daí dizer-
se que “o homem como sujeito de direito é constituído para a troca” (NAVES, 2008,
p. 68) e a circulação. Nos termos de Edelman (1997, p. 195-196), “a estrutura
mesma do sujeito de direito, na dialética da vontade – produção – propriedade,
não é, definitivamente, mais que a expressão jurídica da comercialização do
homem”.
O brilho do pensamento pachukaniano reflete-se na sua capacidade de
identificar o elemento mais abstrato do tecido jurídico - o sujeito de direito, e
relacioná-lo ao elemento mais abstrato da infraestrutura das relações de produção
capitalistas – a mercadoria11. Tal relação se evidencia como adequada na medida
em que o capitalismo perpetua a generalização da mercancia, dotando a
mercadoria do atributo de gerir a vida daquele que a produz, inclusive (e
sobretudo) tendo a capacidade de transformar até mesmo a força de trabalho
humana em mercadoria especial que permite a valorização do capital (ENGELS in
MARX, 2010).
Na verdade, a abstração do sujeito de direito se dá pelo ato da troca
mercantil, porquanto seja nesse ato que o homem realiza, na prática, a liberdade
formal de autodeterminação: a relação mercantil transforma a aparente oposição
entre sujeito e objeto em uma relação jurídica singular na qual o objeto é a
11 “Por isso”, diz Pachukanis, “ao mesmo tempo que um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna o portador de um valor, o homem adquire um valor de sujeito de direito e se torna portador de direitos. (...) O vínculo social da produção apresenta-se, simultaneamente, sob duas formas absurdas: como valor de mercadoria e como capacidade do homem de ser sujeito de direito” (PACHUKANIS, 2017. p. 120-121).
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mercadoria e o sujeito é o possuidor da mercadoria, que dela dispõe nos atos de
aquisição e alienação (PACHUKANIS, 2017).
Ocorre que, em um dado estágio de desenvolvimento da forma-mercadoria
e de crescimento das forças sociais reguladoras dos atos de troca12, o sujeito de
direito perde sua tangibilidade material clássica, de modo que as relações entre as
pessoas no processo de produção adquirem uma forma duplamente fetichizada:
“o fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico” (PACHUKANIS,
2017, p. 121-124).
A operação concreta do fetiche jurídico se dá pela materialização do
contrato que regulará uma determinada parcela da circulação mercantil. Nesse
sentido, Marx, em clássica passagem extraída de O capital, aborda o duplo-fetiche
e o contrato como um dos conceitos centrais do direito burguês13:
As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se
umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões,
os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem
impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode
recorrer à violência; em outras palavras, pode toma-las à força. Para
relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus
12 “Do mesmo modo que os atos de troca da produção mercantil desenvolvida foram precedidos por atos de troca ocasionais e outras formas de troca – por exemplo, a troca de presentes -, o sujeito de direito, com a esfera de domínio jurídico que se estende ao seu redor, foi precedido historicamente pelo indivíduo armado, ou, mais frequentemente, por um grupo de pessoas, a gens, a horda, a tribo, capaz de defender por meio do conflito, do confronto, tudo aquilo que representa as condições de sua existência. Essa tênue linha histórica claramente vincula o tribunal ao duelo e o divide em um processo em que tomam parte em uma luta armada” (PACHUKANIS, 2017, p. 125). 13 “O contrato é um dos conceitos centrais do direito. Erigindo-se de maneira grandiloquente, o contrato é uma parte constitutiva da ideia de direito. No sistema lógico de conceitos jurídicos, o contrato é apenas uma variedade de transação em geral, ou seja, um dos meios de manifestação das vontades concretas com a ajuda da qual o sujeito age na esfera jurídica que o cerca. Histórica e concretamente, contudo, o conceito de ato jurídico deriva do contrato. Fora do contrato, os próprios conceitos de sujeito e de vontade no sentido jurídico existem apenas como abstração sem vida” (PACHUKANIS, 2017. p. 127).
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guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas
cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um só pode se
apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em
concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de
vontade comum a ambos. Tem, portanto, de se reconhecer mutuamente
como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o
contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva,
na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica
ou volitiva é dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas
existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria
e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias (MARX, 2017, p.
159-160).
Destarte, as relações entre as pessoas, por um lado, surgem como relações
entre coisas-mercadorias, e, por outro, como relações de vontade entre unidades
independentes e iguais umas perante as outras, dissolvidas e impessoalizadas na
potência de uma determinada organização social (de classe) abstrata que age no
espaço e no tempo com continuidade e regularidade ideais, cuja mais alta
expressão é o Estado (PACHUKANIS, 2017).
Nesse sentido, “apenas com o completo desenvolvimento das relações
burguesas o direito adquiriu um caráter abstrato”, diz Pachukanis:
Todo homem torna-se um homem em geral, todo trabalho torna-se um
trabalho social útil em geral, todo indivíduo torna-se um sujeito de direito
abstrato. Ao mesmo tempo, também a norma toma a forma lógica e
acabada de lei abstrata geral. Assim, o sujeito de direito é um possuidor
de mercadorias abstrato e ascendido aos céus. Sua vontade, entendida
no sentido jurídico, tem um fundamento real no desejo de alienar ao
adquirir e adquirir ao alienar (PACHUKANIS, 2017, p. 127).
A forma jurídica está, portanto, substancialmente adstrita à forma-
mercadoria (e consequentemente à relação de valor dos produtos do trabalho) na
medida em que demonstradas as relações sociais abstratamente determinadas
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entre os homens-sujeitos-de-direitos a partir da sua posição relativa no sistema
natural-espontâneo da divisão social do trabalho (MARX, 2017).
Abre-se aqui a perspectiva de uma visão completa (e nem por isso menos
complexa) das formas de reificação e de dominação estruturantes que, partindo
de processos dialeticamente claros (a relação e o conflito entre o trabalho e o
capital nas diversas esferas da sociedade - esfera pública, aparelhos ideológicos de
Estado, etc.), dissolvem-se em formas fetichizadas das relações humanas
fundamentadas em elementos históricos concretos. Destas formas fetichizadas,
restringiremos nossa análise ao modelo empírico do trabalho assalariado.
4 Trabalho assalariado, fetiche da classe trabalhadora
Não há outra maneira de abordar a temática do trabalho assalariado
que não partindo da sua face mais elementar: o que é o salário e como ele é
determinado. O pensamento corrente na sociedade burguesa apresenta o salário
do trabalhador como o preço do trabalho, como uma determinada quantidade de
dinheiro paga em retribuição de uma determinada quantidade de trabalho (MARX,
2017). De fato, o salário aparenta ser o valor em dinheiro com que o capitalista
compra o trabalho dos operários, mas, sabe-se, é só na aparência que isso
acontece14.
14 “Se perguntássemos aos operários que salário eles recebem, responderiam: - ‘Eu recebo do meu patrão um marco por dia de trabalho.’ Outro dirá: ‘Recebo 2 marcos.’ Etc. Conforme os diferentes ramos de trabalho a que pertencem, nos indicariam as diversas quantias que recebem dos seus respectivos patrões, pela execução de um determinado trabalho, como, por exemplo, tecer uma vara de pano ou compor uma página tipográfica. Apesar da diversidade de suas indicações, todos concordarão neste ponto: o salário é a soma em dinheiro que o capitalista paga
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Em bases concretas, o que os operários vendem ao capitalista em troca de
dinheiro é a sua força de trabalho, “no mercado, o que se contrapõe diretamente
ao possuidor de dinheiro, não é, na realidade, o trabalho, mas o trabalhador. O que
este último vende é a sua força de trabalho” (MARX, 2017, p. 607), e a força de
trabalho posta à venda no mercado, como vimos - apesar de a legislação burguesa
insistir em formalizar o contrário15-, não é nada mais do que uma mercadoria -
base material das relações sociais fundamentais do capitalismo e do fenômeno
jurídico -, exatamente como o açúcar, o algodão ou o sal: enquanto a primeira é
medida com o cronômetro, as demais são medidas com a balança (MARX, 2010).
O fetiche da forma-salário, corolário do metabolismo reprodutivo do capital
e ponta-de-lança da forma-mercadoria e da forma jurídica, é revelado pela fórmula
que determina o preço da força de trabalho, extraída aplicando rigorosamente as
mesmas leis gerais que determinam o preço de qualquer outra mercadoria:
por um determinado tempo de trabalho ou pela prestação de um determinado trabalho” (MARX, 2010. p. 33). 15 Em uma das maiores demonstrações contemporâneas da razão cínica abordada na primeira seção deste trabalho, a Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, reunida em Filadélfia, na sua vigésima sexta sessão (realizada em 10 de maio de 1944), adotou como princípio fundamental da OIT, dentre outros, a consigna de que o trabalho não é uma mercadoria, ignorando em absoluto a sua inserção dentro da estrutura de exploração e de acumulação capitalista. Não é necessário todo o rigor científico que tentamos empregar para caracterizar as formas materiais, infraestruturais e superestruturais, ou as relações sociais donde emanam tais estruturas, para apontar que não se modificam as estruturas das relações sociais capitalistas mediante a edição de normas e leis, o que, em muito, responde a questão por nós enfrentada na seção 4. Em nossa defesa, invocamos o magistério de Marx n’A miséria da filosofia: “No trabalho-mercadoria, que é de uma realidade espantosa, ele [Proudhon] vê apenas uma elipse gramatical. Logo, toda a sociedade atual, fundada no trabalho-mercadoria, passa a se embasar numa licença poética, numa expressão figurada. A sociedade pretende ‘eliminar todos os inconvenientes’ que a atormentam? Muito bem: basta-lhe eliminar os termos inconvenientes, alterar a linguagem e dirigir-se à Academia, encomendando-lhe uma nova edição do seu dicionário!” (MARX, 2009. p. 71).
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A determinação do preço pelos custos de produção é igual à
determinação do preço pelo tempo de trabalho necessário para a
produção de uma mercadoria, pois os custos de produção se compõem
de: 1. Matérias-primas e desgaste de instrumentos, isto é, de produtos
industriais cuja produção custou uma cerca quantidade de dias de
trabalho, que representam, portanto, uma cerca quantidade de tempo de
trabalho; 2. Trabalho direto, cuja medida é precisamente o tempo.
(...)
O salário do trabalho subirá ou cairá conforme a relação de oferta e
procura, de acordo com a forma que assumir a concorrência entre os
compradores da força de trabalho, os capitalistas, e os vendedores da
força de trabalho, os operários. As oscilações dos preços das mercadorias
em geral correspondem às oscilações do salário. Mas, dentro dessas
oscilações, o preço do trabalho será determinado pelos custos de
produção, pelo tempo de trabalho necessário para produzir esta
mercadoria: a força de trabalho. (MARX, 2010, p. 43).
Nestes termos, os custos da produção da força de trabalho são aferidos a
partir “dos custos de existência e de reprodução do operário” (MARX, 2010, p. 44),
e, assim, constituem-se enquanto salário e nivelam-se a partir de um mínimo
garantidor da existência e da reprodução da classe operária como um todo. E é
esse mínimo garantidor, esse elemento fundamental da reprodução social do
trabalho vivo correspondente à existência e à reprodução de uma classe que nada
possui, que se estabelece como uma condição prévia e necessária do capital e de
todas as suas estruturas típicas.16
O capital e o trabalho assalariado determinam-se e engendram-se
reciprocamente: o capital só pode multiplicar-se sendo trocado por força de
trabalho, enquanto a força de trabalho somente pode subsistir e reproduzir-se
16 Aí inseridas, naturalmente, a forma-jurídica, a forma-mercadoria, a forma-salário, dentre outras.
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enquanto é vendida ao capital na forma de salário. A troca da força de trabalho
por capital multiplica-o, fortalecendo aquela, dialeticamente, o poder que a
escraviza, assim sedimentando a tendência marxiana de que a “multiplicação do
capital é, por isso, multiplicação do proletariado, isto é, da classe operária.” (MARX,
2010, p. 49). Eis a razão formal e a controvérsia essencial da luta de classes
enunciada por Marx.
Aqui expõe-se o centro nervoso do cinismo da forma-salário. A economia
política clássica e os seus representantes mais destacados - que, vale dizer,
encontram ressonância até hoje - insistem em pregar a cooperação pacífica por
meio do mercado (MCCAFFREY, 2019) rumo à prosperidade. Ora!
De fato, o capital desaparece se não explora - compra - a força de trabalho,
e, assim, quanto mais depressa se multiplicar o capital produtivo e melhores forem
os negócios da burguesia, de mais operários ela necessitará, de modo que mais
caro se venderão os operários. É uma obviedade que o crescimento do capital
produtivo é condição indispensável para a melhoria das condições materiais de
vida do operário, desde que ele se submeta ao domínio e à sorte do capitalista!
Não confundem-se os interesses dos capitalistas e os interesses dos operários tão
somente por ambos se apresentarem como aspectos de uma mesma relação: a
satisfação social do operário pelo incremento do seu salário e a multiplicação dos
prazeres do capitalista não alteram, por si só, o fato de que “o operário, cuja única
fonte de rendimentos é a venda da sua força de trabalho, não pode deixar toda a
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classe dos compradores, isto é, a classe dos capitalistas, sem renunciar à existência”
(MARX, 2010, p. 37).17
Destarte, o salário nada mais é que o “nome especial dado ao preço da força
de trabalho”, esta “mercadoria particular que só existe na carne e no sangue do
homem” (MARX, 2010, p. 34) e que nenhum Shylock ou Pórcia18 são capazes de
17 Marx vai ainda mais além, demonstrando a lei geral que determina a queda e a alta do salário e do lucro na sua relação recíproca, na qual ambos se apresentam na relação inversa um do outro: “O preço de venda da mercadoria fabricada pelo operário divide-se, para o capitalista, em três partes: primeira, a reposição do preço das matérias-primas por ele adiantadas, assim como a reposição do que se desgastou nas ferramentas, máquinas e outros meios de trabalho, igualmente adiantados por ele; segunda, a reposição do salário adiantado por ele; terceira, o excedente que resta, o lucro do capitalista. Enquanto a primeira parte repõe apenas valores anteriormente existentes, é evidente que tanto a reposição do salário quanto a do lucro do capitalista (o excedente), no seu todo, provém do novo valor criado pelo trabalho do operário e acrescentado às matérias-primas. E nesse sentido podemos considerar tanto o salário quanto o lucro, quando os compararmos um com o outro, como cotas-parte no produto do operário. O salário real pode permanecer o mesmo, pode até subir, e, não obstante, o salário relativo pode cair. Suponhamos, por exemplo, que todos os meios de subsistência tenham descido 2/3 de preço, ao passo que o salário diário caíra apenas 1/3, por exemplo, de 3 marcos para 2 marcos. Embora o operário, com estes 2 marcos, disponha de uma soma maior de mercadorias do que antes com 3 marcos, o seu salário, contudo, diminuiu em relação com o ganho do capitalista. O lucro do capitalista (por exemplo, do fabricante) aumentou de um marco, isto é, por uma soma menor de valores de troca que paga ao operário, o operário tem de produzir uma soma maior de valores de troca do que anteriormente. A cota-parte do capital subiu em relação à cota-parte do trabalho. A repartição da riqueza social entre capital e trabalho tornou-se ainda mais desigual. O capitalista domina com o mesmo capital uma quantidade maior de trabalho. O poder da classe dos capitalistas sobre a classe operária cresceu, a posição social do operário piorou, caiu mais um degrau em relação à do capitalista. (...) Seja qual for a proporção em que a classe dos capitalistas, a burguesia, seja de um país, seja de todo o mercado mundial, reparta entre si a receita líquida da produção, a soma total dessa receita líquida é sempre apenas a soma com que o trabalho acumulado, no seu todo, foi aumentado pelo trabalho direto. Essa soma global cresce, portanto, na proporção em que o trabalho aumenta o capital, ou seja, na proporção em que o lucro sobe em relação ao salário. Vemos, portanto, que, mesmo quando ficamos no seio da relação de capital e trabalho assalariado, os interesses do capital e os interesses do trabalho assalariado são diretamente opostos” (MARX, 2010. p. 56).
18 Ver O Mercador de Veneza, de Shakespeare. Na obra, Shylock é um agiota que empresta dinheiro a seu rival veneziano, Antônio, estabelecendo como fiança uma libra da carne de Antônio. Quando este, falido, não consegue quitar sua dívida, Shylock exige a libra de carne,
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separar. O operário vende sua força de trabalho, portanto, exclusivamente para
(sobre)viver. A força de trabalho é a atividade vital que o trabalhador adjudica a
um terceiro para se assegurar dos meios de vida necessários à sua subsistência,
reproduzindo a sua condição proletária e alienando-se, mesmo, do próprio
produto da sua atividade. Nesse sentido, diz Marx:
O que o operário produz para si próprio não é a seda que tece, não é o
ouro que extrai das minas, não é o palácio que constrói. O que ele produz
para si próprio é o salário; e a seda, o ouro e o palácio reduzem-se, para
ele, a uma determinada quantidade de meios de subsistência” (MARX,
2010, p. 36).
Ao vender sua força de trabalho, o operário põe sua carne e seu sangue à
disposição do capitalista por um determinado número de horas diárias, de modo
que “8, 10, 12, 15 horas da sua vida diária pertencem a quem as compra” (MARX,
2010, p. 37). Ao vender parte de sua vida na forma de força de trabalho, não mais
considera o trabalho como parte de sua vida, ao contrário:
A vida, para ele, começa quando termina essa atividade, à mesa, no bar,
na cama. As 12 horas de trabalho não tem, de modo algum, para ele, o
sentido de tecer, de fiar, de perfurar etc., mas representam unicamente o
meio de ganhar o dinheiro que lhe permitirá sentar-se à mesa, ir ao bar,
deitar-se na cama. Se o bicho-da-seda fiasse para manter a sua existência
de lagarta, seria então um autêntico operário assalariado” (MARX, 2010,
p. 36).
como vingança, porém, é surpreendido pela engenhosidade de uma rica herdeira chamada Pórcia, que ressaltou que a libra de carne deveria ser extraída sem derramar o sangue do devedor, uma vez que a um estrangeiro era vedado o derrame de sangue de um cidadão veneziano.
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Essa desefetivação no interior da vida laboral (ANTUNES, 2015) é
estrutural, decorrendo da forma mercadoria, e fetichizada na sua respectiva forma
jurídica do valor-salário e da jornada de trabalho, a qual se apresenta como lente
cínica na relação do tempo livre e a atividade vital laboral inserida na lógica
reprodutiva do capital: “uma vida desprovida de sentido no trabalho é
incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho.” (ANTUNES, 2015,
p. 133). É a fórmula da equivalência geral entre forma jurídica e a forma mercadoria,
abordada nas primeiras seções, que nos permite identificar, na forma-salário e na
forma-jornada, um metabolismo social de reprodução do capital que somente será
superado em uma nova sociabilidade autodeterminada pela “demolição das
barreiras existentes entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho” (ANTUNES,
2015, p. 135).19
Tomemos por exemplo, a esse respeito, a afirmação de Marx acerca do
sistema de salários:
(...) em 99 casos em 100 os seus esforços por elevar os salários são apenas
esforços para manter o valor dado do trabalho e que a necessidade de
debater o seu preço com o capitalista é inerente à sua condição de terem
de se vender eles próprios como mercadorias. Cedendo covardemente
no seu conflito de todos os dias com o capital, certamente que se
desqualificariam para o empreendimento de qualquer movimento mais
amplo.
(...)
[A classe operária] não deverá esquecer que luta com efeitos, mas não
com a causa desses efeitos; que retarda o movimento descendente, mas
19 A discussão em torno da venda de tempo de vida, dos sentidos do trabalho, do conflito
quantitativo e qualitativo do uso do tempo pelos trabalhadores e trabalhadoras, e das formas
contemporâneas de estranhamento, não somente é extensa, como também inacabada, sobretudo no
que diz respeito à análise da alegada nova morfologia do trabalho derivada da flexibilização
extremada materializada pela uberização e pela indústria 4.0. A esse respeito, remetemos o leitor
às obras de Ricardo Antunes, Grazia Paoletti, João Bernardo, Dominique Méda e Giovanni Alves.
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não muda a sua direção; que aplica paliativos, mas não cura a doença.
Por conseguinte, não deverá estar exclusivamente absorvida nestas
inevitáveis lutas de guerrilha que incessantemente derivam das investidas
sem fim do capital ou das mudanças do mercado. Deverá compreender
que, juntamente com todas as misérias que lhe impõe, o sistema presente
produz simultaneamente as condições materiais e as formas sociais
necessárias a uma reconstrução econômica da sociedade. Em lugar do
mote conservador, ‘um salário justo para um trabalho justo!’ Deverá
inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: “abolição
do sistema de salários!” (MARX, 2002, p. 89-90).
Porém, parece evidente que a demolição das barreiras da forma-salário, em uma
perspectiva emancipacionista, somente ocorre a partir da superação dos grilhões da
forma jurídica, intrinsecamente e estruturalmente relacionados à forma-mercadoria e à
exploração do trabalho humano na condição de facticidade pressuposta.
Considerações finais
A compreensão da constituição das relações sociais é importante pois,
como demonstrou-se, é da circulação das mercadorias (obviamente compreendida
aí a mercadoria força de trabalho) que se extrai a base material da forma jurídica,
a respaldar não somente o trabalho assalariado, mas todo o metabolismo burguês
de exploração do trabalho e de reprodução das relações de produção capitalistas.
Nesse sentido, a relação entre a forma jurídica e a forma-mercadoria é plena
de significado: a exploração do trabalho assalariado não decorre da lei, pura e
simplesmente (e, por conseguinte, não é alterando o sistema de leis que se
estancará tal processo exploratório). Assim é que as regras jurídicas não podem,
portanto, ser estudadas independentemente dos fenômenos sociais, aí incluído o
fato nacional-econômico e a carga ideológica dele derivada, eis que os vínculos
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que compõem a estrutura social - tanto infra quanto superestruturas -
condicionam-se mutuamente.
Evidencia-se, nessa perspectiva, o direito (e em especial a legislação) como
subproduto jurídico extraído a posteriori das respectivas relações sociais da
sociedade burguesa, habilitado a incluir economicamente o trabalhador, ora
compreendido como o homem vendedor de tempo de vida, mas inservível para a
sua emancipação humana.
Buscou-se desmistificar o direito e as bases jurídicas do salário, afastando-
as do cinismo da forma jurídica a fim de revelar-lhes a condição de manifestação
ideológica sobreposta à instrumentalidade imediatista do “sistema de proteção”
instaurado em favor da classe trabalhadora com o revés de aprisioná-la aos
grilhões implacáveis do estreito horizonte do direito burguês, alimentando
indefinidamente o metabolismo social de reprodução geral do capital.
As lentes cínicas da forma jurídica foram reveladas, portanto, a partir da
demonstração do equívoco da eternização da forma jurídica: nos parece claro que
a extinção das categorias econômicas burguesas (valor, capital, trabalho
assalariado, mercadoria, etc.) significará não apenas o fim do direito burguês, mas
o definhamento, por completo, do momento jurídico nas relações humanas, pari
passu ao desaparecimento gradual do poder da divisão do trabalho, da antítese
entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, da antítese entre os interesses
individuais e o interesse comum, e, obviamente, da coerção estatal.
A verdadeira emancipação humana, o rompante da liberdade daqueles que
veem na sua prole a única segurança, pressupõe, nessa linha, o abandono do
apego à dignidade estrutural da forma-mercadoria, expandindo os horizontes da
luta em favor de perspectivas revolucionárias que, mais do que a mera ampliação
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do feixe de direitos que lhe assistem sob o jugo do capital, supere-os em favor da
plena emancipação humana e de novos padrões de organização estrutural
alternativos à divisão do mundo entre proprietários e não-proprietários.
Referências
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centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2015.
ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. São Paulo: Martins
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BALIBAR, Étienne. Sur la dictature du prolétariat. Paris: Maspero, 1976. p. 74-75.
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_______. Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Disponível em
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Consulta
em jul. 2019.
_______. Lei n. 7.783, de 28 de junho de 1989. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7783.HTM> consulta em Jul. 2019.
_______. Tribunal Superior do Trabalho. ARR-470-92.2011.5.09.0673, 7ª Turma,
Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 01/07/2019.
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A POLÍTICA DO RECONHECIMENTO NAS ABORDAGENS DE NANCY
FRASER E AXEL HONNETH: JUSTIÇA OU AUTORREALIZAÇÃO?
Álvaro Augusto Cerqueira Mangabeira
Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário
IESB; bacharel em Direito pelo Centro Universitário IESB; advogado.
Any Ávila Assunção
Doutora e mestra em sociologia jurídica pela Universidade de Brasília (UnB); graduada
em Direito pelo UNICEUB; pesquisadora colaboradora no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB); professora e coordenadora do Curso
Bacharelado em Direito e do Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos
Reivindicatórios do Centro Universitário IESB (PPG-MPDS); advogada atuante na área de
Direito Público, Direitos Sociais e Direitos Humanos, com ênfase nos gênero, violência,
sistema judicial e emancipação social.
Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar e analisar preliminarmente duas das teorias
fundamentais das Políticas de Reconhecimento, desenvolvidas por duas de suas figuras:
Nancy Fraser e Axel Honneth. Inicialmente, é apresentado um prólogo conciso da teoria
do reconhecimento, com base nos estudos de jovens Hegel. Posteriormente, são revelados
os principais pontos de divergência nas teorias de Fraser e Honneth, bem como suas
implicações na reivindicação social e política. O reconhecimento, como categoria filosófica
e sociológica, tem uma relevância notável para uma abordagem zetética do Direito, razão
pela qual várias questões judiciais sobre direitos fundamentais levam fortemente em
consideração as políticas de reconhecimento diante da marginalização social. Por fim, em
conclusão, procura uma convergência entre as teorias aparentemente divergentes dos
dois estudiosos.
Palavras-chave: Teoria do Reconhecimento, Nancy Fraser, Axel Honneth, processos
reivindicatórios, identidade, status social.
Abstract
This paper aims to present, and preliminarily analyze two of the fundamental theories of
Recognition Policies, developed by two of its figures: Nancy Fraser and Axel Honneth.
Initially, a terse prologue of Recognition theory is presented, based on young Hegel's
studies. Thereafter, major points of divergence on Fraser and Honneth's theories are
revealed, as well as their implications on social and political vindication. Recognition, as a
philosophical and sociological category, has a notable relevance for a zetetic approach on
Law, which is why several judicial questions about fundamental rights strongly take
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recognition policies into account fronting social marginalization. Lastly, in conclusion, it
looks for a convergence between the seemingly divergent theories of the two scholars
Keywords: Theory of recognition, Nancy Fraser, Axel Honneth, identity, social status.
1. Teorias do Reconhecimento
m sistema de valores, ainda que individualista, baseado no
reconhecimento do atributo da dignidade humana forma a
genealogia do que atualmente denomina-se de Teoria do
Reconhecimento, ou Política do Reconhecimento.
O reconhecimento foi cunhado por alguns principais estudiosos da filosofia,
sociologia e ciências políticas, possuindo interpretações distintas dentro dessa
ecologia de saberes. Os principais expoentes do reconhecimento, sobressaindo-se
na definição dos desdobramentos sociais, políticos e jurídicos dessa teoria são
Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser, cada um com seu conjunto de
significados ontogenéticos acerca desse campo retomado por Hegel. Também em
Habermas é possível encontrar um arcabouço epistêmico substancial acerca do
reconhecimento.
Há significativa diferença conceitual entre os estudiosos do reconhecimento
anteriormente mencionados. Essas diferenças representam a trajetória
epistemológica adotada por cada um deles, sendo que o que os une é a origem
de suas teorias, que tomam por base os estudos filosóficos do jovem Hegel, em
direção a uma teoria que evidenciasse a formação do espírito humano em relação
com outros sujeitos e a sociedade. Em Honneth, por exemplo, há uma presença
marcante da teoria elaborada por Hegel, principalmente no que diz respeito à
intersubjetividade e ao conflito (RAVAGNANI, 2009).
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O processo de formação da identidade do sujeito, enquanto
autodiferenciação é particularmente importante para Honneth, de forma que o
leva a resgatar as etapas da formação do espírito em Hegel. Segundo Honneth, a
ideia principal desse processo de formação da consciência individual em Hegel não
escapa ao conceito de “vontade”, e poderia ser representado como uma trajetória
de sucessivas exteriorizações e retornos a si mesmo, buscando diferenciar-se e
colocar-se perante o mundo como um indivíduo singular (HONNETH, 2003).
Para Honneth, é fundamental sondar o aspecto da formação da consciência
e do sujeito para formular um conceito apropriado para a identificação. Ora, para
o autor, não há reconhecimento sem a formação de identidades peculiares, razão
pela qual julga pertinente e fundamental basear sua teoria no processo de
formação das consciências capazes de diferenciar, ou, como Hegel denominaria, a
formação do espírito em termos éticos.
Portanto, se torna claro que para Honneth há um grau de subjetividade para
que haja o reconhecimento, tendo em vista que ele é determinado em termos de
um gradiente de auto-afirmação em razão das identidades, em que o não
reconhecimento representa uma depreciação da identidade por uma cultura
hegemônica, dominante, causando danos à subjetividade de membros de grupos
identitários. Essa por exemplo, é a análise de Fraser a despeito do resgate de
Honneth da formação do “espírito” em Hegel (FRASER, 2007).
Assim o é porque a teoria de Fraser para o reconhecimento busca ancorar
a gênese e formação do reconhecimento não em termos de identidade, que exige
uma incursão mais profunda nos processos de formação do “espírito” humano,
mas em termos de status, que se traduz na “condição de membros do grupo como
parceiros integrais na interação social”. Para a autora, o reconhecimento do status
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implica em perceber o outro enquanto “parceiros capazes de participar como
iguais na vida social”, já o não reconhecimento representa inferiorização, exclusão
ou invisibilização do outro, percebendo-o como “menos do que parceiros integrais
na interação social” (FRASER, 2007).
Certamente que essas não são as únicas diferenças perceptíveis entre a
teoria de Honneth, que resgata com muito primor o jovem Hegel e o modelo de
status cuidadosamente elaborado por Fraser. Entretanto, em linhas gerais, esse
representa o cerne das diferenças entre os dois autores, que a despeito de não
serem os únicos a dedicarem-se ao estudo do reconhecimento, tendo em vista a
proeminência de outros autores como o próprio Charles Taylor, são os autores
selecionados para um confronto direto de ideias no presente texto.
A fim de cumprir o propósito traçado, fundamental a realização de uma
descrição sintética das teorias abordadas por Honneth e Fraser, de forma a
possibilitar qualquer correlação posterior com os termos traçados por ambos.
2. Reconhecimento em Axel Honneth
Como dito, Axel Honneth, filósofo e sociólogo alemão, que dirige e dá
continuidade à Escola de Frankfurt, dedica-se ao estudo da luta por
reconhecimento, buscando demonstrar a formação ontogenética de uma
identidade que leva a um engajamento político autêntico, uma identidade capaz
de constituir uma pessoa de direito.
O autor apresenta grande preocupação em demonstrar, portanto, as
origens da formação do sujeito, e, posteriormente, a relação dialética entre o
indivíduo e o outro dentro de um processo de formação e de diferenciação das
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identidades, que inclui a inserção de ambos em uma sociedade estruturada em
uma racionalidade instrumental. Um conceito fundamental para essa análise,
Honneth retoma de Hegel quando aborda a questão da “vontade” como elemento
que influencia as relações intersubjetivas constitutivas do reconhecimento
recíproco. Ora, Hegel demonstra que a “vontade” é um caminho entre o sujeito e
o outro, na busca por reconhecimento (HONNETH, 2003).
Segundo Honneth, para Hegel o reconhecimento pode se originar das
relações de afeto, como no amor sexual, por ser uma esfera em que se percebe o
outro por meio do desejo, encontrando sua forma mais aperfeiçoada de
reconhecimento na formação familiar e na prole. Entretanto, no deslinde de sua
teoria, objetivando encontrar o sentido jurídico do reconhecimento, Hegel retoma
teorias contratuais, com ênfase em Hobbes, para compreender o reconhecimento
enquanto uma esfera de conflito que vai para além da afetividade amorosa e
familiar e encontra na disputa por atenção a gênese da personalidade jurídica.
Isso se deve em razão da capacidade intersubjetiva de perceber no outro as
fragilidades possíveis em si mesmo, o que gera a necessidade de um contrato para
mediar a disputa e impedir os conflitos. Dessa forma, ao contrário de Hobbes,
Hegel percebe o impulso agressivo como uma forma de buscar o reconhecimento
e não de uma busca pela satisfação de suas necessidades mais imediatas. Segundo
Honneth:
...percebendo reciprocamente sua mortalidade, os sujeitos que lutam
entre si descobrem que eles já se reconheceram previamente em seus
direitos fundamentais e que dessa forma já criaram implicitamente o
fundamento social para urna relação jurídica intersubjetivamente
vinculante (HONNETH, 2003, p. 94).
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De todo modo, para que ocorra a percepção de si mesmo e do outro
enquanto sujeito de direito, portanto uma intersubjetividade constituidora de uma
personalidade de direito, deve haver uma etapa precedente de autoformação de
uma identidade, que é a formação de uma consciência individual. Entretanto, essa
identidade continua em processo de formação a partir do momento em que
adquire um aspecto jurídico, através de seu ingresso na sociedade de conflitos:
a luta por reconhecimento não somente contribui como elemento
constitutivo de todo processo de formação para a reprodução do
elemento espiritual da sociedade civil como influi também de forma
inovadora sobre a configuração interna dela, no sentido de urna pressão
normativa para o desenvolvimento do direito.
O quadro teórico em que essa determinação mais ampla da luta por
reconhecimento é desenvolvida resulta das tarefas específicas do
capítulo que se segue a análise do "espírito subjetivo". Conforme a lógica
da exposição a que obedece o todo de seu empreendimento, Hegel
precisa reconstruir aí o processo de formação do espírito na nova etapa,
alcançada com o ingresso da vontade individual na realidade social
(HONNETH, 2003, p. 95).
O passo seguinte para Honneth alcançar a formulação de uma teoria
das lutas por reconhecimento consiste na adoção de conceitos derivados do
pragmatismo de Mead20, cuja psicologia social influencia a busca do sociólogo
frankfurtiano por exemplos empíricos de reconhecimento e de sua degeneração
com as forma de negação do reconhecimento. Assim como Hegel, Mead percebe
a interação social na gênese da identidade, e aprofunda seu conhecimento em
termos de uma intersubjetividade baseada em impulsos e mediações culturais
internalizadas (ARAÚJO NETO, 2013).
20 George Herbert Mead foi um filósofo norte americano, baseado na Escola de Chicago, com importantes contribuições para a sociologia e para a psicologia social.
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Segundo Honneth, tanto Hegel quanto Mead entendem que o
reconhecimento pode se dar em diversas esferas da sociedade, perpassando
relações sociais distintas:
Desde logo, Hegel distingue em sua filosofia política a família, a
sociedade civil e o Estado; em Mead se divisa a tendência de destacar das
relações primárias do outro concreto as relações jurídicas e a esfera do
trabalho enquanto duas formas distintas de realização do outro
generalizado (HONNETH, 2003, p. 158).
Nessas três distintas esferas onde o reconhecimento se dá, o teórico da
Escola de Frankfurt identifica igualmente três formas de reconhecimento, quais
sejam: as relações primárias (amor e amizade), as relações jurídicas (direitos) e a
comunidade de valores (solidariedade), das quais verdadeiramente nos interessa a
forma de reconhecimento jurídica. Segundo Gonçalves:
Nesta obra, Honneth apresenta três dimensões distintas de
reconhecimento intersubjetivo nas sociedades modernas e seus
correspondentes desrespeitos: a primeira dimensão consiste nas relações
primárias baseadas no “amor” e na “amizade”, na qual o sujeito
desenvolveria uma autoconfiança, indispensável à sua realização pessoal;
a segunda seria a dimensão das relações jurídicas baseadas em “direitos”,
em que os sujeitos são reconhecidos como autônomos e moralmente
imputáveis, desenvolvendo sentimentos de autorrespeito e
individualização; a última dimensão seria a “solidariedade social”, onde
os projetos individuais de realização seriam objeto de respeito numa
comunidade (GONÇALVES, 2017, p. 257).
Honneth busca então compreender a luta por reconhecimento como uma
consequência inevitável de um processo de degradação das formas de
reconhecimento mencionadas anteriormente. Essa degradação ocorre quando a
identidade é vilipendiada por meio de atos lesivos à compreensão positiva que os
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indivíduos têm de si próprios gerando conflitos que derivam da negativa desse
status (GONÇALVES, 2017, p. 257)
Assim, às três formas de reconhecimento, no campo do amor, no campo do
direito e no campo da solidariedade, é possível encontrar fenômenos positivos e
negativos. Esses últimos se apresentam como os motivadores de uma busca pelo
reconhecimento:
Se a experiência de desrespeito sinaliza a denegação ou a privação de
reconhecimento, então, no domínio dos fenómenos negativos, devem
poder ser reencontradas as mesmas distinções que já foram descobertas
no domínio dos fenómenos positivos. Nesse sentido, a diferenciação de
três padrões de reconhecimento deixa à mão uma chave teórica para
distinguir sistematicamente os outros tantos modos de desrespeito: suas
diferenças devem se medir pelos graus diversos em que podem abalar a
auto-relação prática de urna pessoa, privando-a do reconhecimento de
determinadas pretensões da identidade (HONNETH, 2003, p. 214).
Com relação à forma degradada de reconhecimento jurídico, ou a privação
de direitos, Honneth interpreta “direito” enquanto “aquelas pretensões individuais
com cuja satisfação social urna pessoa pode contar de maneira legítima, já que ela,
como membro de igual valor em urna coletividade participa em pé de igualdade
de sua ordem institucional”. Ora, se ser reconhecido como um indivíduo portador
de direitos, ou seja, um sujeito de direitos é poder participar na esfera social como
um parceiro de interação de igual valor moral, em “em pé de igualdade” não ser
reconhecido como tal é ter esse status de formador de juízo moral extirpado,
perdendo-se autorrespeito. É não participar da sociedade com o status de parceiro
equivalente (HONNETH, 2003, p. 2017).
Essas formas de não reconhecimento ocasionam no indivíduo uma série de
emoções e sintomas no plano psíquico que o impedem sua autorrealização,
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gerando danos no processo de constituição da identidade. Quando canalizados
para o plano moral, tais sentimentos podem se converter na força motriz para a
busca pelo reconhecimento, um sentimento moral capaz de gerar uma reação
engajada pelo reconhecimento. Para Honneth, um sentimento moral motivador da
práxis engajada é, por exemplo, a vergonha:
Nessas reações emocionais de vergonha, a experiência de desrespeito
pode tornar-se o impulso motivacional de uma luta por reconhecimento.
Pois a tensão afetiva em que o sofrimento de humilhação força o
indivíduo a entrar só pode ser dissolvida por ele na medida em que
reencontra a possibilidade da ação ativa (HONNETH, 2003, p. 224).
Nesse sentido, é possível interpretar a teoria do reconhecimento de
Honneth, em termos de uma formação da subjetividade do indivíduo. Quando o
reconhecimento é negado há uma prejudicialidade da auto-identidade e do pleno
desenvolvimento do ser humano para si e diante da sociedade, a estima social é
vilipendiada e as emoções decorrentes desse “desrespeito”, quando
instrumentalizadas em uma práxis engajada, pode gerar uma luta pelo
reconhecimento capaz de reivindicar a condição de parceiro nas relações sociais.
3. Reconhecimento em Nancy Fraser
Em oposição ao pensamento de Honneth, no que concerne ao
desenvolvimento de uma política do reconhecimento, Nancy Fraser 21 , filósofa
21 Fraser leciona, atualmente, na cadeira de Ciência Política e Social na New School de Nova Iorque. Dentre
suas afiliações incluem a teoria crítica alemã, pós-estruturalismo francês, pragmatismo norteamericano e feminismo.
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norte americana afiliada a Teoria Crítica, traz uma perspectiva deontológica,
contrapondo-se à eticidade característica das teorias de Honneth e Taylor.
O que significa, portanto, uma teoria do reconhecimento baseada na moral
e não na ética? Ora, para que se possa responder essa pergunta, há que se adentrar
nas características comparativas de cada teoria, para compreender, em seguida,
quais as implicações para os processos reivindicatórios de direitos.
Segundo Fraser, em seu artigo Reconhecimento sem ética, o
reconhecimento não deve se basear na formação e respeito a uma identidade, mas
em um modelo baseado no status social. Segundo a autora, quando se busca um
modelo que considere a formação e o respeito à identidade enquanto
essencialidade, é possível a percepção de três problemas significativos e com
desdobramentos sociais e inter-subjetivos.
Um modelo de reconhecimento que se baseia no identitarismo poderia
ocasionar, segundo Fraser, uma excessiva psicologização das causas da
desigualdade na sociedade, gerando uma ênfase na estruturação psíquica do
sujeito em detrimento das instituições sociais e da interação social. Em segundo
lugar, a autora identifica o modelo baseado na identidade como a causa de uma
predominância de uma identidade de grupo singular sobre a complexidade e
peculiaridade de cada indivíduo componente do grupo, negando a
homogeneidade interna. Por fim, o modelo baseado na identidade reifica a cultura,
ignorando as interações transculturais e gerando um separatismo prejudicial às
interações entre grupos diversos.
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Ao contrário, sobre o modelo de status, Fraser tece as seguintes
considerações:
Em primeiro lugar, ao rejeitar a visão de reconhecimento como
valorização da identidade de grupo, ele evita essencializar tais
identidades. Em segundo lugar, ao focar nos efeitos das normas
institucionalizadas sobre as capacidades para a interação, ele resiste à
tentação de substituir a mudança social pela reengenharia da
consciência. Em terceiro lugar, ao enfatizar a igualdade de status no
sentido da paridade de participação, ele valoriza a interação entre os
grupos, em oposição ao separatismo e ao enclausuramento (FRASER,
2007, p. 109)
Em sentido oposto, Fraser propõe um modelo que se baseie na busca pela
paridade de participação na construção social, ou seja, de parceiros integrais na
interação social:
A minha proposta é tratar o reconhecimento como uma questão de
status social. Dessa perspectiva – que eu chamarei de modelo de status
– o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um grupo,
mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais na
interação social. O não reconhecimento, consequentemente, não
significa depreciação e deformação da identidade de grupo. Ao contrário,
ele significa subordinação social no sentido de ser privado de participar
como um igual na vida social. Reparar a injustiça certamente requer uma
política de reconhecimento, mas isso não significa mais uma política de
identidade (FRASER, 2009, p. 107).
O não reconhecimento, no modelo de status ocorre quando os padrões
culturais institucionalizados consideram determinados grupos como inferiores ou
menos do que plenos parceiros nas interações sociais. Ou seja, a versão degradada
de reconhecimento no modelo proposto busca estabelecer uma hierarquia social
entre aqueles considerados “normais” e “os outros”, ou os inferiores. Essa
inferiorização, contudo, segundo o modelo referido, não representa uma ofensa
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ou um ato lesivo particularmente às estruturas psíquicas ou à estima de um
indivíduo, mas uma subalternização de sua condição de interferir e interagir
socialmente no mesmo patamar que outros atores sociais (FRASER, 2007).
Ora, como exemplo dessa negação ao reconhecimento, Fraser cita o
casamento entre pessoas do mesmo sexo. É cediço que as instituições
internalizaram a heteronormatividade enquanto padrão das relações afetivas,
sexuais e familiares. Tanto o é que diversos países do mundo não reconhecem nos
dias atuais os laços afetivos entre pessoas do mesmo sexo como dignos de
reconhecimento das instituições culturais, jurídicas e sociais. O modelo de status
propõe a superação dessa subordinação como uma forma de reconhecimento da
paridade participativa, ou seja, ser o casamento entre pessoas do mesmo sexo
reconhecido como hierarquicamente equivalente ao casamento heterossexual.
Entretanto, segundo a autora, nem todas as reivindicações por
reconhecimento são válidas ou justas, tendo em vista a possibilidade de
emergência de reivindicações que, a despeito de proporcionarem autorrealização
a algumas pessoas, geram marginalização ou subalternização de grupos étnicos,
LGBTs e mulheres. Fraser expõe essa problemática como derivada do modelo de
reconhecimento como valorização da identidade enquanto esfera de promoção da
autorrealização e da auto-estima (FRASER, 2007).
Com o intuito de evitar que problemas como os referidos ocorram e
demandas não justificadas despontem no horizonte das reivindicações por
reconhecimento, Fraser propõe uma análise baseada em critérios que permitem a
avaliação da justiciabilidade e da pertinência moral da demanda reivindicatória. Tal
análise consiste na comprovação, por parte dos reivindicantes do reconhecimento,
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de que os arranjos institucionais atuais os “impedem de participar em condição de
igualdade com os outros na vida social” (FRASER, 2007, p. 125).
Em seguida, deve-se analisar se as demandas sociais que os reivindicantes
defendem são capazes de alterar essa lógica de subordinação e proporcionar a
participação em “pé de igualdade” com outros atores sociais. Nas palavras da
autora: “reivindicantes do reconhecimento devem mostrar que as mudanças
institucionais socioculturais que eles perseguem fornecerão as condições
intersubjetivas necessárias, novamente, sem piorar substantivamente outras
disparidades” (FRASER, 2007, p. 126).
Ao final da análise, deve-se perceber se as normas morais são suficientes
para resolver a questão da paridade de participação ou se o problema deve ser
resolvido com um retorno à ética, e portanto ao reconhecimento enquanto
autorrealização.
No final de seu estudo, Fraser seleciona alguns casos controversos para
aplicar a sua teoria normativa deontológica. Aqui, cabe destacar e retomar o
exemplo do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo.
Aplicando o modelo de status ao casamento entre pessoas do mesmo sexo,
a filósofa encontra a institucionalização da cultura heteronormativa como
causadora do não reconhecimento de modelos familiares que divirjam desse
padrão. Esse fato, por si só, demonstra a injustiça que impede a participação
integral de pessoas LGBTs na realidade social. Dessa forma, a primeira etapa da
análise se encontra superada (FRASER, 2007, p. 127).
Em seguida é necessário analisar a eficácia e a plausibilidade dos possíveis
remédios reivindicatórios que permita a plena participação dos reivindicantes na
vida social. Para tanto, a filósofa elenca duas possibilidades de remédios: a
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primeira, a substituição do modelo heteronormativo por um modelo paritário, que
reconheça ambas as modalidades familiares e a segunda seria desvincular direitos
sociais como seguridade social, saúde, dentre outros, da condição matrimonial.
Para a autora, as duas demandas contemplam a reivindicação por direitos
equivalentes, e, portanto, confere status social de igual participação aos
reivindicantes (FRASER, 2007).
O modelo adotado, por conseguinte, apresenta-se capaz de responder às
demandas reivindicatórias das comunidades LGBT no que diz respeito ao
casamento igualitário sem que se adentre em questões de percepção íntima ou de
concepções ideológicas contraditórias, fato que pode ter facilitado a conquista do
matrimônio igualitário em diversos países:
a norma da paridade participativa justifica reivindicações de gays e
lésbicas deontologicamente, sem recorrer à avaliação ética – sem, é dizer,
assumir um julgamento substantivo de que uniões homossexuais são
valiosas eticamente. A abordagem de auto-realização, ao contrário, não
consegue evitar pressupor aquele julgamento, então, é vulnerável a
contra julgamentos que a negam. Sendo assim, o modelo de status é
superior para lidar com esse caso (FRASER, 2007, p. 128).
Em suma, percebendo a distanciação dos modelos de Honneth e Fraser,
observa-se que os autores divergem quanto à concepção filosófica da política do
reconhecimento. Enquanto Honneth adota um modelo voltado para a ética, ou o
reconhecimento enquanto uma forma de autorrealização dos indivíduos por meio
da estima, Fraser trata o reconhecimento no campo da moral, adotando um
modelo analítico pragmático denominado de modelo de status, em que
compreende o reconhecimento em termo de uma participação integral na
interação social.
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Considerações finais
Diante de todo o exposto, observa-se um rico universo de conceitos
atribuídos à esfera das teorias do reconhecimento. Diversos autores se debruçaram
sobre a questão da negação de direitos enquanto uma categoria importante para
as políticas de reconhecimento. Honneth, celebrado teórico da Escola de Frankfurt
propõe um modelo baseado nas teorias do jovem Hegel em Jena, sobre a
formação da consciência segundo a fenomenologia do “espírito”. O autor resgata
a compreensão de reconhecimento em Hegel para demonstrar a importância da
etapa de formação da identidade nos processos de reconhecimento e propõe sua
aplicação em diversos âmbitos da vida social, como as relações primárias, as
relações jurídicas e a comunidade de valores. A essas esferas o frankfurtiano prevê
formas genuínas de reconhecimento, respectivamente a dedicação emotiva, o
respeito e a estima social.
Derivadas dessas formas autênticas de manifestação do reconhecimento,
Honneth demonstra a existência de formas de reconhecimento degradadas, as
quais denomina violação com relação ao amor, privação de direitos, a respeito das
relações jurídicas e ofensa, com relação comunidade de valores (HONNETH, 2003,
p. 211).
Privilegiou-se, ao longo do presente estudo, a análise das formas jurídicas
de reconhecimento, que dão conta de demandas reivindicatórias de grupos sociais
que historicamente tem experimentado sistemática privação e violação de direitos,
o que importa sensivelmente a esse estudo, em termos teóricos e empíricos.
Em seguida, contrastando as ideias de um reconhecimento baseado na ética
e na autorrealização, analisou-se a teoria de Nancy Fraser, filósofa norte-
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americana, afiliada da Teoria Crítica, que opta por um modelo de status na
abordagem das políticas de reconhecimento. Fraser busca diferenciar-se de
Honneth no que diz respeito ao conceito de reconhecimento e suas implicações
teóricas e práticas.
Ao final, adotou-se o modelo de Fraser para analisar se o casamento entre
pessoas do mesmo sexo pode ser satisfatoriamente atendido enquanto demanda
reivindicatória diante apenas de uma abordagem moral, ou seja, de justiça, e não
ética, ou seja, de “boa vida”.
Concluiu-se, por meio do estudo de Fraser, que o casamento entre pessoas
do mesmo sexo pode ser reconhecido a contento por meio do modelo de status
sem que se recorra a questões ligadas à ética e valores individuais. Fraser, por sua
vez define o reconhecimento em termo de uma participação integral dos sujeitos
na interação social e afirma divergir do modelo de Honneth e de Charles Taylor
por não apostar, epistêmica e empiricamente no privilégio à satisfação pessoal do
indivíduo em detrimento da justiça coletiva.
Ora, evidenciadas as diferenças entre os modelos, há que se fazer uma
consideração pontual, a guisa de conclusão. Em que pese os dois modelos tenham
divergências marcantes, principalmente no que diz respeito à matriz filosófica
adotada por ambos os autores, há que se destacar que Honneth também faz
referência a um modelo de política de reconhecimento baseado na equivalência
hierárquica de participação dos atores na interação social, que pode ser observado
em sua obra “Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais”.
Nesse sentido, embora ambos os autores divirjam quanto à importância
necessária a se legar ao subjetivo e à estima - sendo que Honneth privilegia
consideravelmente a formação da consciência e Fraser não tem essa preocupação
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ontogenética do reconhecimento, mas preocupa-se com as implicações sociais
mais pragmáticas ligadas a essa luta - ambos se aproximam ao considerar que há
uma importância significativa, ao menos no campo da interação social, nas relações
hierárquicas ou equivalentes estabelecidas entre os atores.
Ao considerar o não reconhecimento como uma forma de negação de um
status de igualdade entre os sujeitos na interação social, Honneth viabiliza a
formação de um modelo que se afaste de qualquer validação ética, permitindo o
desenvolvimento de teorias de justiça a respeito do reconhecimento.
As implicações e desdobramentos teóricos e materiais dessas constatações,
contudo, devem ser apreciadas e debatidas em estudo posterior, apenas
estabelecendo neste artigo a abertura de um campo de investigação profícuo para
os pesquisadores do reconhecimento.
Referências
ARAUJO NETO, José Aldo Camurça de. A filosofia do reconhecimento: as
contribuições de Axel Honneth a essa categoria. Revista Kínesis, Vol. V, n° 09
(Edição Especial), Julho 2013, p. 52-69.
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, 70: 213-222,
2007.
GONÇALVES, Ricardo Juozepavicius. O direito em Axel Honneth: a luta por
reconhecimento em desenvolvimento. Revista Direito e Liberdade – RDL –
ESMARN – v. 19, n. 2, p. 253-275, maio/ago. 2017
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos
sociais. São Paulo: 34, 2003.
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RAVAGNANI, Herbert Barucci. Luta por reconhecimento: a filosofia social do
jovem Hegel segundo Honneth. Revista Kínesis, Vol. I, n° 01, Março-2009, p.39-
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A LEI Nº 13.146/2015 E O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Hugo Silva de Aguiar
Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário
IESB; especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior
do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT); especialista em
Direito Notarial e Registral pelo Instituto Damásio de Direito (IDD); bacharel em Direito
pela Universidade de Brasília (UnB).
Augusto César Leite de Carvalho
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla la Mancha; mestre
em Direito pela Universidade Federal do Ceará; professor de Direito do Trabalho do IESB;
professor colaborador da Universidade de Brasília (UnB) em pós-graduação de Direito
Constitucional do Trabalho e professor do mestrado da Universidade Autônoma de
Lisboa; ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Resumo
O presente artigo tem por escopo a análise da importância da Lei nº 13.146, de 6 de julho
de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), para a concretização do direito fundamental
à educação da pessoa com deficiência. O advento da referida lei representa marco
histórico para a dignidade da pessoa com deficiência, englobando o direito à educação
inclusiva. Serão realizadas, em primeiro lugar, observações acerca do direito fundamental
à educação – disciplinado nos arts. 6º e 205 a 214 da Constituição Federal –, à luz do
princípio da dignidade da pessoa humana, passando-se, então, ao exame do direito à
inclusão social das pessoas com deficiência. Ademais, serão feitas considerações acerca
do direito à educação inclusiva desse grupo de pessoas, bem como far-se-á estudo sobre
os impactos do direito à educação inclusiva da pessoa com deficiência no ambiente de
trabalho, com base nos ditames constitucionais e nas diretrizes internacionais sobre o
tema.
Palavras-chave: Estatuto da Pessoa com Deficiência; direito fundamental à educação;
dignidade da pessoa humana; educação inclusiva.
Abstract
The following paper presents its scope to the analysis of the importance of the Law 13.146,
July the sixth of 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), to the realization of the
fundamental right of education for people with disabilities. The referred law consummates
the cornerstone to the complete realization of the dignity of the person with disabilities,
thus circumscribing the right to inclusive education. The author shall observe, firstly, on
the matter of the fundamental right to education – inscribed in the articles sixth and 205th
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to 214th of the Federal Constitution – in the light of the principle of dignity of the human
person, then proceeding to the analysis of the right to social inclusion of people with
disabilities. Furthermore, there shall be considered the right to inclusive education to these
groups of people as well as the study of the impact of the right to inclusive education in
their respective workplace based on the constitutional orders and in the international
guidances on the subject.
Keywords: Estatuto da Pessoa com Deficiência; fundamental right to education; dignity of
the human person; inclusive education.
1. Introdução
O presente artigo objetiva analisar a importância da Lei nº 13.146, de 6 de
julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), para a concretização do direito
fundamental à educação da pessoa com deficiência. Mostrar-se-á como o advento
da referida lei representa marco histórico para a dignidade da pessoa com
deficiência, em especial no tocante ao direito à educação inclusiva.
Serão realizadas, em primeiro lugar, observações acerca do direito
fundamental à educação, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana,
passando-se, então, ao exame do direito à inclusão social das pessoas com
deficiência. Em seguida, foram feitas considerações acerca do direito à educação
inclusiva desse grupo de pessoas, bem como ocupou-se do estudo sobre os
impactos do direito à educação inclusiva da pessoa com deficiência no ambiente
de trabalho, com base nos ditames constitucionais e nas diretrizes internacionais
sobre o tema.
2. O Direito Fundamental à Educação
O direito à educação encontra-se disciplinado nos arts. 6º e 205 a 214 da
Constituição Federal. Trata-se de um direito social que tem assumido notável
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importância no ordenamento jurídico brasileiro para a efetivação dos valores
tutelados pelo texto constitucional e, sobretudo, “para a construção de patamar
mínimo de dignidade para os cidadãos” (MENDES; BRANCO, 2014, p. 675).
Embora o constituinte tenha dispensado tratamento especial à educação na
Carta Constitucional22 , as normas sobre a educação são tratadas em diversas
normas infraconstitucionais, sobressaindo-se, dentre estas, a Lei nº 9.394/9623 (Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e a Lei nº 8.069/9024 (Estatuto da
Criança e do Adolescente) (FERNANDES, 2017, p. 732).
Marcelo Hugo da Rocha (2016, p. 132), ao tratar sobre o tema, observa que
o direito à educação está inserido no rol dos direitos humanos consagrados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH (1948). Quanto a esse aspecto,
pontua esse doutrinador que “a constrição ao direito humano da educação por
parte de um Estado soberano, como o Brasil, não só implica descumprir a DUDH,
como também afronta o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais” (FERNANDES, 2017, p. 133).
O art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos assim dispõe:
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita,
pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução
22 Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco observam que “além da previsão geral do art. 6º
da Constituição, que consagra o direito à educação como direito de todos e dever do Estado, o texto
constitucional detalhou seu conteúdo mínimo nos arts. 205 a 214. Nesse sentido, estabeleceu uma série de
princípios norteadores da atividade do Estado com vistas a efetivar esse direito, tais como a igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola, assim como o pluralismo de ideias e concepções
pedagógicas e autonomia universitária”. (Ibidem, p. 675). 23 BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 20 de jun. de 2019. 24 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá
outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 20
de jun. 2019.
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elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível
a todos, bem como a instrução superior, está baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos
raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em
prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução
que será ministrada a seus filhos (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS DO HOMEM)25
O direito à educação é um instrumento indispensável para a concretização
dos valores imanentes ao princípio da dignidade da pessoa humana 26 . É por
intermédio desse princípio que são reconhecidos e garantidos os direitos
fundamentais e, nas palavras de Sérgio Alves Gomes, “é em respeito ao pleno
desenvolvimento da personalidade humana que o direito à educação merece a
qualificação de direito fundamental” (2005, p. 96).
Inclusive, o próprio Estado Democrático de Direito assenta-se no princípio
da dignidade da pessoa humana. Com efeito, conforme também pontua Sérgio
Alves Gomes, “foi o reconhecimento da dignidade humana em forma de princípio
fundamental do Direito Constitucional e do Direito Internacional dos Direitos
Humanos que levou à instituição do Estado Democrático de Direito” (idem, ibid).
José Afonso da Silva, em sintonia com esse entendimento, posiciona-se no
sentido de que, ao fazer a observação de que a educação é um direito social
assegurado a todos no texto constitucional, “o art. 205 contém uma declaração
25 Cf. ONU. Nações Unidas no Brasil. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em 17 jun. 2019. 26 José Afonso da Silva, ao conceber a educação como atributo da pessoa humana, sustenta que “é essa concepção que Constituição agasalha nos
arts. 205 a 2014, quando declara que ela é um direito de todos e dever do Estado”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 19ª ed. rev. e atual. Malheiros: São Paulo, 2001, p. 813).
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fundamental que, combinada com o art. 6º, eleva a educação ao nível dos direitos
fundamentais do homem”27.
3. O Direito à Inclusão Social da Pessoa com Deficiência
No dia 6 de julho de 2015, foi editada a Lei nº 13.146 (o Estatuto da Pessoa
com Deficiência – EPCD), a qual representa um marco histórico no ordenamento
jurídico brasileiro, significando, assim, um importante avanço para a busca da
concretização da dignidade da pessoa com deficiência. A referida lei está em
harmonia com os princípios e exigências contidos na Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPC28.
A CDPC foi assinada em 30 de março de 2007, aprovada pelo Congresso
Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 200829 , e
promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Assim, ao assinar e
ratificar a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o
Brasil se comprometeu a implementar medidas para dar efetividade aos direitos
garantidos nesse pacto internacional30.
27 Cfr. SILVA. José Afonso da. Op. cit., p. 315. 28 Cfr. ONU. Nações Unidas no Brasil. Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência. 2008. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/acao/pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em 17
jun. 2019. 29 BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de
2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/CONGRESSO/DLG/DLG-186-2008.htm>.
Acesso em: 12 mar. 2020. 30 Cfr. ARAUJO, Luiz Alberto David; COSTA FILHO, Waldir Macieira da. O Estatuto da Pessoa com
Deficiência – EPCD (Lei 13.146, de 06.07.2015): algumas novidades. Revista dos Tribunais, vol. 962, ano
104, p. 65-80. São Paulo: Ed. RT, dez. 2015, p. 66.
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Conforme se constata do disposto no art. 1º da CDPC31, essa convenção
internacional apresenta deveres genéricos e determina comportamentos sem, no
entanto, anotar prazos 32 . Porém, a Lei nº 13.146/2015, ao buscar garantir os
direitos e liberdades fundamentais à pessoa com deficiência, tem por primazia,
sobretudo, a inclusão social dessas pessoas, consoante se infere do preconizado
no art. 1º dessa lei, que assim dispõe:
Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência
(Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a
promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das
liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua
inclusão social e cidadania (BRASIL, Lei nº 13.146/2015).
Nos termos do disposto no art. 2º da Lei nº 13.146/2015, a pessoa com
deficiência “é aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial”, impedimento esse que “em interação com uma
ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em
igualdade de condições com as demais pessoas”.
O direito à inclusão social das pessoas com deficiência é um dos principais
objetivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, tudo com o propósito maior de
garantir o respeito à pessoa humana. Consoante o disposto no art. 4º do EPCD,
31 O art. 1º da CDPC assim dispõe: “Artigo 1º – O propósito da presente Convenção é o de promover,
proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais
por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade. Pessoas com
deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais
pessoas”. 32 ARAUJO, Luiz Alberto David; COSTA FILHO, Waldir Macieira da. Op. cit., p. 66.
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“toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as
demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”.
De outra parte, no intuito de garantir a efetiva inclusão social das pessoas
com deficiência, o legislador pátrio lhes assegurou “o direto ao exercício de sua
capacidade legal em condições de igualdade com as demais pessoas” (art. 84,
caput). Vê-se um dos relevantes exemplos quanto à busca pela efetiva inclusão
social da pessoa com deficiência quando o EPCD, no § 1º do art. 84, faculta a
“adoção do processo de tomada de decisão apoiada”33.
É relevante salientar que a tomada de decisão apoiada representa a
concretização do preconizado na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência. O art. 12 dessa Convenção dispõe que “os Estados
Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal
em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”
e que, nesse passo, “os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover
o acesso de pessoas com deficiência ao apoio de que necessitarem no exercício de
sua capacidade legal”.
São valiosas as observações feitas por Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald sobre o real significado da tomada de decisão apoiada:
Na tomada de Decisão Apoiada, o beneficiário (pessoa plenamente
capaz, relembre-se), no gozo de seus direitos civis, procura ser
coadjuvado em seus atos pelos apoiadores. Não significa qualquer tipo
de restrição de plena capacidade. [...] Eventualmente, precisando de
33 A tomada de decisão apoiada é uma inovação trazida pelo EPCD, o qual introduziu o art. 1783-A à Lei nº
10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Esse dispositivo legal, em seu caput, se encontra vazado
nos seguintes termos: “Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com
deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua
confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos
e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”
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auxílio (apoio, na linguagem da lei), o sistema prevê a nomeação de dois
apoiadores, que não serão representantes ou assistentes – porque não
há incapacidade. [...] Elas não serão interditadas ou incapacitadas, pois a
tomada de decisão apoiada apenas promove a autonomia, sem cerceá-
la (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 340).
Dentro desses quadrantes, a exemplo do que sucede com esse importante
instituto da tomada de decisão apoiada, que tem o propósito de maximizar a
inclusão social das pessoas com deficiência, o EPCD, em perfeita sintonia com a
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
representou um importante marco no ordenamento jurídico brasileiro pela busca
efetiva da inclusão social e da cidadania dessas pessoas.
4. A Educação Inclusiva da Pessoa com Deficiência
O direito à educação inclusiva da pessoa com deficiência encontra-se previsto
no art. 208, III, da Constituição Federal, que preceitua que o “atendimento
educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na
rede regular de ensino” constitui dever estatal. Ademais, o inciso V dispõe que o
Estado também deve garantir “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da
pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”.
Insta salientar que o direito à educação inclusiva não significa segregar a
pessoa com deficiência em ambientes educacionais diferenciados, distante do
convívio com as demais pessoas. Assim, adequadas são as ponderações feitas por
Erick Santos em artigo científico de sua autoria, segundo o qual o termo “educação
especial” deve ceder lugar à expressão “educação inclusiva”, conforme trecho a
seguir transcrito:
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Inicialmente, pregava-se que o ensino deveria ser ministrado às pessoas
com deficiência em estabelecimentos ou salas diferenciadas, excluindo-
as do convívio regular com os outros alunos. Tal entendimento não mais
vigora, em virtude da necessidade de integrar a pessoa com deficiência
ao convívio normal. Substitui-se, portanto, o termo educação especial por
educação inclusiva, que melhor reflete os propósitos do atendimento
conferido às pessoas com deficiência, que deve ser no sentido de integrá-
las ao convívio com outros alunos (SANTOS, 2012, p. 134).
A Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino,
adotada em 14 de dezembro de 1960, pela Conferência Geral da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, reunida em Paris, foi
aprovada pelo Decreto Legislativo nº 40, de 1967, tendo entrado em vigor, no
ordenamento jurídico brasileiro, em 19 de julho de 1968. O referido decreto
legislativo determinou a execução e o cumprimento da convenção de acordo com
os estritos termos nela contidos.
A convenção em tela representa instrumento essencial para a luta contra a
discriminação, tendo importante papel para a garantia da educação inclusiva. Em
seu artigo I, refere-se à abrangência do termo “discriminação”, in verbis:
Para os fins da presente Convenção, o termo "discriminação" abarca
qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião,
origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por
objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em
matéria de ensino, e, principalmente:
a) privar qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso aos diversos
tipos ou graus de ensino;
b) limitar a nível inferior à educação de qualquer pessoa ou grupo;
c) sob reserva do disposto no artigo 2 da presente Convenção, instituir
ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para
pessoas ou grupos de pessoas; ou
d) de impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições
incompatíveis com a dignidade do homem.
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Representando notável avanço para a garantia da educação inclusiva das
pessoas com deficiência, a Lei nº 13.146, de 2015, encontra-se em harmonia com
as diretrizes da convenção, especialmente quando faz alusão ao dever do Estado,
da família, da comunidade escolar e da sociedade de assegurar educação de
qualidade à pessoa com deficiência, combatendo-se a violência, a negligência e a
discriminação34 (parágrafo único do art. 27 da referida lei).
O EPCD aponta, ainda, que deve ser assegurado à pessoa com deficiência
sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como aprendizado ao longo
de toda a sua vida, de forma a desenvolver da melhor forma possível seus talentos
e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características,
interesses e necessidades de aprendizagem (art. 27, caput).
Como dito anteriormente, é fundamental que o ensino inclusivo seja feito,
sempre que possível, possibilitando-se o contato entre a pessoa com deficiência e
as demais pessoas. Todavia, a fim de preservar a dignidade do aluno que possua
alguma limitação que impeça seu convívio com os demais, há a possibilidade
excepcional de garantir seu atendimento em ambientes educacionais
34 Como demonstram Luiz Alberto David Araujo e Waldir Macieira da Costa Filho: “Desta forma, cabe criar
as condições para que as pessoas com deficiência, principalmente as crianças com impedimentos cognitivos,
físicos e sensoriais, tenham direito igual às demais de acesso e permanência nas escolas públicas e privadas
regulares e, assim, se dê concretude ao seu direito à educação e à cidadania. Para tanto, impõe-se o
reconhecimento das suas diferenças específicas que, precisamente com vistas à possibilitar a igualdade,
deverá garantir uma política de ensino adequada às suas necessidades educacionais especiais. Apenas essa
especificidade de tratamento poderá possibilitar a sua real inclusão. A questão revela a complexidade de que
se reveste o direito atual que, ao afirmar direitos universais, não mais pode permanecer cego às necessidades
especiais de determinados grupos de pessoas, e para garantir o acesso dessas pessoas a esses direitos, há que
internalizar no próprio direito políticas e estratégias de enfrentamento das condições que os obstam. Para
igualarmos em certos aspectos temos que desigualar em outros com vistas a atingir o fim de garantir a
inclusão. Somos diversos, e a diversidade exige que examinemos na teoria e na prática os desafios e as
possibilidades postulados à educação, com vistas a darmos à igualdade de oportunidades e à inclusão
educacional dessas pessoas” (ARAUJO, Luiz Alberto David; COSTA FILHO, Waldir Macieira da. Op. cit.,
p. 76).
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especializados. Desse modo, a Lei nº 9.394, de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional), estabelece que o “atendimento educacional será feito em
classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições
específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de
ensino regular” (art. 58, § 2º).
Em atenção à excepcionalidade do atendimento em estabelecimentos
educacionais separados, a Lei nº 13.146/2015 traz, em seu art. 28 – de modo que
os estudantes com deficiência possam ser incluídos nos estabelecimentos de
ensinos regulares –, diversas atribuições ao Poder Público, tais como: a promoção
da inclusão plena da pessoa com deficiência, com aprimoramento dos sistemas
educacionais; a oferta de ensino de Libras, do Sistema Braille e o uso de tecnologia
assistencial, a fim de ampliar as habilidades funcionais dos estudantes,
promovendo sua autonomia e participação, facilitando sua socialização com as
demais pessoas; o acesso, em igualdade de condições, a jogos e a atividades
recreativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar; e o acesso à educação
superior e à educação profissional e tecnológica em iguais condições com as
demais pessoas.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência possui grande relevo, também, para a
esfera profissional dessas pessoas. Assim, será abordado, a seguir, o impacto do
direito à educação inclusiva das pessoas com deficiência no ambiente de trabalho.
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5. A Repercussão do Direito à Educação Inclusiva da Pessoa com
Deficiência no Ambiente de Trabalho
No tocante aos reflexos causados ao ambiente de trabalho pelo direito à
educação inclusiva das pessoas com deficiência, cabe ressaltar que a Lei nº 13.146,
de 2015, cuida, em seu Capítulo VI, do direito ao trabalho dessas pessoas.
O art. 34, caput, do referido diploma legal prevê: “A pessoa com deficiência
tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e
inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. Além disso, o
§ 2º do referido dispositivo dispõe que a pessoa com deficiência tem direito –
assegurando-se a igualdade em relação aos demais trabalhadores – a condições
justas e favoráveis de trabalho, inclusive no tocante à sua remuneração.
Acerca do tratamento isonômico que deve ser conferido às pessoas com
deficiência, mostram-se apropriadas as considerações feitas por Guilherme
Domingos de Luca e Rogério Nascimento Renzetti Filho:
Visando a demonstrar maior forma de inserção de políticas afirmativas
em favor da pessoa com deficiência, é cediço que o trabalho e a garantia
ao emprego se fundamentam como importante elemento de isonomia.
Para que a pessoa com deficiência seja inserida no mercado de trabalho
é necessário, primeiramente, abrir mão do preconceito e da opressão e
perceber que essas pessoas são inteiramente capazes de exercer cargos
e funções, dentro de seus limites, e podem perfeitamente obter o sucesso
profissional (grifos nossos) (LUCA; RENZETTI FILHO, 2018, p. 227).
Ademais, é importante destacar que a Lei nº 13.146/2015 traz relevantes
disposições acerca do direito à educação da pessoa com deficiência no espaço de
trabalho, sendo oportuno destacar que os §§ 4º e 5º de seu art. 34 asseveram que
o acesso da pessoa com deficiência a cursos diversos (inclusive a cursos de
formação e capacitação), a treinamentos e a educação continuada deve ocorrer
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com observância à igualdade e à acessibilidade. Tais parágrafos são transcritos a
seguir:
§ 4º A pessoa com deficiência tem direito à participação e ao acesso a
cursos, treinamentos, educação continuada, planos de carreira,
promoções, bonificações e incentivos profissionais oferecidos pelo
empregador, em igualdade de oportunidades com os demais
empregados.
§ 5º É garantida aos trabalhadores com deficiência acessibilidade em
cursos de formação e de capacitação (grifos nossos) (BRASIL, Lei nº
13.146/2015
A Seção II do Capítulo VI da lei em comento tem por objeto a habilitação e a
reabilitação profissional, as quais correspondem ao processo destinado a propiciar
à pessoa com deficiência aquisição de conhecimentos, habilidades e aptidões para
exercício de profissão ou de ocupação, permitindo nível suficiente de
desenvolvimento profissional para ingresso, permanência e reingresso no campo
de trabalho.
O § 3º do art. 36 é claro ao prever o objetivo de se capacitar a pessoa com
deficiência para trabalho que lhe seja adequado, a fim de que possa obtê-lo,
conservá-lo e nele progredir, devendo, para tanto, os serviços de habilitação,
reabilitação e educação profissional ser dotados de recursos necessários para
atender a todos que possuírem alguma deficiência. O § 4º, por sua vez, dispõe que
os serviços de habilitação profissional, de reabilitação profissional e de educação
profissional devem ser oferecidos em ambientes inclusivos e acessíveis.
O Estado possui, inclusive, o dever de garantir tais condições. O estatuto
define, em seu art. 35, como finalidade primordial das políticas públicas de trabalho
e emprego promover e garantir condições de acesso e de permanência da pessoa
com deficiência no campo de trabalho.
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Demais disso, nos termos do art. 36, § 1º, o Poder Público deve implementar
serviços e programas completos para habilitação e reabilitação profissional, a fim
de que o ingresso, a continuidade e o retorno ao mercado de trabalho sejam
assegurados. O § 5º desse artigo estabelece, também, que a habilitação e a
reabilitação profissional devem ocorrer com articulação entre as redes públicas e
privadas, especialmente de saúde, de ensino e de assistência social, em todos os
níveis e modalidades, em entidades de formação profissional ou diretamente com
o empregador.
Evidencia-se, assim, a harmonia entre a Lei nº 13.146, de 2015, e a
Recomendação nº 168, de 20 de junho de 1983, da Organização das Nações
Unidas, que cuida da reabilitação profissional e o emprego de pessoas com
deficiência. É importante destacar a redação dos itens nº 7 e 12 da citada
recomendação:
7. As pessoas portadoras de deficiência deveriam desfrutar de igualdade
de oportunidades e de tratamento no acesso, na manutenção e na
promoção no emprego que, sempre que for possível, corresponda a sua
eleição e a suas aptidões individuais.
12. Ao elaborar programas para a integração ou reintegração das pessoas
portadoras de deficiência na vida ativa e na sociedade, teriam que ser
considerados todos os tipos de formação; estes deverão incluir, quando
necessário e conveniente, atividades de preparação profissional e
formação, formação modular, formação para as atividades da vida
cotidiana, cursos de alfabetização e formação em outras esferas que
afetam à reabilitação profissional. (grifos nossos) (ONU, Resolução nº 168,
1963).
Depreende-se do exposto que o direito à educação das pessoas com
deficiência no ambiente de trabalho deve ser garantido não só pelo Estado, mas
por toda a sociedade, a fim de garantir condições de igualdade para o acesso, a
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permanência e o reingresso em ofícios escolhidos por tais pessoas, tudo em
observância aos ditames constitucionais e às diretrizes internacionais sobre a
matéria35.
Considerações Finais
Foi analisado, neste artigo, que o direito à educação inclusiva da pessoa com
deficiência possui fundamentos em um vasto conjunto normativo, tendo sido
realizados estudos acerca do tema na Constituição Federal, na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, na Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, na Convenção das Nações Unidas relativa à
Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino, no Estatuto da Pessoa com
Deficiência e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Verificou-se que a garantia da educação inclusiva constitui dever não só do
Estado, mas de toda a sociedade, a fim de que a dignidade humana da pessoa com
35 Pertinentes são as observações feitas por Juliane Caravieri Martins e Zélia Maria Cardoso Montal em artigo
de sua autoria, conforme excerto a seguir reproduzido: “Nesse contexto, a educação para o trabalho,
enquanto direito social fundamental prescrito na Constituição (art. 6º, CF), extrapola a característica de norma
programática e apresenta-se como direito público subjetivo do cidadão trabalhador, o que o torna exigível
do Estado, seja atuando sozinho mediante políticas públicas, seja atuando em colaboração ou parceria com a
sociedade (art. 205, CF). Dessa maneira, na seara da educação para o trabalho e qualificação profissional,
destaca-se a necessidade de atuação das empresas e do setor privado em geral na efetivação desse direito
fundamental em colaboração com os órgãos públicos no âmbito da chamada responsabilidade social da
empresa. Esta temática é analisada por diferentes áreas do conhecimento humano, tais como: o direito, a
administração, a filosofia etc., no intuito de se imprimir ‘novos contornos’ às relações entre capital e trabalho
em prol da busca para a concretização do direito ao trabalho digno na era do capitalismo global.” (MARTINS,
Juliane Caravieri; MONTAL, Zélia Maria Cardoso. Educação para o trabalho (direito fundamental) e a
responsabilidade social da empresa na profissionalização dos adolescentes. In: Revista de Direito
Constitucional e Internacional, vol. 108, ano 26, p. 121-155. São Paulo: Ed. RT, jul.-ago. 2018, p. 131-132).
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deficiência possa ser observada. Viu-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência,
em consonância com a Constituição Federal e com as instruções internacionais,
representa notável avanço na disciplina legal da matéria, seja porque reafirma a
proibição da discriminação desse grupo de pessoas, seja porque traz relevantes
novidades ao ordenamento jurídico, como no caso da tomada de decisão apoiada.
A educação inclusiva, como explicado, não possui o mesmo significado da
educação especial, tendo em vista que intenta promover a inserção das pessoas
com deficiência em ambientes de ensino que buscam a inclusão social e a garantia
da cidadania dessas pessoas. Constitui exceção, portanto, o atendimento em
classes, escolas ou serviços especializados.
O EPCD, assim, apresenta-se como importante instrumento normativo para a
concretização dos direitos das pessoas com deficiência. Tal diploma legal,
acertadamente, reforça a concepção de que tais pessoas são plenamente capazes,
concepção essa que tem sido, cada vez mais, relevante para o campo da educação
inclusiva.
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OS IMPACTOS DA JORNADA DE TRABALHO NA VIDA DOS
MOTORISTAS PROFISSIONAIS DE CARGAS DO BRASIL: UMA ANÁLISE DA
FLEXIBILIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO SOCIAL E A CONFIGURAÇÃO DO DANO
EXISTENCIAL
Arlene Pereira da Silva Sacco
Mestranda no Programa de Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos
Reivindicatórios pelo Centro Universitários IESB
Augusto César Leite de Carvalho
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla la Mancha; mestre
em Direito pela Universidade Federal do Ceará; professor de Direito do Trabalho do IESB;
professor colaborador da Universidade de Brasília (UnB) em pós-graduação de Direito
Constitucional do Trabalho e professor do mestrado da Universidade Autônoma de
Lisboa; ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Resumo
O objeto deste estudo foi analisar os impactos da excessiva jornada de trabalho na saúde
física e mental dos motoristas profissionais no Brasil, e em que medida a flexibilização da
legislação social do trabalho contribui para a precarização estrutural do trabalho dessa
categoria profissional, e a configuração do dano existencial. O estudo balizou-se pela
pesquisa bibliográfica, utilizando recursos como livros, artigos e revistas especializadas.
Palavras-chave: Jornada de Trabalho. Motoristas Profissionais de Cargas. Flexibilização
Legislativa. Saúde. Dano Existencial.
Abstract
The purpose of this study was to analyze the impacts of excessive work hours on the
physical and mental health of professional drivers in Brazil, and to what extent the
flexibilization of social labor legislation contributes to the structural precariousness of the
work of this professional category, and the existential damage. The study was based on
bibliographical research, using resources such as books, articles and specialized journals.
Keywords: Workday. Professional Drivers of Loads. Legislative Flexibilization. Health.
Existential Damage.
Indrodução
O transporte rodoviário no Brasil é o principal sistema logístico do país,
conta com uma rede de 1.720.700 quilômetros de estradas e rodovias nacionais, e
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essa extensa malha rodoviária é ocupada pelo transporte de cargas que
movimenta o abastecimento das comunidades em todo o território nacional, tendo
como principais atores os motoristas profissionais do transporte de cargas.
A atividade laboral desses atores é objeto do presente estudo. As longas
distâncias percorridas, com intervalos curtos para entrega das cargas, baixas
remunerações, uso de medicamentos para não dormir, algumas vezes
psicotrópicos, são alguns dos fatores observáveis ao se analisar as condições de
trabalho dessa categoria.
Fatores que chamaram a atenção no Ministério Público do Trabalho,
especialmente no que tange às longas jornadas de trabalho às quais são
submetidos os motoristas rodoviários, resultando num trabalho conjunto para
consecução de uma legislação que regulasse o assunto.
Contudo, com resultado bem diverso do inicialmente discutido,
verificando-se uma “escravização” desses trabalhadores, submetidos a duras
jornadas de trabalho, com péssimas condições de trabalho, e total ausência de
respeito aos direitos trabalhistas da categoria, ocasionando, muitas vezes, lesões
ao direito fundamental da pessoa humana, resultando em um dano existencial
àquele motorista rodoviário.
O objetivo central do estudo é identificar os prejuízos causados aos
motoristas profissionais de cargas pela flexibilização da legislação social do
trabalho contribuindo sobremaneira para uma precarização dessa atividade
laboral.
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2. O transporte de cargas e precarização do trabalho do caminhoneiro
Segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT), a malha
rodoviária do país é composta por 1.720.700 km de rodovias. Assim, o transporte
rodoviário caracterizou-se por possuir uma alta capilaridade, possuindo uma
participação predominante na matriz de transporte do Brasil. Estima-se que 96%
das distâncias percorridas no Brasil sejam pelo modal rodoviário. No que se refere
às cargas, 64% são transportadas através de rodovias, 21% em ferrovias, 12% em
hidrovias e o restante por gasodutos/oleodutos, ou meios aéreos (BELAN et al.,
2017).
Essa extensa malha rodoviária é ocupada pelo transporte de cargas que
movimenta o abastecimento das comunidades em todo o território nacional, tendo
como principais atores os caminhoneiros no transporte de cargas, que para
cumprirem os prazos de entrega são submetidos a excessivas horas de trabalho.
Segundo uma pesquisa realizada pela Escola Superior de Agricultura Luiz
de Queiroz (Esalq) da USP, hoje no Brasil cerca de 2 milhões de caminhoneiros
percorrem as estradas diariamente. Contudo, o estudo revelou jornadas de
trabalho excessivas e baixa remuneração nas estradas.
O trabalho dos motoristas rodoviários, portanto, situa-se nesse contexto
de jornadas excessivas e com turnos irregulares, que refletem negativamente na
saúde do trabalhador. Um estudo sobre a vida e o trabalho dos caminhoneiros
realizado por Santos (apud Antunes, 2004, p. 285-353), mostra que caminhoneiros
no Brasil são distribuídos de forma bastante heterogênea quanto aos locais de
trabalho. Grupos que realizam seu trabalho em zonas urbanas ou em pequenos
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itinerários nas estradas vicinais conseguem retornar ao lar e manter o convívio
social ao final do dia. Já motoristas que realizam se trabalho em longos percursos,
em rotas estaduais, federais e até internacionais, passam muito tempo longe da
família e do convívio social, restringindo-se aos encontros com trabalhadores das
rodovias e dos postos de serviços das estradas.
Dentro desse contexto, pesquisadores da Universidade Federal Fluminense
(UFF) analisaram a organização do trabalho e o comprometimento da saúde dos
caminhoneiros no Estado de São Paulo, onde constataram que determinadas
enfermidades tais como obesidade, hipertensão, taxas alteradas de colesterol,
diabetes e alterações posturais podem ser acirradas por fatores relacionados à
organização do trabalho: longas jornadas de trabalho, ausência de pausas,
imposição de prazos curtos para entrega de carga e a precariedade dos postos de
descanso, além das alterações frementes do denominado ciclo circadiano,
conforme o destaque:
O ciclo circadiano dos caminhoneiros também é rotineiramente
modificado, pois dirigem longas horas seguidas – às vezes mais à noite,
às vezes mais durante o dia – não permitindo ao organismo a adaptação
ou “migração” do sono para o novo horário. Neste aspecto, o horário de
trabalho do caminhoneiro se assemelha ao dos trabalhadores em turnos
diferentes. Isto acarreta consequências para o equilíbrio fisiológico do
organismo (ciclo circadiano, hábitos de sono e alimentação, por exemplo)
que interfere na eficiência do desempenho, prejudica as relações pessoais
(social, trabalho e família), além de deteriorar as condições de saúde,
causando transtornos do sono, distúrbios gastrointestinais e
cardiovasculares.
A organização do trabalho das transportadoras focada na redução de
custos, na busca de produtividade, na redução de efetivos, nas longas
jornadas de trabalho (38% tem carga horária acima de 12h por dia) na
redução de folgas (com média de 40 dias longe da família e que 49%
deles não tiram férias anuais), podem provocar os sintomas referidos
acima (sobrecarga física, emocional e psicológica, estresse, sofrimento e
doenças ocupacionais).
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Todos esses dados comprovam que as péssimas condições de trabalho,
associadas à jornadas de trabalho excessivas cumuladas com fatores estressores
de ordem ambiental, a ausência do convívio familiar e social, associado ao uso de
substância entorpecentes, demonstram que as exigências impostas aos motoristas
profissionais pela organização do trabalho das empresas transportadoras gera
uma sobrecarga física e psicológica aos trabalhadores dessa categoria profissional.
Nessa toada, Ricardo Antunes explica que:
A redução da jornada diária (ou do tempo semanal) de trabalho tem sido
uma das mais importantes reivindicações do mundo do trabalho, uma
vez que se constitui num mecanismo de contraposição à extração do
sobretrabalho, realizado pelo capital, desde a sua gênese com a
Revolução Industrial e contemporaneamente com a acumulação flexível
da era do toyotismo e da máquina informacional (ANTUNES, 2015).
As péssimas condições de trabalho dos motoristas rodoviários no Brasil,
especialmente no que tange às longas jornadas de trabalho, também foram objeto
de estudo do Ministério Público do Trabalho da 24ª Região. O Procurador do
Trabalho, Paulo Douglas Almeida de Moraes desenvolveu um trabalho
especificamente voltado para a realidade da categoria de motoristas profissionais,
em que observou dados importantes, como descritos a seguir:
Será que efetivamente o motorista hoje é tratado como igual? Eu diria
que é exatamente a condição indigna a qual o motorista é submetido
que, de certo modo, deu um impulso a esse debate. Em 2007, quando
estivemos em Rondonópolis, no início da carreira no Ministério Público
(...) fomos às rodovias e constatamos que, naquela oportunidade, de 28%,
ou melhor dizendo, de 22% de positividade clínica, paramos 100
motoristas e constatamos 22% deles usando alguma espécie de
substância e imaginávamos, num primeiro momento, que seria
anfetamina; 68% usavam cocaína e 32% anfetamina.
Um detalhe interessante é que alguns questionam o nexo de causalidade
entre a jornada de trabalho e o uso de drogas: ora, será que o motorista
não quer apenas curtir um barato ou alguma coisa assim? Percebam que
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essa última aferição em 2012 indica com muita facilidade essa relação,
porque até às 21h nenhuma amostra de urina apresentou o uso de
drogas. Das 21h às 23h, até às 24h, na verdade, o aumento foi
exponencial e, (...) há uma relação direta entre o relógio biológico no
momento em que aponta para o descanso; para violentar ou violar esse
nosso relógio biológico, há necessidade do uso de substâncias químicas
Após ganharem repercussão nacional, outros atores entraram no debate,
e num esforço interinstitucional foi editada a Lei nº 12.619/2012, que veio regular
e disciplinar a jornada de trabalho e o tempo máximo que o motorista profissional
poderia ficar na direção de maneira ininterrupta, dando a eles a chance de serem
protegidos de acordo com a regulamentação específica que é proposta pelo
Direito do Trabalho.
Contudo, anos mais tarde, as paralizações de fevereiro de 2015, que na
realidade tiveram como objetivo mais a defesa dos interesses dos empregadores,
resultaram na edição da Lei nº 13.103/2015, que acaba por tornar o ambiente de
trabalho das classes de trabalhadores dos motoristas profissionais mais inseguro e
desgastante, gerando prejuízo direto à saúde destes trabalhadores.
Os motoristas profissionais, submetidos ao império daqueles que detêm
os meio de produção, enfrentam diariamente a precariedade das condições de
trabalho, seja na infraestrutura das rodovias brasileiras e nos pontos de parada,
seja nos curtos prazos de entrega ou mesmo na terceirização.
3. A flexibilização da legislação social do trabalho
Conforme já mencionado, as últimas alterações legislativas vieram a
flexibilizar as regras para as jornadas de trabalho dos motoristas rodoviários, com
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possibilidade de ocorrência de sobrecargas de trabalho que, ao longo do tempo,
podem comprometer a saúde e a qualidade de vida do trabalhador.
A Lei nº 13.103/2015 trouxe alteração do artigo 235-C, que fora inserido
na CLT pela Lei nº 12.619/2012. Uma das mais consideráveis modificações
imputadas pela edição e publicação da lei sob comento foi a que disciplinou a nova
duração da jornada de trabalho, com autorização de possibilidade de prorrogação
de até quatro horas diárias. (GEMIGNANI; GEMIGNANI, 2016).
Enquanto na Lei 12.619/2012 observava-se que a jornada de trabalho dos
motoristas seria disciplinada pela CRFB e por acordos e/ou convenções coletivas,
admitindo-se horas extraordinárias de até duas horas diárias, a Lei nº 13.103/2015
veio possibilitar que os empregadores possam exigir, se respaldadas por
negociação coletiva, até quatro horas extraordinárias diárias, sendo que estas
ainda poderão ser compensadas (GEMIGNANI; GEMIGNANI, 2016).
Tamanha abertura trazida pela Lei nº 13.103/2015, acaba por permitr que
o empregador fixe jornadas de trabalho de até doze horas, o que compromete
sobremaneira a segurança e a saúde do trabalhador, que devem redobrar atenção,
utilizando muitas vezes, substâncias psicotrópicas.
Outra inovação, tanto a Lei 12.619/2012, quanto a Lei 13.103/2015 foi à
inclusão dos mesmos no artigo 235-F da CLT, que possibilidade de jornada de 12
X 36, por meio de regime de compensação. Contudo, no caso dos motoristas
rodoviários, na maioria das vezes, não é possível, devido à distância, retornarem
aos seus lares para o descanso das trinta e seis horas, após as dozes trabalhadas.
Assim, a supressão do direito ao descanso e ao convívio familiar afeta o
trabalhador, no caso em tela o motorista profissional de transporte de cargas
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rodoviárias, que além dos prejuízos à saúde física e psíquica, também causam
efeitos danosos às famílias destes trabalhadores.
Como consequência da “escravização” desses trabalhadores, submetidos
a duras jornadas de trabalho, com péssimas condições de trabalho, com a falta de
respeito aos direitos trabalhistas da categoria, fica fácil perceber o resultado dessa
conta. Consequências danosas para o trabalhador e sua família, além dos efeitos
colaterais para a sociedade, uma vez que o trabalho do motorista se resume quase
que em dirigir pelas estradas do país, e, estando na direção de veículo sem a devida
possibilidade física e mental, o motorista se transforma em risco para a saúde do
restante da população.
3.1 A Configuração do Dano Existencial nas Jornadas de Trabalho
Excessivas
A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III da
Constituição Federal, constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito, inerente à República Federativa do Brasil. Sua finalidade, na qualidade de
princípio fundamental, é assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem
ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a
valorização do ser humano.
Contudo, para dimensionar o problema é necessário entender
conceitualmente o que seria a dignidade da pessoa humana, que nas palavras de
Ingo Wolfgang Sarlet é assim definida:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e
distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito
e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste
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sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem
a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da
vida em comunhão dos demais seres (SARLET, 2015).
Assim, a definição do princípio da dignidade da pessoa humana é um
conceito aberto, mas deve ser entendido objetivamente como um princípio
aplicável a todas as relações sociais.
Nesse contexto, fazendo uso das palavras de J. González Pérez, Ingo
Wolfgang Sarlet menciona que o princípio da dignidade humana impõe ao Estado,
além do dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que
viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas
de vivem com dignidade.
Na esteira das relações laborais, o Direito do Trabalho veio a propiciar uma
evolução aos Direitos Humanos, quando reafirma a necessidade de respeito aos
preceitos jurídicos de proteção da dignidade humana.
Preceitos esses que se tornam mais prementes quando se analise a
realidade laborativa da categoria dos motoristas profissionais. Aqui encontramos
uma organização do trabalho voltada para redução dos custos, com exigência por
mais produtividade, longas jornadas de trabalho, impossibilitando o trabalhador
do convívio familiar, atores que podem resultar numa sobrecarga física, emocional,
sofrimento e doenças ocupacionais, levando ao que a doutrina atribui como dano
existencial.
Nesse jaez, o dano existencial no Direito do Trabalho, também chamado
de dano à existência do trabalhador, decorre da conduta patronal que impossibilita
o empregado de se relacionar e de conviver em sociedade por meio de atividades
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recreativas, afetivas, espirituais, culturais, esportivas, sociais e de descanso, que lhe
trarão bem-estar físico e psíquico e, por consequência, felicidade; ou que o impede
de executar, de prosseguir ou mesmo de recomeçar os seus projetos de vida, que
serão, por sua vez, responsáveis pelo seu crescimento ou realização profissional,
social e pessoal.
Nas palavras do ministro Augusto César Leite de Carvalho, quando a
sobrecarga de trabalho impede que um empregado tenha projetos pessoais e
relações familiares, surge o dano existencial.
Ainda nas palavras de Carvalho, para que haja a observância ao princípio
de uma existência digna, conforme o previsto na Constituição da República de
1988, “empregados e empregadas não podem viver apenas para o trabalho. Eles
precisam vivenciar outras experiências”.
Assim, a imposição de jornada excessiva ocasiona o dano existencial,
conforme jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, na qual considerou que
o dano existencial ocorre quando a conduta do empregador se revela excessiva ou
ilícita a ponto de prejudicar o descanso e o convívio social e familiar, pois viola,
entre outros, o direito social ao lazer, previsto no artigo 6º da Constituição da
República”, a exemplo da decisão abaixo:
Processo: RR-1351-49.2012.5.15.0097:
RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI Nº
13.015/2014. 1. DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXAUSTIVA. 15 (QUINZE)
HORAS DIÁRIAS DE TRABALHO. MOTORISTA DE CARRETA. DANO
MORAL. INDENIZAÇÃO. O dano existencial é espécie do gênero dano
imaterial cujo enfoque está em perquirir as lesões existenciais, ou seja,
aquelas voltadas ao projeto de vida (autorrealização - metas pessoais,
desejos, objetivos etc) e de relações interpessoais do indivíduo. Na seara
juslaboral, o dano existencial, também conhecido como dano à existência
do trabalhador, visa examinar se a conduta patronal se faz excessiva ou
ilícita a ponto de imputar ao trabalhador prejuízos de monta no que toca
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o descanso e convívio social e familiar. Nesta esteira, esta Corte tem
entendido que a imposição ao empregado de jornada excessiva ocasiona
dano existencial, pois compromete o convívio familiar e social, violando,
entre outros, o direito social ao lazer, previsto constitucionalmente (art.
6º, caput). Na hipótese dos autos, depreende-se da v. decisão regional,
que o reclamante exercia a função de motorista de carreta e fazia uma
jornada de trabalho de segunda a sábado, das 7h00 às 22h00, totalizando
um total de 15 (quinze) horas diárias de trabalho. Assim, comprovada a
jornada exaustiva, decorrente da conduta ilícita praticada pela reclamada,
que não observou as regras de limitação da jornada de trabalho, resta
patente a existência de dano imaterial in re ipsa, presumível em razão do
fato danoso. Recurso de revista não conhecido. 2. QUANTUM
INDENIZATÓRIO. JORNADA EXAUSTIVA. DANO MORAL. Para a fixação
do valor da reparação por danos morais, deve ser observado o princípio
da proporcionalidade entre a gravidade da culpa e a extensão do dano,
tal como dispõem os arts. 5º, V e X, da Constituição Federal e 944 do CC,
de modo que as condenações impostas não impliquem mero
enriquecimento ou empobrecimento sem causa das partes. Cabe ao
julgador, portanto, atento às relevantes circunstâncias da causa, fixar o
quantum indenizatório com prudência, bom senso e razoabilidade.
Devem ser observados, também, o caráter punitivo, o pedagógico, o
dissuasório e a capacidade econômica das partes. No caso, em exame,
levando em consideração a gravidade e extensão do dano (jornada
exaustiva do autor de 15 horas diárias), a capacidade econômica das
partes, o grau de culpa da reclamada, além do caráter pedagógico
entendo razoável reduzir o valor da indenização por danos morais, pela
jornada exaustiva, para o importe de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), valor
que vem sendo fixado por esta Turma no julgamento de casos análogos.
Precedentes. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido.
Considerações finais
O ambiente de trabalho e algumas características da sua organização
podem interferir na qualidade de vida dos caminhoneiros e serem fatores
preponderantes para o desenvolvimento de riscos para a saúde dos motoristas
profissionais. Aliado a isso, uma legislação flexibilizada que possibilita ao
empregador a imposição de jornadas de trabalho excessivamente danosas, a
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ponto de prejudicar o descanso e o convívio social e familiar, torna perceptível o
dano existencial gerado ao trabalhador pela inobservância das leis trabalhistas.
Assim, a Lei 13.103/2015 criam uma situação de extrema precariedade para
os motoristas profissionais, na maioria das vezes, devido à distância, não
conseguem retornar aos seus lares. A supressão do direito ao descanso e ao
convívio familiar afeta o trabalhador, no caso em tela o motorista profissional de
transporte de cargas rodoviárias, que além dos prejuízos à saúde física e psíquica,
também causam efeitos danosos às famílias destes trabalhadores.
Em uma perspectiva crítica se observa que a flexibilização se releva num
processo de aguda destrutividade que assola a sociabilização contemporânea, que
destrói a força humana de trabalho, destrocam-se os direitos sociais, tornado-se
predatória a relação produção-natureza (ANTUNES, 2015).
Em outra perspectiva, as consequências danosas para o trabalhador e sua
família, além dos efeitos colaterais para a sociedade, uma vez que o trabalho do
motorista se resume quase que em dirigir pelas estradas do país, e, estando na
direção de veículo sem a devida possibilidade física e mental, o motorista se
transforma em risco para a saúde do restante da população.
Referências
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a
contrariedade do mundo do trabalho. 15. ed. São Paulo: Cortez/Unicamp, 2015.
BRASIL. Lei nº 12.619, de 30 de abril de 2012. Regulamenta e disciplina a
jornada de trabalho e o tempo de direção do motorista profissional; e dá outras
providências. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2012/Lei/L12619.htm> Acesso em: 25.jun.2019.
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_______. Lei nº 13.1303, de 02 de março de 2015. Altera a Consolidação das Leis
do Trabalho -CLT para disciplinar a jornada de trabalho e o tempo de direção do
motorista profissional. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13103.htm>
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TST. RECURSO DE REVISTA. RR - 1351-49.2012.5.15.0097. Relatora: Ministra
Maria Helena Mallmann. Disponível em:
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ulta=Consultar> Acesso em: 28.jun.2019
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O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS COMO
INSTRUMENTO DE ESTABILIDADE, COERÊNCIA E INTEGRIDADE DAS
DECISÕES JUDICIAIS EM PROCESSOS DE MASSA
Eth Cordeiro de Aguiar
Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro
Universitário IESB; especialista em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito
Público (IDP); bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); subprocurador-
geral do Distrito Federal.
Diogo Palau Flores dos Santos
Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP);
mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); foi
professor substituto da Universidade de Brasília (UnB); advogado da União; professor da
Escola Superior da AGU; professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito
do Centro Universitário IESB. ORCiD: 0000-0001-7706-1117
Resumo
O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, introduzido no ordenamento
jurídico brasileiro com o advento do Código de Processo Civil de 2015, tem como principal
objetivo a uniformização do entendimento jurisprudencial nas demandas massificadas. O
IRDR tem como propósito estabelecer, por meio de um processo-modelo (um caso piloto),
uma decisão judicial que venha a pacificar demandas de massa, com o fito de formar e
consolidar um sistema de precedente obrigatório no Brasil, tendo como propósito o
atendimento de parâmetros realizáveis de coerência e segurança jurídica. A excessiva
dispersão dos entendimentos judiciais sobre uma mesma matéria jurídica dá ensejo ao
descrédito do Poder Judiciário e à intranquilidade social. O Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas busca a prevalência dos princípios da isonomia, da celeridade
processual e da economia processual, objetivando, sobretudo, a primazia do princípio da
segurança jurídica. Esse incidente processual tem como principal propósito a estabilidade,
coerência e integridade das decisões judiciais.
Palavras-chave: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas; uniformização
jurisprudencial; isonomia; segurança jurídica.
Abstract
The Incident of Resolution of Repetitive Demands - IRRD has been inserted to the Brazilian
legal system by means of the Code of Civil Procedure (2015) and has as its main aim the
unification of precedent law on repetitive lawsuits. IRRD has the purpose of reinstate, by
means of a model-lawsuit (a pilot case), a legal decision that may pacify mass lawsuits in
order to consolidate a case law system that be compulsory in Brazil; thus accomplishing
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reasonable parameters of legal coherence and certainty. Once that the legal
understandings on the matter are diverse in an excessively varied fancy even in case of the
same legal substance under analysis, such entails the unaccountability of the Judiciary
Republican Power as well as social perturbability. The Incident of Resolution of Repetitive
Demands entails the objective that the principles of isonomy, procedural haste and
economy be prevalent; thus observing utmost the principles of legal certainty. Such
process law has as its primal purpose the stability, coherence and integrity of legal
sentences and decisions.
Keywords: Incident of Resolution of Repetitive Demands; case law coherence; isonomy;
legal certainty.
Introdução
A litigiosidade repetitiva ou de massa é um problema que aflige não apenas
o Brasil, mas também o Estado contemporâneo, porquanto a rápida integração
econômica, cultural e tecnológica entre as nações tem especial relevo na
proliferação de conflitos massificados, fato esse que abrange uma quantidade cada
vez maior de usuários de serviços públicos e de consumidores de um modo geral
(ALVAREZ; PIERONI; SERPA, 2018, p. 266).
Com o advento da Constituição Federal de 1988, diante da facilidade do
acesso ao Poder Judiciário, houve um aumento exacerbado dos litígios
massificados no Brasil. Esse fato é resultante, sobretudo, dos inúmeros direitos de
caráter social que o constituinte originário consignou na Carta da República,
somado ao fato também de que nenhuma ameaça ou lesão a direito poderá ser
excluída da apreciação judicial (art. 5º XXXV, da CF/1988).
Contata-se, ademais, que, em virtude do advento do Código de Defesa do
Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso,
houve um aumento significativo do número de litígios nos já congestionados
tribunais brasileiros. Afora as questões de ordem metajurídica em que está envolto
o Poder Judiciário, o amplo acesso à justiça e os novos direitos previstos na
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Constituição Federal resultaram em um verdadeiro colapso do Poder Judiciário,
refletido esse fato nas respostas distintas a casos idênticos, gerando, assim,
instabilidade nas relações jurídicas, uma vez que as soluções de casos concretos
têm ficado condicionadas à sorte dos litigantes quando da distribuição dos
processos (RIBEIRO, 2015).
Na exposição de motivos do Código de Processo Civil de 2015 ficou
consignado que haverá distorção do princípio da legalidade e da própria ideia de
Estado Democrático de Direito, se for levado ao extremo o alcance do
convencimento motivado das decisões judiciais, e que, ademais, a excessiva
dispersão da jurisprudência dá ensejo ao descrédito do Poder Judiciário e à
intranquilidade social (BRASIL, 2015).
Muitas são as estratégias jurídicas adotadas no sistema processual brasileiro
para fazer frente às demandas de massa, entre as quais podem ser mencionadas
as ações populares e as ações civis públicas, as quais, no entanto, não se
apresentam com a capacidade suficiente para a pacificação das demandas
repetitivas. Foi com o propósito de buscar uma uniformização desses litígios
massificados que o legislador achou por bem introduzir no ordenamento jurídico
brasileiro, no atual Código de Processo Civil, o incidente de resolução de demandas
repetitivas - IRDR.
No julgamento desse incidente processual, a tese jurídica será aplicada a
todos os processos que versem sobre a mesma matéria, de modo que, em tais
situações, é imperativo que se aplique “o juízo de coerência e integridade,
afastando tanto o voluntarismo como o ativismo, em câmbio da decisão
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surpresa” 36 , tendo como fundamento a segurança jurídica decorrente da
uniformização da jurisprudência em tais demandas.
O presente artigo não tem o intuito de esgotar o estudo sobre o tema, mas
de, entre outras análises, demonstrar a importância do incidente de resolução de
demandas repetitivas como um instrumento processual destinado a pacificar as
demandas massificadas, primando pela estabilidade, coerência e integridade das
decisões judiciais.
1. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas
O sistema processual vigente no ordenamento jurídico pátrio contempla
três tipos de litigiosidade, a saber: a individual, em que são envolvidos interesses
antagônicos de duas pessoas em litígios; a coletiva, que abrange direitos coletivos
em sentido estrito, direitos difusos e direitos homogêneos, hipóteses essas em que
são utilizadas as substituições processuais (essas demandas coletivas têm por
escopo a resolução das lides por meio de uma ação coletiva única); e a repetitiva
ou em massa, resultante de pretensões semelhantes sob o aspecto fático ou
jurídico e que dão ensejo a um grande número de ações judiciais (ALVAREZ; PIERONI;
SERPA).
A multiplicidade de conflitos singulares, que seriam resolvidos, a princípio,
por meio de tutelas coletivas, não foi arrefecida. Pelo contrário, houve um
36 Cfr. GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Hermenêutica e uniformização da jurisprudência: critérios da coerência e integridade da decisão e incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 15, n. 86, p. 39-55, set./out. 2018, p. 46.
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crescimento de novas demandas individuais em relação às questões massificadas,
assoberbando ainda mais os tribunais com um quantitativo enorme de demandas
iguais, resultando desse fato a inviabilização do cumprimento da garantia
constitucional da duração razoável do processo e do emprego de meios que
tenham como escopo acelerar a resolução dos litígios. Ao lado das tutelas
individuais e das tutelas coletivas, há as denominadas tutelas plurindividuais, que
são aquelas realizadas por meio de mecanismos processuais específicos, que
acabam por coletivizar os efeitos das ações originariamente individuais. É, pois,
nesse contexto que surge no ordenamento jurídico brasileiro o incidente de
resolução de demandas repetitivas (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 66).
O IRDR é um instituto processual inovador veiculado no Código de Processo
Civil de 2015, tendo como propósito a solução de litígios repetitivos com a
primazia da uniformidade do entendimento jurisprudencial e da segurança jurídica.
O principal objetivo desse incidente processual é a mitigação do acúmulo
exacerbado de demandas judiciais, atuais e futuras, “nas diversas varas e nos
tribunais de todo o País, de forma inteligente, de modo a manter a segurança
jurídica, a isonomia nas decisões e a celeridade na resolução dos processos
judiciais (AZEVEDO, 2018, p. 339)”.
É relevante anotar que o incidente de resolução de demandas repetitivas,
conquanto tenha previsão legal expressa apenas na legislação adjetiva civil, pode
ser utilizado, por exemplo, tanto nos processos trabalhistas – entendimento já bem
consolidado na doutrina (TUPINAMBÁ, 2017, p. 270) – como também não haveria
óbice para sua utilização também no processo penal, conforme sustentam alguns
doutrinadores (MICHEL; DEITOS; 2017, p. 16).
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No entanto, o presente artigo restringir-se-á apenas aos aspectos
específicos do IRDR disciplinados pelo Código de Processo Civil, ou seja, sem
adentrar nas especificidades dos demais ramos do direito processual, os quais
demandam, pois, adaptações quando da utilização desse incidente processual, por
aplicação subsidiária e supletiva do CPC, em virtude da especialidade dos direitos
laboral e criminal.
O IRDR tem como objetivo estabelecer, por meio de um processo-modelo
(um caso piloto), uma decisão judicial que venha a pacificar demandas de massa,
com o fito de formar e consolidar um sistema de precedente obrigatório no Brasil,
tendo como propósito o atendimento de parâmetros realizáveis de coerência e
segurança jurídica (AVELAR LAMY; SALOMON, 2018, p. 348) e prevalência dos
princípios da isonomia, da celeridade processual e da economia processual.
Efetivamente, o CPC/2015 ao introduzir no ordenamento jurídico brasileiro
o incidente de resolução de demandas repetitivas, estabeleceu um eficiente
sistema de precedentes com o oferecimento isonômico de entendimento às
demandas que tratem sobre idêntica questão jurídica, oferecendo, ipso facto,
segurança jurídica e garantindo a tutela jurisdicional de maneira efetiva com a
uniformização jurisprudencial de teses jurídicas a serem fixadas pelos tribunais
(FUX; FUX, 2018, p. 648).
Ademais, é oportuno salientar que esse incidente processual não se
caracteriza, ante sua abrangência e suas especificidades processuais, como uma
ação coletiva, “pois o processo-modelo não constitui uma espécie processual
autônoma, mas meramente uma técnica de racionalização de questões de direitos
comuns” (LEAL, 2014, p. 35). Com efeito, nos incidentes de resolução de demandas
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repetitivas são discutidas apenas questões de direito, tomando-se como base um
caso-piloto como paradigma37.
Noutro giro, a pacificação do entendimento jurisprudencial de
determinadas questões tem relevância também sobre os aspectos econômicos do
país. Com efeito, em se tratando, por exemplo, de demandas envolvendo
interesses empresariais, a previsibilidade e segurança jurídica ganham contornos
expressivos, haja vista que, a insegurança constitui, de per si, uma medida que priva
da calculabilidade o ordenamento jurídico e que, em decorrência da quebra de
expectativas, tal fato afugenta o investidor, o qual passa ao menos a repensar seu
palco38, o que dá ensejo a prejuízos ao setor produtivo no país, que perde com
essa ausência de previsibilidade das decisões judiciais.
Como se sabe, o direito empresarial tem como viga mestra a previsibilidade
e “o IRDR não apenas propõe tratamento igualitário para questões comuns, como
oferece previsibilidade às empresas sujeitas a grande litigância, uma vez que a
decisão ali proferida estabiliza-se tanto para as ações em curso como futuras
(CARAMÊS; OSNA; DAL POZZO, 2017, p. 286).
Com efeito, o incidente de resolução de demandas repetitivas tem o
condão de tornar mais previsíveis as questões atinentes ao cumprimento de
direitos e contratos, “o que diminui os custos de transação e de comportamentos
oportunistas, fomentando investimentos na economia pelo setor privado
(BARROS; MACHADO; ASSIS; HONÓRIO, 2017, p. 146)”.
37 Cfr. AZEVEDO, Marcelo Tadeu Freitas de. Op. cit., p. 352. 38 Sugere-se leitura completa de CARAMÊS, Guilherme Bonato Campos; OSNA, Gustavo; DAL POZZO,
Emerson Luís. O IRDR sob a perspectiva empresarial. In: RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; CARAMÊS,
Guilherme Bonato Campos (Coords.). Direito empresarial e novo CPC. Belo Horizonte: Fórum. 2017, p.
286.
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2.1 Origem histórica
A exposição de motivos Código de Processo Civil de 2015 assume, de modo
expresso, que o IRDR foi concebido no ordenamento jurídico brasileiro nos moldes
do que se sucedeu no direito alemão no seu procedimento-modelo
(musterverfahren), senão vejamos:
Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o
já referido Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste
na identificação de processos que contenham a mesma questão de
direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão
conjunta (BRASIL, CPC, 2015).
Embora o musterverfahren não tenha sido mais utilizado na Alemanha
(LEAL), sua concepção foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com as
respectivas adaptações. Com efeito, conforme pontua Marcelo Tadeu Freitas de
Azevedo, o IRDR adotado no Brasil “foi copiado do procedimento-modelo
(musterverfahren) do direito alemão, no entanto ‘temperado’, adaptado às
especificidades do processo civil brasileiro39.”
Ademais, o incidente adotado pelo Código de Processo Civil de 2015
envolve tão somente questões de ordem jurídica, ao passo que o adotado pelo
ordenamento alemão engloba não apenas matérias de direito, mas também de
ordem fática. Na linha desse posicionamento doutrinário, o civilista Marcos de
Araújo Cavalcante, um dos maiores estudiosos sobre o tema na atualidade, assim
leciona:
39 AZEVEDO, Marcelo Tadeu Freitas de. Op. cit., p. 339.
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Apesar da exposição de motivos do NCPC mencionar a influência do
musterverfahren para o IRDR, o incidente brasileiro não guarda nenhuma
semelhança com o referido instrumento tedesco. (...).
A distinção mais relevante refere-se ao objeto do procedimento-modelo
alemão, muito restrito, dado que se aplica apenas às controvérsias
oriundas do mercado mobiliário. No Brasil, a aplicação será ampla,
abarcando qualquer matéria jurídica, inclusive para dirimir questões
processuais. O que interessa aqui é que a questão seja jurídica. Em
contrapartida, o musterverfahren aplica-se também às questões de fato
(CAVALCANTI, 2015, p. 23).
De outra parte, como bem anotam Luiz Fux e Roberto Fux, o legislador
brasileiro, de maneira ponderada e crítica, importou dos Estados Unidos da
América e da Inglaterra a “teoria geral dos precedentes40”, absorvendo na máquina
judiciária do Brasil, com as devidas adaptações, conceitos e institutos da teoria do
stare decisis e da doctrine of binding precedent41.
Quanto, especificamente, ao Incidente de resolução de demandas
repetitivas, embora o entendimento dominante na doutrina seja no sentido de que
esse incidente processual tem sua origem no procedimento-modelo alemão, há
diferenças substanciais entre o instituto brasileiro e o germânico. Com efeito, o
IRDR “foi concebido para incidir de forma mais abrangente que o procedimento-
padrão, não se limitando a causas específicas e nem a lapsos temporais pré-
determinados42”.
40 Humberto Theodoro Júnior aponta que: “O método de precedentes é algo que se construiu lentamente na cultura anglo-americana, em função do sistema de equidade, cuja observância prescinde de autorização legislativa. Seus fundamentos mais significativos encontram-se nas garantias fundamentais de igualdade e segurança jurídica. Essas mesmas garantias constitucionais têm inspirado o Direito brasileiro a adotar e aperfeiçoar ao longo de mais de meio século o sistema de valorizar a jurisprudência por meio de súmula dos julgados que se tornam repetitivos e que são capazes de sintetizar teses consolidadas, principalmente nos tribunais superiores do País.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit. p. 75-76). 41 Cf. FUX, Luiz; FUX, Rodrigo. Op. cit., p. 647-648.
42 Cf. Ibidem., p. 648.
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O caso específico da Alemanha que deu origem ao incidente de resolução
de demandas repetitivas no ordenamento jurídico brasileiro diz respeito a um
processo-piloto emblemático envolvendo a Deutsche Telekom durante os anos de
1999 e 2000. Essa empresa ofereceu nesse período suas ações na Bolsa de Valores
de Frankfurt com informações falsas, causando prejuízos a 3 (três) milhões de
acionistas e dando ensejo a mais de 13 mil ações individuais nos juízes de primeira
instância43.
Diante da demora do Tribunal de Frankfurt em solucionar as demandas,
alguns autores, no ano de 2004, manejaram recursos diretamente ao Tribunal
Federal Constitucional da Alemanha sustentando que estava havendo ali violação
ao princípio da duração razoável duração do processo, surgindo desse fato a
criação de uma lei naquele país europeu, em 2010, a qual teve como propósito, no
bojo de um processo judicial, a introdução de “um expediente incidental com a
pretensão de estabelecer, a partir do julgamento de uma causa-modelo, um
padrão decisório, de acordo com o qual todos os demais casos repetitivos seriam
posteriormente examinados e julgados” (BARROS; MACHADO; ASSIS; HONÓRIO).
2.2 Natureza jurídica
No que tange à natureza jurídica do incidente de resolução de demandas
repetitivas, a doutrina não tem posicionamento unânime. Embora haja
entendimento no sentido de que se trata, a rigor, de um procedimento-modelo,
consubstanciando-se como um incidente interlocutório e também de não ser uma
43 Cfr. BARROS, Renata Furtado; MACHADO, José Alberto Oliveira de Paula; ASSIS, Vinícius de; HONÓRIO, Caroline Gregório. Op. cit., p. 137-138.
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ação autônoma44, há, no entanto, doutrinadores que asseveram que o IRDR não é
apenas uma questão incidente, mas que se trata, também, de uma questão
prejudicial. E “para esses doutrinadores, litígios que resolvem questões
exclusivamente de direito constituem prejudiciais da tutela jurisdicional, tendo
eficácia de coisa julgada em relação àqueles que têm os seus direitos discutidos”45.
São oportunos, ademais, os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni, o
qual sobre o tema assim se posiciona:
O incidente de resolução de demandas repetitivas tem o objetivo de
solucionar uma questão que é prejudicial à solução dos casos pendentes.
Essa questão deve ser, por imposição do próprio Código de Processo
Civil, uma questão idêntica. De modo que não há como pensar que a
decisão proferida no incidente não resolve a mesma questão que
prejudica a solução de todo os casos pendentes.
Ora, se a decisão que resolve o incidente de resolução de demandas
repetitivas resolve uma questão que interessa a muitos, tal decisão não
tem qualquer diferença daquela que, em ação individual, resolve questão
que posteriormente não pode ser rediscutida. Essa última decisão
também resolve questão que pode constituir prejudicial ao julgamento
dos casos de muitos. Sucede que, como não poderia ser de outra forma,
a decisão proferida no caso de um apenas pode beneficiar terceiros,
nunca prejudicá-los (art. 506, CPC/2015). Ou melhor, a decisão proferida
no caso de um, assim como a decisão proferida no incidente de
resolução, não pode retirar o direito de discutir a questão daquele que
não participou. O contrário constituiria grosseira violação do direito
fundamental de participar do processo e de influenciar o juiz (MARINONI,
2016, p. 39).
De outro lado, conquanto o próprio nome do instituto ora em estudo seja
claro no sentido de que sua natureza jurídica é de incidente processual, não se
tratando, como dito acima, de ação autônoma, poderia remanescer dúvida se
44 Cf. DUARTE, Bento Herculano. Op. cit., p. 12. 45 AZEVEDO, Marcelo Tadeu Freitas de. Op. cit., p. 352.
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estaríamos diante de uma espécie de recurso. Essa possibilidade não encontra
amparo no ordenamento jurídico, consoante precisas conclusões perfilhadas por
Marcos de Araújo Cavalcanti, o qual, lastreado na melhor doutrina e no
preconizado no Código de Processo Civil, deixa claro que o IRDR não tem por
escopo impugnar decisão judicial, vale dizer, não se trata, portanto, de recurso.
Vejamos:
Desde já, cumpre afastar a natureza jurídica recursal do IRDR. Conforme
dito alhures, para ser recurso, o direito positivo deve admitir o remédio
processual como tal. O Livro III do NCPC trata “Dos processos nos
tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais”. O Título II
(“Dos Recursos”) do referido Livro III define, taxativamente, dos remédios
processuais que serão tidos como recursos. Nos termos do seu art. 994.
Serão cabíveis apenas os seguintes recursos: (a) apelação; (b) agravo de
instrumento; (c) agravo interno; (d) embargos de declaração; (e) recurso
ordinário; (f) recurso especial; (g) recurso extraordinário; (h) agravo em
recurso especial ou extraordinário; e (j) embargos de divergência
(CAVALCANTI).
Como se vê, o incidente de resolução de demandas repetitivas não é um
instituto processual voltado a impugnar decisões judiciais, tampouco se trata de
ação, porquanto sua natureza jurídica é de incidente processual coletivo. Suas
marcantes características de incidente são: i) a acessoriedade, pois sua instauração
demanda a existência de processos repetitivos envolvendo a mesma questão de
direito; ii) a acidentalidade, porquanto se trata de uma mudança quanto ao
desenvolvimento normal dos processos repetitivos, já que estes serão suspensos
até que o tribunal fixe tese jurídica sobre a questão de direito posta em julgamento
no IRDR; iii) a incidentalidade, uma vez que o IRDR tem incidência sobre causas
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repetitivas preexistentes e também sobre causas futuras46; e III) o procedimento
incidental, haja vista que para há a exigência de um procedimento específico para
a análise e julgamento das questões de direito comuns das demandas repetitivas.
Dentro desses quadrantes, tem-se que o IRDR é um incidente processual
coletivo que possibilita ao tribunal (estadual ou regional) selecionar um caso
representativo de controvérsia jurídica, dentre as causas repetitivas, como o fito de
fixar uma norma abstrata para os casos semelhantes, tendo por escopo a isonomia
e a segurança jurídica.
2. O disciplinamento do IRDR no Código de Processo Civil
O incidente de resolução de demandas repetitivas é disciplinado de modo
minucioso pelo Código de Processo Civil (do art. 976 ao art. 987). Como se vê, o
legislador atribuiu muita relevância ao IRDR, haja vista que destinou doze artigos
do CPC para tratar desse incidente processual.
O cabimento do IRDR está exposto no art. 976 do CPC, o qual está vazado
nos seguintes termos:
Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas
repetitivas quando houver, simultaneamente:
I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a
mesma questão unicamente de direito;
46 Luiz Fux e Rodrigo Fux explicam que: “O NCPC atribuiu, ainda, efeitos prospectivos ao incidente de
resolução de demandas repetitivas, de modo que, após o trânsito em julgado da decisão, a tese fixada deverá
ser aplicada a todos os processos individuais ou coletivos, inclusive em casos futuros, cujos pedidos
englobem a questão objeto daquele, desde que tramitem nos limites da competência jurisdicional do
respectivo Tribunal, visando à obtenção da tão estimulada celeridade da prestação jurisdicional e a
concretização dos princípios constitucionais da isonomia e da segurança jurídica” (FUX, Luiz; FUX,
Rodrigo. Op. cit., p. 649).
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II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica (BRASIL, CPC, art.
972).
Como se infere do transcrito dispositivo legal, não há se falar de um número
mínimo de causas para a instauração do incidente de resolução de demandas
repetitivas, no entanto pressupõe uma quantidade de processos que colocam em
risco a isonomia e a segurança jurídica.
Assim, para que seja suscitado o IRDR, o CPC exige tanto pressupostos
positivos de admissibilidade, a saber: a) a necessidade de efetiva repetição de
processos (art. 976, I); b) a restrição do objeto do incidente a questão unicamente
de direito (art. 976, I, parte final); c) risco à isonomia e à segurança jurídica (art. 976,
II); e d) a necessidade de pendência de julgamento de causa repetitiva no tribunal
competente (art. 978, parágrafo único), como também a existência de pressuposto
negativo de admissibilidade, a saber, o IRDR somente será cabível quando os
tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, não tiverem
afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou
processual repetitiva (976, § 4.º).
Para a instauração do incidente, o pedido será dirigido ao presidente do
tribunal pelo juiz ou relator, por ofício (art. 977, I); pelas partes, por petição (art.
977, II); e pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição (art. 977,
III). Caso não seja o requerente, “o Ministério Público não for o requerente, intervirá
obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de
desistência ou de abandono” (art. 976, § 2º).
De outro lado, nos termos do preconizado no artigo 982, uma vez admitido
o incidente, “o relator suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos,
que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso” (art. 982, I) e, consoante o
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disposto no § 3º do art. 982, as partes, o Ministério Público e a Defensoria Pública
poderão requerer a suspensão de todos os processos no âmbito nacional.
Vejamos:
§ 3º Visando à garantia da segurança jurídica, qualquer legitimado
mencionado no art. 977, incisos II e III, poderá requerer, ao tribunal
competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial, a
suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no
território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente já
instaurado.
Por fim, o art. 987 dispõe que, julgamento do mérito do incidente caberá
recurso extraordinário ou especial, conforme o caso. E que esse recurso tem efeito
suspensivo, “presumindo-se a repercussão geral de questão constitucional
eventualmente discutida” (art. 987 § 1º). E, uma vez apreciado o mérito do recurso,
“a tese jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal
de Justiça será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou
coletivos que versem sobre idêntica questão de direito” (art. 987, § 2º).
3.1 Princípios aplicáveis ao instituto
O incidente de resolução de demandas repetitivas, como restou assente
linhas volvidas, foi introduzido no sistema processual brasileiro por meio do atual
Código de Processo Civil e com o propósito de – com a uniformização do
entendimento jurisprudencial sobre a tese posta em juízo no tribunal respectivo
das demandas repetitivas – proporcionar segurança e isonomia jurídicas, bem
como dar efetivo cumprimento ao princípio constitucional da duração razoável do
processo (princípio da celeridade processual).
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A questão atinente à estabilidade e à segurança jurídica está associada à
aplicação adequada do direito. Na linha desse entendimento, são oportunos os
ensinamentos trazidos à baila pelo jurista Gustavo Silva Alves sobre esse particular,
o qual assim leciona:
Qualquer procedimento jurisdicional que queira ser qualificado como
justo deve respeitar o princípio da segurança jurídica. Como uma das
áreas de regulação do direito, é preciso que o processo garanta
estabilidade às posições jurídicas durante todo o seu andamento e,
também, prospectivamente, após o pronunciamento final, ou seja, após
seu térmico.
Dessa forma, como procedimento jurisdicional vocacionado à resolução
de uma determinada controvérsia levada ao Poder Judiciário, o processo
deve resguardar todos os parâmetros do princípio da segurança jurídica
(cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade) (ALVES, 2018, p. 70).
A segurança jurídica e a estabilidade do entendimento jurisprudencial
remetem ao princípio da proteção da confiança e que, bem assim, os atos do Poder
Judiciário em relação aos conflitos futuros devem ser lastreados em previsibilidade
sobre a maneira como deve ser decidida determinada demanda judicial,
notadamente quando dizem respeito a questões objeto de precedentes
vinculantes (BASTOS, 2018).
Nesse passo, a maneira como foi concebido o incidente de resolução de
demandas repetitivas, esse instituto processual, a par de garantir a economia
processual, apresenta-se no ordenamento jurídico brasileiro como um “meio apto
a conferir celeridade e segurança jurídica, encontrando o equilíbrio entre estes
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valores, de modo a alcançar a efetivação da garantia do acesso à Justiça e da
duração razoável do processo”47.
É oportuno anotar que o art. 976 do Código de Processo Civil de 2015, exige,
de modo expresso, que os requisitos para o ajuizamento de um IRDR levam em
consideração a existência efetiva de repetição de causas e, simultaneamente, que
haja risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
De outra parte, o CPC atribuiu efeitos prospectivos ao incidente de
resolução de demandas repetitivas. Com efeito, após a tese fixada pelo respectivo
tribunal, após o trânsito em julgado da decisão, deverá tal tese jurídica ter
aplicação a todos os feitos individuais ou coletivos – aos casos presentes e também
futuros –, cujos pleitos envolvam a questão de direito objeto do julgamento do
feito paradigma. Com efeito, o incidente de resolução de demandas repetitivas
tem como propósito a obtenção “da tão estimada celeridade da prestação
jurisdicional e a concretização dos princípios constitucionais da isonomia e da
segurança jurídica”48.
Demais disso, os princípios acima referidos buscam nortear não apenas as
decisões proferidas em processos repetitivos, a exemplo do que sucede no caso
de julgamento de IRDR, mas também de direcionar o julgador no sentido de que
eventual modificação de tese adotada em casos repetitivos deverá, a teor do
preconizado no art. 927, § 4º, do Código de Processo Civil, observar a necessidade
de fundamentação adequada e específica dessa mudança de entendimento
47 Cf. BARROS, Renata Furtado; MACHADO, José Alberto Oliveira de Paula; ASSIS, Vinícius de; HONÓRIO, Caroline Gregório. Op. cit., p. 144. 48 Cfr. FUX, Luiz; FUX, Rodrigo. Op. cit., p. 649.
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jurisprudencial, para que sejam prestigiados os princípios da segurança jurídica, da
isonomia e da proteção da confiança.
4. A necessidade de estabilidade, integridade e coerência das decisões
judiciais
Para que seja instaurado o incidente de resolução de demandas repetitivas,
deve haver, de modo simultâneo, a efetiva repetição de processos em que haja
controvérsia sobre a mesma questão de direito e que haja risco de ofensa à
isonomia e à segurança jurídica (art. 976, I e II, do CPC).
De outra parte, o Código de Processo Civil é expresso no sentido de que
devem os tribunais uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável49, íntegra e
coerente (art. 926). Foi levando em conta esses propósitos que o legislador excluiu
da legislação adjetiva civil o livre convencimento do juiz, o que eliminou a tensão
quanto à possibilidade de decisões judiciais carregadas de muita subjetividade,
“passando para o campo da obrigatoriedade, da fundamentação adequada e
específica da decisão, contemplando, por este percurso e de forma indispensável,
os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”.
São oportunas as observações veiculadas na obra de Luiz Manoel Gomes
Júnior e Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira, os quais salientam o fato de que
49 Conforme leciona Antonio Adonias Aguiar Bastos, “a estabilidade do entendimento jurisprudencial consiste em aspecto social e juridicamente positivo, que visa a tutelar a segurança jurídica, devendo ser almejada tanto quanto possível. Ela remete ao princípio da proteção da confiança, segundo o qual os integrantes da sociedade devem contar com a garantia de poder confiar que os seus atos, e as decisões públicas que versam sobre eles, ligam-se aos atos jurídicos previstos no ordenamento jurídico” (BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Op. cit., p. 51).
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o atual sistema processual brasileiro, superando falhas do passado quanto ao
voluntarismo judicial, tem por escopo a consolidação de uma jurisprudência
coerente, integra e razoável. Nesse sentido anotam:
A tradição do direito processual civil considerava a decisão como prius
lógico jurídico do processo. Contudo, a organização complexa do
judiciário brasileiro, os diversos tipos de competências, o próprio controle
de constitucionalidade podendo ser difuso e/ou concentrado, de par com
o voluntarismo, embasado na alegada livre convicção do juiz – sendo que
a livre convicção foi interpretada de várias e tantas formas, terminando
cativa da vontade do julgador –, somado a outros fatores, produziu um
desvio expressivo em relação à lógica e aos fins das decisões, conduzindo
a uma incompreensível falta de lógica e causando, como consequência,
a incoerência das decisões, obstaculizando o tratamento igual que
deveriam receber as partes. Casos semelhantes e decididos de forma
absolutamente diferentes, transitando desde o deferimento do pleito, até
ao indeferimento, isto em todas as instâncias, causando o caos da
prestação jurisdicional, deixando perplexos os jurisdicionados que
esperam do processo ao menos um resultado coerente e no mínimo,
razoável (GOMES JÚNIOR).
Não se afigura juridicamente sustentável que em situações idênticas
possam ocorrer decisões as mais diversas, pelo que não é aceitável, sob o ponto
de vista jurídico, que uma exacerbada quantidade de demandas repetitivas tenha
tratamento pulverizado pelo Judiciário, o que resultaria em uma “loterização” da
prestação jurisdicional.
Sergio Luiz de Almeida Ribeiro explica que o IRDR gravita sobre a mesma
quaestio iuris, objetivando a fixação de uma norma abstrata que sirva de
paradigma para todos os casos semelhantes, e que esse incidente processual
juntamente com os recursos excepcionais repetitivos têm por escopo dispensar
um tratamento racional às questões jurídicas massificadas.
É nesse contexto, portanto, que surge o incidente de resolução de
demandas repetitivas, o qual tem entre seus propósitos afastar do ordenamento
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jurídico decisões judiciais que firam a isonomia e a segurança jurídica nos litígios
de massa, tudo a prestigiar a estabilidade, integridade e coerência da
jurisprudência a ser uniformizada em tais situações.
Considerações finais
O presente artigo teve como escopo evidenciar aspectos relevantes do
incidente de resolução de demandas repetitivas – principal inovação do Código de
Processo Civil de 2015.
Buscou-se demonstrar no vertente artigo que o incidente de resolução de
demandas repetitivas é uma dos mais significativos institutos processuais trazidos
pela legislação adjetiva civil, cujo resultado prático dará ensejo, por certo, dentro
dos limites estabelecidos pelo legislador para esse incidente processual, a
uniformizações da jurisprudência em relação às demandas repetitivas.
Em decorrência do crescimento vertiginoso de demandas individuais
relativas aos processos repetitivos, o IRDR surgiu no ordenamento jurídico
brasileiro como uma alternativa complementar às ações coletivas, já que estas não
tiveram o êxito almejado pelo legislador. Viu-se, em verdade, que houve um
crescimento de novas demandas individuais em relação às questões massificadas,
resultando no assoberbamento do Poder Judiciário, tudo a inviabilizar o
cumprimento dos primados da duração razoável do processo e da efetividade da
jurisdição.
O incidente de resolução de demandas repetitivas foi introduzido no
sistema processual brasileiro com o objetivo de resolver as questões
plurindividuais, caracterizadas, assim, como aquelas que, ao lado das tutelas
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individuais e das tutelas coletivas, acabam por coletivizar os efeitos das ações
originariamente individuais. E para tal desiderato, esse incidente processual
coletivo – nas repetições de processo envolvendo controvérsia sobre idêntica
questão de direito e que esteja colocando em risco a isonomia e a segurança
jurídica – utiliza-se de mecanismos processuais específicos voltados para a
uniformização do entendimento jurisprudencial nessas demandas.
Por fim, resta assente que o incidente de resolução de demandas repetitivas
está inserido no conteúdo normativo preconizado pelo Código de Processo Civil
no sentido de que os tribunais devem manter coerente, estável e íntegra sua
jurisprudência, para que seja evitada a dispersão dos entendimentos pretorianos
nos processos envolvendo idênticas questões jurídicas, haja vista que a busca pela
aplicação da isonomia e da segurança jurídica, vigas mestras desse incidente
processual coletivo, proporciona, em última análise, não apenas uma
racionalização da jurisprudência, mas também uma maior credibilidade e
confiabilidade do cidadão no Poder Judiciário.
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PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE
LIBERDADE: A (IN)DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Jair Vanderlei Krewer
Mestre em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro
Universitário IESB; especialista em Direito Constitucional, Direito Eletrônico e
Tecnologia da Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados
(UNIGRAN), especialista em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco
(UCB); graduado em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados
(UNIGRAN); atualmente é Oficial de Justiça - Avaliador Federal no Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), professor do Curso de Direito do
Centro Universitário IESB e professor do Centro Universitário da Grande
Dourados (UNIGRAN).
Douglas Henrique Marin
Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); mestre em Direito
(Ciências jurídico-filosóficas) pela Universidade do Porto (UP-Portugal); especialista em
Direito das Obrigações pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências
Jurídicas pela Universidade do Porto (UP-Portugal); graduado em Direito pela
Universidade de São Paulo (USP); Procurador Federal e coordenador na Subchefia de
Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República; professor na graduação e
pós-graduação em Direito no Centro Universitário IESB.
Resumo
Este artigo pretende demonstrar que os direitos das pessoas com deficiência
resultam de conquistas históricas e não de uma efêmera descoberta de um
legislador subitamente despertado por um senso de justiça, pois a deficiência no
ser humano não é um fato de nossos dias. Nesse contexto, pretendeu-se analisar
o tratamento do Estado em face do apenado com deficiência física, a partir do
princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento constitucional do Estado
Democrático brasileiro e princípio normativo reconhecido nos tratados
internacionais nos quais o Brasil figura como signatário. Dessa forma, o problema
central consiste em verificar se o Estado, enquanto detentor do monopólio do
poder de punir promove medidas e atos consistentes que permitam ao apenado
com deficiência o cumprimento, de maneira digna, de uma pena que objetive sua
ressocialização. Ao final, demonstrou-se o descaso estatal em relação à adoção
de medidas concretas e efetivas que garantam ao apenado com deficiência a
manutenção de sua dignidade, promovendo, por exemplo, a acessibilidade e
tratamento diferenciado na rotina carcerária.
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Palavras-chave: pessoas com deficiência; sistema carcerário; dignidade da
pessoa humana.
Abstract
This article aims to demonstrate that the rights of persons with disabilities result
from historical achievements and not from an ephemeral discovery of a lawmaker
suddenly awakened by a sense of justice, as disability in humans is not a fact of
our day. In this context, we intend to analyze the treatment of the state in light of
the convict with physical disability, as from the principle of human dignity,
constitutional foundation of the Brazilian Democratic State and normative
principle recognized in international treaties in which Brazil is a signatory.
Therefor, the central problem is to verify whether the State, as holder of the
monopoly of the power to punish, promotes consistent measures/acts that allow
the convict with disability to fulfill, in a dignified manner, a penalty aimed at their
resocialization. Finally, we intend to demonstrate the state's disregard for the
adoption of concrete and effective measures to ensure that the convicts with
disabilities maintain their dignity, promoting, for example, accessibility and
differential treatment in the prison routine.
Keywords: people with disabilities; prison system; dignity of human person.
Introdução
tema proposto para este artigo envolve dois
assuntos, que se analisados em si mesmos, não
guardam qualquer relação. Na verdade, são
diametralmente opostos, mas que, em dado
momento no mundo dos fatos, acabam se interligando em relação a um
determinado grupo de pessoas. Refere-se às pessoas com deficiência e o
sistema carcerário brasileiro.
Por muitos séculos da vida do homem sobre a terra, os grupos
humanos, de uma forma ou de outra, tiveram de parar e analisar o desafio
que significaram seus membros mais fracos e menos úteis, tais como as
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crianças e os velhos, de um lado, e aqueles que, vítimas de algum mal, por
vezes misterioso, ou de algum acidente, passaram a não enxergar mais as
coisas, a não andar, a não dispor da mesma agilidade anterior, a se
comportar de forma estranha, a depender dos demais para sua
movimentação, para alimentação, para abrigo e agasalho (SILVA, 1996).
Assim, é necessário conhecer melhor este contingente de pessoas,
tantas vezes marginalizado pela vida e pela injustiça social que as
sobrecarrega. Pessoas para as quais se lança, sem perceber, o olhar
desatento do homem “são” ou até cheio de perversidade e pena, que nos
faz reconhecê-los como seres humanos e, sem maior cerimônia, ignorá-los
como cidadãos de direitos e garantias.
De outra banda, tem-se um tema que, sem dúvida, não é de agrado
da opinião pública. Ao contrário, é muito impopular, pois envolve direitos
de um grupo de pessoas não simplesmente estigmatizado, e sim cuja
dignidade humana é tida por muitos como perdida, em razão do
cometimento de crimes.
O que se tem é um sentimento hipócrita da população que analisa
o sistema prisional como algo distante da sua realidade. Ninguém está
imune à prática de uma infração. Não é possível alguém dizer que “tal fato
jamais acontecerá comigo”. Logo, para se trazer um novo olhar para o
sistema carcerário e sua população, é necessário analisar a situação, não
como um mero espectador, mas como protagonista.
A professora Ana Paula de Barcellos, ao discorrer sobre as possíveis
causas do caos do sistema carcerário, esclarece que:
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Em um regime democrático, seria racional imaginar que essa
parcela da população teria interesse em reivindicar, junto a seus
representantes e aos agentes políticos em geral, melhorias nas
condições prisionais, tendo em conta o risco de ela mesma vir a ser
vítima dessas condições (BARCELLOS, 2010, p. 53).
Ainda nas palavras da professora (2010, p. 41), “o tratamento
desumano conferido aos presos não é um problema apenas dos presos: a
sociedade livre recebe os reflexos dessa política sob a forma de mais
violência”.
Como reconhece Hilde Kaufman, com propriedade:
[...] la ejecución penal humanizada no solo no pone em peligro la
seguridade y el ordem estatal, sino todo lo contrario. Mientras la
ejecución penal humanizada es um apoyo del ordem y la
seguridade estatal, uma ejecución penal deshumanizada atenta
precisamente contra la seguridade estatal (KAUFMAN, 1977, p. 55).
A situação deplorável do sistema carcerário já foi apresentada a
sociedade por intermédio do Relatório Final da Comissão Parlamentar de
Inquérito da Câmara dos Deputados, formalizado em 2009. Nesse
relatório, fica evidenciado que a maior parte dos detentos está sujeita às
seguintes condições: superlotação dos presídios, torturas, homicídios,
violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças
infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos
higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde
e ao trabalho, bem como amplo domínio dos cárceres por organizações
criminosas, insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas,
discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual (BRASIL,
2009).
No mesmo relatório, concluiu-se que:
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A superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do
sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade,
doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa
humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano
em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima
do vaso (BRASIL, 2009, p. 247).
O relatório em questão ainda informa que os presídios não
possuem instalações adequadas à existência humana. Estruturas
hidráulicas, sanitárias e elétricas precárias e celas imundas, sem iluminação
e ventilação representam perigo constante e risco à saúde, ante a
exposição a agentes causadores de infecções diversas. As áreas de banho
e sol dividem o espaço com esgotos abertos, nos quais escorrem urina e
fezes. Os presos não têm acesso a água, para banho e hidratação, ou a
alimentação de mínima qualidade, que, muitas vezes, chega a eles azeda
ou estragada. Em alguns casos, comem com as mãos ou em sacos
plásticos. Também não recebem material de higiene básica, como papel
higiênico, escova de dentes ou, para as mulheres, absorvente íntimo.
A situação é tão aviltante que levou a Defensoria Pública de São
Paulo a entrar com uma Ação Civil Pública contra o estado para garantir o
fornecimento de itens básicos de higiene e vestuário aos presos. Uma das
situações mais graves encontrada pelos defensores foi na Cadeia Pública
Feminina de Colina (SP), onde nenhum absorvente íntimo foi entregue às
detentas em 2012, fazendo com que elas utilizassem miolos de pão para
conter o fluxo menstrual (G1, 2013).
Quanto aos grupos vulneráveis, o relatório aponta relatos de
travestis sendo forçados à prostituição e ausência de instalações
adequadas às pessoas com deficiência. Esses casos revelam a ausência de
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critério de divisão de presos por celas, o que alcança também os relativos
a idade, gravidade do delito e natureza temporária ou definitiva da
penalidade.
Diante de tais relatos, o ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto
na ADPF nº 347/DF, concluiu que no sistema prisional brasileiro, ocorre
violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à
dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária
e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que
inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram
tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram
sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos
presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-
se lixo digno do pior tratamento possível, sendo-lhes negado todo e
qualquer direito à existência minimamente segura e salubre (BRASIL, 2015).
Então, se para pessoas sem qualquer tipo de limitação, a vida dentro
do estabelecimento prisional já é difícil, imagine para uma pessoa que
possua algum tipo de deficiência física, considerada duplamente excluída
e marginalizada. A situação desoladora se assemelha à cena de Dante e
Virgílio, em frente aos portões do inferno, quando dão de cara com uma
mensagem muito animadora, que diz: “Deixai, ó vós que entrais, toda
esperança!” (ALIGHIERI, 1955, p. 31).
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1. A legislação ao longo da história
A ideia inicial deste estudo é provocar uma reflexão sobre o respeito
ou não às garantias dos direitos fundamentais no âmbito do
encarceramento da pessoa com deficiência, tendo como pano de fundo a
Constituição Federal e os tratados internacionais dos quais o Brasil é
signatário, bem como da legislação interna.
No Brasil, a composição da política voltada para as pessoas com
deficiência teve início com a Constituição de 1824, que, de forma bastante
modesta, tutelava seus direitos quando lhes assegurava o direito à
igualdade, no inciso XIII, do artigo 179 (BRASIL, 1824). O mesmo ocorrendo
com a Constituição de 1891, no artigo 72, em seu parágrafo segundo.
(BRASIL, 1891).
Já a Constituição de 1934 apresenta, além do direito à igualdade,
no inciso I do artigo 113, um embrião do conteúdo do direito à integração
social da pessoa com deficiência, como se observa no artigo 138 (BRASIL,
1934).
A Constituição de 1937 não avança na ideia embrionária do texto
de 1934, restringe-se a proteger, apenas, a igualdade, no inciso I do artigo
122 e, em linhas gerais, a reproduzir a ideia já garantida pela Constituição
anterior, em seu artigo 12 (BRASIL, 1937).
A Constituição de 1946 garantiu o direito à igualdade no § 1º do
artigo 141. Há breve menção ao direito à previdência para trabalhador que
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se tornar inválido, conforme se depreende da leitura do artigo 157, inciso
XVI. (BRASIL, 1946).
A Emenda nº 1 à Constituição de 1967 resguardou a igualdade em
seu artigo 153, § 1º. Traz, no entanto, grande inovação ao dispor, em seu
artigo 175, § 4º, norma programática visando a proteção de pessoas com
deficiência (BRASIL, 1967). Surge, assim, a primeira menção expressa à
proteção específica desse grupo de pessoas.
O maior avanço, no entanto, surgiu com a Emenda nº 12 à
Constituição Federal de 1967, que concretizou a proteção das pessoas com
deficiência e serviu de base para uma série de medidas judiciais (BRASIL,
1978).
Não obstante, foi mesmo com a Constituição Federal de 1988 que
se deu um grande passo no sentido de contemplar um rol mais específico
desses direitos, já latentes na constituição anterior. Porém, não o fez como
no diploma anterior, mas sim de forma dispersa, por meio de vários
dispositivos alocados em capítulos distintos.
No entanto, a Constituição Federal de 1988 concedeu uma nova
fisionomia ao Estado brasileiro, já que não somente o consagrou como
democrático, mas também ressaltou o seu caráter essencialmente social,
ao fundá-lo em valores fundamentais como a cidadania e a dignidade da
pessoa humana, que irradiarão seus efeitos sobre todo o ordenamento
jurídico. Esse novo modelo de Estado vem com a tarefa fundamental de
superar as desigualdades, não apenas as econômicas e sociais, mas
também, as desigualdades ocasionadas em razão da idade, raça, cor, sexo
e das condições físicas. Ao destacar essas desigualdades, a Constituição
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inseriu a proteção constitucional à pessoa com deficiência. Portanto, uma
sociedade calcada nesses valores é, necessariamente, a que proíbe a
exclusão; uma sociedade inclusiva.
No seu preâmbulo, o constituinte anunciou seu propósito de
construir um Estado Democrático pautado em uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, onde esteja assegurada a igualdade, dentre
os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito brasileiro.
No artigo 1º, inciso III, elevou o valor da dignidade da pessoa humana a
princípio fundamental desse novo Estado. Já no artigo 3º e incisos,
consagrou como objetivos fundamentais construir uma sociedade livre,
justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
No contexto das relações internacionais, determinou a prevalência dos
direitos humanos dentre os princípios a reger suas relações com os demais
países, conforme determina o artigo 4º, inciso II. E, por meio do caput e
§1º do seu art. 5º, assegurou o princípio da igualdade, que passa a ser
considerado dentro desse novo enfoque introduzido pela Lei Maior, como
o valor mais alto dos direitos fundamentais, funcionando como regra
mestra de toda a hermenêutica constitucional e infraconstitucional. Tanto
que, ao garantir a igualdade formal, o art. 5º cuidou, desde logo, de
impedir que determinadas situações fossem prestigiadas sem qualquer
correlação lógica.
Nas palavras de Flávia Leite, o que verificamos é que a Constituição
aproximou à igualdade formal da igualdade material, na medida em que
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não se limitou ao simples enunciado da igualdade perante a lei. O princípio
não pode ser entendido em sentido individualista, que não leva em conta
as diferenças entre grupos. Tal proteção é justificada, afinal, torna-se
necessária a recomposição de natural desigualdade, quer decorrente de
um longo processo de exclusão, quer decorrente de raça, sexo, idade, e no
caso das pessoas com deficiência, de sua situação física (LEITE, 2012).
No plano internacional, a humanidade sempre conviveu com
pessoas que apresentavam as mais diversas limitações. No entanto, a
proteção internacional aos direitos das pessoas com deficiência apresenta
um histórico bastante recente de lutas e de reconhecimento.
De um passado de exclusão, onde a deficiência era enxergada como
estigma ou castigo divino, passando posteriormente pelo tratamento
segregado dentro de instituições hospitalares, chega-se ao momento atual
de afirmação e de luta pela inclusão social.
Segundo Flávia Leite, foi apenas a partir do início do Século XX que
a sociedade começou a se sensibilizar e a se envolver positivamente em
relação às pessoas com deficiência. Aos poucos as políticas de inclusão
foram sendo concebidas, influenciada por uma filosofia social de
valorização da pessoa humana, engajamento da sociedade civil na busca
do bem-estar comum motivada pelo progresso técnico e científico e,
fundamentalmente, em razão das ações destruidoras ocasionadas pelas
grandes guerras mundiais (LEITE, 2012).
As sequelas provocadas pela Primeira Guerra Mundial
sensibilizaram a humanidade, o que refletiu na Organização Internacional
do Trabalho – OIT que, em 1925, na Conferência Internacional do Trabalho,
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adotou a Recomendação nº 22, que representou o primeiro
reconhecimento, por parte da comunidade internacional, das necessidades
das pessoas com deficiência (OIT, 1925).
Porém, foi mesmo com a Segunda Guerra Mundial que essas
necessidades afloraram como uma questão do Estado e de toda a
sociedade. De um lado, o interesse dos mutilados de guerra, que
pressionavam o Estado por uma política séria no sentido de reabilitá-los
para o mercado de trabalho, e de outro, a pressão dos civis com
deficiências que desejavam permanecer ativos, uma vez que haviam
ocupado, com bons resultados, os postos vagos na indústria, comércio e
serviços deixados por aqueles que haviam sido convocados para a guerra.
O interesse da comunidade internacional pela reabilitação e pelo
emprego das pessoas com deficiência encontrou seu apogeu com a
adoção, em 22 de junho de 1955, da Recomendação nº 99, que versa sobre
a adaptação dessas pessoas, declarando que todos os indivíduos com
limitações, quaisquer que sejam a origem e a natureza têm direito aos
meios de reabilitação profissional para poderem exercer um emprego
adequado (OIT, 1955).
Assim, houve um salto qualitativo e quantitativo, à medida que os
direitos de grupos específicos, como os mutilados de guerra ou vítimas de
acidentes de trabalho, passaram a contemplar todas as pessoas com
deficiência, independente da origem da deficiência.
Sob a influência dos princípios e propósitos da Carta das Nações
Unidas e da Carta Internacional dos Direitos Humanos, as pessoas que
padecem de algum tipo de deficiência, além de ter o direito de exercer a
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totalidade dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais
consagrados em tais instrumentos, têm reconhecido o direito de exercê-
los em condições de igualdade com os demais indivíduos.
De forma mais específica, a Declaração dos Direitos das Pessoas
Portadoras de Deficiências, aprovada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em 1975, proclama em seu artigo 6º que “a pessoa portadora de
deficiência tem o direito (...) à formação e à readaptação profissional”. No
mesmo diapasão, no artigo 7º, reconhece o direito “na medida de suas
possibilidades, a obter e conservar um emprego e a exercer um ocupação
útil, produtiva e remunerada” (ONU, 1965).
Em 1983, a OIT editou a Convenção nº 159 50 , que trata da
Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes. O documento
tem por objeto a reabilitação profissional da pessoa com deficiência, de
modo que ela viesse a obter e conservar um emprego digno, conforme se
depreende do seu texto, in verbis:
Para efeitos desta Convenção, todo o País Membro deverá
considerar que a finalidade da reabilitação profissional é a de
permitir que a pessoa deficiente obtenha e conserve um emprego
e progrida no mesmo, e que se promova, assim a integração ou e
reintegração dessa pessoa na sociedade (OIT, 1983).
Acresça-se ainda que tinha por finalidade que os Estados
implementassem políticas de igualdade para os trabalhadores com
deficiência que passarem pelo procedimento de reabilitação. Segundo o
50 Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 51, de 25.8.89, do Congresso Nacional, ratificado em 18 de maio de
1990 e promulgado por meio do Decreto nº 129, de 22.5.91.
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artigo 3º da Convenção, essa política deverá ter por finalidade assegurar
que existam medidas adequadas de reabilitação profissional ao alcance de
todas as categorias de pessoas deficientes e promover-lhes oportunidades
de emprego no mercado regular de trabalho.
A Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas
de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência – Convenção
da Guatemala –, ratificada no Brasil pelo Decreto nº 3.956, de 8 de outubro
de 2001, caracterizou-se por sua originalidade na definição de pessoa com
deficiência com base no modelo social de direitos humanos e foi o
primeiro documento regional que assumiu o caráter vinculante no tocante
aos direitos das pessoas com deficiência. Trouxe também importante
definição acerca de discriminação contra pessoas com deficiência,
prevendo a possibilidade de discriminações positivas ensejadoras de ações
afirmativas (ONU, 1999).
Em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) deu um salto
significativo na proteção das pessoas com deficiência ao publicar a
Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, com o objetivo de
“proteger e garantir o total e igual acesso a todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, e promover
o respeito à sua dignidade”. O documento foi assinado por mais de 160
países, incluindo o Brasil. Entre outras coisas, estabelece que “não é o limite
individual que determina a deficiência, mas sim as barreiras existentes nos
espaços, no meio físico, no transporte, na informação, na comunicação e
nos serviços”. No que diz respeito à educação, a Convenção garante, além
de acesso, participação efetiva, sem discriminação e com base na
igualdade de oportunidades para o pleno desenvolvimento do potencial
de qualquer estudante (ONU, 2007).
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O Congresso brasileiro acatou a reivindicação das pessoas com
deficiência no sentido de outorgar status constitucional ao ato de
ratificação da Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos da
Pessoa com Deficiência. É importante frisar que o tratado em apreço
tramitou em tempo recorde nas Nações Unidas: cerca de cinco anos;
contou com a participação de pessoas com deficiência, que opinaram
diretamente na elaboração do respectivo texto, e foi acolhido pelo
Parlamento brasileiro também em tempo recorde, uma vez que votado
com quórum qualificado de três quintos das respectivas casas, em dois
turnos, conforme preceitua o § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, em
pouco mais de dois meses, entre maio e junho de 2008.
O Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008 (BRASIL, 2008),
desse modo, promulgou aquela ratificação com força de emenda
constitucional, o que foi proposto pelo Governo Federal. Este,
coerentemente, sancionou-o por meio do Decreto Presidencial nº 6.949,
de 25 de agosto de 2009.
Sobre o assunto, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, concluiu com
propriedade que:
A elaboração da convenção e sua ratificação pelo Brasil, com
status constitucional, resultaram da atuação direta das pessoas
com deficiência tanto na construção do texto do tratado quanto
na decisão do Congresso brasileiro que o fez constitucional, fato
inédito em nossa história. O sucesso dos objetivos almejados pela
Convenção, por sua parte, também dependerá, acima de tudo,
tanto da conscientização social sobre o alcance revolucionário da
nova convenção quanto da persistente atuação política dos
Estados-Partes e dos cidadãos, por meio dos mecanismos políticos
e jurídicos (FONSECA, 2012, p. 53).
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No mesmo sentido, Flávia Piovezan esclarece que “a Convenção
surge como resposta da comunidade internacional à longa história de
discriminação, exclusão e desumanização das pessoas com deficiência”
(PIOVEZAN, 2012, p. 52).
Depreende-se do texto convencional que o problema passa a ser a
relação do indivíduo e do meio, este assumido como construção coletiva.
Nesse sentido, a mudança paradigmática aponta aos deveres do Estado
para remover e eliminar os obstáculos que impeçam o pleno exercício de
direitos das pessoas com deficiência, viabilizando o desenvolvimento de
suas potencialidades, com autonomia e participação. De objeto de
políticas assistencialistas e de tratamentos médicos, as pessoas com
deficiência passam a ser concebidas como verdadeiros sujeitos, titulares
de direitos.
Por oportuno, é importante destacar que, ao atual ordenamento
jurídico brasileiro, foi acrescida a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015
(BRASIL, 2015), também denominada de Estatuto da Pessoa com
Deficiência. A referida lei consolidou as premissas trazidas pela Convenção
das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
representando notável avanço para a proteção da dignidade da pessoa
portadora de ausência ou disfunção de uma estrutura psíquica, fisiológica
ou anatômica. As inovações buscam e retratam a evolução pela inclusão
social e ao direito à cidadania plena e afetiva.
Sua natureza incorpora um novo modelo social alvidrado pelos
direitos humanos que é a reabilitação da própria sociedade, visando, assim,
minorar as barreiras de exclusão e incluir a pessoa com deficiência na
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comunidade, garantindo-lhe uma vida independente, com igualdade no
exercício da capacidade jurídica.
Por fim, como o objeto de estudo deste trabalho está voltado para
as pessoas com deficiência que integram o sistema prisional, é necessário
uma abordagem, ainda que sucinta, dos direitos inerentes à essa parcela
marginalizada da sociedade, tanto no âmbito internacional, quanto no
interno.
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, assevera no artigo 1º que “todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e
devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” Já o
artigo 5º da mesma declaração que determina que “ninguém será
submetido à tortura, nem a penas, nem a tratamentos cruéis, desumanos
ou degradantes” (ONU, 1948).
Nessa mesma toada, o artigo 10 do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos 51 institui que “toda pessoa privada de sua liberdade
deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à
pessoa humana” (ONU, 1966),
Já o artigo 16 da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos
e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (ONU, 1984) 52 estabelece que
cada Estado Parte comprometer-se-á a impedir, em qualquer parte do
51 Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12/12/91, do Congresso Nacional e promulgado por meio
do Decreto nº 592, de 06/07/92. 52 Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 4, de 23/05/1989, do Congresso Nacional e promulgado por meio
do Decreto nº 40, de 15/02/1991.
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território sob a sua jurisdição, outros atos que constituam tratamento ou
penas cruéis, desumanos ou degradantes, que não equivalem a tortura, tal
como definida no artigo 1º, quando tais atos forem cometidos por um
funcionário público ou por outra pessoa no exercício de atribuições
públicas, ou ainda por sua instigação ou com o seu consentimento ou
aquiescência.
Ainda no âmbito internacional, podemos citar a Convenção
Americana de Direitos Humanos53, que, de forma genérica, estabelece que
“toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física,
psíquica e moral”. Reafirma que “ninguém deve ser submetido a torturas,
nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa
privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade
inerente ao ser humano”. Deixa claro que “os processados devem ficar
separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e ser
submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não
condenadas”. E, por fim, ressalta que “as penas privativas da liberdade
devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos
condenados” (OEA, 1969).
Já na história constitucional brasileira, nossa primeira Constituição,
a Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, garantiu, em seu
artigo 179, incisos 19 e 21, que “desde já ficam abolidos os açoites, a
tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis”, e “as
cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para
53 Promulgada por meio do Decreto nº 678, de 08/11/1992.
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separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus
crimes” (BRASIL, 1824).
Apenas para ilustrar, o Código Criminal do Império, de 1830,
entretanto, previa, no seu artigo 60, que:
[...] se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital
ou de galés, será condenado na de açoites e, depois de os sofrer,
será entregue ao seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um
ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de
açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por
dia mais de cinquenta (BRASIL, 1830).
A Constituição Imperial, como se vê, se aplicava aos cidadãos do
império e os escravos não eram considerados gente, não eram humanos.
No final do Século XIX, com a Constituição Republicana de 1891,
são abolidas as penas de galés, banimento e de morte, e novo Código
Penal, incorporando valores e avanços da época, substitui as antigas penas
corporais por perda da liberdade em prisões, estas sendo lugares não
apenas para punição, mas também para “cura” e “reabilitação”, nos quais
os condenados aprenderiam a “readaptar-se à sociedade civil” (BRASIL,
1891).
A Constituição de 1934, no artigo 113, proibia penas de banimento,
morte, confisco ou de caráter perpétuo; a de 37, do Estado Novo,
reintroduziu a pena de morte para crimes contra o Estado, e também para
o homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade,
além de vedar “penas corpóreas perpétuas” em seu artigo 122 (BRASIL,
1934). As Constituições de 1946 (artigo 141, § 31) e 1967 (artigo 150, § 11)
trazem redação assemelhada à de 1934.
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Por fim, com a Constituição de 1988, diversos dispositivos,
contendo normas nucleares do programa objetivo de direitos
fundamentais da Constituição Federal, podem ser ressaltados: o princípio
da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III); a proibição de tortura
e tratamento desumano ou degradante de seres humanos (artigo 5º, inciso
III); a vedação da aplicação de penas cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea
“e”); o dever estatal de viabilizar o cumprimento da pena em
estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e
sexo do apenado (artigo 5º, inciso XLVIII); a segurança dos presos à
integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX); e os direitos à saúde,
educação, alimentação, trabalho, previdência e assistência social (artigo 6º)
e à assistência judiciária (artigo 5º, inciso LXXIV).
Com essa apertada reconstituição histórica das nossas
constituições, podemos perceber que, desde a Constituição Política do
Império do Brasil, de 1824, a política penitenciária do Estado brasileiro está
na inconstitucionalidade.
No contexto da legislação infraconstitucional, temos a Lei nº 7.210,
de 11 de julho de 1984, que institui a Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984).
O texto, não obstante ser anterior a 1988, está perfeitamente alinhado aos
preceitos constitucionais da atual Constituição, uma vez que obedece aos
princípios e regras internacionais sobre os direitos da pessoa presa,
especialmente as que defluem das regras mínimas da ONU.
Já em seu artigo 1º, a lei contém duas ordens de finalidades: a
correta efetivação dos mandamentos existentes nas sentenças ou outras
decisões, destinados a reprimir e a prevenir os delitos, e a oferta de meios
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pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança
venham a ter participação construtiva na comunhão social. Nesse sentido,
a lei curva-se ao princípio de que as penas e medidas de segurança devem
realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à
comunidade. Para que isso seja levado à efeito, é imprescindível a vontade
política e o contínuo apoio da sociedade.
De forma geral, o corpo e o espírito da lei são dominados pelo
princípio da legalidade, que tem por objetivo impedir que o excesso ou o
desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade da
execução da pena.
Nesse contexto, o professor da Universidade Nacional de Córdoba,
na Argentina, Gustavo Alberto de Arocena, ao discorrer sobre as diretrizes
fundamentais para execução da pena privativa de liberdade do Direito
Argentino, deixa claro que os meios para atingir esse objetivo não podem
ser senão oferecer aos condenados os elementos para um
desenvolvimento pessoal que lhe permitam reforçar sua capacidade de
autocondução e reflexão sobre as consequências de sua própria ação, de
modo que, dessa maneira, quando ele recupera sua liberdade, ele possa
funcionar efetivamente na vida em sociedade (AROCENA, 2008, p. 574).
Aduz, ainda, o jurista que o sistema de execução penal deve
proporcionar ao apenado meios que lhe permitam um desenvolvimento
apropriado para remover as causas que o levaram para o crime e a prisão
(AROCENA, 2008, p. 574).
Dessa forma, o tratamento dispensado aos encarcerados deve ter
como propósito, até onde a sentença permitir, criar neles a vontade de
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levar uma vida de acordo com a lei e autossuficiente após sua soltura e
capacitá-los a isso, além de desenvolver seu senso de responsabilidade e
autorrespeito.
Nessa toada, avanço importante foi dado pela ONU, em 2015, ao
promover a atualização das Regras Mínimas para o Tratamento do Preso
no Brasil, que data de 1955. O documento teve por intuito ampliar o
respeito à dignidade dos presos, estabelecendo algumas garantias
mínimas existenciais. Deu-se ao documento o nome de “Regras de
Mandela” em homenagem ao ex-presidente sul africano Nelson Mandela
(BRASIL, 2016).
Já no início do texto, temos a exortação no sentido de que “todos
os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade
inerentes ao ser humano” (BRASIL, 2016, p. 19). Em seguida, a regra 2
estabelece que “não haverá discriminação baseada em raça, cor, sexo,
idioma, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem
nacional ou social, propriedades, nascimento ou qualquer outra condição”
(BRASIL, 2016, p. 19). A regra 2 estabelece ainda, que:
Para que o princípio da não discriminação seja posto em prática,
as administrações prisionais devem levar em conta as necessidades
individuais dos presos, particularmente daqueles em situação de
maior vulnerabilidade. Medidas para proteger e promover os
direitos dos presos portadores de necessidades especiais são
necessárias e não serão consideradas discriminatórias (grifos
nossos). (BRASIL, 2016, p. 19).
Em relação ao assunto sobre o qual nos debruçamos, a regra 5
estabelece de forma lapidar e com extrema clareza que “as administrações
prisionais devem fazer todos os ajustes possíveis para garantir que os
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presos portadores de deficiências físicas, mentais ou outra incapacidade
tenham acesso completo e efetivo à vida prisional em base de igualdade”
(BRASIL, 2016, p. 19).
Não menos importante, a regra 25 determinada que “toda unidade
prisional deve contar com um serviço de saúde incumbido de avaliar,
promover, proteger e melhorar a saúde física e mental dos presos,
prestando particular atenção aos presos com necessidades especiais ou
problemas de saúde que dificultam sua reabilitação” (BRASIL, 2016, p. 23).
Dá análise do texto, é possível inferir que o seu objetivo não é
implementar um sistema penitenciário modelo. Na verdade, trata-se de um
conjunto de regras que visam estabelecer princípios e regras de uma boa
organização penitenciária, bem como regras mínimas relativas ao
tratamento dispensado aos presos. Dadas às variações de condições
jurídicas, sociais, econômicas e geográficas existentes no mundo, estas
regras servem para o estímulo constante de superação das dificuldades
práticas enfrentadas pelos sistemas carcerários mundo afora.
As Regras de Mandela se traduzem em mais um marco a se atentar
quando da atuação e do peticionamento na seara da execução penal,
visando a observância dos direitos humanos fundamentais dos
encarecerados. É um lastro mínimo, veja-se, do que entende plausível e
viável a ONU em termos de execução penal, ou seja, estas seriam as
condições básicas para que se possa falar em execução penal digna,
humana e não degradante.
Apesar de o Governo Brasileiro ter participado ativamente das
negociações para a elaboração das Regras Mínimas e sua aprovação na
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Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2015, até o momento, essa
normativa não repercutiu em políticas públicas no país, sinalizando o
quanto carece de fomento em nosso Estado a valorização das normas de
direito internacional dos direitos humanos.
As Regras de Mandela podem e devem ser utilizadas como
instrumentos a serviço da jurisdição e têm aptidão para transformar o
paradigma de encarceramento praticado pela justiça brasileira.
2. A (in)dignidade da pessoa humana
Após tudo que foi dito, o que podemos perceber diante de todo
arcabouço normativo positivado é que, não é por falta de esforço
legislativo que a execução da pena e a respectiva proteção aos apenados
em situação de vulnerabilidade, em especial, as pessoas com deficiência,
deixará de ser levada à efeito. Nesse sentido, o epicentro da efetivação dos
direitos desta parcela marginalizada da população não está na criação de
mecanismos legais no sentido de fundamentá-los, mas nas condições
criadas para sua garantia e efetivação.
Dentro dessa perspectiva, segundo Norberto Bobbio:
Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico,
mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de
saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e
seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos
ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los,
para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam
continuamente violados (BOBBIO, 1992, p. 25).
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Logo, qualquer solução adotada na esfera legislativa passa,
necessariamente, pelas mãos do Poder Executivo, que precisa liberar
verbas para a implementação de inúmeros programas de prevenção,
punição e recuperação dos delinquentes. Além disso, é necessária a
adoção de um nova postura da sociedade em relação a efetivação dos
direitos humanos, cuja base moral e filosófica encontra-se totalmente
distanciada da realidade normativa.
Parece-nos acertada a indagação da Professora Ana Paula de
Barcellos (2015, p. 65): “algo mudou 25 anos depois da promulgação da
Constituição?” Segundo ela, a resposta é negativa e a questão do respeito
à dignidade dos presos demanda outro tipo de abordagem, que não a
propriamente normativa.
Sobre o assunto, Jayme Benvenuto Lima Júnior (2002), sustenta que
a validação dos direitos humanos diz muito a respeito da necessidade de
fazer da exigibilidade, que é a possibilidade de existência prática de
direitos, o ponto focal dos direitos humanos nos dias atuais. A exigibilidade
é, hoje, um imperativo na teoria e na prática dos direitos humanos. Afinal,
as declarações de direitos, as constituições e as leis de um modo geral
deixam de possuir qualquer significação prática se não tiverem a
possibilidade de efetiva aplicação.
Nesse contexto, Bobbio indaga se um direito cujo reconhecimento
e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade
de sujeitos cuja obrigação de executar o “programa” é apenas uma
obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado
corretamente de “direito” (LIMA JÚNIOR, 2002).
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É notório como o Brasil tem explicitado seu compromisso com os
direitos humanos em geral, e com os direitos dos presos e pessoas com
deficiência em particular, por meio da subscrição de atos internacionais
tratando do tema e da edição de normas internas. Entretanto, apesar do
belo discurso e do que dispõe o Direito, parece que a formação da cultura
brasileira ainda não foi capaz de incorporar as noções de igualdade
essencial dos indivíduos e da dignidade de cada ser humano. A
incorporação efetiva desses direitos depende de um crescimento moral da
sociedade, que não se mensura pelas palavras, mas pelos fatos. Como diz
Bobbio (1992, p. 64), “de boas intenções, o inferno está cheio”.
Parece-nos importante trazer à baila os ensinamentos de Cláudia
Werneck, que, mostrando sua sensibilidade jurídica, aduz:
A sociedade para todos, consciente da diversidade da espécie
humana, deve estruturar-se para atender às necessidades de cada
cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos
marginalizados. Crianças, jovens e adultos com deficiência serão
naturalmente incorporados à sociedade inclusiva, definida pelo
princípio: TODAS as pessoas têm o mesmo valor (WERNECK, 2003,
p. 24).
O que pressupõe o princípio da igualdade na aplicação das normas
de execução é a equalização de todos os presos, no sentido de que
qualquer ato que envolva colocar reclusos em posições diferentes em
relação a direitos ou possibilidades é proibido. É, em suma, tratamento
igual para os reclusos que estão em condições de igualdade. Esta última
permite apreciar que a igualdade de tratamento exigida pelo ordenamento
jurídico não impede, de modo algum, as diferenças impostas pelas
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particularidades do tratamento prisional individualizado decorrentes da
diferente situação que apresentar o apenado.
No mesmo contexto, nenhuma outra argumentação é necessária
para justificar a importância adquirida pelo máximo respeito à dignidade
do recluso como elemento indispensável para conseguir, de maneira
genuína e efetiva, a adequada reinserção social dos condenados.
Parece-nos, por todo o exposto e à guisa de conclusão parcial, que
há entendimentos ligeiramente diferentes sobre o que vem a ser dignidade
da pessoa humana. Analisemos, pois, dois conceitos fundamentais,
porque, em si e isoladamente, revelam valores jurídicos: a pessoa humana
e a dignidade.
Sobre a ideia de pessoa humana, José Afonso da Silva, ao discorrer
sobre a filosofia kantiana, mostra que o homem, como ser racional, existe
como fim em si, e não simplesmente como meio, enquanto os seres,
desprovidos de razão, têm um valor relativo e condicionado, o de meio, eis
por que se lhes chamam coisas. Ao contrário, os seres racionais são
chamados de pessoas, porque sua natureza já os designa como fim em si,
ou seja, como algo que não pode ser empregado simplesmente como
meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o nosso arbítrio,
por ser um objeto de respeito. Dessa forma se revela como um valor
absoluto, porque a natureza racional existe como fim em si mesma. Assim,
o homem se representa necessariamente em sua própria existência. Mas
qualquer outro ser racional se representa igualmente assim na sua
existência, em consequência do mesmo princípio racional que vale
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também para mim, é, pois, ao mesmo tempo, um princípio objetivo que
vale para outra pessoa (SILVA, 1998).
Nesse sentido, Immanuel Kant lança seu imperativo prático ao dizer
que “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio” (KANT, 2007, p. 69).
Disso decorre que os seres racionais estão submetidos à lei segundo
a qual cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros
simplesmente como meio, mas sempre e simultaneamente como fim em
si. Isso porque o homem não é uma coisa, não é, por consequência, um
objeto que possa ser tratado simplesmente como meio, mas deve em
todas as suas ações ser sempre considerado como um fim em si.
Isso, em suma, quer dizer que só o ser humano, o ser racional, é
pessoa. Todo ser humano, sem distinção, é pessoa, ou seja, um ser
espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores.
Na consciência e vivência de si próprio, todo ser humano se reproduz no
outro como seu correspondente. É reflexo de sua espiritualidade, razão
pela qual desconsiderar uma pessoa significa em última análise
desconsiderar a si próprio. Por isso é que a pessoa é um centro de
imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar
seu desenvolvimento.
Para falar em dignidade, recorremos novamente à filosofia de Kant,
segundo a qual no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade.
Aquilo que tem um preço pode muito bem ser substituído por qualquer
outra coisa equivalente. No entanto, quando uma coisa está acima de todo
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o preço, não admitindo substituto equivalente, então ela tem dignidade
(KANT, 2007).
Correlacionadas as duas ideias apresentadas, vê-se que a dignidade
é atributo intrínseco, da essência da pessoa humana, único ser que
compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite
substituição equivalente. Assim a dignidade entranha e se confunde com
a própria natureza do ser humano, motivo pelo qual deve-se repudiar toda
e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano.
Nesse sentido, conforme ensina Ingo W. Sarlet, o nosso
Constituinte, a tratar da dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos do nosso Estado democrático de Direito, além de ter tomado
uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da
justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu
categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana,
e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e
não meio da atividade estatal (SARLET, 2015, p. 129).
Assim, de acordo com a lição de Jorge Reis Novais, no momento em
que a dignidade é guindada à condição de princípio constitucional
estruturante e fundamento do Estado Democrático de Direito, é o Estado
que passa a servir como instrumento para a garantia e promoção da
dignidade das pessoas individual e coletivamente consideradas (NOVAIS,
2004).
No mesmo contexto, a dignidade pode ser considerada o coração
do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana, como argumenta
Cármen Lúcia Antunes Rocha (1999). Logo, é imprescindível que se
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outorgue ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em
todas as suas manifestações e aplicações, a máxima eficácia e efetividade
possível. Com as devidas adaptações das palavras de Juarez Freitas, que se
guarde e proteja com todo o zelo e carinho este coração de toda sorte de
moléstias e agressões, evitando ao máximo o recurso a cirurgias invasivas
e, quando estas se fizerem inadiáveis, que tenham por escopo viabilizar
que este coração (ético-jurídico) efetivamente esteja (ou, pelo menos, que
venha a estar) a bater para todas as pessoas com a mesma intensidade
(FREITAS, 1999).
Assim, se todas as pessoas gozam de mesma dignidade, como
justificar o tratamento desumano conferido as pessoas com deficiência
que estão encarceradas? Será que o cidadão que é considerado infrator,
por tal fato, perde a sua dignidade?
Santo Tomás de Aquino (2017), ao questionar sobre a licitude para
matar os pecadores, afirma que o homem, ao delinquir, se afasta da ordem
racional, e portanto decai da dignidade humana, equiparando-se, de certo
modo, aos animais. Ainda que o autor utilizasse o argumento para justificar
a pena de morte, tal argumento é inconcebível.
A propósito do tema, adverte Ingo W. Sarlet (2015) que a dignidade
independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer
pessoa humana, visto que, em princípio, todos, mesmo o maior dos
criminosos, são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos
como pessoas, ainda que não se portem de forma igualmente digna nas
suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos.
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Dentro da mesma perspectiva, Jesús González Pérez alerta que o
ingresso numa instituição penitenciária determina a sujeição do apenado
a um status especial em que um direito tão fundamental quanto o da
liberdade sofre uma limitação drástica. No entanto, nas palavras do autor:
Pero en modo alguno supone la pérdida de la condición de
persona humana. La condición de persona y la dignidad a ella
inherente acompañará al hombre en todos y cada uno de los
momentos de su vida, cualquiera que fuere la situación en que se
encontrare, aunque hubiere traspasado las puertas de una
institución penitenciaria (PEREZ, 2007, p. 28).
Assim, a dignidade da pessoa humana, que é atributo intrínseco de
todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem as ações mais indignas
e infames, não poderá ser objeto de desconsideração.
A falar sobre o “direito à dignidade”, Ronald Dworkin apresenta a
ideia de que as pessoas têm o direito de não ser vítimas da indignidade,
de não ser tratadas de um modo que, em sua cultura ou comunidade, se
entende como demonstração de desrespeito. Segundo ele, os presos
condenados, inclusive pelos crimes mais graves, têm direito à dignidade
na punição que lhes for aplicada. Insiste o autor que tal pessoa seja tratada
com dignidade, “pois continuamos a vê-la como um ser humano integral,
como alguém cujo destino continuamos a tratar como objeto digno de
interesse e preocupação” (DWORKIN, 2003, p. 334).
Por fim, podemos entender que o encarceramento das pessoas com
deficiência, embora sejam minoria, têm sua problemática enfrentada em
proporções muito superiores à dos demais apenados, sendo duplamente
punidos. Isso nos leva a afirmar que o poder público, bem como a ordem
jurídica, não toma a sério a dignidade da pessoa, como qualidade atribuída
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e reconhecida ao ser humano, não trata com seriedade os direitos
fundamentais e, acima de tudo, não leva a sério a própria humanidade que
habita em cada uma e em todas as pessoas e que as faz merecedoras de
respeito e consideração recíprocos. Nesse sentido, Dworkin é enfático ao
determinar que, “se o governo não levar os direitos à sério, é evidente que
também não levará a sério a lei. (DWORKIN, 2002, p. 314). Mas será que
todo o problema pode ser resumido a isso? Parece-nos que não, conforme
veremos a seguir.
3. A falta do reconhecimento
“O olhar dos outros nos constitui.” Com essa frase, Daniel Sarmento
nos explica que, o que somos, o que fazemos, a forma como nos sentimos,
nosso bem-estar ou sofrimento, a nossa autonomia ou subordinação, tudo
isso depende profundamente da maneira como somos enxergados nas
relações que travamos com os outros. (SARMENTO, 2016).
Assim, nas palavras de Axel Honneth (2003, p. 217), quando a
sociedade nos trata sistematicamente como inferiores, internalizamos uma
imagem negativa de nós mesmos e passamos a moldar as nossas escolhas
e ações a partir dela. Por isso, para que as pessoas possam se realizar e
desenvolver livremente suas personalidades, o adequado reconhecimento
pelo outro é vital. O ser humano é ser de relações e por isso, o
reconhecimento marca, mais do que qualquer outra ação, a entrada do
indivíduo na existência especificamente humana.
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Sarmento esclarece que a falta de reconhecimento oprime, instaura
hierarquias, frustra a autonomia e causa sofrimento. Vícios no
reconhecimento têm também reflexos diretos nas relações econômicas e
de poder presentes na sociedade, pois fecham as portas, criando
embaraços ao acesso a posições importantes na sociedade para as pessoas
estigmatizadas. Logo, ressalta em importância essa dimensão
importantíssima da dignidade da pessoa humana, que é o reconhecimento
intersubjetivo (HONNETH, 2003).
Para melhor compreensão do assunto, precisamos lançar mão dos
estudos do Filósofo e Sociólogo alemão Axel Honneth, que pesquisou a
sociedade, a vulnerabilidade dos sujeitos em condição de opressão e os
movimentos de luta pelo reconhecimento.
Honneth desenvolve sua contribuição para a Teoria Crítica
colocando a questão do reconhecimento no centro da reflexão. Ele
estabelece uma premissa antropológica segundo a qual, segundo Honneth
(2003, p. 137) “os seres humanos são vulneráveis naquela maneira
específica que denominamos ‘moral’ porque eles devem sua identidade à
construção de uma autorrelação prática que desde o início depende da
ajuda e da afirmação de outros seres humanos”.
Afirma, ainda, que as relações intersubjetivas são tidas como
constitutivas na medida em que “os sujeitos humanos somente podem
desenvolver uma autorrelação intacta quando verem-se afirmados ou
reconhecidos de acordo com o valor de certas capacidades e direitos”
(HONNETH, 2003, p. 138).
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As relações intersubjetivas que possibilitam o desenvolvimento da
autorrelação prática para Honneth, ocorrem em três esferas distintas, cada
uma correspondendo a uma forma diferente de reconhecimento: amor ou
amizade nas relações primárias, direitos nas relações jurídicas e
solidariedade e estima nas relações sociais. Cada uma destas formas de
reconhecimento está intimamente relacionada ao desenvolvimento de um
tipo específico de autorrelação prática ou de relação consigo mesmo.
Honneth estabelece um diálogo entre o sujeito, o amor, direito e
solidariedade e como a possibilidade de articulá-las fortalece os sujeitos
levando-os a conquistar a dignidade humana, a autonomia e o
autoconhecimento. Na mesma toada, salienta que a cada uma das três
formas de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) acima descritas
corresponde uma forma de desrespeito ou injúria moral que ameaça um
componente específico da identidade.
Segundo o filósofo, a esfera do amor é ancorada estruturalmente
na dimensão da natureza afetiva e dependente da personalidade humana.
Ao relacionar-se com o outro é que se desenvolve a confiança que resulta
na autoconfiança, pois:
[…] essa relação de reconhecimento prepara o caminho para uma
espécie de auto-relação em que os sujeitos alcançam mutuamente
uma confiança elementar em si mesmos, ela precede, tanto lógica
como geneticamente, toda outra forma de reconhecimento
recíproco: aquela camada fundamental de uma segurança
emotiva não apenas na experiência, mas também na
manifestação das próprias carências e sentimentos, propiciada
pela experiência intersubjetiva do amor, constitui (HONNETH,
2003, p. 177).
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Assim, numa esfera em que o autor define como íntima, a pessoa é
reconhecida como um indivíduo com necessidades e desejos específicos.
Nela o reconhecimento tem o caráter de uma devoção afetiva,
incondicional, preocupada com o bem-estar do outro enquanto tal; essa
devoção pode ser descrita com categorias como cuidado e amor. A
autorrelação prática que se desenvolve aqui é a autoconfiança (SABOTTKA,
2015, p. 689).
Negligenciar ou negar o reconhecimento nas relações primárias
destrói a confiança no valor que as necessidades de cada um têm aos olhos
dos outros. Para Honneth (2003, p. 136) “[...] ao lado do assassinato, que
desconsidera todas as formas de bem-estar físico, casos típicos desta
classe são abuso físico, tortura e estupro”. Logo, este tipo de
reconhecimento é responsável não só pela base de autorrespeito, mas
também pela base de autonomia necessária para a participação da vida
pública (HONNETH, 2003, p. 178). Portanto, este primeiro nível de
reconhecimento é condição do segundo nível de reconhecimento, qual
seja, o jurídico.
No que se refere ao direito, o reconhecimento seria a igualdade,
garantida pelas leis e a moral dos sujeitos. Assim o reconhecimento se dá
pelo respeito cognitivo e pelos direitos garantidos. O conflito se dá pela
privação de direitos e pela exclusão que pode ameaçar a integridade social
dos indivíduos.
Portanto, segundo Sabottka (2015), na segunda esfera, o indivíduo
é reconhecido como uma pessoa a quem é atribuída a mesma capacidade
moral que se atribui a todo ser humano. Nas sociedades modernas, essa
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esfera de reconhecimento é a das relações juridicamente mediadas e tem
o caráter de um tratamento igualitário, universal pelo menos no âmbito da
comunidade juridicamente definida. A autorrelação prática que os
indivíduos desenvolvem aqui é designada de autorrespeito.
Esta segunda forma de reconhecimento está relacionada com a
responsabilidade moral, que em sociedades modernas envolve direitos e
deveres iguais para cada sujeito individualmente. Hoje, a forma de
reconhecimento do direito contempla não só as capacidades abstratas de
orientação moral, mas também as capacidades concretas necessárias para
uma existência digna.
Como formas típicas de desrespeito, podemos mencionar um leque
de lesões que vão do engano, da fraude e denegação de direitos em
relações individuais até a discriminação de grupos inteiros de pessoas.
Logo, o conflito se dá pela privação de direitos e pela exclusão que pode
ameaçar a integridade social dos sujeitos.
Por fim, na esfera da solidariedade, o indivíduo é reconhecido como
uma pessoa cujas capacidades e habilidades são tidas como de valor para
uma comunidade concreta, ou seja, o reconhecimento se dá pela estima
social (HONNETH, 2003, p. 198). A autorrelação prática que os indivíduos
desenvolvem nessa esfera é designada de autoestima.
O desrespeito à essa forma de reconhecimento implica em os
sujeitos serem considerados insignificantes ou até mesmo indesejados
dentro da comunidade. Como exemplos de negação de reconhecimento,
podemos mencionar gestos simples, como não saudar a outra pessoa, e
bem mais sérios, como a estigmatização. Estamos falando de privação de
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direitos, em que o componente ameaçado é aquele da dignidade e
integridade social.
Para que os atores sociais possam, portanto, desenvolver relações
solidárias e, por consequência, um autorrelacionamento positivo e
saudável, eles precisam ter a chance simétrica de desenvolver a sua
concepção de vida sem sofrer as patologias oriundas das experiências de
desrespeito (HONNETH, 2003). Nesse sentido, cada indivíduo é concebido
como corresponsável pelo bem-estar dos outros membros da
comunidade, sendo esta corresponsabilidade definida como uma
obrigação moral, universal.
Pelo exposto, podemos concluir que é possível extrair do princípio
da dignidade da pessoa humana um direito fundamental ao
reconhecimento, que também tem fortes conexões com a igualdade e a
solidariedade. Nas palavras de Sarmento, trata-se de um direito ‘ao igual
respeito da identidade pessoal’. Ele não apenas veda as políticas públicas
e práticas sociais que estigmatizam as pessoas por conta de suas
identidades, como também impõe que o Estado interfira sobres as relações
sociais, buscando eliminar as valorações negativas conferidas pela cultura
hegemônica de certos grupos (SARMENTO, 2016, p. 334).
Logo, o direito ao reconhecimento veda a imposição de barreiras
que prejudiquem o efetivo desfrute de direitos básicos pelos membros de
grupos estigmatizados, como ocorre em relação aos apenados com
deficiência.
Nesse contexto, vale trazer a colação, as palavras do professor e
filosofo norte americano Joel Feinberg. Segundo o filósofo:
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Ter direitos nos capacita a “manter-nos como homens”, a olhar os
outros nos olhos e nos sentir, de uma maneira fundamental, iguais
a qualquer um. Considerar-se portador de direitos não é ter
orgulho indevido, mas justificado, é ter aquele auto-respeito
mínimo, necessário para ser digno do amor e da estima dos outros.
De fato, o respeito por pessoas [...] pode ser simplesmente o
respeito por seus direitos, de modo que não pode haver um sem
o outro; e o que se chama 'dignidade humana' pode ser
simplesmente a capacidade reconhecível de afirmar pretensões
(FEINGERG, 1980, p. 151).
Portanto, parece-nos que as condições desumanas do nosso
sistema carcerário tem origem na degradação ética e moral da sociedade,
que começa nas relações mais íntimas da célula familiar, onde se verificam
contínuos desrespeitos à dignidade humana. Depois, se estende para as
relações entre o Estado e o sujeito, que é negligenciado pelo poder público
nas suas necessidades mais básicas e, por fim, tratado como inferior pelos
seus ‘iguais’ nas relações sociais.
Considerações finais
Constatou-se ao longo do texto que os direitos atribuídos às
pessoas com deficiência e encarceradas, formalmente consagrados,
resultam de conquistas históricas e não de um efêmera descoberta de um
legislador subitamente despertado por um senso de justiça. O que temos
é um contingente de pessoas marginalizados pela vida e pela injustiça
social que as sobrecarrega. Pessoas cuja dignidade humana é tida por
parcela da sociedade como perdida em razão das escolhas equivocadas
que fizeram.
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Ficou evidente que temos um extenso rol normativo de direitos que
envolvem tanto as pessoas com deficiência, quanto as pessoas que estão
privadas da sua liberdade. No entanto, é notório o descaso do Estado
brasileiro, ao permitir que pessoas vivam como animais, totalmente
desprovidos de qualquer dignidade. Logo, é sabido por todos, que as
condições da carceragem brasileira pouco ou nada se aproximam da
previsão legal, o que, por si, talvez pudesse ser um argumento válido como
causa da ineficiência do sistema.
O que temos, na verdade, são prisões superlotadas, nas quais não
encontra o preso qualquer garantia de atenção aos direitos humanos
mínimos e, por consequência, a manutenção do apenado na criminalidade,
cada vez mais temido e excluído da sociedade.
Trata-se de um sistema brutal e brutalizante, que desatende a todas
as regras mínimas para tratamento do preso. Nesse sentido, as regras de
Direitos Humanos aplicáveis foram fixadas, não apenas na busca da
ressocialização do apenado, mas pela simples razão de tratar-se ele de um
ser humano. Essa carência de reconhecimento, a invés da reintegração
social do apenado, resulta em sua brutalização e dessocialização,
retroalimentando um sistema que provocará sua volta à criminalidade e,
por conseguinte, à prisão.
No entanto, a simples crítica ao sistema carcerário baseada em
palavras de ordem, julgando-o ineficiente, desumano e ilegal e
insuficiente. Qualquer tentativa de promover uma profunda reforma no
sistema carcerário deve, antes, guiar-se pelo reconhecimento de que, na
sociedade contemporânea, os interesses individualistas e imediatistas têm
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sido colocados em posição prioritária em face dos objetivos comunitários.
Por essa razão, a preocupação com as condições de cumprimento de pena
ou a ressocialização do apenado, em especial, aquele com deficiência,
ficam relegadas a segundo plano.
A sociedade, há anos, vem reconhecendo as pessoas presas e/ou
com deficiência como integrantes de uma parcela da sociedade que
sempre se manteve numa condição de inferioridade quanto à dignidade
humana. Parece-nos que perdemos a capacidade de reconhecer um outro
ser humano, fazendo com que o reconhecimento caia no esquecimento.
Essa situação tem sua origem no âmbito familiar e se agrava quando não
há apoio comunitário e políticas públicas adequadas
É preciso resgatar o sentido dado ao princípio da dignidade
humana, que está diretamente ligado a compreensão de ‘pessoa’. Estamos
falando do ser humano concreto, enraizado, que não é só o racional, mas
também emocional, corporal e social. Trata-se de pessoa que é um fim em
si, razão de ser do Estado e da ordem jurídica, e não um mero órgão da
comunidade.
No mesmo sentido, é preciso ressaltar a ideia do valor intrínseco da
pessoa, segundo o qual, o ser humano nunca pode ser tratado como
apenas um meio, mas sempre como um fim em si. Isso implica em afirmar
que a dignidade humana não depende das características pessoais ou dos
atos de cada individuo tenha praticado, pois todos possuem a mesma
dignidade.
Por fim, o que percebemos no presente estudo, é que a crise do
sistema carcerário é, em verdade, mais filosófica do que material.
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O AUXÍLIO-RECLUSÃO É UM DIREITO DO PRESO CIVIL?
IS THE IMPRISONMENT AID A RIGHT OF CIVIL PRISONER?
José Henrique Ferreira Bona
Mestre em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário
IESB; especialista em Direito Público e em Atividade Policial Judiciária; graduado em
Ciências Contábeis e em Direito; docente da Escola Superior de Polícia desde 2009 e
atualmente trabalha na Polícia Civil do Distrito Federal. https://orcid.org/0000-0003-
3602-0508
Paulo José Leite Farias
Pós-doutor pela Universidade de Boston (EUA); doutor pela Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE); mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); professor
dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito do Centro Universitário Instituto
de Educação Superior de Brasília (IESB); atualmente é promotor de justiça do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios https://orcid.org/0000-0002-7640-0401
Resumo
O presente trabalho apresenta conceitos sobre a prisão administrativa e civil. Em seguida,
analisa posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a concessão do benefício
auxílio-reclusão ao preso civil no contexto da previdência social brasileira.
Palavras-chaves: Auxílio-reclusão; Preso civil; Benefícios previdenciários.
Abstract
The present work presents concepts of administrative and civil. Thus, analyze
imprisonment, doctrinal and judicial positions on the granting of the imprisonment aid
benefit to the civil prisoner in the Brazilian Social Security System.
Keywords: Imprisonment aid; Civil prisoner; Social Security Benefit.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A concessão ou não do benefício
auxílio-reclusão ao preso devedor de pensão alimentícia – preso
civil; 3. Conclusão; 4. Referências.
Introdução
O presente artigo defende a possibilidade de concessão do auxílio-
reclusão ao preso civil, decorrente do inadimplemento da pensão alimentícia,
momento de grande fragilidade do preso.
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O tema se perfaz bastante polêmico e, quando se trata da concessão desse
benefício ao preso devedor de pensão alimentícia – preso civil, além de
controverso, não existe pacificidade nos posicionamentos firmados acerca do
assunto pelos estudiosos, o que demonstra a necessidade de esclarecê-lo.
Apesar do garantismo predominante na Constituição brasileira, ela ainda
possui lacunas de efetividade no que diz respeito à garantia de alguns direitos
fundamentais, dentre eles o direito social à previdência.
Assim, serão trazidos alguns conceitos sobre prisão administrativa e civil,
a fim de possibilitar um entendimento mais amplo sobre o assunto para, em
seguida, ser catalogados os posicionamentos, contrários e favoráveis, de alguns
doutrinadores sobre o assunto.
A distinção entre prisão civil e penal faz-se necessária, pois grande parte
da doutrina entende que o benefício previdenciário do auxílio-reclusão deveria ser
dado somente para as prisões penais oriundas de condenação definitiva!
Ao final, será apresentada a justificativa da defesa de concessão do
benefício previdenciário ao preso civil, fundamentada na doutrina e jurisprudência
atual.
1. A concessão ou não do benefício auxílio-reclusão ao preso devedor de
pensão alimentícia – preso civil
O presente artigo irá tratar da possibilidade da concessão do auxílio-
reclusão ao preso por inadimplemento da pensão alimentícia, que será chamado
no texto de preso civil.
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É importante primeiramente, conceituarmos a prisão administrativa,
estabelecida no art. nº 319 do Código de Processo Penal, pois alguns autores
entendem ser a prisão civil uma espécie de prisão administrativa, pois é uma prisão
extrapenal que deve ser decretada por autoridade judiciária, por razões de ordem
administrativa e com o escopo administrativo, salvo nos casos de transgressão
militar ou crime propriamente militar (MIRABETE, 2003, p. 397).
Depois, iremos discorrer sobre a prisão civil54, que no ponto de vista, é sim,
também uma espécie de prisão administrativa, que se encontra disciplinada no art.
nº 528, § 3º da Lei nº 13.105/201555 (Código de Processo Civil) combinado com o
art. nº 5º, LXVII da Constituição Federal de 2018.
Fica claro que o objetivo da prisão civil é forçar o preso a honrar suas
obrigações, vindo a pagar sua dívida originária da pensão alimentícia.
No intuito de ratificar este posicionamento, traz-se a opinião de Álvaro
Azevedo, que orienta:
Prisão civil, assim é a que se realiza no âmbito estritamente do Direito
Privado, interessando-se, neste estudo, essencialmente, a que se
consuma em razão de dívida impaga, ou seja, de um dever ou de uma
obrigação descumprida e fundada em norma jurídica de natureza civil.
Especificamente, neste trabalho, objetivando a prisão civil, por dívida, do
depositário infiel e do alimentante descumpridor de dever alimentar
(AZEVEDO).
Para fins de esclarecimentos, é importante trazer à tona que a versão
original da Constituição Federal de 1988 referia-se a dois tipos de prisões cíveis,
54 Prisão civil por inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. 55 Art. 528, § 3º do CPC. Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz,
além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1o, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de
1 (um) a 3 (três) meses.
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que eram as decorrentes de não pagamento da pensão alimentícia e a do
depositário infiel.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes:
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do
depositário infiel (BRASIL, CR/88, art. 5º).
O Brasil manteve as duas espécies de prisão até 1992, data em que aderiu
ao Pacto de San José da Costa Rica de 196956 (ou Convenção Americana de Direitos
Humanos), por meio do Decreto nº 678/1992. O Pacto de San José da Costa Rica
proibia prisões civis, salvo as decorrentes do inadimplemento de obrigação
alimentar, e taxativamente trazia em seu artigo nº 7º: “Ninguém deve ser detido
por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária
competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.
Nesse sentido, quando o Brasil aderiu à Convenção Americana sobre os
Direitos Humanos no ano de 1992 e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, passou-se a ter um suposto embate entre a Constituição Federal de 1988,
que aceitava dois tipos de prisão, e a Convenção Americana, que só aceitava um
tipo de prisão, a do devedor de pensão alimentícia.
Diante de tal cenário, o STF se posicionou decidindo que legislações
internacionais que tratam de direitos humanos, quando internalizadas no
ordenamento jurídico pátrio, têm caráter supralegal, salvo quando seguem o rito
56 Cfr. SAN JOSÉ. Pacto de San José da Costa Rica. San José, Costa Rica, nov. 1969.
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do art. nº 5º, §3º da Constituição Federal de 198857, que passam a possuir eficácia
de Emenda Constitucional. Logo, como as prisões dos depositários infiéis são
disciplinadas por leis infraconstitucionais, e os tratados em questão são
supralegais, os dispositivos legais nacionais tiveram sua eficácia paralisada.
Além disso, O STF publicou, em 16/12/2009, a Súmula Vinculante nº 2558,
pacificando o posicionamento no sentido de proibir a prisão civil do depositário
infiel, e estabeleceu que: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que
seja a modalidade de depósito”.
Assim, permaneceu vigente na CF/88 somente a prisão civil por falta de
pagamento da pensão alimentícia. Contudo, não é o simples fato de não pagar a
pensão alimentícia que provoca a prisão, deve-se, ainda, acrescentar alguns
motivos específicos, que são: inadimplemento voluntário e inescusável, ou seja,
não quis pagar e não justificou o motivo do não pagamento.
Nesse caso, ocorrendo a prisão do devedor de alimentos, ocorrerá seu
cumprimento em regime fechado59. Desta forma, atende-se um dos requisitos para
a concessão do benefício auxílio-reclusão, que é o regime de cumprimento de
“pena”.
57 Cf. At. 5º da CF/88. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e estrangeiros residentes no País à inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: §3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 58 BRASIL. STF. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante_>. Acesso em:
19 maio, 2018. 59 Art. 733, §4º do CPC/2015. A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado
dos presos comuns.
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Posicionamento defendido pelo professor Hélio Gustavo Alves:
O juiz poderá aplicar a pena de um a três meses para o devedor e, vencido
o prazo da pena, o réu é libertado, se o réu é segurado da Previdência
Social, para o período em que esteve preso é cabível o auxílio-reclusão,
caso não tenha renda (ALVES, 2014, p. 57).
Assim, a concessão do benefício será por prazo certo, ou seja, de um a três
meses, a depender do tempo de prisão que foi determinado no mandado judicial.
Reafirma ainda o citado autor Hélio Gustavo Alves (2014, p. 132) que: “É
devido o auxílio-reclusão em todas as espécies de regimes e penas, bastando
somente o segurado estar preso e não ter recebimento de renda”.
Diante da realidade brasileira, em que o encarceramento promove a
qualificação ao crime, indaga-se sobre a real necessidade da prisão do devedor de
alimentos e se ela respeita o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade.
Alguns autores afirmam que sim, pois decorre da necessidade de equilibrar
a necessidade do alimentado e as possibilidades do alimentando. Pablo Stolze
segue esta linha.
Nessa ordem de ideia, entendo que a prisão civil decorrente de
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar, face à
importância do interesse em tela (subsistência do alimentado), é medida
das mais salutares, senão necessária, por se considerar que boa parte dos
réus só cumpre a sua obrigação quando ameaçados pela ordem de prisão
(GAGLIANO, 2018).
Contudo, discorda-se do ilustríssimo doutrinador e jurista, pois qualquer
tipo de prisão ofende a dignidade da pessoa humana60, principalmente, aquela
60 A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na
autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por
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decorrente de dívida civil, pois a pessoa que é levada ao cárcere, nesse caso, não
cometeu nenhum crime, podendo a cobrança da dívida ser feita de outras formas
menos agressivas, diversas da prisão, realizada apenas para coagir ao pagamento.
Ademais, o fundamento de muitos doutrinadores para a não concessão do
auxílio-reclusão ao preso civil é que a prisão tem que ser por motivo criminal,
devendo, portanto, ser uma prisão-pena.
Novamente discorda-se, pois em momento algum cita-se na lei ou no
decreto, ou em qualquer outro instrumento normativo, sobre a exigência para a
concessão do benefício, de haver uma prisão criminal. A lei apenas exige que o
segurado se encontre “recolhido à prisão”61. Logo, se a lei não restringe, não pode
a doutrina restringir. Deve-se aplicar a lei buscando a máxima efetividade,
principalmente quando se trata de direitos sociais, que neste caso é abranger todo
tipo de prisão, independentemente de ser criminal ou civil, decorrente de prisão
pena ou cautelar, devendo, então, alcançar a prisão civil, a prisão condenatória, a
prisão preventiva, a prisão temporária e a prisão em flagrante.
Outro posicionamento que segue a linha de entendimento contrária é o
do Marcelo Leonardo Tavares, o qual entende que:
O auxílio-reclusão é incompatível com a prisão processual civil, Como
essa modalidade de prisão somente deve ser utilizada se a pessoa,
podendo não cumpre a obrigação alimentar, ficaria sem sentido, em
relação ao caráter coercitivo, manter o pagamento de benefício para os
parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar,
de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais,
mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos
(MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6 ed., São Paulo: Ed. Atlas, 1999, p.47). 61 “Art. 80 da Lei 8.213/91 O auxílio-reclusão será devido, nas mesmas condições da pensão por morte, aos
dependentes do segurado recolhido à prisão, que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo
de auxílio-doença, de aposentadoria ou de abono de permanência em serviço” (grifo nosso).
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dependentes, o que, em alguns casos, poderia servir de incentivo ao
próprio descumprimento da obrigação (TAVARES, 2007, p. 184).
A legislação previdenciária, não faz distinção sobre o motivo da prisão do
segurado para a concessão do benefício auxílio-reclusão, logo, é indiferente se o
recolhimento se deu por ordem judicial civil, penal ou medida judicial.
Ainda seguindo a linha contrária, tem-se os dizeres de Sérgio Pinto Martins
que leciona pela extinção do benefício, fundamentando seu posicionamento no
sentido de que, quem deve arcar com o desamparo da família do preso deve ser
ele mesmo, pois quem deu causa a tal situação foi o próprio preso, sendo um
benefício de contingência provocada.
Assim, afirma Martins:
Eis um benefício que deveria ser extinto, pois não é possível que a pessoa
fique presa e ainda a sociedade como um todo tenha de pagar um
benefício à família do preso, como se este tivesse falecido. De certa
forma, o preso é que deveria pagar por se encontrar nessa condição,
principalmente por roubo, furto, tráfico, estupro, homicídio, etc.
(MARTINS, 2003, p. 403).
Posicionamento que diverge do defendido neste artigo, pois, apesar de o
segurado ter dado causa ao risco social, não existe previsão legal para a negativa
do benefício ao segurado pelo simples fato do evento ter sido provocado,
posicionamento inclusive defendido pela jurisprudência, e, também, pelo fato do
benefício ser pago aos familiares do preso e não ao próprio preso, diferentemente
do auxílio-acidente, em que o beneficiário é o segurado.
“PROCESSO CIVIL. AGRAVO. ARTIGO 557, §1º, DO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL. SOBRESTAMENTO DO FEITO AFASTADO. AUXÍLIO-
RECLUSÃO. (...) 6. A interpretação acerca do preenchimento dos
requisitos para a concessão de auxílio-reclusão deve ser restritiva,
considerando que este benefício se traduz em proteção social gerada
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pela prática de ato ilícito doloso ou culposo. (...) 7. Agravo Legal a que se
nega provimento”. (TRF 3ª Região – 7ª T. – AC 0043716-77.2013.4.03.9999
– Rel. Des. Federal Fausto de Sanctis – j. em 29.02.2016, e-DJF3 Judicial 1
Data: 09.03.2016)
Seguindo (2011, p. 299) a mesma linha da jurisprudência, tem-se a opinião
de Marisa Ferreira dos Santos, que afirma em seu livro: “a lei não distingue sobre
os motivos da prisão do segurado, de sorte que a prisão pode ser penal, civil ou
administrativa, cautelar ou não”.
Tem-se, ainda, o posicionamento de Simone Barbisan Fortes:
O encarceramento demandado pode ser de qualquer natureza, isto é, a
prisão pode ser penal, civil ou administrativa, cautelar ou não. Pode,
assim, a título de exemplificativo, o encarceramento decorrer de prisão
em flagrante, prisão provisória, prisão decorrente de pronúncia, prisão
decorrente de sentença penal transitada em julgado, prisão decorrente
de dívida alimentar, etc. (FORTES, 2005, p. 146).
No mesmo sentido, José Antonio da Silva afirma que:
Não importa para a Previdência Social o motivo da prisão do segurado,
e tampouco se o recolhimento à prisão se deu por sanção penal, por
medida judicial cautelar ou provisória, ou administrativa, ou ainda, se por
determinação judicial civil (grifo nosso), (SILVA, 2009).
Wagner Balera admite que o preceito constitucional utiliza a expressão
“reclusão” de forma genérica, não no sentido técnico da palavra, bem como,
também acertadamente, admite a concessão do benefício em estudo no caso de
prisão provisória, prisão civil e administrativa. Veja-se:
Quando o preceito constitucional emprega a expressão “reclusão” é de
se entender que não fez em sentido técnico. Deveras, mesmo a prisão
simples ou a detenção configuram o fato que dá origem ao benefício. A
prisão provisória, a prisão civil por dívida de alimentos, a do depositário
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infiel ou a prisão administrativa, são fatos geradores do benefício
(BALERA, 2003, p. 291).
Para Fábio Zambitte Ibrahim (2010, p. 700) “por mais grave que tenha sido
o crime, não há, necessariamente, perda do benefício pelo segurado; salvo,
evidentemente, fraude praticada contra a previdência social na obtenção do
benefício”.
Traz-se, ainda, o raciocínio de Miriam Horvath afirmando que:
[...] não se discute no seguro social se o dependente deu causa ao risco.
Comparando com outro benefício seria o mesmo que pedir para o
beneficiário do auxílio-acidente comprovasse que não deu causa ao
acidente que o fez requerer o benefício (HORVATH, 2005, p. 108).
Em idêntica posição, defendendo a aplicação do auxílio-reclusão a
qualquer espécie de prisão, independentemente se criminal, civil, condenatória ou
provisória, a Doutora Alessandra Pacheco (2018, p. 49) ensina que: “a lei não
distingue sobre os motivos da prisão do segurado, podendo ser penal, civil ou
administrativa, cautelar ou não”
Logo, pode-se concluir que, em qualquer tipo de prisão o benefício é
devido, salvo em casos de crimes cometidos com fraude à previdência social.
Ibrahim (2010, p. 702) ainda defende que: “qualquer decisão judicial que
determine a prisão do segurado, ainda que temporária, dará direito ao benefício”.
Então, o importante é o segurado encontrar-se preso, em regime fechado,
não interessando qual o motivo que deu causa a seu encarceramento.
Outro ponto importante defendido e explicitado por Marcelino e
Theodoro é que, “como o risco não é a prisão, o motivo desta, para fins
previdenciários, pouco importa. Não é relevante para a concessão do benefício, o
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fato do delito que ensejou a reclusão do segurado ter sido grave ou leve, doloso
ou culposo” (2019, p. 96)62
Pois veja-se, deve-se pontuar que a relevância aqui é falta de rendimento
pelos dependentes do segurado, logo, qualquer espécie de prisão que
impossibilite o recebimento desse rendimento pelos agentes envolvidos é motivo
para a solicitação do benefício auxílio-reclusão, inclusive a prisão civil.
Partindo dessa premissa, a situação do preso civil por não pagamento de
pensão alimentícia encontra-se abrangida, também, pela proteção previdenciária,
pois quando a Previdência Social enumerou os benefícios a serem concedidos, não
associou sua concessão ao fator gerador deles.
Realmente, pode-se afirmar que a expressão “auxílio-reclusão” não foi
utilizada de forma técnica, pois o referido benefício pode ser concedido para casos
de prisão simples ou de detenção, demonstrando a impropriedade do termo.63
Diante do exposto, reafirma-se a possibilidade de concessão do benefício
do auxílio-reclusão ao preso civil, com fundamento na Constituição Federal de
1988, art. nº 5º, II64, segundo o qual alguém só estará obrigado a fazer ou deixar
de fazer algo por motivo de lei e também “na regra de clausura, em que tudo que
não estiver juridicamente proibido ou obrigado, está juridicamente permitido”65.
62 Cfr. ALCÂNTARA, Marcelino Alves de; AGOSTINHO, Theodoro Vicente. Auxílio-reclusão: teoria e
prática. Curitiba: Juruá, 2019, p. 96. 63 ALCÂNTARA, Marcelino Alves de; AGOSTINHO, Theodoro Vicente. Auxílio-reclusão: teoria e prática.
Curitiba: Juruá, 2019, p. 245. 64 CF/88. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei; 65 ADPF nº 132-RJ. Voto do Ministro Ayres Brito, p. 27. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: 02 jun., 2018.
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Assim, deixar desamparada a família do segurado preso seria malograr o
binômio contribuição-retribuição, típico dos seguros sociais, quebrando a lógica
do sistema previdenciário brasileiro, que ampara os segurados contra os riscos
sociais.
Marcelino Alcântara e Theodoro Agostinho trazem uma interpelação
bastante interessante e esclarecedora sobre a concessão ou não do benefício
auxílio-reclusão ao preso civil. Veja-se:
Ora, é o que acontece in casu. O segurado que é recolhido à prisão, tendo
por origem o descumprimento de uma obrigação alimentar, em que
ponto (da impossibilidade de trabalhar – e, consequentemente – gerar
rendas) se difere de um segurado preso em face de um ilícito penal? Ao
nosso entender nada.
Assim, seja em decorrência de um ilícito de natureza civil ou penal, o
segurado que encontrar-se recluso, por consequência, não pode
trabalhar. Esse é o ponto fulcral para a análise e concessão do benefício
(ALCÂNTARA; AGOSTINHO, ano, 167).
Fortalece tal posicionamento, decisão proferida pelo STF no HC nº 100104
da 2ª Turma, que:
O afastamento do trabalho e efeito lógico da prisão, não podendo o
paciente basear-se em tal fato para alegar a ausência de efeito prático da
sua prisão, mormente quando já lhe foi conferida oportunidade para
pagar sua dívida em liberdade”. HC 100104 – Relª. Minª. Ellen Gracie – 2ª
T. – j. em 18.08.2009 – Dje – 171 – Divulg. 10.09.2009 – Public. 11.09.2009
– v. 2373-02 – p. 345 RT – v. 98 – n. 890 – 2009 – p. 165-169).
Então, fica claro que deve haver preocupação com a “prisão” que
impossibilita o trabalho, e não com as “espécies de prisão”, pois todo e qualquer
tipo de prisão admite o requerimento do benefício auxílio-reclusão, desde que
preenchidos os requisitos legais.
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Enfim, se caracterizada a impraticabilidade de trabalho/atividade
remunerada pelo preso civil devedor de alimentos, existe o risco social à família do
segurado, o que possibilita a solicitação do benefício auxílio-reclusão.
Pode-se concluir, diante de todo o cenário, que o benefício auxílio-
reclusão é um direito do preso devedor de pensão alimentícia – preso civil,
independentemente do tipo de prisão, exigindo apenas os requisitos legais
mínimos para a sua concessão.
Considerações finais
O presente artigo reconhece que o preso, independentemente da espécie
de sua prisão, seja ela civil, penal, administrativa, desde que preenchido os
requisitos legais mínimos previdenciário, tem direito ao auxílio-reclusão, benefício
imensamente importante para o sustento das famílias do detento. Desta forma,
será respeitado um dos principais princípios da Constituição de 1988, que é o
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O encarcerado sempre deverá ter
respeitada a sua dignidade, seja na esfera previdenciária, seja na esfera dos direitos
sociais e humanos!
Portanto, com fundamento na Constituição Federal de 1988, não cabe ao
intérprete diminuir aquilo que a Constituição prescreveu, o benefício auxílio-
reclusão deve ser concedido às prisões cíveis decorrentes de não pagamento da
pensão alimentícia – prisão civil, pois como não existe previsão jurídica específica,
adequada e proporcional proibindo a concessão do benefício a esta classe de
preso, entende-se possível sua concessão. Ademais, se não é proibido, é permitido,
com fundamento no art. nº 5º, II da CF/88.
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Apesar de parte da doutrina não concordar com o benefício em questão,
em face de um estigma social, é de suma importância a manutenção da garantia
constitucional de concessão do auxílio-reclusão.
Fundamentado nestas considerações, conclui-se que o benefício do
auxílio-reclusão deve ser concedido ao preso civil devedor de alimentos.
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A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE NA CÂMARA DOS DEPUTADOS – UMA
ANÁLISE DA CONTRIBUIÇÃO SOCIAL NA COMISSÃO DE LEGISLAÇÃO
PARTICIPATIVA EM 2018
Aldo Matos Moreno
Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário
IESB; especialista em Direito Público; especialista em Desenvolvimento Gerencial;
advogado.
Ulisses Borges de Resende
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (unB); professor da graduação
e da Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios do Centro
Universitário IESB; advogado.
Resumo
O artigo tem por escopo analisar a participação da sociedade na Câmara dos Deputados,
em especial na Comissão de Legislação Participativa- CLP, em 2018. A transparência das
informações e a participação social nas decisões políticas estão cada vez mais presentes
em países considerados democráticos. Nesse sentido, o que se busca desvendar é se a
CLP, uma das principais comissões permanentes da Câmara, vem cumprindo o seu
propósito e sendo responsiva às demandas sociais que se apresentam, garantindo, dessa
forma, a participação e a vontade externada pela sociedade brasileira. Para tanto, fez-se
necessária a utilização de dados concernentes ao número de sugestões legislativas
apresentadas, ao quantitativo de entidades civis que apresentaram demandas, à
participação de parlamentares em audiências públicas e, principalmente, à efetividade
dessa participação social, levando-se em consideração os projetos oriundos da CLP que
foram transformados em norma legal. Também foram utilizados para tal propósito, os
ensinamentos de alguns autores considerados relevantes para a completude do estudo,
os quais corroboram para a construção de um pensamento e, por consequência, de um
comportamento político-social cada vez mais condizente com as reais necessidades do
povo brasileiro.
Palavras-chave: sociedade, participação, democracia, comissão, efetividade.
Abstract
The purpose of this article is to analyze the participation of society in Câmara dos
Deputados [Chamber of Deputies], especially in the Comissão de Legislação Participativa
– CLP [Commission for Participative Legislation – CLP], in 2018. Transparency of
information and social participation in political decisions are increasingly present in
countries that are considered democratic. In this sense, the aim is to find out if the CLP,
one of the main standing committees of the Chamber, is fulfilling its purpose and being
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responsive to the social demands that are presented, thus ensuring the participation and
willingness expressed by Brazilian society. Therefore, it was necessary to use data referring
to the number of legislative suggestions submitted, the number of civil entities that
submitted demands, the parliamentarians’ participation in public hearings and, especially,
the effectiveness of this social participation, taking into account the projects from the CLP
that were transformed into legal norm. Also for this purpose, the teachings of some
authors considered relevant to the completeness of the study were used, which
corroborate for the construction of a thought and, consequently, a socio-political behavior
increasingly compatible with the real needs of Brazilian people.
Key words: society, participation, democracy, committee, efectiveness.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar sinteticamente, no âmbito da
Câmara dos Deputados - CD, a real contribuição da sociedade na construção da
legislação do País, em especial aquelas realizadas no âmbito da Comissão de
Legislação Participativa – CLP, que geralmente remetem a direitos sociais, bem
como verificar a resposta do Parlamento às demandas apresentadas.
Ademais, entende-se pertinente elucidar as principais dificuldades,
atualmente enfrentadas, para a consecução desse propósito.
As experiências vivenciadas no Parlamento, pelo autor deste trabalho,
formaram a convicção necessária para trazer à baila a discussão referente à
efetividade da participação social na construção do processo legislativo na Câmara
dos Deputados, com ênfase nas sugestões legislativas apresentadas pela
sociedade à Comissão de Legislação Participativa – CLP.
Dessa forma, verifica-se a importância de trazer, em caráter preliminar,
algumas indagações deveras relevantes para a consecução do objetivo aqui
proposto, a exemplo: o Parlamento brasileiro, em uma era de crescente abertura
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das instituições governamentais à sociedade, está preparado para ser realmente
responsivo? O avanço tecnológico vem contribuindo para uma maior participação
social? A Comissão de Legislação Participativa tem alcançado sua finalidade
precípua de atender as demandas da sociedade civil organizada?
No sentido de avançar no tema proposto, o trabalho foi desenvolvido em
tópicos que se complementam, na tentativa de construir, com o respaldo de
estudiosos, de informações documentais e, ainda, do conhecimento empírico
adquirido pelo autor deste artigo, um pensamento uniforme e razoavelmente
descritivo da atuação dos diversos atores na construção de direitos sociais no
âmbito da Câmara dos Deputados.
Para alcançar tal desiderato, em poucas laudas, pretende-se, ainda que de
forma resumida, registrar alguns conceitos que parecem essenciais para a melhor
compreensão do tema a ser analisado, utilizando-se pesquisa bibliográfica e
documental.
Não se pretende esgotar o assunto neste artigo, haja vista a matéria ser
merecedora de um estudo mais detalhado e rico em informações, inclusive com
demonstração das hipóteses aventadas.
1. Poder Legislativo brasileiro e a Câmara dos Deputados
Com o objetivo de situar melhor o leitor deste estudo, considera-se
pertinente fazer uma pequena exposição do que seja o Poder Legislativo brasileiro
e o papel exercido pela Câmara dos Deputados - CD.
Nesse intuito, o Curso de Regimento Interno – Conhecendo o Legislativo
– (CARNEIRO; DOS SANTOS; NÓBREGA NETTO 2016, p. 29) ensina que “o Poder
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Legislativo federal é exercido pelo Congresso Nacional, composto por duas Casas
Legislativas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal”.
Segundo consta do Portal da Câmara dos Deputados – Papel e História da
Câmara, pode-se notar a relevância do Legislativo, in verbis:
O Poder Legislativo cumpre papel imprescindível para o País, pois
desempenha três funções primordiais para a consolidação da
democracia: representar o povo brasileiro, legislar sobre os assuntos de
interesse nacional e fiscalizar a aplicação dos recursos públicos.
Nesse contexto, a Câmara dos Deputados, como representante do povo
brasileiro, discute e vota propostas referentes às áreas econômicas e
sociais, como educação, saúde, transporte, habitação, entre outras, e
também fiscaliza o emprego, pelos Poderes da União, dos recursos
arrecadados da população com o pagamento de tributos (grifo nosso)
(CÂMARA DOS DEPUTADOS)
Não obstante o reconhecimento das funções primordiais do Poder
Legislativo de legislar e de fiscalizar, deve-se atentar para uma outra importante
atribuição, praticada principalmente no âmbito das Comissões, que é o debate de
assuntos relevantes e de interesse do povo brasileiro, conforme consta da obra
“Curso de Regimento Interno – Conhecendo o Legislativo”, in verbis:
Cabe a ele, por exemplo, debater temas importantes, o que, muitas vezes,
não necessariamente resulta na inserção de uma nova norma no
ordenamento jurídico ou em uma fiscalização de determinada entidade
ou agente público, o que denota atuação inerente ao exercício da
atividade parlamentar (grifo nosso) (CARNEIRO; DOS SANTOS;
NÓBREGA NETTO, 2016, p. 29.
Esses debates fazem parte do Estado Democrático, podendo ocorrer por
meio dos diversos tipos de reuniões que ocorrem semanalmente nas comissões
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parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a exemplo de:
audiências públicas, consultas públicas, seminários, mesas redondas etc.
Por essa razão, entende-se pertinente trazer à discussão o significado de
Estado Democrático.
2. Estado Democrático e Democracia
Com esse propósito, faz-se mister desvendar o que é um Estado
Democrático e pontuar, de forma taxativa, o significado de democracia.
Segundo Dallari (2013, p. 145), “[...] a base do conceito de Estado
Democrático é, sem dúvida, a noção de governo do povo, revelada pela própria
etimologia da palavra democracia [...].” O referido autor assevera, ainda, in verbis:
Aristóteles faz a classificação dos governos, dizendo que o governo pode
caber a um só indivíduo, a um grupo, ou a todo o povo. Mas ele próprio
já esclarecera que o nome de cidadão só se deveria dar com propriedade
àqueles que tivessem parte na autoridade deliberativa e na autoridade
judiciária (grifo nosso) ((ARISTÓTELES apud DALLARI, 2013a, p. 146,)
Acrescente-se, também, em relação ao Estado Democrático, a afirmação
trazida por Dallari (2013b, p. 152), o qual revela, in verbis:
Sendo o Estado Democrático aquele em que o próprio povo governa, é
evidente que se coloca o problema de estabelecimento dos meios para
que o povo possa externar sua vontade. Sobretudo nos dias atuais, em
que a regra são colégios eleitorais numerosíssimos e as decisões de
interesse público muito frequentes, exigindo uma intensa atividade
legislativa, é difícil quase absurdo mesmo, pensar na hipótese de
constantes manifestações do povo, para que se saiba rapidamente qual
a sua vontade (grifo nosso) (DALLARI, 2013b, p. 152).
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Ora, é indubitável a importância da participação do povo nas decisões do
País. Além disso, os meios de a sociedade participar desses processos estão ficando
cada vez mais avançados, inclusive pelas novas tecnologias da informação - TI, o
que minimiza dificuldades de acesso, embora essa, aparentemente, não seja a
“barreira” mais grave para a ampliação e a efetivação da contribuição da sociedade
na construção das diretrizes governamentais. Acrescente-se, por oportuno, que a
omissão do cidadão nas decisões políticas certamente prejudicaria o
fortalecimento da democracia participativa, o que se tornaria um entrave a ser
superado.
Outrossim, entende-se pertinente trabalhar o conceito do termo
democracia. Para tanto, faz-se apropriada a definição da Câmara dos Deputados,
na obra “A Câmara e o Cidadão – Um guia para conhecer e participar do processo
legislativo” (2011, p. 11), no qual ensina, in verbis:
A democracia é um regime de governo em que as pessoas têm a
oportunidade e o poder de participar das importantes decisões políticas.
Essa participação pode ser de forma direta ou indireta, sendo mais
comum a forma indireta, através dos representantes que escolhemos por
meio do voto. Esse regime se baseia na vontade da maioria, sem esquecer
o respeito aos direitos de cada pessoa e dos grupos que são minorias.
Para que a democracia funcione bem, a participação do povo é
fundamental. Se é o povo que governa, por meio de seus representantes,
ele precisa participar e estar atento a tudo que acontece (grifo nosso)
(CÂMARA (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2011).
A definição supra, referente à democracia, vem ao encontro do que se
pretende enfrentar no presente estudo, ou seja, se o cidadão está participando das
decisões políticas da Câmara dos Deputados, ou não, e, principalmente, se essa
possível participação é efetiva e auxilia na construção de normas mais condizentes
com a necessidade da sociedade.
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3. Das possibilidades de participação popular no processo legislativo,
previstas na Legislação brasileira
Em relação à legislação, deve-se registrar que o parágrafo único do artigo
primeiro da Carta Magna dispõe sobre a soberania popular e da possibilidade de
exercício desse poder de forma direta, consoante segue:
Art. 1º .................................................................................................
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
(CF, p.9)
Além disso, a Constituição Federal – CF, de 1988, disciplina as formas de
exercício da soberania popular, por meio do plebiscito, do referendo e da iniciativa
popular, consoante incisos I a III do artigo 14 da CF. (grifo nosso) (CF, p.13)
O parágrafo 2º do artigo 61 da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre
a iniciativa popular para apresentação de projeto de lei, in verbis:
Art. 61...............................................................................
§ 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara
dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento
do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com
não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles
(grifo nosso) (BRASIL, CF/1988).
No que concerne ao acima exposto, vale esclarecer que a página do
Tribunal Superior Eleitoral - TSE informa que “o Plebiscito e o referendo são
consultas ao povo para decidir sobre matéria de relevância para a nação em
questões de natureza constitucional, legislativa ou administrativa”, acrescentando:
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A principal distinção entre eles é a de que o plebiscito é convocado
previamente à criação do ato legislativo ou administrativo que trate do
assunto em pauta, e o referendo é convocado posteriormente, cabendo
ao povo ratificar ou rejeitar a proposta. Ambos estão previstos no art. 14
da Constituição Federal e regulamentados pela Lei nº 9.709, de 18 de
novembro de 1998. (TSE/Eleições/Plebiscitos e referendos, acesso em 27
de jun. de 2019)
Em relação ao número de projetos de iniciativa popular que se tornaram
leis, pode-se informar que até o presente momento foram sancionados quatro
projetos, consoante noticiado pela Agência Senado:
A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135 de 2010) é o exemplo mais
conhecido de projeto de lei de iniciativa popular transformado em lei.
Outros exemplos são a Lei Daniella Perez (Lei 8.930/1994), a Lei de
Combate à Compra de Votos (Lei 9.840/1999) e a Lei do Fundo Nacional
de Habitação de Interesse Social (Lei 11.124/2005) (Senado Federal, 2017,
acesso em 10/07/2019) (grifo nosso)
Percebe-se, assim, que a Constituição brasileira e a legislação
infraconstitucional prezam pelo modelo de democracia semidireta, na qual existe
a atuação dos representantes e, também, da participação direta do povo nas
decisões do País. Apesar disso, nota-se uma participação singela do cidadão
brasileiro na apresentação de projetos de iniciativa popular, talvez provocada pelas
dificuldades constantes dos requisitos do §2 do artigo 61 da CF, acima
mencionado.
Acrescente-se que, na mesma reportagem do Senado Notícia, veiculada
em 20 de novembro de 2017, consta que os projetos de iniciativa popular poderão
receber apoio dos cidadãos por meio de assinatura eletrônica, consoante PLS
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267/2016, o que, em caso de aprovação, irá facilitar a utilização desse importante
instrumento de participação do cidadão.
Porém, é cediço que existem outras formas de a sociedade participar das
decisões do País, como é o caso do processo legislativo na Câmara dos Deputados,
onde o cidadão encontra várias ferramentas de participação, o que remete ao
estudo da Comissão de Legislação Participativa – CLP e à possibilidade de
apresentação de sugestões de proposições legislativas. Porém, uma relevante
questão ainda é merecedora de reflexão, pois não se pode falar em participação
somente aparente, deve-se esclarecer sobre a existência de efetividade da
participação do cidadão, no contexto do que se compreende como “Parlamento
Aberto”, que será explicitado mais à frente.
No que tange à soberania e à construção de um processo legiferante
legítimo, destaca-se a seguinte assertiva de Habermas (2003, p. 122):
Certamente a fonte de toda legitimidade está no processo democrático
legiferante; e esta apela, por seu turno, para o princípio da soberania do
povo. Todavia, o modo como o positivismo jurídico introduz esse
princípio não preserva conteúdo moral independente dos direitos
subjetivos – a proteção da liberdade individual[...]. (grifo nosso).
(HABERMAS, 2003, p. 122).
4. Open Government Partnership - OGP e o Parlamento Brasileiro
Segundo consta do sítio da Controladoria Geral da União - CGU, que aduz
a um programa para a construção de um País mais transparente, com acesso à
informação e à participação, “[...]o Brasil já implementou inúmeras iniciativas de
governo aberto, que estão em diferentes estágios de maturidade. Algumas
representam mudanças legais e administrativas que transformaram
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significativamente a gestão púbica do País [...]”. Nesse sentido, deve-se registrar,
in verbis:
A Parceria para Governo Aberto (em inglês, Open Government
Partnership – OGP) é uma iniciativa internacional que pretende difundir
e incentivar globalmente práticas governamentais relacionadas à
transparência dos governos, ao acesso à informação pública e à
participação social. A OGP foi lançada em 20 de setembro de 2011 e o
Brasil é um dos oito países fundadores da Parceria, sendo reconhecido
como protagonista no cenário internacional no que diz respeito ao tema.
[...]As ações relativas à OGP são operacionalizadas por meio de um “Plano
de Ação Nacional”. Nesse documento, cada país participante deve
especificar quais são os seus compromissos perante a Parceria e delimitar
as estratégias para implementá-los. Os compromissos são executados
por um ou mais órgãos e devem estar de acordo com os princípios de
Governo Aberto. (CGU, acesso em 27 jun. 2019) (grifo nosso)
A página do Open Government Partnership revela que o Brasil está na fase
de implementação de onze compromissos do plano de ação, previstos para os
anos de 2018 a 2020. Em relação ao Plano Nacional de Ação, vale registrar que:
Este plano de ação apresenta compromissos relacionados ao governo
aberto local, dados abertos, ciência aberta, mudanças climáticas e água,
transparência legislativa e controle social para políticas nutricionais.
Compromisso 7: Aumentar a participação de vários segmentos sociais no
processo legislativo (desenvolvimento de leis) através de esforços
integrados para aumentar a transparência, ajustar a linguagem, a
comunicação e promover a inovação (grifo nosso)
(OPENGOVPARTNERSHIP).
Essa Parceria para Governo Aberto encontrou certa “simpatia” da Câmara
dos Deputados, que vem demonstrando, aparentemente, interesse em garantir
maior transparência e participação da sociedade no processo legislativo.
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Reforçando a ideia supra, traz-se à baila excerto do artigo “A Política de
Parlamento Aberto: Uma Análise Crítica da Câmara Federal Brasileira” no qual é
registrado, in verbis:
[...]o artigo pretende mostrar, do ponto de vista da burocracia (e de seu
crescimento), mecanismos utilizados segundo o perfil transformador em
que se encaixaria o parlamento brasileiro, de acordo com o conceito de
Polsby (1975). De acordo com este autor, o parlamento transformador
seria aquele cujo papel nas fases do processo legislativo seria relevante
(por meio de lideranças, comissões, plenário e demais instâncias passíveis
de afetar mesmo indiretamente o teor da proposta legislativa, tais como
os canais de participação) independente da origem da proposta
legislativa. [...]Os fenômenos do open government – da transparência,
participação e accountability – vêm no bojo da discussão dos dilemas da
representação e da necessidade ou não de maior participação política.
Embora a tensão entre democracia representativa e participativa já seja
antiga, tomou novas proporções na contemporaneidade em função da
maior complexificação social em um contexto de onipresença das novas
tecnologias de informação e comunicação, as TICs. (grifo nosso) (POLSBY
apud FARIA; REHBEIN 2015a, p. 4).
Em relação a participação social no Parlamento brasileiro, os
supramencionados autores asseveram:
Uma das instituições que fazem parte desse movimento no Brasil é o seu
parlamento, ao adaptar tal política aos processos próprios do legislativo,
movimento denominado de Parlamento Aberto. O país faz parte da
Declaração para a Abertura Parlamentar, assinado em 2012, por 53 países,
com vistas a incentivar a abertura de seus parlamentos por meio do
acesso à informação sobre a atividade parlamentar, promovendo
transparência e facilitando processos de interação da sociedade com o
parlamento (grifo nosso) (FARIA; REHBEIN, 2015b, p. 3)
Ora, percebe-se pela assertiva dos autores acima destacados, que o
Parlamento brasileiro adotou a sistemática de participação da sociedade e
transparência de dados, o que, por si só, é um avanço na democracia do Brasil.
Essa “guinada” foi proveniente da regulamentação do direito constitucional
do acesso à informação, objeto da Lei n. 12.527, de 2011, que entrou em vigor em
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maio de 2012, “criando mecanismos de acesso às informações públicas” tanto para
pessoas físicas quanto jurídicas, valendo para as três esferas de poder, bem como
às novas tecnologias, que facilitam sobremaneira a aproximação da sociedade com
as instâncias decisórias. (Sítio do Governo Federal – Acesso à informação, acesso
em 12/07/2019)
No entanto, ainda deve ser enfrentada a questão referente à efetividade da
participação social no processo legiferante, pois já não é suficiente um sistema de
democracia participativa aparentemente evoluído, faz-se premente um
Parlamento realmente responsivo às questões sociais.
5. As Comissões Parlamentares e suas Competências
Por oportuno, como se pretende analisar a competência e o resultado
alcançado pela Comissão de Legislação Participativa - CLP da Câmara dos
Deputados, faz-se relevante um sucinto esclarecimento a respeito do que sejam as
comissões.
Nesse sentido, pode-se afirmar que as comissões parlamentares são
pequenos órgãos do Parlamento, que buscam retratar, proporcionalmente, a
composição partidária das respectivas Casas Legislativas.
Em relação às comissões, o artigo 58 da Constituição Federal de 1988 elenca
os tipos de comissões e a forma de sua constituição, revelando, in verbis:
Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes
e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no
respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. (Constituição
da República Federativa do Brasil, 53ª Edição, p. 36, 2019)
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§ 1º Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto
quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos
blocos parlamentares que participam da respectiva Casa (BRASIL, CF/88).
Na obra intitulada “Curso de Regimento Interno da Câmara dos Deputados
– Conhecendo o Legislativo” (Carneiro; Santos; Gerônimo Netto. 2016), o Capítulo
VI (Das Comissões) revela que as comissões desempenham papel primordial para
o aprimoramento da democracia brasileira.
Os supramencionados autores, ao tratarem das funções das comissões, bem
como das inovações trazidas pela CF de 1988, esclarecem, em relação a esses
colegiados, in verbis:
Essa valorização deveu-se, principalmente, à possibilidade de concluírem,
em determinadas circunstâncias, o processo legislativo referente aos
projetos de lei, sem a necessidade da apreciação do Plenário das Casas
Legislativas, o que se conhece como poder conclusivo das comissões
(BRASIL, CF/1988).
As Comissões da Câmara dos Deputados são órgãos colegiados que
possuem função importante no processo legislativo, podendo ser divididas em
comissões permanentes – CP, atualmente em número de 25, e comissões
temporárias (comissão especiais, de Inquérito e externas), até 19 de julho de 2019,
em número de 22. (Regimento Interno da CD - RICA, 2017, p. 40)
Para o presente estudo, o interesse maior é referente às comissões
permanentes, como é o caso da CLP, uma comissão singular em suas
competências, a qual direciona suas atenções às sugestões de proposições
apresentadas pela sociedade civil organizada.
Dentre as possibilidades de participação da sociedade na Câmara dos
Deputados, não pode haver dúvida que a CLP se apresenta como um
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relevantíssimo canal para a sociedade levar as suas demandas e ser ouvida de
maneira direta por autoridades, especialistas, servidores e outros, fazendo-se,
portanto, necessário conhecer as competências dessa comissão.
6. A Comissão de Legislação Participativa – CLP
Em relação à Comissão de Legislação Participativa – CLP, o Regimento
Interno da Câmara dos Deputados - RICD dispõe:
XII - Comissão de Legislação Participativa:
a) sugestões de iniciativa legislativa apresentadas por associações e
órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade
civil, exceto Partidos Políticos;
b) pareceres técnicos, exposições e propostas oriundas de entidades
científicas e culturais e de qualquer das entidades mencionadas na
alínea a deste inciso; (grifo nosso) (RI da CD, 2017, p. 52, Edições
Câmara)
Ademais, percebe-se que a participação da sociedade é disciplinada pelo
artigo 254 do RICD, nos seguintes termos:
Art. 254. A participação da sociedade civil poderá, ainda, ser exercida
mediante o oferecimento de sugestões de iniciativa legislativa, de
pareceres técnicos, de exposições e propostas oriundas de entidades
científicas e culturais e de qualquer das entidades mencionadas na alínea
a do inciso XII do art. 32.
§ 1º As sugestões de iniciativa legislativa que, observado o disposto no
inciso I do artigo 253, receberem parecer favorável da Comissão de
Legislação Participativa serão transformadas em proposição legislativa
de sua iniciativa, que será encaminhada à Mesa para tramitação.
§ 2º As sugestões que receberem parecer contrário da Comissão de
Legislação Participativa serão encaminhadas ao arquivo. (grifo nosso) (RI
da CD, 2017, p. 160 e 161)
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Infere-se, do acima exposto, que a CLP é um órgão que proporciona a
participação da sociedade na chamada “Casa do povo”, tanto para debater
assuntos relevantes para o cidadão, por meio de audiências públicas, seminários e
outros eventos, quanto para a construção da legislação do País, por meio de
sugestões de projeto de lei, proposta de emenda à Constituição, projeto de
resolução da CD e outras.
Soma-se a essa afirmação, o conteúdo da Cartilha da CLP, a qual, por sua
vez, demonstra a importância da participação social na construção da legislação
pátria, elencando o seguinte:
[...]Assegura a toda a sociedade um espaço legítimo para defesa e
discussão de Sugestões Legislativas, dentro da esfera legal. Para que essa
iniciativa seja bem-sucedida, é necessário que a sociedade usufrua deste
espaço, apresentando suas sugestões.[...]
QUEM PODE APRESENTAR SUGESTÕES LEGISLATIVAS: Organizações
não-governamentais (ONGs); - Associações e órgãos de classe; -
Sindicatos; - Entidades da sociedade civil, exceto partidos políticos; -
Órgãos e entidades de administração direta e indireta, desde que tenham
participação paritária da sociedade civil.
[...]O Projeto de Lei de autoria da Comissão de Legislação Participativa
depende de análise do Plenário da Casa, mesmo que já tenha sido
aprovado pelas comissões temáticas constantes do despacho da
Secretaria-Geral da Mesa. Dessa forma, quando aprovado nas comissões,
é encaminhado à Mesa para ser incluído na Ordem do Dia do Plenário da
Câmara dos Deputados para discussão e votação. Se aprovada, a
proposição é remetida ao Senado Federal para deliberação. Se for
emendada no Senado, ela retornará à Câmara dos Deputados para
apreciação das emendas. (grifo nosso) (Cartilha da Comissão – O Menor
Caminho Entre os Interesses da População e a Câmara dos Deputados,
2018, p. 8, 9, 14 e 15).
Observa-se pelo supracitado excerto da Cartilha que, após a sugestão
legislativa ser aprovada pela CLP, essa será encaminhada na forma de proposição
às demais comissões pertinentes para analisar o tema. Em caso de aprovação pelas
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comissões temáticas, a proposição, obrigatoriamente, terá que ser encaminhada à
Mesa para ser incluída na Ordem do Dia do Plenário, dependendo, portanto, da
vontade política do Presidente da Câmara para pautar a matéria.
Inclusive, essa é uma das principais prerrogativas do Presidente da
Câmara dos Deputados, conforme consta da página daquela instituição, in verbis:
O Presidente é o representante da Câmara dos Deputados quando ela se
pronuncia coletivamente e o supervisor dos seus trabalhos e da sua
ordem. Sua principal competência é definir a pauta de votações do
Plenário (CÂMARA DOS DEPUTADOS).
Impende mencionar que, no Regulamento Interno da Comissão, constante
da Cartilha da CLP, o §1º do artigo 7º possibilita ao Presidente daquele órgão
facultar a palavra, presencial ou virtualmente, ao representante legal da entidade,
conforme abaixo demonstrado:
Art. 7º.................................................................................................
§ 1º O Presidente da Comissão poderá facultar a palavra, presencial ou
virtualmente, ao representante legal da entidade ou procurador
especificamente designado para defesa de sua sugestão na reunião
ordinária correspondente, pelo prazo de 5 (cinco) minutos, prorrogável
uma única vez por igual período. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018, p.
22).
Faz-se necessário esclarecer que a CLP é a única comissão da Câmara dos
Deputados que possibilita esse tipo de participação direta de representantes de
entidades sociais em reunião deliberativa ordinária, demonstrando, uma vez mais,
que aquela comissão trabalha em prol da participação do povo brasileiro no
processo legislativo.
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No Relatório de Atividades, produzido pela CLP no ano de 2016, foram
apresentados alguns depoimentos de ex-presidentes daquela Comissão
Permanente, bem como do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Deputado
Aécio Neves, que confirmam a importância da CLP para o povo brasileiro, dos quais
se destacam:
Aécio Neves (PSDB/MG) - Presidente da Câmara dos Deputados quando
a CLP foi criada, em 2001.
[...] Naquela ocasião, com a criação da Comissão de Legislação
Participativa, tomou-se uma decisão suprapartidária em favor da
sociedade, da cidadania e de seus canais representativos. São quinze
anos de história de sucesso da CLP, que se inspirou em exitosa
experiência do Parlamento europeu. Lá, a Comissão de Petições permite
uma relação direta, aberta e transparente na comunidade europeia entre
os países-membros e suas entidades representativas. Aqui, nossa
Comissão atua como canal para que a sociedade organizada, em suas
variadas expressões, possa interagir com o processo legislativo. Cabe a
ela selecionar, triar e encaminhar essas contribuições. Vivemos, de forma
global, momentos de crise na democracia representativa. Há que se
resgatar a boa política e revesti-la de significado para os que anseiam por
maior participação. (grifo nosso)
Luiza Erundina (PSOL/SP) - Presidiu a CLP em 2001
Criada em 2001, a Comissão de Legislação Participativa (CLP) abriu um
importante espaço de interlocução com o povo no Poder Legislativo.
Tanto que a iniciativa foi reproduzida em outras casas, entre as quais, 11
assembleias estaduais e 36 câmaras municipais. Basta o cidadão se
organizar por meio de uma entidade da sociedade civil para que possa
encaminhar propostas. Trata-se, mais do que uma comissão, de um
fórum por meio do qual a sociedade pode intervir diretamente no
processo de produção de leis. Mais de 550 encontros foram realizados
pela CLP, incluídas aí reuniões deliberativas, seminários, audiências
públicas. Mais de 1,1 mil sugestões foram recebidas, enquanto 474 foram
aprovadas para tramitar. Três sugestões se tornaram lei. Ao contrário do
que temem alguns parlamentares, a divisão do poder com o povo só tem
a contribuir para que a democracia representativa se legitime e se
fortaleça. Ainda assim, foram muitas as investidas para enfraquecer a
comissão, como tentativas de incorporá-la a outras comissões;
impedimento de apresentação de emendas ao orçamento da União;
esvaziamento das reuniões, enfim, manobras como a que nos deparamos
hoje, ao completarmos 15 anos, com a decisão da Presidência da Câmara
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pela criação de uma Secretaria de Transparência Legislativa e Interação
com a Sociedade, cuja estrutura vai de encontro com as prerrogativas da
CLP. Além de contribuir para mobilizar a participação da sociedade civil,
a CLP constitui-se em instrumento de educação política. Em um país
como o Brasil, marcado pela concentração de poder e pela exclusão
social, é importante que as prerrogativas da CLP sejam fortalecidas. A
comissão é uma relevante ferramenta para estabelecer uma relação mais
democrática entre o povo e o poder. Vida longa à CLP! (grifo nosso)
(CÂMARA DOS DEPUTADOS).
Na Cartilha da CLP de 2018, consta a manifestação do Deputado Pompeo
de Mattos, que presidia a CLP naquele ano, na qual afirma:
[...]Atualmente, o Brasil passa por um momento de grave crise, com o
desprestígio e a desconfiança da sociedade para com suas instituições, o
que compromete as estruturas do Estado, desacredita as lideranças
políticas do país e repercute diretamente na percepção da população em
geral gerando um claro descompasso com o que pensa a população. [...]a
atuação da Comissão de Legislação Participativa será norteada para que
se constitua num instrumento de aproximação da vontade popular e da
sociedade com o Parlamento, lhe dando voz e vez, para que possamos
sintetizar a aspiração de construir uma sociedade livre, justa e solidária,
casa universal de todos os brasileiros, espaço de realização da utopia do
bem comum. (grifo nosso) (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018, p. 7).
Depreende-se do acima colacionado que a CLP é um espaço de demandas
da sociedade, o fórum de debates onde o povo tem voz, além de ser um meio de
fortalecer a democracia representativa, proporcionando maior legitimidade das
proposições construídas naquela comissão.
Não obstante, percebe-se, também, na manifestação supra da Deputada
Luiza Erundina, que algumas ações visavam ao enfraquecimento daquela
comissão, como se alguns atores sociais, entre eles os parlamentares, não
entendessem ou até mesmo não concordassem com a participação social no
âmbito da Câmara dos Deputados, o que, por si só, mereceria um estudo
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aprofundado, pois essa seria uma grande “barreira” ao crescimento da democracia
participativa.
Bonavides (2003a, p. 9 e 10) ensina que “a democracia participativa é a
democracia dos libertadores constitucionais”. Esse autor segue registrando a
respeito da participação social que:
[...]Democracia participativa e Estado Social constituem, por conseguinte,
axiomas que hão de permanecer invioláveis e invulneráveis, se os povos
continentais da América Latina estiverem no decidido propósito de
batalhar por um futuro que reside tão-somente na democracia, na
liberdade, no desenvolvimento. [...] É essa, indubitavelmente, a grande
tragédia jurídica dos povos do Terceiro Mundo. Têm a teoria mas não
têm a práxis. E a práxis para vingar diante da ofensiva letal dos neoliberais
precisa de reforma ou renovação de modelos teóricos (grifo nosso).
Segundo esse renomado autor, existem princípios que só poderão
prosperar em uma sociedade dita “aberta”. Com a finalidade de esclarecer melhor
essa questão, destaca-se, in verbis:
São eles, respectivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana,
o princípio da soberania popular, o princípio da soberania nacional e o
princípio da unidade da Constituição, todos de suma importância para a
Nova Hermenêutica constitucional[...] (BONAVIDES.b, p. 10)
Essas lições trazidas por Bonavides (2003) devem ser observadas para uma
melhor compreensão do alcance da democracia participativa.
Em relação à participação social na Comissão de Legislação Participativa -
CLP, quando da utilização do Relatório do ano de 2018, o mais recente, que foi
disponibilizado na página da CLP, constatou-se que aquela Comissão recebeu 46
sugestões de proposições da sociedade civil organizada naquele ano. Em outro
quadro desse Relatório, foram registradas a realização de 14 reuniões
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deliberativas, 14 audiências públicas, 7 seminários, 4 eventos diversos e 2 reuniões
de instalação/eleição, totalizando 41 eventos realizados.
Evidencia-se que, além das sugestões de projetos, a CLP recebe sugestões
para realizar reuniões de audiências públicas, seminários e outros eventos de
relevante interesse nacional. No entanto, não se pode olvidar que, entre os
institutos que possibilitam a participação democrática, as audiências públicas,
realizadas pelas comissões parlamentares, devem ser amplamente destacadas,
pois geralmente contam com a presença de autoridades, especialistas nos temas
propostos, representantes das entidades civis organizadas e outros convidados.
Vale mencionar, também, que após análise das páginas 113 a 119 do
Relatório de Atividades da CLP do ano de 2018, foi constatado que somente 15
entidades sociais foram responsáveis pela apresentação das 46 sugestões de
proposições.
Ora, esse pequeno quantitativo de representação social participando do
processo legiferante, no âmbito da CLP, acaba por trazer uma enorme
preocupação, pois, s.m.j, vem demonstrar que a sociedade não está utilizando esse
canal de participação a contento, seja por alguma dificuldade de apresentação dos
documentos necessários, seja por total desconhecimento dessa possibilidade ou
simplesmente por não acreditar nesse canal reivindicatório para encaminhar suas
propostas de legislação, além de outros motivos não conhecidos.
Parece forçoso concluir que a Comissão de Legislação Participativa
ainda não conseguiu cumprir o seu escopo maior, que é proporcionar a
participação efetiva da sociedade, com a apresentação significativa de sugestões
legislativas, ou seja, a contribuição social no processo legiferante é baixa, estando
distante do potencial esperado por aquela Comissão.
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Em relação às audiências públicas, vale registrar o conceito dessas,
bem como as suas finalidades, consoante abaixo:
[...] Em suma, o instituto da audiência pública é um processo
administrativo de participação aberto a indivíduos e a grupos sociais
determinados, visando ao aperfeiçoamento da legitimidade das decisões
da Administração Pública, criado por lei, que lhe preceitua a forma e a
eficácia vinculatória, pela qual os administrados exercem o direito de
expor tendências, preferências e opções que possam conduzir o Poder
Público a decisões de maior aceitação consensual. (grifo nosso)
(MOREIRA NETO, 1997, p. 14).
A fundamentação constitucional da audiência pública nas Casas
Legislativas pode ser constatada pela redação do artigo 58, § 2º, inciso II, da
Constituição da República de 1988, o qual prevê a sua realização pelas comissões
do Congresso Nacional.
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê esse instituto nos
artigos 255 a 258, os quais revelam, in verbis:
Art. 255. Cada Comissão poderá realizar reunião de audiência pública
com entidade da sociedade civil para instruir matéria legislativa em
trâmite, bem como para tratar de assuntos de interesse público relevante,
atinentes à sua área de atuação, mediante proposta de qualquer membro
ou a pedido de entidade interessada. (grifo nosso). (CÂMARA DOS
DEPUTADOS).
7. O Parlamento Brasileiro e a Responsividade
Não obstante a possibilidade de participação social, criada no âmbito
da Câmara dos Deputados, percebe-se algumas dificuldades para que as sugestões
das entidades da sociedade civil organizada sejam aproveitadas de forma mais
efetiva, o que nos leva ao questionamento referente à responsividade parlamentar.
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Sabe-se, pelos exemplos históricos, que as conquistas sociais têm
como marco inicial as pressões exercidas pelos cidadãos aos governantes, que se
demonstram mais responsivos quando existe o exercício dessa força soberana do
povo, o que é notório, principalmente, quando as eleições estão próximas.
Entende-se pertinente esclarecer que a fiscalização e o controle dos
atos praticados pelos Poderes da República devem ser exercitados. Observa-se tal
afirmação no artigo Responsividade Democrática na Democracia Brasileira, o qual,
ao tratar da accountability,66 revela:
O principal argumento ora examinado é de que a regulação da
accountability afeta o mercado informacional, concernente à percepção
e à avaliação das políticas públicas prestadas, com efeitos diretos e
imediatos na qualidade do controle social e da democracia em geral.
Assim, situações de maior descompasso entre as agendas populares, de
elites e de prestações públicas sugerem a necessidade de maior atenção
legiferante, dada a elevação dos riscos de oportunismo decorrentes da
menor visibilidade temática para o controle social dos interessados nos
custos e nos efeitos da representação (grifo nosso) (PEDERIVA; PEDERIVA,
2016, p. 87).
Quando o desejo de governantes e de governados não se coadunam, uma
ausência de sintonia entre os interesses de representantes e representados é
flagrantemente observada, inclusive em relação a prioridades nas questões sociais.
Os mencionados autores revelam, também, que “em sistemas políticos
democráticos, os incentivos do sistema político deveriam alinhar escolhas coletivas
e políticas públicas às demandas populares majoritárias”, afirmando que:
66 Accountability pode ser traduzido como controle, fiscalização, responsabilização, ou ainda prestação de
contas.
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Menores graus de convergência entre tais agendas refletem incentivos
regulatórios não democráticos e identificam níveis mais reduzidos de
democracia, além de maiores graus de incerteza sobre a sustentabilidade
das escolhas públicas associadas aos processos Não obstante, um dos
principais pontos realçados por críticos ao sistema representativo
parlamentar recai sobre a autonomia dos parlamentares. Após a eleição,
parlamentares exerceriam o mandato à revelia do seu eleitorado,
compondo parte de um jogo de interesses e negociações ilegítimo.
Nesse sentido, as decisões legislativas seriam tomadas desconsiderando-
se o leque mais variado de opiniões da sociedade sobre cada projeto de
lei decisórios nas arenas de representação política. (grifo nosso)
(PEDERIVA, 2016, p. 88 apud SOROKA e WLEZIEN, 2010)
A assertiva mencionada acima vai ao encontro do que se percebe
atualmente em atitudes de alguns parlamentares, os quais não parecem
demonstrar qualquer preocupação com as perspectivas da sociedade. Para
corroborar com esse pensamento utiliza-se Faria:
Não obstante, um dos principais pontos realçados por críticos ao sistema
representativo parlamentar recai sobre a autonomia dos parlamentares.
Após a eleição, parlamentares exerceriam o mandato à revelia do seu
eleitorado, compondo parte de um jogo de interesses e negociações
ilegítimo. Nesse sentido, as decisões legislativas seriam tomadas
desconsiderando-se o leque mais variado de opiniões da sociedade
sobre cada projeto de lei. (grifo nosso) (FARIA, 2015, p. 24).
Evidencia-se que a democracia representativa e a democracia participativa
devem caminhar com harmonia, pois a “boa política”, construída pelos diversos
atores sociais, é o caminho mais correto para se alcançar uma sociedade mais justa
e solidária. Nesse diapasão, parece forçoso utilizar os ensinamentos de Piketti
(2014), p. 14, 29 e 45), in verbis:
[...] Quando se discute a distribuição da riqueza, a política está sempre
por perto, e é difícil escapar aos preconceitos e interesses de classe que
predominam em cada época [...]A primeira é que se deve sempre
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desconfiar de qualquer argumento proveniente do determinismo
econômico quando o assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A
história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente
política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente
econômicos. [...]Da mesma forma, a reascensão da desigualdade depois
dos anos 1970-1980 se deveu, em parte, às mudanças políticas ocorridas
nas últimas décadas, principalmente no que tange à tributação e às
finanças. A história da desigualdade é moldada pela forma como os
atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que
não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e
pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da
combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvido. [...] Como
já salientei, a história da renda e da riqueza é sempre profundamente
política, caótica e imprevisível. O modo como ela se desenrolará depende
de como as diferentes sociedades encaram a desigualdade e que tipo de
instituições e políticas públicas essas sociedades decidem adotar para
remodelá-la e transformá-la. (grifo nosso ) (PIKETTI, 2014, p. 14, 29; 45)
É inquestionável que a Câmara dos Deputados vem trabalhando para se
transformar em uma instituição que atenda aos conceitos de “Parlamento aberto”,
cuja participação e transparência devem ser cada vez mais valorizadas.
Essa iniciativa foi elogiada pela União Interparlamentar, nos termos abaixo
colacionados:
A União Interparlamentar, organização com sede em Genebra, na Suíça,
que tem como objetivo mediar contatos multilaterais dos parlamentos,
destacou a experiência da Câmara dos Deputados como exemplo do uso
de dados abertos para aumentar a transparência e a interação com a
sociedade. [...]A organização, composta por 179 parlamentos, menciona
as várias iniciativas adotadas pela Câmara dos Deputados desde 2006,
quando lançou o Serviço de Integração Tecnológica (Sit-Câmara), um
serviço on-line disponível apenas para usuários registrados e
disponibilizado para todos em 2011 após a promulgação da Lei da
Transparência. Cita, por exemplo o primeiro Hackathon, lançado em
2013, sobre o tema "Transparência legislativa e participação pública". A
maratona hacker promoveu um concurso de criação de aplicativos para
aumentar a transparência do trabalho parlamentar e ampliar a
compreensão do processo legislativo. [...] O texto menciona ainda as
mudanças no site da Câmara dos Deputados, iniciadas em 2017, com o
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objetivo de torná-lo menos formal e mais centrado no usuário para exibir
os dados abertos. (grifo nosso) (2019)
Ratificando, uma vez mais, que a Câmara dos Deputados vem se
aperfeiçoando nas questões de transparência e participação, caminhando para a
construção de um Parlamento aberto e responsivo à sociedade, utiliza-se de
notícia veiculada pela CamaraNet, a qual informa:
Dado se refere a 2018 e confirma compromisso da Casa com a
transparência. A Câmara dos Deputados recebeu, no ano passado, 16.941
demandas via Lei de Acesso à Informação (LAI), das quais mais de 99%
foram atendidas, segundo relatório do Centro de Documentação e
Informação (Cedi) divulgado nesta segunda-feira (1º/7). Desse total, 85%
dos pedidos de informação foram atendidos em até um dia e o restante,
na maioria dos casos, em até 20 dias, conforme estabelece a lei. [...] Outra
ação importante foi a adoção da pesquisa de satisfação com os usuários:
85% deles disseram estar “muito satisfeitos” ou “satisfeitos” com o
atendimento prestado pela Câmara dos Deputados. Além disso, 2018
contou com o lançamento do portal interno sobre acesso à informação.
A página informa sobre as normas que regem o acesso à informação, a
atuação do Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), além de fornecer
orientações práticas para elaboração de respostas, permitindo, assim,
uma visão sistêmica dos princípios e procedimentos da LAI no âmbito da
Câmara dos Deputados. [...] Em 2018, o número de visitas foi superior a
1,2 milhão. (grifo nosso) (2019)
Os dados acima reforçam a ideia de que a Câmara dos Deputados vem
fortalecendo sobremaneira a possibilidade de prestar informações referentes aos
trabalhos legislativos aos cidadãos, por meio de vários canais tecnológicos criados
para esse propósito.
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Ora, caso se utilizasse o número de sugestões legislativas67 encaminhadas
pela sociedade civil e aprovadas pela Comissão de Legislação Participativa, no ano
de 2018, para aferição sobre o aspecto de participação social, a conclusão também
seria no sentido de que a Câmara dos Deputados vem respondendo razoavelmente
aos pleitos apresentados pela sociedade, pois aprovou 26 sugestões (nem todas
recebidas em 2018), em um ano em que foram apresentadas 46 propostas
legislativas à CLP.
Não obstante, vale esclarecer que, desde a criação da Comissão de
Legislação Participativa, em 2001, até o ano de 2018, somente 2 sugestões da
sociedade civil foram transformadas em lei, sendo que as duas foram propostas
pela Associação de Juízes Federais – AJUFE, entidade reconhecidamente atuante,
organizada e, indubitavelmente, influente no âmbito do Parlamento, o que vem
confirmar o questionamento em relação à responsividade da Câmara dos
Deputados à sociedade. (Informação fornecida pela Secretaria da CLP, em 12 de
julho de 2019).
Nesse diapasão, entende-se oportuno destacar as proposições oriundas
da CLP que foram transformadas em Lei, consoante informado pela Secretaria
daquela Comissão:
PROPOSIÇÕES DA CLP TRANSFORMADAS EM LEI:
Lei 11.419, de 2006 – Aperfeiçoa as regras sobre a informatização do
processo judicial (processo eletrônico) – AJUFE – SUGESTÃO n. 1/2001;
Lei 12.694, de 2012 – Permite a formação de colegiado de juízes para
julgamento de crimes hediondos cometidos por grupos organizados –
AJUFE – SUGESTÃO n. 258/2006.
67 Sugestões Legislativas são as sugestões encaminhadas pela sociedade civil organizada
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O quadro abaixo ilustra o número de sugestões encaminhadas pela
sociedade civil organizada e recebidas pelo colegiado da CLP, de 2001 a 2018,
constando o ano e o tipo de proposição, conforme segue:
Proposições 2
001
2
002
2
003
2
004
2
005
2
006
2
007
2
008
2
009
Sugestões
(projetos de lei e de
audiência pública
2
4
5
9
5
7
2
8
1
07
6
9
9
3
3
4
6
8
Sugestões à LOA 1
1
2
1
1
6
1
2
2
1
4
5
Sugestões ao PPA 1 1
Sugestões à LDO 5 7 2
6
1
6
1
2
Total 3
5
8
0
7
4
4
0
1
33
1
22
1
19
5
0
8
0
Proposições 2
010
2
011
2
012
2
013
2
014
2
015
2
016
2
017
2
018
Sugestões
(Projetos de lei e de
audiência pública
5
9
4
0
3
4
4
7
5
4
4
9
4
2
4
4
4
6
Sugestões à LOA 5 6 3
Sugestões ao PPA 3
Sugestões à LDO 2
3
4 3 1
4
2 3 2
Total 8
2
4
7
3
7
6
1
5
6
5
4
5
1
4
9
4
6
(Relatório 2018, p. 14 a 16 – CLP camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
permanentes/clp/documentos/RelatrioCLP2018MIOLO128pgVERSODIGITAL.pdf, acessado em
12/07/2019)
Total de Sugestões (projetos de lei, audiências e seminários) apresentadas desde o ano de
2001: 954 SUGESTÕES.
Total de Sugestões à LOA: 140
Total de Sugestões ao PPA: 5
Total de Sugestões à LDO: 117
Total Geral de Sugestões (projetos de lei, audiências e seminários) apresentadas desde o
ano de 2011: 1216.
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Em relação às reuniões de audiência pública realizadas no ano de 2018 (de
janeiro a dezembro), após uma análise das gravações (arquivos sonoros)
disponibilizadas na página da CLP, chega-se à conclusão que, embora a comissão
seja composta, teoricamente, de 18 membros titulares e de 18 membros suplentes,
apenas alguns poucos parlamentares realmente se manifestaram nessas reuniões.
Ademais, junta-se a essa afirmação que, das 12 audiências públicas
registradas, somente uma foi proveniente de sugestão da sociedade civil, sendo
que as demais foram de autoria parlamentar. Embora a iniciativa parlamentar seja
legítima, quanto à apresentação de requerimentos de audiências e seminários,
percebe-se que isso não corrobora para consolidar a CLP como fórum de debates
relativos a demandas sociais, haja vista a prerrogativa concedida por aquele órgão
para a sociedade civil apresentar Sugestões naquela comissão, a qual tem
competência singular para tanto.
Além disso, verifica-se que poucos parlamentares daquela comissão
tiveram participação realmente efetiva nas reuniões de audiência pública, o que
também causa preocupação, pois parece desfigurar um instituto democrático
importante para o fortalecimento da democracia, ou seja, a maioria dessas
reuniões são realizadas com pouca expressividade de participação da sociedade
civil organizada e também da representatividade parlamentar, acarretada pela
pouca manifestação dos deputados.
Ratificando o acima exposto, deve ser observado que embora algumas
atas de reuniões registrem a presença de um número mais expressivo de
parlamentares, a média de participação, por audiência pública, levando-se em
conta a fala/manifestação dos Deputados, registradas nos áudios dessas reuniões,
foi de, aproximadamente, 4 deputados para cada evento, o que representa, algo
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em torno de 11% de participação parlamentar, levando-se em conta o total de
membros titulares e suplentes, teoricamente possível de comporem o quadro da
CLP.
Muitas dessas falas tiveram a duração, em média, de aproximadamente
dois minutos, o que, a princípio, também pode demonstrar uma pequena
participação, não condizente com quem busca a construção de políticas sociais
eficazes por meio da deliberação, que deveriam ouvir a sociedade e interagir com
os especialistas e com os demais convidados presentes à reunião, pois muitas
vezes para se chegar a um consenso, ou próximo disso, em uma audiência pública,
vários debates podem ocorrer, inclusive com a possibilidade de o parlamentar
interpelar o convidado por três minutos , além da previsão de réplica e de tréplica,
nos termos do artigo 256, §5º, do RICD.
Informa-se que existem, atualmente, 34 proposições aprovadas pelos
parlamentares da CLP, algumas com mais de 10 anos de tramitação, que estão
prontas para a pauta do Plenário da Câmara dos Deputados. Porém, para que essas
matérias sejam submetidas à apreciação dos deputados no Plenário, dependerá da
vontade do Presidente daquela Casa de Leis.
Essa afirmação vem esclarecer que o sucesso das iniciativas legislativas
apresentadas pela sociedade à CLP não depende somente dos trabalhos daquela
Comissão, mas de motivação e apoio político, em razão dos ditames previstos no
Regimento Interno da Câmara dos Deputados68.
68 Cf. Sistema de Informação Legislativa – Câmara dos Deputados – Data/hora da pesquisa:
29/07/2019 - 15h02
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Considerações finais
Portanto, a participação da sociedade nas decisões do Parlamento se faz
necessária e oportuna, devendo ser enaltecida e incentivada por parlamentares e
pelos cidadãos.
A assertiva supra se torna mais apropriada quando referente à participação
social no processo legislativo realizado no âmbito da Comissão de Legislação
Participativa da Câmara dos Deputados, considerada o fórum de debates da
sociedade no Parlamento, onde as demandas apresentadas, invariavelmente,
tratam de questões sociais.
A abertura das informações aos cidadãos, disponibilizadas pela Câmara
dos Deputados, está seguramente no caminho do que se entende por “Parlamento
Aberto”, cujos mecanismos de transparência e interação fortalecem o exercício
democrático, propiciando legitimidade às decisões, como foi demonstrado
anteriormente, inclusive pelo reconhecimento da União Interparlamentar, com
sede em Genebra na Suíça, que entendeu a Câmara dos Deputados como exemplo
de uso de dados abertos.
Entretanto, conforme é depreendido do depoimento da deputada Luíza
Erundina, existem muitas investidas que dificultam a participação, prejudicando a
construção de decisões de forma conjunta entre representantes e representados.
Essas investidas, aqui tratadas como “barreiras”, podem ser percebidas, inclusive,
pelo esvaziamento de algumas reuniões de audiência pública, tanto por parte dos
parlamentares quanto dos representantes sociais e dos cidadãos, que não
comparecem a esses eventos da forma esperada, ou seja, em número significativo
e com manifestações veementes que traduzam a vontade do povo.
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Os poucos segmentos sociais que encaminharam sugestões de
proposições para a CLP, em 2018, conforme constatado, também causa
perplexidade, haja vista aquela Comissão ser um canal de participação moderno e
pouco burocrático, o que facilita a interação da Câmara dos Deputados com a
sociedade, na avaliação deste autor.
Notadamente, instiga a reflexão o fato de, desde a criação daquele
colegiado em 2001 até a conclusão do presente artigo, terem sido transformadas
em lei somente duas sugestões legislativas, apresentadas pela sociedade civil na
CLP, sendo ambas de autoria da Associação de Juízes Federais do Brasil, conforme
já alertado. Ora, essa informação per se já é suficiente para desmotivar o
encaminhamento de proposições por parte da sociedade, o que é bastante
compreensível, mas deveras preocupante.
Nesse sentido, verificou-se que foi realizada somente uma audiência
pública de autoria da sociedade em 2018, o que não é razoável, pois a CLP deveria
ser utilizada para dar vazão aos pleitos sociais, legitimando as decisões do
Parlamento.
Pelo exposto, resta irrefutável que, embora a Câmara dos Deputados
ofereça vários instrumentos de participação, prestando informações relevantes à
sociedade brasileira, o que é de suma importância, as entidades sociais devem ser
mais efetivas na construção legislativa, principalmente no âmbito da CLP,
apresentando suas demandas e acompanhando todo o processo, pois somente
assim o Brasil fortalecerá sua democracia, proporcionando legitimidade às
decisões do Parlamento. Em contrapartida, os representantes do povo devem ser
mais solidários em relação às demandas apresentadas pelos cidadãos, buscando,
na medida do possível, mitigar as inúmeras injustiças sociais existentes no Brasil.
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A BANALIDADE DO MAL NAS UNIDADES DE INTERNAÇÃO DO DISTRITO
FEDERAL
Luíza Griebler
Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário ISB.
Douglas Henrique Marin
Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); mestre em Direito
(Ciências jurídico-filosóficas) pela Universidade do Porto (UP-Portugal); especialista em
Direito das Obrigações pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências
Jurídicas pela Universidade do Porto (UP-Portugal); graduado em Direito pela
Universidade de São Paulo (USP); Procurador Federal e coordenador na Subchefia de
Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República; professor na graduação e
pós-graduação em Direito no Centro Universitário IESB.
Resumo
No Distrito Federal, o ambiente das unidades que executam a medida socioeducativa de internação
é marcado por tensões entre os profissionais socioeducativos que ali exercem suas atividades e os
adolescentes acautelados. Assim, a presente pesquisa analisa o perfil dos profissionais
socioeducativos lotados em Unidades do Distrito Federal que executam medidas socioeducativas
de internação e apresenta uma analogia entre as considerações propostas pela filósofa judia
Hannah Arendt em sua obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do Mal e
condutas costumeiras praticadas pelos profissionais do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal
ao lidarem diretamente com adolescentes autores de atos infracionais acautelados em Unidades
de Internação Juvenil.
Palavras-chave: Medidas Socioeducativas. Adolescente em conflito com a lei. Atos Infracionais.
Perfil dos agentes socioeducativos do Distrito Federal. Direitos humanos. Ressocialização. Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Abstract
In the Federal District, the environment of the socio-educational units for children and teenagers
who brake the law is marked by tensions between the socio-educational professionals and the
supervised adolescents. This research analyzes the profile of socio-educational professionals who
carry out socio-educational measures and presents an analogy between the considerations
proposed by the Jewish philosopher Hannah Arendt and usual behaviors by professionals in the
Federal District's Social and Educational System, when dealing directly with the teenagers.
Keywords: Socio-educational measures. Teenager in conflict with the law. Infractional acts. Profile
of socio-educational agents in the Federal District. Human rights. Resocialization. Child and
Adolescent Statute.
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Introdução
No Distrito Federal, o ambiente das unidades que executam a medida
socioeducativa de internação é marcado por tensões entre os profissionais
socioeducativos que ali exercem suas atividades e os adolescentes acautelados.
Dito isso, este trabalho pretende realizar uma analogia entre as
considerações propostas pela filósofa judia Hannah Arendt em sua obra Eichmann
em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal e condutas costumeiras
praticadas pelos profissionais do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal ao
lidarem diretamente com adolescentes autores de atos infracionais acautelados
em Unidades de Internação Juvenil.
É fato que as unidades de internação voltadas para adolescentes em conflito
com a lei se assemelham a verdadeiros presídios, com o único objetivo de punir e
não ressocializar socioeducandos. Portanto, assim como sugerido no livro, muitos
dos profissionais inseridos no contexto de internação juvenil acabam por ponderar
que determinadas atitudes envolvendo as mais diversas infrações administrativas
disciplinares seriam corriqueiras e triviais, talvez até necessárias para a manutenção
da ordem e para a realização do justo.
Ocorre que o mal não deve ser tratado como algo banal e sem
consequências ao convívio humanitário e social, inclusive nas relações práticas de
resgate social envolvendo o atendimento de adolescentes em conflitos com a lei.
Com efeito, a presente pesquisa foi realizada no âmbito da Secretaria de
Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania do Distrito Federal (SEJUS),
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estando inserida no contexto organizacional das Unidades de Internação voltadas
para adolescentes em conflito com a lei.
1. Sobre Adolf Eichmann
Adolf Eichmann foi um nazista alemão encarregado por organizar e dirigir
a logística de transportes das deportações dos judeus para os campos de
extermínio durante a Segunda Guerra Mundial (ARENDT, 1999).
Eichmann foi capturado na Argentina, mas seu julgamento ocorreu em
Jerusalém. A filósofa Hannah Arendt foi enviada como correspondente pela
revista The New Yorker e acompanhou as sessões do julgamento de Adolf
Eichmann em Israel.
A obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal foi
baseada nos artigos publicados no The New Yorker e apresenta diversos
questionamentos sobre a legalidade do julgamento e o principal objetivo do povo
judeu: fazer justiça.
Segundo Arendt,
[...] as irregularidades e anormalidades do julgamento de Jerusalém
foram tantas, tão variadas e de tal complexidade legal que, no decorrer
dos trabalhos e depois na quantidade surpreendentemente pequena de
literatura sobre o julgamento, chegaram a obscurecer os grandes
problemas morais e políticos e mesmo legais que o julgamento
inevitavelmente propunha (ARENDT, 1999, p. 275).
Arendt também reconhece que Eichmann não se assemelhava a um típico
assassino cruel. Na verdade, seria um mero burocrata, um pai de família e um
funcionário medíocre que simplesmente seguiu ordens de seus superiores.
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[...] O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como
ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda
são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas
instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade
era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois
implicava que – como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos
acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso,
efetivamente hostis generis humanis, que comete seus crimes em
circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou
sentir que está agindo errado. Sob esse aspecto, as provas no caso de
Eichmann eram ainda mais convincentes que as provas apresentadas no
julgamento dos criminosos de guerra, cujas alegações de consciência
tranquila podiam ser descartadas mais facilmente porque combinavam o
argumento da obediência a “ordens superiores” com várias bazófias
sobre ocasionais desobediências (ARENDT, 1999, p. 299).
A defesa de Eichamnn, inclusive, alegava que ele tinha vivido toda a sua vida
seguindo princípios morais e que todas as ordens seguidas sobrevinham de atos
de Estado, daí que não deveria ser punido.
[...] Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada
nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um
cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu
insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele
também obedecia à lei. Eichmann tinha uma vaga noção de que isso
podia ser uma importante distinção, mas nem a defesa nem os juízes
jamais insistiriam com ele sobre isso. As moedas bem gastas das ‘ordens
superiores’ versus os ‘atos de Estado’ circulavam livremente; haviam
dominado toda a discussão desses assuntos durante os julgamentos de
Nuremberg, pura e simplesmente por dar a ilusão de algo absolutamente
sem precedentes e seus padrões. Eichmann, com seus dotes mentais
bastante modestos, era certamente o último homem na sala de quem
podia esperar que viesse a desafiar essas ideias e agir por conta própria.
Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um
cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens – sempre
cuidado de estar “coberto’”–, ele acabou completamente confuso e
terminou frisando alternativamente as virtudes e vícios da obediência
cega, ou “obediência cadavérica” (kadavergenhorsam), como ele próprio
a chamou (ARENDT, 1999, p. 152).
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Vislumbra-se que segundo Arendt, Adolf Eichman foi acusado por diversos
crimes, mas sua maior culpa foi ter obedecido aos seus superiores.
1.2 Sobre a banalização do mal
Hannah Arendt realiza uma análise sobre a verdadeira natureza do mal. A
autora chega a descrever Adolf Eichmann como um sujeito comum, focado em
obter progressos pessoais, que simplesmente seguiu as ordens de seus superiores
sem perceber – ou se importar – com o que estava fazendo.
Adolf Eichmann, portanto, desempenhava suas funções sem refletir sobre
seus atos. Trata-se, portanto, de uma análise sobre o desprendimento moral de
um indivíduo que cumpria com o que lhe foi designado em um cenário marcado
pelas atrocidades da segunda guerra.
Naturalmente Arendt não admitia tal banalização. Para ela, ao nos
enxergarmos como cidadãos pautados em sentimentos de cunho humanitário,
temos a necessidade ética e humana de cobrar de qualquer outro sujeito uma
postura moral de discernimento pelos próprios atos.
[...] Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a maioria
das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma
que a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela
“poderia acontecer” na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos
os lugares. Humanamente falando, não é preciso nada mais, e nada mais
pode ser pedido dentro dos limites do razoável, para que este planeta
continue sendo um lugar próprio para a vida humana (ARENDT, 1999, p.
254).
Eichmann não era um monstro detentor de um mal essencial e intrínseco,
que planejou a destruição de um povo. Ele era, simplesmente, um cidadão
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burocrata que realizava suas atividades, sem refletir sobre os seus atos e a
moralidade das ordens que lhe eram incumbidas dentro de um cenário de guerra.
Nessa percepção, poder-se-ia afirmar que Eichmann, sob certa óptica,
chegou a ser um funcionário exemplar, que somente seguia ordens superiores com
afinco. Pensar assim, no entanto, afasta o indivíduo dos princípios éticos que o
tornam humano.
[...] O mal, portanto torna-se banal a partir da superficialidade e da
superfluidade. A superficialidade está contida na ideia de que quanto
mais superficial for uma pessoa, maior a probabilidade de ela ceder aos
encantos do mal. Para tanto, utilizam-se os clichês, as frases feitas, adesão
a códigos e expressão e conduta convencionais e padronizadas, que
impedem a percepção da realidade e do consequente pensamento
aprofundado. Essa superficialidade é facilmente verificada em Eichmann.
Já a superfluidade vincula-se ao sentido utilitário das sociedades de
massa, em que a política e a economia tornam o homem supérfluo a
partir de seus instrumentos totalitários (ARENDT, 1999, p. 268).
Portanto, esta pesquisa pretende explanar a banalização do mal como uma
categoria teórica metodológica para explorar práticas inadequadas, aéticas e
nocivas às relações humanas e a dignidade da pessoa humana.
2. Método utilizado
É importante ressaltar que o presente trabalho utilizou estratégias
metodológicas incomuns à pesquisa jurídica.
A abordagem é essencialmente qualitativa, utilizando-se ferramentas da
história oral com o intuito de compreender a intimidade do pensamento humano,
construído em um ambiente livre e bastante anônimo.
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Deste modo, a descrição cuidadosa do método utilizado assegura a
cientificidade da pesquisa, permitindo que a hipótese seja testada por outros
pesquisadores, confirmando-a ou falseando-a, tudo na classifica dicção de Karl
Popper (2010, p. 186)
Destarte, este trabalho buscou demonstrar que embora as medidas
socioeducativas previstas no ECA tenham a função de resgatar os valores sociais
na busca da responsabilidade social do socioeducando acautelado, na prática o
cenário das Internações Juvenis no âmbito do DF é crítico, vulnerável e ineficaz e a
função da medida socioeducativa passa a ser unicamente voltada à punição do
adolescente infrator e não à ressocialização.
Dessa forma, os profissionais da área também vivenciam um ambiente
suscetível aos mais diversos conflitos. Deste modo, os agentes socioeducativos se
envolvem em ocorrências administrativas disciplinares com mais frequência,
muitas delas relacionadas à violência, abuso de autoridade e intimidação.
Tais agentes supõem que suas ações sejam razoáveis, se não necessárias ao
controle da disciplina e da hierarquia nas unidades: os excessos podem existir, mas
são indispensáveis naquele ambiente. Não há arrependimento. O mal prevalece,
banalizado intramuros.
3. Resultados e discussão
Este estudo buscou por meio de entrevistas de profundidade ponderar e
aferir se as condutas dos profissionais socioeducativos do DF são orientadas de
fato pelo mal arendtiano.
Dessa maneira, essa pesquisa associou o desempenho das atribuições dos
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servidores socioeducativos com parâmetros de si próprios no intuito de expor a
responsabilidade dos servidores públicos, bem como do Estado no que se refere a
práticas inadequadas no tratamento de adolescentes acautelados em medidas
socioeducativas de internação do DF.
O envolvimento dos atores no procedimento de implementação da
pesquisa possibilitou a verificação de sentidos múltiplos e relevantes para a
compreensão da realidade analisada. O corpus textual gerou categorias discursivas
bem definidas, conforme apontado na apreciação dos resultados, o que permitiu
no contexto deste estudo, correlacioná-las aos referenciais teóricos adotados e aos
objetivos propostos.
3.1 Caracterização dos entrevistados
As entrevistas foram realizadas com profissionais socioeducativos que
atuam diretamente no atendimento aos adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa de internação no âmbito do Distrito Federal.
Foram convidados 25 (vinte e cinco) servidores socioeducativos do DF,
sendo 2 (dois) técnicos administrativos, 5 (cinco) especialistas socioeducativos e 18
(dezoito) agentes socioeducativos. Todos os profissionais concordaram em
participar da pesquisa e todos foram entrevistados pessoalmente.
Em virtude do método “snowball” utilizado para a indicação de possíveis
entrevistados, cada servidor indicou para a presente pesquisa pessoas de seu
conhecimento ou amizade.
Dessa maneira, a faixa de idade manteve-se entre 32 (trinta e dois) e 49
(quarenta e nove) anos de idade.
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Doze entrevistadas são do sexo feminino e quinze servidores possuem
filhos.
Todos os convidados possuem nível superior, dezenove dos entrevistados
possuem especialização e três já concluíram o mestrado.
Todos os servidores entrevistados já trabalharam em Unidades de
Internação do DF, entretanto atualmente 04 (quatro) servidores participantes estão
lotados em Unidades do Meio Aberto.
Ressalta-se que para um alcance mais abrangente na fala dos servidores,
todas as entrevistas ocorreram de forma sigilosa e sem a identificação dos
convidados.
As entrevistas foram gravadas por meio de aplicativo de gravação instalado
em telefone celular. Foi combinado que caso o entrevistado (a) pedisse, a
pesquisadora desligaria o aplicativo para alguma fala.
O trabalho orientado por pareamentos de pesquisa qualitativa, buscou
“explorar os espectros de opiniões e as diferentes representações” (BAUER;
GASKEL, 2002, p. 68) sobre os temas averiguados. O intuito da análise era
“maximizar a oportunidade de compreender diferentes posições tomadas pelos
membros de um meio social.” (BAUER; GASKEL, 2002, p. 68)
Houve boa vontade de todos os participantes e alguns entrevistados
falaram de temas que extrapolavam as perguntas.
Em virtude da variação de gênero, a pesquisadora optou pelo modo
tradicional de condução de texto, referindo-se aos entrevistados, em geral, no
masculino.
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3.2 A Banalidade do Mal está de fato ocorrendo nas Unidades de Internação
do DF?
A análise utilizou-se das definições de banalidade do mal de Hannah Arendt
na constituição do embasamento teórico, com o escopo de compreender as
justificativas para as constantes violações de direitos em desfavor de adolescentes
acautelados praticados por agentes públicos nas Unidades de Internação.
A percepção dos servidores socioeducativos sobre o trabalho desenvolvido
e as condutas realizadas foram captadas por meio das entrevistas que revelaram a
visão servidores quanto prática profissional como um todo.
Ressalta-se que a analogia realizada com a obra de Hannah Arendt não se
ambiciona igualar-se a situação do Holocausto ou ao nazismo, mas apresentar que
as diversas violações aos direitos fundamentais praticadas aos adolescentes em
conflito com a lei em cumprimento de medidas socioeducativas de internação não
podem ser aceitáveis e passíveis de não responsabilizações. Pois a admissão e
tolerâncias a práticas inadequadas em desacordo com os direitos humanos contra
socioeducandos se aproximam da ideia de banalidade do mal arendtiano.
Nesse sentido:
Certa vez, após realizar a escolta de um adolescente para uma audiência,
presenciei algo que me tirou o sono por vários dias. Levamos um
adolescente para uma audiência super pesada na VIJ. O moleque tinha
dezessete anos e tinha estuprado, matado e ocultado o cadáver da
própria prima de quatro anos. Foi uma audiência tensa. A família da
vítima chorava o tempo inteiro, todo mundo ficou comovido. Até os
policiais choraram em seus depoimentos quando descreveram o cenário
do crime e como o corpo da criança foi encontrado. Mas o que mais me
chamou a atenção foi a frieza do adolescente. Ele ria durante a audiência.
Como se tivesse gostado do que tivesse feito. Você via que o adolescente
sentia orgulho pelo crime praticado. Cena de horror mesmo. Éramos
cinco agentes realizando a escolta desse adolescente. Desses cinco
agentes, quatro tem filho pequeno em casa. Estávamos revoltados com
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esse moleque. Na volta, de comum acordo entre os agentes, paramos a
viatura no meio do caminho e os três colegas desceram o cassete nesse
menino. Foi uma espécie de vingança. Sei que não resolveu nada, sei que
essa atitude não trouxe a vida da criança de volta. Mas nós como agentes
tínhamos que fazer algo. Aquele menino não podia ficar impune por um
crime tão bárbaro. Eu juro que eu não cheguei a fazer nada. Fiquei
sentado no banco da frente do carro, mas presenciei a situação. Também
não deletei meus colegas. Fui conivente com a situação e confesso que
naquele momento achei que era o certo a ser feito. Só que quando
cheguei em casa e refleti, vi que não era uma atitude certa entende? Acho
que alí nós nos comparamos com o adolescente criminoso. No dia do
próximo plantão, pedi para meu chefe para sair da escolta. Hoje trabalho
em meio aberto. (Agente Socioeducativo)
Atendi um adolescente que tinha acabado de ser pego em flagrante e foi
encaminhado ao NAI. O menino era uma criança. Tinha doze anos, mas
o físico era de oito. Ele foi colocado no quarto sozinho, por conta da
compleição física. Tinha dado um pane elétrico e os quartos estavam sem
luz. Aí quando o moleque entrou na cela, ele falou: “seu agente eu vou
ficar aqui sozinho? Eu tenho medo de escuro”. Foi uma gargalhada geral.
Todos os agentes tiraram sarro dele e ficaram falando: “Para cometer
crime você não tem medo né?” Só que eu fiquei com pena dele. Apesar
de tudo ele era uma criança. Desobedeci a meu chefe e coloquei outro
moleque lá com ele. Até hoje os agentes falam dessa situação. (Agente
Socioeducativo)
Uma das coisas que mais irritam os adolescentes das Unidades é falar da
mãe deles. Quer irritar um moleque? Chama ele de “rodoviário”. É uma
gíria para os adolescentes que não tem mãe. Alguns agentes adoram
provocar chamando os internos de “rodoviário”, de “pebas” ou de
bandidos na hora de fazer a contagem dos módulos. Acho isso
extremamente errado. Eu chamo os moleques pelo nome. Quando eu
não sei, chamo de interno, jovem ou adolescente. Acho que temos que
ter respeito pelo nosso público. Acho que por isso que sou bem tratado
por eles. (Agente socioeducativo).
Teve uma vez que eu fui algemar um adolescente e ele começou a me
xingar de todos os nomes possíveis e inimagináveis. Ele cuspiu na minha
cara e gritava que eu era uma alma sebosa. Eu nem conhecia o moleque.
Não entendi o motivo de ser tratado daquela forma, sem motivo
nenhum. Na hora fiquei tão nervoso. Minha vontade era esmurrar aquele
moleque. Ele estava me desrespeitando no ambiente do meu trabalho e
na frente dos meus colegas agentes. Mas aí respirei fundo e refleti. Não
valia a pena. Para que vou me sujar e responder um processo por causa
de um “peba” que não acrescenta em nada na minha vida? (Agente
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socioeducativo).
Uma vez levei uma menina no médico porque estava com suspeita de
infecção urinária. Só quem já teve infecção urinária sabe como incomoda,
dói e é preciso tomar antibiótico para resolver o problema. Chegando lá,
o médico do posto nem examinou a interna. A adolescente não fez
nenhum exame urinário. Total descaso. O médico só deu uns remedinhos
para amenizar a parada. Fiquei com dó dela. Falta um médico nas
Unidades para dar um amparo maior para esses adolescentes (Agente
Socioeducativo)
Para Arendt sempre vão existir indivíduos que pautados pela sua própria
consciência não vão escolher as práticas que desencadeiam no mal. Ressalta-se
que no contexto do holocausto muitos sujeitos simplesmente sucumbiram e
aderiram às circunstâncias da guerra, entretanto alguns não se conformaram e não
aceitaram.
[...] Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a maioria
das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma
que a lição dos países aos quais a solução Final foi proposta é que ela
“poderia acontecer” na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos
os lugares. (ARENDT, 1999, p. 254).
Com base no exposto, torna-se importante a reflexão que todos os seres
humanos devem ter seus direitos fundamentais respeitados pelo Estado (SCHIO,
2012). Entretanto, ao observarmos o objeto dessa pesquisa, constamos que as
entrevistas realizadas com os servidores socioeducativos do DF só corroboram
com a ideia de que determinações constitucionais fundamentais não vem sendo
cumpridas aos tratamentos designados aos adolescentes autores de atos
infracionais nas medidas de internação, seja pela falta de condições de trabalho
oferecidas aos servidores seja pela discricionariedade na eleição de determinadas
condutas como adequadas por alguns servidores.
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Nesse sentido, Arendt (1999) nos faz refletir que a banalidade do mal incide
nas diversas práticas de violações de direitos fundamentais aos socioeducandos.
Ou seja, na entrevista dos servidores são verificadas violações de direito que são
justificadas, não pela não consciência das ações dos envolvidos, mas sim por
apologias de falhas de um sistema político, jurídico, econômico e social.
Portanto, a ideia em torno da banalidade do mal promovida pelo Estado
reproduz no sistema socioeducativo o que Bauman (1998) conceitua de
normalidade do desumano: o desrespeito aos direitos fundamentais dos
socioeducandos, associadas a omissão do Estado:
[...] A desumanização distancia a vítima da consciência do agressor, no
caso o Estado. A partir da desumanização as diversas omissões e
atrocidades são admitidas já que agredido e agressor estão separados
por um abismo em que a consciência do agressor não se abala pela
invisibilidade do agredido (BAUMAN, 1998, p. 182-184).
Regressando ao estudo da pesquisa, após análise minuciosa dos diálogos
dos servidores, tornou-se possível constatar que a banalidade do mal de fato
acontece nas Unidades de Internação do DF.
Visto que os relatos dos profissionais envolvidos denunciam ranços de uma
da cultura institucional procedente do extinto Código do Menor que ainda vigoram
na prática e que a sanção e a repreensão ainda operam de forma dominante na
conduta dos servidores que executam as medidas socioeducativas de internação
no âmbito do DF.
Todavia, ressalta-se que as condições de trabalho oferecidas encontram
muitas deficiências e o apoio institucional às atividades desenvolvidas pelos
profissionais são parâmetros decisivos para o exercício adequado das diversas
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funções impostas. Porém, na prática são encontradas diversas barreiras, o que
desmotiva os servidores envolvidos no processo:
Assim que eu entrei nesse concurso fui jogado em uma Unidade de
internação. Logo nos primeiros dias caí na armadilha da casinha. Um
moleque começou a gritar pedindo socorro e eu desesperei. Estava
sozinho no módulo e por falta de malícia, despreparo e até inexperiência,
fui sozinho abrir o módulo desse adolescente. O procedimento padrão, é
sempre apurar todas as condutas com no mínimo três servidores. Hoje
eu sei disso. Mas na época não sabia. Enfim, eu também estava sozinho
no módulo e o moleque gritava como se fosse parir. A unidade quase
não tinha servidores. Todos os módulos estavam com pouquíssimos
agentes. Aí fui sozinho na tora. Quando abri o módulo para socorrer o
adolescente ator, surgiram do nada cinco moleques escondidos que me
pegaram. Quase morri. Saí todo estropiado. Levei vários pontos pelo
corpo todo por essa brincadeira. Depois meus colegas deram uma surra
de correção nesses bandidos. Quase perdi a vida. Não acho certo os
agentes responderem por isso na corregedoria. Não temos estrutura para
trabalhar, faltam agentes e os adolescentes sabem disso. Me pegaram
porque eu era novato, não tinha feito nenhum curso e estava sozinho no
módulo. Meus colegas estavam certos de dar uma correção nesses
internos. Quase perdi a vida. (Agente socioeducativo)
Os agentes têm fama de maus, torturadores de internos. Mas como
manter a ordem em uma Unidade que não proporciona estrutura e
condições mínimas de trabalho? (Agente socioeducativo)
Às vezes temos que ter uma postura mais dura com esses internos. É uma
forma de conquistarmos respeito. A maioria dos agentes não sabe
sequer manusear uma tonfa da maneira correta. Falta curso e
capacitação. Só que nos momentos de crise quem nos defende? Só
podemos contar com o apoio dos próprios colegas que já tem mais
experiência. E eu acho totalmente compreensível um agente corrigir um
interno de maneira mais dura quando esse moleque agride um servidor.
(Agente socioeducativo)
Teve um moleque que por pura maldade arrancou todos os dentes de
um servidor da Provisória. O adolescente estava em fila esperando a
contagem para entrar no seu módulo. Pegou o servidor desprevenido e
chutou a boca desse servidor da maneira mais desumana e desleal
imaginável. Nessa situação, você acha errado os servidores da Unidade
darem um castigo nesses adolescentes? Se não tivermos uma postura
mais dura, perdemos totalmente o respeito com esses moleques. A
corregedoria deveria analisar isso. (Agente socioeducativo)
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Portanto, ao longo das entrevistas, nota-se que ainda existem ranços de
uma da cultura institucional procedente do extinto Código do Menor que incidem
em práticas sancionatórias e disciplinares destinadas aos socioeducandos, o que
resulta, alfim, em um espelho do que Hannah Arendt chamou de banalidade do
mal.
Considerações finais
O objetivo principal desta pesquisa era compreender a banalização do mal
sob a óptica de Hannah Arendt e aferir se as condutas dos profissionais
socioeducativos do DF são, de fato, orientadas pelo mal arendtiano.
Para tanto, identificar as percepções dos próprios profissionais por meio de
entrevistas foi de suma importância para a compreensão da relação entre esses
servidores, seu cargo, suas obrigações e direitos e os adolescentes acautelados. A
escolha da metodologia, portanto, foi essencial para a confirmação hipótese
inicialmente proposta.
Dito isso, considerando as informações obtidas nas entrevistas e as falas de
cada um dos servidores ouvidos, é possível traçar algumas conclusões que
surgiram, de forma uníssona, nos discursos. São elas:
a) os servidores estão desestimulados e não acreditam no Estado e
no sistema em que atuam.
A unidade quase não tinha servidores. Todos os módulos estavam com
pouquíssimos agentes. Aí fui sozinho na tora. Quando abri o módulo para
socorrer o adolescente ator, surgiram do nada cinco moleques
escondidos que me pegaram. Quase morri. Saí todo estropiado. Levei
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vários pontos pelo corpo todo por essa brincadeira. Depois meus colegas
deram uma surra de correção nesses bandidos. Quase perdi a vida. Não
acho certo os agentes responderem por isso na corregedoria. Não temos
estrutura para trabalhar, faltam agentes e os adolescentes sabem disso.
Me pegaram porque eu era novato, não tinha feito nenhum curso e
estava sozinho no módulo. Meus colegas estavam certos de dar uma
correção nesses internos. Quase perdi a vida. (Agente socioeducativo)
Eu não tive curso de formação prático. Tiveram aulas teóricas e só. Fui
jogado dentro de uma Unidade de Internação e aprendi o trabalho na
marra. (Agente Socioeducativo)
Eu não aprendi nada da prática no curso de formação. Me colocaram em
uma Unidade de Internação e falaram se vira! (Agente Socioeducativo)
No sistema falta tudo. Falta estrutura, assistência médica. Os servidores
vão trabalhar e não tem carro, equipamentos de segurança e
treinamentos. É comum você chegar em um módulo com 40 (quarenta)
internos e apenas uma agente feminina cuidando da ala inteira. (Agente
Socioeducativo).
Trabalhamos com internos com aids, sífilis e todos os tipos de doenças e
não temos nenhum amparo do governo sobre a saúde do servidor, nem
mesmo psicológica. (Agente Socioeducativo).
Desativaram o CAJE falando que ia contra os direitos humanos, mas na
realidade é que não combinava um presídio do lado do Noroeste né?
Qual a diferença do CAJE para as outras Unidades? (Agente
Socioeducativo).
O servidor já entra nesse concurso querendo sair. A rotatividade de
pessoal é imensa. O servidor não quer parar aqui. (Agente
Socioeducativo).
b) os servidores estão com medo, já foram vítimas de violência ou
são colegas de vítimas de agressão.
Já senti medo muitas vezes. O medo é o que mais faz você reagir a
situações de estresse e as vezes cometer excessos contra os internos.
(Agente Socioeducativo).
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Já fui agredido por um interno em um procedimento e já sofri várias
ameaças. Dentro do sistema é corriqueiro agentes receberem ameaças
de morte dos moleques. (Agente Socioeducativo).
“Lá fora eu te pego” é que eu mais ouço dos adolescentes desde que
assumi esse cargo. (Agente Socioeducativo).
Os menores são prisioneiros que cometerem crimes bárbaros. O Servidor
tem medo de entrar nos módulos. Os adolescentes fazem “casinha”. É
tipo uma armadilha para pegar o servidor desprevenido. Funciona assim:
um adolescente grita pedindo socorro, aí o servidor entra sozinho no
módulo e vem logo outros quatro adolescentes que estavam escondidos
e pegam o servidor de surpresa para fazer ele de refém. Às vezes você
deixou só um colega do lado de fora com o rádio para pedir reforço. Aí
esse colega vai chamar no rádio apoio para te salvar, mas o rádio está
com defeito ou sem bateria. Acontece direto, rádio Pifado. Aí o colega saí
correndo para pedir ajuda. Meu irmão, nesse momento você se vira. São
vinte segundos mais ou menos até chegar o apoio. Eu falo uma coisa para
você, esses vinte segundos se transformam em quatro horas. Você não
tem ideia o tanto que aquele tempo demora e o tanto de coisas que você
tem que fazer e pensar para você escapar de não ser agredido pelos
internos. Mas a verdade é que você será agredido e muito. Os moleques
não têm nada a perder. (Agente Socioeducativo);
Ninguém é maldoso de graça. Há não ser que tenha algum problema
psiquiátrico. São geralmente os servidores com medo que reagem a
violência com mais violência. O servidor tem medo e para se defender ele
anda com a tonfa e o escudo. No fundo ele tem muito medo de ser
agredido e de ser morto. O servidor nessa situação vê coisa até onde não
existe. Se o servidor estivesse em uma Unidade com estrutura em que
acontece a ressocialização de verdade essa situação poderia ser evitada.
(Agente Socioeducativo).
c) os servidores relatam os impactos do exercício de suas funções na
sua vida pessoal, demonstrando tristeza a amargor.
Ando mais nervoso e impaciente. Todo mundo que já entrou dentro de
um módulo sabe que lá dentro o trabalho não é fácil. Minha
personalidade mudou completamente, sou outra pessoa. (Agente
Socioeducativo).
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Acho que meu casamento acabou muito por conta do meu trabalho. Hoje
acho o problema dos outros extremamente fútil e acho que todo mundo
reclama demais. Depois que trabalhamos dentro de uma Unidade de
Internação temos contato com problemas muito mais graves e sérios do
que a maioria dos nossos amigos ou familiares. (Agente Socioeducativo).
Eu não quero aposentar aqui. Estou voltando a estudar para outros
concursos. O emocional um dia vai cobrar a conta. Vários colegas estão
depressivos, doentes ou se tornaram alcoólatras. (Agente
Socioeducativo).
e) os servidores têm conflitos internos com colegas e chefias.
Os especialistas não gostam dos agentes. Acham que nossa função não
é importante para a medida do moleque. Mas quando acontece alguma
coisa na Unidade, nós é que somos chamados para resolver o problema.
(Agente Socioeducativo).
A corregedoria não tem conhecimento sobre a prática do uso moderado
da força. Eles tem a visão que os agentes são torturadores de internos.
(Agente Socioeducativo).
Os internos se fazem de vítimas e a Corregedoria nos trata como
culpados. Para os internos existem diversas garantias e para os agentes
só deveres. Fiscalizam nossas condutas por tudo. Agora quem defende
os agentes quando os internos nos ameaçam ou nos agridem? (Agente
Socioeducativo).
f) os servidores têm sentimentos negativos sobre seu trabalho e
sobre a possibilidade de ressocialização.
Imagina você recebendo todas as negativas em uma sociedade? Mas o
traficante diz sim. Como competir com o crime? A ressocialização pode
até acontecer, mas ainda é difícil. (Agente socioeducativo).
Já presenciei casos de ressocialização nas Unidades de Internação.
Conheço casos reais em que os adolescentes perderam o vínculo com a
trajetória infracional e estão trabalhando no mercado formal, mas são
situações infelizmente atípicas. (Especialista).
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As medidas socioeducativas foram criadas para ressocializar. Mas na
verdade, eu nunca presenciei nenhum caso. (Agente Socioeducativo).
g) os servidores admitem o uso excessivo da força e da violência, em
certas ocasiões.
Como você vai conter uma briga de adolescentes dentro de uma Unidade
de internação sem o uso moderado da força? Se você não for lá, pegar o
interno pelo braço e sair puxando ele do módulo, você não resolve a
situação. E você vai levar pisada dos internos, vão te jogar cadeado, urina.
A sua integridade física também está em jogo. Tem que bater um gás
para afastar os adolescentes da confusão. Nos momentos de crise, as
Unidades de internação são campos de Guerra. (Agente Socioeducativo).
Por segurança e pela própria integridade física dos servidores e dos
internos os agentes têm que ter uma postura mais dura e usar a força
como medida necessária visando a disciplina da Unidade. (Agente
Socioeducativo).
Na sua casa e na sua família você não tem pais que precisam ser rígidos
quando uma criança ou adolescente tem uma atitude inadequada? Por
que dentro de um sistema em que os adolescentes estão lá para serem
ressocializados pela prática de crimes gravíssimos não deveria acontecer?
(Agente Socioeducativo).
É comum os agentes socioeducativos se envolverem em processos
administrativos disciplinares por praticarem violações de direito com
frequência em desfavor dos adolescentes atendidos. Vemos isso toda a
hora (Especialista).
Já presenciei vários adolescentes lesionados com laudos do IML
contundentes afirmando em atendimento técnico que sofreram vários
tipos de agressões provocadas pelos agentes. Acontece. Mas o
complicado é provar. É sempre a palavra do socioeducando contra a fala
do servidor. (Especialista).
Tem colegas que machucam os adolescentes de propósito nos
procedimentos de contensão. Eu já vi, mas não concordo. (Agente
Socioeducativo).
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Eu não acho certo agredir sem motivo os adolescentes. Lógico que
acontece. Tem servidores e servidores. (Técnico administrativo)
Faltam treinamento dos servidores na tratativa com os adolescentes. Por
isso que às vezes acontecem excessos. (Agente Socioeducativo).
Uma das coisas que mais irritam os adolescentes das Unidades é falar da
mãe deles. Quer irritar um moleque? Chama ele de “rodoviário”. É uma
gíria para os adolescentes que não tem mãe. Alguns agentes adoram
provocar chamando os internos de “rodoviário”, de “pebas” ou de
bandidos na hora de fazer a contagem dos módulos. Acho isso
extremamente errado. Eu chamo os moleques pelo nome. Quando eu
não sei, chamo de interno, jovem ou adolescente. Acho que temos que
ter respeito pelo nosso público. Acho que por isso que sou bem tratado
por eles. (Agente socioeducativo).
O quadro que emerge dos discursos é indelével: a banalidade do mal
acontece nas Unidades de Internação do DF.
De fato, os servidores denunciam ranços de uma da cultura
institucional que os abandonou à própria sorte, que ignora o seu sofrimento,
desestruturação psicológica e medos, que os persegue e julga, e que não se
preocupa com a ressocialização dos menores infratores. A violência, tida como
uma alternativa muitas vezes necessária, surge como resposta legítima ao caos.
O mal emerge no dia a dia, das mãos de vítimas de um sistema que
planta e que colhe desvios, tragédia e violência. O mal não tem rosto, o mal não é
identificável, o mal surge em um comportamento cotidiano que se torna, a cada
dia, um retrato preciso de um sistema falido.
Referências
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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BAUER, Martin; GASKEL, George. Pesquisa qualitativa com texto imagem e
som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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Disponível em: <http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de-
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1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em:
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em: 28 dez. 2017.
BRASIL. Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança
e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16
jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>.
Acesso em: 28 dez. 2017.
BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília:
2012
POPPER, Karl. A verdade e a aproximação da verdade. In Textos escolhidos. Rio
de Janeiro: Ed. PUC Rio, 2010
SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt: história e liberdade: da ação à reflexão. 2
ed. Porto Alegre: Clarinete, 2012.
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AS RELAÇÕES TRABALHISTAS EM CONSONÂNCIA COM O
DESENVOLVIMENTO EMPRESARIAL SUSTENTÁVEL – A RESPONSABILIDADE
SOCIAL CORPORATIVA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DESSE NOVO
PARADIGMA
Theobaldo Eloy de Carvalho Neto
Mestrando no Programa de Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos
Reivindicatórios pelo Centro Universitário IESB – Instituto de Ensino Superior de Brasília;
bacharel em Direito pelo UniCEUB – Centro Universitário de Brasília; advogado.
Douglas Alencar Rodrigues
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP);
especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB); bacharel em
Direito pela Universidade de Brasília (1989); professor dos cursos de graduação e pós-
graduação do Centro Universitário IESB; ministro do Tribunal Superior do Trabalho.
Augusto César Leite de Carvalho
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla la Mancha;
pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca; mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará; master em Direito das Relações Sociais na
Universidad de Castilla la Mancha; professor dos cursos de graduação e pós-graduação
do Centro Universitário IESB; ministro do Tribunal Superior do Trabalho.
Resumo
Este artigo se propõe a estudar o contínuo conflito existente entre capital e trabalho, sob
a perspectiva de um novo paradigma, qual seja: o desenvolvimento empresarial
sustentável. Estuda-se a sustentabilidade em suas várias dimensões, com foco na
dimensão social. Da mesma forma, investiga-se a responsabilidade social corporativa
como importante etapa deste processo pela busca do novo paradigma a ser alcançado.
Tudo isso para se chegar a uma solução viável às duas partes da relação empregatícia,
aliando-se o princípio constitucional da livre iniciativa com o direito fundamental social ao
trabalho digno.
Palavras-chave: Direitos sociais. Desenvolvimento empresarial sustentável.
Sustentabilidade. Responsabilidade social empresarial.
Abstract
This article aims to study the continuous conflict between capital and labor, from the
perspective of a new paradigm: sustainable business development. Sustainability is studied
in its various dimensions, focusing on the social dimension. This article also investigates
the corporate social responsibility as an important step in this process for the search for
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the new paradigm to be reached. The objective is to reach a viable solution to both parts
of the employment relationship, allying the constitutional principle of free initiative with
the fundamental social right to decent work.
Keywords: Social rights. Sustainable business development. Sustainability. Corporate
social responsibility.
Introdução
os mais diversos momentos e nos mais variados aspectos da relação de
emprego, deparamo-nos com situações em que os interesses das partes
diretamente envolvidas no contrato de trabalho estão impregnados pela
premissa de que devem sempre caminhar em sentidos opostos, como se houvesse
um abismo intransponível entre ambos. A satisfação de um interesse empresarial
parece ser necessariamente dependente da precarização da mão-de-obra. Já as
conquistas obreiras também aparentam obrigatoriamente depender do
comprometimento de parte do lucro da sociedade empresária. Os tempos mudam,
os discursos são remodelados, mas a ideia por trás das soluções tradicionais dadas
aos problemas laborais remanesce sempre baseada na mesma mentalidade
histórica: o conflito entre capital e trabalho.
Nesse contexto, a regulamentação do trabalho, que surge
continuamente em meio a tal conflito, costuma contrapor direitos das duas partes
da relação de emprego: por um lado, são criadas condições laborais que visam à
maximização do lucro a partir da flexibilização do trabalho, o que pode, em
potencial, ofender princípios constitucionais e direitos fundamentais basilares dos
trabalhadores, destacadamente o princípio da dignidade da pessoa humana, o
direito social ao trabalho digno, o valor social do trabalho e a valorização do
trabalho humano como fundamento da ordem econômica que assegure a todos
N
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uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, nos termos da
Constituição Federal. Por outro lado, há a necessidade de não se ignorar, no
momento em que se definem as diretrizes a serem adotadas na relação
empregatícia, a livre iniciativa tal qual princípio constitucional, que deve ser
valorizada sobretudo no tocante à liberdade de se contratar.
Um caminho traçado à busca de uma solução viável ao problema
exposto é a responsabilidade social da empresa privada. Ter o desenvolvimento
sustentável como novo paradigma a ser observado. Implementar uma gestão
empresarial socialmente responsável, inclusive no tocante às relações laborais.
Para tratar do tema, faz-se mister discorrer sobre os institutos da sustentabilidade,
do desenvolvimento sustentável, e da responsabilidade social.
Dessa forma, tornar-se-á possível responder importantes
questionamentos: seria o desenvolvimento sustentável um paradigma a ser
seguido por quaisquer organizações, inclusive privadas? Seria a dimensão social
da sustentabilidade capaz de oferecer solução digna a uma relação empregatícia
precarizada pelos interesses do capital? É sobre o que se propõe discorrer neste
estudo.
1 Relação entre desenvolvimento sustentável, sustentabilidade e
responsabilidade social empresarial – O papel das organizações privadas
neste novo contexto
“Um modo tradicionalmente bem-sucedido de enfrentar uma situação
complexa é por meio da desagregação de seus componentes” (BARBIERE;
CAJAZEIRAS, 2016, p. 43). Seguindo a lógica de José Carlos Barbieri, visando à
compreensão da origem do dever empresarial de aplicação da responsabilidade
social às relações trabalhistas de maneira geral, propõe-se que a presente análise
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seja feita a partir da concepção do instituto macro em questão, ou seja, o
desenvolvimento sustentável.
Em que pese ser um conceito amplamente utilizado, não há
unanimidade quanto a uma definição mais complexa de “desenvolvimento
sustentável”. Entretanto, percebe-se consenso, como ponto de partida, quanto ao
relatório “Nosso futuro comum” (também chamado relatório Brundtland), emitido
pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, publicado em
1987, que define desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações
futuras atenderem a suas próprias necessidades”
A partir dessa noção inicial, diferenciamos os institutos da
sustentabilidade, do desenvolvimento sustentável e da responsabilidade social, ao
mesmo tempo em que os correlacionamos, através da lição de Samia Moda Cirino:
Sobre a diferença entre desenvolvimento sustentável e sustentabilidade,
Munck e Borim de Souza (2009, p. 193) esclarecem que a sustentabilidade
refere-se à capacidade de manutenção contínua de um meio, enquanto
o desenvolvimento sustentável refere-se aos processos integrativos que
visam a manter o equilíbrio dinâmico de um sistema complexo em longo
prazo. Dessa forma, entende-se a sustentabilidade como a ideia motriz
do desenvolvimento sustentável, uma vez que os processos que integram
um determinado sistema se voltam para um processo contínuo de
desenvolvimento. A sustentabilidade compõe, assim, ações objetivas que
propiciam o alcance de um desenvolvimento sustentável. A
sustentabilidade busca o equilíbrio de qualquer sistema e o
desenvolvimento sustentável busca a soma destes equilíbrios e o
equilíbrio maior entre os sistemas.
Já a responsabilidade social empresarial corresponde a uma parcela
muito menor de todos os processos envolvidos para o alcance do
desenvolvimento sustentável. [...] a sustentabilidade organizacional é
uma meta maior, dentro da qual a responsabilidade social empresarial é
compreendida como um estágio intermediário, no qual as empresas
constroem diálogos com todas as partes envolvidas e procuram meios
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que viabilizem práticas de gestão que integrem as dimensões da
sustentabilidade.
[...] Consoante expõe Félix (2003, p. 19):
Ser socialmente responsável não significa respeitar e cumprir
devidamente as obrigações legais, mas sim, o fato de empresas irem além
de suas obrigações em relação ao seu capital humano, ao meio ambiente
e à comunidade por perceberem que o bem-estar deles reflete em seu
bem-estar (CIRINO, 2014, p. 85).
Perceba-se que, apesar de muitas vezes confundidas, a noção de
sustentabilidade guarda sutil diferença em relação àquela correspondente ao
desenvolvimento sustentável, na medida em que a sustentabilidade, em suas várias
dimensões e em seus vários processos, caracteriza-se justamente como
pressuposto ao alcance do desenvolvimento – com equilíbrio – de um sistema
integrado mais complexo – que atenda às necessidades do presente sem o
comprometimento do futuro.
Ocorre que dentre as várias dimensões que integram a sustentabilidade
e, consequentemente, contribuem para o desenvolvimento sustentável, está não
apenas o manejo racional dos recursos naturais (atendendo a necessidades
materiais), mas, também, a modificação da organização produtiva e social, que
reduza a desigualdade e a pobreza, bem como reduza as práticas predatórias69,
criando um novo paradigma nas relações sociais, cujo objetivo não será somente
o lucro, senão ainda o bem-estar humano (DIAS, 2012, p. 48) Dessa forma, para
69 Segundo Amartya Sen, “a liberdade sustentável poderá soltar-se dos limites que lhe vêm
das formulações propostas pelo Comitê Brundtland e por Solow, para abraçar a
preservação e, quando possível, a expansão das liberdades e capacidades substantivas das
pessoas dos dias de hoje, sem com isso, comprometer a capacidade das futuras gerações
para terem uma idêntica ou maior liberdade.” SEN, Amartya. Desenvolvimento como
liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 343.
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uma organização empresarial, por exemplo, alcançar um desenvolvimento
sustentável, deve orientar suas atividades buscando resultados satisfatórios em
todas as dimensões da sustentabilidade que lhe forem inerentes.
Sob esse ângulo, para se chegar à responsabilidade social, deve-se ter
em mente, então, as dimensões da sustentabilidade, “em sua riqueza poliédrica,
sem hierarquia férrea e sem caráter exaustivo entre elas”,70 que hodiernamente são
assim elencadas: dimensões social, ética, ambiental, econômica, e jurídico-
política.71
Enquanto a sustentabilidade discute, de forma mais ampla, princípios
organizacionais, tendo o cuidado de promover a criação de valores (humanos, por
exemplo, em sua dimensão social), a responsabilidade social se insere nesse
contexto como importante etapa através da qual a empresa buscará
especificamente atender aos interesses das pessoas envolvidas na organização,
através de práticas de gestão que se orientem pelas referidas dimensões da
sustentabilidade.
Para uma compreensão inicial do instituto – adiante aprofundado –,
cumpre salientar o conceito geral amplamente aceito acerca da responsabilidade
social, definido pela Norma Internacional ISO 26000 – Diretrizes sobre
Responsabilidade Social:
70 De acordo com Freitas, “a pluridimensionalidade, criticamente reelaborada, conduz à
releitura ampliativa da sustentabilidade (para além do consagrado e clássico tripé social,
ambiental e econômico). Com o acréscimo elucidativo de, pelo menos, duas dimensões e
o abandono de acepções demasiado estreitas, mostra-se factível localizar o
desenvolvimento que importa, em sintonia com a resiliência dos ecossistemas e com a
equidade intra e intergeracional.” FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro.
4ª. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 62. 71 FREITAS, op. cit., p. 64-82.
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.responsabilidade social
.responsabilidade de uma organização (2.12) pelos impactos (2.9) de suas
decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente (2.6), por meio
de um comportamento ético (2.7) e transparente que contribua para o
desenvolvimento sustentável (2.23), inclusive a saúde e bem-estar da
sociedade; leve em consideração as expectativas das partes interessadas
(2.20); esteja em conformidade com a legislação aplicável e seja
consistente com as normas internacionais de comportamento (2.11); e
esteja integrada em toda a organização (2.12) e seja praticada em suas
relações (ABNT, 2010).
Já no tocante à importância de se manter uma organização empresarial
privada que seja socialmente responsável, impõe se destacarem as diretrizes – para
que se obtenha o almejado desenvolvimento sustentável – passadas às empresas
desde o Programa das Nações Unidas para o século XXI – a conhecida “Agenda
21” –, estabelecida pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CNUMAD), em 1992. A “Cúpula da Terra”, como também foi
chamada a CNUMAD, assim recomendou, em síntese, em seu capítulo 30:
B. Promoção da responsabilidade empresarial
Base para a ação
30.17. O espírito empresarial é uma das forças impulsoras mais
importantes das inovações, aumentando a eficiência do mercado e
respondendo a desafios e oportunidades. Os empresários pequenos e
médios, em particular, desempenham um papel muito importante no
desenvolvimento social e econômico de um país. [...]. Os empresários
responsáveis podem desempenhar um papel importante na utilização
mais eficiente dos recursos, na redução dos riscos e perigos, na
minimização dos resíduos e na preservação da qualidade do meio
ambiente.
Objetivos
30.18. Propõem-se os seguintes objetivos:
(a) Estimular o conceito de vigilância no manejo e utilização dos recursos
naturais pelos empresários;
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(b) Aumentar o número de empresários cujas empresas apóiem e
implementem políticas de desenvolvimento sustentável (ONU, 1992).
Veja-se a relevância dada às sociedades empresárias a partir da Agenda
21, em que se frisa o papel destinado às organizações privadas quanto à utilização
eficiente dos recursos disponíveis na busca do desenvolvimento social e
econômico de um país. Ao que parece, o recado foi devidamente assimilado, tendo
em vista o documento elaborado – para o próprio meio empresarial – pelo
Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável, intitulado “Mudando o
rumo: uma perspectiva global do empresariado para o desenvolvimento e o meio
ambiente”.72
Dias explica que, em tal documento, o Conselho reconheceu:73
[...] o mundo se move em direção à desregulação, às iniciativas
privadas e aos mercados globais. Isto exige que as empresas
assumam maior responsabilidade social, econômica e ambiental
ao definir seus papéis e ações.
Contudo, no mesmo documento, o Conselho Empresarial observou que,
para alcançar tal objetivo, exigem-se “mudanças profundas e de amplo alcance na
atitude empresarial, incluindo a criação de uma nova ética na maneira de fazer
negócios”
72 SCHMIDHEINY, Stephan. Cambiando el rumbo: una perspectiva global del empresariado para
el desarrollo y el medio ambiente. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 12. 73 DIAS, op. cit., p. 50.
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É nesse cenário que se identifica o papel da organização privada na
busca pelo desenvolvimento sustentável, e surge a responsabilidade social
empresarial como uma meta pela qual uma empresa buscará o diálogo com os
stakeholders – consumidores, empregados, acionistas, comunidade local, meio
ambiente etc. –74 a fim de alcançar práticas de gestão organizacional que integrem
a pluridimensionalidade da sustentabilidade, sobretudo, no que mais interessa ao
presente estudo, em sua dimensão social, conforme tratado adiante.
2 Responsabilidade social empresarial: o amadurecimento do instituto
e de suas dimensões
Compreendida a relação entre desenvolvimento sustentável,
sustentabilidade e responsabilidade social, bem como assentada a relevante
atribuição das sociedades empresárias nesse contexto, discorre-se agora de forma
mais específica sobre a responsabilidade social da empresa, destrinçando o
instituto para que se possa compreender o tratamento que lhe é dispensado nos
dias atuais, e as implicações – sobretudo no ambiente laboral – da referida
responsabilidade empresarial.
74 Consoante Freeman, stakeholder é “qualquer grupo ou indivíduo que pode afetar ou ser
afetado pelo êxito da empresa ao atingir seus objetivos”. FREEMAN, R. Edward. Strategic
management: a stakeholder approach. Boston: Pitman, 1984, p. 24.
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O instituto da responsabilidade social empresarial (ou corporativa) não
nasceu como um discurso uníssono entre os especialistas do tema. Ashley
leciona:75
Quem é contrário a ele se baseia nos conceitos de direitos da
propriedade (de Friedman) e na função institucional (de Leavitt).
Friedman argumentava que a direção corporativa, como agente dos
acionistas, não tem o direito de fazer nada que não atenda ao objetivo
de maximização dos lucros, mantidos os limites da lei. Agir diferente seria
uma violação das obrigações morais, legais e institucionais da direção da
corporação. O ponto central do argumento da função institucional está
em que outras instituições, como governo, igrejas, sindicatos e
organizações sem fins lucrativos, existem para atuar com base nas
funções necessárias ao cumprimento da responsabilidade social
corporativa. Gerentes de grandes corporações não têm competência
técnica, tempo ou mandato para tais atividades, que constituem uma
tarifa sobre o lucro dos acionistas (ASHLEY, 2019, p. 6).
Parece não restar dúvida de que o entendimento de Friedman se tornou
insustentável, pois vai de encontro ao comportamento que se exige de qualquer
instituição pela sociedade. De todo modo, a par de qualquer resistência, o instituto
da responsabilidade social passou a se disseminar a partir da década de 1970, seja
por meio de autores que investigam o tema a partir de uma abordagem
substantiva – derivada de princípios éticos e religiosos, ainda que haja despesas
improdutivas para a empresa – ou de uma abordagem instrumental – que
considera haver uma relação positiva entre a prática empresarial responsável e o
desempenho econômico da empresa.76
75 ASHLEY, Patrícia Almeida. Ética, responsabilidade social e sustentabilidade nos
negócios: (des)construindo limites e possibilidades. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p.
6-7. 76 ASHLEY, op. cit., p.7.
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Todavia, mesmo com o passar dos anos, definir responsabilidade social
empresarial ainda não é tarefa fácil.77 Ao longo do tempo, é certo que o conceito
foi se afastando cada vez mais da ideia pura e simples de filantropia, mas ainda
vem sendo assimilado de diferentes formas a depender do contexto (aspectos
culturais do local em que a empresa se instala, nível de desenvolvimento do país,
entre outros).
O que se pode perceber é que responsabilidade social empresarial
abarca hoje uma definição complexa, concebendo, porém, de forma consonante
entre os especialistas do tema, uma visão empresarial que interaja com todas as
partes com as quais a empresa se relaciona em suas atividades (stakeholders).
Alves explica que o foco central do instituto é o compromisso das empresas com
toda a sociedade, e não apenas com seus acionistas.78
No mesmo sentido, a lição de Dias elucida: 79
A RS é um conjunto de ideias e práticas da organização que fazem parte
de sua estratégia e que tem como objetivo evitar prejuízos e/ou gerar
benefícios para todas as partes interessadas (stakeholders) na atividade
77 Laasch e Conaway explicam que uma “pesquisa recente, ao resumir as definições
comuns de RSE, descobriu que nada menos que 37 definições distintas tinham sido
estabelecidas em fontes de teoria e prática, entre 1980 e 2003. A pesquisa, no entanto,
encontrou cinco elementos comuns na maioria daquelas definições. Na relação desses cinco
elementos apresentada a seguir, os percentuais entre parênteses indicam a frequência do
termo nas definições pesquisadas. 1. Pensamento no stakeholder (88%) 2. Dimensão social
(88%) 3. Dimensão econômica (86%) 4. Assumir responsabilidade em caráter voluntário
(80%) 5. Dimensão ambiental (59%). OLIVER, Laasch; CONAWAY, Roger N.
Fundamentos da gestão responsável: sustentabilidade, responsabilidade e ética. São
Paulo: Cengage Learning, 2015, p. 87. 78 ALVES, Marcos César Amador. Relação de trabalho responsável: responsabilidade
social empresarial e afirmação dos direitos fundamentais no trabalho. São Paulo: LTr,
2011, p. 36. 79 DIAS, op. cit., p. 20.
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da empresa (consumidores, empregados, acionistas, comunidade local,
meio ambiente etc.), adotando métodos racionais para atingir esses fins
e que devem resultar em benefícios tanto para a organização como para
a sociedade.
Embora haja ainda outras tantas definições para o referido instituto,
Dias sintetiza bem os pontos de convergência entre os elementos principais
atribuídos à responsabilidade social empresarial entre os diversos conceitos
doutrinários encontrados: a) compromisso social da empresa; b) decisão voluntária
(não regulada pela legislação); c) conduta ética; d) benefícios para a sociedade; e)
desempenho ambiental (importância do meio ambiente); f) adaptabilidade (ao
contexto de cada sociedade).
Apurar os pontos de convergência do conceito nos dá o norte sobre o
instituto em estudo. Mas se já é missão árdua conceituar responsabilidade social
empresarial, pô-la em prática é igualmente difícil. O instituto envolve uma série de
direitos e obrigações dos mais variados tipos de públicos (stakeholders). Os
acionistas visam principalmente ao lucro; os empregados anseiam por melhores
condições de labor e remuneração; os consumidores procuram melhor custo-
benefício, e assim sucessivamente. Conciliar todos esses fatores é tarefa complexa.
Por isso, o esquema visto a seguir, elaborado por Carroll,80 tem sido uma inspiração
constante para quem se debruça sobre o tema.
80 CARROLL, Archie B. The pyramid of corporate social responsibility: toward of
moral management of organizational stakeholder. In: Business Horizons, v. 34, n. 4, 1991,
p. 39-48.
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Em 1979, Archie Carrol lançou um modelo piramidal que se tornou base
de inúmeros programas de gestão empresarial desde então. Para o autor, a
responsabilidade social da empresa deve envolver as expectativas econômicas,
legais, éticas e filantrópicas que a sociedade deposita nas organizações em um
determinado período.
Na base da pirâmide, estariam as responsabilidades empresariais
econômicas: a empresa precisa ser lucrativa, tendo em vista que é unidade
econômica básica da sociedade, devendo produzir os recursos de que a sociedade
necessita e comercializá-los mediante lucro (desde que a um preço que garanta a
continuidade das atividades empresariais).
Logo acima na pirâmide de Carroll, encontram-se as responsabilidades
legais: a empresa deve agir conforme as regras básicas estabelecidas pela
sociedade. Neste patamar, as empresas procuram atingir suas metas econômicas
dentro das leis estatais.
Em seguida, vêm as responsabilidades éticas, que dizem respeito a
condutas empresariais que não são exigidas por lei, ou que não objetivam
primordialmente o aspecto econômico. É o fato de a empresa manter um
comportamento aceitável, agir da forma como a sociedade espera, fazendo o que
é certo e justo, ainda que não seja obrigada a adotar tal procedimento.
Finalmente, no topo da pirâmide, Carroll elencou as responsabilidades
filantrópicas, partindo da ideia de que a empresa deve ser uma empresa-cidadã,
comprometendo-se com programas que visem ao bem-estar humano. Neste
domínio, não há uma expectativa pré-definida da sociedade em relação à empresa,
mas o que se propõe é uma forma de ressarcimento à sociedade de parte do que
esta ofereceu à organização privada.
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Dessa forma, seria socialmente responsável a empresa que atendesse,
concomitantemente, às quatro responsabilidades elencadas: econômica, legal,
ética e filantrópica.
Em 1991, Carroll aprimorou o modelo inicial, incorporando-o sob o
prisma do atendimento aos stakeholders e da cidadania corporativa. Juntamente
a Schwartz81, denominaram o novo trabalho de: “Modelo dos três domínios da
responsabilidade social corporativa”. Em tal modelo, procuraram corrigir duas
inadequações: a primeira, deixar claro que não haveria hierarquia entre as
responsabilidades, tendo em vista que o modelo antigo, por ser piramidal, poderia
equivocadamente sugerir que a responsabilidade filantrópica seria a mais
importante das quatro; a segunda, corrigir a impressão inicial de que não existiria
interação entre as ditas responsabilidades.
Paralelamente a isso, a filantropia deixou de configurar como uma das
quatro responsabilidades, dentre outros motivos, pelo fato de ser bastante
complicado diferenciá-la, em muitos casos, da ética; bem como ser difícil identificar
se a verdadeira intenção da empresa, através da filantropia, não teria, em verdade,
objetivos econômicos.
Ante o exposto, os autores passaram a utilizar círculos indicativos das
três responsabilidades persistentes, projetando três diferentes domínios:
econômico, legal e ético. Assim resultou o novo modelo:82
81 SCHWARTZ, M. S.; CARROLL, A. B. Corporate social responsibility: a three-
domain approach. Business Ethics Quartely, v.13, n. 4, 2003, p. 503-550. 82 GAUDÊNCIO, Pedro Miguel Duarte. Análise das percepções e comportamentos dos
trabalhadores em função da responsabilidade social empresarial e seu desempenho
individual. 2009. 107 f. Dissertação (Mestrado em Estratégia Empresarial) – Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra, 2009. Disponível em:
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Figura 02 - Modelo dos três domínios da responsabilidade social
corporativa
No tocante ao primeiro domínio, Barbieri83 explica:
O campo econômico refere-se às atividades voltadas à produção de
impactos econômicos positivos, diretos e indiretos, entendidos como
maximização de lucro ou do valor das ações. Atividades para incrementar
as vendas ou para evitar litígios são exemplos de impactos econômicos
https://www.researchgate.net/figure/Figura-2-Modelo-de-3-Dominios-de-RSE-Fonte-
Schwartz-e-Carroll-2003_fig2_277072552 Acesso em: 05 nov. 2019. 83 BARBIERI, e CAJAZEIRA, op. cit., p. 46.
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diretos; ações para melhorar a imagem da empresa ou para elevar a
motivação dos empregados são exemplos de impactos indiretos.
Quanto ao domínio legal, Barbieri esclarece que este se refere “às
respostas dadas pela empresa com relação às normas e aos princípios legais”.84
Finalmente, sobre o domínio ético no novo modelo de Carroll, arremata
o autor:
O domínio ético refere-se às responsabilidades da empresa diante das
expectativas da população em geral e dos stakeholders relacionados,
envolvendo imperativos éticos domésticos e globais. Esse domínio da
responsabilidade social pode se dar mediante padrões éticos gerais. Um
deles, o padrão convencional, corresponde ao que se denomina na
filosofia moral de relativismo ético. São os padrões e as normas sociais
aceitas como necessárias para o funcionamento das empresas pelas
indústrias onde elas atuam, pelas associações profissionais e pela
sociedade, incluindo acionistas, clientes, empregados, competidores e
outros stakeholders. Como essas normas sociais variam entre diferentes
grupos sociais, uma forma de se contornar essa limitação é mediante a
elaboração e aplicação de códigos formais de ética. 85
Destarte, pode-se compreender a responsabilidade social empresarial
como o conjunto das práticas de gestão organizacional que visam beneficiar não
apenas os proprietários ou acionistas da organização, mas, também, a sociedade
em geral – aqui incluídos os empregados da empresa –, a partir das
84 Segundo Barbieri, Carroll atribui ao domínio legal três categorias: a) conformidade legal,
que pode ser acidental (a empresa acidentalmente atende à lei), restrita (se não existisse a
lei, a empresa não tomaria tal atitude), ou oportunista (operação onde as exigências legais
são frouxas ou lacunosas); b) evitação de litígios, que são ações voltadas para este fim; c)
antecipação, que são ações que se antecipam às mudanças legais. BARBIERI, e
CAJAZEIRA, op. cit., p. 47. 85 BARBIERI, op. cit., p. 47.
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responsabilidades (econômicas, legais e éticas) atribuídas às organizações privadas
pela sociedade.
Neste âmbito, como visto, o comprometimento da empresa com a
responsabilidade social necessita que as ações empresariais sejam pautadas na
busca da sustentabilidade em suas mais variadas dimensões, entre elas a dimensão
social, que possibilita o almejado modelo de governança que agasalha os direitos
fundamentais sociais, sem descuidar das demais responsabilidades da empresa,
inclusive econômicas.
3 Responsabilidade social corporativa no âmbito das relações de
trabalho: as implicações da dimensão social da sustentabilidade no ambiente
laboral
Finalmente, é na dimensão social da sustentabilidade que encontramos
a vedação a qualquer modelo de desenvolvimento (para que este se considere
sustentável) que seja excludente e desumano. Freitas explica:86
De nada serve cogitar da sobrevivência enfastiada de poucos,
encarcerados no estilo oligárquico, relapso e indiferente, que nega a
conexão dos seres vivos, a ligação de tudo e, mais grave, sabota a
condição imaterial do desenvolvimento.
Logo, não pode haver, sob a égide do paradigma da sustentabilidade,
espaço para a simplificação mutiladora, nem para a discriminação
negativa (inclusive de gênero, como realça o ODS 5, da Agenda 2030).
Válidas são apenas as distinções voltadas a auxiliar os desfavorecidos,
mediante ações positivas e intervenções empáticas e altruístas
86 FREITAS, op. cit., p. 65-66.
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(efetivamente recompensadoras) que permitem fazer frente à pobreza
(material e cognitiva), segundo métricas confiáveis, que contemplem os
efeitos oblíquos das mazelas socioambientais.
Na dimensão social da sustentabilidade, abrigam-se os direitos
fundamentais sociais, que requerem outro modelo de governança,
caracterizada por programas dirigidos à universalização do acesso aos
bens e serviços essenciais, com o suporte em evidências.
Além disso, Freitas encerra ressaltando que a dimensão social da
sustentabilidade reclama o “engajamento na causa do desenvolvimento que insere
a solidariedade reflexiva na sociedade em rede”, promovendo-se, ao fim e ao cabo,
dignidade. Não são mais admitidas as empresas que, almejando lucro, sacrificam
direitos humanos. Evitar o desenvolvimento empresarial a qualquer preço, evitar o
desenvolvimento pelo desenvolvimento, mas garantir um desenvolvimento que
mantenha uma preocupação social; essa é a razão de ser da dimensão social da
sustentabilidade.
Exemplo bastante ilustrativo dessa procura pelo desenvolvimento com
preocupação social, essência da dimensão social da sustentabilidade, pode ser
extraído da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, apresentada pela
Organização das Nações Unidas. 87 Na Agenda, entre os 17 objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) traçados, destaca-se o Objetivo 8: “Promover
o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e
87 “Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável.” Nações Unidas, 2015. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-
content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2020.
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produtivo e trabalho decente para todos.” Dentro deste mesmo objetivo, algumas
metas se destacam no tratamento dispensado à busca pelo pleno emprego:
8.3 Promover políticas orientadas para o desenvolvimento que apoiem as
atividades produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo,
criatividade e inovação, e incentivar a formalização e o crescimento das
micro, pequenas e médias empresas, inclusive por meio do acesso a
serviços financeiros.
8.5 Até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e trabalho decente
todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com
deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor.
8.6 Até 2020, reduzir substancialmente a proporção de jovens sem
emprego, educação ou formação.
8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado,
acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a
proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo
recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o
trabalho infantil em todas as suas formas.
8.8 Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho
seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os
trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas
em empregos precários.
Nesse contexto, Laís de Oliveira Penido88 defende a sustentabilidade da
empresa a partir da observância à valorização do trabalho humano, que
possibilitará a criação de empresas “humanamente sustentáveis”:
Os recursos humanos não devem ser utilizados e explorados
excessivamente de forma a comprometer a oportunidade desta e da
próxima geração de gozar de saúde e de bem estar, de afetar a
sustentabilidade do mercado e da capacidade de trabalho da população
88 PENIDO, Laís de Oliveira. Por um meio ambiente humano de trabalho sustentável.
Revista de direito do trabalho, São Paulo, SP, v. 41, n. 161 (jan./fev. 2015), p. 157-176.
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economicamente ativa, assim como da reposição de mão de obra dessa
população.
A ideia básica da administração é a de dirigir uma organização
conduzindo-a em uma direção compatível com as suas metas e objetivos.
No que diz respeito às organizações empresariais, essas metas são
fundamentalmente econômicas. A sustentabilidade em nível de negócios
é um conceito mais amplo e profundo do que o mero ganho financeiro.
Uma empresa só se torna sustentável através de um processo de
conquista do desenvolvimento econômico e humano, sendo este um
procedimento mais justo, criterioso, seguro e interdependente.
Por isso, a empresa sustentável é aquela que contribui para o
desenvolvimento criando, simultaneamente, valor social, humano,
econômico e do meio ambiente do trabalho, usando os recursos de que
dispõe com a habilidade de satisfazer as suas necessidades sem afetar a
saúde de seus empregados, comprometendo assim a viabilidade das
gerações atuais e futuras também satisfazerem as suas necessidades. Essa
concepção permitirá projetar organizações empresariais humanamente
sustentáveis.
Pois bem. Aprofundando-se a concepção sobre a dimensão social da
sustentabilidade, e rememorando-se a ideia de que a responsabilidade social
corporativa implica práticas de gestão empresarial que sejam pautadas na busca
da sustentabilidade em suas mais variadas dimensões, é fundamental se entender
quais condutas específicas de uma empresa fazem-na ser considerada uma
sociedade empresária efetivamente responsável sob o ponto de vista
propriamente social, ou seja, quais atitudes tornam-na uma organização privada
que atenda aos interesses não apenas de seus acionistas, mas, sim, de todos os
seus principais stakeholders, aí certamente incluindo-se seus empregados.89
89 Segundo Alves, “A valorização do trabalho humano está, fora de dúvida, em
diferenciado patamar de importância no que concerne às práticas de responsabilidade social
empresarial. [...] Não há dúvida de que, entre as diversas dimensões da responsabilidade
social empresarial, aquela que evidencia maior proeminência em razão, até mesmo, das
atividades corporativas em si, é a que se preocupa com o público interno e com as práticas
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Aliando-se as três responsabilidades recomendadas no “Modelo dos
três domínios da responsabilidade social corporativa” tal qual anteriormente visto,
a saber, as responsabilidades empresariais econômicas, legais e éticas, é possível
se implantar a responsabilidade social da empresa a partir do compromisso que
ela firma com seus empregados, implementando uma política inovadora no
sentido de tornar seus colaboradores seu principal ativo. No que mais interessa ao
presente estudo, Dias sugere, como mecanismo de adoção da responsabilidade
social empresarial:90
- melhoria das condições de trabalho: estabelecer um
compromisso transparente com a melhoria das condições de trabalho,
com o desenvolvimento profissional e com o seu bem-estar; indo além
do respeito pela legislação pertinente que regula as relações trabalhistas
no que se refere à contratação, segurança e saúde no posto de trabalho;
deste modo, ficará demonstrado que a empresa valoriza as pessoas e leva
em consideração sua contribuição para o sucesso do negócio;
- aumentar o envolvimento dos trabalhadores com a empresa: isso
permite à organização obter algo mais dos funcionários, que pode surgir
na forma de ideias, maior compromisso e lealdade, que no seu conjunto
aumentará a eficiência. As empresas são basicamente organizações
humanas que dependem de uma rede social e de relações internas e
externas vitais para a sua existência, e que lhes permitirá levar a
prosperidade para toda a sociedade. De como são administradas essas
relações no ambiente de trabalho dependerá o êxito da empresa;
- formação: fomentar e facilitar a formação profissional contínua;
trabalhistas que adotam seus fornecedores. O princípio da dignidade da pessoa humana
exige, de modo basilar, a concepção da proteção do trabalho. Do trabalho digno. [...] A
afirmação dos direitos fundamentais do trabalho deve ser contemplada como pressuposto
primeiro da responsabilidade social empresarial. Em idêntico sentido, com reverberação
ainda mais intensa, a eliminação absoluta do trabalho indigno deve ser preconizada”.
ALVES, op. cit., p. 45-46. 90 DIAS, op. cit., p. 76-77.
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Além disso, no Brasil, a ABNT NBR 1600191, que implantou um sistema
de gestão que permite a certificação e que serviu de base para o desenvolvimento
do Programa Brasileiro de Certificação em Responsabilidade Social (PBCRS) 92 ,
estabelece requisitos mínimos necessários a uma gestão organizacional
socialmente responsável, dentre os quais estão, por exemplo, no que concerne à
relação entre os titulares da sociedade empresária e seus empregados: a)
transparência; b) comportamento ético; c) respeito pelos interesses das partes
interessadas; d) respeito aos direitos humanos; e) promoção do desenvolvimento
sustentável. A mesma norma estabelece, dentre os objetivos e metas a serem
traçados pela organização: a) respeito aos direitos do trabalhador, incluindo o de
livre associação, de negociação, a remuneração justa e a benefícios básicos, bem
como o combate ao trabalho forçado; b) respeito aos direitos da criança e do
adolescente, incluindo o combate ao trabalho infantil; c) compromisso com o
desenvolvimento profissional; d) promoção da saúde e da segurança.
Nota-se, portanto, que a responsabilidade social guia a empresa na
busca de práticas de gestão organizacional que promova melhores condições de
trabalho a seus empregados, ultrapassando as garantias básicas asseguradas pela
legislação em vigor e indo além, valorizando seus colaboradores; investindo,
91 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR ISO 16001:
Responsabilidade social – Sistema da gestão. Rio de Janeiro: ABNT, 2011. 92 “O Programa Brasileiro de Certificação em Responsabilidade Social (PBCRS) é um
processo voluntário, no qual a organização busca demonstrar aos clientes e à sociedade,
por meio de uma avaliação de terceira parte, que o sistema de gestão atende aos
princípios da responsabilidade social.” Disponível em:
<http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/programa_certificacao.as
p> Acesso em: 17 jan. 2019.
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inclusive, em formação contínua do profissional que integre o quadro de pessoal
da sociedade empresária.
Neste contexto é que se garante o modelo de governança que agasalha
os direitos fundamentais sociais do trabalhador, aí incluso o direito social ao
trabalho digno, até mesmo naqueles casos em que a empresa, por exemplo, está
legalmente liberada para irrestritamente se utilizar de qualquer relação
empregatícia precarizante. Dessa forma, retomando uma de nossas indagações
iniciais, é possível se concluir que a dimensão social da sustentabilidade é, sim,
capaz de oferecer uma solução digna a uma relação empregatícia tendencialmente
precarizada pelos interesses do capital.
Considerações finais
Como caminho traçado na busca de uma solução viável a fim de se
aliarem os direitos das duas partes da relação empregatícia, nas diferentes
situações que põem em conflito os interesses do trabalhador e do empregador,
até mesmo quando a empresa já encontra, na própria lei, a autorização para adotar
práticas trabalhistas precarizantes, o presente estudo analisou as relações
empregatícias dentro do campo da sustentabilidade do ambiente laboral, com
base na análise aprofundada do instituto do desenvolvimento empresarial
sustentável, que contempla a responsabilidade social empresarial como
importante etapa desse processo através do qual a empresa busca práticas de
gestão que vão além de suas obrigações legais, buscando criar, simultaneamente,
valor não apenas econômico, mas, também, social e humano.
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Conclui-se que é da responsabilidade social empresarial que se extrai a
obrigação que a empresa possui de adotar, na prática, uma gestão que oferte
melhores condições laborais a seus trabalhadores. Aliando-se as responsabilidades
empresariais econômicas, legais e éticas, é possível se implantar a responsabilidade
social da empresa, por exemplo, a partir da aliança que ela firma com seus
empregados, buscando a melhoria das condições de trabalho, o compromisso com
o desenvolvimento profissional, com o bem-estar do empregado e com sua
valorização; o incentivo ao envolvimento dos trabalhadores com a empresa; a
observância aos direitos humanos; o respeito aos direitos do trabalhador, inclusive
à remuneração justa; ultrapassando-se, em todos os casos, a simples observância
à legislação trabalhista. Assim, a empresa estará cumprindo com seu papel, com o
papel destinado às organizações privadas, e garantirá o desenvolvimento
econômico acompanhado da criação de valor não apenas econômico, mas,
também, social.
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TRABALHO DOCENTE E SAÚDE: UM ESTUDO COM PROFESSORES DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO,CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE
BRASÍLIA
Maria Marclane Bezerra Vieira
Mestra em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Instituto de Educação de
Brasília (IESB); especialista em auditoria e docência do ensino superior; docente no
Instituto Federal de Brasília (IFB).
Any Ávila Assunção
Doutora e mestra em sociologia jurídica pela Universidade de Brasília (UnB); graduada
em Direito pelo UNICEUB; pesquisadora colaboradora no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB); professora e coordenadora do Curso
Bacharelado em Direito e do Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos
Reivindicatórios do Centro Universitário IESB (PPG-MPDS); advogada atuante na área de
Direito Público, Direitos Sociais e Direitos Humanos, com ênfase nos gênero, violência,
sistema judicial e emancipação social.
Resumo
O presente estudo investigou como os docentes dos Campi Brasília e São Sebastião do
Instituto Federal de Brasília-IFB avaliam a relação entre condições de trabalho e saúde, em
suas ambiências laborais. Participaram do estudo 107 docentes efetivos, sendo 73 do
Campus Brasília e 34 de São Sebastião. Tratou-se de um estudo descritivo com abordagem
quantitativa. Como instrumento de coleta de dados foi utilizado o questionário, construído
por meio da plataforma de pesquisa GoogleForms, com base na Escala de Avaliação do
Contexto de Trabalho e na Escala de Avaliação de Saúde Organizacional. Os resultados
mostraram que as condições de trabalho podem impactar a saúde dos docentes, e estão
fortemente relacionadas as dimensões ‘flexibilidade e adaptabilidade a demandas
externas’ e ‘integração de pessoas e equipes’, que compõem a escala de avaliação de
saúde organizacional.
Palavras-chaves: Docentes, Condições de Trabalho, Saúde.
TEACHING WORK AND HEALTH: A STUDY WITH TEACHERS FROM THE FEDERAL
INSTITUTE OF EDUCATION, SCIENCE AND TECHNOLOGY OF BRASÍLIA
Abstract
The present study investigated how teachers at Campi Brasília and São Sebastião at the
Federal Institute of Brasília-IFB evaluate the relationship between work conditions and
health, in their work environments. A total of 107 permanent professors participated in the
study, 73 from Campus Brasília and 34 from São Sebastião. It was a descriptive study with
a quantitative approach. As a data collection instrument, the questionnaire was used, built
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using the GoogleForms research platform, based on the Work Context Assessment Scale
and the Organizational Health Assessment Scale. The results show that working conditions
can impact the health of teachers, and are strongly related to the dimensions ‘flexibility
and adaptability to external demands’ and ‘integration of people and teams’, which make
up the scale of organizational health assessment.
Keywords: Teachers, Working Conditions, Health.
Introdução
O trabalho docente pode ser definido como o conjunto de ações
pedagógicas, materiais e espirituais, que o homem, enquanto indivíduo e
humanidade desenvolvem para transformar a natureza, a sociedade, os outros
homens e a si próprio, com a finalidade de produzir as condições necessárias a sua
existência (KUENZER, 2000).
No entendimento de Tardif e Lessard (2005) à docência pode ser
caracterizada como uma atividade de trabalho desenvolvida em organizações em
que os professores interagem com outros indivíduos. Pode-se compreender o
trabalho dos professores não somente pelos aspectos técnicos, específicos às
tarefas a que são chamados, mas também, pelo ângulo das atividades emocionais
e interacionais envolvidas, pelas vivências interativas que estão imersos a todo o
momento.
Nessa perspectiva, entender a profissão docente pressupõe compreender
a complexidade do processo de ensino-aprendizagem, pois, segundo Tardif (2002),
o objeto do trabalho docente são os seres humanos que possuem características
peculiares, ou seja, o ensino dirige-se a seres humanos que, são ao mesmo tempo,
seres individuais e sociais.
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Para Tardif (2002), o docente realiza suas atividades com sujeitos que são
individuais e heterogêneos, que possuem diferentes histórias, ritmos, interesses,
necessidades e afetividades.
Outra característica destacada por Tardif (2002) é a dimensão afetiva
existente no ensino que pode funcionar como elemento facilitador ou bloqueador
do processo de ensino aprendizagem. O autor ressalta que uma boa parte do
trabalho docente é de cunho afetivo, emocional, baseando-se em emoções, em
afetos, na capacidade não somente de pensar nos alunos, mas igualmente de
perceber e sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios
bloqueios afetivos.
Ainda de acordo com o mesmo autor, a prática pedagógica dos docentes
constitui-se em gerenciar relações sociais que envolvem tensões, dilemas,
negociações e estratégias de interação. O professor precisa trabalhar com grupos,
mas também tem de se dedicar aos indivíduos; deve ministrar seu conteúdo,
porém de acordo com os alunos, que vão assimilá-lo de maneiras diversas, deve
agradar aos alunos, mas sem que isso se transforme em favoritismo, deve motivá-
los, sem paparicá-los e deve avaliá-los, sem excluí-los (TARDIF, 2002).
São atribuídas aos docentes atividades como ministrar aulas, orientar
pesquisas, acompanhar o desenvolvimento dos alunos, na perspectiva de avaliá-
los no momento apropriado. É responsabilidade do professor a tarefa, cada vez
mais complexa, de atestar ou não o aproveitamento do aluno durante o período
letivo e se o mesmo está apto a seguir em frente e assimilar outros conteúdos.
Considerando os aspectos supramencionados, a presente pesquisa foi
realizada no âmbito da administração pública federal e autárquica, estando
inserida no contexto organizacional do Instituto Federal de Educação, Ciência e
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Tecnologia de Brasília – IFB,93 instituído pela Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de
2008, regido por um Estatuto aprovado em agosto de 2009 (IFB, 2009).
Os docentes dos Institutos Federais atuam em diferentes modalidades de
ensino, incluindo o ensino médio integrado, o ensino técnico subsequente, os
cursos tecnológicos superiores, as licenciaturas e pós-graduações, além de
estarem inseridos no âmbito da pesquisa e extensão. Por isso, para Oliveira e Cruz
(2017), tais Institutos possuem uma institucionalização diferenciada, dedicada a
promover a integração e a verticalização da educação básica à educação
profissional.
Nessa perspectiva, buscou-se responder a seguinte questão: Em que
medida a saúde dos docentes está relacionada com as condições de trabalho,
considerando as relações laborais estabelecidas pelos docentes dos Cursos
Superiores do Instituto Federal de Brasília-IFB, Campi Brasília e São Sebastião?
O presente estudo tem por objetivo geral identificar como a saúde dos
docentes está relacioanda com as suas condições de trabalho, buscando
compreender se o ambiente físico e os demais elementos/infraestrutura material e
imaterial necessários ao planejamento e a execução do trabalho docente são
adequados e satisfatórios para o desempenho da atividade laboral docente; como
também, se a saúde no trabalho é adequada, satisfatória, saudável, e não
ensejadoras de enfermidades ou adoecimentos para os docentes.
93 Atualmente o IFB conta com 10 Campi distribuídos pelo Distrito Federal, nas
cidades de Brasília, Ceilândia, Estrutural, Gama, Planaltina, Riacho Fundo, Samambaia,
São Sebastião, Taguatinga e Recanto das Emas.
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Não só as condições de trabalho, mas todo o contexto de trabalho e a
saúde dos docentes têm suscitado o interesse de pesquisadores das mais
diferentes áreas do conhecimento como sociólogos, psicólogos, epidemiologistas,
ergonomistas e outros profissionais, uma vez que, o docente é um profissional
essencial para a sociedade, pois atuam na formação intelectual, no processo de
ensino e aprendizagem, sendo responsáveis pela formação dos vínculos sociais,
estimulando a autonomia e a responsabilidade por meio de atividades teórico-
práticas, intelectuais e administrativas (KOETZ, 2011).
Assim, pode-se dizer que o exercício da profissão docente exige o domínio
de determinados saberes, que são resultados das experiências, das convicções, das
crenças desses docentes, como também do compromisso que estabelecem com
seus afazeres/atribuições e de suas interpretações acerca dos alunos.
Procedimentos metodolódigos
Quanto aos objetivos esta pesquisa caracteriza-se como bibliográfica e
documental. O estudo bibliográfico teve início com a escolha do objeto de estudo,
e em seguida, a busca por publicações já existentes em periódicos, artigos
científicos, livros, estudos de caso e dissertações.
A pesquisa bibliográfica tem por objetivo conhecer e analisar as principais
contribuições teóricas existentes sobre um determinado tema ou problema
(KÖCHE, 2015).
No que diz respeito à pesquisa documental, além das consultas à
coordenação de gestão de pessoas de cada Campus, foi feita uma busca no acervo
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documental interno do IFB que possui uma fonte rica de dados relacionados ao
contexto de trabalho dos docentes.
Segundo Figueredo e Souza (2008) a pesquisa documental é a análise de
documentos que ainda não receberam um tratamento analítico, ou seja, não foi
objeto de publicação tais como arquivos, fontes estatísticas, escritos oficiais de
todos os gêneros, acervos em geral, documentação de imagens, objetos, etc.
Quanto a abordagem, esta pesquisa caracteriza-se como quantitativa, que
segundo Richardson et al. (2015), o método quantitativo representa a intenção de
garantir a precisão dos resultados, evitar distorções de análise e interpretação para
que haja uma margem de segurança quanto às inferências. É frequentemente
aplicado nos estudos descritivos, naqueles que procuram descobrir e classificar a
relação entre variáveis, bem como nos que investigam a relação de causalidade
entre fenômenos.
A coleta de dados foi realizada mediante aplicação de questionário
construído na plataforma de pesquisa do Google (GoogleForms) na qual foram
registradas as respostas dos docentes que compunham a população da pesquisa.
Como instrumentos de avaliação foram utilizadas a ‘Escala de Avaliação
do Contexto de Trabalho’, elaborada por Ferreira e Mendes (2013) e a ‘Escala de
Avaliação de Saúde Organizacional’, elaborada por Gomide Junior e Fernandes
(1999).
Participaram da pesquisa 107 docentes, conforme descrito: a) 64 docentes
do sexo feminino e 43 do sexo masculino; b) a maioria possui mestrado (50
docentes); c) quanto ao tempo de docência, 55 professores possuem mais de 10
anos de docência; e d) 29 docentes são efetivos no IFB no intervalo de 5 a 8 anos.
Para realizar-se as análises descritivas das estatísticas dos dados
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(frequência percentual, média e desvio padrão) e a correlação dos mesmos
(coeficiente de correlação de Spearman), acerca dos‘condiçõesde trabalho’ e a
‘saúde dos docentes’, utilizou-se o SPSS (Statistical Package for the Social
Sciences). 94
Análise e discussão dos resultados da pesquisa
Consoante às condições de trabalho, no entendimento de Ferreira (2016),
essas devem ser adaptadas às atividades do trabalhador, ou seja, adaptação do
trabalho a quem trabalha. Não basta fornecer suporte organizacional para o
alcance dos objetivos prescritos, é crucial que exista uma adequação com o
exercício das atividades de cada trabalhador.
O referido autor ressalta ainda que as condições de trabalho saudáveis,
que propiciam, efetivamente, qualidade de vida ao trabalhador devem ser
apropriadas, convenientes, oportunas e ajustadas às situações de trabalho. Devem
ser elaboradas considerando o perfil dos trabalhadores/docentes, das tarefas a
serem desenvolvidas e do próprio contexto de trabalho que exigem elementos
diferenciados para cada tipo de atividade laboral.
Na profissão docente, como ocorre a interação entre o professor e o
aluno, além de outros atores sociais envolvidos (como coordenadores de curso e
pessoal de apoio) as relações/condições de trabalho devem consistir em manter,
94 O SPSS é um software de análise estatística de dados que dispõe de ferramentas essenciais para
cada etapa de um processo analítico, apresenta técnicas integradas para preparar os dados para análises,
gerando relatórios de funcionalidades e os devidos gráficos.
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transformar ou propiciar melhorias na condição humana dos indivíduos (TARDIF;
LESSARD, 2005).
Na Tabela 1 são apresentadas todas as médias 95, desvios padrão 96 e
coeficientes de variação 97 dos itens que compõem a dimensão ‘condições de
trabalho’ da Escala de Avaliação de Contexto de Trabalho98, em conformidade
com as respostas dos docentes dos Campi Brasília e São Sebastião do IFB.
Segundo Ferreira e Mendes (2013), as ‘Condições de Trabalho’ consistem
nos elementos que expressam os componentes presentes no local de trabalho,
caracterizando a infraestrutura e o apoio institucional.
95 A média é calculada somando-se todos os valores de um conjunto de dados e dividindo-se pelo
número de elementos deste conjunto, é uma medida sensível aos valores da amostra (HAIR, 2009).
96 O desvio padrão é uma medida de dispersão que indica o quanto o conjunto de dados é uniforme,
quando o desvio é baixo quer dizer que os dados do conjunto estão mais próximos da média (HAIR, 2009).
97 O coeficiente de variação é utilizado quando se deseja comparar a variação de conjuntos de
observações que diferem na média ou são medidos em grandezas diferentes (HAIR, 2009).
98 A ‘Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho’ é composta por três dimensões
analíticas e interdependentes: ‘condições de trabalho’, ‘organização de trabalho’ e
‘relações sócios profissionais’(FERREIRA e MENDES, 2013).
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Tabela 1
Tabela de média, desvio padrão e coeficiente de variação (CV) referentes a dimensão
Condições de Trabalho nos Campi Brasília e São Sebastião (BRASIL,2019)
Itens Média Desvio
Padrão
Coeficiente
de Variação
Classificação
CT CDT
10. As
condições de
trabalho são
precárias.
2,95 1,067 0,361
Crítico
CT CDT
11. O
ambiente físico
é
desconfortável.
3,29 1,124 0,341
Crítico
CT CDT
12. Existe
barulho no
ambiente de
trabalho
2,85 1,139 0,399
Crítico
CT CDT
13. O
mobiliário
existente no
local de
trabalho é
inadequado.
3,27 1,112 0,340 Crítico
CT CDT
14. Os
instrumentos
de trabalho são
insuficientes
para realizar as
tarefas
2,78 1,067 0,383
Crítico
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CT CDT
15. O posto de
trabalho é
inadequado
para realização
das tarefas.
3,11 1,058 0,340
Crítico
CT CDT
16. Os
equipamentos
necessários
para a
execução das
tarefas são
precários
2,89 1,049 0,362
Crítico
CT CDT
17. O espaço
físico para
realizar o
trabalho é
inadequado.
3,34 1,072 0,320
Crítico
CT CDT
18. As
condições de
trabalho
oferecem risco
à segurança
física das
pessoas.
3,81 1,083 0,284
Satisfatório
CT CDT
19. O material
de consumo é
insuficiente.
2,76 1,080 0,391
Crítico
FONTE: IFB (dados coletados nos Campi Brasília e São Sebastião no período de 09/09/2019 a 04/10/2019)
Nesse sentido, na dimensão supracitada, o item com maior média ‘3,81’
é referente às condições de trabalho oferecerem risco à segurança física das
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pessoas. Considerando que, na análise da mencionada escala, 1 significa ‘sempre’
e 5 significa ‘nunca’, depreende-se que, na compreensão dos docentes, as
condições de trabalho não oferecem riscos à segurança física com frequência –
sendo este um resultado satisfatório e não ensejador de risco de adoecimento, é,
também, um item que não apresenta homogeneidade nas respostas99, diante do
coeficiente de variação 100 de 0,284.
Segundo Melo (2008) o meio ambiente do trabalho adequado e com
condições seguras é um dos mais importantes e fundamentais direitos do cidadão
trabalhador, in casu, os docentes. O autor ressalta ainda que o desrespeito às
condições de trabalho seguras provoca agressão a toda sociedade.
Segundo Tardif e Lessard (2014) consideram-se condições de trabalho, o
conjunto de variáveis que permitem caracterizar dimensões quantitativas do
ensino como o tempo de trabalho, o número de horas de presença obrigatória
em classe, o número de alunos por classe, o salário dos professores etc. Porém,
não só de dados quantitativos se fazem essas condições; tais dados e estatísticas
são meios pelos quais as instituições chegam a seus fins.
O item da referida dimensão, que apresenta menor média ‘2,76’ versa
sobre a insuficiência do material de consumo. Na atividade docente, os materiais
de consumo abrangem desde pincéis, papéis, computadores, dentre outros que
se fazem necessários para a realização das atividades de ensino (TARDIF;
LESSARD, 2005). Tal média indica um resultado mediano, assinalando que não há
99 O coeficiente de variação é interpretado como a variabilidade dos dados em relação à
média, quanto menor o esse coeficiente mais homogêneo é o conjunto de dados (HAIR,
2009).
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insuficiência de material com muita frequência; não é um resultado negativo e
não é, também, satisfatório; o coeficiente de variação de 0,391 sugere existir uma
heterogeneidade nas respostas dos docentes.101
Depreende-se dos resultados acima expostos, que na dimensão
‘condições de trabalho’ as médias encontram-se entre ‘2,76’ e ‘3,8’ –
considerando que ‘1’ significa sempre e ‘5’ significa nunca –, o que significa dizer
que a percepção dos docentes acerca das condições de trabalho,
preponderantemente, apresenta um resultado mediano 102 , ou seja crítico,
indicando risco de adoecimento.
Assim, conforme o exposto, dos ‘10’ itens que compõem a dimensão
‘condições de trabalho’, ‘9’ itens foram avaliados pelos docentes como críticos e
apenas ‘1’ item como satisfatório. Então, ancorando-se nos parâmetros
utilizados para as análises, as condições de trabalho apontam a possibilidade de
riscos de adoecimento.
Já a ‘Escala de Saúde no Trabalho’ é composta por duas dimensões:
‘integração de pessoas e equipes’ e ‘flexibilidade e adaptabilidade as demandas
externas’.
A dimensão ‘Integração de Pessoas e Equipes’, composta por 20 questões,
é, segundo Siqueira (2008), responsável pelas crenças do servidor/docente de que
o órgão é capaz de estimular o compartilhamento de objetivos organizacionais e
101 O coeficiente de variação é interpretado como a variabilidade dos dados em relação à
média, quanto maior o esse coeficiente mais heterogêneo é o conjunto de dados
(HAIR,2009). 102 O resultado mediano, indica uma de “situação-limite”, potencializando o mal-estar no trabalho e o risco
de adoecimento.
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a integração de seus membros às suas equipes de trabalho, proporcionando bem-
estar e saúde.
Na dimensão supramencionada, verificou-se que no item ‘No seu
campus as pessoas trabalham unidas para que a instituição alcance seus
objetivos’, a menor média ‘2,33’, indicando que os docentes não concordam
com a existência desse fator (união/integração) no ambiente de trabalho em
análise. O coeficiente de variação de ‘0,428’ sugere que não há homogeneidade
nas respostas apresentadas pelos docentes.
Nesse sentido, é de fundamental importância que nas organizações,
inclusive nas de ensino, existam alianças com e entre seus trabalhadores,
objetivando melhor integração e comprometimento dos mesmos, pois as
pessoas necessitam de coligações e parceiras para ampliar seus conhecimentos
(BAÍA et al., 2006).
A maior média observada ‘3,49’ nessa dimensão ocorreu no item ‘No
seu campus as pessoas encaram seus trabalhos como algo importante’, o que
indica uma certa dúvida dos docentes acerca do fator observado. O fato de tal
resultado apontar uma média ‘mediana’, não identifica nem concordância nem
discordância; o coeficiente de variação de ‘0,276’ indica uma heterogeneidade
nas respostas apresentadas pelos docentes. Pode-se inferir que a integração dos
docentes às suas equipes de trabalho, não é, portanto, tão boa.
A dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade a Demandas Externas’ diz
respeito às crenças do servidor/docente de que o órgão possui políticas e
procedimentos de trabalho flexíveis e voltados para a adaptação da organização
às demandas do ambiente externo (SIQUEIRA, 2008).
O item ‘No seu campus as políticas são flexíveis, podendo adaptar-se
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rapidamente às necessidades de mudanças’ apresentou a menor média
observada ‘2,35’. Tal resultado permite dizer que os docentes não concordam
com a existência de políticas de flexibilidade, cujo coeficiente de variação sendo
de ‘0,441’, o que sugere uma heterogeneidade nas respostas dos docentes.
A maior média observada ‘2,77’ nessa dimensão ocorreu no item ‘No
seu campus procura-se continuamente as inovações’. Contudo, em razão do
coeficiente de variação ter apontado resultado de 0,276, verifica-se uma
homogeneidade maior nas respostas dos docentes no sentido de não
concordarem com a existência dessa característica no contexto da instituição.
Cabe ressaltar que, as inovações consistem em introduzir em um
determinado meio algo que foi inventado, descoberto, criado anteriormente.
Seu papel constitui-se em integrar, assimilar, adaptar novidades importadas de
outros lugares, com o objetivo de melhorar aquilo que existe, de introduzir em
dado contexto um aperfeiçoamento, um melhor saber, um melhor fazer e um
melhor ser (MITRULIS, 2002).
Com o objetivo de responder a principal questão dessa pesquisa, na
Tabela 2 apresenta-se, a correlação 103 existente entre a saúde e as condições de
trabalho dos docentes, dos Campi Brasília e São Sebastião.
Tabela 2
Correlação entre Condições de Trabalho e Saúde nos Campi Brasília e São
Sebastião – Correlação de Spearman (BRASIL,2019)
103 A análise de correlação, compreende a verificação de dados amostrais para saber se e como
duas ou mais variáveis estão relacionadas umas com as outras numa dada população (HAIR,2009).
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Saúde no
Trabalho -
Integração de
Pessoas e Equipes
Saúde no Trabalho -
Flexibilidade e Adaptabilidade
a Demandas Externas
Condições
de Trabalho
,341** ,419**
**. A correlação é significativa no nível 0,01 (2 extremidades).
*. A correlação é significativa no nível 0,05 (2 extremidades).
FONTE: IFB (dados coletados nos Campi Brasília e São Sebastião no período de 09/09/2019 a 04/10/2019)
A maior correlação encontarada foi (‘0,419’), atinente à dimensão
‘Condições de Trabalho’, que compõe a ‘Escala de Contexto de Trabalho’, e,
também, à dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade a Demandas Externas’
referente à ‘Escala de Avaliação de Saúde Organizacional’. Tal resultado indica que
as condições de trabalho impactam a saúde dos docentes, pois, quando a
dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade’ não é observada/ofertada no ambiente
laboral, as possibilidades de vulnerabilidade/fragilidade no campo da saúde são
afetadas.
Associado ao exposto, nas lições de Martinez (2002), a saúde pode ser vista
como o resultado de interações dinâmicas e complexas determinadas pelos
domínios sociais, mentais, históricos e políticos, onde o trabalho tem caráter
central. Pode-se dizer que quanto mais o docente estiver inserido em um contexto
flexível e adaptável, mais saúde esse ambiente vai proporcionar ao trabalhador.
Por fim, o último coeficiente de forte correlação observado foi de 0,341 na
dimensão ‘Condições de Trabalho’, que integra a ‘Escala de Contexto de Trabalho’
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e a dimensão ‘Integração de Pessoas e Equipes’ concernente à ‘Escala de Avaliação
de Saúde Organizacional’. Este resultado indica que quanto mais adequadas as
condições de trabalho, maior a integração entre os docentes e as equipes, e,
consequentemente mais saúde.
Importante enfatizar que condições e/ou recursos inadequados
oferecidos aos docentes podem constituir um agravante para a saúde desses
profissionais, com impactos/desdobramentos no contexto educacional/processo
ensino-aprendizagem. É que, uma vez instalados os problemas de saúde, o
docente tende a afastar-se do ambiente de trabalho; tais intercorrências podem
existir quando a integração entre os grupos e equipes não se apresentam de
maneira saudável e harmônica.
Considerações finais
A pesquisa realizada visou atender ao objetivo principal de identificar
como a saúde dos docentes está relacionada com as condições de trabalho,
considerando as relações laborais estabelecidas nos Cursos Superiores do Instituto
Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Brasília-IFB, dos Campi Brasília e São
Sebastião.
Para se alcançar tal objetivo, delineou-se, inicialmente, compreender se o
ambiente físico e os demais elementos/infraestrutura material e imaterial
necessários ao planejamento e a execução do trabalho docente são adequados e
satisfatórios para o desempenho da atividade laboral docente.
Nesse sentido, analisou-se as condições de trabalho aplicando-se a ‘Escala
de Avaliação de Contexto de Trabalho’, que é composta de três dimensões, sendo
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a primeira justamente composta de 10 questões acerca das ‘condições de
trabalho’. O resultado demonstrou médias entre ‘2,76’ e ‘3,8’, indicando que na
percepção dos docentes acerca das condições de trabalho um resultado mediano
que indica risco de adoecimento.
Os resultados alcançados, segundo as percepções dos docentes nos Campi
estudados, acerca das condições de trabalho, levam a inferir que, de maneira geral,
o cenário laboral em que atuam, fragiliza/vulnerabiliza a saúde dos docentes, uma
vez que as médias encontradas, em sua maioria, indicam riscos de adoecimento.
No que diz respeito à saúde, utilizou-se a ‘Escala de Avaliação de
Saúde no Trabalho’, composta por duas dimensões. A primeira dimensão
‘integração de pessoas e equipes’ apresentou médias fatoriais entre ‘2,33’
e ‘3,49’, indicando que de maneira geral esses fatores não são observados
pelos docentes, o que indica que a integração dos docentes às suas equipes
não é boa, não propiciando bem-estar e saúde.
Na segunda dimensão ‘flexibilidade e adaptabilidade a demandas
externas’ as médias fatoriais encontram-se entre ‘2,35’ e ‘2,77’, assinalando
que os docentes não percebem procedimentos de trabalho flexíveis e voltados
para a adaptação da organização às demandas do ambiente externo.
A maior correlação foi encontrada entre a dimensão ‘Condições de
Trabalho’ e a dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade a Demandas Externas’
referente à ‘Escala de Avaliação de Saúde Organizacional’ com um coeficiente de
‘0,419’. Tal resultado indica que as condições de trabalho impactam a saúde dos
docentes, pois, quando a dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade’ não é
observada/ofertada no ambiente laboral, as possibilidades de
vulnerabilidade/fragilidade no campo da saúde são afetadas.
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OS PROCESSOS DE GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E SUAS
INFLUÊNCIAS NOS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO
André Luiz Batista da Costa
Mestre em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios. Especialista em Direito Público e
em Direito Constitucional de Administrativo. Formado em Direito e Comunicação Social.
Professor da Escola Superior de Polícia – ESP – Policia Federal
Douglas Henrique Marin
Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); mestre em Direito
(Ciências jurídico-filosóficas) pela Universidade do Porto (UP-Portugal); especialista em
Direito das Obrigações pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências
Jurídicas pela Universidade do Porto (UP-Portugal); graduado em Direito pela
Universidade de São Paulo (USP); Procurador Federal e coordenador na Subchefia de
Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República; professor na graduação e
pós-graduação em Direito no Centro Universitário IESB.
Resumo
Em que pese os avanços do Estado Brasileiro na implementação e fiscalização de políticas
públicas, ainda são muitos os problemas a serem enfrentados pelos gestores públicos na
condução das ações estatais. Nesse sentido o presente artigo buscará discutir a gestão
pública das ações afirmativas do Estado traçando um paralelo entre as inconsistências do
modelo de gestão brasileira, os erros cometidos pelos gestores públicos na condução do
Estado e a busca cada vez maior, por parte do público alvo das políticas públicas, das vias
judiciais para a garantia dos direitos fundamentais sociais, omitidos pelo Estado. Com foco
nos processos de formação das políticas públicas em um determinado espaço temporal,
analisaremos alguns erros encontrados em ações estatais, constantes de relatórios de
fiscalização da Controladoria Geral da União, dentre outros, mostrando os atropelos dos
processos de gestão da coisa pública buscando demonstrar as possíveis influências da
formação do Estado Federal Brasileiro e seu modelo cultural e político na condução, por
vezes, desastrosa do próprio Estado.
Palavras-chave: Políticas públicas; Gestão pública; Princípio da Eficiência; Estado
Federado.
Abstract
Despite the advances of the Brazilian State in the implementation and inspection of public
policies, there are still many problems to be faced by public managers in conducting state
actions. In this sense, this article will seek to discuss the public management of the State's
affirmative actions, drawing a parallel between the inconsistencies of the Brazilian
management model, the mistakes made by public managers in conducting the State and
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the increasing search by the target public of the public policies, judicial channels to
guarantee fundamental social rights, omitted by the State. With a focus on the processes
of forming public policies in a given time frame, we will analyze some errors found in state
actions, contained in inspection reports of the Federal Comptroller General, among others,
showing the disruptions of the public affairs management processes seeking to
demonstrate the possible influences of the formation of the Brazilian Federal State and its
cultural and political model in the sometimes disastrous conduct of the State itself.
Keywords: Public policy; Public administration; Principle of Efficiency; Federated State.
Introdução
Nos últimos anos, o Brasil vem experimentado várias mudanças em seus
processos de gestão pública, sobretudo nas ações afirmativas do Estado na área
da saúde, com a implementação de novas metodologias e procedimentos
baseados na experimentação cientifica e no rigor metodológico. Ocorre, no
entanto, que mesmo diante destes processos, nos últimos anos, os números de
políticas públicas judicializadas sofreram aumentos que parecem não condizer
com as melhorias apresentadas pelos avanços legislativos e pela própria busca de
uma maior profissionalização da Administração Pública.
Em busca de respostas para os questionamentos que surgem em
decorrência desses desconexos números de ações judiciais questionando ações
políticas do Estado, o presente artigo buscará analisar a gestão da coisa pública
sob o prisma das influências que a própria formação do Estado Federal Brasileiro,
com toda a sua carga cultural e política, exerce sobre as escolhas feitas por seus
gestores em matéria de garantias sociais. Discutira, ainda a possível relação
existente entre os direitos fundamentais constitucionais pátrios e os grupos de
influência instalados na estrutura do Estado, buscando uma consequente
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contribuição desse estado de coisas para o aumento nos processos de
judicialização da política no Brasil.
Sem renunciar à constatação de que a judicialização caracteriza-se como
uma prática nefasta para a estabilização das estruturas sociais, buscar-se-á, neste
artigo, uma análise isenta desse fenômeno, fazendo um paralelo entre estas ações
judiciais e as políticas públicas implementadas pelo Estado em um mesmo espaço
físico-temporal, na tentativa de entender suas possíveis conectividades.
Como base teórica para esta pesquisa serão utilizados dados constantes dos
sistemas públicos de pesquisa de decisões judiciais dos Tribunais Brasileiros, além
de uma ampla análise de literatura (doutrina e jurisprudência), procurando-se
refletir os entendimentos prevalentes no Brasil buscando, ao final, trazer algumas
sugestões de melhorias para o desenvolvimento do Estado.
1. A administração pública brasileira e suas relações com o particular
Cabe-nos, antes de qualquer aprofundamento sobre a administração
pública brasileira, analisar, ainda que em breves termos, a própria termologia
“administração pública”, posto ser a partir do desenvolvimento do conceito desse
vocábulo que o próprio gestor - seja ele público ou privado - se viu cada vez mais
obrigado à utilização de princípios de excelência na condução da coisa gerida.
Peter Drucker, considerado o pai da administração moderna, na busca pelo
melhor conceito para o termo “administração” deparou-se com duas premissas
populares para “o que é e o que faz a administração”. Segundo Drucker, o senso
comum relacionou o termo administração, primeiramente, à ideia de gerência ou
chefia, excluindo do referido conceito um de seus principais componentes, a saber,
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os administrados. Já no segundo caso, não muito diferente do primeiro, o termo
foi relacionado com a ideia “de alguém que dirige o trabalho dos outros”, ficando
esse conceito muito próximo da ideia de que administração se resume a “alguém
cujo o trabalho consiste em fazer os outros trabalharem”. (DRUCKER, 2003, p. 7)
Contrariamente ao achado de Druker, CHIAVENATO ( 2003, p. XVIII) declara
que “a administração é melhor compreendida quando se correlaciona o seu
conceito com as características da empresa – e suas variáveis internas – e com as
características do ambiente que a rodeia – e suas variáveis externas”. Em
continuidade à sua lição, CHIAVENATO (2003, p. 3) nos ensina que “a
Administração é o processo de planejar, organizar, dirigir e controlar o uso dos
recursos organizacionais para alcançar determinados objetivos de maneira
eficiente e eficaz”.
Na busca desses objetivos, falando especificamente da gestão pública, uma
das características mais importantes a ser ressaltada é a vinculação estrita do
Estado ao princípio da legalidade (fazer apenas aquilo que determina a lei) não
podendo, em regra, igualar-se aos ditames da gestão privada, que embora não
possa utilizar-se de meios ilegais para alcançar suas metas, não está obrigada a
fazer apenas aquilo que a lei determina.
Essa vinculação da administração pública ao princípio da legalidade, que na
visão de BRAGA (2002, p. 18), “está na base do Estado de Direito” coloca a gestão
pública em uma posição bastante diferenciada nas relações com o setor privado,
sobretudo nas transações comerciais, onde a administração pública goza de certa
supremacia com prazos e condições diferenciados. Deve-se ressaltar que embora
essa relação de superioridade do Estado tenha como objetivo supervalorizar o
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interesse público, nos tempos modernos essa supremacia tem trazido
consequências bem diferentes da esperada.
Ocorre que, com o objetivo de preservação patrimonial, as empresas
particulares acabam por fazer uso de instrumentos, como elevação de seus preços
nas vendas para órgãos públicos, já que estes têm prazos dilatados para efetuar
seus pagamentos além de, nos limites previstos em lei, poder simplesmente
desistir da compra mesmo depois de concluídos os certames negociais.
Portanto, é com base nessa relação de supremacia do interesse público,
aliado à estrita vinculação aos textos legais, que o gestor público brasileiro precisa
pautar todos os seus esforços para implementar políticas públicas eficientes e que
sejam economicamente viáveis, fato que fica muitas vezes prejudicado, tendo em
vista a necessidade de o particular buscar formas de proteger-se da inviabilização
de seu negócio frente à posição de império, nem sempre justa do Estado, em suas
relações comerciais.
Surge dessa estrutura político-administrativa do Estado brasileira uma
enorme dificuldade para o gestor de políticas públicas no Brasil, tendo em vista
que ele precisa manter-se nos rigores da lei e, ainda assim, buscar formas de
proteger os interesses do Estado ainda que isso signifique prejuízo ao particular,
situação extremamente delicada diante das pressões dos grupos econômicos
representados legislativamente.
É neste cenário de regulações e proteções, muitas vezes exageradas, que o
gestor público precisa encontrar meios de gerir as ações do Estado, muito vezes
enfrentando interesses que vão muito além das necessidades sociais e a própria
vontade da lei, mas falaremos mais desse assunto mais adiante.
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2. A gestão de políticas públicas no Brasil – uma história construída por
grupos de interesses e procedimentos equivocados
Embora seus estudos iniciais - nos anos 50 - nos Estados Unidos, tenham
apresentado um certo foco na ciência política e na organização estatal, a
percepção da grandeza do estudo da gestão pública como uma matéria
multidisciplinar evoluiu muito rapidamente dando a está disciplina vieses que vão
muito além das ciências administrativas. No entanto, não seria incorreto dizer que
é na análise feita sob o ponto de vista da ciência política que, em nosso ponto de
vista, se encontra a sua maior contribuição para o entendimento das motivações
que levam o Estado a decidir-se por uma política pública em detrimento de outra,
por vezes, vista como de muito maior valor social.
Nesse sentido, DYE et al (1992, p. VII), nos ensinam que “a maioria das
políticas públicas são uma combinação de planejamento racional,
incrementalismo, competição entre grupos, preferências da elite, escolha pública,
processos políticos e influências institucionais” (tradução livre). Com base nesta
afirmação, fica-nos claro que não é possível fazer uma análise das escolhas
governamentais em políticas públicas levando-se em consideração apenas as
questões econômicas ou de oportunidade, pois as influências sobre essas decisões
vão muito além destas variáveis.
MULLER e SUREL ao explicarem as formas de ação do poder público nos
ensinam que estas ações estão atreladas a duas concepções tradicionais do Estado.
Na primeira delas, os autores abordam o Estado e suas ações como sendo uma
produção da própria sociedade, ao declararem que “esta perspectiva acha o
essencial de sua fonte no pensamento hegeliano que vê o Estado como a
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realização da sociedade civil na sua unidade, tornando-se o Estado o lugar da
“previdência universal” sem o qual a sociedade não existe”. (MULLER e SUREL,
2002, p. 32)
A grande dificuldade que advém desta teoria é que, segundo esses autores,
“a ação do Estado transcende os múltiplos interesses particulares da sociedade
civil, para colaborar na definição de um interesse comum” o que nos leva a crer
que o poder público possui uma ordem própria que não nasce, necessariamente,
dos anseios da sociedade como um todo, quiçá de uma maioria deste mesmo
grupo social. Ainda contra-argumentando essa ideia, Muller e Surel, trazem para a
discussão os argumentos de Marx de que as ações do Estado transcendem os
interesses da sociedade e são frutos das lutas de classes e delas depende a sua
própria existência. (MULLER e SUREL, 2002, p. 32-33)
Nesse sentido, a solução para os questionamentos que se levantam a partir
da teoria de um Estado autônomo e, também, para a teoria de um Estado
dependente da sociedade tomam contornos de difícil dilucidação. No entanto, na
tentava de buscar uma explicação para esse difícil enquadramento do Estado como
autônomo ou dependente da ação social, Muller e Surel (2002), nos ensinam que:
O conjunto destas abordagens forma o pedestal da maior parte das
teorias que valorizam o papel central do Estado nas relações sociais. Sem
entrar nos detalhes de uma longa história da sociologia do Estado (Badie,
Birnbaum, 1979), contentar-nos-emos em mostrar que uma tal
perspectiva pôde alimentar uma corrente de análise particular quanto à
natureza da intermediação contemporânea entre Estado e grupos de
interesse na produção da ação pública, aquela do neo-corporativismo.
Considerando a centralidade do Estado e de sua natureza monopolística
quanto ao exercício da dominação, os defensores da abordagem neo-
corporativista ultrapassam entretanto o quadro institucional do aparelho
político-administrativo, para descrever a ação do Estado como o produto
de uma relação institucionalizada entre um número limitado de atores
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públicos e privados (Schmitter, 1974; Lehmbruch, Schmitter, 1979).
(MULLER e SUREL, 2002, p. 34)
A partir dessa visão do neo-corporativismo, trazida por Miller et al, é
possível inferir que o Estado moderno se estrutura como um ente de composição
mista ficando entre o autônomo e o dependente, conforme melhor lhe convier.
Entender essa estruturação do Estado é extremamente relevante para a
compreensão das políticas públicas implementadas, pois em um dado momento
histórico e político as ações do Estado tenderão a se mostrar totalmente
autônomas para determinados grupos, e totalmente dependentes para outros, a
depender do poder de influência que cada um desses grupos tiverem na formação
do “aparelho político-administrativo” do Estado.
Ocorre que, ao se falar em formação ideológica no Brasil é preciso levar em
consideração que somos uma Federação composta por 26 Estados, um Distrito
Federal, a União e cerca de 5000 Municípios. Além desses números, possuímos 35
partidos políticos registrados no Tribunal Superior Eleitoral, e, desses, 30 com
representação no Congresso Nacional que, atualmente, possui 8 bancadas, a saber,
a Bancada Empresarial, a Bancada Ruralista, a Bancada Sindical, a Bancada
Feminina, a Bancada Parentes, a Bancada da Segurança, a Bancada Evangélica e,
criado mais recentemente, o Centrão.
Diante dessa realidade, parece-nos mais importante entender quem são os
atores que fazem parte da composição do Estado em um dado momento, do que
buscar entender qual é a verdadeira agenda dos entes públicos, posto que, esta
última, será determinada e mudada de acordo com as vontades desses grupos. Ao
analisarem as políticas públicas sob o ponto de vista dos defensores da formação
pluralista do Estado, Muller e Surel, declaram que:
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Esta perspectiva conduz, evidentemente, a consequências importantes
do ponto de vista da análise da ação pública. Para os defensores do
paradigma pluralista, o conteúdo de uma política será o resultado das
diferentes pressões exercidas pelos grupos de interesse envolvidos. Por
exemplo, uma política favorecendo um tipo de combustível, com o fim
de lutar contra a poluição, será a resultante das pressões contraditórias
de diferentes grupos de interesses: construtores automobilísticos,
ecologistas, usuários de transportes públicos etc. O sentido desta política
será, portanto, buscar na capacidade dos grupos envolvidos mobilizar
recursos, exercer pressões ou impor sua visão do mundo, convertendo,
por fim, suas ações em decisões públicas. (MULLER e SUREL, 2002, p. 35)
Embora eles tenham se referido especificamente ao modelo de Estado
pluralista, essa realidade marcada por influências de grupos estará presente,
também, no Estado autônomo mas, o mais importante, no entanto, é que ao
entendermos as concepções de formação do Estado, seja como um ente
autônomo, seja como um produto da sociedade, tenhamos a percepção de que
estes modelos não podem dispensar o fator humano, o que sempre os colocará
sob os holofotes dos grupos de influência.
Nesse sentido, ao analisar a implementação das políticas a partir das suas 7
fases sequenciais delimitadas por SECCHI (2012) como sendo: 1) identificação do
problema; 2) formação da agenda; 3) formulação de alternativas; 4) tomada de
decisão; 5) implementação; 6) avalição e 7) extinção, percebe-se, já nas duas fases
iniciais (identificação do problema e formação da agenda) do ciclo de uma política
pública os seus primeiros pontos de tensão quando analisados levando-se em
consideração os grupos de interesse instalados nas instituições do Estado.
Secchi (2012, p. 34) ao conceituar o que vem a ser um problema, em matéria
de política pública, asseverou que este “é a discrepância entre o que é e aquilo que
se gostaria que fosse a realidade pública”, portanto, nem sempre um problema se
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traduz como uma real calamidade, podendo ser, apenas uma situação que pode
ser melhorada, ou, na pior das hipóteses, um problema criado por um grupo de
interesse.
No que diz respeito à formação da agenda, o mesmo Secchi nos ensina que:
A agenda é um conjunto de problemas ou temas entendidos como
relevantes. Ela pode tomar forma de um programa de governo, um
planejamento orçamentário, um estatuto partidário ou, ainda, de uma
simples lista de assuntos que o comitê editorial de um jornal entende
como importante (Secchi,2006).
[...]
Os problemas entram e saem das agendas. Eles ganham notoriedade e
relevância, e depois desinflam. Como destaca Subirats (1989), a limitação
de recursos humanos, financeiros, materiais, a falta de tempo, a falta de
vontade política ou a falta de pressão popular podem fazer que alguns
problemas não permaneçam por muito tempo, ou nem consigam entrar
nas agendas. As agendas listam prioridades de atuação, e como já dizia
um ex-candidato à Presidência da República do Brasil: a maior dificuldade
para o político não é estabelecer quais serão as prioridades. A maior
dificuldade é ordenar as prioridades (SECCHI, 2012, p. 36)
Portanto, existem vários fatores que podem influenciar a formação de uma
agenda de ações públicas e, deve-se ressaltar, que o estabelecimento do grau de
prioridade dos temas constantes dessa agenda sempre estará sujeito a mudanças
que podem ser causadas por várias razões, contudo a principal delas é a pressão
exercida pela sociedade ou por certos grupos de influência. Em que pese estarmos
falando, especificamente, da fase de formação da agenda, é preciso entender que
essas influências podem ocorrer em quaisquer das fases de implementação de uma
política pública.
Ao comentar a fase de formulação das alternativas em políticas públicas,
SCHATTSCHNEIDER (1960, p. 68), declara que esta etapa se caracteriza como “o
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instrumento supremo de poder, porque a definição de alternativas é a escolha dos
conflitos, e a escolha dos conflitos aloca poder”. Portanto, falar de políticas
públicas, independentemente da fase em que ela se encontre, é, necessariamente,
falar de determinação e alocação de poderes.
Portanto a implementação de uma política pública, sobretudo nos Estado
em que a classe política passa pelo referendo público de tempos em tempos, pode
assumir um caráter pouco técnico, mas com repercussões midiáticas que
aproximam essas classes de grupos econômicos e sociais com influência no
processo eleitoral.
Portanto, é nesse cenário inóspito que o gestor de políticas públicas no
Brasil precisa adequar todo o plano de ação para a implementação de ações
governamentais que garantam o pleno gozo do direitos fundamentais, que como
visto, acabam por concorrer com uma série de interesses e grupos sociais que
precisam ser vencidos, sob pena de não se conseguir implementar uma agenda
mínima proposta.
Além de todas essas situações, ainda é preciso superar uma infinidade de
questões técnicas, como a falta de treinamento daqueles que atuarão na execução
dos programas públicos e as dificuldades de comunicação entre os agentes
encarregados da elaboração e planejamento das políticas públicas e aqueles que
a executarão e serão a ponte comunicacional entre o poder público e a sociedade.
Este fato faz com que a maior parte das políticas executadas na área da saúde, no
Brasil – por exemplo - se enquadrem no modelo top-down de implementação.
SECCHI (2012, p. 47) descreve esse modelo como sendo “parte de uma visão
funcionalista e tecnicista de que as políticas públicas devem ser elaboradas e
decididas pela esfera política e que a implementação é mero esforço administrativo
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de achar meios para os fins estabelecidos”, o que nos parece não estar dando
muito certo.
Em continuidade à sua lição Secchi declara que:
Esse modelo também é visualizado como estratégia da classe política
para "lavar as mãos" em relação aos problemas de implementação: se as
políticas, os programas e as ações estão bem planejados, com objetivos
claros e coerentes, então uma má implementação é resultado de falhas
dos agentes (por exemplo, policiais, professores, médicos). Esse processo
é conhecido na literatura política como blame shifing, ou deslocamento
da culpa. (SECCHI, 2012, p. 47)
Como contraponto a esse padrão de exclusão dos executores das políticas
públicas dos seus processos de decisão, Secchi (2012), faz menção ao modelo
denominado bottom-up, que dá certa margem de discricionariedade aos agentes
encarregados de tornar a ação governamental efetiva para efetuar as mudanças
necessárias à sua melhor adequação aos seus beneficiários. O grande problema
deste modelo é que ele acaba por dividir as responsabilidades pelo sucesso, e,
também, pelo insucesso das ações do Estado, entre os seus executores e
idealizadores o que, do ponto de vista político, torna o modelo pouco desejado,
principalmente, diante de políticas públicas com resultados negativos.
O fato é que o modelo caótico e fragmentado de implementação de
políticas públicas, dá aos poderes políticos a possibilidade de eximirem-se da
inefetividade das ações do governo, utilizando-se do argumento de que o
problema está na execução e não na implementação dessas ações, o que, na visão
moderna de gestão não possui nenhuma relação com a verdade. Além disso, a
comunicação tardia do insucesso das políticas públicas, comum nesse modelo,
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acabam por fomentar grandes desperdícios de recursos financeiros e de material,
que é outro grande problema para as ações do Estado.
3. A ineficiência na aplicação dos recursos, na fiscalização e a
judicialização de políticas públicas
Segundo relatório da Organização da Nações Unidas – ONU, o Brasil perde
cerca de 200 bilhões de reais anualmente, levando-se em consideração, apenas os
desvios de recursos públicos. Esse número alcança cifras inimagináveis quando
acrescentamos a ele os recursos perdidos com o desperdício oriundo dos
processos equivocados de compras e pela má-gestão.
Quando a gestão dos recursos apresenta incongruências,
independentemente de qual sejam essas inconsistências, tem-se como resultado
uma margem menor de recursos para serem aplicados em políticas públicas, o que
tornam as “escolhas trágicas” dos gestores ainda mais trágicas, aumentando,
assim, as probabilidades de que as ações do Estado terminem nos tribunais.
Pesquisa divulgada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no ano de
2018, mostrou que aquela unidade da federação possuía mais de 500 mil ações
judiciais na área da saúde, com processos que iam, desde ações contra planos de
saúde até a judicialização de fraldas geriátricas para pacientes internados em
hospitais públicos – sendo que – nesse último caso, podemos ver a existência de
processos também no ano de 2019, como a apelação nº 0034267-
58.2017.8.19.0014.
Ocorre que, no caso específico do Rio de Janeiro, no ano de 2018, a Polícia
Federal e o Ministério Público Federal investigaram e denunciaram um esquema
de fraude no fornecimento de serviços à área da saúde, no qual estimavam-se
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desvios de mais de 100 milhões de dólares dos cofres públicos, conforme se vê
abaixo:
Apresente operação cautelar é desdobramento da Operação Fratura
Exposta e das investigações realizadas após a sua deflagração, tendo
como escopo aprofundar o desbaratamento da organização criminosa
responsável pela prática dos crimes de corrupção e lavagem de capitais
envolvendo contratos na área da saúde envolvendo o Estado do Rio de
Janeiro e o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia Jamil Hadad
- INTO
Com efeito, após exaustiva investigação que contou com medidas
cautelares de quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico de telemático,
as operações Calicute e Eficiência conseguiram demonstrar como a
organização criminosa comandada por SÉRGIO CABRAL atuou para
praticar atos de corrupção e lavagem que desviaram mais de USD
100.000.000,00 (100 milhões de dólares) dos cofres públicos mediante
engenhoso processo de envio de recursos oriundos de propina para o
exterior. MPF (2018; p. 2)
É preciso observar que as ações em comento, foram uma consequência de
uma operação de nome “Fratura Exposta” que investigava fraudes em compras de
próteses e órteses por hospitais do Rio de Janeiro, compras estas que tinham uma
relação direta com o escândalo da compra de órteses e próteses pela Secretaria de
Saúde do Distrito Federal, no ano de 2015.
É fato que, em muitos casos, as políticas públicas existem, mas os prejuízos
causados por uma gestão ineficaz dessas ações do Estado podem ter repercussões
que vão além dos prejuízos à própria ação mal gerida. Embora os processos de
compras dos entes governamentais, no Brasil, sejam cercados de leis e regras
regulamentadoras, quando analisamos a quantidade de irregularidades apontadas
pelos órgãos de fiscalização, fica-nos fácil perceber a fragilidade desses
procedimentos. A esse respeito Campos 2008, nos explica que:
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uma situação comum na administração pública é a formação de
cartel/conluio para a prática de sobrepreço nas licitações públicas,
principalmente quando se refere a um mercado com poucos
fornecedores, onde há maiores facilidades de se coordenar um acordo.
Além dessa imperfeição de mercado, os procedimentos normativos das
aquisições (Lei nº 8.666/93 e 10.520/02) e a legislação específica
antitrustes (comandada pela Lei nº 8.884/94) não se mostram
suficientemente adequados para evitar as atuações dos cartéis/conluio,
exceto no caso de pregão eletrônico com muitas empresas participantes,
como se verá adiante. Tanto que, recentemente, o Governo Federal
encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7709/2007 no
sentido de reformar a Lei nº 8.666/93 e ampliar o uso do pregão, visto
que a cada ano o volume de recursos decorrentes da ineficiência dos
gastos atrelada a alguma prática de conluio se torna exorbitante. Pelas
estimativas da Secretaria de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça,
para compras e aquisições anuais da ordem de R$ 300 bilhões, o prejuízo
gira entre R$ 25 a R$ 40 bilhões (site www.mj.gov.br comunicado de
30/05/2007). (CAMPOS, 2008, p. 186)
Veja que, embora o autor traga uma visão bem pessimista sobre os
processos licitatórios no Brasil, ele mesmo nos mostra que algumas modificações
têm gerado bons resultados para a diminuição do desperdício de dinheiro público,
no entanto esses avanços ainda são pontuais e ineficazes para a maioria dos casos.
Um bom exemplo disso encontra-se no relatório da Controladoria Geral da União
nº 201701036 oriundo de uma fiscalização feita no Município de Itaperuna no Rio
de Janeiro. Segundo esse relatório, das ações de compras fiscalizadas naquela
auditoria, todas apresentaram irregularidades que iam, desde desclassificação de
empresas com justificativas ilegais até sobrepreços de até cem por cento dos
valores das compras, conforme cito abaixo:
Durante os trabalhos de fiscalização, constataram-se a existência de
cláusulas restritivas no edital do Pregão Presencial n.º 040/2014
destinado à aquisição de medicamentos, resultando em Sobrepreço de
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R$ 2.927.675,16 na Ata de Registro de Preços n.º 07/2015 e em Prejuízo
de R$ 330.848,32 em processos de pagamento analisados; sobrepreço de
R$ 239.498,16 no Pregão Presencial n.º 040/2014, que resultou na Ata de
Registro de Preços n.º 07/2015, em razão de preços registrados em
valores superiores aos limites definidos pela Anvisa para venda de
medicamentos à Administração Pública; sobrepreço de R$ 131.285,96 no
Pregão Presencial n.º 004/2016, que resultou na Ata de Registro de
Preços n.º 12/2016, em razão de preços registrados em valores superiores
aos limites definidos pela Anvisa para venda de medicamentos à
Administração Pública. (MT e CGU, 2017, p. 3-4)
Nesse sentido, a eficiência da política pública quando analisada sob o ponto
de vista da sua eficácia, em tese, não pode ser questionada já que o Município
comprou os medicamentos para suprir as necessidades da população daquele
lugar. O problema é que nessa compra, os valores empenhados seriam suficientes
para dobrar a aquisição, ou, até mesmo, implantar outras ações da mesma monta.
Um dado interessante desse mesmo munícipio para o ano em que foram
efetuadas essas compras é o de que em pesquisa feita no site do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, em 16 de janeiro de 2020, com os termos “medicamentos
Itaperuna”, delimitada para o ano de 2017, foram encontrados 91 resultados de
ações judiciais que pedem desde exame de endoscopia à medicação para diabetes.
É preciso salientar que o simples fato de um Estado ou Munícipio efetuar
compras com valores acima dos praticados no mercado, não significa que o
processo esteja eivado de irregularidades ou corrompido, no entanto, é preciso
imaginar que se isso está ocorrendo significa que alguma coisa no processo de
aquisições públicas não está surtindo os efeitos esperados. Nesse sentido, é
necessário que o setor público repense suas relações com os particulares,
sobretudo quando essas interações tiverem como objetivo o estabelecimento de
relações comerciais. Fato é que a supremacia do Estado, que deveria ser uma
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medida protetiva do interesse público, parece ter um resultado contrário
hodiernamente.
Portanto é preciso que a sociedade e seus representantes entendam que o
Estado precisa modernizar suas práticas administrativas com a mesma agilidade
com que a própria sociedade evolui. A estática dos processos legais precisa abrir
mais espaço aos avanços das técnicas de gestão. O Estado não pode continuar
sendo gerido como se a obediência cega a lei fosse seu maior trunfo. A lei é estática
e lenta, já os processos de gestão evoluem muito rapidamente e, com eles as
formas de burlar a proteção legal do Estado. As instituições públicas precisam de
mais gestão e menos textos legais.
Considerações finais
Em que pese os avanços na gestão pública moderna, com a aplicação de
novas técnicas administrativas, a falta de profissionalização dos gestores,
sobretudo nos pequenos municípios brasileiros, ainda é um grande entrave para o
sucesso de políticas públicas, principalmente em áreas tão técnicas como a saúde
pública.
É preciso simplificar o sistema normativo da administração pública, inclusive
com a adequação dos seus processos de compras às verdadeiras necessidades dos
Estados e Municípios, com a criação de atribuições e responsabilidades claras para
cada ente, além da implementação de sistemas de controle unificados e
informatizados.
Outro fator de suma importância para a melhoria da gestão pública seria a
aplicação de modelos administrativos que diminuam as distâncias entre aqueles
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de pensam as políticas públicas e aqueles que serão encarregados de sua
execução. O sistema de gerenciamento de pessoal também precisa ser melhorado.
É necessário que o controle de todo o pessoal envolvido nas ações de políticas
públicas seja feito de forma integrada e com previsões interativas e de
capacitações constantes, sempre que possível incentivas.
Os sistemas de fiscalização prévia precisam estar prontos para responder às
necessidades colocadas em cada momento histórico e devem possuir o poder
necessário para barrar possíveis excessos, e, portanto, não podem estar atrelados
a condições políticas de indicação e permanência impostas por grupos de
interesses instalados nas estruturas do Estado.
A estrutura e composição do Estado brasileiros, precisa ser repensada,
levando-se em consideração processos mais profissionais de escolhas de seus
gestores, sobretudo nos escalões encarregados de dar vazão às ações do Estado.
Evidentemente, não se esgota aqui o espaço de discussão desse tão
empolgante tema, ficando está pesquisa apenas como um ponto de partida para
um aprofundamento dos temas ligados à modernização e humanização das ações
do Estado.
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Aprendendo Direito
DIREITOS SOCIAIS E LIBERDADES DEMOCRÁTICAS
Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho
Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; mestre em Direito Social pela UCLM - Universidad
de Castilla-La Mancha; graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia; juiz do Trabalho
titular da 32ª Vara do Trabalho de Salvador/BA; presidente da Academia de Letras Jurídicas da
Bahia; membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Instituto Baiano de Direito do
Trabalho, Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil)
e Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam); professor em Direito da Universidade
Salvador (UNIFACS ) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Texto de janeiro de 2020
Falar do papel do jurista contemporâneo na discussão sobre
processo reivindicatórios, direitos fundamentais e direitos humanos é um
tema espinhoso; eu diria mais, explosivo, com grande potencial de
eletricidade social. O que quero dizer com isso? Vivemos hoje um
período conturbado no cenário político e jurídico em que parece que
não é mais possível ao homem médio, ao ser humano médio se
manifestar sem receber uma chuva de pedras ou de epítetos. O que quero
dizer com isso? Quero dizer que vivemos, há alguns anos, talvez como uma
decorrência dos processos eleitorais, uma divisão do país que tem se refletido também na visão
do papel do Direito. Nunca o Direito, no Brasil, se tornou tão importante. Pergunto eu: por
quê? Porque todo mundo quer falar sobre o Direito. Nós falamos sobre Direito hoje não somente
na academia, mas nas mesas de bares, nos grupos de whataApp, nas famílias, em todos os meios
falamos de Direito. Mas falamos de Direito sem ter conhecimento dele.
As pessoas hoje se arvoram a ser juristas sem estudar a base dogmática, sem compreender
criticamente o que está acontecendo, simplesmente tomando partido como se estivéssemos vivemos
um “Fla-Flu jurídico” ou, na minha baianidade, um “Ba-Vi” jurídico. Por quê? Porque todo
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mundo que pensa diferente do que defendemos não é mais tratado como ex-adverso ou como alguém
que simplesmente em debate de antítese para construir síntese.
Não. As pessoas hoje não conseguem mais refletir e ver alguém que pensa diferente e tratá-
la senão como inimigo. Isso é um desserviço à ordem jurídica, à democracia, à academia porque a
academia é o local de debate, o local da reflexão. A função do jurista e do acadêmico jurista é
exortar a dialética, fazer com que nós tenhamos espaço para pensar diferente e construir.
Karl Popper, que é uma referência para mim no campo da metodologia, ele disse que a
tese só é científica na medida em que ela suporta falseabilidade, que ela pode ser negada; que nós
podemos tentar verificá-la e testá-la para ver se ela é científica. E isso é algo que tem ido de encontro
ao que se vê hoje.
Um dos maiores pensadores baianos, radicado em São Paulo, Prof. Milton Santos,
geógrafo, ele falava que o nosso papel na academia é combater a ditadura do pensamento único, a
ditadura da única forma de ver, a ditadura do indivíduo que só pensa, só age, só aceita daquela
forma. E isto está cada dia mais complexo. Pensar virou um risco. Só que não há alternativa para
quem acredita na academia a não ser pensar, refletir e produzir, saindo do armário na construção
do novo mundo.
O por quê? Porque nós precisamos de cada vez mais aprender a lidar com o diferente,
aprender a lidar com quem pensa diferente, quem vive diferente, quem lida com o mundo de forma
diferente. Eu me declaro publicamente um militante contra o preconceito de qualquer ordem, da
direita e da esquerda, de qualquer forma que cale a reflexão.
Calar a reflexão não é simplesmente ser contrário; calar a reflexão é partir do pressuposto
que eu posso ouvir. E isso tem sido um desafio porque as pessoas estão desaprendendo – se é que um
dia aprenderam – a dialogar; hoje estamos vendo coletivos de monólogos! As pessoas pensam que
estão exercendo liberdade de expressão quando na verdade estão simplesmente opinando e não
ouvindo o que as outras querem e isso gera um pensamento opressivo.
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Os últimos episódios no Brasil em que se vê pessoas propugnando por censuras.
Independente da ideologia, da fé, da coloração política, as pessoas precisam entender que o preço da
democracia, o preço do convívio social, o preço de uma ordem social estável é ter espaço para
manifestação de qualquer ordem. E, se ela for ofensiva, que se valha do Poder Judiciário para
pedir as reparações correspondentes.
A própria Constituição do art. 5º, X, ela traz uma ênfase à proteção aos direitos
fundamentais e da personalidade garantida a reparação no caso de violação. Ou seja, não tem como
previamente controlar o que alguém vai falar. E isso serve para a liberdade de expressão e serve
para qualquer outro tipo de convívio social, de convívio jurídico; eu vou ter em mesa de audiência
(estou na magistratura há 25 anos) postulações que me parecem descabidas; eu vou ter que processá-
las, garantir o contraditório porque eu posso estar errado; eu não sou o senhor da razão como
magistrado, eu não sou um ditador de toga; eu dou encaminhamento e depois decido e, se não
concordar a parte dispõe dos meios para recorrer da decisão. É preciso saber lidar com isso, em
todos os campos, processos materiais e a vida como um todo.
Processos reivindicatórios
Falando sobre processos reivindicatórios, nós precisamos saber quem são os sujeitos da
Constituição, quem são os sujeitos a quem a constituição garante isso; e essa compressão de
cidadania é fundamental; é preciso entender que quando falamos de resgate de valores de outrora
ou inclusão daqueles que nunca foram incluídos nós estamos na verdade garantindo voz e lugar de
fala para sujeitos que a Constituição permite. E quem é permitido? Todos os cidadãos!
Mas “todos” é uma expressão que tem ânimo de generalidade. Ou seja, eu não posso pensar
em castas privilegiadas que somente elas possam reivindicar e ser titular de direitos; essa é uma
linha que é importantíssima na garantia no sentido de equidade muito maior do que a justiça
aritmética e literalmente direcionada a partes iguais para todos. Não! Não é partes iguais para
todos porque às vezes há aqueles que precisam muito mais.
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Então sistemas como cotas e ações afirmativas, meios de inclusão social, resgate da
cidadania, programas assistenciais, rendas mínimas, garantia de cidadania é algo que faz uma
proporção e assistência não porque é um coitadinho, mas porque é um cidadão que precisa daquilo
para sobreviver e poder se emancipar para não precisar mais daquilo.
Então, essa é uma compreensão que é um papel do Estado que é repartido com a sociedade.
Como fazer isso? Esse é o desafio do jurista! Não há uma receita de bolo, fórmula mágica; é um
construir diuturnamente em um desafio de construção efetiva de cidadania; acho que esse é nosso
papel.
O exercício de cidadania
Penso que o exercício da cidadania é um aprendizado mais do que propriamente uma
receita. Confesso que sou juiz do trabalho, atuo na metodologia da pesquisa jurídica e, mesmo nesses
meios, muitas vezes ouvi as pessoas dizerem que “o Brasil não está preparado para a liberdade
sindical”.
A democracia é o único sistema aceitável porque é aquele dá a voz a todos; qual é o erro
maior da formação acadêmica quando se ensina democracia? Dizer que democracia é sistema da
prevalência da maioria. Isso é erro!! Democracia é gerida pela vontade da maioria com respeito à
minoria. Isso é Democracia!
Você não pode admitir que haja democracia quando formalmente se exclui quem é
minoritário, quem pensa diferente. É preciso dar voz e educar as pessoas para que compreendam
que ao se garantir o acesso de quem é diferente de nós e não tem nós estamos garantindo também
ter esse acesso.
Nesse sentido, a Justiça do Trabalho tradicionalmente ela sempre foi mais
principiológica do que tradicionalista e talvez por isso seja tão criticada. O nosso papel é de
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preservação da efetivação – através do Poder Judiciário – daquilo que está na Constituição; a
promessa constitucional, portanto, deve ser efetivada pelo Poder Judiciário.
Sem sombra de dúvida a própria noção de identificação de qual é o modelo constitucional
já é um corte epistemológico interessante para uma reflexão: o que é que se quer? O que a
Constituição prometeu? Feita a identificação é preciso verificar quais são as políticas públicas para
realização e mais ainda, a consciência da sociedade.
Será se esse modelo constitucional foi internalizado? Os grandes temas que passaram no
Supremo Tribunal Federal nos últimos 10 anos (prisão em segunda instância, união homoafetiva,
criminalização da maconha e do aborto, feto anencéfalo) a própria repercussão social e a visão de
grupos de coletividades mostram que muitas vezes nós não temos uma plena consciência do modelo
constitucional que foi prometido, gerando discurso opressivo.
Logo, o preço de ser democrata é de ter de ouvir, de ter de dar voz e de aceitar que nem
tudo aquilo que eu penso é o melhor.
Por fim, a compreensão dos processos reivindicatórios deve ser feita na perspectiva de que
estamos efetivando a promessa de um modelo constitucional social: dar voz, dar espaço ao diferente
para que sejamos respeitados.
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O VIÉS IDEOLÓGICO DA REFORMA TRABALHISTA DE 2017
Suzana Cristina Leite
Mestra em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro
Universitário IESB; especialista em Direito Tributário pela Faculdade Projeção e em
Processo Legislativo pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da
Câmara dos Deputados; advogada.
Neide Teresinha Malard
Doutora em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais;
mestra em Direito pela London School of Economics, Londres, Inglaterra; mestra em
Direito e Estado pela Universidade de Brasília; professora da graduação e pós-
graduação do Centro Universitário IESB; advogada.
Sumário
1. Considerações introdutórias
2. A proposta do Poder Executivo e seu emendamento na
Câmara dos Deputados
3. O viés ideológico da reforma trabalhista
4. Considerações finais
Resumo
Apresentação dos achados da pesquisa acadêmica “A elaboração legislativa da reforma
trabalhista: análise dos aspectos ideológicos das emendas ao Projeto de Lei n. 6.787/2016,
que se transformou na Lei n. 13.467/2017”. A pesquisa teve por objetivo investigar as
“forças de poder” que influenciaram o Poder Legislativo na produção da Reforma
Trabalhista, e identificar os conteúdos ideológicos das emendas oferecidas e sua
compatibilidade com os estatutos dos partidos políticos aos quais estão filiados seus
autores.
Palavras Chaves: Ideologia. Poder Legislativo. Reforma trabalhista. Lei. Emendas.
Abstract
The ideological bias of the 2017 labor reform. This is an overview of the findings of the
academic research “A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA DA REFORMA TRABALHISTA: Análise
dos aspectos ideológicos das emendas ao Projeto de Lei n. 6.787/2016, que se
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transformou na Lei n. 13.467/2017”104, which aimed to investigate the “forces of power”
that influenced the Legislative in the production of the Labor Reform, and to identify in
the offered amendments and in those which were approved the ideology of their authors
and the their compatibility with the ideals of the political parties to which the authors are
affiliated.
Keywords: Ideology. Legislative Power. Labor Reform. Law. Amendments.
1. Considerações introdutórias
Reforma Trabalhista de 2017, promovida por meio da Lei nº
13.467/2017, alterou substancialmente a legislação do trabalho,
tendo como principal argumento de seus apoiadores o combate
ao desemprego, decorrente da crise econômica que à época afetava o país. Tal
reforma foi criticada por sindicatos, pelo Ministério Público e pela Organização
Internacional do Trabalho, porém defendida pelos economistas em geral, pelos
diversos setores empresariais e alguns magistrados, dentre outros formadores de
opinião.
A divisão de opiniões acerca de uma reforma trabalhista que,
supostamente, traria as necessárias condições para se retomar o crescimento
econômico e promover o desenvolvimento do país suscita alguns
questionamentos de ordem político-econômico-social, o que não é incomum no
processo legislativo em um país que ostenta elevados índices de desigualdade
104 LEITE, Suzana Cristina. A elaboração legislativa da reforma trabalhista: análise dos aspectos
ideológicos das emendas ao Projeto de Lei n. 6.787/2016, que se transformou na Lei n.
13.467/2017, Brasília/Distrito Federal. 2020. 267f. Dissertação (Mestrado em Direitos Sociais e
Processos Reivindicatórios) – Curso de Direito, Centro Universitário IESB, Brasília/DF.
A
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social e apresenta um complexo e pouco transparente sistema de distribuição de
privilégios entre as classes favorecidas que dominam o poder político.
Há quem defenda que as épocas de crise econômica não constituem
momento propício para promover reformas que afetem direitos sociais, dada a
vulnerabilidade ínsita da maioria das pessoas expostas às consequências dessas
crises. No entanto, o entusiasmo de quem defendia a reforma trabalhista dava-lhe
uma conotação de panaceia, capaz de solucionar parte substancial dos problemas
estruturais da economia brasileira e de estancar os efeitos decorrentes da
competitividade das empresas nacionais, em um cenário internacional que padecia
e ainda padece das consequências da grande crise de 2008.
Nessa conjuntura de ilusão político-econômica, boa parte dos
destinatários das normas não alcançam ou não conseguem captar os possíveis
efeitos das promessas de melhores oportunidades que se lhes seriam abertas com
a reforma, nem tem a sociedade a devida compreensão dos reais objetivos das
alterações propostas, que, afinal, importavam em redução de direitos sociais. Não
ocorreu uma discussão aberta e transparente com a sociedade sobre os principais
temas da reforma, e a pletora das emendas apresentadas, sem qualquer
organização temática posterior à apresentação, não oferece ao eleitor informações
suficientes para que ele possa minimamente ter uma ideia sobre o posicionamento
de seu eleito.
Tal foi o contexto que nos levou a investigar as forças de poder que
propulsionaram a reforma trabalhista de 2017, contra a qual se insurgiu a classe
trabalhadora, mas que teve o apoio da maioria dos legisladores, muitos dos quais,
a partir do discurso oficial de suas agremiações, deveriam estar defendendo os
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interesses dos trabalhadores, que acabaram sendo os grandes prejudicados pelas
alterações na legislação do trabalho que aprovaram.
A pesquisa repostada neste artigo buscou identificar, nas emendas
oferecidas ao projeto do Executivo, a ideologia nelas contida e a sua
compatibilidade com os ideais dos partidos políticos aos quais estavam filiados
seus autores, partindo-se do senso comum de que a agremiação partidária, além
de ter a sua própria ideologia, angaria, também, na sociedade, a simpatia de
lideranças e de formadores de opinião para compor os seus quadros.
O fato é que todo esse processo da escolha legislativa passa, muitas vezes,
despercebido ao destinatário da norma, que acaba prejudicado pelo respaldo
político dado pelo seu eleito a leis contrárias àquilo tudo que prometera na
campanha eleitoral. Não se sabe, em geral, quem propôs o que no andar do
processo legislativo, e o produto final, pronto e acabado, não permite identificar
facilmente os verdadeiros beneficiários da norma.
Soma-se a isto o fato de ser o trabalho legislativo, em matéria de direitos
sociais, pouco transparente, dificultando ao eleitor conhecer o posicionamento das
agremiações partidárias e de seus eleitos acerca desse tema. Com efeito, a
amplitude do conceito de interesse público permite aos parlamentares defender
propostas econômicas para supostamente solucionar problemas conjunturais, em
detrimento da construção de uma estrutura social sólida e justa, o que já seria
razão suficiente para que o Congresso Nacional divulgasse, de forma simples e
transparente, as posições de cada um de seus membros nas votações relativas aos
direitos sociais.
No estudo cuja síntese é apresentada neste artigo, as emendas ao Projeto
de lei nº 6.787/2016 foram organizadas, descritas, explicadas, analisadas e
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classificadas, sendo depois confrontados os respectivos conteúdos com os
estatutos das agremiações partidárias, com a finalidade de verificar a
compatibilidade do ideário d’estas com aquelas e, ao cabo, apontar o viés
ideológico da reforma.
2. A proposta do Poder Executivo e seu emendamento na Câmara dos
Deputados
A reforma trabalhista de 2017 teve origem em projeto de lei do Poder
Executivo 105 , que alterava o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 -
Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974.
A proposta do Poder Executivo versava sobre matéria de competência de
mais de três Comissões, razão pela qual, nos termos do art. 34, inciso II do
Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), foi constituída Comissão
Especial. Inicialmente, o Projeto de Lei nº 6.787/2016 seria apreciado apenas pelas
Comissões, dispensando-se a apreciação do Plenário, nos termos do art. 24, inciso
II, do RICD. Ocorre que, em 19 de abril de 2017, foi aprovado Requerimento de
105 BRASIL. Presidência da República. Projeto de Lei nº 6.787, de 23 de dezembro de 2016.
Altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei
nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores
no local de trabalho e sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos
Deputados [2018]. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076. Acesso
em 14 out. 2018.
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Urgência, nos termos do art. 155 do Regimento da Casa, o que implicou na
apreciação da matéria pelo Plenário106.
Por se tratar de proposta de iniciativa do Poder Executivo, conforme dispõe
o art. 151, inciso II do RICD, ou seja, em prazo mais reduzido dos que as tramitações
ordinárias, o referido processo tramitou sob o regime prioritário na Câmara dos
Deputados, onde contou com três etapas de emendamento: a primeira foi aberta
a todos os deputados da Casa, que, nos termos do art. 119 do Regimento Interno,
poderiam oferecer emendas ao projeto do Executivo; a segunda etapa
compreendeu as emendas ao Substitutivo do Relator na Comissão Especial, e dela
poderia participar qualquer dos membros da Comissão, nos termos do inciso II do
art. 119 do referido Regimento; por fim, a terceira etapa compreendeu a
apresentação de emendas pelo Plenário, através de Comissões ou que fossem
subscritas por um quinto dos membros da Câmara ou Líderes que representassem
esse número, desde que apresentadas até o início da votação da matéria, nos
termos do §4º do art. 120 do mesmo diploma regimental referido.
Sabe-se que o processo legislativo para aprovação de um projeto de lei é,
em regra, demorado e complexo, sendo a fase de emendas um momento especial,
que permite aos parlamentares apresentar suas propostas de alteração de texto e
introduzir novos conteúdos. Essa foi a razão pela qual se escolheu aquele
momento do processo para a pesquisa, eis que é a mais representativa das forças
que atuaram na reforma trabalhista.
106 Para todos os artigos citados no parágrafo: BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos
Deputados. Regimento interno da Câmara dos Deputados: aprovado pela Resolução n. 17, de
1989, e alterado até a Resolução n. 17, de 2016. 17. Ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara, 2016. 184 p. – (Série textos básicos; n. 134)
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Tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, os
parlamentares estão organizados por Estado Federativo e por partido político,
agrupados por regiões (Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sul e Sudeste), bem como
por comissões ou frentes parlamentares, entre outras formas de agrupamento.
Para os fins da pesquisa, interessou a identificação dos conteúdos das emendas
com foco nos partidos políticos.
Quando da apresentação do Projeto de Lei nº 6.787/2016, a Câmara dos
Deputados era composta por 26 partidos políticos, dos quais, 19 apresentaram
emendas, o que representa uma participação de 73,07% (por cento) das
agremiações partidárias107; não foi apresentada qualquer emenda por deputados
dos seguintes partidos: Partido Republicano da Ordem Social (PROS), Partido
Trabalhista do Brasil (PTdoB), Partido Ecológico Nacional (PEN), Partido da Mulher
Brasileira (PMB) e Partido Republicano Progressista (PRP).
O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), atualmente
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido do então Presidente da
República que deu início à reforma, Michel Temer108, foi o que mais apresentou
emendas ao Projeto, seguido dos seguintes partidos: Partido da República (PR),
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Solidariedade (SD), Progressistas
(PP), Partido Social Democrático (PSD), Partido Comunista do Brasil (PC do B),
107 Bancada parlamentar da Câmara dos Deputados em 23/12/2016. BRASIL. Câmara dos
Deputados. Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados. Bancada Parlamentar da
Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-
camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-geral-da-mesa/estrutura. Acesso em: 27 mai. 2019. 108 Michel Temer (PMDB) – 37º Presidente do Brasil no período de 31 de agosto de 2016 a 1º de
janeiro de 2019. WIKIPEDIA. Michel Temer. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_Temer. Acesso em: 23 mai. 2019.
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Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Democrático Trabalhista (PDT),
Democratas (DEM), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), Partido Social Liberal (PSL), Partido Popular Socialista (PPS), Partido
Republicano Brasileiro (PRB), Rede Sustentabilidade (REDE), Partido Trabalhista
Nacional (PTN), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Partido Humanista da
Solidariedade (PHS)109.
Das 850 emendas apresentadas ao Projeto de Lei nº 6.787/2016, 9 foram
retiradas antes da análise do relator pelos próprios autores, e 21 foram
consideradas inconstitucionais pelo relator, não tendo sido, portanto, analisadas
quanto ao mérito. Das emendas que seguiram para análise de mérito, o relator
propôs a aprovação integral de 105 e, parcial, de 307. Por fim, desse total foram
rejeitadas 408 emendas. Desta forma, 52% das propostas ou foram retiradas pelos
autores, consideradas inconstitucionais pelo relator, ou rejeitadas no seu mérito110.
3. O viés ideológico da reforma trabalhista
A pesquisa que subsidia este artigo realizou o levantamento e a análise
das 850 emendas apresentadas, em ordem numérica, e as identificou por autor e
partido político. Tal metodologia permitiu concluir que o conteúdo repetitivo de
várias emendas indicava uma mobilização suprapartidária no sentido de orientar
109 Toda a tramitação do projeto pode ser consultada na página
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076, conforme
indicado na nota nº 1. 110 Toda a tramitação do projeto pode ser consultada na página
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076, conforme
indicado na nota nº 1.
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parlamentares na defesa de determinadas questões de interesse comum. Isso se
tornava mais evidente quando se analisava o conteúdo das justificativas, muitas
vezes idêntico.
Por outro lado, a aglutinação temática de interesse dos próprios partidos
políticos denota certo posicionamento ideológico em torno de determinados
direitos, como se pode verificar de alguns conteúdos: (a) o trabalho temporário,
que recebeu pospostas de diversos partidos, como PDT, SD, PR, PT, PCdoB, PT,
PSD, PSOL, PSB, PT; (b) a prevalência das convenções e acordos coletivos sobre a
lei, que recebeu propostas, diversas delas idênticas entre si, de vários partidos
políticos, como PR, PSDB, PMDB, PSD, SD, PP, PPS, DEM, PSD e PDT; (c) a concessão
de um intervalo para repouso e alimentação, para tornar obrigatória a
remuneração do período suprimido correspondente com acréscimo de no mínimo
50% sobre o valor da remuneração, que também recebeu propostas idênticas de
representantes dos partidos DEM, PPS, PR, SD, PSDB, PMDB, PSD e PP; (d) a
exigência do pagamento do trabalho que exceda o limite legal ou convencional,
com emendas apresentadas por deputados que representam PPS, PR, PMDB, SD,
PSDB, PSD, PP e PSD; e (e) a exclusão do salário das ajudas de custo, o vale refeição
pago em dinheiro, assim como as diárias para viagem, com emendas de igual
conteúdo provenientes do PR, PMDB, SD, PSDB, PR, PSD e PP.
Para uma melhor análise da vinculação dos partidos à ideologia implícita
nas emendas, foram examinadas as justificativas apresentadas, organizando-as por
partido a que estavam afiliados os deputados autores. É interessante observar que
muitos dos partidos cujos estatutos pregam a defesa dos interesses dos
trabalhadores como objetivo da agremiação alinharam-se aos interesses dos
empregadores, sempre sob o argumento de que o faziam para melhorar a
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competitividades das empresas nacionais, o que, aliás, não tem sido uma
argumentação nova no neoliberalismo, quando de trata de reduzir ou eliminar
direitos sociais.
A partir dessa análise, foi possível classificar as emendas em três grupos:
emendas favoráveis aos trabalhadores; emendas desfavoráveis aos trabalhadores;
e emendas neutras ou procedimentais. Foram definidas como favoráveis aos
trabalhadores aquelas emendas que buscavam restaurar direitos suprimidos pelo
projeto do Executivo e aperfeiçoar questões em favor da classe trabalhadora;111
foram consideradas contrárias aos interesses dos trabalhadores aquelas emendas
que buscavam suprimir, reduzir ou neutralizar direitos já existentes, ou ainda que
traduziam entrave à liberdade dos trabalhadores de exercer ou reivindicar seus
direitos, ou seja, aquelas que, sob a perspectiva dos trabalhadores e entidades
representativas, traziam-lhe prejuízos ou retiravam-lhes direitos. As emendas que
foram classificadas como neutras ou procedimentais foram aquelas cujo objetivo
era simplificar procedimentos administrativos ou atualizar norma que caiu em
desuso, sem importar supressão de direitos ou vantagens dos trabalhadores,
portanto não podendo ser apontadas como contrárias ou favoráveis aos interesses
dos trabalhadores.
O estudo das posições ideológicas das agremiações partidárias tomou por
base os seus estatutos, sobretudo no que diz respeito à defesa dos trabalhadores
e dos direitos sociais, para se saber se a atuação parlamentar correspondeu às
111 . É o caso das Emendas nº: 63, 84, 105, 139, 148, 184, 222, 246, 321, 353, 424, 474,
536, 541, 578, 625, 723, 725, 727, 728, 730, 762, 770, e 774.
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diretrizes estatutárias do partido ou delas se afastou. Assim, foram identificados,
em cada estatuto partidário, a linha ideológica da agremiação e seu
comprometimento com os direitos sociais, o que permitiu fosse avaliada a atuação
de cada parlamentar proponente das emendas, confrontando-se os respectivos
conteúdos com o disposto nos estatutos vigentes à época da tramitação da
reforma trabalhista, conforme página eletrônica da justiça eleitoral.
Tal agrupamento possibilitou concluir que mais de setenta por cento das
emendas contrariavam os interesses dos trabalhadores, afastando-se, assim, os
parlamentares proponentes de seus compromissos estatutários.
Constatou-se que parlamentares de alguns partidos, como o Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido
Comunista do Brasil (PC do B) e o Partido dos Trabalhadores (PT) mantiveram-se
coerentes com o estatuído por suas agremiações, e, mais importante, obtiveram a
aprovação de suas emendas na Comissão Especial.
Houve, porém, partido que negou seus compromissos estatutários, como
o Partido Progressista (PP), que, em que pese se identificar como defensor da
classe trabalhadora, apresentou emendas aprovadas pela Comissão Especial que
contrariam os interesses dos trabalhadores. À exceção de uma única emenda, a nº
533, que foi considerada neutra ou procedimental, todas as demais em que a
agremiação conseguiu aprovação são benéficas ao empresariado.
Já o Partido Social Liberal (PSL), cujo estatuto não se propõe a defender a
classe trabalhadora – não fazendo uma única menção ao trabalhador –, como se
poderia esperar, conseguiu aprovar uma emenda contrária aos interesses
operários, atitude bastante coerente com a ideologia neoliberal adotada pela
agremiação. Com efeito, a referida emenda, a de nº 699, que dispensa a
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autorização prévia da entidade sindical na celebração de convenção ou acordo
coletivo de trabalho constitui, na verdade, mecanismo de enfraquecimento da
representação dos trabalhadores, em claro benefício dos patrões.
Partidos como o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Democrático
Trabalhista (PDT), o Partido Popular Socialista (PPS) e o Partido da República (PR)
se comportaram de forma ambígua. Isto porque os estatutos desses partidos
contêm disposições que denotam clara preocupação com a classe trabalhadora,
não tendo, contudo, os seus parlamentares mantido o compromisso estatutário.
Apresentaram algumas poucas emendas favoráveis aos interesses dos
trabalhadores, posicionando-se, no entanto, majoritariamente em favor daquelas
que beneficiam os patrões.
A participação do DEM foi totalmente contrária aos trabalhadores, não
obstante a pregação em seu estatuto de justiça social. Conhece-se, no entanto, a
postura liberal do partido, não sendo de se esperar que não desse prioridade à
liberdade de iniciativa, ou seja, menos restrições no atuar patronal. De fato, a
justiça social é reconhecida expressamente nos estatutos de outras agremiações,
como o Solidariedade (SD), o Progressistas (PP), o Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que,
entretanto, apresentaram propostas de emendas majoritariamente contrárias aos
interesses dos trabalhadores.
Verificou-se, desta forma, coerência ideológica dos partidos que
expressamente defendem os interesses da classe trabalhadora com as emendas
oferecidas por seus parlamentares, posicionando-se estes contrariamente à
reforma em todas as questões que pudessem trazer algum prejuízo para os
trabalhadores. Notou-se, também, coerência das emendas propostas pelos
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parlamentares do DEM com a ideologia liberal constante do estatuto democrata,
observando-se, porém, que a expressão “justiça social” presente nos estatutos da
agremiação não se concretizou na participação dos membros do partido no
processo de emendamento, porquanto totalmente privilegiado foi o capital em
detrimento do trabalho nas emendas oferecidas pelos deputados da agremiação.
De fato, a justiça social é reconhecida expressamente nos estatutos de
outras agremiações, como o Solidariedade (SD), o Progressistas (PP), o Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB), que, não obstante, apresentaram propostas de emendas
majoritariamente contrárias aos interesses dos trabalhadores, o que permite
concluir pela fluidez das ideologias na política partidária.
Diante, portanto, das evidências constatadas nos achados da pesquisa, em
que se verificou um total de 105 emendas aprovadas ao Projeto de Lei nº
6.787/2016, das quais 75 são contrárias aos interesses dos trabalhadores, e dessas
70 foram apresentadas por partidos que, em seus estatutos, se afirma serem
alinhados às causas e ideais do operariado (PTB, PDT, PPS, PR, PSD, SD, PP, PSDB
e PMDB), pode-se afirmar, com segurança, que a hipótese inicialmente proposta
foi integralmente confirmada. É nítida a existência de um viés ideológico na
Reforma Trabalhista, que em muito se afasta da defesa e garantia dos direitos dos
empregados e em muito se aproxima dos interesses do empresariado.
Considerações finais
Considerando a quantidade expressiva de excluídos, desempregados e
trabalhadores de baixa remuneração no eleitorado brasileiro, como é notório, não
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chega a surpreender o oportunismo político das agremiações de se passarem por
defensores dos menos favorecidos, a fim de obterem os votos de que necessitam
para elegerem seus filiados. Não raro, os discursos das campanhas eleitorais
mencionam compromissos com melhores salários, criação de novos empregos e
efetivação de direitos sociais, temas tão caros aos trabalhadores, não havendo
dúvidas de que muitos dos representantes do povo, eleitos com esse discurso, não
o honram perante os seus eleitores, afeiçoados que são às elites dominantes, que,
muitas vezes, financiam seus projetos políticos.
Pode-se até dizer que o fisiologismo e a falta de compromisso com os
trabalhadores foram sempre características da política brasileira, razão pela qual
os pretendentes a cargos de representação política se filiam a partidos que lhes
dão oportunidade de se lançarem com contribuição pecuniária própria, capaz de
carregar consigo outros tantos eleitos. A confirmação, porém, desse discurso, que
tem lugar comum na sociedade brasileira, não é cogitada neste trabalho, cujo
objetivo foi o de buscar a compatibilidade ou coerência do discurso partidário com
a ação individual dos parlamentares. Qualquer outra hipótese que pudesse ser
cogitada para explicar as organizações partidárias e o comportamento de seus
membros teria de passar pelo estudo de questões afetas à ciência política, o que
não se pretendeu com esta pesquisa. Pôde-se, no entanto, perceber do estudo das
emendas a substancial força política da classe empresarial, que conseguiu em tão
breve espaço de tempo legislativo alterar profundamente a Consolidação das Leis
do Trabalho, em favor do patronato.
Em resumo, é de se concluir que a hipótese central da pesquisa de
identificar, nas emendas oferecidas ao projeto do Executivo, a ideologia nelas
contida e a sua compatibilidade com os ideais dos partidos políticos aos quais
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estão filiados seus autores está comprovada, pois existe viés ideológico na
aprovação da reforma trabalhista, que foi centrada na proteção de apenas um dos
fatores de produção, qual seja, o capital.
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil:
texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações
adotadas pelas Emendas constitucionais ns. 1/1992 a 99/2017, pelo Decreto
legislativo nº 1862008 e pelas Emendas constitucionais de revisão ns. 1 a 6/1994.
– 53. Ed., 1. Reimpr. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. 167
p. – (Série legislação; nº 275 papel). Edição comemorativa dos 30 anos da
Constituição Federal de 1988
______. [Reforma Trabalhista (2017)]. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017.
Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº
5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036,
de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a
legislação às novas relações de trabalho. Brasília: Presidência da República [2019].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/lei/L13467.htm. Acesso em 12 jan. 2019.
______. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.787, de 23 de dezembro de
2016 e emendas. Altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 -
Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para
dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e
sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos
Deputados [2018]. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=21
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______. Câmara dos Deputados. Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos
Deputados. Bancada Parlamentar da Câmara dos Deputados. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-geral-
da-mesa/estrutura. Acesso em: 27 mai. 2019.
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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.
______. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Regimento interno da
Câmara dos Deputados: aprovado pela Resolução n. 17, de 1989, e alterado até
a Resolução n. 17, de 2016. 17. Ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara, 2016. 184 p. – (Série textos básicos; n. 134)
LEITE, Suzana Cristina. A elaboração legislativa da reforma trabalhista:
Análise dos aspectos ideológicos das emendas ao Projeto de Lei n.
6.787/2016, que se transformou na Lei n. 13.467/2017, Brasília/Distrito
Federal. 2020. 267f. Dissertação (Mestrado em Direitos Sociais e Processos
Reivindicatórios) – Curso de Direito, Centro Universitário IESB, Brasília/DF.