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Revista de Direito Trabalho, Sociedade e Cidadania PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM DIREITOS SOCIAIS E PROCESSOS REIVINDICATÓRIOS/PPG-MPDS - ISSN: 2448-2358 [1] Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019. As lentes cínicas do trabalho assalariado e os grilhões da forma jurídica “Saber é poder, porém, tal poder, ainda que permita a identificação de determinadas máscaras ideológicas, não necessariamente se converte em ações concretas direcionadas à destruição de tais máscaras. Como se opera o aprisionamento prático das massas a partir da sua representação jurídica é o que efetivamente será debatido aqui”. Por José Rossini Campos do Couto Corrêa e Guilherme da Hora Pereira. Imagem “Casa dos Loucos” (1814), de Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828), pertencente ao acervo da Academia San Fernando, Madrid/Espanha.

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Revista de Direito Trabalho, Sociedade e Cidadania

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM DIREITOS SOCIAIS E PROCESSOS REIVINDICATÓRIOS/PPG-MPDS - ISSN: 2448-2358

[1]

Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

As lentes cínicas do trabalho assalariado e os

grilhões da forma jurídica

“Saber é poder, porém, tal poder, ainda que permita a

identificação de determinadas máscaras ideológicas, não

necessariamente se

converte em ações

concretas direcionadas à

destruição de tais

máscaras. Como se

opera o aprisionamento

prático das massas a

partir da sua

representação jurídica é o

que efetivamente será

debatido aqui”. Por José

Rossini Campos do

Couto Corrêa e Guilherme da Hora Pereira. Imagem “Casa

dos Loucos” (1814), de Francisco José de Goya y Lucientes

(1746-1828), pertencente ao acervo da Academia San

Fernando, Madrid/Espanha.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Centro Universitário Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB

R454

Revista de Direito: trabalho, sociedade e cidadania

[online]/ Curso de Direito, Centro Universitário IESB. – v.7,

n.7, (jul./dez.2019) - Brasília: IESB, 2019.

Semestral

ISSN: 2448-2358

Disponível em: iesb.br/revistadedireito/

1.Trabalho. 2.Cidadania. 3.Sociedade. 4.Democracia. I.

Departamento de Direito. II. Centro Universitário IESB. IV.

Título.

CDU 340(05)

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

ÍNDICE

Guilherme da Hora Pereira

José Rossini Campos do Couto Corrêa 05

AS LENTES CÍNICAS DO TRABALHO ASSALARIADO E OS GRILHÕES DA FORMA JURÍDICA

Álvaro Augusto Cerqueira Mangabeira

Any Ávila Assunção 43

A POLÍTICA DO RECONHECIMENTO NAS ABORDAGENS DE NANCY FRASER E AXEL

HONNETH: JUSTIÇA OU AUTORREALIZAÇÃO?

Hugo Silva de Aguiar

Augusto César Leite de Carvalho 61

A LEI Nº 13.146/2015 E O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO DA PESSOA COM

DEFICIÊNCIA

Arlene Pereira da Silva Sacco

Augusto César Leite de Carvalho 79

OS IMPACTOS DA JORNADA DE TRABALHO NA VIDA DOS MOTORISTAS

PROFISSIONAIS DE CARGAS DO BRASIL: UMA ANÁLISE DA FLEXIBILIZAÇÃO DA

LEGISLAÇÃO SOCIAL E A CONFIGURAÇÃO DO DANO EXISTENCIAL

Eth Cordeiro de Aguiar

Diogo Palau Flores dos Santos 93

O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS COMO INSTRUMENTO DE

ESTABILIDADE, COERÊNCIA E INTEGRIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS EM PROCESSOS

DE MASSA

Jair Vanderlei Krewer

Douglas Henrique Marin 116

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE: A

(IN)DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

José Henrique Ferreira Bona

Paulo José Leite Farias 163

O AUXÍLIO-RECLUSÃO É UM DIREITO DO PRESO CIVIL?

Aldo Matos Moreno

Ulisses Borges de Resende 179

A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE NA CÂMARA DOS DEPUTADOS – UMA ANÁLISE DA

CONTRIBUIÇÃO SOCIAL NA COMISSÃO DE LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA EM 2018

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Luíza Griebler

Douglas Henrique Marin 213

A BANALIDADE DO MAL NAS UNIDADES DE INTERNAÇÃO DO DISTRITO FEDERAL

Theobaldo Eloy de Carvalho Neto

Douglas Alencar Rodrigues

Augusto César Leite de Carvalho 234

AS RELAÇÕES TRABALHISTAS EM CONSONÂNCIA COM O DESENVOLVIMENTO

EMPRESARIAL SUSTENTÁVEL – A RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA COMO

INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA

Maria Marclane Bezerra Vieira

Any Ávila Assunção 260

TRABALHO DOCENTE E SAÚDE: UM ESTUDO COM PROFESSORES DO INSTITUTO

FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE BRASÍLIA

André Luiz Batista da Costa

Douglas Henrique Marin 279

OS PROCESSOS DE GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E SUAS INFLUÊNCIAS

NOS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO

Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho 298

APRENDENDO DIREITO – DIREITOS SOCIAIS E LIBERDADES DEMOCRÁTICAS

Suzana Cristina Leite

Neide Teresinha Malard 305

O VIÉS IDEOLÓGICO DA REFORMA TRABALHISTA DE 2017

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

AS LENTES CÍNICAS DO TRABALHO ASSALARIADO E OS GRILHÕES DA

FORMA JURÍDICA

GUILHERME DA HORA PEREIRA

Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário

IESB; especialista em Direito e Processo do Trabalho (AVM) e Direito Sindical pelo Centro

Universitário IESB; integra o Grupo de Pesquisa Justiça e Filosofia Política do Curso de

Direito IESB, Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Sociabilidade e Serviço Social

pela Universidade de Brasília (UnB); membro da Associação Brasileira de Juristas pela

Democracia (ABJD); advogado.

JOSÉ ROSSINI CAMPOS DO COUTO CORRÊA

Doutor em Teologia ThD pela Faculdade de Teologia Antioquia Internacional, em

Theology pela Antioch Christian University, em Sociologia pela Universidade de Brasília

(UnB); doutor e pós-douto em Direito Internacional pela American World University; Livre

Docente em Direito pela Emill Brunner World University (2015); ambassador da American

Diplomatic Mission of International Relations Intergovernmental Organization; mestre

em Ciência da Religião pelo Instituto de Ensino Superior Evangélico; mestre em Direito

Canônico pela Faculdade Teológica Panamericana; mestre em Ciências Sociais pela

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); bacharel em Ciências Sociais pela

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bacharel em Direito pela Universidade

Católica de Pernambuco (UNICAP); professor do Centro Universitário Instituto de

Educação Superior de Brasília (IESB); membro correspondente do Instituto Histórico e

Geográfico do Maranhão-IHGM e da Academia Maranhense de Letras Jurídicas-AMLJ;

pertence à Associação Nacional de Escritores-ANE e é membro titular da Academia

Brasiliense de Letras-ABrL; membro Titular da Comissão Especial de Educação, do

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil-CFOAB

Resumo

O presente artigo busca retomar a perspectiva da crítica da forma jurídica empregando a

dialética materialista marxiana à expressão do direito na sociedade burguesa e, dessa

maneira, analisando as medidas em que ele se relaciona estruturalmente com as condições

reais de exploração estabelecidas entre os homens proprietários de mercadorias. Para

tanto, a partir do emprego do magistério de Evguiéni B. Pachukanis como principal

expoente do marxismo jurídico e das formulações advindas da sua obra fundamental, A

teoria geral do direito e marxismo (1919), articulada com a base fundamental do

pensamento marxiano acerca do trabalho assalariado, lançado em Salário, preço e lucro

(1865) e Trabalho assalariado e capital (1849), buscar-se-á retirar o véu do cinismo da

razão jurídica burguesa para, analisando o estreito vínculo entre a forma-mercadoria e a

forma jurídica, recuperar a crítica radical do direito e demonstrar a sua natureza

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irremediavelmente burguesa, servil aos modelos de exploração do homem pelo próprio

homem e condescendente com o domínio da classe proprietária dos meios de produção

por sobre a classe daqueles que nada possuem.

Palavras-Chave: Mercadoria. Trabalho assalariado. Marx. Pachukanis.

THE CYNICAL LENSES OF WAGE AND THE JURIDICAL FORM CHAINS

Abstract

The present article seeks to take up the perspective of the critique of the legal form by

applying the Marxian materialist dialectic to bourgeois-law society and, consequently,

investigating the measures in which it is structurally related to the actual conditions of

exploitation established among good-owner men. To this purpose, by utilizing the guide

of Evguiéni B. Pachukanis as the main exponent of legal Marxism and the formulations

obtained from his fundamental work, The General Theory of Law and Marxism (1919),

articulated with the fundamental basis of Marxian theory about the wage labor, launched

in Wage, Price and Profit (1865) and Wage Labor and Capital (1849), will seek, by analyzing

the close link between commodity form and legal form, to remove the veil of cynicism

from bourgeois legal reason to reclaim the radical critique of law and prove its fatally

bourgeois nature, servile to the men's exploitation of men and condescending to the

power of the production means owner class over the no-good owners.

Keywords: Law. Commodity. Labour. Pachukanis. Marx.

Introdução

“A história é um paradoxo andante. A contradição move-lhe as pernas.

Talvez por isso os seus silêncios digam mais que as suas palavras e muitas vezes as suas palavras

revelam, mentindo, a verdade. ”

Eduardo Galeano

Como se apresenta a forma jurídica na sociedade burguesa, e em que

medidas ela se relaciona estruturalmente com as condições reais de exploração

estabelecidas entre os proprietários de mercadorias? A resposta ao problema ora

identificado deve ser encontrada, em nosso ver, na trilha do caminho filosófico

desmistificador capaz de elucidar as controvérsias em torno da base material da

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forma jurídica e da sua relação com a infraestrutura das relações econômicas

inerentes às relações de produção no capitalismo.

Nesse sentido, o método de Marx revela, com relativa facilidade, a

viabilidade de se explorar as possibilidades de uma crítica às formas de dominação

de classe que se realizam por meio do direito e da forma jurídica, particularmente

no que diz respeito à representação jurídica da política consagrada pelo Estado

burguês. Vale dizer, é exatamente nesse sentido que se direcionam as páginas

vindouras, sem, contudo, nenhuma pretensão de esgotar o debate, mas, ao

contrário, de incita-lo a partir da identificação de elementos que afastem a razão

cínica do direito enquanto sistema autônomo natural, perene e imutável, revelando

a sua constituição pela forma-mercadoria assim apreendida em seus momentos

constitutivos mais importantes: a troca e a circulação.

Para tanto, a leitura propõe-se a revisitar obras fundamentais do marxismo

jurídico, habilitando-se a enfrentar a problemática em torno do sujeito de direitos

e do trabalho (ou da força de trabalho) como mercadoria, trazendo à superfície a

reflexão em torno dos problemas da relação salário-capital-trabalho, dentre as

quais destacam- se as formulações advindas da obra fundamental de Evguiéni B.

Pachukanis, A teoria geral do direito e marxismo (1919), e sua íntima relação com

os escritos marxianos publicados em Salário, preço e lucro (1865) e Trabalho

assalariado e capital (1849).

Nessa toada, já na primeira seção apresentaremos ao leitor o modelo da

dialética dos olhos, direcionada a identificar a crueza dos fatos ensejadores do

fazer, contrapondo-os ao saber coletivo e individual, assim revelando o cinismo da

razão consciente. O olhar kynikos, resgatado da filosofia clássica de Diógenes, se

apresenta como acessório essencial em toda a caminhada crítica, pela sua

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capacidade de enxergar através das ilusões e formatar o saber social a partir da

superação da falsa consciência ideológica.

Porém, o mero saber social empoderado pelo olhar consciente da razão

cínica não é suficiente para retirar as máscaras das estruturas burguesas de

dominação. Saber é poder, porém, tal poder, ainda que permita a identificação de

determinadas máscaras ideológicas, não necessariamente se converte em ações

concretas direcionadas à destruição de tais máscaras. Como se opera o

aprisionamento prático das massas a partir da sua representação jurídica é o que

efetivamente será debatido aqui.

Assim, na segunda seção, afasta-se o leitor da reflexão acerca do conteúdo

material do direito para leva-lo a analisar a forma jurídica em si, a sua genealogia

e a natureza da determinação suportada pelo direito enquanto chave da explicação

histórica do modo de pensamento conceitual abstrato, da divisão entre o trabalho

intelectual e manual e das suas relações de equivalência juridicamente admitidas.

Na terceira seção, apresenta-se o pensamento de Pachukanis como

formulação teórica fundamental ao estabelecimento de uma teoria capaz de

criticar a forma jurídica a partir de uma análise marxista do direito enquanto forma

histórica determinada, assim consagrando a natureza do direito como a correlação

jurídica destinada a conservar as relações de equivalência típicas de um modelo

produtivo fundamentado em processos de troca e de circulação de mercadorias.

O modelo estrutural do pensamento jurídico formulado por Pachukanis se

apresenta como o mais adequado a revelar a transposição do fetichismo da

mercadoria ao fetichismo normativo destinado a repartir valores abstratos

universalmente admitidos e preservados por um Estado impessoal.

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Tal modelo é complementado, na quarta seção, pela concepção do átomo

da forma jurídica - o sujeito de direito -, e a sua inserção no conceito de liberdade

mercantil burguesa, limitada a sua inserção na esfera de circulação como

proprietário de si mesmo, capaz de dispor da sua força de trabalho (e do seu tempo

de vida) como mercadoria, adjudicando-a a terceiros por intermédio de uma

abstração da forma-mercadoria mediatizada pelo direito, naquela que é a

manifestação cínico-concreta mais elementar da forma-mercadoria juridicamente

mediatizada: o trabalho assalariado enquanto elemento fundamental do

metabolismo socioeconômico da produção capitalista.

1 Os olhos sob as lentes do cinismo e a falsificação da consciência

Os olhos possuem um estatuto cognitivo privilegiado em relação aos

demais órgãos do corpo humano: podem ver o mundo, mas, também, podem ver-

se vendo. Não por acaso, Peter Sloterdijk (2012) afirma serem os olhos os modelos

orgânicos da filosofia. Nesse contexto, o pensamento filosófico (ou ao menos parte

dele) constitui uma dialética dos olhos (SLOTERDIJK, 2012) conformada no sentido

de que “nos olhos se acha localizado uma parte de nossa estrutura de pensamento,

particularmente a dialética da direita e da esquerda, do masculino e do feminino,

do reto e do oblíquo” (SLOTERDIJK, 2012, p. 207).

O modelo da filosofia dos olhos adotado nestas linhas exige da crítica e do

crítico o olhar sobre superfícies reflexivas bem definidas, através das quais “a visão

da visão se faz visível” (SLOTERDIJK, 2012, p. 206). Nesse sentido, tomando

emprestada de Diógenes de Sínope a alegoria do olhar kynikos, capaz de observar

a sociedade sem máscaras, e orientando a visão crítica partir da nudez e da crueza

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dos fatos (sejam estes belos ou feios), busca-se afastar as máscaras da presunção

da crítica idealista e, assim, aproximar a presente reflexão da verdade em relação

às realidades concretas sob análise.

Porém, o problema abordado não se resolve meramente a partir do

afastamento das máscaras idealistas, mas passa, primordialmente, pela

identificação de tais máscaras e pelo isolamento das lentes do cinismo que

insistem em pender sobre os olhos do crítico, falseando-lhe a consciência e

tornando a sua crítica “mais ingênua do que a consciência que ela quis

desmascarar” (SLOTERDIJK, 2012, p. 31). Vale salientar, a fórmula de abstração

crítica e observação científica pelo olhar kynikos, o olhar filosófico em direção à

nudez (aqui compreendida como essência), em muito nos parece semelhante ao

paradoxo do sonho de Freud1 - inclusive em sua desmistificação em duas etapas2

- segundo o qual “no fundo, os sonhos nada mais são do que uma forma particular

de pensamento, possibilitada pelas condições do estado de sono. É o trabalho do

sonho que cria essa forma, e somente ele é a essência do sonho – a explicação de

sua natureza peculiar” (FREUD apud ZIZEK, 1996, p. 300).

1 Zizek explica o paradoxo freudiano do sonho da seguinte forma: o desejo in consciente, aquilo que

supostamente constitui o seu núcleo mais oculto, articula-se precisamente através do trabalho de dissimulação

do núcleo do sonho, de seu pensamento latente, através do trabalho de disfarçar esse conteúdo-núcleo por

meio de sua tradução no rébus do sonho. (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 299.) 2 “Primeiro, devemos eliminar a aparência de que um sonho nada mais é que uma simples confusão sem

sentido, um distúrbio causado por processos fisiológicos e, como tal, nada tem a ver com a significação. Em

outras palavras, devemos dar um passo crucial em direção a uma abordagem hermenêutica e conceber o

sonho como um fenômeno dotado de sentido, como algo que transmite uma mensagem recalcada, que tem

que ser descoberta por um método interpretativo; Depois, temos de nos livrar do fascínio desse núcleo de

significação, do ‘sentido oculto’ do sonho - isto é, do conteúdo escondido por trás da forma de um sonho - e

centrar nossa atenção nessa forma ela mesma, no trabalho do sonho a que ‘os pensamentos oníricos latentes’

foram submetidos.” (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 300.)

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Caracterizando as lentes do cinismo, Sloterdijk (2012) ensina que o cultivo

do cinismo moderno dá-se a partir do estabelecimento da ponte entre o saber de

cima e o saber de baixo, pela sociedade civil burguesa, ambicionando erigir a sua

imagem de mundo como realismo e as suas verdades como naturais, refletidas em

esferas públicas universalmente aceitas e auto-evidentes. Em Sloterdijk (2012) a

razão cínica se apresenta como a falsa consciência esclarecida, reproduzida,

sobretudo por seus representantes principais (ocupantes de postos-chave difusos

por toda a sociedade burguesa - diretores, parlamentos, universidades, redações,

mídia, bancos, etc.) a partir de um posicionamento conscientemente falso diante

de uma determinada objetividade estrutural.

Aqui a dialética dos olhos é novamente consagrada, uma vez que este

cinismo dos senhores, referido inicialmente por Sloterdijk (2012) reproduz-se com

o sentido de cinismo da classe dos senhores3, assumindo o papel de uma lente

posta sobre os olhos dos poderes, capaz de agir como superfície reflexiva

propositalmente rachada. Isso porque tais lentes, ainda que admitam o

esclarecimento da consciência crítica e, ato contínuo, permitam ao crítico

reconhecer, em seu saber-poder, que a ilusão projetada sob seus olhos (de que

por trás das leis que garantem o exercício do poder pela burguesia escondem-se

fatores materiais não-perenes, não-naturais e, muito menos, eternos ou universais

- mas que se manifestam como tal), não afasta dessa ilusão o seu fazer-poder.

3 O que nos permite introduzir ao conceito uma tintura da dialética-materialista, conforme veremos adiante.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Sloterdijk vai ainda mais além na sua metáfora dos olhos, afirmando que a

manifestação reflexiva do cinismo dos senhores frequentemente leva-os ao

estrabismo:

Os olhos dos cínicos autênticos se traem por um brilho argênteo, uma

sutil convergência ou uma sutil divergência. (...) Entre os intelectuais,

acha-se com frequência uma estranha apatia nos olhos. Ela provém, em

boa parte, do fato de, nos estudos, os olhos serem constantemente

obrigados a ler coisas que jamais aceitariam se dependesse deles. Devem

servir como simples instrumentos de leitura, e não é de se admirar que,

habituados às linhas negras, o olhar desses homens sob ré o mundo se

distancie da realidade. (...) Esse olhar fixa coisas nas quais ele não penetra

e cuja existência verdadeiramente não o satisfaz. Há nesses olhos uma

expressão semelhante ao falso sorriso. O olhar cínico faz as coisas

saberem que, por meio dele, elas não existem realmente, senão como

fenômeno e como informação. (...) Ele as apreende, as registra, e apenas

pensa na conservação de si mesmo (SLOTERDIJK, 2012, p. 207-208).

A fórmula da razão cínica proposta por Sloterdijk pode ser explicada,

portanto, pela seguinte proposição: eles (os críticos em sua falsa consciência

esclarecida) sabem que, em sua atividade, estão seguindo uma ilusão, mas fazem-

na assim mesmo.

É verdade que, em sua interpretação mais ambiciosa, a razão cínica anseia

por superar a crítica marxiana da ideologia enquanto falsa consciência. Inclusive, é

com esse objetivo que Sloterdijk tenta caracterizar a ideologia como “um

desconhecimento da realidade social que faz parte dessa mesma realidade” (ZIZEK

In ZIZEK (Org.), 1996. p. 312), e que, por isso mesmo, estaria superada na medida

em que o próprio desconhecimento já teria sido superado no cinismo.

Nesse ponto, cabe salientar que Marx, de fato, pensa a ideologia a partir de

uma espécie de ingenuidade constitutiva básica em relação à realidade social. As

lentes da ideologia em Marx distorcem a representação do real e falseiam a

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consciência apreendida a partir da experiência concreta. O método marxiano

clássico (e posteriormente todas as críticas da ideologia) tem por objetivo,

portanto, elevar a consciência ideológica ingênua “a um ponto em que ela possa

reconhecer suas próprias condições efetivas, a realidade social que ela distorce e,

mediante esse ato mesmo, dissolver-se” (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 312). É

exatamente esse o ponto atacado pela crítica de Sloterdijk, na medida em que esta

dissolve a ingenuidade da consciência ideológica em um caldo de perversão da

consciência, de moralidade posta a serviço do imoral em uma espécie de “negação

da negação da ideologia oficial” (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 313).

Segundo Zizek, o cinismo “reconhece, leva em conta o interesse particular

que está por trás da universalidade ideológica, a distância que há entre a máscara

ideológica e a realidade, mas ainda encontra razões para conservar a máscara”

(ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 313). Nesse cinismo da razão, a atividade torna-se

transcendente ao seu próprio autor, e a alegada universalização da liberdade, que

parece ter sido conquistada pelo homem, se transforma em ficção, mera aparência

refletida no espelho das leis infraestruturais, uma verdadeira histeria de conversão

normativa, idealista e ideológica, que, simultaneamente, regula e aprisiona a

sociedade burguesa, similar à teia cujos fios representam a liberdade fictícia que,

no pensamento espinosista, uma pedra lançada teria se possuísse consciência

(MOREAU, 1982).

Porém, e eis um ponto fundamental, a crítica da razão cínica, ainda que

consiga justificar a conservação das máscaras ideológicas sob uma perspectiva

consciente-teimosa de nítida inspiração no saber é poder baconiano - em que as

lentes do cinismo são deliberadamente empregadas pelos agentes da

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racionalidade para justificar moralmente uma determinada conduta social4 - não

é, por si só, habilitada a lançar as relações sociais em um círculo de mera

instrumentalidade pós-ideológica, vez que “deixa intacto o nível fundamental da

fantasia ideológica, o nível em que a ideologia estrutura a própria realidade social.”

(ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 314).

Destarte, a crítica da razão cínica em torno da alegada superação da

ideologia não resiste à avaliação em duas etapas de Freud e Marx, vez que explica

apenas parcialmente - no plano do saber - a problemática da estruturação da

consciência suscitada por Marx, deixando intacto o plano do fazer, em que impera

a fantasia estrutural da ideologia como fundamento da realidade social e do fetiche

prático, para onde o cinismo da razão empurra a atividade real cotidiana a

espontânea dos indivíduos e, mesmo, das classes em luta.

A esse respeito, apresenta-se tal distinção pela observação o segredo da

forma-mercadoria a partir da articulação analítica em duas etapas formulada por

Marx5, sobretudo quando tal análise é centrada na expressão jurídica da forma-

mercadoria e sua expressão material da fantasia ideológica: o trabalho assalariado.

2 O cinismo da forma jurídica e a circulação de mercadorias

A forma-mercadoria em Marx deve ser articulada em duas etapas:

4 Em Sloterdijk “o senhor cínico retira a máscara, sorri para seu frágil adversário – e o oprime.

C’est l avie. Nobreza obriga. É preciso haver ordem. A pressão da realidade ultrapassa

frequentemente a compreensão dos afetados, não é verdade? Pressão do poder, pressão da

realidade! O poder hegemônico, em seu cinismo, revela um pouco dos seus segredos, pratica um

autoesclarecimento e fala de suas práticas secretas. O cinismo dos senhores é uma insolência que

trocou de lado.” (SLOTERDIJK, 2012. p. 166) 5 Que em muito se assemelha à articulação da desmistificação do paradoxo do sonho freudiana, já referida.

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Primeiro, devemos eliminar a aparência de que o valor de uma

mercadoria depende do puro acaso – de uma interação acidental entre a

oferta e a procura, por exemplo. Devemos dar o passo crucial de

conceber o “sentido” oculto por trás da forma-mercadoria, a significação

“expressa” por essa forma; devemos penetrar no “segredo” do valor das

mercadorias.

(...)

Contudo, como assinala Marx, existe um certo “ainda”: o

desmascaramento do segredo não basta. A economia política burguesa

clássica já descobrira o “segredo” da forma-mercadoria; sua limitação

consiste em que ela não é capaz de se desligar desse fascínio do segredo

oculto por trás da forma-mercadoria – sua atenção é cativada pelo

trabalho como a verdadeira fonte da riqueza. Em outras palavras, a

economia política clássica interessa-se apenas pelos conteúdos

escondidos por trás da forma-mercadoria, razão por que não consegue

explicar o verdadeiro segredo, não o segredo por trás da forma, mas o

segredo da própria forma. A despeito de sua explicação bastante correta

do “segredo da magnitude do valor”, a mercadoria permanece, para a

economia política clássica, como uma coisa misteriosa e enigmática – tal

como sucede com o sonho: mesmo depois de havermos explicado seu

sentido oculto, seu pensamento latente, o sonho continua a ser um

fenômeno enigmático; o que ainda não está explicado é simplesmente

sua forma, o processo mediante o qual o sentido oculto disfarçou-se

nessa forma (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 300-301).

Tal modelo analítico é fundamentalmente caracterizado pelo afastamento

do fascínio fetichista do “conteúdo supostamente oculto pela forma” (ZIZEK In

ZIZEK (Org.), 1996. p. 297), de modo que a análise recai não sobre o conteúdo

oculto, mas sobre segredo da forma em si. 6 O passo crucial que oferece a

6 Zizek é quem melhor relaciona a análise da forma em Freud e Marx ao dissecar a noção de sintoma marxista

revelada por Lacan: “O entendimento teórico da forma dos sonhos não consiste em desvendar, a partir do

conteúdo manifesto, seu “cerne oculto”, os pensamentos latentes do sonho; consiste na resposta à pergunta:

por que os pensamentos latentes do sonho assumiram essa forma, por que foram transpostos para a forma de

um sonho? O mesmo acontece com as mercadorias: o verdadeiro problema não é penetrar no “cerne oculto”

da mercadoria – na determinação de seu valor pela quantidade de trabalho consumida em sua produção -,

mas explicar por que o trabalho assumiu a forma do valor de uma mercadoria, por que ele só consegue afirmar

seu caráter social na forma-mercadoria de seu produto.” (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 297).

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possibilidade de olhar através da fantasia ideológica é direcionado, nessa esteira,

à gênese da forma. A análise formal da mercadoria fornece não apenas o ponto

fundamental da crítica da economia política, mas também a chave da explicação

histórica do modo de pensamento conceitual abstrato e da divisão entre o trabalho

intelectual e manual (SOHN-RETHEL, 1978), e todas as relações de equivalência daí

derivadas, inclusive o direito.

Ainda segundo Zizek, e daí a relevância da análise genealógica da forma-

jurídica em Marx:

É como se a dialética da forma-mercadoria nos apresentasse uma versão

pura – destilada, por assim dizer – de um mecanismo que nos oferece

uma chave para a compreensão teórica de fenômenos que, à primeira

vista, nada têm a ver com o campo da economia política (direito, religião,

etc.) (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 301).

É nessa perspectiva que Evguiéni B. Pachukanis, ao empregar o método

desenvolvido por Marx em O capital, habilita-se a apontar as “razões pelas quais

uma relação social determinada se configura, em determinadas condições, na

forma específica do direito” (NAVES, 2008, p. 11). Pachukanis é bastante preciso

em sua intenção de estabelecer uma teoria geral do direito a partir da análise

marxista da forma jurídica enquanto forma histórica determinada, assim

ultrapassando o mero conteúdo material da regulamentação.

Tal contexto é claro na seguinte passagem de sua principal obra, Teoria

geral do direito e marxismo:

É preciso notar que, em geral, os autores marxistas, ao falar dos conceitos

jurídicos, tem em vista, essencialmente, o conteúdo concreto da

regulamentação jurídica inerente a uma ou outra época, ou seja, aquilo

que as pessoas consideram o direito em dado estágio de

desenvolvimento. (...) Entretanto, não resta dúvida de que a teoria

marxista deve não apenas examinar o conteúdo material da

regulamentação jurídica nas diferentes épocas, mas também oferecer

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uma interpretação materialista da própria regulamentação jurídica como

uma forma histórica determinada (PACHUKANIS, 2017, p. 72).

A genealogia da forma jurídica encontra em Pachukanis a sua

correlação com as categorias formadoras da totalidade concreta marxiana,

desenvolvendo-se como um sistema específico de relações que sujeita os

indivíduos não por suas próprias escolhas, mas por força de um conjunto de

relações sociais de produção, pois “o homem se transforma em sujeito de direito

por força daquela mesma necessidade em virtude da qual o produto natural se

transforma em mercadoria dotada da enigmática qualidade do valor”

(PACHUKANIS, 2017, p. 83).

Enquanto Marx revelou, nas suas glosas marginais ao programa de

Gotha, o vínculo interno entre a forma do direito e a forma da mercadoria,

identificando a condição fundamental da existência da forma jurídica na igualação

dos dispêndios do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes (MARX,

2012), Pachukanis, na sua teoria geral do direito, aprofundou a perspectiva

marxiana ao preconizar

uma sociedade que, devido às condições de suas forças produtivas, é

forçada a conservar a relação de equivalência entre o trabalho gasto e a

remuneração, que ainda remotamente lembra a troca entre valores e

mercadorias, será forçada a conservar também a forma do direito.

(PACHUKANIS, 2017, p. 80).

Nesse ponto, é interessante destacar a relativa aproximação da forma

jurídica em Pachukanis com a definição instrumental de Piotr Ivanovich Stuchka,

segundo a qual “o Direito é um sistema (ou uma ordem) de relações sociais, que

corresponde aos interesses da classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo

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seu poder organizado (o Estado)” (STUCHKA, 2001, p. 76). O Direito é, assim,

concebido sistematicamente como ordem de fenômenos sociais e políticos

organizados em torno de relações econômicas juridicamente contextualizadas a

partir de uma forma concreta (a relação econômica propriamente dita) e de outras

duas formas abstratas (a proclamação legal e a ideologia) (STUCHCKA, 1988).

Destarte, a manifestação dialética do materialismo-histórico é revelada na

medida em que a primazia da relação econômica frente às demais formas abstratas

de manifestação do Direito é expressa pela clássica fórmula marxiana da base-

superestrutura (STUCHKA, 1988) e em suas relações reciprocamente estruturadas

em torno da economia social vigente. É exatamente neste recorte da teoria da

forma jurídica marxista que se solidifica a sua relação com o olhar kynikos: a crítica

burguesa vê e aborda somente o reflexo de uma existência material representada

pelas relações sociais de troca e pela circulação de mercadorias juridicamente

contextualizadas.

O ponto central, aqui, é o fetichismo prático - a fantasia ideológica da

universalização de uma prática materialmente condicionada - bem apreendido a

partir da crítica marxiana à lógica do conceito de Hegel, consistente na inversão

especulativa entre o universal e o particular, referenciada já no primeiro capítulo

da primeira edição de O Capital nos seguintes termos:

A inversão mediante a qual o que é sensível e concreto conta apenas

como uma forma fenomênica do que é abstrato e universal, ao contrário

do verdadeiro estado de coisas, em que o abstrato e o universal

importam apenas como uma propriedade do concreto, essa inversão é

característica da expressão do valor, e é essa inversão que, ao mesmo

tempo, torna tão difícil compreender essa expressão. Se digo que o

direito romano e o direito germânico são ambos leis, isso é uma coisa

evidente. Mas se, ao contrário, digo “A lei, essa coisa abstrata, realiza-se

no direito romano e no direito germânico, isto é, nessas leis concretas”, a

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interconexão torna-se mística. (MARX apud ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996.

p. 315).

Interagindo com Marx e Pachukanis (ainda que jamais referencie o

segundo), Zizek desnuda a ilusão da ideologia burguesa cotidiana - da qual a

forma jurídica é uma constante - ao analisar o indivíduo burguês-médio, que age

como se as coisas particulares (especificamente as mercadorias) fossem apenas um

punhado de personificações do valor universal:

A pergunta a fazer é, mais uma vez: onde está a ilusão? Não devemos

esquecer que o indivíduo burguês, em sua ideologia cotidiana,

definitivamente não é um hegeliano especulativo: ele não concebe o

conteúdo particular como resultante de um movimento autônomo da

Idéia universal. Ao contrário, é um bom nominalista anglo-saxão, que

acha que o Universal é uma propriedade do Particular – isto é, das coisas

que realmente existem. O valor em si não existe, há apenas coisas isoladas

que, entre outras propriedades, têm valor. (...) Reformulando a frase de

Marx: Ele sabe muito bem que o direito romano e o direito germânico

são apenas dois tipos de lei, mas, em sua prática, age como se a Lei em

si, essa entidade abstrata, se realizasse no direito romano e no direito

germânico (ZIZEK In ZIZEK (Org.), 1996. p. 315).

As passagens acima selecionadas revelam a profunda relação entre

as formas do Direito, o modo de produção capitalista e o Estado, “precisamente

porque só na sociedade burguesa a forma jurídica alcança o seu mais alto grau de

abstração” (NAVES, 2008, p. 50). A confirmação teórica dessa observação vem nas

passagens de O Estado e a Revolução, de Lenin, no ponto em que o líder

bolchevique enuncia: “o direito burguês, no que concerne à repartição dos bens

de consumo, pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é

nada sem um aparelho capaz de impor a observação de suas normas” (LENIN,

2017, p. 187-188).

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Não obstante, é Pachukanis quem, confirmando a sua filiação marxista-

leninista, disseca a relação entre o desenvolvimento da forma jurídica e o

desenvolvimento da sociedade burguesa 7 , sintetizando-o no fenômeno da

circulação:

Assim, o princípio da subjetividade jurídica e os alicerces de sua

esquemática, que para a jurisprudência burguesa representa o esquema

da vontade humana a priori, decorre com absoluta inevitabilidade das

condições da economia mercantil-monetária. A compreensão

estritamente empírica e técnica da ligação entre esses dois momentos é

expressa na reflexão de que o desenvolvimento da mercadoria demanda

a garantia de propriedade, de bons tribunais, de boa polícia etc. Contudo,

quando mais profundamente se examina a coisa, mais fica claro que não

apenas este ou aquele dispositivo técnico do aparato estatal cresce no

terreno do mercado, mas que entre as próprias categorias da economia

mercantil-monetária e a forma jurídica existe uma ligação interna

indissociável. Em uma sociedade em que existe o dinheiro, em que,

portanto, o trabalho privado isolado torna-se social apenas por

intermédio de um equivalente universal, já se colocam todas as condições

para a forma jurídica e suas contradições: entre o subjetivo e o objetivo,

o privado e o público (PACHUKANIS, 2017, p. 63).

Destaque-se que é precisamente na sua capacidade de identificar

satisfatoriamente como as relações sociais infraestruturais se transformam em

relações jurídicas que Pachukanis supera Stutchka. Segundo aquele jusfilósofo

soviético, a forma jurídica pressupõe, necessariamente, uma sociedade na qual

impera o princípio da divisão do trabalho, ou seja, “uma sociedade na qual os

trabalhos privados só se tornam trabalho social mediante a intervenção de um

7 Segundo o teórico soviético, “o desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos fundamentais

não apenas nos oferece a forma do direito em seu aspecto mais exposto e dissecado, mas, ainda,

reflete o processo de desenvolvimento histórico real, que não é outra coisa senão o processo de

desenvolvimento da sociedade burguesa” (PACHUKANIS, 2017,p. 76).

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equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o circuito das trocas exige a

mediação jurídica (...)” (NAVES, 2008, p. 57).

Aqui repousa, talvez, a maior das controvérsias em torno da natureza teórica

do direito para o marxismo. O próprio Marx, em sua Crítica ao Programa de Gotha,

discorre sobre as distorções do igual direito e do princípio que regula a troca de

mercadorias enquanto troca de equivalentes, veja-se:

A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma forma,

agora ele a obtém de volta em outra forma. Aqui impera, é evidente, o

mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que

esta é troca de equivalentes. Conteúdo e forma são alterados, porque,

sob as novas condições, ninguém pode dar nada além de seu trabalho e,

por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios

individuais de consumo. No entanto, no que diz respeito à distribuição

desses meios entre os produtores individuais, vale o mesmo princípio que

rege a troca entre mercadorias equivalentes, segundo o qual uma

quantidade igual de trabalho em uma forma é trocada por uma

quantidade igual de trabalho em outra forma. Por isso, aqui, o igual

direito é ainda, de acordo com seu princípio, o direito burguês, embora

o princípio e prática deixem de se engalfinhar, enquanto na troca de

mercadorias a troca de equivalentes existe apenas em média, não para o

caso individual. Apesar desse progresso, esse igual direito continua

marcado por uma limitação burguesa. O direito dos produtores é

proporcional a seus fornecimentos de trabalho; a igualdade consiste,

aqui, em medir de acordo com um padrão igual de medida: o trabalho.

Mas um trabalhador supera o outro física ou mentalmente e fornece,

portanto, mais trabalho no mesmo tempo ou pode trabalhar por mais

tempo; e o trabalho, para servir de medida, ou tem de ser determinado

de acordo com sua extensão ou sua intensidade, ou deixa de ser padrão

de medida. Esse igual direito é direito desigual para trabalho desigual. Ele

não reconhece nenhuma distinção de classe, pois cada indivíduo é

apenas trabalhador tanto quanto o outro; mas reconhece tacitamente a

desigualdade dos talentos individuais com privilégios naturais e, por

conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores. Segundo seu

conteúdo, portanto, ele é, como todo direito um direito da desigualdade.

O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão

igual de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam

indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos

segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo

ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado,

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por exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas

como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros

aspectos são desconsiderados. Além disso: um trabalhador é casado, o

outro não; um tem mais filhos do que o outro etc. etc. Pelo mesmo

trabalho e, assim, com a mesma participação no fundo social de

consumo, um recebe, de fato, mais do que o outro, um é mais rico do

que o outro etc. A fim de evitar todas essas distorções, o direito teria de

ser não igual, mas antes desigual. Mas essas distorções são inevitáveis na

primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um

longo trabalho de parto, da sociedade capitalista (MARX, 2012. p. 30-31).

É, afinal, a relação de equivalência que revela a forma específica do direito

e suas distorções intrinsecamente burguesas, nos moldes do que Marx referia ao

afirmar que “o direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o

desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade” (MARX, 2012, p.

31).

São as considerações de Pachukanis que escancaram os elementos

coercitivos da forma-mercadoria cinicamente ocultos por detrás de uma forma-

jurídica mediatizada pela alegada vontade geral abstrata do Estado8:

A máquina do Estado se realiza de fato como ‘vontade geral’ impessoal,

como ‘poder de direito’ etc., na medida em que a sociedade representa

um mercado. No mercado, cada comprador e cada vendedor é um sujeito

de direito par excellence: A partir do momento que entram em cena as

categorias de valor e valor de troca, a vontade autônoma das pessoas

que participam da troca passa a ser o pressuposto. (...) A coerção como

prescrição de uma pessoa sobre outra, sustentada pela força, contradiz a

premissa fundamental da relação entre os possuidores de mercadorias e

8 Evidentemente que a representação jurídica do Estado Burguês em Pachukanis acompanha aquela expressa em Marx, fundando-se na separação entre o Estado (esfera pública) e a sociedade civil (esfera privada), advinda da distinção jurídica entre o público e o privado que habilita a exclusão da órbita estatal de toda a representação de classe. A melhor análise sobre o corte burguês entre sociedade/Estado e a separação homem/cidadão, além do óbvio Sobre a questão judaica, de Marx, é aquela formulada por Michel Miaille em seu L’État du droit (ano).

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dentro dos limites do ato de troca, a função de coerção não pode

aparecer como função social, já que não é abstrata e impessoal. (...) É por

isso que a coerção não pode aparecer aqui em sua forma não mascarada,

como um simples ato de conveniência, ela deve aparecer como coerção

proveniente de uma pessoa abstrata e geral, como uma coerção que

representa não os interesses do indivíduo da qual provém – já que na

sociedade mercantil toda pessoa é egoísta -, mas os interesses de todos

os participantes das relações jurídicas. O poder de uma pessoa sobre

outra é exercido como poder do próprio direito, ou seja, como o poder

de uma norma objetiva e imparcial (PACHUKANIS, 2017, p. 146).

Isso porque a forma jurídica é a forma particular que as relações sociais

adquirem no capitalismo, o que demonstra a plausibilidade da tese pachukaniana

da especificidade burguesa do direito na medida em que o princípio da

equivalência transparece a constituição da forma jurídica sob o modelo da fábrica,

o que somente se revela possível em uma sociedade na qual o trabalho humano

medido pelo tempo – o funcionamento social sob o controle do cronômetro - é a

forma social dominante (NAVES, 2008). É o direito como mediação entre sujeitos

que trocam inseridos nas relações de produção capitalistas que põe o capitalismo

industrial, a declaração dos direitos do homem e do cidadão, a economia política

ricardiana e o sistema de prisão com prazo de encarceramento em um mesmo

compasso histórico, aprisionados sob uma mesma forma jurídica (PACHUKANIS,

2017).

Curiosamente, é Max Weber quem ilustra com mais acuidade o princípio

fundamental do desenvolvimento do fenômeno jurídico enquanto correspondência

estrutural entre a objetivação das atividades humanas e as necessidades do moderno

Estado capitalista:

O Estado moderno, de um ponto de vista sociológico, é uma ‘empresa’

tal como uma fábrica; é justamente o que tem de específico no âmbito

histórico. E as relações de dominação na empresa também estão, nos

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dois casos, submetidas a condições da mesma espécie. Do mesmo modo

como a relativa autonomia do artesão ou industrial domiciliar, do

camponês proprietário, do comendatário, do cavaleiro e do vassalo

baseava-se no fato de que eram proprietários dos instrumentos das

reservas, dos meios financeiros, das armas, com o auxílio dos quais

realizavam sua função econômica, política e militar, e da qual viviam

enquanto a cumpriam, a dependência hierárquica do operário, do

balconista, do empregado técnico, do assistente, de um instituto

universitário e do funcionário do Estado e de um soldado tem o mesmo

fundamento, a saber: os instrumentos, as reservas e os meios financeiros,

indispensáveis tanto a empresa quanto à vida econômica, estão nas mãos

do empresário, num caso, e do chefe político, no outro.

(...)

A empresa capitalista moderna baseia-se internamente sobretudo no

cálculo. Para existir, ela precisa de uma justiça e de uma administração,

cujo funcionamento também possa ser, pelo menos em princípio,

calculado racionalmente segundo as regras gerais sólidas, tal como se

calcula o trabalho previsível efetuado por uma máquina. Sua capacidade

de tolerar (...) um julgamento ministrado pelo juiz conforme seu senso de

justiça nos casos particulares ou conforme outros meios e princípios

irracionais de criação jurídica (...) é tão fraca quanto a de suportar uma

administração patriarcal que procede a seu bel-prazer e por misericórdia

e, quanto ao resto, conforme uma tradição inviolavelmente sagrada mas

irracional (...). Pois essas formas modernas de empresa, com seu capital

fixo e seus cálculos exatos, são muito sensíveis às irracionalidades do

direito e da administração para que se tornem possíveis. Só poderiam

surgir onde o juiz, (...) como no Estado burocrático, com suas leis

racionais, fosse mais ou menos distribuidor automático de parágrafos,

nos quais os documentos com os custos e os honorários fossem inseridos

por cima, para que ele vomite por baixo a sentença com considerações

mais ou menos sólidas, e cujo funcionamento, portanto, fosse em geral

calculável (WEBER, 2014, p. 140-143).

Nesse mesmo diapasão, Pachukanis explica o princípio da legalidade:

O infrator deve saber de antemão por que deve e o que deve: nullum

crime, nulla poena, sine lege. O que isso significa? Que seria necessário

que todo infrator em potencial fosse informado precisamente sobre os

métodos de correção que lhe serão aplicados? Não, o caso aqui é bem

mais simples e rude: ele deve conhecer com qual quantidade de sua

liberdade pagará como resultado da transação judicial. Ele deve conhecer

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antecipadamente as condições nas quais o pagamento lhe será exigido.

É esse o sentido dos códigos penais e processuais penais (PACHUKANIS,

2017, p. 179).

Aqui o ponto capital do pensamento pachukaniano: a forma jurídica

acompanha o movimento da circulação de mercadorias e a sua sujeição às esferas

das relações de produção, pois “o poder estatal confere clareza a estabilidade à

norma jurídica, mas não cria seus pressupostos9, os quais estão arraigados nas

relações materiais, ou seja, de produção.” (PACHUKANIS, 2017, p. 104).

Assiste razão também à Marcio Bilharinho Naves (2008) na medida em que

remete a organização da concepção teórica de Pachukanis à noção primária de

sujeito de direito, cuja forma reveste o homem da condição de proprietário, titular

e destinatário de todas as pretensões possíveis na cadeia de pretensões recíprocas

da sociedade capitalista, privatizando-o no controle dos objetos da circulação e

garantindo-lhe a liberdade e a igualdade necessárias para que se constitua uma

esfera geral de trocas mercantis fundadas em atos voluntários inseridos na

divisão/exploração do trabalho.

3 Trabalho e forma jurídica da mercadoria

A forma jurídica é apresentada, portanto, a partir da manifestação, por um

sujeito de direitos, de um ato voluntário realizador do valor em um determinado

processo de trocas: “é a esse ato de vontade, constitutivo da categoria de sujeito

9 A problemática do direito posto e direito pressuposto foi magistralmente abordada por Eros Grau em O Direito posto e o direito pressuposto.

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de direito, que Marx empresta importância decisiva” (NAVES, 2008, p. 65-66), uma

vez que a especificidade da regulação jurídica somente encontra a circulação

mercantil quando veiculada por uma relação de vontade economicamente

representada.

A liberdade burguesa, amparada pela sua especificidade jurídica, apresenta-

se como atributo da personalidade do homem enquanto sujeito de direito,

existente por e para a troca, na condição de elo constituinte do circuito de

transações mercantis. É a especificidade do direito burguês que garante a

possibilidade de sujeitos contratantes contraírem obrigações privadas, exigíveis e

quantificáveis em tempo de trabalho, realizando o seu valor na troca mediante a

expressão do seu respectivo ato voluntário juridicamente respaldado. Então,

apresentada a liberdade privada e mercantil como atributo da personalidade do

homem-bourgeois10, este “só é livre uma vez inserido na esfera da circulação (...)

de tal modo que a expressão mais acabada, a mais completa, a mais absoluta de

sua liberdade, é a liberdade de disposição de si mesmo como mercadoria” (NAVES,

2008, p. 67).

Demonstra-se, desta forma, a medida segundo a qual as relações sociais

existentes na troca e na participação no conjunto da produção variam

naturalmente de acordo com o caráter dos meios de produção condicionados pela

estrutura organizacional de uma determinada constituição econômica criada por

uma determinada modalidade de trabalho específico, donde se extrai a conclusão

lógica marxiana no sentido de que é somente no interior de determinados vínculos

10 Spencer ensina que “numa transação comercial, ambas as partes fazem aquilo que desejam e não dispõem

de mais liberdade do que a que reservam para os outros” (SPENCER, 2019).

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e condicionamentos que se realiza a produção (e a caracterização dos homens

enquanto sujeitos de determinada relação social):

Que é um escravo negro? Um homem da raça negra. [...] Um negro é um

negro. Só em determinadas condições é que se torna escravo. Uma

máquina de fiar algodão é uma máquina para fiar algodão. Apenas em

determinadas condições ela se torna capital. Fora dessas condições, ela é

tampouco capital como o ouro, por si próprio, é dinheiro, ou como o

açúcar é o preço do açúcar.

Na produção, os homens não agem apenas sobre a natureza, mas

também uns sobre os outros. Eles somente produzem colaborando entre

si de um modo determinado e trocando entre si as suas atividades. Para

produzirem, contraem determinadas ligações e relações mútuas, e é

somente no interior desses vínculos e relações sociais que se efetua a sua

ação sobre a natureza, isto é, que se realiza a produção. (MARX, 2010, p.

45).

Pachukanis aborda de forma lógica o sentido geral do processo histórico

ora referenciado:

Ao cair na dependência escrava das relações econômicas que se impõem,

a suas costas, na forma das leis de valor, o sujeito econômico, já na

qualidade de sujeito de direito, recebe como recompensa um raro

presente: uma vontade presumida juridicamente que faz dele um

possuidor de mercadorias tão absolutamente livre e igual perante os

demais quanto ele mesmo o é. ‘Todos devem ser livres e ninguém deve

atrapalhar a liberdade do outro (...) Cada qual possui seu próprio corpo

como livre instrumento de sua vontade’. Eis o axioma do qual partem os

teóricos do direito natural. E essa ideia de isolamento, de encerramento

em si da pessoa humana, esse ‘estado natural’ do qual emana ‘Widerstreit

der Freiheit ins Unendliche’ [a contradição infinita da liberdade], que

corresponde inteiramente ao modo de produção mercantil, no qual os

produtores são formalmente independentes uns dos outros e não estão

ligados por nada além de uma ordem jurídica artificialmente criada

(PACHUKANIS, 2017, p. 121-122).

O homem-bourgeois se apresenta como tal na medida em que se configura

como sujeito-proprietário (de si mesmo). Caso não o fosse, seria para o outro

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escravo, isto é, incapaz de vender a si próprio (e a sua força de trabalho), daí dizer-

se que “o homem como sujeito de direito é constituído para a troca” (NAVES, 2008,

p. 68) e a circulação. Nos termos de Edelman (1997, p. 195-196), “a estrutura

mesma do sujeito de direito, na dialética da vontade – produção – propriedade,

não é, definitivamente, mais que a expressão jurídica da comercialização do

homem”.

O brilho do pensamento pachukaniano reflete-se na sua capacidade de

identificar o elemento mais abstrato do tecido jurídico - o sujeito de direito, e

relacioná-lo ao elemento mais abstrato da infraestrutura das relações de produção

capitalistas – a mercadoria11. Tal relação se evidencia como adequada na medida

em que o capitalismo perpetua a generalização da mercancia, dotando a

mercadoria do atributo de gerir a vida daquele que a produz, inclusive (e

sobretudo) tendo a capacidade de transformar até mesmo a força de trabalho

humana em mercadoria especial que permite a valorização do capital (ENGELS in

MARX, 2010).

Na verdade, a abstração do sujeito de direito se dá pelo ato da troca

mercantil, porquanto seja nesse ato que o homem realiza, na prática, a liberdade

formal de autodeterminação: a relação mercantil transforma a aparente oposição

entre sujeito e objeto em uma relação jurídica singular na qual o objeto é a

11 “Por isso”, diz Pachukanis, “ao mesmo tempo que um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna o portador de um valor, o homem adquire um valor de sujeito de direito e se torna portador de direitos. (...) O vínculo social da produção apresenta-se, simultaneamente, sob duas formas absurdas: como valor de mercadoria e como capacidade do homem de ser sujeito de direito” (PACHUKANIS, 2017. p. 120-121).

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mercadoria e o sujeito é o possuidor da mercadoria, que dela dispõe nos atos de

aquisição e alienação (PACHUKANIS, 2017).

Ocorre que, em um dado estágio de desenvolvimento da forma-mercadoria

e de crescimento das forças sociais reguladoras dos atos de troca12, o sujeito de

direito perde sua tangibilidade material clássica, de modo que as relações entre as

pessoas no processo de produção adquirem uma forma duplamente fetichizada:

“o fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico” (PACHUKANIS,

2017, p. 121-124).

A operação concreta do fetiche jurídico se dá pela materialização do

contrato que regulará uma determinada parcela da circulação mercantil. Nesse

sentido, Marx, em clássica passagem extraída de O capital, aborda o duplo-fetiche

e o contrato como um dos conceitos centrais do direito burguês13:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se

umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões,

os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem

impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode

recorrer à violência; em outras palavras, pode toma-las à força. Para

relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus

12 “Do mesmo modo que os atos de troca da produção mercantil desenvolvida foram precedidos por atos de troca ocasionais e outras formas de troca – por exemplo, a troca de presentes -, o sujeito de direito, com a esfera de domínio jurídico que se estende ao seu redor, foi precedido historicamente pelo indivíduo armado, ou, mais frequentemente, por um grupo de pessoas, a gens, a horda, a tribo, capaz de defender por meio do conflito, do confronto, tudo aquilo que representa as condições de sua existência. Essa tênue linha histórica claramente vincula o tribunal ao duelo e o divide em um processo em que tomam parte em uma luta armada” (PACHUKANIS, 2017, p. 125). 13 “O contrato é um dos conceitos centrais do direito. Erigindo-se de maneira grandiloquente, o contrato é uma parte constitutiva da ideia de direito. No sistema lógico de conceitos jurídicos, o contrato é apenas uma variedade de transação em geral, ou seja, um dos meios de manifestação das vontades concretas com a ajuda da qual o sujeito age na esfera jurídica que o cerca. Histórica e concretamente, contudo, o conceito de ato jurídico deriva do contrato. Fora do contrato, os próprios conceitos de sujeito e de vontade no sentido jurídico existem apenas como abstração sem vida” (PACHUKANIS, 2017. p. 127).

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guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas

cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um só pode se

apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em

concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de

vontade comum a ambos. Tem, portanto, de se reconhecer mutuamente

como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o

contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva,

na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica

ou volitiva é dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas

existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria

e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias (MARX, 2017, p.

159-160).

Destarte, as relações entre as pessoas, por um lado, surgem como relações

entre coisas-mercadorias, e, por outro, como relações de vontade entre unidades

independentes e iguais umas perante as outras, dissolvidas e impessoalizadas na

potência de uma determinada organização social (de classe) abstrata que age no

espaço e no tempo com continuidade e regularidade ideais, cuja mais alta

expressão é o Estado (PACHUKANIS, 2017).

Nesse sentido, “apenas com o completo desenvolvimento das relações

burguesas o direito adquiriu um caráter abstrato”, diz Pachukanis:

Todo homem torna-se um homem em geral, todo trabalho torna-se um

trabalho social útil em geral, todo indivíduo torna-se um sujeito de direito

abstrato. Ao mesmo tempo, também a norma toma a forma lógica e

acabada de lei abstrata geral. Assim, o sujeito de direito é um possuidor

de mercadorias abstrato e ascendido aos céus. Sua vontade, entendida

no sentido jurídico, tem um fundamento real no desejo de alienar ao

adquirir e adquirir ao alienar (PACHUKANIS, 2017, p. 127).

A forma jurídica está, portanto, substancialmente adstrita à forma-

mercadoria (e consequentemente à relação de valor dos produtos do trabalho) na

medida em que demonstradas as relações sociais abstratamente determinadas

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entre os homens-sujeitos-de-direitos a partir da sua posição relativa no sistema

natural-espontâneo da divisão social do trabalho (MARX, 2017).

Abre-se aqui a perspectiva de uma visão completa (e nem por isso menos

complexa) das formas de reificação e de dominação estruturantes que, partindo

de processos dialeticamente claros (a relação e o conflito entre o trabalho e o

capital nas diversas esferas da sociedade - esfera pública, aparelhos ideológicos de

Estado, etc.), dissolvem-se em formas fetichizadas das relações humanas

fundamentadas em elementos históricos concretos. Destas formas fetichizadas,

restringiremos nossa análise ao modelo empírico do trabalho assalariado.

4 Trabalho assalariado, fetiche da classe trabalhadora

Não há outra maneira de abordar a temática do trabalho assalariado

que não partindo da sua face mais elementar: o que é o salário e como ele é

determinado. O pensamento corrente na sociedade burguesa apresenta o salário

do trabalhador como o preço do trabalho, como uma determinada quantidade de

dinheiro paga em retribuição de uma determinada quantidade de trabalho (MARX,

2017). De fato, o salário aparenta ser o valor em dinheiro com que o capitalista

compra o trabalho dos operários, mas, sabe-se, é só na aparência que isso

acontece14.

14 “Se perguntássemos aos operários que salário eles recebem, responderiam: - ‘Eu recebo do meu patrão um marco por dia de trabalho.’ Outro dirá: ‘Recebo 2 marcos.’ Etc. Conforme os diferentes ramos de trabalho a que pertencem, nos indicariam as diversas quantias que recebem dos seus respectivos patrões, pela execução de um determinado trabalho, como, por exemplo, tecer uma vara de pano ou compor uma página tipográfica. Apesar da diversidade de suas indicações, todos concordarão neste ponto: o salário é a soma em dinheiro que o capitalista paga

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Em bases concretas, o que os operários vendem ao capitalista em troca de

dinheiro é a sua força de trabalho, “no mercado, o que se contrapõe diretamente

ao possuidor de dinheiro, não é, na realidade, o trabalho, mas o trabalhador. O que

este último vende é a sua força de trabalho” (MARX, 2017, p. 607), e a força de

trabalho posta à venda no mercado, como vimos - apesar de a legislação burguesa

insistir em formalizar o contrário15-, não é nada mais do que uma mercadoria -

base material das relações sociais fundamentais do capitalismo e do fenômeno

jurídico -, exatamente como o açúcar, o algodão ou o sal: enquanto a primeira é

medida com o cronômetro, as demais são medidas com a balança (MARX, 2010).

O fetiche da forma-salário, corolário do metabolismo reprodutivo do capital

e ponta-de-lança da forma-mercadoria e da forma jurídica, é revelado pela fórmula

que determina o preço da força de trabalho, extraída aplicando rigorosamente as

mesmas leis gerais que determinam o preço de qualquer outra mercadoria:

por um determinado tempo de trabalho ou pela prestação de um determinado trabalho” (MARX, 2010. p. 33). 15 Em uma das maiores demonstrações contemporâneas da razão cínica abordada na primeira seção deste trabalho, a Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, reunida em Filadélfia, na sua vigésima sexta sessão (realizada em 10 de maio de 1944), adotou como princípio fundamental da OIT, dentre outros, a consigna de que o trabalho não é uma mercadoria, ignorando em absoluto a sua inserção dentro da estrutura de exploração e de acumulação capitalista. Não é necessário todo o rigor científico que tentamos empregar para caracterizar as formas materiais, infraestruturais e superestruturais, ou as relações sociais donde emanam tais estruturas, para apontar que não se modificam as estruturas das relações sociais capitalistas mediante a edição de normas e leis, o que, em muito, responde a questão por nós enfrentada na seção 4. Em nossa defesa, invocamos o magistério de Marx n’A miséria da filosofia: “No trabalho-mercadoria, que é de uma realidade espantosa, ele [Proudhon] vê apenas uma elipse gramatical. Logo, toda a sociedade atual, fundada no trabalho-mercadoria, passa a se embasar numa licença poética, numa expressão figurada. A sociedade pretende ‘eliminar todos os inconvenientes’ que a atormentam? Muito bem: basta-lhe eliminar os termos inconvenientes, alterar a linguagem e dirigir-se à Academia, encomendando-lhe uma nova edição do seu dicionário!” (MARX, 2009. p. 71).

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A determinação do preço pelos custos de produção é igual à

determinação do preço pelo tempo de trabalho necessário para a

produção de uma mercadoria, pois os custos de produção se compõem

de: 1. Matérias-primas e desgaste de instrumentos, isto é, de produtos

industriais cuja produção custou uma cerca quantidade de dias de

trabalho, que representam, portanto, uma cerca quantidade de tempo de

trabalho; 2. Trabalho direto, cuja medida é precisamente o tempo.

(...)

O salário do trabalho subirá ou cairá conforme a relação de oferta e

procura, de acordo com a forma que assumir a concorrência entre os

compradores da força de trabalho, os capitalistas, e os vendedores da

força de trabalho, os operários. As oscilações dos preços das mercadorias

em geral correspondem às oscilações do salário. Mas, dentro dessas

oscilações, o preço do trabalho será determinado pelos custos de

produção, pelo tempo de trabalho necessário para produzir esta

mercadoria: a força de trabalho. (MARX, 2010, p. 43).

Nestes termos, os custos da produção da força de trabalho são aferidos a

partir “dos custos de existência e de reprodução do operário” (MARX, 2010, p. 44),

e, assim, constituem-se enquanto salário e nivelam-se a partir de um mínimo

garantidor da existência e da reprodução da classe operária como um todo. E é

esse mínimo garantidor, esse elemento fundamental da reprodução social do

trabalho vivo correspondente à existência e à reprodução de uma classe que nada

possui, que se estabelece como uma condição prévia e necessária do capital e de

todas as suas estruturas típicas.16

O capital e o trabalho assalariado determinam-se e engendram-se

reciprocamente: o capital só pode multiplicar-se sendo trocado por força de

trabalho, enquanto a força de trabalho somente pode subsistir e reproduzir-se

16 Aí inseridas, naturalmente, a forma-jurídica, a forma-mercadoria, a forma-salário, dentre outras.

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enquanto é vendida ao capital na forma de salário. A troca da força de trabalho

por capital multiplica-o, fortalecendo aquela, dialeticamente, o poder que a

escraviza, assim sedimentando a tendência marxiana de que a “multiplicação do

capital é, por isso, multiplicação do proletariado, isto é, da classe operária.” (MARX,

2010, p. 49). Eis a razão formal e a controvérsia essencial da luta de classes

enunciada por Marx.

Aqui expõe-se o centro nervoso do cinismo da forma-salário. A economia

política clássica e os seus representantes mais destacados - que, vale dizer,

encontram ressonância até hoje - insistem em pregar a cooperação pacífica por

meio do mercado (MCCAFFREY, 2019) rumo à prosperidade. Ora!

De fato, o capital desaparece se não explora - compra - a força de trabalho,

e, assim, quanto mais depressa se multiplicar o capital produtivo e melhores forem

os negócios da burguesia, de mais operários ela necessitará, de modo que mais

caro se venderão os operários. É uma obviedade que o crescimento do capital

produtivo é condição indispensável para a melhoria das condições materiais de

vida do operário, desde que ele se submeta ao domínio e à sorte do capitalista!

Não confundem-se os interesses dos capitalistas e os interesses dos operários tão

somente por ambos se apresentarem como aspectos de uma mesma relação: a

satisfação social do operário pelo incremento do seu salário e a multiplicação dos

prazeres do capitalista não alteram, por si só, o fato de que “o operário, cuja única

fonte de rendimentos é a venda da sua força de trabalho, não pode deixar toda a

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classe dos compradores, isto é, a classe dos capitalistas, sem renunciar à existência”

(MARX, 2010, p. 37).17

Destarte, o salário nada mais é que o “nome especial dado ao preço da força

de trabalho”, esta “mercadoria particular que só existe na carne e no sangue do

homem” (MARX, 2010, p. 34) e que nenhum Shylock ou Pórcia18 são capazes de

17 Marx vai ainda mais além, demonstrando a lei geral que determina a queda e a alta do salário e do lucro na sua relação recíproca, na qual ambos se apresentam na relação inversa um do outro: “O preço de venda da mercadoria fabricada pelo operário divide-se, para o capitalista, em três partes: primeira, a reposição do preço das matérias-primas por ele adiantadas, assim como a reposição do que se desgastou nas ferramentas, máquinas e outros meios de trabalho, igualmente adiantados por ele; segunda, a reposição do salário adiantado por ele; terceira, o excedente que resta, o lucro do capitalista. Enquanto a primeira parte repõe apenas valores anteriormente existentes, é evidente que tanto a reposição do salário quanto a do lucro do capitalista (o excedente), no seu todo, provém do novo valor criado pelo trabalho do operário e acrescentado às matérias-primas. E nesse sentido podemos considerar tanto o salário quanto o lucro, quando os compararmos um com o outro, como cotas-parte no produto do operário. O salário real pode permanecer o mesmo, pode até subir, e, não obstante, o salário relativo pode cair. Suponhamos, por exemplo, que todos os meios de subsistência tenham descido 2/3 de preço, ao passo que o salário diário caíra apenas 1/3, por exemplo, de 3 marcos para 2 marcos. Embora o operário, com estes 2 marcos, disponha de uma soma maior de mercadorias do que antes com 3 marcos, o seu salário, contudo, diminuiu em relação com o ganho do capitalista. O lucro do capitalista (por exemplo, do fabricante) aumentou de um marco, isto é, por uma soma menor de valores de troca que paga ao operário, o operário tem de produzir uma soma maior de valores de troca do que anteriormente. A cota-parte do capital subiu em relação à cota-parte do trabalho. A repartição da riqueza social entre capital e trabalho tornou-se ainda mais desigual. O capitalista domina com o mesmo capital uma quantidade maior de trabalho. O poder da classe dos capitalistas sobre a classe operária cresceu, a posição social do operário piorou, caiu mais um degrau em relação à do capitalista. (...) Seja qual for a proporção em que a classe dos capitalistas, a burguesia, seja de um país, seja de todo o mercado mundial, reparta entre si a receita líquida da produção, a soma total dessa receita líquida é sempre apenas a soma com que o trabalho acumulado, no seu todo, foi aumentado pelo trabalho direto. Essa soma global cresce, portanto, na proporção em que o trabalho aumenta o capital, ou seja, na proporção em que o lucro sobe em relação ao salário. Vemos, portanto, que, mesmo quando ficamos no seio da relação de capital e trabalho assalariado, os interesses do capital e os interesses do trabalho assalariado são diretamente opostos” (MARX, 2010. p. 56).

18 Ver O Mercador de Veneza, de Shakespeare. Na obra, Shylock é um agiota que empresta dinheiro a seu rival veneziano, Antônio, estabelecendo como fiança uma libra da carne de Antônio. Quando este, falido, não consegue quitar sua dívida, Shylock exige a libra de carne,

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separar. O operário vende sua força de trabalho, portanto, exclusivamente para

(sobre)viver. A força de trabalho é a atividade vital que o trabalhador adjudica a

um terceiro para se assegurar dos meios de vida necessários à sua subsistência,

reproduzindo a sua condição proletária e alienando-se, mesmo, do próprio

produto da sua atividade. Nesse sentido, diz Marx:

O que o operário produz para si próprio não é a seda que tece, não é o

ouro que extrai das minas, não é o palácio que constrói. O que ele produz

para si próprio é o salário; e a seda, o ouro e o palácio reduzem-se, para

ele, a uma determinada quantidade de meios de subsistência” (MARX,

2010, p. 36).

Ao vender sua força de trabalho, o operário põe sua carne e seu sangue à

disposição do capitalista por um determinado número de horas diárias, de modo

que “8, 10, 12, 15 horas da sua vida diária pertencem a quem as compra” (MARX,

2010, p. 37). Ao vender parte de sua vida na forma de força de trabalho, não mais

considera o trabalho como parte de sua vida, ao contrário:

A vida, para ele, começa quando termina essa atividade, à mesa, no bar,

na cama. As 12 horas de trabalho não tem, de modo algum, para ele, o

sentido de tecer, de fiar, de perfurar etc., mas representam unicamente o

meio de ganhar o dinheiro que lhe permitirá sentar-se à mesa, ir ao bar,

deitar-se na cama. Se o bicho-da-seda fiasse para manter a sua existência

de lagarta, seria então um autêntico operário assalariado” (MARX, 2010,

p. 36).

como vingança, porém, é surpreendido pela engenhosidade de uma rica herdeira chamada Pórcia, que ressaltou que a libra de carne deveria ser extraída sem derramar o sangue do devedor, uma vez que a um estrangeiro era vedado o derrame de sangue de um cidadão veneziano.

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Essa desefetivação no interior da vida laboral (ANTUNES, 2015) é

estrutural, decorrendo da forma mercadoria, e fetichizada na sua respectiva forma

jurídica do valor-salário e da jornada de trabalho, a qual se apresenta como lente

cínica na relação do tempo livre e a atividade vital laboral inserida na lógica

reprodutiva do capital: “uma vida desprovida de sentido no trabalho é

incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho.” (ANTUNES, 2015,

p. 133). É a fórmula da equivalência geral entre forma jurídica e a forma mercadoria,

abordada nas primeiras seções, que nos permite identificar, na forma-salário e na

forma-jornada, um metabolismo social de reprodução do capital que somente será

superado em uma nova sociabilidade autodeterminada pela “demolição das

barreiras existentes entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho” (ANTUNES,

2015, p. 135).19

Tomemos por exemplo, a esse respeito, a afirmação de Marx acerca do

sistema de salários:

(...) em 99 casos em 100 os seus esforços por elevar os salários são apenas

esforços para manter o valor dado do trabalho e que a necessidade de

debater o seu preço com o capitalista é inerente à sua condição de terem

de se vender eles próprios como mercadorias. Cedendo covardemente

no seu conflito de todos os dias com o capital, certamente que se

desqualificariam para o empreendimento de qualquer movimento mais

amplo.

(...)

[A classe operária] não deverá esquecer que luta com efeitos, mas não

com a causa desses efeitos; que retarda o movimento descendente, mas

19 A discussão em torno da venda de tempo de vida, dos sentidos do trabalho, do conflito

quantitativo e qualitativo do uso do tempo pelos trabalhadores e trabalhadoras, e das formas

contemporâneas de estranhamento, não somente é extensa, como também inacabada, sobretudo no

que diz respeito à análise da alegada nova morfologia do trabalho derivada da flexibilização

extremada materializada pela uberização e pela indústria 4.0. A esse respeito, remetemos o leitor

às obras de Ricardo Antunes, Grazia Paoletti, João Bernardo, Dominique Méda e Giovanni Alves.

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não muda a sua direção; que aplica paliativos, mas não cura a doença.

Por conseguinte, não deverá estar exclusivamente absorvida nestas

inevitáveis lutas de guerrilha que incessantemente derivam das investidas

sem fim do capital ou das mudanças do mercado. Deverá compreender

que, juntamente com todas as misérias que lhe impõe, o sistema presente

produz simultaneamente as condições materiais e as formas sociais

necessárias a uma reconstrução econômica da sociedade. Em lugar do

mote conservador, ‘um salário justo para um trabalho justo!’ Deverá

inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: “abolição

do sistema de salários!” (MARX, 2002, p. 89-90).

Porém, parece evidente que a demolição das barreiras da forma-salário, em uma

perspectiva emancipacionista, somente ocorre a partir da superação dos grilhões da

forma jurídica, intrinsecamente e estruturalmente relacionados à forma-mercadoria e à

exploração do trabalho humano na condição de facticidade pressuposta.

Considerações finais

A compreensão da constituição das relações sociais é importante pois,

como demonstrou-se, é da circulação das mercadorias (obviamente compreendida

aí a mercadoria força de trabalho) que se extrai a base material da forma jurídica,

a respaldar não somente o trabalho assalariado, mas todo o metabolismo burguês

de exploração do trabalho e de reprodução das relações de produção capitalistas.

Nesse sentido, a relação entre a forma jurídica e a forma-mercadoria é plena

de significado: a exploração do trabalho assalariado não decorre da lei, pura e

simplesmente (e, por conseguinte, não é alterando o sistema de leis que se

estancará tal processo exploratório). Assim é que as regras jurídicas não podem,

portanto, ser estudadas independentemente dos fenômenos sociais, aí incluído o

fato nacional-econômico e a carga ideológica dele derivada, eis que os vínculos

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que compõem a estrutura social - tanto infra quanto superestruturas -

condicionam-se mutuamente.

Evidencia-se, nessa perspectiva, o direito (e em especial a legislação) como

subproduto jurídico extraído a posteriori das respectivas relações sociais da

sociedade burguesa, habilitado a incluir economicamente o trabalhador, ora

compreendido como o homem vendedor de tempo de vida, mas inservível para a

sua emancipação humana.

Buscou-se desmistificar o direito e as bases jurídicas do salário, afastando-

as do cinismo da forma jurídica a fim de revelar-lhes a condição de manifestação

ideológica sobreposta à instrumentalidade imediatista do “sistema de proteção”

instaurado em favor da classe trabalhadora com o revés de aprisioná-la aos

grilhões implacáveis do estreito horizonte do direito burguês, alimentando

indefinidamente o metabolismo social de reprodução geral do capital.

As lentes cínicas da forma jurídica foram reveladas, portanto, a partir da

demonstração do equívoco da eternização da forma jurídica: nos parece claro que

a extinção das categorias econômicas burguesas (valor, capital, trabalho

assalariado, mercadoria, etc.) significará não apenas o fim do direito burguês, mas

o definhamento, por completo, do momento jurídico nas relações humanas, pari

passu ao desaparecimento gradual do poder da divisão do trabalho, da antítese

entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, da antítese entre os interesses

individuais e o interesse comum, e, obviamente, da coerção estatal.

A verdadeira emancipação humana, o rompante da liberdade daqueles que

veem na sua prole a única segurança, pressupõe, nessa linha, o abandono do

apego à dignidade estrutural da forma-mercadoria, expandindo os horizontes da

luta em favor de perspectivas revolucionárias que, mais do que a mera ampliação

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do feixe de direitos que lhe assistem sob o jugo do capital, supere-os em favor da

plena emancipação humana e de novos padrões de organização estrutural

alternativos à divisão do mundo entre proprietários e não-proprietários.

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A POLÍTICA DO RECONHECIMENTO NAS ABORDAGENS DE NANCY

FRASER E AXEL HONNETH: JUSTIÇA OU AUTORREALIZAÇÃO?

Álvaro Augusto Cerqueira Mangabeira

Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário

IESB; bacharel em Direito pelo Centro Universitário IESB; advogado.

Any Ávila Assunção

Doutora e mestra em sociologia jurídica pela Universidade de Brasília (UnB); graduada

em Direito pelo UNICEUB; pesquisadora colaboradora no Programa de Pós-Graduação

em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB); professora e coordenadora do Curso

Bacharelado em Direito e do Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos

Reivindicatórios do Centro Universitário IESB (PPG-MPDS); advogada atuante na área de

Direito Público, Direitos Sociais e Direitos Humanos, com ênfase nos gênero, violência,

sistema judicial e emancipação social.

Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar e analisar preliminarmente duas das teorias

fundamentais das Políticas de Reconhecimento, desenvolvidas por duas de suas figuras:

Nancy Fraser e Axel Honneth. Inicialmente, é apresentado um prólogo conciso da teoria

do reconhecimento, com base nos estudos de jovens Hegel. Posteriormente, são revelados

os principais pontos de divergência nas teorias de Fraser e Honneth, bem como suas

implicações na reivindicação social e política. O reconhecimento, como categoria filosófica

e sociológica, tem uma relevância notável para uma abordagem zetética do Direito, razão

pela qual várias questões judiciais sobre direitos fundamentais levam fortemente em

consideração as políticas de reconhecimento diante da marginalização social. Por fim, em

conclusão, procura uma convergência entre as teorias aparentemente divergentes dos

dois estudiosos.

Palavras-chave: Teoria do Reconhecimento, Nancy Fraser, Axel Honneth, processos

reivindicatórios, identidade, status social.

Abstract

This paper aims to present, and preliminarily analyze two of the fundamental theories of

Recognition Policies, developed by two of its figures: Nancy Fraser and Axel Honneth.

Initially, a terse prologue of Recognition theory is presented, based on young Hegel's

studies. Thereafter, major points of divergence on Fraser and Honneth's theories are

revealed, as well as their implications on social and political vindication. Recognition, as a

philosophical and sociological category, has a notable relevance for a zetetic approach on

Law, which is why several judicial questions about fundamental rights strongly take

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recognition policies into account fronting social marginalization. Lastly, in conclusion, it

looks for a convergence between the seemingly divergent theories of the two scholars

Keywords: Theory of recognition, Nancy Fraser, Axel Honneth, identity, social status.

1. Teorias do Reconhecimento

m sistema de valores, ainda que individualista, baseado no

reconhecimento do atributo da dignidade humana forma a

genealogia do que atualmente denomina-se de Teoria do

Reconhecimento, ou Política do Reconhecimento.

O reconhecimento foi cunhado por alguns principais estudiosos da filosofia,

sociologia e ciências políticas, possuindo interpretações distintas dentro dessa

ecologia de saberes. Os principais expoentes do reconhecimento, sobressaindo-se

na definição dos desdobramentos sociais, políticos e jurídicos dessa teoria são

Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser, cada um com seu conjunto de

significados ontogenéticos acerca desse campo retomado por Hegel. Também em

Habermas é possível encontrar um arcabouço epistêmico substancial acerca do

reconhecimento.

Há significativa diferença conceitual entre os estudiosos do reconhecimento

anteriormente mencionados. Essas diferenças representam a trajetória

epistemológica adotada por cada um deles, sendo que o que os une é a origem

de suas teorias, que tomam por base os estudos filosóficos do jovem Hegel, em

direção a uma teoria que evidenciasse a formação do espírito humano em relação

com outros sujeitos e a sociedade. Em Honneth, por exemplo, há uma presença

marcante da teoria elaborada por Hegel, principalmente no que diz respeito à

intersubjetividade e ao conflito (RAVAGNANI, 2009).

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O processo de formação da identidade do sujeito, enquanto

autodiferenciação é particularmente importante para Honneth, de forma que o

leva a resgatar as etapas da formação do espírito em Hegel. Segundo Honneth, a

ideia principal desse processo de formação da consciência individual em Hegel não

escapa ao conceito de “vontade”, e poderia ser representado como uma trajetória

de sucessivas exteriorizações e retornos a si mesmo, buscando diferenciar-se e

colocar-se perante o mundo como um indivíduo singular (HONNETH, 2003).

Para Honneth, é fundamental sondar o aspecto da formação da consciência

e do sujeito para formular um conceito apropriado para a identificação. Ora, para

o autor, não há reconhecimento sem a formação de identidades peculiares, razão

pela qual julga pertinente e fundamental basear sua teoria no processo de

formação das consciências capazes de diferenciar, ou, como Hegel denominaria, a

formação do espírito em termos éticos.

Portanto, se torna claro que para Honneth há um grau de subjetividade para

que haja o reconhecimento, tendo em vista que ele é determinado em termos de

um gradiente de auto-afirmação em razão das identidades, em que o não

reconhecimento representa uma depreciação da identidade por uma cultura

hegemônica, dominante, causando danos à subjetividade de membros de grupos

identitários. Essa por exemplo, é a análise de Fraser a despeito do resgate de

Honneth da formação do “espírito” em Hegel (FRASER, 2007).

Assim o é porque a teoria de Fraser para o reconhecimento busca ancorar

a gênese e formação do reconhecimento não em termos de identidade, que exige

uma incursão mais profunda nos processos de formação do “espírito” humano,

mas em termos de status, que se traduz na “condição de membros do grupo como

parceiros integrais na interação social”. Para a autora, o reconhecimento do status

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implica em perceber o outro enquanto “parceiros capazes de participar como

iguais na vida social”, já o não reconhecimento representa inferiorização, exclusão

ou invisibilização do outro, percebendo-o como “menos do que parceiros integrais

na interação social” (FRASER, 2007).

Certamente que essas não são as únicas diferenças perceptíveis entre a

teoria de Honneth, que resgata com muito primor o jovem Hegel e o modelo de

status cuidadosamente elaborado por Fraser. Entretanto, em linhas gerais, esse

representa o cerne das diferenças entre os dois autores, que a despeito de não

serem os únicos a dedicarem-se ao estudo do reconhecimento, tendo em vista a

proeminência de outros autores como o próprio Charles Taylor, são os autores

selecionados para um confronto direto de ideias no presente texto.

A fim de cumprir o propósito traçado, fundamental a realização de uma

descrição sintética das teorias abordadas por Honneth e Fraser, de forma a

possibilitar qualquer correlação posterior com os termos traçados por ambos.

2. Reconhecimento em Axel Honneth

Como dito, Axel Honneth, filósofo e sociólogo alemão, que dirige e dá

continuidade à Escola de Frankfurt, dedica-se ao estudo da luta por

reconhecimento, buscando demonstrar a formação ontogenética de uma

identidade que leva a um engajamento político autêntico, uma identidade capaz

de constituir uma pessoa de direito.

O autor apresenta grande preocupação em demonstrar, portanto, as

origens da formação do sujeito, e, posteriormente, a relação dialética entre o

indivíduo e o outro dentro de um processo de formação e de diferenciação das

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identidades, que inclui a inserção de ambos em uma sociedade estruturada em

uma racionalidade instrumental. Um conceito fundamental para essa análise,

Honneth retoma de Hegel quando aborda a questão da “vontade” como elemento

que influencia as relações intersubjetivas constitutivas do reconhecimento

recíproco. Ora, Hegel demonstra que a “vontade” é um caminho entre o sujeito e

o outro, na busca por reconhecimento (HONNETH, 2003).

Segundo Honneth, para Hegel o reconhecimento pode se originar das

relações de afeto, como no amor sexual, por ser uma esfera em que se percebe o

outro por meio do desejo, encontrando sua forma mais aperfeiçoada de

reconhecimento na formação familiar e na prole. Entretanto, no deslinde de sua

teoria, objetivando encontrar o sentido jurídico do reconhecimento, Hegel retoma

teorias contratuais, com ênfase em Hobbes, para compreender o reconhecimento

enquanto uma esfera de conflito que vai para além da afetividade amorosa e

familiar e encontra na disputa por atenção a gênese da personalidade jurídica.

Isso se deve em razão da capacidade intersubjetiva de perceber no outro as

fragilidades possíveis em si mesmo, o que gera a necessidade de um contrato para

mediar a disputa e impedir os conflitos. Dessa forma, ao contrário de Hobbes,

Hegel percebe o impulso agressivo como uma forma de buscar o reconhecimento

e não de uma busca pela satisfação de suas necessidades mais imediatas. Segundo

Honneth:

...percebendo reciprocamente sua mortalidade, os sujeitos que lutam

entre si descobrem que eles já se reconheceram previamente em seus

direitos fundamentais e que dessa forma já criaram implicitamente o

fundamento social para urna relação jurídica intersubjetivamente

vinculante (HONNETH, 2003, p. 94).

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De todo modo, para que ocorra a percepção de si mesmo e do outro

enquanto sujeito de direito, portanto uma intersubjetividade constituidora de uma

personalidade de direito, deve haver uma etapa precedente de autoformação de

uma identidade, que é a formação de uma consciência individual. Entretanto, essa

identidade continua em processo de formação a partir do momento em que

adquire um aspecto jurídico, através de seu ingresso na sociedade de conflitos:

a luta por reconhecimento não somente contribui como elemento

constitutivo de todo processo de formação para a reprodução do

elemento espiritual da sociedade civil como influi também de forma

inovadora sobre a configuração interna dela, no sentido de urna pressão

normativa para o desenvolvimento do direito.

O quadro teórico em que essa determinação mais ampla da luta por

reconhecimento é desenvolvida resulta das tarefas específicas do

capítulo que se segue a análise do "espírito subjetivo". Conforme a lógica

da exposição a que obedece o todo de seu empreendimento, Hegel

precisa reconstruir aí o processo de formação do espírito na nova etapa,

alcançada com o ingresso da vontade individual na realidade social

(HONNETH, 2003, p. 95).

O passo seguinte para Honneth alcançar a formulação de uma teoria

das lutas por reconhecimento consiste na adoção de conceitos derivados do

pragmatismo de Mead20, cuja psicologia social influencia a busca do sociólogo

frankfurtiano por exemplos empíricos de reconhecimento e de sua degeneração

com as forma de negação do reconhecimento. Assim como Hegel, Mead percebe

a interação social na gênese da identidade, e aprofunda seu conhecimento em

termos de uma intersubjetividade baseada em impulsos e mediações culturais

internalizadas (ARAÚJO NETO, 2013).

20 George Herbert Mead foi um filósofo norte americano, baseado na Escola de Chicago, com importantes contribuições para a sociologia e para a psicologia social.

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Segundo Honneth, tanto Hegel quanto Mead entendem que o

reconhecimento pode se dar em diversas esferas da sociedade, perpassando

relações sociais distintas:

Desde logo, Hegel distingue em sua filosofia política a família, a

sociedade civil e o Estado; em Mead se divisa a tendência de destacar das

relações primárias do outro concreto as relações jurídicas e a esfera do

trabalho enquanto duas formas distintas de realização do outro

generalizado (HONNETH, 2003, p. 158).

Nessas três distintas esferas onde o reconhecimento se dá, o teórico da

Escola de Frankfurt identifica igualmente três formas de reconhecimento, quais

sejam: as relações primárias (amor e amizade), as relações jurídicas (direitos) e a

comunidade de valores (solidariedade), das quais verdadeiramente nos interessa a

forma de reconhecimento jurídica. Segundo Gonçalves:

Nesta obra, Honneth apresenta três dimensões distintas de

reconhecimento intersubjetivo nas sociedades modernas e seus

correspondentes desrespeitos: a primeira dimensão consiste nas relações

primárias baseadas no “amor” e na “amizade”, na qual o sujeito

desenvolveria uma autoconfiança, indispensável à sua realização pessoal;

a segunda seria a dimensão das relações jurídicas baseadas em “direitos”,

em que os sujeitos são reconhecidos como autônomos e moralmente

imputáveis, desenvolvendo sentimentos de autorrespeito e

individualização; a última dimensão seria a “solidariedade social”, onde

os projetos individuais de realização seriam objeto de respeito numa

comunidade (GONÇALVES, 2017, p. 257).

Honneth busca então compreender a luta por reconhecimento como uma

consequência inevitável de um processo de degradação das formas de

reconhecimento mencionadas anteriormente. Essa degradação ocorre quando a

identidade é vilipendiada por meio de atos lesivos à compreensão positiva que os

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indivíduos têm de si próprios gerando conflitos que derivam da negativa desse

status (GONÇALVES, 2017, p. 257)

Assim, às três formas de reconhecimento, no campo do amor, no campo do

direito e no campo da solidariedade, é possível encontrar fenômenos positivos e

negativos. Esses últimos se apresentam como os motivadores de uma busca pelo

reconhecimento:

Se a experiência de desrespeito sinaliza a denegação ou a privação de

reconhecimento, então, no domínio dos fenómenos negativos, devem

poder ser reencontradas as mesmas distinções que já foram descobertas

no domínio dos fenómenos positivos. Nesse sentido, a diferenciação de

três padrões de reconhecimento deixa à mão uma chave teórica para

distinguir sistematicamente os outros tantos modos de desrespeito: suas

diferenças devem se medir pelos graus diversos em que podem abalar a

auto-relação prática de urna pessoa, privando-a do reconhecimento de

determinadas pretensões da identidade (HONNETH, 2003, p. 214).

Com relação à forma degradada de reconhecimento jurídico, ou a privação

de direitos, Honneth interpreta “direito” enquanto “aquelas pretensões individuais

com cuja satisfação social urna pessoa pode contar de maneira legítima, já que ela,

como membro de igual valor em urna coletividade participa em pé de igualdade

de sua ordem institucional”. Ora, se ser reconhecido como um indivíduo portador

de direitos, ou seja, um sujeito de direitos é poder participar na esfera social como

um parceiro de interação de igual valor moral, em “em pé de igualdade” não ser

reconhecido como tal é ter esse status de formador de juízo moral extirpado,

perdendo-se autorrespeito. É não participar da sociedade com o status de parceiro

equivalente (HONNETH, 2003, p. 2017).

Essas formas de não reconhecimento ocasionam no indivíduo uma série de

emoções e sintomas no plano psíquico que o impedem sua autorrealização,

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gerando danos no processo de constituição da identidade. Quando canalizados

para o plano moral, tais sentimentos podem se converter na força motriz para a

busca pelo reconhecimento, um sentimento moral capaz de gerar uma reação

engajada pelo reconhecimento. Para Honneth, um sentimento moral motivador da

práxis engajada é, por exemplo, a vergonha:

Nessas reações emocionais de vergonha, a experiência de desrespeito

pode tornar-se o impulso motivacional de uma luta por reconhecimento.

Pois a tensão afetiva em que o sofrimento de humilhação força o

indivíduo a entrar só pode ser dissolvida por ele na medida em que

reencontra a possibilidade da ação ativa (HONNETH, 2003, p. 224).

Nesse sentido, é possível interpretar a teoria do reconhecimento de

Honneth, em termos de uma formação da subjetividade do indivíduo. Quando o

reconhecimento é negado há uma prejudicialidade da auto-identidade e do pleno

desenvolvimento do ser humano para si e diante da sociedade, a estima social é

vilipendiada e as emoções decorrentes desse “desrespeito”, quando

instrumentalizadas em uma práxis engajada, pode gerar uma luta pelo

reconhecimento capaz de reivindicar a condição de parceiro nas relações sociais.

3. Reconhecimento em Nancy Fraser

Em oposição ao pensamento de Honneth, no que concerne ao

desenvolvimento de uma política do reconhecimento, Nancy Fraser 21 , filósofa

21 Fraser leciona, atualmente, na cadeira de Ciência Política e Social na New School de Nova Iorque. Dentre

suas afiliações incluem a teoria crítica alemã, pós-estruturalismo francês, pragmatismo norteamericano e feminismo.

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norte americana afiliada a Teoria Crítica, traz uma perspectiva deontológica,

contrapondo-se à eticidade característica das teorias de Honneth e Taylor.

O que significa, portanto, uma teoria do reconhecimento baseada na moral

e não na ética? Ora, para que se possa responder essa pergunta, há que se adentrar

nas características comparativas de cada teoria, para compreender, em seguida,

quais as implicações para os processos reivindicatórios de direitos.

Segundo Fraser, em seu artigo Reconhecimento sem ética, o

reconhecimento não deve se basear na formação e respeito a uma identidade, mas

em um modelo baseado no status social. Segundo a autora, quando se busca um

modelo que considere a formação e o respeito à identidade enquanto

essencialidade, é possível a percepção de três problemas significativos e com

desdobramentos sociais e inter-subjetivos.

Um modelo de reconhecimento que se baseia no identitarismo poderia

ocasionar, segundo Fraser, uma excessiva psicologização das causas da

desigualdade na sociedade, gerando uma ênfase na estruturação psíquica do

sujeito em detrimento das instituições sociais e da interação social. Em segundo

lugar, a autora identifica o modelo baseado na identidade como a causa de uma

predominância de uma identidade de grupo singular sobre a complexidade e

peculiaridade de cada indivíduo componente do grupo, negando a

homogeneidade interna. Por fim, o modelo baseado na identidade reifica a cultura,

ignorando as interações transculturais e gerando um separatismo prejudicial às

interações entre grupos diversos.

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Ao contrário, sobre o modelo de status, Fraser tece as seguintes

considerações:

Em primeiro lugar, ao rejeitar a visão de reconhecimento como

valorização da identidade de grupo, ele evita essencializar tais

identidades. Em segundo lugar, ao focar nos efeitos das normas

institucionalizadas sobre as capacidades para a interação, ele resiste à

tentação de substituir a mudança social pela reengenharia da

consciência. Em terceiro lugar, ao enfatizar a igualdade de status no

sentido da paridade de participação, ele valoriza a interação entre os

grupos, em oposição ao separatismo e ao enclausuramento (FRASER,

2007, p. 109)

Em sentido oposto, Fraser propõe um modelo que se baseie na busca pela

paridade de participação na construção social, ou seja, de parceiros integrais na

interação social:

A minha proposta é tratar o reconhecimento como uma questão de

status social. Dessa perspectiva – que eu chamarei de modelo de status

– o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um grupo,

mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais na

interação social. O não reconhecimento, consequentemente, não

significa depreciação e deformação da identidade de grupo. Ao contrário,

ele significa subordinação social no sentido de ser privado de participar

como um igual na vida social. Reparar a injustiça certamente requer uma

política de reconhecimento, mas isso não significa mais uma política de

identidade (FRASER, 2009, p. 107).

O não reconhecimento, no modelo de status ocorre quando os padrões

culturais institucionalizados consideram determinados grupos como inferiores ou

menos do que plenos parceiros nas interações sociais. Ou seja, a versão degradada

de reconhecimento no modelo proposto busca estabelecer uma hierarquia social

entre aqueles considerados “normais” e “os outros”, ou os inferiores. Essa

inferiorização, contudo, segundo o modelo referido, não representa uma ofensa

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ou um ato lesivo particularmente às estruturas psíquicas ou à estima de um

indivíduo, mas uma subalternização de sua condição de interferir e interagir

socialmente no mesmo patamar que outros atores sociais (FRASER, 2007).

Ora, como exemplo dessa negação ao reconhecimento, Fraser cita o

casamento entre pessoas do mesmo sexo. É cediço que as instituições

internalizaram a heteronormatividade enquanto padrão das relações afetivas,

sexuais e familiares. Tanto o é que diversos países do mundo não reconhecem nos

dias atuais os laços afetivos entre pessoas do mesmo sexo como dignos de

reconhecimento das instituições culturais, jurídicas e sociais. O modelo de status

propõe a superação dessa subordinação como uma forma de reconhecimento da

paridade participativa, ou seja, ser o casamento entre pessoas do mesmo sexo

reconhecido como hierarquicamente equivalente ao casamento heterossexual.

Entretanto, segundo a autora, nem todas as reivindicações por

reconhecimento são válidas ou justas, tendo em vista a possibilidade de

emergência de reivindicações que, a despeito de proporcionarem autorrealização

a algumas pessoas, geram marginalização ou subalternização de grupos étnicos,

LGBTs e mulheres. Fraser expõe essa problemática como derivada do modelo de

reconhecimento como valorização da identidade enquanto esfera de promoção da

autorrealização e da auto-estima (FRASER, 2007).

Com o intuito de evitar que problemas como os referidos ocorram e

demandas não justificadas despontem no horizonte das reivindicações por

reconhecimento, Fraser propõe uma análise baseada em critérios que permitem a

avaliação da justiciabilidade e da pertinência moral da demanda reivindicatória. Tal

análise consiste na comprovação, por parte dos reivindicantes do reconhecimento,

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de que os arranjos institucionais atuais os “impedem de participar em condição de

igualdade com os outros na vida social” (FRASER, 2007, p. 125).

Em seguida, deve-se analisar se as demandas sociais que os reivindicantes

defendem são capazes de alterar essa lógica de subordinação e proporcionar a

participação em “pé de igualdade” com outros atores sociais. Nas palavras da

autora: “reivindicantes do reconhecimento devem mostrar que as mudanças

institucionais socioculturais que eles perseguem fornecerão as condições

intersubjetivas necessárias, novamente, sem piorar substantivamente outras

disparidades” (FRASER, 2007, p. 126).

Ao final da análise, deve-se perceber se as normas morais são suficientes

para resolver a questão da paridade de participação ou se o problema deve ser

resolvido com um retorno à ética, e portanto ao reconhecimento enquanto

autorrealização.

No final de seu estudo, Fraser seleciona alguns casos controversos para

aplicar a sua teoria normativa deontológica. Aqui, cabe destacar e retomar o

exemplo do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo.

Aplicando o modelo de status ao casamento entre pessoas do mesmo sexo,

a filósofa encontra a institucionalização da cultura heteronormativa como

causadora do não reconhecimento de modelos familiares que divirjam desse

padrão. Esse fato, por si só, demonstra a injustiça que impede a participação

integral de pessoas LGBTs na realidade social. Dessa forma, a primeira etapa da

análise se encontra superada (FRASER, 2007, p. 127).

Em seguida é necessário analisar a eficácia e a plausibilidade dos possíveis

remédios reivindicatórios que permita a plena participação dos reivindicantes na

vida social. Para tanto, a filósofa elenca duas possibilidades de remédios: a

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primeira, a substituição do modelo heteronormativo por um modelo paritário, que

reconheça ambas as modalidades familiares e a segunda seria desvincular direitos

sociais como seguridade social, saúde, dentre outros, da condição matrimonial.

Para a autora, as duas demandas contemplam a reivindicação por direitos

equivalentes, e, portanto, confere status social de igual participação aos

reivindicantes (FRASER, 2007).

O modelo adotado, por conseguinte, apresenta-se capaz de responder às

demandas reivindicatórias das comunidades LGBT no que diz respeito ao

casamento igualitário sem que se adentre em questões de percepção íntima ou de

concepções ideológicas contraditórias, fato que pode ter facilitado a conquista do

matrimônio igualitário em diversos países:

a norma da paridade participativa justifica reivindicações de gays e

lésbicas deontologicamente, sem recorrer à avaliação ética – sem, é dizer,

assumir um julgamento substantivo de que uniões homossexuais são

valiosas eticamente. A abordagem de auto-realização, ao contrário, não

consegue evitar pressupor aquele julgamento, então, é vulnerável a

contra julgamentos que a negam. Sendo assim, o modelo de status é

superior para lidar com esse caso (FRASER, 2007, p. 128).

Em suma, percebendo a distanciação dos modelos de Honneth e Fraser,

observa-se que os autores divergem quanto à concepção filosófica da política do

reconhecimento. Enquanto Honneth adota um modelo voltado para a ética, ou o

reconhecimento enquanto uma forma de autorrealização dos indivíduos por meio

da estima, Fraser trata o reconhecimento no campo da moral, adotando um

modelo analítico pragmático denominado de modelo de status, em que

compreende o reconhecimento em termo de uma participação integral na

interação social.

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Considerações finais

Diante de todo o exposto, observa-se um rico universo de conceitos

atribuídos à esfera das teorias do reconhecimento. Diversos autores se debruçaram

sobre a questão da negação de direitos enquanto uma categoria importante para

as políticas de reconhecimento. Honneth, celebrado teórico da Escola de Frankfurt

propõe um modelo baseado nas teorias do jovem Hegel em Jena, sobre a

formação da consciência segundo a fenomenologia do “espírito”. O autor resgata

a compreensão de reconhecimento em Hegel para demonstrar a importância da

etapa de formação da identidade nos processos de reconhecimento e propõe sua

aplicação em diversos âmbitos da vida social, como as relações primárias, as

relações jurídicas e a comunidade de valores. A essas esferas o frankfurtiano prevê

formas genuínas de reconhecimento, respectivamente a dedicação emotiva, o

respeito e a estima social.

Derivadas dessas formas autênticas de manifestação do reconhecimento,

Honneth demonstra a existência de formas de reconhecimento degradadas, as

quais denomina violação com relação ao amor, privação de direitos, a respeito das

relações jurídicas e ofensa, com relação comunidade de valores (HONNETH, 2003,

p. 211).

Privilegiou-se, ao longo do presente estudo, a análise das formas jurídicas

de reconhecimento, que dão conta de demandas reivindicatórias de grupos sociais

que historicamente tem experimentado sistemática privação e violação de direitos,

o que importa sensivelmente a esse estudo, em termos teóricos e empíricos.

Em seguida, contrastando as ideias de um reconhecimento baseado na ética

e na autorrealização, analisou-se a teoria de Nancy Fraser, filósofa norte-

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americana, afiliada da Teoria Crítica, que opta por um modelo de status na

abordagem das políticas de reconhecimento. Fraser busca diferenciar-se de

Honneth no que diz respeito ao conceito de reconhecimento e suas implicações

teóricas e práticas.

Ao final, adotou-se o modelo de Fraser para analisar se o casamento entre

pessoas do mesmo sexo pode ser satisfatoriamente atendido enquanto demanda

reivindicatória diante apenas de uma abordagem moral, ou seja, de justiça, e não

ética, ou seja, de “boa vida”.

Concluiu-se, por meio do estudo de Fraser, que o casamento entre pessoas

do mesmo sexo pode ser reconhecido a contento por meio do modelo de status

sem que se recorra a questões ligadas à ética e valores individuais. Fraser, por sua

vez define o reconhecimento em termo de uma participação integral dos sujeitos

na interação social e afirma divergir do modelo de Honneth e de Charles Taylor

por não apostar, epistêmica e empiricamente no privilégio à satisfação pessoal do

indivíduo em detrimento da justiça coletiva.

Ora, evidenciadas as diferenças entre os modelos, há que se fazer uma

consideração pontual, a guisa de conclusão. Em que pese os dois modelos tenham

divergências marcantes, principalmente no que diz respeito à matriz filosófica

adotada por ambos os autores, há que se destacar que Honneth também faz

referência a um modelo de política de reconhecimento baseado na equivalência

hierárquica de participação dos atores na interação social, que pode ser observado

em sua obra “Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais”.

Nesse sentido, embora ambos os autores divirjam quanto à importância

necessária a se legar ao subjetivo e à estima - sendo que Honneth privilegia

consideravelmente a formação da consciência e Fraser não tem essa preocupação

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ontogenética do reconhecimento, mas preocupa-se com as implicações sociais

mais pragmáticas ligadas a essa luta - ambos se aproximam ao considerar que há

uma importância significativa, ao menos no campo da interação social, nas relações

hierárquicas ou equivalentes estabelecidas entre os atores.

Ao considerar o não reconhecimento como uma forma de negação de um

status de igualdade entre os sujeitos na interação social, Honneth viabiliza a

formação de um modelo que se afaste de qualquer validação ética, permitindo o

desenvolvimento de teorias de justiça a respeito do reconhecimento.

As implicações e desdobramentos teóricos e materiais dessas constatações,

contudo, devem ser apreciadas e debatidas em estudo posterior, apenas

estabelecendo neste artigo a abertura de um campo de investigação profícuo para

os pesquisadores do reconhecimento.

Referências

ARAUJO NETO, José Aldo Camurça de. A filosofia do reconhecimento: as

contribuições de Axel Honneth a essa categoria. Revista Kínesis, Vol. V, n° 09

(Edição Especial), Julho 2013, p. 52-69.

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, 70: 213-222,

2007.

GONÇALVES, Ricardo Juozepavicius. O direito em Axel Honneth: a luta por

reconhecimento em desenvolvimento. Revista Direito e Liberdade – RDL –

ESMARN – v. 19, n. 2, p. 253-275, maio/ago. 2017

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos

sociais. São Paulo: 34, 2003.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

RAVAGNANI, Herbert Barucci. Luta por reconhecimento: a filosofia social do

jovem Hegel segundo Honneth. Revista Kínesis, Vol. I, n° 01, Março-2009, p.39-

57.

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A LEI Nº 13.146/2015 E O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO DA

PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Hugo Silva de Aguiar

Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário

IESB; especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior

do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT); especialista em

Direito Notarial e Registral pelo Instituto Damásio de Direito (IDD); bacharel em Direito

pela Universidade de Brasília (UnB).

Augusto César Leite de Carvalho

Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla la Mancha; mestre

em Direito pela Universidade Federal do Ceará; professor de Direito do Trabalho do IESB;

professor colaborador da Universidade de Brasília (UnB) em pós-graduação de Direito

Constitucional do Trabalho e professor do mestrado da Universidade Autônoma de

Lisboa; ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Resumo

O presente artigo tem por escopo a análise da importância da Lei nº 13.146, de 6 de julho

de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), para a concretização do direito fundamental

à educação da pessoa com deficiência. O advento da referida lei representa marco

histórico para a dignidade da pessoa com deficiência, englobando o direito à educação

inclusiva. Serão realizadas, em primeiro lugar, observações acerca do direito fundamental

à educação – disciplinado nos arts. 6º e 205 a 214 da Constituição Federal –, à luz do

princípio da dignidade da pessoa humana, passando-se, então, ao exame do direito à

inclusão social das pessoas com deficiência. Ademais, serão feitas considerações acerca

do direito à educação inclusiva desse grupo de pessoas, bem como far-se-á estudo sobre

os impactos do direito à educação inclusiva da pessoa com deficiência no ambiente de

trabalho, com base nos ditames constitucionais e nas diretrizes internacionais sobre o

tema.

Palavras-chave: Estatuto da Pessoa com Deficiência; direito fundamental à educação;

dignidade da pessoa humana; educação inclusiva.

Abstract

The following paper presents its scope to the analysis of the importance of the Law 13.146,

July the sixth of 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), to the realization of the

fundamental right of education for people with disabilities. The referred law consummates

the cornerstone to the complete realization of the dignity of the person with disabilities,

thus circumscribing the right to inclusive education. The author shall observe, firstly, on

the matter of the fundamental right to education – inscribed in the articles sixth and 205th

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to 214th of the Federal Constitution – in the light of the principle of dignity of the human

person, then proceeding to the analysis of the right to social inclusion of people with

disabilities. Furthermore, there shall be considered the right to inclusive education to these

groups of people as well as the study of the impact of the right to inclusive education in

their respective workplace based on the constitutional orders and in the international

guidances on the subject.

Keywords: Estatuto da Pessoa com Deficiência; fundamental right to education; dignity of

the human person; inclusive education.

1. Introdução

O presente artigo objetiva analisar a importância da Lei nº 13.146, de 6 de

julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), para a concretização do direito

fundamental à educação da pessoa com deficiência. Mostrar-se-á como o advento

da referida lei representa marco histórico para a dignidade da pessoa com

deficiência, em especial no tocante ao direito à educação inclusiva.

Serão realizadas, em primeiro lugar, observações acerca do direito

fundamental à educação, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana,

passando-se, então, ao exame do direito à inclusão social das pessoas com

deficiência. Em seguida, foram feitas considerações acerca do direito à educação

inclusiva desse grupo de pessoas, bem como ocupou-se do estudo sobre os

impactos do direito à educação inclusiva da pessoa com deficiência no ambiente

de trabalho, com base nos ditames constitucionais e nas diretrizes internacionais

sobre o tema.

2. O Direito Fundamental à Educação

O direito à educação encontra-se disciplinado nos arts. 6º e 205 a 214 da

Constituição Federal. Trata-se de um direito social que tem assumido notável

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importância no ordenamento jurídico brasileiro para a efetivação dos valores

tutelados pelo texto constitucional e, sobretudo, “para a construção de patamar

mínimo de dignidade para os cidadãos” (MENDES; BRANCO, 2014, p. 675).

Embora o constituinte tenha dispensado tratamento especial à educação na

Carta Constitucional22 , as normas sobre a educação são tratadas em diversas

normas infraconstitucionais, sobressaindo-se, dentre estas, a Lei nº 9.394/9623 (Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e a Lei nº 8.069/9024 (Estatuto da

Criança e do Adolescente) (FERNANDES, 2017, p. 732).

Marcelo Hugo da Rocha (2016, p. 132), ao tratar sobre o tema, observa que

o direito à educação está inserido no rol dos direitos humanos consagrados na

Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH (1948). Quanto a esse aspecto,

pontua esse doutrinador que “a constrição ao direito humano da educação por

parte de um Estado soberano, como o Brasil, não só implica descumprir a DUDH,

como também afronta o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais” (FERNANDES, 2017, p. 133).

O art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos assim dispõe:

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita,

pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução

22 Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco observam que “além da previsão geral do art. 6º

da Constituição, que consagra o direito à educação como direito de todos e dever do Estado, o texto

constitucional detalhou seu conteúdo mínimo nos arts. 205 a 214. Nesse sentido, estabeleceu uma série de

princípios norteadores da atividade do Estado com vistas a efetivar esse direito, tais como a igualdade de

condições para o acesso e permanência na escola, assim como o pluralismo de ideias e concepções

pedagógicas e autonomia universitária”. (Ibidem, p. 675). 23 BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 20 de jun. de 2019. 24 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá

outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 20

de jun. 2019.

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elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível

a todos, bem como a instrução superior, está baseada no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da

personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos

humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a

compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos

raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em

prol da manutenção da paz.

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução

que será ministrada a seus filhos (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS

DIREITOS DO HOMEM)25

O direito à educação é um instrumento indispensável para a concretização

dos valores imanentes ao princípio da dignidade da pessoa humana 26 . É por

intermédio desse princípio que são reconhecidos e garantidos os direitos

fundamentais e, nas palavras de Sérgio Alves Gomes, “é em respeito ao pleno

desenvolvimento da personalidade humana que o direito à educação merece a

qualificação de direito fundamental” (2005, p. 96).

Inclusive, o próprio Estado Democrático de Direito assenta-se no princípio

da dignidade da pessoa humana. Com efeito, conforme também pontua Sérgio

Alves Gomes, “foi o reconhecimento da dignidade humana em forma de princípio

fundamental do Direito Constitucional e do Direito Internacional dos Direitos

Humanos que levou à instituição do Estado Democrático de Direito” (idem, ibid).

José Afonso da Silva, em sintonia com esse entendimento, posiciona-se no

sentido de que, ao fazer a observação de que a educação é um direito social

assegurado a todos no texto constitucional, “o art. 205 contém uma declaração

25 Cf. ONU. Nações Unidas no Brasil. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em:

<https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em 17 jun. 2019. 26 José Afonso da Silva, ao conceber a educação como atributo da pessoa humana, sustenta que “é essa concepção que Constituição agasalha nos

arts. 205 a 2014, quando declara que ela é um direito de todos e dever do Estado”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito

Constitucional Positivo. 19ª ed. rev. e atual. Malheiros: São Paulo, 2001, p. 813).

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fundamental que, combinada com o art. 6º, eleva a educação ao nível dos direitos

fundamentais do homem”27.

3. O Direito à Inclusão Social da Pessoa com Deficiência

No dia 6 de julho de 2015, foi editada a Lei nº 13.146 (o Estatuto da Pessoa

com Deficiência – EPCD), a qual representa um marco histórico no ordenamento

jurídico brasileiro, significando, assim, um importante avanço para a busca da

concretização da dignidade da pessoa com deficiência. A referida lei está em

harmonia com os princípios e exigências contidos na Convenção das Nações

Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPC28.

A CDPC foi assinada em 30 de março de 2007, aprovada pelo Congresso

Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 200829 , e

promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Assim, ao assinar e

ratificar a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o

Brasil se comprometeu a implementar medidas para dar efetividade aos direitos

garantidos nesse pacto internacional30.

27 Cfr. SILVA. José Afonso da. Op. cit., p. 315. 28 Cfr. ONU. Nações Unidas no Brasil. Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência. 2008. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/acao/pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em 17

jun. 2019. 29 BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos

das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de

2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/CONGRESSO/DLG/DLG-186-2008.htm>.

Acesso em: 12 mar. 2020. 30 Cfr. ARAUJO, Luiz Alberto David; COSTA FILHO, Waldir Macieira da. O Estatuto da Pessoa com

Deficiência – EPCD (Lei 13.146, de 06.07.2015): algumas novidades. Revista dos Tribunais, vol. 962, ano

104, p. 65-80. São Paulo: Ed. RT, dez. 2015, p. 66.

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Conforme se constata do disposto no art. 1º da CDPC31, essa convenção

internacional apresenta deveres genéricos e determina comportamentos sem, no

entanto, anotar prazos 32 . Porém, a Lei nº 13.146/2015, ao buscar garantir os

direitos e liberdades fundamentais à pessoa com deficiência, tem por primazia,

sobretudo, a inclusão social dessas pessoas, consoante se infere do preconizado

no art. 1º dessa lei, que assim dispõe:

Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência

(Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a

promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das

liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua

inclusão social e cidadania (BRASIL, Lei nº 13.146/2015).

Nos termos do disposto no art. 2º da Lei nº 13.146/2015, a pessoa com

deficiência “é aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física,

mental, intelectual ou sensorial”, impedimento esse que “em interação com uma

ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em

igualdade de condições com as demais pessoas”.

O direito à inclusão social das pessoas com deficiência é um dos principais

objetivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, tudo com o propósito maior de

garantir o respeito à pessoa humana. Consoante o disposto no art. 4º do EPCD,

31 O art. 1º da CDPC assim dispõe: “Artigo 1º – O propósito da presente Convenção é o de promover,

proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais

por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade. Pessoas com

deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em

interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais

pessoas”. 32 ARAUJO, Luiz Alberto David; COSTA FILHO, Waldir Macieira da. Op. cit., p. 66.

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“toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as

demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”.

De outra parte, no intuito de garantir a efetiva inclusão social das pessoas

com deficiência, o legislador pátrio lhes assegurou “o direto ao exercício de sua

capacidade legal em condições de igualdade com as demais pessoas” (art. 84,

caput). Vê-se um dos relevantes exemplos quanto à busca pela efetiva inclusão

social da pessoa com deficiência quando o EPCD, no § 1º do art. 84, faculta a

“adoção do processo de tomada de decisão apoiada”33.

É relevante salientar que a tomada de decisão apoiada representa a

concretização do preconizado na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos

das Pessoas com Deficiência. O art. 12 dessa Convenção dispõe que “os Estados

Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal

em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”

e que, nesse passo, “os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover

o acesso de pessoas com deficiência ao apoio de que necessitarem no exercício de

sua capacidade legal”.

São valiosas as observações feitas por Cristiano Chaves de Farias e Nelson

Rosenvald sobre o real significado da tomada de decisão apoiada:

Na tomada de Decisão Apoiada, o beneficiário (pessoa plenamente

capaz, relembre-se), no gozo de seus direitos civis, procura ser

coadjuvado em seus atos pelos apoiadores. Não significa qualquer tipo

de restrição de plena capacidade. [...] Eventualmente, precisando de

33 A tomada de decisão apoiada é uma inovação trazida pelo EPCD, o qual introduziu o art. 1783-A à Lei nº

10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Esse dispositivo legal, em seu caput, se encontra vazado

nos seguintes termos: “Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com

deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua

confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos

e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”

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auxílio (apoio, na linguagem da lei), o sistema prevê a nomeação de dois

apoiadores, que não serão representantes ou assistentes – porque não

há incapacidade. [...] Elas não serão interditadas ou incapacitadas, pois a

tomada de decisão apoiada apenas promove a autonomia, sem cerceá-

la (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 340).

Dentro desses quadrantes, a exemplo do que sucede com esse importante

instituto da tomada de decisão apoiada, que tem o propósito de maximizar a

inclusão social das pessoas com deficiência, o EPCD, em perfeita sintonia com a

Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,

representou um importante marco no ordenamento jurídico brasileiro pela busca

efetiva da inclusão social e da cidadania dessas pessoas.

4. A Educação Inclusiva da Pessoa com Deficiência

O direito à educação inclusiva da pessoa com deficiência encontra-se previsto

no art. 208, III, da Constituição Federal, que preceitua que o “atendimento

educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na

rede regular de ensino” constitui dever estatal. Ademais, o inciso V dispõe que o

Estado também deve garantir “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da

pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”.

Insta salientar que o direito à educação inclusiva não significa segregar a

pessoa com deficiência em ambientes educacionais diferenciados, distante do

convívio com as demais pessoas. Assim, adequadas são as ponderações feitas por

Erick Santos em artigo científico de sua autoria, segundo o qual o termo “educação

especial” deve ceder lugar à expressão “educação inclusiva”, conforme trecho a

seguir transcrito:

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Inicialmente, pregava-se que o ensino deveria ser ministrado às pessoas

com deficiência em estabelecimentos ou salas diferenciadas, excluindo-

as do convívio regular com os outros alunos. Tal entendimento não mais

vigora, em virtude da necessidade de integrar a pessoa com deficiência

ao convívio normal. Substitui-se, portanto, o termo educação especial por

educação inclusiva, que melhor reflete os propósitos do atendimento

conferido às pessoas com deficiência, que deve ser no sentido de integrá-

las ao convívio com outros alunos (SANTOS, 2012, p. 134).

A Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino,

adotada em 14 de dezembro de 1960, pela Conferência Geral da Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, reunida em Paris, foi

aprovada pelo Decreto Legislativo nº 40, de 1967, tendo entrado em vigor, no

ordenamento jurídico brasileiro, em 19 de julho de 1968. O referido decreto

legislativo determinou a execução e o cumprimento da convenção de acordo com

os estritos termos nela contidos.

A convenção em tela representa instrumento essencial para a luta contra a

discriminação, tendo importante papel para a garantia da educação inclusiva. Em

seu artigo I, refere-se à abrangência do termo “discriminação”, in verbis:

Para os fins da presente Convenção, o termo "discriminação" abarca

qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de

raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião,

origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por

objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em

matéria de ensino, e, principalmente:

a) privar qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso aos diversos

tipos ou graus de ensino;

b) limitar a nível inferior à educação de qualquer pessoa ou grupo;

c) sob reserva do disposto no artigo 2 da presente Convenção, instituir

ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para

pessoas ou grupos de pessoas; ou

d) de impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições

incompatíveis com a dignidade do homem.

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Representando notável avanço para a garantia da educação inclusiva das

pessoas com deficiência, a Lei nº 13.146, de 2015, encontra-se em harmonia com

as diretrizes da convenção, especialmente quando faz alusão ao dever do Estado,

da família, da comunidade escolar e da sociedade de assegurar educação de

qualidade à pessoa com deficiência, combatendo-se a violência, a negligência e a

discriminação34 (parágrafo único do art. 27 da referida lei).

O EPCD aponta, ainda, que deve ser assegurado à pessoa com deficiência

sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como aprendizado ao longo

de toda a sua vida, de forma a desenvolver da melhor forma possível seus talentos

e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características,

interesses e necessidades de aprendizagem (art. 27, caput).

Como dito anteriormente, é fundamental que o ensino inclusivo seja feito,

sempre que possível, possibilitando-se o contato entre a pessoa com deficiência e

as demais pessoas. Todavia, a fim de preservar a dignidade do aluno que possua

alguma limitação que impeça seu convívio com os demais, há a possibilidade

excepcional de garantir seu atendimento em ambientes educacionais

34 Como demonstram Luiz Alberto David Araujo e Waldir Macieira da Costa Filho: “Desta forma, cabe criar

as condições para que as pessoas com deficiência, principalmente as crianças com impedimentos cognitivos,

físicos e sensoriais, tenham direito igual às demais de acesso e permanência nas escolas públicas e privadas

regulares e, assim, se dê concretude ao seu direito à educação e à cidadania. Para tanto, impõe-se o

reconhecimento das suas diferenças específicas que, precisamente com vistas à possibilitar a igualdade,

deverá garantir uma política de ensino adequada às suas necessidades educacionais especiais. Apenas essa

especificidade de tratamento poderá possibilitar a sua real inclusão. A questão revela a complexidade de que

se reveste o direito atual que, ao afirmar direitos universais, não mais pode permanecer cego às necessidades

especiais de determinados grupos de pessoas, e para garantir o acesso dessas pessoas a esses direitos, há que

internalizar no próprio direito políticas e estratégias de enfrentamento das condições que os obstam. Para

igualarmos em certos aspectos temos que desigualar em outros com vistas a atingir o fim de garantir a

inclusão. Somos diversos, e a diversidade exige que examinemos na teoria e na prática os desafios e as

possibilidades postulados à educação, com vistas a darmos à igualdade de oportunidades e à inclusão

educacional dessas pessoas” (ARAUJO, Luiz Alberto David; COSTA FILHO, Waldir Macieira da. Op. cit.,

p. 76).

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especializados. Desse modo, a Lei nº 9.394, de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional), estabelece que o “atendimento educacional será feito em

classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições

específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de

ensino regular” (art. 58, § 2º).

Em atenção à excepcionalidade do atendimento em estabelecimentos

educacionais separados, a Lei nº 13.146/2015 traz, em seu art. 28 – de modo que

os estudantes com deficiência possam ser incluídos nos estabelecimentos de

ensinos regulares –, diversas atribuições ao Poder Público, tais como: a promoção

da inclusão plena da pessoa com deficiência, com aprimoramento dos sistemas

educacionais; a oferta de ensino de Libras, do Sistema Braille e o uso de tecnologia

assistencial, a fim de ampliar as habilidades funcionais dos estudantes,

promovendo sua autonomia e participação, facilitando sua socialização com as

demais pessoas; o acesso, em igualdade de condições, a jogos e a atividades

recreativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar; e o acesso à educação

superior e à educação profissional e tecnológica em iguais condições com as

demais pessoas.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência possui grande relevo, também, para a

esfera profissional dessas pessoas. Assim, será abordado, a seguir, o impacto do

direito à educação inclusiva das pessoas com deficiência no ambiente de trabalho.

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5. A Repercussão do Direito à Educação Inclusiva da Pessoa com

Deficiência no Ambiente de Trabalho

No tocante aos reflexos causados ao ambiente de trabalho pelo direito à

educação inclusiva das pessoas com deficiência, cabe ressaltar que a Lei nº 13.146,

de 2015, cuida, em seu Capítulo VI, do direito ao trabalho dessas pessoas.

O art. 34, caput, do referido diploma legal prevê: “A pessoa com deficiência

tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e

inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. Além disso, o

§ 2º do referido dispositivo dispõe que a pessoa com deficiência tem direito –

assegurando-se a igualdade em relação aos demais trabalhadores – a condições

justas e favoráveis de trabalho, inclusive no tocante à sua remuneração.

Acerca do tratamento isonômico que deve ser conferido às pessoas com

deficiência, mostram-se apropriadas as considerações feitas por Guilherme

Domingos de Luca e Rogério Nascimento Renzetti Filho:

Visando a demonstrar maior forma de inserção de políticas afirmativas

em favor da pessoa com deficiência, é cediço que o trabalho e a garantia

ao emprego se fundamentam como importante elemento de isonomia.

Para que a pessoa com deficiência seja inserida no mercado de trabalho

é necessário, primeiramente, abrir mão do preconceito e da opressão e

perceber que essas pessoas são inteiramente capazes de exercer cargos

e funções, dentro de seus limites, e podem perfeitamente obter o sucesso

profissional (grifos nossos) (LUCA; RENZETTI FILHO, 2018, p. 227).

Ademais, é importante destacar que a Lei nº 13.146/2015 traz relevantes

disposições acerca do direito à educação da pessoa com deficiência no espaço de

trabalho, sendo oportuno destacar que os §§ 4º e 5º de seu art. 34 asseveram que

o acesso da pessoa com deficiência a cursos diversos (inclusive a cursos de

formação e capacitação), a treinamentos e a educação continuada deve ocorrer

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com observância à igualdade e à acessibilidade. Tais parágrafos são transcritos a

seguir:

§ 4º A pessoa com deficiência tem direito à participação e ao acesso a

cursos, treinamentos, educação continuada, planos de carreira,

promoções, bonificações e incentivos profissionais oferecidos pelo

empregador, em igualdade de oportunidades com os demais

empregados.

§ 5º É garantida aos trabalhadores com deficiência acessibilidade em

cursos de formação e de capacitação (grifos nossos) (BRASIL, Lei nº

13.146/2015

A Seção II do Capítulo VI da lei em comento tem por objeto a habilitação e a

reabilitação profissional, as quais correspondem ao processo destinado a propiciar

à pessoa com deficiência aquisição de conhecimentos, habilidades e aptidões para

exercício de profissão ou de ocupação, permitindo nível suficiente de

desenvolvimento profissional para ingresso, permanência e reingresso no campo

de trabalho.

O § 3º do art. 36 é claro ao prever o objetivo de se capacitar a pessoa com

deficiência para trabalho que lhe seja adequado, a fim de que possa obtê-lo,

conservá-lo e nele progredir, devendo, para tanto, os serviços de habilitação,

reabilitação e educação profissional ser dotados de recursos necessários para

atender a todos que possuírem alguma deficiência. O § 4º, por sua vez, dispõe que

os serviços de habilitação profissional, de reabilitação profissional e de educação

profissional devem ser oferecidos em ambientes inclusivos e acessíveis.

O Estado possui, inclusive, o dever de garantir tais condições. O estatuto

define, em seu art. 35, como finalidade primordial das políticas públicas de trabalho

e emprego promover e garantir condições de acesso e de permanência da pessoa

com deficiência no campo de trabalho.

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Demais disso, nos termos do art. 36, § 1º, o Poder Público deve implementar

serviços e programas completos para habilitação e reabilitação profissional, a fim

de que o ingresso, a continuidade e o retorno ao mercado de trabalho sejam

assegurados. O § 5º desse artigo estabelece, também, que a habilitação e a

reabilitação profissional devem ocorrer com articulação entre as redes públicas e

privadas, especialmente de saúde, de ensino e de assistência social, em todos os

níveis e modalidades, em entidades de formação profissional ou diretamente com

o empregador.

Evidencia-se, assim, a harmonia entre a Lei nº 13.146, de 2015, e a

Recomendação nº 168, de 20 de junho de 1983, da Organização das Nações

Unidas, que cuida da reabilitação profissional e o emprego de pessoas com

deficiência. É importante destacar a redação dos itens nº 7 e 12 da citada

recomendação:

7. As pessoas portadoras de deficiência deveriam desfrutar de igualdade

de oportunidades e de tratamento no acesso, na manutenção e na

promoção no emprego que, sempre que for possível, corresponda a sua

eleição e a suas aptidões individuais.

12. Ao elaborar programas para a integração ou reintegração das pessoas

portadoras de deficiência na vida ativa e na sociedade, teriam que ser

considerados todos os tipos de formação; estes deverão incluir, quando

necessário e conveniente, atividades de preparação profissional e

formação, formação modular, formação para as atividades da vida

cotidiana, cursos de alfabetização e formação em outras esferas que

afetam à reabilitação profissional. (grifos nossos) (ONU, Resolução nº 168,

1963).

Depreende-se do exposto que o direito à educação das pessoas com

deficiência no ambiente de trabalho deve ser garantido não só pelo Estado, mas

por toda a sociedade, a fim de garantir condições de igualdade para o acesso, a

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

permanência e o reingresso em ofícios escolhidos por tais pessoas, tudo em

observância aos ditames constitucionais e às diretrizes internacionais sobre a

matéria35.

Considerações Finais

Foi analisado, neste artigo, que o direito à educação inclusiva da pessoa com

deficiência possui fundamentos em um vasto conjunto normativo, tendo sido

realizados estudos acerca do tema na Constituição Federal, na Declaração

Universal dos Direitos Humanos, na Convenção das Nações Unidas sobre os

Direitos das Pessoas com Deficiência, na Convenção das Nações Unidas relativa à

Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino, no Estatuto da Pessoa com

Deficiência e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Verificou-se que a garantia da educação inclusiva constitui dever não só do

Estado, mas de toda a sociedade, a fim de que a dignidade humana da pessoa com

35 Pertinentes são as observações feitas por Juliane Caravieri Martins e Zélia Maria Cardoso Montal em artigo

de sua autoria, conforme excerto a seguir reproduzido: “Nesse contexto, a educação para o trabalho,

enquanto direito social fundamental prescrito na Constituição (art. 6º, CF), extrapola a característica de norma

programática e apresenta-se como direito público subjetivo do cidadão trabalhador, o que o torna exigível

do Estado, seja atuando sozinho mediante políticas públicas, seja atuando em colaboração ou parceria com a

sociedade (art. 205, CF). Dessa maneira, na seara da educação para o trabalho e qualificação profissional,

destaca-se a necessidade de atuação das empresas e do setor privado em geral na efetivação desse direito

fundamental em colaboração com os órgãos públicos no âmbito da chamada responsabilidade social da

empresa. Esta temática é analisada por diferentes áreas do conhecimento humano, tais como: o direito, a

administração, a filosofia etc., no intuito de se imprimir ‘novos contornos’ às relações entre capital e trabalho

em prol da busca para a concretização do direito ao trabalho digno na era do capitalismo global.” (MARTINS,

Juliane Caravieri; MONTAL, Zélia Maria Cardoso. Educação para o trabalho (direito fundamental) e a

responsabilidade social da empresa na profissionalização dos adolescentes. In: Revista de Direito

Constitucional e Internacional, vol. 108, ano 26, p. 121-155. São Paulo: Ed. RT, jul.-ago. 2018, p. 131-132).

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

deficiência possa ser observada. Viu-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência,

em consonância com a Constituição Federal e com as instruções internacionais,

representa notável avanço na disciplina legal da matéria, seja porque reafirma a

proibição da discriminação desse grupo de pessoas, seja porque traz relevantes

novidades ao ordenamento jurídico, como no caso da tomada de decisão apoiada.

A educação inclusiva, como explicado, não possui o mesmo significado da

educação especial, tendo em vista que intenta promover a inserção das pessoas

com deficiência em ambientes de ensino que buscam a inclusão social e a garantia

da cidadania dessas pessoas. Constitui exceção, portanto, o atendimento em

classes, escolas ou serviços especializados.

O EPCD, assim, apresenta-se como importante instrumento normativo para a

concretização dos direitos das pessoas com deficiência. Tal diploma legal,

acertadamente, reforça a concepção de que tais pessoas são plenamente capazes,

concepção essa que tem sido, cada vez mais, relevante para o campo da educação

inclusiva.

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OS IMPACTOS DA JORNADA DE TRABALHO NA VIDA DOS

MOTORISTAS PROFISSIONAIS DE CARGAS DO BRASIL: UMA ANÁLISE DA

FLEXIBILIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO SOCIAL E A CONFIGURAÇÃO DO DANO

EXISTENCIAL

Arlene Pereira da Silva Sacco

Mestranda no Programa de Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos

Reivindicatórios pelo Centro Universitários IESB

Augusto César Leite de Carvalho

Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla la Mancha; mestre

em Direito pela Universidade Federal do Ceará; professor de Direito do Trabalho do IESB;

professor colaborador da Universidade de Brasília (UnB) em pós-graduação de Direito

Constitucional do Trabalho e professor do mestrado da Universidade Autônoma de

Lisboa; ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Resumo

O objeto deste estudo foi analisar os impactos da excessiva jornada de trabalho na saúde

física e mental dos motoristas profissionais no Brasil, e em que medida a flexibilização da

legislação social do trabalho contribui para a precarização estrutural do trabalho dessa

categoria profissional, e a configuração do dano existencial. O estudo balizou-se pela

pesquisa bibliográfica, utilizando recursos como livros, artigos e revistas especializadas.

Palavras-chave: Jornada de Trabalho. Motoristas Profissionais de Cargas. Flexibilização

Legislativa. Saúde. Dano Existencial.

Abstract

The purpose of this study was to analyze the impacts of excessive work hours on the

physical and mental health of professional drivers in Brazil, and to what extent the

flexibilization of social labor legislation contributes to the structural precariousness of the

work of this professional category, and the existential damage. The study was based on

bibliographical research, using resources such as books, articles and specialized journals.

Keywords: Workday. Professional Drivers of Loads. Legislative Flexibilization. Health.

Existential Damage.

Indrodução

O transporte rodoviário no Brasil é o principal sistema logístico do país,

conta com uma rede de 1.720.700 quilômetros de estradas e rodovias nacionais, e

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essa extensa malha rodoviária é ocupada pelo transporte de cargas que

movimenta o abastecimento das comunidades em todo o território nacional, tendo

como principais atores os motoristas profissionais do transporte de cargas.

A atividade laboral desses atores é objeto do presente estudo. As longas

distâncias percorridas, com intervalos curtos para entrega das cargas, baixas

remunerações, uso de medicamentos para não dormir, algumas vezes

psicotrópicos, são alguns dos fatores observáveis ao se analisar as condições de

trabalho dessa categoria.

Fatores que chamaram a atenção no Ministério Público do Trabalho,

especialmente no que tange às longas jornadas de trabalho às quais são

submetidos os motoristas rodoviários, resultando num trabalho conjunto para

consecução de uma legislação que regulasse o assunto.

Contudo, com resultado bem diverso do inicialmente discutido,

verificando-se uma “escravização” desses trabalhadores, submetidos a duras

jornadas de trabalho, com péssimas condições de trabalho, e total ausência de

respeito aos direitos trabalhistas da categoria, ocasionando, muitas vezes, lesões

ao direito fundamental da pessoa humana, resultando em um dano existencial

àquele motorista rodoviário.

O objetivo central do estudo é identificar os prejuízos causados aos

motoristas profissionais de cargas pela flexibilização da legislação social do

trabalho contribuindo sobremaneira para uma precarização dessa atividade

laboral.

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2. O transporte de cargas e precarização do trabalho do caminhoneiro

Segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT), a malha

rodoviária do país é composta por 1.720.700 km de rodovias. Assim, o transporte

rodoviário caracterizou-se por possuir uma alta capilaridade, possuindo uma

participação predominante na matriz de transporte do Brasil. Estima-se que 96%

das distâncias percorridas no Brasil sejam pelo modal rodoviário. No que se refere

às cargas, 64% são transportadas através de rodovias, 21% em ferrovias, 12% em

hidrovias e o restante por gasodutos/oleodutos, ou meios aéreos (BELAN et al.,

2017).

Essa extensa malha rodoviária é ocupada pelo transporte de cargas que

movimenta o abastecimento das comunidades em todo o território nacional, tendo

como principais atores os caminhoneiros no transporte de cargas, que para

cumprirem os prazos de entrega são submetidos a excessivas horas de trabalho.

Segundo uma pesquisa realizada pela Escola Superior de Agricultura Luiz

de Queiroz (Esalq) da USP, hoje no Brasil cerca de 2 milhões de caminhoneiros

percorrem as estradas diariamente. Contudo, o estudo revelou jornadas de

trabalho excessivas e baixa remuneração nas estradas.

O trabalho dos motoristas rodoviários, portanto, situa-se nesse contexto

de jornadas excessivas e com turnos irregulares, que refletem negativamente na

saúde do trabalhador. Um estudo sobre a vida e o trabalho dos caminhoneiros

realizado por Santos (apud Antunes, 2004, p. 285-353), mostra que caminhoneiros

no Brasil são distribuídos de forma bastante heterogênea quanto aos locais de

trabalho. Grupos que realizam seu trabalho em zonas urbanas ou em pequenos

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itinerários nas estradas vicinais conseguem retornar ao lar e manter o convívio

social ao final do dia. Já motoristas que realizam se trabalho em longos percursos,

em rotas estaduais, federais e até internacionais, passam muito tempo longe da

família e do convívio social, restringindo-se aos encontros com trabalhadores das

rodovias e dos postos de serviços das estradas.

Dentro desse contexto, pesquisadores da Universidade Federal Fluminense

(UFF) analisaram a organização do trabalho e o comprometimento da saúde dos

caminhoneiros no Estado de São Paulo, onde constataram que determinadas

enfermidades tais como obesidade, hipertensão, taxas alteradas de colesterol,

diabetes e alterações posturais podem ser acirradas por fatores relacionados à

organização do trabalho: longas jornadas de trabalho, ausência de pausas,

imposição de prazos curtos para entrega de carga e a precariedade dos postos de

descanso, além das alterações frementes do denominado ciclo circadiano,

conforme o destaque:

O ciclo circadiano dos caminhoneiros também é rotineiramente

modificado, pois dirigem longas horas seguidas – às vezes mais à noite,

às vezes mais durante o dia – não permitindo ao organismo a adaptação

ou “migração” do sono para o novo horário. Neste aspecto, o horário de

trabalho do caminhoneiro se assemelha ao dos trabalhadores em turnos

diferentes. Isto acarreta consequências para o equilíbrio fisiológico do

organismo (ciclo circadiano, hábitos de sono e alimentação, por exemplo)

que interfere na eficiência do desempenho, prejudica as relações pessoais

(social, trabalho e família), além de deteriorar as condições de saúde,

causando transtornos do sono, distúrbios gastrointestinais e

cardiovasculares.

A organização do trabalho das transportadoras focada na redução de

custos, na busca de produtividade, na redução de efetivos, nas longas

jornadas de trabalho (38% tem carga horária acima de 12h por dia) na

redução de folgas (com média de 40 dias longe da família e que 49%

deles não tiram férias anuais), podem provocar os sintomas referidos

acima (sobrecarga física, emocional e psicológica, estresse, sofrimento e

doenças ocupacionais).

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Todos esses dados comprovam que as péssimas condições de trabalho,

associadas à jornadas de trabalho excessivas cumuladas com fatores estressores

de ordem ambiental, a ausência do convívio familiar e social, associado ao uso de

substância entorpecentes, demonstram que as exigências impostas aos motoristas

profissionais pela organização do trabalho das empresas transportadoras gera

uma sobrecarga física e psicológica aos trabalhadores dessa categoria profissional.

Nessa toada, Ricardo Antunes explica que:

A redução da jornada diária (ou do tempo semanal) de trabalho tem sido

uma das mais importantes reivindicações do mundo do trabalho, uma

vez que se constitui num mecanismo de contraposição à extração do

sobretrabalho, realizado pelo capital, desde a sua gênese com a

Revolução Industrial e contemporaneamente com a acumulação flexível

da era do toyotismo e da máquina informacional (ANTUNES, 2015).

As péssimas condições de trabalho dos motoristas rodoviários no Brasil,

especialmente no que tange às longas jornadas de trabalho, também foram objeto

de estudo do Ministério Público do Trabalho da 24ª Região. O Procurador do

Trabalho, Paulo Douglas Almeida de Moraes desenvolveu um trabalho

especificamente voltado para a realidade da categoria de motoristas profissionais,

em que observou dados importantes, como descritos a seguir:

Será que efetivamente o motorista hoje é tratado como igual? Eu diria

que é exatamente a condição indigna a qual o motorista é submetido

que, de certo modo, deu um impulso a esse debate. Em 2007, quando

estivemos em Rondonópolis, no início da carreira no Ministério Público

(...) fomos às rodovias e constatamos que, naquela oportunidade, de 28%,

ou melhor dizendo, de 22% de positividade clínica, paramos 100

motoristas e constatamos 22% deles usando alguma espécie de

substância e imaginávamos, num primeiro momento, que seria

anfetamina; 68% usavam cocaína e 32% anfetamina.

Um detalhe interessante é que alguns questionam o nexo de causalidade

entre a jornada de trabalho e o uso de drogas: ora, será que o motorista

não quer apenas curtir um barato ou alguma coisa assim? Percebam que

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essa última aferição em 2012 indica com muita facilidade essa relação,

porque até às 21h nenhuma amostra de urina apresentou o uso de

drogas. Das 21h às 23h, até às 24h, na verdade, o aumento foi

exponencial e, (...) há uma relação direta entre o relógio biológico no

momento em que aponta para o descanso; para violentar ou violar esse

nosso relógio biológico, há necessidade do uso de substâncias químicas

Após ganharem repercussão nacional, outros atores entraram no debate,

e num esforço interinstitucional foi editada a Lei nº 12.619/2012, que veio regular

e disciplinar a jornada de trabalho e o tempo máximo que o motorista profissional

poderia ficar na direção de maneira ininterrupta, dando a eles a chance de serem

protegidos de acordo com a regulamentação específica que é proposta pelo

Direito do Trabalho.

Contudo, anos mais tarde, as paralizações de fevereiro de 2015, que na

realidade tiveram como objetivo mais a defesa dos interesses dos empregadores,

resultaram na edição da Lei nº 13.103/2015, que acaba por tornar o ambiente de

trabalho das classes de trabalhadores dos motoristas profissionais mais inseguro e

desgastante, gerando prejuízo direto à saúde destes trabalhadores.

Os motoristas profissionais, submetidos ao império daqueles que detêm

os meio de produção, enfrentam diariamente a precariedade das condições de

trabalho, seja na infraestrutura das rodovias brasileiras e nos pontos de parada,

seja nos curtos prazos de entrega ou mesmo na terceirização.

3. A flexibilização da legislação social do trabalho

Conforme já mencionado, as últimas alterações legislativas vieram a

flexibilizar as regras para as jornadas de trabalho dos motoristas rodoviários, com

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

possibilidade de ocorrência de sobrecargas de trabalho que, ao longo do tempo,

podem comprometer a saúde e a qualidade de vida do trabalhador.

A Lei nº 13.103/2015 trouxe alteração do artigo 235-C, que fora inserido

na CLT pela Lei nº 12.619/2012. Uma das mais consideráveis modificações

imputadas pela edição e publicação da lei sob comento foi a que disciplinou a nova

duração da jornada de trabalho, com autorização de possibilidade de prorrogação

de até quatro horas diárias. (GEMIGNANI; GEMIGNANI, 2016).

Enquanto na Lei 12.619/2012 observava-se que a jornada de trabalho dos

motoristas seria disciplinada pela CRFB e por acordos e/ou convenções coletivas,

admitindo-se horas extraordinárias de até duas horas diárias, a Lei nº 13.103/2015

veio possibilitar que os empregadores possam exigir, se respaldadas por

negociação coletiva, até quatro horas extraordinárias diárias, sendo que estas

ainda poderão ser compensadas (GEMIGNANI; GEMIGNANI, 2016).

Tamanha abertura trazida pela Lei nº 13.103/2015, acaba por permitr que

o empregador fixe jornadas de trabalho de até doze horas, o que compromete

sobremaneira a segurança e a saúde do trabalhador, que devem redobrar atenção,

utilizando muitas vezes, substâncias psicotrópicas.

Outra inovação, tanto a Lei 12.619/2012, quanto a Lei 13.103/2015 foi à

inclusão dos mesmos no artigo 235-F da CLT, que possibilidade de jornada de 12

X 36, por meio de regime de compensação. Contudo, no caso dos motoristas

rodoviários, na maioria das vezes, não é possível, devido à distância, retornarem

aos seus lares para o descanso das trinta e seis horas, após as dozes trabalhadas.

Assim, a supressão do direito ao descanso e ao convívio familiar afeta o

trabalhador, no caso em tela o motorista profissional de transporte de cargas

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rodoviárias, que além dos prejuízos à saúde física e psíquica, também causam

efeitos danosos às famílias destes trabalhadores.

Como consequência da “escravização” desses trabalhadores, submetidos

a duras jornadas de trabalho, com péssimas condições de trabalho, com a falta de

respeito aos direitos trabalhistas da categoria, fica fácil perceber o resultado dessa

conta. Consequências danosas para o trabalhador e sua família, além dos efeitos

colaterais para a sociedade, uma vez que o trabalho do motorista se resume quase

que em dirigir pelas estradas do país, e, estando na direção de veículo sem a devida

possibilidade física e mental, o motorista se transforma em risco para a saúde do

restante da população.

3.1 A Configuração do Dano Existencial nas Jornadas de Trabalho

Excessivas

A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III da

Constituição Federal, constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de

Direito, inerente à República Federativa do Brasil. Sua finalidade, na qualidade de

princípio fundamental, é assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem

ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a

valorização do ser humano.

Contudo, para dimensionar o problema é necessário entender

conceitualmente o que seria a dignidade da pessoa humana, que nas palavras de

Ingo Wolfgang Sarlet é assim definida:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e

distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito

e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste

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sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem

a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e

desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais

mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua

participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da

vida em comunhão dos demais seres (SARLET, 2015).

Assim, a definição do princípio da dignidade da pessoa humana é um

conceito aberto, mas deve ser entendido objetivamente como um princípio

aplicável a todas as relações sociais.

Nesse contexto, fazendo uso das palavras de J. González Pérez, Ingo

Wolfgang Sarlet menciona que o princípio da dignidade humana impõe ao Estado,

além do dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que

viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas

de vivem com dignidade.

Na esteira das relações laborais, o Direito do Trabalho veio a propiciar uma

evolução aos Direitos Humanos, quando reafirma a necessidade de respeito aos

preceitos jurídicos de proteção da dignidade humana.

Preceitos esses que se tornam mais prementes quando se analise a

realidade laborativa da categoria dos motoristas profissionais. Aqui encontramos

uma organização do trabalho voltada para redução dos custos, com exigência por

mais produtividade, longas jornadas de trabalho, impossibilitando o trabalhador

do convívio familiar, atores que podem resultar numa sobrecarga física, emocional,

sofrimento e doenças ocupacionais, levando ao que a doutrina atribui como dano

existencial.

Nesse jaez, o dano existencial no Direito do Trabalho, também chamado

de dano à existência do trabalhador, decorre da conduta patronal que impossibilita

o empregado de se relacionar e de conviver em sociedade por meio de atividades

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recreativas, afetivas, espirituais, culturais, esportivas, sociais e de descanso, que lhe

trarão bem-estar físico e psíquico e, por consequência, felicidade; ou que o impede

de executar, de prosseguir ou mesmo de recomeçar os seus projetos de vida, que

serão, por sua vez, responsáveis pelo seu crescimento ou realização profissional,

social e pessoal.

Nas palavras do ministro Augusto César Leite de Carvalho, quando a

sobrecarga de trabalho impede que um empregado tenha projetos pessoais e

relações familiares, surge o dano existencial.

Ainda nas palavras de Carvalho, para que haja a observância ao princípio

de uma existência digna, conforme o previsto na Constituição da República de

1988, “empregados e empregadas não podem viver apenas para o trabalho. Eles

precisam vivenciar outras experiências”.

Assim, a imposição de jornada excessiva ocasiona o dano existencial,

conforme jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, na qual considerou que

o dano existencial ocorre quando a conduta do empregador se revela excessiva ou

ilícita a ponto de prejudicar o descanso e o convívio social e familiar, pois viola,

entre outros, o direito social ao lazer, previsto no artigo 6º da Constituição da

República”, a exemplo da decisão abaixo:

Processo: RR-1351-49.2012.5.15.0097:

RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI Nº

13.015/2014. 1. DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXAUSTIVA. 15 (QUINZE)

HORAS DIÁRIAS DE TRABALHO. MOTORISTA DE CARRETA. DANO

MORAL. INDENIZAÇÃO. O dano existencial é espécie do gênero dano

imaterial cujo enfoque está em perquirir as lesões existenciais, ou seja,

aquelas voltadas ao projeto de vida (autorrealização - metas pessoais,

desejos, objetivos etc) e de relações interpessoais do indivíduo. Na seara

juslaboral, o dano existencial, também conhecido como dano à existência

do trabalhador, visa examinar se a conduta patronal se faz excessiva ou

ilícita a ponto de imputar ao trabalhador prejuízos de monta no que toca

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o descanso e convívio social e familiar. Nesta esteira, esta Corte tem

entendido que a imposição ao empregado de jornada excessiva ocasiona

dano existencial, pois compromete o convívio familiar e social, violando,

entre outros, o direito social ao lazer, previsto constitucionalmente (art.

6º, caput). Na hipótese dos autos, depreende-se da v. decisão regional,

que o reclamante exercia a função de motorista de carreta e fazia uma

jornada de trabalho de segunda a sábado, das 7h00 às 22h00, totalizando

um total de 15 (quinze) horas diárias de trabalho. Assim, comprovada a

jornada exaustiva, decorrente da conduta ilícita praticada pela reclamada,

que não observou as regras de limitação da jornada de trabalho, resta

patente a existência de dano imaterial in re ipsa, presumível em razão do

fato danoso. Recurso de revista não conhecido. 2. QUANTUM

INDENIZATÓRIO. JORNADA EXAUSTIVA. DANO MORAL. Para a fixação

do valor da reparação por danos morais, deve ser observado o princípio

da proporcionalidade entre a gravidade da culpa e a extensão do dano,

tal como dispõem os arts. 5º, V e X, da Constituição Federal e 944 do CC,

de modo que as condenações impostas não impliquem mero

enriquecimento ou empobrecimento sem causa das partes. Cabe ao

julgador, portanto, atento às relevantes circunstâncias da causa, fixar o

quantum indenizatório com prudência, bom senso e razoabilidade.

Devem ser observados, também, o caráter punitivo, o pedagógico, o

dissuasório e a capacidade econômica das partes. No caso, em exame,

levando em consideração a gravidade e extensão do dano (jornada

exaustiva do autor de 15 horas diárias), a capacidade econômica das

partes, o grau de culpa da reclamada, além do caráter pedagógico

entendo razoável reduzir o valor da indenização por danos morais, pela

jornada exaustiva, para o importe de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), valor

que vem sendo fixado por esta Turma no julgamento de casos análogos.

Precedentes. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido.

Considerações finais

O ambiente de trabalho e algumas características da sua organização

podem interferir na qualidade de vida dos caminhoneiros e serem fatores

preponderantes para o desenvolvimento de riscos para a saúde dos motoristas

profissionais. Aliado a isso, uma legislação flexibilizada que possibilita ao

empregador a imposição de jornadas de trabalho excessivamente danosas, a

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ponto de prejudicar o descanso e o convívio social e familiar, torna perceptível o

dano existencial gerado ao trabalhador pela inobservância das leis trabalhistas.

Assim, a Lei 13.103/2015 criam uma situação de extrema precariedade para

os motoristas profissionais, na maioria das vezes, devido à distância, não

conseguem retornar aos seus lares. A supressão do direito ao descanso e ao

convívio familiar afeta o trabalhador, no caso em tela o motorista profissional de

transporte de cargas rodoviárias, que além dos prejuízos à saúde física e psíquica,

também causam efeitos danosos às famílias destes trabalhadores.

Em uma perspectiva crítica se observa que a flexibilização se releva num

processo de aguda destrutividade que assola a sociabilização contemporânea, que

destrói a força humana de trabalho, destrocam-se os direitos sociais, tornado-se

predatória a relação produção-natureza (ANTUNES, 2015).

Em outra perspectiva, as consequências danosas para o trabalhador e sua

família, além dos efeitos colaterais para a sociedade, uma vez que o trabalho do

motorista se resume quase que em dirigir pelas estradas do país, e, estando na

direção de veículo sem a devida possibilidade física e mental, o motorista se

transforma em risco para a saúde do restante da população.

Referências

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contrariedade do mundo do trabalho. 15. ed. São Paulo: Cortez/Unicamp, 2015.

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motorista profissional. Disponível em:

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id=24B66DB56BF407AD03333D0F3AF0DF20.vm652?conscsjt=&numeroTst=1351

&digitoTst=49&anoTst=2012&orgaoTst=5&tribunalTst=15&varaTst=0097&cons

ulta=Consultar> Acesso em: 28.jun.2019

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O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS COMO

INSTRUMENTO DE ESTABILIDADE, COERÊNCIA E INTEGRIDADE DAS

DECISÕES JUDICIAIS EM PROCESSOS DE MASSA

Eth Cordeiro de Aguiar

Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro

Universitário IESB; especialista em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito

Público (IDP); bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); subprocurador-

geral do Distrito Federal.

Diogo Palau Flores dos Santos

Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP);

mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); foi

professor substituto da Universidade de Brasília (UnB); advogado da União; professor da

Escola Superior da AGU; professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito

do Centro Universitário IESB. ORCiD: 0000-0001-7706-1117

Resumo

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, introduzido no ordenamento

jurídico brasileiro com o advento do Código de Processo Civil de 2015, tem como principal

objetivo a uniformização do entendimento jurisprudencial nas demandas massificadas. O

IRDR tem como propósito estabelecer, por meio de um processo-modelo (um caso piloto),

uma decisão judicial que venha a pacificar demandas de massa, com o fito de formar e

consolidar um sistema de precedente obrigatório no Brasil, tendo como propósito o

atendimento de parâmetros realizáveis de coerência e segurança jurídica. A excessiva

dispersão dos entendimentos judiciais sobre uma mesma matéria jurídica dá ensejo ao

descrédito do Poder Judiciário e à intranquilidade social. O Incidente de Resolução de

Demandas Repetitivas busca a prevalência dos princípios da isonomia, da celeridade

processual e da economia processual, objetivando, sobretudo, a primazia do princípio da

segurança jurídica. Esse incidente processual tem como principal propósito a estabilidade,

coerência e integridade das decisões judiciais.

Palavras-chave: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas; uniformização

jurisprudencial; isonomia; segurança jurídica.

Abstract

The Incident of Resolution of Repetitive Demands - IRRD has been inserted to the Brazilian

legal system by means of the Code of Civil Procedure (2015) and has as its main aim the

unification of precedent law on repetitive lawsuits. IRRD has the purpose of reinstate, by

means of a model-lawsuit (a pilot case), a legal decision that may pacify mass lawsuits in

order to consolidate a case law system that be compulsory in Brazil; thus accomplishing

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reasonable parameters of legal coherence and certainty. Once that the legal

understandings on the matter are diverse in an excessively varied fancy even in case of the

same legal substance under analysis, such entails the unaccountability of the Judiciary

Republican Power as well as social perturbability. The Incident of Resolution of Repetitive

Demands entails the objective that the principles of isonomy, procedural haste and

economy be prevalent; thus observing utmost the principles of legal certainty. Such

process law has as its primal purpose the stability, coherence and integrity of legal

sentences and decisions.

Keywords: Incident of Resolution of Repetitive Demands; case law coherence; isonomy;

legal certainty.

Introdução

A litigiosidade repetitiva ou de massa é um problema que aflige não apenas

o Brasil, mas também o Estado contemporâneo, porquanto a rápida integração

econômica, cultural e tecnológica entre as nações tem especial relevo na

proliferação de conflitos massificados, fato esse que abrange uma quantidade cada

vez maior de usuários de serviços públicos e de consumidores de um modo geral

(ALVAREZ; PIERONI; SERPA, 2018, p. 266).

Com o advento da Constituição Federal de 1988, diante da facilidade do

acesso ao Poder Judiciário, houve um aumento exacerbado dos litígios

massificados no Brasil. Esse fato é resultante, sobretudo, dos inúmeros direitos de

caráter social que o constituinte originário consignou na Carta da República,

somado ao fato também de que nenhuma ameaça ou lesão a direito poderá ser

excluída da apreciação judicial (art. 5º XXXV, da CF/1988).

Contata-se, ademais, que, em virtude do advento do Código de Defesa do

Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso,

houve um aumento significativo do número de litígios nos já congestionados

tribunais brasileiros. Afora as questões de ordem metajurídica em que está envolto

o Poder Judiciário, o amplo acesso à justiça e os novos direitos previstos na

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Constituição Federal resultaram em um verdadeiro colapso do Poder Judiciário,

refletido esse fato nas respostas distintas a casos idênticos, gerando, assim,

instabilidade nas relações jurídicas, uma vez que as soluções de casos concretos

têm ficado condicionadas à sorte dos litigantes quando da distribuição dos

processos (RIBEIRO, 2015).

Na exposição de motivos do Código de Processo Civil de 2015 ficou

consignado que haverá distorção do princípio da legalidade e da própria ideia de

Estado Democrático de Direito, se for levado ao extremo o alcance do

convencimento motivado das decisões judiciais, e que, ademais, a excessiva

dispersão da jurisprudência dá ensejo ao descrédito do Poder Judiciário e à

intranquilidade social (BRASIL, 2015).

Muitas são as estratégias jurídicas adotadas no sistema processual brasileiro

para fazer frente às demandas de massa, entre as quais podem ser mencionadas

as ações populares e as ações civis públicas, as quais, no entanto, não se

apresentam com a capacidade suficiente para a pacificação das demandas

repetitivas. Foi com o propósito de buscar uma uniformização desses litígios

massificados que o legislador achou por bem introduzir no ordenamento jurídico

brasileiro, no atual Código de Processo Civil, o incidente de resolução de demandas

repetitivas - IRDR.

No julgamento desse incidente processual, a tese jurídica será aplicada a

todos os processos que versem sobre a mesma matéria, de modo que, em tais

situações, é imperativo que se aplique “o juízo de coerência e integridade,

afastando tanto o voluntarismo como o ativismo, em câmbio da decisão

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surpresa” 36 , tendo como fundamento a segurança jurídica decorrente da

uniformização da jurisprudência em tais demandas.

O presente artigo não tem o intuito de esgotar o estudo sobre o tema, mas

de, entre outras análises, demonstrar a importância do incidente de resolução de

demandas repetitivas como um instrumento processual destinado a pacificar as

demandas massificadas, primando pela estabilidade, coerência e integridade das

decisões judiciais.

1. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

O sistema processual vigente no ordenamento jurídico pátrio contempla

três tipos de litigiosidade, a saber: a individual, em que são envolvidos interesses

antagônicos de duas pessoas em litígios; a coletiva, que abrange direitos coletivos

em sentido estrito, direitos difusos e direitos homogêneos, hipóteses essas em que

são utilizadas as substituições processuais (essas demandas coletivas têm por

escopo a resolução das lides por meio de uma ação coletiva única); e a repetitiva

ou em massa, resultante de pretensões semelhantes sob o aspecto fático ou

jurídico e que dão ensejo a um grande número de ações judiciais (ALVAREZ; PIERONI;

SERPA).

A multiplicidade de conflitos singulares, que seriam resolvidos, a princípio,

por meio de tutelas coletivas, não foi arrefecida. Pelo contrário, houve um

36 Cfr. GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Hermenêutica e uniformização da jurisprudência: critérios da coerência e integridade da decisão e incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 15, n. 86, p. 39-55, set./out. 2018, p. 46.

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crescimento de novas demandas individuais em relação às questões massificadas,

assoberbando ainda mais os tribunais com um quantitativo enorme de demandas

iguais, resultando desse fato a inviabilização do cumprimento da garantia

constitucional da duração razoável do processo e do emprego de meios que

tenham como escopo acelerar a resolução dos litígios. Ao lado das tutelas

individuais e das tutelas coletivas, há as denominadas tutelas plurindividuais, que

são aquelas realizadas por meio de mecanismos processuais específicos, que

acabam por coletivizar os efeitos das ações originariamente individuais. É, pois,

nesse contexto que surge no ordenamento jurídico brasileiro o incidente de

resolução de demandas repetitivas (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 66).

O IRDR é um instituto processual inovador veiculado no Código de Processo

Civil de 2015, tendo como propósito a solução de litígios repetitivos com a

primazia da uniformidade do entendimento jurisprudencial e da segurança jurídica.

O principal objetivo desse incidente processual é a mitigação do acúmulo

exacerbado de demandas judiciais, atuais e futuras, “nas diversas varas e nos

tribunais de todo o País, de forma inteligente, de modo a manter a segurança

jurídica, a isonomia nas decisões e a celeridade na resolução dos processos

judiciais (AZEVEDO, 2018, p. 339)”.

É relevante anotar que o incidente de resolução de demandas repetitivas,

conquanto tenha previsão legal expressa apenas na legislação adjetiva civil, pode

ser utilizado, por exemplo, tanto nos processos trabalhistas – entendimento já bem

consolidado na doutrina (TUPINAMBÁ, 2017, p. 270) – como também não haveria

óbice para sua utilização também no processo penal, conforme sustentam alguns

doutrinadores (MICHEL; DEITOS; 2017, p. 16).

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No entanto, o presente artigo restringir-se-á apenas aos aspectos

específicos do IRDR disciplinados pelo Código de Processo Civil, ou seja, sem

adentrar nas especificidades dos demais ramos do direito processual, os quais

demandam, pois, adaptações quando da utilização desse incidente processual, por

aplicação subsidiária e supletiva do CPC, em virtude da especialidade dos direitos

laboral e criminal.

O IRDR tem como objetivo estabelecer, por meio de um processo-modelo

(um caso piloto), uma decisão judicial que venha a pacificar demandas de massa,

com o fito de formar e consolidar um sistema de precedente obrigatório no Brasil,

tendo como propósito o atendimento de parâmetros realizáveis de coerência e

segurança jurídica (AVELAR LAMY; SALOMON, 2018, p. 348) e prevalência dos

princípios da isonomia, da celeridade processual e da economia processual.

Efetivamente, o CPC/2015 ao introduzir no ordenamento jurídico brasileiro

o incidente de resolução de demandas repetitivas, estabeleceu um eficiente

sistema de precedentes com o oferecimento isonômico de entendimento às

demandas que tratem sobre idêntica questão jurídica, oferecendo, ipso facto,

segurança jurídica e garantindo a tutela jurisdicional de maneira efetiva com a

uniformização jurisprudencial de teses jurídicas a serem fixadas pelos tribunais

(FUX; FUX, 2018, p. 648).

Ademais, é oportuno salientar que esse incidente processual não se

caracteriza, ante sua abrangência e suas especificidades processuais, como uma

ação coletiva, “pois o processo-modelo não constitui uma espécie processual

autônoma, mas meramente uma técnica de racionalização de questões de direitos

comuns” (LEAL, 2014, p. 35). Com efeito, nos incidentes de resolução de demandas

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repetitivas são discutidas apenas questões de direito, tomando-se como base um

caso-piloto como paradigma37.

Noutro giro, a pacificação do entendimento jurisprudencial de

determinadas questões tem relevância também sobre os aspectos econômicos do

país. Com efeito, em se tratando, por exemplo, de demandas envolvendo

interesses empresariais, a previsibilidade e segurança jurídica ganham contornos

expressivos, haja vista que, a insegurança constitui, de per si, uma medida que priva

da calculabilidade o ordenamento jurídico e que, em decorrência da quebra de

expectativas, tal fato afugenta o investidor, o qual passa ao menos a repensar seu

palco38, o que dá ensejo a prejuízos ao setor produtivo no país, que perde com

essa ausência de previsibilidade das decisões judiciais.

Como se sabe, o direito empresarial tem como viga mestra a previsibilidade

e “o IRDR não apenas propõe tratamento igualitário para questões comuns, como

oferece previsibilidade às empresas sujeitas a grande litigância, uma vez que a

decisão ali proferida estabiliza-se tanto para as ações em curso como futuras

(CARAMÊS; OSNA; DAL POZZO, 2017, p. 286).

Com efeito, o incidente de resolução de demandas repetitivas tem o

condão de tornar mais previsíveis as questões atinentes ao cumprimento de

direitos e contratos, “o que diminui os custos de transação e de comportamentos

oportunistas, fomentando investimentos na economia pelo setor privado

(BARROS; MACHADO; ASSIS; HONÓRIO, 2017, p. 146)”.

37 Cfr. AZEVEDO, Marcelo Tadeu Freitas de. Op. cit., p. 352. 38 Sugere-se leitura completa de CARAMÊS, Guilherme Bonato Campos; OSNA, Gustavo; DAL POZZO,

Emerson Luís. O IRDR sob a perspectiva empresarial. In: RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; CARAMÊS,

Guilherme Bonato Campos (Coords.). Direito empresarial e novo CPC. Belo Horizonte: Fórum. 2017, p.

286.

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2.1 Origem histórica

A exposição de motivos Código de Processo Civil de 2015 assume, de modo

expresso, que o IRDR foi concebido no ordenamento jurídico brasileiro nos moldes

do que se sucedeu no direito alemão no seu procedimento-modelo

(musterverfahren), senão vejamos:

Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o

já referido Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste

na identificação de processos que contenham a mesma questão de

direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão

conjunta (BRASIL, CPC, 2015).

Embora o musterverfahren não tenha sido mais utilizado na Alemanha

(LEAL), sua concepção foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com as

respectivas adaptações. Com efeito, conforme pontua Marcelo Tadeu Freitas de

Azevedo, o IRDR adotado no Brasil “foi copiado do procedimento-modelo

(musterverfahren) do direito alemão, no entanto ‘temperado’, adaptado às

especificidades do processo civil brasileiro39.”

Ademais, o incidente adotado pelo Código de Processo Civil de 2015

envolve tão somente questões de ordem jurídica, ao passo que o adotado pelo

ordenamento alemão engloba não apenas matérias de direito, mas também de

ordem fática. Na linha desse posicionamento doutrinário, o civilista Marcos de

Araújo Cavalcante, um dos maiores estudiosos sobre o tema na atualidade, assim

leciona:

39 AZEVEDO, Marcelo Tadeu Freitas de. Op. cit., p. 339.

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Apesar da exposição de motivos do NCPC mencionar a influência do

musterverfahren para o IRDR, o incidente brasileiro não guarda nenhuma

semelhança com o referido instrumento tedesco. (...).

A distinção mais relevante refere-se ao objeto do procedimento-modelo

alemão, muito restrito, dado que se aplica apenas às controvérsias

oriundas do mercado mobiliário. No Brasil, a aplicação será ampla,

abarcando qualquer matéria jurídica, inclusive para dirimir questões

processuais. O que interessa aqui é que a questão seja jurídica. Em

contrapartida, o musterverfahren aplica-se também às questões de fato

(CAVALCANTI, 2015, p. 23).

De outra parte, como bem anotam Luiz Fux e Roberto Fux, o legislador

brasileiro, de maneira ponderada e crítica, importou dos Estados Unidos da

América e da Inglaterra a “teoria geral dos precedentes40”, absorvendo na máquina

judiciária do Brasil, com as devidas adaptações, conceitos e institutos da teoria do

stare decisis e da doctrine of binding precedent41.

Quanto, especificamente, ao Incidente de resolução de demandas

repetitivas, embora o entendimento dominante na doutrina seja no sentido de que

esse incidente processual tem sua origem no procedimento-modelo alemão, há

diferenças substanciais entre o instituto brasileiro e o germânico. Com efeito, o

IRDR “foi concebido para incidir de forma mais abrangente que o procedimento-

padrão, não se limitando a causas específicas e nem a lapsos temporais pré-

determinados42”.

40 Humberto Theodoro Júnior aponta que: “O método de precedentes é algo que se construiu lentamente na cultura anglo-americana, em função do sistema de equidade, cuja observância prescinde de autorização legislativa. Seus fundamentos mais significativos encontram-se nas garantias fundamentais de igualdade e segurança jurídica. Essas mesmas garantias constitucionais têm inspirado o Direito brasileiro a adotar e aperfeiçoar ao longo de mais de meio século o sistema de valorizar a jurisprudência por meio de súmula dos julgados que se tornam repetitivos e que são capazes de sintetizar teses consolidadas, principalmente nos tribunais superiores do País.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit. p. 75-76). 41 Cf. FUX, Luiz; FUX, Rodrigo. Op. cit., p. 647-648.

42 Cf. Ibidem., p. 648.

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O caso específico da Alemanha que deu origem ao incidente de resolução

de demandas repetitivas no ordenamento jurídico brasileiro diz respeito a um

processo-piloto emblemático envolvendo a Deutsche Telekom durante os anos de

1999 e 2000. Essa empresa ofereceu nesse período suas ações na Bolsa de Valores

de Frankfurt com informações falsas, causando prejuízos a 3 (três) milhões de

acionistas e dando ensejo a mais de 13 mil ações individuais nos juízes de primeira

instância43.

Diante da demora do Tribunal de Frankfurt em solucionar as demandas,

alguns autores, no ano de 2004, manejaram recursos diretamente ao Tribunal

Federal Constitucional da Alemanha sustentando que estava havendo ali violação

ao princípio da duração razoável duração do processo, surgindo desse fato a

criação de uma lei naquele país europeu, em 2010, a qual teve como propósito, no

bojo de um processo judicial, a introdução de “um expediente incidental com a

pretensão de estabelecer, a partir do julgamento de uma causa-modelo, um

padrão decisório, de acordo com o qual todos os demais casos repetitivos seriam

posteriormente examinados e julgados” (BARROS; MACHADO; ASSIS; HONÓRIO).

2.2 Natureza jurídica

No que tange à natureza jurídica do incidente de resolução de demandas

repetitivas, a doutrina não tem posicionamento unânime. Embora haja

entendimento no sentido de que se trata, a rigor, de um procedimento-modelo,

consubstanciando-se como um incidente interlocutório e também de não ser uma

43 Cfr. BARROS, Renata Furtado; MACHADO, José Alberto Oliveira de Paula; ASSIS, Vinícius de; HONÓRIO, Caroline Gregório. Op. cit., p. 137-138.

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ação autônoma44, há, no entanto, doutrinadores que asseveram que o IRDR não é

apenas uma questão incidente, mas que se trata, também, de uma questão

prejudicial. E “para esses doutrinadores, litígios que resolvem questões

exclusivamente de direito constituem prejudiciais da tutela jurisdicional, tendo

eficácia de coisa julgada em relação àqueles que têm os seus direitos discutidos”45.

São oportunos, ademais, os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni, o

qual sobre o tema assim se posiciona:

O incidente de resolução de demandas repetitivas tem o objetivo de

solucionar uma questão que é prejudicial à solução dos casos pendentes.

Essa questão deve ser, por imposição do próprio Código de Processo

Civil, uma questão idêntica. De modo que não há como pensar que a

decisão proferida no incidente não resolve a mesma questão que

prejudica a solução de todo os casos pendentes.

Ora, se a decisão que resolve o incidente de resolução de demandas

repetitivas resolve uma questão que interessa a muitos, tal decisão não

tem qualquer diferença daquela que, em ação individual, resolve questão

que posteriormente não pode ser rediscutida. Essa última decisão

também resolve questão que pode constituir prejudicial ao julgamento

dos casos de muitos. Sucede que, como não poderia ser de outra forma,

a decisão proferida no caso de um apenas pode beneficiar terceiros,

nunca prejudicá-los (art. 506, CPC/2015). Ou melhor, a decisão proferida

no caso de um, assim como a decisão proferida no incidente de

resolução, não pode retirar o direito de discutir a questão daquele que

não participou. O contrário constituiria grosseira violação do direito

fundamental de participar do processo e de influenciar o juiz (MARINONI,

2016, p. 39).

De outro lado, conquanto o próprio nome do instituto ora em estudo seja

claro no sentido de que sua natureza jurídica é de incidente processual, não se

tratando, como dito acima, de ação autônoma, poderia remanescer dúvida se

44 Cf. DUARTE, Bento Herculano. Op. cit., p. 12. 45 AZEVEDO, Marcelo Tadeu Freitas de. Op. cit., p. 352.

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estaríamos diante de uma espécie de recurso. Essa possibilidade não encontra

amparo no ordenamento jurídico, consoante precisas conclusões perfilhadas por

Marcos de Araújo Cavalcanti, o qual, lastreado na melhor doutrina e no

preconizado no Código de Processo Civil, deixa claro que o IRDR não tem por

escopo impugnar decisão judicial, vale dizer, não se trata, portanto, de recurso.

Vejamos:

Desde já, cumpre afastar a natureza jurídica recursal do IRDR. Conforme

dito alhures, para ser recurso, o direito positivo deve admitir o remédio

processual como tal. O Livro III do NCPC trata “Dos processos nos

tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais”. O Título II

(“Dos Recursos”) do referido Livro III define, taxativamente, dos remédios

processuais que serão tidos como recursos. Nos termos do seu art. 994.

Serão cabíveis apenas os seguintes recursos: (a) apelação; (b) agravo de

instrumento; (c) agravo interno; (d) embargos de declaração; (e) recurso

ordinário; (f) recurso especial; (g) recurso extraordinário; (h) agravo em

recurso especial ou extraordinário; e (j) embargos de divergência

(CAVALCANTI).

Como se vê, o incidente de resolução de demandas repetitivas não é um

instituto processual voltado a impugnar decisões judiciais, tampouco se trata de

ação, porquanto sua natureza jurídica é de incidente processual coletivo. Suas

marcantes características de incidente são: i) a acessoriedade, pois sua instauração

demanda a existência de processos repetitivos envolvendo a mesma questão de

direito; ii) a acidentalidade, porquanto se trata de uma mudança quanto ao

desenvolvimento normal dos processos repetitivos, já que estes serão suspensos

até que o tribunal fixe tese jurídica sobre a questão de direito posta em julgamento

no IRDR; iii) a incidentalidade, uma vez que o IRDR tem incidência sobre causas

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repetitivas preexistentes e também sobre causas futuras46; e III) o procedimento

incidental, haja vista que para há a exigência de um procedimento específico para

a análise e julgamento das questões de direito comuns das demandas repetitivas.

Dentro desses quadrantes, tem-se que o IRDR é um incidente processual

coletivo que possibilita ao tribunal (estadual ou regional) selecionar um caso

representativo de controvérsia jurídica, dentre as causas repetitivas, como o fito de

fixar uma norma abstrata para os casos semelhantes, tendo por escopo a isonomia

e a segurança jurídica.

2. O disciplinamento do IRDR no Código de Processo Civil

O incidente de resolução de demandas repetitivas é disciplinado de modo

minucioso pelo Código de Processo Civil (do art. 976 ao art. 987). Como se vê, o

legislador atribuiu muita relevância ao IRDR, haja vista que destinou doze artigos

do CPC para tratar desse incidente processual.

O cabimento do IRDR está exposto no art. 976 do CPC, o qual está vazado

nos seguintes termos:

Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas

repetitivas quando houver, simultaneamente:

I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a

mesma questão unicamente de direito;

46 Luiz Fux e Rodrigo Fux explicam que: “O NCPC atribuiu, ainda, efeitos prospectivos ao incidente de

resolução de demandas repetitivas, de modo que, após o trânsito em julgado da decisão, a tese fixada deverá

ser aplicada a todos os processos individuais ou coletivos, inclusive em casos futuros, cujos pedidos

englobem a questão objeto daquele, desde que tramitem nos limites da competência jurisdicional do

respectivo Tribunal, visando à obtenção da tão estimulada celeridade da prestação jurisdicional e a

concretização dos princípios constitucionais da isonomia e da segurança jurídica” (FUX, Luiz; FUX,

Rodrigo. Op. cit., p. 649).

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II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica (BRASIL, CPC, art.

972).

Como se infere do transcrito dispositivo legal, não há se falar de um número

mínimo de causas para a instauração do incidente de resolução de demandas

repetitivas, no entanto pressupõe uma quantidade de processos que colocam em

risco a isonomia e a segurança jurídica.

Assim, para que seja suscitado o IRDR, o CPC exige tanto pressupostos

positivos de admissibilidade, a saber: a) a necessidade de efetiva repetição de

processos (art. 976, I); b) a restrição do objeto do incidente a questão unicamente

de direito (art. 976, I, parte final); c) risco à isonomia e à segurança jurídica (art. 976,

II); e d) a necessidade de pendência de julgamento de causa repetitiva no tribunal

competente (art. 978, parágrafo único), como também a existência de pressuposto

negativo de admissibilidade, a saber, o IRDR somente será cabível quando os

tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, não tiverem

afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou

processual repetitiva (976, § 4.º).

Para a instauração do incidente, o pedido será dirigido ao presidente do

tribunal pelo juiz ou relator, por ofício (art. 977, I); pelas partes, por petição (art.

977, II); e pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição (art. 977,

III). Caso não seja o requerente, “o Ministério Público não for o requerente, intervirá

obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de

desistência ou de abandono” (art. 976, § 2º).

De outro lado, nos termos do preconizado no artigo 982, uma vez admitido

o incidente, “o relator suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos,

que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso” (art. 982, I) e, consoante o

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disposto no § 3º do art. 982, as partes, o Ministério Público e a Defensoria Pública

poderão requerer a suspensão de todos os processos no âmbito nacional.

Vejamos:

§ 3º Visando à garantia da segurança jurídica, qualquer legitimado

mencionado no art. 977, incisos II e III, poderá requerer, ao tribunal

competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial, a

suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no

território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente já

instaurado.

Por fim, o art. 987 dispõe que, julgamento do mérito do incidente caberá

recurso extraordinário ou especial, conforme o caso. E que esse recurso tem efeito

suspensivo, “presumindo-se a repercussão geral de questão constitucional

eventualmente discutida” (art. 987 § 1º). E, uma vez apreciado o mérito do recurso,

“a tese jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal

de Justiça será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou

coletivos que versem sobre idêntica questão de direito” (art. 987, § 2º).

3.1 Princípios aplicáveis ao instituto

O incidente de resolução de demandas repetitivas, como restou assente

linhas volvidas, foi introduzido no sistema processual brasileiro por meio do atual

Código de Processo Civil e com o propósito de – com a uniformização do

entendimento jurisprudencial sobre a tese posta em juízo no tribunal respectivo

das demandas repetitivas – proporcionar segurança e isonomia jurídicas, bem

como dar efetivo cumprimento ao princípio constitucional da duração razoável do

processo (princípio da celeridade processual).

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A questão atinente à estabilidade e à segurança jurídica está associada à

aplicação adequada do direito. Na linha desse entendimento, são oportunos os

ensinamentos trazidos à baila pelo jurista Gustavo Silva Alves sobre esse particular,

o qual assim leciona:

Qualquer procedimento jurisdicional que queira ser qualificado como

justo deve respeitar o princípio da segurança jurídica. Como uma das

áreas de regulação do direito, é preciso que o processo garanta

estabilidade às posições jurídicas durante todo o seu andamento e,

também, prospectivamente, após o pronunciamento final, ou seja, após

seu térmico.

Dessa forma, como procedimento jurisdicional vocacionado à resolução

de uma determinada controvérsia levada ao Poder Judiciário, o processo

deve resguardar todos os parâmetros do princípio da segurança jurídica

(cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade) (ALVES, 2018, p. 70).

A segurança jurídica e a estabilidade do entendimento jurisprudencial

remetem ao princípio da proteção da confiança e que, bem assim, os atos do Poder

Judiciário em relação aos conflitos futuros devem ser lastreados em previsibilidade

sobre a maneira como deve ser decidida determinada demanda judicial,

notadamente quando dizem respeito a questões objeto de precedentes

vinculantes (BASTOS, 2018).

Nesse passo, a maneira como foi concebido o incidente de resolução de

demandas repetitivas, esse instituto processual, a par de garantir a economia

processual, apresenta-se no ordenamento jurídico brasileiro como um “meio apto

a conferir celeridade e segurança jurídica, encontrando o equilíbrio entre estes

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valores, de modo a alcançar a efetivação da garantia do acesso à Justiça e da

duração razoável do processo”47.

É oportuno anotar que o art. 976 do Código de Processo Civil de 2015, exige,

de modo expresso, que os requisitos para o ajuizamento de um IRDR levam em

consideração a existência efetiva de repetição de causas e, simultaneamente, que

haja risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

De outra parte, o CPC atribuiu efeitos prospectivos ao incidente de

resolução de demandas repetitivas. Com efeito, após a tese fixada pelo respectivo

tribunal, após o trânsito em julgado da decisão, deverá tal tese jurídica ter

aplicação a todos os feitos individuais ou coletivos – aos casos presentes e também

futuros –, cujos pleitos envolvam a questão de direito objeto do julgamento do

feito paradigma. Com efeito, o incidente de resolução de demandas repetitivas

tem como propósito a obtenção “da tão estimada celeridade da prestação

jurisdicional e a concretização dos princípios constitucionais da isonomia e da

segurança jurídica”48.

Demais disso, os princípios acima referidos buscam nortear não apenas as

decisões proferidas em processos repetitivos, a exemplo do que sucede no caso

de julgamento de IRDR, mas também de direcionar o julgador no sentido de que

eventual modificação de tese adotada em casos repetitivos deverá, a teor do

preconizado no art. 927, § 4º, do Código de Processo Civil, observar a necessidade

de fundamentação adequada e específica dessa mudança de entendimento

47 Cf. BARROS, Renata Furtado; MACHADO, José Alberto Oliveira de Paula; ASSIS, Vinícius de; HONÓRIO, Caroline Gregório. Op. cit., p. 144. 48 Cfr. FUX, Luiz; FUX, Rodrigo. Op. cit., p. 649.

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jurisprudencial, para que sejam prestigiados os princípios da segurança jurídica, da

isonomia e da proteção da confiança.

4. A necessidade de estabilidade, integridade e coerência das decisões

judiciais

Para que seja instaurado o incidente de resolução de demandas repetitivas,

deve haver, de modo simultâneo, a efetiva repetição de processos em que haja

controvérsia sobre a mesma questão de direito e que haja risco de ofensa à

isonomia e à segurança jurídica (art. 976, I e II, do CPC).

De outra parte, o Código de Processo Civil é expresso no sentido de que

devem os tribunais uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável49, íntegra e

coerente (art. 926). Foi levando em conta esses propósitos que o legislador excluiu

da legislação adjetiva civil o livre convencimento do juiz, o que eliminou a tensão

quanto à possibilidade de decisões judiciais carregadas de muita subjetividade,

“passando para o campo da obrigatoriedade, da fundamentação adequada e

específica da decisão, contemplando, por este percurso e de forma indispensável,

os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”.

São oportunas as observações veiculadas na obra de Luiz Manoel Gomes

Júnior e Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira, os quais salientam o fato de que

49 Conforme leciona Antonio Adonias Aguiar Bastos, “a estabilidade do entendimento jurisprudencial consiste em aspecto social e juridicamente positivo, que visa a tutelar a segurança jurídica, devendo ser almejada tanto quanto possível. Ela remete ao princípio da proteção da confiança, segundo o qual os integrantes da sociedade devem contar com a garantia de poder confiar que os seus atos, e as decisões públicas que versam sobre eles, ligam-se aos atos jurídicos previstos no ordenamento jurídico” (BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Op. cit., p. 51).

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o atual sistema processual brasileiro, superando falhas do passado quanto ao

voluntarismo judicial, tem por escopo a consolidação de uma jurisprudência

coerente, integra e razoável. Nesse sentido anotam:

A tradição do direito processual civil considerava a decisão como prius

lógico jurídico do processo. Contudo, a organização complexa do

judiciário brasileiro, os diversos tipos de competências, o próprio controle

de constitucionalidade podendo ser difuso e/ou concentrado, de par com

o voluntarismo, embasado na alegada livre convicção do juiz – sendo que

a livre convicção foi interpretada de várias e tantas formas, terminando

cativa da vontade do julgador –, somado a outros fatores, produziu um

desvio expressivo em relação à lógica e aos fins das decisões, conduzindo

a uma incompreensível falta de lógica e causando, como consequência,

a incoerência das decisões, obstaculizando o tratamento igual que

deveriam receber as partes. Casos semelhantes e decididos de forma

absolutamente diferentes, transitando desde o deferimento do pleito, até

ao indeferimento, isto em todas as instâncias, causando o caos da

prestação jurisdicional, deixando perplexos os jurisdicionados que

esperam do processo ao menos um resultado coerente e no mínimo,

razoável (GOMES JÚNIOR).

Não se afigura juridicamente sustentável que em situações idênticas

possam ocorrer decisões as mais diversas, pelo que não é aceitável, sob o ponto

de vista jurídico, que uma exacerbada quantidade de demandas repetitivas tenha

tratamento pulverizado pelo Judiciário, o que resultaria em uma “loterização” da

prestação jurisdicional.

Sergio Luiz de Almeida Ribeiro explica que o IRDR gravita sobre a mesma

quaestio iuris, objetivando a fixação de uma norma abstrata que sirva de

paradigma para todos os casos semelhantes, e que esse incidente processual

juntamente com os recursos excepcionais repetitivos têm por escopo dispensar

um tratamento racional às questões jurídicas massificadas.

É nesse contexto, portanto, que surge o incidente de resolução de

demandas repetitivas, o qual tem entre seus propósitos afastar do ordenamento

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jurídico decisões judiciais que firam a isonomia e a segurança jurídica nos litígios

de massa, tudo a prestigiar a estabilidade, integridade e coerência da

jurisprudência a ser uniformizada em tais situações.

Considerações finais

O presente artigo teve como escopo evidenciar aspectos relevantes do

incidente de resolução de demandas repetitivas – principal inovação do Código de

Processo Civil de 2015.

Buscou-se demonstrar no vertente artigo que o incidente de resolução de

demandas repetitivas é uma dos mais significativos institutos processuais trazidos

pela legislação adjetiva civil, cujo resultado prático dará ensejo, por certo, dentro

dos limites estabelecidos pelo legislador para esse incidente processual, a

uniformizações da jurisprudência em relação às demandas repetitivas.

Em decorrência do crescimento vertiginoso de demandas individuais

relativas aos processos repetitivos, o IRDR surgiu no ordenamento jurídico

brasileiro como uma alternativa complementar às ações coletivas, já que estas não

tiveram o êxito almejado pelo legislador. Viu-se, em verdade, que houve um

crescimento de novas demandas individuais em relação às questões massificadas,

resultando no assoberbamento do Poder Judiciário, tudo a inviabilizar o

cumprimento dos primados da duração razoável do processo e da efetividade da

jurisdição.

O incidente de resolução de demandas repetitivas foi introduzido no

sistema processual brasileiro com o objetivo de resolver as questões

plurindividuais, caracterizadas, assim, como aquelas que, ao lado das tutelas

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individuais e das tutelas coletivas, acabam por coletivizar os efeitos das ações

originariamente individuais. E para tal desiderato, esse incidente processual

coletivo – nas repetições de processo envolvendo controvérsia sobre idêntica

questão de direito e que esteja colocando em risco a isonomia e a segurança

jurídica – utiliza-se de mecanismos processuais específicos voltados para a

uniformização do entendimento jurisprudencial nessas demandas.

Por fim, resta assente que o incidente de resolução de demandas repetitivas

está inserido no conteúdo normativo preconizado pelo Código de Processo Civil

no sentido de que os tribunais devem manter coerente, estável e íntegra sua

jurisprudência, para que seja evitada a dispersão dos entendimentos pretorianos

nos processos envolvendo idênticas questões jurídicas, haja vista que a busca pela

aplicação da isonomia e da segurança jurídica, vigas mestras desse incidente

processual coletivo, proporciona, em última análise, não apenas uma

racionalização da jurisprudência, mas também uma maior credibilidade e

confiabilidade do cidadão no Poder Judiciário.

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PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE

LIBERDADE: A (IN)DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Jair Vanderlei Krewer

Mestre em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro

Universitário IESB; especialista em Direito Constitucional, Direito Eletrônico e

Tecnologia da Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados

(UNIGRAN), especialista em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco

(UCB); graduado em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados

(UNIGRAN); atualmente é Oficial de Justiça - Avaliador Federal no Tribunal de

Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), professor do Curso de Direito do

Centro Universitário IESB e professor do Centro Universitário da Grande

Dourados (UNIGRAN).

Douglas Henrique Marin

Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); mestre em Direito

(Ciências jurídico-filosóficas) pela Universidade do Porto (UP-Portugal); especialista em

Direito das Obrigações pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências

Jurídicas pela Universidade do Porto (UP-Portugal); graduado em Direito pela

Universidade de São Paulo (USP); Procurador Federal e coordenador na Subchefia de

Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República; professor na graduação e

pós-graduação em Direito no Centro Universitário IESB.

Resumo

Este artigo pretende demonstrar que os direitos das pessoas com deficiência

resultam de conquistas históricas e não de uma efêmera descoberta de um

legislador subitamente despertado por um senso de justiça, pois a deficiência no

ser humano não é um fato de nossos dias. Nesse contexto, pretendeu-se analisar

o tratamento do Estado em face do apenado com deficiência física, a partir do

princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento constitucional do Estado

Democrático brasileiro e princípio normativo reconhecido nos tratados

internacionais nos quais o Brasil figura como signatário. Dessa forma, o problema

central consiste em verificar se o Estado, enquanto detentor do monopólio do

poder de punir promove medidas e atos consistentes que permitam ao apenado

com deficiência o cumprimento, de maneira digna, de uma pena que objetive sua

ressocialização. Ao final, demonstrou-se o descaso estatal em relação à adoção

de medidas concretas e efetivas que garantam ao apenado com deficiência a

manutenção de sua dignidade, promovendo, por exemplo, a acessibilidade e

tratamento diferenciado na rotina carcerária.

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Palavras-chave: pessoas com deficiência; sistema carcerário; dignidade da

pessoa humana.

Abstract

This article aims to demonstrate that the rights of persons with disabilities result

from historical achievements and not from an ephemeral discovery of a lawmaker

suddenly awakened by a sense of justice, as disability in humans is not a fact of

our day. In this context, we intend to analyze the treatment of the state in light of

the convict with physical disability, as from the principle of human dignity,

constitutional foundation of the Brazilian Democratic State and normative

principle recognized in international treaties in which Brazil is a signatory.

Therefor, the central problem is to verify whether the State, as holder of the

monopoly of the power to punish, promotes consistent measures/acts that allow

the convict with disability to fulfill, in a dignified manner, a penalty aimed at their

resocialization. Finally, we intend to demonstrate the state's disregard for the

adoption of concrete and effective measures to ensure that the convicts with

disabilities maintain their dignity, promoting, for example, accessibility and

differential treatment in the prison routine.

Keywords: people with disabilities; prison system; dignity of human person.

Introdução

tema proposto para este artigo envolve dois

assuntos, que se analisados em si mesmos, não

guardam qualquer relação. Na verdade, são

diametralmente opostos, mas que, em dado

momento no mundo dos fatos, acabam se interligando em relação a um

determinado grupo de pessoas. Refere-se às pessoas com deficiência e o

sistema carcerário brasileiro.

Por muitos séculos da vida do homem sobre a terra, os grupos

humanos, de uma forma ou de outra, tiveram de parar e analisar o desafio

que significaram seus membros mais fracos e menos úteis, tais como as

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crianças e os velhos, de um lado, e aqueles que, vítimas de algum mal, por

vezes misterioso, ou de algum acidente, passaram a não enxergar mais as

coisas, a não andar, a não dispor da mesma agilidade anterior, a se

comportar de forma estranha, a depender dos demais para sua

movimentação, para alimentação, para abrigo e agasalho (SILVA, 1996).

Assim, é necessário conhecer melhor este contingente de pessoas,

tantas vezes marginalizado pela vida e pela injustiça social que as

sobrecarrega. Pessoas para as quais se lança, sem perceber, o olhar

desatento do homem “são” ou até cheio de perversidade e pena, que nos

faz reconhecê-los como seres humanos e, sem maior cerimônia, ignorá-los

como cidadãos de direitos e garantias.

De outra banda, tem-se um tema que, sem dúvida, não é de agrado

da opinião pública. Ao contrário, é muito impopular, pois envolve direitos

de um grupo de pessoas não simplesmente estigmatizado, e sim cuja

dignidade humana é tida por muitos como perdida, em razão do

cometimento de crimes.

O que se tem é um sentimento hipócrita da população que analisa

o sistema prisional como algo distante da sua realidade. Ninguém está

imune à prática de uma infração. Não é possível alguém dizer que “tal fato

jamais acontecerá comigo”. Logo, para se trazer um novo olhar para o

sistema carcerário e sua população, é necessário analisar a situação, não

como um mero espectador, mas como protagonista.

A professora Ana Paula de Barcellos, ao discorrer sobre as possíveis

causas do caos do sistema carcerário, esclarece que:

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Em um regime democrático, seria racional imaginar que essa

parcela da população teria interesse em reivindicar, junto a seus

representantes e aos agentes políticos em geral, melhorias nas

condições prisionais, tendo em conta o risco de ela mesma vir a ser

vítima dessas condições (BARCELLOS, 2010, p. 53).

Ainda nas palavras da professora (2010, p. 41), “o tratamento

desumano conferido aos presos não é um problema apenas dos presos: a

sociedade livre recebe os reflexos dessa política sob a forma de mais

violência”.

Como reconhece Hilde Kaufman, com propriedade:

[...] la ejecución penal humanizada no solo no pone em peligro la

seguridade y el ordem estatal, sino todo lo contrario. Mientras la

ejecución penal humanizada es um apoyo del ordem y la

seguridade estatal, uma ejecución penal deshumanizada atenta

precisamente contra la seguridade estatal (KAUFMAN, 1977, p. 55).

A situação deplorável do sistema carcerário já foi apresentada a

sociedade por intermédio do Relatório Final da Comissão Parlamentar de

Inquérito da Câmara dos Deputados, formalizado em 2009. Nesse

relatório, fica evidenciado que a maior parte dos detentos está sujeita às

seguintes condições: superlotação dos presídios, torturas, homicídios,

violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças

infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos

higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde

e ao trabalho, bem como amplo domínio dos cárceres por organizações

criminosas, insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas,

discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual (BRASIL,

2009).

No mesmo relatório, concluiu-se que:

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A superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do

sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade,

doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa

humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano

em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima

do vaso (BRASIL, 2009, p. 247).

O relatório em questão ainda informa que os presídios não

possuem instalações adequadas à existência humana. Estruturas

hidráulicas, sanitárias e elétricas precárias e celas imundas, sem iluminação

e ventilação representam perigo constante e risco à saúde, ante a

exposição a agentes causadores de infecções diversas. As áreas de banho

e sol dividem o espaço com esgotos abertos, nos quais escorrem urina e

fezes. Os presos não têm acesso a água, para banho e hidratação, ou a

alimentação de mínima qualidade, que, muitas vezes, chega a eles azeda

ou estragada. Em alguns casos, comem com as mãos ou em sacos

plásticos. Também não recebem material de higiene básica, como papel

higiênico, escova de dentes ou, para as mulheres, absorvente íntimo.

A situação é tão aviltante que levou a Defensoria Pública de São

Paulo a entrar com uma Ação Civil Pública contra o estado para garantir o

fornecimento de itens básicos de higiene e vestuário aos presos. Uma das

situações mais graves encontrada pelos defensores foi na Cadeia Pública

Feminina de Colina (SP), onde nenhum absorvente íntimo foi entregue às

detentas em 2012, fazendo com que elas utilizassem miolos de pão para

conter o fluxo menstrual (G1, 2013).

Quanto aos grupos vulneráveis, o relatório aponta relatos de

travestis sendo forçados à prostituição e ausência de instalações

adequadas às pessoas com deficiência. Esses casos revelam a ausência de

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critério de divisão de presos por celas, o que alcança também os relativos

a idade, gravidade do delito e natureza temporária ou definitiva da

penalidade.

Diante de tais relatos, o ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto

na ADPF nº 347/DF, concluiu que no sistema prisional brasileiro, ocorre

violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à

dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária

e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que

inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram

tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram

sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos

presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-

se lixo digno do pior tratamento possível, sendo-lhes negado todo e

qualquer direito à existência minimamente segura e salubre (BRASIL, 2015).

Então, se para pessoas sem qualquer tipo de limitação, a vida dentro

do estabelecimento prisional já é difícil, imagine para uma pessoa que

possua algum tipo de deficiência física, considerada duplamente excluída

e marginalizada. A situação desoladora se assemelha à cena de Dante e

Virgílio, em frente aos portões do inferno, quando dão de cara com uma

mensagem muito animadora, que diz: “Deixai, ó vós que entrais, toda

esperança!” (ALIGHIERI, 1955, p. 31).

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1. A legislação ao longo da história

A ideia inicial deste estudo é provocar uma reflexão sobre o respeito

ou não às garantias dos direitos fundamentais no âmbito do

encarceramento da pessoa com deficiência, tendo como pano de fundo a

Constituição Federal e os tratados internacionais dos quais o Brasil é

signatário, bem como da legislação interna.

No Brasil, a composição da política voltada para as pessoas com

deficiência teve início com a Constituição de 1824, que, de forma bastante

modesta, tutelava seus direitos quando lhes assegurava o direito à

igualdade, no inciso XIII, do artigo 179 (BRASIL, 1824). O mesmo ocorrendo

com a Constituição de 1891, no artigo 72, em seu parágrafo segundo.

(BRASIL, 1891).

Já a Constituição de 1934 apresenta, além do direito à igualdade,

no inciso I do artigo 113, um embrião do conteúdo do direito à integração

social da pessoa com deficiência, como se observa no artigo 138 (BRASIL,

1934).

A Constituição de 1937 não avança na ideia embrionária do texto

de 1934, restringe-se a proteger, apenas, a igualdade, no inciso I do artigo

122 e, em linhas gerais, a reproduzir a ideia já garantida pela Constituição

anterior, em seu artigo 12 (BRASIL, 1937).

A Constituição de 1946 garantiu o direito à igualdade no § 1º do

artigo 141. Há breve menção ao direito à previdência para trabalhador que

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se tornar inválido, conforme se depreende da leitura do artigo 157, inciso

XVI. (BRASIL, 1946).

A Emenda nº 1 à Constituição de 1967 resguardou a igualdade em

seu artigo 153, § 1º. Traz, no entanto, grande inovação ao dispor, em seu

artigo 175, § 4º, norma programática visando a proteção de pessoas com

deficiência (BRASIL, 1967). Surge, assim, a primeira menção expressa à

proteção específica desse grupo de pessoas.

O maior avanço, no entanto, surgiu com a Emenda nº 12 à

Constituição Federal de 1967, que concretizou a proteção das pessoas com

deficiência e serviu de base para uma série de medidas judiciais (BRASIL,

1978).

Não obstante, foi mesmo com a Constituição Federal de 1988 que

se deu um grande passo no sentido de contemplar um rol mais específico

desses direitos, já latentes na constituição anterior. Porém, não o fez como

no diploma anterior, mas sim de forma dispersa, por meio de vários

dispositivos alocados em capítulos distintos.

No entanto, a Constituição Federal de 1988 concedeu uma nova

fisionomia ao Estado brasileiro, já que não somente o consagrou como

democrático, mas também ressaltou o seu caráter essencialmente social,

ao fundá-lo em valores fundamentais como a cidadania e a dignidade da

pessoa humana, que irradiarão seus efeitos sobre todo o ordenamento

jurídico. Esse novo modelo de Estado vem com a tarefa fundamental de

superar as desigualdades, não apenas as econômicas e sociais, mas

também, as desigualdades ocasionadas em razão da idade, raça, cor, sexo

e das condições físicas. Ao destacar essas desigualdades, a Constituição

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inseriu a proteção constitucional à pessoa com deficiência. Portanto, uma

sociedade calcada nesses valores é, necessariamente, a que proíbe a

exclusão; uma sociedade inclusiva.

No seu preâmbulo, o constituinte anunciou seu propósito de

construir um Estado Democrático pautado em uma sociedade fraterna,

pluralista e sem preconceitos, onde esteja assegurada a igualdade, dentre

os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito brasileiro.

No artigo 1º, inciso III, elevou o valor da dignidade da pessoa humana a

princípio fundamental desse novo Estado. Já no artigo 3º e incisos,

consagrou como objetivos fundamentais construir uma sociedade livre,

justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as

desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de

origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

No contexto das relações internacionais, determinou a prevalência dos

direitos humanos dentre os princípios a reger suas relações com os demais

países, conforme determina o artigo 4º, inciso II. E, por meio do caput e

§1º do seu art. 5º, assegurou o princípio da igualdade, que passa a ser

considerado dentro desse novo enfoque introduzido pela Lei Maior, como

o valor mais alto dos direitos fundamentais, funcionando como regra

mestra de toda a hermenêutica constitucional e infraconstitucional. Tanto

que, ao garantir a igualdade formal, o art. 5º cuidou, desde logo, de

impedir que determinadas situações fossem prestigiadas sem qualquer

correlação lógica.

Nas palavras de Flávia Leite, o que verificamos é que a Constituição

aproximou à igualdade formal da igualdade material, na medida em que

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não se limitou ao simples enunciado da igualdade perante a lei. O princípio

não pode ser entendido em sentido individualista, que não leva em conta

as diferenças entre grupos. Tal proteção é justificada, afinal, torna-se

necessária a recomposição de natural desigualdade, quer decorrente de

um longo processo de exclusão, quer decorrente de raça, sexo, idade, e no

caso das pessoas com deficiência, de sua situação física (LEITE, 2012).

No plano internacional, a humanidade sempre conviveu com

pessoas que apresentavam as mais diversas limitações. No entanto, a

proteção internacional aos direitos das pessoas com deficiência apresenta

um histórico bastante recente de lutas e de reconhecimento.

De um passado de exclusão, onde a deficiência era enxergada como

estigma ou castigo divino, passando posteriormente pelo tratamento

segregado dentro de instituições hospitalares, chega-se ao momento atual

de afirmação e de luta pela inclusão social.

Segundo Flávia Leite, foi apenas a partir do início do Século XX que

a sociedade começou a se sensibilizar e a se envolver positivamente em

relação às pessoas com deficiência. Aos poucos as políticas de inclusão

foram sendo concebidas, influenciada por uma filosofia social de

valorização da pessoa humana, engajamento da sociedade civil na busca

do bem-estar comum motivada pelo progresso técnico e científico e,

fundamentalmente, em razão das ações destruidoras ocasionadas pelas

grandes guerras mundiais (LEITE, 2012).

As sequelas provocadas pela Primeira Guerra Mundial

sensibilizaram a humanidade, o que refletiu na Organização Internacional

do Trabalho – OIT que, em 1925, na Conferência Internacional do Trabalho,

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adotou a Recomendação nº 22, que representou o primeiro

reconhecimento, por parte da comunidade internacional, das necessidades

das pessoas com deficiência (OIT, 1925).

Porém, foi mesmo com a Segunda Guerra Mundial que essas

necessidades afloraram como uma questão do Estado e de toda a

sociedade. De um lado, o interesse dos mutilados de guerra, que

pressionavam o Estado por uma política séria no sentido de reabilitá-los

para o mercado de trabalho, e de outro, a pressão dos civis com

deficiências que desejavam permanecer ativos, uma vez que haviam

ocupado, com bons resultados, os postos vagos na indústria, comércio e

serviços deixados por aqueles que haviam sido convocados para a guerra.

O interesse da comunidade internacional pela reabilitação e pelo

emprego das pessoas com deficiência encontrou seu apogeu com a

adoção, em 22 de junho de 1955, da Recomendação nº 99, que versa sobre

a adaptação dessas pessoas, declarando que todos os indivíduos com

limitações, quaisquer que sejam a origem e a natureza têm direito aos

meios de reabilitação profissional para poderem exercer um emprego

adequado (OIT, 1955).

Assim, houve um salto qualitativo e quantitativo, à medida que os

direitos de grupos específicos, como os mutilados de guerra ou vítimas de

acidentes de trabalho, passaram a contemplar todas as pessoas com

deficiência, independente da origem da deficiência.

Sob a influência dos princípios e propósitos da Carta das Nações

Unidas e da Carta Internacional dos Direitos Humanos, as pessoas que

padecem de algum tipo de deficiência, além de ter o direito de exercer a

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totalidade dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais

consagrados em tais instrumentos, têm reconhecido o direito de exercê-

los em condições de igualdade com os demais indivíduos.

De forma mais específica, a Declaração dos Direitos das Pessoas

Portadoras de Deficiências, aprovada pela Assembleia Geral das Nações

Unidas em 1975, proclama em seu artigo 6º que “a pessoa portadora de

deficiência tem o direito (...) à formação e à readaptação profissional”. No

mesmo diapasão, no artigo 7º, reconhece o direito “na medida de suas

possibilidades, a obter e conservar um emprego e a exercer um ocupação

útil, produtiva e remunerada” (ONU, 1965).

Em 1983, a OIT editou a Convenção nº 159 50 , que trata da

Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes. O documento

tem por objeto a reabilitação profissional da pessoa com deficiência, de

modo que ela viesse a obter e conservar um emprego digno, conforme se

depreende do seu texto, in verbis:

Para efeitos desta Convenção, todo o País Membro deverá

considerar que a finalidade da reabilitação profissional é a de

permitir que a pessoa deficiente obtenha e conserve um emprego

e progrida no mesmo, e que se promova, assim a integração ou e

reintegração dessa pessoa na sociedade (OIT, 1983).

Acresça-se ainda que tinha por finalidade que os Estados

implementassem políticas de igualdade para os trabalhadores com

deficiência que passarem pelo procedimento de reabilitação. Segundo o

50 Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 51, de 25.8.89, do Congresso Nacional, ratificado em 18 de maio de

1990 e promulgado por meio do Decreto nº 129, de 22.5.91.

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artigo 3º da Convenção, essa política deverá ter por finalidade assegurar

que existam medidas adequadas de reabilitação profissional ao alcance de

todas as categorias de pessoas deficientes e promover-lhes oportunidades

de emprego no mercado regular de trabalho.

A Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas

de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência – Convenção

da Guatemala –, ratificada no Brasil pelo Decreto nº 3.956, de 8 de outubro

de 2001, caracterizou-se por sua originalidade na definição de pessoa com

deficiência com base no modelo social de direitos humanos e foi o

primeiro documento regional que assumiu o caráter vinculante no tocante

aos direitos das pessoas com deficiência. Trouxe também importante

definição acerca de discriminação contra pessoas com deficiência,

prevendo a possibilidade de discriminações positivas ensejadoras de ações

afirmativas (ONU, 1999).

Em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) deu um salto

significativo na proteção das pessoas com deficiência ao publicar a

Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, com o objetivo de

“proteger e garantir o total e igual acesso a todos os direitos humanos e

liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, e promover

o respeito à sua dignidade”. O documento foi assinado por mais de 160

países, incluindo o Brasil. Entre outras coisas, estabelece que “não é o limite

individual que determina a deficiência, mas sim as barreiras existentes nos

espaços, no meio físico, no transporte, na informação, na comunicação e

nos serviços”. No que diz respeito à educação, a Convenção garante, além

de acesso, participação efetiva, sem discriminação e com base na

igualdade de oportunidades para o pleno desenvolvimento do potencial

de qualquer estudante (ONU, 2007).

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O Congresso brasileiro acatou a reivindicação das pessoas com

deficiência no sentido de outorgar status constitucional ao ato de

ratificação da Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos da

Pessoa com Deficiência. É importante frisar que o tratado em apreço

tramitou em tempo recorde nas Nações Unidas: cerca de cinco anos;

contou com a participação de pessoas com deficiência, que opinaram

diretamente na elaboração do respectivo texto, e foi acolhido pelo

Parlamento brasileiro também em tempo recorde, uma vez que votado

com quórum qualificado de três quintos das respectivas casas, em dois

turnos, conforme preceitua o § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, em

pouco mais de dois meses, entre maio e junho de 2008.

O Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008 (BRASIL, 2008),

desse modo, promulgou aquela ratificação com força de emenda

constitucional, o que foi proposto pelo Governo Federal. Este,

coerentemente, sancionou-o por meio do Decreto Presidencial nº 6.949,

de 25 de agosto de 2009.

Sobre o assunto, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, concluiu com

propriedade que:

A elaboração da convenção e sua ratificação pelo Brasil, com

status constitucional, resultaram da atuação direta das pessoas

com deficiência tanto na construção do texto do tratado quanto

na decisão do Congresso brasileiro que o fez constitucional, fato

inédito em nossa história. O sucesso dos objetivos almejados pela

Convenção, por sua parte, também dependerá, acima de tudo,

tanto da conscientização social sobre o alcance revolucionário da

nova convenção quanto da persistente atuação política dos

Estados-Partes e dos cidadãos, por meio dos mecanismos políticos

e jurídicos (FONSECA, 2012, p. 53).

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No mesmo sentido, Flávia Piovezan esclarece que “a Convenção

surge como resposta da comunidade internacional à longa história de

discriminação, exclusão e desumanização das pessoas com deficiência”

(PIOVEZAN, 2012, p. 52).

Depreende-se do texto convencional que o problema passa a ser a

relação do indivíduo e do meio, este assumido como construção coletiva.

Nesse sentido, a mudança paradigmática aponta aos deveres do Estado

para remover e eliminar os obstáculos que impeçam o pleno exercício de

direitos das pessoas com deficiência, viabilizando o desenvolvimento de

suas potencialidades, com autonomia e participação. De objeto de

políticas assistencialistas e de tratamentos médicos, as pessoas com

deficiência passam a ser concebidas como verdadeiros sujeitos, titulares

de direitos.

Por oportuno, é importante destacar que, ao atual ordenamento

jurídico brasileiro, foi acrescida a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015

(BRASIL, 2015), também denominada de Estatuto da Pessoa com

Deficiência. A referida lei consolidou as premissas trazidas pela Convenção

das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,

representando notável avanço para a proteção da dignidade da pessoa

portadora de ausência ou disfunção de uma estrutura psíquica, fisiológica

ou anatômica. As inovações buscam e retratam a evolução pela inclusão

social e ao direito à cidadania plena e afetiva.

Sua natureza incorpora um novo modelo social alvidrado pelos

direitos humanos que é a reabilitação da própria sociedade, visando, assim,

minorar as barreiras de exclusão e incluir a pessoa com deficiência na

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comunidade, garantindo-lhe uma vida independente, com igualdade no

exercício da capacidade jurídica.

Por fim, como o objeto de estudo deste trabalho está voltado para

as pessoas com deficiência que integram o sistema prisional, é necessário

uma abordagem, ainda que sucinta, dos direitos inerentes à essa parcela

marginalizada da sociedade, tanto no âmbito internacional, quanto no

interno.

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de

1948, assevera no artigo 1º que “todos os seres humanos nascem livres e

iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e

devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” Já o

artigo 5º da mesma declaração que determina que “ninguém será

submetido à tortura, nem a penas, nem a tratamentos cruéis, desumanos

ou degradantes” (ONU, 1948).

Nessa mesma toada, o artigo 10 do Pacto Internacional de Direitos

Civis e Políticos 51 institui que “toda pessoa privada de sua liberdade

deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à

pessoa humana” (ONU, 1966),

Já o artigo 16 da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos

e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (ONU, 1984) 52 estabelece que

cada Estado Parte comprometer-se-á a impedir, em qualquer parte do

51 Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12/12/91, do Congresso Nacional e promulgado por meio

do Decreto nº 592, de 06/07/92. 52 Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 4, de 23/05/1989, do Congresso Nacional e promulgado por meio

do Decreto nº 40, de 15/02/1991.

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território sob a sua jurisdição, outros atos que constituam tratamento ou

penas cruéis, desumanos ou degradantes, que não equivalem a tortura, tal

como definida no artigo 1º, quando tais atos forem cometidos por um

funcionário público ou por outra pessoa no exercício de atribuições

públicas, ou ainda por sua instigação ou com o seu consentimento ou

aquiescência.

Ainda no âmbito internacional, podemos citar a Convenção

Americana de Direitos Humanos53, que, de forma genérica, estabelece que

“toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física,

psíquica e moral”. Reafirma que “ninguém deve ser submetido a torturas,

nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa

privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade

inerente ao ser humano”. Deixa claro que “os processados devem ficar

separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e ser

submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não

condenadas”. E, por fim, ressalta que “as penas privativas da liberdade

devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos

condenados” (OEA, 1969).

Já na história constitucional brasileira, nossa primeira Constituição,

a Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, garantiu, em seu

artigo 179, incisos 19 e 21, que “desde já ficam abolidos os açoites, a

tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis”, e “as

cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para

53 Promulgada por meio do Decreto nº 678, de 08/11/1992.

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separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus

crimes” (BRASIL, 1824).

Apenas para ilustrar, o Código Criminal do Império, de 1830,

entretanto, previa, no seu artigo 60, que:

[...] se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital

ou de galés, será condenado na de açoites e, depois de os sofrer,

será entregue ao seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um

ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de

açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por

dia mais de cinquenta (BRASIL, 1830).

A Constituição Imperial, como se vê, se aplicava aos cidadãos do

império e os escravos não eram considerados gente, não eram humanos.

No final do Século XIX, com a Constituição Republicana de 1891,

são abolidas as penas de galés, banimento e de morte, e novo Código

Penal, incorporando valores e avanços da época, substitui as antigas penas

corporais por perda da liberdade em prisões, estas sendo lugares não

apenas para punição, mas também para “cura” e “reabilitação”, nos quais

os condenados aprenderiam a “readaptar-se à sociedade civil” (BRASIL,

1891).

A Constituição de 1934, no artigo 113, proibia penas de banimento,

morte, confisco ou de caráter perpétuo; a de 37, do Estado Novo,

reintroduziu a pena de morte para crimes contra o Estado, e também para

o homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade,

além de vedar “penas corpóreas perpétuas” em seu artigo 122 (BRASIL,

1934). As Constituições de 1946 (artigo 141, § 31) e 1967 (artigo 150, § 11)

trazem redação assemelhada à de 1934.

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Por fim, com a Constituição de 1988, diversos dispositivos,

contendo normas nucleares do programa objetivo de direitos

fundamentais da Constituição Federal, podem ser ressaltados: o princípio

da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III); a proibição de tortura

e tratamento desumano ou degradante de seres humanos (artigo 5º, inciso

III); a vedação da aplicação de penas cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea

“e”); o dever estatal de viabilizar o cumprimento da pena em

estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e

sexo do apenado (artigo 5º, inciso XLVIII); a segurança dos presos à

integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX); e os direitos à saúde,

educação, alimentação, trabalho, previdência e assistência social (artigo 6º)

e à assistência judiciária (artigo 5º, inciso LXXIV).

Com essa apertada reconstituição histórica das nossas

constituições, podemos perceber que, desde a Constituição Política do

Império do Brasil, de 1824, a política penitenciária do Estado brasileiro está

na inconstitucionalidade.

No contexto da legislação infraconstitucional, temos a Lei nº 7.210,

de 11 de julho de 1984, que institui a Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984).

O texto, não obstante ser anterior a 1988, está perfeitamente alinhado aos

preceitos constitucionais da atual Constituição, uma vez que obedece aos

princípios e regras internacionais sobre os direitos da pessoa presa,

especialmente as que defluem das regras mínimas da ONU.

Já em seu artigo 1º, a lei contém duas ordens de finalidades: a

correta efetivação dos mandamentos existentes nas sentenças ou outras

decisões, destinados a reprimir e a prevenir os delitos, e a oferta de meios

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pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança

venham a ter participação construtiva na comunhão social. Nesse sentido,

a lei curva-se ao princípio de que as penas e medidas de segurança devem

realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à

comunidade. Para que isso seja levado à efeito, é imprescindível a vontade

política e o contínuo apoio da sociedade.

De forma geral, o corpo e o espírito da lei são dominados pelo

princípio da legalidade, que tem por objetivo impedir que o excesso ou o

desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade da

execução da pena.

Nesse contexto, o professor da Universidade Nacional de Córdoba,

na Argentina, Gustavo Alberto de Arocena, ao discorrer sobre as diretrizes

fundamentais para execução da pena privativa de liberdade do Direito

Argentino, deixa claro que os meios para atingir esse objetivo não podem

ser senão oferecer aos condenados os elementos para um

desenvolvimento pessoal que lhe permitam reforçar sua capacidade de

autocondução e reflexão sobre as consequências de sua própria ação, de

modo que, dessa maneira, quando ele recupera sua liberdade, ele possa

funcionar efetivamente na vida em sociedade (AROCENA, 2008, p. 574).

Aduz, ainda, o jurista que o sistema de execução penal deve

proporcionar ao apenado meios que lhe permitam um desenvolvimento

apropriado para remover as causas que o levaram para o crime e a prisão

(AROCENA, 2008, p. 574).

Dessa forma, o tratamento dispensado aos encarcerados deve ter

como propósito, até onde a sentença permitir, criar neles a vontade de

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levar uma vida de acordo com a lei e autossuficiente após sua soltura e

capacitá-los a isso, além de desenvolver seu senso de responsabilidade e

autorrespeito.

Nessa toada, avanço importante foi dado pela ONU, em 2015, ao

promover a atualização das Regras Mínimas para o Tratamento do Preso

no Brasil, que data de 1955. O documento teve por intuito ampliar o

respeito à dignidade dos presos, estabelecendo algumas garantias

mínimas existenciais. Deu-se ao documento o nome de “Regras de

Mandela” em homenagem ao ex-presidente sul africano Nelson Mandela

(BRASIL, 2016).

Já no início do texto, temos a exortação no sentido de que “todos

os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade

inerentes ao ser humano” (BRASIL, 2016, p. 19). Em seguida, a regra 2

estabelece que “não haverá discriminação baseada em raça, cor, sexo,

idioma, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem

nacional ou social, propriedades, nascimento ou qualquer outra condição”

(BRASIL, 2016, p. 19). A regra 2 estabelece ainda, que:

Para que o princípio da não discriminação seja posto em prática,

as administrações prisionais devem levar em conta as necessidades

individuais dos presos, particularmente daqueles em situação de

maior vulnerabilidade. Medidas para proteger e promover os

direitos dos presos portadores de necessidades especiais são

necessárias e não serão consideradas discriminatórias (grifos

nossos). (BRASIL, 2016, p. 19).

Em relação ao assunto sobre o qual nos debruçamos, a regra 5

estabelece de forma lapidar e com extrema clareza que “as administrações

prisionais devem fazer todos os ajustes possíveis para garantir que os

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presos portadores de deficiências físicas, mentais ou outra incapacidade

tenham acesso completo e efetivo à vida prisional em base de igualdade”

(BRASIL, 2016, p. 19).

Não menos importante, a regra 25 determinada que “toda unidade

prisional deve contar com um serviço de saúde incumbido de avaliar,

promover, proteger e melhorar a saúde física e mental dos presos,

prestando particular atenção aos presos com necessidades especiais ou

problemas de saúde que dificultam sua reabilitação” (BRASIL, 2016, p. 23).

Dá análise do texto, é possível inferir que o seu objetivo não é

implementar um sistema penitenciário modelo. Na verdade, trata-se de um

conjunto de regras que visam estabelecer princípios e regras de uma boa

organização penitenciária, bem como regras mínimas relativas ao

tratamento dispensado aos presos. Dadas às variações de condições

jurídicas, sociais, econômicas e geográficas existentes no mundo, estas

regras servem para o estímulo constante de superação das dificuldades

práticas enfrentadas pelos sistemas carcerários mundo afora.

As Regras de Mandela se traduzem em mais um marco a se atentar

quando da atuação e do peticionamento na seara da execução penal,

visando a observância dos direitos humanos fundamentais dos

encarecerados. É um lastro mínimo, veja-se, do que entende plausível e

viável a ONU em termos de execução penal, ou seja, estas seriam as

condições básicas para que se possa falar em execução penal digna,

humana e não degradante.

Apesar de o Governo Brasileiro ter participado ativamente das

negociações para a elaboração das Regras Mínimas e sua aprovação na

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Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2015, até o momento, essa

normativa não repercutiu em políticas públicas no país, sinalizando o

quanto carece de fomento em nosso Estado a valorização das normas de

direito internacional dos direitos humanos.

As Regras de Mandela podem e devem ser utilizadas como

instrumentos a serviço da jurisdição e têm aptidão para transformar o

paradigma de encarceramento praticado pela justiça brasileira.

2. A (in)dignidade da pessoa humana

Após tudo que foi dito, o que podemos perceber diante de todo

arcabouço normativo positivado é que, não é por falta de esforço

legislativo que a execução da pena e a respectiva proteção aos apenados

em situação de vulnerabilidade, em especial, as pessoas com deficiência,

deixará de ser levada à efeito. Nesse sentido, o epicentro da efetivação dos

direitos desta parcela marginalizada da população não está na criação de

mecanismos legais no sentido de fundamentá-los, mas nas condições

criadas para sua garantia e efetivação.

Dentro dessa perspectiva, segundo Norberto Bobbio:

Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico,

mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de

saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e

seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos

ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los,

para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam

continuamente violados (BOBBIO, 1992, p. 25).

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Logo, qualquer solução adotada na esfera legislativa passa,

necessariamente, pelas mãos do Poder Executivo, que precisa liberar

verbas para a implementação de inúmeros programas de prevenção,

punição e recuperação dos delinquentes. Além disso, é necessária a

adoção de um nova postura da sociedade em relação a efetivação dos

direitos humanos, cuja base moral e filosófica encontra-se totalmente

distanciada da realidade normativa.

Parece-nos acertada a indagação da Professora Ana Paula de

Barcellos (2015, p. 65): “algo mudou 25 anos depois da promulgação da

Constituição?” Segundo ela, a resposta é negativa e a questão do respeito

à dignidade dos presos demanda outro tipo de abordagem, que não a

propriamente normativa.

Sobre o assunto, Jayme Benvenuto Lima Júnior (2002), sustenta que

a validação dos direitos humanos diz muito a respeito da necessidade de

fazer da exigibilidade, que é a possibilidade de existência prática de

direitos, o ponto focal dos direitos humanos nos dias atuais. A exigibilidade

é, hoje, um imperativo na teoria e na prática dos direitos humanos. Afinal,

as declarações de direitos, as constituições e as leis de um modo geral

deixam de possuir qualquer significação prática se não tiverem a

possibilidade de efetiva aplicação.

Nesse contexto, Bobbio indaga se um direito cujo reconhecimento

e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade

de sujeitos cuja obrigação de executar o “programa” é apenas uma

obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado

corretamente de “direito” (LIMA JÚNIOR, 2002).

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É notório como o Brasil tem explicitado seu compromisso com os

direitos humanos em geral, e com os direitos dos presos e pessoas com

deficiência em particular, por meio da subscrição de atos internacionais

tratando do tema e da edição de normas internas. Entretanto, apesar do

belo discurso e do que dispõe o Direito, parece que a formação da cultura

brasileira ainda não foi capaz de incorporar as noções de igualdade

essencial dos indivíduos e da dignidade de cada ser humano. A

incorporação efetiva desses direitos depende de um crescimento moral da

sociedade, que não se mensura pelas palavras, mas pelos fatos. Como diz

Bobbio (1992, p. 64), “de boas intenções, o inferno está cheio”.

Parece-nos importante trazer à baila os ensinamentos de Cláudia

Werneck, que, mostrando sua sensibilidade jurídica, aduz:

A sociedade para todos, consciente da diversidade da espécie

humana, deve estruturar-se para atender às necessidades de cada

cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos

marginalizados. Crianças, jovens e adultos com deficiência serão

naturalmente incorporados à sociedade inclusiva, definida pelo

princípio: TODAS as pessoas têm o mesmo valor (WERNECK, 2003,

p. 24).

O que pressupõe o princípio da igualdade na aplicação das normas

de execução é a equalização de todos os presos, no sentido de que

qualquer ato que envolva colocar reclusos em posições diferentes em

relação a direitos ou possibilidades é proibido. É, em suma, tratamento

igual para os reclusos que estão em condições de igualdade. Esta última

permite apreciar que a igualdade de tratamento exigida pelo ordenamento

jurídico não impede, de modo algum, as diferenças impostas pelas

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particularidades do tratamento prisional individualizado decorrentes da

diferente situação que apresentar o apenado.

No mesmo contexto, nenhuma outra argumentação é necessária

para justificar a importância adquirida pelo máximo respeito à dignidade

do recluso como elemento indispensável para conseguir, de maneira

genuína e efetiva, a adequada reinserção social dos condenados.

Parece-nos, por todo o exposto e à guisa de conclusão parcial, que

há entendimentos ligeiramente diferentes sobre o que vem a ser dignidade

da pessoa humana. Analisemos, pois, dois conceitos fundamentais,

porque, em si e isoladamente, revelam valores jurídicos: a pessoa humana

e a dignidade.

Sobre a ideia de pessoa humana, José Afonso da Silva, ao discorrer

sobre a filosofia kantiana, mostra que o homem, como ser racional, existe

como fim em si, e não simplesmente como meio, enquanto os seres,

desprovidos de razão, têm um valor relativo e condicionado, o de meio, eis

por que se lhes chamam coisas. Ao contrário, os seres racionais são

chamados de pessoas, porque sua natureza já os designa como fim em si,

ou seja, como algo que não pode ser empregado simplesmente como

meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o nosso arbítrio,

por ser um objeto de respeito. Dessa forma se revela como um valor

absoluto, porque a natureza racional existe como fim em si mesma. Assim,

o homem se representa necessariamente em sua própria existência. Mas

qualquer outro ser racional se representa igualmente assim na sua

existência, em consequência do mesmo princípio racional que vale

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também para mim, é, pois, ao mesmo tempo, um princípio objetivo que

vale para outra pessoa (SILVA, 1998).

Nesse sentido, Immanuel Kant lança seu imperativo prático ao dizer

que “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como

na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e

nunca simplesmente como meio” (KANT, 2007, p. 69).

Disso decorre que os seres racionais estão submetidos à lei segundo

a qual cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros

simplesmente como meio, mas sempre e simultaneamente como fim em

si. Isso porque o homem não é uma coisa, não é, por consequência, um

objeto que possa ser tratado simplesmente como meio, mas deve em

todas as suas ações ser sempre considerado como um fim em si.

Isso, em suma, quer dizer que só o ser humano, o ser racional, é

pessoa. Todo ser humano, sem distinção, é pessoa, ou seja, um ser

espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores.

Na consciência e vivência de si próprio, todo ser humano se reproduz no

outro como seu correspondente. É reflexo de sua espiritualidade, razão

pela qual desconsiderar uma pessoa significa em última análise

desconsiderar a si próprio. Por isso é que a pessoa é um centro de

imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar

seu desenvolvimento.

Para falar em dignidade, recorremos novamente à filosofia de Kant,

segundo a qual no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade.

Aquilo que tem um preço pode muito bem ser substituído por qualquer

outra coisa equivalente. No entanto, quando uma coisa está acima de todo

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o preço, não admitindo substituto equivalente, então ela tem dignidade

(KANT, 2007).

Correlacionadas as duas ideias apresentadas, vê-se que a dignidade

é atributo intrínseco, da essência da pessoa humana, único ser que

compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite

substituição equivalente. Assim a dignidade entranha e se confunde com

a própria natureza do ser humano, motivo pelo qual deve-se repudiar toda

e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano.

Nesse sentido, conforme ensina Ingo W. Sarlet, o nosso

Constituinte, a tratar da dignidade da pessoa humana como um dos

fundamentos do nosso Estado democrático de Direito, além de ter tomado

uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da

justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu

categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana,

e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e

não meio da atividade estatal (SARLET, 2015, p. 129).

Assim, de acordo com a lição de Jorge Reis Novais, no momento em

que a dignidade é guindada à condição de princípio constitucional

estruturante e fundamento do Estado Democrático de Direito, é o Estado

que passa a servir como instrumento para a garantia e promoção da

dignidade das pessoas individual e coletivamente consideradas (NOVAIS,

2004).

No mesmo contexto, a dignidade pode ser considerada o coração

do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana, como argumenta

Cármen Lúcia Antunes Rocha (1999). Logo, é imprescindível que se

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outorgue ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em

todas as suas manifestações e aplicações, a máxima eficácia e efetividade

possível. Com as devidas adaptações das palavras de Juarez Freitas, que se

guarde e proteja com todo o zelo e carinho este coração de toda sorte de

moléstias e agressões, evitando ao máximo o recurso a cirurgias invasivas

e, quando estas se fizerem inadiáveis, que tenham por escopo viabilizar

que este coração (ético-jurídico) efetivamente esteja (ou, pelo menos, que

venha a estar) a bater para todas as pessoas com a mesma intensidade

(FREITAS, 1999).

Assim, se todas as pessoas gozam de mesma dignidade, como

justificar o tratamento desumano conferido as pessoas com deficiência

que estão encarceradas? Será que o cidadão que é considerado infrator,

por tal fato, perde a sua dignidade?

Santo Tomás de Aquino (2017), ao questionar sobre a licitude para

matar os pecadores, afirma que o homem, ao delinquir, se afasta da ordem

racional, e portanto decai da dignidade humana, equiparando-se, de certo

modo, aos animais. Ainda que o autor utilizasse o argumento para justificar

a pena de morte, tal argumento é inconcebível.

A propósito do tema, adverte Ingo W. Sarlet (2015) que a dignidade

independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer

pessoa humana, visto que, em princípio, todos, mesmo o maior dos

criminosos, são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos

como pessoas, ainda que não se portem de forma igualmente digna nas

suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos.

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Dentro da mesma perspectiva, Jesús González Pérez alerta que o

ingresso numa instituição penitenciária determina a sujeição do apenado

a um status especial em que um direito tão fundamental quanto o da

liberdade sofre uma limitação drástica. No entanto, nas palavras do autor:

Pero en modo alguno supone la pérdida de la condición de

persona humana. La condición de persona y la dignidad a ella

inherente acompañará al hombre en todos y cada uno de los

momentos de su vida, cualquiera que fuere la situación en que se

encontrare, aunque hubiere traspasado las puertas de una

institución penitenciaria (PEREZ, 2007, p. 28).

Assim, a dignidade da pessoa humana, que é atributo intrínseco de

todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem as ações mais indignas

e infames, não poderá ser objeto de desconsideração.

A falar sobre o “direito à dignidade”, Ronald Dworkin apresenta a

ideia de que as pessoas têm o direito de não ser vítimas da indignidade,

de não ser tratadas de um modo que, em sua cultura ou comunidade, se

entende como demonstração de desrespeito. Segundo ele, os presos

condenados, inclusive pelos crimes mais graves, têm direito à dignidade

na punição que lhes for aplicada. Insiste o autor que tal pessoa seja tratada

com dignidade, “pois continuamos a vê-la como um ser humano integral,

como alguém cujo destino continuamos a tratar como objeto digno de

interesse e preocupação” (DWORKIN, 2003, p. 334).

Por fim, podemos entender que o encarceramento das pessoas com

deficiência, embora sejam minoria, têm sua problemática enfrentada em

proporções muito superiores à dos demais apenados, sendo duplamente

punidos. Isso nos leva a afirmar que o poder público, bem como a ordem

jurídica, não toma a sério a dignidade da pessoa, como qualidade atribuída

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e reconhecida ao ser humano, não trata com seriedade os direitos

fundamentais e, acima de tudo, não leva a sério a própria humanidade que

habita em cada uma e em todas as pessoas e que as faz merecedoras de

respeito e consideração recíprocos. Nesse sentido, Dworkin é enfático ao

determinar que, “se o governo não levar os direitos à sério, é evidente que

também não levará a sério a lei. (DWORKIN, 2002, p. 314). Mas será que

todo o problema pode ser resumido a isso? Parece-nos que não, conforme

veremos a seguir.

3. A falta do reconhecimento

“O olhar dos outros nos constitui.” Com essa frase, Daniel Sarmento

nos explica que, o que somos, o que fazemos, a forma como nos sentimos,

nosso bem-estar ou sofrimento, a nossa autonomia ou subordinação, tudo

isso depende profundamente da maneira como somos enxergados nas

relações que travamos com os outros. (SARMENTO, 2016).

Assim, nas palavras de Axel Honneth (2003, p. 217), quando a

sociedade nos trata sistematicamente como inferiores, internalizamos uma

imagem negativa de nós mesmos e passamos a moldar as nossas escolhas

e ações a partir dela. Por isso, para que as pessoas possam se realizar e

desenvolver livremente suas personalidades, o adequado reconhecimento

pelo outro é vital. O ser humano é ser de relações e por isso, o

reconhecimento marca, mais do que qualquer outra ação, a entrada do

indivíduo na existência especificamente humana.

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Sarmento esclarece que a falta de reconhecimento oprime, instaura

hierarquias, frustra a autonomia e causa sofrimento. Vícios no

reconhecimento têm também reflexos diretos nas relações econômicas e

de poder presentes na sociedade, pois fecham as portas, criando

embaraços ao acesso a posições importantes na sociedade para as pessoas

estigmatizadas. Logo, ressalta em importância essa dimensão

importantíssima da dignidade da pessoa humana, que é o reconhecimento

intersubjetivo (HONNETH, 2003).

Para melhor compreensão do assunto, precisamos lançar mão dos

estudos do Filósofo e Sociólogo alemão Axel Honneth, que pesquisou a

sociedade, a vulnerabilidade dos sujeitos em condição de opressão e os

movimentos de luta pelo reconhecimento.

Honneth desenvolve sua contribuição para a Teoria Crítica

colocando a questão do reconhecimento no centro da reflexão. Ele

estabelece uma premissa antropológica segundo a qual, segundo Honneth

(2003, p. 137) “os seres humanos são vulneráveis naquela maneira

específica que denominamos ‘moral’ porque eles devem sua identidade à

construção de uma autorrelação prática que desde o início depende da

ajuda e da afirmação de outros seres humanos”.

Afirma, ainda, que as relações intersubjetivas são tidas como

constitutivas na medida em que “os sujeitos humanos somente podem

desenvolver uma autorrelação intacta quando verem-se afirmados ou

reconhecidos de acordo com o valor de certas capacidades e direitos”

(HONNETH, 2003, p. 138).

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As relações intersubjetivas que possibilitam o desenvolvimento da

autorrelação prática para Honneth, ocorrem em três esferas distintas, cada

uma correspondendo a uma forma diferente de reconhecimento: amor ou

amizade nas relações primárias, direitos nas relações jurídicas e

solidariedade e estima nas relações sociais. Cada uma destas formas de

reconhecimento está intimamente relacionada ao desenvolvimento de um

tipo específico de autorrelação prática ou de relação consigo mesmo.

Honneth estabelece um diálogo entre o sujeito, o amor, direito e

solidariedade e como a possibilidade de articulá-las fortalece os sujeitos

levando-os a conquistar a dignidade humana, a autonomia e o

autoconhecimento. Na mesma toada, salienta que a cada uma das três

formas de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) acima descritas

corresponde uma forma de desrespeito ou injúria moral que ameaça um

componente específico da identidade.

Segundo o filósofo, a esfera do amor é ancorada estruturalmente

na dimensão da natureza afetiva e dependente da personalidade humana.

Ao relacionar-se com o outro é que se desenvolve a confiança que resulta

na autoconfiança, pois:

[…] essa relação de reconhecimento prepara o caminho para uma

espécie de auto-relação em que os sujeitos alcançam mutuamente

uma confiança elementar em si mesmos, ela precede, tanto lógica

como geneticamente, toda outra forma de reconhecimento

recíproco: aquela camada fundamental de uma segurança

emotiva não apenas na experiência, mas também na

manifestação das próprias carências e sentimentos, propiciada

pela experiência intersubjetiva do amor, constitui (HONNETH,

2003, p. 177).

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Assim, numa esfera em que o autor define como íntima, a pessoa é

reconhecida como um indivíduo com necessidades e desejos específicos.

Nela o reconhecimento tem o caráter de uma devoção afetiva,

incondicional, preocupada com o bem-estar do outro enquanto tal; essa

devoção pode ser descrita com categorias como cuidado e amor. A

autorrelação prática que se desenvolve aqui é a autoconfiança (SABOTTKA,

2015, p. 689).

Negligenciar ou negar o reconhecimento nas relações primárias

destrói a confiança no valor que as necessidades de cada um têm aos olhos

dos outros. Para Honneth (2003, p. 136) “[...] ao lado do assassinato, que

desconsidera todas as formas de bem-estar físico, casos típicos desta

classe são abuso físico, tortura e estupro”. Logo, este tipo de

reconhecimento é responsável não só pela base de autorrespeito, mas

também pela base de autonomia necessária para a participação da vida

pública (HONNETH, 2003, p. 178). Portanto, este primeiro nível de

reconhecimento é condição do segundo nível de reconhecimento, qual

seja, o jurídico.

No que se refere ao direito, o reconhecimento seria a igualdade,

garantida pelas leis e a moral dos sujeitos. Assim o reconhecimento se dá

pelo respeito cognitivo e pelos direitos garantidos. O conflito se dá pela

privação de direitos e pela exclusão que pode ameaçar a integridade social

dos indivíduos.

Portanto, segundo Sabottka (2015), na segunda esfera, o indivíduo

é reconhecido como uma pessoa a quem é atribuída a mesma capacidade

moral que se atribui a todo ser humano. Nas sociedades modernas, essa

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esfera de reconhecimento é a das relações juridicamente mediadas e tem

o caráter de um tratamento igualitário, universal pelo menos no âmbito da

comunidade juridicamente definida. A autorrelação prática que os

indivíduos desenvolvem aqui é designada de autorrespeito.

Esta segunda forma de reconhecimento está relacionada com a

responsabilidade moral, que em sociedades modernas envolve direitos e

deveres iguais para cada sujeito individualmente. Hoje, a forma de

reconhecimento do direito contempla não só as capacidades abstratas de

orientação moral, mas também as capacidades concretas necessárias para

uma existência digna.

Como formas típicas de desrespeito, podemos mencionar um leque

de lesões que vão do engano, da fraude e denegação de direitos em

relações individuais até a discriminação de grupos inteiros de pessoas.

Logo, o conflito se dá pela privação de direitos e pela exclusão que pode

ameaçar a integridade social dos sujeitos.

Por fim, na esfera da solidariedade, o indivíduo é reconhecido como

uma pessoa cujas capacidades e habilidades são tidas como de valor para

uma comunidade concreta, ou seja, o reconhecimento se dá pela estima

social (HONNETH, 2003, p. 198). A autorrelação prática que os indivíduos

desenvolvem nessa esfera é designada de autoestima.

O desrespeito à essa forma de reconhecimento implica em os

sujeitos serem considerados insignificantes ou até mesmo indesejados

dentro da comunidade. Como exemplos de negação de reconhecimento,

podemos mencionar gestos simples, como não saudar a outra pessoa, e

bem mais sérios, como a estigmatização. Estamos falando de privação de

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direitos, em que o componente ameaçado é aquele da dignidade e

integridade social.

Para que os atores sociais possam, portanto, desenvolver relações

solidárias e, por consequência, um autorrelacionamento positivo e

saudável, eles precisam ter a chance simétrica de desenvolver a sua

concepção de vida sem sofrer as patologias oriundas das experiências de

desrespeito (HONNETH, 2003). Nesse sentido, cada indivíduo é concebido

como corresponsável pelo bem-estar dos outros membros da

comunidade, sendo esta corresponsabilidade definida como uma

obrigação moral, universal.

Pelo exposto, podemos concluir que é possível extrair do princípio

da dignidade da pessoa humana um direito fundamental ao

reconhecimento, que também tem fortes conexões com a igualdade e a

solidariedade. Nas palavras de Sarmento, trata-se de um direito ‘ao igual

respeito da identidade pessoal’. Ele não apenas veda as políticas públicas

e práticas sociais que estigmatizam as pessoas por conta de suas

identidades, como também impõe que o Estado interfira sobres as relações

sociais, buscando eliminar as valorações negativas conferidas pela cultura

hegemônica de certos grupos (SARMENTO, 2016, p. 334).

Logo, o direito ao reconhecimento veda a imposição de barreiras

que prejudiquem o efetivo desfrute de direitos básicos pelos membros de

grupos estigmatizados, como ocorre em relação aos apenados com

deficiência.

Nesse contexto, vale trazer a colação, as palavras do professor e

filosofo norte americano Joel Feinberg. Segundo o filósofo:

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Ter direitos nos capacita a “manter-nos como homens”, a olhar os

outros nos olhos e nos sentir, de uma maneira fundamental, iguais

a qualquer um. Considerar-se portador de direitos não é ter

orgulho indevido, mas justificado, é ter aquele auto-respeito

mínimo, necessário para ser digno do amor e da estima dos outros.

De fato, o respeito por pessoas [...] pode ser simplesmente o

respeito por seus direitos, de modo que não pode haver um sem

o outro; e o que se chama 'dignidade humana' pode ser

simplesmente a capacidade reconhecível de afirmar pretensões

(FEINGERG, 1980, p. 151).

Portanto, parece-nos que as condições desumanas do nosso

sistema carcerário tem origem na degradação ética e moral da sociedade,

que começa nas relações mais íntimas da célula familiar, onde se verificam

contínuos desrespeitos à dignidade humana. Depois, se estende para as

relações entre o Estado e o sujeito, que é negligenciado pelo poder público

nas suas necessidades mais básicas e, por fim, tratado como inferior pelos

seus ‘iguais’ nas relações sociais.

Considerações finais

Constatou-se ao longo do texto que os direitos atribuídos às

pessoas com deficiência e encarceradas, formalmente consagrados,

resultam de conquistas históricas e não de um efêmera descoberta de um

legislador subitamente despertado por um senso de justiça. O que temos

é um contingente de pessoas marginalizados pela vida e pela injustiça

social que as sobrecarrega. Pessoas cuja dignidade humana é tida por

parcela da sociedade como perdida em razão das escolhas equivocadas

que fizeram.

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Ficou evidente que temos um extenso rol normativo de direitos que

envolvem tanto as pessoas com deficiência, quanto as pessoas que estão

privadas da sua liberdade. No entanto, é notório o descaso do Estado

brasileiro, ao permitir que pessoas vivam como animais, totalmente

desprovidos de qualquer dignidade. Logo, é sabido por todos, que as

condições da carceragem brasileira pouco ou nada se aproximam da

previsão legal, o que, por si, talvez pudesse ser um argumento válido como

causa da ineficiência do sistema.

O que temos, na verdade, são prisões superlotadas, nas quais não

encontra o preso qualquer garantia de atenção aos direitos humanos

mínimos e, por consequência, a manutenção do apenado na criminalidade,

cada vez mais temido e excluído da sociedade.

Trata-se de um sistema brutal e brutalizante, que desatende a todas

as regras mínimas para tratamento do preso. Nesse sentido, as regras de

Direitos Humanos aplicáveis foram fixadas, não apenas na busca da

ressocialização do apenado, mas pela simples razão de tratar-se ele de um

ser humano. Essa carência de reconhecimento, a invés da reintegração

social do apenado, resulta em sua brutalização e dessocialização,

retroalimentando um sistema que provocará sua volta à criminalidade e,

por conseguinte, à prisão.

No entanto, a simples crítica ao sistema carcerário baseada em

palavras de ordem, julgando-o ineficiente, desumano e ilegal e

insuficiente. Qualquer tentativa de promover uma profunda reforma no

sistema carcerário deve, antes, guiar-se pelo reconhecimento de que, na

sociedade contemporânea, os interesses individualistas e imediatistas têm

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sido colocados em posição prioritária em face dos objetivos comunitários.

Por essa razão, a preocupação com as condições de cumprimento de pena

ou a ressocialização do apenado, em especial, aquele com deficiência,

ficam relegadas a segundo plano.

A sociedade, há anos, vem reconhecendo as pessoas presas e/ou

com deficiência como integrantes de uma parcela da sociedade que

sempre se manteve numa condição de inferioridade quanto à dignidade

humana. Parece-nos que perdemos a capacidade de reconhecer um outro

ser humano, fazendo com que o reconhecimento caia no esquecimento.

Essa situação tem sua origem no âmbito familiar e se agrava quando não

há apoio comunitário e políticas públicas adequadas

É preciso resgatar o sentido dado ao princípio da dignidade

humana, que está diretamente ligado a compreensão de ‘pessoa’. Estamos

falando do ser humano concreto, enraizado, que não é só o racional, mas

também emocional, corporal e social. Trata-se de pessoa que é um fim em

si, razão de ser do Estado e da ordem jurídica, e não um mero órgão da

comunidade.

No mesmo sentido, é preciso ressaltar a ideia do valor intrínseco da

pessoa, segundo o qual, o ser humano nunca pode ser tratado como

apenas um meio, mas sempre como um fim em si. Isso implica em afirmar

que a dignidade humana não depende das características pessoais ou dos

atos de cada individuo tenha praticado, pois todos possuem a mesma

dignidade.

Por fim, o que percebemos no presente estudo, é que a crise do

sistema carcerário é, em verdade, mais filosófica do que material.

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O AUXÍLIO-RECLUSÃO É UM DIREITO DO PRESO CIVIL?

IS THE IMPRISONMENT AID A RIGHT OF CIVIL PRISONER?

José Henrique Ferreira Bona

Mestre em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário

IESB; especialista em Direito Público e em Atividade Policial Judiciária; graduado em

Ciências Contábeis e em Direito; docente da Escola Superior de Polícia desde 2009 e

atualmente trabalha na Polícia Civil do Distrito Federal. https://orcid.org/0000-0003-

3602-0508

Paulo José Leite Farias

Pós-doutor pela Universidade de Boston (EUA); doutor pela Universidade Federal

de Pernambuco (UFPE); mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); professor

dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito do Centro Universitário Instituto

de Educação Superior de Brasília (IESB); atualmente é promotor de justiça do Ministério

Público do Distrito Federal e Territórios https://orcid.org/0000-0002-7640-0401

Resumo

O presente trabalho apresenta conceitos sobre a prisão administrativa e civil. Em seguida,

analisa posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a concessão do benefício

auxílio-reclusão ao preso civil no contexto da previdência social brasileira.

Palavras-chaves: Auxílio-reclusão; Preso civil; Benefícios previdenciários.

Abstract

The present work presents concepts of administrative and civil. Thus, analyze

imprisonment, doctrinal and judicial positions on the granting of the imprisonment aid

benefit to the civil prisoner in the Brazilian Social Security System.

Keywords: Imprisonment aid; Civil prisoner; Social Security Benefit.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A concessão ou não do benefício

auxílio-reclusão ao preso devedor de pensão alimentícia – preso

civil; 3. Conclusão; 4. Referências.

Introdução

O presente artigo defende a possibilidade de concessão do auxílio-

reclusão ao preso civil, decorrente do inadimplemento da pensão alimentícia,

momento de grande fragilidade do preso.

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O tema se perfaz bastante polêmico e, quando se trata da concessão desse

benefício ao preso devedor de pensão alimentícia – preso civil, além de

controverso, não existe pacificidade nos posicionamentos firmados acerca do

assunto pelos estudiosos, o que demonstra a necessidade de esclarecê-lo.

Apesar do garantismo predominante na Constituição brasileira, ela ainda

possui lacunas de efetividade no que diz respeito à garantia de alguns direitos

fundamentais, dentre eles o direito social à previdência.

Assim, serão trazidos alguns conceitos sobre prisão administrativa e civil,

a fim de possibilitar um entendimento mais amplo sobre o assunto para, em

seguida, ser catalogados os posicionamentos, contrários e favoráveis, de alguns

doutrinadores sobre o assunto.

A distinção entre prisão civil e penal faz-se necessária, pois grande parte

da doutrina entende que o benefício previdenciário do auxílio-reclusão deveria ser

dado somente para as prisões penais oriundas de condenação definitiva!

Ao final, será apresentada a justificativa da defesa de concessão do

benefício previdenciário ao preso civil, fundamentada na doutrina e jurisprudência

atual.

1. A concessão ou não do benefício auxílio-reclusão ao preso devedor de

pensão alimentícia – preso civil

O presente artigo irá tratar da possibilidade da concessão do auxílio-

reclusão ao preso por inadimplemento da pensão alimentícia, que será chamado

no texto de preso civil.

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É importante primeiramente, conceituarmos a prisão administrativa,

estabelecida no art. nº 319 do Código de Processo Penal, pois alguns autores

entendem ser a prisão civil uma espécie de prisão administrativa, pois é uma prisão

extrapenal que deve ser decretada por autoridade judiciária, por razões de ordem

administrativa e com o escopo administrativo, salvo nos casos de transgressão

militar ou crime propriamente militar (MIRABETE, 2003, p. 397).

Depois, iremos discorrer sobre a prisão civil54, que no ponto de vista, é sim,

também uma espécie de prisão administrativa, que se encontra disciplinada no art.

nº 528, § 3º da Lei nº 13.105/201555 (Código de Processo Civil) combinado com o

art. nº 5º, LXVII da Constituição Federal de 2018.

Fica claro que o objetivo da prisão civil é forçar o preso a honrar suas

obrigações, vindo a pagar sua dívida originária da pensão alimentícia.

No intuito de ratificar este posicionamento, traz-se a opinião de Álvaro

Azevedo, que orienta:

Prisão civil, assim é a que se realiza no âmbito estritamente do Direito

Privado, interessando-se, neste estudo, essencialmente, a que se

consuma em razão de dívida impaga, ou seja, de um dever ou de uma

obrigação descumprida e fundada em norma jurídica de natureza civil.

Especificamente, neste trabalho, objetivando a prisão civil, por dívida, do

depositário infiel e do alimentante descumpridor de dever alimentar

(AZEVEDO).

Para fins de esclarecimentos, é importante trazer à tona que a versão

original da Constituição Federal de 1988 referia-se a dois tipos de prisões cíveis,

54 Prisão civil por inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. 55 Art. 528, § 3º do CPC. Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz,

além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1o, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de

1 (um) a 3 (três) meses.

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que eram as decorrentes de não pagamento da pensão alimentícia e a do

depositário infiel.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e

à propriedade, nos termos seguintes:

LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo

inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do

depositário infiel (BRASIL, CR/88, art. 5º).

O Brasil manteve as duas espécies de prisão até 1992, data em que aderiu

ao Pacto de San José da Costa Rica de 196956 (ou Convenção Americana de Direitos

Humanos), por meio do Decreto nº 678/1992. O Pacto de San José da Costa Rica

proibia prisões civis, salvo as decorrentes do inadimplemento de obrigação

alimentar, e taxativamente trazia em seu artigo nº 7º: “Ninguém deve ser detido

por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária

competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

Nesse sentido, quando o Brasil aderiu à Convenção Americana sobre os

Direitos Humanos no ano de 1992 e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e

Políticos, passou-se a ter um suposto embate entre a Constituição Federal de 1988,

que aceitava dois tipos de prisão, e a Convenção Americana, que só aceitava um

tipo de prisão, a do devedor de pensão alimentícia.

Diante de tal cenário, o STF se posicionou decidindo que legislações

internacionais que tratam de direitos humanos, quando internalizadas no

ordenamento jurídico pátrio, têm caráter supralegal, salvo quando seguem o rito

56 Cfr. SAN JOSÉ. Pacto de San José da Costa Rica. San José, Costa Rica, nov. 1969.

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do art. nº 5º, §3º da Constituição Federal de 198857, que passam a possuir eficácia

de Emenda Constitucional. Logo, como as prisões dos depositários infiéis são

disciplinadas por leis infraconstitucionais, e os tratados em questão são

supralegais, os dispositivos legais nacionais tiveram sua eficácia paralisada.

Além disso, O STF publicou, em 16/12/2009, a Súmula Vinculante nº 2558,

pacificando o posicionamento no sentido de proibir a prisão civil do depositário

infiel, e estabeleceu que: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que

seja a modalidade de depósito”.

Assim, permaneceu vigente na CF/88 somente a prisão civil por falta de

pagamento da pensão alimentícia. Contudo, não é o simples fato de não pagar a

pensão alimentícia que provoca a prisão, deve-se, ainda, acrescentar alguns

motivos específicos, que são: inadimplemento voluntário e inescusável, ou seja,

não quis pagar e não justificou o motivo do não pagamento.

Nesse caso, ocorrendo a prisão do devedor de alimentos, ocorrerá seu

cumprimento em regime fechado59. Desta forma, atende-se um dos requisitos para

a concessão do benefício auxílio-reclusão, que é o regime de cumprimento de

“pena”.

57 Cf. At. 5º da CF/88. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e estrangeiros residentes no País à inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade, nos termos seguintes: §3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos

humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos

votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 58 BRASIL. STF. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante_>. Acesso em:

19 maio, 2018. 59 Art. 733, §4º do CPC/2015. A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado

dos presos comuns.

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Posicionamento defendido pelo professor Hélio Gustavo Alves:

O juiz poderá aplicar a pena de um a três meses para o devedor e, vencido

o prazo da pena, o réu é libertado, se o réu é segurado da Previdência

Social, para o período em que esteve preso é cabível o auxílio-reclusão,

caso não tenha renda (ALVES, 2014, p. 57).

Assim, a concessão do benefício será por prazo certo, ou seja, de um a três

meses, a depender do tempo de prisão que foi determinado no mandado judicial.

Reafirma ainda o citado autor Hélio Gustavo Alves (2014, p. 132) que: “É

devido o auxílio-reclusão em todas as espécies de regimes e penas, bastando

somente o segurado estar preso e não ter recebimento de renda”.

Diante da realidade brasileira, em que o encarceramento promove a

qualificação ao crime, indaga-se sobre a real necessidade da prisão do devedor de

alimentos e se ela respeita o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade.

Alguns autores afirmam que sim, pois decorre da necessidade de equilibrar

a necessidade do alimentado e as possibilidades do alimentando. Pablo Stolze

segue esta linha.

Nessa ordem de ideia, entendo que a prisão civil decorrente de

inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar, face à

importância do interesse em tela (subsistência do alimentado), é medida

das mais salutares, senão necessária, por se considerar que boa parte dos

réus só cumpre a sua obrigação quando ameaçados pela ordem de prisão

(GAGLIANO, 2018).

Contudo, discorda-se do ilustríssimo doutrinador e jurista, pois qualquer

tipo de prisão ofende a dignidade da pessoa humana60, principalmente, aquela

60 A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na

autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por

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decorrente de dívida civil, pois a pessoa que é levada ao cárcere, nesse caso, não

cometeu nenhum crime, podendo a cobrança da dívida ser feita de outras formas

menos agressivas, diversas da prisão, realizada apenas para coagir ao pagamento.

Ademais, o fundamento de muitos doutrinadores para a não concessão do

auxílio-reclusão ao preso civil é que a prisão tem que ser por motivo criminal,

devendo, portanto, ser uma prisão-pena.

Novamente discorda-se, pois em momento algum cita-se na lei ou no

decreto, ou em qualquer outro instrumento normativo, sobre a exigência para a

concessão do benefício, de haver uma prisão criminal. A lei apenas exige que o

segurado se encontre “recolhido à prisão”61. Logo, se a lei não restringe, não pode

a doutrina restringir. Deve-se aplicar a lei buscando a máxima efetividade,

principalmente quando se trata de direitos sociais, que neste caso é abranger todo

tipo de prisão, independentemente de ser criminal ou civil, decorrente de prisão

pena ou cautelar, devendo, então, alcançar a prisão civil, a prisão condenatória, a

prisão preventiva, a prisão temporária e a prisão em flagrante.

Outro posicionamento que segue a linha de entendimento contrária é o

do Marcelo Leonardo Tavares, o qual entende que:

O auxílio-reclusão é incompatível com a prisão processual civil, Como

essa modalidade de prisão somente deve ser utilizada se a pessoa,

podendo não cumpre a obrigação alimentar, ficaria sem sentido, em

relação ao caráter coercitivo, manter o pagamento de benefício para os

parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar,

de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais,

mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos

(MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6 ed., São Paulo: Ed. Atlas, 1999, p.47). 61 “Art. 80 da Lei 8.213/91 O auxílio-reclusão será devido, nas mesmas condições da pensão por morte, aos

dependentes do segurado recolhido à prisão, que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo

de auxílio-doença, de aposentadoria ou de abono de permanência em serviço” (grifo nosso).

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dependentes, o que, em alguns casos, poderia servir de incentivo ao

próprio descumprimento da obrigação (TAVARES, 2007, p. 184).

A legislação previdenciária, não faz distinção sobre o motivo da prisão do

segurado para a concessão do benefício auxílio-reclusão, logo, é indiferente se o

recolhimento se deu por ordem judicial civil, penal ou medida judicial.

Ainda seguindo a linha contrária, tem-se os dizeres de Sérgio Pinto Martins

que leciona pela extinção do benefício, fundamentando seu posicionamento no

sentido de que, quem deve arcar com o desamparo da família do preso deve ser

ele mesmo, pois quem deu causa a tal situação foi o próprio preso, sendo um

benefício de contingência provocada.

Assim, afirma Martins:

Eis um benefício que deveria ser extinto, pois não é possível que a pessoa

fique presa e ainda a sociedade como um todo tenha de pagar um

benefício à família do preso, como se este tivesse falecido. De certa

forma, o preso é que deveria pagar por se encontrar nessa condição,

principalmente por roubo, furto, tráfico, estupro, homicídio, etc.

(MARTINS, 2003, p. 403).

Posicionamento que diverge do defendido neste artigo, pois, apesar de o

segurado ter dado causa ao risco social, não existe previsão legal para a negativa

do benefício ao segurado pelo simples fato do evento ter sido provocado,

posicionamento inclusive defendido pela jurisprudência, e, também, pelo fato do

benefício ser pago aos familiares do preso e não ao próprio preso, diferentemente

do auxílio-acidente, em que o beneficiário é o segurado.

“PROCESSO CIVIL. AGRAVO. ARTIGO 557, §1º, DO CÓDIGO DE

PROCESSO CIVIL. SOBRESTAMENTO DO FEITO AFASTADO. AUXÍLIO-

RECLUSÃO. (...) 6. A interpretação acerca do preenchimento dos

requisitos para a concessão de auxílio-reclusão deve ser restritiva,

considerando que este benefício se traduz em proteção social gerada

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pela prática de ato ilícito doloso ou culposo. (...) 7. Agravo Legal a que se

nega provimento”. (TRF 3ª Região – 7ª T. – AC 0043716-77.2013.4.03.9999

– Rel. Des. Federal Fausto de Sanctis – j. em 29.02.2016, e-DJF3 Judicial 1

Data: 09.03.2016)

Seguindo (2011, p. 299) a mesma linha da jurisprudência, tem-se a opinião

de Marisa Ferreira dos Santos, que afirma em seu livro: “a lei não distingue sobre

os motivos da prisão do segurado, de sorte que a prisão pode ser penal, civil ou

administrativa, cautelar ou não”.

Tem-se, ainda, o posicionamento de Simone Barbisan Fortes:

O encarceramento demandado pode ser de qualquer natureza, isto é, a

prisão pode ser penal, civil ou administrativa, cautelar ou não. Pode,

assim, a título de exemplificativo, o encarceramento decorrer de prisão

em flagrante, prisão provisória, prisão decorrente de pronúncia, prisão

decorrente de sentença penal transitada em julgado, prisão decorrente

de dívida alimentar, etc. (FORTES, 2005, p. 146).

No mesmo sentido, José Antonio da Silva afirma que:

Não importa para a Previdência Social o motivo da prisão do segurado,

e tampouco se o recolhimento à prisão se deu por sanção penal, por

medida judicial cautelar ou provisória, ou administrativa, ou ainda, se por

determinação judicial civil (grifo nosso), (SILVA, 2009).

Wagner Balera admite que o preceito constitucional utiliza a expressão

“reclusão” de forma genérica, não no sentido técnico da palavra, bem como,

também acertadamente, admite a concessão do benefício em estudo no caso de

prisão provisória, prisão civil e administrativa. Veja-se:

Quando o preceito constitucional emprega a expressão “reclusão” é de

se entender que não fez em sentido técnico. Deveras, mesmo a prisão

simples ou a detenção configuram o fato que dá origem ao benefício. A

prisão provisória, a prisão civil por dívida de alimentos, a do depositário

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infiel ou a prisão administrativa, são fatos geradores do benefício

(BALERA, 2003, p. 291).

Para Fábio Zambitte Ibrahim (2010, p. 700) “por mais grave que tenha sido

o crime, não há, necessariamente, perda do benefício pelo segurado; salvo,

evidentemente, fraude praticada contra a previdência social na obtenção do

benefício”.

Traz-se, ainda, o raciocínio de Miriam Horvath afirmando que:

[...] não se discute no seguro social se o dependente deu causa ao risco.

Comparando com outro benefício seria o mesmo que pedir para o

beneficiário do auxílio-acidente comprovasse que não deu causa ao

acidente que o fez requerer o benefício (HORVATH, 2005, p. 108).

Em idêntica posição, defendendo a aplicação do auxílio-reclusão a

qualquer espécie de prisão, independentemente se criminal, civil, condenatória ou

provisória, a Doutora Alessandra Pacheco (2018, p. 49) ensina que: “a lei não

distingue sobre os motivos da prisão do segurado, podendo ser penal, civil ou

administrativa, cautelar ou não”

Logo, pode-se concluir que, em qualquer tipo de prisão o benefício é

devido, salvo em casos de crimes cometidos com fraude à previdência social.

Ibrahim (2010, p. 702) ainda defende que: “qualquer decisão judicial que

determine a prisão do segurado, ainda que temporária, dará direito ao benefício”.

Então, o importante é o segurado encontrar-se preso, em regime fechado,

não interessando qual o motivo que deu causa a seu encarceramento.

Outro ponto importante defendido e explicitado por Marcelino e

Theodoro é que, “como o risco não é a prisão, o motivo desta, para fins

previdenciários, pouco importa. Não é relevante para a concessão do benefício, o

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fato do delito que ensejou a reclusão do segurado ter sido grave ou leve, doloso

ou culposo” (2019, p. 96)62

Pois veja-se, deve-se pontuar que a relevância aqui é falta de rendimento

pelos dependentes do segurado, logo, qualquer espécie de prisão que

impossibilite o recebimento desse rendimento pelos agentes envolvidos é motivo

para a solicitação do benefício auxílio-reclusão, inclusive a prisão civil.

Partindo dessa premissa, a situação do preso civil por não pagamento de

pensão alimentícia encontra-se abrangida, também, pela proteção previdenciária,

pois quando a Previdência Social enumerou os benefícios a serem concedidos, não

associou sua concessão ao fator gerador deles.

Realmente, pode-se afirmar que a expressão “auxílio-reclusão” não foi

utilizada de forma técnica, pois o referido benefício pode ser concedido para casos

de prisão simples ou de detenção, demonstrando a impropriedade do termo.63

Diante do exposto, reafirma-se a possibilidade de concessão do benefício

do auxílio-reclusão ao preso civil, com fundamento na Constituição Federal de

1988, art. nº 5º, II64, segundo o qual alguém só estará obrigado a fazer ou deixar

de fazer algo por motivo de lei e também “na regra de clausura, em que tudo que

não estiver juridicamente proibido ou obrigado, está juridicamente permitido”65.

62 Cfr. ALCÂNTARA, Marcelino Alves de; AGOSTINHO, Theodoro Vicente. Auxílio-reclusão: teoria e

prática. Curitiba: Juruá, 2019, p. 96. 63 ALCÂNTARA, Marcelino Alves de; AGOSTINHO, Theodoro Vicente. Auxílio-reclusão: teoria e prática.

Curitiba: Juruá, 2019, p. 245. 64 CF/88. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,

à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei; 65 ADPF nº 132-RJ. Voto do Ministro Ayres Brito, p. 27. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: 02 jun., 2018.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Assim, deixar desamparada a família do segurado preso seria malograr o

binômio contribuição-retribuição, típico dos seguros sociais, quebrando a lógica

do sistema previdenciário brasileiro, que ampara os segurados contra os riscos

sociais.

Marcelino Alcântara e Theodoro Agostinho trazem uma interpelação

bastante interessante e esclarecedora sobre a concessão ou não do benefício

auxílio-reclusão ao preso civil. Veja-se:

Ora, é o que acontece in casu. O segurado que é recolhido à prisão, tendo

por origem o descumprimento de uma obrigação alimentar, em que

ponto (da impossibilidade de trabalhar – e, consequentemente – gerar

rendas) se difere de um segurado preso em face de um ilícito penal? Ao

nosso entender nada.

Assim, seja em decorrência de um ilícito de natureza civil ou penal, o

segurado que encontrar-se recluso, por consequência, não pode

trabalhar. Esse é o ponto fulcral para a análise e concessão do benefício

(ALCÂNTARA; AGOSTINHO, ano, 167).

Fortalece tal posicionamento, decisão proferida pelo STF no HC nº 100104

da 2ª Turma, que:

O afastamento do trabalho e efeito lógico da prisão, não podendo o

paciente basear-se em tal fato para alegar a ausência de efeito prático da

sua prisão, mormente quando já lhe foi conferida oportunidade para

pagar sua dívida em liberdade”. HC 100104 – Relª. Minª. Ellen Gracie – 2ª

T. – j. em 18.08.2009 – Dje – 171 – Divulg. 10.09.2009 – Public. 11.09.2009

– v. 2373-02 – p. 345 RT – v. 98 – n. 890 – 2009 – p. 165-169).

Então, fica claro que deve haver preocupação com a “prisão” que

impossibilita o trabalho, e não com as “espécies de prisão”, pois todo e qualquer

tipo de prisão admite o requerimento do benefício auxílio-reclusão, desde que

preenchidos os requisitos legais.

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Enfim, se caracterizada a impraticabilidade de trabalho/atividade

remunerada pelo preso civil devedor de alimentos, existe o risco social à família do

segurado, o que possibilita a solicitação do benefício auxílio-reclusão.

Pode-se concluir, diante de todo o cenário, que o benefício auxílio-

reclusão é um direito do preso devedor de pensão alimentícia – preso civil,

independentemente do tipo de prisão, exigindo apenas os requisitos legais

mínimos para a sua concessão.

Considerações finais

O presente artigo reconhece que o preso, independentemente da espécie

de sua prisão, seja ela civil, penal, administrativa, desde que preenchido os

requisitos legais mínimos previdenciário, tem direito ao auxílio-reclusão, benefício

imensamente importante para o sustento das famílias do detento. Desta forma,

será respeitado um dos principais princípios da Constituição de 1988, que é o

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O encarcerado sempre deverá ter

respeitada a sua dignidade, seja na esfera previdenciária, seja na esfera dos direitos

sociais e humanos!

Portanto, com fundamento na Constituição Federal de 1988, não cabe ao

intérprete diminuir aquilo que a Constituição prescreveu, o benefício auxílio-

reclusão deve ser concedido às prisões cíveis decorrentes de não pagamento da

pensão alimentícia – prisão civil, pois como não existe previsão jurídica específica,

adequada e proporcional proibindo a concessão do benefício a esta classe de

preso, entende-se possível sua concessão. Ademais, se não é proibido, é permitido,

com fundamento no art. nº 5º, II da CF/88.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Apesar de parte da doutrina não concordar com o benefício em questão,

em face de um estigma social, é de suma importância a manutenção da garantia

constitucional de concessão do auxílio-reclusão.

Fundamentado nestas considerações, conclui-se que o benefício do

auxílio-reclusão deve ser concedido ao preso civil devedor de alimentos.

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A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE NA CÂMARA DOS DEPUTADOS – UMA

ANÁLISE DA CONTRIBUIÇÃO SOCIAL NA COMISSÃO DE LEGISLAÇÃO

PARTICIPATIVA EM 2018

Aldo Matos Moreno

Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário

IESB; especialista em Direito Público; especialista em Desenvolvimento Gerencial;

advogado.

Ulisses Borges de Resende

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (unB); professor da graduação

e da Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios do Centro

Universitário IESB; advogado.

Resumo

O artigo tem por escopo analisar a participação da sociedade na Câmara dos Deputados,

em especial na Comissão de Legislação Participativa- CLP, em 2018. A transparência das

informações e a participação social nas decisões políticas estão cada vez mais presentes

em países considerados democráticos. Nesse sentido, o que se busca desvendar é se a

CLP, uma das principais comissões permanentes da Câmara, vem cumprindo o seu

propósito e sendo responsiva às demandas sociais que se apresentam, garantindo, dessa

forma, a participação e a vontade externada pela sociedade brasileira. Para tanto, fez-se

necessária a utilização de dados concernentes ao número de sugestões legislativas

apresentadas, ao quantitativo de entidades civis que apresentaram demandas, à

participação de parlamentares em audiências públicas e, principalmente, à efetividade

dessa participação social, levando-se em consideração os projetos oriundos da CLP que

foram transformados em norma legal. Também foram utilizados para tal propósito, os

ensinamentos de alguns autores considerados relevantes para a completude do estudo,

os quais corroboram para a construção de um pensamento e, por consequência, de um

comportamento político-social cada vez mais condizente com as reais necessidades do

povo brasileiro.

Palavras-chave: sociedade, participação, democracia, comissão, efetividade.

Abstract

The purpose of this article is to analyze the participation of society in Câmara dos

Deputados [Chamber of Deputies], especially in the Comissão de Legislação Participativa

– CLP [Commission for Participative Legislation – CLP], in 2018. Transparency of

information and social participation in political decisions are increasingly present in

countries that are considered democratic. In this sense, the aim is to find out if the CLP,

one of the main standing committees of the Chamber, is fulfilling its purpose and being

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responsive to the social demands that are presented, thus ensuring the participation and

willingness expressed by Brazilian society. Therefore, it was necessary to use data referring

to the number of legislative suggestions submitted, the number of civil entities that

submitted demands, the parliamentarians’ participation in public hearings and, especially,

the effectiveness of this social participation, taking into account the projects from the CLP

that were transformed into legal norm. Also for this purpose, the teachings of some

authors considered relevant to the completeness of the study were used, which

corroborate for the construction of a thought and, consequently, a socio-political behavior

increasingly compatible with the real needs of Brazilian people.

Key words: society, participation, democracy, committee, efectiveness.

Introdução

O presente artigo tem por objetivo analisar sinteticamente, no âmbito da

Câmara dos Deputados - CD, a real contribuição da sociedade na construção da

legislação do País, em especial aquelas realizadas no âmbito da Comissão de

Legislação Participativa – CLP, que geralmente remetem a direitos sociais, bem

como verificar a resposta do Parlamento às demandas apresentadas.

Ademais, entende-se pertinente elucidar as principais dificuldades,

atualmente enfrentadas, para a consecução desse propósito.

As experiências vivenciadas no Parlamento, pelo autor deste trabalho,

formaram a convicção necessária para trazer à baila a discussão referente à

efetividade da participação social na construção do processo legislativo na Câmara

dos Deputados, com ênfase nas sugestões legislativas apresentadas pela

sociedade à Comissão de Legislação Participativa – CLP.

Dessa forma, verifica-se a importância de trazer, em caráter preliminar,

algumas indagações deveras relevantes para a consecução do objetivo aqui

proposto, a exemplo: o Parlamento brasileiro, em uma era de crescente abertura

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das instituições governamentais à sociedade, está preparado para ser realmente

responsivo? O avanço tecnológico vem contribuindo para uma maior participação

social? A Comissão de Legislação Participativa tem alcançado sua finalidade

precípua de atender as demandas da sociedade civil organizada?

No sentido de avançar no tema proposto, o trabalho foi desenvolvido em

tópicos que se complementam, na tentativa de construir, com o respaldo de

estudiosos, de informações documentais e, ainda, do conhecimento empírico

adquirido pelo autor deste artigo, um pensamento uniforme e razoavelmente

descritivo da atuação dos diversos atores na construção de direitos sociais no

âmbito da Câmara dos Deputados.

Para alcançar tal desiderato, em poucas laudas, pretende-se, ainda que de

forma resumida, registrar alguns conceitos que parecem essenciais para a melhor

compreensão do tema a ser analisado, utilizando-se pesquisa bibliográfica e

documental.

Não se pretende esgotar o assunto neste artigo, haja vista a matéria ser

merecedora de um estudo mais detalhado e rico em informações, inclusive com

demonstração das hipóteses aventadas.

1. Poder Legislativo brasileiro e a Câmara dos Deputados

Com o objetivo de situar melhor o leitor deste estudo, considera-se

pertinente fazer uma pequena exposição do que seja o Poder Legislativo brasileiro

e o papel exercido pela Câmara dos Deputados - CD.

Nesse intuito, o Curso de Regimento Interno – Conhecendo o Legislativo

– (CARNEIRO; DOS SANTOS; NÓBREGA NETTO 2016, p. 29) ensina que “o Poder

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Legislativo federal é exercido pelo Congresso Nacional, composto por duas Casas

Legislativas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal”.

Segundo consta do Portal da Câmara dos Deputados – Papel e História da

Câmara, pode-se notar a relevância do Legislativo, in verbis:

O Poder Legislativo cumpre papel imprescindível para o País, pois

desempenha três funções primordiais para a consolidação da

democracia: representar o povo brasileiro, legislar sobre os assuntos de

interesse nacional e fiscalizar a aplicação dos recursos públicos.

Nesse contexto, a Câmara dos Deputados, como representante do povo

brasileiro, discute e vota propostas referentes às áreas econômicas e

sociais, como educação, saúde, transporte, habitação, entre outras, e

também fiscaliza o emprego, pelos Poderes da União, dos recursos

arrecadados da população com o pagamento de tributos (grifo nosso)

(CÂMARA DOS DEPUTADOS)

Não obstante o reconhecimento das funções primordiais do Poder

Legislativo de legislar e de fiscalizar, deve-se atentar para uma outra importante

atribuição, praticada principalmente no âmbito das Comissões, que é o debate de

assuntos relevantes e de interesse do povo brasileiro, conforme consta da obra

“Curso de Regimento Interno – Conhecendo o Legislativo”, in verbis:

Cabe a ele, por exemplo, debater temas importantes, o que, muitas vezes,

não necessariamente resulta na inserção de uma nova norma no

ordenamento jurídico ou em uma fiscalização de determinada entidade

ou agente público, o que denota atuação inerente ao exercício da

atividade parlamentar (grifo nosso) (CARNEIRO; DOS SANTOS;

NÓBREGA NETTO, 2016, p. 29.

Esses debates fazem parte do Estado Democrático, podendo ocorrer por

meio dos diversos tipos de reuniões que ocorrem semanalmente nas comissões

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parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a exemplo de:

audiências públicas, consultas públicas, seminários, mesas redondas etc.

Por essa razão, entende-se pertinente trazer à discussão o significado de

Estado Democrático.

2. Estado Democrático e Democracia

Com esse propósito, faz-se mister desvendar o que é um Estado

Democrático e pontuar, de forma taxativa, o significado de democracia.

Segundo Dallari (2013, p. 145), “[...] a base do conceito de Estado

Democrático é, sem dúvida, a noção de governo do povo, revelada pela própria

etimologia da palavra democracia [...].” O referido autor assevera, ainda, in verbis:

Aristóteles faz a classificação dos governos, dizendo que o governo pode

caber a um só indivíduo, a um grupo, ou a todo o povo. Mas ele próprio

já esclarecera que o nome de cidadão só se deveria dar com propriedade

àqueles que tivessem parte na autoridade deliberativa e na autoridade

judiciária (grifo nosso) ((ARISTÓTELES apud DALLARI, 2013a, p. 146,)

Acrescente-se, também, em relação ao Estado Democrático, a afirmação

trazida por Dallari (2013b, p. 152), o qual revela, in verbis:

Sendo o Estado Democrático aquele em que o próprio povo governa, é

evidente que se coloca o problema de estabelecimento dos meios para

que o povo possa externar sua vontade. Sobretudo nos dias atuais, em

que a regra são colégios eleitorais numerosíssimos e as decisões de

interesse público muito frequentes, exigindo uma intensa atividade

legislativa, é difícil quase absurdo mesmo, pensar na hipótese de

constantes manifestações do povo, para que se saiba rapidamente qual

a sua vontade (grifo nosso) (DALLARI, 2013b, p. 152).

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Ora, é indubitável a importância da participação do povo nas decisões do

País. Além disso, os meios de a sociedade participar desses processos estão ficando

cada vez mais avançados, inclusive pelas novas tecnologias da informação - TI, o

que minimiza dificuldades de acesso, embora essa, aparentemente, não seja a

“barreira” mais grave para a ampliação e a efetivação da contribuição da sociedade

na construção das diretrizes governamentais. Acrescente-se, por oportuno, que a

omissão do cidadão nas decisões políticas certamente prejudicaria o

fortalecimento da democracia participativa, o que se tornaria um entrave a ser

superado.

Outrossim, entende-se pertinente trabalhar o conceito do termo

democracia. Para tanto, faz-se apropriada a definição da Câmara dos Deputados,

na obra “A Câmara e o Cidadão – Um guia para conhecer e participar do processo

legislativo” (2011, p. 11), no qual ensina, in verbis:

A democracia é um regime de governo em que as pessoas têm a

oportunidade e o poder de participar das importantes decisões políticas.

Essa participação pode ser de forma direta ou indireta, sendo mais

comum a forma indireta, através dos representantes que escolhemos por

meio do voto. Esse regime se baseia na vontade da maioria, sem esquecer

o respeito aos direitos de cada pessoa e dos grupos que são minorias.

Para que a democracia funcione bem, a participação do povo é

fundamental. Se é o povo que governa, por meio de seus representantes,

ele precisa participar e estar atento a tudo que acontece (grifo nosso)

(CÂMARA (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2011).

A definição supra, referente à democracia, vem ao encontro do que se

pretende enfrentar no presente estudo, ou seja, se o cidadão está participando das

decisões políticas da Câmara dos Deputados, ou não, e, principalmente, se essa

possível participação é efetiva e auxilia na construção de normas mais condizentes

com a necessidade da sociedade.

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3. Das possibilidades de participação popular no processo legislativo,

previstas na Legislação brasileira

Em relação à legislação, deve-se registrar que o parágrafo único do artigo

primeiro da Carta Magna dispõe sobre a soberania popular e da possibilidade de

exercício desse poder de forma direta, consoante segue:

Art. 1º .................................................................................................

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio

de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

(CF, p.9)

Além disso, a Constituição Federal – CF, de 1988, disciplina as formas de

exercício da soberania popular, por meio do plebiscito, do referendo e da iniciativa

popular, consoante incisos I a III do artigo 14 da CF. (grifo nosso) (CF, p.13)

O parágrafo 2º do artigo 61 da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre

a iniciativa popular para apresentação de projeto de lei, in verbis:

Art. 61...............................................................................

§ 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara

dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento

do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com

não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles

(grifo nosso) (BRASIL, CF/1988).

No que concerne ao acima exposto, vale esclarecer que a página do

Tribunal Superior Eleitoral - TSE informa que “o Plebiscito e o referendo são

consultas ao povo para decidir sobre matéria de relevância para a nação em

questões de natureza constitucional, legislativa ou administrativa”, acrescentando:

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A principal distinção entre eles é a de que o plebiscito é convocado

previamente à criação do ato legislativo ou administrativo que trate do

assunto em pauta, e o referendo é convocado posteriormente, cabendo

ao povo ratificar ou rejeitar a proposta. Ambos estão previstos no art. 14

da Constituição Federal e regulamentados pela Lei nº 9.709, de 18 de

novembro de 1998. (TSE/Eleições/Plebiscitos e referendos, acesso em 27

de jun. de 2019)

Em relação ao número de projetos de iniciativa popular que se tornaram

leis, pode-se informar que até o presente momento foram sancionados quatro

projetos, consoante noticiado pela Agência Senado:

A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135 de 2010) é o exemplo mais

conhecido de projeto de lei de iniciativa popular transformado em lei.

Outros exemplos são a Lei Daniella Perez (Lei 8.930/1994), a Lei de

Combate à Compra de Votos (Lei 9.840/1999) e a Lei do Fundo Nacional

de Habitação de Interesse Social (Lei 11.124/2005) (Senado Federal, 2017,

acesso em 10/07/2019) (grifo nosso)

Percebe-se, assim, que a Constituição brasileira e a legislação

infraconstitucional prezam pelo modelo de democracia semidireta, na qual existe

a atuação dos representantes e, também, da participação direta do povo nas

decisões do País. Apesar disso, nota-se uma participação singela do cidadão

brasileiro na apresentação de projetos de iniciativa popular, talvez provocada pelas

dificuldades constantes dos requisitos do §2 do artigo 61 da CF, acima

mencionado.

Acrescente-se que, na mesma reportagem do Senado Notícia, veiculada

em 20 de novembro de 2017, consta que os projetos de iniciativa popular poderão

receber apoio dos cidadãos por meio de assinatura eletrônica, consoante PLS

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267/2016, o que, em caso de aprovação, irá facilitar a utilização desse importante

instrumento de participação do cidadão.

Porém, é cediço que existem outras formas de a sociedade participar das

decisões do País, como é o caso do processo legislativo na Câmara dos Deputados,

onde o cidadão encontra várias ferramentas de participação, o que remete ao

estudo da Comissão de Legislação Participativa – CLP e à possibilidade de

apresentação de sugestões de proposições legislativas. Porém, uma relevante

questão ainda é merecedora de reflexão, pois não se pode falar em participação

somente aparente, deve-se esclarecer sobre a existência de efetividade da

participação do cidadão, no contexto do que se compreende como “Parlamento

Aberto”, que será explicitado mais à frente.

No que tange à soberania e à construção de um processo legiferante

legítimo, destaca-se a seguinte assertiva de Habermas (2003, p. 122):

Certamente a fonte de toda legitimidade está no processo democrático

legiferante; e esta apela, por seu turno, para o princípio da soberania do

povo. Todavia, o modo como o positivismo jurídico introduz esse

princípio não preserva conteúdo moral independente dos direitos

subjetivos – a proteção da liberdade individual[...]. (grifo nosso).

(HABERMAS, 2003, p. 122).

4. Open Government Partnership - OGP e o Parlamento Brasileiro

Segundo consta do sítio da Controladoria Geral da União - CGU, que aduz

a um programa para a construção de um País mais transparente, com acesso à

informação e à participação, “[...]o Brasil já implementou inúmeras iniciativas de

governo aberto, que estão em diferentes estágios de maturidade. Algumas

representam mudanças legais e administrativas que transformaram

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significativamente a gestão púbica do País [...]”. Nesse sentido, deve-se registrar,

in verbis:

A Parceria para Governo Aberto (em inglês, Open Government

Partnership – OGP) é uma iniciativa internacional que pretende difundir

e incentivar globalmente práticas governamentais relacionadas à

transparência dos governos, ao acesso à informação pública e à

participação social. A OGP foi lançada em 20 de setembro de 2011 e o

Brasil é um dos oito países fundadores da Parceria, sendo reconhecido

como protagonista no cenário internacional no que diz respeito ao tema.

[...]As ações relativas à OGP são operacionalizadas por meio de um “Plano

de Ação Nacional”. Nesse documento, cada país participante deve

especificar quais são os seus compromissos perante a Parceria e delimitar

as estratégias para implementá-los. Os compromissos são executados

por um ou mais órgãos e devem estar de acordo com os princípios de

Governo Aberto. (CGU, acesso em 27 jun. 2019) (grifo nosso)

A página do Open Government Partnership revela que o Brasil está na fase

de implementação de onze compromissos do plano de ação, previstos para os

anos de 2018 a 2020. Em relação ao Plano Nacional de Ação, vale registrar que:

Este plano de ação apresenta compromissos relacionados ao governo

aberto local, dados abertos, ciência aberta, mudanças climáticas e água,

transparência legislativa e controle social para políticas nutricionais.

Compromisso 7: Aumentar a participação de vários segmentos sociais no

processo legislativo (desenvolvimento de leis) através de esforços

integrados para aumentar a transparência, ajustar a linguagem, a

comunicação e promover a inovação (grifo nosso)

(OPENGOVPARTNERSHIP).

Essa Parceria para Governo Aberto encontrou certa “simpatia” da Câmara

dos Deputados, que vem demonstrando, aparentemente, interesse em garantir

maior transparência e participação da sociedade no processo legislativo.

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Reforçando a ideia supra, traz-se à baila excerto do artigo “A Política de

Parlamento Aberto: Uma Análise Crítica da Câmara Federal Brasileira” no qual é

registrado, in verbis:

[...]o artigo pretende mostrar, do ponto de vista da burocracia (e de seu

crescimento), mecanismos utilizados segundo o perfil transformador em

que se encaixaria o parlamento brasileiro, de acordo com o conceito de

Polsby (1975). De acordo com este autor, o parlamento transformador

seria aquele cujo papel nas fases do processo legislativo seria relevante

(por meio de lideranças, comissões, plenário e demais instâncias passíveis

de afetar mesmo indiretamente o teor da proposta legislativa, tais como

os canais de participação) independente da origem da proposta

legislativa. [...]Os fenômenos do open government – da transparência,

participação e accountability – vêm no bojo da discussão dos dilemas da

representação e da necessidade ou não de maior participação política.

Embora a tensão entre democracia representativa e participativa já seja

antiga, tomou novas proporções na contemporaneidade em função da

maior complexificação social em um contexto de onipresença das novas

tecnologias de informação e comunicação, as TICs. (grifo nosso) (POLSBY

apud FARIA; REHBEIN 2015a, p. 4).

Em relação a participação social no Parlamento brasileiro, os

supramencionados autores asseveram:

Uma das instituições que fazem parte desse movimento no Brasil é o seu

parlamento, ao adaptar tal política aos processos próprios do legislativo,

movimento denominado de Parlamento Aberto. O país faz parte da

Declaração para a Abertura Parlamentar, assinado em 2012, por 53 países,

com vistas a incentivar a abertura de seus parlamentos por meio do

acesso à informação sobre a atividade parlamentar, promovendo

transparência e facilitando processos de interação da sociedade com o

parlamento (grifo nosso) (FARIA; REHBEIN, 2015b, p. 3)

Ora, percebe-se pela assertiva dos autores acima destacados, que o

Parlamento brasileiro adotou a sistemática de participação da sociedade e

transparência de dados, o que, por si só, é um avanço na democracia do Brasil.

Essa “guinada” foi proveniente da regulamentação do direito constitucional

do acesso à informação, objeto da Lei n. 12.527, de 2011, que entrou em vigor em

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maio de 2012, “criando mecanismos de acesso às informações públicas” tanto para

pessoas físicas quanto jurídicas, valendo para as três esferas de poder, bem como

às novas tecnologias, que facilitam sobremaneira a aproximação da sociedade com

as instâncias decisórias. (Sítio do Governo Federal – Acesso à informação, acesso

em 12/07/2019)

No entanto, ainda deve ser enfrentada a questão referente à efetividade da

participação social no processo legiferante, pois já não é suficiente um sistema de

democracia participativa aparentemente evoluído, faz-se premente um

Parlamento realmente responsivo às questões sociais.

5. As Comissões Parlamentares e suas Competências

Por oportuno, como se pretende analisar a competência e o resultado

alcançado pela Comissão de Legislação Participativa - CLP da Câmara dos

Deputados, faz-se relevante um sucinto esclarecimento a respeito do que sejam as

comissões.

Nesse sentido, pode-se afirmar que as comissões parlamentares são

pequenos órgãos do Parlamento, que buscam retratar, proporcionalmente, a

composição partidária das respectivas Casas Legislativas.

Em relação às comissões, o artigo 58 da Constituição Federal de 1988 elenca

os tipos de comissões e a forma de sua constituição, revelando, in verbis:

Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes

e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no

respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. (Constituição

da República Federativa do Brasil, 53ª Edição, p. 36, 2019)

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§ 1º Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto

quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos

blocos parlamentares que participam da respectiva Casa (BRASIL, CF/88).

Na obra intitulada “Curso de Regimento Interno da Câmara dos Deputados

– Conhecendo o Legislativo” (Carneiro; Santos; Gerônimo Netto. 2016), o Capítulo

VI (Das Comissões) revela que as comissões desempenham papel primordial para

o aprimoramento da democracia brasileira.

Os supramencionados autores, ao tratarem das funções das comissões, bem

como das inovações trazidas pela CF de 1988, esclarecem, em relação a esses

colegiados, in verbis:

Essa valorização deveu-se, principalmente, à possibilidade de concluírem,

em determinadas circunstâncias, o processo legislativo referente aos

projetos de lei, sem a necessidade da apreciação do Plenário das Casas

Legislativas, o que se conhece como poder conclusivo das comissões

(BRASIL, CF/1988).

As Comissões da Câmara dos Deputados são órgãos colegiados que

possuem função importante no processo legislativo, podendo ser divididas em

comissões permanentes – CP, atualmente em número de 25, e comissões

temporárias (comissão especiais, de Inquérito e externas), até 19 de julho de 2019,

em número de 22. (Regimento Interno da CD - RICA, 2017, p. 40)

Para o presente estudo, o interesse maior é referente às comissões

permanentes, como é o caso da CLP, uma comissão singular em suas

competências, a qual direciona suas atenções às sugestões de proposições

apresentadas pela sociedade civil organizada.

Dentre as possibilidades de participação da sociedade na Câmara dos

Deputados, não pode haver dúvida que a CLP se apresenta como um

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relevantíssimo canal para a sociedade levar as suas demandas e ser ouvida de

maneira direta por autoridades, especialistas, servidores e outros, fazendo-se,

portanto, necessário conhecer as competências dessa comissão.

6. A Comissão de Legislação Participativa – CLP

Em relação à Comissão de Legislação Participativa – CLP, o Regimento

Interno da Câmara dos Deputados - RICD dispõe:

XII - Comissão de Legislação Participativa:

a) sugestões de iniciativa legislativa apresentadas por associações e

órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade

civil, exceto Partidos Políticos;

b) pareceres técnicos, exposições e propostas oriundas de entidades

científicas e culturais e de qualquer das entidades mencionadas na

alínea a deste inciso; (grifo nosso) (RI da CD, 2017, p. 52, Edições

Câmara)

Ademais, percebe-se que a participação da sociedade é disciplinada pelo

artigo 254 do RICD, nos seguintes termos:

Art. 254. A participação da sociedade civil poderá, ainda, ser exercida

mediante o oferecimento de sugestões de iniciativa legislativa, de

pareceres técnicos, de exposições e propostas oriundas de entidades

científicas e culturais e de qualquer das entidades mencionadas na alínea

a do inciso XII do art. 32.

§ 1º As sugestões de iniciativa legislativa que, observado o disposto no

inciso I do artigo 253, receberem parecer favorável da Comissão de

Legislação Participativa serão transformadas em proposição legislativa

de sua iniciativa, que será encaminhada à Mesa para tramitação.

§ 2º As sugestões que receberem parecer contrário da Comissão de

Legislação Participativa serão encaminhadas ao arquivo. (grifo nosso) (RI

da CD, 2017, p. 160 e 161)

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Infere-se, do acima exposto, que a CLP é um órgão que proporciona a

participação da sociedade na chamada “Casa do povo”, tanto para debater

assuntos relevantes para o cidadão, por meio de audiências públicas, seminários e

outros eventos, quanto para a construção da legislação do País, por meio de

sugestões de projeto de lei, proposta de emenda à Constituição, projeto de

resolução da CD e outras.

Soma-se a essa afirmação, o conteúdo da Cartilha da CLP, a qual, por sua

vez, demonstra a importância da participação social na construção da legislação

pátria, elencando o seguinte:

[...]Assegura a toda a sociedade um espaço legítimo para defesa e

discussão de Sugestões Legislativas, dentro da esfera legal. Para que essa

iniciativa seja bem-sucedida, é necessário que a sociedade usufrua deste

espaço, apresentando suas sugestões.[...]

QUEM PODE APRESENTAR SUGESTÕES LEGISLATIVAS: Organizações

não-governamentais (ONGs); - Associações e órgãos de classe; -

Sindicatos; - Entidades da sociedade civil, exceto partidos políticos; -

Órgãos e entidades de administração direta e indireta, desde que tenham

participação paritária da sociedade civil.

[...]O Projeto de Lei de autoria da Comissão de Legislação Participativa

depende de análise do Plenário da Casa, mesmo que já tenha sido

aprovado pelas comissões temáticas constantes do despacho da

Secretaria-Geral da Mesa. Dessa forma, quando aprovado nas comissões,

é encaminhado à Mesa para ser incluído na Ordem do Dia do Plenário da

Câmara dos Deputados para discussão e votação. Se aprovada, a

proposição é remetida ao Senado Federal para deliberação. Se for

emendada no Senado, ela retornará à Câmara dos Deputados para

apreciação das emendas. (grifo nosso) (Cartilha da Comissão – O Menor

Caminho Entre os Interesses da População e a Câmara dos Deputados,

2018, p. 8, 9, 14 e 15).

Observa-se pelo supracitado excerto da Cartilha que, após a sugestão

legislativa ser aprovada pela CLP, essa será encaminhada na forma de proposição

às demais comissões pertinentes para analisar o tema. Em caso de aprovação pelas

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comissões temáticas, a proposição, obrigatoriamente, terá que ser encaminhada à

Mesa para ser incluída na Ordem do Dia do Plenário, dependendo, portanto, da

vontade política do Presidente da Câmara para pautar a matéria.

Inclusive, essa é uma das principais prerrogativas do Presidente da

Câmara dos Deputados, conforme consta da página daquela instituição, in verbis:

O Presidente é o representante da Câmara dos Deputados quando ela se

pronuncia coletivamente e o supervisor dos seus trabalhos e da sua

ordem. Sua principal competência é definir a pauta de votações do

Plenário (CÂMARA DOS DEPUTADOS).

Impende mencionar que, no Regulamento Interno da Comissão, constante

da Cartilha da CLP, o §1º do artigo 7º possibilita ao Presidente daquele órgão

facultar a palavra, presencial ou virtualmente, ao representante legal da entidade,

conforme abaixo demonstrado:

Art. 7º.................................................................................................

§ 1º O Presidente da Comissão poderá facultar a palavra, presencial ou

virtualmente, ao representante legal da entidade ou procurador

especificamente designado para defesa de sua sugestão na reunião

ordinária correspondente, pelo prazo de 5 (cinco) minutos, prorrogável

uma única vez por igual período. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018, p.

22).

Faz-se necessário esclarecer que a CLP é a única comissão da Câmara dos

Deputados que possibilita esse tipo de participação direta de representantes de

entidades sociais em reunião deliberativa ordinária, demonstrando, uma vez mais,

que aquela comissão trabalha em prol da participação do povo brasileiro no

processo legislativo.

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No Relatório de Atividades, produzido pela CLP no ano de 2016, foram

apresentados alguns depoimentos de ex-presidentes daquela Comissão

Permanente, bem como do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Deputado

Aécio Neves, que confirmam a importância da CLP para o povo brasileiro, dos quais

se destacam:

Aécio Neves (PSDB/MG) - Presidente da Câmara dos Deputados quando

a CLP foi criada, em 2001.

[...] Naquela ocasião, com a criação da Comissão de Legislação

Participativa, tomou-se uma decisão suprapartidária em favor da

sociedade, da cidadania e de seus canais representativos. São quinze

anos de história de sucesso da CLP, que se inspirou em exitosa

experiência do Parlamento europeu. Lá, a Comissão de Petições permite

uma relação direta, aberta e transparente na comunidade europeia entre

os países-membros e suas entidades representativas. Aqui, nossa

Comissão atua como canal para que a sociedade organizada, em suas

variadas expressões, possa interagir com o processo legislativo. Cabe a

ela selecionar, triar e encaminhar essas contribuições. Vivemos, de forma

global, momentos de crise na democracia representativa. Há que se

resgatar a boa política e revesti-la de significado para os que anseiam por

maior participação. (grifo nosso)

Luiza Erundina (PSOL/SP) - Presidiu a CLP em 2001

Criada em 2001, a Comissão de Legislação Participativa (CLP) abriu um

importante espaço de interlocução com o povo no Poder Legislativo.

Tanto que a iniciativa foi reproduzida em outras casas, entre as quais, 11

assembleias estaduais e 36 câmaras municipais. Basta o cidadão se

organizar por meio de uma entidade da sociedade civil para que possa

encaminhar propostas. Trata-se, mais do que uma comissão, de um

fórum por meio do qual a sociedade pode intervir diretamente no

processo de produção de leis. Mais de 550 encontros foram realizados

pela CLP, incluídas aí reuniões deliberativas, seminários, audiências

públicas. Mais de 1,1 mil sugestões foram recebidas, enquanto 474 foram

aprovadas para tramitar. Três sugestões se tornaram lei. Ao contrário do

que temem alguns parlamentares, a divisão do poder com o povo só tem

a contribuir para que a democracia representativa se legitime e se

fortaleça. Ainda assim, foram muitas as investidas para enfraquecer a

comissão, como tentativas de incorporá-la a outras comissões;

impedimento de apresentação de emendas ao orçamento da União;

esvaziamento das reuniões, enfim, manobras como a que nos deparamos

hoje, ao completarmos 15 anos, com a decisão da Presidência da Câmara

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pela criação de uma Secretaria de Transparência Legislativa e Interação

com a Sociedade, cuja estrutura vai de encontro com as prerrogativas da

CLP. Além de contribuir para mobilizar a participação da sociedade civil,

a CLP constitui-se em instrumento de educação política. Em um país

como o Brasil, marcado pela concentração de poder e pela exclusão

social, é importante que as prerrogativas da CLP sejam fortalecidas. A

comissão é uma relevante ferramenta para estabelecer uma relação mais

democrática entre o povo e o poder. Vida longa à CLP! (grifo nosso)

(CÂMARA DOS DEPUTADOS).

Na Cartilha da CLP de 2018, consta a manifestação do Deputado Pompeo

de Mattos, que presidia a CLP naquele ano, na qual afirma:

[...]Atualmente, o Brasil passa por um momento de grave crise, com o

desprestígio e a desconfiança da sociedade para com suas instituições, o

que compromete as estruturas do Estado, desacredita as lideranças

políticas do país e repercute diretamente na percepção da população em

geral gerando um claro descompasso com o que pensa a população. [...]a

atuação da Comissão de Legislação Participativa será norteada para que

se constitua num instrumento de aproximação da vontade popular e da

sociedade com o Parlamento, lhe dando voz e vez, para que possamos

sintetizar a aspiração de construir uma sociedade livre, justa e solidária,

casa universal de todos os brasileiros, espaço de realização da utopia do

bem comum. (grifo nosso) (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2018, p. 7).

Depreende-se do acima colacionado que a CLP é um espaço de demandas

da sociedade, o fórum de debates onde o povo tem voz, além de ser um meio de

fortalecer a democracia representativa, proporcionando maior legitimidade das

proposições construídas naquela comissão.

Não obstante, percebe-se, também, na manifestação supra da Deputada

Luiza Erundina, que algumas ações visavam ao enfraquecimento daquela

comissão, como se alguns atores sociais, entre eles os parlamentares, não

entendessem ou até mesmo não concordassem com a participação social no

âmbito da Câmara dos Deputados, o que, por si só, mereceria um estudo

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aprofundado, pois essa seria uma grande “barreira” ao crescimento da democracia

participativa.

Bonavides (2003a, p. 9 e 10) ensina que “a democracia participativa é a

democracia dos libertadores constitucionais”. Esse autor segue registrando a

respeito da participação social que:

[...]Democracia participativa e Estado Social constituem, por conseguinte,

axiomas que hão de permanecer invioláveis e invulneráveis, se os povos

continentais da América Latina estiverem no decidido propósito de

batalhar por um futuro que reside tão-somente na democracia, na

liberdade, no desenvolvimento. [...] É essa, indubitavelmente, a grande

tragédia jurídica dos povos do Terceiro Mundo. Têm a teoria mas não

têm a práxis. E a práxis para vingar diante da ofensiva letal dos neoliberais

precisa de reforma ou renovação de modelos teóricos (grifo nosso).

Segundo esse renomado autor, existem princípios que só poderão

prosperar em uma sociedade dita “aberta”. Com a finalidade de esclarecer melhor

essa questão, destaca-se, in verbis:

São eles, respectivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana,

o princípio da soberania popular, o princípio da soberania nacional e o

princípio da unidade da Constituição, todos de suma importância para a

Nova Hermenêutica constitucional[...] (BONAVIDES.b, p. 10)

Essas lições trazidas por Bonavides (2003) devem ser observadas para uma

melhor compreensão do alcance da democracia participativa.

Em relação à participação social na Comissão de Legislação Participativa -

CLP, quando da utilização do Relatório do ano de 2018, o mais recente, que foi

disponibilizado na página da CLP, constatou-se que aquela Comissão recebeu 46

sugestões de proposições da sociedade civil organizada naquele ano. Em outro

quadro desse Relatório, foram registradas a realização de 14 reuniões

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deliberativas, 14 audiências públicas, 7 seminários, 4 eventos diversos e 2 reuniões

de instalação/eleição, totalizando 41 eventos realizados.

Evidencia-se que, além das sugestões de projetos, a CLP recebe sugestões

para realizar reuniões de audiências públicas, seminários e outros eventos de

relevante interesse nacional. No entanto, não se pode olvidar que, entre os

institutos que possibilitam a participação democrática, as audiências públicas,

realizadas pelas comissões parlamentares, devem ser amplamente destacadas,

pois geralmente contam com a presença de autoridades, especialistas nos temas

propostos, representantes das entidades civis organizadas e outros convidados.

Vale mencionar, também, que após análise das páginas 113 a 119 do

Relatório de Atividades da CLP do ano de 2018, foi constatado que somente 15

entidades sociais foram responsáveis pela apresentação das 46 sugestões de

proposições.

Ora, esse pequeno quantitativo de representação social participando do

processo legiferante, no âmbito da CLP, acaba por trazer uma enorme

preocupação, pois, s.m.j, vem demonstrar que a sociedade não está utilizando esse

canal de participação a contento, seja por alguma dificuldade de apresentação dos

documentos necessários, seja por total desconhecimento dessa possibilidade ou

simplesmente por não acreditar nesse canal reivindicatório para encaminhar suas

propostas de legislação, além de outros motivos não conhecidos.

Parece forçoso concluir que a Comissão de Legislação Participativa

ainda não conseguiu cumprir o seu escopo maior, que é proporcionar a

participação efetiva da sociedade, com a apresentação significativa de sugestões

legislativas, ou seja, a contribuição social no processo legiferante é baixa, estando

distante do potencial esperado por aquela Comissão.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Em relação às audiências públicas, vale registrar o conceito dessas,

bem como as suas finalidades, consoante abaixo:

[...] Em suma, o instituto da audiência pública é um processo

administrativo de participação aberto a indivíduos e a grupos sociais

determinados, visando ao aperfeiçoamento da legitimidade das decisões

da Administração Pública, criado por lei, que lhe preceitua a forma e a

eficácia vinculatória, pela qual os administrados exercem o direito de

expor tendências, preferências e opções que possam conduzir o Poder

Público a decisões de maior aceitação consensual. (grifo nosso)

(MOREIRA NETO, 1997, p. 14).

A fundamentação constitucional da audiência pública nas Casas

Legislativas pode ser constatada pela redação do artigo 58, § 2º, inciso II, da

Constituição da República de 1988, o qual prevê a sua realização pelas comissões

do Congresso Nacional.

O Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê esse instituto nos

artigos 255 a 258, os quais revelam, in verbis:

Art. 255. Cada Comissão poderá realizar reunião de audiência pública

com entidade da sociedade civil para instruir matéria legislativa em

trâmite, bem como para tratar de assuntos de interesse público relevante,

atinentes à sua área de atuação, mediante proposta de qualquer membro

ou a pedido de entidade interessada. (grifo nosso). (CÂMARA DOS

DEPUTADOS).

7. O Parlamento Brasileiro e a Responsividade

Não obstante a possibilidade de participação social, criada no âmbito

da Câmara dos Deputados, percebe-se algumas dificuldades para que as sugestões

das entidades da sociedade civil organizada sejam aproveitadas de forma mais

efetiva, o que nos leva ao questionamento referente à responsividade parlamentar.

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Sabe-se, pelos exemplos históricos, que as conquistas sociais têm

como marco inicial as pressões exercidas pelos cidadãos aos governantes, que se

demonstram mais responsivos quando existe o exercício dessa força soberana do

povo, o que é notório, principalmente, quando as eleições estão próximas.

Entende-se pertinente esclarecer que a fiscalização e o controle dos

atos praticados pelos Poderes da República devem ser exercitados. Observa-se tal

afirmação no artigo Responsividade Democrática na Democracia Brasileira, o qual,

ao tratar da accountability,66 revela:

O principal argumento ora examinado é de que a regulação da

accountability afeta o mercado informacional, concernente à percepção

e à avaliação das políticas públicas prestadas, com efeitos diretos e

imediatos na qualidade do controle social e da democracia em geral.

Assim, situações de maior descompasso entre as agendas populares, de

elites e de prestações públicas sugerem a necessidade de maior atenção

legiferante, dada a elevação dos riscos de oportunismo decorrentes da

menor visibilidade temática para o controle social dos interessados nos

custos e nos efeitos da representação (grifo nosso) (PEDERIVA; PEDERIVA,

2016, p. 87).

Quando o desejo de governantes e de governados não se coadunam, uma

ausência de sintonia entre os interesses de representantes e representados é

flagrantemente observada, inclusive em relação a prioridades nas questões sociais.

Os mencionados autores revelam, também, que “em sistemas políticos

democráticos, os incentivos do sistema político deveriam alinhar escolhas coletivas

e políticas públicas às demandas populares majoritárias”, afirmando que:

66 Accountability pode ser traduzido como controle, fiscalização, responsabilização, ou ainda prestação de

contas.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Menores graus de convergência entre tais agendas refletem incentivos

regulatórios não democráticos e identificam níveis mais reduzidos de

democracia, além de maiores graus de incerteza sobre a sustentabilidade

das escolhas públicas associadas aos processos Não obstante, um dos

principais pontos realçados por críticos ao sistema representativo

parlamentar recai sobre a autonomia dos parlamentares. Após a eleição,

parlamentares exerceriam o mandato à revelia do seu eleitorado,

compondo parte de um jogo de interesses e negociações ilegítimo.

Nesse sentido, as decisões legislativas seriam tomadas desconsiderando-

se o leque mais variado de opiniões da sociedade sobre cada projeto de

lei decisórios nas arenas de representação política. (grifo nosso)

(PEDERIVA, 2016, p. 88 apud SOROKA e WLEZIEN, 2010)

A assertiva mencionada acima vai ao encontro do que se percebe

atualmente em atitudes de alguns parlamentares, os quais não parecem

demonstrar qualquer preocupação com as perspectivas da sociedade. Para

corroborar com esse pensamento utiliza-se Faria:

Não obstante, um dos principais pontos realçados por críticos ao sistema

representativo parlamentar recai sobre a autonomia dos parlamentares.

Após a eleição, parlamentares exerceriam o mandato à revelia do seu

eleitorado, compondo parte de um jogo de interesses e negociações

ilegítimo. Nesse sentido, as decisões legislativas seriam tomadas

desconsiderando-se o leque mais variado de opiniões da sociedade

sobre cada projeto de lei. (grifo nosso) (FARIA, 2015, p. 24).

Evidencia-se que a democracia representativa e a democracia participativa

devem caminhar com harmonia, pois a “boa política”, construída pelos diversos

atores sociais, é o caminho mais correto para se alcançar uma sociedade mais justa

e solidária. Nesse diapasão, parece forçoso utilizar os ensinamentos de Piketti

(2014), p. 14, 29 e 45), in verbis:

[...] Quando se discute a distribuição da riqueza, a política está sempre

por perto, e é difícil escapar aos preconceitos e interesses de classe que

predominam em cada época [...]A primeira é que se deve sempre

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desconfiar de qualquer argumento proveniente do determinismo

econômico quando o assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A

história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente

política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente

econômicos. [...]Da mesma forma, a reascensão da desigualdade depois

dos anos 1970-1980 se deveu, em parte, às mudanças políticas ocorridas

nas últimas décadas, principalmente no que tange à tributação e às

finanças. A história da desigualdade é moldada pela forma como os

atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que

não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e

pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da

combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvido. [...] Como

já salientei, a história da renda e da riqueza é sempre profundamente

política, caótica e imprevisível. O modo como ela se desenrolará depende

de como as diferentes sociedades encaram a desigualdade e que tipo de

instituições e políticas públicas essas sociedades decidem adotar para

remodelá-la e transformá-la. (grifo nosso ) (PIKETTI, 2014, p. 14, 29; 45)

É inquestionável que a Câmara dos Deputados vem trabalhando para se

transformar em uma instituição que atenda aos conceitos de “Parlamento aberto”,

cuja participação e transparência devem ser cada vez mais valorizadas.

Essa iniciativa foi elogiada pela União Interparlamentar, nos termos abaixo

colacionados:

A União Interparlamentar, organização com sede em Genebra, na Suíça,

que tem como objetivo mediar contatos multilaterais dos parlamentos,

destacou a experiência da Câmara dos Deputados como exemplo do uso

de dados abertos para aumentar a transparência e a interação com a

sociedade. [...]A organização, composta por 179 parlamentos, menciona

as várias iniciativas adotadas pela Câmara dos Deputados desde 2006,

quando lançou o Serviço de Integração Tecnológica (Sit-Câmara), um

serviço on-line disponível apenas para usuários registrados e

disponibilizado para todos em 2011 após a promulgação da Lei da

Transparência. Cita, por exemplo o primeiro Hackathon, lançado em

2013, sobre o tema "Transparência legislativa e participação pública". A

maratona hacker promoveu um concurso de criação de aplicativos para

aumentar a transparência do trabalho parlamentar e ampliar a

compreensão do processo legislativo. [...] O texto menciona ainda as

mudanças no site da Câmara dos Deputados, iniciadas em 2017, com o

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objetivo de torná-lo menos formal e mais centrado no usuário para exibir

os dados abertos. (grifo nosso) (2019)

Ratificando, uma vez mais, que a Câmara dos Deputados vem se

aperfeiçoando nas questões de transparência e participação, caminhando para a

construção de um Parlamento aberto e responsivo à sociedade, utiliza-se de

notícia veiculada pela CamaraNet, a qual informa:

Dado se refere a 2018 e confirma compromisso da Casa com a

transparência. A Câmara dos Deputados recebeu, no ano passado, 16.941

demandas via Lei de Acesso à Informação (LAI), das quais mais de 99%

foram atendidas, segundo relatório do Centro de Documentação e

Informação (Cedi) divulgado nesta segunda-feira (1º/7). Desse total, 85%

dos pedidos de informação foram atendidos em até um dia e o restante,

na maioria dos casos, em até 20 dias, conforme estabelece a lei. [...] Outra

ação importante foi a adoção da pesquisa de satisfação com os usuários:

85% deles disseram estar “muito satisfeitos” ou “satisfeitos” com o

atendimento prestado pela Câmara dos Deputados. Além disso, 2018

contou com o lançamento do portal interno sobre acesso à informação.

A página informa sobre as normas que regem o acesso à informação, a

atuação do Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), além de fornecer

orientações práticas para elaboração de respostas, permitindo, assim,

uma visão sistêmica dos princípios e procedimentos da LAI no âmbito da

Câmara dos Deputados. [...] Em 2018, o número de visitas foi superior a

1,2 milhão. (grifo nosso) (2019)

Os dados acima reforçam a ideia de que a Câmara dos Deputados vem

fortalecendo sobremaneira a possibilidade de prestar informações referentes aos

trabalhos legislativos aos cidadãos, por meio de vários canais tecnológicos criados

para esse propósito.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Ora, caso se utilizasse o número de sugestões legislativas67 encaminhadas

pela sociedade civil e aprovadas pela Comissão de Legislação Participativa, no ano

de 2018, para aferição sobre o aspecto de participação social, a conclusão também

seria no sentido de que a Câmara dos Deputados vem respondendo razoavelmente

aos pleitos apresentados pela sociedade, pois aprovou 26 sugestões (nem todas

recebidas em 2018), em um ano em que foram apresentadas 46 propostas

legislativas à CLP.

Não obstante, vale esclarecer que, desde a criação da Comissão de

Legislação Participativa, em 2001, até o ano de 2018, somente 2 sugestões da

sociedade civil foram transformadas em lei, sendo que as duas foram propostas

pela Associação de Juízes Federais – AJUFE, entidade reconhecidamente atuante,

organizada e, indubitavelmente, influente no âmbito do Parlamento, o que vem

confirmar o questionamento em relação à responsividade da Câmara dos

Deputados à sociedade. (Informação fornecida pela Secretaria da CLP, em 12 de

julho de 2019).

Nesse diapasão, entende-se oportuno destacar as proposições oriundas

da CLP que foram transformadas em Lei, consoante informado pela Secretaria

daquela Comissão:

PROPOSIÇÕES DA CLP TRANSFORMADAS EM LEI:

Lei 11.419, de 2006 – Aperfeiçoa as regras sobre a informatização do

processo judicial (processo eletrônico) – AJUFE – SUGESTÃO n. 1/2001;

Lei 12.694, de 2012 – Permite a formação de colegiado de juízes para

julgamento de crimes hediondos cometidos por grupos organizados –

AJUFE – SUGESTÃO n. 258/2006.

67 Sugestões Legislativas são as sugestões encaminhadas pela sociedade civil organizada

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

O quadro abaixo ilustra o número de sugestões encaminhadas pela

sociedade civil organizada e recebidas pelo colegiado da CLP, de 2001 a 2018,

constando o ano e o tipo de proposição, conforme segue:

Proposições 2

001

2

002

2

003

2

004

2

005

2

006

2

007

2

008

2

009

Sugestões

(projetos de lei e de

audiência pública

2

4

5

9

5

7

2

8

1

07

6

9

9

3

3

4

6

8

Sugestões à LOA 1

1

2

1

1

6

1

2

2

1

4

5

Sugestões ao PPA 1 1

Sugestões à LDO 5 7 2

6

1

6

1

2

Total 3

5

8

0

7

4

4

0

1

33

1

22

1

19

5

0

8

0

Proposições 2

010

2

011

2

012

2

013

2

014

2

015

2

016

2

017

2

018

Sugestões

(Projetos de lei e de

audiência pública

5

9

4

0

3

4

4

7

5

4

4

9

4

2

4

4

4

6

Sugestões à LOA 5 6 3

Sugestões ao PPA 3

Sugestões à LDO 2

3

4 3 1

4

2 3 2

Total 8

2

4

7

3

7

6

1

5

6

5

4

5

1

4

9

4

6

(Relatório 2018, p. 14 a 16 – CLP camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/clp/documentos/RelatrioCLP2018MIOLO128pgVERSODIGITAL.pdf, acessado em

12/07/2019)

Total de Sugestões (projetos de lei, audiências e seminários) apresentadas desde o ano de

2001: 954 SUGESTÕES.

Total de Sugestões à LOA: 140

Total de Sugestões ao PPA: 5

Total de Sugestões à LDO: 117

Total Geral de Sugestões (projetos de lei, audiências e seminários) apresentadas desde o

ano de 2011: 1216.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Em relação às reuniões de audiência pública realizadas no ano de 2018 (de

janeiro a dezembro), após uma análise das gravações (arquivos sonoros)

disponibilizadas na página da CLP, chega-se à conclusão que, embora a comissão

seja composta, teoricamente, de 18 membros titulares e de 18 membros suplentes,

apenas alguns poucos parlamentares realmente se manifestaram nessas reuniões.

Ademais, junta-se a essa afirmação que, das 12 audiências públicas

registradas, somente uma foi proveniente de sugestão da sociedade civil, sendo

que as demais foram de autoria parlamentar. Embora a iniciativa parlamentar seja

legítima, quanto à apresentação de requerimentos de audiências e seminários,

percebe-se que isso não corrobora para consolidar a CLP como fórum de debates

relativos a demandas sociais, haja vista a prerrogativa concedida por aquele órgão

para a sociedade civil apresentar Sugestões naquela comissão, a qual tem

competência singular para tanto.

Além disso, verifica-se que poucos parlamentares daquela comissão

tiveram participação realmente efetiva nas reuniões de audiência pública, o que

também causa preocupação, pois parece desfigurar um instituto democrático

importante para o fortalecimento da democracia, ou seja, a maioria dessas

reuniões são realizadas com pouca expressividade de participação da sociedade

civil organizada e também da representatividade parlamentar, acarretada pela

pouca manifestação dos deputados.

Ratificando o acima exposto, deve ser observado que embora algumas

atas de reuniões registrem a presença de um número mais expressivo de

parlamentares, a média de participação, por audiência pública, levando-se em

conta a fala/manifestação dos Deputados, registradas nos áudios dessas reuniões,

foi de, aproximadamente, 4 deputados para cada evento, o que representa, algo

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

em torno de 11% de participação parlamentar, levando-se em conta o total de

membros titulares e suplentes, teoricamente possível de comporem o quadro da

CLP.

Muitas dessas falas tiveram a duração, em média, de aproximadamente

dois minutos, o que, a princípio, também pode demonstrar uma pequena

participação, não condizente com quem busca a construção de políticas sociais

eficazes por meio da deliberação, que deveriam ouvir a sociedade e interagir com

os especialistas e com os demais convidados presentes à reunião, pois muitas

vezes para se chegar a um consenso, ou próximo disso, em uma audiência pública,

vários debates podem ocorrer, inclusive com a possibilidade de o parlamentar

interpelar o convidado por três minutos , além da previsão de réplica e de tréplica,

nos termos do artigo 256, §5º, do RICD.

Informa-se que existem, atualmente, 34 proposições aprovadas pelos

parlamentares da CLP, algumas com mais de 10 anos de tramitação, que estão

prontas para a pauta do Plenário da Câmara dos Deputados. Porém, para que essas

matérias sejam submetidas à apreciação dos deputados no Plenário, dependerá da

vontade do Presidente daquela Casa de Leis.

Essa afirmação vem esclarecer que o sucesso das iniciativas legislativas

apresentadas pela sociedade à CLP não depende somente dos trabalhos daquela

Comissão, mas de motivação e apoio político, em razão dos ditames previstos no

Regimento Interno da Câmara dos Deputados68.

68 Cf. Sistema de Informação Legislativa – Câmara dos Deputados – Data/hora da pesquisa:

29/07/2019 - 15h02

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Considerações finais

Portanto, a participação da sociedade nas decisões do Parlamento se faz

necessária e oportuna, devendo ser enaltecida e incentivada por parlamentares e

pelos cidadãos.

A assertiva supra se torna mais apropriada quando referente à participação

social no processo legislativo realizado no âmbito da Comissão de Legislação

Participativa da Câmara dos Deputados, considerada o fórum de debates da

sociedade no Parlamento, onde as demandas apresentadas, invariavelmente,

tratam de questões sociais.

A abertura das informações aos cidadãos, disponibilizadas pela Câmara

dos Deputados, está seguramente no caminho do que se entende por “Parlamento

Aberto”, cujos mecanismos de transparência e interação fortalecem o exercício

democrático, propiciando legitimidade às decisões, como foi demonstrado

anteriormente, inclusive pelo reconhecimento da União Interparlamentar, com

sede em Genebra na Suíça, que entendeu a Câmara dos Deputados como exemplo

de uso de dados abertos.

Entretanto, conforme é depreendido do depoimento da deputada Luíza

Erundina, existem muitas investidas que dificultam a participação, prejudicando a

construção de decisões de forma conjunta entre representantes e representados.

Essas investidas, aqui tratadas como “barreiras”, podem ser percebidas, inclusive,

pelo esvaziamento de algumas reuniões de audiência pública, tanto por parte dos

parlamentares quanto dos representantes sociais e dos cidadãos, que não

comparecem a esses eventos da forma esperada, ou seja, em número significativo

e com manifestações veementes que traduzam a vontade do povo.

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[209]

Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Os poucos segmentos sociais que encaminharam sugestões de

proposições para a CLP, em 2018, conforme constatado, também causa

perplexidade, haja vista aquela Comissão ser um canal de participação moderno e

pouco burocrático, o que facilita a interação da Câmara dos Deputados com a

sociedade, na avaliação deste autor.

Notadamente, instiga a reflexão o fato de, desde a criação daquele

colegiado em 2001 até a conclusão do presente artigo, terem sido transformadas

em lei somente duas sugestões legislativas, apresentadas pela sociedade civil na

CLP, sendo ambas de autoria da Associação de Juízes Federais do Brasil, conforme

já alertado. Ora, essa informação per se já é suficiente para desmotivar o

encaminhamento de proposições por parte da sociedade, o que é bastante

compreensível, mas deveras preocupante.

Nesse sentido, verificou-se que foi realizada somente uma audiência

pública de autoria da sociedade em 2018, o que não é razoável, pois a CLP deveria

ser utilizada para dar vazão aos pleitos sociais, legitimando as decisões do

Parlamento.

Pelo exposto, resta irrefutável que, embora a Câmara dos Deputados

ofereça vários instrumentos de participação, prestando informações relevantes à

sociedade brasileira, o que é de suma importância, as entidades sociais devem ser

mais efetivas na construção legislativa, principalmente no âmbito da CLP,

apresentando suas demandas e acompanhando todo o processo, pois somente

assim o Brasil fortalecerá sua democracia, proporcionando legitimidade às

decisões do Parlamento. Em contrapartida, os representantes do povo devem ser

mais solidários em relação às demandas apresentadas pelos cidadãos, buscando,

na medida do possível, mitigar as inúmeras injustiças sociais existentes no Brasil.

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Referências

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https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/11/08/projeto-de-iniciativa-

popular-podera-contar-com-assinaturas-eletronicas-aprova-ccj, Notícia de 08 de

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BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. 2. ed.

São Paulo: Malheiros, 2003.

CARNEIRO, André Corrêa de Sá; SANTOS, Luiz Cláudio Alves; NETTO, Miguel

Gerônimo da Nóbrega. Curso de Regimento Interno – conhecendo o

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A BANALIDADE DO MAL NAS UNIDADES DE INTERNAÇÃO DO DISTRITO

FEDERAL

Luíza Griebler

Mestrando em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro Universitário ISB.

Douglas Henrique Marin

Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); mestre em Direito

(Ciências jurídico-filosóficas) pela Universidade do Porto (UP-Portugal); especialista em

Direito das Obrigações pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências

Jurídicas pela Universidade do Porto (UP-Portugal); graduado em Direito pela

Universidade de São Paulo (USP); Procurador Federal e coordenador na Subchefia de

Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República; professor na graduação e

pós-graduação em Direito no Centro Universitário IESB.

Resumo

No Distrito Federal, o ambiente das unidades que executam a medida socioeducativa de internação

é marcado por tensões entre os profissionais socioeducativos que ali exercem suas atividades e os

adolescentes acautelados. Assim, a presente pesquisa analisa o perfil dos profissionais

socioeducativos lotados em Unidades do Distrito Federal que executam medidas socioeducativas

de internação e apresenta uma analogia entre as considerações propostas pela filósofa judia

Hannah Arendt em sua obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do Mal e

condutas costumeiras praticadas pelos profissionais do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal

ao lidarem diretamente com adolescentes autores de atos infracionais acautelados em Unidades

de Internação Juvenil.

Palavras-chave: Medidas Socioeducativas. Adolescente em conflito com a lei. Atos Infracionais.

Perfil dos agentes socioeducativos do Distrito Federal. Direitos humanos. Ressocialização. Estatuto

da Criança e do Adolescente.

Abstract

In the Federal District, the environment of the socio-educational units for children and teenagers

who brake the law is marked by tensions between the socio-educational professionals and the

supervised adolescents. This research analyzes the profile of socio-educational professionals who

carry out socio-educational measures and presents an analogy between the considerations

proposed by the Jewish philosopher Hannah Arendt and usual behaviors by professionals in the

Federal District's Social and Educational System, when dealing directly with the teenagers.

Keywords: Socio-educational measures. Teenager in conflict with the law. Infractional acts. Profile

of socio-educational agents in the Federal District. Human rights. Resocialization. Child and

Adolescent Statute.

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Introdução

No Distrito Federal, o ambiente das unidades que executam a medida

socioeducativa de internação é marcado por tensões entre os profissionais

socioeducativos que ali exercem suas atividades e os adolescentes acautelados.

Dito isso, este trabalho pretende realizar uma analogia entre as

considerações propostas pela filósofa judia Hannah Arendt em sua obra Eichmann

em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal e condutas costumeiras

praticadas pelos profissionais do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal ao

lidarem diretamente com adolescentes autores de atos infracionais acautelados

em Unidades de Internação Juvenil.

É fato que as unidades de internação voltadas para adolescentes em conflito

com a lei se assemelham a verdadeiros presídios, com o único objetivo de punir e

não ressocializar socioeducandos. Portanto, assim como sugerido no livro, muitos

dos profissionais inseridos no contexto de internação juvenil acabam por ponderar

que determinadas atitudes envolvendo as mais diversas infrações administrativas

disciplinares seriam corriqueiras e triviais, talvez até necessárias para a manutenção

da ordem e para a realização do justo.

Ocorre que o mal não deve ser tratado como algo banal e sem

consequências ao convívio humanitário e social, inclusive nas relações práticas de

resgate social envolvendo o atendimento de adolescentes em conflitos com a lei.

Com efeito, a presente pesquisa foi realizada no âmbito da Secretaria de

Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania do Distrito Federal (SEJUS),

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estando inserida no contexto organizacional das Unidades de Internação voltadas

para adolescentes em conflito com a lei.

1. Sobre Adolf Eichmann

Adolf Eichmann foi um nazista alemão encarregado por organizar e dirigir

a logística de transportes das deportações dos judeus para os campos de

extermínio durante a Segunda Guerra Mundial (ARENDT, 1999).

Eichmann foi capturado na Argentina, mas seu julgamento ocorreu em

Jerusalém. A filósofa Hannah Arendt foi enviada como correspondente pela

revista The New Yorker e acompanhou as sessões do julgamento de Adolf

Eichmann em Israel.

A obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal foi

baseada nos artigos publicados no The New Yorker e apresenta diversos

questionamentos sobre a legalidade do julgamento e o principal objetivo do povo

judeu: fazer justiça.

Segundo Arendt,

[...] as irregularidades e anormalidades do julgamento de Jerusalém

foram tantas, tão variadas e de tal complexidade legal que, no decorrer

dos trabalhos e depois na quantidade surpreendentemente pequena de

literatura sobre o julgamento, chegaram a obscurecer os grandes

problemas morais e políticos e mesmo legais que o julgamento

inevitavelmente propunha (ARENDT, 1999, p. 275).

Arendt também reconhece que Eichmann não se assemelhava a um típico

assassino cruel. Na verdade, seria um mero burocrata, um pai de família e um

funcionário medíocre que simplesmente seguiu ordens de seus superiores.

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[...] O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como

ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda

são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas

instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade

era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois

implicava que – como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos

acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso,

efetivamente hostis generis humanis, que comete seus crimes em

circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou

sentir que está agindo errado. Sob esse aspecto, as provas no caso de

Eichmann eram ainda mais convincentes que as provas apresentadas no

julgamento dos criminosos de guerra, cujas alegações de consciência

tranquila podiam ser descartadas mais facilmente porque combinavam o

argumento da obediência a “ordens superiores” com várias bazófias

sobre ocasionais desobediências (ARENDT, 1999, p. 299).

A defesa de Eichamnn, inclusive, alegava que ele tinha vivido toda a sua vida

seguindo princípios morais e que todas as ordens seguidas sobrevinham de atos

de Estado, daí que não deveria ser punido.

[...] Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada

nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um

cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu

insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele

também obedecia à lei. Eichmann tinha uma vaga noção de que isso

podia ser uma importante distinção, mas nem a defesa nem os juízes

jamais insistiriam com ele sobre isso. As moedas bem gastas das ‘ordens

superiores’ versus os ‘atos de Estado’ circulavam livremente; haviam

dominado toda a discussão desses assuntos durante os julgamentos de

Nuremberg, pura e simplesmente por dar a ilusão de algo absolutamente

sem precedentes e seus padrões. Eichmann, com seus dotes mentais

bastante modestos, era certamente o último homem na sala de quem

podia esperar que viesse a desafiar essas ideias e agir por conta própria.

Como além de cumprir aquilo que ele concebia como deveres de um

cidadão respeitador das leis, ele também agia sob ordens – sempre

cuidado de estar “coberto’”–, ele acabou completamente confuso e

terminou frisando alternativamente as virtudes e vícios da obediência

cega, ou “obediência cadavérica” (kadavergenhorsam), como ele próprio

a chamou (ARENDT, 1999, p. 152).

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Vislumbra-se que segundo Arendt, Adolf Eichman foi acusado por diversos

crimes, mas sua maior culpa foi ter obedecido aos seus superiores.

1.2 Sobre a banalização do mal

Hannah Arendt realiza uma análise sobre a verdadeira natureza do mal. A

autora chega a descrever Adolf Eichmann como um sujeito comum, focado em

obter progressos pessoais, que simplesmente seguiu as ordens de seus superiores

sem perceber – ou se importar – com o que estava fazendo.

Adolf Eichmann, portanto, desempenhava suas funções sem refletir sobre

seus atos. Trata-se, portanto, de uma análise sobre o desprendimento moral de

um indivíduo que cumpria com o que lhe foi designado em um cenário marcado

pelas atrocidades da segunda guerra.

Naturalmente Arendt não admitia tal banalização. Para ela, ao nos

enxergarmos como cidadãos pautados em sentimentos de cunho humanitário,

temos a necessidade ética e humana de cobrar de qualquer outro sujeito uma

postura moral de discernimento pelos próprios atos.

[...] Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a maioria

das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma

que a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela

“poderia acontecer” na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos

os lugares. Humanamente falando, não é preciso nada mais, e nada mais

pode ser pedido dentro dos limites do razoável, para que este planeta

continue sendo um lugar próprio para a vida humana (ARENDT, 1999, p.

254).

Eichmann não era um monstro detentor de um mal essencial e intrínseco,

que planejou a destruição de um povo. Ele era, simplesmente, um cidadão

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burocrata que realizava suas atividades, sem refletir sobre os seus atos e a

moralidade das ordens que lhe eram incumbidas dentro de um cenário de guerra.

Nessa percepção, poder-se-ia afirmar que Eichmann, sob certa óptica,

chegou a ser um funcionário exemplar, que somente seguia ordens superiores com

afinco. Pensar assim, no entanto, afasta o indivíduo dos princípios éticos que o

tornam humano.

[...] O mal, portanto torna-se banal a partir da superficialidade e da

superfluidade. A superficialidade está contida na ideia de que quanto

mais superficial for uma pessoa, maior a probabilidade de ela ceder aos

encantos do mal. Para tanto, utilizam-se os clichês, as frases feitas, adesão

a códigos e expressão e conduta convencionais e padronizadas, que

impedem a percepção da realidade e do consequente pensamento

aprofundado. Essa superficialidade é facilmente verificada em Eichmann.

Já a superfluidade vincula-se ao sentido utilitário das sociedades de

massa, em que a política e a economia tornam o homem supérfluo a

partir de seus instrumentos totalitários (ARENDT, 1999, p. 268).

Portanto, esta pesquisa pretende explanar a banalização do mal como uma

categoria teórica metodológica para explorar práticas inadequadas, aéticas e

nocivas às relações humanas e a dignidade da pessoa humana.

2. Método utilizado

É importante ressaltar que o presente trabalho utilizou estratégias

metodológicas incomuns à pesquisa jurídica.

A abordagem é essencialmente qualitativa, utilizando-se ferramentas da

história oral com o intuito de compreender a intimidade do pensamento humano,

construído em um ambiente livre e bastante anônimo.

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Deste modo, a descrição cuidadosa do método utilizado assegura a

cientificidade da pesquisa, permitindo que a hipótese seja testada por outros

pesquisadores, confirmando-a ou falseando-a, tudo na classifica dicção de Karl

Popper (2010, p. 186)

Destarte, este trabalho buscou demonstrar que embora as medidas

socioeducativas previstas no ECA tenham a função de resgatar os valores sociais

na busca da responsabilidade social do socioeducando acautelado, na prática o

cenário das Internações Juvenis no âmbito do DF é crítico, vulnerável e ineficaz e a

função da medida socioeducativa passa a ser unicamente voltada à punição do

adolescente infrator e não à ressocialização.

Dessa forma, os profissionais da área também vivenciam um ambiente

suscetível aos mais diversos conflitos. Deste modo, os agentes socioeducativos se

envolvem em ocorrências administrativas disciplinares com mais frequência,

muitas delas relacionadas à violência, abuso de autoridade e intimidação.

Tais agentes supõem que suas ações sejam razoáveis, se não necessárias ao

controle da disciplina e da hierarquia nas unidades: os excessos podem existir, mas

são indispensáveis naquele ambiente. Não há arrependimento. O mal prevalece,

banalizado intramuros.

3. Resultados e discussão

Este estudo buscou por meio de entrevistas de profundidade ponderar e

aferir se as condutas dos profissionais socioeducativos do DF são orientadas de

fato pelo mal arendtiano.

Dessa maneira, essa pesquisa associou o desempenho das atribuições dos

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servidores socioeducativos com parâmetros de si próprios no intuito de expor a

responsabilidade dos servidores públicos, bem como do Estado no que se refere a

práticas inadequadas no tratamento de adolescentes acautelados em medidas

socioeducativas de internação do DF.

O envolvimento dos atores no procedimento de implementação da

pesquisa possibilitou a verificação de sentidos múltiplos e relevantes para a

compreensão da realidade analisada. O corpus textual gerou categorias discursivas

bem definidas, conforme apontado na apreciação dos resultados, o que permitiu

no contexto deste estudo, correlacioná-las aos referenciais teóricos adotados e aos

objetivos propostos.

3.1 Caracterização dos entrevistados

As entrevistas foram realizadas com profissionais socioeducativos que

atuam diretamente no atendimento aos adolescentes em cumprimento de medida

socioeducativa de internação no âmbito do Distrito Federal.

Foram convidados 25 (vinte e cinco) servidores socioeducativos do DF,

sendo 2 (dois) técnicos administrativos, 5 (cinco) especialistas socioeducativos e 18

(dezoito) agentes socioeducativos. Todos os profissionais concordaram em

participar da pesquisa e todos foram entrevistados pessoalmente.

Em virtude do método “snowball” utilizado para a indicação de possíveis

entrevistados, cada servidor indicou para a presente pesquisa pessoas de seu

conhecimento ou amizade.

Dessa maneira, a faixa de idade manteve-se entre 32 (trinta e dois) e 49

(quarenta e nove) anos de idade.

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Doze entrevistadas são do sexo feminino e quinze servidores possuem

filhos.

Todos os convidados possuem nível superior, dezenove dos entrevistados

possuem especialização e três já concluíram o mestrado.

Todos os servidores entrevistados já trabalharam em Unidades de

Internação do DF, entretanto atualmente 04 (quatro) servidores participantes estão

lotados em Unidades do Meio Aberto.

Ressalta-se que para um alcance mais abrangente na fala dos servidores,

todas as entrevistas ocorreram de forma sigilosa e sem a identificação dos

convidados.

As entrevistas foram gravadas por meio de aplicativo de gravação instalado

em telefone celular. Foi combinado que caso o entrevistado (a) pedisse, a

pesquisadora desligaria o aplicativo para alguma fala.

O trabalho orientado por pareamentos de pesquisa qualitativa, buscou

“explorar os espectros de opiniões e as diferentes representações” (BAUER;

GASKEL, 2002, p. 68) sobre os temas averiguados. O intuito da análise era

“maximizar a oportunidade de compreender diferentes posições tomadas pelos

membros de um meio social.” (BAUER; GASKEL, 2002, p. 68)

Houve boa vontade de todos os participantes e alguns entrevistados

falaram de temas que extrapolavam as perguntas.

Em virtude da variação de gênero, a pesquisadora optou pelo modo

tradicional de condução de texto, referindo-se aos entrevistados, em geral, no

masculino.

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3.2 A Banalidade do Mal está de fato ocorrendo nas Unidades de Internação

do DF?

A análise utilizou-se das definições de banalidade do mal de Hannah Arendt

na constituição do embasamento teórico, com o escopo de compreender as

justificativas para as constantes violações de direitos em desfavor de adolescentes

acautelados praticados por agentes públicos nas Unidades de Internação.

A percepção dos servidores socioeducativos sobre o trabalho desenvolvido

e as condutas realizadas foram captadas por meio das entrevistas que revelaram a

visão servidores quanto prática profissional como um todo.

Ressalta-se que a analogia realizada com a obra de Hannah Arendt não se

ambiciona igualar-se a situação do Holocausto ou ao nazismo, mas apresentar que

as diversas violações aos direitos fundamentais praticadas aos adolescentes em

conflito com a lei em cumprimento de medidas socioeducativas de internação não

podem ser aceitáveis e passíveis de não responsabilizações. Pois a admissão e

tolerâncias a práticas inadequadas em desacordo com os direitos humanos contra

socioeducandos se aproximam da ideia de banalidade do mal arendtiano.

Nesse sentido:

Certa vez, após realizar a escolta de um adolescente para uma audiência,

presenciei algo que me tirou o sono por vários dias. Levamos um

adolescente para uma audiência super pesada na VIJ. O moleque tinha

dezessete anos e tinha estuprado, matado e ocultado o cadáver da

própria prima de quatro anos. Foi uma audiência tensa. A família da

vítima chorava o tempo inteiro, todo mundo ficou comovido. Até os

policiais choraram em seus depoimentos quando descreveram o cenário

do crime e como o corpo da criança foi encontrado. Mas o que mais me

chamou a atenção foi a frieza do adolescente. Ele ria durante a audiência.

Como se tivesse gostado do que tivesse feito. Você via que o adolescente

sentia orgulho pelo crime praticado. Cena de horror mesmo. Éramos

cinco agentes realizando a escolta desse adolescente. Desses cinco

agentes, quatro tem filho pequeno em casa. Estávamos revoltados com

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esse moleque. Na volta, de comum acordo entre os agentes, paramos a

viatura no meio do caminho e os três colegas desceram o cassete nesse

menino. Foi uma espécie de vingança. Sei que não resolveu nada, sei que

essa atitude não trouxe a vida da criança de volta. Mas nós como agentes

tínhamos que fazer algo. Aquele menino não podia ficar impune por um

crime tão bárbaro. Eu juro que eu não cheguei a fazer nada. Fiquei

sentado no banco da frente do carro, mas presenciei a situação. Também

não deletei meus colegas. Fui conivente com a situação e confesso que

naquele momento achei que era o certo a ser feito. Só que quando

cheguei em casa e refleti, vi que não era uma atitude certa entende? Acho

que alí nós nos comparamos com o adolescente criminoso. No dia do

próximo plantão, pedi para meu chefe para sair da escolta. Hoje trabalho

em meio aberto. (Agente Socioeducativo)

Atendi um adolescente que tinha acabado de ser pego em flagrante e foi

encaminhado ao NAI. O menino era uma criança. Tinha doze anos, mas

o físico era de oito. Ele foi colocado no quarto sozinho, por conta da

compleição física. Tinha dado um pane elétrico e os quartos estavam sem

luz. Aí quando o moleque entrou na cela, ele falou: “seu agente eu vou

ficar aqui sozinho? Eu tenho medo de escuro”. Foi uma gargalhada geral.

Todos os agentes tiraram sarro dele e ficaram falando: “Para cometer

crime você não tem medo né?” Só que eu fiquei com pena dele. Apesar

de tudo ele era uma criança. Desobedeci a meu chefe e coloquei outro

moleque lá com ele. Até hoje os agentes falam dessa situação. (Agente

Socioeducativo)

Uma das coisas que mais irritam os adolescentes das Unidades é falar da

mãe deles. Quer irritar um moleque? Chama ele de “rodoviário”. É uma

gíria para os adolescentes que não tem mãe. Alguns agentes adoram

provocar chamando os internos de “rodoviário”, de “pebas” ou de

bandidos na hora de fazer a contagem dos módulos. Acho isso

extremamente errado. Eu chamo os moleques pelo nome. Quando eu

não sei, chamo de interno, jovem ou adolescente. Acho que temos que

ter respeito pelo nosso público. Acho que por isso que sou bem tratado

por eles. (Agente socioeducativo).

Teve uma vez que eu fui algemar um adolescente e ele começou a me

xingar de todos os nomes possíveis e inimagináveis. Ele cuspiu na minha

cara e gritava que eu era uma alma sebosa. Eu nem conhecia o moleque.

Não entendi o motivo de ser tratado daquela forma, sem motivo

nenhum. Na hora fiquei tão nervoso. Minha vontade era esmurrar aquele

moleque. Ele estava me desrespeitando no ambiente do meu trabalho e

na frente dos meus colegas agentes. Mas aí respirei fundo e refleti. Não

valia a pena. Para que vou me sujar e responder um processo por causa

de um “peba” que não acrescenta em nada na minha vida? (Agente

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socioeducativo).

Uma vez levei uma menina no médico porque estava com suspeita de

infecção urinária. Só quem já teve infecção urinária sabe como incomoda,

dói e é preciso tomar antibiótico para resolver o problema. Chegando lá,

o médico do posto nem examinou a interna. A adolescente não fez

nenhum exame urinário. Total descaso. O médico só deu uns remedinhos

para amenizar a parada. Fiquei com dó dela. Falta um médico nas

Unidades para dar um amparo maior para esses adolescentes (Agente

Socioeducativo)

Para Arendt sempre vão existir indivíduos que pautados pela sua própria

consciência não vão escolher as práticas que desencadeiam no mal. Ressalta-se

que no contexto do holocausto muitos sujeitos simplesmente sucumbiram e

aderiram às circunstâncias da guerra, entretanto alguns não se conformaram e não

aceitaram.

[...] Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a maioria

das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma

que a lição dos países aos quais a solução Final foi proposta é que ela

“poderia acontecer” na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos

os lugares. (ARENDT, 1999, p. 254).

Com base no exposto, torna-se importante a reflexão que todos os seres

humanos devem ter seus direitos fundamentais respeitados pelo Estado (SCHIO,

2012). Entretanto, ao observarmos o objeto dessa pesquisa, constamos que as

entrevistas realizadas com os servidores socioeducativos do DF só corroboram

com a ideia de que determinações constitucionais fundamentais não vem sendo

cumpridas aos tratamentos designados aos adolescentes autores de atos

infracionais nas medidas de internação, seja pela falta de condições de trabalho

oferecidas aos servidores seja pela discricionariedade na eleição de determinadas

condutas como adequadas por alguns servidores.

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Nesse sentido, Arendt (1999) nos faz refletir que a banalidade do mal incide

nas diversas práticas de violações de direitos fundamentais aos socioeducandos.

Ou seja, na entrevista dos servidores são verificadas violações de direito que são

justificadas, não pela não consciência das ações dos envolvidos, mas sim por

apologias de falhas de um sistema político, jurídico, econômico e social.

Portanto, a ideia em torno da banalidade do mal promovida pelo Estado

reproduz no sistema socioeducativo o que Bauman (1998) conceitua de

normalidade do desumano: o desrespeito aos direitos fundamentais dos

socioeducandos, associadas a omissão do Estado:

[...] A desumanização distancia a vítima da consciência do agressor, no

caso o Estado. A partir da desumanização as diversas omissões e

atrocidades são admitidas já que agredido e agressor estão separados

por um abismo em que a consciência do agressor não se abala pela

invisibilidade do agredido (BAUMAN, 1998, p. 182-184).

Regressando ao estudo da pesquisa, após análise minuciosa dos diálogos

dos servidores, tornou-se possível constatar que a banalidade do mal de fato

acontece nas Unidades de Internação do DF.

Visto que os relatos dos profissionais envolvidos denunciam ranços de uma

da cultura institucional procedente do extinto Código do Menor que ainda vigoram

na prática e que a sanção e a repreensão ainda operam de forma dominante na

conduta dos servidores que executam as medidas socioeducativas de internação

no âmbito do DF.

Todavia, ressalta-se que as condições de trabalho oferecidas encontram

muitas deficiências e o apoio institucional às atividades desenvolvidas pelos

profissionais são parâmetros decisivos para o exercício adequado das diversas

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funções impostas. Porém, na prática são encontradas diversas barreiras, o que

desmotiva os servidores envolvidos no processo:

Assim que eu entrei nesse concurso fui jogado em uma Unidade de

internação. Logo nos primeiros dias caí na armadilha da casinha. Um

moleque começou a gritar pedindo socorro e eu desesperei. Estava

sozinho no módulo e por falta de malícia, despreparo e até inexperiência,

fui sozinho abrir o módulo desse adolescente. O procedimento padrão, é

sempre apurar todas as condutas com no mínimo três servidores. Hoje

eu sei disso. Mas na época não sabia. Enfim, eu também estava sozinho

no módulo e o moleque gritava como se fosse parir. A unidade quase

não tinha servidores. Todos os módulos estavam com pouquíssimos

agentes. Aí fui sozinho na tora. Quando abri o módulo para socorrer o

adolescente ator, surgiram do nada cinco moleques escondidos que me

pegaram. Quase morri. Saí todo estropiado. Levei vários pontos pelo

corpo todo por essa brincadeira. Depois meus colegas deram uma surra

de correção nesses bandidos. Quase perdi a vida. Não acho certo os

agentes responderem por isso na corregedoria. Não temos estrutura para

trabalhar, faltam agentes e os adolescentes sabem disso. Me pegaram

porque eu era novato, não tinha feito nenhum curso e estava sozinho no

módulo. Meus colegas estavam certos de dar uma correção nesses

internos. Quase perdi a vida. (Agente socioeducativo)

Os agentes têm fama de maus, torturadores de internos. Mas como

manter a ordem em uma Unidade que não proporciona estrutura e

condições mínimas de trabalho? (Agente socioeducativo)

Às vezes temos que ter uma postura mais dura com esses internos. É uma

forma de conquistarmos respeito. A maioria dos agentes não sabe

sequer manusear uma tonfa da maneira correta. Falta curso e

capacitação. Só que nos momentos de crise quem nos defende? Só

podemos contar com o apoio dos próprios colegas que já tem mais

experiência. E eu acho totalmente compreensível um agente corrigir um

interno de maneira mais dura quando esse moleque agride um servidor.

(Agente socioeducativo)

Teve um moleque que por pura maldade arrancou todos os dentes de

um servidor da Provisória. O adolescente estava em fila esperando a

contagem para entrar no seu módulo. Pegou o servidor desprevenido e

chutou a boca desse servidor da maneira mais desumana e desleal

imaginável. Nessa situação, você acha errado os servidores da Unidade

darem um castigo nesses adolescentes? Se não tivermos uma postura

mais dura, perdemos totalmente o respeito com esses moleques. A

corregedoria deveria analisar isso. (Agente socioeducativo)

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Portanto, ao longo das entrevistas, nota-se que ainda existem ranços de

uma da cultura institucional procedente do extinto Código do Menor que incidem

em práticas sancionatórias e disciplinares destinadas aos socioeducandos, o que

resulta, alfim, em um espelho do que Hannah Arendt chamou de banalidade do

mal.

Considerações finais

O objetivo principal desta pesquisa era compreender a banalização do mal

sob a óptica de Hannah Arendt e aferir se as condutas dos profissionais

socioeducativos do DF são, de fato, orientadas pelo mal arendtiano.

Para tanto, identificar as percepções dos próprios profissionais por meio de

entrevistas foi de suma importância para a compreensão da relação entre esses

servidores, seu cargo, suas obrigações e direitos e os adolescentes acautelados. A

escolha da metodologia, portanto, foi essencial para a confirmação hipótese

inicialmente proposta.

Dito isso, considerando as informações obtidas nas entrevistas e as falas de

cada um dos servidores ouvidos, é possível traçar algumas conclusões que

surgiram, de forma uníssona, nos discursos. São elas:

a) os servidores estão desestimulados e não acreditam no Estado e

no sistema em que atuam.

A unidade quase não tinha servidores. Todos os módulos estavam com

pouquíssimos agentes. Aí fui sozinho na tora. Quando abri o módulo para

socorrer o adolescente ator, surgiram do nada cinco moleques

escondidos que me pegaram. Quase morri. Saí todo estropiado. Levei

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vários pontos pelo corpo todo por essa brincadeira. Depois meus colegas

deram uma surra de correção nesses bandidos. Quase perdi a vida. Não

acho certo os agentes responderem por isso na corregedoria. Não temos

estrutura para trabalhar, faltam agentes e os adolescentes sabem disso.

Me pegaram porque eu era novato, não tinha feito nenhum curso e

estava sozinho no módulo. Meus colegas estavam certos de dar uma

correção nesses internos. Quase perdi a vida. (Agente socioeducativo)

Eu não tive curso de formação prático. Tiveram aulas teóricas e só. Fui

jogado dentro de uma Unidade de Internação e aprendi o trabalho na

marra. (Agente Socioeducativo)

Eu não aprendi nada da prática no curso de formação. Me colocaram em

uma Unidade de Internação e falaram se vira! (Agente Socioeducativo)

No sistema falta tudo. Falta estrutura, assistência médica. Os servidores

vão trabalhar e não tem carro, equipamentos de segurança e

treinamentos. É comum você chegar em um módulo com 40 (quarenta)

internos e apenas uma agente feminina cuidando da ala inteira. (Agente

Socioeducativo).

Trabalhamos com internos com aids, sífilis e todos os tipos de doenças e

não temos nenhum amparo do governo sobre a saúde do servidor, nem

mesmo psicológica. (Agente Socioeducativo).

Desativaram o CAJE falando que ia contra os direitos humanos, mas na

realidade é que não combinava um presídio do lado do Noroeste né?

Qual a diferença do CAJE para as outras Unidades? (Agente

Socioeducativo).

O servidor já entra nesse concurso querendo sair. A rotatividade de

pessoal é imensa. O servidor não quer parar aqui. (Agente

Socioeducativo).

b) os servidores estão com medo, já foram vítimas de violência ou

são colegas de vítimas de agressão.

Já senti medo muitas vezes. O medo é o que mais faz você reagir a

situações de estresse e as vezes cometer excessos contra os internos.

(Agente Socioeducativo).

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Já fui agredido por um interno em um procedimento e já sofri várias

ameaças. Dentro do sistema é corriqueiro agentes receberem ameaças

de morte dos moleques. (Agente Socioeducativo).

“Lá fora eu te pego” é que eu mais ouço dos adolescentes desde que

assumi esse cargo. (Agente Socioeducativo).

Os menores são prisioneiros que cometerem crimes bárbaros. O Servidor

tem medo de entrar nos módulos. Os adolescentes fazem “casinha”. É

tipo uma armadilha para pegar o servidor desprevenido. Funciona assim:

um adolescente grita pedindo socorro, aí o servidor entra sozinho no

módulo e vem logo outros quatro adolescentes que estavam escondidos

e pegam o servidor de surpresa para fazer ele de refém. Às vezes você

deixou só um colega do lado de fora com o rádio para pedir reforço. Aí

esse colega vai chamar no rádio apoio para te salvar, mas o rádio está

com defeito ou sem bateria. Acontece direto, rádio Pifado. Aí o colega saí

correndo para pedir ajuda. Meu irmão, nesse momento você se vira. São

vinte segundos mais ou menos até chegar o apoio. Eu falo uma coisa para

você, esses vinte segundos se transformam em quatro horas. Você não

tem ideia o tanto que aquele tempo demora e o tanto de coisas que você

tem que fazer e pensar para você escapar de não ser agredido pelos

internos. Mas a verdade é que você será agredido e muito. Os moleques

não têm nada a perder. (Agente Socioeducativo);

Ninguém é maldoso de graça. Há não ser que tenha algum problema

psiquiátrico. São geralmente os servidores com medo que reagem a

violência com mais violência. O servidor tem medo e para se defender ele

anda com a tonfa e o escudo. No fundo ele tem muito medo de ser

agredido e de ser morto. O servidor nessa situação vê coisa até onde não

existe. Se o servidor estivesse em uma Unidade com estrutura em que

acontece a ressocialização de verdade essa situação poderia ser evitada.

(Agente Socioeducativo).

c) os servidores relatam os impactos do exercício de suas funções na

sua vida pessoal, demonstrando tristeza a amargor.

Ando mais nervoso e impaciente. Todo mundo que já entrou dentro de

um módulo sabe que lá dentro o trabalho não é fácil. Minha

personalidade mudou completamente, sou outra pessoa. (Agente

Socioeducativo).

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Acho que meu casamento acabou muito por conta do meu trabalho. Hoje

acho o problema dos outros extremamente fútil e acho que todo mundo

reclama demais. Depois que trabalhamos dentro de uma Unidade de

Internação temos contato com problemas muito mais graves e sérios do

que a maioria dos nossos amigos ou familiares. (Agente Socioeducativo).

Eu não quero aposentar aqui. Estou voltando a estudar para outros

concursos. O emocional um dia vai cobrar a conta. Vários colegas estão

depressivos, doentes ou se tornaram alcoólatras. (Agente

Socioeducativo).

e) os servidores têm conflitos internos com colegas e chefias.

Os especialistas não gostam dos agentes. Acham que nossa função não

é importante para a medida do moleque. Mas quando acontece alguma

coisa na Unidade, nós é que somos chamados para resolver o problema.

(Agente Socioeducativo).

A corregedoria não tem conhecimento sobre a prática do uso moderado

da força. Eles tem a visão que os agentes são torturadores de internos.

(Agente Socioeducativo).

Os internos se fazem de vítimas e a Corregedoria nos trata como

culpados. Para os internos existem diversas garantias e para os agentes

só deveres. Fiscalizam nossas condutas por tudo. Agora quem defende

os agentes quando os internos nos ameaçam ou nos agridem? (Agente

Socioeducativo).

f) os servidores têm sentimentos negativos sobre seu trabalho e

sobre a possibilidade de ressocialização.

Imagina você recebendo todas as negativas em uma sociedade? Mas o

traficante diz sim. Como competir com o crime? A ressocialização pode

até acontecer, mas ainda é difícil. (Agente socioeducativo).

Já presenciei casos de ressocialização nas Unidades de Internação.

Conheço casos reais em que os adolescentes perderam o vínculo com a

trajetória infracional e estão trabalhando no mercado formal, mas são

situações infelizmente atípicas. (Especialista).

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As medidas socioeducativas foram criadas para ressocializar. Mas na

verdade, eu nunca presenciei nenhum caso. (Agente Socioeducativo).

g) os servidores admitem o uso excessivo da força e da violência, em

certas ocasiões.

Como você vai conter uma briga de adolescentes dentro de uma Unidade

de internação sem o uso moderado da força? Se você não for lá, pegar o

interno pelo braço e sair puxando ele do módulo, você não resolve a

situação. E você vai levar pisada dos internos, vão te jogar cadeado, urina.

A sua integridade física também está em jogo. Tem que bater um gás

para afastar os adolescentes da confusão. Nos momentos de crise, as

Unidades de internação são campos de Guerra. (Agente Socioeducativo).

Por segurança e pela própria integridade física dos servidores e dos

internos os agentes têm que ter uma postura mais dura e usar a força

como medida necessária visando a disciplina da Unidade. (Agente

Socioeducativo).

Na sua casa e na sua família você não tem pais que precisam ser rígidos

quando uma criança ou adolescente tem uma atitude inadequada? Por

que dentro de um sistema em que os adolescentes estão lá para serem

ressocializados pela prática de crimes gravíssimos não deveria acontecer?

(Agente Socioeducativo).

É comum os agentes socioeducativos se envolverem em processos

administrativos disciplinares por praticarem violações de direito com

frequência em desfavor dos adolescentes atendidos. Vemos isso toda a

hora (Especialista).

Já presenciei vários adolescentes lesionados com laudos do IML

contundentes afirmando em atendimento técnico que sofreram vários

tipos de agressões provocadas pelos agentes. Acontece. Mas o

complicado é provar. É sempre a palavra do socioeducando contra a fala

do servidor. (Especialista).

Tem colegas que machucam os adolescentes de propósito nos

procedimentos de contensão. Eu já vi, mas não concordo. (Agente

Socioeducativo).

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Eu não acho certo agredir sem motivo os adolescentes. Lógico que

acontece. Tem servidores e servidores. (Técnico administrativo)

Faltam treinamento dos servidores na tratativa com os adolescentes. Por

isso que às vezes acontecem excessos. (Agente Socioeducativo).

Uma das coisas que mais irritam os adolescentes das Unidades é falar da

mãe deles. Quer irritar um moleque? Chama ele de “rodoviário”. É uma

gíria para os adolescentes que não tem mãe. Alguns agentes adoram

provocar chamando os internos de “rodoviário”, de “pebas” ou de

bandidos na hora de fazer a contagem dos módulos. Acho isso

extremamente errado. Eu chamo os moleques pelo nome. Quando eu

não sei, chamo de interno, jovem ou adolescente. Acho que temos que

ter respeito pelo nosso público. Acho que por isso que sou bem tratado

por eles. (Agente socioeducativo).

O quadro que emerge dos discursos é indelével: a banalidade do mal

acontece nas Unidades de Internação do DF.

De fato, os servidores denunciam ranços de uma da cultura

institucional que os abandonou à própria sorte, que ignora o seu sofrimento,

desestruturação psicológica e medos, que os persegue e julga, e que não se

preocupa com a ressocialização dos menores infratores. A violência, tida como

uma alternativa muitas vezes necessária, surge como resposta legítima ao caos.

O mal emerge no dia a dia, das mãos de vítimas de um sistema que

planta e que colhe desvios, tragédia e violência. O mal não tem rosto, o mal não é

identificável, o mal surge em um comportamento cotidiano que se torna, a cada

dia, um retrato preciso de um sistema falido.

Referências

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do

mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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BAUER, Martin; GASKEL, George. Pesquisa qualitativa com texto imagem e

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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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Disponível em: <http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de-

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em:

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em: 28 dez. 2017.

BRASIL. Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança

e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16

jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>.

Acesso em: 28 dez. 2017.

BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília:

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POPPER, Karl. A verdade e a aproximação da verdade. In Textos escolhidos. Rio

de Janeiro: Ed. PUC Rio, 2010

SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt: história e liberdade: da ação à reflexão. 2

ed. Porto Alegre: Clarinete, 2012.

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AS RELAÇÕES TRABALHISTAS EM CONSONÂNCIA COM O

DESENVOLVIMENTO EMPRESARIAL SUSTENTÁVEL – A RESPONSABILIDADE

SOCIAL CORPORATIVA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DESSE NOVO

PARADIGMA

Theobaldo Eloy de Carvalho Neto

Mestrando no Programa de Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos

Reivindicatórios pelo Centro Universitário IESB – Instituto de Ensino Superior de Brasília;

bacharel em Direito pelo UniCEUB – Centro Universitário de Brasília; advogado.

Douglas Alencar Rodrigues

Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP);

especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB); bacharel em

Direito pela Universidade de Brasília (1989); professor dos cursos de graduação e pós-

graduação do Centro Universitário IESB; ministro do Tribunal Superior do Trabalho.

Augusto César Leite de Carvalho

Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla la Mancha;

pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca; mestre em Direito

pela Universidade Federal do Ceará; master em Direito das Relações Sociais na

Universidad de Castilla la Mancha; professor dos cursos de graduação e pós-graduação

do Centro Universitário IESB; ministro do Tribunal Superior do Trabalho.

Resumo

Este artigo se propõe a estudar o contínuo conflito existente entre capital e trabalho, sob

a perspectiva de um novo paradigma, qual seja: o desenvolvimento empresarial

sustentável. Estuda-se a sustentabilidade em suas várias dimensões, com foco na

dimensão social. Da mesma forma, investiga-se a responsabilidade social corporativa

como importante etapa deste processo pela busca do novo paradigma a ser alcançado.

Tudo isso para se chegar a uma solução viável às duas partes da relação empregatícia,

aliando-se o princípio constitucional da livre iniciativa com o direito fundamental social ao

trabalho digno.

Palavras-chave: Direitos sociais. Desenvolvimento empresarial sustentável.

Sustentabilidade. Responsabilidade social empresarial.

Abstract

This article aims to study the continuous conflict between capital and labor, from the

perspective of a new paradigm: sustainable business development. Sustainability is studied

in its various dimensions, focusing on the social dimension. This article also investigates

the corporate social responsibility as an important step in this process for the search for

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the new paradigm to be reached. The objective is to reach a viable solution to both parts

of the employment relationship, allying the constitutional principle of free initiative with

the fundamental social right to decent work.

Keywords: Social rights. Sustainable business development. Sustainability. Corporate

social responsibility.

Introdução

os mais diversos momentos e nos mais variados aspectos da relação de

emprego, deparamo-nos com situações em que os interesses das partes

diretamente envolvidas no contrato de trabalho estão impregnados pela

premissa de que devem sempre caminhar em sentidos opostos, como se houvesse

um abismo intransponível entre ambos. A satisfação de um interesse empresarial

parece ser necessariamente dependente da precarização da mão-de-obra. Já as

conquistas obreiras também aparentam obrigatoriamente depender do

comprometimento de parte do lucro da sociedade empresária. Os tempos mudam,

os discursos são remodelados, mas a ideia por trás das soluções tradicionais dadas

aos problemas laborais remanesce sempre baseada na mesma mentalidade

histórica: o conflito entre capital e trabalho.

Nesse contexto, a regulamentação do trabalho, que surge

continuamente em meio a tal conflito, costuma contrapor direitos das duas partes

da relação de emprego: por um lado, são criadas condições laborais que visam à

maximização do lucro a partir da flexibilização do trabalho, o que pode, em

potencial, ofender princípios constitucionais e direitos fundamentais basilares dos

trabalhadores, destacadamente o princípio da dignidade da pessoa humana, o

direito social ao trabalho digno, o valor social do trabalho e a valorização do

trabalho humano como fundamento da ordem econômica que assegure a todos

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uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, nos termos da

Constituição Federal. Por outro lado, há a necessidade de não se ignorar, no

momento em que se definem as diretrizes a serem adotadas na relação

empregatícia, a livre iniciativa tal qual princípio constitucional, que deve ser

valorizada sobretudo no tocante à liberdade de se contratar.

Um caminho traçado à busca de uma solução viável ao problema

exposto é a responsabilidade social da empresa privada. Ter o desenvolvimento

sustentável como novo paradigma a ser observado. Implementar uma gestão

empresarial socialmente responsável, inclusive no tocante às relações laborais.

Para tratar do tema, faz-se mister discorrer sobre os institutos da sustentabilidade,

do desenvolvimento sustentável, e da responsabilidade social.

Dessa forma, tornar-se-á possível responder importantes

questionamentos: seria o desenvolvimento sustentável um paradigma a ser

seguido por quaisquer organizações, inclusive privadas? Seria a dimensão social

da sustentabilidade capaz de oferecer solução digna a uma relação empregatícia

precarizada pelos interesses do capital? É sobre o que se propõe discorrer neste

estudo.

1 Relação entre desenvolvimento sustentável, sustentabilidade e

responsabilidade social empresarial – O papel das organizações privadas

neste novo contexto

“Um modo tradicionalmente bem-sucedido de enfrentar uma situação

complexa é por meio da desagregação de seus componentes” (BARBIERE;

CAJAZEIRAS, 2016, p. 43). Seguindo a lógica de José Carlos Barbieri, visando à

compreensão da origem do dever empresarial de aplicação da responsabilidade

social às relações trabalhistas de maneira geral, propõe-se que a presente análise

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seja feita a partir da concepção do instituto macro em questão, ou seja, o

desenvolvimento sustentável.

Em que pese ser um conceito amplamente utilizado, não há

unanimidade quanto a uma definição mais complexa de “desenvolvimento

sustentável”. Entretanto, percebe-se consenso, como ponto de partida, quanto ao

relatório “Nosso futuro comum” (também chamado relatório Brundtland), emitido

pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, publicado em

1987, que define desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às

necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações

futuras atenderem a suas próprias necessidades”

A partir dessa noção inicial, diferenciamos os institutos da

sustentabilidade, do desenvolvimento sustentável e da responsabilidade social, ao

mesmo tempo em que os correlacionamos, através da lição de Samia Moda Cirino:

Sobre a diferença entre desenvolvimento sustentável e sustentabilidade,

Munck e Borim de Souza (2009, p. 193) esclarecem que a sustentabilidade

refere-se à capacidade de manutenção contínua de um meio, enquanto

o desenvolvimento sustentável refere-se aos processos integrativos que

visam a manter o equilíbrio dinâmico de um sistema complexo em longo

prazo. Dessa forma, entende-se a sustentabilidade como a ideia motriz

do desenvolvimento sustentável, uma vez que os processos que integram

um determinado sistema se voltam para um processo contínuo de

desenvolvimento. A sustentabilidade compõe, assim, ações objetivas que

propiciam o alcance de um desenvolvimento sustentável. A

sustentabilidade busca o equilíbrio de qualquer sistema e o

desenvolvimento sustentável busca a soma destes equilíbrios e o

equilíbrio maior entre os sistemas.

Já a responsabilidade social empresarial corresponde a uma parcela

muito menor de todos os processos envolvidos para o alcance do

desenvolvimento sustentável. [...] a sustentabilidade organizacional é

uma meta maior, dentro da qual a responsabilidade social empresarial é

compreendida como um estágio intermediário, no qual as empresas

constroem diálogos com todas as partes envolvidas e procuram meios

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que viabilizem práticas de gestão que integrem as dimensões da

sustentabilidade.

[...] Consoante expõe Félix (2003, p. 19):

Ser socialmente responsável não significa respeitar e cumprir

devidamente as obrigações legais, mas sim, o fato de empresas irem além

de suas obrigações em relação ao seu capital humano, ao meio ambiente

e à comunidade por perceberem que o bem-estar deles reflete em seu

bem-estar (CIRINO, 2014, p. 85).

Perceba-se que, apesar de muitas vezes confundidas, a noção de

sustentabilidade guarda sutil diferença em relação àquela correspondente ao

desenvolvimento sustentável, na medida em que a sustentabilidade, em suas várias

dimensões e em seus vários processos, caracteriza-se justamente como

pressuposto ao alcance do desenvolvimento – com equilíbrio – de um sistema

integrado mais complexo – que atenda às necessidades do presente sem o

comprometimento do futuro.

Ocorre que dentre as várias dimensões que integram a sustentabilidade

e, consequentemente, contribuem para o desenvolvimento sustentável, está não

apenas o manejo racional dos recursos naturais (atendendo a necessidades

materiais), mas, também, a modificação da organização produtiva e social, que

reduza a desigualdade e a pobreza, bem como reduza as práticas predatórias69,

criando um novo paradigma nas relações sociais, cujo objetivo não será somente

o lucro, senão ainda o bem-estar humano (DIAS, 2012, p. 48) Dessa forma, para

69 Segundo Amartya Sen, “a liberdade sustentável poderá soltar-se dos limites que lhe vêm

das formulações propostas pelo Comitê Brundtland e por Solow, para abraçar a

preservação e, quando possível, a expansão das liberdades e capacidades substantivas das

pessoas dos dias de hoje, sem com isso, comprometer a capacidade das futuras gerações

para terem uma idêntica ou maior liberdade.” SEN, Amartya. Desenvolvimento como

liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 343.

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uma organização empresarial, por exemplo, alcançar um desenvolvimento

sustentável, deve orientar suas atividades buscando resultados satisfatórios em

todas as dimensões da sustentabilidade que lhe forem inerentes.

Sob esse ângulo, para se chegar à responsabilidade social, deve-se ter

em mente, então, as dimensões da sustentabilidade, “em sua riqueza poliédrica,

sem hierarquia férrea e sem caráter exaustivo entre elas”,70 que hodiernamente são

assim elencadas: dimensões social, ética, ambiental, econômica, e jurídico-

política.71

Enquanto a sustentabilidade discute, de forma mais ampla, princípios

organizacionais, tendo o cuidado de promover a criação de valores (humanos, por

exemplo, em sua dimensão social), a responsabilidade social se insere nesse

contexto como importante etapa através da qual a empresa buscará

especificamente atender aos interesses das pessoas envolvidas na organização,

através de práticas de gestão que se orientem pelas referidas dimensões da

sustentabilidade.

Para uma compreensão inicial do instituto – adiante aprofundado –,

cumpre salientar o conceito geral amplamente aceito acerca da responsabilidade

social, definido pela Norma Internacional ISO 26000 – Diretrizes sobre

Responsabilidade Social:

70 De acordo com Freitas, “a pluridimensionalidade, criticamente reelaborada, conduz à

releitura ampliativa da sustentabilidade (para além do consagrado e clássico tripé social,

ambiental e econômico). Com o acréscimo elucidativo de, pelo menos, duas dimensões e

o abandono de acepções demasiado estreitas, mostra-se factível localizar o

desenvolvimento que importa, em sintonia com a resiliência dos ecossistemas e com a

equidade intra e intergeracional.” FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro.

4ª. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 62. 71 FREITAS, op. cit., p. 64-82.

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.responsabilidade social

.responsabilidade de uma organização (2.12) pelos impactos (2.9) de suas

decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente (2.6), por meio

de um comportamento ético (2.7) e transparente que contribua para o

desenvolvimento sustentável (2.23), inclusive a saúde e bem-estar da

sociedade; leve em consideração as expectativas das partes interessadas

(2.20); esteja em conformidade com a legislação aplicável e seja

consistente com as normas internacionais de comportamento (2.11); e

esteja integrada em toda a organização (2.12) e seja praticada em suas

relações (ABNT, 2010).

Já no tocante à importância de se manter uma organização empresarial

privada que seja socialmente responsável, impõe se destacarem as diretrizes – para

que se obtenha o almejado desenvolvimento sustentável – passadas às empresas

desde o Programa das Nações Unidas para o século XXI – a conhecida “Agenda

21” –, estabelecida pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e

Desenvolvimento (CNUMAD), em 1992. A “Cúpula da Terra”, como também foi

chamada a CNUMAD, assim recomendou, em síntese, em seu capítulo 30:

B. Promoção da responsabilidade empresarial

Base para a ação

30.17. O espírito empresarial é uma das forças impulsoras mais

importantes das inovações, aumentando a eficiência do mercado e

respondendo a desafios e oportunidades. Os empresários pequenos e

médios, em particular, desempenham um papel muito importante no

desenvolvimento social e econômico de um país. [...]. Os empresários

responsáveis podem desempenhar um papel importante na utilização

mais eficiente dos recursos, na redução dos riscos e perigos, na

minimização dos resíduos e na preservação da qualidade do meio

ambiente.

Objetivos

30.18. Propõem-se os seguintes objetivos:

(a) Estimular o conceito de vigilância no manejo e utilização dos recursos

naturais pelos empresários;

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(b) Aumentar o número de empresários cujas empresas apóiem e

implementem políticas de desenvolvimento sustentável (ONU, 1992).

Veja-se a relevância dada às sociedades empresárias a partir da Agenda

21, em que se frisa o papel destinado às organizações privadas quanto à utilização

eficiente dos recursos disponíveis na busca do desenvolvimento social e

econômico de um país. Ao que parece, o recado foi devidamente assimilado, tendo

em vista o documento elaborado – para o próprio meio empresarial – pelo

Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável, intitulado “Mudando o

rumo: uma perspectiva global do empresariado para o desenvolvimento e o meio

ambiente”.72

Dias explica que, em tal documento, o Conselho reconheceu:73

[...] o mundo se move em direção à desregulação, às iniciativas

privadas e aos mercados globais. Isto exige que as empresas

assumam maior responsabilidade social, econômica e ambiental

ao definir seus papéis e ações.

Contudo, no mesmo documento, o Conselho Empresarial observou que,

para alcançar tal objetivo, exigem-se “mudanças profundas e de amplo alcance na

atitude empresarial, incluindo a criação de uma nova ética na maneira de fazer

negócios”

72 SCHMIDHEINY, Stephan. Cambiando el rumbo: una perspectiva global del empresariado para

el desarrollo y el medio ambiente. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 12. 73 DIAS, op. cit., p. 50.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

É nesse cenário que se identifica o papel da organização privada na

busca pelo desenvolvimento sustentável, e surge a responsabilidade social

empresarial como uma meta pela qual uma empresa buscará o diálogo com os

stakeholders – consumidores, empregados, acionistas, comunidade local, meio

ambiente etc. –74 a fim de alcançar práticas de gestão organizacional que integrem

a pluridimensionalidade da sustentabilidade, sobretudo, no que mais interessa ao

presente estudo, em sua dimensão social, conforme tratado adiante.

2 Responsabilidade social empresarial: o amadurecimento do instituto

e de suas dimensões

Compreendida a relação entre desenvolvimento sustentável,

sustentabilidade e responsabilidade social, bem como assentada a relevante

atribuição das sociedades empresárias nesse contexto, discorre-se agora de forma

mais específica sobre a responsabilidade social da empresa, destrinçando o

instituto para que se possa compreender o tratamento que lhe é dispensado nos

dias atuais, e as implicações – sobretudo no ambiente laboral – da referida

responsabilidade empresarial.

74 Consoante Freeman, stakeholder é “qualquer grupo ou indivíduo que pode afetar ou ser

afetado pelo êxito da empresa ao atingir seus objetivos”. FREEMAN, R. Edward. Strategic

management: a stakeholder approach. Boston: Pitman, 1984, p. 24.

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O instituto da responsabilidade social empresarial (ou corporativa) não

nasceu como um discurso uníssono entre os especialistas do tema. Ashley

leciona:75

Quem é contrário a ele se baseia nos conceitos de direitos da

propriedade (de Friedman) e na função institucional (de Leavitt).

Friedman argumentava que a direção corporativa, como agente dos

acionistas, não tem o direito de fazer nada que não atenda ao objetivo

de maximização dos lucros, mantidos os limites da lei. Agir diferente seria

uma violação das obrigações morais, legais e institucionais da direção da

corporação. O ponto central do argumento da função institucional está

em que outras instituições, como governo, igrejas, sindicatos e

organizações sem fins lucrativos, existem para atuar com base nas

funções necessárias ao cumprimento da responsabilidade social

corporativa. Gerentes de grandes corporações não têm competência

técnica, tempo ou mandato para tais atividades, que constituem uma

tarifa sobre o lucro dos acionistas (ASHLEY, 2019, p. 6).

Parece não restar dúvida de que o entendimento de Friedman se tornou

insustentável, pois vai de encontro ao comportamento que se exige de qualquer

instituição pela sociedade. De todo modo, a par de qualquer resistência, o instituto

da responsabilidade social passou a se disseminar a partir da década de 1970, seja

por meio de autores que investigam o tema a partir de uma abordagem

substantiva – derivada de princípios éticos e religiosos, ainda que haja despesas

improdutivas para a empresa – ou de uma abordagem instrumental – que

considera haver uma relação positiva entre a prática empresarial responsável e o

desempenho econômico da empresa.76

75 ASHLEY, Patrícia Almeida. Ética, responsabilidade social e sustentabilidade nos

negócios: (des)construindo limites e possibilidades. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p.

6-7. 76 ASHLEY, op. cit., p.7.

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Todavia, mesmo com o passar dos anos, definir responsabilidade social

empresarial ainda não é tarefa fácil.77 Ao longo do tempo, é certo que o conceito

foi se afastando cada vez mais da ideia pura e simples de filantropia, mas ainda

vem sendo assimilado de diferentes formas a depender do contexto (aspectos

culturais do local em que a empresa se instala, nível de desenvolvimento do país,

entre outros).

O que se pode perceber é que responsabilidade social empresarial

abarca hoje uma definição complexa, concebendo, porém, de forma consonante

entre os especialistas do tema, uma visão empresarial que interaja com todas as

partes com as quais a empresa se relaciona em suas atividades (stakeholders).

Alves explica que o foco central do instituto é o compromisso das empresas com

toda a sociedade, e não apenas com seus acionistas.78

No mesmo sentido, a lição de Dias elucida: 79

A RS é um conjunto de ideias e práticas da organização que fazem parte

de sua estratégia e que tem como objetivo evitar prejuízos e/ou gerar

benefícios para todas as partes interessadas (stakeholders) na atividade

77 Laasch e Conaway explicam que uma “pesquisa recente, ao resumir as definições

comuns de RSE, descobriu que nada menos que 37 definições distintas tinham sido

estabelecidas em fontes de teoria e prática, entre 1980 e 2003. A pesquisa, no entanto,

encontrou cinco elementos comuns na maioria daquelas definições. Na relação desses cinco

elementos apresentada a seguir, os percentuais entre parênteses indicam a frequência do

termo nas definições pesquisadas. 1. Pensamento no stakeholder (88%) 2. Dimensão social

(88%) 3. Dimensão econômica (86%) 4. Assumir responsabilidade em caráter voluntário

(80%) 5. Dimensão ambiental (59%). OLIVER, Laasch; CONAWAY, Roger N.

Fundamentos da gestão responsável: sustentabilidade, responsabilidade e ética. São

Paulo: Cengage Learning, 2015, p. 87. 78 ALVES, Marcos César Amador. Relação de trabalho responsável: responsabilidade

social empresarial e afirmação dos direitos fundamentais no trabalho. São Paulo: LTr,

2011, p. 36. 79 DIAS, op. cit., p. 20.

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da empresa (consumidores, empregados, acionistas, comunidade local,

meio ambiente etc.), adotando métodos racionais para atingir esses fins

e que devem resultar em benefícios tanto para a organização como para

a sociedade.

Embora haja ainda outras tantas definições para o referido instituto,

Dias sintetiza bem os pontos de convergência entre os elementos principais

atribuídos à responsabilidade social empresarial entre os diversos conceitos

doutrinários encontrados: a) compromisso social da empresa; b) decisão voluntária

(não regulada pela legislação); c) conduta ética; d) benefícios para a sociedade; e)

desempenho ambiental (importância do meio ambiente); f) adaptabilidade (ao

contexto de cada sociedade).

Apurar os pontos de convergência do conceito nos dá o norte sobre o

instituto em estudo. Mas se já é missão árdua conceituar responsabilidade social

empresarial, pô-la em prática é igualmente difícil. O instituto envolve uma série de

direitos e obrigações dos mais variados tipos de públicos (stakeholders). Os

acionistas visam principalmente ao lucro; os empregados anseiam por melhores

condições de labor e remuneração; os consumidores procuram melhor custo-

benefício, e assim sucessivamente. Conciliar todos esses fatores é tarefa complexa.

Por isso, o esquema visto a seguir, elaborado por Carroll,80 tem sido uma inspiração

constante para quem se debruça sobre o tema.

80 CARROLL, Archie B. The pyramid of corporate social responsibility: toward of

moral management of organizational stakeholder. In: Business Horizons, v. 34, n. 4, 1991,

p. 39-48.

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Em 1979, Archie Carrol lançou um modelo piramidal que se tornou base

de inúmeros programas de gestão empresarial desde então. Para o autor, a

responsabilidade social da empresa deve envolver as expectativas econômicas,

legais, éticas e filantrópicas que a sociedade deposita nas organizações em um

determinado período.

Na base da pirâmide, estariam as responsabilidades empresariais

econômicas: a empresa precisa ser lucrativa, tendo em vista que é unidade

econômica básica da sociedade, devendo produzir os recursos de que a sociedade

necessita e comercializá-los mediante lucro (desde que a um preço que garanta a

continuidade das atividades empresariais).

Logo acima na pirâmide de Carroll, encontram-se as responsabilidades

legais: a empresa deve agir conforme as regras básicas estabelecidas pela

sociedade. Neste patamar, as empresas procuram atingir suas metas econômicas

dentro das leis estatais.

Em seguida, vêm as responsabilidades éticas, que dizem respeito a

condutas empresariais que não são exigidas por lei, ou que não objetivam

primordialmente o aspecto econômico. É o fato de a empresa manter um

comportamento aceitável, agir da forma como a sociedade espera, fazendo o que

é certo e justo, ainda que não seja obrigada a adotar tal procedimento.

Finalmente, no topo da pirâmide, Carroll elencou as responsabilidades

filantrópicas, partindo da ideia de que a empresa deve ser uma empresa-cidadã,

comprometendo-se com programas que visem ao bem-estar humano. Neste

domínio, não há uma expectativa pré-definida da sociedade em relação à empresa,

mas o que se propõe é uma forma de ressarcimento à sociedade de parte do que

esta ofereceu à organização privada.

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Dessa forma, seria socialmente responsável a empresa que atendesse,

concomitantemente, às quatro responsabilidades elencadas: econômica, legal,

ética e filantrópica.

Em 1991, Carroll aprimorou o modelo inicial, incorporando-o sob o

prisma do atendimento aos stakeholders e da cidadania corporativa. Juntamente

a Schwartz81, denominaram o novo trabalho de: “Modelo dos três domínios da

responsabilidade social corporativa”. Em tal modelo, procuraram corrigir duas

inadequações: a primeira, deixar claro que não haveria hierarquia entre as

responsabilidades, tendo em vista que o modelo antigo, por ser piramidal, poderia

equivocadamente sugerir que a responsabilidade filantrópica seria a mais

importante das quatro; a segunda, corrigir a impressão inicial de que não existiria

interação entre as ditas responsabilidades.

Paralelamente a isso, a filantropia deixou de configurar como uma das

quatro responsabilidades, dentre outros motivos, pelo fato de ser bastante

complicado diferenciá-la, em muitos casos, da ética; bem como ser difícil identificar

se a verdadeira intenção da empresa, através da filantropia, não teria, em verdade,

objetivos econômicos.

Ante o exposto, os autores passaram a utilizar círculos indicativos das

três responsabilidades persistentes, projetando três diferentes domínios:

econômico, legal e ético. Assim resultou o novo modelo:82

81 SCHWARTZ, M. S.; CARROLL, A. B. Corporate social responsibility: a three-

domain approach. Business Ethics Quartely, v.13, n. 4, 2003, p. 503-550. 82 GAUDÊNCIO, Pedro Miguel Duarte. Análise das percepções e comportamentos dos

trabalhadores em função da responsabilidade social empresarial e seu desempenho

individual. 2009. 107 f. Dissertação (Mestrado em Estratégia Empresarial) – Faculdade de

Economia da Universidade de Coimbra, 2009. Disponível em:

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Figura 02 - Modelo dos três domínios da responsabilidade social

corporativa

No tocante ao primeiro domínio, Barbieri83 explica:

O campo econômico refere-se às atividades voltadas à produção de

impactos econômicos positivos, diretos e indiretos, entendidos como

maximização de lucro ou do valor das ações. Atividades para incrementar

as vendas ou para evitar litígios são exemplos de impactos econômicos

https://www.researchgate.net/figure/Figura-2-Modelo-de-3-Dominios-de-RSE-Fonte-

Schwartz-e-Carroll-2003_fig2_277072552 Acesso em: 05 nov. 2019. 83 BARBIERI, e CAJAZEIRA, op. cit., p. 46.

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diretos; ações para melhorar a imagem da empresa ou para elevar a

motivação dos empregados são exemplos de impactos indiretos.

Quanto ao domínio legal, Barbieri esclarece que este se refere “às

respostas dadas pela empresa com relação às normas e aos princípios legais”.84

Finalmente, sobre o domínio ético no novo modelo de Carroll, arremata

o autor:

O domínio ético refere-se às responsabilidades da empresa diante das

expectativas da população em geral e dos stakeholders relacionados,

envolvendo imperativos éticos domésticos e globais. Esse domínio da

responsabilidade social pode se dar mediante padrões éticos gerais. Um

deles, o padrão convencional, corresponde ao que se denomina na

filosofia moral de relativismo ético. São os padrões e as normas sociais

aceitas como necessárias para o funcionamento das empresas pelas

indústrias onde elas atuam, pelas associações profissionais e pela

sociedade, incluindo acionistas, clientes, empregados, competidores e

outros stakeholders. Como essas normas sociais variam entre diferentes

grupos sociais, uma forma de se contornar essa limitação é mediante a

elaboração e aplicação de códigos formais de ética. 85

Destarte, pode-se compreender a responsabilidade social empresarial

como o conjunto das práticas de gestão organizacional que visam beneficiar não

apenas os proprietários ou acionistas da organização, mas, também, a sociedade

em geral – aqui incluídos os empregados da empresa –, a partir das

84 Segundo Barbieri, Carroll atribui ao domínio legal três categorias: a) conformidade legal,

que pode ser acidental (a empresa acidentalmente atende à lei), restrita (se não existisse a

lei, a empresa não tomaria tal atitude), ou oportunista (operação onde as exigências legais

são frouxas ou lacunosas); b) evitação de litígios, que são ações voltadas para este fim; c)

antecipação, que são ações que se antecipam às mudanças legais. BARBIERI, e

CAJAZEIRA, op. cit., p. 47. 85 BARBIERI, op. cit., p. 47.

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responsabilidades (econômicas, legais e éticas) atribuídas às organizações privadas

pela sociedade.

Neste âmbito, como visto, o comprometimento da empresa com a

responsabilidade social necessita que as ações empresariais sejam pautadas na

busca da sustentabilidade em suas mais variadas dimensões, entre elas a dimensão

social, que possibilita o almejado modelo de governança que agasalha os direitos

fundamentais sociais, sem descuidar das demais responsabilidades da empresa,

inclusive econômicas.

3 Responsabilidade social corporativa no âmbito das relações de

trabalho: as implicações da dimensão social da sustentabilidade no ambiente

laboral

Finalmente, é na dimensão social da sustentabilidade que encontramos

a vedação a qualquer modelo de desenvolvimento (para que este se considere

sustentável) que seja excludente e desumano. Freitas explica:86

De nada serve cogitar da sobrevivência enfastiada de poucos,

encarcerados no estilo oligárquico, relapso e indiferente, que nega a

conexão dos seres vivos, a ligação de tudo e, mais grave, sabota a

condição imaterial do desenvolvimento.

Logo, não pode haver, sob a égide do paradigma da sustentabilidade,

espaço para a simplificação mutiladora, nem para a discriminação

negativa (inclusive de gênero, como realça o ODS 5, da Agenda 2030).

Válidas são apenas as distinções voltadas a auxiliar os desfavorecidos,

mediante ações positivas e intervenções empáticas e altruístas

86 FREITAS, op. cit., p. 65-66.

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(efetivamente recompensadoras) que permitem fazer frente à pobreza

(material e cognitiva), segundo métricas confiáveis, que contemplem os

efeitos oblíquos das mazelas socioambientais.

Na dimensão social da sustentabilidade, abrigam-se os direitos

fundamentais sociais, que requerem outro modelo de governança,

caracterizada por programas dirigidos à universalização do acesso aos

bens e serviços essenciais, com o suporte em evidências.

Além disso, Freitas encerra ressaltando que a dimensão social da

sustentabilidade reclama o “engajamento na causa do desenvolvimento que insere

a solidariedade reflexiva na sociedade em rede”, promovendo-se, ao fim e ao cabo,

dignidade. Não são mais admitidas as empresas que, almejando lucro, sacrificam

direitos humanos. Evitar o desenvolvimento empresarial a qualquer preço, evitar o

desenvolvimento pelo desenvolvimento, mas garantir um desenvolvimento que

mantenha uma preocupação social; essa é a razão de ser da dimensão social da

sustentabilidade.

Exemplo bastante ilustrativo dessa procura pelo desenvolvimento com

preocupação social, essência da dimensão social da sustentabilidade, pode ser

extraído da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, apresentada pela

Organização das Nações Unidas. 87 Na Agenda, entre os 17 objetivos de

Desenvolvimento Sustentável (ODS) traçados, destaca-se o Objetivo 8: “Promover

o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e

87 “Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento

Sustentável.” Nações Unidas, 2015. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-

content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2020.

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produtivo e trabalho decente para todos.” Dentro deste mesmo objetivo, algumas

metas se destacam no tratamento dispensado à busca pelo pleno emprego:

8.3 Promover políticas orientadas para o desenvolvimento que apoiem as

atividades produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo,

criatividade e inovação, e incentivar a formalização e o crescimento das

micro, pequenas e médias empresas, inclusive por meio do acesso a

serviços financeiros.

8.5 Até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e trabalho decente

todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com

deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor.

8.6 Até 2020, reduzir substancialmente a proporção de jovens sem

emprego, educação ou formação.

8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado,

acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a

proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo

recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o

trabalho infantil em todas as suas formas.

8.8 Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho

seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os

trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas

em empregos precários.

Nesse contexto, Laís de Oliveira Penido88 defende a sustentabilidade da

empresa a partir da observância à valorização do trabalho humano, que

possibilitará a criação de empresas “humanamente sustentáveis”:

Os recursos humanos não devem ser utilizados e explorados

excessivamente de forma a comprometer a oportunidade desta e da

próxima geração de gozar de saúde e de bem estar, de afetar a

sustentabilidade do mercado e da capacidade de trabalho da população

88 PENIDO, Laís de Oliveira. Por um meio ambiente humano de trabalho sustentável.

Revista de direito do trabalho, São Paulo, SP, v. 41, n. 161 (jan./fev. 2015), p. 157-176.

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economicamente ativa, assim como da reposição de mão de obra dessa

população.

A ideia básica da administração é a de dirigir uma organização

conduzindo-a em uma direção compatível com as suas metas e objetivos.

No que diz respeito às organizações empresariais, essas metas são

fundamentalmente econômicas. A sustentabilidade em nível de negócios

é um conceito mais amplo e profundo do que o mero ganho financeiro.

Uma empresa só se torna sustentável através de um processo de

conquista do desenvolvimento econômico e humano, sendo este um

procedimento mais justo, criterioso, seguro e interdependente.

Por isso, a empresa sustentável é aquela que contribui para o

desenvolvimento criando, simultaneamente, valor social, humano,

econômico e do meio ambiente do trabalho, usando os recursos de que

dispõe com a habilidade de satisfazer as suas necessidades sem afetar a

saúde de seus empregados, comprometendo assim a viabilidade das

gerações atuais e futuras também satisfazerem as suas necessidades. Essa

concepção permitirá projetar organizações empresariais humanamente

sustentáveis.

Pois bem. Aprofundando-se a concepção sobre a dimensão social da

sustentabilidade, e rememorando-se a ideia de que a responsabilidade social

corporativa implica práticas de gestão empresarial que sejam pautadas na busca

da sustentabilidade em suas mais variadas dimensões, é fundamental se entender

quais condutas específicas de uma empresa fazem-na ser considerada uma

sociedade empresária efetivamente responsável sob o ponto de vista

propriamente social, ou seja, quais atitudes tornam-na uma organização privada

que atenda aos interesses não apenas de seus acionistas, mas, sim, de todos os

seus principais stakeholders, aí certamente incluindo-se seus empregados.89

89 Segundo Alves, “A valorização do trabalho humano está, fora de dúvida, em

diferenciado patamar de importância no que concerne às práticas de responsabilidade social

empresarial. [...] Não há dúvida de que, entre as diversas dimensões da responsabilidade

social empresarial, aquela que evidencia maior proeminência em razão, até mesmo, das

atividades corporativas em si, é a que se preocupa com o público interno e com as práticas

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Aliando-se as três responsabilidades recomendadas no “Modelo dos

três domínios da responsabilidade social corporativa” tal qual anteriormente visto,

a saber, as responsabilidades empresariais econômicas, legais e éticas, é possível

se implantar a responsabilidade social da empresa a partir do compromisso que

ela firma com seus empregados, implementando uma política inovadora no

sentido de tornar seus colaboradores seu principal ativo. No que mais interessa ao

presente estudo, Dias sugere, como mecanismo de adoção da responsabilidade

social empresarial:90

- melhoria das condições de trabalho: estabelecer um

compromisso transparente com a melhoria das condições de trabalho,

com o desenvolvimento profissional e com o seu bem-estar; indo além

do respeito pela legislação pertinente que regula as relações trabalhistas

no que se refere à contratação, segurança e saúde no posto de trabalho;

deste modo, ficará demonstrado que a empresa valoriza as pessoas e leva

em consideração sua contribuição para o sucesso do negócio;

- aumentar o envolvimento dos trabalhadores com a empresa: isso

permite à organização obter algo mais dos funcionários, que pode surgir

na forma de ideias, maior compromisso e lealdade, que no seu conjunto

aumentará a eficiência. As empresas são basicamente organizações

humanas que dependem de uma rede social e de relações internas e

externas vitais para a sua existência, e que lhes permitirá levar a

prosperidade para toda a sociedade. De como são administradas essas

relações no ambiente de trabalho dependerá o êxito da empresa;

- formação: fomentar e facilitar a formação profissional contínua;

trabalhistas que adotam seus fornecedores. O princípio da dignidade da pessoa humana

exige, de modo basilar, a concepção da proteção do trabalho. Do trabalho digno. [...] A

afirmação dos direitos fundamentais do trabalho deve ser contemplada como pressuposto

primeiro da responsabilidade social empresarial. Em idêntico sentido, com reverberação

ainda mais intensa, a eliminação absoluta do trabalho indigno deve ser preconizada”.

ALVES, op. cit., p. 45-46. 90 DIAS, op. cit., p. 76-77.

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Além disso, no Brasil, a ABNT NBR 1600191, que implantou um sistema

de gestão que permite a certificação e que serviu de base para o desenvolvimento

do Programa Brasileiro de Certificação em Responsabilidade Social (PBCRS) 92 ,

estabelece requisitos mínimos necessários a uma gestão organizacional

socialmente responsável, dentre os quais estão, por exemplo, no que concerne à

relação entre os titulares da sociedade empresária e seus empregados: a)

transparência; b) comportamento ético; c) respeito pelos interesses das partes

interessadas; d) respeito aos direitos humanos; e) promoção do desenvolvimento

sustentável. A mesma norma estabelece, dentre os objetivos e metas a serem

traçados pela organização: a) respeito aos direitos do trabalhador, incluindo o de

livre associação, de negociação, a remuneração justa e a benefícios básicos, bem

como o combate ao trabalho forçado; b) respeito aos direitos da criança e do

adolescente, incluindo o combate ao trabalho infantil; c) compromisso com o

desenvolvimento profissional; d) promoção da saúde e da segurança.

Nota-se, portanto, que a responsabilidade social guia a empresa na

busca de práticas de gestão organizacional que promova melhores condições de

trabalho a seus empregados, ultrapassando as garantias básicas asseguradas pela

legislação em vigor e indo além, valorizando seus colaboradores; investindo,

91 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR ISO 16001:

Responsabilidade social – Sistema da gestão. Rio de Janeiro: ABNT, 2011. 92 “O Programa Brasileiro de Certificação em Responsabilidade Social (PBCRS) é um

processo voluntário, no qual a organização busca demonstrar aos clientes e à sociedade,

por meio de uma avaliação de terceira parte, que o sistema de gestão atende aos

princípios da responsabilidade social.” Disponível em:

<http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/programa_certificacao.as

p> Acesso em: 17 jan. 2019.

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inclusive, em formação contínua do profissional que integre o quadro de pessoal

da sociedade empresária.

Neste contexto é que se garante o modelo de governança que agasalha

os direitos fundamentais sociais do trabalhador, aí incluso o direito social ao

trabalho digno, até mesmo naqueles casos em que a empresa, por exemplo, está

legalmente liberada para irrestritamente se utilizar de qualquer relação

empregatícia precarizante. Dessa forma, retomando uma de nossas indagações

iniciais, é possível se concluir que a dimensão social da sustentabilidade é, sim,

capaz de oferecer uma solução digna a uma relação empregatícia tendencialmente

precarizada pelos interesses do capital.

Considerações finais

Como caminho traçado na busca de uma solução viável a fim de se

aliarem os direitos das duas partes da relação empregatícia, nas diferentes

situações que põem em conflito os interesses do trabalhador e do empregador,

até mesmo quando a empresa já encontra, na própria lei, a autorização para adotar

práticas trabalhistas precarizantes, o presente estudo analisou as relações

empregatícias dentro do campo da sustentabilidade do ambiente laboral, com

base na análise aprofundada do instituto do desenvolvimento empresarial

sustentável, que contempla a responsabilidade social empresarial como

importante etapa desse processo através do qual a empresa busca práticas de

gestão que vão além de suas obrigações legais, buscando criar, simultaneamente,

valor não apenas econômico, mas, também, social e humano.

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Conclui-se que é da responsabilidade social empresarial que se extrai a

obrigação que a empresa possui de adotar, na prática, uma gestão que oferte

melhores condições laborais a seus trabalhadores. Aliando-se as responsabilidades

empresariais econômicas, legais e éticas, é possível se implantar a responsabilidade

social da empresa, por exemplo, a partir da aliança que ela firma com seus

empregados, buscando a melhoria das condições de trabalho, o compromisso com

o desenvolvimento profissional, com o bem-estar do empregado e com sua

valorização; o incentivo ao envolvimento dos trabalhadores com a empresa; a

observância aos direitos humanos; o respeito aos direitos do trabalhador, inclusive

à remuneração justa; ultrapassando-se, em todos os casos, a simples observância

à legislação trabalhista. Assim, a empresa estará cumprindo com seu papel, com o

papel destinado às organizações privadas, e garantirá o desenvolvimento

econômico acompanhado da criação de valor não apenas econômico, mas,

também, social.

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TRABALHO DOCENTE E SAÚDE: UM ESTUDO COM PROFESSORES DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO,CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE

BRASÍLIA

Maria Marclane Bezerra Vieira

Mestra em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Instituto de Educação de

Brasília (IESB); especialista em auditoria e docência do ensino superior; docente no

Instituto Federal de Brasília (IFB).

Any Ávila Assunção

Doutora e mestra em sociologia jurídica pela Universidade de Brasília (UnB); graduada

em Direito pelo UNICEUB; pesquisadora colaboradora no Programa de Pós-Graduação

em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB); professora e coordenadora do Curso

Bacharelado em Direito e do Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos

Reivindicatórios do Centro Universitário IESB (PPG-MPDS); advogada atuante na área de

Direito Público, Direitos Sociais e Direitos Humanos, com ênfase nos gênero, violência,

sistema judicial e emancipação social.

Resumo

O presente estudo investigou como os docentes dos Campi Brasília e São Sebastião do

Instituto Federal de Brasília-IFB avaliam a relação entre condições de trabalho e saúde, em

suas ambiências laborais. Participaram do estudo 107 docentes efetivos, sendo 73 do

Campus Brasília e 34 de São Sebastião. Tratou-se de um estudo descritivo com abordagem

quantitativa. Como instrumento de coleta de dados foi utilizado o questionário, construído

por meio da plataforma de pesquisa GoogleForms, com base na Escala de Avaliação do

Contexto de Trabalho e na Escala de Avaliação de Saúde Organizacional. Os resultados

mostraram que as condições de trabalho podem impactar a saúde dos docentes, e estão

fortemente relacionadas as dimensões ‘flexibilidade e adaptabilidade a demandas

externas’ e ‘integração de pessoas e equipes’, que compõem a escala de avaliação de

saúde organizacional.

Palavras-chaves: Docentes, Condições de Trabalho, Saúde.

TEACHING WORK AND HEALTH: A STUDY WITH TEACHERS FROM THE FEDERAL

INSTITUTE OF EDUCATION, SCIENCE AND TECHNOLOGY OF BRASÍLIA

Abstract

The present study investigated how teachers at Campi Brasília and São Sebastião at the

Federal Institute of Brasília-IFB evaluate the relationship between work conditions and

health, in their work environments. A total of 107 permanent professors participated in the

study, 73 from Campus Brasília and 34 from São Sebastião. It was a descriptive study with

a quantitative approach. As a data collection instrument, the questionnaire was used, built

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using the GoogleForms research platform, based on the Work Context Assessment Scale

and the Organizational Health Assessment Scale. The results show that working conditions

can impact the health of teachers, and are strongly related to the dimensions ‘flexibility

and adaptability to external demands’ and ‘integration of people and teams’, which make

up the scale of organizational health assessment.

Keywords: Teachers, Working Conditions, Health.

Introdução

O trabalho docente pode ser definido como o conjunto de ações

pedagógicas, materiais e espirituais, que o homem, enquanto indivíduo e

humanidade desenvolvem para transformar a natureza, a sociedade, os outros

homens e a si próprio, com a finalidade de produzir as condições necessárias a sua

existência (KUENZER, 2000).

No entendimento de Tardif e Lessard (2005) à docência pode ser

caracterizada como uma atividade de trabalho desenvolvida em organizações em

que os professores interagem com outros indivíduos. Pode-se compreender o

trabalho dos professores não somente pelos aspectos técnicos, específicos às

tarefas a que são chamados, mas também, pelo ângulo das atividades emocionais

e interacionais envolvidas, pelas vivências interativas que estão imersos a todo o

momento.

Nessa perspectiva, entender a profissão docente pressupõe compreender

a complexidade do processo de ensino-aprendizagem, pois, segundo Tardif (2002),

o objeto do trabalho docente são os seres humanos que possuem características

peculiares, ou seja, o ensino dirige-se a seres humanos que, são ao mesmo tempo,

seres individuais e sociais.

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Para Tardif (2002), o docente realiza suas atividades com sujeitos que são

individuais e heterogêneos, que possuem diferentes histórias, ritmos, interesses,

necessidades e afetividades.

Outra característica destacada por Tardif (2002) é a dimensão afetiva

existente no ensino que pode funcionar como elemento facilitador ou bloqueador

do processo de ensino aprendizagem. O autor ressalta que uma boa parte do

trabalho docente é de cunho afetivo, emocional, baseando-se em emoções, em

afetos, na capacidade não somente de pensar nos alunos, mas igualmente de

perceber e sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios

bloqueios afetivos.

Ainda de acordo com o mesmo autor, a prática pedagógica dos docentes

constitui-se em gerenciar relações sociais que envolvem tensões, dilemas,

negociações e estratégias de interação. O professor precisa trabalhar com grupos,

mas também tem de se dedicar aos indivíduos; deve ministrar seu conteúdo,

porém de acordo com os alunos, que vão assimilá-lo de maneiras diversas, deve

agradar aos alunos, mas sem que isso se transforme em favoritismo, deve motivá-

los, sem paparicá-los e deve avaliá-los, sem excluí-los (TARDIF, 2002).

São atribuídas aos docentes atividades como ministrar aulas, orientar

pesquisas, acompanhar o desenvolvimento dos alunos, na perspectiva de avaliá-

los no momento apropriado. É responsabilidade do professor a tarefa, cada vez

mais complexa, de atestar ou não o aproveitamento do aluno durante o período

letivo e se o mesmo está apto a seguir em frente e assimilar outros conteúdos.

Considerando os aspectos supramencionados, a presente pesquisa foi

realizada no âmbito da administração pública federal e autárquica, estando

inserida no contexto organizacional do Instituto Federal de Educação, Ciência e

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Tecnologia de Brasília – IFB,93 instituído pela Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de

2008, regido por um Estatuto aprovado em agosto de 2009 (IFB, 2009).

Os docentes dos Institutos Federais atuam em diferentes modalidades de

ensino, incluindo o ensino médio integrado, o ensino técnico subsequente, os

cursos tecnológicos superiores, as licenciaturas e pós-graduações, além de

estarem inseridos no âmbito da pesquisa e extensão. Por isso, para Oliveira e Cruz

(2017), tais Institutos possuem uma institucionalização diferenciada, dedicada a

promover a integração e a verticalização da educação básica à educação

profissional.

Nessa perspectiva, buscou-se responder a seguinte questão: Em que

medida a saúde dos docentes está relacionada com as condições de trabalho,

considerando as relações laborais estabelecidas pelos docentes dos Cursos

Superiores do Instituto Federal de Brasília-IFB, Campi Brasília e São Sebastião?

O presente estudo tem por objetivo geral identificar como a saúde dos

docentes está relacioanda com as suas condições de trabalho, buscando

compreender se o ambiente físico e os demais elementos/infraestrutura material e

imaterial necessários ao planejamento e a execução do trabalho docente são

adequados e satisfatórios para o desempenho da atividade laboral docente; como

também, se a saúde no trabalho é adequada, satisfatória, saudável, e não

ensejadoras de enfermidades ou adoecimentos para os docentes.

93 Atualmente o IFB conta com 10 Campi distribuídos pelo Distrito Federal, nas

cidades de Brasília, Ceilândia, Estrutural, Gama, Planaltina, Riacho Fundo, Samambaia,

São Sebastião, Taguatinga e Recanto das Emas.

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Não só as condições de trabalho, mas todo o contexto de trabalho e a

saúde dos docentes têm suscitado o interesse de pesquisadores das mais

diferentes áreas do conhecimento como sociólogos, psicólogos, epidemiologistas,

ergonomistas e outros profissionais, uma vez que, o docente é um profissional

essencial para a sociedade, pois atuam na formação intelectual, no processo de

ensino e aprendizagem, sendo responsáveis pela formação dos vínculos sociais,

estimulando a autonomia e a responsabilidade por meio de atividades teórico-

práticas, intelectuais e administrativas (KOETZ, 2011).

Assim, pode-se dizer que o exercício da profissão docente exige o domínio

de determinados saberes, que são resultados das experiências, das convicções, das

crenças desses docentes, como também do compromisso que estabelecem com

seus afazeres/atribuições e de suas interpretações acerca dos alunos.

Procedimentos metodolódigos

Quanto aos objetivos esta pesquisa caracteriza-se como bibliográfica e

documental. O estudo bibliográfico teve início com a escolha do objeto de estudo,

e em seguida, a busca por publicações já existentes em periódicos, artigos

científicos, livros, estudos de caso e dissertações.

A pesquisa bibliográfica tem por objetivo conhecer e analisar as principais

contribuições teóricas existentes sobre um determinado tema ou problema

(KÖCHE, 2015).

No que diz respeito à pesquisa documental, além das consultas à

coordenação de gestão de pessoas de cada Campus, foi feita uma busca no acervo

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documental interno do IFB que possui uma fonte rica de dados relacionados ao

contexto de trabalho dos docentes.

Segundo Figueredo e Souza (2008) a pesquisa documental é a análise de

documentos que ainda não receberam um tratamento analítico, ou seja, não foi

objeto de publicação tais como arquivos, fontes estatísticas, escritos oficiais de

todos os gêneros, acervos em geral, documentação de imagens, objetos, etc.

Quanto a abordagem, esta pesquisa caracteriza-se como quantitativa, que

segundo Richardson et al. (2015), o método quantitativo representa a intenção de

garantir a precisão dos resultados, evitar distorções de análise e interpretação para

que haja uma margem de segurança quanto às inferências. É frequentemente

aplicado nos estudos descritivos, naqueles que procuram descobrir e classificar a

relação entre variáveis, bem como nos que investigam a relação de causalidade

entre fenômenos.

A coleta de dados foi realizada mediante aplicação de questionário

construído na plataforma de pesquisa do Google (GoogleForms) na qual foram

registradas as respostas dos docentes que compunham a população da pesquisa.

Como instrumentos de avaliação foram utilizadas a ‘Escala de Avaliação

do Contexto de Trabalho’, elaborada por Ferreira e Mendes (2013) e a ‘Escala de

Avaliação de Saúde Organizacional’, elaborada por Gomide Junior e Fernandes

(1999).

Participaram da pesquisa 107 docentes, conforme descrito: a) 64 docentes

do sexo feminino e 43 do sexo masculino; b) a maioria possui mestrado (50

docentes); c) quanto ao tempo de docência, 55 professores possuem mais de 10

anos de docência; e d) 29 docentes são efetivos no IFB no intervalo de 5 a 8 anos.

Para realizar-se as análises descritivas das estatísticas dos dados

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(frequência percentual, média e desvio padrão) e a correlação dos mesmos

(coeficiente de correlação de Spearman), acerca dos‘condiçõesde trabalho’ e a

‘saúde dos docentes’, utilizou-se o SPSS (Statistical Package for the Social

Sciences). 94

Análise e discussão dos resultados da pesquisa

Consoante às condições de trabalho, no entendimento de Ferreira (2016),

essas devem ser adaptadas às atividades do trabalhador, ou seja, adaptação do

trabalho a quem trabalha. Não basta fornecer suporte organizacional para o

alcance dos objetivos prescritos, é crucial que exista uma adequação com o

exercício das atividades de cada trabalhador.

O referido autor ressalta ainda que as condições de trabalho saudáveis,

que propiciam, efetivamente, qualidade de vida ao trabalhador devem ser

apropriadas, convenientes, oportunas e ajustadas às situações de trabalho. Devem

ser elaboradas considerando o perfil dos trabalhadores/docentes, das tarefas a

serem desenvolvidas e do próprio contexto de trabalho que exigem elementos

diferenciados para cada tipo de atividade laboral.

Na profissão docente, como ocorre a interação entre o professor e o

aluno, além de outros atores sociais envolvidos (como coordenadores de curso e

pessoal de apoio) as relações/condições de trabalho devem consistir em manter,

94 O SPSS é um software de análise estatística de dados que dispõe de ferramentas essenciais para

cada etapa de um processo analítico, apresenta técnicas integradas para preparar os dados para análises,

gerando relatórios de funcionalidades e os devidos gráficos.

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transformar ou propiciar melhorias na condição humana dos indivíduos (TARDIF;

LESSARD, 2005).

Na Tabela 1 são apresentadas todas as médias 95, desvios padrão 96 e

coeficientes de variação 97 dos itens que compõem a dimensão ‘condições de

trabalho’ da Escala de Avaliação de Contexto de Trabalho98, em conformidade

com as respostas dos docentes dos Campi Brasília e São Sebastião do IFB.

Segundo Ferreira e Mendes (2013), as ‘Condições de Trabalho’ consistem

nos elementos que expressam os componentes presentes no local de trabalho,

caracterizando a infraestrutura e o apoio institucional.

95 A média é calculada somando-se todos os valores de um conjunto de dados e dividindo-se pelo

número de elementos deste conjunto, é uma medida sensível aos valores da amostra (HAIR, 2009).

96 O desvio padrão é uma medida de dispersão que indica o quanto o conjunto de dados é uniforme,

quando o desvio é baixo quer dizer que os dados do conjunto estão mais próximos da média (HAIR, 2009).

97 O coeficiente de variação é utilizado quando se deseja comparar a variação de conjuntos de

observações que diferem na média ou são medidos em grandezas diferentes (HAIR, 2009).

98 A ‘Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho’ é composta por três dimensões

analíticas e interdependentes: ‘condições de trabalho’, ‘organização de trabalho’ e

‘relações sócios profissionais’(FERREIRA e MENDES, 2013).

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Tabela 1

Tabela de média, desvio padrão e coeficiente de variação (CV) referentes a dimensão

Condições de Trabalho nos Campi Brasília e São Sebastião (BRASIL,2019)

Itens Média Desvio

Padrão

Coeficiente

de Variação

Classificação

CT CDT

10. As

condições de

trabalho são

precárias.

2,95 1,067 0,361

Crítico

CT CDT

11. O

ambiente físico

é

desconfortável.

3,29 1,124 0,341

Crítico

CT CDT

12. Existe

barulho no

ambiente de

trabalho

2,85 1,139 0,399

Crítico

CT CDT

13. O

mobiliário

existente no

local de

trabalho é

inadequado.

3,27 1,112 0,340 Crítico

CT CDT

14. Os

instrumentos

de trabalho são

insuficientes

para realizar as

tarefas

2,78 1,067 0,383

Crítico

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CT CDT

15. O posto de

trabalho é

inadequado

para realização

das tarefas.

3,11 1,058 0,340

Crítico

CT CDT

16. Os

equipamentos

necessários

para a

execução das

tarefas são

precários

2,89 1,049 0,362

Crítico

CT CDT

17. O espaço

físico para

realizar o

trabalho é

inadequado.

3,34 1,072 0,320

Crítico

CT CDT

18. As

condições de

trabalho

oferecem risco

à segurança

física das

pessoas.

3,81 1,083 0,284

Satisfatório

CT CDT

19. O material

de consumo é

insuficiente.

2,76 1,080 0,391

Crítico

FONTE: IFB (dados coletados nos Campi Brasília e São Sebastião no período de 09/09/2019 a 04/10/2019)

Nesse sentido, na dimensão supracitada, o item com maior média ‘3,81’

é referente às condições de trabalho oferecerem risco à segurança física das

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pessoas. Considerando que, na análise da mencionada escala, 1 significa ‘sempre’

e 5 significa ‘nunca’, depreende-se que, na compreensão dos docentes, as

condições de trabalho não oferecem riscos à segurança física com frequência –

sendo este um resultado satisfatório e não ensejador de risco de adoecimento, é,

também, um item que não apresenta homogeneidade nas respostas99, diante do

coeficiente de variação 100 de 0,284.

Segundo Melo (2008) o meio ambiente do trabalho adequado e com

condições seguras é um dos mais importantes e fundamentais direitos do cidadão

trabalhador, in casu, os docentes. O autor ressalta ainda que o desrespeito às

condições de trabalho seguras provoca agressão a toda sociedade.

Segundo Tardif e Lessard (2014) consideram-se condições de trabalho, o

conjunto de variáveis que permitem caracterizar dimensões quantitativas do

ensino como o tempo de trabalho, o número de horas de presença obrigatória

em classe, o número de alunos por classe, o salário dos professores etc. Porém,

não só de dados quantitativos se fazem essas condições; tais dados e estatísticas

são meios pelos quais as instituições chegam a seus fins.

O item da referida dimensão, que apresenta menor média ‘2,76’ versa

sobre a insuficiência do material de consumo. Na atividade docente, os materiais

de consumo abrangem desde pincéis, papéis, computadores, dentre outros que

se fazem necessários para a realização das atividades de ensino (TARDIF;

LESSARD, 2005). Tal média indica um resultado mediano, assinalando que não há

99 O coeficiente de variação é interpretado como a variabilidade dos dados em relação à

média, quanto menor o esse coeficiente mais homogêneo é o conjunto de dados (HAIR,

2009).

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insuficiência de material com muita frequência; não é um resultado negativo e

não é, também, satisfatório; o coeficiente de variação de 0,391 sugere existir uma

heterogeneidade nas respostas dos docentes.101

Depreende-se dos resultados acima expostos, que na dimensão

‘condições de trabalho’ as médias encontram-se entre ‘2,76’ e ‘3,8’ –

considerando que ‘1’ significa sempre e ‘5’ significa nunca –, o que significa dizer

que a percepção dos docentes acerca das condições de trabalho,

preponderantemente, apresenta um resultado mediano 102 , ou seja crítico,

indicando risco de adoecimento.

Assim, conforme o exposto, dos ‘10’ itens que compõem a dimensão

‘condições de trabalho’, ‘9’ itens foram avaliados pelos docentes como críticos e

apenas ‘1’ item como satisfatório. Então, ancorando-se nos parâmetros

utilizados para as análises, as condições de trabalho apontam a possibilidade de

riscos de adoecimento.

Já a ‘Escala de Saúde no Trabalho’ é composta por duas dimensões:

‘integração de pessoas e equipes’ e ‘flexibilidade e adaptabilidade as demandas

externas’.

A dimensão ‘Integração de Pessoas e Equipes’, composta por 20 questões,

é, segundo Siqueira (2008), responsável pelas crenças do servidor/docente de que

o órgão é capaz de estimular o compartilhamento de objetivos organizacionais e

101 O coeficiente de variação é interpretado como a variabilidade dos dados em relação à

média, quanto maior o esse coeficiente mais heterogêneo é o conjunto de dados

(HAIR,2009). 102 O resultado mediano, indica uma de “situação-limite”, potencializando o mal-estar no trabalho e o risco

de adoecimento.

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a integração de seus membros às suas equipes de trabalho, proporcionando bem-

estar e saúde.

Na dimensão supramencionada, verificou-se que no item ‘No seu

campus as pessoas trabalham unidas para que a instituição alcance seus

objetivos’, a menor média ‘2,33’, indicando que os docentes não concordam

com a existência desse fator (união/integração) no ambiente de trabalho em

análise. O coeficiente de variação de ‘0,428’ sugere que não há homogeneidade

nas respostas apresentadas pelos docentes.

Nesse sentido, é de fundamental importância que nas organizações,

inclusive nas de ensino, existam alianças com e entre seus trabalhadores,

objetivando melhor integração e comprometimento dos mesmos, pois as

pessoas necessitam de coligações e parceiras para ampliar seus conhecimentos

(BAÍA et al., 2006).

A maior média observada ‘3,49’ nessa dimensão ocorreu no item ‘No

seu campus as pessoas encaram seus trabalhos como algo importante’, o que

indica uma certa dúvida dos docentes acerca do fator observado. O fato de tal

resultado apontar uma média ‘mediana’, não identifica nem concordância nem

discordância; o coeficiente de variação de ‘0,276’ indica uma heterogeneidade

nas respostas apresentadas pelos docentes. Pode-se inferir que a integração dos

docentes às suas equipes de trabalho, não é, portanto, tão boa.

A dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade a Demandas Externas’ diz

respeito às crenças do servidor/docente de que o órgão possui políticas e

procedimentos de trabalho flexíveis e voltados para a adaptação da organização

às demandas do ambiente externo (SIQUEIRA, 2008).

O item ‘No seu campus as políticas são flexíveis, podendo adaptar-se

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rapidamente às necessidades de mudanças’ apresentou a menor média

observada ‘2,35’. Tal resultado permite dizer que os docentes não concordam

com a existência de políticas de flexibilidade, cujo coeficiente de variação sendo

de ‘0,441’, o que sugere uma heterogeneidade nas respostas dos docentes.

A maior média observada ‘2,77’ nessa dimensão ocorreu no item ‘No

seu campus procura-se continuamente as inovações’. Contudo, em razão do

coeficiente de variação ter apontado resultado de 0,276, verifica-se uma

homogeneidade maior nas respostas dos docentes no sentido de não

concordarem com a existência dessa característica no contexto da instituição.

Cabe ressaltar que, as inovações consistem em introduzir em um

determinado meio algo que foi inventado, descoberto, criado anteriormente.

Seu papel constitui-se em integrar, assimilar, adaptar novidades importadas de

outros lugares, com o objetivo de melhorar aquilo que existe, de introduzir em

dado contexto um aperfeiçoamento, um melhor saber, um melhor fazer e um

melhor ser (MITRULIS, 2002).

Com o objetivo de responder a principal questão dessa pesquisa, na

Tabela 2 apresenta-se, a correlação 103 existente entre a saúde e as condições de

trabalho dos docentes, dos Campi Brasília e São Sebastião.

Tabela 2

Correlação entre Condições de Trabalho e Saúde nos Campi Brasília e São

Sebastião – Correlação de Spearman (BRASIL,2019)

103 A análise de correlação, compreende a verificação de dados amostrais para saber se e como

duas ou mais variáveis estão relacionadas umas com as outras numa dada população (HAIR,2009).

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Saúde no

Trabalho -

Integração de

Pessoas e Equipes

Saúde no Trabalho -

Flexibilidade e Adaptabilidade

a Demandas Externas

Condições

de Trabalho

,341** ,419**

**. A correlação é significativa no nível 0,01 (2 extremidades).

*. A correlação é significativa no nível 0,05 (2 extremidades).

FONTE: IFB (dados coletados nos Campi Brasília e São Sebastião no período de 09/09/2019 a 04/10/2019)

A maior correlação encontarada foi (‘0,419’), atinente à dimensão

‘Condições de Trabalho’, que compõe a ‘Escala de Contexto de Trabalho’, e,

também, à dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade a Demandas Externas’

referente à ‘Escala de Avaliação de Saúde Organizacional’. Tal resultado indica que

as condições de trabalho impactam a saúde dos docentes, pois, quando a

dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade’ não é observada/ofertada no ambiente

laboral, as possibilidades de vulnerabilidade/fragilidade no campo da saúde são

afetadas.

Associado ao exposto, nas lições de Martinez (2002), a saúde pode ser vista

como o resultado de interações dinâmicas e complexas determinadas pelos

domínios sociais, mentais, históricos e políticos, onde o trabalho tem caráter

central. Pode-se dizer que quanto mais o docente estiver inserido em um contexto

flexível e adaptável, mais saúde esse ambiente vai proporcionar ao trabalhador.

Por fim, o último coeficiente de forte correlação observado foi de 0,341 na

dimensão ‘Condições de Trabalho’, que integra a ‘Escala de Contexto de Trabalho’

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e a dimensão ‘Integração de Pessoas e Equipes’ concernente à ‘Escala de Avaliação

de Saúde Organizacional’. Este resultado indica que quanto mais adequadas as

condições de trabalho, maior a integração entre os docentes e as equipes, e,

consequentemente mais saúde.

Importante enfatizar que condições e/ou recursos inadequados

oferecidos aos docentes podem constituir um agravante para a saúde desses

profissionais, com impactos/desdobramentos no contexto educacional/processo

ensino-aprendizagem. É que, uma vez instalados os problemas de saúde, o

docente tende a afastar-se do ambiente de trabalho; tais intercorrências podem

existir quando a integração entre os grupos e equipes não se apresentam de

maneira saudável e harmônica.

Considerações finais

A pesquisa realizada visou atender ao objetivo principal de identificar

como a saúde dos docentes está relacionada com as condições de trabalho,

considerando as relações laborais estabelecidas nos Cursos Superiores do Instituto

Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Brasília-IFB, dos Campi Brasília e São

Sebastião.

Para se alcançar tal objetivo, delineou-se, inicialmente, compreender se o

ambiente físico e os demais elementos/infraestrutura material e imaterial

necessários ao planejamento e a execução do trabalho docente são adequados e

satisfatórios para o desempenho da atividade laboral docente.

Nesse sentido, analisou-se as condições de trabalho aplicando-se a ‘Escala

de Avaliação de Contexto de Trabalho’, que é composta de três dimensões, sendo

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a primeira justamente composta de 10 questões acerca das ‘condições de

trabalho’. O resultado demonstrou médias entre ‘2,76’ e ‘3,8’, indicando que na

percepção dos docentes acerca das condições de trabalho um resultado mediano

que indica risco de adoecimento.

Os resultados alcançados, segundo as percepções dos docentes nos Campi

estudados, acerca das condições de trabalho, levam a inferir que, de maneira geral,

o cenário laboral em que atuam, fragiliza/vulnerabiliza a saúde dos docentes, uma

vez que as médias encontradas, em sua maioria, indicam riscos de adoecimento.

No que diz respeito à saúde, utilizou-se a ‘Escala de Avaliação de

Saúde no Trabalho’, composta por duas dimensões. A primeira dimensão

‘integração de pessoas e equipes’ apresentou médias fatoriais entre ‘2,33’

e ‘3,49’, indicando que de maneira geral esses fatores não são observados

pelos docentes, o que indica que a integração dos docentes às suas equipes

não é boa, não propiciando bem-estar e saúde.

Na segunda dimensão ‘flexibilidade e adaptabilidade a demandas

externas’ as médias fatoriais encontram-se entre ‘2,35’ e ‘2,77’, assinalando

que os docentes não percebem procedimentos de trabalho flexíveis e voltados

para a adaptação da organização às demandas do ambiente externo.

A maior correlação foi encontrada entre a dimensão ‘Condições de

Trabalho’ e a dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade a Demandas Externas’

referente à ‘Escala de Avaliação de Saúde Organizacional’ com um coeficiente de

‘0,419’. Tal resultado indica que as condições de trabalho impactam a saúde dos

docentes, pois, quando a dimensão ‘Flexibilidade e Adaptabilidade’ não é

observada/ofertada no ambiente laboral, as possibilidades de

vulnerabilidade/fragilidade no campo da saúde são afetadas.

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OS PROCESSOS DE GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E SUAS

INFLUÊNCIAS NOS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO

André Luiz Batista da Costa

Mestre em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios. Especialista em Direito Público e

em Direito Constitucional de Administrativo. Formado em Direito e Comunicação Social.

Professor da Escola Superior de Polícia – ESP – Policia Federal

Douglas Henrique Marin

Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); mestre em Direito

(Ciências jurídico-filosóficas) pela Universidade do Porto (UP-Portugal); especialista em

Direito das Obrigações pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências

Jurídicas pela Universidade do Porto (UP-Portugal); graduado em Direito pela

Universidade de São Paulo (USP); Procurador Federal e coordenador na Subchefia de

Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República; professor na graduação e

pós-graduação em Direito no Centro Universitário IESB.

Resumo

Em que pese os avanços do Estado Brasileiro na implementação e fiscalização de políticas

públicas, ainda são muitos os problemas a serem enfrentados pelos gestores públicos na

condução das ações estatais. Nesse sentido o presente artigo buscará discutir a gestão

pública das ações afirmativas do Estado traçando um paralelo entre as inconsistências do

modelo de gestão brasileira, os erros cometidos pelos gestores públicos na condução do

Estado e a busca cada vez maior, por parte do público alvo das políticas públicas, das vias

judiciais para a garantia dos direitos fundamentais sociais, omitidos pelo Estado. Com foco

nos processos de formação das políticas públicas em um determinado espaço temporal,

analisaremos alguns erros encontrados em ações estatais, constantes de relatórios de

fiscalização da Controladoria Geral da União, dentre outros, mostrando os atropelos dos

processos de gestão da coisa pública buscando demonstrar as possíveis influências da

formação do Estado Federal Brasileiro e seu modelo cultural e político na condução, por

vezes, desastrosa do próprio Estado.

Palavras-chave: Políticas públicas; Gestão pública; Princípio da Eficiência; Estado

Federado.

Abstract

Despite the advances of the Brazilian State in the implementation and inspection of public

policies, there are still many problems to be faced by public managers in conducting state

actions. In this sense, this article will seek to discuss the public management of the State's

affirmative actions, drawing a parallel between the inconsistencies of the Brazilian

management model, the mistakes made by public managers in conducting the State and

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the increasing search by the target public of the public policies, judicial channels to

guarantee fundamental social rights, omitted by the State. With a focus on the processes

of forming public policies in a given time frame, we will analyze some errors found in state

actions, contained in inspection reports of the Federal Comptroller General, among others,

showing the disruptions of the public affairs management processes seeking to

demonstrate the possible influences of the formation of the Brazilian Federal State and its

cultural and political model in the sometimes disastrous conduct of the State itself.

Keywords: Public policy; Public administration; Principle of Efficiency; Federated State.

Introdução

Nos últimos anos, o Brasil vem experimentado várias mudanças em seus

processos de gestão pública, sobretudo nas ações afirmativas do Estado na área

da saúde, com a implementação de novas metodologias e procedimentos

baseados na experimentação cientifica e no rigor metodológico. Ocorre, no

entanto, que mesmo diante destes processos, nos últimos anos, os números de

políticas públicas judicializadas sofreram aumentos que parecem não condizer

com as melhorias apresentadas pelos avanços legislativos e pela própria busca de

uma maior profissionalização da Administração Pública.

Em busca de respostas para os questionamentos que surgem em

decorrência desses desconexos números de ações judiciais questionando ações

políticas do Estado, o presente artigo buscará analisar a gestão da coisa pública

sob o prisma das influências que a própria formação do Estado Federal Brasileiro,

com toda a sua carga cultural e política, exerce sobre as escolhas feitas por seus

gestores em matéria de garantias sociais. Discutira, ainda a possível relação

existente entre os direitos fundamentais constitucionais pátrios e os grupos de

influência instalados na estrutura do Estado, buscando uma consequente

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contribuição desse estado de coisas para o aumento nos processos de

judicialização da política no Brasil.

Sem renunciar à constatação de que a judicialização caracteriza-se como

uma prática nefasta para a estabilização das estruturas sociais, buscar-se-á, neste

artigo, uma análise isenta desse fenômeno, fazendo um paralelo entre estas ações

judiciais e as políticas públicas implementadas pelo Estado em um mesmo espaço

físico-temporal, na tentativa de entender suas possíveis conectividades.

Como base teórica para esta pesquisa serão utilizados dados constantes dos

sistemas públicos de pesquisa de decisões judiciais dos Tribunais Brasileiros, além

de uma ampla análise de literatura (doutrina e jurisprudência), procurando-se

refletir os entendimentos prevalentes no Brasil buscando, ao final, trazer algumas

sugestões de melhorias para o desenvolvimento do Estado.

1. A administração pública brasileira e suas relações com o particular

Cabe-nos, antes de qualquer aprofundamento sobre a administração

pública brasileira, analisar, ainda que em breves termos, a própria termologia

“administração pública”, posto ser a partir do desenvolvimento do conceito desse

vocábulo que o próprio gestor - seja ele público ou privado - se viu cada vez mais

obrigado à utilização de princípios de excelência na condução da coisa gerida.

Peter Drucker, considerado o pai da administração moderna, na busca pelo

melhor conceito para o termo “administração” deparou-se com duas premissas

populares para “o que é e o que faz a administração”. Segundo Drucker, o senso

comum relacionou o termo administração, primeiramente, à ideia de gerência ou

chefia, excluindo do referido conceito um de seus principais componentes, a saber,

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os administrados. Já no segundo caso, não muito diferente do primeiro, o termo

foi relacionado com a ideia “de alguém que dirige o trabalho dos outros”, ficando

esse conceito muito próximo da ideia de que administração se resume a “alguém

cujo o trabalho consiste em fazer os outros trabalharem”. (DRUCKER, 2003, p. 7)

Contrariamente ao achado de Druker, CHIAVENATO ( 2003, p. XVIII) declara

que “a administração é melhor compreendida quando se correlaciona o seu

conceito com as características da empresa – e suas variáveis internas – e com as

características do ambiente que a rodeia – e suas variáveis externas”. Em

continuidade à sua lição, CHIAVENATO (2003, p. 3) nos ensina que “a

Administração é o processo de planejar, organizar, dirigir e controlar o uso dos

recursos organizacionais para alcançar determinados objetivos de maneira

eficiente e eficaz”.

Na busca desses objetivos, falando especificamente da gestão pública, uma

das características mais importantes a ser ressaltada é a vinculação estrita do

Estado ao princípio da legalidade (fazer apenas aquilo que determina a lei) não

podendo, em regra, igualar-se aos ditames da gestão privada, que embora não

possa utilizar-se de meios ilegais para alcançar suas metas, não está obrigada a

fazer apenas aquilo que a lei determina.

Essa vinculação da administração pública ao princípio da legalidade, que na

visão de BRAGA (2002, p. 18), “está na base do Estado de Direito” coloca a gestão

pública em uma posição bastante diferenciada nas relações com o setor privado,

sobretudo nas transações comerciais, onde a administração pública goza de certa

supremacia com prazos e condições diferenciados. Deve-se ressaltar que embora

essa relação de superioridade do Estado tenha como objetivo supervalorizar o

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interesse público, nos tempos modernos essa supremacia tem trazido

consequências bem diferentes da esperada.

Ocorre que, com o objetivo de preservação patrimonial, as empresas

particulares acabam por fazer uso de instrumentos, como elevação de seus preços

nas vendas para órgãos públicos, já que estes têm prazos dilatados para efetuar

seus pagamentos além de, nos limites previstos em lei, poder simplesmente

desistir da compra mesmo depois de concluídos os certames negociais.

Portanto, é com base nessa relação de supremacia do interesse público,

aliado à estrita vinculação aos textos legais, que o gestor público brasileiro precisa

pautar todos os seus esforços para implementar políticas públicas eficientes e que

sejam economicamente viáveis, fato que fica muitas vezes prejudicado, tendo em

vista a necessidade de o particular buscar formas de proteger-se da inviabilização

de seu negócio frente à posição de império, nem sempre justa do Estado, em suas

relações comerciais.

Surge dessa estrutura político-administrativa do Estado brasileira uma

enorme dificuldade para o gestor de políticas públicas no Brasil, tendo em vista

que ele precisa manter-se nos rigores da lei e, ainda assim, buscar formas de

proteger os interesses do Estado ainda que isso signifique prejuízo ao particular,

situação extremamente delicada diante das pressões dos grupos econômicos

representados legislativamente.

É neste cenário de regulações e proteções, muitas vezes exageradas, que o

gestor público precisa encontrar meios de gerir as ações do Estado, muito vezes

enfrentando interesses que vão muito além das necessidades sociais e a própria

vontade da lei, mas falaremos mais desse assunto mais adiante.

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2. A gestão de políticas públicas no Brasil – uma história construída por

grupos de interesses e procedimentos equivocados

Embora seus estudos iniciais - nos anos 50 - nos Estados Unidos, tenham

apresentado um certo foco na ciência política e na organização estatal, a

percepção da grandeza do estudo da gestão pública como uma matéria

multidisciplinar evoluiu muito rapidamente dando a está disciplina vieses que vão

muito além das ciências administrativas. No entanto, não seria incorreto dizer que

é na análise feita sob o ponto de vista da ciência política que, em nosso ponto de

vista, se encontra a sua maior contribuição para o entendimento das motivações

que levam o Estado a decidir-se por uma política pública em detrimento de outra,

por vezes, vista como de muito maior valor social.

Nesse sentido, DYE et al (1992, p. VII), nos ensinam que “a maioria das

políticas públicas são uma combinação de planejamento racional,

incrementalismo, competição entre grupos, preferências da elite, escolha pública,

processos políticos e influências institucionais” (tradução livre). Com base nesta

afirmação, fica-nos claro que não é possível fazer uma análise das escolhas

governamentais em políticas públicas levando-se em consideração apenas as

questões econômicas ou de oportunidade, pois as influências sobre essas decisões

vão muito além destas variáveis.

MULLER e SUREL ao explicarem as formas de ação do poder público nos

ensinam que estas ações estão atreladas a duas concepções tradicionais do Estado.

Na primeira delas, os autores abordam o Estado e suas ações como sendo uma

produção da própria sociedade, ao declararem que “esta perspectiva acha o

essencial de sua fonte no pensamento hegeliano que vê o Estado como a

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realização da sociedade civil na sua unidade, tornando-se o Estado o lugar da

“previdência universal” sem o qual a sociedade não existe”. (MULLER e SUREL,

2002, p. 32)

A grande dificuldade que advém desta teoria é que, segundo esses autores,

“a ação do Estado transcende os múltiplos interesses particulares da sociedade

civil, para colaborar na definição de um interesse comum” o que nos leva a crer

que o poder público possui uma ordem própria que não nasce, necessariamente,

dos anseios da sociedade como um todo, quiçá de uma maioria deste mesmo

grupo social. Ainda contra-argumentando essa ideia, Muller e Surel, trazem para a

discussão os argumentos de Marx de que as ações do Estado transcendem os

interesses da sociedade e são frutos das lutas de classes e delas depende a sua

própria existência. (MULLER e SUREL, 2002, p. 32-33)

Nesse sentido, a solução para os questionamentos que se levantam a partir

da teoria de um Estado autônomo e, também, para a teoria de um Estado

dependente da sociedade tomam contornos de difícil dilucidação. No entanto, na

tentava de buscar uma explicação para esse difícil enquadramento do Estado como

autônomo ou dependente da ação social, Muller e Surel (2002), nos ensinam que:

O conjunto destas abordagens forma o pedestal da maior parte das

teorias que valorizam o papel central do Estado nas relações sociais. Sem

entrar nos detalhes de uma longa história da sociologia do Estado (Badie,

Birnbaum, 1979), contentar-nos-emos em mostrar que uma tal

perspectiva pôde alimentar uma corrente de análise particular quanto à

natureza da intermediação contemporânea entre Estado e grupos de

interesse na produção da ação pública, aquela do neo-corporativismo.

Considerando a centralidade do Estado e de sua natureza monopolística

quanto ao exercício da dominação, os defensores da abordagem neo-

corporativista ultrapassam entretanto o quadro institucional do aparelho

político-administrativo, para descrever a ação do Estado como o produto

de uma relação institucionalizada entre um número limitado de atores

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

públicos e privados (Schmitter, 1974; Lehmbruch, Schmitter, 1979).

(MULLER e SUREL, 2002, p. 34)

A partir dessa visão do neo-corporativismo, trazida por Miller et al, é

possível inferir que o Estado moderno se estrutura como um ente de composição

mista ficando entre o autônomo e o dependente, conforme melhor lhe convier.

Entender essa estruturação do Estado é extremamente relevante para a

compreensão das políticas públicas implementadas, pois em um dado momento

histórico e político as ações do Estado tenderão a se mostrar totalmente

autônomas para determinados grupos, e totalmente dependentes para outros, a

depender do poder de influência que cada um desses grupos tiverem na formação

do “aparelho político-administrativo” do Estado.

Ocorre que, ao se falar em formação ideológica no Brasil é preciso levar em

consideração que somos uma Federação composta por 26 Estados, um Distrito

Federal, a União e cerca de 5000 Municípios. Além desses números, possuímos 35

partidos políticos registrados no Tribunal Superior Eleitoral, e, desses, 30 com

representação no Congresso Nacional que, atualmente, possui 8 bancadas, a saber,

a Bancada Empresarial, a Bancada Ruralista, a Bancada Sindical, a Bancada

Feminina, a Bancada Parentes, a Bancada da Segurança, a Bancada Evangélica e,

criado mais recentemente, o Centrão.

Diante dessa realidade, parece-nos mais importante entender quem são os

atores que fazem parte da composição do Estado em um dado momento, do que

buscar entender qual é a verdadeira agenda dos entes públicos, posto que, esta

última, será determinada e mudada de acordo com as vontades desses grupos. Ao

analisarem as políticas públicas sob o ponto de vista dos defensores da formação

pluralista do Estado, Muller e Surel, declaram que:

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Esta perspectiva conduz, evidentemente, a consequências importantes

do ponto de vista da análise da ação pública. Para os defensores do

paradigma pluralista, o conteúdo de uma política será o resultado das

diferentes pressões exercidas pelos grupos de interesse envolvidos. Por

exemplo, uma política favorecendo um tipo de combustível, com o fim

de lutar contra a poluição, será a resultante das pressões contraditórias

de diferentes grupos de interesses: construtores automobilísticos,

ecologistas, usuários de transportes públicos etc. O sentido desta política

será, portanto, buscar na capacidade dos grupos envolvidos mobilizar

recursos, exercer pressões ou impor sua visão do mundo, convertendo,

por fim, suas ações em decisões públicas. (MULLER e SUREL, 2002, p. 35)

Embora eles tenham se referido especificamente ao modelo de Estado

pluralista, essa realidade marcada por influências de grupos estará presente,

também, no Estado autônomo mas, o mais importante, no entanto, é que ao

entendermos as concepções de formação do Estado, seja como um ente

autônomo, seja como um produto da sociedade, tenhamos a percepção de que

estes modelos não podem dispensar o fator humano, o que sempre os colocará

sob os holofotes dos grupos de influência.

Nesse sentido, ao analisar a implementação das políticas a partir das suas 7

fases sequenciais delimitadas por SECCHI (2012) como sendo: 1) identificação do

problema; 2) formação da agenda; 3) formulação de alternativas; 4) tomada de

decisão; 5) implementação; 6) avalição e 7) extinção, percebe-se, já nas duas fases

iniciais (identificação do problema e formação da agenda) do ciclo de uma política

pública os seus primeiros pontos de tensão quando analisados levando-se em

consideração os grupos de interesse instalados nas instituições do Estado.

Secchi (2012, p. 34) ao conceituar o que vem a ser um problema, em matéria

de política pública, asseverou que este “é a discrepância entre o que é e aquilo que

se gostaria que fosse a realidade pública”, portanto, nem sempre um problema se

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traduz como uma real calamidade, podendo ser, apenas uma situação que pode

ser melhorada, ou, na pior das hipóteses, um problema criado por um grupo de

interesse.

No que diz respeito à formação da agenda, o mesmo Secchi nos ensina que:

A agenda é um conjunto de problemas ou temas entendidos como

relevantes. Ela pode tomar forma de um programa de governo, um

planejamento orçamentário, um estatuto partidário ou, ainda, de uma

simples lista de assuntos que o comitê editorial de um jornal entende

como importante (Secchi,2006).

[...]

Os problemas entram e saem das agendas. Eles ganham notoriedade e

relevância, e depois desinflam. Como destaca Subirats (1989), a limitação

de recursos humanos, financeiros, materiais, a falta de tempo, a falta de

vontade política ou a falta de pressão popular podem fazer que alguns

problemas não permaneçam por muito tempo, ou nem consigam entrar

nas agendas. As agendas listam prioridades de atuação, e como já dizia

um ex-candidato à Presidência da República do Brasil: a maior dificuldade

para o político não é estabelecer quais serão as prioridades. A maior

dificuldade é ordenar as prioridades (SECCHI, 2012, p. 36)

Portanto, existem vários fatores que podem influenciar a formação de uma

agenda de ações públicas e, deve-se ressaltar, que o estabelecimento do grau de

prioridade dos temas constantes dessa agenda sempre estará sujeito a mudanças

que podem ser causadas por várias razões, contudo a principal delas é a pressão

exercida pela sociedade ou por certos grupos de influência. Em que pese estarmos

falando, especificamente, da fase de formação da agenda, é preciso entender que

essas influências podem ocorrer em quaisquer das fases de implementação de uma

política pública.

Ao comentar a fase de formulação das alternativas em políticas públicas,

SCHATTSCHNEIDER (1960, p. 68), declara que esta etapa se caracteriza como “o

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instrumento supremo de poder, porque a definição de alternativas é a escolha dos

conflitos, e a escolha dos conflitos aloca poder”. Portanto, falar de políticas

públicas, independentemente da fase em que ela se encontre, é, necessariamente,

falar de determinação e alocação de poderes.

Portanto a implementação de uma política pública, sobretudo nos Estado

em que a classe política passa pelo referendo público de tempos em tempos, pode

assumir um caráter pouco técnico, mas com repercussões midiáticas que

aproximam essas classes de grupos econômicos e sociais com influência no

processo eleitoral.

Portanto, é nesse cenário inóspito que o gestor de políticas públicas no

Brasil precisa adequar todo o plano de ação para a implementação de ações

governamentais que garantam o pleno gozo do direitos fundamentais, que como

visto, acabam por concorrer com uma série de interesses e grupos sociais que

precisam ser vencidos, sob pena de não se conseguir implementar uma agenda

mínima proposta.

Além de todas essas situações, ainda é preciso superar uma infinidade de

questões técnicas, como a falta de treinamento daqueles que atuarão na execução

dos programas públicos e as dificuldades de comunicação entre os agentes

encarregados da elaboração e planejamento das políticas públicas e aqueles que

a executarão e serão a ponte comunicacional entre o poder público e a sociedade.

Este fato faz com que a maior parte das políticas executadas na área da saúde, no

Brasil – por exemplo - se enquadrem no modelo top-down de implementação.

SECCHI (2012, p. 47) descreve esse modelo como sendo “parte de uma visão

funcionalista e tecnicista de que as políticas públicas devem ser elaboradas e

decididas pela esfera política e que a implementação é mero esforço administrativo

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de achar meios para os fins estabelecidos”, o que nos parece não estar dando

muito certo.

Em continuidade à sua lição Secchi declara que:

Esse modelo também é visualizado como estratégia da classe política

para "lavar as mãos" em relação aos problemas de implementação: se as

políticas, os programas e as ações estão bem planejados, com objetivos

claros e coerentes, então uma má implementação é resultado de falhas

dos agentes (por exemplo, policiais, professores, médicos). Esse processo

é conhecido na literatura política como blame shifing, ou deslocamento

da culpa. (SECCHI, 2012, p. 47)

Como contraponto a esse padrão de exclusão dos executores das políticas

públicas dos seus processos de decisão, Secchi (2012), faz menção ao modelo

denominado bottom-up, que dá certa margem de discricionariedade aos agentes

encarregados de tornar a ação governamental efetiva para efetuar as mudanças

necessárias à sua melhor adequação aos seus beneficiários. O grande problema

deste modelo é que ele acaba por dividir as responsabilidades pelo sucesso, e,

também, pelo insucesso das ações do Estado, entre os seus executores e

idealizadores o que, do ponto de vista político, torna o modelo pouco desejado,

principalmente, diante de políticas públicas com resultados negativos.

O fato é que o modelo caótico e fragmentado de implementação de

políticas públicas, dá aos poderes políticos a possibilidade de eximirem-se da

inefetividade das ações do governo, utilizando-se do argumento de que o

problema está na execução e não na implementação dessas ações, o que, na visão

moderna de gestão não possui nenhuma relação com a verdade. Além disso, a

comunicação tardia do insucesso das políticas públicas, comum nesse modelo,

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acabam por fomentar grandes desperdícios de recursos financeiros e de material,

que é outro grande problema para as ações do Estado.

3. A ineficiência na aplicação dos recursos, na fiscalização e a

judicialização de políticas públicas

Segundo relatório da Organização da Nações Unidas – ONU, o Brasil perde

cerca de 200 bilhões de reais anualmente, levando-se em consideração, apenas os

desvios de recursos públicos. Esse número alcança cifras inimagináveis quando

acrescentamos a ele os recursos perdidos com o desperdício oriundo dos

processos equivocados de compras e pela má-gestão.

Quando a gestão dos recursos apresenta incongruências,

independentemente de qual sejam essas inconsistências, tem-se como resultado

uma margem menor de recursos para serem aplicados em políticas públicas, o que

tornam as “escolhas trágicas” dos gestores ainda mais trágicas, aumentando,

assim, as probabilidades de que as ações do Estado terminem nos tribunais.

Pesquisa divulgada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no ano de

2018, mostrou que aquela unidade da federação possuía mais de 500 mil ações

judiciais na área da saúde, com processos que iam, desde ações contra planos de

saúde até a judicialização de fraldas geriátricas para pacientes internados em

hospitais públicos – sendo que – nesse último caso, podemos ver a existência de

processos também no ano de 2019, como a apelação nº 0034267-

58.2017.8.19.0014.

Ocorre que, no caso específico do Rio de Janeiro, no ano de 2018, a Polícia

Federal e o Ministério Público Federal investigaram e denunciaram um esquema

de fraude no fornecimento de serviços à área da saúde, no qual estimavam-se

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desvios de mais de 100 milhões de dólares dos cofres públicos, conforme se vê

abaixo:

Apresente operação cautelar é desdobramento da Operação Fratura

Exposta e das investigações realizadas após a sua deflagração, tendo

como escopo aprofundar o desbaratamento da organização criminosa

responsável pela prática dos crimes de corrupção e lavagem de capitais

envolvendo contratos na área da saúde envolvendo o Estado do Rio de

Janeiro e o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia Jamil Hadad

- INTO

Com efeito, após exaustiva investigação que contou com medidas

cautelares de quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico de telemático,

as operações Calicute e Eficiência conseguiram demonstrar como a

organização criminosa comandada por SÉRGIO CABRAL atuou para

praticar atos de corrupção e lavagem que desviaram mais de USD

100.000.000,00 (100 milhões de dólares) dos cofres públicos mediante

engenhoso processo de envio de recursos oriundos de propina para o

exterior. MPF (2018; p. 2)

É preciso observar que as ações em comento, foram uma consequência de

uma operação de nome “Fratura Exposta” que investigava fraudes em compras de

próteses e órteses por hospitais do Rio de Janeiro, compras estas que tinham uma

relação direta com o escândalo da compra de órteses e próteses pela Secretaria de

Saúde do Distrito Federal, no ano de 2015.

É fato que, em muitos casos, as políticas públicas existem, mas os prejuízos

causados por uma gestão ineficaz dessas ações do Estado podem ter repercussões

que vão além dos prejuízos à própria ação mal gerida. Embora os processos de

compras dos entes governamentais, no Brasil, sejam cercados de leis e regras

regulamentadoras, quando analisamos a quantidade de irregularidades apontadas

pelos órgãos de fiscalização, fica-nos fácil perceber a fragilidade desses

procedimentos. A esse respeito Campos 2008, nos explica que:

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uma situação comum na administração pública é a formação de

cartel/conluio para a prática de sobrepreço nas licitações públicas,

principalmente quando se refere a um mercado com poucos

fornecedores, onde há maiores facilidades de se coordenar um acordo.

Além dessa imperfeição de mercado, os procedimentos normativos das

aquisições (Lei nº 8.666/93 e 10.520/02) e a legislação específica

antitrustes (comandada pela Lei nº 8.884/94) não se mostram

suficientemente adequados para evitar as atuações dos cartéis/conluio,

exceto no caso de pregão eletrônico com muitas empresas participantes,

como se verá adiante. Tanto que, recentemente, o Governo Federal

encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7709/2007 no

sentido de reformar a Lei nº 8.666/93 e ampliar o uso do pregão, visto

que a cada ano o volume de recursos decorrentes da ineficiência dos

gastos atrelada a alguma prática de conluio se torna exorbitante. Pelas

estimativas da Secretaria de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça,

para compras e aquisições anuais da ordem de R$ 300 bilhões, o prejuízo

gira entre R$ 25 a R$ 40 bilhões (site www.mj.gov.br comunicado de

30/05/2007). (CAMPOS, 2008, p. 186)

Veja que, embora o autor traga uma visão bem pessimista sobre os

processos licitatórios no Brasil, ele mesmo nos mostra que algumas modificações

têm gerado bons resultados para a diminuição do desperdício de dinheiro público,

no entanto esses avanços ainda são pontuais e ineficazes para a maioria dos casos.

Um bom exemplo disso encontra-se no relatório da Controladoria Geral da União

nº 201701036 oriundo de uma fiscalização feita no Município de Itaperuna no Rio

de Janeiro. Segundo esse relatório, das ações de compras fiscalizadas naquela

auditoria, todas apresentaram irregularidades que iam, desde desclassificação de

empresas com justificativas ilegais até sobrepreços de até cem por cento dos

valores das compras, conforme cito abaixo:

Durante os trabalhos de fiscalização, constataram-se a existência de

cláusulas restritivas no edital do Pregão Presencial n.º 040/2014

destinado à aquisição de medicamentos, resultando em Sobrepreço de

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R$ 2.927.675,16 na Ata de Registro de Preços n.º 07/2015 e em Prejuízo

de R$ 330.848,32 em processos de pagamento analisados; sobrepreço de

R$ 239.498,16 no Pregão Presencial n.º 040/2014, que resultou na Ata de

Registro de Preços n.º 07/2015, em razão de preços registrados em

valores superiores aos limites definidos pela Anvisa para venda de

medicamentos à Administração Pública; sobrepreço de R$ 131.285,96 no

Pregão Presencial n.º 004/2016, que resultou na Ata de Registro de

Preços n.º 12/2016, em razão de preços registrados em valores superiores

aos limites definidos pela Anvisa para venda de medicamentos à

Administração Pública. (MT e CGU, 2017, p. 3-4)

Nesse sentido, a eficiência da política pública quando analisada sob o ponto

de vista da sua eficácia, em tese, não pode ser questionada já que o Município

comprou os medicamentos para suprir as necessidades da população daquele

lugar. O problema é que nessa compra, os valores empenhados seriam suficientes

para dobrar a aquisição, ou, até mesmo, implantar outras ações da mesma monta.

Um dado interessante desse mesmo munícipio para o ano em que foram

efetuadas essas compras é o de que em pesquisa feita no site do Tribunal de Justiça

do Rio de Janeiro, em 16 de janeiro de 2020, com os termos “medicamentos

Itaperuna”, delimitada para o ano de 2017, foram encontrados 91 resultados de

ações judiciais que pedem desde exame de endoscopia à medicação para diabetes.

É preciso salientar que o simples fato de um Estado ou Munícipio efetuar

compras com valores acima dos praticados no mercado, não significa que o

processo esteja eivado de irregularidades ou corrompido, no entanto, é preciso

imaginar que se isso está ocorrendo significa que alguma coisa no processo de

aquisições públicas não está surtindo os efeitos esperados. Nesse sentido, é

necessário que o setor público repense suas relações com os particulares,

sobretudo quando essas interações tiverem como objetivo o estabelecimento de

relações comerciais. Fato é que a supremacia do Estado, que deveria ser uma

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medida protetiva do interesse público, parece ter um resultado contrário

hodiernamente.

Portanto é preciso que a sociedade e seus representantes entendam que o

Estado precisa modernizar suas práticas administrativas com a mesma agilidade

com que a própria sociedade evolui. A estática dos processos legais precisa abrir

mais espaço aos avanços das técnicas de gestão. O Estado não pode continuar

sendo gerido como se a obediência cega a lei fosse seu maior trunfo. A lei é estática

e lenta, já os processos de gestão evoluem muito rapidamente e, com eles as

formas de burlar a proteção legal do Estado. As instituições públicas precisam de

mais gestão e menos textos legais.

Considerações finais

Em que pese os avanços na gestão pública moderna, com a aplicação de

novas técnicas administrativas, a falta de profissionalização dos gestores,

sobretudo nos pequenos municípios brasileiros, ainda é um grande entrave para o

sucesso de políticas públicas, principalmente em áreas tão técnicas como a saúde

pública.

É preciso simplificar o sistema normativo da administração pública, inclusive

com a adequação dos seus processos de compras às verdadeiras necessidades dos

Estados e Municípios, com a criação de atribuições e responsabilidades claras para

cada ente, além da implementação de sistemas de controle unificados e

informatizados.

Outro fator de suma importância para a melhoria da gestão pública seria a

aplicação de modelos administrativos que diminuam as distâncias entre aqueles

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de pensam as políticas públicas e aqueles que serão encarregados de sua

execução. O sistema de gerenciamento de pessoal também precisa ser melhorado.

É necessário que o controle de todo o pessoal envolvido nas ações de políticas

públicas seja feito de forma integrada e com previsões interativas e de

capacitações constantes, sempre que possível incentivas.

Os sistemas de fiscalização prévia precisam estar prontos para responder às

necessidades colocadas em cada momento histórico e devem possuir o poder

necessário para barrar possíveis excessos, e, portanto, não podem estar atrelados

a condições políticas de indicação e permanência impostas por grupos de

interesses instalados nas estruturas do Estado.

A estrutura e composição do Estado brasileiros, precisa ser repensada,

levando-se em consideração processos mais profissionais de escolhas de seus

gestores, sobretudo nos escalões encarregados de dar vazão às ações do Estado.

Evidentemente, não se esgota aqui o espaço de discussão desse tão

empolgante tema, ficando está pesquisa apenas como um ponto de partida para

um aprofundamento dos temas ligados à modernização e humanização das ações

do Estado.

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Aprendendo Direito

DIREITOS SOCIAIS E LIBERDADES DEMOCRÁTICAS

Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho

Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; mestre em Direito pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; mestre em Direito Social pela UCLM - Universidad

de Castilla-La Mancha; graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia; juiz do Trabalho

titular da 32ª Vara do Trabalho de Salvador/BA; presidente da Academia de Letras Jurídicas da

Bahia; membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Instituto Baiano de Direito do

Trabalho, Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil)

e Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam); professor em Direito da Universidade

Salvador (UNIFACS ) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Texto de janeiro de 2020

Falar do papel do jurista contemporâneo na discussão sobre

processo reivindicatórios, direitos fundamentais e direitos humanos é um

tema espinhoso; eu diria mais, explosivo, com grande potencial de

eletricidade social. O que quero dizer com isso? Vivemos hoje um

período conturbado no cenário político e jurídico em que parece que

não é mais possível ao homem médio, ao ser humano médio se

manifestar sem receber uma chuva de pedras ou de epítetos. O que quero

dizer com isso? Quero dizer que vivemos, há alguns anos, talvez como uma

decorrência dos processos eleitorais, uma divisão do país que tem se refletido também na visão

do papel do Direito. Nunca o Direito, no Brasil, se tornou tão importante. Pergunto eu: por

quê? Porque todo mundo quer falar sobre o Direito. Nós falamos sobre Direito hoje não somente

na academia, mas nas mesas de bares, nos grupos de whataApp, nas famílias, em todos os meios

falamos de Direito. Mas falamos de Direito sem ter conhecimento dele.

As pessoas hoje se arvoram a ser juristas sem estudar a base dogmática, sem compreender

criticamente o que está acontecendo, simplesmente tomando partido como se estivéssemos vivemos

um “Fla-Flu jurídico” ou, na minha baianidade, um “Ba-Vi” jurídico. Por quê? Porque todo

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mundo que pensa diferente do que defendemos não é mais tratado como ex-adverso ou como alguém

que simplesmente em debate de antítese para construir síntese.

Não. As pessoas hoje não conseguem mais refletir e ver alguém que pensa diferente e tratá-

la senão como inimigo. Isso é um desserviço à ordem jurídica, à democracia, à academia porque a

academia é o local de debate, o local da reflexão. A função do jurista e do acadêmico jurista é

exortar a dialética, fazer com que nós tenhamos espaço para pensar diferente e construir.

Karl Popper, que é uma referência para mim no campo da metodologia, ele disse que a

tese só é científica na medida em que ela suporta falseabilidade, que ela pode ser negada; que nós

podemos tentar verificá-la e testá-la para ver se ela é científica. E isso é algo que tem ido de encontro

ao que se vê hoje.

Um dos maiores pensadores baianos, radicado em São Paulo, Prof. Milton Santos,

geógrafo, ele falava que o nosso papel na academia é combater a ditadura do pensamento único, a

ditadura da única forma de ver, a ditadura do indivíduo que só pensa, só age, só aceita daquela

forma. E isto está cada dia mais complexo. Pensar virou um risco. Só que não há alternativa para

quem acredita na academia a não ser pensar, refletir e produzir, saindo do armário na construção

do novo mundo.

O por quê? Porque nós precisamos de cada vez mais aprender a lidar com o diferente,

aprender a lidar com quem pensa diferente, quem vive diferente, quem lida com o mundo de forma

diferente. Eu me declaro publicamente um militante contra o preconceito de qualquer ordem, da

direita e da esquerda, de qualquer forma que cale a reflexão.

Calar a reflexão não é simplesmente ser contrário; calar a reflexão é partir do pressuposto

que eu posso ouvir. E isso tem sido um desafio porque as pessoas estão desaprendendo – se é que um

dia aprenderam – a dialogar; hoje estamos vendo coletivos de monólogos! As pessoas pensam que

estão exercendo liberdade de expressão quando na verdade estão simplesmente opinando e não

ouvindo o que as outras querem e isso gera um pensamento opressivo.

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Os últimos episódios no Brasil em que se vê pessoas propugnando por censuras.

Independente da ideologia, da fé, da coloração política, as pessoas precisam entender que o preço da

democracia, o preço do convívio social, o preço de uma ordem social estável é ter espaço para

manifestação de qualquer ordem. E, se ela for ofensiva, que se valha do Poder Judiciário para

pedir as reparações correspondentes.

A própria Constituição do art. 5º, X, ela traz uma ênfase à proteção aos direitos

fundamentais e da personalidade garantida a reparação no caso de violação. Ou seja, não tem como

previamente controlar o que alguém vai falar. E isso serve para a liberdade de expressão e serve

para qualquer outro tipo de convívio social, de convívio jurídico; eu vou ter em mesa de audiência

(estou na magistratura há 25 anos) postulações que me parecem descabidas; eu vou ter que processá-

las, garantir o contraditório porque eu posso estar errado; eu não sou o senhor da razão como

magistrado, eu não sou um ditador de toga; eu dou encaminhamento e depois decido e, se não

concordar a parte dispõe dos meios para recorrer da decisão. É preciso saber lidar com isso, em

todos os campos, processos materiais e a vida como um todo.

Processos reivindicatórios

Falando sobre processos reivindicatórios, nós precisamos saber quem são os sujeitos da

Constituição, quem são os sujeitos a quem a constituição garante isso; e essa compressão de

cidadania é fundamental; é preciso entender que quando falamos de resgate de valores de outrora

ou inclusão daqueles que nunca foram incluídos nós estamos na verdade garantindo voz e lugar de

fala para sujeitos que a Constituição permite. E quem é permitido? Todos os cidadãos!

Mas “todos” é uma expressão que tem ânimo de generalidade. Ou seja, eu não posso pensar

em castas privilegiadas que somente elas possam reivindicar e ser titular de direitos; essa é uma

linha que é importantíssima na garantia no sentido de equidade muito maior do que a justiça

aritmética e literalmente direcionada a partes iguais para todos. Não! Não é partes iguais para

todos porque às vezes há aqueles que precisam muito mais.

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Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.7, n.7, jul./dez., 2019.

Então sistemas como cotas e ações afirmativas, meios de inclusão social, resgate da

cidadania, programas assistenciais, rendas mínimas, garantia de cidadania é algo que faz uma

proporção e assistência não porque é um coitadinho, mas porque é um cidadão que precisa daquilo

para sobreviver e poder se emancipar para não precisar mais daquilo.

Então, essa é uma compreensão que é um papel do Estado que é repartido com a sociedade.

Como fazer isso? Esse é o desafio do jurista! Não há uma receita de bolo, fórmula mágica; é um

construir diuturnamente em um desafio de construção efetiva de cidadania; acho que esse é nosso

papel.

O exercício de cidadania

Penso que o exercício da cidadania é um aprendizado mais do que propriamente uma

receita. Confesso que sou juiz do trabalho, atuo na metodologia da pesquisa jurídica e, mesmo nesses

meios, muitas vezes ouvi as pessoas dizerem que “o Brasil não está preparado para a liberdade

sindical”.

A democracia é o único sistema aceitável porque é aquele dá a voz a todos; qual é o erro

maior da formação acadêmica quando se ensina democracia? Dizer que democracia é sistema da

prevalência da maioria. Isso é erro!! Democracia é gerida pela vontade da maioria com respeito à

minoria. Isso é Democracia!

Você não pode admitir que haja democracia quando formalmente se exclui quem é

minoritário, quem pensa diferente. É preciso dar voz e educar as pessoas para que compreendam

que ao se garantir o acesso de quem é diferente de nós e não tem nós estamos garantindo também

ter esse acesso.

Nesse sentido, a Justiça do Trabalho tradicionalmente ela sempre foi mais

principiológica do que tradicionalista e talvez por isso seja tão criticada. O nosso papel é de

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preservação da efetivação – através do Poder Judiciário – daquilo que está na Constituição; a

promessa constitucional, portanto, deve ser efetivada pelo Poder Judiciário.

Sem sombra de dúvida a própria noção de identificação de qual é o modelo constitucional

já é um corte epistemológico interessante para uma reflexão: o que é que se quer? O que a

Constituição prometeu? Feita a identificação é preciso verificar quais são as políticas públicas para

realização e mais ainda, a consciência da sociedade.

Será se esse modelo constitucional foi internalizado? Os grandes temas que passaram no

Supremo Tribunal Federal nos últimos 10 anos (prisão em segunda instância, união homoafetiva,

criminalização da maconha e do aborto, feto anencéfalo) a própria repercussão social e a visão de

grupos de coletividades mostram que muitas vezes nós não temos uma plena consciência do modelo

constitucional que foi prometido, gerando discurso opressivo.

Logo, o preço de ser democrata é de ter de ouvir, de ter de dar voz e de aceitar que nem

tudo aquilo que eu penso é o melhor.

Por fim, a compreensão dos processos reivindicatórios deve ser feita na perspectiva de que

estamos efetivando a promessa de um modelo constitucional social: dar voz, dar espaço ao diferente

para que sejamos respeitados.

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O VIÉS IDEOLÓGICO DA REFORMA TRABALHISTA DE 2017

Suzana Cristina Leite

Mestra em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Centro

Universitário IESB; especialista em Direito Tributário pela Faculdade Projeção e em

Processo Legislativo pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da

Câmara dos Deputados; advogada.

Neide Teresinha Malard

Doutora em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais;

mestra em Direito pela London School of Economics, Londres, Inglaterra; mestra em

Direito e Estado pela Universidade de Brasília; professora da graduação e pós-

graduação do Centro Universitário IESB; advogada.

Sumário

1. Considerações introdutórias

2. A proposta do Poder Executivo e seu emendamento na

Câmara dos Deputados

3. O viés ideológico da reforma trabalhista

4. Considerações finais

Resumo

Apresentação dos achados da pesquisa acadêmica “A elaboração legislativa da reforma

trabalhista: análise dos aspectos ideológicos das emendas ao Projeto de Lei n. 6.787/2016,

que se transformou na Lei n. 13.467/2017”. A pesquisa teve por objetivo investigar as

“forças de poder” que influenciaram o Poder Legislativo na produção da Reforma

Trabalhista, e identificar os conteúdos ideológicos das emendas oferecidas e sua

compatibilidade com os estatutos dos partidos políticos aos quais estão filiados seus

autores.

Palavras Chaves: Ideologia. Poder Legislativo. Reforma trabalhista. Lei. Emendas.

Abstract

The ideological bias of the 2017 labor reform. This is an overview of the findings of the

academic research “A ELABORAÇÃO LEGISLATIVA DA REFORMA TRABALHISTA: Análise

dos aspectos ideológicos das emendas ao Projeto de Lei n. 6.787/2016, que se

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transformou na Lei n. 13.467/2017”104, which aimed to investigate the “forces of power”

that influenced the Legislative in the production of the Labor Reform, and to identify in

the offered amendments and in those which were approved the ideology of their authors

and the their compatibility with the ideals of the political parties to which the authors are

affiliated.

Keywords: Ideology. Legislative Power. Labor Reform. Law. Amendments.

1. Considerações introdutórias

Reforma Trabalhista de 2017, promovida por meio da Lei nº

13.467/2017, alterou substancialmente a legislação do trabalho,

tendo como principal argumento de seus apoiadores o combate

ao desemprego, decorrente da crise econômica que à época afetava o país. Tal

reforma foi criticada por sindicatos, pelo Ministério Público e pela Organização

Internacional do Trabalho, porém defendida pelos economistas em geral, pelos

diversos setores empresariais e alguns magistrados, dentre outros formadores de

opinião.

A divisão de opiniões acerca de uma reforma trabalhista que,

supostamente, traria as necessárias condições para se retomar o crescimento

econômico e promover o desenvolvimento do país suscita alguns

questionamentos de ordem político-econômico-social, o que não é incomum no

processo legislativo em um país que ostenta elevados índices de desigualdade

104 LEITE, Suzana Cristina. A elaboração legislativa da reforma trabalhista: análise dos aspectos

ideológicos das emendas ao Projeto de Lei n. 6.787/2016, que se transformou na Lei n.

13.467/2017, Brasília/Distrito Federal. 2020. 267f. Dissertação (Mestrado em Direitos Sociais e

Processos Reivindicatórios) – Curso de Direito, Centro Universitário IESB, Brasília/DF.

A

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social e apresenta um complexo e pouco transparente sistema de distribuição de

privilégios entre as classes favorecidas que dominam o poder político.

Há quem defenda que as épocas de crise econômica não constituem

momento propício para promover reformas que afetem direitos sociais, dada a

vulnerabilidade ínsita da maioria das pessoas expostas às consequências dessas

crises. No entanto, o entusiasmo de quem defendia a reforma trabalhista dava-lhe

uma conotação de panaceia, capaz de solucionar parte substancial dos problemas

estruturais da economia brasileira e de estancar os efeitos decorrentes da

competitividade das empresas nacionais, em um cenário internacional que padecia

e ainda padece das consequências da grande crise de 2008.

Nessa conjuntura de ilusão político-econômica, boa parte dos

destinatários das normas não alcançam ou não conseguem captar os possíveis

efeitos das promessas de melhores oportunidades que se lhes seriam abertas com

a reforma, nem tem a sociedade a devida compreensão dos reais objetivos das

alterações propostas, que, afinal, importavam em redução de direitos sociais. Não

ocorreu uma discussão aberta e transparente com a sociedade sobre os principais

temas da reforma, e a pletora das emendas apresentadas, sem qualquer

organização temática posterior à apresentação, não oferece ao eleitor informações

suficientes para que ele possa minimamente ter uma ideia sobre o posicionamento

de seu eleito.

Tal foi o contexto que nos levou a investigar as forças de poder que

propulsionaram a reforma trabalhista de 2017, contra a qual se insurgiu a classe

trabalhadora, mas que teve o apoio da maioria dos legisladores, muitos dos quais,

a partir do discurso oficial de suas agremiações, deveriam estar defendendo os

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interesses dos trabalhadores, que acabaram sendo os grandes prejudicados pelas

alterações na legislação do trabalho que aprovaram.

A pesquisa repostada neste artigo buscou identificar, nas emendas

oferecidas ao projeto do Executivo, a ideologia nelas contida e a sua

compatibilidade com os ideais dos partidos políticos aos quais estavam filiados

seus autores, partindo-se do senso comum de que a agremiação partidária, além

de ter a sua própria ideologia, angaria, também, na sociedade, a simpatia de

lideranças e de formadores de opinião para compor os seus quadros.

O fato é que todo esse processo da escolha legislativa passa, muitas vezes,

despercebido ao destinatário da norma, que acaba prejudicado pelo respaldo

político dado pelo seu eleito a leis contrárias àquilo tudo que prometera na

campanha eleitoral. Não se sabe, em geral, quem propôs o que no andar do

processo legislativo, e o produto final, pronto e acabado, não permite identificar

facilmente os verdadeiros beneficiários da norma.

Soma-se a isto o fato de ser o trabalho legislativo, em matéria de direitos

sociais, pouco transparente, dificultando ao eleitor conhecer o posicionamento das

agremiações partidárias e de seus eleitos acerca desse tema. Com efeito, a

amplitude do conceito de interesse público permite aos parlamentares defender

propostas econômicas para supostamente solucionar problemas conjunturais, em

detrimento da construção de uma estrutura social sólida e justa, o que já seria

razão suficiente para que o Congresso Nacional divulgasse, de forma simples e

transparente, as posições de cada um de seus membros nas votações relativas aos

direitos sociais.

No estudo cuja síntese é apresentada neste artigo, as emendas ao Projeto

de lei nº 6.787/2016 foram organizadas, descritas, explicadas, analisadas e

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classificadas, sendo depois confrontados os respectivos conteúdos com os

estatutos das agremiações partidárias, com a finalidade de verificar a

compatibilidade do ideário d’estas com aquelas e, ao cabo, apontar o viés

ideológico da reforma.

2. A proposta do Poder Executivo e seu emendamento na Câmara dos

Deputados

A reforma trabalhista de 2017 teve origem em projeto de lei do Poder

Executivo 105 , que alterava o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 -

Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974.

A proposta do Poder Executivo versava sobre matéria de competência de

mais de três Comissões, razão pela qual, nos termos do art. 34, inciso II do

Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), foi constituída Comissão

Especial. Inicialmente, o Projeto de Lei nº 6.787/2016 seria apreciado apenas pelas

Comissões, dispensando-se a apreciação do Plenário, nos termos do art. 24, inciso

II, do RICD. Ocorre que, em 19 de abril de 2017, foi aprovado Requerimento de

105 BRASIL. Presidência da República. Projeto de Lei nº 6.787, de 23 de dezembro de 2016.

Altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei

nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores

no local de trabalho e sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos

Deputados [2018]. Disponível em:

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076. Acesso

em 14 out. 2018.

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Urgência, nos termos do art. 155 do Regimento da Casa, o que implicou na

apreciação da matéria pelo Plenário106.

Por se tratar de proposta de iniciativa do Poder Executivo, conforme dispõe

o art. 151, inciso II do RICD, ou seja, em prazo mais reduzido dos que as tramitações

ordinárias, o referido processo tramitou sob o regime prioritário na Câmara dos

Deputados, onde contou com três etapas de emendamento: a primeira foi aberta

a todos os deputados da Casa, que, nos termos do art. 119 do Regimento Interno,

poderiam oferecer emendas ao projeto do Executivo; a segunda etapa

compreendeu as emendas ao Substitutivo do Relator na Comissão Especial, e dela

poderia participar qualquer dos membros da Comissão, nos termos do inciso II do

art. 119 do referido Regimento; por fim, a terceira etapa compreendeu a

apresentação de emendas pelo Plenário, através de Comissões ou que fossem

subscritas por um quinto dos membros da Câmara ou Líderes que representassem

esse número, desde que apresentadas até o início da votação da matéria, nos

termos do §4º do art. 120 do mesmo diploma regimental referido.

Sabe-se que o processo legislativo para aprovação de um projeto de lei é,

em regra, demorado e complexo, sendo a fase de emendas um momento especial,

que permite aos parlamentares apresentar suas propostas de alteração de texto e

introduzir novos conteúdos. Essa foi a razão pela qual se escolheu aquele

momento do processo para a pesquisa, eis que é a mais representativa das forças

que atuaram na reforma trabalhista.

106 Para todos os artigos citados no parágrafo: BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos

Deputados. Regimento interno da Câmara dos Deputados: aprovado pela Resolução n. 17, de

1989, e alterado até a Resolução n. 17, de 2016. 17. Ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições

Câmara, 2016. 184 p. – (Série textos básicos; n. 134)

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Tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, os

parlamentares estão organizados por Estado Federativo e por partido político,

agrupados por regiões (Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sul e Sudeste), bem como

por comissões ou frentes parlamentares, entre outras formas de agrupamento.

Para os fins da pesquisa, interessou a identificação dos conteúdos das emendas

com foco nos partidos políticos.

Quando da apresentação do Projeto de Lei nº 6.787/2016, a Câmara dos

Deputados era composta por 26 partidos políticos, dos quais, 19 apresentaram

emendas, o que representa uma participação de 73,07% (por cento) das

agremiações partidárias107; não foi apresentada qualquer emenda por deputados

dos seguintes partidos: Partido Republicano da Ordem Social (PROS), Partido

Trabalhista do Brasil (PTdoB), Partido Ecológico Nacional (PEN), Partido da Mulher

Brasileira (PMB) e Partido Republicano Progressista (PRP).

O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), atualmente

Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido do então Presidente da

República que deu início à reforma, Michel Temer108, foi o que mais apresentou

emendas ao Projeto, seguido dos seguintes partidos: Partido da República (PR),

Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Solidariedade (SD), Progressistas

(PP), Partido Social Democrático (PSD), Partido Comunista do Brasil (PC do B),

107 Bancada parlamentar da Câmara dos Deputados em 23/12/2016. BRASIL. Câmara dos

Deputados. Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados. Bancada Parlamentar da

Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-

camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-geral-da-mesa/estrutura. Acesso em: 27 mai. 2019. 108 Michel Temer (PMDB) – 37º Presidente do Brasil no período de 31 de agosto de 2016 a 1º de

janeiro de 2019. WIKIPEDIA. Michel Temer. Disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_Temer. Acesso em: 23 mai. 2019.

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Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Democrático Trabalhista (PDT),

Democratas (DEM), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Trabalhista Brasileiro

(PTB), Partido Social Liberal (PSL), Partido Popular Socialista (PPS), Partido

Republicano Brasileiro (PRB), Rede Sustentabilidade (REDE), Partido Trabalhista

Nacional (PTN), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Partido Humanista da

Solidariedade (PHS)109.

Das 850 emendas apresentadas ao Projeto de Lei nº 6.787/2016, 9 foram

retiradas antes da análise do relator pelos próprios autores, e 21 foram

consideradas inconstitucionais pelo relator, não tendo sido, portanto, analisadas

quanto ao mérito. Das emendas que seguiram para análise de mérito, o relator

propôs a aprovação integral de 105 e, parcial, de 307. Por fim, desse total foram

rejeitadas 408 emendas. Desta forma, 52% das propostas ou foram retiradas pelos

autores, consideradas inconstitucionais pelo relator, ou rejeitadas no seu mérito110.

3. O viés ideológico da reforma trabalhista

A pesquisa que subsidia este artigo realizou o levantamento e a análise

das 850 emendas apresentadas, em ordem numérica, e as identificou por autor e

partido político. Tal metodologia permitiu concluir que o conteúdo repetitivo de

várias emendas indicava uma mobilização suprapartidária no sentido de orientar

109 Toda a tramitação do projeto pode ser consultada na página

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076, conforme

indicado na nota nº 1. 110 Toda a tramitação do projeto pode ser consultada na página

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076, conforme

indicado na nota nº 1.

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parlamentares na defesa de determinadas questões de interesse comum. Isso se

tornava mais evidente quando se analisava o conteúdo das justificativas, muitas

vezes idêntico.

Por outro lado, a aglutinação temática de interesse dos próprios partidos

políticos denota certo posicionamento ideológico em torno de determinados

direitos, como se pode verificar de alguns conteúdos: (a) o trabalho temporário,

que recebeu pospostas de diversos partidos, como PDT, SD, PR, PT, PCdoB, PT,

PSD, PSOL, PSB, PT; (b) a prevalência das convenções e acordos coletivos sobre a

lei, que recebeu propostas, diversas delas idênticas entre si, de vários partidos

políticos, como PR, PSDB, PMDB, PSD, SD, PP, PPS, DEM, PSD e PDT; (c) a concessão

de um intervalo para repouso e alimentação, para tornar obrigatória a

remuneração do período suprimido correspondente com acréscimo de no mínimo

50% sobre o valor da remuneração, que também recebeu propostas idênticas de

representantes dos partidos DEM, PPS, PR, SD, PSDB, PMDB, PSD e PP; (d) a

exigência do pagamento do trabalho que exceda o limite legal ou convencional,

com emendas apresentadas por deputados que representam PPS, PR, PMDB, SD,

PSDB, PSD, PP e PSD; e (e) a exclusão do salário das ajudas de custo, o vale refeição

pago em dinheiro, assim como as diárias para viagem, com emendas de igual

conteúdo provenientes do PR, PMDB, SD, PSDB, PR, PSD e PP.

Para uma melhor análise da vinculação dos partidos à ideologia implícita

nas emendas, foram examinadas as justificativas apresentadas, organizando-as por

partido a que estavam afiliados os deputados autores. É interessante observar que

muitos dos partidos cujos estatutos pregam a defesa dos interesses dos

trabalhadores como objetivo da agremiação alinharam-se aos interesses dos

empregadores, sempre sob o argumento de que o faziam para melhorar a

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competitividades das empresas nacionais, o que, aliás, não tem sido uma

argumentação nova no neoliberalismo, quando de trata de reduzir ou eliminar

direitos sociais.

A partir dessa análise, foi possível classificar as emendas em três grupos:

emendas favoráveis aos trabalhadores; emendas desfavoráveis aos trabalhadores;

e emendas neutras ou procedimentais. Foram definidas como favoráveis aos

trabalhadores aquelas emendas que buscavam restaurar direitos suprimidos pelo

projeto do Executivo e aperfeiçoar questões em favor da classe trabalhadora;111

foram consideradas contrárias aos interesses dos trabalhadores aquelas emendas

que buscavam suprimir, reduzir ou neutralizar direitos já existentes, ou ainda que

traduziam entrave à liberdade dos trabalhadores de exercer ou reivindicar seus

direitos, ou seja, aquelas que, sob a perspectiva dos trabalhadores e entidades

representativas, traziam-lhe prejuízos ou retiravam-lhes direitos. As emendas que

foram classificadas como neutras ou procedimentais foram aquelas cujo objetivo

era simplificar procedimentos administrativos ou atualizar norma que caiu em

desuso, sem importar supressão de direitos ou vantagens dos trabalhadores,

portanto não podendo ser apontadas como contrárias ou favoráveis aos interesses

dos trabalhadores.

O estudo das posições ideológicas das agremiações partidárias tomou por

base os seus estatutos, sobretudo no que diz respeito à defesa dos trabalhadores

e dos direitos sociais, para se saber se a atuação parlamentar correspondeu às

111 . É o caso das Emendas nº: 63, 84, 105, 139, 148, 184, 222, 246, 321, 353, 424, 474,

536, 541, 578, 625, 723, 725, 727, 728, 730, 762, 770, e 774.

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diretrizes estatutárias do partido ou delas se afastou. Assim, foram identificados,

em cada estatuto partidário, a linha ideológica da agremiação e seu

comprometimento com os direitos sociais, o que permitiu fosse avaliada a atuação

de cada parlamentar proponente das emendas, confrontando-se os respectivos

conteúdos com o disposto nos estatutos vigentes à época da tramitação da

reforma trabalhista, conforme página eletrônica da justiça eleitoral.

Tal agrupamento possibilitou concluir que mais de setenta por cento das

emendas contrariavam os interesses dos trabalhadores, afastando-se, assim, os

parlamentares proponentes de seus compromissos estatutários.

Constatou-se que parlamentares de alguns partidos, como o Partido

Socialismo e Liberdade (PSOL), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido

Comunista do Brasil (PC do B) e o Partido dos Trabalhadores (PT) mantiveram-se

coerentes com o estatuído por suas agremiações, e, mais importante, obtiveram a

aprovação de suas emendas na Comissão Especial.

Houve, porém, partido que negou seus compromissos estatutários, como

o Partido Progressista (PP), que, em que pese se identificar como defensor da

classe trabalhadora, apresentou emendas aprovadas pela Comissão Especial que

contrariam os interesses dos trabalhadores. À exceção de uma única emenda, a nº

533, que foi considerada neutra ou procedimental, todas as demais em que a

agremiação conseguiu aprovação são benéficas ao empresariado.

Já o Partido Social Liberal (PSL), cujo estatuto não se propõe a defender a

classe trabalhadora – não fazendo uma única menção ao trabalhador –, como se

poderia esperar, conseguiu aprovar uma emenda contrária aos interesses

operários, atitude bastante coerente com a ideologia neoliberal adotada pela

agremiação. Com efeito, a referida emenda, a de nº 699, que dispensa a

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autorização prévia da entidade sindical na celebração de convenção ou acordo

coletivo de trabalho constitui, na verdade, mecanismo de enfraquecimento da

representação dos trabalhadores, em claro benefício dos patrões.

Partidos como o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Democrático

Trabalhista (PDT), o Partido Popular Socialista (PPS) e o Partido da República (PR)

se comportaram de forma ambígua. Isto porque os estatutos desses partidos

contêm disposições que denotam clara preocupação com a classe trabalhadora,

não tendo, contudo, os seus parlamentares mantido o compromisso estatutário.

Apresentaram algumas poucas emendas favoráveis aos interesses dos

trabalhadores, posicionando-se, no entanto, majoritariamente em favor daquelas

que beneficiam os patrões.

A participação do DEM foi totalmente contrária aos trabalhadores, não

obstante a pregação em seu estatuto de justiça social. Conhece-se, no entanto, a

postura liberal do partido, não sendo de se esperar que não desse prioridade à

liberdade de iniciativa, ou seja, menos restrições no atuar patronal. De fato, a

justiça social é reconhecida expressamente nos estatutos de outras agremiações,

como o Solidariedade (SD), o Progressistas (PP), o Partido da Social Democracia

Brasileira (PSDB) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que,

entretanto, apresentaram propostas de emendas majoritariamente contrárias aos

interesses dos trabalhadores.

Verificou-se, desta forma, coerência ideológica dos partidos que

expressamente defendem os interesses da classe trabalhadora com as emendas

oferecidas por seus parlamentares, posicionando-se estes contrariamente à

reforma em todas as questões que pudessem trazer algum prejuízo para os

trabalhadores. Notou-se, também, coerência das emendas propostas pelos

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parlamentares do DEM com a ideologia liberal constante do estatuto democrata,

observando-se, porém, que a expressão “justiça social” presente nos estatutos da

agremiação não se concretizou na participação dos membros do partido no

processo de emendamento, porquanto totalmente privilegiado foi o capital em

detrimento do trabalho nas emendas oferecidas pelos deputados da agremiação.

De fato, a justiça social é reconhecida expressamente nos estatutos de

outras agremiações, como o Solidariedade (SD), o Progressistas (PP), o Partido da

Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido do Movimento Democrático

Brasileiro (PMDB), que, não obstante, apresentaram propostas de emendas

majoritariamente contrárias aos interesses dos trabalhadores, o que permite

concluir pela fluidez das ideologias na política partidária.

Diante, portanto, das evidências constatadas nos achados da pesquisa, em

que se verificou um total de 105 emendas aprovadas ao Projeto de Lei nº

6.787/2016, das quais 75 são contrárias aos interesses dos trabalhadores, e dessas

70 foram apresentadas por partidos que, em seus estatutos, se afirma serem

alinhados às causas e ideais do operariado (PTB, PDT, PPS, PR, PSD, SD, PP, PSDB

e PMDB), pode-se afirmar, com segurança, que a hipótese inicialmente proposta

foi integralmente confirmada. É nítida a existência de um viés ideológico na

Reforma Trabalhista, que em muito se afasta da defesa e garantia dos direitos dos

empregados e em muito se aproxima dos interesses do empresariado.

Considerações finais

Considerando a quantidade expressiva de excluídos, desempregados e

trabalhadores de baixa remuneração no eleitorado brasileiro, como é notório, não

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chega a surpreender o oportunismo político das agremiações de se passarem por

defensores dos menos favorecidos, a fim de obterem os votos de que necessitam

para elegerem seus filiados. Não raro, os discursos das campanhas eleitorais

mencionam compromissos com melhores salários, criação de novos empregos e

efetivação de direitos sociais, temas tão caros aos trabalhadores, não havendo

dúvidas de que muitos dos representantes do povo, eleitos com esse discurso, não

o honram perante os seus eleitores, afeiçoados que são às elites dominantes, que,

muitas vezes, financiam seus projetos políticos.

Pode-se até dizer que o fisiologismo e a falta de compromisso com os

trabalhadores foram sempre características da política brasileira, razão pela qual

os pretendentes a cargos de representação política se filiam a partidos que lhes

dão oportunidade de se lançarem com contribuição pecuniária própria, capaz de

carregar consigo outros tantos eleitos. A confirmação, porém, desse discurso, que

tem lugar comum na sociedade brasileira, não é cogitada neste trabalho, cujo

objetivo foi o de buscar a compatibilidade ou coerência do discurso partidário com

a ação individual dos parlamentares. Qualquer outra hipótese que pudesse ser

cogitada para explicar as organizações partidárias e o comportamento de seus

membros teria de passar pelo estudo de questões afetas à ciência política, o que

não se pretendeu com esta pesquisa. Pôde-se, no entanto, perceber do estudo das

emendas a substancial força política da classe empresarial, que conseguiu em tão

breve espaço de tempo legislativo alterar profundamente a Consolidação das Leis

do Trabalho, em favor do patronato.

Em resumo, é de se concluir que a hipótese central da pesquisa de

identificar, nas emendas oferecidas ao projeto do Executivo, a ideologia nelas

contida e a sua compatibilidade com os ideais dos partidos políticos aos quais

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estão filiados seus autores está comprovada, pois existe viés ideológico na

aprovação da reforma trabalhista, que foi centrada na proteção de apenas um dos

fatores de produção, qual seja, o capital.

Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil:

texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações

adotadas pelas Emendas constitucionais ns. 1/1992 a 99/2017, pelo Decreto

legislativo nº 1862008 e pelas Emendas constitucionais de revisão ns. 1 a 6/1994.

– 53. Ed., 1. Reimpr. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. 167

p. – (Série legislação; nº 275 papel). Edição comemorativa dos 30 anos da

Constituição Federal de 1988

______. [Reforma Trabalhista (2017)]. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017.

Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº

5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036,

de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a

legislação às novas relações de trabalho. Brasília: Presidência da República [2019].

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2017/lei/L13467.htm. Acesso em 12 jan. 2019.

______. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.787, de 23 de dezembro de

2016 e emendas. Altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 -

Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para

dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e

sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos

Deputados [2018]. Disponível em:

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=21

22076. Acesso em 14 out. 2018.

______. Câmara dos Deputados. Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos

Deputados. Bancada Parlamentar da Câmara dos Deputados. Disponível em:

https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-geral-

da-mesa/estrutura. Acesso em: 27 mai. 2019.

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______. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Regimento interno da

Câmara dos Deputados: aprovado pela Resolução n. 17, de 1989, e alterado até

a Resolução n. 17, de 2016. 17. Ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições

Câmara, 2016. 184 p. – (Série textos básicos; n. 134)

LEITE, Suzana Cristina. A elaboração legislativa da reforma trabalhista:

Análise dos aspectos ideológicos das emendas ao Projeto de Lei n.

6.787/2016, que se transformou na Lei n. 13.467/2017, Brasília/Distrito

Federal. 2020. 267f. Dissertação (Mestrado em Direitos Sociais e Processos

Reivindicatórios) – Curso de Direito, Centro Universitário IESB, Brasília/DF.