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Revista de Informação Legislativa...Para Darcy Azambuja, o referendo “é o que mais aproxima o Governo da democracia pura, mas também é o mais complexo, tanto por sua intimidade

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Brasília • ano 42 • nº 166abril/junho – 2005

Revista deInformação Legislativa

UNILEGISUniversidade do Legislativo Brasileiro

Artigos apresentados pelas 1a e 2a turmas do Curso de Especialização em Direito Legislativo

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Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORESSenador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (61) 311-3575, 311-3576 e 311-3579Fax: (61) 311-4258. E-Mail: [email protected]

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha NetoEDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Angelina Almeida SilvaCAPA: Renzo ViggianoIMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - - Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1964– .v. Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº

11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretaria de Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria de Edi ções Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte desta publicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

Solicita-se permuta.Pídese canje.On demande l´échange.Si richiede lo scambio.We ask for exchange.Wir bitten um Austausch.

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Membros do Conselho Superior da Unilegis

ReitorSenador RENAN CALHEIROSPresidente do Senado Federal

ConselheirosSenador JOSÉ SARNEYSenador EFRAIM MORAISSenador ANTERO PAES DE BARROSSenador ROBERTO SATURNINOSenador PEDRO SIMONAGACIEL DA SILVA MAIADiretor-Geral do Senado FederalRAIMUNDO CARREIRO SILVASecretário-Geral da MesaFLORIAN AUGUSTO COUTINHO MADRUGADiretor-Executivo do ILBSÉRGIO FRANCISCO PIRES DE OLIVEIRA PENNAConsultor-Geral Legislativo

Conselho Universitário

PresidenteVÂNIA MAIONE ALVES NINA

Vice-Reitor Executivo da UNILEGISAGACIEL DA SILVA MAIA Diretor-Geral do Senado Federal

Diretor Executivo ILBFLORIAN AUGUSTO COUTINHO MADRUGA

Consultor-Geral Legislativo SFSÉRGIO FRANCISCO PIRES DE OLIVEIRA PENNA

Representantes do Corpo Técnico-DocenteCLÁUDIA LYRA NASCIMENTOFÁBIO REZENDE SCARTON COUTINHOEUSTÁQUIO JUVÊNCIO DE LACERDA

SecretárioAderson Pimentel de Alencar Filho

Equipe

Assessoria do Conselho UniversitárioAlexandre Paiva DamascenoJames Raymundo Menezes

SecretáriasMaria do Socorro Costa FurtadoLuciana Claudino

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APRESENTAÇÃO

O Senado Federal, como Casa da Federação, vem cada vez mais aperfeiçoando suas relações com a sociedade organizada. O Senado da República, portanto, já não é mais apenas um fórum legiferante. Produzimos sim leis, mas nos lançamos ao desafi o de aproximar o nosso processo legislativo das reais necessidades do País.

Nesse contexto, estamos lançando a presente Edição da Revista de Informação Legislativa, com 21 artigos selecionados dentre os trabalhos produzidos pelos alunos das duas primeiras turmas do Curso de Especialização em Direito Legislativo, realizado pela Universidade do Legislativo Brasileiro (UNILEGIS), em parceria com a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

Os trabalhos desenvolvidos se referem a temas de interesse de todos aqueles que participam do processo de feitura das leis ou dele fazem uso. Assim, parlamentares, técnicos de Assembléias Legislativas e das Câmaras Municipais do Brasil, servidores dos Tribunais de Contas, além de outros profi ssionais, poderão aqui identifi car fontes qualifi cadas para suas pesquisas e trabalhos. Para o cidadão, será útil pelo fato de o conjunto de informações e conhecimentos enfocados nesta edição estarem intimamente ligados a questões de relevo para o País.

Na certeza de que os esforços do Senado Federal, no campo da democratização do conhecimento, por meio da Universidade do Legislativo Brasileiro (UNILEGIS), do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e do Programa INTERLEGIS, atuam verdadeira-mente em prol da cidadania, desejamos aos leitores uma proveitosa caminhada pelas páginas que se seguem.

Senador Renan CalheirosPresidente do Senado Federal

Reitor da UNILEGIS

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 42 · nº 166 · abril/junho · 2005

Democracia semidireta: referendo, plebiscito, iniciativa popular e legislação participativa 9O papel e o funcionamento das Agências Reguladoras no contexto do Estado brasileiro: problemas e soluções 23Contribuições para a história legislativa da criação da Província do Paraná 41A importância dos tratados e o ordenamento jurídico brasileiro 65A impossibilidade de as cláusulas pétreas vincularem as gerações futuras 79Coisa julgada inconstitucional 95Ingerência humanitária: um novo paradigma em formação? 113O Tratado de Petrópolis: interiorização do confl ito de fronteiras 131Ouvidoria parlamentar: uma proposta para o Senado Federal 151O Direito Internacional e o Poder Legislativo na condução da política externa 165Medida provisória legislativa 181Processo legislativo no Estado Democrático de Direito 193Os institutos de controle da democracia brasileira ainda carentes de aperfeiçoamento 205O desafi o do combate à lavagem de dinheiro 221Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima 233Harmonização tributária e consolidação do Mercosul

Alexandre Navarro Garcia

Alvaro Augusto Pereira Mesquita

Artenor Luiz Bósio

Celso Antonio Martins Menezes

Cláudia de Góes Nogueira

Eduardo Andres Ferreira RodriguezEugênia Kimie Suda Camacho PestanaFlávia Lima e Alves

Ilana Trombka

Janice de Carvalho Lima

José Mendonça de Araújo FilhoJúlio Roberto de Souza Pinto

Jurandir dos Santos de Oliveira

Léa Marta Geaquinto dos SantosMárcia Fortuna Biato

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Maria Terezinha Nunes

Meiriane Nunes Amaro

Robson José de Macedo Gonçalves

Ruy dos Santos Siqueira

Tarciso Aparecido Higino de CarvalhoValéria Ribeiro da Silva Franklin Almeida

253O processo de reformulação da previdência social brasileira (1995-2004) 267A polícia do Senado Federal 293O processo de institucionalização da supremacia da ordem econômica e jurídica na constituição do Estado democrático 307A produção de provas no inquérito parlamentar na Câmara dos Deputados 329A comunicação do Senado e o direito à informação 347

OS CONCEITOS EMITIDOS EM ARTIGOS DE COLABORAÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.

Carlos Homero Vieira Nina A Comissão Parlamentar de Inquérito nas Constituições brasileiras 367

Destaque da Subsecretaria de Edições Técnicas

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Considerações iniciaisO exercício da democracia direta remon-

ta as cidades-Estado da Grécia antiga, entreos séculos IV e V a. C. No século XIII, ossuíços já realizavam os Landsgemeinde1, hojeainda praticados nos cantões de Appenzell,Glaris e Unterwald. Na Nova Inglaterra (séc.XVIII), os puritanos realizavam as assem-bléias municipais.

A partir dos movimentos revolucionários,iniciados no fim do século XVIII e princípio doséculo XIX, por meio do contratualismo rus-seauniano2 e da filosofia dos jusnaturalis-tas3, esses princípios de democracia semi-direta ou participativa ganharam maiordimensão e filiados.

A partir dessas experiências, consuma-das na prática, foi que as formas atuais maisaperfeiçoadas de democracia semidireta –basicamente referendo e iniciativa direta –difundiram-se na Suíça, Itália, França e Es-tados Unidos, por meio da espécie de legis-lação direta, notadamente no Estado daCalifórnia, caso mais estudado.

Para Bobbio (1987, p. 459), democraciadireta engloba “todas as formas de partici-

Alexandre Navarro Garcia

Democracia semidiretaReferendo, plebiscito, iniciativa popular e legislaçãoparticipativa

Alexandre Navarro Garcia é Chefe da As-sessoria Parlamentar do Ministério da Ciênciae Tecnologia, professor de Processo Legislati-vo do Centro de Formação da Câmara dos De-putados e especialista em Assessoria Parlamen-tar pela Universidade de Brasília.

Trabalho final apresentado ao Curso de Es-pecialização em Direito Legislativo realizadopela Universidade do Legislativo Brasileiro –UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. ALEXANDREPAIVA DAMASCENO.

Considerações iniciais; 1. Democracia se-midireta; 1.1. Referendo; 1.2. Plebiscito; 1.3.Iniciativa popular; 2. Mecanismos e registrosanotados; 3. A participação da vontade popu-lar e dos grupos de pressão; 4. Experiência bra-sileira e legislação participativa; Conclusões.

Sumário

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pação no poder”, com prevalência do agen-te popular sobre o político. Diferentemente,na democracia semidireta, repousa um sis-tema mais bem-sucedido, pois contemplaequilíbrio pela operação, de um lado, da re-presentação política e, de outro, da sobera-nia popular direta.

Maria Victoria Benevides4 (1996, p. 15)sublinha: “a expressão democracia direta,quando utilizada isoladamente – e sem ou-tras referências históricas – pode prestar-sea equívocos”.

Bonavides (2003, p. 275) reforça a açãoequilibrada da democracia semidireta di-zendo que sua prática limita a “alienaçãopolítica da vontade popular”. Nessa esfera,“a soberania está com o povo, e o governo,mediante o qual essa soberania se comuni-ca ou exerce, pertence ao elemento popularnas matérias mais importantes da vida pú-blica”.

No Brasil, a Constituição de 1988 intro-duziu três mecanismos de democracia se-midireta: referendo, plebiscito e iniciativapopular (art. 14). Figuras que se situam nocampo da participação política, como orien-tadores dos princípios fundamentais daRepública brasileira e compõem o binômiorepresentação-participação, também deno-minado princípio democrático: “todo o po-der emana do povo, que o exerce por meiode representantes eleitos, ou diretamente,nos termos desta Constituição” (art. 1o, pa-rágrafo único).

1. Democracia semidireta

O termo democracia, mais voltado parao exercício democrático dos antigos gregose o seu contemporâneo, democracia semidi-reta, aplicados em maior ou menor instân-cia, fornecem, para as Estados atuais, osmeios mais importantes para ampliação daparticipação popular.

Direcionam para um Estado atuando soba vigilância da coletividade, impondo o alar-gamento do princípio democrático a dife-rentes formações da vida social, econômica

e cultural, incorporando instrumentos departicipação direta, reconhecimento de par-tidos e associações como relevantes agentesde dinamização democrática.

Na definição de Pimenta Bueno (1958,p. 475), permite ao cidadão o exercício con-creto da liberdade de participação nos ne-gócios políticos do Estado – inclusive ofere-cimento de proposições para fomento de atose espécies legislativas –, conferindo-lhe atri-butos da cidadania e inserindo-o no

“status activae civitae: prerrogativas,atributos, faculdades, ou poder de in-tervenção dos cidadãos ativos no go-verno de seu país, intervenção diretaou indireta, mais ou menos ampla,segundo a intensidade do gozo des-ses direitos. São o jus civitatis, os direi-tos cívicos, que se referem ao PoderPúblico, que autorizam o cidadão ati-vo a participar na formação ou no exer-cício da autoridade nacional.”

O referendo, o plebiscito e a iniciativapopular exprimem o desejo de complemen-tar a democracia representativa com ele-mentos de democracia semidireta, podendohaver, até mesmo, o desejo de substituir ademocracia representativa por esses elemen-tos de democracia.

Esses institutos, diferentemente de suaexecução internacional, enfrentam no Brasilresistências de aplicação. De uma lado, as-pectos estruturais como as desigualdadessociais e os limites colocados pela culturasão obstáculos ao incremento da participa-ção popular. De outro, a própria autoriza-ção legal para seu exercício que, no maisdas vezes, cria obstáculos formais intrans-poníveis. Esse ou aquele terminam colabo-rando para uma tendência dos representa-dos de dar ampla legitimidade aos repre-sentantes, que acabam deliberando sobrequestões públicas com reduzida consulta aseus eleitores.

1.1. Referendo

O referendo representa a forma clássicae tradicional de exercício direto de poder.

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Para Darcy Azambuja, o referendo “é o quemais aproxima o Governo da democraciapura, mas também é o mais complexo, tantopor sua intimidade com outros instrumen-tos, como o plebiscito e o veto popular, comopelas diferentes classificações que abriga”(AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado.27. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1988. p. 228apud OLIVEIRA, Régis Fernandes de;FERREIRA, José Rodrigues, 1996, p. 97).

Em sentido lato, consiste na consulta àpopulação sobre emendamentos constitucio-nais ou até sanção de leis ordinárias, quan-do esta inferir sobre interesse público nacio-nal.

Como lembra Dalmo de Abreu Dallari(1998, p. 154), a origem do referendum se en-contra nas antigas Dietas das Confedera-ções Helvéticas, que reservava a certas loca-lidades suíças, como os cantões de Valais eGrisons, desde o século XV, a capacidadede aprovar todas as leis “ad referendum dopovo. Em certos casos, as Constituições dealguns Estados modernos exigem que se façao referendum, sendo ele considerado obri-gatório, o que se dá quase sempre quanto aemendas constitucionais; em outros, ele éapenas previsto como possibilidade, fican-do a cargo das assembléias decidir sobre suarealização, sendo ele chamado de facultati-vo ou opcional”, como no caso brasileiro.

Sobre essas espécies, Santi Romano(1977, p. 318) vincula a obrigatoriedade aapenas alguns tipos de leis e seu exercíciofundado por algumas constituições dos Es-tados Unidos e nos cantões suíços, onde alei somente abrigará perfeição após a deci-são dos cidadãos. Até a decisão popularpermanece como simples projeto. Ao tipofacultativo coaduna-se o instituto do veto,mecanismo pelo qual, “dentro de um deter-minado prazo, um certo número de cida-dãos declara opor-se a uma lei deliberadapela Assembléia Legislativa”, cabendo aestes, então, a decisão final sobre sua apro-vação ou rejeição.

Para Bonavides (2003, p. 282), “com oreferendum, o povo adquire o poder de san-

cionar leis”, cabendo ao Parlamento apenaselaborar a lei e à população a capacidadede torná-la juridicamente perfeita e obriga-tória, depois de sua aprovação por sufrá-gio.

A respeito desse modelo, o contestadorBobbio (1983, p. 69) referendou:

“Creio que, hoje, ninguém pensa emcontestar a importância e utilidade deum tal modo de se obter decisões cole-tivas, e nem mesmo sua legitimidadedemocrática, ainda que algumas res-trições possam ser feitas à concepçãoatomizante do corpo eleitoral, no qualo instituto do referendum se baseia, ea dificuldade de reunião através dadiscussão política”.

Inobstante sua posição geralmente con-tundente, nesse caso, não há margem paracontradições, mesmo partindo de Bobbio.Como fato inconteste, anote-se que um dosmais importantes eventos históricos italia-nos, na sua longa história, decorre do refe-rendo pré-constitucional de junho de 1946(convocado pelo Conselho de LibertaçãoNacional, composto por seis partidos anti-facistas), para o qual a população foi con-vocada para decidir sobre a forma do regi-me: monarquia ou república. Dessa pergun-ta nasceu a República Italiana, com 54,3%dos votos.

1.2. Plebiscito

Para Bonavides (2003, p. 154), a espécieplebiscito (da antiga Roma, onde a plebevotava sobre determinado assunto, por con-vocação do tribuno) consiste numa “consul-ta prévia à opinião popular”, perante a qual,dependendo de seus resultados, adotar-se-ãoprovidências legislativas ficando reserva-das dificuldades para sua diferenciação dereferendos.

Diferentemente do Brasil, onde referen-do e plebiscito encontram-se em fases pro-cessuais distintas e inversas de consulta,aquele convalidando ou não decisões im-plementadas pelo Congresso e este criandoespaço para a aferição do sentimento popu-

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lar, nos países onde surgiram se confundeme não têm aplicação definida entre as dife-rentes classificações, como anota Bobbio(1995, p. 937):

“a noção de plebiscito é controversa.É, pois, uma vontade popular sobreassuntos de relevância constitucional,sendo, por isso, um instrumento dedemocracia direta, se bem que, comotodos os dispositivos deste tipo, pos-sa ser instrumentalmente usados porcorrentes autoritárias ou totalitáriaspara legitimar o seu poder autocráti-co. Ora, tal definição poderá parecerparcial e incompleta, já que não per-mite estabelecer uma clara distinçãoentre plebiscito e um instituto análo-go, o referendum. O dois termos são, arigor, sinônimos. Apenas pode-se ob-servar uma certa diferença históricano uso de um ou outro termo”.

Seguindo a interpretação nacional,Marcello Cerqueira (2001, p. 138), apartadoda opinião que mistura referendo e plebis-cito, julga que é mais correto situar o plebis-cito como “o elemento propulsor da ativi-dade interna constitucional (adesão a de-terminada forma de governo, a designaçãode uma dinastia ou de quem irá reinar, porexemplo), enquanto o referendo é emprega-do para ratificar as leis já aprovadas peloLegislativo”.

Pela linha da anterioridade, também sepronunciam Régis Fernandes de Oliveira eJosé Rodrigues Ferreira (1996, p. 97): “é, as-sim, uma consulta anterior à formalizaçãodo ato ou à conduta a ser adotada pelo Esta-do. O texto constitucional reforça esse en-tendimento. Sempre que se refere ao plebis-cito, deixa claro que deve ocorrer antes damedida que se pretende adotar”, o que ficaconsolidado pelo artigo 2o da Lei no 9.709,de 1998, que disciplinou os incisos da de-mocracia semidireta, na forma do artigo 14da Constituição Federal: “O plebiscito é con-vocado com anterioridade ao ato legislativoou administrativo, cabendo ao povo, pelovoto, aprovar ou denegar o que lhe tenha

sido submetido” (§ 1o); “O referendo é con-vocado com posterioridade a ato legislativoou administrativo, cumprindo ao povo arespectiva ratificação ou rejeição”(§2o).

1.3. Iniciativa popular

Para o tipo iniciativa popular, Bonavides(2003, p. 290) sinaliza que, “de todos os ins-titutos da democracia semidireta o que maisatende às exigências populares de partici-pação positiva nos atos legislativos é talveza iniciativa”, o que, a partir do autor, repre-senta um modelo que confere ao cidadãomaiores condições para participar da pro-dução legislativa.

Configura-se, assim, num direito do elei-torado de propor ao Poder Legislativo, pro-jetos de lei, iniciando, ao lado de outros agen-tes políticos (presidente da República, Tri-bunais Superiores, deputados e senadores),o processo legislativo.

Pelo quadro constitucional brasileiro,entretanto, nem o referendo nem a iniciati-va popular permitem aos cidadãos introdu-zir mudanças na Constituição ou vetar leisordinárias. Podem ocorrer mudanças cons-titucionais mediante plebiscito, porém, só oCongresso pode convocá-lo (o Executivopode, no máximo, enviar mensagem ao Par-lamento propondo a convocação, mas é oLegislativo que decide se convoca ou não).

Devido à complexidade do processo departicipação, que engloba redação do texto(moção, projeto de lei ou emenda constitucio-nal), coleta de assinaturas, controle de cons-titucionalidade e aprovação da matéria, osucesso varia muito, visto que são materia-lizadas itens como questões culturais e ní-vel de democratização da informação (cf.BENEVIDES, 1996, p. 157).

Paolo Biscaretti di Ruffia, por sua vez,registra a existência, no direito comparado,de duas modalidade de iniciativa popular:“a simples e a formulada. Na simples, tam-bém chamada pura, o eleitorado apresentaapenas uma moção ao Parlamento, para queaprove lei com determinado conteúdo; naformulada, o projeto é elaborado pelas cida-

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dãos, que já o apresentam de forma articu-lada” (BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo.Derecho constitucional. Madrid : Tecnos, 1965.p. 421 apud OLIVEIRA, Régis Fernandes de;FERREIRA, José Rodrigues, 1996, p. 95).

2. Mecanismos e registros anotados

Na Suíça, país que começou a utilizar oreferendo em 1848, a Constituição dizia quetoda decisão nacional importante deveriaser submetida ao voto popular, através deuma dupla maioria: maioria dos votantes edos cantões.

Embora o marco date do século XIX, tan-to o referendo como a iniciativa legislativapopular (modelo diferenciado no Brasil),começaram a ser usados com maior intensi-dade no final do século XX (1970).

A partir de 1975, o referendo tem sido uti-lizado principalmente vinculado a questõesde soberania nacional e para a política inter-na dos países envolvidos, onde tendem a pro-ver decisões políticas a curto prazo ou ques-tões ad hoc, e não como um mecanismo per-manente do processo de tomada de decisão.

Em relação às limitações formais das ini-ciativas, Santi Romano (1977, p. 317) lem-bra que, nos cantões suíços, num andar pa-ripassu entre iniciativa (primeiro estágio) ereferendo (segundo estágio), os popularespodem dirigir-se à Assembléia, por meio deassinaturas de cem mil cidadãos, solicitan-do que esta elabore determinada lei sobrematéria específica. Se a deliberação legisla-tiva for pela rejeição, caberá à votação po-pular decidir se a lei deverá ou não ser edi-tada, referendando-a ou não (arts. 138-142,Constituição Suíça).

Com escopo mais amplo, em alguns Can-tões, “os cidadãos podem apresentar umprojeto completamente redigido e então aAssembléia legislativa é obrigada a subme-tê-lo à aprovação do povo”, devendo apre-sentar os motivos de sua oposição ou atéencaminhar um novo texto.

Assim, na Suíça, onde o povo, ao qualestá reservada a aprovação final, é permiti-

da, além da iniciativa de projeto completa-mente redigido, a solicitação de revisão par-cial de legislação vigente. Se as Câmarasconcordarem com a revisão, o projeto é “sub-metido à aprovação do povo e dos cantões;se, ao invés disso, não existir tal acordo, aproposta é apresentada ao povo e, se este oaprova, a revisão é feita, em conformidadecom tal aprovação, pela Assembléia Fede-ral” (ROMANO, 1977, p. 312).

Maria Victoria Benevides (1996, p. 170)ressalva que essa postulação, entretanto, queproponha uma revisão legislativa, parcialou total, somente pode ser solicitada, geral-mente, quatro anos após a promulgação dalei, enquanto a coleta de assinaturas deveestar encerrada em dezoito meses. Para de-cisão da revisão a Assembléia tem três anos.Ultrapassado esse prazo, o Conselho Fede-ral é chamado para realizar a consulta po-pular sobre a mudança pleiteada; “se a res-posta for negativa, a iniciativa é abandona-da; se for positiva, o Parlamento é obrigadoa elaborar projeto permitindo a realizaçãode outra votação”.

Roberto Rosas (1970, p. 35), abordandoa iniciativa popular na Itália, assevera queo instituto está, como no Brasil, no própriotexto constitucional (art. 71), exigindo doscidadãos italianos, para apresentação deproposituras formuladas e articuladas,apoio mínimo de cinqüenta mil pessoas,metade do quorum cobrado dos suíços. Ad-mite, ainda, a Constituição Italiana (art. 75),desde que apoiada por 200 mil eleitores oupor cinco Conselhos Regionais, a convoca-ção de referendos - mecanismo usual - pararevisões, totais ou parciais, ou revogação deleis aprovadas pelo Parlamento e regula-mentos administrativos de caráter local, emcaráter ab-rogatório.

Na França, a Constituição de 1958 (art.11) retirou do Parlamento o poder sobera-no, transformando-o em poder constituinte,com competência constitucional limitada.Em contrapartida, acentuando a importân-cia da participação semidireta, confere ao“referendum popular não somente a permis-

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são de rejeitar uma lei votada pelo parla-mento, mas ainda de realizar uma reformalegislativa” (ROSAS,1970, p. 37). O chama-mento, entretanto, para a consulta refenda-tória, é prerrogativa do presidente da Repú-blica ou das duas Câmaras congressuais.

Nos Estados Unidos, o primeiro Estadoa adotar o modelo de legislação direta foiSouth Dakota, em 1898, porém a primeiraunidade federativa americana que a efeti-vou foi o Estado de Oregon, em 1904. Entreesses dois Estados, Butler e Ranney (1978,

Estado Ano South Dakota 1898 Utah 1900 Oregon 1902 Oklahoma 1907 Maine, Missouri 1908 Arkansas, Colorado 1910 Arizona, Califórnia, Montana, Novo México 1911 Idaho, Nebraska, Nevada, Ohio, Washington 1912 Michigan 1913 North Dakota 1914 Kentuky, Maryland 1915 Massachussetts 1918 Alaska 1959 Wyoming 1968 Illinois 1970 Florida 1972

Adoção da iniciativa popular nos Estados Unidos, por Estado

p. 70) incluem o aparecimento da unidadede Utah, em 1900, como segue:

Dalmo de Abreu Dallari (1998, p. 154)encontra dois tipos desse instituto nos Es-tados Unidos, quando é conferido a um de-terminado número de eleitores a possibili-dade de oferecer emendas constitucionaisou leis ordinárias, quais sejam:

“iniciativa direta, pela qual o proje-to de constituição ou de lei ordiná-ria contendo a assinatura de umnúmero mínimo de eleitores deve,obrigatoriamente, ser submetido àdeliberação dos eleitores na próxi-ma eleição; e iniciativa indireta, quedá ao Legislativo estadual a possi-bilidade de discutir e votar o proje-to proposto pelos eleitores antes queele seja submetido à aprovaçãopopular”.

Em termos de mecanismos de legislaçãodireta, a Califórnia, que os utiliza desde oinício dos anos 70, é o caso mais importan-te. Lá, os instrumentos de legislação direta,criados em 1911, já previam os quatro tiposde mecanismos de legislação direta, mas oreferendo destinado a introduzir mudançasna Constituição estadual foi o mais usadopelos eleitores.

Entre 1970 e 1976, cento e quatro inicia-tivas de mudanças na legislação ordináriaforam submetidas ao voto popular na Cali-fórnia, tendo como principais temas as ques-tões governamentais e relativas ao processopolítico (21%), impostos e questões morais– aborto – (19%), direitos trabalhistas (17%),saúde, habitação e previdência social (14%)e direitos civis (5%).

No Estado (art. 2o, seção 8), o processode iniciativa popular começa com a reda-

Fonte: Iniciative and Referendum : Its Status in Wisconsin and Experiences in Select States, Informa-tional Bulletin 76-Ib-4 (Madison, Wis.; Legislative Reference Bureau, State of Wisconsin, 1976)

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ção do texto pelos populares. A segundafase cabe ao Procurador-Geral do Estado,que escreve o título e faz um resumo da su-gestão, para serem usados na campanha eno horário eleitoral. Para essas despesas osresponsáveis pela iniciativa pagam US$ 200.Iniciada a divulgação da iniciativa, os pro-motores têm, pelo menos, cento e trinta e umdias para conseguir as assinaturas. Apósesse prazo são conferidas as assinaturas e,vencidas as limitações formais (número eperíodo), o Secretário do Estado sujeita o tex-to à votação estadual, que decide o processopor maioria simples.

Sua Constituição prevê que o referendo,solicitado por projeto formulado de iniciati-va, pode tanto convalidar como rejeitar leisou partes de leis, com exceção daquelas denatureza urgente, eleitorais, de despesasorçamentárias correntes ou instituidoras dealíquotas de tributos. Como regra, uma vezpublicada a lei, a população têm noventadias para apresentar o projeto peticional como apoio de cinco por cento dos eleitores (art.2o, seção 9).

Ademais, os mecanismos de legislaçãodireta têm sido antídoto para o imobilismoou paralisia relativa do legislativo local. Selevarmos em conta que, além da iniciativa,os californianos contam com instrumentosde reforma constitucional ao seu dispor,pode-se afirmar que o potencial da legisla-ção direta adquire uma importância real-mente extraordinária .

Independentemente do Estado, uma ini-ciativa constitucional somente pode ser al-terada por outra da mesma espécie. Mesmopodendo ser emendada, exige maioria parao aditamento e nova apreciação populardessa alteração.

Com variações em função do eleitoradode cada Estado, o número de assinaturasnecessárias para iniciativa nos EstadosUnidos, diferentemente da Suíça, onde o to-tal é único, pode ter como base um valor fixoou o número de votantes nas últimas elei-ções na circunscrição. Para apresentação deiniciativas constitucionais, exige-se quatro

por cento em North Dakota e quinze por cen-to em Wyoming. Para legislação ordinárialocal, North Dakota exige apenas dois porcento. Adepto do mecanismo desde 1914, oEstado registrou, de 1950 a 1970, setenta ecinco ocorrências de textos ordinários. NaCalifórnia, são necessários, para alteraçãolegislativa local, cinco por cento do eleitora-do que votou nas últimas eleições para go-vernador. Se a mudança for constitucionalo quorum é de oito por cento.

3. A participação da vontade popular edos grupos de pressão

O processo, contudo, gera, para alguns,descrença em relação ao resultado materialdas iniciativas. Como argumento contrário,centralizam as discussões nos Estados Uni-dos e na Suíça a capacidade de grupos su-perorganizados, privados, sindicalizadosou de lobby, influírem na apresentação, pormeio da manipulação da coleta de assina-turas mínimas para proposição, mediante acooptação o convocação de grupos sociaisorganizados que apoiem a medida, que nemsempre atende ao interesse daquele grupo.

Sobre isso, a professora Elisabeth Gerber,da Universidade da Califórnia (San Diego),em recente estudo publicado sobre a açãode grupos de interesse e aplicação de dinhei-ro no processo de iniciativa concluiu que,independentemente das vastas somas em-pregadas em campanhas políticas, nointuito de influenciar o resultado de umainiciativa na votação popular, geralmenteesses artifícios não são bem sucedidos. Es-sas impressões estão baseadas em examesextensivos das atividades e movimentaçõesde grupos de interesse e em registros de fi-nanças de cento e sessenta e oito campa-nhas de legislação direta em oito Estadosamericanos. No estudo, Elisabeth Gerberdescobriu que as iniciativas abarcadas porgrupos de interesses econômicos são menosbem sucedidas, em aprovação, do que aque-las apoiadas por grupos da sociedade civil.Uma análise de cinqüenta e sete votações,

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entre 1988 a 1992, revelou que somente trin-ta e um por cento das iniciativas encampa-das por grupos econômicos foram aprova-das, contra cinqüenta e um por cento dascampanhas defendidas por cidadãos.

Para fazer frente a isso, os próprios gru-pos de pressão, como observa ElisabethGerber, passaram, com o aprendizado dasderrotas, a se valer de proposituras de inici-ativas que atendessem relativamente bem osgrupos civis e, em amplitude maior, a seusinteresses. Além de fortalecer laços sociais,encontram militância e autoria para suaspropostas, convalidando seus interesses.Exercem, ainda, pressão sobre legisladoresestaduais que se posicionem previamentecontra suas iniciativas.

Mandatos em Estados onde existe legis-lação direta, incluindo Califórnia, aprovamleis diferentes daqueles onde não há o po-der de iniciativa. Essas diferenças reprodu-zem-se, notadamente, nas matérias relativasa taxação, transporte, seguro de saúde e cri-me ambiental. Nas unidades federativasonde não existe iniciativa, a materializaçãodesses assuntos conduz a legislações mui-to mais próximas do interesse privado doque do interesse da sociedade, mesmo na-quelas votações onde é visível a operaçãode algum grupo particular sobre a iniciati-va de populares.

Magleby, posicionado entre os descren-tes para com a soberania do povo em casosde legislação direta, sentencia:

“o poder efetivo cabe àqueles que es-tabelecem a agenda de questões a se-rem decididas pelo eleitor nas próxi-mas eleições. Manda, mesmo, quemresolve, em primeira instância, aque-las propostas que serão apresentadasao eleitor, para aprovação ou rejeição.Daí pode resultar que as questões le-vadas à votação não sejam aquelasque o povo elege como seus proble-mas cruciais – como inflação, desem-prego, questões econômicas em geral– mas, sim, aquelas do interesse dosgrupos mais organizados, como mo-

vimentos antifumo, antiusinas nucle-ares ou por reformas nos serviços pú-blicos” (MAGLEBY, David B. Directlegislation. Baltimore/London : TheJohn Hopkins University Press, 1984apud BENEVIDES, Maria Victoria,1996, p. 100).

Maria Victoria Benevides (1996, p. 177)lembra que, na Suíça, como contrapontodessa interferência:

“existe um rigoroso controle sobre to-dos os aspectos formais da proposta eda credibilidade dos promotores, masa coleta de assinaturas é facilitada aoextremo. No plano local – justamentepara evitar o monopólio da coleta porgrupos organizados – existe um pra-zo de seis meses para instalação depontos de coleta em praças públicas;e o eleitor pode votar até pelo correio.Nos Estados Unidos, as assinaturassão conferidas por amostragem, quan-do a margem de segurança é muitopequena. Mas, em caso de dúvida, aaveriguação é rigorosa: em 1982, vin-te e cinco mil assinaturas foram anu-ladas no Colorado sob suspeita defraude e o processo foi denunciado”.

Na verificação de Elisabeth Gerber, emcomparação à de Maria Victoria Benevides,com controle judicial, ou na de Magleby, compredomínio da pressão organizada e viéseconômico, percebe-se uma relação não es-tanque, mas paralela, agindo, de um lado,as parcelas sociais e, de outro, as políticasde Estado. Pedro Sampaio Malan (1981, p.113) concebe essa interdependência: “o Es-tado não é o único local de conflito, nemtampouco a única arena da dominação declasse. Há várias outras funções mediado-ras, que em certa literatura assumem o nomede aparelhos ideológicos de Estado (parti-dos, imprensa, universidades, associaçõesde classe etc.), os quais são também, elesmesmos, arenas de luta política e ideológi-ca”.

Tomado isoladamente, o poder organi-zativo e econômico pesa na definição da

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iniciativa, mas não é condição única, comoinfere Malan. Grupos de voluntários daCalifórnia têm obtido resultados positivosnas disputas pela aprovação de iniciativas,como nos casos da fixação do inglês comolíngua nacional (proposta 63) e tratamentode aids (64) – que chegaram à qualificaçãofinal para urnas em novembro de 1986. Trêsanos antes, em São Francisco, militantesantitabaco venceram a disputa com pode-rosas empresas de cigarro, mesmo estas apli-cando dez vezes mais recursos na campa-nha.

Como demonstração de força deste ins-tituto, entre 1980 e 1986, os cidadãos daCalifórnia apresentaram cento e quarenta esete propostas de iniciativa popular. Des-sas, vinte e duas foram qualificadas paravotação, doze aprovadas e dez rejeitadas.Elisabeth Gerber recorda que, na Califórnia,as introduções políticas mais importantesda última década – questões referentes àimigrações, ação afirmativa e instrução bi-língue – foram decididas pelo processo deiniciativa.

4. Experiência brasileira elegislação participativa

No Brasil, a experiência plebiscitária de1963 sobre o parlamentarismo, configurou-se como um expediente com vistas a impe-dir a posse de João Goulart, que era evitadopor grupos militares e forças conservado-ras. Por vias adversas ao intuito de uma con-sulta popular, buscou-se limitar, com o par-lamentarismo, a ação do presidente refor-mista.

Diferentemente disso, restaurar o presi-dencialismo era reforçar o impulso em dire-ção às reformas econômicas, sociais e polí-ticas que ele desejava introduzir. Foi assimque o eleitorado interpretou a situação aovotar maciçamente pelo retorno do presiden-cialismo.

O plebiscito de 1993 já estava previstona Constituição de 1988, cujo artigo 2o, doAto das Disposições Constitucionais Tran-

sitórias, estabelecia: “Art. 2o No dia 7 de se-tembro de 1993 o eleitorado definirá, atra-vés de plebiscito, a forma (república ou mo-narquia constitucional) e o sistema de go-verno (parlamentarismo ou presidencialis-mo) a vigorarem no País.”

Essas experiências são, na maioria dasvezes, importantes, pois mostram que osplebiscitos são quase sempre um meio depromover o apoio ou rejeição da opiniãopública em relação a um determinado es-quema de poder. Diferentemente dos refe-rendos, que se integram à dinâmica de fun-cionamento do processo político, os plebis-citos são feitos ad hoc e não foram consuma-dos para ampliar a participação, mas ape-nas para canalizá-la em um determinadomomento.

Em relação à iniciativa popular, os cons-tituintes brasileiros, apartados dos movi-mentos externos, estabeleceram no textonacional o instituto nas três esferas de go-verno: estadual; federal; municipal.

Nos Estados, a Constituição (art. 27, §4o) cobra lei ordinária para regular a inicia-tiva popular. Em alguns Estados a iniciati-va já está regulamentada, assim, a Consti-tuição paulista prevê a possibilidade de suaalteração por proposta de cidadãos, medi-ante iniciativa popular assinada por, nomínimo, um por cento dos eleitores do Esta-do. Na Bahia (art. 31), Alexandre de Moraes(2003, p. 1109) diz que a Carta local “au-menta a possibilidade de participação social,pois permite a iniciativa para propositurade emendas à Constituição estadual e paraprojetos de lei”.

Nos municípios e na União, diferente-mente, o exercício da iniciativa popular in-depende de norma regulamentadora, postoque num ou noutro caso as limitações for-mais e materiais já estão postas. Podem ospopulares do município apresentar propo-sições às Câmaras de Vereadores sobre as-suntos locais, desde que obtenham assina-turas de cinco por cento dos eleitores.

Na União, inobstante não pedir regula-mentação para detalhar limitações,

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materiais, formais ou circunstancias, pois oartigo autorizador já contém os requisitos, otexto do dispositivo de iniciativa, ao cobraruma matéria já formulada, com esboço aoParlamento, apõe uma extenuante limitaçãoformal para sua consecução: assinatura deum por cento do eleitorado nacional, distri-buído ao menos por cinco Estados, com nãomenos de três décimos por cento de eleitoresem cada um deles (cf. SILVA, 1995, p. 498).

Diferentemente dos exemplos externosanotados, nos Estados Unidos e na Suíça, aautorização brasileira para apresentação àCâmara dos Deputados de projeto de inici-ativa popular não alcança matéria consti-tucional, apenas legislação ordinária e com-plementar.

Como lembram Luciana Botelho Pachecoe Paula Ramos Mendes (1998, p. 145-146),esse amontoado de rubricas deve passar,internamente, após ordenação por Municí-pio, Estado, Território e Distrito Federal, pelocrivo da conferência, uma a uma, com legi-bilidade e registro de identificadores eleito-rais confirmados.

Sobre essa transposição, Manoel Gonçal-ves Ferreira Filho (2002, p. 207) vaticinou:“Sendo rigorosas essas exigências, não seráfácil sejam apresentados projetos de lei deiniciativa popular. Trata-se de instituto de-corativo”.

Passados quinze anos da promulgaçãoda Carta, esse mecanismo não transformou-se em um “instituto decorativo”, mas forte-mente limitado, pois apenas uma proposi-ção, oriunda da Comissão de Justiça e Paz aConfederação Nacional dos Bispos Brasi-leiros, referente ao apenamento para com-pra de votos, foi aprovada. Outra, criando oFundo Nacional de Moradia Popular conti-nua em apreciação, desde 1991. Dessa es-pécie, mesmo sendo diferente o agente, jáque não requer assinaturas de um númerovolumoso de cidadãos, caso da iniciativapopular constitucional, surgiu, tanto naCâmara Federal, inicialmente, como no Se-nado Federal, a Comissão Permanente deLegislação Participativa (CLP), autorizado-

ra de entidades da sociedade social organi-zada apresentarem ao Legislativo proposi-turas de lei.

Comparando com o instituto de iniciati-va, conforme texto constitucional e a possi-bilidade do exercício da democracia por viadessa Comissão, assim se pronunciou a de-putada Luiza Erundina (primeira presiden-te do órgão):

“Chegou a hora, portanto, de colocarem prática o que dispõe a Constitui-ção Federal de 1988, que consagra, emseu artigo 1o, parágrafo único, o prin-cípio da soberania popular pelo qualtodo o poder emana do povo, que oexerce por meio de representantes elei-tos ou diretamente, e que, também, es-tabelece mecanismos de participaçãopopular, como, por exemplo, a Inicia-tiva Popular Legislativa. Não obstan-te essa importante conquista incorpo-rada ao texto constitucional, muitassão ainda as barreiras que impedemsua plena e total concretização. Daí oextraordinário significado da recém-criada Comissão Permanente de Le-gislação Participativa, que possibili-ta que associações e órgãos de classe,sindicatos e entidades da sociedadecivil apresentem Sugestões de Inicia-tiva legislativa” (GARCIA, 2001, p. 15).

Independentemente de passar por pro-cesso de reestruturação regimental na Câ-mara, a CLP avançou, sobremaneira, em re-lação à iniciativa popular constitucional, emamplitude, oportunidade e flexibilidadeprocessual, conquanto exige do cidadão esuas associações procedimentos céleres emais simples para apresentação de propo-sições ao Congresso Nacional (leis ordiná-rias, complementares e até emendas à leiorçamentária anual).

Na Câmara de Vereadores de São Paulo,assim como em outras doze Assembléias,municipais ou estaduais, onde já existe aComissão de Legislação Participativa, pordecorrência federal, já é admitido esse mo-delo mais fluido de democracia semidireta:

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“todas as iniciativas que se enquadrem nacompetência das comissões permanentes daCâmara Municipal de São Paulo, ou seja,projetos de emenda à Lei Orgânica, projetosde resolução e emendas ou substitutivos àqualquer projeto que esteja tramitando naCâmara Municipal, inclusive à Lei Orça-mentária Anual”.

Diferentemente da previsão constitucio-nal de iniciativa, as sugestões legislativaspoderão ser apresentadas diretamente àComissão por associações e órgãos de clas-se, sindicatos, organizações não-governa-mentais, demais entidades organizadas dasociedade civil e mesmo órgãos oficiais quedisponham, em seus conselhos, paridade derepresentação entre civis e servidores. Bas-tando, para isso, a apresentação de docu-mentos que confirmem a atuação e o regis-tro da entidade.

No Senado Federal, a CLP, inobstantemais recente, já foi capaz de prever, no pró-prio regulamento de funcionamento, a pos-sibilidade de recebimento de propostas po-pulares de emenda à Constituição (art. 6o),conquanto cumpram as limitações formaisprevistas no artigo 60 da Carta Federal.Além disso, já receberam deliberações favo-ráveis, por parte do Plenário da Comissão,seis sugestões, dentre as quais um projetoque estabelece diretrizes e normas para aassistência de crianças em quadro de des-nutrição e outro que estipular o oferecimen-to de passe livre para idosos com idade su-perior a sessenta e cinco anos.

Não obstante restrições à implementa-ção, um ou outro mecanismo apresenta van-tagens. Primeiramente, criam a possibilida-de efetiva de se alcançar a legitimidade re-querida pelo processo de tomada de deci-sões relevantes num regime democrático. Emseqüência, permitem que o povo intervenhasem mediações nos assuntos de seu interes-se. Por fim, combatem a apatia e alienaçãopolíticas.

No caso brasileiro, em oposição, os ad-versários das três iniciativas ou pessoas in-diferentes às mesmas, ressaltam que as pes-

soas comuns no Brasil ainda não estão pre-paradas para participar do processo de to-mada de decisões, buscando lembrar que atradição política brasileira leva a crer quetais iniciativas não terão o apoio popularnecessário para mudar o sistema político,além de os mecanismos enfraquecem os prin-cípios representativos.

Apesar de apresentarem vantagens edesvantagens, os modelos representam ocaminho mais efetivo de participação po-pular. No caso levantado, a Comissão daCâmara, com pouco mais de dois anos defuncionamento, já se mostrou representati-va e efetiva processualmente, transforman-do-se em instrumento de consecução de de-mocracia semidireta, sem os obstáculos dainiciativa popular. Nesse período, de noven-ta e duas sugestões apresentadas, trinta fo-ram aprovadas e vinte e duas viraram pro-posições legislativas.

Dez das sugestões apresentadas, ora re-ferenciadas, são emendas à lei orçamentá-ria, destinando recursos a entidades comoo Movimento Nacional de Meninos e Meni-nas de Rua (MNMMR), Centro de Desen-volvimento e Capacitação Profissional daParaíba (Cenpa), Conselho Nacional dosDireitos da Criança e do Adolescente(Conanda), Centro em Defesa da Vida (CDV),Cáritas Barasileira e União de Negro porIgualdade (Unegro). Os valores aprovadostotalizaram R$ 37 milhões. Para o próximo,aguardam decisão da Comissão Mista deOrçamento, mais R$ 475,6 milhões.

Das oitenta e duas proposições em tra-mitação, a primeira delas, proposta pelaAssociação dos Juízes Federais (Ajufe), foiaprovada em menos de nove meses pelo ple-nário da Câmara e já encontra-se no SenadoFederal para apreciação. Depois da análisedos Senadores, a matéria será mandada àsanção presidencial e permitirá a comuni-cação de atos e a transmissão de peças pro-cessuais por meio eletrônico na esfera daJustiça brasileira.

No Senado da República, em apenas umano, receberam deliberações favoráveis, por

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parte do Plenário da Comissão, seis suges-tões, dentre as quais um projeto que estabe-lece diretrizes e normas para a assistênciade crianças em quadro de desnutrição e ou-tro que reduzia a idade para oferecimentode passe livre a idosos, matéria essa poste-riormente acatada pelo Estatuto do Idoso.

Conclusões

Os instrumentos de democracia semidi-reta, como apostos atualmente, são resulta-do não só de construções políticos-proces-suais. Perpassam limitações formais oumateriais e exigem, como pressuposto, atépara se fazê-la consecutar, de formação so-cial consistente, em toda sua complexida-de, agindo como mecanismo indutor e con-trolador, impetrando meios de freios e con-trapesos, de accountabillity5, nesse via deexercício da cidadania, afora o tripé de Po-deres constituídos.

Essa construção social, até pela ampli-tude de história, é mais facilmente notada eexercitada em países europeus, Suíça, comseus Landsgemeinde, prática inveterada des-de o século XIII, Itália e França, depurado-res iniciais das tarefas de democracia dire-ta. A posteriori, e por decorrência do apren-dizado europeu e base grega, os america-nos, com sua legislação direta, hoje medidareincidentes no exercício de democracia se-midireta.

Seu exercício, nesses países, ultrapassaa premissa de oferecimentos de projetos,petições, veto populares por meio de refe-rendos ou alterações constitucionais. Ser-vem, quando não usados diretamente, comoinstrumento para fazer com que proposiçõessociais ou, em muitas vezes, postulaçõesprivadas, sirvam de instrumento de pres-são para fazer expresso algum direto alie-nado.

Como lembram David Butler e AustinRanney, em muitas oportunidades, na Suí-ça, os casos mais bem sucedidos do uso re-ferendo são daqueles que não ocorrem. Oscírculos que defendem a modificação legal

apenas ensejam a expectativa de realizaçãode referendo sobre o assunto. Resulta disso,a inexigência do ato processual. A própriaAssembléia se incumbe de regular aqueleassunto, sem a necessidade de consulta.

Nos Estados Unidos, não obstante a pre-sença constante de grupos econômicos,como inserem Magleby e Elisabeth Gerber,resultados expressivos têm sido alcançadospor meio da legislação direta, notadamenteem questões ambientais, antitabaco, emigra-tórias e linguísticas.

No Brasil, em compensação à limitadautilização de institutos como o plebiscito ereferendo, a capacidade de iniciativa popu-lar, como texto originário, e a apresentaçãoformal mais célere por meio da legislaçãoparticipativa, apresentam mecanismos paraconstrução de uma cultura popular de de-mocracia semidireta.

Como instrumento inovador de enge-nharia parlamentar, até para os parâmetroseuropeus e americanos, dada sua limitaçãoformal reduzida, a legislação participativa,oriunda da Câmara Federal e já presente noSenado da República e em várias Assem-bléias Estaduais e Câmaras de Vereadorespoderá, além de fortalecer a organização epresença popular no Legislativo, respondera um dos maiores gargalos da democraciacontemporânea, qual seja a incapacidade,numa sociedade de massas, de aproximaros representantes do representado, o eleitodo eleitor.

O então deputado Aécio Neves, mentorda criação da Comissão abalizou:

“Quando assumi o compromisso decriá-la, ainda como candidato à Pre-sidência da Câmara, guiava-me porum mandamento não-escrito e só ig-norado pelo autoritários: o de que,muitas vezes, os representantes estãoà frente de seus representantes. Inspi-rou-me, também, a lição histórica deque, aprisionada em suas rotinas edivorciada da vontade popular, a re-presentação parlamentar serve ao es-vaziamento da política, à descrença

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em seus atores e, por decorrência, aoenfraquecimento da democracia”(GARCIA, 2001, p. 15).

Mesmo apresentando resultados efeti-vos, do ponto material e, principalmente,pela sua disseminação pelas demais Câma-ras, a concretização desse postulado de de-mocracia, que torna a lei cinza, exige, ain-da, o envolvimento da sociedade civil, que,por falha de comunicação do CongressoNacional, não foi informada da sua capaci-dade de promover alterações em seu bojo enas práticas de seus parlamentares, açãoessa que, desencadeada, trará ao represen-tando, como anotou Aécio Neves, não o fal-so antagonismo entre sociedade e Parlamen-to, nem a utopia ingênua de que a revoluçãotecnológica aposta por uma sociedade mi-diática ressuscitará uma espécie de demo-cracia direta informativa, mas, sim, uma atu-alização da democracia representativa.

Notas1 Assembléias populares instituídas pelo Pacto

da Confederação Helvética em 1921 que são, atéhoje, realizadas na Suíça como instituto de demo-cracia direta. Como no modelo dos antigos gregos,a população decide sobre vários assuntos, votandoleis, modificando mecanismos de varrição e limpe-za pública, nomeando servidores públicos e até ele-gendo parlamentares.

2 Doutrina decorrente do pensamento do filóso-fo francês, nascido na Suíça, Jean-Jacques Russeau,que defende um Estado baseado na associação en-tre cidadãos livres, regulado por um contrato re-sultante do consenso geral.

3 Doutrina segundo o qual existe e pode serconhecido um “direito natural”, ou seja, um siste-ma de normas de conduta intersubjetiva diversodo sistema constituído pelas normas fixadas peloEstado (direito positivo). Este direito natural temvalidade em si, é anterior e superior ao direito posi-tivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer.

4 Professora titular da Faculdade de Educação(Departamento de Filosofia da Educação e Ciênciasda Educação) da Universidade de São Paulo (USP)e membro titular do Conselho da Cátedra Unesco/USP de Educação para a Paz, os Direitos Huma-nos, a Democracia e a Tolerância.

5 Mecanismos de fiscalização e responsabiliza-ção das instituições oficiais, por elas próprias, numa

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1 – IntroduçãoAs agências reguladoras são de criação

recente no Brasil. Surgiram na última meta-de da década de 90, fruto das transforma-ções do Estado brasileiro que passou a darênfase à sua função reguladora, interferin-do indiretamente na ordem econômica, aoinvés da função de Estado produtor, inter-vindo diretamente nessa mesma ordem. Nomodelo de intervenção direta, quem fixa apolítica é o Poder Executivo, por meio deseus ministérios. No modelo regulatório, apolítica é fixada pelo Congresso Nacionalpor meio de lei.

Nesse processo de transformação do Es-tado ocorreu a desestatização de parte daprestação de serviços públicos, notadamen-te nos setores de telecomunicações e ener-gia elétrica, e a flexibilização do monopóliodo petróleo.

Essa nova configuração do Estado pres-supõe, além da participação privada naprestação dos serviços públicos; a separa-ção das tarefas de regulação das de explo-ração de atividades econômicas que venhama remanescer; orientar sua intervenção paraa defesa do interesse público; a busca doequilíbrio nas relações de consumo no setor

O papel e o funcionamento das AgênciasReguladoras no contexto do EstadobrasileiroProblemas e soluções

Alvaro Augusto Pereira Mesquita

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. HENRIQUESAVONITTI MIRANDA.

Alvaro Augusto Pereira Mesquita é Supe-rintendente de Relações Institucionais da ANE-EL. Engo Eletricista – UFPA. Pós-Graduado emEngenharia Econômica – UDF. Pós-Graduadoem Direito Legislativo – UNILEGIS.

Introdução; O Estado Regulador; As Agên-cias reguladoras no contexto internacional; AsAgências reguladoras no Brasil; e ConclusõesGerais.

Sumário

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regulado, envolvendo usuários ou consu-midores e prestadores de serviços; e o exer-cício da autoridade estatal por mecanismostransparentes e participativos.

É nesse contexto, portanto, que surgemas agências reguladoras, órgãos criados porleis específicas na condição de autarquiasditas especiais, dotadas de autonomia ad-ministrativa, financeira e patrimonial umpouco mais amplas do que as demais autar-quias. Seus dirigentes são indicados peloPresidente da República e por ele nomea-dos, após aprovação pelo Senado Federal,para um mandato fixo e não coincidente,em geral de quatro anos, permitida uma re-condução e proibida a demissão imotivada.

As agências reguladoras foram idealiza-das para atuar num ponto eqüidistante emrelação aos interesses dos usuários, dosprestadores dos serviços concedidos e dopróprio Poder Executivo, de forma a evitareventuais pressões conjunturais, principal-mente quando as empresas estatais convi-vam com empresas privadas na prestaçãodo serviço público, como acontece nos seto-res de energia elétrica, petróleo e gás.

Passados quase seis anos da implanta-ção das agências reguladoras e com a as-sunção de um novo governo, vários temaspolêmicos surgiram sobre a atuação dessesórgãos, que vêm sendo debatidos pela aca-demia, por especialistas de direito público,políticos, agentes públicos e privados, pelopróprio governo e pela mídia, entre outros.Os debates envolvem, principalmente, temasrelacionados ao limite do poder regulamen-tador das agências vis-à-vis o direito brasi-leiro, ao grau de autonomia, ao controle aque devem estar submetidas, ao mandatode seus dirigentes e ao caráter constitucio-nal desses órgãos.

Nesse debate se vê, de um lado, aquelesque defendem o modelo de agências regula-doras como entes de Estado, com autono-mia administrativa, financeira e patrimoni-al e controle pelo Congresso Nacional e, deoutro, aqueles que defendem uma reduçãodessa autonomia pela atuação mais presen-

te do governo sobre esses entes, a reduçãode suas atribuições em favor dos ministéri-os e um forte controle social.

Esses debates ganharam maior impor-tância a partir da declaração do Presidenteda Republica, Luiz Inácio Lula da Silva, deque “terceirizaram o poder político no Bra-sil” – numa referência a atuação das agên-cias. Outros fatores impulsionadores dosdebates foram o forte contingenciamentoorçamentário imposto pelo governo federala esses entes; a instalação de grupo de tra-balho interministerial para estudar e pro-por ao Presidente da República a alteraçãona gestão, estrutura e competências dasagências reguladoras; a colocação em con-sulta pública, pelo governo, de dois ante-projetos de lei que refletem os estudos reali-zados pelo grupo de trabalho. O debate vol-tou a ganhar dimensão em 2004 com a edi-ção, em dezembro de 2003, da Medida Pro-visória (MP) no 155, dispondo sobre o planode carreiras das agências, e o envio pelogoverno ao Legislativo do Projeto de Lei no

3.337, de 2004, tratando da gestão, organi-zação e controle das agências reguladoras.Tal Projeto foi derivado dos anteprojetoscolocados em consulta pública.

Essas discussões vêm sensibilizando oCongresso Nacional que debate com inte-resse esses temas.

Foi efetivamente no Congresso Nacionalque se produziram as primeiras propostasconcretas visando a alterar ou aperfeiçoar ofuncionamento das agências reguladoras.Assim, encontram-se em tramitação nasduas Casas Legislativas 13 projetos de lei esete propostas de emenda à Constituição.

Outra iniciativa de parlamentares fede-rais foi a criação da Frente Parlamentar dasAgências Reguladoras, criando um espaçode debate mais organizado sobre o tema esendo um instrumento de diálogo com oPoder Executivo. A atuação da Frente noSenado colaborou para a aprovação deemendas ao Projeto de Lei de Conversão(PLV) no 15, de 2004, derivado da MP n o 155,mas que foram, na sua maioria, rejeitadas

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pela Câmara dos Deputados. A Frente con-tinua atuando debatendo o PL no 3.337, de2004, e a proposta de Substitutivo apresen-tada em junho deste ano pelo relator, Depu-tado Leonardo Picciani.

É diante desse quadro, sem a presunçãode se esgotar o tema, que se pretende desen-volver um estudo que analise o papel e aatuação das agências reguladoras no con-texto do Estado brasileiro, oferecendo con-tribuições para o debate. Assim, serão enfo-cados os temas polêmicos em discussão, apartir da opinião de especialistas e juristassobre a matéria e apresentadas algumas al-ternativas para o bom funcionamento des-ses entes, inclusive sua adequada inserçãono direito brasileiro, visando aos interessesmaiores da sociedade.

O estudo começa contextualizando oEstado regulador. Em seguida, faz uma abor-dagem das agências reguladoras em âmbi-to internacional para, depois, entrar na dis-cussão das agências no Brasil, focando nastrês primeiras agências criadas e que atuamem setores estratégicos da infra-estruturanacional, ou seja, a Agência Nacional deEnergia Elétrica (ANEEL), Agência Nacio-nal de Telecomunicações (ANATEL) e aAgência Nacional do Petróleo (ANP).

2 – O Estado Regulador

2.1 – Contextualização, objetivos einstrumentos

Para a adequada compreensão deste edos demais itens desse estudo, convém ca-racterizar bem a diferença entre a funçãoreguladora ou atividade regulatória e a fun-ção regulamentar ou regulamentação. Essadiferença faz-se importante, pois muitasvezes os vocábulos regulação e regulamen-tação são usados como sinônimos. Quandoisso acontece, a ação reguladora, muito maisampla, fica restrita ao seu caráter meramen-te normativo.

Enquanto que a função regulamentarconsiste em disciplinar uma atividade me-

diante a emissão de atos ou comandos nor-mativos, a função reguladora ou a regula-ção estatal, além de envolver a função regu-lamentar, envolve as atividades de fiscali-zação, de poder de polícia, adjudicatórias,de conciliação, bem como a de subsidiar erecomendar a adoção de medidas pelo po-der central no ambiente regulado. Como citaMarques (2003, p. 15) “sem essa completu-de de funções não estaremos diante do exer-cício de função regulatória”.

Quando se estuda ou se quer caracteri-zar o Estado regulador e o Estado provedorou produtor de serviços, ficam evidencia-das as duas formas de intervenção do Esta-do na ordem econômica.

A atuação do Estado regulador caracte-riza-se pela intervenção indireta do Estadona ordem econômica, regulamentando e fis-calizando a prestação de determinado ser-viço, inclusive serviços públicos, como for-ma de equilibrar os interesses dos usuáriosou consumidores e os do mercado, em proldo interesse público. Assim, só é efetiva aexistência da função reguladora do Estadoem um ambiente em que há a participaçãodo capital privado na prestação de serviçosde interesse da coletividade.

A atuação do Estado provedor ou pro-dutor de serviços caracteriza-se pela cha-mada intervenção direta do Estado na or-dem econômica, produzindo bens e servi-ços por meio de suas empresas, em sistemade monopólio ou em competição com a ini-ciativa privada.

Constata-se, portanto, que essas duasfunções do Estado não são excludentes ouincompatíveis. Podem se complementar ouestar mais presentes uma ou outra dependen-do das necessidades da sociedade, da capa-cidade econômica do próprio Estado e da ver-tente política dominante, entre outros fatores.

A convivência dessas duas formas de in-tervenção do Estado no domínio econômicopode ser verificada no Estado brasileiro, emfunção do que prevê a Constituição de 1988.

A intervenção direta fica evidenciada noart. 173 da Constituição, in verbis:

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Ressalvados os casos previstosnesta Constituição, a exploração di-reta de atividade econômica pelo Es-tado só será permitida quando neces-sária aos imperativos da segurançanacional ou a relevante interesse co-letivo, conforme definidos em lei.

Já o art. 177, que disciplina o monopólioda União nas atividades do setor de petró-leo e gás, prevê a possibilidade de essas ati-vidades serem contratadas com empresasestatais e privadas, além de prever a criaçãodo órgão regulador do monopólio. Vê-se aí,claramente, a convivência das duas formasde intervenção.

A intervenção indireta do Estado ficamais evidente no art. 174 da Constituição,pois não só o caracteriza “como agente nor-mativo e regulador da atividade econômi-ca” como também dá a Ele, entre outras, asfunções de fiscalização.

Merecem também destaque as possibili-dades de intervenção do Estado brasileirono domínio econômico, capituladas no art.21, incisos XI e XII, da Constituição, já quetanto a exploração dos serviços de teleco-municações como a dos serviços e instala-ções de energia elétrica podem ser feitas di-retamente pela União ou mediante os ins-trumentos da concessão, autorização oupermissão. A possibilidade do uso dessesinstrumentos evidencia a intervenção indi-reta do Estado, pois os serviços em questão,de competência da União, poderão ser exe-cutados por particulares, mediante delega-ção. Nessa condição, aparece a necessida-de da ação reguladora do Estado. A própriaConstituição deixa isso claro quando esta-belece em seu art. 20, inciso IX, que a lei tra-tará da organização dos serviços de teleco-municações, bem como da criação do órgãoregulador setorial.

Abordando historicamente o tema, vê-seque o Estado regulador sempre existiu (Cf.Vital Moreira, 1997, p. 17-26). Mesmo naépoca do liberalismo econômico (séculoXIX), em que o mercado se auto-regulava, jáera colocado em prática o instituto da con-

cessão, que pressupõe a ação reguladora doEstado estabelecendo normas para mantera execução dos serviços, fiscalizando o cum-primento destas pelas concessionárias, po-dendo aplicar penalidades, intervir, retomara concessão por inadimplemento ou motivode interesse público e fazer a reversão debens.

No período intervencionista, iniciado emfins do século XIX, o Estado regulador apa-rece com evidência para corrigir o funcio-namento do mercado, já que este, auto-regu-lado, não fora capaz de criar os mecanis-mos de competição que favorecessem a ade-quada prestação do serviço aos usuários econsumidores. Assim, toda a economia pas-sa a ser regulada (Cf. Di Pietro, 2003, p. 32).

Já no início do século XX, ainda que exis-tindo a intervenção indireta do Estado pormeio da regulação, prepondera a interven-ção direta pela multiplicação de empresasestatais tanto nos Estados Unidos, como empaíses da Europa e da América Latina, emresposta à crise social surgida após a 1a

Guerra Mundial e à crise de 1929 nos Esta-dos Unidos. Como decorrência, o institutoda concessão ficou relegado a segundo pla-no. A intervenção indireta (regulação) atua-va mais na ordem econômica para evitarcartéis e qualquer forma de dominação domercado que prejudicasse a concorrência,enquanto a prestação de serviços públicosera praticamente feita pelo Estado. Caracte-rizou-se, portanto, a fase do Estado provi-dência, produtor de bens e serviços, deno-minado, nos Estados Unidos, de Estado doBem-Estar ou Estado Social.

É no período dito neoliberal, instauradonas décadas de 70 e 80 do século passado,sob a liderança dos Estados Unidos e Ingla-terra, que surge de forma preponderante oEstado regulador. As empresas estatais pas-sam a ser controladas pela iniciativa priva-da, num processo de desestatização, e há aquebra de monopólios estatais. O institutoda concessão retorna e se introduz algo denovo, a competição na prestação dos servi-ços públicos.

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Dessa forma, a atuação do Estado regu-lador é voltada para a criação de mecanis-mos que favoreçam a competição, onde pos-sível, ao mesmo tempo em que dá ao merca-do a liberdade para escolher os mecanismosmais adequados à prestação do serviço pú-blico concedido. Na ocorrência de monopó-lios naturais, a ação do Estado passa a sermais forte, com a regulação atuando parasimular uma virtual competição nesse am-biente. Nessa situação, prepondera a regu-lação econômica que busca introduzir umsinal de eficiência a ser perseguido pelosconcessionários prestadores de serviços.Aliado a isso, surgem novas formas de re-gulação incorporando a percepção dos usu-ários e consumidores nas regras estabeleci-das. Passa também a ser utilizado o instru-mento da mediação pelo Estado nas rela-ções entre usuários ou consumidores e osprestadores de serviço público. São, então,mecanismos e instrumentos que descaracte-rizam as formas impositivas presentes quan-do o Estado intervém diretamente na ordemeconômica. Nesse quadro, passam a convi-ver a regulação voltada para o mercado com-petitivo, a regulação pública, voltada para osmonopólios e ao exercício do poder de polí-cia, e a auto-regulação exercida pelos presta-dores do serviço. Esse sistema predomina atu-almente no mundo capitalista variando degrau dependendo dos governos.

2.2 – A moderna regulação

A ação moderna do Estado regulador nãopressupõe substituir a forma de interven-ção direta do Estado na ordem econômica.O que é relevante na ação reguladora doEstado é a separação entre os entes opera-dores estatais e o ente regulador do respec-tivo setor, criando condições para que ope-radores estatais e privados compitam entresi, sob as mesmas regras, de forma a ofere-cer um serviço adequado a usuários e con-sumidores – qualidade e preços justos.

Segundo Marques (2003, p. 12),é essencial à noção de moderna regu-lação que o ente regulador estatal dia-

logue e interaja com os agentes sujei-tos à atividade regulatória buscandonão apenas legitimar a sua atividade,como tornar a regulação mais qualifi-cada, porquanto mais aderente às ne-cessidade e perspectivas da socieda-de. Fruto da própria dificuldade doEstado, hoje, de impor unilateralmen-te seus desideratos sobre a sociedade,mormente no domínio econômico, faz-se necessário que a atuação estatal sejapautada pela negociação, transparên-cia e permeabilidade aos interesses enecessidades dos regulados. Portan-to, o caráter de imposição da vontadeda autoridade estatal (que impõe ointeresse público selecionado pelogovernante) dá lugar, na moderna re-gulação, à noção de mediação de inte-resses, no qual o Estado exerce suaautoridade não de forma impositiva,mas arbitrando interesses e tutelandohipossuficiências.

Dessa visão de Marques depreende-se anecessidade da atuação estatal reguladorabuscando o equilíbrio entre todos os inte-resses presentes no sistema regulado, emprol do interesse público contextualizadopela sociedade e consignado nas leis.

Portanto, o sucesso da ação reguladoraestatal passa a depender do equilíbrio entreos interesses privados e os objetivos de inte-resse público.

Nesse contexto, diferentemente do queocorreu no início do período neoliberal, aação do Estado regulador não significa ape-nas sua intervenção indireta no domínioeconômico (regulação econômica), mas tam-bém na ordem social (regulação social).

3 – As agências reguladoras nocontexto internacional

3.1 – Origem

As agências reguladoras têm sua origemhistórica nos Estados Unidos, em 1887, como início do período intervencionista do Es-

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tado (intervenção por meio da regulação),após o liberalismo, para enfrentar os mono-pólios e a concorrência desleal então feroz-mente conduzidas pelas ferrovias america-nas.

Foi, no entanto, a partir da ascensão deRoosevelt, em 1933, que houve a prolifera-ção das agências denominadas IndependentRegulatory Comissions com as mesmas preo-cupações, mas ampliadas para outros seto-res da economia – o controle monopolista ea concorrência desleal nos diversos merca-dos.

3.2 – Caracterização

Nos Estados Unidos existem três tiposde agências: agências reguladoras indepen-dentes – Independent Regulatory Comissions;agências reguladoras quase independentes;e as agências executivas.

As Agências Reguladoras independen-tes (Independent Regulatory Commission), naterminologia mais usual do direito dos EUAsão entidades administrativas autônomase altamente descentralizadas, com estrutu-ra colegiada, sendo os seus membros nome-ados para cumprir um mandato fixo do qualeles só podem ser exonerados em caso dedeslize administrativo ou falta grave (forcause shown). Esse é um dos principais ins-trumentos de proteção contra pressões polí-ticas. A duração dos mandatos varia deagência para agência e não raro é fixada emfunção do número de membros do colegia-do, de sorte que os membros de uma agên-cia composta de cinco Diretores (Commissi-oners) têm mandatos de cinco anos escalo-nados de tal maneira que haja uma vacân-cia a cada ano. A nomeação, inclusive a dopresidente do colegiado (Chairman), cabe aoChefe do Executivo com a prévia aprovaçãodo Senado. A independência dessas agên-cias pressupõe, também, a discricionarieda-de técnica por terem suas posições basea-das em critérios puramente técnicos.

As agências de regulação independen-tes, caracterizam-se também pela especifici-dade, pois atuam em setores específicos da

atividade econômica, principalmente emserviços públicos, tais como água, energiaelétrica, gás e telecomunicações.

As agências reguladoras independentesnão se confundem com as agências executi-vas. No direito dos EUA, as agências execu-tivas têm as mesmas características jurídi-cas das autarquias no Brasil. São entidadesadministrativas dotadas de personalidadejurídica própria, criadas por lei com a atri-buição de gerenciar e conduzir, de formaespecializada e destacada da Administra-ção Central, um programa ou uma missãogovernamental específica. Apesar de goza-rem formalmente de autonomia funcionalno setor específico de atividades que lhe éatribuído, são entes vinculados à Adminis-tração Central, estão sujeitas à supervisão eà orientação do Presidente e do Ministro deEstado (Secretary) responsável pelo setor emque se enquadra a respectiva atividade es-tatal. Mais do que isso, sua direção, em cujacúpula em geral (mas nem sempre) tem as-sento um único agente estatal, pode ser exo-nerada a qualquer momento pelo Presiden-te, embora para a nomeação seja invariavel-mente imprescindível a aprovação do Sena-do.

Constata-se, portanto, que o fator decisi-vo de distinção entre uma Executive Agencye uma Independent Regulatory Commissionreside no seu relacionamento com o Chefedo Executivo. Se o Presidente dos EUA temtotal controle sobre as agências executivas,tendo competência legal para ditar-lhes apolítica a ser seguida e até mesmo exonerara qualquer momento os seus dirigentes, omesmo já não ocorre em relação às agênciastipicamente reguladoras, que são indepen-dentes no estabelecimento da regulamenta-ção do setor de atividade governamental quelhes é atribuído por lei, gozando os seus di-retores, para tanto, de estabilidade funcio-nal garantida pelo fato de a nomeação serefetivada para um mandato fixo.

O modelo norte-americano de agênciasreguladoras acabou por influenciar os de-mais países que copiaram ou adaptaram esse

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modelo introduzindo-o na estrutura admi-nistrativa do Estado.

4 – Contextualização das agênciasreguladoras no Brasil

4.1 – Surgimento das agências

Como visto no capítulo 2, item 2.1, a Cons-tituição de 1988 deu ao Estado brasileiro apossibilidade de ser mais ou menos inter-vencionista. Em outras palavras, ser maisou menos regulador.

As transformações ocorridas no final dadécada de 80 do século passado com a que-da do muro de Berlim e a globalização nassuas vertentes econômica, política e cultu-ral, provocaram mudanças na forma de atu-ação do Estado em grande parte das nações.Essas mudanças privilegiaram a forma deintervenção indireta do Estado em detrimen-to da intervenção direta, ambas discutidasno capítulo 1.1 anterior.

No Brasil não foi diferente. A partir de1995, tem lugar entre nós o fortalecimentodo papel regulador do Estado. Note-se quenão houve um desaparecimento absoluto daintervenção direta; apenas, esta foi reduzi-da como por exemplo nos setores de energiaelétrica e de petróleo e gás em que, apesarda participação de capital privado, conti-nuaram a atuar as empresas estatais. A ex-ceção é o setor de telecomunicações, total-mente operado por empresas privadas me-diante os instrumentos da concessão, auto-rização e permissão.

É nesse contexto que são criadas, no Bra-sil, as chamadas agências reguladoras comosendo um instrumento de atuação do Esta-do regulador que foi desenhado tendo emconta os pressupostos da moderna regula-ção, tratada no capítulo 2, item 2.2, desteestudo.

Os primeiros setores a terem agênciasreguladoras foram os de energia elétrica, te-lecomunicações e o de petróleo e gás. Foramcriadas a Agência Nacional de Energia Elé-trica (ANEEL), em dezembro de 1996, a

Agência Nacional de Telecomunicações(ANATEL), em julho de 1997, e a AgênciaNacional do Petróleo (ANP), em agosto de1997.

4.2 – Características e funções básicas

As agências reguladoras no Brasil asse-melham-se às agências independentes nor-te-americanas quanto às suas característi-cas e funções, descritas no capítulo 3, item3.2, deste estudo. O termo “agências” deri-va também do direito americano.

A figura das agências reguladoras nãofaz parte da tradição constitucional brasi-leira. Apenas algumas agências foram pre-vistas na Constituição Federal de forma es-pecífica, como é o caso da ANATEL e daANP, denominadas de órgãos reguladores.A primeira vez que a denominação “agên-cia reguladora” surgiu na legislação foiquando da edição da MP no 155, de 2003,que instituiu o plano de carreiras dessesentes. A legislação conferiu às agências re-guladoras brasileiras o formato jurídico deautarquias especiais, de forma a poderemser classificadas entre os entes da adminis-tração pública previstos na ConstituiçãoFederal e no Decreto-lei no 200, de 1967. Porserem autarquias, devem ser criadas por lei,como determina o art. 37, XIX, da Constitui-ção. Em razão do princípio da simetria, suaextinção também só pode se dar mediantelei específica e por motivos de interesse pú-blico

A palavra “autarquia” origina-se do gre-go “autárkeia”, qualidade do que executaqualquer coisa por si mesmo. O Decreto-leino 200, de 1967, define em seu art. 5o, incisoI, autarquia como:

o serviço autônomo, criado por lei,com personalidade jurídica, patrimô-nio e receita próprios para executaratividades típicas da AdministraçãoPública, que requeira, para seu melhorfuncionamento, gestão administrati-va e financeira descentralizada.

As autarquias são, portanto, pessoas ju-rídicas de direito público, criadas por lei,

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com autonomia patrimonial, financeira e degestão, sem subordinação hierárquica, sobcontrole estatal e atribuições especificadasna lei de criação.

As agências reguladoras são reputadasautarquias “especiais” por possuírem ca-racterísticas peculiares, são elas: a) poderregulador (normativo ou regulamentador,fiscalizador, poder de polícia e mediador)como caracterizado no capítulo 2, item 2.1;b) independência política dos seus dirigen-tes, investidos de mandatos e estáveis nocargo por determinado prazo (são eles indi-cados e nomeados pelo Presidente da Re-pública após aprovação pelo Senado; c) in-dependência decisória, na medida em quesuas decisões não são passíveis de recursoshierárquicos; d) ausência de subordinaçãohierárquica; e) função de poder concedente,por delegação, nos processos de outorgasde concessão, autorização e permissão, nocaso das agências que atuam nos setores deinfra-estrutura, como aquelas mencionadasneste estudo.

O mandato dos dirigentes das agênciasterminará apenas em caso de renúncia, decondenação judicial transitada em julgadoou de processo administrativo disciplinar,sendo que a lei de criação de cada agênciapoderá prever outras condições para a per-da do mandato (art. 9o da Lei no 9.986/2000).

4.3 – Ações e resultados esperados daatuação das agências

Caracterizado o Estado regulador e asagências reguladoras como um dos princi-pais instrumentos dessa função do Estado,cabe agora analisar o que deve se esperarda atuação desses entes, por investidores,usuários, consumidores e a própria socie-dade, para que todos ganhem e o interessepúblico derivado da sociedade seja satisfei-to.

Para os usuários e consumidores e a pró-pria sociedade, a atuação das agências deveestar voltada primordialmente para: a) agarantia dos seus direitos, devidamente ex-

plicitadas em regulamento e nos contratosde concessão de serviços públicos; b) a prá-tica de tarifas ou preços justos; c) a melhoriacontínua da qualidade do serviço e do aten-dimento prestado pelos concessionários; d)o desenvolvimento tecnológico e práticaseficientes que contribuam para a modicida-de tarifária; e) a proteção ao meio ambiente;f) a implementação das políticas setoriaiscomo a universalização dos serviços; e g) aatuação descentralizada, de forma a apro-ximar a ação reguladora dos consumidoresou usuários.

Para os investidores ou operadores (con-cessionários), a atuação das agências regu-ladoras deve repercutir em: a) regras clarase estáveis; b) remuneração adequada de seusinvestimentos; e c) cumprimento dos con-tratos e dos regulamentos.

Para que essas expectativas se configu-rem, é necessário que as agências tenhamem conta nas suas ações o seguinte: a) equi-líbrio de interesses (neutralidade); b) trata-mento isonômico; c) prestação de contas; d)transparência; e) imparcialidade; f) gestãoágil e eficiente; g) credibilidade; h) partici-pação de usuários ou consumidores e ope-radores no processo regulatório; i) diálogo ecomunicação permanente com todos os seg-mentos que interajam com o setor regulado.

Uma questão que indubitavelmente sur-ge dessa análise é se as agências vêm aten-dendo a essas expectativas, a partir da im-plementação das ações que lhes são própri-as e aqui identificadas.

A resposta a essa questão é a de que asagências vêm atendendo em parte as expec-tativas que a sociedade deve esperar da atu-ação desses entes. É possível identificar re-sultados positivos da atuação das agênciascomo: aumento dos investimentos nos seto-res regulados (eletricidade, telecomunica-ções, petróleo e gás), ampliação do acessoaos serviços, principalmente nos setores detelecomunicações e de energia elétrica e amelhoria da qualidade do serviço, quandocomparado ao período anterior à desestati-zação. Por outro lado, falta às agências um

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plano de comunicação mais efetivo para quea sociedade possa melhor compreender seuspapéis e delas cobrar efetividade no proces-so de regulação. Outro ponto a destacar, vin-culado ao anterior, que necessita de maiorinvestimento pelas agências é o de reduzir eaté eliminar o desnível de informação exis-tente entre usuários e agentes regulados noprocesso de participação na atividade re-gulatória. Esses últimos, até pela obrigaçãoque tem com o Estado, estão bem mais pre-parados para esse processo. Outro ponto demelhoria diz respeito aos mecanismos detransparência. Apesar do reconhecido es-forço das agências em divulgar seus atos edecisões, faz-se necessário criar novos ins-trumentos que dêem maior visibilidade ecompreensão das ações das agências, dadaa heterogeneidade existente na sociedade emtermos de recursos e conhecimentos.

Nesse balanço geral, pode-se afirmar quea atuação das agências trouxe mais benefí-cios do que problemas para a sociedade. Aatuação efetiva desses entes reguladoresdependem, fundamentalmente da elimina-ção de entraves e problemas, externos aosmesmos, os quais serão analisados no capí-tulo seguinte, uns estruturais outros conjun-turais. Eliminados os principais entraves,as agências reguladoras terão plenas con-dições para dar à sociedade os benefíciosda moderna regulação.

4.4 – Problemas enfrentados

4.4.1 – Geral

Um problema que parece pouco relevan-te, mas que acaba por trazer inconvenientesàs agências reguladoras é o próprio termo“agência” para designar esses órgãos deEstado (Cf. MARQUES, 2003, p. 22).

A primeira inconveniência decorre dofato de que no direito americano o termoagencies é utilizado para designar tantosas agências independentes (independent re-gulatory agencies ou independent regulatorycommission) quanto às agências não dota-das das características dos órgãos regula-

dores (executive agencies). Isso acabou con-tribuindo para que alguns analistas,doutrinadores e mais recentemente o pró-prio governo federal defendessem a aplica-ção de mecanismos de controle para as agên-cias reguladoras, idênticos aos utilizadospara as agências executivas.

A outra inconveniência é a derivada datradição do termo “agência” no direito bra-sileiro para designar outros entes que nãoexercem a função reguladora, como as agên-cias de desenvolvimento e as agências defomento.

Por fim, a terceira crítica a denominaçãousada diz respeito ao não alinhamento dotermo com a designação utilizada na Cons-tituição para expressar os entes regulado-res. Assim é que a Constituição utilizou otermo “órgão” regulador e não agência, oque acarreta alguma desconformidade en-tre a Constituição e a legislação ordinária,que acabou consagrando o termo na MP no

155, de 2003.Isso pode ter contribuído, de certa for-

ma, para que o governo federal propusesseno Projeto de Lei que trata da gestão, orga-nização e controle das agências regulado-ras, a aplicação do contrato de gestão a es-ses entes de Estado. Como se sabe, o referi-do contrato na legislação brasileira é pró-prio para ser aplicado às denominadas agên-cias executivas, nos termos do disposto noart. 37, § 8o, da Constituição.

4.4.2 – Estruturação

As agências foram criadas sem um pla-no de carreiras para o seus quadros de pes-soal (técnicos e administrativos). Para quepudessem operar até que o plano de carrei-ras fosse criado e os concursos públicos re-alizados, a legislação permitiu que as agên-cias efetivassem contratação temporária depessoal.

Somente após dois anos e meio da im-plantação da primeira agência, foi publica-da a Lei no 9.986, de 2000, dispondo sobre agestão de recursos humanos dos entes re-guladores, incluindo o plano de carreiras.

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O regime de emprego público foi o ado-tado para a efetivação do pessoal concursa-do. Logo esse regime foi considerado incons-titucional, a partir de liminar concedida peloMinistro Marco Aurélio, em dezembro de2000, então presidente do Supremo Tribu-nal Federal (STF), ad referedum do conselhode ministros, sendo que o mérito ainda nãofoi julgado. Isso inviabilizou a realizaçãode concurso público pelas agências e a efe-tivação dos concursados da ANEEL, únicaagência a promover concurso público paraingresso de pessoal no regime de empregopúblico. Como decorrência, houve a neces-sidade de prorrogação das contrataçõestemporárias, além de novas contrataçõesnesse regime.

Essa situação afetou sobremaneira o cli-ma organizacional, com prejuízo para o de-sempenho institucional das agências regu-ladoras. Outro fato originado deste foi a per-da de servidores treinados, ainda que tem-porários, para o mercado regulado, em fun-ção, principalmente, dos fatores remunera-ção, pelo lado dos servidores, e da compe-tência técnica percebida pelos agentes domercado.

Já no atual governo, foi editada, em de-zembro de 2003, a MP no 155 tratando doplano de carreiras das agências regulado-ras, fato relevante se não fosse, como dizemas próprias agências e especialistas, suainadequação em função de não atender àsexigências básicas inerentes aos entes regu-ladores, onde a qualificação técnica em se-tores complexos, como os de infra-estrutu-ra, exigem remuneração, entrada e ascen-são adequada na carreira.

Da referida MP derivou Projeto de Lei deConversão (PLV) no 15, de 2004, aprovadona Câmara, sem modificações substanciaisque permitissem uma melhoria acentuadado plano de carreiras, segundo avaliaçãofeita pelos mesmos segmentos.

No Senado, o referido PLV foi aprovadocom um conjunto de emendas que atendi-am grande parte das demandas das agênci-as reguladoras, mas no retorno do Projeto à

Câmara tais medidas foram rejeitadas. OProjeto aprovado, sem modificações subs-tanciais, deu origem a Lei no 10.871, de 20de maio de 2004.

4.4.3 – Independência e autonomia

Para a adequada compreensão de ondese situam os problemas relativos à indepen-dência e à autonomia, convém fazer umadiferenciação entre esses dois atributos, quese complementam e constituem pilares paraa atuação das agências. A importância des-sa distinção também faz-se necessária, poismuitos que discutem as agências colocamesses instrumentos sob uma mesma defini-ção.

Para tanto, utilizar-se-á a definição me-tafórica feita pelo professor Floriano deAzevedo Marques, Doutor em direito públi-co pela Universidade de São Paulo (USP),quando de sua exposição em evento naANEEL, em outubro de 2003.

De acordo com o conceito de Marques, oatributo da independência das agências éum avanço no regime geral de autonomiadas autarquias. O professor costuma ilus-trar para os seus alunos de graduação a di-ferença entre independência e autonomiafazendo a relação entre a imagem de umavião e a de um pássaro. O avião tem auto-nomia de vôo, que é ditada pelo quanto decombustível ele tem e pela característica daaeronave. Se em algum momento acabar ocombustível ou o avião deixar de ser abaste-cido, a sua  autonomia de vôo é zero. O pás-saro, por outro lado, tem independência, temliberdade de vôo, para ir de um lugar a ou-tro, vai descer no momento que cansar e vairetornar. Eventualmente, o pássaro não teráa capacidade para voar tão longe. Mas nãoé porque ninguém deixou de dar algo paraele; é porque ele não tem capacidade físicaou aerodinâmica de voar.

Em geral, a autarquia é o avião - tem au-tonomia de vôo, dependendo de quantocombustível se der, e poderá ser mais oumenos livre ou capaz de vencer distâncias.Compara-se aqui com as agências executi-

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vas. Mas, se num determinado momento, seresolve tirar o combustível o avião perde suaautonomia. A independência da agência éa do pássaro, aquela que é dada por lei. Pelalei da natureza, ainda que um pássaro nãoseja capaz de voar milhares de quilômetros,ele conseguirá voar uma dada distância,independente do combustível que alguémresolva lhe dar. É a lei natural que define,  apriori, quanto ele poderá voar. A agência seráindependente, à medida que a lei der com-petências para ela. Assim, no caso das agên-cias, tem-se, por exemplo, a independênciadecisória (instância administrativa final) ea independência política (mandato de seusdirigentes) complementadas pela autono-mia financeira (recursos advindos da taxade fiscalização recolhida pelos operadorese pagas pelo consumidor ou usuários natarifa), patrimonial e de gestão.

Essa visão de importância, ou até de no-vidade sobre a autonomia e a independên-cia das agências, não é um consenso. Al-guns administrativistas, como Celso Anto-nio Bandeira de Melo, criticam esses atribu-tos afirmando que “independência adminis-trativa”, “ausência de subordinação hierár-quica” e “autonomia administrativa” sãoelementos intrínsecos à natureza de toda equalquer autarquia, nada acrescentando aoque lhes é inerente. Portanto, nada de espe-cial existiria no instituto das agências regu-ladoras, segundo o doutrinador. O que ocor-reria seria um grau mais ou menos intensodesses caracteres.

A par dessa discussão, a primeira pro-blemática com relação à independência sur-ge com a ANEEL, por ter sido a primeiraagência a ser criada.

Enquanto a lei que criou a ANATEL (Leino 9.472, de 1997) estabelece que cabe à agên-cia implementar a política para o setor detelecomunicações, claramente definida namesma lei, a legislação que criou a ANEEL(Lei no 9.427, de 1996) estabelece que a fina-lidade do órgão regulador é “regular e fis-calizar a produção, transmissão, distribui-ção e comercialização de energia elétrica, em

conformidade com as políticas e diretrizesdo governo federal”. Ou seja, para o setor detelecomunicações tem-se a política setorialdefinida em lei, pactuada entre os PoderesExecutivo e Legislativo, a qual deverá serimplementada pela ANATEL, enquantopara o setor elétrico é dada uma delegaçãolegislativa, por lei, ao Executivo para fixaras políticas que a ANEEL deverá seguir.Como disse o Ministro Nelson Jobim em suapalestra no seminário “Quem controla asagências reguladoras de serviços públi-cos?”, realizado em 2001:

É preciso deixar claro que o grau de in-dependência vai decorrer, exatamente, donível de clareza dos objetivos. Se tivermosobjetivos fixados exclusivamente pelo Go-verno, o nível de independência da agênciaé próximo a zero.

Em outras palavras, a ANEEL está sobas rédeas do Poder Executivo e não sob asrédeas da lei.

Um outro problema com relação à inde-pendência, apesar de aparentemente resol-vido, diz respeito aos mandatos dos diri-gentes das agências. Com a assunção doatual governo, abriu-se uma discussão so-bre a legalidade de o Presidente da Repú-blica, eleito pelo voto popular, nomear osdirigentes das agências, ainda que em vi-gência os mandatos dos atuais dirigentes.Apesar de o Supremo Tribunal Federal játer se posicionado a respeito, a partir do casoda Agência Estadual de Regulação dos Ser-viços Públicos Delegados do Rio Grande doSul (AGERGS), garantindo o mandato dosdirigentes e impedindo, assim, a demissãoimotivada, esse assunto é retomado quan-do o governo, de alguma forma, sente seusinteresses prejudicados em face do poderlegal das agências reguladoras. A legalida-de da interrupção do mandato dos dirigen-tes das agências reguladoras tem guaridana posição de juristas conceituados comoCelso Antonio Bandeira de Melo que defen-de a legalidade da medida.

No entanto, essa questão parece estarsuperada na medida em que o Projeto de Lei

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sobre as agências reguladoras, encaminha-do pelo governo ao Congresso Nacional,preserva o mandato dos dirigentes.

Na questão da autonomia, o problemamais grave está nos contingenciamentosorçamentários e financeiros e na submissãodas agências às normas gerais da Adminis-tração Pública Federal. É bem verdade, nes-se último caso, que muitas das agências dei-xaram de editar seus procedimentos de ges-tão, o que as obrigou a adotar as normasgerais.

Especificamente sobre o contingencia-mento, agências como a ANEEL e a ANA-TEL têm como fonte de receita os recursosprovenientes da taxa de fiscalização, reco-lhida pelos prestadores de serviço (conces-sionários, autorizados e permissionários) epaga, nas tarifas, pelos consumidores e usu-ários. Por ser uma taxa, requer a contrapres-tação dos serviços pela agência nos termosdefinidos nas suas leis de criação. Assim, ocontingenciamento orçamentário imposto àsagências implica que os consumidores ouusuários ficam sem usufruir a plenitude dosserviços, como, por exemplo, a fiscalizaçãoe o tratamento adequado de suas reclama-ções. Por outro lado, pelo ordenamento jurí-dico (Lei de Responsabilidade Fiscal), a taxase caracteriza como recurso vinculado, nãopodendo ser aplicada em objeto diferentedaquele para a qual foi criada. Em outraspalavras, os recursos contingenciados ficamparalisados nas contas das agências, geran-do superávits que não são devolvidos aoconsumidor ou usuários e nem utilizadoscomo fonte de receitas nos orçamentos deexercícios seguintes. São valores que sãocontabilizados para o superávit primário.

4.4.4 – Aspectos jurídicos e constitucionais

Um dos problemas jurídicos que maistem gerado polêmica e tem sido objeto deestudos dos doutrinadores, principalmentedos administrativistas, é o poder regula-mentar das agências reguladoras em facedo princípio da legalidade, capitulado noart. 5o, II, da Constituição Federal (ninguém

será obrigado a fazer ou deixar de fazer al-guma coisa senão em virtude de lei).

De fato, a criação, por lei, de agênciasreguladoras dotadas da atribuição de ela-borar regras de observância obrigatória paraos agentes regulados, tem conduzido osoperadores do direito a dúvidas sobre a even-tual violação à garantia de que ninguém seráobrigado a fazer qualquer coisa, a não serem virtude de lei.

É do saber jurídico e está na Constitui-ção Federal, como aqui mencionado, que osparticulares podem fazer tudo aquilo que alei não lhes proíbe, ao passo que à Adminis-tração Pública só é lícito agir de acordo como que a lei expressamente autoriza. A dife-rença, portanto, reside em que a mera ine-xistência de proibição não basta para am-parar a licitude da conduta da Administra-ção Pública. Dessa forma, toda a atividaderegulamentar só tem validade se subordi-nada à lei.

No Brasil, devido à divisão constitucio-nal de poderes delineada pela Constituição,também não são concebíveis os chamadosregulamentos autônomos, que criam obri-gações à revelia da existência de lei, mas sóse permitem aqueles que se destinam a suafiel execução.

O professor Carlos Mário da Silva Vello-so analisa o mesmo problema à luz do direi-to positivo constitucional brasileiro:

O sistema constitucional brasilei-ro desconhece, em verdade, a figurado regulamento autônomo que aConstituição Francesa admite. Fomosbuscar, aliás, na Constituição da Fran-ça, de 1958, justamente no regulamen-to autônomo, inspiração para a insti-tuição, na Constituição Brasileira de1967, do decreto-lei. (CF, art. 55). Odecreto-lei, todavia, já ficou claro, nãose confunde com o decreto regulamen-tar. No Brasil, o regulamento é sim-plesmente de execução.

Nesse contexto, cumpre investigar pos-síveis respostas às questões aqui formula-das: a) Se só a lei pode criar obrigações, como

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justificar que, por meio de simples regula-mentação, possam as agências reguladorasimpô-las aos entes regulados? b) Seria pos-sível que o legislador delegasse sua funçãolegiferante a um órgão da Administração,sem ofensa ao Princípio da Separação dePoderes? c) Em que medida a possibilidadede constringir a liberdade de particularespor meio de instrumentos normativos infra-legais é compatível com o Estado de Direi-to? d) O poder regulamentar das Agências,atribuído ao seu órgão diretor, é inconstitu-cional em face da competência regulamen-tar privativa do Presidente da República, naforma do art. 84 da Constituição Federal?

Antes de enfrentar as indagações pos-tas, faz-se mister consignar que não exis-tem, ainda, respostas não contestáveis anenhuma delas. Alguns autores, contudo,vêm buscando explicações minimamenteaceitáveis dentro de uma perspectiva dog-mática do direito, com o propósito de man-ter íntegra a unidade do sistema fundadana legalidade.

Desse modo, recorre-se a J. J. Gomes Ca-notilho que denota:

As leis continuam como elemen-tos básicos da democracia política (...),mas deve reconhecer-se que elas setransformaram numa política públi-ca cada vez mais difícil, tornando in-dispensável o afinamento de uma te-oria geral da regulação jurídica. (...) Aidéia de que a lei é o único procedi-mento de regulação jurídico-socialdeve considerar-se ultrapassada (A.Rhinow, N. Achterberg, U. Karpen, E.Baden). A lei é, ao lado das decisõesjudiciais e das “decisões” da admi-nistração, um dos instrumentos da re-gulação social.

Na direção dessa mesma reflexão invo-ca-se o instituto da delegificação (Aragão,2002). Por este instituto, o legislador, no usoda sua liberdade para dispor sobre determi-nada matéria, atribui um largo campo deatuação normativa à Administração, quepermanece, em todo caso, subordinada às

leis formais. Os regulamentos, assim expe-didos, não podem revogar leis anteriores esão revogáveis por leis posteriores. Por isto,há o entendimento que não podem ser im-pugnados mediante o argumento de ter ha-vido delegação de poder legislativo – inte-gram o Direito positivo, mas não possuemforça de lei.

Por este entendimento, menciona Ale-xandre Santos de Aragão que

não há qualquer inconstitucionalida-de na delegificação, que não consisti-ria propriamente em uma transferên-cia de poderes legislativos, mas ape-nas na adoção, pelo próprio legisla-dor, de uma política legislativa pelaqual transfere a uma outra sede nor-mativa a regulação de determinadamatéria. E, com efeito, se este tem po-der para revogar uma lei anterior, porque não o teria para, simplesmente,rebaixar o seu grau hierárquico? Porque teria que direta e imediatamenterevogá-la, deixando um vazio norma-tivo até que fosse expedido o regula-mento, ao invés de, ao degradar a suahierarquia, deixar a revogação paraum momento posterior, a critério daAdministração Pública, que tem mai-ores condições de acompanhar a ava-liar a cambiante e complexa realida-de econômica e social?

Estas observações decorrem do princí-pio da essencialidade da legislação, peloqual, segundo J.J. Gomes Canotilho a teoriada legislação

deve contribuir para a clarificação daforma dos actos normativos, quer naescolha da forma entre os vários esca-lões normativos (exemplo: opção en-tre a forma legal ou a forma regula-mentar) quer dentro da mesma hierar-quia normativa (exemplo: opção porlei ou decreto-lei, decreto regulamen-tar ou portaria). Uma das orientaçõeshoje sugeridas é a de que, no planodas decisões estaduais, interessa nãosó ou não tanto o reforço da legitima-

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ção democrática, mas que a decisãoseja justa. A ‘justeza’ da decisão de-penderá, em grande medida, de se es-colher o ‘órgão’ mais apetrechadoquanto à organização, função e formade procedimento para tomar essa de-cisão.

Há, contudo, opiniões que sustentamque tal deslocamento de sede normativa sópode ser operado pela própria Constituição,isto é, que a liberdade do legislador, em umregime de Constituição rígida, não podechegar ao ponto de abrir mão dos seus po-deres, delegando-os. Para essa assertiva,pouco importaria que a Constituição vedeou não, expressamente, a delegação de po-deres, vez que a vedação decorreria da pró-pria divisão constitucional de competênci-as. Sendo assim, afirmam esses autores, adelegificação por via legislativa implicariaa derrogação infraconstitucional de compe-tências fixadas pelo Poder Constituinte.

No entanto, diante da existência de agên-cias reguladoras autônomas e independen-tes, é possível entender que, apesar de am-bas as posições possuírem grande plausibi-lidade, após um primeiro momento de per-plexidade por parte de setores da doutrinae da jurisprudência brasileiras, contumaz-mente infensos a mudanças de posições tra-dicionais, as necessidades práticas de umaregulação social ágil e eficiente irão, em umespaço de tempo não muito largo, impor oamplo acatamento do instituto da delegifi-cação, até porque, além das razões de or-dem prática, reveste-se de sólidos argumen-tos jurídicos.

Com efeito, devemos observar que o Po-der Legislativo, face à complexidade, dina-mismo e tecnicização da sociedade, tem dis-tinguido os aspectos políticos, dos de natu-reza preponderantemente técnica da regu-lação econômica e social, retendo os primei-ros, mas, consciente das suas naturais limi-tações, transpassando a outros órgãos ouentidades, públicas ou privadas, a normati-zação de cunho marcadamente técnico. Po-rém, mesmo nesses casos, resguarda o Po-

der Legislativo o balizamento e a coordena-ção destas regulações.

Nota-se, com isto, a grande conexão exis-tente entre os ordenamentos setoriais, asentidades reguladoras independentes e aproliferação de sedes normativas não par-lamentares, aí inclusas, com destaque, aspropiciadas pelas delegificações. Todos es-tes fenômenos constituem o reflexo no Di-reito da complexidade da sociedade contem-porânea.

A necessidade de descentralização nor-mativa, principalmente de natureza técni-ca, é a razão de ser das agências indepen-dentes, ao que se pode acrescer o fato dacompetência normativa integrar o próprioconceito de regulação.

Desta forma, parece que, em princípio,as leis criadoras das agências reguladorasimplicam, pelo menos em matéria técnica,em deslegalização em seu favor, salvo, logi-camente, se delas se inferir o contrário.

Neste sentido, Giuffrè (1999, p.187) sus-tenta que:

mesmo quando as entidades regula-doras independentes não tiveremsede constitucional, se deve admitirque a atribuição de funções de regula-ção e decisão, a serem exercidas pormeio do exercício conjunto de compe-tências normativas, executivas e con-tenciosas, a órgãos postos em umaposição, mais ou menos intensa dedistância ou separação do poder po-lítico-partidário, e caracterizados poruma elevada especialização no res-pectivo setor, demonstra como o ‘man-dato em branco’ conferido pelo Parla-mento a outros centros de competên-cia normativa representa a afirmaçãoda incapacidade do legislador emdominar, por si próprio, o complexocada vez menos decifrável dos inte-resses sociais.

Ressalta-se que, mesmo para os que nãoacolhem a delegificação por via legislativa,o instituto tem grande importância no Di-reito positivo brasileiro, já que, em diversos

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casos, é a própria Constituição que delegifi-ca matérias para entidades estatais e nãoestatais: em favor das entidades desporti-vas privadas (art. 217, I), dos órgãos regula-dores da prestação dos serviços de teleco-municações (art. 21, XI) e da exploração dopetróleo (art. 177, §  2o, III), das universida-des em geral (art. 207) etc.

Em todas essas hipóteses, por sua sedeconstitucional, tem-se uma reserva inques-tionavelmente legítima de poder normativodelegificado em favor de órgãos ou entida-des estranhas ao Poder Legislativo. E mais,como essas esferas normativas autônomasfundamentam-se diretamente no PoderConstituinte, estão protegidas contra as in-gerências que a elas venham a ser impostas,ressalvada, naturalmente, a incidência denormas da própria Constituição, mormenteas concernentes à Administração Pública, ea possibilidade de balizamento e coordena-ção de caráter político – não técnico – peloPoder Legislativo.

Finalmente uma observação deve ser fei-ta para evitar qualquer posição que, partin-do de uma interpretação literal e isolada doart. 84, inciso IV, da Constituição Federal,entenda que o poder regulamentar só possaser exercido pela administração central doEstado, em última instância, pelo Chefe doPoder Executivo.

Muitas vezes a lei confere poder regula-mentar a titular de órgão ou a entidade daAdministração Pública distinta da Chefiado Poder executivo. Trata-se, na expressãode Dantas (1953, p. 203) de “descentraliza-ção do poder normativo do Executivo” paraórgãos ou entidades “tecnicamente maisaparelhados”. Afirma ainda o grande juris-ta brasileiro, que:

o poder de baixar regulamentos, istoé, de estatuir normas jurídicas inferi-ores e subordinadas à lei, mas que nempor isso deixam de reger coercitiva-mente as relações sociais, é uma atri-buição constitucional do Presidenteda República, mas a própria lei podeconferi-la, em assuntos determinados,

a um órgão da Administração públi-ca ou a uma dessas entidades autô-nomas que são as autarquias.

Fixada a legitimidade da atribuição decompetência normativa a órgãos específicosda Administração Direta ou a entidades daAdministração Indireta, notadamente se ti-tulares de autonomia propriamente dita –descentralização material, independência –, a ingerência do Chefe do Poder Executivoneste campo normativo consistirá em viola-ção da respectiva norma legal ou constitu-cional.

4.4.5 – Controle

As agências são submetidas ao controledos três Poderes da União, Executivo, Le-gislativo e Judiciário, além do controle soci-al exercido pela sociedade por intermédiode organizações não governamentais dedefesa do consumidor, e do Ministério Pú-blico.

O grande problema existente está na su-perposição desses controles. Assim é que aSecretaria Federal de Controle e o Tribunalde Contas da União muitas vezes auditamos mesmos pontos. Isso acarreta o desloca-mento da já insuficiente força de trabalhodas agências para o atendimento às deman-das dos controladores em detrimento desuas atividades fim.

Um outro problema está no controle ju-dicial das decisões das agências, esse tal-vez mais sério, pois esse controle se dá noâmbito da primeira instância do judiciário,o que causa, invariavelmente, uma demorana manifestação da Justiça.

Esse é um problema atual, que não sóafeta as agências, mas o País de modo geral.Porém, torna-se mais grave no caso dasagências reguladoras, na medida em queestá se tratando de interesses de um univer-so enorme de usuários e de prestadores deserviço que investem vultosos recursosquando se trata de serviços públicos, bemcomo o risco de que uma decisão colegiada,tomada com base em variáveis técnicas, pos-sa ser questionada permanentemente por

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uma decisão de primeira instância, quepoderá levar vários anos até uma def-inição.

Um exemplo desse problema é o queacontece com as decisões da ANP no seg-mento de distribuição de revenda de com-bustíveis, onde uma quantidade enorme deliminares é expedida por Juiz Federal deprimeira instância, muitas vezes derruba-das em seqüência.

Outro aspecto importante nessa área decontrole que se apresenta como um proble-ma potencial é a proposta do governo fede-ral, contida no Projeto de Lei sobre as agên-cias, mantida na proposta de Substitutivodo relator, que define o contrato de gestãocomo mais um instrumento de controle e criaa figura do ouvidor, deslocado em parte desuas funções próprias para, na realidade,ser um fiscal do Poder Executivo atuandonas agências. A ação do ouvidor foi atenua-da no Substitutivo apresentado, mas aindanecessita de aprimoramentos.

Apesar de, na lei da ANEEL, estar con-signada a figura do contrato de gestão, esseinstrumento nunca funcionou na práticacomo meio de controle e até de relaciona-mento com o Poder Executivo. Por outrolado, o contrato de gestão foi idealizado exa-tamente para ampliar a autonomia de ór-gãos da Administração Pública, que nessecaso seriam enquadrados como agênciasexecutivas. Tendo em conta que as agênciassão por definição legal dotadas de uma “au-tonomia especial”, fica evidente que o con-trato de gestão é uma ferramenta não apli-cável às agências.

5 – Conclusões e recomendações

Do exposto, conclui-se que as agênciasreguladoras são instrumentos indispensá-veis para a ação do moderno Estado regula-dor, que cada vez ocupa mais espaço empaíses em desenvolvimento como o Brasilem função da necessidade crescente de ca-pital privado para o desenvolvimento eco-nômico e social.

A importância das agências regulado-ras é reconhecida, atualmente, quase de for-ma unânime. Basta ver algumas citações detrabalhos produzidos no próprio governoque, enquanto na oposição, tinha uma vi-são muito crítica e negativa desses órgãosde Estado.

Assim é que na “Proposta de ModeloInstitucional do Setor Elétrico” do Ministé-rio de Minas e Energia, recentemente apro-vada pelo Congresso Nacional, encontra-sea seguinte citação: “Para o bom funciona-mento do modelo, os seus organismos, emparticular a ANEEL, ( ......) deverão disporde recursos humanos e materiais suficien-tes e adequados, para o desempenho desuas funções”.

Por outro lado, o relatório do grupo detrabalho interministerial que estudou a re-formulação das agências tem as seguintescitações:

1) a presença das agências regula-doras é indispensável para o sucessodos investimentos privados, que sãocentrais para suprir o déficit de inves-timentos em infra-estrutura existenteno Brasil”. 2) “segundo o ordenamen-to jurídico do país, é eminentementefederal a responsabilidade de assegu-rar que, em diversos setores chaves,os serviços públicos sejam ofertadosna maior quantidade, melhor quali-dade e menor preço aos consumido-res. Isso aponta para a necessidadeda ANATEL, ANEEL, ANP ANTT,ANTAQ e ANA (...), serem preserva-das e fortalecidas;” e 3) “dentre asconseqüências de agências regulado-ras fortalecidas nos setores de infra-estrutura estão sua contribuição paraa diminuição do custo de capital nes-tes setores, com importantes reflexosnas tarifas finais e na própria dispo-nibilidade e acesso aos serviços.

Ainda que essas citações não correspon-dam exatamente ao que se vê das propostasde reestruturação das agências, esse reco-nhecimento é um avanço importante na con-

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solidação das agências reguladoras no Es-tado brasileiro. Mas, por tudo que foi abor-dado, cabem aperfeiçoamentos e desafiosimportantes a serem vencidos para essa con-solidação.

As recomendações a seguir vêm nessesentido, sem a pretensão de esgotá-las: a)dar abrigo constitucional às agências regu-ladoras introduzindo a visão do modernoEstado regulador, com vistas a eliminar aspolêmicas hoje existentes no meio jurídico;b) definir em lei um estatuto geral comumpara as agências reguladoras, diferencian-do aquelas que exercem função de Estadodaquelas que exercem função de governo; c)criar mecanismos adequados para a inte-gração das agências ANEEL, ANP e ANA-TEL, que atuam em ramos de infra-estrutu-ra que se inter-relacionam; d) controle juris-dicional das decisões das agências pelosTribunais Regionais Federais – necessida-de de Emenda Constitucional ao art. 108; e)controle social e político pelo CongressoNacional; f) aprimorar mecanismos detransparência de suas ações, como, porexemplo, a reunião da diretoria aberta aosinteressados como ocorre no Supremo Tri-bunal Federal; g) procuradoria própria aoinvés de vinculada à Advogacia-Geral daUnião; h) recursos humanos adequadamen-te remunerados – poderia se ter como base aremuneração dos servidores do Banco Cen-tral; i) ampliar ou instituir a descentraliza-ção das atividades das agências federaispara as agências de regulação dos estados;j) criar mecanismos de relacionamento como governo, mas que não sirvam de controle;k) ampliar o diálogo com os usuários ouconsumidores, os prestadores de serviço e asociedade; l) reduzir a assimetria de infor-mações hoje existente entre consumidoresou usuários e prestadores de serviço.

Entre os principais desafios para asagências reguladoras se impõem os seguin-tes: a) serem reconhecidas como instituiçõesque atendem ao interesse público; b) aten-der às expectativas dos consumidores ouusuários, investidores e sociedade; c) disse-

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MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional eadministração pública. Coimbra: Almedina, 1997.

minar a cultura da regulação; d)conquistara independência e a autonomia; e) contri-buir para delimitar as fronteiras entre agên-cias, governo e mercado.

Enquanto não se fizer um debate profun-do sobre o papel das Agências, eliminandoou minimizando o viés ideológico dos go-vernos, esses entes de Estado não poderãocumprir com efetividade suas funções deregular setores complexos como os de infra-estrutura, criando, assim, obstáculos impor-tantes para a atração de investimentos priva-dos que são reconhecidamente importantespara o desenvolvimento sustentável do País.

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IntroduçãoO Paraná era até 1853 uma das comar-

cas da Província de São Paulo, a Comarcade Curitiba. Sua emancipação deu-se pelaedição da Lei n o 704, de 29 de agosto de 1853,que marcou o encerramento desse trabalhodo Legislativo Imperial, desenvolvido emtrês diferentes períodos: 1843, 1850 e 1853.

Este artigo, baseado principalmente emdocumentos da Câmara dos Deputados edo Senado, busca aprofundar e esclarecerfatos e circunstâncias que cercaram a pro-dução da Lei de criação da Província doParaná, uma vez que a produção historio-gráfica sobre a emancipação do Paraná con-centra-se nos movimentos ocorridos na pró-pria Comarca de Curitiba, não privilegian-do os acontecimentos relacionados à açãoparlamentar. O trabalho explora, ainda quede relance, fatos históricos políticos, sociais

Introdução; Ocupação e domínio da região;Primeiros movimentos pela emancipação; An-tecedentes ao primeiro projeto; A revoluçãoliberal de Sorocaba; Primeiro momento legis-lativo - Câmara dos Deputados, 1843; A quaseretomada de 1848; Antecedentes à iniciativa noSenado; Segundo momento legislativo - Sena-do,1850; Antecedentes à retomada da matériana Câmara; Terceiro momento legislativo -Câmara dos Deputados, 1853; A aprovação fi-nal; Sanção da Lei no 704, de 1853; Instalação daProvíncia do Paraná; Conclusão; Notas; Refe-rências.

Artenor Luiz Bósio

Contribuições para a história legislativa dacriação da Província do Paraná

Sumário

Trabalho final apresentado ao Curso de Es-pecialização em Direito Legislativo realizadopela Universidade do Legislativo Brasileiro –UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito para ob-tenção do título de Especialista em Direito Le-gislativo. Orientador: Prof. ANTÔNIO JOSÉBARBOSA.

Artenor Luiz Bósio é Analista Legislativoda Câmara dos Deputados, Especialista em Di-reito Legislativo, em Marketing Empresarial eem Políticas Publicas e Gestão Governamen-tal.

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e econômicos que influenciaram o curso dalei de emancipação da Província do Paraná.

Ocupação e domínio da regiãoO povoamento do litoral do Paraná teve

início nas primeiras décadas do século XVII,com o surgimento de Paranaguá. Os cam-pos de Curitiba tiveram povoação por voltade 1650. Já os planaltos próximos ao rio Para-ná eram esparsamente habitados por índios,depois da ocupação espanhola e do abando-no e da destruição de cidades e reduções je-suíticas em decorrência dos ataques de ban-deirantes paulistas. Somente após 1810, seri-am estabelecidas povoações nos campos dointerior. (PILOTTO, 1953b, p.5-6).

Paranaguá esteve sob a jurisdição dacapitania de Itanhaém até 1660, quando foicriada a capitania de Paranaguá, que exis-tiu durante 50 anos. Em 1710 a região foiincorporada à Capitania de São Paulo (PI-LOTTO, 1953b, p. 7). Em 1723 criou-se a Co-marca de Paranaguá, com jurisdição sobretoda a região sul do Brasil, desde a vila deIguape até o rio da Prata. Embora em 1807tenha sido criada a capitania-geral de SãoPedro do Rio Grande do Sul, só em 1812estabeleceu-se uma nova divisão judiciária,com a criação da Comarca de São Pedro doRio Grande do Sul e Santa Catarina, fican-do os limites da Comarca de Paranaguá aosul determinados pelo rio São Francisco nacosta e pelo Rio Negro no interior. Em feve-reiro de 1812, a sede da Comarca é transferi-da de Paranaguá para Curitiba, passando adenominar-se oficialmente Comarca de Pa-ranaguá e Curitiba (Cf. PILOTTO, 1953b, p.9), mas chamada simplesmente “Comarcade Curitiba” ou “5a Comarca de São Pau-lo”1. Em 1842, as vilas de Iguape e Cananéiadesligam-se da Comarca de Curitiba e pas-sam a integrar a Comarca de Santos.

Primeiros movimentospela emancipação

Nos primeiros anos do século XIX, Pe-dro Joaquim de Castro Correia e Sá, mora-

dor de Paranaguá, enviou à Corte Portugue-sa uma carta solicitando a restauração daCapitania de Paranaguá. Foi esta a primei-ra iniciativa registrada pela emancipação(Cf. BELOTO, 1990, p. 55). Em 1811, a Câ-mara Municipal de Paranaguá fez uma re-presentação ao então Príncipe Regente D.João VI, também pedindo a criação de umanova Capitania e indicando o nome do mes-mo Pedro Joaquim de Castro Correia e Sápara governador (CARNEIRO, 1954, p. 37-38). Nada resultou dessa representação —a não ser, talvez, a perda da sede da Comar-ca, transferida para Curitiba em 1812.

Em 15 de julho de 1821, quando do jura-mento às bases da nova Constituição que re-sultou da revolução portuguesa de 1820, ocor-reu, também em Paranaguá, um movimentoconhecido como Conjura Separatista. Esca-lado pelos conspiradores, o sargento Floria-no Bento Viana aceitou o encargo de anunci-ar o manifesto pela autonomia da Comarca.Fez a proclamação prometida perante osmembros da Câmara, mas ante a firme res-posta negativa do juiz de fora, desistiram dointento. (Cf. PILOTTO, 1953a, p. 10-13).

Antecedentes ao primeiro projeto

A principal fonte de riqueza da Comar-ca de Curitiba por volta de 1840 era o trans-porte e a invernação das manadas trazidasdo Rio Grande e destinadas a Sorocaba. Emmenor importância, vinham a indústria domate, a importação e o comércio de gênerose uma agricultura incipiente. A elite políti-ca da Comarca considerava que o governoprovincial de São Paulo dava tratamentosecundário à Comarca, apesar do seu razo-ável desenvolvimento econômico e conside-rável receita fiscal.

A falta de vias de transporte era um dosmotivos apresentados para a emancipaçãoda Comarca, que não tinha uma só estradacarroçável, fazendo-se o transporte apenaspor mulas. Reclamava-se ainda da não apli-cação na Comarca da mínima parte dos im-postos provinciais arrecadados, principal-

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mente daquele cobrado sobre os animais le-vados do Rio Grande a Sorocaba, cuja recei-ta era avultada. MOREIRA (1974, p. 10) re-lata que recursos destinados à construçãode estratégica estrada entre Guarapuava, nocentro da futura Província, às barrancas doParaná teriam sido desviados para fazerestradas em Sorocaba. E um liceu criado porlei imperial para ensino secundário na vilade Curitiba nunca funcionou regularmentepor terem sido reduzidos, por lei provinci-al, os vencimentos dos professores.

Além disso, as relações com o Paraguaie a Argentina, limítrofes à Comarca, eramtensas, situação agravada pela indefiniçãodos limites com esses países. A Argentinaainda impedia o acesso brasileiro ao rioParaná e seus afluentes pelo rio da Prata. Paracomplicar, haviam ainda as pressões daspotências da época pela navegação interiornos rios da Prata e Paraná, o que não interes-sava ao Império em vista da existência de cam-pos despovoados nas regiões entre Curitiba erio Paraná. As únicas povoações eram a vilade Guarapuava e a freguesia de Palmas 2, alémde umas poucas fazendas. A criação da novaprovíncia serviria para garantir a ocupaçãobrasileira desses territórios.

A questão política também contribuiriapara tornar realidade a emancipação. Napolítica da Comarca, pontificavam os comer-ciantes de Curitiba e Paranaguá e fazendei-ros dos campos gerais. Entre esses últimos,embora integrantes da aristocracia fundiária,predominava a orientação liberal, ao passoque, entre os comerciantes, sobretudo do lito-ral, pertenciam os chefes do Partido Conser-vador (WESTPHALEN, 1996, p. 59). Nas po-voações do planalto as câmaras tinham mai-oria liberal. A concessão bem administradada autonomia poderia permitir a cooptaçãoda elite da Comarca para os interessesconservadores.(Cf. BELOTO, 1990, passim).

A revolução liberal de Sorocaba

Em 17 de maio de 1842 rompeu em Soro-caba o movimento revolucionário chefiado

pelo brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar. Aregião sul já estava conflagrada desde 1835com a revolução Farroupilha e a proclama-ção da República do Piratini. O governo te-mia a adesão de Curitiba ao movimento e aligação do movimento de Sorocaba com osrevoltosos do sul.

Diante dessas circunstâncias, foimandado organizar a defesa do gover-no nas vilas do sul paulista, o tenente-coronel da Guarda Nacional João daSilva Machado, tropeiro gaúcho, co-nhecedor da região e relacionado entreos curitibanos. [...] viu João da SilvaMachado que poderia realizar eficien-temente a sua missão e ao mesmo tem-po as suas ambições, conseguindo quea 5ª Comarca ficasse neutra no conflitopaulista em troca de sua elevação à Pro-víncia. Os chefes conservadores esta-vam, por injunções partidárias, contraa revolução; e os liberais, seduzidospelas vantagens que a elevação da Co-marca à Província lhes proporcionaria,não tiveram dúvidas em se manter emneutralidade diante da agitação revo-lucionária irrompida na Província.(MARTINS, 1939, p. 386-387).

Abafada a revolução de Sorocaba, o pre-sidente de São Paulo, Barão de Monte Ale-gre (José da Costa Carvalho) oficia, em 30 dejulho de 1842, ao Ministro do Império, Can-dido José de Araújo Viana, defendendo aautonomia política e administrativa da Co-marca. O sucessor do Barão de Monte Ale-gre, Visconde de Macaé (José Carlos Pereirade Almeida Torres), referendou essa propos-ta (MARTINS, 1939, p. 387-391). Recebendoo expediente do Barão de Monte Alegre, oMinistro do Império encaminhou-o ao Con-selho de Estado que solicitou, em 12 de se-tembro de 1842, diligências para colher aopinião dos moradores sobre a elevação daComarca a província e informações geográ-ficas, econômicas e demográficas a respeitoda Comarca (Cf. BALHANA, 1969, p. 106).

A resposta dos moradores de Castro se-gue em 31 de outubro, e a do círculo eleito-

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ral de Paranaguá, Morretes, Antonina eGuaratuba data de 1o de novembro (Cf.BALHANA, 1969, p. 106). “A 4 de janeirode 1843, a Câmara Municipal de Parana-guá respondia, em extenso relatório, às con-sultas feitas por aviso da Secretaria dos Ne-gócios do Império” (PILOTTO, 1953a, p. 16).

Por essa época, o parnanguara ManuelFrancisco Correia Junior e o curitibano Fran-cisco de Paula Gomes, passavam a fazer pro-paganda separatista da Comarca por meiode folhetos e artigos na imprensa3 do Rio deJaneiro e São Paulo (Cf. WESTPHALEN,1996, p. 54).

Primeiro momento legislativo –Câmara dos Deputados, 1843

As atividades da Câmara dos Deputa-dos4, que normalmente ocorriam de maio aagosto, realizaram-se, em 1843, em duas ses-sões legislativas. A primeira, de janeiro aabril, substituía a 1842, que fora dissolvidapelo Imperador. Nessa primeira sessão le-gislativa, na reunião de 12 de abril de 1843,o deputado Joaquim José Pacheco , de SãoPaulo, apresenta requerimento pedindo asseguintes informações ao governo:

1o Todos os documentos e esclare-cimentos acerca da pretensão dos po-vos da comarca de Curitiba, provín-cia de São Paulo, que consta terem re-querido que a dita comarca seja eleva-da a província.

2o Informações de quanto produzaquela comarca para a renda geral, es-pecificadamente a alfândega de Para-naguá, e sendo possível, quanto igual-mente de renda produz para a rendaprovincial.

3o No caso de constar na secreta-ria de quaisquer documentos, qual apopulação, extensão e divisas da mes-ma comarca, e em geral tudo quantoconvier a bem do deferimento ou in-deferimento da mencionada preten-são. — Pacheco. (ANAIS-CD, 12abr.1843, v.II, p. 767).

A resposta do ministro do Império é co-municada aos deputados na sessão de 27de abril, informando-se a existência, na se-cretaria de Estado, de papéis com as infor-mações solicitadas. (ANAIS-CD, 27 abr.1843, v. II, p. 938).

Dois dias depois, na sessão de 29 de abril,o deputado paulista Carlos Carneiro deCampos apresenta o projeto que eleva aComarca de Curitiba à categoria de Provín-cia. Em discurso, apresenta as razões da me-dida: a grande distância entre as localida-des da Comarca e a administração da pro-víncia de São Paulo; a população de maisde 60 mil habitantes; a considerável produ-ção da Comarca, a importância de suaindústria e o movimento de exportação eimportação; e principalmente, da proxi-midade com a guerra civil na província doRio Grande do Sul, que justificaria a neces-sidade de se fixar ali, além de força militar,uma autoridade civil. (ANAIS-CD, 29abr.1843, v. II, p. 982-983). É o seguinte otexto do projeto apresentado por Carneiro deCampos:

A assembléia geral legislativa decreta:Art. 1o Fica criada uma nova pro-

víncia com a denominação — provín-cia de Curitiba — e com o território elimites que ora tem a comarca do mes-mo nome, na província de São Paulo,que por isso fica desmembrada destaprovíncia.

Art. 2o A província da Curitibadará um senador e um deputado à as-sembléia geral. A sua assembléia pro-vincial será composta de 20 membros;e sua capital aquela povoação que estaescolher, enquanto esta escolha se nãoverificar, aquela que o governo geralmarcar.

Art. 3o O governo fica autorizadopara criar nesta província as estaçõesfiscais indispensáveis para o expedi-ente da administração das rendas ge-rais, submetendo tudo à apreciaçãoda assembléia geral, logo que esta es-tiver reunida.

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Art. 4o Ficam revogadas as leis e dis-posições em contrário.

Paço da câmara dos deputados, aos 29 deabril de 1843. — Carlos Carneiro de Campos(ANAIS-CD, 29 abr.1843, v. II, p. 983-984).

Carneiro de Campos apresenta nessa mes-ma sessão um segundo projeto, para anexarparte do território de Minas Gerais a SãoPaulo. A justificativa era a necessidade deuma melhor divisão entre aquelas provínci-as. (ANAIS-CD, 29 abr.1843, v. II, p. 982-983).Veremos que esta proposição terá implica-ção com o projeto da Província de Curitiba.Estabelecia o projeto:

Art. 1o Fica desmembrado da provínciade Minas Gerais e anexado à província deSão Paulo o território daquela província, queatualmente faz parte do bispado desta.(ANAIS-CD, 29 abr. 1843, v. II, p. 983).

Somente um mês depois de apresenta-do, em 29 de maio entra em primeira discus-são o projeto de lei que criava a Província deCuritiba (projeto no 64, de 1843), que seriaintensamente debatido em 15 sessões daCâmara. Na defesa da matéria destacaram-se, além do autor Carneiro de Campos, os de-putados Joaquim José Pacheco, de São Pau-lo, e Bernardo Jacintho da Veiga, de MinasGerais. Lideraria a oposição ao projeto odeputado José Manoel da Fonseca, secunda-do por Joaquim Octávio Nebias, Joaquim Fir-mino Pereira Jorge e João Evangelista de Ne-greiros Sayão Lobato , todos de São Paulo,além de Angelo Muniz da Silva Ferraz, daBahia, e Joaquim Manoel Carneiro da Cunha,da Paraíba.

Em 3 de junho, é concluída a primeiradiscussão. Os debates seriam retomados, emsegunda discussão5, na sessão de 14 de ju-nho. Os opositores ao projeto aproveitamtodas oportunidades permitidas pelo regi-mento da Câmara para tentar o adiamentodo projeto6 com pedidos de informação aosgovernos do Império ou da Província de SãoPaulo. O deputado Venâncio Henriques deRezende, de Minas7, defendendo o primeiropedido de adiamento, alegava a necessida-de de examinar, “se, tirando-se de São Pau-

lo a comarca de Curitiba, poderá subsistircomo província”, pois ouvira dizer que “amaior renda da Província de São Paulo pro-vém da comarca de Curitiba, dos direitossobre as bestas muares.” (ANAIS-CD, 29mai. 1843, v. I, p. 396). Até o dia 19 de junhoJosé Manoel da Fonseca e Joaquim FirminoPereira Jorge apresentaram cinco pedidos deadiamento, todos rejeitados (Cf. ANAIS-CD,29 mai.1843, v. I, p. 396; 30 mai. 1843, p. 415;03 jun. 1843, p. 499; 19 jun.1843, p. 663, 664,665, 668, 671).

Os deputados paulistas adotam, então,nova estratégia: incorporam ao projeto deemancipação de Curitiba um dispositivoincômodo à grande bancada mineira: a ane-xação a São Paulo do território de Minasque fazia parte do bispado de São Paulo. Aregião compreendia vários municípios daregião do rio Sapucaí onde tomava impor-tância a cultura do café. Assim, é lida e apoi-ada, na sessão de 19 de junho, a emenda dodeputado José Manoel da Fonseca:

Ofereço o artigo único8. do projetono 65 (do mesmo autor) como o 1o doprojeto no 64 que divide a província deSão Paulo, ficando o art. 1o do projetoem discussão como o 2o dele e o 2o co-mo o 3o, e assim progressivamente.(ANAIS-CD, 19 jun. 1843, v. I, p. 674).

A emenda causou um sobressalto e du-rante 40 dias a matéria não é colocada empauta. O projeto reaparece na ordem do diasó em 9 de agosto, ficando clara a controvér-sia em relação ao tema, que interessava prin-cipalmente deputados paulistas e mineiros .

Joaquim Octávio Nebias contesta a cria-ção da nova província e defende a anexa-ção de parte da Província de Minas a SãoPaulo, alegando a maior distância da capi-tal Ouro Preto e a “direção do comércio”,também favorável a São Paulo. Argúi que ocomércio de Camanducaia e Pouso Alegre éfeito pelo porto de Santos. (ANAIS-CD, 16ago. 1843, v. II, p. 757). O deputado José Ma-noel da Fonseca defende a emenda comocompensação a São Paulo pela perda deCuritiba (ANAIS-CD, 09 ago. 1843, v. II, p.

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676). Joaquim José Pacheco , de São Paulo,declara-se não só a favor da emenda comotambém do projeto (ANAIS-CD, 14 ago.1843, v. II, p. 734).

Os deputados mineiros Bernardo Jacin-tho da Veiga e Francisco de Paula Candidocriticam a emenda. O primeiro alega que aregião que se quer passar de Minas a SãoPaulo teria população de 130.000 habitan-tes, enquanto a Comarca de Curitiba teriasomente 70 mil habitantes. (ANAIS-CD, 11ago. 1843, v. II, p. 700; 17 ago. 1843, p. 778). Osegundo reclama que sua Província já perde-ra parte de seu território9 para o Rio de Janei-ro (ANAIS-CD, 14 ago. 1843, v. II, p. 733).

Na sessão de 17 de agosto, o artigo 1o éaprovado10 por estreita margem: 35 votoscontra 30. A emenda anexando a região doSapucaí é rejeitada (ANAIS-CD, 17 ago.1843, v. II, p. 779).

O caráter estratégico da nova Provínciaé destacado pelo autor do projeto, Carneirode Campos:

O território da comarca vai confi-nar com repúblicas vizinhas, toca, nãosó com o Rio Grande, onde têm já pene-trado essas idéias anarquizadoras,como com essas repúblicas; portanto ainvasão se poderá dar também ali, se-não agora, em alguns anos. (ANAIS-CD, 31 mai. 1843, v. I, p. 433-436).

Carneiro de Campos apresenta dados so-bre a população, produção, renda fiscal edespesas, concluindo pela viabilidade danova Província (ANAIS-CD, 19 jun. 1843, v.I, p. 676-678). O deputado pelo Rio de Janei-ro e ministro11 da Marinha Joaquim José Ro-drigues Torres defende a conveniência deemancipar a Comarca, “que limita com arepública do Paraguai e de Entre-Rios”, con-tribuindo também para “sufocar movimen-tos revolucionários”. Sobre o território fron-teiriço despovoado, recomenda “criar umaadministração que se ocupe de colonizá-loe fortificá-lo, evitando sua ocupação porcolonos estrangeiros e criando para o futu-ro conflitos e contestações de limites”. Sali-enta que o aumento de despesa “não deve

obstar a medida que pode produzir resulta-dos tão importantes para o País.” (ANAIS-CD, 1o jun. 1843, v. I, p. 456-459). Outros de-putados, principalmente os mineiros, tam-bém defendem o projeto.

Advertindo que a criação de uma pro-víncia não é o meio mais eficaz de se evitarrebeliões, o deputado paulista Joaquim Oc-távio Nebias chama a atenção para os gastosa que estará sujeita como província (ANAIS-CD, 31 mai. 1843, v. I, p. 437-439). Mais tar-de, questionaria porque dois deputados daAssembléia Legislativa de São Paulo, [Joãoda Silva] Carrão e Almeida Faria, morado-res em Curitiba, deixariam de promover aemancipação da sua Comarca (ANAIS-CD,19 jun. 1843, v. I, p. 668, 670-671).

Silva Ferraz denuncia o projeto como fru-to da transação política para desmobilizara rebelião de Sorocaba e impedir sua liga-ção com a revolução do Rio Grande, feitaentre uma “influência local”12 e o ministé-rio, que rendeu-se à ameaça feita por aquela“influência”, que teria dois mil homens sobsuas ordens: “ou Curitiba seria província,ou ele se havia de decidir pelos rebeldes.”(Cf. ANAIS-CD, 31 mai. 1843, v. I, p. 449).

Questiona o deputado Fonseca a estima-tiva da população feita por defensores doprojeto. Apresenta seus números sobre a re-ceita da alfândega de Paranaguá e minimi-za a renda da Comarca, baseada no mate,“que não se cultiva”, concluindo “não ha-ver ali produção agrícola nem indústria,apenas algumas fazendas de criação degado”. Informa que o mate de Curitiba “temsofrido muito descrédito”, pois além de pos-suir qualidade inferior, começou-se a falsi-ficar o produto, utilizando-se folhas de ou-tras árvores: “se ficar franco o comércio doParaguai, talvez desapareça o mate de Cu-ritiba.” (ANAIS-CD, 14 jun. 1843, v. I, p. 634-636; 09 ago. 1843, v. II, p. 675-677).

O deputado José de Barros Pimentel, deSergipe, alega opor-se ao projeto principal-mente em função da despesa com autorida-des, funcionários e edifícios para as reparti-ções (ANAIS-CD, 19 jun. 1843, v. I, p. 673-

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674). Pereira Jorge contesta as alegações deabandono e afirma que a Comarca de Curi-tiba é bem assistida pela Província de SãoPaulo, tendo aquela recebido 19:800$00013

no orçamento de 1840-41, e 15:800$000 node 1841-42 para melhoramentos materiais,absorvendo no todo um terço da renda daProvíncia (Cf. ANAIS-CD, 02 jun. 1843, v. I,p. 477-479; 19 jun. 1843, v. I, p. 674-676). Odeputado Sayão Lobato , por sua vez, afirmaque o projeto iria “ferir vitalmente os inte-resses da Província de São Paulo [...] tendohá pouco passado pela crise desastrosa porque passou, quando os espíritos ainda nãose acham acalmados, e, pelo contrário exis-tem em grande fermentação”, referindo-se àrebelião de Sorocaba. Considera “mais con-veniente que se estabeleça uma carreirade barcas a vapor entre o porto de Santos e ode Paranaguá do que passe a separação deCuritiba”, ainda que às custas da Provínciade São Paulo, resolvendo-se assim o alega-do problema de comunicação entre as duasregiões (ANAIS-CD, 11 ago. 1843, v. II, p.701,702).

Continua, em 17 de agosto a discussãodo projeto, agora do Artigo 2o14.

O deputado Silva Ferraz propõe a redu-ção do número de deputados por São Pau-lo, apresentando a seguinte emenda:

O número de deputados e senadores queder a nova província seja diminuído do nú-mero que atualmente dá a província que sedesliga. — Silva Ferraz. (ANAIS-CD, 17 ago.1843, v. II, p. 779).

Sayão Lobato e José Manoel da Fonsecacontestam a emenda. Este considera o arti-go supérfluo ou inconveniente: diz não ha-ver na Comarca pessoas capazes para ocu-par os cargos de deputados provinciais(ANAIS-CD, 17 ago. 1843, v. II, p. 780).Fonseca trata das divergências que surgirãona nova Província por conta da escolha dacapital. Manifesta opção pela vila de Anto-nina, segundo ele muito bem colocada comoporto de mar, “onde os barcos entram e saemcom todos os ventos” e com “fácil estradapara serra acima”, ao contrário de Parana-

guá, que não teria tais condições. Curitiba,por sua vez, jamais deveria ser capital “por-que é terra central que não promete crescer.”(ANAIS-CD, 09 ago. 1843, v. II, p. 678). Apre-senta, em 17 de agosto, emenda nesse senti-do, que não seria apreciada:

Seja a capital a vila de Antonina. [Fonse-ca]. (ANAIS-CD, 17 ago. 1843, v. II, p. 781).

Na sessão seguinte, João Evangelista deNegreiros Sayão Lobato apresenta seu reque-rimento15 de adiamento da discussão do ar-tigo 2o:

Requeiro que, adiada a discussão do art.2o do projeto16 que eleva a comarca da Curiti-ba à categoria de província, se peça [sic] aogoverno informações acerca da população daprovíncia de São Paulo, e especialmente so-bre a população da comarca de Curitiba, e dado Sapucaí da província de Minas Gerais.(ANAIS-CD, 18 ago. 1843, v. II, p. 796).

Apoiado o adiamento, o mesmo é apro-vado sem debate (ANAIS-CD, 18 ago. 1843,v. II, p. 796), o que viria retardar, por dezanos, a emancipação da Comarca de Curiti-ba.

Entrando em discussão o artigo 3o,Henriques de Rezende pede o adiamento detodo o projeto até que venham as informa-ções requeridas. Considera que é inútil con-tinuar a discussão do projeto. Carneiro daCunha, José Manoel da Fonseca e Angelo daSilva Ferraz também defendem o adiamento.Carneiro de Campos e Jacintho da Veiga, porsua vez, opõem-se ao adiamento geral.(ANAIS-CD, 18 ago. 1843, v. II, p. 796-797).

A sessão de 21 de agosto marca o últimopasso do projeto no 64, de 1843. É aprova-do17 o artigo 3o. O presidente informa quenão se discutirá o artigo que revoga as dis-posições em contrário por ser conseqüênciado vencido, “mas fica ainda dependente adiscussão do projeto do artigo [2o] que seacha adiado, até virem as informações quese pediram ao governo.” (ANAIS-CD, 21 ago.1843, v. II, p. 826).

Como não há resposta ao pedido de in-formações do deputado Sayão Lobato quemotivou o adiamento da discussão do art.

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2o, o projeto não é mais colocado em pauta.A matéria só voltaria a ser tratada pela Câ-mara dos Deputados dez anos depois, em1853.

A quase retomada de 1848

Passado uns poucos anos, porém, reto-mou-se o movimento pela emancipação, quechega à Câmara dos Deputados. Na sessãode 19 de junho de 1848, registra-se o enca-minhamento, à comissão de estatística, detrês representações18 pedindo o desmembra-mento da Comarca de Curitiba da Provín-cia de São Paulo. São moções da CâmaraMunicipal de Antonina, de moradores daVila Nova do Príncipe (Lapa) e da cidade deCuritiba. (ANAIS-CD, 19 jul. 1848. v. II, p. 93).Diz este último documento, denominado“Representação dos Povos Curitibanos”:

Não é esta a vez primeira que noseio da Representação Nacional nóstemos dirigido pedindo insistentemen-te a elevação desta Comarca à catego-ria de Província, medida esta já por ve-zes discutida e habilmente sustentadanesse Augusto recinto; não obstanteisto, tem ela sempre infelizmente encon-trada uma decidida oposição. [...] terá aComarca de Curitiba elementos propí-cios à constituição de uma Província?A afirmativa não é uma ilusão, por-quanto uma extensão de 100 léguas decomprimento 90 de largura; uma ren-da, compreendendo a geral e provinci-al que excede a R$ 100:000$, um solofertilíssimo e próprio para todas as pro-duções agrícolas; a erva-mate que es-pontaneamente cresce em suas matas,e de que exporta anualmente mais de400 mil arrobas; o chá, cuja cultura hápouco ensaiada promete os melhoresresultados; pastagens pingues para to-das as criações, madeiras de constru-ção entre as quais abunda um númeroinextinguível de pinheiros, que facil-mente poderiam ser aproveitados [...](CÂMARA-CEDI).

Na sessão de 29 de julho de 1848 pode-ria a Câmara dos Deputados ter retomado oprojeto, que ficara parado desde 1843. Aproposição recebera parecer da comissão deestatística pela inclusão nos trabalhos, masa discussão foi adiada por pedir a palavrasobre a matéria o deputado Joaquim NunesMachado19, de Pernambuco. (ANAIS-CD, 29jul. 1848, v. II, p. 134).

Antecedentes à iniciativa no SenadoA historiografia paranaense não explo-

ra as razões que teriam levado o Senado aincluir a matéria na sessão legislativa de1850, quando se discutia naquela Casa acriação da Província do Amazonas, apro-vada ainda em 1843 na Câmara dos Depu-tados. Diversas questões internacionais es-tavam no centro das preocupações do go-verno, e algumas delas diziam respeito àComarca de Curitiba: a instabilidade dasrelações com a Argentina20 e o Paraguai e apressão pela abertura à navegação dos riosParaná e Paraguai tornavam emergente apovoação21 daquelas regiões. Além dissohouvera grave estremecimento nas relaçõescom a Inglaterra em razão do canhoneio, em30 de junho, entre o cruzador inglêsCormorant e a fortaleza de Paranaguá, apósaquele navio ter aprisionado — com basena Lei Aberdeen 22 — vários barcos que seequipavam para o tráfico no interior do por-to. (BETHEL, 2002, p. 374-376; PILOTTO,1953b, p. 12).

O fato é que, poucos dias após o inciden-te Cormorant e da comoção nacional em tor-no dos acontecimentos23, entraria em discus-são no Senado o projeto de criação da Pro-víncia do Amazonas, surgindo então aemenda criando também a Província doParaná.

Segundo momento legislativo -Senado, 1850

Assim, em 22 de julho de 1850, presidin-do o Senado24 o Barão de Monte Santo (LuizJosé de Oliveira Mendes), é incluída na or-

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dem do dia o projeto da Câmara dos Depu-tados de 1843 que eleva a Comarca do RioNegro à categoria de província, com o nomede Província do Amazonas (ANAIS-SENA-DO, 22 jul. 1850, v. 5, p. 402). Ao ser aprova-do em primeira discussão o projeto, em 24de julho de 1850, o senador Candido Baptistade Oliveira, do Ceará25, apresenta a seguinteemenda:

Faça-se extensivo à comarca de Cu-ritiba, o que se estabelecer para o AltoAmazonas, sendo capital da provínciaa cidade de Curitiba. — Baptista deOliveira. (ANAIS-SENADO, 24 jul.1850, v. 5, p. 444).

Baptista de Oliveira justifica sua iniciati-va pelo fato de Curitiba — além das razõesapresentadas para o Alto Amazonas — pos-suir população maior e indústria mais de-senvolvida, além de ter um bom porto demar em Paranaguá (ANAIS-SENADO, 24jul. 1850, v. 5, p. 444).

Atuariam no Senado pela aprovação daemenda de Curitiba, além do próprioBaptista de Oliveira, os senadores HonórioHermeto Carneiro Leão, de Minas Gerais eVisconde de Abrantes (Miguel Calmon Du Pine Almeida), do Ceará. Contra a emenda,empenhou-se o senador Nicolau Pereira deCampos Vergueiro, de Minas, apoiado porFrancisco de Paula Souza e Mello, de SãoPaulo e Antonio Francisco HollandaCavalcanti, de Pernambuco.

Carneiro Leão sugere razões estratégicaspara a matéria: “não seria político discutirtodas as razões de defesa externa a que éfavorável a criação da Província de Curiti-ba [...] mas todos nós sabemos que na Co-marca de Curitiba limita o império com aRepública do Paraguai, e porventura com aConfederação Argentina.” Informa que nãoé possível comunicar-se com o Paraguai,embora limítrofe, não só pela Província doMato Grosso, como também pela Provínciade São Paulo, “porque nesses pontos o de-serto nos separa; pelo Rio da Prata o gover-no da Confederação Argentina nos proíbe acomunicação, e pelo Rio Grande seria pre-

ciso passar por entre Rios e Corrientes, pro-víncias pertencentes à Confederação Argen-tina.” (ANAIS-SENADO, 24 jul. 1850, v. 5,p. 448-449).

O senador Paula Souza afirma, opondo-se ao projeto, que Curitiba “por mar é tãoperto, tanto da capital da Província comoda corte, e que não confina com estados es-trangeiros, senão passados sertões imensose desertos”. Além disso, pela falta de ren-das, teria que viver à custa do tesouro geral.(ANAIS-SENADO, 24 jul. 1850, v. 5, p. 445-446).

O senador liberal Nicolau Pereira deCampos Vergueiro combate o projeto e aemenda relativa a Curitiba: “a razão de serfronteira não tem força nenhuma. Será ne-cessário colocar tropa nesse lugar e ter quemcomande [...], mas criar uma administraçãoespecial em um lugar que não a pode sus-tentar, não me parece razoável.” (ANAIS-SENADO, 30 jul. 1850, v. 5, p. 548). Vergueiroconsidera a renda fiscal da Comarca insufi-ciente para sustentar a nova Província. So-bre o imposto cobrado sobre os animais le-vados do Rio Grande do Sul para Sorocaba,diz que este ou deve continuar a pertencer àprovíncia a quem a assembléia geral deu odireito de cobrá-los, isto é, a São Paulo, “outais direitos não devem existir; e tirados es-ses direitos, a nova província não tem deonde lhe venha renda26.” (ANAIS-SENADO,05 ago. 1850, v. 6, p. 103). Já o senadorCarneiro Leão justifica o projeto, mesmo comaumento de despesas necessárias à fortifi-cação da fronteira e construção de estradas(ANAIS-SENADO, 24 jul. 1850, v. 5, p. 449).

O esquecimento da Comarca de Curitibapelo governo de São Paulo é alegado porCarneiro Leão:

A comarca de Curitiba ordinaria-mente não influi nas eleições, e daí pro-vém que, não obstante ser por ela quese arrecada maior parte da renda daprovíncia de São Paulo, ela tem estadoquase abandonada. É muito fácil fazeruma estrada ou trânsito de carros paraa vila de Paranaguá ou porto de Anto-

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nina, mas a estrada que existe é a queexistia desde tempos antigos.(ANAIS-SENADO, 24 jul. 1850, v. 5, p. 450).

Justificando o projeto, o senador CarneiroLeão defende a subdivisão das grandes pro-víncias:

Julgo muito conveniente que se crieuma província em Curitiba. Na minhaopinião muitas outras províncias sedevem criar: a província de Minas dátrês províncias; na província daBahia, talvez mesmo na costa, se pos-sa criar uma nova província; mas pelomenos no sertão, a comarca de SãoFrancisco deve formar outra provín-cia [...]. (ANAIS-SENADO, 24 jul. 1850,v. 5, p. 451).

O senador Vergueiro chega a apresentaruma alternativa à criação da nova provín-cia:

[...] pois não valia mais uni-la a ou-tra província pequena, como a de San-ta Catarina, província que não podedesenvolver-se pela sua pequenez?[...] a comunicação de Paranaguá comSanta Catarina é muito fácil, é viagemde poucos dias. (ANAIS-SENADO, 30jul. 1850, v. 5, p. 551).

O senador Antonio Francisco HollandaCavalcanti diz não poder votar pela emendaque desmembra a Comarca: “deve acasosubdividir-se a Província de São Paulo edeixar como está essa monstruosa Provín-cia de Minas?” Defende o senador uma novadivisão do império não com a criação denovas províncias, mas de unidades políti-cas menos dispendiosas, como distritos oucolônias (ANAIS-SENADO, 05 ago. 1850, v.6, p. 93-94), contestando a opinião deVisconde de Abrantes, que entendera haver im-pedimento constitucional para a criação deterritórios, como os existentes nos EstadosUnidos (ANAIS-SENADO, 22 jul. 1850, v. 5,p. 405-406).

Contestando a viabilidade econômica danova província, Nicolau dos Santos Vergueiromenospreza a produção da Comarca deCuritiba:

Exporta-se a erva-mate que não secultiva, e algum gado, não muito. To-dos os gêneros que lhe são necessários,como açúcar, aguardente, fumo, algu-ma farinha, café, etc., recebe-os das ou-tras comarcas da província. Tal é o de-senvolvimento que tem tido a indústrianesta zona, que ainda não achou umobjeto que cultivasse. Dizem que há aliterrenos férteis, e eu creio, mas não sepode afirmar isso. O lavrador por ondeconhece a fertilidade do terreno incultoé pelas madeiras; ora, sendo a Curitibacoberta de pinhais e de erva-mate, é cla-ro que não são boas as terras. [...] Tudoisso prova pois que não está ali desen-volvida a indústria agrícola; quanto àfabril, não falemos nisso nem por pen-samento. Como é pois que uma popu-lação em tanto atraso se pode julgar emestado de formar uma província?(ANAIS-SENADO, 30 jul. 1850, v. 5, p.549-550).

Continuando, em 5 de agosto, a segun-da discussão do projeto, considerou o sena-dor Vergueiro uma afronta desmembrar aProvíncia de São Paulo sem ouvi-la, justifi-cando o requerimento de adiamento quepropõe, o qual é lido e apoiado (ANAIS-SE-NADO, 05 ago. 1850, v. 6, p. 105):

Requeiro que se separe a emenda,ficando adiada até que o governo in-forme, ouvindo a assembléia provinci-al de São Paulo. — Vergueiro.

Senador Paula Souza observa que a emen-da a respeito da Comarca de Curitiba seriana verdade um artigo aditivo, e que comotal não poderia ser discutida conjuntamen-te com o artigo do projeto. Apresenta, porisso, um requerimento (ANAIS-SENADO,05 ago. 1850, v. 6, p. 105):

Que a emenda sobre Curitiba, que éartigo aditivo, fique adiada para serdiscutida separadamente depois doartigo do projeto original. — PaulaSouza.

Discordando da proposta de transfor-mar a emenda em artigo aditivo, o senador

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Carneiro Leão27 dá-lhe nova forma, por meiode emenda substitutiva. Pela primeira vez,aparece a denominação Província do Para-ná28 (ANAIS-SENADO, 05 ago. 1850, v. 6, p.105):

Emenda ao art. 1o: As comarcas deAlto Amazonas, na província do GrãoPará, e a de Curitiba, na província deSão Paulo, ficam elevadas à categoriade províncias, a primeira com a deno-minação de província do Amazonas, asegunda com a denominação de pro-víncia do Paraná.

A extensão e limites das referidasprovíncias serão os mesmo das co-marcas do Rio Negro, e Curitiba. —Carneiro Leão.

Esta nova emenda é apoiada, sendo reti-rada a emenda original, do senador Baptistade Oliveira e o requerimento de senador PaulaSouza (ANAIS-SENADO, 05 ago. 1850, v. 6,p. 105).

Paula Souza informa que a AssembléiaLegislativa Provincial de São Paulo “fezuma representação que passou por todas asdiscussões, faltando só aprovar-se a reda-ção, o que se não fez por falta de tempo29; enessa representação faz ela ver as circuns-tâncias do negócio, mostra os prejuízos quea mesma comarca de Curitiba vai ter com taldesmembração.” (ANAIS-SENADO, 05 ago.1850, v. 6, p. 106).

Depois de quase vinte dias, é retomada,na sessão de 24 de agosto, a segunda dis-cussão, que fora adiada em 5 de agosto, doart. 1o do projeto do Amazonas, com a emen-da da Província do Paraná, e com requeri-mento de adiamento do Sr. Vergueiro(ANAIS-SENADO, 24 ago. 1850, v. 6, p. 320).É aprovada a emenda de Carneiro Leão, quecria a Província do Paraná, e rejeitado o re-querimento de adiamento do senadorVergueiro (ANAIS-SENADO, 24 ago. 1850,v. 6, p. 320).

Os artigos 2o, 3o e 4o são aprovados comas seguintes emendas de Visconde deAbrantes (ANAIS-SENADO, 24 ago. 1850,v. 6, p. 320):

Ao art. 2o Seja a cidade de Curitibaa capital da nova província do Paraná,enquanto a respectiva assembléia pro-vincial não resolver o contrário. —Visconde de Abrantes.

Ao art. 3o Aplique-se a sua disposi-ção à nova província do Paraná — S. aR. — Visconde de Abrantes.

Ao art. 4o Em lugar de — na mesmaprovíncia — diga-se — nas mesmasprovíncias. — Visconde de Abrantes.

O projeto é aprovado com as emendas,passando à terceira discussão (ANAIS-SE-NADO, 24 ago. 1850, v. 6, p. 320). Cumpri-do o interstício de quatro dias, o projeto re-torna à pauta na Sessão de 28 de agosto de1850. Pela última vez, bate-se contra o pro-jeto o senador Vergueiro, oferecendo novopedido de adiamento (ANAIS-SENADO, 28ago. 1850, v. 6, p. 360-361):

Requeiro que a parte do projeto quetrata da comarca de Curitiba, que ago-ra se acrescentou por emenda, se des-taque do projeto, e se peçam informa-ções ao governo a respeito, ouvindo aassembléia da província de São Paulo.— Vergueiro.

Mas o requerimento não recebe o apoioregimental necessário e sequer é colocado avotos. O presidente, Barão de Monte Santo,coloca a matéria em votação, sendo aprova-do o projeto da província do Amazonas e aemenda da província do Paraná. Ao anunci-ar o envio do projeto aprovado para voltar àCâmara dos Deputados, o senador Viscondede Abrantes apresenta requerimento propon-do o desdobramento do projeto em dois, queé aprovado:

Requeiro que se separe o projeto re-lativo à criação da província do Altodo Amazonas do que é relativo à cria-ção da província do Paraná, para queaquele suba à sanção, e este seja remeti-do à câmara dos deputados. — Viscon-de de Abrantes. (ANAIS-SENADO, 28ago. 1850, v. 6, p. 361).

O expediente do senador Visconde deAbrantes, aproveitando-se da imprevisão do

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Regimento do Senado, impediu o retorno daparte referente à Província do Amazonas àCâmara dos Deputados, onde o projeto foraaprovado em 1843. Essa parte, seguiu, en-tão, à sanção imperial, sendo promulgadocomo Lei no 592, de 5 de setembro de 1850.Assim, apenas a parte do projeto relativa àProvíncia do Paraná é remetida à Câmarados Deputados.

Antecedentes à retomada da matéria naCâmara

Na sessão de 30 de agosto de 1850 daCâmara dos Deputados é lido o ofício dosecretário do Senado, enviando a proposi-ção que eleva a Comarca de Curitiba à cate-goria de província, com a denominação deProvíncia do Paraná. Segue-se o despacho:“A imprimir para entrar na ordem dos tra-balhos.” (ANAIS-CD, 30 ago. 1850, v. II, p.729). Mas o projeto só seria discutido e apro-vado pela Câmara três anos depois.

No início da sessão legislativa de 1851,chega ao Senado a representação da Assem-bléia Legislativa de São Paulo protestandocontra diversas medidas que desagradavama Província, entre as quais a elevação a pro-víncia da Comarca de Curitiba, que já foraaprovada pela Casa:

[...] Não menos infundada é a inten-ção de alguns habitantes da Comarcade Curitiba em solicitar a sua elevaçãoa Província, pois sem dúvida que umtal acontecimento importaria a degra-dação da Província de São Paulo, e doinstante que desmembrada, ela ficariaimpossibilitada de prestar ao impérioo concurso de serviços que em grausubido a tem assinalado.

O triunfo dessa aspiração consti-tuiria a existência de duas Provínciasinsignificantes, minguadas e sem re-cursos para combater suas mais inex-pressivas necessidades. [...](SENADO-Arquivo).

Os deputados são informados, na ses-são da Câmara de 9 de julho de 1851, dorecebimento de um abaixo assinado de ne-gociantes, lavradores e operários da vila de

Antonina, pedindo que se eleve à provínciaa Comarca de Curitiba (ANAIS-CD, 09 jul.1851, v. II, p. 102):

[...] chegando a notícia dos abaixo-assinados que a Ilustre Assembléia daProvíncia vos endereçou uma repre-sentação pedindo o esquecimento damedida já bastantemente adiantadapela qual se pretende elevar esta Co-marca á categoria de Província, toman-do por fundamento além de outras fu-tilidades o falso suposto de que essaidéia não era a vontade unânime dospovos, sim aventada unicamente pelasCâmaras, as abaixo assinadas não po-dem de forma alguma deixar passardesapercebida e sem contestação umaasserção filha unicamente dos desejosque tem a Nobre Assembléia de ver estaComarca sempre reduzida a um extre-mo de não poder para o futuro mostraro quanto é, o quanto vale, o interesseque diz, o resultado aos seus habitan-tes, ao Império. [...]. (CÂMARA-CEDI ).

O deputado Antonio Pereira BarretoPedroso, do Rio de Janeiro, envia à mesa, em14 de agosto de 1851, uma representaçãoem que moradores do município de Morre-tes pedem à Câmara que dê atenção ao pro-jeto aprovado pelo Senado no ano anterior(ANAIS-CD, 14 ago. 1851, v. II, p. 578):

Os abaixo assinados, residentes naVila de Morretes da Comarca de Para-naguá e Curitiba da Província de SãoPaulo, abalados pela inconseqüênciada representação que vos faz na sessãodo corrente ano a Assembléia Legisla-tiva desta Província contra a elevaçãodesta Comarca à categoria de Provín-cia vem perante vós, Senhores, pedir amais séria atenção ao resolverdes essamedida que, além de proveitosa, é in-questionavelmente, um meio de prote-ger o progresso que a lei Providencial,sem outro recurso, vai de dia em diadesenvolvendo tanto em civilizaçãocomo em agricultura e indústria, e porisso cada vez mais útil ter um governo

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ao contato de suas necessidades paradar impulso às riquezas naturais de tãovasto quão fértil solo. (CÂMARA-CEDI).

Na última sessão do ano, 12 de setembrode 1851, informa-se à Casa sobre outro re-querimento, agora da Câmara Municipal davila de Antonina, também em favor da ele-vação da Comarca à categoria de província(ANAIS-CD, 12 set. 1851, v. II, p. 887).

Em 1853, favorecem o andamento do pro-jeto da criação da Província do Paraná naCâmara dos Deputados as mesmas questõesde política externa. Não se haviam resolvi-dos os problemas nas relações com os paí-ses do sul. Recém encerrada a guerra com aArgentina, restavam ainda pendênciasquanto aos limites com aquele país e esta-vam mais fortes as apreensões quanto à pos-sibilidade de guerra com o Paraguai. Outraquestão de ordem internacional referia-se ànavegação do rio Paraná.

Fato recente fora a assinatura de um tra-tado30, em 10 de julho de 1853, entre a Ar-gentina e os Estados Unidos, para livre na-vegação de navios mercantes nos rios Para-ná e Uruguai. Outro tratado31, de amizade,comércio e navegação, entre o Paraguai e osEstados Unidos, fora assinado em 4 de mar-ço de 1853. O Império estava sob intensapressão americana para ceder à livre nave-gação de seus rios32. Como o Brasil não vi-nha povoando as terras próximas às mar-gens do rio Paraná, temia-se que a aberturaà navegação dos rios viesse favorecer suaocupação por estrangeiros, com risco de con-testação, mais tarde, do domínio brasileirosobre esses territórios.

A questão política na Comarca de Curi-tiba se agravara com o crescimento da opo-sição liberal, que, resistindo às manobraseleitorais das autoridades conservadorasprovocava freqüentes conflitos, algumasvezes encarniçados.33 Reapareciam, por essaépoca, razões políticas semelhantes às quelevaram à apresentação do primeiro projetode emancipação, em 1843. O governo Impe-rial via agora, pela emancipação da Comar-

ca, uma forma de neutralizar os liberais daregião nas eleições próximas de 1854 e ob-ter para o partido conservador a maioria nanova assembléia provincial, além de elegerum senador e um deputado à AssembléiaGeral. De quebra, a mutilação do territórioserviria como represália à Província de SãoPaulo pelo crescimento da oposição liberalno seu território. (Cf. BELOTO, 1990, p. 89)

Terceiro momento legislativo –Câmara dos Deputados, 1853

Em 10 de agosto de 1853, quando falta-vam apenas vinte dias para encerramentoda sessão legislativa, é incluído na ordemdo dia da Câmara dos Deputados34, em se-gunda discussão35, o projeto n o 206, aprova-da pelo Senado em 1850, que tratava daemancipação da Comarca de Curitiba e suaelevação à categoria de província, com onome de Província do Paraná (ANAIS-CD,10 ago. 1853, v. IV, p. 145).

Paralelamente à discussão que ocorre-ria na Câmara, Paula Gomes passou a res-ponder, pelo Jornal do Comércio, do Rio deJaneiro, as questões levantadas no Legisla-tivo (CARNEIRO, 1954a, p. 89).

A etapa decisiva do trabalho parlamen-tar para a criação Província do Paraná naCâmara teve como principais personagenso deputado conservador mineiro AntonioCandido da Cruz Machado36, incansável de-fensor da elevação de Curitiba a província.Recebeu contribuições do paulista José Ig-nácio Silveira da Motta (que no entanto vota-va contra o projeto) e, na última reunião emque a matéria foi discutida, o apoio de An-tonio Pereira Barreto Pedroso, do Rio de Ja-neiro. Contra o projeto, destacaram-se osdeputados Joaquim Octávio Nebias, MartinFrancisco Ribeiro de Andrada e Joaquim JoséPacheco, todos liberais paulistas.

Ausência inexplicada nas discussões daCâmara foi a do deputado pela Provínciade São Paulo José Mathias Ferreira de Abreu,bacharel residente em Paranaguá (Cf.ANAIS-CD, 17 ago. 1853, v. IV, p. 228,229).

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Também não se manifestou sobre a matériao deputado pela Bahia e ministro da mari-nha, Zacarias de Góes e Vasconcelos, queseria logo depois nomeado presidente ins-talador da nova Província.37

Inaugurando a discussão, o deputadopaulista Joaquim Octávio Nebias questionaas razões do reaparecimento do projeto, queapresentado em 1843, não passara. Aleganão existir nenhum documento nem tam-pouco dados estatísticos que possam con-correr para orientar a respeito do assunto.(ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p. 145). Apre-senta, de imediato, um requerimento prote-latório.

Requeiro que o projeto seja remeti-do à comissão de estatística e orçamen-to, para que dêem seu parecer com ma-duro exame.—Nebias.38 (ANAIS-CD, 10ago. 1853, v. IV, p. 146).

Os deputados paulistas acorrem a con-testar o projeto e defender o adiamento pro-posto por Nebias. Antonio Gonçalves Barbosada Cunha defende uma protelação alegandoque o projeto também não passou pelo exa-me de uma comissão. (ANAIS-CD, 10 ago.1853, v. IV, p. 147). Martin Francisco Ribeirode Andrada também manifesta-se pelo adia-mento. O deputado por São Paulo JoaquimJosé Pacheco39 questiona a falta de distribui-ção do projeto, uma exigência regimental.(ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p. 148, 149,150).

Argumenta Cruz Machado que a remessado projeto às comissões não produzirá gran-de vantagem nem concorrerá para melhoresclarecer a Câmara, pois “a comissão ter-se-há de servir dos mesmos dados incom-pletos que estão ao alcance de todos nós.”(ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p. 146-147).Informa o deputado mineiro que o projeto foradistribuído na legislatura seguinte após suaaprovação do Senado, em 1850 (ANAIS-CD,10 ago. 1853, v. IV, p. 149,150). Combatendo oadiamento porque estava prestes a encerrar asessão legislativa, Cruz Machado se escudavanas razões estratégicas (ANAIS-CD, 10 ago.1853, v. IV, p. 146):

[...] trata-se de satisfazer a uma ur-gente necessidade do império, trata-sede criar um centro de administraçãoque possa trazer em resultado fortifica-ções e povoações em nossas fronteiras,antes que em algum tempo adiante se-jamos apanhados desprevenidos, ouantes que para o tempo adiante apare-çam conflitos a respeito do nosso terri-tório. (ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV,p. 147).

Barbosa da Cunha, representante de SãoPaulo, contesta a alegação de Cruz Machadosobre a necessidade de defesa, arguindo queo Paraguai seria um país amigo (ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p. 147). Esta posiçãoé também compartilhada por vários outrosparlamentares, como o paulista Martin Fran-cisco Ribeiro de Andrada, que alega, a respei-to da defesa das fronteiras com o Paraguai:

Por hipótese somente, que fossemdados necessários alguns preparati-vos de defesa, não vejo a necessidadede alterar-se a divisão política paraque eles se realizem. Em seis dias vai-se atualmente desta capital à paróquiade Curitiba, e em dois a Paranaguá;parece que, mesmo tendo nós termosguerra com o Paraguai, o que parecequase impossível, subsistindo a atualdivisão, fácil será transportar tropaspara a comarca de Curitiba. (ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p. 148).

A respeito da questão, Ribeiro de Andrada,afirma existir “entre nós e o Paraguai [...]uma perfeita entente cordiale; não me constaque haja mesmo receios de que possa serperturbada a harmonia em que vivemos comestes nossos vizinhos”. E pergunta: “quereceio pode haver de qualquer conflito comuma nação que tem apenas 800 mil habi-tantes, da parte de uma nação que tem maisde 4 milhões?”.

Barbosa da Cunha expressa sua preocu-pação a respeito de outros movimentos quepretendem a redução do território de SãoPaulo: o do termo do Bananal, que faz esfor-ços para se reunir à Província do Rio de Ja-

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neiro e o de Ubatuba, para sua anexação aoRio de Janeiro: “Se esses dois importantestermos forem separados de São Paulo e seelevar-se Curitiba à categoria de província,a que ficará reduzida minha Província? Auma província de segunda ordem, se nãonos derem uma justa recompensação”. Eretoma a idéia, que perturbara o andamen-to do projeto em 1843, de reunir à Provínciade São Paulo o território da Comarca de Sa-pucaí (ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p.147,148). Ribeiro de Andrada endossa tam-bém essa idéia, sugerindo a Cruz Machadouma negociação: “Proponha o nobre depu-tado por Minas Gerais, que tão empenhadose mostra pela desanexação de Curitiba,essa justa compensação, e talvez possamoschegar a um acordo.” (ANAIS-CD, 10 ago.1853, v. IV, p. 148).

A POLÍTICA — Joaquim José Pachecoentra na discussão dos arranjos políticosque estariam associados à criação da Pro-víncia, principalmente por se ter retomadoeste projeto “só agora depois da vaga de umsenador”40. Creditava a iniciativa ao inte-resse de influir na eleição que haveria naProvíncia de São Paulo, como também porter “pressa de mais um senador por essanova Província de Curitiba, em cuja eleiçãonaturalmente há de influir o governo”41

(ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p. 150).Pacheco lança ao conservador Cruz Machadouma isca:

Se tem vistas eleitorais, lembro-lheque ganha com a anexação do Sapucaí[...]. A anexação traz ao partido do go-verno um grande número de votos, poisque esta comarca é em sua maioria com-posta de aliados seus. Faça-se a novaprovíncia razoavelmente; atenda-se aobem de todos; eis o que desejo. (ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p. 150).

Joaquim José Pacheco propõe ainda con-vidar o ministro do império para que infor-me “as razões de conveniência que o impe-liram a querer agora esta medida com tantaurgência.” (ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV,p. 150). Apresenta para isso um requerimen-

to, o qual, embora apoiado, é rejeitado semdiscussão:

Requeiro que se adie o projeto atéque compareça o Sr. ministro do impé-rio, a quem se convidará. — Pacheco.(ANAIS-CD, 10 ago. 1853, v. IV, p. 151)

Na sessão de 11 de agosto são colocadosem votação e aprovados em segunda dis-cussão, sem debates, os artigos 1 o e 2o

(ANAIS-CD, 11 ago. 1853, v. IV, p. 155):Art. 1o A comarca de Curitiba, na

província de São Paulo fica elevada àcategoria de província com a denomi-nação de — província do Paraná —.A sua extensão e limites serão os mes-mos da referida comarca.

Art. 2o A nova província terá porcapital a cidade de Curitiba, enquan-to a assembléia respectiva não decre-tar o contrário.

Entra imediatamente em discussão o ar-tigo seguinte (ANAIS-CD, 11 ago. 1853, v.IV, p. 155):

Art. 3o A província do Paraná daráum senador e um deputado à assem-bléia geral; sua assembléia provincialconstará de vinte membros.

O deputado Joaquim José Pacheco42 en-via à mesa a seguinte emenda:

Em vez de um deputado, diga-sedois. (ANAIS-CD, 11 ago. 1853, v. IV, p.155).

Joaquim José Pacheco voltaria a defenderna terceira discussão essa proposta: “a cons-tituição quer que o senado se componha demetade dos deputados: é preciso pois quedêem dois deputados e um senador.”43

(ANAIS-CD, 19 ago. 1853, v. IV, p. 263)A emenda é imediatamente rejeitada, sem

debate, aprovando-se o Art. 3o.Também foi aprovado o artigo seguinte:

Art. 4o O governo fica autorizadopara criar na mesma província as esta-ções fiscais indispensáveis para a arre-matação [sic] e administração das ren-das gerais, submetendo depois o quehouver determinado ao conhecimentoda assembléia geral para definitiva

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aprovação. (ANAIS-CD, 11 ago. 1853,v. IV, p. 155).

A NOVA EMENDA DO SAPUCAÍ —Entra em discussão artigo aditivo apresen-tado pelo deputado Joaquim Octávio Nebias,com objeto idêntico àquele que fora apresen-tado em 1843:

Fica pertencendo à província deSão Paulo a parte da província deMinas que já pertence ao bispado deSão Paulo. — Paço da câmara dos de-putados, 11 de agosto de 1853 — S. aR. — Nebias. (ANAIS-CD, 11 ago.1853, v. IV, p. 155).

Joaquim Octávio Nebias sustenta suaproposta, alegando que ela “tende a igualara circunscrição civil com a eclesiástica”44,trazendo à Província de São Paulo aquelaslocalidades que estão “às portas e São Pau-lo e muito longe da capital de Minas.”(ANAIS-CD, 11 ago. 1853, v. IV, p. 160).

Combatendo a emenda, o deputado mi-neiro Agostinho José Ferreira Bretas esclare-ce sobre a parte de Minas que se pretendedesmembrar:

[...] contém os municípios de Cal-das, de Jacuí, de Passos, de Pouso Ale-gre, de Jaguari e parte de Itajubá [...]importantes pelas suas rendas e pelapopulação que contém em si. Alémdisso, as sedes de alguns desses mu-nicípios acham-se em pontos eqüidis-tantes de qualquer das capitais dasprovíncias de Minas e São Paulo.(ANAIS-CD, 11 ago. 1853, v. IV, p. 156).

Acrescenta ainda Bretas que apenas a fre-guesia de Caldas exporta para o Rio de Ja-neiro por intermédio do porto de Santos.Além disso, pondera que a parte principalde suas rendas é fornecida pelos registrosou recebedorias que estão colocadas nessaslocalidades, de modo que o desmembramen-to desfalcaria as rendas da Província.(ANAIS-CD, 11 ago. 1853, v. IV, p. 156). Joa-quim Delfino Ribeiro da Luz, também depu-tado por Minas, esclarece que a região deque trata o artigo aditivo é mais extensa doque se supõe, compreendendo ainda o mu-

nicípio de Cristina, totalizando 22 ou 24 fre-guesias de grande produção, talvez de600:000$ a 800:000$, e com muita popula-ção. (ANAIS-CD, 11 ago. 1853, v. IV, p. 163,164).

Contestando essa perda para Minas, opaulista Ribeiro de Andrada argumenta:

[...] as razões apresentadas [...] sãorazões valiosíssimas contra a desmem-bração da comarca de Curitiba, porquese esse pedaço de terreno por nós pedi-do contém todas essas povoações porele apontadas é também incontestávelque a comarca de Curitiba contém 7municípios [...]. Logo, se os ilustres de-putados não querem que se desmem-bre esse pedaço do terreno de Minas[...], porque tomam uma justiça para sie outra para nós? [...]. (ANAIS-CD, 11ago. 1853, v. IV, p. 157).

Colocado em votação, foi rejeitado o arti-go aditivo anexando parte da Província deMinas a São Paulo, passando o projeto àterceira discussão (ANAIS-CD, 11 ago. 1853,v. IV, p. 165).

A COMARCA — Para evitar que o proje-to seja encaminhado às comissões, o de-putado Cruz Machado apresenta dados re-clamados pelos parlamentares sobre aComarca de Curitiba. Informa que “são seteos municípios que formariam a novaProvíncia: cidades de Paranaguá e Curitibae vilas do Príncipe [Lapa], Antonina, Mor-retes, Castro e Guaratuba; não incluindoCananéia e Iguape, há muito integrantes daComarca de Santos45.” (ANAIS-CD, 10 ago.1853, v. IV, p. 152). Ele, que houvera estima-do a população inicialmente em 74 milhabitantes, faz nova projeção sobre o cresci-mento populacional ao longo de 18 anos,concluindo que a Comarca de Curitiba teriapelo menos 68.494 habitantes46, conclusãorefutada pelos opositores (ANAIS-CD, 17ago. 1853, v. IV, p. 223-224). Sobre a exten-são e os limites da Comarca, que conside-ra também “dado exigido para a criaçãode uma província”, Cruz Machado infor-ma:

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A comarca de Curitiba tem umgrau geográfico de costa; divide ao sulpelo rio Saí, entre os municípios eGuaratuba e São Francisco, da provín-cia de Santa Catarina, e ao norte peloVaradouro e Arapira, entre os muni-cípios de Cananéia e Paranaguá, emserra acima serve de limite o rio Tere-rê ao norte, que divide os municípiosde Castro e da Faxina, a 60 léguas deCuritiba; pelo lado do sul a comarcase divide pelo rio Canoinhas entre osmunicípio das vila do Príncipe e deLages, da província de Santa Catari-na, a 50 léguas de Curitiba; e a oestese estende por essas campinas que vãodar no Paraná, que nos separa do Pa-raguai. (ANAIS-CD, 17 ago. 1853, v.IV, p. 224).

ECONOMIA E RENDA FISCAL — CruzMachado apresenta diversas informações de1835 (18 anos antes) sobre a economia daComarca, argumentando que a renda fiscal,que totalizava 160:000$ (160 contos de réis),crescera muito desde então (ANAIS-CD, 10ago. 1853, v. IV, p. 154). Baseado na mesmaestatística, apresenta dados sobre as ativi-dades econômicas então existentes na Co-marca, mencionando 66 engenhos de desti-lar aguardente47, 90 fazendas de criar, 23fazendas de café e 103 engenhos de socararroz48 e até mesmo um estaleiro de constru-ção, em Paranaguá. Os números são contes-tados pelo deputado Nebias, que informa queo açúcar que se consome em Curitiba pro-vém de São Paulo. (ANAIS-CD, 10 ago. 1853,v. IV, p. 154). Cruz Machado mostra aindadados relativos ao comércio do porto deParanaguá no ano fiscal 1851-1852. Infor-ma que a renda de exportação e importaçãosoma 112:898$989, afora as rendas das co-letorias do interior e acrescenta que só noramo do mate teria a nova Província umarenda considerável (ANAIS-CD, 17 ago.1853, v. IV, p. 223). Contestando os dadosapresentados sobre as rendas, o paulistaJoaquim Octavio Nebias faz uma estimativados gastos que já se tem na Comarca e os

futuros gastos de província (ANAIS-CD, 17ago. 1853, v. IV, p. 225-226):

Temos [...] que a despesa geral novaanda por 60:000$, com perto de 40contos que já se gastam, vê-se que tudoisto dá uma soma de 100 contos deréis49. No entanto, não vejo que a ren-da dê para tanto. Não falo ainda danecessidade de se alugar e prepararedifícios para o palácio do governo epara todas as repartições públicas.(ANAIS-CD, 17 ago. 1853, v. IV, p. 226).

DIVISÃO DO IMPÉRIO — O deputadoJosé Ignácio Silveira da Motta , de São Pauloalega combater o projeto pela falta que aComarca fica fazendo à Província de SãoPaulo. Apresenta suas razões:

O projeto devia ser uma parte deum grande todo sistemático, que com-preendesse toda a divisão administra-tiva do império; acho que o projeto,sendo apresentado parcialmente emrelação a Curitiba, oferece o grande in-conveniente não só de ferir interessese vaidades locais, mas também de pre-judicar a divisão futura geral do im-pério. (ANAIS-CD, 17 ago. 1853, v. IV,p. 232).

Também se diz favorável a uma novadivisão geral do império o próprio CruzMachado, que aventa a criação de três novasprovíncias em Minas Gerais (uma ao norte,uma central e outra ao sul), absorvendo par-tes de São Paulo e Goiás. (ANAIS-CD, 17ago. 1853, v. IV, p. 221-222). Joaquim JoséPacheco defende o estabelecimento de pro-víncias mais homogêneas questionando, to-davia, a viabilidade das províncias muitopequenas, como Santa Catarina, EspíritoSanto e Rio Grande do Norte (ANAIS-CD,19 ago. 1853, v. IV, p. 266).

A EMENDA DO CONTESTADO — Odeputado por Santa Catarina, Joaquim Au-gusto do Livramento, pretendendo resolverpendências já então existentes com relaçãoaos limites entre as províncias de São Pauloe Santa Catarina, apresenta emenda com oseguinte texto:

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Os limites da nova província se-rão pela parte do norte os mesmos dacomarca, e pelo lado do sul o rio Ca-noinhas e aquele em que ele desá-gua50, e os limites que atualmente se-param o termo de Guaratuba do deSão Francisco. (ANAIS-CD, 17 ago.1853, v. IV, p. 232).

No dia seguinte, o deputado catarinen-se solicita a retirada de sua emenda: “Nãodesejando embaraçar a adoção deste proje-to, e julgando conveniente que a fixação doslimites51 entre a minha Província [SantaCatarina] e aquela que se trata de criar sejafeita por uma lei geral, peço para retirar mi-nha emenda.” (ANAIS-CD, 19 ago. 1853, v.IV, p. 260).

A CAPITAL — O deputado paulistaMartin Francisco Ribeiro de Andrada apre-senta emenda definindo Paranaguá comonova capital, mas a proposta não recebeapoio necessário para ser apreciada:

No art. 4o onde diz - Curitiba - diga-seParanaguá. (ANAIS-CD, 19 ago. 1853, v. IV,p. 266).

A QUESTÃO ELEITORAL — Silveira daMotta contesta propalada finalidade eleito-ral do projeto visando eleger dois senado-res do Partido Conservador, um por SãoPaulo e outro pela nova Província. O depu-tado liberal Ribeiro de Andrada argumentouque o crescimento do eleitorado conserva-dor na Comarca ocorreu graças aos “negó-cios de São José dos Pinhais”52 e a um acor-do eleitoral imposto aos liberais em Curiti-ba. (ANAIS-CD, 17 ago. 1853, v. IV, p. 230).O deputado Pacheco apresenta sua razãopara opor-se ao projeto: “por enquanto vejosó nesse projeto mais um deputado e umsenador.” (ANAIS-CD, 19 ago. 1853, v. IV,p. 265-266).

A CIVILIZAÇÃO DOS ÍNDIOS — O de-putado Antonio Pereira Barreto Pedroso, doRio de Janeiro combate as alegações do opo-sitor Ribeiro de Andrada, arrolando razõesfavoráveis à emancipação da Comarca. Eacrescenta um outro motivo para a criaçãoda Província:

É conhecida a necessidade de cha-marmos à vida civilizada os indíge-nas, que em muitos lugares povoamainda grande parte do nosso país. Ora,na comarca de que nos ocupamos, há,e com bastante disposição para a ca-tequese, muitas tribos da raça guara-ni. Não será mais este um objeto dig-no de atenção da Câmara? Não seráevidente a conveniência de civilizar,e aproveitar para a religião, para a ci-vilização, e para a indústria, essas tri-bos que vivem ainda no estado selva-gem? [...](ANAIS-CD, 20 ago. 1853, v.IV, p. 278).

A aprovação finalNa sessão de 20 de agosto, após um de-

bate final entre Ribeiro de Andrada e BarretoPedroso, é aprovado definitivamente, em ter-ceira discussão, sem qualquer mudança notexto do Senado, o projeto que eleva a pro-víncia a Comarca de Curitiba (ANAIS-CD,20 ago. 1853, v. IV, p. 279). Dois deputados,Pereira Jorge e Pacheco Jordão, fazem questãode apresentar à mesa declarações de seusvotos, contrários ao projeto (ANAIS-CD, 20ago. 1853, v. IV, p. 279).

Seis dias depois, em 26 de agosto de1853, o autógrafo é encaminhado à SançãoImperial pelo presidente da Câmara dosDeputados, Francisco de Paula Candido.

Sanção da Lei no 704, de 1853Finalmente, em 29 de agosto de 1853, o

decreto aprovado pelas duas casas legisla-tivas é sancionado pelo Imperador D. PedroII, tornando-se lei:

Art. 3o A Província do Paranádará um Senador, e um Deputado àAssembléia Geral; sua AssembléiaProvincial constará de vinte Membros.

Art. 4o O Governo fica autorizadopara criar na mesma Província as Es-tações fiscais indispensáveis para aarrecadação, e administração dasRendas gerais, submetendo depois o

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que houver determinado ao conheci-mento da Assembléia Geral para defi-nitiva aprovação.

Art. 5o Ficam revogadas as dispo-sições em contrário.

Instalação da Província do Paraná

Uma semana após a promulgação da lei,em 6 de setembro de 1853, forma-se o cha-mado ministério de conciliação, que logonomeia — em 17 de setembro — o deputadobaiano, ex-conselheiro de estado e ex-minis-tro da Marinha, Zacarias de Góes e Vascon-celos como primeiro presidente da Provín-cia do Paraná. No dia 19 de dezembro de1853, o novo presidente instala o governoda Província na cidade de Curitiba. Zacari-as organizou o governo provincial e promo-veu as eleições para os cargos de senador53,um deputado à Assembléia Geral e vintedeputados à Assembléia Legislativa, insta-lando-se essa Casa em 15 de julho de 1854.Seu primeiro ato legislativo, a Lei n º 1, de 26de julho, fixa Curitiba como capital da Pro-víncia.

Conclusão

Foram múltiplos os fatores que determi-naram a criação, pelo Parlamento brasileiro,da nova Província. Além das sempre presen-tes causas políticas e econômicas, impulsio-naram a ação legislativa evidentes interessesestratégicos de Estado — notadamente aque-les voltados para a unidade do Império e pre-servação dos domínios territoriais historica-mente conquistados pelo Brasil. A tentativade 1843 tivera evidente motivação política,dirigida contra os liberais que ousaram su-blevar São Paulo. Já no trabalho legislativorealizado no Senado em 1850, e na Câmarados Deputados em 1853, essa motivação,embora não tenha desaparecido, mostra-sereduzida. O empenho, especialmente do go-verno Imperial, pela criação da Província doParaná se explica, portanto, por fatores demaior envergadura.

Um dado que corrobora essa impressãoé que, das quinze instruções recebidas dogabinete pelo presidente instalador da Pro-víncia, Zacarias de Góes e Vasconcelos paraorientar seu governo (Cf. MOREIRA, 1974,p. 46), oito tratavam de providências parao fortalecimento do domínio brasileirosobre os territórios mais remotos da anti-ga Comarca e seu povoamento: constru-ção de estradas, navegação de rios, colo-nização estrangeira, catequese e aldea-mento de índios e estabelecimento de co-lônias militares.

Por fim, apraz constatar que, apesar demuitos presságios manifestados durante osdebates parlamentares, não há hoje qual-quer indício de que os votos dos senadoresde 1850 e dos deputados de 1853 seriamhoje motivo de lamentação. Duas passagensdurante os debates profetizaram a confiançano acerto da lei emancipadora. Do deputadopaulista Silveira da Motta :

Estou certo que a província de SãoPaulo sem a comarca de Curitiba fica-rá sempre grande e gozará sempre desua legítima influência pela sua rique-za e posição comercial, por sua ilus-tração e seus hábitos industriosos(ANAIS-CD, 17 ago. 1853, v. IV, p. 232).

E do parlamentar mineiro Cruz Machado:Decretemos a criação da nova

província, senhores, e a geraçãopresente curitibana nos enviará sin-ceros votos de agradecimento por ha-vermos atendido à primeira e maispalpitante necessidade daquele belopaís, a existência de um centro admi-nistrativo que promova sua futuragrandeza; e desenvolvidos essesgermens de prosperidade, dos quaisa natureza foi pródiga para com aque-la região, e decorridos alguns anos,tereis o prazer de ver os grandesresultados do vosso ato, e a posteri-dade paranaense recordando-se daCâmara de 1853 a recobrirá de bên-çãos. (ANAIS-CD, 17 ago. 1853,v. IV,p.224).

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15O requerimento de Sayão Lobato, que trata ape-nas do adiamento, é, desde a obra de MARTINS(1939, p. 394) objeto de equívoco na historiografiado Paraná. Confunde-se esse requerimento com aemenda apresentada em 19 de junho pelo deputa-do Fonseca (e rejeitada na sessão de 17 de agosto),para anexação a São Paulo da região do Sapucaí,.PILOTO (1953a, p.18), CARNEIRO (1954, p. 82) eoutros também referem-se a uma suposta emendade Sayão Lobato, que teria por objeto a elevação dacomarca de Sapucaí a província.

16Redação original: “Art. 2o A província da Cu-ritiba dará um senador e um deputado à assem-bléia geral. A sua assembléia provincial será com-posta de 20 membros; e sua capital aquela povoa-ção que esta escolher, enquanto esta escolha se nãoverificar, aquela que o governo geral marcar.”

17Com a redação original: “Art. 3o O governofica autorizado para criar nesta província as esta-ções fiscais indispensáveis para o expediente daadministração das rendas gerais, submetendo tudoà apreciação da assembléia geral, logo que esta es-tiver reunida.”

18Em 24 de julho de 1848, registra-se a leiturade ofício do ministro do império remetendo trêsrepresentações dos povos de Curitiba, as mesmasreferidas na sessão de 19 de julho (ANAIS-CD, 19jul.1848. v.II, p.93; CÂMARA-CEDI.).

19 Cf. despacho no documento original (CÂMA-RA-CEDI).

20Ministro da Guerra, Manuel Felizardo de Sou-sa Melo, em reunião do Conselho de Estado: “Asrelações amigáveis entre o Brasil e a ConfederaçãoArgentina se têm sucessivamente enfraquecido des-de 1843. O reconhecimento da independência doParaguai, a questão dos bloqueios, e muitos outrospretextos têm sucessivamente perturbado aquelasrelações.” (ATAS-CE 1o ago. 1850, v. III, p. 268-270).

21Visconde de Abrantes, na mesma reunião: “Ogoverno deve quanto antes tratar, ainda com sacri-fícios pecuniários, de povoar aquelas fronteiras [dosul].” (ATAS-CE 1o ago.1850, v.III, p. 271):

22Lei editada pela Inglaterra por não ter o Brasilanuído a um aditivo para reforçar os termos dotratado de 1826 (que se tornara ineficaz), estabele-cendo o direito da Inglaterra apreender na costa eem portos brasileiros, “não somente os navios quetivessem escravos a bordo, mas também aquelesque encontrasse armados e equipados para o tráfi-co.” (ANAIS-CD, 15 jul.1850, v.II, p.202).

23 A crescente repressão inglesa ao tráfico, agra-vada pelo episódio de Paranaguá, rendeu uma con-corrida sessão na câmara dos deputados em 15 dejulho de 1850, presente o ministro das relações ex-teriores, Antonio Paulino Limpo de Abreu (Cf.ANAIS-CD, 15 jul.1850, v.II, p.192-208).

Notas1Deixaria de ser a 5a comarca pela lei provin-

cial no 437, de 17 jul.1852, que estabelecia novadivisão judiciária em São Paulo. (Cf. MOREI-RA, 1974, p.12).

2Teriam população de 2.500 e 700 habitantes,respectivamente, em 1854 (MOREIRA, 1974, p. 18).

3 Curitiba só teria tipografia e jornal em 1854,com a instalação do governo provincial.

4A Câmara dos Deputados funcionou, até 1899no prédio da Cadeia Velha, no centro do Rio deJaneiro. Era composta, na legislatura de 1843, de100 deputados, sendo as maiores bancadas de Mi-nas (20 deputados), Pernambuco e Bahia (13), Riode Janeiro (10) e São Paulo (9). O Rio Grande doSul, que se encontrava rebelado, não elegera depu-tados. As sessões realizavam-se de segunda-feiraa sábado (Cf. Art. 55, CÂMARA-REGIMENTO,1857, p.11).

5Discussão e votação artigo por artigo, segun-do o Art. 131 do Regimento (Cf. CÂMARA-Regi-mento, 1857, p.23).

6“Art. 74. O adiamento pode ser proposto porcada um dos deputados, quando lhe couber a vezde falar, seja qual for o negócio de que se tratar e oestado em que se achar a discussão; Art. 75. Sendoo adiamento motivado por deputado, que o pro-puser, e apoiado por cinco deputados, pelo menos,e por dez na terceira discussão, proceder-se-á de-pois da mesma forma que no caso de urgência.(CÂMARA-REGIMENTO, 1857, p.14).

7PILOTTO (1953b, p.17; 1953b, p.11) o apre-senta como deputado por São Paulo.

8Projeto nº 65: “Art. 1º Fica desmembrado daprovíncia de Minas Gerais e anexado à província deSão Paulo o território daquela província, que atual-mente faz parte do bispado desta.”

9Campos dos Goytacazes.10Sem alteração no dispositivo: “Art. 1o Fica

criada uma nova província com a denominação —província de Curitiba — e com o território e limitesque ora tem a comarca do mesmo nome, na provín-cia de São Paulo, que por isso fica desmembradadesta província.”

11A constituição de 1824 (arts. 29 e 30) permitiaa acumulação do cargo de senador ou deputadocom o de ministro ou conselheiro de estado.

12Refere-se veladamente a Silva Machado, o fu-turo Barão de Antonina.

13 Padrão monetário da época. Lê-se 19 mil con-tos e 800 mil réis.

14“Art. 2º A província da Curitiba dará um se-nador e um deputado à assembléia geral. A suaassembléia provincial será composta de 20 mem-bros; e sua capital aquela povoação que esta esco-lher, enquanto esta escolha se não verificar, aquelaque o governo geral marcar.”

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24O Senado do Império funcionava do Paláciodo Conde dos Arcos. A sessão legislativa de 1850teve início em 3 de maio e seria concluída em 11 desetembro.

25CARNEIRO (1954, p. 85-86) atribui a iniciati-va da emenda no Senado, equivocadamente, a JoãoBaptista de Oliveira, Barão de Aguapeí. Ressalvadificuldades para a identificação do personagem,que apresenta como irmão do próprio Candido, se-nador pelo Ceará.

26A nova província estabeleceria impostos so-bre os animais no registro do Rio Negro pela LeiProvincial no 4, de 1o de agosto de 1854. O produtoseria aplicado “às obras das estradas que se diri-gem da extrema-norte dessa província às do RioGrande do Sul e Santa Catarina, e bem assim àsmais estradas que não tiverem renda própria”.(ODEZENOVE DE DEZEMBRO, n.19, 05 ago.1854,p.2-3).

27 Carneiro Leão seria agraciado posteriormentecom o título de Visconde e, mais tarde, Marquês deParaná.

28 A emenda original do senador Baptista deOliveira não dava nome à província. No projeto de1843, a denominação fora Província de Curitiba.

29A representação só chegaria ao Senado depoisde aprovada a matéria, no início de 1851.

30Treaty for the Free Navigation of the RiversParana and Uruguay Between the United States andArgent ina ; Ju ly 10 ,1853 . Disponível em<http:/www.yale.edu/lawweb/avalon/di-plomcy/argentina/argen01.htm>. Acesso em 16jan.2004.

31Treaty of friendship, commerce, and navigationbetween the Governments of the United States of NorthAmerica and of the Republic of Paraguay; March 4th,1853 (JOURNAL OF SENATE, Dec 20, 1853, p.180).

32 Em sua primeira mensagem ao Congresso,em 5 de dezembro de 1853, o presidente dos Esta-dos Unidos, Franklin Pierce, declarava-se contentecom a assinatura desses tratados, apesar da resis-tência ainda oposta pelo Brasil com relação à nave-gação dos rios dentro dos seus territórios (JOUR-NAL OF THE HOUSE, Dec 6, 1853, p.24). Posiçãobrasileira, exposta em reunião do Conselho de Es-tado: “Não era possível evitar que as provínciasArgentinas concedessem aos Estados Unidos, àInglaterra, e à França a navegação do Paraná. [...]Tendo de ser concedida a navegação aos EstadosUnidos, à França e à Inglaterra, o que nos convém éque ela seja restrita a certos pontos, os mais próxi-mos quanto for possível da embocadura do Rio daPrata [...].” (ATAS-CE 1º abr.1854, v.IV, p. 186).

33 Em Curitiba, os liberais teriam sido obriga-dos pelas milícias a retirar-se das eleições de 1850,quando perderam o controle da Câmara Municipalque até então mantinham. Em 1852, na vila de SãoJosé dos Pinhais, um confronto entre a milícia e

eleitores resultou na morte de sete pessoas, sendoseis da oposição liberal. (ANAIS-CD, 10 ago.1853,v.IV, p.142).

34 Compunha-se a Câmara, em 1853, de 112deputados. As maiores bancadas eram as de Mi-nas, com 20 deputados; Bahia, 14; Pernambuco,13, Rio de Janeiro, 10 e São Paulo, 9.

35Não havia primeira discussão para projetosvindos do Senado: “Art. 142. Os projetos de Lei,que vierem da Câmara dos Senadores, e o Projetode Lei do Orçamento, terão somente duas discus-sões, que corresponderão à 2a e 3a. Quando se dis-cutir o 1º artigo, poder-se-á falar em geral sobre autilidade, ou a inconveniência do projeto.” (CÂ-MARA-REGIMENTO, 1857, p. 25-26)

36Mais tarde Barão do Serro Frio.37No Senado, Zacarias fora alvo, nas sessões de

25 e 26 de julho, das baterias do controvertido se-nador liberal D. Manuel de Assis Mascarenhas, que,responsabilizava o ministro da Marinha pela mortede três tripulantes, um deles oficial, e causar preju-ízo de 400.000$ pela perda de um dos mais impor-tantes navios da Marinha, o Affonso, entregue a ofi-cial sem a patente requerida para o comando. Alu-de à má sorte do ministro, recomendando: “se essaestrela continuar, é melhor que S. Exa. se retire an-tes que dê cabo de todos os vasos da armada.”(ANAIS-SENADO 25 e 26 jul.1853, v.1, p.445-450,460).

38Os anais não registram a votação deste reque-rimento, embora apoiado..

39 O deputado, que em 1843 defendera o proje-to até a derrubada da emenda anexando a regiãodo Sapucaí, combate o projeto, mas alega votar afavor.

40Trata-se da vaga aberta no Senado em virtudedo falecimento, em 26 de junho, do senador liberalpor São Paulo, monsenhor João José da Vieira Ra-malho, do partido liberal (ANAIS-SENADO 19jul.1853. V.1 p.413). Eleito no ano anterior, Rama-lho cumprira poucos meses do mandato. É eleitopara a nova vaga de senador o então deputadoJosé Manoel da Fonseca, do partido conservador,que assumiria o mandato em 28 de junho de 1854.

41BELOTO (1990, p.88) abona tal interpreta-ção: “A Estratégia elaborada pelo Império consis-tia em dominar os liberais na Comarca, obtendo amaioria na Assembléia Provincial da nova Provín-cia do Paraná, além de um senador e mais umdeputado para o Partido Conservador na assem-bléia Geral.”

42PILOTTO (1953b, p. 20; 1953b, p. 11), identi-fica equivocadamente como autor desta emenda odeputado Pacheco Jordão.

43Referência à regra geral da Constituição de1824. A representação no senado é regulada pelosarts. 41 e 42: “Art. 41 - Cada província dará tantossenadores quantos forem metade dos seus respecti-

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Referências

ANAIS [da] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Riode Janeiro. [1861,1876,1878, 1880,1882] (sessõeslegislativas de 1843, 1848, 1850, 1851 e 1853).

vos deputados, com a diferença que, quando onúmero dos deputados da província for ímpar, odos seus senadores será metade do número imedi-atamente menor, de maneira que a província quehouver de dar onze deputados, dará cinco senado-res; Art. 42 – A província que tiver um só deputadoelegerá todavia, o seu senador, não obstante a regraacima estabelecida.”

44A organização da Igreja era assunto de Esta-do. A religião católica era a oficial do Império (Art.5º da Constituição de 1824).

45Em 1852, já faziam parte da Comarca de Ita-petininga (Cf. MOREIRA, 1974, p. 12).

46Recenseamento mandado fazer em 1854 peloprimeiro presidente da Província do Paraná, Zaca-rias de Góes e Vasconcelos, mostraria uma popula-ção de 62.258 habitantes (MOREIRA, 1974, p. 18).

47Cruz Machado chega a especificar a localizaçãodos engenhos, mencionando 47 em Antonina e Mor-retes, os quais certamente não seriam de cana, masde erva-mate. Sobre a economia do mate, ver TRE-VISAN, 1998.

48Os de arroz estariam principalmente em Igua-pe e Cananéia, não pertencendo mais à comarca.

49Sobre o orçamento executado, informa CAR-NEIRO (1994, p. 66): “No relatório de 15 de julhode 1854 [Zacarias] mostrava uma receita provinci-al de 27 contos de réis [...] o que era insuficientepara atender às despesas gerais. Daí o déficit de 38contos [...] que constitui o maior entrave inicial aoseu governo. [...] Da administração, ao mesmo tem-po escrupulosa e equilibrada, resultou que, já norelatório de 8 de fevereiro de 1855, a situação finan-ceira evidenciava melhora considerável. Uma recei-ta de 191 contos, despesa de 112, faziam preversaldo real de 79 contos [...]”.

50Trata-se do rio Iguaçu.51Com a emancipação, o Paraná herda de São

Paulo a disputa de terras com Santa Catarina, achamada “questão do contestado”, que, mescladacom messianismo, problemas fundiários e sociais,só seria resolvida em 1916, após sangrentos confli-tos.

52Refere-se ao conflito ocorrido nas eleições de1852. Ver nota 33.

53O primeiro senador eleito pela Província foiJoão da Silva Machado, então Barão de Antonina, omesmo que negociara a não adesão da Comarcade Curitiba à revolução liberal de Sorocaba em1842).

ANAIS [do] SENADO do Império do Brasil. Brasí-lia: Senado Federal, 1978. (Sessões legislativas de1848, 1850 e 1853).

ATAS [do] CONSELHO DE ESTADO. Brasília:Senado Federal. v. III, IV. 1978.

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BELOTO, Divonzir Lopes. O Paraná e a Emancipa-ção Conservadora. Dissertação de Mestrado em Eco-nomia. São Paulo: PUC-SP.1990. p.55-90.

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1. IntroduçãoA abordagem do tema “A importância

dos tratados e o ordenamento jurídico bra-sileiro” tem duas vertentes principais: a pri-meira está em apresentar a importância dostratados, com a demonstração de como esseinstrumento se tornou uma das principaisfontes do Direito Internacional; a segunda,na verificação da sua influência no ordena-mento jurídico brasileiro.

A importância dos tratados e oordenamento jurídico brasileiro

Celso Antonio Martins Menezes

Celso Antonio Martins Menezes é Analistade Sistemas. Servidor do Senado Federal desde1983 e Assessor do Diretor-Geral do SenadoFederal.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. JORGE LUIZFONTOURA NOGUEIRA.

1. Introdução; 2. Surgimento e Evolução dosTratados; 3. Direito das gentes e direito dostratados; 4. Fontes do direito internacional; 4.1.Fontes codificadas; 4.1.1. Fontes imediatas; 4.1.2.Fontes mediatas; 4.2. Fontes não codificadas; 5.Sujeitos de direito internacional e personali-dade jurídica; 6. Organizações Internacionais;7. O tratado e a obrigatoriedade de cumpri-mento; 7.1. A questão dos conflitos internos;7.2. A palavra de alguns doutrinadores; 7.3.Preceitos constitucionais de alguns países; 8.Os tratados e os conflitos gerados no ordena-mento jurídico brasileiro; 8.1. Normas inter-nas e externas: a questão da supremacia; 8.2.Propostas de regulamentação interna dos tra-tados; 9. Conclusão; 10. Notas; 11. Referências.

Sumário

“[...] the treaty is like an incoming tide. Itflows into the estuaries and up the rivers.It cannot be held back.”1

Lord Denning(In: Revista de Informação Legislativa,

no 159, julho-setembro/2003.)

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Com relação à primeira vertente, nãohaverá a preocupação de provar com novosindícios o que é consagrado pelas relaçõesinternacionais e pelos doutrinadores. Aquiserão apresentados aspectos como seu sur-gimento e utilidade, sua evolução, suas fon-tes e os sujeitos capacitados para firmar oscompromissos oriundos desse instituto, en-tre outros temas correlatos.

Na segunda vertente, não menos impor-tante que a primeira, serão discutidos os efei-tos que os tratados podem produzir no or-denamento jurídico brasileiro. E, analisadasas relações de supremacia do direito inter-nacional e de subordinação do direito inter-no, verificado se essas relações realmenteexistem, e se existem, quem são seus defen-sores e quais os conflitos daí originados.

Bem verdade que as relações exterioresde um Estado têm sempre procedimentosformais e complexos, o que desautoriza opresente estudo a arriscar pensamentos le-vianos e de pouca contribuição. Portanto,serão abordados apenas tópicos necessáriosque contribuam para melhor entendimentoda matéria.

Por fim, observando a citação de LordDenning, utilizada na epígrafe, em prover-bial julgamento na justiça britânica (caso H.P. Balmer Ltda. vesus Bollinger S. A., 1974),a força criadora da norma internacional seinsere de forma definitiva nos ordenamen-tos jurídicos nacionais, de modo mais abran-gente do que se possa imaginar em princípio.

2. Surgimento e Evolução dos Tratados

Os tratados, há muito, se apresentamcomo um expediente importantíssimo paraas relações entre Estados, visando acomo-dar os mais variados interesses, sejam mer-cantis, bélicos, humanitários, culturais, eco-lógicos ou mesmo cooperação de toda ordem.

A comunidade internacional recorre aesse instituto para formalizar acordos, so-lucionar conflitos, firmar convênios e prin-cipalmente proteger a humanidade dasações que atentem contra a sua dignidade.

O primeiro registro da celebração de umtratado data do período situado entre 1280e 1272 a.C. É o que se refere à paz entreHatusil III, rei dos hititas, e Ramsés II, faraóegípcio da XIXa dinastia. Esse tratado pôsfim à guerra nas terras sírias.

Mas foi com o comércio marítimo que seapresentaram as primeiras regras laicas queversavam sobre a proteção do comércio e doscidadãos. Com elas, percebe-se que vai to-mando forma uma outra vertente de interes-ses comuns. Agora impera a ordem econô-mica, propugnando não a conquista de ter-ritórios, no sentido restrito, mas o fortaleci-mento das nações por meio da produção evenda de bens. A derrocada do sistema feu-dal e a conseqüente formação de sistemasorganizacionais maiores, fizeram surgir anoção de Estado, o que proporcionou aospovos o sentimento de unidade e a necessi-dade de uma organização menos rudimen-tar. O povo passa a se organizar em tornode uma autoridade suprema e em processode consolidação, o Estado.

A ele são delegadas as atribuições e com-petências originárias da vontade do seupovo, dentre elas a prerrogativa de repre-sentá-lo no exterior e, por conseguinte, cele-brar tratados.

A partir do Tratado de Westfália, de1648, que celebrou a paz entre o impérioRomano-Germânico e os Reinos da Françae da Suécia, percebe-se na Europa uma novaordem estatal baseada no princípio da so-berania dos Estados e na evolução da re-gras que norteiam os confrontos armados,quando estes existirem.

Até meados do século XIX, o uso de tra-tados era tímido, servindo basicamente paraquestões de alta política e de relações co-merciais; no entanto, com a evolução dasrelações entre os Estados, os tratados pas-sam a estabelecer alianças ou tréguas, cele-brar a paz, normatizar a navegação e as re-lações comerciais ou solucionar litígios.

Atualmente, o seu uso é ilimitado, po-dendo-se afirmar não existir assunto quepossa fugir à sua regulamentação. Envere-

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dando por várias áreas do Direito, vejamosalguns exemplos: no Direito Constitucionalexistem tratados sobre direitos civis e políti-cos e proteção aos direitos humanos, entreoutros; no campo do Direito Civil, destaca-se o direito do autor e a proteção de obrasliterárias; no Direito Penal, encontra-se arepressão ao tráfico de entorpecentes e aextradição; no Direito Tributário e Financei-ro, verificamos as medidas para evitar a bi-tributação; no Direito Administrativo, pode-se citar a regulamentação dos correios e te-lecomunicações e a cooperação tecnológicae científica.

3. Direito das gentes edireito dos tratados

O jurista Hugo Grotius (1583-1645), teo-riza que o Direito Internacional derivava do“direito das gentes”, originado no consen-timento e na vontade dos povos. Ele discor-reu sobre vários temas e formulou os princí-pios do Direito Internacional. Outro que in-fluenciou o Direito Internacional foi o filó-sofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).Suas idéias e obras tiveram papel importantepor ocasião da fundação da Liga das Na-ções (Tratado de Versalhes, 1919) e da cria-ção da Organização das Nações Unidas, em1945.

Outros dois fatos contribuíram decisiva-mente para que a vontade do povo tomasseassento nas discussões internacionais, coma declaração de independência dos EstadoUnidos da América (1776), que proclamouo direito dos povos de dispor de si mesmos,e a Revolução Francesa (1789), que se fun-damentou no livre consentimento do povo.

A partir do final do século XIX, essa dis-cussão passa a ter forma mais definida,quando surge um cenário internacionalmais propício ao desenvolvimento concei-tual e institucional do direito dos tratados,formando um acervo normativo mais am-plo. Essa evolução deveu-se à multiplica-ção dos regimes republicanos e à constitu-cionalização das monarquias. E com a de-

mocratização das nações, as ações jurídi-cas, tanto internas quanto externas, expres-sam uma interdependência maior, valo-rizando sobremaneira o direito internacio-nal.

Historicamente, pode-se afirmar que ocontinente americano teve uma participa-ção muito importante para regulamentarinternacionalmente o Direito dos Tratados,quando por ocasião da Sexta ConvençãoInternacional Americana, realizada emHavana, 1928, foi celebrada uma Conven-ção sobre Tratados, contendo 21 artigos.Esta Convenção foi ratificada por oito Esta-dos, entre eles o Brasil.

Em 1966, a Organização das NaçõesUnidas (ONU) submeteu à consideração daAssembléia Geral um “Projeto de Artigossobre o Direito dos Tratados”. Essa iniciati-va deu origem à Convenção de Viena sobreo Direito dos Tratados, com 85 artigos e 1anexo. O artigo 1o possibilita, formalmente,a celebração de tratados entre Estados e oartigo 2o define o tratado como sendo “umacordo internacional concluído por escritoentre Estados e regido pelo Direito Interna-cional”.

Observa-se nesses dois artigos o reconhe-cimento do Estado como ator principal di-ante da possibilidade de celebração de tra-tados, pois este é tido como sujeito de direi-to internacional por excelência. No entanto,verificar-se-á mais à frente que existem ou-tros sujeitos de direito internacional capa-zes de celebrar tratados e/ou acordos.

4. Fontes do direito internacional

Observa-se nos ordenamentos jurídicosnacionais que a aplicação de determinadalegislação não representa maiores proble-mas, pois quase sempre, esta se fundamen-ta nos anseios de sua população ou no inte-resse do Estado em normatizar algum as-sunto. Já no direito internacional, por nãoexistir um organismo legislador responsá-vel pela criação de leis que sejam reconheci-das imediatamente pela comunidade inter-

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nacional, e onde muito menos existe um ju-diciário comum que imponha sanção ao seudescumprimento, a tarefa de aplicar regrasinternacionais torna-se complexa.

Reconhecidamente um dos dispositivosmais respeitados pelas nações, está inscul-pido no Estatuto da Corte Internacional deJustiça, que em seu artigo 38 estabelece al-gumas fontes do direito internacional, inverbis:

Art. 38 – 1 A Corte, cuja função édecidir conforme o Direito Internacio-nal as controvérsias a elas submeti-das, aplicará:

a) as convenções internacionais,quer gerais, quer especiais, que esta-beleçam regras expressamente reco-nhecidas pelos Estados litigantes;

b) o costume internacional comoprova de uma prática geral aceitacomo o direito;

c) os princípios gerais do direitoreconhecidos pelas nações civiliza-das;

d) sob ressalva disposta no art. 59,as decisões judiciárias e as doutrinasdos publicistas mais qualificados dasdiferentes nações, como meio auxiliarpara a determinação das diversas re-gras de direito.

2 – A presente disposição não pre-judica a faculdade da Corte para de-cidir um litígio ex aequo et bono, se con-vier às partes.

Para melhor entendimento desse artigo,a doutrina costuma dividir as fontes em co-dificadas (imediatas e mediatas) e não codi-ficadas.

São fontes codificadas imediatas as que cor-respondem aos tratados, costumes e princí-pios gerais de direito, e fontes codificadas me-diatas as que correspondem à doutrina,jurisprudência, analogia e eqüidade.

Por outro lado, as fontes não codificadassão representadas pelos atos das organiza-ções internacionais, pelos atos unilateraisdos Estados e pela existência de normas dejus cogens.

4.1. Fontes codificadas4.1.1. Fontes imediatas

Tratado – Para Francisco Rezek (2000, p.14), “Tratado é todo acordo formal concluí-do entre sujeitos de direito internacionalpúblico, e destinado a produzir efeitos jurí-dicos.” É parte fundamental do Direito In-ternacional Público;

Costume – De acordo com o Estatuto daCorte Internacional de Justiça, a norma jurí-dica costumeira resulta de uma prática ge-ral aceita como sendo o direito. O costumepossui um elemento material e um elementosubjetivo. O primeiro, é identificado pelarepetição de um procedimento, podendo seruma ação ou omissão, realizada por pessoasjurídicas de Direito Internacional Público.O segundo consiste em, sendo o procedimen-to repetido, verificar-se a necessidade de quea prática seja determinada pela opinio juris,ou seja, deve haver a convicção de que o pro-cedimento é correto, justo e jurídico. Desseentendimento depreende-se que o elementomaterial do costume seria a prática, a repe-tição, de um certo modo de proceder, e teriano seu elemento subjetivo a convicção deque assim se procede por ser necessário, jus-to e dessa forma jurídico;

Princípios gerais do direito – Entre os prin-cípios, encontramos o pacta sunt servanda,que traz consigo a idéia de que o pactuadovincula as partes. Temos, também, o princí-pio da solução pacífica de litígios entre Es-tados, o da autodeterminação dos povos, oda coexistência pacífica, o do desarmamen-to, o da proibição da propaganda de guerra,a proibição do abuso de direito, a regra dorespeito à coisa julgada e outros.

4.1.2. Fontes mediatas

Doutrina – Foi parte fundamental na ela-boração do Direito Internacional, e as liçõesdoutrinárias são o meio pelo qual pode-seapurar quais normas do direito consuetu-dinário estão em vigor;

Jurisprudência – Temos nas decisões ju-diciárias referidas pelo Estatuto da Corte da

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Haia as componentes da jurisprudência in-ternacional. Desta forma, o conjunto dasdecisões arbitrais e judiciárias, e ainda ospareceres proferidos pela referida Corte, for-mam a jurisprudência reguladora do conví-vio internacional;

Analogia e eqüidade – A analogia e a eqüi-dade – métodos de raciocínio jurídico – sãoutilizadas quando não existe a norma, ouquando nenhuma norma se aplica ao casoconcreto. A analogia consiste em fazer va-ler, para determinada situação, a norma ju-rídica concebida para aplicar-se a umasituação semelhante. É importante ressal-tar que seu uso encontra limitações na apli-cação internacional. Já a eqüidade “podeoperar tanto na hipótese de insuficiência danorma de Direito positivo aplicável quantonaquela em que a norma, embora bastante,traz ao caso concreto uma solução inaceitá-vel pelo senso de justiça do intérprete. As-sim, decide-se à luz de normas outras quepreencham o vazio eventual, ou que tomemo lugar da regra estimada iníqua ante a sin-gularidade da espécie”.2

4.2. Fontes não codificadas

Atos das organizações internacionais – Apósa Segunda Guerra Mundial, as organiza-ções internacionais cresceram em importân-cia no cenário mundial. Amparadas pelavontade dos Estados que as constituíram,formulam Convenções, Resoluções e Atos,como será visto mais à frente;

Atos unilaterais dos Estados – O artigo 38do Estatuto acima citado não se refere aosatos unilaterais como fontes do direito in-ternacional, mas, segundo Francisco Rezek(2000, p. 139/140), “Não há, efetivamente,em tais atos qualquer aspecto normativo,marcado por um mínimo de abstração e ge-neralidade. É óbvio, entretanto, que essesatos produzem conseqüências jurídicas –criando, eventualmente, obrigações –, tantoquanto as produzem a ratificação de um tra-tado, a adesão ou a denúncia”;

Jus cogens – As normas de jus congens es-tão presentes nos artigos 53 e 64 da Con-

venção de Viena sobre os Direitos dos Tra-tados. Elas são tidas como universais e de-vem ser aceitas pelos Estados, pois expri-mem convicções comuns irrenunciáveis.Elas são evolutivas, pois admite-se a substi-tuição das normas atualmente existentes poroutras, desde que estas tenham a mesmanatureza.

5. Sujeitos de direito internacional epersonalidade jurídica

A contemporaneidade tem proporciona-do o surgimento de novas entidades no ce-nário internacional. São novos sujeitos de di-reito internacional que participam ativamen-te de um rol de atividades internacionais.

Mas para se ter capacidade jurídica énecessário o preenchimento de alguns re-quisitos, além da análise da natureza daentidade. Isso é determinado por um exameda personalidade jurídica que envolve aanálise de certos conceitos, como a capaci-dade e a competência jurídica e a extensãodos direitos e obrigações. Essa análise severifica em cada ordenamento jurídico, quedeterminará as entidades passíveis de se-rem detentoras de personalidade, sua natu-reza e definição, e ainda, aceitação na co-munidade internacional.

Atualmente pode-se afirmar que além dasorganizações internacionais governativas,a Soberana Ordem de Malta, o Comitê Inter-nacional da Cruz Vermelha e a Santa Sé sãosujeitos de direito internacional.

6. Organizações InternacionaisA idéia de criação das organizações in-

ternacionais surgiu em “reação à I GuerraMundial (1914-1918), com a preocupaçãode adaptar o sistema internacional às exi-gências do direito e da justiça”.3 Por inicia-tiva do então presidente norte-americanoWoodrow Wilson foram apresentados osprincípios que deram origem à Liga dasNações, com o objetivo de restabelecer a or-dem, tornar estável o sistema internacionale garantir a paz.

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Mas é com o advento da II GuerraMundial que é criada a Organização dasNações Unidas (ONU), em 1945, com o ob-jetivo de manter a paz e a segurança inter-nacional, podendo intervir para restaurar apaz e para prevenir conflitos. Neste contex-to, surgem também a Organização Interna-cional do Trabalho (OIT), com a propostade proteção internacional aos trabalhado-res; a Organização Mundial de Saúde(OMS), objetivando o alcance do mais altograu de saúde para os povos; a Organiza-ção das Nações Unidas para a Educação eCultura (UNESCO), contribuindo para a pazpor meio da educação, ciência e cultura.

Houve, ainda, a preocupação de se criaroutras instituições que atuassem em diver-sas áreas e que possibilitassem as relaçõescomerciais e de finanças internacionais. Daío surgimento do Fundo Monetário Interna-cional (FMI), do Banco Mundial, e o GATT,para promover o Acordo Geral sobre Tari-fas e Comércio, que foi precursor da Organi-zação Mundial do Comércio (OMC).

Todas as organizações internacionaissurgiram de acordo com a vontade dedeterminado número de Estados, por meiode um tratado contendo objetivos definidospara sua atuação. Vê-se que o fato de essasorganizações serem signatárias dos res-pectivos Estados-membros está intrinseca-mente relacionado com os seus atos consti-tutivos e os objetivos que estes lhes conferi-ram.

Pode-se afirmar que o surgimento de taisorganizações vem em oposição à idéia deEstado soberano, com a finalidade de pro-mover a aproximação de posições entre ospaíses membros; adoção de normas comunsde comportamento desses paises; previsãode ação operacional em casos de urgênciana solução de crises de âmbito nacional ouinternacional, originadas de catástrofe na-turais, conflitos internacionais, guerra civile pesquisas conjuntas em áreas específicasde interesse dos Estados partes; prestaçãode serviços, principalmente de cooperaçãoeconômica, entre outros objetivos.

Existem, ainda, vários organismos cria-dos por países de uma mesma região com afinalidade de promoverem intercâmbio erelações comerciais de interesses comuns. Éo caso da Área de Livre Comércio das Amé-ricas (ALCA) e do Mercado Comum do ConeSul (Mercosul).

Finalmente, as Organizações Não Gover-namentais (ONGs) não são consideradassujeitos de direito internacional e não pos-suem o privilégio de celebrarem tratados pornão possuírem designação para este fim. Noentanto, têm conquistado cada vez maisimportância e respeito da opinião públicainternacional, promovendo debates sobretemas de interesse mundial e fazendo pres-são sobre Estados e organismos internacio-nais nas questões importantes para a hu-manidade.

7. O tratado e a obrigatoriedadede cumprimento

Os tratados quase sempre são negocia-dos pelos agentes diplomáticos que assis-tem aos seus Chefes de Estado e só se tor-nam obrigatórios após sua ratificação, queacontece, normalmente, quando se encerraa apreciação do Poder Legislativo de umdeterminado Estado.

A necessidade de submeter o tratado àapreciação do Poder Legislativo situa-se naidéia de que o povo é detentor da soberania,que delega, por sua vontade, ao legislativonacional. Os tratados são tão importantesquanto as leis, pois obrigam o Estado ao seucumprimento e, por conseqüência, obrigamos cidadãos.

Neste sentido, pode-se afirmar que a su-bordinação ao tratado advém do acatamen-to deste pelos Estados que o ratificaram efundamentado no pacta sunt servanda, emvirtude do qual o Estado deve cumprir asobrigações dele decorrentes, sob pena deresponder na esfera internacional pela que-bra do que fora firmado.

A obrigação de cumprimento do contra-to tem assento na Convenção de Viena, que

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preceitua em seu art. 26 que “Todo tratadoem vigor obriga às partes e deve ser cumpri-do por elas de boa-fé. (pacta sunt servanda).”E no seu art. 27 estabelece que “uma partenão pode invocar as disposições de seu di-reito interno para justificar o inadimplemen-to de um tratado. Esta regra não prejudica oartigo 46.”4

Deve-se atentar para o fato de que o cum-primento de um tratado por parte do Estadoque o ratificou, ou que a ele aderiu, duraenquanto o tratado estiver em vigor no ce-nário internacional.

Recorre-se, ainda, a dois outros precei-tos para reafirmar a obrigatoriedade em darcumprimento ao que foi acordado por meiodo tratado. O primeiro consta do preâmbu-lo da Carta das Nações Unidas, que estabe-lece: “(...) o respeito às obrigações decorren-tes de tratados e de outras fontes do direitointernacional”. O segundo, vinculado àCarta das Organizações dos Estados Ame-ricanos, traz nas alíneas a e b do artigo 3o asseguintes normas:

a) o direito internacional é a norma deconduta dos Estados em suas relaçõesrecíprocas;b) a ordem internacional é constituí-da essencialmente pelo respeito à per-sonalidade, soberania e independên-cia dos Estados e pelo cumprimentofiel das obrigações emanadas dos tra-tados e de outras fontes do direito in-ternacional.

Por conseguinte, o Estado vinculado aum tratado deve cumprir as obrigações deleresultantes, fazendo observar, na esfera desua jurisdição, as normas respectivas, sobpena de responsabilidade no âmbito inter-nacional.

7.1. A questão dos conflitos internos

A obrigatoriedade do cumprimento deum tratado tem gerado prolongadas discus-sões quando este atinge de qualquer formaas normas internas dos Estados. Isso difi-culta a absorção das determinações inter-nacionais, por causar divergências dentro

da jurisdição dos países contratantes, querseja por parte do órgão legislador, quer sejapor parte do judiciário nacional. Torna-se,ainda, uma discussão mais apaixonadaquando de alguma forma penetra na ques-tão de soberania, trazendo consigo aspec-tos de conflito entre as normas internacio-nais e as nacionais.

Neste caso, qual das duas deverá preva-lecer? Esta é uma pergunta que tem geradograndes divergências entre os doutrinado-res, mas antes de apresentar seus pensamen-tos, torna-se necessário comentar as seguin-tes teorias que tratam do tema, são elas: oDualismo e o Monismo com primazia dodireito Interno, e o Monismo com primaziado Direito Internacional.

Celso de Albuquerque Mello (2001, p.109) destaca Carl Heinrich Triepel, em 1899,como sendo o primeiro estudioso da maté-ria. Ele discorre sobre a teoria dualista par-tindo do princípio de que não existe possí-vel conflito entre essas duas normas. Decla-ra sua independência dizendo não existirentre elas nenhuma área comum e que lhesé possível apresentarem-se como tangentes,mas nunca como secantes.

O Monismo com primazia do Direito In-terno foi adotado por autores nazistas e al-gumas vezes por autores soviéticos. Essateoria parte do princípio de que os Estadossão absolutamente soberanos. Não estãosujeitos a nenhum sistema jurídico que nãotenha emanado de sua própria vontade.Essa teoria recebe muitas críticas. A maisimportante de todas é que ela nega a exis-tência do próprio Direito Internacional comoum direito autônomo, independente. Ela oreduz a um simples direito estatal.

O Monismo com Primazia do Direito In-ternacional foi fundado na escola de Vienae teve em Hans Kelsen um de seus maioresestudiosos. Os monistas que atribuem pri-mazia ao direito internacional “voltam-separa a perspectiva ideal de que se instaureum dia a ordem única, e denunciam, desdelogo, à luz da realidade, o erro da idéia deque o Estado soberano tenha podido outro-

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ra, ou possa hoje, sobreviver numa situaçãode hostilidade ou indiferença frente ao con-junto de princípios e normas que compõemo direito das gentes” (REZEK, 2000, p. 5).

Como se pode extrair das teorias acima,a questão parece se resumir na prevalênciada concepção monista ou da dualista emrelação às ordens jurídicas. Para a teoriamonista não há independência, mas inter-dependência entre a ordem jurídica inter-nacional e a nacional, razão por que a ratifi-cação do tratado por um Estado importa naincorporação automática de suas normas àrespectiva legislação interna. Para a teoriadualista, as duas ordens jurídicas – inter-nacional e nacional – são independentes enão se misturam. A ratificação do tratadoimporta no compromisso de legislar na con-formidade do Estado na esfera internacio-nal; mas a complementação ou modificaçãodo sistema jurídico interno exige um ato for-mal por parte do legislador nacional.

7.2. A palavra de alguns doutrinadores

Os pensamentos que serão apresentadosobjetivam apenas remeter a um debate teóri-co sobre o assunto em discussão, sem, con-tudo, indicar prevalência deste ou daqueledoutrinador. No entanto, observa-se que amaior parte deles adota o pensamentokelseniano – é assim com Haroldo Valladão,Marotta Rangel e Celso de AlbuquerqueMello.

Haroldo Valladão (1980, p. 53), asseve-ra a “realidade da organização jurídica dahumanidade, como fonte original, objetivae única decorrendo ou do renascido direitonatural ou da imperiosidade da vida soci-al”. Para Marotta Rangel (1967, p. 54/55),“a superioridade do tratado em relação àsnormas do Direito Interno é consagrada pelajurisprudência internacional”. E prossegue:“A solução ideal e desejada é a da harmoni-zação das ordens jurídicas de cada Estadocom a ordem jurídica internacional. A ten-dência de várias constituições contemporâ-neas é a de concorrer para essa harmoniza-ção. Fortalece essa tendência admitir que os

tratados, tão logo sejam regularmente con-cluídos e produzam efeitos na ordem inter-nacional, passem imediata e automatica-mente a produzi-los na ordem interna dosEstados contratantes”.

Celso de Albuquerque Mello (2001, p.115), acentua que “a jurisprudência inter-nacional tem sido unânime em consagrar aprimazia do Direito Internacional”. Isso sedeve ao fato de que um Estado possa ofendernormas de direito internacional com base ex-clusiva no seu ordenamento interno.

Francisco Rezek (2000, p. 102/103), lem-bra que “o primado do direito das gentessobre o direito nacional do Estado soberanoé ainda hoje uma proposição doutrinária.Não há, em direito internacional positivo,norma assecuratória de tal primado. Des-centralizada, a sociedade internacional con-temporânea vê cada um de seus integrantesditar, no que lhe concerne, as regras de com-posição entre o direito internacional e o deprodução doméstica”.

7.3. Preceitos constitucionais de alguns países

De início, deve-se observar que a teoriamonista está consagrada pelo direito inter-no de muitos países. Entre eles se destacam:Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Es-tados Unidos da América, Finlândia, Fran-ça, Grécia, Holanda, Itália, Luxemburgo,Portugal, Suécia, Suíça, países africanos deidioma francês e diversos Estados latino-americanos, entre eles Argentina e Brasil.Entre os partidários da concepção dualista,encontram-se o Reino Unido da Grã-Bretanha, a Austrália e o Canadá.5

A Constituição francesa afirma a inte-gração automática do tratado ratificado noseu direito interno, colocando-o, acima dalei, na hierarquia das fontes formais de di-reito, preceituando no seu art. 58 que “umavez que os tratados diplomáticos regular-mente ratificados possuem uma autoridadesuperior às das leis internas, suas disposi-ções só podem ser ab-rogadas, modificadasou suspensas após uma denúncia regular,notificada por via diplomática.”

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A Constituição portuguesa, promulga-da em 2 de abril de 1976, consagra a teoriamonista, ao prever em seu art. 8o, dedicadoao Direito Internacional que “As normas eos princípios de direito internacional geralou comum fazem parte integrante do direitoportuguês.”

Igualmente a Constituição espanholaesclarece que a partir da publicação oficialdo tratado, este passa a fazer parte do orde-namento jurídico interno, e que suas dispo-sições “só poderão ser derrogadas, modifi-cadas ou suspensas na forma prevista nospróprios tratados ou de acordo com as nor-mas gerais do Direito Internacional”. AConstituição italiana prevê que “o ordena-mento jurídico italiano ajusta-se às normasdo direito internacional”. A Constituiçãoholandesa trata do tema estabelecendo que“As disposições dos tratados que impõemobrigações aos particulares têm força de leidesde a sua publicação”.

Na Alemanha, a Constituição estabele-ce que a ratificação dos tratados atinentes aquestões da competência da legislação fe-deral depende da prévia aprovação dos ór-gãos legislativos, mediante lei federal (art.59, § 2o), não se exigindo que o tratado, poressa forma aprovado, seja objeto de nova leipara ser incorporado ao direito positivonacional. A Constituição austríaca estabe-lece que, uma vez que o tratado seja ratifica-do após sua aprovação pelo ConselhoFederal, torna-se obrigatório no direitointerno.

A Constituição dos Estados Unidos daAmérica equipara os tratados às leisfederais, atribuindo-lhes a característicade supreme law of the land (art. VI). Desde quesejam aprovados pelo Senado Federal, pormaioria de dois terços de votos (art. II, n. 2),suas normas se incorporam à legislaçãonacional.

Entre os países latino-americanos, veri-fica-se na Argentina que a Constituição atri-bui aos tratados “hierarquia superior àsleis”. No Uruguai, a ratificação do tratadoprecisa de aprovação por ato legislativo e

tem efeitos internos diretos e imediatos, semnecessidade de qualquer outro ato legislati-vo posterior.

O Brasil, por tradição constitucional, temadotado a teoria monista. A Constituição de1988 preceitua que após a ratificação do tra-tado, e a partir do momento em que este vi-gore no âmbito internacional, o mesmo seincorpora ao direito interno brasileiro, oumais precisamente, sendo ele uma normaself-executing e já estando em vigor no planointernacional, pode alterar ou revogar o di-reito interno.

8. Os tratados e os conflitos gerados noordenamento jurídico brasileiro

No Brasil, a celebração de tratados estádeterminada no art. 84, inciso VIII, da Cons-tituição Federal em vigor, que estabelececompetir privativamente ao Presidente daRepública “celebrar tratados, convenções eatos internacionais, sujeitos a referendo doCongresso Nacional”.

O Congresso Nacional, por sua vez, tema atribuição de autorizar, ou não, a ratifica-ção do tratado por parte do Poder Executi-vo, mas nunca de modificar os termos pac-tuados. Essa atribuição está prevista no art.49, inciso I, da Constituição, que dispõe serda competência exclusiva do CongressoNacional “resolver definitivamente sobretratados, acordos ou atos internacionais queacarretem encargos ou compromissos gra-vosos ao patrimônio nacional”.

A espécie legislativa responsável pelatramitação e apreciação do tratado no Con-gresso Nacional é o Decreto Legislativo, quetem hierarquia de lei. Este será promulgadopelo presidente do Senado Federal.

Após sua aprovação, ele será ratificadopelo chefe do Poder Executivo por meio datroca ou depósito de um instrumento de ra-tificação junto ao país depositário. Para queo tratado tenha sua execução no plano in-terno, é necessária sua publicação.

Este procedimento é condição primordialpara que o tratado tenha eficácia jurídica

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no território nacional. A exigência da publi-cidade está revelada no art. 1o da Lei de In-trodução ao Código Civil, que prevê que alei, e aí inserido o tratado normativo, só vigeentre nós “depois de oficialmente publica-da”, ou seja, depois de divulgado o texto daconvenção, em português, no Diário Oficialda União, com a data da sua ratificação e dasua vigência. Para Celso de AlbuquerqueMello (2001, p. 229), “A publicação é condi-ção essencial para o tratado ser aplicado noâmbito interno”.

Esse desenrolar burocrático em torno dotratado é chamado de processo completo , quecompreende as etapas da negociação, assi-natura, mensagem ao Congresso, aprovaçãoparlamentar, ratificação, promulgação epublicação. Mas existe um outro processochamado de abreviado, que compreende asetapas de negociação, assinatura ou trocade notas e publicação.

Cachapuz de Medeiros (2002, p. 81), en-sina que “o processo abreviado é o seguidopelos chamados acordos em forma simplifi-cada, cuja admissibilidade é sustentada porparte da doutrina jurídica nacional desde avigência da Constituição de 1946”. Essa for-ma foi mantida na Constituição de 1988 eaceita pelo Congresso Nacional, principal-mente porque as matérias arroladas nessetipo de processo se referem quase sempre aajustes complementares a tratados preexis-tentes, que se destinam a operacionalizartratado anterior, devidamente aprovado. Emgeral, são concluídos no quadro de acordosde cooperação científica, técnica ou tecno-lógica.

Verifica-se que tanto no processo com-pleto como no abreviado existe a obrigatorie-dade do assentimento do Congresso Nacio-nal, com ênfase para aqueles tratados queacarretam encargos ou compromissos gra-vosos ao patrimônio nacional.

8.1. Normas internas e externas:a questão da supremacia

Com relação à supremacia da norma in-ternacional sobre a norma nacional, o judi-

ciário brasileiro firmou acórdãos que con-sagram o direito internacional com prima-zia sobre o direito nacional, mas há opiniõesdiversas, surgidas principalmente após o jul-gamento do célebre Recurso Extraordináriono 80.004-SE.

A decisão proferida pelo Supremo Tri-bunal Federal no citado Recurso estabele-ceu: “ante a realidade do conflito entre tra-tado e lei posterior, esta, porque expressãoúltima da vontade do legislador republica-no deve ter sua prevalência garantida pelajustiça”. A conclusão a que chegou o STF nojulgamento desse Recurso, foi a de que den-tro do sistema jurídico brasileiro, onde tra-tados e convenções guardam estrita relaçãode paridade normativa com as leis ordiná-rias editadas pelo Estado, a normatividadedos tratados permite, no que concerne à hi-erarquia das fontes, situá-los no mesmo pla-no e no mesmo grau de eficácia em que seposicionam as nossas leis internas.

Nas palavras de Francisco Rezek (2000,p. 103/104), “posto o primado da constitui-ção em confronto com a norma pacta suntservanda, é corrente que se preserve a autori-dade da lei fundamental do Estado, aindaque isto signifique a prática de um ilícitopelo qual, no plano externo, deve aquele res-ponder”. E prossegue: “os tratados se en-contram aqui sujeitos ao controle de consti-tucionalidade, a exemplo dos demais com-ponentes infraconstitucionais do ordena-mento jurídico”. Dito isto, ele finaliza com aseguinte convicção: “Abstraída a constitui-ção do Estado, sobrevive o problema da con-corrência entre tratados e leis internas deestatura infraconstitucional. A solução, empaíses diversos, consiste em garantir preva-lência aos tratados. Noutros, entre os quaiso Brasil contemporâneo, garante-se-lhesapenas um tratamento paritário, tomadascomo paradigma as leis nacionais e diplo-mas de grau equivalente“.

Sobre a questão, não são poucos os dou-trinadores que acham equivocada a posi-ção do STF e não poupam críticas a esseentendimento.

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Celso de Albuquerque Mello (2001, p.119), por sua vez, trata do assunto com aseguinte indagação: “Qual o valor de umtratado se um dos contratantes por meio delei interna pode deixar de aplicá-lo?” E fi-naliza: “Se o STF considera que as conven-ções do direito uniforme estão ultrapassa-das, cabe ao Executivo denunciá-las no pro-cedimento fixado por elas mesmas, mas nãoao STF”.

Muitos são os entendimentos pelos quaisa norma internacional tem a forma própria,que é a denúncia, de cessar sua vigência naordem nacional, observados os dispositivoslegais que a aprovaram ou que estão no pró-prio corpo da norma; ou mesmo, pode seralterada por outra norma internacional devalor igual ou superior a ela, mas nunca pornorma interna ou inferior.

Uma hipótese de o Estado não se obrigara cumprir ou refutar uma norma no planointernacional está na competência para con-cluir tratado, inscrita no artigo 46 da Con-venção de Viena sobre o Direito dos Trata-dos, e que prevê a nulidade em caso de vio-lação expressa de uma disposição de seudireito interno sobre competência para con-cluir tratados.

8.2. Propostas de regulamentaçãointerna dos tratados

Existem muitas propostas no Poder Le-gislativo visando regulamentar os tratadosno âmbito do direito interno brasileiro. Jána década de 1960, a pedido do GovernoFederal, Haroldo Valladão organizou umanteprojeto de reforma da Lei de Introduçãodo Código Civil Brasileiro, denominado“Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídi-cas”. Nele constavam normas concernentesaos tratados.

Cachapuz de Medeiros (2002, p. 90) co-menta que “congressistas formulam proje-tos de lei com o propósito de regulamentar acelebração de acordos internacionais e tor-nar mais completo e seguro o controle doLegislativo ao tema, porém não logram re-sultado nas suas proposições.”

Dentre essas iniciativas existe a do en-tão Senador Itamar Franco, que apresentouProjeto de Lei no 31, de 1982, com o objetivode regulamentar a expedição de credenci-ais, plenos poderes ou outros instrumentosque habilitem agente diplomático a firmaratos internacionais em nome do País. Outroprojeto apresentado, de autoria do SenadorHumberto Lucena, previa a exigência daremessa, ao Congresso Nacional, de docu-mentos complementares dos tratados, con-venções e atos internacionais, para acom-panhamento da sua fiel execução.

Em 1991, a pedido do Ulysses Guimarães,então presidente da Comissão de RelaçõesExteriores da Câmara dos Deputados, oembaixador Paulo Nogueira Batista formu-lou um Anteprojeto de Resolução que, emsíntese, induziria o Poder Legislativo a umacolaboração com o Poder Executivo duran-te o processo de negociação dos acordos in-ternacionais.

Em 1999, o Deputado Pedro Valadaresapresentou Projeto de Decreto Legislativoque tinha como justificativa “regulamentar,formalmente, aspectos do processo legisla-tivo pertinente aos atos internacionais,consoante as diretrizes emanadas da nossaLei Maior, que confere ao Parlamento am-plos poderes, sejam de intervenção ou se-jam de controle aos atos internacionais doPaís”.

Em 1992 e 1993, tramitou, no âmbito daComissão de Constituição e Justiça no Se-nado Federal, um Projeto de Resolução dis-ciplinando a aprovação das operações fi-nanceiras com o Fundo Monetário Interna-cional. Esse projeto recebeu uma Indicaçãodo Senador Jutahy Magalhães com o objeti-vo de proclamar que qualquer instrumentoque crie obrigações para o País em face doFundo Monetário Internacional precisa sersubmetido à prévia aprovação do Congres-so Nacional. Para esse senador, os instru-mentos que criam obrigações junto ao FMIsão atos internacionais que acarretam en-cargos ou compromissos gravosos ao patri-mônio nacional.

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Registre-se que todas as iniciativas dosparlamentares em regulamentar este ouaquele procedimento que vise a conclusãode um tratado, desde as mais antigas às atu-ais, têm como finalidade o controle sobre osatos do Poder Executivo em relação à con-dução da política externa. No Brasil a polí-tica externa sempre esteve concentrada nasmãos do Presidente da República, incluin-do aí a negociação dos tratados.

9. Conclusão

Esta exposição objetivou demonstrar orelevante papel que o tratado representapara as relações internacionais, buscando,para tanto, definir sua origem e finalidade,e apresentando a complexidade da matériaque compreende as tratativas internacio-nais, tendo em vista que os atores envolvi-dos vislumbram quase sempre a satisfaçãodos seus interesses particulares. Porém, alógica desenvolvida nesse relacionamentonem sempre atende plenamente aos objeti-vos de cada nação.

Para tanto, se busca nos instrumentosutilizados para consecução das diversasnegociações entre as nações aquele que maisse adequar ao que está sendo pactuado, masisso depende, exclusivamente, do grau derelevância da matéria em comento, poden-do utilizar-se de um ou de outro instrumen-to normativo, dentre os quais destaca-se emimportância o tratado.

Portanto, a razão pela qual o tratado é oinstrumento utilizado para concretizar ne-gociações de grande importância está nasua historicidade e nos atos complexos in-corporados ao seu organismo, o que sugeremaior segurança às negociações e contribui,reconhecidamente, para ser um instituto for-te capaz de regulamentar situações de difí-cil consenso.

Dessa característica percebe-se que deri-vam os elementos conflitantes do tratado,uma vez que ele encerra acordos de nature-za internacional quase sempre complexos esuscita a atenção de todos quantos por ele

se sintam envolvidos, seja no plano externoou no interno.

No Brasil, assim como nos demais Esta-dos democráticos, a política internacional éconferida ao Poder Executivo, que apesarde ter seus limites definidos constitucional-mente, por vezes torna-se necessário o mo-nitoramento do legislativo e do judiciário,principalmente quando setores domésticospodem ser atingidos por determinadas ne-gociações. O legislativo socorre os interes-ses da nação, conseqüentemente do povo; jáo judiciário exerce seu papel de guardiãoda Constituição e das normas internas.

Com isso, e verificando tudo o que foidito sobre o tratado, conclui-se com a afir-mação de Celso de Albuquerque Mello(2001, p. 200), quando este diz “Os tratadossão considerados atualmente a fonte maisimportante do Direito Internacional não sódevido à sua multiplicidade, mas tambémporque geralmente as matérias mais impor-tantes são regulamentadas por eles.”

10. Notas1 Os tratados são como as marés altas. Se es-

praiam pelos estuários e inundam os rios. Não hácaminho de volta.

2 Almeida e Freire, D. Direito Internacional. SãoPaulo. 2003. Disponível em: <http://www.lawinter.com/aula06e07>. Acesso em 15-01-2004.

3 ONUKI, Janina. Organizações Internacionais– O Debate Teórico das Relações Internacionais.São Paulo. 2003. Disponível em <www. forumri.org/modules/wfsection/ article.php>. Acesso em18 fev. 2004.

4 O art. 46 dispõe sobre a nulidade do consenti-mento de um Estado, quando expresso em viola-ção de uma disposição de seu direito interno.

5 A concepção dualista adotada nos menciona-dos paises não será objeto de apreciação neste tra-balho.

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1. IntroduçãoCom apenas 15 anos, a Carta Magna bra-

sileira já tem 42 emendas e, hoje, é um enor-me retalho à espera de novos remendos.

Qual é o prazo de validade de uma Cons-tituição? O que garante sua duração e suaefetividade? Até onde é possível reformarum texto constitucional sem uma rupturaformal com os critérios e procedimentos queele mesmo estabelece ao definir os limitesmateriais de revisão de suas regras e princí-pios? Como se pode preservá-la do desgas-te do tempo, permitindo sua adequação acontextos políticos, sociais e econômicosdistintos dos que lhes deram a origem?

Essas questões, que foram muito discu-tidas após o advento das extensas e proli-xas constituições pós-autoritárias dos anos70, foram reinseridas no debate público pe-los presidentes do Supremo Tribunal Fede-ral (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral

A impossibilidade de as cláusulas pétreasvincularem as gerações futuras

Cláudia de Góes Nogueira

Cláudia de Góes Nogueira é Graduada emCiência da Computação pela UnB, especialistaem Direito Legislativo, Chefe de gabinete da2a Vice-Presidência do Senado Federal.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. JORGE LUIZFONTOURA NOGUEIRA.

1. Introdução; 2. Poder Constituinte Origi-nário e Derivado; 3. Limites do Poder Consti-tuinte Derivado; 3.1 Limitações procedimen-tais; 3.2 Limitações temporais; 3.3 Limitaçõescircunstanciais; 3.4 Limitações materiais im-plícitas 3.5 Limitações materiais explícitas: ascláusulas pétreas; 4. Cláusulas Pétreas x Demo-cracia; 5. Cláusulas Pétreas x Gerações Futuras;6. Cláusulas Pétreas x Transformações da Eco-nomia; 7. A idéia de um Poder ConstituinteEvolutivo; 8. Conclusão.

Sumário

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(TST), quando invocaram a Constituição de1988 e as garantias previstas por ela parajustificar sua resistência à Reforma Previ-denciária encaminhada ao Congresso Na-cional pelo presidente Luiz Inácio Lula daSilva.

A idéia de limitações materiais ao poderconstituinte derivado, e, sobretudo, a subor-dinação deste ao princípio constitucionalde irretroatividade das leis, desde o seu sur-gimento no mundo jurídico, tem provocadograndes polêmicas na doutrina e na juris-prudência, não só no Brasil, mas tambémem diversos outros países, como Portugal,por exemplo.

As cláusulas pétreas existentes no orde-namento constitucional brasileiro, referen-tes à proteção absoluta dos direitos e garan-tias fundamentais, foram elaboradas demaneira excessivamente genérica, contribu-íram muito mais para a criação de cizâniaentre os juristas do que efetivamente para ajusta resolução do problema.

Para o deputado Michel Temer (PMDB/SP), a grande mudança constitucional é amais difícil de ser feita. “A grande emendaserá a emenda do enxugamento. Não é pos-sível que a Constituição continue a tratar dequestões que deveriam estar na legislaçãoordinária”, avalia. Ele calcula que, se nadafor feito, dentro de cinco anos a Constitui-ção terá pelo menos 100 emendas. “A conti-nuar do jeito que está, todo presidente quefor eleito terá na mudança constitucional asua principal proposta de governo”, prevêo deputado.

Se depender da vontade de deputados esenadores, a Constituição terá muito maisdo que 100 emendas. Tramitam na Câmaranada menos do que 743 propostas de emen-da constitucional sobre os temas mais di-versos. No Senado, há outras 264 emendas.Portanto, só o Congresso Nacional discutehoje cerca de mil propostas de mudança naConstituição.

A política do governo federal, empenha-da na constante realização de reformas cons-titucionais, tem suscitado permanente dis-

cussão a respeito da dimensão jurídica dosinstrumentos de alteração da Constituição,em especial a emenda constitucional. O al-cance desta, seus limites e a possibilidadede incidência sobre situações jurídicas comgarantia de imutabilidade têm sido fonte deconstante polêmica.

O presente estudo não pretende esgotaros questionamentos acerca do tema, até por-que, dada a complexidade e extensão damatéria, não se poderia fazê-lo apenas numartigo. Pretende apenas colocar o problema,expor as opiniões a respeito e posicionar-seda forma como entende que deva ser trata-do.

Trata-se, na verdade, de estudo sobre aspossibilidades de reforma constitucional.Propõe-se de forma concisa e facilmente assi-milável, refletir sobre o tema. Analisar-se-ásucintamente o que são os poderes consti-tuintes originário e derivado, quais são oslimites existentes a esses poderes e os novoscontextos mundiais que estariam forçandouma revisão desses limites.

2. Poder ConstituinteOriginário e Derivado

A Constituição é a lei fundamental, su-prema e soberana de um Estado. É a Cartapolítica e jurídica que o rege. Estabelece asnormas que regulam a estruturação do Es-tado, os poderes de que dispõe e os que ou-torga, suas competências e as que distribui,bem como, suas limitações e as limitaçõesimpostas aos governados. É o arcabouçojurídico, sobre o qual baseia-se o Estado pararealizar as atividades que lhe são inerentes.Portanto, não é apenas estatuto referente àatuação do Estado, mas também, por meiodas limitações que infringe a este e aos seussúditos, garantia das liberdades e dos direi-tos de seus cidadãos.

Para que uma Constituição seja legítima,faz-se necessário o assentimento do povoao ordenamento constitucional que lhe éapresentado. Entretanto, a fim de que se es-tabeleça e seja respeitada, ela deve transmi-

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tir um mínimo de segurança jurídica a seuscomandados. Uma Constituição estável, di-fícil de ser modificada, garante a segurançaque o cidadão espera do Poder Público.

O poder constituinte originário é o queestabelece uma ordem constitucional. É umpoder inicial, autônomo, ilimitado e incon-dicionado. Ele é inicial porque não existenada acima dele, nem de fato, nem de direi-to, nenhum outro poder. É nele que se expri-me, por excelência, a vontade do soberano,a vontade da Nação. Portanto, o poder cons-tituinte originário é geralmente revolucio-nário e sempre dá origem a uma nova cons-tituição. Representa uma ruptura entre umaantiga e uma nova ordem constitucional. Éo fundamento de todo ordenamento jurídi-co. Não precisa respeitar limite algum im-posto pelo direito anterior. Aliás, inexistemlimitações jurídicas ao seu exercício. Não seencontra vinculado a nenhum procedimen-to prefixado para manifestar sua vontade,modernamente, entende-se que seja o povoo seu titular, exercendo-o por meio de repre-sentantes.

A concepção de um poder constituintedistinto dos poderes constituídos e superi-or a eles surge, pela primeira vez, no pensa-mento político francês da época revolucio-nária, e, particularmente, nas lições do aba-de Sieyès. É este que vai desenvolver o con-ceito de Nação como povo com unidadepolítica, com capacidade de criar e com cons-ciência de sua singularidade política e von-tade de existência política:

“A Nação existe antes de tudo, elaé a origem de tudo. Sua vontade é sem-pre legal, é a própria lei. Antes dela eacima dela só existe o direito natural.Se quisermos ter uma idéia exata dasérie de leis positivas que só podememanar de sua vontade, vemos, emprimeira linha, as leis constitucionaisque se dividem em duas partes: umasregulam a organização e as funçõesdo corpo legislativo; as outras deter-minam a organização e as funções dosdiferentes corpos ativos. Essas leis são

chamadas de fundamentais não nosentido de que se podem tornar inde-pendentes da vontade nacional, masporque os corpos que existem e agempor elas não podem tocá-las. Em cadaparte a Constituição não é obra dopoder constituído, mas do poder cons-tituinte. Nenhuma espécie de poderdelegado pode mudar nada nas con-dições de sua delegação. É neste sen-tido que as leis constitucionais sãofundamentais. As primeiras, as queestabelecem a legislatura, são funda-das pela vontade nacional antes dequalquer constituição; formam seuprimeiro grau. As segundas devem serestabelecidas por uma vontade repre-sentativa especial. Deste modo todasas partes do governo dependem emúltima análise da Nação” (Sieyès 1988.p. 117/118).

A Nação é, assim, o sujeito do poder cons-tituinte originário. Ao contrário do gover-no, que não pode senão pertencer ao direitopositivo, a Nação é uma realidade de direi-to natural. Sua formação, sendo natural, nãopode estar submetida a nenhuma constitui-ção. É ela, ao contrário, que estabelece emuda as constituições, sem estar sujeita anenhuma regra anterior. Daí a anteriorida-de do poder constituinte originário a todosos poderes estabelecidos e a superioridadede suas decisões.

Para Carl Schmitt (1992, p. 59), “o cará-ter incondicionado do poder constituinteoriginário não se detém nem diante de suaprópria criatura, a Constituição; ele segueexistindo na Nação, sempre latente, nãosubordinando nunca sua existência políti-ca a uma formulação definitiva”.

Nos conceitos acima, se estabelece a di-ferença primordial entre o poder constitu-inte originário e os poderes constituídos. Ospoderes constituídos não existem senão den-tro do Estado: são inseparáveis de uma or-dem estatutária pré-estabelecida. O poderconstituinte originário, ao contrário, se si-tua fora do Estado; ele existe sem o Estado.

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A extensão de seus poderes, como já dito, éincondicionada: o poder constituinte origi-nário se caracteriza por uma liberdade to-tal. Juridicamente, essa independência seexpressa na idéia de que ele é um poder comcompetência total que nenhuma regra ante-rior, nem de fundo, nem de forma, pode su-jeitá-lo e que sendo a origem de todo orde-namento jurídico ele pode ab-rogar ou mo-dificar qualquer regra. A obra do poder cons-tituinte originário, a Constituição, não é con-dicionada assim de nenhuma maneira porqualquer regra suprapositiva superior a ela.

O poder constituinte derivado advém dopoder constituinte originário, que o insereno ordenamento jurídico prevendo a possi-bilidade evidente de se precisar adequá-lo.Decorre, pois, de uma regra jurídica contidana própria constituição, que lhe confere au-tenticidade e lhe impõe limitações implíci-tas e explícitas. Ou seja, o poder constituin-te derivado, ao contrário do poder constitu-inte originário, é, em sua essência mesmo,um poder limitado. É um poder de direito,regrado e limitado pelas normas constitucio-nais. Embora seja vontade política ainda emsentido amplo, já está condicionado por umaordem jurídica. Tem a prerrogativa de alte-rar a ordem constitucional vigente, segun-do os limites e procedimentos por ela previ-amente estabelecidos. Dessa forma, o poderrevisor, sendo um poder constituído, nãopoderia afastar-se do espectro que lhe foiimposto pelo poder constituinte originário.

3. Limites do PoderConstituinte Derivado

Antes de entrar nas limites propriamen-te ditos, são oportunas algumas considera-ções sobre os instrumentos de reforma cons-titucional.

Reforma constitucional é o gênero doqual revisão e emenda são espécies. A revi-são constitucional é um instrumento de re-forma utilizado para modificações maisamplas, que abrangem um conteúdo maisextenso. Já a emenda constitucional é utili-

zada para alterações menores, de âmbitomais restrito. São distintas tanto material(distinção no conteúdo) quanto formalmen-te (distinção na forma como são editadas).

A atual constituição brasileira consa-grou ambas as espécies de reforma, Porém,com uma restrição quanto à revisão consti-tucional.

A revisão, via extraordinária e transitó-ria, tem sua eventual aplicação quando rea-lizada a tarefa para a qual foi designada. AConstituição Federal de 1988 limitou a açãorevisional a uma única vez, a ocorrer cincoanos após sua promulgação. Encontra-seestabelecida nos arts 2o e 3o do ADCT danossa Constituição.

A emenda é a via permanente de refor-ma constitucional. Trata-se do instrumentode que dispõe a Constituição para adequar-se às mudanças pelas quais passa a socie-dade, mas sempre procurando deixar into-cado o sistema fundamental de valores daConstituição. É produzida segundo a for-ma e dentro dos limites previamente estabe-lecidos constitucionalmente, como será vis-to a seguir.

3.1. Limitações procedimentais

A grande maioria das Constituições es-tabelece regras específicas acerca do proce-dimento a ser seguido para modificação deseu texto por via institucional. A Constitui-ção brasileira de 1988 aponta as pessoas eórgãos que têm legitimidade para proporemenda constitucional, prevendo ainda: a)discussão e votação em cada Casa do Con-gresso, em dois turnos; b) aprovação medi-ante voto de três quintos dos membros decada Casa (art. 60, I, II, III e § 2o).

3.2. Limitações temporais

A doutrina reconhece também a existên-cia de limitações temporais que consistemna estipulação de um prazo mínimo após oinício da vigência da Constituição para queela possa ser objeto de reforma. Essa limita-ção visa protegê-la contra algumas tendên-cias vencidas na fase constituinte, bem como

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assegurar a permanência e a tradição dasnovas instituições criadas, a fim de que aordem posta possa consolidar-se.

3.3. Limitações circunstanciais

As limitações circunstanciais ao poderconstituinte derivado são aquelas restriçõesao momento da reforma constitucional emrazão de algumas circunstâncias especiais,presentes no Estado quando da tramitaçãodo processo de reforma ou revisão. A Cons-tituição brasileira fixa limitações circunstan-ciais ao prever que ela não poderá ser emen-dada na vigência de intervenção federal, deestado de defesa ou de estado de sítio (art.60, § 1o). Isso porque as medidas que podemser tomadas durante o estado de sítio ou dequalquer outra situação de emergência im-portam em calar a opinião pública ou limi-tar outros direitos individuais, pressupos-tos básicos de qualquer regime democrático- daí a inconveniência de mudanças consti-tucionais enquanto perdurar a suspensãode preceitos da Lei Maior.

Assim, pretende-se evitar alteração cons-titucional na ocorrência de certas situaçõeshistóricas, anormais e excepcionais, carac-terizando crise tal no País, que se presumanão estarem independentes os órgãos in-cumbidos da reforma. Trata-se de uma for-ma de garantir que as liberdades constituci-onais não serão ameaçadas, por não ser li-vre a manifestação do órgão reformador. Sãolimitações permanentes, possuindo eficáciasempre que se configurar a situação amea-çadora.

3.4. Limitações materiais implícitas

Limitações materiais implícitas são aque-las limitações decorrentes do sentido e doespírito do texto constitucional. Configuramas decisões constitucionais fundamentais,que não podem ser alteradas pelo poder dereforma constitucional. Trata-se de matéri-as concernentes à essência da Constituição,ao seu conteúdo ideológico, às finalidadesbásicas a que se propõe, e que, caso altera-das, constituiriam flagrante desrespeito ao

Estado Democrático de Direito. No que serefere à Constituição brasileira, essa distin-ção perdeu um certo sentido prático com aampliação das limitações materiais explíci-tas, que são as cláusulas pétreas. Mas ain-da subsiste uma limitação implícita relevan-te: o poder constituinte derivado não podealterar as regras relativas ao processo deedição da própria emenda.

3.5. Limitações materiais explícitas:as cláusulas pétreas

Conforme estabelecido acima, ao ladodas limitações formais (art. 60, I, II e III e §§2o, 3o e 5o) das limitações temporais e daslimitações circunstanciais (art. 60, § 1 o), exis-tem limitações de ordem material ao PoderConstituinte Reformador, estas últimas dis-postas no § 4o do art. 60 da Constituição -são as chamadas Cláusulas Pétreas.

O adjetivo pétrea vem de pedra, signifi-cando “petroso” e, no sentido figurativo,“duro como pedra”, “insensível”. Tem-se,pois, que, constitucionalmente falando,cláusula pétrea é aquela imodificável, irre-formável, insuscetível de mudança formal.Assim, cláusulas pétreas são cláusulas deirreformabilidade total ou parcial da Cons-tituição, em defesa da perenidade da obrado legislador constitucional. São limites fi-xados ao conteúdo ou substância de umareforma constitucional e que operam comoverdadeiras limitações ao exercício do Po-der constituinte derivado.

Trata-se de garantias ao próprio EstadoDemocrático de Direito, vez que pretendemassegurar a identidade ideológica da Cons-tituição, evitando a violação à sua integri-dade e a desnaturação de seus preceitos fun-damentais. Protegem, em verdade, seu nú-cleo intangível.

Têm efeito positivo, pois não podem seralteradas através do processo de revisão ouemenda, sendo intangíveis, logrando inci-dência imediata. Possuem, noutro prisma,efeito negativo pela sua força paralisante,absoluta e imediata, vedando qualquer leique pretenda contrariá-las.

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A denominação de “cláusulas pétreas”não é das melhores, porque ela enseja, pelomenos, um sentido pejorativo: a petrifica-ção. Petrificar uma Constituição jurídica ouparte dela representa o absurdo do imobi-lismo. Além disso, questionamos se umageração tem o direito de comprometer asgerações futuras com a imutabilidade.

Mais grave, ainda, tem sido a interpreta-ção literal e etimológica da palavra “pétrea”,como se resolvesse - de maneira simplória -vinculá-la à rigidez da matéria dos cristais,à sua dureza como uma pedra. A sabedoriapopular explica que mesmo pedra durapode ser furada pela água mole (água moleem pedra dura, tanto bate até que fura).

As Constituições modernas consagra-ram o princípio doutrinário da limitaçãomaterial do poder de revisão. Assim, expres-samente o adotam a Constituição francesade 1958 (art. 89, al. 5); a Constituição italia-na de 1947 (art. 139); A Lei Fundamental daRepública Alemã de 1949 (art. 79, al. 3); aConstituição da Venezuela de 1961 (art. 3o);Constituição da República portuguesa de1976 (art. 290); Constituição brasileira de1988 (art. 60, § 4o).

É de se lembrar que na Constituição Fe-deral de 1988 houve a manutenção de umnúcleo inalterável já existente no texto ante-rior. Hospedou-se não só uma das cláusu-las pétreas da constituição anterior (a refe-rente à Federação) como alargou-se consi-deravelmente o elenco das normas imodifi-cáveis (parte dos juristas entendendo queentre elas estaria também a própria Repú-blica, hospedada na imodificabilidade daseparação dos poderes e no sufrágio uni-versal para escolha dos governantes). Essenúcleo foi consideravelmente distendido,atribuindo-se tal extensão a fatores históri-cos, ideológicos e também à influência deci-siva de três grandes constitucionalistas por-tugueses, que visitaram o país durante os tra-balhos constituintes, trazendo a experiênciado processo constituinte português, a saber:J. J. Canotilho, Jorge Miranda e Marcelo Rebelode Souza. (MARTINS, 1997, p. 110)

O princípio norteador do estabelecimen-to de cláusulas pétreas na Constituição é aidéia de que não pode haver um aniquila-mento da obra constitucional por parte dopoder de reforma. Uma reforma constitucio-nal não poderia jamais ser neutra em rela-ção aos valores da Constituição. Ela deve-ria, ao contrário, ser parcial no sentido degarantir e proteger a Constituição que a pre-viu. Uma Constituição não poderia forne-cer um método legal para abolição de suaprópria legalidade, e muito menos, um meiolegítimo de destruição de sua própria legiti-midade.

As cláusulas pétreas da Constituiçãobrasileira de 1988 estão disciplinadas no art.60, § 4o, que dispõe:

“Art. 60 - ............§ 4o - Não será objeto de delibera-

ção a proposta de emenda tendente aabolir:

I - a forma federativa do Estado;II - o voto direto, secreto, universal

e periódico;III - a separação de poderes;IV - os direitos e garantias indivi-

duais”.

4. Cláusulas Pétreas x Democracia

Na aparência, as distinções e os limitesabordados acima parecem claros. Na práti-ca, porém, eles encerram pelo menos doisproblemas. Um deles é político e está asso-ciado à compatibilidade da rigidez consti-tucional, expressa sob a forma das cláusu-las pétreas, com a própria essência da de-mocracia.

Aceitar as cláusulas pétreas significaaceitar que o Poder Constituinte Reforma-dor terá que respeitar aquelas diretrizes tra-çadas pelo Poder Constituinte Originário,instituindo-se uma generalizada ditaduraconstitucional. Assim, o velho autoritarismogovernativo se transformaria numa formaainda mais perversa: a de um autoritarismonormativo, na expressão de Miguel Reale.(NETO, 1999, p. 08)

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Em termos políticos, uma constituiçãorepresenta sempre um limite decisório à von-tade popular. Para que determinadas liber-dades sejam consagração, ela impõe deter-minadas restrições. Ou seja: cria direitos eobrigações. Assim, promulgar uma Consti-tuição significa limitar a liberdade da maio-ria em cada momento histórico.

No âmbito político, destarte, o problemaé saber até que ponto as normas constitucio-nais referentes aos limites materiais de revi-são não se traduzem em prejuízo do princí-pio da regra de maioria que caracteriza ademocracia. Surgem então as seguintes ques-tões: em que medida um poder constituinteoriginário pode impor ad eternitates umavontade democrática para o futuro? A limita-ção na liberdade de revisão prevista por umacláusula pétrea por vezes não se revelariauma medida antidemocrática, restringindo ocampo de ação de maiorias parlamentareslegitimamente escolhidas em cada eleição?

A importância de mecanismos institucio-nais de controle das maiorias parece estardiretamente relacionada com os níveis desubmissão voluntária de cada sociedadeaos valores da tolerância e da democracia.Em muitos sistemas as regras de sociabili-dade ou o consenso são tão fortes, que dis-pensam instituições artificiais voltadas arestringir a vontade da maioria. Porém, parapaíses onde os confrontos entre maiorias eminorias são muito intensos ou com fortestradições autoritárias, como é o caso doBrasil, a rigidez constitucional pareceessencial para preservar direitos e garantira regra democrática.

Nesses países de constituições rígidas,cabe ao Judiciário, ou a uma Corte Constitu-cional em particular, contrastar os atos doparlamento face à Constituição. Em caso deconflito, prevalece a norma constitucional.Assim, o único remédio para derrubar a de-cisão judicial que declarou inconstitucionaluma decisão parlamentar é emendar a Cons-tituição. Para o que é necessário um quo-rum diferenciado, variando o grau de difi-culdade de país a país. Quanto mais difícil

for alterar a Constituição, mais constitucio-nais e menos majoritários serão esses regi-mes. Estabelece-se assim um jogo de poderdifícil de equilibrar.

A Constituição brasileira, embora exijaapenas três quintos dos parlamentares paraque seja alterada, impôs limitações quaseintransponíveis ao Congresso Nacional, porintermédio das cláusulas pétreas. Como vis-to, quanto à federação, à separação de po-deres, ao voto direto, secreto e universal eaos direitos e garantias individuais, não éautorizado sequer propor emenda tendentea aboli-los. Ao impor essas limitações àsgerações futuras o constituinte demonstroua sua mais absoluta desconfiança no siste-ma político que estava sendo produzido.

Assim, além de ter que se defrontar como Supremo Tribunal Federal cada vez queum dos seus atos é declarado inconstitucio-nal, o que tem ocorrido com certa freqüên-cia, o Congresso percebe agora que em algu-mas circunstâncias não terá como reagir. Emface desta situação as perguntas inevitáveissão: o que justifica, dentro de uma perspec-tiva democrática, que o passado possa blo-quear o futuro, por intermédio das cláusu-las pétreas? E mais, em que medida a fun-ção de custodiar as gerações futuras deveser entregue a um órgão, sem legitimidadedemocrática, como o Supremo TribunalFederal?

Este é um tema muito polêmico, porquedele depende, de um ângulo, a necessidade,ou o desejo referente à estabilidade e à segu-rança jurídica, à garantia (utópica) de per-manência de um ordenamento jurídico, ne-cessidade essa vinculada à idéia ancestralde que as leis devem ser eternas, e por outroângulo, aparentemente inconciliável, a idéiade representatividade popular e de legiti-midade democrática das decisões fundado-ras do Estado.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federalestá se transformando em uma constituintepermanente, sem que tenha qualquer legiti-midade para isso. Afinal, suprema deve sera Constituição. Os Poderes Constituídos

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devem ser independentes e harmônicos,exatamente para que se evite a tirania, se-gundo as idéias definitivamente sistemati-zadas por Montesquieu. Somente o povo étitular do poder constituinte.

Resta, evidenciada aqui, a permanentecontradição entre o poder constituinte origi-nário, que outorga ao povo o direito de alterara Constituição, e a vocação de permanênciadesta, que repugna mudanças substanciais(Cf., sobre o assunto, MIRANDA, vol. II, págs.151 ss.).

5. Cláusulas Pétreas xGerações Futuras

O outro problema trazido pelas cláusu-las pétreas e decorrente do anterior é de na-tureza ética e tem implicações para as gera-ções vindouras. E ele se expressa sob a for-ma de um paradoxo. Do ponto de vista dopoder constituinte originário, a maioria queelabora, aprova e promulga uma Constitui-ção propõe um corte jurídico com o passa-do, ao mesmo tempo em que se arvora o di-reito de poder vincular o futuro. Porém, ape-sar de democrática no momento de sua pro-mulgação, pergunta-se: uma constituiçãopode, por intermédio de cláusulas pétreas,bloquear a capacidade de autodetermina-ção jurídica das gerações futuras?

A existência e vigência das cláusulaspétreas constitui obstáculo à livre manifes-tação da soberania popular. É de ser maisuma vez indagado, desde quando ou baseadaem quais princípios jusfilosóficos foi deferi-da a uma geração constituinte condicionaras preferências políticas das gerações pos-teriores; com freqüência gerações demuitas décadas depois. Tal providência,instituindo cláusulas imutáveis numa Cons-tituição que pretende disciplinar a vida deuma sociedade pelas décadas ou séculosseguintes, se afigura como um “abuso depoder constituinte”. Não podendo, portan-to, prevalecer em face do Direito.

Na medida em que as cláusulas pétreasengessam o pensamento político das gera-

ções que se lhes seguem, pela sua imutabili-dade e imodificabilidade, e considerandoque tais gerações poderão num determina-do momento futuro não mais se conformaraos valores expressos em cláusulas pétreasestabelecidas por gerações anteriores, issoconduz à ruptura constitucional, ou seja,tais cláusulas só poderão ser extintas, mo-dificadas ou substituídas através de umanova Constituição. Logo, conceitualmente,se propelem à ruptura, as cláusulas pétreassignificam um obstáculo natural e concei-tual à perenidade constitucional!

Conforme menciona Celso Ribeiro Bastos(Bastos, 1998, p. 81), o argentino Vanossiestá entre os juristas que repudiam as cláu-sulas pétreas, por entendê-las “inúteis e atécontraproducentes”. Vanossi elenca umasérie de argumentos contrários às mesmas,a saber:

“A função essencial do poder refor-mador é a de evitar o surgimento deum poder constituinte revolucionárioe, paradoxalmente, as cláusulas pé-treas fazem desaparecer essa função;b) elas não conseguem se manter alémdos tempos normais e fracassam nostempos de crise, sendo incapazes desuperar as eventualidades criticas; c)trata de um ‘renascimento’ do direitonatural perante o positivismo jurídi-co; d) antes de ser um problema jurí-dico, é uma questão de crença, a qualnão deve servir de fundamento paraobstaculizar os reformadores consti-tuintes futuros. Cada geração deve serartífice de seu próprio destino.”

Menciona, ainda, como contrário à exis-tência de cláusulas pétreas, o juristaBisciretti,com o seguinte argumento:

“Admite-se que um Estado podedecidir sua própria extinção: ‘não secompreende porque o Estado não po-deria, então, modificar igualmente emforma substancial seu próprio orde-namento supremo, ou seja, sua pró-pria Constituição, ainda atuando sem-pre no âmbito do direito vigente’”.

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Das trinta e seis mais antigas democra-cias hoje existentes, apenas quatro, Ingla-terra, Nova Zelândia, Israel e Islândia, dis-pensam uma Constituição rígida, que esta-beleça limites às decisões tomadas pelamaioria parlamentar. Nessas democraciasmajoritárias o legislativo tudo pode, nãohavendo qualquer espaço para que os tri-bunais bloqueiem a vontade da maioria dosparlamentares.

No Brasil, segundo Yves Gandra (MAR-TINS, 1997, p. 111)

“ao pretender imutáveis determina-das cláusulas, normas, princípios ouideologias, o constituinte impõe suainalterabilidade, não permitindo queos poderes constituídos, que poderãose tornar poderes constituintes de-rivados, venham, quanto àquelascláusulas, a exercer seu poder legife-rante”.

Ao assim agirem, todavia, esquecem quea história da raça humana muda em veloci-dade crescente e as conjunturas tendem a semodificar com celeridade cada vez maior,exigindo novos refreamentos, impondo no-vos desafios que não podem ficar amarra-dos por legisladores sem visão antecipató-ria. O certo é que o predomínio das corren-tes ideológicas de esquerda, de um lado, e oreceio de um retorno a um Estado menosdemocrático, de outro, levou o constituintebrasileiro a alargar a imodificabilidade daConstituição, muito além do exemplo por-tuguês que o inspirou, e muito além do queseria ideal para que uma Constituição pu-desse estar sempre adaptada ou viesse a seradaptável às circunstâncias históricas.

6. Cláusulas Pétreas xTransformações da Economia

Quando a Constituição brasileira foi fei-ta, em 1988, o mundo estava dividido entreos blocos capitalista e comunista. “Com aqueda dos fatores ideológicos, o campo dadisputa mudou-se para o comercial”, expli-ca Bernardo Cabral, relator da Constituinte.

Vive-se atualmente uma época marcadapor concentração de renda e desigualdadesno acesso a benefícios públicos, no planosocial, e pela concentração do poder empre-sarial e independência global dos mercadosfinanceiros, no plano econômico. Nesse con-texto, que papel uma Constituição deve exer-cer?

Não é difícil ver como o potencial de efi-cácia de Constituições extensas e programá-ticas, como a constituição brasileira de 1988,vem diminuindo, à luz da intensificação dosfluxos econômicos transnacionais e da des-territorialização das novas formas de pro-dução. Ao exigir formas e procedimentosjurídicos mais flexíveis, a integração dosmercados e a formação de blocos comerci-ais reduziram o alcance dos poderes legis-lativo, administrativo e judicial, antes con-siderados exclusivos dos Estados, e diluí-ram a soberania nacional numa rede de fo-ros internacionais e organismos multilate-rais. Com isso, as regras daí advindas pas-saram a coexistir com as normas constitucio-nais, competindo entre si em diferentes âm-bitos de validez material, espacial e tempo-ral e obrigando os governos a rever seus or-denamentos jurídicos, para harmonizá-las.

Na dinâmica desse processo, fortementedeterminado pelas relações de poder inte-restatais assimétricas que caracterizam aintegração econômica mundial, o papel daConstituição como “lei das leis” perdeu sen-tido. À medida que a exclusividade do Di-reito foi posta em xeque e mercados globali-zados e organismos multilaterais passam acriar as normas de que necessitam, a Cons-tituição está numa encruzilhada. Como ig-norar processos econômicos e políticos quetranscendem os limites do território por elacoberto, mas comprometem a aplicabilida-de e a eficácia de suas normas?

A partir daí, as Constituições têm sidosubmetidas a reformas ainda mais amplas,com o expurgo de normas rígidas, a relativi-zação dos limites materiais de revisão e ouso de regras mais abertas, ficando sua in-terpretação condicionada pelas circunstân-

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cias do momento, a partir dos interesses emconflito e da capacidade de negociação decada geração.

Na verdade, as constituições analíticasduram pouco. Quando não modificadaspelo próprio povo ou pelos governantes, atra-vés dos processos nela previstos ou por rup-turas institucionais, ou não são aplicadas(como ocorre com a constituição brasileira,como é o caso do dispositivo que estabeleceo salário mínimo, por exemplo) ou são rea-daptadas pelo poder criador da jurisprudên-cia, que, devendo apenas captar a interpre-tação correta das normas postas, muitasvezes modifica-as para adaptá-las às con-junturas imprevistas pelos legisladores an-teriores (cf. MARTINS, 1997, p. 112)

O excesso de rigidez da ordem constitu-cional, ao negar ao governo liberdade paragestão de pessoal, preservaria “direitos maladquiridos” por corporações estatais, com-prometendo a austeridade fiscal e desesta-bilizando a moeda. Daí a necessidade dereforma constitucional.

A globalização, com conseqüente inter-nacionalização da oferta de crédito e aumen-to da volatilidade dos capitais, levou osmercados a substituírem a política comoinstância de regulação social. Assim, a ex-clusividade das estruturas jurídicas do Es-tado foi posta em xeque, as margens de au-tonomia das políticas macroeconômicasnacionais foram reduzidas e as políticasmonetárias independentes foram esvazia-das. Em princípio, qualquer governo pode-ria recusar-se a vincular suas decisões aosimperativos dos mercados globalizados,para preservar a independência na defini-ção de sua agenda política. Porém, isso le-varia a um isolamento financeiro, tecnoló-gico e comercial, em face da crescente mobi-lidade dos fatores de produção, dos riscosde fuga em massa de capitais e das dificul-dades de acesso a fontes de crédito.

Diante disso, os governos aprenderamque ou assumiam os compromissos fiscaise monetários pedidos pelos mercados, pro-movendo reformas estruturais para garan-

tir crédito, ou as incertezas decorrentes desuas dificuldades de ação em matéria deausteridade fiscal e estabilidade monetáriaintroduziriam novos fatores de risco nosnegócios, aumentando os spreads bancáriose desestimulando investimentos de longoprazo. Foi isso que os levou a reformar suainfra-estrutura legal, formulando ambicio-sos projetos de desconstitucionalização(aqui entendida como o processo de trans-ferência da matéria para a legislação infra-constitucional) para revogar vinculaçõesorçamentárias, anular cláusulas pétreas,suprimir direitos adquiridos e, desta forma,assegurar a confiança dos mercados.

No caso do Brasil, pode-se citar o exem-plo ocorrido com a instituição do IPMF.Numa primeira abordagem a Suprema Cor-te entendeu que a emenda constitucional quecriara o IPMF feria cláusula pétrea, sendo,portanto, inconstitucional. Entretanto,quando o governo demonstrou que semaquele tributo não fecharia o orçamento de1994, com risco inclusive de não pagar osservidores públicos, o Superior TribunalFederal reinterpretou a emenda conside-rando-a constitucional em segundo julga-mento.

O problema aqui é o das contradiçõesque envolvem a segurança do direito. Afi-nal, os mercados que apóiam as estratégiasde desconstitucionalização de alguns direi-tos são os mesmos que também reivindicamuma infra-estrutura legal que preserve o di-reito de propriedade, assegure o cumprimen-to de contratos, proteja investimentos exter-nos e garanta o reconhecimento de paten-tes, pagamento de royalties, etc. E o argu-mento para justificar essa pretensão é o deque a insegurança do direito gera um ambi-ente adverso aos negócios e aumenta os cus-tos das transações, como decorrência de seuimpacto negativo no desempenho das em-presas, na proteção legal dos créditos, nadefinição da propriedade material ou inte-lectual e na captação de investimentos delongo prazo, pondo em risco a qualidadedas políticas macroeconômicas.

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Do ponto de vista jurídico-formal talveznão haja solução passível de consenso paraconciliar juristas e financistas, o que nãodeixa outra saída a não ser a negociaçãopolítica. Só por meio dessa negociação, den-tro de regras democráticas, é que se conse-guirá neutralizar o tratamento contraditó-rio que os mercados têm dado à segurançalegal, enfrentar o problema dos direitos queforam adquiridos em outros períodos histó-ricos e assegurar uma ordem jurídica queseja respeitada e eficaz.

Assim, o campo de realização das políti-cas públicas pode ser deslocado para o âm-bito da legislação ordinária, cujos critériosde revisão são mais simples do que os deum texto constitucional. É esse processo quealguns autores chamam de “poder consti-tuinte evolutivo”.

Privada assim de sua função unificado-ra, a Constituição perde o caráter de textointocável, não conseguindo mais dotar suasnormas de um significado concreto deter-minado a priori. Pelo contrário, no atual con-texto de policentrismo decisório, esse signi-ficado agora só pode ser determinado aposteriori, em função das tensões e dilemasadvindos da complexidade socioeconômi-ca do mundo contemporâneo. Em outras pa-lavras, no lugar do caráter fechado, unívo-co e predeterminado das normas constitu-cionais e da idéia que o poder constituinteoriginário se extinguiria no ato unigênitode produção da Constituição está surgindoum direito constitucional novo, fundadosobre um conjunto de matérias normativasflexíveis, permitindo a adaptação do textoconstitucional à conjuntura econômica.

7. A idéia de um PoderConstituinte Evolutivo

Como resolver as questões acima e esca-par desse paradoxo, principalmente quan-do se trata de uma Constituição excessiva-mente marcada pela conjuntura de origem,como a brasileira? Uma saída polêmica, masplausível, contrapõe a idéia do poder cons-

tituinte originário como ato unigênito e uni-momentâneo à idéia de um poder constitu-inte evolutivo, apto a acompanhar a dinâ-mica da realidade socioeconômica sem sub-jugar as atuais gerações a determinações dopassado.

Essa foi a experiência portuguesa, cujaConstituição de 1976, repleta de cláusulaspétreas, já sofreu quatro revisões. Como foiisso possível? A resposta é dada por VitalMoreira, o jurista que, como constituinte,tanto lutou para dar um caráter dirigente eideologicamente comprometido ao textoconstitucional de 1976, tendo sido, 21 anosdepois, o responsável por sua quarta revi-são. Por um lado, diz ele, passou-se a pro-mover uma interpretação “afrouxada” dascláusulas pétreas, reduzindo-as mais à sal-vaguarda de princípios genéricos do que àgarantia de direitos concretos asseguradospor uma Constituição eminentemente con-juntural. Por outro, passou-se a admitir commaior flexibilidade a revisão dos próprioslimites materiais de revisão, suavizando al-guns dos limites originários, o que libertoupara futuras revisões matérias que de outromodo não poderiam ser sequer alteradas.

O renomado Professor Jorge Miranda, ca-tedrático da Universidade Católica de Por-tugal e da Universidade de Lisboa, já temproposto uma revisão periódica das cláu-sulas pétreas na Constituição portuguesa, eem qualquer outra Constituição que as te-nha. Com o que há que se concordar, inte-gralmente: se é preciso dar um mínimo deestabilidade às Constituições, é igualmentepreciso não condicionar o pensamento po-lítico das gerações que se seguem à feiturade uma Constituição; a revisão periódicaseria um meio efetivo de manifestação desoberania popular, e uma homenagem àobservância e reafirmação do princípio de-mocrático.

Isso elimina a arrogância e a soberba depensar que os constituintes sempre estãonum momento singular da história e dis-põem de legitimidade para disciplinar paratodo o futuro as maiorias democráticas, sub-

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traindo-lhes a liberdade pelo recurso às clá-usulas pétreas.

Um debate preliminar envolve a possi-bilidade ou não de invocação do direito ad-quirido contra emendas constitucionais.Para uns, a proteção ao direito adquirido éuma garantia individual que se dirige tantoao legislador ordinário quanto ao constitu-inte derivado. Nem mesmo por emenda cons-titucional poderia ser atingido um direitoadquirido que ingressou regularmente nopatrimônio jurídico de seu titular. Para ou-tros, todavia, os Princípios da Supremacia eda Unidade da Constituição induziriamuma interpretação menos enrijecida, permi-tindo que uma emenda possa atingir o di-reito adquirido concreto das pessoas a fimde que o modelo constitucional sobre deter-minada matéria possa ter validez e eficácia.Ou seja, para que a evolução política, eco-nômica e social de um povo possa refletir-sena ordem constitucional através da preser-vação do poder de reforma. Em suma, paraque os interesses coletivos da Nação pos-sam se impor.

Trata-se de conciliar os valores de pere-nidade do núcleo de princípios fundamen-tais da Constituição com a necessária adap-tação à evolução da sociedade. Mais queisso, trata-se de abrir espaço para a revisãopela via da reforma, sob pena de tornar im-periosa a ruptura constitucional quando ohiato entre a Constituição e a nova realida-de se tornar insustentável. Nas palavras deGilmar Ferreira Mendes (in “Moreira Alvese o Controle de Constitucionalidade noBrasil”, São Paulo, Celso Bastos Editora,2000, p. 125 e 128): 

“Aí reside o grande desafio da ju-risdição constitucional: não permitira eliminação do núcleo essencial daConstituição, mediante decisão ougradual processo de erosão, nemensejar que uma interpretação ortodo-xa acabe por colocar a ruptura comoalternativa à impossibilidade de umdesenvolvimento constitucionallegítimo.”

O Deputado Maurício Rands, em seu re-latório sobre a Proposta de Emenda à Cons-tituição no 40/2003, que trata da reforma daPrevidência proposta pelo atual governo,aborda com muita propriedade a questãoda rigidez constitucional. Diz o relatório:

“2.1. A tese do Direito Adquirido(...)A relação do Poder e de seus diri-

gentes com a Constituição há de ser,necessariamente, uma relação de res-peito. Se em determinado momentohistórico circunstâncias de fato ou dedireito reclamarem a alteração daConstituição, em ordem a conferir-lheum sentido de maior contemporanei-dade, para ajustá-la às novas exigênciasditadas por necessidades políticas, so-ciais ou econômicas, impor-se-á a pré-via modificação do texto da Lei Funda-mental, com estrita observância das li-mitações e do processo de reforma es-tabelecidos na própria Carta Política.”

Não podendo mais ser pensada comoum centro do que tudo deriva por irradia-ção lógico-formal, alicerçado na soberaniado Estado, a Constituição contemporânea éagora um centro para o qual algumas maté-rias fundamentais podem afluir; é antes umcentro a alcançar do que um centro do qualse deve partir. Numa situação-limite, é umcentro de convergência de valores em cujoâmbito só teriam caráter absoluto duas exi-gências: a) em termos substantivos, os direi-tos de cidadania e o pluralismo ideológico,protegidos por mecanismos capazes de pre-servar as liberdades públicas; b) em termosprocedimentais, as garantias para que o jogodemocrático seja travado dentro de regrasprecisas, mas despidas de prescrições ex-tensivas.

A Constituição perde o caráter de textointocável, não conseguindo mais dotar suasnormas de um significado concreto deter-minado a priori. Pelo contrário, no atualcontexto de policentrismo decisório, essesignificado agora só pode ser determinadoa posteriori, em função das tensões e dilemas

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advindos da complexidade socioeconômi-ca do mundo contemporâneo. Em outraspalavras, no lugar do caráter fechado, uní-voco e predeterminado das normas consti-tucionais e da idéia que o poder constituin-te originário se extinguiria no ato unigênitode produção da Constituição está surgindoum direito constitucional novo, fundadosobre um conjunto de matérias normativasflexíveis, permitindo a adaptação do textoconstitucional às novas conjunturas econô-mica, social e política.

Confrontadas, de um lado, com a neces-sidade política de serem alteradas e, de ou-tro, com o hibridismo paradoxalmente an-tagônico do modelo rígido-analítico - sem-pre formal e cuidadosamente implantado,explícita ou implicitamente -, as constitui-ções contemporâneas desse tipo, nelas in-cluída a brasileira de 1988, passaram a sus-citar dramáticos dilemas políticos cuja so-lução oscila entre os extremos lógicos daindisputada obediência positivista aos es-quemas inflexíveis de reforma implantados- nesse caso sempre com o risco de aluir seusfundamentos de legitimidade pelo rompi-mento formal do sistema, com todas as se-qüelas e os inconvenientes de insegurançajurídica decorrentes -, e a busca de soluçõescriativas além da ortodoxia positivista, ca-minho o que veio a prevalecer.

Doutrinariamente, o problema passavaentão a se situar não no valor absoluto dequalquer cláusula pétrea, explícita ou im-plícita que fosse, mas na verificação da pos-sibilidade de encontrar-se uma forma deevolução que conciliasse a preservação daidentidade constitucional originária com alegitimidade corrente. Em outras palavras:o conceito de rigidez havia evoluído do seuprístino mas limitado sentido formal parapassar a ser entendido como uma técnicasubstantiva de estabilidade, voltada à ma-nutenção da identidade constitucional, ali-ando, necessária e indissoluvelmente, a le-galidade à legitimidade, assim, revestindoum denso sentido material. Em conseqüên-cia, não são nem poderão ser consideradas

cláusulas pétreas as que imponham limitesmeramente formais, ou seja, as que não por-tam valores e, por isso, não apresentem refe-rencial direto com a legitimidade, inextricá-vel da identidade constitucional, esta sim, aser protegida.

Acerca do tema, afirma Paulo Bonavides:“A imutabilidade constitucional,

tese absurda, colide com a vida, que émudança, movimento, renovação, pro-gresso, rotatividade. Adotá-la equiva-leria a cerrar todos os caminhos à re-forma pacífica do sistema político,entregando à revolução e ao golpe deestado a solução das crises. A força ea violência, tomadas assim por árbi-tro das refregas constitucionais, fari-am cedo o descrédito da lei funda-mental.” (BONAVIDES, 1998, p. 173)

Também Paulo Bonavides cita um dosjuristas avessos à imposição de limites aopoder reformador. Trata-se de Laferrièrre,que assim entende:

“(...) o poder constituinte exercita-do num determinado momento não ésuperior ao poder constituinte que seexercerá no futuro e não pode preten-dei restringi-lo, ainda que seja numdeterminado ponto (....)”. (BONAVI-DES, 1998, p. 178)

Tendo em vista as considerações anterio-res, e possíveis reflexões sobre o que aguar-da os cidadãos brasileiros como reivindica-ção ao constitucionalismo do futuro que bateàs portas, parece problemático à consciên-cia jurídica conformar-se com a existênciade cláusulas pétreas: tal presença em umTexto Constitucional, como já visto, descon-firma a soberania popular, e contraria to-dos os postulados gerais que o próprio prin-cípio democrático encerra.

8. Conclusão

Constituições, como qualquer obra hu-mana, não são perfeitas nem definitivas.Embora aspirem à permanência, sem a qualnão têm como conferir segurança e estabili-

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dade às organizações políticas, suportamdefeitos e não estão imunes à ação do tem-po. Por isso, podem e devem ser aperfeiçoa-das e atualizadas, pelo menos na medidaem que reformá-las seja condição necessá-ria para mantê-las vigentes.

O ordenamento jurídico do Estado devesempre preservar dois valores fundamen-tais: a justiça e a segurança das relações so-ciais. Ora um, ora outro, desses valores édominante, dependendo das circunstânciase das relações de que tratam. Se uma deter-minada disposição constitucional não estámais cumprindo aquele papel para o qualfoi criada, ou o está fazendo de forma im-perfeita, urge que seja substituída poroutra mais adequada à realidade social eque amplie as garantias ou renove a insti-tuição ineficaz.

De que maneira o constituinte derivadopode fazê-lo? Os direitos, liberdades e garan-tias individuais são decisões constitucionaisfundamentais tomadas pelo constituinteoriginário. Deve-se considerar que quandose assegura ao poder constituinte derivado,simplesmente com base em consideraçõesde interesses circunstanciais do Estado, afaculdade de promulgar emendas constitu-cionais que podem modificar valores ante-riormente estabelecidos como cláusulas pé-treas, na realidade o que se estaria inserin-do na ordem social seria um possível ele-mento de intranqüilidade.

Eis aí a essência da questão. Na demo-cracia, a segurança do direito ou vale paratodos, indistintamente, ou a dualidade detratamentos põe em risco a legitimidade dopróprio regime democrático. Por isso, dian-te desse desafio, o importante é não se dei-xar levar pelos argumentos daqueles paraquem direitos adquiridos são “prerrogati-vas históricas pertencentes à sociedade”;nem por quem defende a supressão de di-reitos a qualquer preço, em nome de umasuposta defesa da moralidade, com o atro-pelo do processo legislativo definido peloartigo 60 da Constituição. É, sim, trazer odebate para uma questão preliminar – a

adequação da ordem constitucional às rea-lidades econômicas, sociais e políticas doPaís, por meios democráticos.

Como se percebe, “somente um entendi-mento racional, flexível e autenticamente de-mocrático do poder popular de reforma cons-titucional permite conciliar princípio e pre-ceito, tradição e modernidade, evolução polí-tica e segurança jurídica, permanente e con-tingente; numa síntese, a legalidade com legi-timidade, pois nenhuma Constituição pode-rá ser boa e servir a uma Nação se lhe faltaruma dessas qualidades.” (NETO, 1999, p. 11)

Não poderão ser o conservadorismo cor-porativista, o positivismo renitente ou o imo-bilismo receoso causa da perda da capaci-dade reflexiva da Constituição e, a pretextode defender o pétreo, motivo para petrificá-la. O direito é dinâmico, deve evoluir con-forme evolui a sociedade. É dever do Estadoatender aos anseios sociais, e, neste intuito,também a constituição deve adequar-se àrealidade que a cerca e às necessidades con-cretas de seus súditos.

No futuro, o Estado terá que se readap-tar para desafios não previstos nem pelospolíticos nem pelos juristas de agora. A teo-ria do direito constitucional está em plenamudança e essa mudança implicará a des-valorização das normas imodificáveis deespectro amplo, em prol de outras estrutu-ralmente imodificáveis, ou seja, as cláusu-las serão pétreas por integrarem o núcleoessencial e imodificável da Constituição, enão por uma disposição formal. A mudan-ça é característica do próprio homem. Ahumanidade se aproxima novamente dasconstituições sintéticas, permanentementeadaptáveis às conjunturas, por força de seuconteúdo nitidamente principiológico. OBrasil não ficará à margem do movimento,que pode ser julgado irreversível.

Referências

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1. IntroduçãoUm dos temas mais instigantes da dog-

mática processual hodierna consiste na va-lidade e sustentação de decisões judiciaisdefinitivas que apresentam contornos deinconstitucionalidade. Refere-se, nessa ve-reda, a pronunciamentos jurisdicionais nãomais passíveis de serem vergastados porrecursos ordinários ou excepcionais e queadquirem caráter de definitividade ao vesti-rem o manto da coisa julgada material.

Neste trabalho, por intermédio da revi-são da bibliografia existente sobre o tema,bem assim da análise da evolução jurispru-dencial, discutem-se as condições, hipóte-ses e alternativas existentes para o aperfei-çoamento normativo da questão. Buscam-se respostas para o nível desejável de flexi-bilização da coisa julgada que apresentavícios de inconstitucionalidade, por meio docontraponto entre a segurança jurídica, de

Eduardo Andres Ferreira Rodriguez é Ad-vogado e engenheiro, atual Consultor de Or-çamentos do Senado Federal, ex-Analista deFinanças e Controle.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realizadopela Universidade do Legislativo Brasileiro –UNILEGIS e Universidade Federal do Mato Gros-so do Sul – UFMS como requisito para obtençãodo título de Especialista em Direito Legislativo.Orientador: Prof. PAULO FERNANDO MOHNE SOUZA.

Coisa julgada inconstitucional

Eduardo Andres Ferreira Rodriguez

1.Introdução; 2. Hipóteses fáticas de coisajulgada inconstitucional; 3. Princípios nortea-dores do sistema jurídico nacional; 3.1. Equilí-brio entre os Poderes constituídos; 3.2. Consti-tucionalidade; 3.3. Razoabilidade; 3.4. Segu-rança jurídica; 3.5. Isonomia; 3.6. Instrumenta-lidade do processo; 4. Instituto da coisa julga-da; 4.1. Modalidades da coisa julgada; 4.2. Coi-sa julgada na Constituição Federal; 4.3. Coisajulgada na legislação ordinária; 5. Ponderaçõessistemáticas sobre a matéria; 6. Conclusão.

Sumário

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um lado, e a justiça e adequação das deci-sões à Constituição Federal, de outro.

A questão coloca-se sob diversos mati-zes e proporciona múltiplas abordagensmetodológicas. In limine, convém ressaltarque a tradição processual pátria, ampla-mente orientada pela tradição romano-ger-mânica, atribui ao instituto da coisa julga-da uma natureza quase absoluta, estandodisseminadas no meio jurídico expressõescomo “a coisa julgada faz preto do branco”e torna “redondo o que era quadrado”, cor-respondentes a remotos adágios romanoscomo “res judicata facit de albo nigrum” ou,em outros termos, “falsum in verum” . É tare-fa singela diferenciar a forma de tratamentoconferida ao tema entre os pretórios nacio-nais e a jurisprudência anglo-saxã, substan-cialmente mais permeável a avaliações maiscríticas acerca dos efeitos provenientes daautoridade da coisa julgada.

Tem-se claro, nos dias atuais, diante damultiplicidade de hipóteses e situações liti-giosas passíveis de serem levadas à apreci-ação do Poder Judiciário e do crescente ci-poal de processos em tramitação em todosos graus de jurisdição, que as possibilida-des de decisões injustas e infringentes dosditames constitucionais são significativas.O sistema recursal, prejudicado pela análi-se muitas vezes perfunctória das questõestrazidas aos autos, imposta para se dispo-nibilizar uma tutela menos tardia aos juris-dicionados, por vezes se mostra pouco efi-caz na desconstituição desses pronuncia-mentos judiciais.

Há variadas situações em que se impõeuma discussão doutrinária e jurispruden-cial acerca da mantença da decisão judicialposta em dúvida diante da Lei Maior. Amais evidente delas é aquela fundamenta-da em dispositivo de lei fulminado de in-constitucionalidade pelo Pretório Excelso,após o trânsito em julgado da decisão. Casodiametralmente oposto é a decisão judicialem que o magistrado, ao motivar o decisum,afasta a incidência de determinada norma,por suposta inconstitucionalidade, e, após,

sobrevem decisão do Supremo Tribunalconfirmando a constitucionalidade da nor-ma. Essas são hipóteses em que a análiseapresenta enfoque objetivo, pautada na hie-rarquia funcional das decisões judiciais.

Não se pode desconsiderar, sem embar-go, a existência de inúmeras outras possibi-lidades de confronto direto entre a resiudicata e regras ou princípios constitucio-nais, sem que haja participação da Supre-ma Corte na definição do direito constituci-onal aplicável. Inegavelmente, esses casosprojetam uma carga superior de subjetivi-dade, sendo de muito maior complexidadea definição, de lege ferenda, do grau desejá-vel de eventual flexibilização da autorida-de da coisa julgada.

2. Hipóteses fáticas de coisajulgada inconstitucional

Algumas possibilidades já são bastanteexploradas pelos autores que se enveredampelo tema. Caso clássico é o do servidor pú-blico que obtém determinada vantagem pe-cuniária na Justiça e, uma vez transitadaem julgado a decisão, está assegurado seudireito de forma definitiva. Um colega seu,exercente do mesmo cargo e função e com omesmo tempo de serviço público, vai ao Ju-diciário colimando a obtenção da mesmavantagem, porém, distribuída sua causa aoutro magistrado, tem negada essa preten-são, em decisão que também transita em jul-gado. Entre a primeira e a segunda decisãojudicial definitiva, o Supremo Tribunal Fe-deral pronuncia-se pela inconstitucionali-dade da vantagem pecuniária.

Cria-se, pois, um fato de grande perple-xidade, eis que servidores na mesma situa-ção jurídica perceberão diferentes remune-rações apenas em decorrência da atuaçãodo Estado-Juiz.

A noção prevalente de justiça não é ob-servada no caso citado quando a soluçãojudicial advém de mera mudança ou diver-gência jurisprudencial, como costuma ocor-rer com indesejável freqüência. Muitas ve-

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zes, o simples momento de ajuizamento dademanda determina seu sucesso ou fracas-so. Observe-se que não se está a referir a si-tuações em que o servidor perde a demandaem virtude de negligência processual, porexemplo deixando de recorrer quando tinhaessa faculdade.

Além disso, é inegável o interesse públicona questão, porquanto, no caso narrado, oerário é onerado a cada mês por pagamentosque a Corte Suprema já decidiu indevidos.

Outro exemplo clássico é fornecido porações de investigação de paternidade pro-postas e apreciadas antes dos atuais examespericiais, que possibilitam, mediante a aferi-ção do código genético, identificar a ascen-dência com grande precisão. É possível quepronunciamentos definitivos da Justiça sejamcontrariados pelos novos exames. Para oMinistro José Delgado (In NASCIMENTO,Carlos Valder do, 2003, p. 97),

a sentença trânsita em julgado, emépoca alguma, pode, por exemplo, serconsiderada definitiva e produtora deefeitos concretos, quando determinar,com base exclusivamente em provastestemunhais e documentais, que al-guém é filho de determinada pessoae, posteriormente, exame de DNA com-prove o contrário.

Nessas situações, persiste o interesseindisponível, afeto aos direitos de persona-lidade, de a representação jurídica da filia-ção ser condizente com a realidade material.Desnecessário mencionar que as relações deparentesco dão azo a inúmeras outras rela-ções jurídicas, mormente na seara do Direi-to de Família e das Sucessões. Indaga-se,pois, nessas hipóteses, como o Estado pode,a pretexto de estabilizar uma relação jurídi-ca, desconhecer a existência de flagranteinconsistência da decisão judicial transita-da em julgado, provocando nítidos e sériosdanos aos direitos de personalidade dosenvolvidos.

Muito já se discute, também, sobre cau-sas que versam sobre desapropriação indi-reta. Nesse contexto, foi firmado importante

precedente jurisprudencial, no egrégio Su-perior Tribunal de Justiça, em julgado de-corrente de substancioso voto da lavra doMinistro José Delgado (Recurso Especial –RESP - 240.712/SP, 15.02.2000).

O Estado de São Paulo, vencido em pro-cesso por desapropriação indireta e conde-nado a pagar débito decorrente de desapro-priação, fez acordo com os credores visan-do ao parcelamento da obrigação. Tempoapós, ingressou em juízo com uma ação de-claratória de nulidade de ato jurídico cumuladacom repetição de indébito . Alegou, na ocasião,a existência de erro no julgamento da açãode desapropriação, provocado por incorre-ção da prova pericial, visto que a área desa-propriada já pertencia ao Estado e não aosautores da desapropriação indireta.

Foi concedida, em primeiro grau, tutelaantecipatória sustando os pagamentos su-postamente devidos pelo Estado, decisãovergastada e reformada em sede de agravode instrumento pelo Tribunal Estadual. Noprocessamento do recurso especial, o Rela-tor votou pelo restabelecimento da tutela deurgência, malgrado a existência de trânsitoem julgado da decisão original. Por três vo-tos a dois, o posicionamento do Relator foiadotado pela Corte Superior, constituindo-se verdadeiro acórdão paradigma da relati-vização da autoridade da coisa julgada.

Embora se trate de decisão de caráterprecário, vislumbra-se que foi prestigiado ointeresse público, jungido ao mandamentoconstitucional da justa indenização, emcaso clássico que bem demonstra como osTribunais mostram-se reticentes na revisãode julgados que, claramente, são eivados devícios substanciosos. Afinal, não obstanteas evidências, dois ministros houveram porbem alçar a autoridade da coisa julgada apatamar inalcançável e inatingível, dotan-do-a de efeitos absolutos.

Para ilustrar, convém reproduzir passa-gem do Voto vencido do Min. HumbertoGomes de Barros:

... o fato é que essa sentença transitouem julgado. O instrumento constitu-

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cionalmente apropriado para enfren-tar essa sentença não foi utilizadooportunamente. O valor pode ser alto,mas precisamos atentar para a segu-rança das decisões judiciais. Este é ovalor mais alto de todos. Essa decisãojudicial pode até ser defeituosa. É ne-cessário porém que tenhamos algumaregra para ter como sólida, como irre-versível, uma decisão judicial. Se der-mos elasticidade ou uma amplitudemaior à insegurança da decisão judi-cial, creio que o Estado de Direito bra-sileiro estará comprometido... Não vejocomo, sem magoar profundamente oinstituto constitucional da coisa jul-gada, rescindir a Sentença mediantesimples ação declaratória, iniciada nojuízo singular.

São possíveis inúmeros outros exemplosde decisões definitivas em que cabe a dis-cussão acerca de sua imutabilidade. Boaparte delas é albergada nos diversos ramosdo Direito Público, quando o interesse geralatua no sentido de questionar as conseqüên-cias dos julgados. É o caso de decisões quelivram contribuintes de exações tributáriasas quais são posteriormente declaradasconstitucionais pelo Supremo Tribunal.

José Delgado (In NASCIMENTO, CarlosValder do, 2003, p. 101) arrola enorme nú-mero de hipóteses em que as decisões defi-nitivas afrontariam a Constituição Federal.Algumas delas são: 1) que impeça alguémde associar-se ou de permanecer associado,2) que nulifique o direito de herança, 3) queimpeça a atuação de cultos religiosos, 4) queinviabilize a aposentadoria do trabalhador,5) que considere eficaz e efetiva dívida dejogo ilícito e, por fim, 6) que legitime a viola-ção do sigilo da correspondência.

3. Princípios norteadores dosistema jurídico nacional

O exame de alguns dos princípios basi-lares da ordem jurídica brasileira facilita adevida compreensão dos pressupostos e

fundamentos dos preceitos legais, da dou-trina processualista e da jurisprudência ati-nente ao tema vertente. São os princípios,em especial aqueles presentes na Constitui-ção Federal, que fornecem os alicerces es-senciais para a dinâmica da Ciência Jurídi-ca. Tendo isso em mente, mister que a defi-nição das situações e hipóteses em que acoisa julgada deve ou não prevalecer evi-dencie conformidade com os princípios ge-rais de direito.

Para Lopes (2003, p. 7), os princípios ju-rídicos envolvidos na questão são: propor-cionalidade (razoabilidade), democracia,hierarquia das normas, legalidade, isono-mia, separação de poderes, moralidade pú-blica, dignidade da pessoa humana, meioambiente ecologicamente equilibrado, aces-so à ordem jurídica justa e repúdio à fraude eao erro grosseiro. À continuação, destacam-se alguns princípios, mais diretamente rela-cionados à concepção do presente trabalho.

3.1. Equilíbrio entre os Poderes constituídos

A Constituição Federal definiu um siste-ma de distribuição de poderes traduzidopela clássica assertiva de freios e contrape-sos (“checks and balances”), ao determinarcontroles mútuos entre os Poderes Executi-vo, Legislativo e Judiciário. Nesse sentido,nenhum dos Poderes pode lograr posiçãode destaque acentuado na estrutura orgâni-ca e funcional do Estado. Essa é uma dasrazões por que se questiona o fato de deci-sões judiciais, relativamente a lides trazi-das a sua apreciação, desconheçam ou vio-lem dispositivos dotados da mais alta hie-rarquia normativa, eis que presentes naConstituição Federal, e adquiram status deimutabilidade.

Negar a discussão equivaleria a alçar afunção jurisdicional acima do próprio po-der constituinte, já que as violações consti-tucionais estariam sacramentadas pelo pró-prio sistema jurídico, de tal maneira que, aoJudiciário, restariam prerrogativas, poucodefensáveis, de afastar a incidência de dis-positivos de índole constitucional, para ca-

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sos concretos. No limite, os magistrados in-vestir-se-iam de verdadeiro poder constitu-inte originário, bastando, para tanto, prola-tarem decisões inconstitucionais, as quais,decorrido certo interregno, estariam conso-lidadas, não podendo ser reformadas. Evi-dentemente, a matriz constitucional não lhesoutorga essa legitimidade.

Mencione-se também que, aos membrosdo Judiciário, a ordem jurídica reserva amagna função de exercer o controle juris-dicional das atividades legislativas e admi-nistrativas. Trata-se daquilo que a doutrinaadministrativista denomina controle ju-risdicional dos atos administrativos e le-gislativos. De acordo com Mello (1999, p.170):

o Poder Judiciário, a instâncias daparte interessada, controla, in concre-to, a legitimidade dos comportamen-tos da Administração Pública, anu-lando suas condutas ilegítimas, com-pelindo-a àquelas que seriam obriga-tórias e condenando-a a indenizar oslesados, quando for o caso.

O Poder Judiciário atua no controle dalegalidade dos atos administrativos e, tam-bém, como se sói assinalar, como verdadei-ro “legislador negativo”, ao exercer o con-trole repressivo de constitucionalidade dasnormas, máxime por intermédio do Supre-mo Tribunal Federal. Tendo por premissasa supremacia e a rigidez constitucional, essecontrole avalia a adequação das normaseditadas pelos Poderes Legislativo e Execu-tivo ao sistema constitucional. Ora, cioso queé dessa relevante prerrogativa, torna-se in-justificável para o Judiciário a defesa do ca-ráter absoluto da coisa julgada quando emdesconformidade com as próprias normasconstitucionais, cuja defesa lhe é própria.

Por esse enfoque, recomenda-se cautelano tratamento excessivamente dogmáticoapregoado por muitos processualistas aosefeitos imutáveis da coisa julgada. A super-veniência e a perenização de decisões judi-ciais flagrantemente inconstitucionais nãoencontram arrimo nos postulados que re-

gem a distribuição das funções políticas doEstado Nacional.

3.2. Constitucionalidade

Um dos postulados mais difundidos pelaCiência Jurídica, sedimentado no início doséculo XX por Hans Kelsen, com sua céle-bre pirâmide normativa, é a supremacia daConstituição no ordenamento jurídico. Com-pete à Constituição, como norma primáriada produção jurídica, identificar as fontesde produção normativa e determinar a vali-dade e eficácia de cada uma delas. Tornou-se clássica no mundo jurídico a assertivasegundo a qual “contra a Constituição nadaprospera, tudo fenece”.

Constata-se assim, que a Constituição éa vertente de todas as normas emanadas doEstado, devendo estas, necessariamente,sujeitar-se a esse princípio hierárquico, sobpena de desfigurar todo o edifício construí-do para emprestar validade e eficácia a cadauma das regras jurídicas. A decisão judicialpode ser caracterizada como norma jurídi-ca, aplicável às partes envolvidas na rela-ção jurídica processual1. O próprio ordena-mento corrobora essa assertiva, ex vi do art.468 do Código de Processo Civil (CPC): “Asentença que julgar total ou parcialmente alide tem força de lei nos limites da lide e dasquestões decididas”.

Para quem assim não entenda, por nãoserem as decisões judiciais dotadas das ca-racterísticas consagradas pela teoria da nor-ma jurídica (generalidade e abstração), épacífico que as decisões judiciais consig-nam, ao menos, atos estatais, inegavelmen-te também submetidos à força normativaconstitucional.

O princípio da constitucionalidade de-corre diretamente da necessidade de firmara força normativa e vinculante dos disposi-tivos constitucionais. Nessa medida, atuacomo fator assegurador da vontade políticada nação, verdadeira fonte do poder consti-tuinte. No campo jurídico, especificamente,mister que se disponibilizem, no ordena-mento, meios hábeis a compelir a fiel obser-

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vância dos ditames da Carta Política, sem oqual o princípio em questão transmuda-seem mera retórica.

Vale, neste ponto, reproduzir advertên-cia da lavra de Humberto Theodoro Júnior(In NASCIMENTO, Carlos Valder do, 2003,p. 132), para quem: “o princípio de consti-tucionalidade e o efeito negativo que advémdo ato inconstitucional não se dirigem ape-nas, como podem pensar os mais desavisa-dos, aos atos do Poder Legislativo. Aplicam-se a toda a categoria de atos emanados doPoder Público (Executivo, Legislativo e Ju-diciário)”. O ilustre processualista mineiroacentua, ainda, que é indevida qualquer ten-tativa de sobrepor decisões judicias a leis,em tema de inconstitucionalidade. O con-trole de adequação constitucional deve, pois,incidir tanto sobre os atos oriundos tipica-mente do Poder Legislativo como do PoderJudiciário.

3.3. Razoabilidade

O princípio da razoabilidade (proporcio-nalidade) constitui verdadeiro sobreprincí-pio constitucional, estando em curso, hoje,um contínuo alargamento de sua incidên-cia jurídica, sobretudo na esfera do DireitoPúblico. Na apreciação da Ação Direta deInconstitucionalidade (ADIN) 855/PR, aCorte Constitucional, em notável julgadoconduzido pelo Ministro Moreira Alves, de-cidiu que o postulado em comento está alber-gado no art. 5o, LIV, da Constituição vigente:“ninguém será privado da liberdade ou deseus bens sem o devido processo legal”.

Consoante Di Pietro (2002, p. 81), citan-do Diogo Moreira Neto, pelo princípio darazoabilidade, “o que se pretende é consi-derar se determinada decisão, atribuída aoPoder Público,..., contribuirá efetivamentepara um satisfatório atendimento dos inte-resses públicos”. (Grifos no original). Entreoutros predicados, a razoabilidade exigeproporcionalidade entre os meios utilizadose os fins almejados.

O princípio da reserva legal converte-se,hoje, no princípio da reserva legal propor-

cional, pressupondo não só a legitimidadedos meios utilizados e dos fins perseguidos,mas também a adequação desses meios paraa consecução dos objetivos pretendidos e anecessidade de sua utilização. Mais do queisso, o devido processo legal exige, na esfe-ra processual, o processo justo, que assegu-ra a melhor solução do litígio.

Nessa linha de raciocínio, convém inda-gar se determinado aresto, trânsito em jul-gado, em desacordo com a Constituição, lo-gra a satisfação do interesse público maior,ou se, apenas, de forma parcial e injusta, dointeresse imediato de uma das partes liti-gantes. Depreende-se ser pouco defensávelque o mero transcurso de um certo intervalode tempo tenha o condão de legitimar e eter-nizar os efeitos perniciosos de deliberaçãoem evidente conflito com as regras magnasda vida social.

3.4. Segurança jurídica

Os juristas ressaltam que a intangibili-dade da res iudicata é consectário direto docânone da segurança jurídica. Na medidaem que determinada lide é solucionada peloPoder Judiciário, em favor de uma das par-tes litigantes, a nova situação jurídica devese sacramentar, adquirindo contornos dedefinitividade e estabilizando a relação so-cial antes em conflito. Precisamente esse é ofundamento da imutabilidade da coisa jul-gada.

Para Neves (2004, p. 1), “o fundamentoda coisa julgada é puramente prático: evitara perpetuação dos conflitos. Em outras pa-lavras, a coisa julgada existe por uma ques-tão de conveniência, já que é desejável queseja conferida segurança às relações jurídi-cas atingidas pelo efeito da sentença”.

Autores há que diferenciam a segurançada certeza jurídica. Sormani (2004, p. 2), e.g.,assinala que a segurança jurídica é objeti-va; ao revés, a certeza do direito é subjetiva.A segurança seria o princípio que forma in-telectivamente nos destinatários a certezade agir conforme o Direito, estando subsu-mida ao plano deontológico, do dever ser.

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Essa construção contribui para infirmara assertiva de que a proteção da coisa julga-da decorre da segurança jurídica. A coisajulgada edificada em regras contrárias àConstituição não atende a segurança jurí-dica, conquanto confira a seus destinatárioscerteza jurídica.

Cumpre questionar, então, se, na hipóte-se de a solução do litígio dar-se em detri-mento do ordenamento constitucional,haveria, de fato, estabilização desse confli-to ou ter-se-ia gerado, por via oblíqua, novafonte de controvérsias e conturbação so-cial. Consoante abalizado magistério deCândido Dinamarco (In NASCIMENTO,Carlos Valder do, 2003, p. 72), “a ordemconstitucional não tolera que se eternizeminjustiças a pretexto de não eternizar litígi-os”. Remanesce a questão: quais devem seros limites e efeitos da coisa julgada para re-almente se atender ao princípio da seguran-ça jurídica?

3.5. Isonomia

O princípio da isonomia está enunciadono caput do art. 5o da Constituição Federal,ao se proclamar que “todos são iguais pe-rante a lei, sem distinção de qualquer natu-reza, garantindo-se aos brasileiros e aos es-trangeiros residentes no País...”.

Para efeito deste trabalho, importa sali-entar que, no plano jurisdicional, situaçõesanálogas devem originar decisões judiciaisde teor semelhante. Caso contrário, tem-se oEstado, via Poder Judiciário, adotando econsolidando distinções indevidas.

Vale considerar que a própria Constitui-ção Federal instituiu mecanismo processu-al destinado a conferir um mínimo de uni-formização às decisões judiciais, em temade legislação federal infraconstitucional.Assim é que o recurso especial, dirigido aoSuperior Tribunal de Justiça, é admissívelnos casos de dissídio jurisprudencial, ex vido art. 105, III, c, da Constituição. No pro-cesso trabalhista, a mesma função unifor-mizadora é outorgada pelo art. 896 da Con-solidação das Leis do Trabalho ao recurso

de revista, endereçado ao Tribunal Superiordo Trabalho. De fato, a principal função dostribunais superiores é precisamente a uni-formização das decisões do Poder Judi-ciário.

Na prática, sem embargo, verificam-seinúmeros casos em que decisões judiciaiscontraditórias transitam em julgado e acar-retam diferenciações pouco defensáveis,causando prejuízos a diversos cidadãos, efavorecendo outros tantos. Caso típico, jálevantado, é o das vantagens atribuídas adeterminados servidores públicos e nega-das a outros que se encontram na mesmasituação jurídica.

3.6. Instrumentalidade do processo

O princípio da instrumentalidade dasformas normalmente é abordado conjunta-mente com o princípio da economia proces-sual, colimando evitar que certo vício em atoprocessual localizado contamine e nulifiquetodo o processo. Os atos processuais que nãoguardem relação com o defeito não devemser prejudicados, na busca de uma presta-ção jurisdicional efetiva.

É possível analisar o princípio vertentesob outro prisma. A doutrina processual tra-dicional externa um forte viés voltado paraa valorização do processo, prestigiando suaindependência relativamente ao direitomaterial. Daí advêm importantes constru-ções para a Ciência Jurídica, a exemplo dateoria da ação como direito público, subjeti-vo, autônomo e abstrato, amplamente difun-dida atualmente.

Não se pode, por óbvio, negligenciar aimportância das regras processuais para acomposição dos litígios e a correspondentepacificação social. A existência de institu-tos e métodos próprios de estudo confere aoDireito Processual autonomia inquestioná-vel em relação aos demais ramos do Direito.Ocorre que não se pode perder de vista, damesma forma, que o processo detém funçãoeminentemente instrumental. O processonão é um fim em si mesmo, devendo estarsempre voltado para os objetivos maiores

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que balizam a atuação e a própria existên-cia da Ciência do Direito.

No limite, a materialização do valor jus-tiça desponta como a verdadeira finalidadeda existência das regras jurídicas e do apa-rato estatal mantido para preservar a ordemsocial. Consiste em grave equívoco a tendên-cia de hipervalorização da forma em detri-mento do conteúdo e da noção de justiça,disseminada em parcela do universo dosoperadores do Direito.

Com a clarividência que o caracteriza,Dinamarco (In NASCIMENTO, CarlosValder do, 2003, p. 57) sintetiza esse pensa-mento exaltando a “prevalência do substan-cial sobre o processual, ou seja, o culto aovalor do justo em detrimento das regras pro-cessuais sobre a coisa julgada”.

Em seu notável Voto vencedor proferidono RESP 240.712/SP, o Ministro JoséDelgado cita ensinamentos da lavra deHumberto Theodoro Júnior, em “O Direitopositivo e os preceitos morais” . Destaca o mes-tre que a hermenêutica jurídica que exige avirtude da justiça é uma operação de pru-dência e não de lógica. Prevalece atualmen-te a concepção de que interpretar é extrairde normas gerais e formais a norma justapara determinada situação concreta. O pró-prio Supremo Tribunal Federal prestigia aidéia, como se infere do Recurso Extraordi-nário (RE) 111.787/GO, rel. Ministro MarcoAurélio, ementado nos seguintes termos:“Ofício judicante. Postura do Magistrado.Ao examinar a lide, o magistrado deve idea-lizar a solução mais justa, considerada a res-pectiva formação humanista. Somente após,cabe recorrer à dogmática para, encontran-do o indispensável apoio, formalizá-la.”

Enfim, impõe-se à atividade jurisdicio-nal a busca por ideais de justiça, concilian-do-os sempre com o horizonte normativoestabelecido na ordem jurídica. O manto dacoisa julgada acobertando decisão que nãorealiza o verdadeiro direito material aplicá-vel às partes litigantes e nem materializa osideais de justiça prevalentes na sociedadeem dado momento não pode ser visto, as-

sim, como valor absoluto. Concluir de for-ma diversa significaria fornecer uma dimen-são exagerada às normas processuais, dei-xando o processo de ser instrumental emrelação ao direito material e à composiçãodas contendas.

4. Instituto da coisa julgada4.1. Modalidades da coisa julgada

A coisa julgada apresenta-se sob duasmodalidades: a coisa julgada formal e a coi-sa julgada material. A distinção é primordi-al a fim de que se entendam as conseqüênciasjurídicas provenientes de cada relação jurí-dica processual e substantiva.

A coisa julgada formal é um fenômenoendoprocessual, não estendendo seus efei-tos fora dos autos em que se materializa,correspondendo à mais eloqüente das espé-cies de preclusão2. Para Nery (2001, p. 903),“coisa julgada formal é a inimpugnabilida-de da sentença no processo em que foi pro-ferida”. São situações em que a sentença nãomais está sujeita a recurso, quer porque delanão se recorreu, quer porque se recorreu emdesacordo com os requisitos recursais, querainda porque foram esgotados todos os mei-os recursais de que dispunham os sujeitosdo processo.

A coisa julgada formal ocorre tanto quan-do a deliberação alcança o mérito da deman-da (sentença definitiva), como quando amatéria de mérito não foi analisada, em ra-zão da extinção do processo por vício pro-cessual (sentença terminativa). Nestas hi-póteses, arroladas no art. 267 do Código deProcesso Civil, a parte pode retornar a juízoalegando os mesmos fatos, desde que extir-pado o defeito de ordem processual que an-tes serviu de fundamento para extinguir ofeito, salvo nos casos de perempção, litis-pendência ou coisa julgada, quando a rea-nálise da lide não mais será permitida.

Repare que, nem sempre, a constataçãodo real alcance do aresto, com ou sem exa-me do mérito da demanda, é tarefa singela.Moura (2004, p. 5), com percuciência, forne-

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ce exemplo emblemático do tema, mencio-nando lides trabalhistas versando sobre oreconhecimento de relação de emprego emcaso de terceirização. A sentença que decla-ra a inexistência de vínculo, em realidade,alcança o mérito, devendo ser proferida comos efeitos próprios do art. 269, I, do CódigoProcessual Civil3. Sem embargo, em causasdesse jaez, é muito comum a simples decla-ração de carência da ação, por ilegitimida-de passiva ad causam, uma notória impro-priedade que desafia recurso ordinário di-rigido ao respectivo Tribunal Regional.

Diz-se que a coisa julgada formal é pres-suposto da coisa julgada material, na medi-da em que a primeira torna imutável dentrodo processo a decisão que encerra o feito, aopasso que a segunda constitui qualidade dadecisão que tornam imutáveis os efeitos lan-çados fora do processo. Nesta, persiste aimutabilidade da decisão no mesmo ou emqualquer outro processo entre as mesmaspartes e com o mesmo objeto. Somente assentenças de mérito, previstas no art. 269do Código de Processo Civil, produzem coi-sa julgada material.

Há que se considerar, também, que o re-gime de formação da coisa julgada encon-tra-se intimamente correlacionado ao graude cognição do órgão jurisdicional acercada matéria objeto da lide. Segundo Watanabe(1987, p. 41), a cognição decorre, prevalen-temente, de

um ato de inteligência, consistente emconsiderar, analisar e valorar as ale-gações e as provas produzidas pelaspartes, vale dizer, as questões de fatoe as de direito que são deduzidas noprocesso e cujo resultado é o alicerce,o fundamento do iudicium, do julga-mento do objeto litigioso do processo.

O fenômeno cognitivo pode ser visuali-zado em dois planos distintos, horizontal evertical.

No plano horizontal, a cognição do ma-gistrado pode ser plena, em que não há li-mitação das questões passíveis de seremexaminadas, ou parcial (limitada), quando

se restringe a certas matérias. Destarte, oplano horizontal refere-se à extensão e àamplitude daquilo a ser avaliado pelo ór-gão jurisdicional. No caso da cognição par-cial, prestigia-se o valor celeridade proces-sual, eis que o pronunciamento judicial, res-trito a determinadas matérias, presumivel-mente é exarado em interregno inferior aoda cognição plena. Tipicamente são exem-plos dessa modalidade cognitiva a conver-são da separação judicial em divórcio, adesapropriação e os interditos proibitórios(DIDIER JR., 2004, p. 4).

Por seu turno, o plano vertical indica sea cognição é exauriente ou sumária. Na cog-nição exauriente, o magistrado aprofunda-se na análise das questões de fato e de direi-to levadas a sua apreciação, consolidandoum juízo robusto acerca do litígio. O planovertical denota de que forma o órgão juris-dicional conheceu daquilo que lhe foi apre-sentado. Na cognição sumária, a contrariosensu, a necessidade de pronta tutela juris-dicional restringe os meios disponíveis paraa formação da persuasão racional do ma-gistrado, instado a decidir em face de pos-tulações e elementos probatórios não desen-volvidos e consolidados em plenitude.

As duas modalidades de cognição com-binam-se entre si para definir os procedi-mentos aplicáveis, daí advindas distintasconseqüências para o regime da coisa jul-gada. Em regra, as demandas judiciais sãoprocessadas segundo o sistema de cogni-ção plena e exauriente, mediante o rito ordi-nário. A solução dos conflitos é obtida pormeio de provimento que se assenta em atosplenários quanto à extensão do debate daspartes e da cognição do juiz e alcance com-pleto quanto à profundidade do exame dasquestões. O valor segurança jurídica é pres-tigiado.

A doutrina costuma assinalar, ademais, aexistência de tipo particular de cognição ple-na e exauriente, secundum eventum probationis.Nesta, não existe limitação à extensão damatéria a ser debatida em juízo, porém sepressupõe a existência de elementos proba-

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tórios suficientes. Normalmente, a fase pro-batória é mitigada e as questões prejudici-ais são processadas autonomamente. Sãoexemplos de procedimentos desse jaez omandado de segurança, a ação de inventá-rio e a desapropriação, na fase de levanta-mento do preço.

A cognição plena ou limitada e exauri-ente pode ser, ainda, eventual (secundumeventum defensionis). É o caso típico da açãomonitória, em que a instalação do contradi-tório depende de opção do demandado. Acognição, nesses casos, é eventual.

Na cognição parcial e exauriente, o le-gislador tem em vista as peculiaridades dodireito material e a premência da prestaçãojurisdicional. É possível, de todo modo, dis-cutir os pontos não examinados em açãoautônoma.

Muito já se escreveu sobre a cogniçãosumária, estando em curso no Direito Brasi-leiro tendência de amplificação das hipóte-ses de sua incidência, ante os reclamos poruma justiça célere e por decisões tempesti-vas. As tutelas sumárias baseiam-se em juí-zos de probabilidade e verossimilhança,podendo ter natureza antecipatória ou cau-telar.

O surgimento da autoridade da coisajulgada depende da ocorrência da cogniçãoexauriente, em que o órgão jurisdicionaldebruça-se à exaustão sobre os elementostrazidos aos autos e tem ampla liberdadepara a formação de seu livre convencimen-to. Pronunciamentos oriundos de cogniçãolimitada e exauriente têm aptidão para pro-duzir coisa julgada no que se refere àquiloque foi examinado nos autos.

Após o trânsito em julgado da decisão, oordenamento processual prevê, de formaexpressa, a ação rescisória, destinada a re-parar flagrante injustiça do decisório, quan-do seu grau de imperfeição é de tal grande-za que supere a segurança ofertada pelacoisa julgada. As hipóteses numerus claususpermissivas da ação rescisórias são elenca-das no art. 485 do CPC, embora parte dajurisprudência tenha adotado linha mais

flexível quanto ao rol ser exaustivo. Salien-te-se, contudo, que, em qualquer caso, a res-cisória submete-se a prazo decadencial (por-tanto não sujeito a suspensão ou interrup-ção) de dois anos, contados do trânsito emjulgado da decisão rescindenda.

4.2. Coisa julgada na Constituição Federal

O art. 5o, XXXVI, da Constituição Fede-ral determina que “a lei não prejudicará odireito adquirido, o ato jurídico perfeito e acoisa julgada”. Partindo da redação consti-tucional, os autores divergem consideravel-mente acerca da inteligência do menciona-do normativo.

Os processualistas tradicionais empres-tam ao dispositivo interpretação abrangen-te, salientando que o constituinte protegeuas decisões com trânsito em julgado tantoda criação legislativa superveniente comotambém de novos pronunciamentos judici-ais. Ao se referir a “lei” o texto expressaria,em verdade, todos os atos oriundos do Esta-do, inclusive decisões judiciais. O institutoda coisa julgada ficaria, nesse diapasão,com autoridade máxima.

Buscam, outrossim, fixar o entendimen-to de que a proteção constitucional é confe-rida também ao instituto da coisa julgada enão apenas a cada pronunciamento juris-dicional específico. Essa leitura veda a quea legislação ordinária restrinja ou debilite afigura processual da coisa julgada, infir-mando sua amplitude. Estaria defesa, v.g.,a previsão de meios de revisão ou desconsi-deração de julgados inconstitucionais, porausência de amparo constitucional.

Ganha força, no entanto, a exegese maisflexível, defensora da proteção à coisa jul-gada em cada caso específico, restrita a in-gerências indevidas do poder legiferantesobre pronunciamentos do Judiciário. Es-sencialmente, a autoridade da coisa julga-da teria sede infraconstitucional, eis que re-gulada no CPC, e não foro constitucional.Por essa linha interpretativa, a Lei Maiorprotege não o instituto da coisa julgada deforma ampla, mas apenas cada decisão con-

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creta, que não pode sofrer abalos advindosda criação normativa. Significa dizer ape-nas que o legislador, ao criar uma lei, nãopode ofender o caso julgado, como garantiade que o Judiciário terá sua decisão respei-tada, traduzindo a independência dos Po-deres constituídos.

Com efeito, a última interpretação mere-ce ser prestigiada. Em primeiro lugar, doponto de vista gramatical, é mais consentâ-nea com o Texto Constitucional, que nãoproibiu a lei de ferir o “instituto da coisajulgada”, mas apenas a “coisa julgada”.

A leitura integral do dispositivo em apre-ço também induz essa inteligência. O pre-ceito faz menção à coisa julgada, mas tam-bém ao direito adquirido e ao ato jurídicoperfeito. Para essas figuras, a ratio legis cons-titucional refere-se às situações jurídicasespecíficas em que se verificam, e não aos ins-titutos de forma ampla. O constituinte coli-mou impedir que lei nova tivesse o condão dealterar direito já adquirido ou ato jurídico ce-lebrado, em atenção aos princípios da nãosurpresa e da irretroatividade da lei. A todaevidência, para a coisa julgada o entendi-mento deve ser idêntico.

Por derradeiro, a prevalecer a primeiracorrente, restariam fulminados de inconsti-tucionalidade institutos que sempre convi-veram com a ordem jurídica nacional, a açãorescisória e a revisão criminal. Ambos insti-tutos têm por única função modificar ou res-cindir a coisa julgada. A jurisprudênciapátria, desde sempre, perfilha-se à noção deque a rescisória e a revisão criminal são to-talmente compatíveis com a ordem consti-tucional.

Impende salientar, de todo modo, quequalquer alteração no instituto da coisa jul-gada não pode incidir sobre sentenças tran-sitadas em julgado, visto que a lei regente éaquela existente ao tempo do trânsito emjulgado, prevalecendo a regra constitucio-nal do art. 5o, XXXVI.

A proteção constitucional da coisa jul-gada não deve impedir, contudo, que a leipreordene regras para a sua rescisão medi-

ante atividade jurisdicional. Ao mencionarque a lei não prejudicará a coisa julgada,quer-se tutelar esta contra atuação direta dolegislador, contra ataque direto da lei. A leinão pode desfazer (rescindir ou anular outornar ineficaz) a coisa julgada. Mas podeprever licitamente, como fez o art. 485 doCódigo de Processo Civil (ação rescisória),sua rescindibilidade pelos instrumentosprocessuais adequados.

4.3. Coisa julgada na legislação ordinária

Impende salientar que a Lei de Introdu-ção ao Código Civil, em seu art. 6o, §3o, defi-ne coisa julgada (ou caso julgado) como “adecisão judicial de que não caiba mais re-curso”.

O art. 467 do CPC preconiza definiçãolegal de coisa julgada material, nestes ter-mos: “Denomina-se coisa julgada materiala eficácia, que torna imutável e indiscutívela sentença, não mais sujeita a recurso ordi-nário ou extraordinário”.

Para o presente estudo, importa, ainda,o normativo inscrito no art. 471 do CPC,que estabelece a vedação de apreciação dequestões já decididas, relativas à mesmalide, ressalvadas as relações jurídicas con-tinuativas, sempre que sobrevir modificaçãono condicionante que motivou o decisum. Aressalva refere-se, por exemplo, às causasalimentícias, em que se pondera, sempre, adinâmica do binômio necessidade do ali-mentando e possibilidade do alimentante.

Calha a fiveleta comentário de Cintra etal (2003, p. 307), para quem:

quanto às sentenças determinativasou ‘instáveis’, que decidem relaçõescontinuativas (CPC, art. 471, inc. I;CLT, art. 873), não há exceção à auto-ridade da coisa julgada e sim acolhi-mento do princípio rebus sic stantibus.O juiz, na nova decisão, não altera ojulgado anterior, mas exatamente paraatender a ele, adapta-o ao estado defato superveniente.

Determina, ainda, o art. 463, I, do CPC,que, ao publicar a sentença de mérito, o juiz

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cumpre e encerra o ofício jurisdicional, sópodendo alterá-la para lhe corrigir, mesmoex oficio, “inexatidões materiais, ou lhe reti-ficar erros de cálculo”. Segundo o magisté-rio de Nery (2001, p. 901), “a doutrina e ajurisprudência afirmam entendimento nosentido de, constatado erro de cálculo, ad-mitir-se seja a sentença corrigida, de ofícioou a requerimento da parte, ainda que hajaela transitado em julgado”. (Destaques inexis-tentes no original).

No que toca aos meios existentes no or-denamento para rescindir sentença de mé-rito sobre a qual se formou a autoridade dacoisa julgada, já se mencionou a ação resci-sória, preconizada no art. 485 e seguintesdo CPC e de competência originária dos tri-bunais. Na rescisória, formulam-se, em re-gra, dois pedidos, de juízo rescindendo, paradesconstituir a decisão eivada de vício, e dejuízo rescisório, para rejulgamento da con-tenda. Em geral, o ajuizamento da rescisó-ria não suspende a execução da decisão res-cindenda, porém a jurisprudência tem en-tendido que o interessado pode ajuizar açãocautelar inominada com essa finalidade, emcaráter excepcional.

Deve ser destacado que, dentre os moti-vos aptos a ensejar a rescisória, figuram ví-cios de enorme gravidade, como casos decorrupção ou prevaricação do magistrado,de dolo do vencedor ou colusão entre aspartes para fraudar a lei ou, ainda, de deci-são fundada em prova falsa ou erro de fato.Vale a reflexão quanto a se vícios dessamagnitude devem mesmo ser convalidadossimplesmente pelo transcurso do prazo de-cadencial de dois anos previsto para pro-positura da rescisória.

Além da rescisória, cumpre trazer à bai-la a regra do art. 741 do CPC, que arrolaexaustivamente as matérias passíveis deserem opostas em sede de embargos à exe-cução de títulos judiciais. No inciso I, pre-vê-se a falta ou nulidade de citação no pro-cesso de conhecimento, sempre que a causativer corrido à revelia do réu. Trata-se pois,do único vício processual que o ordenamen-

to, de forma expressa, outorga relevância talque sobrevive à força da res iudicata. Mesmoapós vencido o dies ad quem da rescisória, amatéria pode ser alegada nos embargos dodevedor. Prestigia-se, assim, o princípio docontraditório, cujo exercício foi inviabiliza-do por deficiência da citação, suscitandorevelia. Nesses casos, a relação jurídica pro-cessual sequer foi formada validamente, jus-tificando-se o questionamento do título delaoriundo.

Mais recentemente, a edição da MedidaProvisória no 1.997-37, de 11.04.2000, atual-mente Medida Provisória no 2.180-35, de24.08.2001, ensejou modificações de eleva-da monta no ordenamento vigente. No con-texto da suavização dos efeitos da coisa jul-gada, a Medida Provisória alterou o Códigode Processo Civil (art. 741, parágrafo único) e a Consolidação das Leis do Trabalho (art.884, §5o), para prever a inexigibilidade detítulos judiciais fundados em lei ou ato nor-mativo declarados inconstitucionais peloSupremo Tribunal Federal ou em aplicaçãoou interpretação tidos por incompatíveiscom a Constituição Federal.

Cabem alguns comentários acerca damatéria. Em primeiro lugar, mencionadodispositivo foi recebido, no primeiro momen-to, com ceticismo e críticas por juristas de es-col, incomodados pelas razões políticas quemotivaram a edição da norma. Nesse senti-do, Cavalcanti (2002, p. 606) assevera que:

no caso, bem o sabemos, o objetivo daMedida Provisória teve um endereçocerto, ou seja, evitar que aquelas açõesnas quais se discutiam aplicações deíndices referentes aos Planos Econô-micos editados por diferentes Gover-nos, e que já tinham decisão transita-da em julgado com conteúdo diversoao entendimento do STF, pudessemser executadas contra a Fazenda Pú-blica, ou necessitassem de Ação Res-cisória, pois em muitos casos, já eradecorrido o prazo de 2 anos... Umadestas situações visadas pela MP no

2.180 (24.08.2001, art. 10), é o referen-

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te à correção do saldo das contas deFGTS, saldos estes, em milhares decasos, cujas decisões proferidas como aval do STJ, incluíam índices que oSTF não apreciou... Mais uma vez, por-tanto, o cidadão sai prejudicado poruma legislação casuística... Na práti-ca, a MP 2.180/2001 apenas veio ser-vir à voracidade do Executivo Fede-ral, que utilizando-se (sic) do uso des-te infeliz instituto chamado medidaprovisória, legisla em causa própria eem detrimento dos princípios maio-res que informam o Estado Democrá-tico de Direito.

Abstraindo-se considerações políticas oumesmo éticas, importa a discussão sobre ajuridicidade e o mérito do dispositivo, bemassim as conseqüências da novel legislaçãosobre o tema ora em discussão.

Cabe mencionar que o preceito é questi-onado em sede de ação direta de inconstitu-cionalidade, ajuizada pelo Conselho Fede-ral da Ordem dos Advogados do Brasil(ADIN 2418-3/DF), perante o Supremo Tri-bunal Federal, relator Min. Cesar Peluso. Napeça exordial, o Autor expressa haver fla-grante violência à coisa julgada, em detri-mento do princípio da segurança jurídica.

Conquanto o Supremo Tribunal não te-nha examinado sequer o pedido de liminarpara suspensão do preceito, há a informa-ção de que o Procurador-Geral da Repúbli-ca manifestou-se nos autos pela inconstitu-cionalidade da norma contida na MedidaProvisória.

Em substancioso ensaio, Assis (2002, p.22-23) afasta a ofensa à Constituição do novoart. 741, parágrafo único, do CPC. Acentu-ando que a aplicação da regra é neutra enão favorece apenas a Fazenda Pública,ilustra sua assertiva com aresto do SuperiorTribunal de Justiça (RESP 194.276-RS,09.02.1999, rel. Min. José Delgado), argu-mentando que o contribuinte passa a dis-por de instrumento processual para impug-nar, via embargos do devedor, créditos tri-butários cobrados pelo ente público.

Salienta, ademais, que restaria o proble-ma da edição de norma processual por in-termédio de medida provisória, antes doadvento da Emenda Constitucional no 32,de 11.09.2001, por ausência de urgência erelevância. Usando argumento pragmático,assere que o Supremo Tribunal tem sido le-niente nessa seara, restando improvável queuse esse fundamento para fulminar o pre-ceito.

De qualquer forma, até eventual delibe-ração em contrário da Corte Suprema, per-siste a eficácia e a validade do dispositivoem comento.

Outra discussão importante enfoca omérito do normativo. Assis (2002, p. 22) en-sina:

O art. 741, parágrafo único, tornou subconditione a eficácia de coisa julgadado título judicial que, preponderante-mente ou exclusivamente, serviu defundamento da resolução do juiz.Pode-se dizer, então, que toda senten-ça assumirá uma transparência even-tual, sempre passível de ataque viaembargos. E a coisa julgada, em qual-quer processo, adquiriu a incomum einsólita característica de surgir e sub-sistir sub conditione. A qualquer mo-mento, pronunciada a inconstitucio-nalidade da lei ou do ato normativoem que se baseou o pronunciamentojudicial, desaparecerá a eficácia doart. 467. E isto se verificará ainda quea Corte Constitucional se manifesteapós o prazo de dois anos da rescisó-ria (art. 495).

Outro ponto de imprecisão e angústiaquanto à conveniência da nova redação dizrespeito à parte final do preceito. A inexigi-bilidade da coisa julgada inconstitucionalnão pressupõe, em todos os casos, julgamen-to proferido pela Corte Suprema, eis que aparte final traz hipótese alternativa de “apli-cação ou interpretação tidas por incompatí-veis com a Constituição Federal”.

Ou seja, da forma como se encontra redi-gido o parágrafo único do art. 741 do CPC, o

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devedor pode, garantido o juízo, argüir, viaembargos, a inconstitucionalidade da deci-são judicial, amparando-se, tão somente, emjuízo subjetivo acerca de aplicação ou inter-pretação supostamente incompatível com aLei Maior. Considerando que os embargosde devedor suspendem a execução (art. 739,§1o, do CPC), abre-se fenda para manobrasprocrastinatórias visando ao não adim-plemento das obrigações. Nessa vereda,Moura (2004, p. 7) adverte que “a mitigaçãoda coisa julgada... é situação excepcional e,portanto, não pode ter seu uso banalizado.Banalização que aliás parece ter-se inicia-do com o advento da M.P. no 2.180-35 inse-rindo um parágrafo único no art. 741 doCPC”.

Persistem, contudo, outras questões nãobem resolvidas sobre o dispositivo em tela,dado seu exagerado alto grau de abstração.Sobre essas questões, juristas de estirpe evi-denciam entendimentos divergentes. Umdesses pontos é a subsunção do dispositivoaos casos de execução de decisão judicialque reconhece inconstitucionalidade de cer-ta lei ou ato normativo e, posteriormente, oSupremo vem a declarar sua constituciona-lidade. Relembre-se que a nova redação doCPC refere-se, apenas, à existência de julga-do do Supremo que declare a inconstitucio-nalidade da lei ou do ato normativo.

Assis (2002, p. 24) sustenta que a aplica-ção do preceito é restrita, impondo-se “jul-gamento definitivo do STF, de procedênciana ação direta de inconstitucionalidade oude improcedência na ação direta de consti-tucionalidade”. Carvalho Júnior (2004, p. 5),a contrario sensu, afirma que nada impede aaplicação do dispositivo às hipóteses de re-conhecimento da constitucionalidade danorma pelo Supremo Tribunal. A conclusãoé obtida socorrendo-se da interpretação te-leológica e atendo-se ao princípio da cons-titucionalidade.

A nova redação do CPC também nadaesclarece acerca da modalidade de delibe-ração do Supremo que propicia a oposiçãodos embargos. Basta decisão em controle

difuso de constitucionalidade ou se exige ocontrole concentrado? Caso incida a partirde decisão em sede de controle incidental, émister para a aplicabilidade do preceito aprévia edição de Resolução do Senado Fe-deral suspendendo a lei ou ato normativo?Nos casos de controle abstrato, exige-se de-cisão definitiva da Corte Suprema ou bastadecisão liminar? Todas essas indagaçõesencontram-se ainda carentes de respostas,a serem fornecidas, preferentemente, pelaregulamentação ou alteração das regras atu-ais, ou mesmo por meio da jurisprudência.

Além disso, indaga-se sobre a possibili-dade de utilização da exceção de pré-execu-tividade, simples petição dirigida ao juízoda execução para argüir defeito de ordempública do título executivo, para invalidara execução de res iudicata inconstitucional.Ao revés dos embargos, a exceção de pré-executividade, criação jurisprudencial nãoprevista na legislação, não demanda o pré-vio seguro do juízo, podendo ser utilizadapara matérias demonstráveis prima facie, quenão demandam dilação probatória.

Diversos autores assinalam a possibili-dade, advinda do novo dispositivo do CPC,de utilização da exceção de pré-executivi-dade, no lugar dos embargos, para questio-nar o título judicial. O entendimento decor-re da constatação de que a exigibilidade dotítulo é matéria de ordem pública, que pode-ria até ser conhecida de ofício pelo juízo daexecução.

5. Ponderações sistemáticassobre a matéria

Parece claro que a dimensão excessivaque muitos buscam conferir ao instituto dacoisa julgada carece de sustentação consti-tucional. A intangibilidade a qualquer cus-to da res iudicata deve ser combatida, ematenção aos princípios maiores do ordena-mento. Firma-se, pois, a noção de que a revi-sibilidade dos julgados inconstitucionais,para além dos condicionantes da ação res-cisória, é uma necessidade do sistema, com

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vistas a assegurar a supremacia da Consti-tuição.

Acatando-se essa premissa, contudo,resta ainda à doutrina a árdua tarefa de sis-tematizar situações e valores que justifi-quem a superação do primado da coisajulgada. Em outras palavras, em que condi-ções a segurança jurídica deve ser mitigadaem favor de outros postulados da ordemjurídica.

As questões envolvidas são complexase, por evidente, as soluções vislumbradasnão são imediatas, devendo ser sedimenta-das ao longo de processo de maturação daCiência Processual. Algumas diretrizes, to-davia, podem ser traçadas a fim de facilitara condução do tema.

Inicialmente, assenta-se a premissa deque a revisibilidade da coisa julgada deveser tomada em circunstâncias excepcionais.Pronunciamentos judiciais definitivos, namaioria das contendas, estabelecem o direi-to aplicável de forma escorreita, logrando aconsecução de seu desiderato último, a pa-cificação social por meio da justa composi-ção dos litígios. Os conflitos em sociedadeseriam perenes caso não se imputasse àcoisa julgada caráter cogente e definitivida-de. Assim, as providências destinadas àrevisão da coisa julgada devem ser tãoexcepcionais quanto a ocorrência dos gra-ves vícios de inconstitucionalidade.

Nessa linha, não se tem por satisfatóriasregras como a prevista no parágrafo únicodo art. 741 do CPC, in fine, que mitiga dema-siadamente a autoridade da coisa julgada.Admitir a oposição de embargos a título ju-dicial apenas sob o fundamento subjetivode equívoco de interpretação constitucionalpor parte do prolator da decisão exeqüen-da, sem qualquer parâmetro objetivo calca-do em exame da tese por parte do SupremoTribunal Federal, contribui para tornar ain-da mais moroso, custoso e ineficiente o pro-cesso judicial.

A medida vem na contramão da tendên-cia hodierna de valorização da efetividadedo processo. Afinal, tendo em vista a natu-

reza analítica da Constituição Nacional, osobrigados passam a dispor de instrumentalfértil a lhes possibilitar a procrastinação doadimplemento das prestações devidas.

Distinta é a análise da outra hipótese doreferido dispositivo do CPC, que torna ine-xigíveis títulos judiciais fundados em lei ouato normativo declarados inconstitucionaispelo Supremo Tribunal Federal. Aqui, tem-se um parâmetro objetivo, aferível de planopelo magistrado destinatário dos embargos,dificultando manobras protelatórias dosdevedores. Em princípio, pois, a regra é maisrazoável, indo ao encontro dos reclamos damoderna doutrina.

De toda forma, a regra em tela pode edeve ser aperfeiçoada, tendo em vista ou-tros prismas que envolvem a questão. Umadiscussão importante diz respeito ao bemjurídico a ser tutelado. Todos aqueles ati-nentes aos princípios e direitos fundamen-tais merecem relevo relativamente à preser-vação da coisa julgada. Os interesses dacoletividade e a noção de justiça despon-tam como indisponíveis e inalienáveis. Sub-sumem-se a essa hipótese os casos de aferi-ção de parentesco e todas as situações emque o erário é onerado indevidamente, aíinclusas causas sobre vantagens pecu-niárias de servidores públicos, exaçõestributárias e oriundas de desapropriaçõesindiretas.

Por outro lado, interesses particularespatrimoniais poderiam não justificar a mi-tigação da segurança jurídica, ao menos nageneralidade dos casos. Autores há que bus-cam na tradicional separação entre questõesde Direito Público e matérias de Direito Pri-vado um norte para apontar aquelas comohábeis a infirmar a intangibilidade da resiudicata . Questões meramente privadas, semrepercussão coletiva, não teriam o condãode propiciar a revisão dos pronunciamen-tos definitivos.

Outra variável que pode ser utilizadapara se definir as circunstâncias que justifi-cam a revisibilidade de julgados é o grau deofensa efetiva à Constituição. Por vezes, a

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ofensa é indireta ou oblíqua, hipótese bas-tante comum dado ser a Constituição de1988 eminentemente analítica e principio-lógica. Não se teria por justificada, nessescasos, a mitigação do valor segurança jurí-dica. Com efeito, no caso de ofensa à legisla-ção ordinária, cabe à ação rescisória, dentrode seu interregno decadencial, o papel dedesconstituir o julgado (art. 485, V, do CPC).Não fazendo a parte uso desse instrumen-to, consolidam-se os efeitos preconizados nodecisum.

6. Conclusão

É possível assinalar que existe atualmen-te um quadro ainda muito refratário a dis-cussões quanto à necessidade de relativiza-ção da coisa julgada. O meio jurídico, porsua natureza conservadora, tende a abortardiscussões mais enfáticas a esse respeito,inclusive por conta de matizes corporativos.No entanto, autores de estirpe já se fazemouvir frisando que a discussão é premente,com vistas à melhoria da ordem jurídica.Nesse sentido, a discussão deve superarantigos dogmas associados ao processo,sem o que se corre o risco de esterilizar seusresultados.

A idéia que se sedimenta pouco a poucona doutrina aponta para a necessidade deconferir maior relatividade aos efeitos dacoisa julgada, de forma a possibilitar a re-forma de decisões inconstitucionais mesmoapós o vencimento do dies ad quem para apropositura da rescisória.

Essa tendência, contudo, não pode des-considerar a importância da segurança ju-rídica e a excepcionalidade das hipóteses einstrumentos a serem desenvolvidos parasuavizar a coisa julgada inquinada de víciosde ordem constitucional. A possibilidadeampla e irrestrita de os sucumbentes alega-rem inconstitucionalidade nas decisões ju-diciais, quer em sede de embargos à exe-cução quer em ação autônoma (consectáriada antiga querela nullitatis) não sujeita aoprazo da rescisória, ameaça mesmo a efeti-

vidade processual, podendo servir a inte-resses escusos de mera procrastinação dosresultados do processo.

Assim é que a norma prevista no pará-grafo único, in fine, do art. 741, do Código deProcesso Civil, atualmente questionada emsede de controle abstrato de constituciona-lidade perante o Supremo Tribunal Federal,merece aperfeiçoamentos. Elementos comoa existência ou não de pronunciamento so-bre a matéria de direito por parte do Supre-mo Tribunal Federal, o grau de ofensa àConstituição da decisão trânsita em julga-do e o bem jurídico tutelado devem consti-tuir os balizadores para estudos que bus-quem o contínuo aperfeiçoamento legislati-vo da matéria.

Notas1 Vale destacar que os limites subjetivos da coi-

sa julgada têm sido estendidos paulatinamente,mormente pela disseminação das ações coletivas,enfraquecendo a tese tradicional, de que os efeitosdo pronunciamento judicial circunscrevem-se àspartes da relação processual.

2 Recorde-se que a preclusão é figura processu-al que denota a perda de uma faculdade, em virtu-de de seu exercício (preclusão consumativa), doexercício de outro ato logicamente incompatível(preclusão lógica) ou do escoamento in albis do prazoprevisto em lei para o exercício da faculdade (pre-clusão temporal). A rigor, preclusão e coisa julga-da formal não são fenômenos idênticos, mas for-mam uma relação de antecedente e conseqüente (apreclusão é o antecedente da coisa julgada formal).

3 “Art. 269. Extingue-se o processo com julga-mento de mérito: I – quando o juiz acolher ou rejei-tar o pedido do autor”.

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Introdução

Nenhum homem é uma ilha completa em si mesma;todo homem é um pedaço de continente,uma parte da terra firme.A morte de qualquer homem diminui a mim,porque na humanidade me encontro envolvido;por isso, nunca mandes indagar por quem os sinosdobram;eles dobram por ti.

John Donne (1572-1631)Meditação 18

Nos últimos anos da década de 90, doséculo XX, aconteceram dois conflitos, o doTimor Leste e o do Kosovo que, com grandevigor, trouxeram à tona o tema da Ingerên-cia Humanitária. Quase contemporâneos,no entanto bastante diferentes quanto aosantecedentes e ao encaminhamento toma-do dentro do Conselho de Segurança daONU, eles mostraram a fragilidade da co-munidade internacional frente aos novosdesafios do período pós-Guerra Fria.

Eugênia Kimie Suda Camacho Pestana

Ingerência humanitáriaUm novo paradigma em formação?

Eugênia Kimie Suda Camacho Pestana, 39,formada em Ed. Física pela UnB (1986), especia-lizações: Ed. de Defic. Visuais (IBC/RJ, 1989);Ed. do Defic. Mental (UnB, 1994).

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. JORGE LUIZFONTOURA NOGUEIRA.

Introdução; 1. Breve histórico da reação in-ternacional à Guerra do Golfo; 2. O conceito deSegurança Coletiva após a Guerra do Golfo; 3.A Agenda para a Paz do Secretário-Geral Bou-tros Ghali; 4. Operações de Paz da ONU; 5. Ati-vidades Humanitárias da ONU; 6. O conflitono Timor Leste e no Kosovo; 6.1. Timor Leste;6.2. Kosovo. 7. Ingerência Humanitária: Bre-vesConsiderações; 8. A Doutrina da Comuni-dade Internacional; Conclusão; Referências;

Sumário

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Este estudo procurará analisar algumasquestões relativas ao tema da IngerênciaHumanitária, buscando responder à inda-gação do título: há um novo paradigma emformação?

O tema “Ingerência Humanitária” pode-ria ser abordado de várias formas diferents.Seria possível começar a discussão a partirdos aspectos filosóficos do Direito, discu-tindo-se, por exemplo, o conceito de DireitoNatural e dos Direitos Humanos; poder-se-ia analisar os últimos conflitos internacio-nais onde a questão humanitária foi umaspecto relevante, como a crise na Somá-lia, o massacre em Ruanda, os confrontosno Haiti, no Iraque ou na ex-Iugoslávia.Outra possibilidade seria estudar mais afundo as Operações de Paz da ONU ou oconceito de Segurança Coletiva que emer-giu no pós-Guerra do Golfo. Não faltamalternativas.

Para tentar resolver esse dilema e sem apretensão de esgotar o assunto, este traba-lho procurou selecionar alguns dos seusaspectos a fim de delimitar a discussão emarcar, tão somente, o início de um estudomais aprofundado sobre objeto tão apaixo-nante. Ele terá início com uma breve análisehistórica do período pós-Guerra do Golfopara, em seguida, serem levantados algunsaspectos das Operações de Paz e das ativi-dades humanitárias da ONU. A Agendapara a Paz, documento norteador dessasquestões, será brevemente analisada. Naseqüência, serão revistos os dois conflitosescolhidos, entre tantos da última década,por levantarem a questão da crise humani-tária e por terem sido conduzidos de formatão diferente, a partir do prisma do Conse-lho de Segurança.

Um dos capítulos abordará análise maisaprofundada de algumas questões que en-volvem a Ingerência Humanitária, sob oponto de vista de José Gomes Canotilho e,por fim, será citada a Doutrina da Comuni-dade Internacional, do primeiro-ministrobritânico Tony Blair, por ser uma tentativade dar alguma ordem ao tema.

1. Breve histórico da reaçãointernacional à Guerra do Golfo

O fim da guerra fria tornou possível ofuncionamento, ainda que imperfeito e pas-sível de críticas, do sistema de segurançacoletiva previsto na Carta de 1945, pois ofim do bipolarismo e dos constrangimentosque ele provocava nos organismos internacio-nais possibilitou à ONU uma atuação maisefetiva na promoção e manutenção da paz eda segurança internacionais (LAMPREIA,1995, apud LAMAZIÈRE, 1998).

Assim, ao final dos anos oitenta e com ofim da guerra fria, duas tendências se mani-festaram com crescente vigor na cena inter-nacional: o recurso às Nações Unidas e, so-bretudo, ao Conselho de Segurança, para oencaminhamento de conflitos antes aparen-temente insolúveis; e a aceitação, primeiropelo então bloco socialista e logo pelos não-alinhados, de acordos de desarmamento,bilaterais ou multilaterais, que comportavammedidas de verificação cada vez mais in-trusivas.

Após a invasão do Kuaite pelo Iraque,em agosto de 1990, e ao longo do processoque levou à resolução de cessar-fogo – 687(1991) – e à criação da Comissão Especialdas Nações Unidas (United Nations SpecialCommission – UNSCOM), esses dois pro-cessos convergiram de forma emblemática.

Esta constatação reforçaria o caráter deoperação paradigmática e pedagógica daintervenção contra o Iraque. Perante amea-ças no eixo centro/periferia, a dissuasãopassava a ser buscada em um sistema desegurança coletiva das Nações Unidas re-vivificado, e não mais na dissuasão nuclearadaptada ao conflito Leste/Oeste.

A reação progressivamente articuladapelos Estados Unidos ao conflito permitiualcançar uma série de objetivos democráti-cos. Primeiramente, demonstrar que no mun-do pós-guerra fria era possível uma açãounida da comunidade internacional, sob aliderança norte-americana, para enfrentarameaças à paz e à segurança internacionais.

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Em segundo lugar, legitimar esta operaçãopelo recurso ao sistema de segurança coleti-va da Carta, que por sua vez se legitimava,na mesma medida, pela sua eficácia recu-perada. Em terceiro lugar, usar o Conselhopara amarrar diversos dos chamados no-vos temas globais ao âmbito da segurançainternacional: não-proliferação de armas dedestruição em massa; direitos humanos;meio ambiente. E, em quarto lugar, assegu-rar uma ordem regional estável que garan-tisse o suprimento, em longo prazo e compreços aceitáveis, de petróleo ao Ocidente.

Cabe sublinhar que o Iraque preenchiaas necessidades do momento com perfeição.Aparecia como motivo ideal para uma in-tervenção com base na preservação da or-dem interestatal, sob vários aspectos: claraviolação territorial – agressão e ocupação;proliferação de armas de destruição emmassa; violações de direitos humanos; eameaças ao meio ambiente.

Em reação ao conflito, o Conselho de Se-gurança das Nações Unidas – CSNU – apro-vou uma série de resoluções sob o CapítuloVII de caráter praticamente inédito, culmi-nando, em um primeiro momento, com aautorização aos Estados Membros para ouso de “todos os meios necessários” paraliberar o Kuaite – resolução 678 (1990) – e,mais tarde, obtido este resultado, com a im-posição de um conjunto de severas medi-das ao Estado invasor através da resolução687 (1991).

Assim, em nome ao mesmo tempo da se-gurança internacional e da não-prolifera-ção, se procedeu ao desarmamento de umsó país, fazendo claramente desse processoum evento paradigmático e pedagógico, porautorizar o uso da força militar coletiva parapreservar o direito internacional (SHEFFER,1991, apud LAMAZIÈRE, 1998).

2. O conceito de Segurança Coletivaapós a Guerra do Golfo

A entrada em vigor da Carta da ONU em24 de outubro de 1945 abriu um novo capí-

tulo na história da segurança coletiva. Uminstrumento internacional destinado a apli-car-se à comunidade das nações como umtodo regulamentava, com um grau de espe-cificidade sem precedentes, os termos e con-dições para a autorização de ações coerciti-vas para a preservação da paz. O fulcro des-sa regulamentação era o Capítulo VII.

F. T. Liu retém os elementos básicos dosistema das Nações Unidas para a preser-vação da paz e segurança internacional noseguinte parágrafo:

The original system devised by the UnitedNations to ensure the maintenance of internatio-nal peace and security is outlined in ChaptersVI and VII of the Charter. Briefly it is meant tofunction in the following manner. When a dis-pute arises between two governments, the parti-es concerned are obliged, under Chapter VI, toseek a solution by peaceful means, mainly bynegotiation, conciliation, mediation and arbitra-tion. If the peaceful means should prove insuffi-cient and the dispute escalates into armed con-flict, the Chapter VII comes into play. That Chap-ter, which constitutes the core of the UN collecti-ve security system, stipulates that in case of anythreat to the peace, breach of the peace or act ofaggression, the Security Council may take en-forcement measures to restore peace, first non-military measures such as arms embargoes andeconomic sanctions, and, in the last resort, theuse of force. (LIU, 1994, apud PATRIOTA, 1998,p. 24)

O Capítulo VII da Carta da ONU atribuiao Conselho de Segurança o monopólio so-bre a autorização da coerção militar e nãomilitar, excetuado o direito individual oucoletivo à legítima defesa previsto pelo Arti-go 51. Vale ressaltar que as decisões inspi-radas nos dispositivos do Capítulo VII sedistinguem das demais decisões do CSNUessencialmente por não requererem o con-sentimento da parte às quais elas se apli-cam. As possibilidades de ação oferecidaspelo Capítulo VII podem ser consideradascomo manifestações do dois enfoques dis-tintos para restabelecer a paz: o do isola-mento e o da intervenção. O primeiro seria o

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das sanções, previstas pelo Artigo 41, quepodem assumir feições variadas, indo doisolamento diplomático, passando pelosembargos de armas, até chegar às sançõesabrangentes, inclusive econômicas e comer-ciais. O segundo seria o da ação coercitivaarmada contemplada pelo Artigo 42.

Tanto a lógica do isolamento como a daintervenção conflitariam, em princípio, comos preceitos de não intervenção nos assun-tos internos dos Estados consagrados noArtigo 2.7 da Carta e da igualdade sobera-na de todos os membros da Organização doArtigo 2.1. O próprio Artigo 2.7, entretanto,esclarece que o princípio da não interven-ção “não prejudicará a aplicação de medi-das coercitivas sob o Capítulo VII”. Ao de-terminar que uma situação ameaçaria a pazinternacional, o CSNU teria, portanto, o po-der de adotar decisões que desconsideras-sem a soberania da parte responsabilizadapor tal ameaça e que, nos temos do Artigo25, se tornariam ipso facto mandatórias paraos demais Estados membros, questão atéhoje bastante polêmica.

Apesar de a noção de segurança coleti-va universal sobreviver há mais de três quar-tos de século, um sistema previsível de ope-racionalização da segurança coletiva nãochegou a ser instaurado, nem com base noPacto da Liga das Nações nem para a aplica-ção do Capítulo VII da Carta da ONU. Quan-do a ação coletiva contra o Iraque foi autori-zada pelo Conselho de Segurança com a apro-vação dos cinco membros permanentes, abri-ram-se perspectivas inusitadas que, a rigor,talvez nunca tivessem se apresentado antes.

No contexto da intensificação da ativi-dade do Conselho de Segurança do períodopós-Guerra do Golfo, o Capítulo VII foi in-vocado um número maior de vezes do quenos quarenta e cinco anos anteriores, em umprocesso de experimentação virtualmentecontínuo, que acarretou reinterpretações daCarta, tanto no que se refere aos objetivos dasegurança coletiva como no tocante aosmeios para garanti-la. Segundo Lamazière(1998),

A Somália, a ex-Iugoslávia, a Ruan-da, o Haiti e os países alvo de sançõesforam, ou continuam sendo, palco deexperiências com implicações para ateoria e a prática de segurança coleti-va que, embora não se tenham aindacristalizado em uma doutrina ou emum conjunto de regras, vão articulan-do um paradigma novo pelos prece-dentes que estabelecem (LAMAZIÈRE,1998, p. 155)

Essa articulação, para Lamazière (1998),pode ser analisada a partir de dois eixosdistintos: o dos fins e o dos meios. No pri-meiro eixo se situariam as questões relacio-nadas aos objetivos das ações de segurançacoletiva, no contexto das quais sobressai oproblema da ampliação do campo de apli-cação do Capítulo VII para incluir situaçõesde emergência humanitária e violações ma-ciças de direitos humanos, ou para o com-bate ao terrorismo, à subversão da ordemdemocrática e à proliferação de armas dedestruição de massa – na expressão deStanley Hoffman, é a transformação da ame-aça à paz e segurança internacional em umall purpose parachute (HOFFMAN, 1993, apudPATRIOTA, 1998, p. 156).

No eixo dos meios podem ser agrupadasas diferentes modalidades de enforcement quevem sendo praticadas, como as da atribui-ção de mandatos coercitivos a operações depaz, ou do emprego de forças multinacio-nais ou alianças militares defensivas paraa imposição de decisões do Conselho deSegurança. Também relevante para o deba-te sobre os meios são as trocas de idéias e asiniciativas em curso sobre como tornar maiseficazes as operações de manutenção dapaz, mediante o estabelecimento de standbyarrangements e de Unidades de Estado-Maiorde deslocamento rápido (Rapidly DeployableHeadquarters Unit).

O sentimento de que se estão redefinin-do, no Conselho de Segurança, os fins e osmeios para a aplicação da segurança coleti-va explicam, em boa medida, porque se acir-rou a disputa entre os Estados membros

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para participar de seus trabalhos. O fato deessa articulação ainda estar se desenvolven-do no que Weiss e Gordenker (1993, apudPATRIOTA, 1998, p. 156) chamam de um“operational and conceptual flux” aumenta aresponsabilidade daqueles que podem in-fluir para plasmar a ação do Conselho an-tes de ela se fixar em padrões menos mutá-veis de comportamento.

No tocante ao eixo dos objetivos ou dafinalidade das ações do Capítulo VII, segun-do o estudo de Lamazière (1998), merececonsideração especial o problema da defi-nição de uma responsabilidade coletiva emcasos de emergência humanitária, que, dealguma forma, esteve presente nas quatrosituações em relação às quais o Conselhode Segurança acabou por autorizar o usoda força após a Guerra do Golfo. O prece-dente estabelecido pela resolução 688, queautorizou a prestação de assistência aoscurdos, embora não formalmente inseridono contexto do Capítulo VII, abriu caminhopara ações subseqüentes na África e nos Bál-cãs. Os defensores das intervenções huma-nitárias, em particular, sublinham, comoDavid Scheffer, que “the allied deployment innorthern Iraq in the spring of 1991 has grownin stature as a precedent of forcible humanitarianintervention” (SCHEFFER, 1992, apudPATRIOTA, 1998, p. 157). Se for verdadeque os resultados controvertidos do usoda força na Somália e na Bósnia tenderi-am a diminuir a propensão do CSNU aintervir sem um plano coerente para solu-cionar os problemas políticos por trás decrises humanitárias, a paralisia do Conse-lho de Segurança em face do genocídio emRuanda, por outro lado, manteve aberta aquestão da responsabilidade moral da co-munidade internacional em face de fenôme-nos graves que ofendem a consciência dahumanidade.

Como aponta Scheffer (1992, apud PA-TRIOTA, 1998) o problema não é novo. Em-bora seu enfoque seja o da apologia da “in-tervenção humanitária” consentida ou não– na linha dos Médicos sem Fronteira de

Bernard Kouchner – ele não deixa de esta-belecer uma listagem interessante de prece-dentes, dividida em três categorias, que in-cluem tanto os casos em que houve reaçãointernacional como aqueles em que não hou-ve, nos seguintes termos: 1) situações em queminorias religiosas ou étnicas são sujeitas aviolência sistemática (os exemplos vão dadiscriminação sofrida pelas minorias cris-tãs sob o Império Otomano, passando peloholocausto até a exterminação em grandeescala de membros da etnia Ibo, em sua lutapela secessão na Nigéria para a criação deum Biafra independente); 2) casos de viola-ções de direitos humanos, com grande nú-mero de mortos (as ações do Khmer Rouge,as atrocidades cometidas por Idi AminDada, os acontecimentos em Timor Leste);3) resgate ou proteção de cidadãos expatria-dos ou indivíduos em perigo (sob este pre-texto ocorreram intervenções de Israel emUganda, da França no Chade e dos EUA emGranada). A militância intervencionista deScheffer se expressa segundo fórmulas como

To argue today that norms of sovereign-ty, non-use of force, and the sanctity ofinternal affairs are paramount to the col-lective rights of people, whose lives andwell-being are at risk, is to avoid the hardquestions of international law and to ig-nore the march of history. (SCHEFFER,1992, apud PATRIOTA, 1998, p. 158)

Não deixa de ter impacto sua afirmaçãode que, em alguns dos exemplos por ele ci-tados, intervenções unilaterais puseram fima situações calamitosas: a invasão do entãoPaquistão oriental pelo exército indiano em1971, que interrompeu agressões dos pa-quistaneses ocidentais contra os bengalisseria um desses casos; a intervenção da Tan-zânia contra o regime de Amin Dada em1979, sob alegação de auto-defesa, seria ou-tro.

Por outro lado, a Comission on GlobalGovernance (que se reuniu de 1992 a 1994,com o objetivo de pensar as Nações Unidasno contexto de seu cinqüentenário, e quereuniu algumas centenas de representantes

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governamentais e não governamentais detodas as regiões do mundo) sustenta que, seo Conselho de Segurança pretende descon-siderar o preceito da não ingerência nos as-suntos que dependem essencialmente dajurisdição interna de um Estado, essa prer-rogativa – que lhe é facultada pelo Artigo 2(7) – precisa ser exercida dentro de umamoldura acordada entre os membros daONU. A Comissão acredita que, na prática,os Estados membros sabem quando umasituação ultrapassa os limites do tolerável ecita casos como o do apartheid na África doSul, do Camboja sob o Khmer Rouge, da So-mália, da Bósnia e da Ruanda, mas, paraque não haja dúvida, sugere uma emenda àCarta que restrinja intervenções coercitivasem defesa de vítimas de agressão no interi-or de Estados, apenas ao casos que consti-tuam uma violação tão grande e extrema dasegurança da população que seja precisouma resposta internacional. Até que sejaalcançado um consenso nesse sentido, a suarecomendação é de que seja mantido o res-peito à não intervenção.

Não resta dúvida de que o Conselho deSegurança tem vivido momentos de vitali-dade, principalmente depois da Guerra doGolfo. No entanto, pairam incertezas sobreos efeitos que a prática recente do Conselhoestá tendo para a credibilidade da Organi-zação, e não está claro se o conceito de segu-rança coletiva se redefinirá segundo opini-ões e valores amplamente compartilhadosou se desvirtuará para a promoção de inte-resses individuais.

3. A Agenda para a Paz doSecretário-Geral Boutros-Ghali

“Uma Agenda para a Paz: diplomaciapreventiva, estabelecimento da paz e manu-tenção da paz”, é o título do relatório data-do de 17 de junho de 1992, em resposta àsolicitação formulada pelos Chefes de Esta-do e Governo.

A Agenda para a Paz pretendeu conso-lidar o consenso internacional que ocasio-

nara a primeira reunião de cúpula na His-tória do Conselho de Segurança, segundoum movimento duplo e simultâneo de retor-no à Carta de São Francisco e de busca desua transcendência em direções inexplora-das. O documento do então Secretário-Ge-ral da ONU, senhor Boutros-Ghali, foi de-batido pela Assembléia Geral, pelo Conse-lho de Segurança, pelo Comitê Especial deOperações de Paz, pelo Comitê Especial daCarta, pela imprensa e pelo meio acadêmi-co. O consenso de janeiro de 1992 foi, então,alterado, mas não se rompeu de todo. ACúpula comemorativa do cinqüentenário daOrganização, em 1995, permitiu à Assem-bléia Geral viver um momento ao mesmotempo de reafirmação e de autocrítica, emsentido semelhante ao das postulações maisrealistas e matizadas pela experiência, noSuplemento de uma Agenda para a Paz, dejaneiro de 1995.

Nesses dois documentos, Boutros-Ghaliclassificou as atividades realizadas pelasNações Unidas no campo da paz e da segu-rança em cinco categorias operacionais: di-plomacia preventiva, promoção da paz,manutenção da paz, consolidação da paz eimposição da paz.

É interessante ressaltar que o parágrafo43 da Agenda para a Paz propunha que osEstados membros examinassem a hipótesede negociar acordos para o fornecimento aoConselho de Segurança de tropas e outrasformas de assistência militar, em conformi-dade com o Artigo 43, não apenas de ma-neira ad hoc, mas em base permanente. Acre-ditava-se que as circunstâncias políticasprevalecentes haviam eliminado os obstá-culos à plena implementação da Carta e amera existência de tais forças poderia adqui-rir um poder de dissuasão contra agressorespotenciais, particularmente aqueles dotadosde forças militares menos poderosas.

4 Operações de Paz da ONU

A Carta das Nações Unidas preconiza avia pacífica para a solução de controvérsias

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e insta os Estados a abdicarem do uso daforça nas suas relações interestatais. Emcaso de conduta inadequada, a Carta prevêum conjunto de medidas que o CSNU, emnome dos Estados membros da Organiza-ção, poderá adotar contra o Estado ou Esta-dos responsáveis pela ameaça à paz, ruptu-ra da paz ou ato de agressão. Essas medi-das podem ser: sanções econômicas, isola-mento diplomático e, em última instância,ações militares, como foi visto no capítuloanterior. No entanto, segundo Fontoura(1999), diante da inoperância de seu siste-ma de segurança coletiva, as operações demanutenção da paz (peacekeeping) passarama ser amplamente aceitas pela comunidadeinternacional como uma das técnicas maisimportantes de administração de conflitosda ONU. Embora essa modalidade de inter-venção não esteja contemplada explicita-mente na Carta, entende-se, com base nadoutrina dos “poderes implícitos”, que seuemprego é legítimo, pois visa a atender aospropósitos defendidos pela ONU, favorecen-do a solução pacífica de controvérsias me-diante a presença de um terceiro imparcial,geralmente um contingente, armado ou de-sarmado, no terreno.

Na medida em que as operações de ma-nutenção da paz não se enquadram estrita-mente no capítulo VI (medidas que impli-cam consentimento) e tampouco no capítu-lo VII (medidas mandatórias) da Carta, che-gou-se a aventar a introdução na Carta deum novo capítulo intermediário – ou aomenos um novo artigo – que pudesse regu-lamentar sua existência. O Brasil propôs, porexemplo, na XIX Assembléia Geral a inclu-são de um novo capítulo da Carta, nos se-guintes termos: “... mediante a inclusão deum novo capítulo, que se chamaria ‘Opera-ções de Manutenção da Paz’ e ‘Ação Relati-va a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atosde Agressão’” (FONTOURA,1999, p. 67).Dag Hammarskjöld, quando Secretário-Geral da ONU, preferiu situá-las em um ima-ginário “capítulo VI e meio”, uma ponteentre a adoção de medidas voltadas para a

solução pacífica de controvérsias e a apli-cação de medidas coercitivas. Até o momen-to, porém, a Carta das Nações Unidas nãofoi emendada para prever e regulamentarexplicitamente as operações de manutençãoda paz.

Por ocasião do imediato pós-Guerra Fria,o termo “peacekeeping” foi usado de formagenérica, ultrapassando os limites de suaaplicabilidade, para englobar todas as ati-vidades que foram promovidas tendo porobjetivo prevenir, manter e restaurar a paz,inclusive as que se enquadraram no âmbitoda ajuda humanitária internacional presta-da a Estados ou regiões. Essa elasticidadedo uso do conceito de manutenção da pazfoi decorrente, sobretudo, da atitude deMembros permanentes do CSNU, que bus-caram usar a ONU como instrumento desuas políticas externas e instância legitima-dora de iniciativas nacionais e regionais.Nesse contexto, as operações de manuten-ção da paz foram empregadas como umaespécie de panacéia para ajudar na soluçãode todo e qualquer conflito regional, tornan-do-se a face mais visível das Nações Uni-das perante a opinião pública.

Em linhas gerais, segundo Fontoura(1999), foram três os fatores que contribuí-ram, para o aumento das operações de ma-nutenção da paz nesse período: distensãopolítica entre os EUA e a União Soviética eseu impacto sobre o papel das Nações Uni-das no campo da paz e segurança interna-cionais; o afloramento de antagonismos ét-nicos e religiosos; e a crescente universali-zação dos valores da democracia e do res-peito aos direitos humanos.

Porém, com os problemas enfrentadosnas intervenções na Somália, em Ruanda ena antiga Iugoslávia, o CSNU passou a atu-ar com mais cautela na criação de novasoperações de manutenção da paz. Pode-sedizer, inclusive, que os mesmos países que,até 1994, preconizavam o uso quase indis-criminado destas operações, passaram aadotar postura oposta, não apenas devidoaos custos elevados das missões, em termos

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de recursos humanos e financeiros, mastambém por terem verificado que as opera-ções de manutenção da paz da ONU, embo-ra pudessem abrigar mandatos multidisci-plinares, dificilmente seriam bem sucedidasse fossem violados seus princípios tradicio-nais do consentimento das partes, da im-parcialidade e do uso da força somente emcasos de autodefesa.

No período recente, pode-se identificarno CSNU uma clara tendência de utiliza-ção das operações de manutenção da paz,sob o comando do Secretário-Geral, somen-te em cenários de conflitos de baixa intensi-dade e nos quais haja o consentimento dosprincipais atores no terreno com a presençadas tropas e observadores da ONU, mesmoque a operação seja considerada “robusta”e esteja amparada no capítulo VII da Carta.Já nos cenários mais complexos, notada-mente nos casos de conflitos de maior in-tensidade com riscos de envolvimento detropas da missão em situações de combate,existe virtual consenso no CSNU de que aONU não dispõe dos recursos humanos,materiais e financeiros nem da estrutura decomando necessários para intervir militar-mente. Nesses casos, que costumam exigirações de imposição (peace-enforcement), a ten-dência é que o CSNU continue autorizandocoalizões ad hoc de Estados membros, ouentidades ou arranjos regionais ou sub-re-gionais, para agir com base no capítulo VIIda Carta das Nações Unidas (FONTOURA,1999).

5. Atividades Humanitárias da ONU

Entre 1998 e 1999, o Conselho de Segu-rança examinou, em várias ocasiões, temashumanitários e de refugiados. SegundoFonseca (2002), a crescente disposição doConselho em tratar de temas humanitáriosremonta à Declaração Presidencial de 19 dejunho de 1997 sobre a proteção das ativida-des de assistência humanitária a refugia-dos e outras pessoas em situações de confli-to. Naquela declaração, o Conselho de Se-

gurança expressou grave preocupação como aumento dos ataques e o uso da força con-tra refugiados e outros civis em situações deconflito, em violação ao direito internacio-nal, e exortou todos os responsáveis a ga-rantirem a segurança dos refugiados, depessoas deslocadas e outros civis e a asse-gurarem o acesso seguro e desimpedido defuncionários das Nações Unidas e de ou-tras instituições aos necessitados.

O pronunciamento do dia 19 de junhode 1997 também encorajava o Secretário-Geral a promover maiores estudos sobre otema. Um relatório foi preparado em respos-ta àquele pedido. A urgência e importânciade se tratar o tema deve ser vista no contextodos ambientes cada vez mais violentos evoláteis nos quais se encontram os refugia-dos, pessoas deslocadas e outras vítimas deconflitos e nos quais se espera que operemas Nações Unidas e outras organizaçõeshumanitárias. A erosão do respeito às nor-mas humanitárias levou a um aumento nonúmero de vítimas civis, agravou a prote-ção e a necessidade de assistência a refugia-dos e outros em situação de conflito, com-plicou a tarefa de oferecer assistência hu-manitária e aumentou os riscos enfrentadospelo pessoal humanitário.

O Secretário-Geral também recomendou,em seu relatório, que os Estados Membrosreafirmassem, fortalecessem e cumprissemas normas, princípios e disposições existen-tes no direito internacional, cuja dissemi-nação constitui importante passo na dire-ção do seu cumprimento. A informação, trei-namento e as atividades de defesa das orga-nizações humanitárias deveriam ser forta-lecidas. Além disso, afirmou o Secretário-Geral, a cultura da impunidade deveria terfim, com os Estados assumindo a responsa-bilidade primordial de assegurar que aque-les que violam as normas humanitárias fos-sem julgados. O estabelecimento do Tribu-nal Penal Internacional representou umagrande contribuição a esse respeito.

Durante sessão do Conselho conduzidaem dezembro de 1998, relata Fonseca (2002),

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Sadako Ogata, Alta Comissária das NaçõesUnidas para Refugiados, falou pela primei-ra vez ao Conselho sobre a proteção da as-sistência humanitária e outras pessoas emsituações de conflito. Ela afirmou, na oca-sião, que deveria existir uma ênfase concre-ta na relação entre problemas de segurançae situações humanitárias.

Ainda segundo Fonseca (2002), em 21de janeiro de 1999, Sérgio Vieira de Mello,Subsecretário-Geral para Assuntos Huma-nitários, dirigiu-se ao Conselho de Seguran-ça para informar sobre atividades humani-tárias relevantes. Vieira da Mello afirmouque a maneira contemporânea com que setravam as guerras raramente conduz a umaclara definição dos campos de conflito porparte dos beligerantes. Ele também subli-nhou que o Conselho havia reconhecido queviolações maciças do direito internacionalrepresentavam ameaças à paz e segurançainternacionais. O direito internacional defi-nia os imperativos morais e jurídicos paraas ações, mas não era efetivo se não traduzi-do em termos de ação pragmática. O reco-nhecimento deste fato seria essencial para aconstrução da paz e segurança, concluiu odiplomata.

Hoje, na maioria das vezes, os civis sãoalvo. O terror é uma prática premeditada, eo deslocamento e eliminação de populações,uma estratégia, como se pode observar naex-Iugoslávia, em Serra Leoa, no Afeganis-tão e, de forma contundente, no Iraque.Como resultado, mesmo conflitos de baixaintensidade geram enorme sofrimento hu-mano, e as necessidades humanitárias sãodesproporcionais à escala de conflito mili-tar.

Do ponto de vista brasileiro, medidashumanitárias e de proteção que não fazemparte de um plano político ou diplomáticoprejudicam a efetividade da assistência hu-manitária e podem, de fato, agravar a situa-ção. O Brasil reconhece, contudo, a inter-relação entre assuntos de segurança e asquestões humanitárias. Há casos em que aforça é indispensável como último recurso.

O problema dos refugiados, por exemplo,pode ser não apenas conseqüência de umconflito armado, mas, em alguns casos, umaprópria ameaça à paz e segurança interna-cionais.

A posição brasileira, segundo Fonseca(2002), é a de que uma abordagem equili-brada dos temas humanitários requer: a)evitar a percepção errônea de que os paísesem desenvolvimento são apenas receptoresde assistência, quando, de fato, geralmentedoam seus escassos recursos; b) a promo-ção do direito internacional humanitário,dos direitos humanos e dos direitos dos re-fugiados; c) igual atenção a problemas equi-valentes, o que implica a eliminação de pa-drões duplos no tratamento de crises de re-fugiados e de outros temas humanitários;d) mais especificamente, a comunidade in-ternacional deve demonstrar em relação àcrise africana o mesmo nível de interesse eenvolvimento político apresentado em ou-tras partes do mundo.

6. Os conflitos no TimorLeste e no Kosovo

Com o objetivo de ilustrar a discussão,foram escolhidos dois conflitos nos quais aparticipação do Conselho de Segurança sedeu de forma oposta. Em ambos, o tema daIngerência Humanitária foi invocado, masem apenas um deles, o caso do Timor Leste,a decisão pelo uso da intervenção foi toma-da e acatada sob os auspícios da ONU. Suasconseqüências para o equilíbrio de forçasno cenário internacional se refletem aindanos dias de hoje.

6.1 O conflito no Timor Leste

Segundo Fonseca (2002), a questão deTimor Leste estava na agenda do CSNU des-de a anexação do território pela Indonésiaem dezembro de 1975. Timor havia sido co-lônia portuguesa por 450 anos; os indoné-sios, contudo, apoiaram os opositores da“Frente Revolucionária do Timor Leste In-dependente” (FRETILIN), que resultou vi-

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toriosa de uma breve guerra civil que se se-guiu à retirada de Portugal em 1974. Em1976, a Indonésia estabeleceu uma lei queintegrou Timor Leste a seu território, na con-dição de 27a província.

A unidade nacional e a manutenção doestado são muito difíceis para o governoindonésio, pois o país tem cerca de 13 mililhas e mais de 300 dialetos. Acredita-se quea questão da independência do Timor Lestepoderia servir de estímulo a que outras ilhasoptassem pelo mesmo caminho, o que aba-laria a coesão nacional da Indonésia. Noentanto, em 1975 e 1976, o Conselho de Se-gurança emitiu resoluções que “reafirma-ram o direito à autodeterminação do povotimorense e conclamavam a Indonésia a re-tirar suas forças do Território” (resoluções384 e 389).

Em novembro de 1991, o massacre demanifestantes em Dili provocou a indigna-ção internacional e, em 1996, dois dos maisativos críticos do regime indonésio em Ti-mor Leste, Monsenhor Carlos Belo e JoséRamos-Horta, receberam o Prêmio Nobel daPaz. Em junho de 1998, após a renúncia doPresidente indonésio, que há 32 anos esta-va no poder, o Governo da Indonésia mani-festou formalmente sua disposição em ofe-recer “status especial a Timor Leste comampla autonomia”. Outro avanço ocorreucom o anúncio, por parte do PresidenteHabibie, sucessor de Suharto, de que se opovo timorense não aceitasse a proposta deautonomia debatida na ONU, seu governoconsideraria a possibilidade de oferecer in-dependência a Timor Leste.

Daí em diante, as conversações tiveramrápido progresso, culminando com a assi-natura, em 5 de maio de 1999, de uma sériede acordos pelos quais Indonésia e Portu-gal solicitavam ao Secretário-Geral o esta-belecimento de uma Missão das NaçõesUnidas em Timor Leste com o propósito deconsultar o povo timorense a respeito de“sua aceitação ou rejeição da proposta cons-titucional de autonomia”. A resolução 1246decidiu estabelecer a Missão das Nações

Unidas em Timor Leste (UNAMET), commandato para organizar e conduzir umaconsulta popular, baseada no “voto direto,secreto e universal”. Após a votação, aUNAMET deveria supervisionar o “perío-do de transição” que levaria à implementa-ção da decisão do povo timorense. A vota-ção realizou-se em 30 de agosto, com o ex-traordinário comparecimento de mais de90% dos eleitores cadastrados.

O Secretário-Geral anunciou o resulta-do da votação: 78,5% dos votos rejeitaram aproposta de autonomia especial. O proces-so de transição à independência deveriacomeçar imediatamente. O anúncio do re-sultado, contudo, alimentou a violência que,naquele ponto, passou a ser vista como ame-aça à segurança internacional. Ao deparar-se com mais e mais relatórios de assassina-tos em massa e deslocamentos forçados, oConselho de Segurança resolveu conside-rar a opção de uma força de paz, já que eraevidente que o Governo da Indonésia nãorespondia efetivamente à violência, apesarde sua decisão de declarar estado de emer-gência. As autoridades indonésias, no en-tanto, não aceitavam o engajamento de umaforça de paz, argumentando ser esta umainterferência em seus assuntos internos.

Devido à urgência da situação, foi cria-da uma força internacional sob liderançada Austrália, que já havia indicado sua dis-posição de liderar tal força. A crescente pres-são e a escalada dos atos de violência leva-ram as autoridades indonésias a reconside-rar sua posição e o Presidente Habibie con-cordou finalmente em permitir que uma for-ça multinacional (INTERFET) adentrasseTimor Leste. De acordo com a resolução1264, o mandato de força incluía a restaura-ção da paz e da segurança em todo o Terri-tório, a proteção e apoio à UNAMET, e, nolimite de suas possibilidades, a facilitaçãode operações de assistência humanitária.Uma operação humanitária de grande es-cala também estava a caminho. Esforços di-recionados ao fornecimento e de alimenta-ção, abrigo, medicamentos e outros serviços

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básicos, bem como a repatriação dos refugia-dos, eram envidados por várias agências daONU.

Em 19 de outubro de 1999, o Presidenteda Assembléia Consultiva do Povo Indoné-sio rescindiu a anexação política de TimorLeste, reconhecendo formalmente, assim, oresultado do pleito.

Vale ressaltar que a posição australianafoi determinante para que o ocidente se tor-nasse mais atuante em favor do Timor. Osestudiosos “realistas” do direito internacio-nal não conseguem explicar o que aconte-ceu em Timor, pois não havia questões deinteresse que motivassem, por exemplo, aposição da Austrália. A opinião pública aju-dou nesse processo, assim como a posiçãodo Brasil que, na ocasião, era membro pro-visório do CSNU e pediu uma reunião deemergência sobre a questão.

A experiência da ONU em Timor Lestefoi coordenada pelo brasileiro Sérgio Vieirade Mello que, desde 1999, com plenos pode-res e amplos recursos financeiros, conse-guiu dobrar a intolerância da Indonésia e,em trinta meses, reorganizou do zero umpaís destroçado pela guerra. A missão foiencerrada em meados de 2002 e o líder ti-morense Xanana Gusmão foi eleito presi-dente do Timor.

6.2 O conflito no Kosovo

No início de 1998, a Província do Koso-vo, no Sul da República Federal da Iugoslá-via, não estava na agenda do Conselho deSegurança, conforme relata Fonseca (2002).Tampouco havia sido parte dos acordos deDayton, que puseram fim ao conflito na Bós-nia. A situação em Kosovo, contudo, era fon-te de preocupação, especialmente em se con-siderando o histórico de violência inter-étnica ao longo da década. Pessoas de etniaalbanesa no Kosovo sentiam-se desconfor-táveis como membros de uma RFI predomi-nantemente sérvia (embora no próprio Ko-sovo os sérvios fossem apenas cerca de 10%da população). Esse crescente de tensões,que já durava dez anos, era acompanhado

de perto pela Organização para Segurançae Cooperação na Europa (OSCE), a UniãoEuropéia e o Grupo de Contato – um grupode seis Estados composto pela França, Ale-manha, Itália, Rússia, Reino Unido e Esta-dos Unidos.

Nos bastidores, cresciam as informaçõessobre a intensificação do fluxo de armasclandestinas para o Kosovo, destinadas amembros de uma estrutura militar, o “Exér-cito de Libertação do Kosovo” (KLA), consi-derada por Belgrado uma organização ter-rorista separatista, cujas atividades visavama pôr fim ao predomínio sérvio na provín-cia. Esta situação de potencial conflito foisubstituída por um real confronto nos pri-meiros meses de 1998, quando a violênciairrompeu com ataques do KLA a delegaciasde polícia e a conseqüente reação sérvia.

No início de janeiro de 1999, o assassi-nato de três policiais sérvios pelo KLA foiseguido de um massacre de albaneses-ko-sovares na cidade de Racak, em 15 de janei-ro, e a subseqüente declaração de Belgradode que o Chefe da Missão de Verificação noKosovo era persona non grata . Essa seqüên-cia de eventos levou o Conselho a adotar aDeclaração Presidencial 2, de 19 de janeirode 1999. O massacre de Racak representouum ponto de inflexão na questão do Koso-vo. Semanas mais tarde, o Grupo de Conta-to acordou parâmetros e um cronogramapara uma solução política entre as partes.Essas decisões – que se encontram na ori-gem das conversações de paz de Rambouillet– foram saudadas e apoiadas pelo Conselhode Segurança.

O CSNU era mantido informado das ne-gociações de Rambouillet sobre um acordoreferente à autonomia substantiva para Ko-sovo no que toca à soberania e integridadeterritorial da República Federal da Iugoslá-via, por exposições do Embaixador da Fran-ça. As tensões aumentaram após a interrup-ção das conversações, em 19 de março, coma retirada dos observadores internacionaisdo Kosovo. Com sua saída, chegaram à man-chete relatos de sérias violações dos direi-

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tos humanos e do direito humanitário porparte de forças sérvias contra civis de etniaalbanesa. Ataques aéreos da OTAN contraa República Federal da Iugoslávia começa-ram em 23 de março.

O uso da força por parte de uma aliançade segurança regional sem a autorização doCSNU precipitou uma onda de discussõessobre a legitimidade de tais atos, empreen-didos em nome da emergência humanitá-ria. O CSNU reuniu-se formalmente naque-le mesmo dia e acompanhou atentamente asituação durante o resto do conflito. A dele-gação russa elaborou um projeto de resolu-ção (S/199/328) que exigia a imediata in-terrupção dos ataques. O projeto não foiadotado, tendo recebido apenas três votos afavor (Rússia, Namíbia e China).

Os primeiros dias após o início dos ata-ques aéreos foram marcados por um consi-derável agravamento da situação humani-tária no Kosovo, no que se tornou um êxodoem massa de refugiados e pessoas desloca-das. Com a continuação da ação militar, aescalada da tragédia humanitária no Koso-vo e graves acidentes, como o bombardeiode um comboio de refugiados civis por ae-ronaves da OTAN e o bombardeio da Em-baixada chinesa, complicaram ainda maisa situação. Por iniciativa de membros doConselho que são parte do “Caucus” doMovimento Não-Alinhado, o Conselho ado-tou a resolução 1239, que sublinhava a ne-cessidade de se oferecer assistência a pes-soas internamente deslocadas no Kosovo.Em 10 de junho, após a OTAN haver infor-mado que suas operações contra a Repúbli-ca Federal da Iugoslávia tinham sido sus-pensas, o Conselho de Segurança adotou(com a abstenção da China) a resolução1244, que lançou as bases para o trabalhodas Nações Unidas no Kosovo desde aque-le dia (FONSECA, 2002).

Durante esse período, o Brasil permane-ceu comprometido com a promoção da esta-bilidade baseada no pluralismo democráti-co nos Bálcãs, além da proteção aos direitosdas minorias e o repúdio a todas as formas

de intolerância sectária, baseada seja emdistinções religiosas, étnicas ou outras.

Com relação ao posicionamento daOTAN, o Embaixador Celso Amorim(AMORIM, 1998, apud FONSECA, 2002)demonstrou a preocupação em salvaguar-dar a Carta das Nações Unidas, já que orga-nismos sem representação universal pode-riam apenas recorrer à força no exercício dodireito de legítima defesa ou de acordo comas orientações do Capítulo VIII, sendo ne-cessária a autorização prévia do Conselhode Segurança.

O discurso do Embaixador GelsonFonseca Jr. no CSNU, também traduz as pre-ocupações e o posicionamento brasileiro emrelação ao conflito no Kosovo, quando elealerta para os “precedentes problemáticosno recurso à força militar sem a autorizaçãodo Conselho de Segurança” (FONSECA,1998, apud FONSECA, 2002, p. 194).

7. Ingerência Humanitária:breves considerações

Segundo José Gomes Canotilho (1995),ao se analisar a ingerência humanitáriacomo elemento ou dimensão constitutiva deuma “nova ordem mundial”, é preciso re-fletir sobre três aspectos: a compreensão dodireito e das relações internacionais; a deli-mitação dos vários conceitos utilizados nadiscussão do problema, tais como “interven-ção”, “ingerência”, “agressão” e “ameaça àpaz”; e a definição dos pressupostos mate-riais das ingerências humanitárias.

A fim de dar seqüência a sua argumen-tação, ele parte das seguintes premissas:

a) a democracia e o caminho para a de-mocracia devem ser considerados como tó-picos dotados de centralidade política in-terna e internacional;

b) o princípio da autordeterminação deveser reinterpretado não apenas no sentido deque os “povos” devem deixar de estar sub-metidos a quaisquer formas de colonialis-mo, mas também no sentido de que a legiti-mação da autoridade e da soberania políti-

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ca pode encontrar suportes sociais e políti-cos em outros níveis – supranacionais e sub-nacionais – diferentes do “tradicional” e“realístico” “Estado-Nação”;

c) a globalização das comunicações einformações e a “expansão mundial de uni-dades organizativas internacionais” (orga-nizações não-governamentais), privadas oupúblicas (mas não estatais), deslocam o pa-pel obsidiante do “ator estatal”, tornandoas fronteiras cada vez mais irrelevantes e ainterdependência política e econômica cadavez mais estruturante;

d) os fins do Estado não são imutáveis.Se ontem a “conquista territorial”, a “colo-nização”, o “espaço vital”, o “interesse na-cional”, a “razão de Estado” surgiam sem-pre como categorias quase ontológicas, hoje,os fins dos Estados podem e devem ser osda construção de “Estados de direito demo-cráticos sociais e ambientais”, no plano in-terno, e Estados abertos e internacionalmen-te “amigos” e “cooperantes”, no plano ex-terno;

e) o pathos de um programa de “paz mun-dial” assenta na intensificação do “desar-mamento” e na viabilização efetiva de umasegurança coletiva;

f) neste contexto, readquire virtualidadescrescentes a organização internacional, so-bretudo na sua forma de associação geralentre as Nações – as Nações Unidas;

g) as relações internacionais devem sercada vez mais relações reguladas em termosde direito e de justiça, convertendo-se o di-reito internacional numa verdadeira ordemimperativa, à qual não falta um núcleo ma-terial duro – o jus cogens internacional –vertebrador quer da “política e relações in-ternacionais” quer da própria construçãoconstitucional interna;

h) para além deste jus cogens, o direitointernacional tenderá a transformar-se emsuporte das relações internacionais atravésda progressiva elevação dos direitos huma-nos – na parte em que não integrem já o juscogens – a um padrão jurídico de condutapolítica, interna e externa;

i) estas últimas premissas – o jus cogens eos direitos humanos -, articuladas com opapel da organização internacional, forne-cerão um enquadramento razoável para asintervenções humanitárias;

j) a “paz mundial”, continua Canotilho,não pode assentar na autarquia econômica,antes pressupõe um “sistema mundo” deinterdependência econômica baseado querna idéia de sistema de livre desenvolvimen-to econômico privado, quer na idéia de re-partição justa do desenvolvimento econô-mico entre todas as nações e povos.

Em defesa de um constitucionalismo glo-bal, argumenta-se que os direitos humanosconstituem valores universais mais impor-tantes do que os interesses negociados pe-los Estados, erguendo-se como importanteslimites à soberania dos Estados. Mas, poroutro lado, para se compreender por que aestruturação de uma “nova ordem mundialatravés de intervenções humanitárias” sus-cita acaloradas discussões nos fóruns in-ternacionais e na literatura jusinternaciona-lista, Canotilho (1995) cita dois princípiosclássicos do direito internacional que sãopostos a prova por essa nova situação: oprincípio de proibição do recurso à força nostermos do Artigo 2 (4) da Carta das NaçõesUnidas e o princípio do direito à autodeter-minação dos povos.

No entanto, continua o autor, justifica-se, também em termos de direito internacio-nal, a legitimação intervencionista ao se con-siderar que as violações dos direitos huma-nos por parte de um Estado, mesmo contrao seu povo, constituem uma violação do di-reito internacional que os outros Estadosdevem impedir, recorrendo, se necessário, àutilização dos meios militares, sendo elassusceptíveis de constituir um problema deameaça à paz. Para o autor, a ingerênciahumanitária constitui o prolongamento na-tural do direito à vida e de outros direitosbásicos consagrados nos atos normativosinternacionais.

Não obstante a razoabilidade dessas di-mensões do direito internacional, é preciso

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perceber que o problema da ingerência hu-manitária apresenta algumas sombras, cor-rendo o risco de, a pretexto de uma morali-zação do direito e das relações internacio-nais, haver uma radicalização da “politiza-ção humanitária” sem regras claras e semum verdadeiro consenso da comunidadeinternacional.

Outro problema que se apresenta é aambigüidade do conceito de intervenção.Para alguns estudiosos, intervenção e inge-rência seriam sinônimos: a proibição da in-tervenção ou ingerência significa a rejeiçãoda utilização de meios ou instrumentos deforça contra outros Estados ou imiscuir-senos negócios internos destes últimos. ParaLawrence, “the essence of intervention is force”(LAWRENCE, 1920, apud CANOTILHO,1995, p. 11). Para Canotilho, mais do queuma clarificação de conceitos, interessa dis-tinguir com segurança os dois âmbitos nor-mativos das intervenções por ameaça à paze das intervenções humanitárias.

A disposição entre intervenção por ame-aça à paz e intervenção humanitária nãofica clarificada caso se hipertrofie extensi-vamente o conceito de “paz mundial”. Cer-tamente, a paz não se reduz a um conceitonegativo – “ausência de guerra” – mas, porexemplo, no caso da Somália (Resolução794, de 1992), onde era inquestionável a tra-gédia humana, o Conselho de Segurança nãohesitou em considerar aplicável o capítuloVII da Carta das Nações Unidas, ou seja, adisposições referentes aos casos de ameaçaà paz, à ruptura da paz e atos de agressão.

A Somália podia ter se convertido no te-atro ideal para a demonstração do acerto daconcepção de segurança coletiva que am-plia o leque desencadeador da coerção mili-tar para abarcar situações de crise humani-tária ou de violações de direitos humanos edelega a aplicação da força coletivamenteautorizada a exércitos nacionais ou a tro-pas da ONU. A intervenção determinadapelo Conselho de Segurança para a prote-ção da população civil e um país falido, semgoverno, em estado de virtual anarquia ho-

bbesiana teria comprovado a obsolescênciadas noções tradicionais de soberania e ainutilidade do apego rígido à regra do con-sentimento como requisito para a presençade forças onusinas. No entanto, ponderaCanotilho (1995), ao expor tropas norte-americanas e forças da ONU à violência, aSomália se transformou repentinamente emum sinal da necessidade de uma reflexãomais aprofundada sobre futuro da seguran-ça coletiva em um ambiente internacionalem mutação.

A situação de anarquia geral e de vio-lência organizada num território, mesmoquando não há efeitos transfronteiros, in-clui-se no âmbito normativo da ameaça àpaz. De igual modo, a Resolução 949, de1994, relativa ao Haiti, foi considerada peloConselho de Segurança como única e excep-cional, para invocar a ameaça à paz e legiti-mar a intervenção armada.

Esses dois casos – em que a tragédiahumanitária se revelava como indiscutível– indicam claramente um dos impasses doatual direito de ingerência humanitária: oda sua ligação com o direito de intervençãopor ameaça à paz. O alargamento da com-petência do CSNU nestas situações de com-plexa imbricação de ameaça à paz/urgên-cia de auxílio humanitário coloca sem dú-vida o problema do déficit de legitimaçãodo Conselho com a sua composição atual.O caminho para o controle das fronteirasentre humano/desumano implica, sem dú-vida, uma nova definição da ordem mundi-al e das linhas de conduta da comunidadeinternacional.

A relativização do princípio da sobera-nia interna pela ampliação do conteúdo doconceito de ameaça à paz poderá ser umadas exigências de uma “nova ordem inter-nacional”, mas não é certo que através deuma transposição de planos – intervençõesmilitares por ameaça à paz em vez de inter-venções humanitárias – se dêem os passosdecisivos a favor do “direito de urgênciahumanitária”, alerta Canotilho (1995). A fi-xação de um caso de “ameaça à paz” e de

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“urgência humanitária” por parte do CSNUdeve basear-se na existência de determina-dos pressupostos de fato ou a deliberaçãodo Conselho tem efeito constitutivo, fixan-do ela mesma a existência de um ou de ou-tro? No primeiro caso, limitar-se-ia a discri-cionaridade do Conselho. Na segunda hi-pótese, trata-se de uma decisão jurídica.

A interrogação feita acima leva a consi-derar-se que as deliberações do Conselhofirmadas em apreciações políticas, mas comefeitos jurídicos, devem obedecer a um dueprocess que ofereça determinadas garantias.Ou seja: a “nova ordem mundial através deintervenções” tem de estruturar-se como “Es-tado de direito” ou como “comunidade” queobserva o the rule of the law (CANOTILHO,1995).

Assim, uma fixação puramente políticada ameaça à paz ou da urgência humanitá-ria sem que se verifiquem os pressupostosmateriais legitimadores das intervençõesmilitares ou humanitárias, revelar-se-ia aosolhos da comunidade internacional comocarecendo de justificação e como subverso-ra dos princípios estruturantes do direitointernacional (soberania, não intervenção).Para Canotilho, a conclusão é a seguinte: adimensão puramente formal da autorizaçãopara a ingerência – humanitária ou militar– não é fundamento suficiente para assegu-rara a legitimidade da mesma. Ainda quenão haja um “último guardião” para asse-gurar a legalidade das deliberações do Con-selho de Segurança, existe pelo menos a “ra-cionalidade material” que a comunidadeinternacional exige às ações dos seus órgãos.Uma “crise humanitária” não se inventa, con-tinua ele, é necessário existirem situações exis-tenciais coletivas quando não seja possívelmanter o padrão mínimo humanitário.

Canotilho (1995) ainda aborda a ques-tão da relativização dos direitos humanos.A idéia de que as violações dos direitos hu-manos por parte de um Estado constituemtambém, sobretudo quando conduzem a“crises humanitárias”, uma infração do di-reito internacional que os outros Estados

devem impedir, mesmo se necessário forcom utilização de meios militares, deve ga-nhar força. Mas para que a segurança e rea-lização de determinadas idéias de valor ede justiça sejam transformadas em princí-pios ou regras de direito internacional, en-tão esses direitos humanos não podem serrelativizados ao sabor dos interesses de al-guns membros da comunidade internacional.

Outro ponto levantado pelo autor é so-bre a suspeita de que as operações de ma-nutenção da paz e até de intervenções hu-manitárias são monopólio de certos paísesno seio da organização. A acusação pecapelo fato de, em certas intervenções, só pou-cos Estados estarem em condições de cum-prir com a tarefa de coordenação e lideran-ça de forças e meios. Todavia, deve-se con-siderar que a ação onusina só é coletivaquando as forças das Nações Unidas nãoforem dominadas, de forma excessiva, porum só Estado e quando elas agirem sob umcomando que seja efetivamente onusino.

Assim, as ações de intervenção devemter um suporte democrático onusino mes-mo quando a sua execução for descentrali-zada ou regionalizada. As exigências de-mocráticas, continua o autor, obrigarão arever a composição do Conselho de Segu-rança de forma a torná-lo representativo dacomunidade internacional de hoje e não deontem. Dentro do mesmo espírito, impõe-seum mínimo de controle efetivo da Assem-bléia Geral relativamente às deliberações doCSNU, a fim de limitar sua imobilidade ouseu impasse frente às demandas mais con-troversas.

8. A Doutrina da ComunidadeInternacional

Talvez numa tentativa de preencher ovácuo que a atuação internacional em situ-ações de conflito graves tem deixado, o Pri-meiro-Ministro britânico, Tony Blair, enun-ciou a sua Doutrina da Comunidade Inter-nacional em abril de 1999, em discurso feitono Chigago Economic Club. Ele apontou a cri-

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se financeira internacional do ano anteriore o então conflito em Kosovo como dois exem-plos análogos da necessidade de um novoarsenal de regras globais para o século XXI.

O ponto central do seu discurso foi umnovo contexto para a intervenção internacio-nal no combate a ditaduras – uma “doutri-na Blair” que trazia ecos da “doutrinaBrezhnev”, que a União Soviética utilizoupara justificar o seu uso da força contra aChecoslováquia em 1968. Naquela ocasião,Moscou justificou o esmagamento da Pri-mavera de Praga pelo Pacto de Varsóvia ar-gumentando que a soberania nacional eramenos importante do que os interesses dosocialismo mundial. Segundo Morrison(1999), Blair deixou claro no seu discurso queestaria virando ao contrário a velha doutrinapara também argumentar que a soberanianacional é menos importante do que os direi-tos humanos e a prevenção do genocídio.

Para Blair, o problema mais premente dapolítica externa estaria em identificar as cir-cunstâncias em que os países deveriam seenvolver ativamente com os conflitos deoutros povos. A não-interferência, segundoele, foi por muito tempo considerada um prin-cípio importante da ordem internacional, enão é sua pretensão descartá-lo de imediato.

Blair defende que um Estado não deveriaachar que tem o direito de mudar o sistemapolítico de um outro ou fomentar subversãoou tomar pedaços de território a que imaginater algum direito, no entanto, o princípio danão-interferência precisa ser qualificado emaspectos importantes. Atos de genocídio ja-mais podem ser considerados uma questãopuramente interna para o primeiro-ministro,que, no entanto, reconhece que há regimesruins em demasia no mundo, o que inviabili-zaria a intervenção em todos os casos.

O primeiro-ministro expôs cinco questõesa serem respondidas para que se decidisseem favor de uma intervenção (MORRISON,1999):

1) “Estamos certos de nossos argumen-tos?” Para ele, a força armada, às vezes, é aúnica forma de tratar com ditadores;

2) “Será que esgotamos todas as opçõesdiplomáticas?”

3) “As operações militares seriam sen-satas e prudentes?”

4) “Estamos preparados para o longoprazo?” Considerando a experiência britâ-nica na Guerra do Golfo e nos Bálcãs, Blairdisse que não se pode simplesmente sair dopaís depois que a luta terminou;

5) “Há interesses nacionais envolvidos?”Para o Primeiro-Ministro inglês, é impor-

tante salientar a necessidade de que o Con-selho de Segurança se esforce para evitarum retorno ao impasse Leste-Oeste dos tem-pos da Guerra Fria.

Conclusão

As críticas à Ingerência Humanitária sãomuitas e têm como fulcro a falta de um pa-drão de conduta ou de regras pré-estabele-cidas que venham a fornecer certa seguran-ça jurídica aos Estados-Membros da ONU.O exemplo citado no capítulo anterior, aDoutrina da Comunidade Internacional,pouco pragmática, não avança no sentidode resolver essas questões. Embora a preo-cupação do Primeiro-Ministro inglês sejalegítima e há, conforme foi visto ao longo dotrabalho, a necessidade premente de se es-tabelecer regras de conduta frente às situa-ções de emergência humanitária, sua dou-trina não diminui o impasse.

A ONU, ao representar a comunidadeinternacional e defender seus valores pri-mordiais vem, principalmente após o térmi-no da guerra fria, atuando em várias frentesem prol da paz e da segurança coletivas.Entretanto, esses valores têm sofrido modi-ficações e ampliações ao longo dos anos,reflexo da própria sociedade em constantemutação, influenciadas, de forma decisiva,pelo processo de globalização e pelo papelrelevante dos meios de comunicação, queintegraram os mais longínquos pontos en-tre si. Estabelecer padrões nesse cenário nãoé tarefa simples nem rápida. É, antes, umprocesso, com avanços e também revezes,

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como é possível perceber ao se lançar umolhar mais crítico na atuação dos EstadosUnidos da América no conflito com o Afe-ganistão e com o Iraque.

Apesar do reconhecimento das dificul-dades existentes, a lentidão com que asmudanças ocorrem é um fator agravante. Asdiscussões são demoradas e os países ten-tam preservar e manter seu status quo e adiarpossíveis decisões que possam, talvez, vir aprejudicar-lhes. Isso causa certa paralisia eprejudica a credibilidade do sistema onusi-no. Ruanda, como exemplo da imobilidadeque pode inviabilizar a defesa efetiva deuma população em perigo, tem sido lembra-da como mote para acelerar as decisões emcasos urgentes. No entanto, as mudançasna Carta da ONU que regulamentariam suaatuação, ao criar e efetivar novas regras, sãolentas, lentíssimas, e dependem da acomo-dação de, afinal, nações soberanas, temero-sas de perder tanto soberania quanto inde-pendência frente às nações hegemônicas.

Decidir-se a favor da Ingerência Huma-nitária é reconhecer que há valores comunsa todas as sociedades que devem ser defen-didos. Gonçalves (apud BULL, 2002, p. XV)diz que “não obstante a variedade de tradi-ções, hábitos e costumes entre os diversospovos que compõem os diversos Estados, orespeito a determinados valores comuns ésuficiente para compor a sociedade inter-nacional”. Hedley Bull (2002), ao começar aexplicar seu conceito de ordem, cita três ob-jetivos elementares, já que, em certa medida,são condições para a vida social em si mes-ma: vida, verdade e propriedade. Emboranão representem uma lista completa dasmetas comuns a todas as sociedades, elesilustram bem a idéia do que sejam os objeti-vos básicos que as sustentam.

Dessa forma, para muitos autores, a faltade ordenamento não tira a validade dos obje-tivos da Ingerência Humanitária, principal-mente, o de defesa da vida. Como disse Cano-tilho (1995), em sua palestra sobre o assunto,

qualquer que seja a incerteza perantea idéia de um standard mínimo hu-

manitário e quaisquer que sejam asdificuldades em torno de um sistemajurídico internacional de defesa dedireitos humanos, sempre se terá dereconhecer a bondade destes pos-tulados quando se discute o proble-ma das intervenções humanitárias(CANOTILHO, 1995, p. 6).

Assim, apesar de todos os problemas, éa urgência e o reconhecimento de que o so-frimento de qualquer homem diminui a to-dos “porque na humanidade nos encontra-mos envolvidos”, que moverá a comunida-de internacional adiante, em busca da cria-ção de um novo paradigma baseado na so-lidariedade, na justiça, na fraternidade.

Referências

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Nova ordemmundial e ingerência humanitária (claros-escurosde um novo paradigma internacional). Boletim daFaculdade de Direito, VOL LXXI, p. 1-26. Universi-dade de Coimbra, Coimbra, 1995.

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FONTOURA, Paulo Roberto Campos Tarrisse da.O Brasil e as Operações de Manutenção da paz das Na-ções Unidas. Brasília: FUNAG, 1999. 409p.

LAMAZIÈRE, Georges. Ordem, hegemonia e trans-gressão: a Resolução 687 (1991) do Conselho de Segu-rança das Nações Unidas, a Comissão Especial das Na-ções Unidas e o regime internacional de não proliferaçãode armas de destruição em massa. Brasília: InstitutoRio Branco; Fundação Alexandre de Gusmão; Cen-tro de Estudos Estratégicos, 1998. 197p.

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PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Se-gurança após a Guerra do Golfo: a articulação de umnovo paradigma de segurança coletiva. Brasília: Insti-tuto Rio Branco; Fundação Alexandre de Gusmão;Centro de Estudos Estratégicos, 1998. 226p.

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1. IntroduçãoA história do Acre sempre esteve associa-

da a disputas territoriais externas e inter-nas. Esses conflitos deram forma ao cente-nário Tratado de Petrópolis, tido como suacertidão de nascimento, e à ReclamaçãoConstitucional no 1421, de 2000, em trami-tação no Supremo Tribunal Federal. Pode-se afirmar, então, que esses dois documen-tos constituem faces distintas de uma sómoeda: tanto o primeiro, firmado entre oBrasil e a Bolívia, quanto o segundo, de au-toria do Estado do Amazonas, versam so-bre os limites territoriais do Acre.

Desde a segunda metade do século XIX,alguns brasileiros — sobretudo cearensesfustigados por sucessivas secas no Nordes-te — embrenharam-se na selva amazônica,pela bacia do rio Acre, para se dedicar à ati-vidade extrativista. Sem conhecer e mesmosem se importar com títulos de proprieda-de, eles foram aos poucos ocupando as ter-

Flávia Lima e Alves é bacharel em Ciênci-as Econômicas e Relações Internacionais pelaUnB; Assistente Técnica do Quadro Permanen-te do Senado Federal.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. ANTÔNIO JOSÉBARBOSA.

O Tratado de PetrópolisInteriorização do conflito de fronteiras

Flávia Lima e Alves

Sumário1. Introdução; 2. A Revolução Acreana; 2.1.

O longo processo insurrecional; 2.2. BolivianSyndicate: pomo da discórdia; 2.3. Diplomaciaem vez de guerra; 3. O Tratado de Petrópolis;3.1. O acordo com o Peru: aquilo que faltou aoTratado de Petrópolis; 4. A Questão AcreanaPassa à Economia Doméstica; 4.1. A disputa defronteiras em sede constitucional: o mea culpada União; 5. O Acre na Federação: Ontem eHoje; 6. Conclusão; 7. Notas; 8. Referências.

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ras localizadas no extremo oeste do País, amaior parte delas pertencente à Bolívia eoutras pretensamente peruanas. Eram fron-teiras inexatas e fluidas, apesar de estabele-cidas reiteradas vezes por tratados interna-cionais, a exemplo daqueles celebrados emMadri (1750), em Santo Ildefonso (1777) eem Ayacucho (1867).

Enquanto a borracha era apenas um item“exótico” das exportações amazônicas, asincursões populacionais nessas áreas nãochegaram a preocupar os referidos paísesvizinhos. Acostumados aos altiplanos, elesnão se mostravam aptos ou mesmo interes-sados em tomar posse daquela região deplanície.

Todavia, a Revolução Industrial provo-cou a alteração do status dessa matéria-pri-ma na pauta de importações da Europa edos Estados Unidos. De fato, a produçãoindustrial da borracha — viabilizada peloprocesso de vulcanização inventado porCharles Goodyear em 1839 — deu origemao advento dos pneumáticos, item funda-mental da vigorosa e ascendente indústriaautomobilística. Iniciou-se, desse modo, acorrida ao “ouro negro” da Amazônia, jávalorizado graças ao incremento da produ-ção de calçados e das exigências do maqui-nário empregado no processo de industria-lização em si. Isso acabou por despertar osanseios de propriedade da Bolívia e do Perusobre terras antes esquecidas.

Os reflexos de tal mudança na economiamundial não tardaram a ditar os rumos doprocesso socioeconômico de migração nes-te País, acentuado após a grande seca nor-destina de 1877, que acelerou a ocupaçãoterritorial do futuro Estado do Acre e a con-tenda para sua anexação ao Brasil.

Internamente, já se percebiam desejoscontrastantes: os habitantes da região que-riam vê-la transformada em Estado da Fe-deração brasileira, ao passo que o Estadodo Amazonas pretendia incorporá-la a seusdomínios, conforme declara Ernesto Lemeno prefácio ao volume 37 das Obras Com-pletas de Rui Barbosa (1984, t. 6, p. XXII).

No plano externo, o Brasil viria a firmartratados que encerrariam os conflitos terri-toriais relativos àquela região e assentariamos marcos das linhas limítrofes do Acre comos países vizinhos de língua espanhola. Naesfera doméstica, ao contrário, até hoje osestados do Acre e do Amazonas mantêm adiscussão em litígio.

Assim, em pleno século XXI, era da tec-nologia espacial, o Brasil ainda carece deum mapa definitivo da região Norte, umadas mais atrativas para investidores nacio-nais e estrangeiros por conta de suas reser-vas minerais, suas extensas áreas desabita-das e seu potencial agroindustrial.

Registre-se, por oportuno, que são inú-meras as pesquisas em curso para o apro-veitamento econômico da Amazônia, visan-do combinar a preservação e o uso susten-tável de sua enorme biodiversidade. Elasdeixam evidente que as questões relativas àregião não podem ser tratadas como algoperiférico. Afinal, o interesse dos investido-res que para lá voltam seus olhos requer odelineamento preciso dos parceiros envol-vidos, o que pressupõe clareza quanto àsdivisas territoriais.

2. A Revolução Acreana2.1. O Longo Processo Insurrecional

Não se pode entender o Tratado de Pe-trópolis, firmado entre a Bolívia e o Brasilem 1903, sem conhecer as origens da cha-mada Revolução Acreana. A Bolívia, cujosdomínios se estendiam sobre a região atéaquele momento, jamais exercera ali suasoberania. A área entre os rios Javari e Ma-deira constava em seus mapas como “tier-ras non descubiertas”.

Todavia, com o aumento da demandainternacional pela borracha extraída na re-gião, o Governo de Sucre, em setembro de1898, mudou de atitude e rompeu com a in-diferença que nutria quanto à ocupação bra-sileira em curso naquela fronteira. Com isso,o que antes eram “simples escaramuças lo-cais”, “controvérsia de interesses” envol-

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vendo seringueiros brasileiros e vizinhosbolivianos, começou a tomar a forma de con-flito internacional.

Em 3 de janeiro de 1899, José Paravicini— Ministro Plenipotenciário da Bolívia noRio de Janeiro — hasteou a bandeira de seupaís à margem esquerda do rio Acre, dandoao povoado o nome de Puerto Alonso, emhomenagem ao então Presidente SeveroFernandes Alonso, e fundou nessa locali-dade um posto alfandegário. Também pordecreto, abriu vários rios à navegação inter-nacional, desconsiderando que os trechosnavegáveis encontravam-se todos em terri-tório brasileiro.

Muito embora essa mostra ostensiva deuma “estratégica tomada de posição” tives-se resultado em contundentes protestos epedidos de explicações à Legação Bolivia-na por parte de Olinto Magalhães1, incluin-do a proibição do trânsito de navios bolivia-nos em águas brasileiras, o País insistia emreconhecer que, pelo Tratado de Ayacucho,celebrado em 27 de março de 1867, aquelaseram terras “incontestavelmente bolivia-nas”. Essa disposição tinha o propósito decomprar a neutralidade da nação vizinhana guerra que se procedia contra o Paraguai.

O Tratado transcrevia quase literalmen-te os limites fixados nos acordos celebradosem Madri e em Santo Ildefonso nos idos dacolonização e sempre inspirados no princí-pio do utis possidetis, ita possideatis (comopossuís, continuais possuindo), estabele-cendo que “deste rio [rio Verde até a suaconfluência com o Beni, onde principia orio Madeira] para o oeste seguirá a fronteirapor uma parallela, tirada de sua margemesquerda na latitude sul 10º20’, até encon-trar o rio Javary”.

Seus arts. 2o e 4o, em essência, denunciama imprecisão do traçado que se estava acor-dando e as complicações que daí poderiamadvir, nos seguintes termos (Calixto: 2003,pp. 88-89):

Art. 2o Si (sic) o Javary tiver as suasnascentes ao norte daquella linha les-te-oeste [que é a do paralelo 10º20’]

seguirá a fronteira, desde a mesmalatitude, por uma recta a buscar a ori-gem principal do rio Javary...........................................................................Art. 4o Si (sic) no acto da demarcaçãoocorrerem dúvidas graves, provenien-tes de inexactidão nas indicações dopresente tractado, serão essas dúvidasdecididas amigavelmente por ambosos governos, aos quaes comissários assujeitarão, considerando-se o accordoque as resolver como interpretação ouadditamento ao mesmo tractado; e fi-cando entendido que, si taes dúvidasocorrerem em um ponto qualquer, nãodeixará por isto a demarcação de pros-seguir nos outros indicados no trac-tado.

Sabia-se de antemão, portanto, que osdados para a fixação dos limites eram insu-ficientes e falhos. Nenhum geógrafo haviaexplorado suficientemente a região até asnascentes do Javari para afirmar em que la-titude e longitude elas se situavam. Tal situ-ação ensejaria, no entender de Calixto (2003,p. 89), “uma dramática e trágica dança daslinhas geodésicas, envolvendo o destino demilhares de pessoas”.

Em 1874, uma comissão mista Brasil-Peru, cuja delegação brasileira era chefiadapelo Barão de Tefé, concluiu seus trabalhosdemarcatórios apontando a nascente do Ja-vari em 7º1’17’’5 de latitude sul e 74º8’27’’07de longitude de Greenwich, que se tornouconhecida como linha Tefé.

Desprezava-se, desse modo, a latitudesul 10º20’, referenciada pelo Tratado deAyacucho, tornando oblíqua a linha queantes era reta e arrancando ao Brasil 242léguas quadradas de território, conformeSílvio Meira no prefácio ao volume 37 dasObras Completas de Rui Barbosa (1983, t. V,p. XIX). Essa linha inclinada, que unia a fozdo Beni à nascente do Javari, começou aaparecer nas cartas geográficas a partir deentão.

Havia, em suma, duas correntes: umaque endossava a interpretação do Ministé-

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rio das Relações Exteriores e apresentava afronteira como uma linha oblíqua e outraque propugnava a fronteira em ângulo retocom o paralelo 10º20’, nos termos do Trata-do de Ayacucho.

As negociações entre o Brasil e a Bolívia,interrompidas em 1878, foram retomadasem 1895, quando se firmou um protocoloentre os dois países, ratificando a conclu-são dos trabalhos de Tefé.

Curiosamente, entretanto, o próprio che-fe da missão brasileira, Coronel GregórioThaumaturgo de Azevedo, passou a engros-sar o coro daqueles que se opunham à posi-ção do Palácio do Itamaraty, a exemplo dePaula Freitas e Sezerdelo Corrêa. Afrontan-do a rigidez hierárquica a que estava habi-tuado nos quartéis, ele encaminhou um ofí-cio ao Ministro das Relações Exteriores,Carlos de Carvalho, alertando-o sobre osprejuízos que aquele protocolo traria para aNação (Calixto: 2003, p. 93):

Aceitar o marco do Peru como o últi-mo da Bolívia, devo informa-vos queo Amazonas irá perder a melhor zonade seu território, a mais rica e maisprodutora, porque, dirigindo-se a li-nha geodésica de 10º e 20’ a 7º1’17’’5ela será muito inclinada para o norte,fazendo-nos perder o alto rio Acre,quase todo o Iaco e o Alto Purus, osprincipais afluentes do Juruá e talvezos do Jutaí e do próprio Javari; riosque dão a maior porção da borrachaexportada e extraída por brasileiros.(...) Toda essa zona perderemos, aliásexplorada e povoada por nacionais eonde já existem centenas de barracas,propriedades legítimas e demarcadase seringais cujos donos se acham deposse há alguns anos; sem reclama-ção da Bolívia, muitos constituídosprovisórios, só esperando a demarca-ção para receberem os definitivos.

O chanceler, em princípio, foi sensívelaos argumentos de seu subordinado e che-gou a determinar que fosse feita uma novaverificação pela Comissão Bilateral. Logo,

porém, viu-se substituído no cargo pelo Ge-neral Dionísio de Cerqueira, que tratou ocaso como insubordinação, o que levouThaumaturgo a pedir demissão. Seu suces-sor na supervisão dos trabalhos demarca-tórios, o Capitão-Tenente da Armada CunhaGomes, retificaria as observações do Barãode Tefé.

Em janeiro de 1898, ele enviou seu rela-tório ao Ministério das Relações Exterioresinformando a nova latitude das origens doJavari: 7º11’48’’10. Isso significava, para odesapontamento de muitos, uma discrepân-cia de apenas 10º das observações do Barãode Tefé, o que deixava praticamente inalte-rada a situação geográfica dos territórios daborracha. As tentativas de demarcação con-tinuariam, mas a Bolívia, já com vivo inte-resse naquelas terras, acreditava ser o mo-mento oportuno para a imediata ocupaçãodo Acre.

O fato é que o Governo brasileiro permitiuà Bolívia a fundação de Puerto Alonso, deci-são essa interpretada por seringalistas e se-ringueiros como a oficialização da soberaniaestrangeira na região. Isso engendrou aquelaque seria a primeira insurreição acreana.

Em abril de 1899, o Cônsul Dom MoisésSantivañez substituiu José Paravicini, queretornou a seu posto no Rio de Janeiro por-que um golpe de estado deflagrado peloGeneral José Manoel Pando depusera o Pre-sidente Severo Alonso e era preciso estaratento aos rumos do novo governo. Em 1o

de maio daquele ano, cerca de quinze milbrasileiros, a maioria deles residentes na re-gião, sob o comando do advogado JoséCarvalho e com o apoio do governo do Esta-do do Amazonas, levantaram-se contra osbolivianos, dando a Santivañez o seguinteultimato, prontamente atendido (Tocantins:2001, v. 1, p. 292): “Estais intimado a reti-rardes o vosso governo deste território o maisbreve possível, porque é esta a vontade so-berana e geral do povo deste município e detodo o povo brasileiro”.

A segunda insurreição deu-se em 14 dejulho de 1899, chefiada pelo jornalista es-

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panhol Luiz Galvez Rodrigues de Arias.Depois de alertar o então Governador ama-zonense Ramalho Júnior sobre o teor de umacordo diplomático que assegurava o apoiomilitar dos Estados Unidos da América(EUA) à Bolívia2, em caso de guerra com oBrasil pelo domínio do Acre, ele partiu deManaus — sob o patrocínio daquele governo— rumo à localidade de Puerto Alonso, re-batizada de Porto Acre.

Ali, Galvez hastearia a bandeira acrea-na — símbolo patriótico que traz as fortescores do pavilhão nacional — e proclama-ria a criação do Estado Independente doAcre.3

Em resposta, as autoridades federais bra-sileiras — avocando o disposto no Tratadode Ayacucho — reconheceram tratar-se deinvasão territorial à Bolívia e enviaram tro-pas e uma flotilha da Marinha para que fos-se defenestrada a “República do Acre”. Nodia 15 de março de 1900, data da rendiçãodos autodeclarados acreanos, o CônsulEduardo Otaviano foi indicado formalmen-te pelo Governo brasileiro para promover atransição política, passando o controle daregião à Bolívia.

Houve, ainda, mais um episódio de in-surreição, conhecido como a “República dosPoetas”, não menos importante para a com-preensão do processo de anexação das ter-ras acreanas ao Brasil. Esse episódio teveinício no raiar do século XX, com a decisãoda Bolívia de enviar uma pequena missãomilitar para ocupar a região. Impedida deavançar pelos brasileiros, a missão não foialém de Porto Acre. Entrementes, SilvérioNéri — à frente do Governo do Amazonas,em substituição a Ramalho Júnior, com ofirme propósito de alargar as fronteiras es-taduais — financiou uma nova expediçãoarmada em apoio à resistência brasileira nolocal.

A Expedição Floriano Peixoto — desig-nação oficial — era chefiada pelo jornalistaOrlando Correa Lopes, que liderava boêmiose profissionais liberais de Manaus sem ne-nhum treinamento militar. Ela proclamou a

Segunda República do Acre, que seria pre-sidida pelo Coronel Rodrigo de Carvalho,mas que teve destino idêntico ao de sua pre-decessora, graças à fragorosa derrota sofri-da diante do exército boliviano, em 29 dedezembro de 1900. Com isso, as terras per-maneciam bolivianas.

O tráfego das embarcações comerciais,rio acima e abaixo, dava o tom de normali-dade a esse quadro político, e a arrecadaçãodas receitas alfandegárias por parte da Bo-lívia ocorria sem maiores embaraços.

Por essa época, como ressalta Bandeira(2000, p. 153), com base nos próprios regis-tros estatísticos do governo norte-america-no, sessenta mil brasileiros habitavam oAcre e as importações de goma elástica doBrasil, que em 1879 e 1889 atingiram o valorde US$ 3.296.766 e US$ 7.569.005, respecti-vamente, já alcançavam a cifra de US$16.999.345 em 1900, elevando Belém e Ma-naus à condição de importantes centros parao comércio exterior.

A queda persistente dos preços do café apartir de então fez com que os políticos eempresários nacionais passassem a se inte-ressar pelos acontecimentos no Acre.

2.2. Bolivian Syndicate: Pomo da Discórdia

No início do século XX, soube-se da exis-tência de um acordo militar entre norte-ame-ricanos e bolivianos envolvendo a região emanálise. Apesar da negação peremptória doacordo por ambas as partes, o inequívocoestreitamento das relações entre esses doispaíses levantou preocupações do Governobrasileiro, que se revelaram bastante proce-dentes.

De fato, em 1901, a Bolívia — presididapelo General José Manuel Pando e visivel-mente ansiosa por se livrar dos problemascom a administração das terras considera-das acreanas pelos brasileiros — concordouem arrendá-las a um sindicato de capitalis-tas majoritariamente norte-americanos e in-gleses, o Bolivian Syndicate. Tratava-se deuma espécie de companhia colonial privile-giada, uma chartered company , nos moldes

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das existentes na África4, formada com re-cursos fornecidos pelas seguintes empresase pessoas físicas (Bandeira: 2000, p. 165):Central Trust Co., Varmilye Co., MetropolitanLife Insurance Co., Morton Bliss & Co., BrownBrothers & Co., K. Twombly, S. W. Cross, AdrianIselin Jr., E. Emelen Roosevelt, Lord Avebury(do Banco Lubbock) e August Belmont (repre-sentante da Casa Rothschild).

Pelo contrato, o grupo assumiria, por trin-ta anos, o controle total sobre a região, in-cluindo a movimentação alfandegária e mi-litar. Para os brasileiros, essa era uma situa-ção intolerável, pois o trânsito livre de es-trangeiros pelo território nacional significa-va uma real ameaça às soberanias tanto davizinha Bolívia quanto do Brasil.

Tornou-se patente, à época, que o pro-blema extrapolava o âmbito da mera “con-trovérsia sobre interesses locais”. Se nãohavia declaração de guerra entre as nações,existia uma firme disposição dos brasilei-ros ali estabelecidos em defender seus inte-resses comerciais e patrimoniais, afrontadospela presença daquele sindicato patronal.

Lembre-se, a propósito, que, embora olátex existisse em outros países, o extraídoda Hevea Brasiliensis — seringueira somenteencontrada na Amazônia brasileira — era ode melhor qualidade e também o mais pro-curado. Por isso, em fins do século XIX, aregião já respondia por 65% da produçãomundial e era sinônimo de borracha.

As tentativas diplomáticas do Governobrasileiro para conseguir a anulação do con-trato provocaram a pronta reação das auto-ridades governamentais em Washington eLondres, que as tiveram como sinônimo deviolação de direitos adquiridos dos seusnacionais, pois estavam habituadas ao su-cesso de suas companhias comerciais nocontinente africano.

O Presidente Campos Sales decidiu, en-tão, fechar o Amazonas e seus afluentes ànavegação, ignorando os protestos dos EUA,Grã-Bretanha, França e Alemanha. Além deimpedir o fluxo comercial na região, sustoua tramitação — no Congresso — do projeto

do Tratado de Comércio e Navegação quecelebrara com a Bolívia. Essas resoluçõeslevaram o Secretário do Departamento deEstado Norte-americano, John Hay, a decla-rar que era necessário proteger os “inocen-tes interesses de cidadãos americanos”, lem-brando que a Bolívia, um país pobre, nãopoderia arcar com indenizações.

As gestões diplomáticas prosseguiamlentas. Com o fechamento da navegação dosrios brasileiros, o Bolivian Syndicate não con-seguia concluir a implementação do empre-endimento, e o contrato estabelecia o dia 6de março de 1903 como data limite. Os âni-mos estavam cada vez mais exaltados, e umnovo movimento insurrecional ganhavavolume, dessa vez capitaneado pelo gaúchoPlácido de Castro, que participara dos em-bates da revolução federalista.

A despeito de seus tenros 27 anos, eleera um homem de rara têmpera e caráter for-te, capaz de coordenar a resistência às in-vestidas bolivianas e de levá-la a termo, gra-ças a seus conhecimentos como agrimensore militar. Ao inteirar-se do arrendamento doAcre ao Bolivian Syndicate, com o aval dosproprietários de seringais e do Governo doAmazonas, Plácido tratou de organizar olevante que passaria para a história como aRevolução Acreana. Em 6 de agosto de 1902,sob seu comando, brasileiros armados ata-caram uma guarnição militar boliviana, ba-seada às margens do rio Xapuri, um afluentedo Acre. Entrementes, na Capital do País, asautoridades federais temiam as conseqüên-cias dessa campanha, que ele prometera bre-ve, mas que já se alongava por algum tempoe poderia ter resultados imprevisíveis.

A essa altura, o fabrico da borracha ha-via sido interrompido em todo o rio, os se-ringueiros haviam deixado as estradas deseringa para formar as hostes revolucioná-rias e os maiores inimigos não estavam nofront, e sim em Nova York e Londres, aten-tos à evolução dos preços da borracha. Eramos grandes financistas, sobretudo america-nos e ingleses, acostumados a polpudos lu-cros e determinados a garantir — pela pres-

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são econômica junto aos governos do Brasile da Bolívia — a instalação de uma charteredcompany na América do Sul e o livre acessode seus produtos para Bolívia, Peru e NovaGranada pela bacia Amazônica.

2.3. Diplomacia em Vez de Guerra

Quando a controvérsia em torno doBolivian Syndicate acirrou-se, surgiu na cenapolítica a figura de José Maria da SilvaParanhos, o Barão do Rio Branco. Por suanotória sagacidade e talento para as ques-tões internacionais, ele foi convidado peloPresidente Rodrigues Alves, em 3 de dezem-bro de 1902, a assumir a pasta do Ministé-rio das Relações Exteriores e, de imediato,debruçou-se sobre o delicado tema.

Ao mesmo tempo, como diplomata e po-lítico, Rio Branco rompeu com o tratamentogeográfico que seus antecessores dispensa-vam à questão, não mais admitindo passi-vamente que terras acreanas fossem consi-deradas alheias. Decidiu interpretar o Tra-tado de 1867 ao pé da letra, defendendo alinha de fronteira leste-oeste que passa peloparalelo 10º20’ e recusando-se a aceitar otracejado da linha oblíqua ao Equador.Também declarou o território do Acre litigi-oso com relação ao Brasil e ao Peru, comquem a Bolívia acabara de firmar um trata-do para submetê-lo à arbitragem da Argen-tina.

Esse tirocínio livrava-o de buscar umasolução arbitrada, pois bem sabia que seriaarriscado ficar à mercê de argumentos jurí-dicos ou históricos, depois de 36 anos deentendimento que o Acre era boliviano.

Reconhecer que aquela era uma questãolitigiosa, como declarara a Bolívia inúme-ras vezes, e lançar-se na negociação de umtratado foi, então, o caminho escolhido porRio Branco para defender os interessesdos brasileiros que habitavam a área deconfronto.

Retificando erros anteriores, ele telegra-fou à delegação brasileira em La Paz, em 18de janeiro de 1903, conforme consta do Ar-quivo Histórico do Itamaraty, afirmando

energicamente que: “O Governo brasileirodeu, até aqui, ao Tratado de 1867, uma in-terpretação contrária à letra e ao espírito domesmo, com o único fim de favorecer a Bolí-via. [...] não podemos concordar que ali pe-netrem tropas ou autoridades da Bolívia”.

Com o real intento de forçar a Bolívia anegociar, o Barão apresentou a proposta depermuta de territórios ou de compra do Acrepelo Brasil, que assumiria o compromissode acertar-se com o Bolivian Syndicate. Em-bora onerosa, essa era a forma de obter acessão de todo o território ocupado por bra-sileiros, inclusive uma faixa ao sul do para-lelo 10º20’. Ambas as propostas foram re-chaçadas pela Bolívia, que se fiava no apoiodos Estados Unidos.

Entretanto, um outro barão — o deRothschild5 — agente financeiro do Brasilna Grã-Bretanha, não menos interessado naquestão, tratou de encontrar meios de inter-mediar uma solução pacífica para o dissí-dio. Entabulou contatos diretos com os diri-gentes do sindicato, por meio de um dos seussócios, August Belmont, que ,não por acaso,era também seu representante nos EstadosUnidos.

Cabe salientar que os Rothschild insisti-ram durante toda a negociação na conveni-ência de o Brasil entregar a questão à arbi-tragem da Grã-Bretanha, fazendo insinua-ções e trazendo notícias de ameaças vela-das por parte do Presidente americanoTheodore Roosevelt. O Brasil, contudo, man-tinha-se firme na defesa do diálogo bilate-ral com a Bolívia e ganhava tempo, respon-dendo com evasivas à oferta dos ingleses.

Servindo-se de um telegrama endereça-do a Rodrigues Alves (cf. Bandeira: 2000, p.166), o Barão de Rothschild informou aoGoverno brasileiro que o Bolivian Syndicatereclamava uma indenização de US$ 1 mi-lhão. Pedia brevidade na decisão e autono-mia “para fechar o negócio rapidamente,preservados os interesses do seu país” (Ban-deira: 2000, p. 157).

A pressa externada no texto justificava-se pelas notícias veiculadas pela imprensa

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sobre a precária situação das forças bolivia-nas — acossadas em Puerto Alonso pelos bra-sileiros liderados por Plácido de Castro — epela impossibilidade do Bolivian Syndicate deinstalar-se no Acre e honrar seus prazos con-tratuais, uma vez que o veto de navegação noAmazonas fora oposto à Bolívia.

A estratégia de Rio Branco consistia empreparar-se para guerra a fim de evitá-la.Assim, ele se mantinha disposto a negociarum “acordo honroso e satisfatório”, segun-do declarou ao Ministro brasileiro em LaPaz, Eduardo dos Santos Lisboa6, com a res-salva categórica de que as tropas bolivia-nas, que rumavam para o Acre, não ultra-passassem o paralelo 10º20’.

3. O Tratado de Petrópolis

A vitória de Plácido de Castro teve lugarcom a rendição da guarnição boliviana em24 de janeiro de 1903. Logo, o litígio já esta-va solucionado militarmente, no campo debatalha, quando o Presidente boliviano,General Pando, percebendo que não pode-ria manter nenhum controle sobre o Acre,viu-se compelido a concordar com o enten-dimento diplomático. Afinal, era melhoraceitar as compensações oferecidas peloBrasil em troca da área litigiosa do que en-frentar uma batalha diplomática com o Peru,outro a reclamar propriedade sobre aquelasterras. Assim, em 21 de março de 1903, eleconcordou com a ocupação e a administra-ção brasileira na região até a conclusão dostermos do acordo.

Estabelecido o modus vivendi provisório,imposta a vigilância das forças federais so-bre a parte situada a leste do Rio Iaco, e limi-tada, ao norte, pela linha geodésica do mar-co do Madeira à nascente do Javari, e, aosul, pelo paralelo de 10º20’, desde o referidomarco até o Iaco, foram possíveis os enten-dimentos que culminariam com o Tratadode Petrópolis, assinado no Estado do Rio deJaneiro em 1903.

Por esse instrumento, ficou acordadoque a Bolívia receberia compensações terri-

toriais em vários pontos da fronteira com oBrasil; que o Governo brasileiro se compro-meteria a construir a Estrada de ferroMadeira-Mamoré; e que seria garantida aliberdade de trânsito pela ferrovia e pelosrios até o oceano Atlântico, o que facilitariao escoamento das exportações bolivianaspelo sistema fluvial do Amazonas. Comonão havia equivalência entre as áreas dosterritórios permutados, estabeleceu-se, ain-da, uma indenização pecuniária no mon-tante de dois milhões de libras esterlinas, aser paga pelo Brasil em duas parcelas.

Em contrapartida, a Bolívia cederia aparte meridional do Acre, reconhecidamen-te boliviana, mas povoada por brasileiros, edesistiria de seu alegado direito à outra partedo território mais ao norte, igualmente ocu-pada só por brasileiros.

O reconhecimento da soberania brasilei-ra sobre um território de 191.000 km2, assimnegociado, mostrou ser um excelente negó-cio para os Rothschild, que, depois de al-guns meses, deram um adiantamento à Bo-lívia, debitando-o na conta do Brasil, paraque este pagasse o montante acrescido dejuros.

O Bolivian Syndicate rendeu-se às evidên-cias. Admitiu que atuar na região seria im-praticável e aceitou a rescisão contratualmediante uma compensação financeira de114.000,00 libras esterlinas. O distrato foiassinado em 26 de fevereiro de 1903, dei-xando a casa bancária inglesa ainda maisradiante. A questão do Acre convertera-se nagalinha dos ovos de ouro para os Rothschild,que forneceram os créditos necessários aoBrasil para honrar toda a transação.

3.1. O Acordo com o Peru: Aquilo queFaltou ao Tratado de Petrópolis

A questão do Acre, porém, não estavaencerrada. O Peru, que já perdera para oChile, há pouco menos de três décadas, asprovíncias de Tarapacá, Tacna e Arica naGuerra do Pacífico (1879-1883), não se con-formava com a redução de seu território.Reivindicando também aquela porção ama-

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zônica, ele pretendia participar das negoci-ações com a Bolívia, no intuito de que hou-vesse uma solução tríplice.

Rio Branco opôs-se a essa pretensão,pois não poderia lutar em duas frentes si-multaneamente e temia que um impasse le-vasse a questão à arbitragem. Entretanto,deixou claro em telegrama endereçado àLegação do Brasil em Lima, a 20-1-1903, que— no devido tempo — levaria em conta asreclamações peruanas, sobretudo quanto àsterras que vão do Purus para o Oeste.

Nesses termos, somente depois de equa-cionar a questão com o Bolivian Syndicate ede assinar o Tratado de Petrópolis, Rio Bran-co dispôs-se a entabular conversações como Peru, cujas pretensões territoriais iam alémda área que fora objeto do Tratado de 1903.De fato, o Governo de Lima reclamava ter-ras que a Bolívia cedera ao Brasil, pelo Tra-tado de Ayacucho, alcançando territóriossituados ao sul da linha Madeira-Javari eao norte da linha Beni-Javari, num total de251.000 km² e com uma população da or-dem de sessenta mil brasileiros.

Apoiado em documentos e na doutrinade Direito Internacional, Rio Branco susten-tou a tese de que os títulos da posse brasilei-ra sobre toda a bacia do Purus e do Juruáeram oriundos do título português, que de-corria da anulação do Tratado de Ildefonso,corolário da paz firmada em Badajós em18017. Esses direitos, concedidos à Bolíviapelo Tratado de Ayacucho, haviam sido re-cuperados pelo Brasil, na medida de suaconveniência, em 1903, quando ele firmou oTratado de Petrópolis com o Governo boli-viano. Asseverava Rio Branco, em nota de27-6-1904 enviada ao Ministro das RelaçõesExteriores do Peru, Hernán Velarde:

“A verdade é que o Governo peruanocomeçou em fins de 1902 e meados de1903 a apoderar-se, manu militare, dosterritórios em litígio, quase que exclu-sivamente habitados por brasileiros,procurando modificar o estado em quese achavam as coisas, e acreditandoque tais invasões e tomada de posse

violentas, efetivadas à última hora, lhepodiam alcançar posição vantajosano processo arbitral que desejava”.

Em suma, se a questão fosse submetidaà arbitragem, o Peru nada arriscaria e lucra-ria com qualquer resultado, já que os títulosde posse de que dispunha por si só não eramválidos e suficientes em reclamações dessanatureza e a simples adoção do princípiodo utis possidetis tampouco lhe beneficiaria.

O Barão recusou-se, peremptoriamente,a abrir as negociações com o Peru enquantoseus destacamentos estivessem naquelasáreas. Contava, para tanto, com o irrestritoapoio do Presidente Rodrigues Alves, quemandou Manaus deslocar dois destacamen-tos militares para a região ocupada, a fimde oferecer represália se o Peru insistisse emnão se retirar.

O impasse perdurava e, com isso, os con-flitos eram freqüentes. No segundo trimes-tre de 1904, as relações entre as duas chan-celarias ficaram ainda mais críticas. EmLima, os ânimos estavam bastante acirra-dos, havendo a disposição do Governo pe-ruano de defender suas posições com o em-prego da força, conforme noticiou o Jornaldo Comércio do Rio de Janeiro (apud Tocan-tins: 2001, v. 2, p. 459).

Em 12 de maio de 1904, a empresa denavegação Red Cross Iquitos Steam Ship, pre-cavendo-se contra o pior, fez publicar a se-guinte nota nos jornais de Liverpool:

“Devido à ameaça de rompimento dehostilidades entre o Brasil e o Peru,somos obrigados a reter todos os car-regamentos do vapor Bolívia, a sairpara Iquitos, a 12 do corrente, que con-sistam em armas, cartuchos de pólvo-ra, chumbo de munição e quaisqueroutras mercadorias ou materiais quepossam ser considerados ou usadoscomo munição de guerra” (Tocantins:2001, v. 2, p. 437).

Apertando o cerco ao vizinho, o Brasildecidiu interditar todo o trânsito de artefa-tos de guerra que se valesse da via do Ama-zonas com destino ao Peru. A 18 de maio,

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denunciou, então, “pela provada inconve-niência de certas cláusulas” (cf. nota de RioBranco ao Ministro Hernán Velarde, em 18-5-1904), o Tratado de Comércio e Navega-ção subscrito com o Peru em 10 de outubrode 1891, que assim perderia eficácia no anoseguinte.

Àquela altura, a guerra parecia tão imi-nente que o Barão tratou de angariar a sim-patia da Bolívia e sua promessa de apoiocaso o conflito bélico fosse mesmo deflagra-do. Outrossim, firmou uma aliança secretacom o Equador, país com o qual o Peru ti-nha também uma antiga desavença envol-vendo limites territoriais.

A intimidação brasileira surtiu o efeitoalmejado, pois — em 12 de julho de 1904, noPalácio do Itamaraty — Brasil e Peru firma-ram um modus vivendi, embora o clima dedesconfiança comprometesse a normaliza-ção das relações entre os dois países. Nessemomento, já havia fracassado a tentativa doPeru de angariar o apoio diplomático dosEstados Unidos, a fim de que fossem reco-nhecidas de pleno direito as suas preten-sões territoriais. Para a alegria do Barão deRio Branco, o Secretário de Estado John Hayoptou pela neutralidade nessa questão, antea ausência de interesses financeiros envol-vendo norte-americanos (como ocorrera nocaso do Bolivian Syndicate) e o resultado dotrabalho jurídico sobre a questão de frontei-ras entre o Brasil e o Peru, encomendado aointernacionalista Bassett Moore, por suges-tão do próprio chanceler brasileiro à Em-baixada do Brasil em Washington.

O referido jurista, com base na copiosadocumentação que lhe fora fornecida pelosbrasileiros, preocupados em evitar as dis-torções e a manipulação da opinião públicapor parte das autoridades peruanas, elabo-rou um folheto intitulado Brazil and PeruBoundary Question, que chegou às mãos deRio Branco em janeiro de 1905. Nele, Mooreconsiderou os títulos brasileiros válidos edefinitivos e declarou:

“O Brasil, antes de 1851, data de suaconvenção com o Peru, ocupava efeti-

vamente a margem meridional doAmazonas e as margens dos baixoscursos de seus afluentes a leste do Ja-vari. As nascentes desses rios, entreos quais se incluem o Juruá e o Purus,e todos os seus tributários, nem o Perunem a Bolívia as ocuparam em quais-quer pontos. (...) O Brasil, em 1867,estava em posição de manter o seu tí-tulo sobre as bacias do Juruá e do Pu-rus. Porém, quis ceder à Bolívia o ter-ritório ao sul da linha Beni-Javari, oque fez pelo Tratado de Ayacucho,naquele ano, território readquirido em1903 pelo Tratado de Petrópolis” (To-cantins: 2001, v. 2, p. 497).

Anos mais tarde, Rui Barbosa recorda-ria tal observação em sua petição em defesados interesses do Amazonas na anexaçãodo Acre ao território brasileiro.

O ano de 1906 transcorreu sem novida-des no que concerne aos avanços diplomá-ticos referentes ao litígio de fronteiras Brasil–Peru. Do lado do Brasil, era intenção do Ba-rão do Rio Branco aguardar os relatórios dascomissões técnicas a cargo de Euclides daCunha (Purus) e Belarmino Mendonça (Ju-ruá), para que ambas as partes negociassemcom segurança, conforme estipulado nomodus vivendi. O Peru, por sua vez, espera-va que a troca do Governo brasileiro no anoseguinte ensejasse uma posição mais favo-rável a suas pretensões. Mas Afonso Penna,depois de assumir a Presidência da Repú-blica, querendo evitar uma solução de con-tinuidade para a política externa brasileiraem momento tão delicado, confirmou JoséMaria da Silva Paranhos à frente do Minis-tério das Relações Exteriores, a despeito daopinião de desafetos e censores do Governode Rodrigues Alves.

Ao longo de 1907, ficaram prontos osrelatórios dos comissários brasileiros e asmemórias das comissões mistas que deramprovas cabais da conquista, do povoamen-to, dos empreendimentos industriais e co-merciais, da permanência e propriedadeininterruptas de brasileiros nos rios Juruá e

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Purus, exceto nos trechos mais superiores.Rio Branco passou a dispor, então, de docu-mentos totalmente favoráveis ao Brasil.

Vale dizer que os prazos de vigência domodus vivendi foram prorrogados sucessi-vamente, sem grandes dificuldades, e o pro-tocolo de 12 de julho de 1904 chegou a sercumprido fielmente. O tempo arrefecia asrusgas entre as chancelarias, e a perseve-rança do Brasil na defesa de seus direitosfindou por convencer os peruanos de queera tempo de pôr fim à contenda e assinarum acordo definitivo sobre as fronteiras naregião.

As autoridades peruanas ainda aventa-ram uma compensação financeira, a exem-plo do que ocorrera em relação à Bolívia. OPeru, no entanto, não possuía título válidoe definitivo e não firmara com o Brasil ne-nhum tratado que lhe concedesse o mínimodireito sobre o Acre. Por isso, Rio Brancorechaçou energicamente a pretensão finan-ceira do Peru, mas negociou para que ele seapropriasse de uma área triangular consi-derável, formada pelos rios Curanja, SantaRosa e Purus.

Em 12 de setembro de 1909, o então Pre-sidente peruano, Augusto Leguia, determi-nou a seu ministro das Relações Exteriores,D. Hernán Velarde — cuja firma figura nomodus vivendi de 12 de julho de 1904 — queassinasse, em sigilo e com data retroativa a8 de setembro corrente, juntamente com oBarão do Rio Branco, no Palácio do Itama-raty — o tratado que permitiu ao Brasil avan-çar suas fronteiras sobre uma área de152.000 km², uma superfície cinco vezesmaior do que a Bélgica. O objetivo era evitardificuldades com a opinião pública antesque os Parlamentos de ambos os países au-torizassem a ratificação do acordo, o queocorreu primeiro no Peru e depois no Brasil.

Esse episódio trouxe a consagração de-finitiva para o astuto Barão do Rio Branco,saudado com loas pelo Deputado Dunsheede Abrantes, relator do tratado na Comis-são de Diplomacia da Câmara, ao manifes-tar-se favoravelmente sobre a sua aprova-

ção (Diário do Congresso Nacional, 1o-5-1910):

Diante de tão admiráveis conceitos,que bem revelara o espírito superiorque os ditou e que tem feito da gran-deza da Pátria o seu culto de todas ashoras, sente-se que, ainda uma vez,fechando o último claro nas nossasfronteiras, o Brasil não desmentiu oseu honoríssimo passado de ininter-rupta lealdade nas suas relações devizinhança, de inquebrantável devo-tamento aos princípios liberais e deconfiança a mais absoluta na realiza-ção muito próxima no continente doseu grande ideal de todos os tempos— a paz constante e a confraterniza-ção geral dos povos americanos. OTratado de 8 de setembro foi o com-plemento glorioso do Tratado de Pe-trópolis. Encarado sob todos os aspec-tos, difícil seria concluir qual dos doisé o mais notável e mais digno da des-tinação histórica do Brasil na Améri-ca do Sul. E a opinião nacional já nãovê mais em Rio Branco um nome, masum símbolo.

4. A Questão Acreana Passa àEconomia Doméstica

Antes mesmo de solucionada a conten-da no plano internacional, surgiria umaoutra, de cunho eminentemente interno, decaráter jurídico e cores políticas. Tratava-sedo conflito entre o Estado do Amazonas, quese julgava legítimo detentor dos direitos àsterras acreanas setentrionais, e a União, queas incorporara ao seu patrimônio, ao tempoque, pelo disposto no Decreto do Executivono 5.188, de 7 de abril de 1904, organizou oterritório do Acre e fixou seus limites. Essedecreto dividiu o Acre em três departamen-tos (Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá), di-visão essa que perduraria até a unificaçãoocorrida em 1920, instituiu normas admi-nistrativas, criou cargos de prefeitos, esta-beleceu a justiça eleitoral e fixou suas com-

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petências. Criou discricionariamente, enfim,uma pessoa jurídica de direito público in-terno sem par na realidade constitucionalbrasileira daquela época. O governo ama-zonense tomou isso como uma afronta, pos-to que o Acre sempre estivera em sua órbitaadministrativa e era justo incorporá-lo aoseu território.

Note-se que a ambição intervencionistado Governo Federal, impulsionada peloslucros oriundos da exploração de látex, es-tava sendo obstaculizada pelos chamados“barões da borracha”, que disputavam es-paço na ordem político-administrativa.Além disso, o café temia a borracha. A parti-cipação desta no conjunto das exportaçõesbrasileiras, que era de dez por cento em 1890,passou a vinte por cento em 1900 e chegou aquarenta por cento em 1910. A borracharivalizava, assim, com o café, cuja partici-pação caíra de 68%, em 1890, para 57%, em1900, e não passava de 41%, em 1910(Santos: 1980, p. 290).8

Rui Barbosa — que participara da dele-gação encarregada de negociar o Tratadode Petrópolis com a Bolívia, mas que dela seafastara, pouco antes da assinatura do acor-do, por discordar do valor da indenizaçãopecuniária proposto pelo Brasil — foi o es-colhido para emprestar toda a sua verve e oseu cabedal de conhecimentos jurídicos àdefesa do direito de posse do Estado doAmazonas sobre aquelas terras. Assim, em4 de dezembro de 1905, na petição inicialapresentada perante o Supremo TribunalFederal9, que originou a Ação Civil Originá-ria no 9, ele reivindicou, em favor de seu cli-ente, a incorporação territorial do chamado“Acre Setentrional”, área correspondente àregião localizada acima da linha do parale-lo 10º20º. Argumentando “posse imemoriale domínio antigo”, o Amazonas pleiteava oque de direito lhe pertencera quando Co-marca, depois lhe pertenceu como Provín-cia e, finalmente, como Estado.

A batalha judicial não se limitou a RuiBarbosa e a seu contendor, o Procurador-Geral da República, Dr. Pedro Antônio de

Oliveira Ribeiro. A exemplo do que ocorreracom a “questão acreana” outrora, os debatesganharam repercussão em toda a imprensabrasileira, chegando a provocar outro gran-de jurista, o sergipano Gumercindo Bessa.Esse saiu espontaneamente em defesa doAcre, divulgando um Memorial em Prol dosAcreanos Ameaçados de Confisco pelo Estadodo Amazonas na Ação de Reivindicação doTerritório do Acre, em 31 de janeiro de 1906.

Rui Barbosa não se fez de rogado e ocu-pou as páginas do Jornal do Comércio paracontestar os argumentos de Bessa, que —imbuído do papel de “defensor dos acrea-nos” — retrucou com outros oito artigos,todos devidamente contestados pelo patro-no do Amazonas, nas edições publicadaspelo referido periódico entre 18 de junho e 2de julho de 1906.

O litígio ganhou dimensões caudalosas.À petição inicial, somaram-se outras peçasjurídicas (contestação, réplica, tréplica, ra-zões finais), mas o processo nunca chegoua termo. As tentativas de acordo foram in-frutíferas e os autos do processo quedaramesquecidos no Supremo Tribunal Federal(STF). Eles só voltariam à baila na décadade trinta.

4.1. A Disputa de Fronteiras em SedeConstitucional: o Mea Culpa da União

No mérito, poder-se-ia admitir que RuiBarbosa foi vitorioso na defesa do governoamazonense, uma vez que os parlamenta-res constituintes da década de trinta reco-nheceram que o Amazonas tivera prejuízocom a forma pela qual as autoridadesfederais decidiram implementar o acordo fir-mado pelo Tratado de Petrópolis e que lheera devida uma indenização. Por esse moti-vo, fizeram constar da Constituição de 1934,no art. 5o das Disposições Transitórias, quecaberia à União indenizar o Estado do Ama-zonas dos prejuízos que lhe tivessem ad-vindo da incorporação do Acre ao territórionacional. O dispositivo ainda determinavaque “o valor fixado por árbitros, que terãoem conta os benefícios oriundos do convê-

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nio e as indenizações pagas à Bolívia, seráaplicado sob a orientação do GovernoFederal”, em proveito daquele Estado. Osparlamentares pretendiam, com isso, pôrum ponto final à questão, ao tempo em quepatenteavam que aquele contencioso sobreas fronteiras na região era um subproduto,um desdobramento direto das decisões to-madas pelo Governo Federal ao assinar oTratado de Petrópolis.

Em decorrência disso, ao elaborar suanova Constituição, o Estado do Amazonas— em flagrante afronta ao referido preceito—, dispôs sobre o assunto nos seguintes ter-mos:

Art. 2o Tendo sido o território do Acreincorporado ao domínio da União,sob protesto do Estado do Amazonas,reserva-se este o direito de não reco-nhecer tal desmembramento, enquan-to não se der execução ao art. 5o dasDisposições Transitórias da Consti-tuição da República.

Em 18 de outubro de 1936, depois de as-sinado o convênio cogitado pelo art. 5o dasDisposições Transitórias da Constituição de1934 e com a juntada aos autos do “Com-promisso das Partes”, foi fixada a indeni-zação em cerca de 350.000 contos de réis,moeda da época. Acreditava-se definitiva-mente encerrado, assim, o litígio entre aUnião e o Estado do Amazonas.

Contudo, segundo Sílvio Meira (RuiBarbosa: 1983, v. 37, t. 5, p. LXXXII), somentedepois de quase duas décadas, o Amazonasentraria com uma petição solicitandoformalmente a indenização pela “desane-xação do Acre”, nos termos do longuíssimoprocesso da Ação Civil n o 9. À frente da cau-sa amazonense, honrando o trabalho feitopor Rui Barbosa, estava o ilustre e eminentejurista San Tiago Dantas, o que não impe-diu o lacônico fim daquele litígio, trans-formado em 14 volumes sem solução judi-cial.

A União deixou de ser parte no conten-cioso quando a Constituição de 1934 reco-nheceu explicitamente que, antes da assi-

natura do Tratado de Petrópolis, a porçãosetentrional do Acre era ocupada por brasi-leiros que se reportavam, no dia-a-dia, àsautoridades administrativas, fiscais e judi-ciárias do Estado do Amazonas. De fato,como enfatiza Sílvio Meira (Rui Barbosa:1983, v. 37, t. 5, p. XXIII), “os atos oficiais doGoverno do Amazonas comprovam quenaquele território eram as autoridades des-se Estado que policiavam, catequizavam,demarcavam, julgavam e administravam”.O Amazonas fazia jus, portanto, a uma in-denização para compensar a perda daque-las terras.

Desde então, o problema passou a cen-trar-se na definição das linhas divisóriasentre os estados do Acre, Rondônia e Ama-zonas, mas isso não invalida o argumentode que ainda se pode considerá-lo um des-dobramento das decisões federais pós-Tratado de Petrópolis.

Deve-se admitir, ademais, que, duranteséculos, a geografia da porção amazônicabrasileira — com seus rios de planícies quemudam de leito a cada nova estação daságuas, seus terrenos de pouco relevo quedeterminam a ausência de marcos inconfun-díveis e a densa floresta que dificulta a visi-bilidade — conspirou contra a definição demarcos de fronteiras. Nas últimas décadas,porém, foram imensuráveis os avanços tec-nológicos nesse quesito. Assim, hoje se podedefinir uma linha limítrofe com precisãomilimétrica, bastando, para isso, sobrevoara área em avião bem equipado.

5. O Acre na Federação: Ontem e Hoje

A história da fixação do povo acreanona Amazônia brasileira impõe-se na solu-ção do problema de linhas de fronteiras erevitaliza um antigo princípio jurídico, o doutis possidetis post facto.

Há cem anos, o Governo brasileiro reco-nhecia a impossibilidade do Estado doAmazonas de arcar com a responsabilida-de de garantir a paz e a efetiva ocupaçãonas terras recém-incorporadas ao mapa do

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Brasil. Temendo o vigor dos habitantes daregião e sua avidez por fixar raízes, eleresolveu criar uma espécie nova de uni-dade federada — o Território Federal doAcre —, à revelia da consulta à vontadepopular.

De todo modo, em 1920, unificaram-seos três departamentos, contrariando as pre-visões do Barão de Rio Branco, feitas naExposição de Motivos do Tratado de 8 desetembro de 1909, quando comentava asnovas fronteiras do Acre:

“os nossos territórios do Médio Juruá,do Médio Purus e do Alto Acre terão,portanto, extensões bastantes paraque introduzidos neles os necessáriosmelhoramentos, e suficientementepovoados, possam, em futuro próxi-mo, constituir mais dois ou três Esta-dos da União Brasileira”.

Por conseguinte, centralizou-se a admi-nistração nas mãos de um governador. Esse,ainda nomeado segundo critérios federais,privava os bravos habitantes da região dequalquer possibilidade de participação po-lítica, comprometendo os seus anseios dedesenvolvimento econômico. Os destinos doAcre estavam, então, sob a tutela de gover-nantes nomeados pelo Presidente da Repú-blica, à sua conveniência. Essas pessoaseram escolhidas entre militares, magistra-dos e políticos, sem forte vínculo ou conhe-cimento necessário de uma realidade tãoparticular.

Satisfeito o interesse do Amazonas —pelo menos parcialmente — em fins da dé-cada de 50, com o pagamento do valor arbi-trado a título de indenização, o PresidenteJoão Goulart sancionou a Lei n o 4.070, de 15de junho de 1962, que elevou o Território doAcre à categoria de Estado. O projeto quedeu origem a esse diploma legal era de au-toria do Deputado José Guiomard dosSantos, figura proeminente do vitorioso mo-vimento autonomista. Essa campanha, quetinha por bordão “O Acre para os acreanos”,materializava o sonho de Plácido de Castroe de seus comandados.

Em outubro de 1962, José Augusto deAraújo — natural do município de Cruzei-ro do Sul — seria eleito o primeiro governa-dor daquele Estado, com 7.184 votos, dei-xando o povo acreano exultante com as pers-pectivas existentes no cenário político. Es-sas, entretanto, foram frustradas em 1964,com o apoio inconteste do regime militar,que acabou por depor aquele jovem idealis-ta disposto a contrariar interesses arraiga-dos no antigo fazer político. Por conseguin-te, o Acre ainda deveria esperar mais de umadécada para eleger novamente, pelo voto,seu governador.

Note-se que, a despeito das medidas jáenunciadas, as discussões sobre os limitesgeográficos do Estado do Acre continuarama arrebatar os ânimos dos moradores da-quela parte da região amazônica. Para bus-car uma solução consensual que colocassefim às divergências quanto às linhas limí-trofes da citada unidade federativa, repre-sentantes dos Estados do Acre, do Amazo-nas e de Rondônia reuniram-se na Delega-cia do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE), em Manaus, no dia 16 deoutubro de 1984.

Em 19 de fevereiro de 1986, as partesreferidas firmaram o Convênio no 26/86,conforme consta do Processo no 7.346/82/IBGE. Esse documento criava umacomissão tripartite, integrada pelos esta-dos supramencionados, com o fito de fi-xar os limites territoriais entre si. Cabiaao IBGE — que, à época, funcionavaapenas como um órgão técnico — a exe-cução dos trabalhos geodésicos e carto-gráficos.

Persistia, porém, o conflito entre os esta-dos do Amazonas e do Acre, pois o primei-ro alegava que o traçado da linha divisóriadeveria adotar como marcos a Foz do Igara-pé Remanso e do Estirão Eliezer, o que im-plicaria manter quase inalterada a linhaBeni-Javari (também denominada de poli-gonal Cunha Gomes) e faria com que im-portantes cidades acreanas ficassem em ter-ritório amazonense.

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Encerrados os trabalhos da comissão tri-partite, foi rejeitada a proposta amazonen-se que fixava os marcos no rio Envira (Cru-zeiro do Sul), perto da Vila Jurapari (Feijó).Tampouco foi aceita a sugestão do IBGE, quese limitou a apresentar os seguintes marcosgeodésicos divisores dos dois estados ama-zônicos:

Convém recordar que o IBGE, dada anatureza de suas atribuições, não era órgãocompetente para dirimir os conflitos entreas Partes, nem para impor uma solução obri-gatória.

Sua sugestão, entretanto, recebeu o en-dosso dos parlamentares que participaramda elaboração da Constituição de 1988, quetraz — no Ato das Disposições Constitucio-nais Transitórias (ADCT) — o seguinte dis-positivo:

Art. 12..............................................................§ 5o Ficam reconhecidos e homologa-dos os atuais limites do Estado doAcre com os Estados do Amazonas ede Rondônia, conforme levantamen-tos cartográficos e geodésicos realiza-dos pela Comissão Tripartite integra-da por representantes dos Estados edos serviços técnico-especializadosdo Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística.

Além desse desdobramento, o acordo fir-mado em Petrópolis no início do século XXdaria também ensejo à propositura de umaação judicial em 1990. O Acre — com o ar-gumento de que as fronteiras tinham sidoestabelecidas de direito, mas não de fato,uma vez que não figuravam nem nos ma-pas nem no solo — moveu a Ação Cível Ori-ginária (ACO) no 415, de cunho demarcató-rio, perante o Supremo Tribunal Federal.Pretendia, assim, ver fixada sua divisa ma-

terial com os Estados do Amazonas e deRondônia, tomando por base limites natu-rais, como o rio Madeira, o Igarapé dosFerreira e a Serra do Divisor. Buscava, pois,explicitar a sua interpretação quanto à “von-tade constitucional”.

Essa pretensão foi rechaçada pelo pare-cer da Procuradoria-Geral da República noprocesso, que chega à seguinte conclusão:

51. Em suma, se, diante de tudo o que seafirmou, a pretensão do Estado do Acre emrelação ao Estado do Amazonas não parecejustificável, tampouco merece acolhimentoa pretensão deste último quanto à simplesadoção da “linha Cunha Gomes” original.O constituinte, se não pretendeu chancelaras pretensões expansionistas do Estado doAcre, do mesmo modo não parece ter pre-tendido estabelecer que várias das cidadestradicionalmente consideradas acreanaspassassem a integrar o território do Amazo-nas [...].

Tal parecer obteve o endosso do Minis-tro Néri da Silveira, relator da matéria noSupremo, firmando-se o entendimento deque os limites do Acre e do Amazonas de-vem ser aqueles apontados nos relatórios enas notas dos serviços técnico-especializa-dos do IBGE, com base em levantamentoscartográficos e geodésicos, e consubstanci-ados no relatório final da Comissão Tripar-tite. Isso porque foram esses os limites reco-nhecidos e homologados pelo § 5 o do art. 12do ADCT da Constituição de 1988, obser-vando-se a necessidade de emprestar à li-nha geodésica do limite madeira-javari,quando locada no terreno, traçado que ga-ranta a jurisdição acreana sobre cidades tra-dicionalmente sob sua jurisdição, comoCruzeiro do Sul, Tarauacá, Feijó, SenaMadureira e Manuel Urbano.

Fonte: Ofício no 541/PR/IBGE, de 25 de novembro de 1999.

Marco Latitude Sul Longitude Oeste de Greenwich 91.004 – Cruzeiro do Sul 07º33’05,886’’ 72º35’03,100’’ 91.005 – Feijó 07º50’41,193’’ 70º03’15,902’’ 91.006 – BR-137 09º35’31,191’’ 67º19’30,950’’ 91.007 – Sena Madureira 09º02’56,535’’ 68º38’47,861’’ 91.008 – Caquetá 09º33’37,883’’ 67º30’58,785’’

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O IBGE executou os trabalhos técnicosindispensáveis à execução do julgado, maso Amazonas — inconformado com os pon-tos limítrofes definidos pelo órgão técnico(91.004 para Cruzeiro do Sul e 91.005 paraFeijó), por atingirem parcialmente a cidadede Guajará, um de seus municípios — deci-diu propor, junto ao STF, a ReclamaçãoConstitucional no 1421, em fevereiro de2000, contra o Presidente do IBGE. Alegouque este não dera cumprimento ao julgadoda ACO no 415, segundo o qual, no seu en-tender, deveriam ser adotados os marcos di-visórios de Estirão do Eliezer e Remanso,como sempre havia apregoado.

A Reclamação Constitucional em apre-ço foi distribuída ao Ministro Gilmar FerreiraMendes, em 21 de junho de 2002, e aindacarece ser apreciada por aquela egrégia Cor-te. Entretanto, a Procuradoria-Geral da Re-pública, à época representada pelo juristaGeraldo Brindeiro, já se manifestou no sen-tido da improcedência do pedido.

Apesar do caráter não-vinculante dospareceres que instruem a ação, tudo leva acrer que os argumentos arrolados até o mo-mento pelos magistrados que se pronuncia-ram nos autos venham a sustentar, em al-guma medida, a decisão final, conduzindoao fiel cumprimento do disposto no § 5o doart. 12 do ADCT.

6. Conclusão

O Estado do Acre, até bem pouco tempo,vivia a sina de Estado periférico. Suamaturidade política foi conquistada sob aégide da hipertrofia da Federação e do po-der discricionário dos estados do Sul e Su-deste.

Entretanto, a Amazônia brasileira goza,hoje, do status de patrimônio nacional, e con-flitos de interesse na região não podem sertratados como questões menores. O interes-se internacional pelas reservas hidromine-rais e extrativistas e pela enorme biodiversi-dade ali existente vem engendrando a revi-são conceitual sobre o grau, a forma e a subs-

tância do pacto federativo brasileiro, aindaem curso.

A renitente omissão das autoridades fe-derais faz com que hoje a solução para ademarcação da divisa entre o Acre e o Ama-zonas tenha que se pautar, prioritariamen-te, pelo interesse do cidadão que habita asáreas limítrofes. A pretensão do Estado doAcre relativamente ao Amazonas não pare-ce justificável, mas tampouco merece aco-lhimento a pretensão deste quanto à sim-ples adoção da linha “Cunha Gomes” ori-ginal. Afinal, isso importaria na absurdasituação de submeter ao domínio amazo-nense — por força do disposto em algumdocumento de páginas amareladas —várias cidades que há décadas se reconhe-cem acreanas.

Vale lembrar que, ao longo da Constitui-ção de 1988, é explícita a preocupação emgarantir amplos direitos sociais a todo ci-dadão brasileiro, e um deles, sem dúvida, éo respeito à cultura do indivíduo, ao senti-mento que o une à terra natal. Ora, o cida-dão tem o direito de conhecer o nome corre-to da municipalidade onde mora, vive, es-tuda, trabalha e, talvez, morrerá. Ademais,o estabelecimento de divisas afeta direta-mente o patrimônio, as heranças, as ques-tões trabalhistas, entre outras, e define a ju-risdição competente. Trata-se, portanto, deum problema de fundo, não de forma.

As autoridades federais parecem menos-prezar a instabilidade social que a falta dademarcação de divisas produz, sobretudopara as pessoas diretamente envolvidas.AfinaI, quando o Estado do Amazonas, porexemplo, recorre à Justiça contra a publica-ção do mapa do Brasil — alegando que asimples notícia do seu lançamento “já ge-rou conflitos quanto às propriedades imo-biliárias e desapropriações na jurisdição deGuajará, [...] não sendo menor a apreensãodo Poder Público de cada Município, eis quea estes cabe garantir a paz social” — com-promete, em certa medida, o conteúdo dasaulas de Geografia ministrado a todos osalunos brasileiros.

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O Tratado de Petrópolis completou cemanos com pompas e honrarias, prestígio aque decerto também fará jus, em 2009, o Tra-tado firmado com o Peru. Ambos são refe-rência para a política externa brasileira,nascida sob o signo da cordialidade e dabusca pelo estreitamento dos laços de ami-zade com as demais nações da comunidademundial. O Brasil é um país reconhecida-mente afeito à negociação e ao entendimen-to na defesa de seus interesses.

O Acre e o Amazonas perdem com a in-definição sobre suas divisas. Ela prejudicaa boa convivência na região e pode vir a com-prometer futuras parcerias, tão importantespara o fortalecimento do empresariado local.

O que foi estabelecido e votado, demo-craticamente, pelos Constituintes, entre elesamazonenses e acreanos, deve pôr fim à lon-ga disputa por demarcação de terras. Darcumprimento ao § 5o do art. 12 do ADCT,aquiescer aos relatórios e notas dos servi-ços técnico-especializados do IBGE, funda-mentados em cuidadosos levantamentoscartográficos e geodésicos, aplacará a angús-tia de milhares de brasileiros e poderá fazercom que esse desfecho passe às páginas denossa história como uma demonstração dasensibilidade e do espírito público das auto-ridades estaduais da Amazônia brasileira.

Se não for essa a solução consensual, urgeque os dirigentes dessas unidades federati-vas debrucem-se sobre a matéria, atualizema discussão e encontrem uma saída condi-zente com o propósito de vir a fazer da re-gião a grande dinamizadora da economianacional.

Notas1 Olinto Máximo de Magalhães, sucessor de

Dionísio Cerqueira no cargo de Ministério das Rela-ções Exteriores (1899-1902), no governo de CamposSales, atuou na pasta até o final do governo, quan-do foi substituído pelo Barão do Rio Branco.

2 Segundo o texto integral do acordo, que apa-receu na edição de 4 de junho na Província do Pará ecinco dias depois no Jornal do Commercio, de Ma-naus, os EUA auxiliariam a Bolívia a defender seus

direitos sobre os territórios do Acre, Purus e Iaco,por via diplomática ou, no caso de guerra com oBrasil, forneceriam armas e financiamento, receben-do em hipoteca as rendas das alfândegas bolivia-nas. Também exigiriam que o Brasil nomeasse umacomissão, para demarcar, juntamente com a Bolí-via, as fronteiras definitivas entre o Purus e o Java-ri, e concedesse livre trânsito pelas alfândegas deBelém e Manaus às mercadorias bolivianas. A Bolí-via, por sua vez, concederia abatimento de cinqüentapor cento sobre os direitos de importação a todasas mercadorias americanas e 25% sobre a borrachadestinada aos portos dos EUA, pelo prazo de dezanos. Caso tivesse que apelar para a guerra com oBrasil, a Bolívia denunciaria o tratado de 1867, e alinha de fronteira passaria a correr pela boca doAcre, ficando com os EUA, em livre posse, o terri-tório restante (cf. Tocantins e Meira, apud Bandeira:2000, p. 151).

3 Nas palavras de Tocantins (2001, v. 1, p. 37),“Luiz Galvez exerceu, assim, papel de certo relevonaqueles sucessos: o de haver plantado a sementede organização autônoma, o de preparar psicologi-camente as populações do Acre para a resistêncialibertadora. Parece-me justa a opinião de SoaresBulcão, contemporâneo, dos fatos, quando em ar-tigo no jornal Alto Purus, de Sena Madureira, disseque o levante de 1o de maio de 1899, nascido noBaixo Acre, marcou o primeiro passo para a jorna-da de reivindicação, era o Acre uno e indivisível quese insurgia; Galvez vivificou-lhe as aspirações, Plá-cido concretizou-as.”

4 Segundo Bandeira (2000, p. 165), a Grã-Bretanha mantinha no continente africano a Natio-nal Africa Company, a British Africa Company, aBritish South Africa Chartered Company e a NorthAfrica Company, todas dotadas de direitos admi-nistrativos, funcionando como se estados sobera-nos fossem.

5 Trata-se de Sir Nathan Meyer Rothschild(1840-1915), membro do Parlamento Inglês, pri-meiro Barão de Rothschild, bisneto de Mayer Ams-chel Rothschild, o grande fundador da dinastia debanqueiros alemães judeus. A família Rothschildexerceu durante mais de um século e meio podero-sa influência sobre a economia da Europa e, deforma indireta, sobre a evolução política do conti-nente. Favorecidos pelas monarquias européias aque haviam auxiliado na luta contra Napoleão eapoiados na estrutura econômica que lhes propor-cionava sua rede internacional de casas, a famíliaRothschild teve participação ativa na revolução in-dustrial e monopolizou a oferta de empréstimosinternacionais, sempre feitos em libras esterlinascomo escudo às variações cambiais, sobretudo, apaíses da América do Sul. Após a morte do Barão,seus filhos Lionel de Rothschild (1882-1942) eAnthony Gustav de Rothschild (1887-1961) conti-

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nuaram à frente dos negócios. A sucursal de Lon-dres é, até hoje, uma das mais importantes institui-ções financeiras da Europa.

6 A volumosa correspondência de Eduardo Lis-boa, no Arquivo Histórico do Itamaraty, não só docaso do Bolivian Syndicate, mas também relativa àfase das negociações do modus vivendi e do Tratadode 1903, atesta-lhe o alto espírito público (cf. To-cantins: 2001, v. 1, p. 41).

7 Por meio de diferentes ações militares, as tro-pas espanholas ocuparam a Colônia do Sacramen-to, parte do litoral do Rio Grande do Sul, e a ilha deSanta Catarina. Portugal viu-se forçado a negociarum novo tratado de limites, que foi assinado emSanto Ildefonso em 1777. Esse documento retoma-va os limites territoriais fixados em Madri, comexceção do extremo sul da América do Sul, onde oarroio Chuí passou a servir de limite entre as pos-sessões ibéricas, ao mesmo tempo em que os SetePovos das Missões e a Colônia do Sacramento pas-saram para o domínio espanhol. Antes que esseslimites fossem demarcados, porém, o Tratado deSanto Ildefonso perdeu a validade. Em 28 de janei-ro de 1801, sob a influência da ação napoleônica, aEspanha declarou guerra contra Portugal, seu rei-no e seus domínios, e enviou instruções aos Vice-Réis espanhóis na América do Sul para que atacas-sem o Brasil. Tropas hispano-americanas, proveni-entes do Paraguai, invadiram o Mato Grosso, en-quanto as luso-brasileiras revidaram invadindo aBanda Oriental e os Sete Povos das Missões. O Tra-tado de Badajós, firmado em 6 de junho daqueleano, pôs fim ao clima de animosidade (a região dosSete Povos passou definitivamente a fazer parte doimpério português na América), mas não revali-dou o disposto em 1777 nem restaurou o status quoante bellum.

8 Segundo Hélio Silva, apud Santos (1980, pp.290-91), “de 1900 a 1910, por exemplo, a composi-ção da exportação desviou-se fortemente para aborracha, cujos preços estiveram então em alta nomercado mundial e cuja participação na exporta-ção brasileira oscilou entre 20% (1900) e 39% (1910)do valor total” e “os efeitos desfavoráveis da que-da do preço do café sobre a relação de intercâmbioforam atenuados pela redução da importância re-lativa do café e a maior participação da borrachana exportação”.

9 Nesse documento, Rui assim circunscreve aárea do conflito: “mover contra a União a ação or-dinária, a que o peticionário tem direito, com o fimde reivindicar o triângulo territorial abrangido entreo paralelo 10º20’ de latitude sul, a oblíqua tiradaentre a confluência do Beni com o Madeira nesseparalelo e as cabeceiras do Javari e o meridiano quedeste ponto baixe sobre o dito paralelo; região essa,de que, violando a posse e senhorio do suplicante,se apoderou o Governo Federal, estribado no De-

creto Legislativo no 1.181, de 25 de fevereiro de 1904,e no que, em execução deste, expediu, sob no 5.188,a 7 de abril do mesmo ano”. (...) Se a União, argu-mentava, “poderia alegar direito sobre a parte suldo território, que adquirira, não poderia fazer omesmo quanto à parte setentrional, ‘visto se tratarde terras que sempre foram brasileiras, [e] a respei-to das quais aquele tratado serviu apenas para aanuência formal da Bolívia ao nosso antigo direi-to’.” (cf. Ernesto Leme no prefácio ao volume 37,tomo VI, das Obras Completas de Rui Barbosa(1984, p. XXV).

Referências

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4. BARBOSA, Rui. O direito do Amazonas ao Acresetentrional. In: Obras completas. Rio de Janeiro:Ministério da Educação e Cultura; Fundação Casade Rui Barbosa, 1983, v. 37, t. 5.

5. _____. _____. Rio de Janeiro : Ministério da Edu-cação e Cultura; Fundação Casa de Rui Barbosa,1984, v. 37, t. 6.

6. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ReclamaçãoConstitucional no 1421, Reclamante: Estado doAmazonas; Reclamado: Presidente da FundaçãoInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rela-tor: Ministro Néri da Silveira. 2000.

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8. CASSIANO, Ricardo. O Tratado de Petrópolis. Riode Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1954,v. I e II.

9. CASTRO, Genesco de. O Estado Independente doAcre e J. Plácido de Castro: excerptos históricos.Brasília: Senado Federal, 2002.

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11. POLETTI, R. A Constituição de 1934. Brasília:Centro de Ensino à Distância, 1987 (Coleção Curso“Constituições do Brasil”).

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13. SANTOS, Roberto A.O. História econômica daAmazônia: 1800-1920. São Paulo: T. A. Queiroz,1980.

14. SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. OTratado de Petrópolis de 1903. In: Jornal do Brasil,Rio de Janeiro, v. 102, n. 292, 25/01/1993, p. 11.

15. TEXTOS & DOCUMENTOS. Tratado entre oBrasil e a Bolívia: Petrópolis, 17 de novembro de1903, v. 3, n. 12, p. 39-43, dez. 1981.

16. TOCANTINS, Leandro. A formação histórica doAcre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, v.I e II.

17. _____. _____. 4. ed. Brasília: Senado Federal,2001, v. I e II.

18. VIANA FILHO, Luiz. A vida do Barão de RioBranco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.

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1. IntroduçãoOs termos ombudsman e ouvidoria vêm,

paulatinamente, se tornando conhecidos dogrande público. Hoje é bastante comum que,além dos serviços telefônicos de atendimentoao consumidor, as grandes empresas priva-das possuam ouvidorias, forma como a ati-vidade de ombudsman foi chamada no país,para fidelizar o cliente, dar um tratamentomais célere às suas demandas e sinalizarpara a organização os eventuais ruídos emsua comunicação e na formação de sua ima-gem institucional junto aos segmentos deseu interesse, entre outras.

Na esfera pública, especialmenteapós os anos 90, as ouvidorias também vêmocupando um espaço de destaque. Váriosórgãos da administração pública federal jápossuem setores designados para funciona-rem como um canal específico de comuni-cação com o cidadão. Não apenas em nível

Ilana Trombka

Ouvidoria parlamentarUma proposta para o Senado Federal

Ilana Trombka é Graduada em Comunica-ção Social, especialista em Direito Legislativoe mestre em Comunicação Social. Analista Le-gislativo do Senado Federal.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. HENRIQUESAVONITTI MIRANDA.

1. Introdução. 2. O termo ombudsman e suatradução como ouvidor no Brasil. 3. Ombuds-man: antecedentes históricos, função e prerro-gativas. 4. A inserção das ouvidorias no ramodo Direito Administrativo. 5. O papel do Códi-go de Defesa do Consumidor no desenvolvi-mento das ouvidorias. 6. As falhas no modeloatual de ouvidoria parlamentar. 7. A ouvido-ria da Assembléia Legislativa do Rio Grandedo Sul. 8. Proposta de ouvidoria parlamentarno Senado Federal. 9. Conclusões. 10. Referên-cias Bibliográficas.

Sumário

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federal, esses setores já são comuns em vári-as prefeituras, algumas instituições legisla-tivas, inclusive a Assembléia Legislativa doRio Grande do Sul, caso que irá ser aborda-do nesse estudo, e em uma dúzia de admi-nistrações estaduais. Nesse particular, háde se ressaltar o trabalho do Governo doEstado de São Paulo1 ,que construiu todauma política de atendimento ao cidadão,buscando garantir serviços públicos de qua-lidade e implantou, em todos os órgãos daadministração pública paulistana a figurado ouvidor.

Apesar da grande difusão, a forma comoas ouvidorias, com as funções de ombuds-man, acabaram se estruturando no país, empouco se parecem com o modelo clássico daatividade, que é o modelo sueco de ouvidorparlamentar, fonte de inspiração para todosos países que adotaram essa figura para for-talecer o controle da administração públi-ca. Este trabalho irá procurar, de forma bas-tante sucinta, explicar as razões da distor-ção da função de ombudsman no Brasil e, apartir do entendimento destas diferenças,propor um modelo de funcionamento deuma ouvidoria para o Senado Federal. Iráse buscar atribuir um papel mais amplo aesta estrutura, no sentido de que se tornealgo maior do que um simples canal institu-cionalizado de comunicação, mas que, efe-tivamente, atue no controle da prestação dosserviços do Estado, neste caso no âmbito doPoder Legislativo.

2. O termo ombudsman e suatradução como ouvidor no Brasil

A definição do vocábulo “ombudsman”,em sueco, é bastante ampla. Ombud querdizer representante, agente, advogado, soli-citador, substituto, procurador, delegado.Man quer dizer homem, no sentido de serhumano. Diferente do idioma inglês, nãoexiste declinação no plural para o termo enem sua versão para o feminino. SegundoDaniel Barcelos Vargas (2003, p. 09) acredi-ta-se que as raízes históricas do termo en-

contram-se no Old Norse, idioma de origemnorte-germânica falado por comunidadesque habitaram a Escandinávia até meadosdo século XIV. Nessas comunidades, quan-do alguém cometia um crime elegia-se umterceiro imparcial, responsável por determi-nar um preço a ser pago pelo ofensor à famí-lia do ofendido. Essa pessoa era conhecidacomo ombudsman.

No Brasil, ainda que algumas entidadesutilizem o termo sueco original para deno-minar a pessoa que se ocupa da atividadede representar o cidadão, na esfera pública,ou o consumidor, nas empresas privadas,dentro de uma organização tornou-se bemmais comum o termo “ouvidor/ouvidoria”.Ao contrário do que pode parecer, a origemdo termo não deriva do “ouvidor da coroa”,cargo criado na época do Império quando aCoroa Portuguesa enviava para as colôniasum representante do rei que tinha como mis-são representar os interesses da metrópole.O ouvidor moderno tem uma função, podese dizer, inversa, pois representa os interes-ses do cidadão em relação ao governo.

Não se tem conhecimento de nenhumestudo formal que explique as razões quelevaram a atividade de “ombudsman” a di-fundir-se pelo Brasil como sinônimo de “ou-vidor”, mas se pode entender essa questão,uma vez que o ombudsman, para iniciar suaação, necessita de uma informação primei-ra. Ou seja, é primordial que, de alguma for-ma, cheguem ao ombudsman denúncias oureclamações que motivarão sua ação, sejaesse dado via contato interpesssoal ou pelaimprensa.

No Brasil as ouvidorias nasceram com osuporte de serviços de tele-atendimento, que,normalmente, já existiam , sendo assim amaioria das informações que motivava aação dos representantes do cidadão/clien-te tinha origem em uma comunicação inter-pessoal via telefone,ou seja, a primeira açãoda ouvidoria, que na maioria dos casos aca-bou por absorver os serviços de tele-atendi-mento, era escutar o que tinha a dizer a ou-tra parte, daí a utilização do termo “ouvido-

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ria”, ainda que ele dê um sentido bastanteincompleto à atividade de “ombudsman”.

3. Ombudsman: antecedentes históricos,função, prerrogativas e modalidades

As origens do que se conhece hoje porombudsman, como função ligada ao poderpúblico, são remanescentes do século XVI,na Suécia, sob a figura do grande “ semescal”,que era um funcionário do rei encarregadode exercer o controle das atividades dos ju-ízes. No entanto a fundação do ombudsmanna Suécia ocorre após um longo processode evolução do Estado, marcado pela cons-tante rivalidade entre o rei e o Parlamento.A disputa pelo poder começa a se resolver apartir da elaboração da Constituição de1809, que estabelece a divisão dos poderesestatais e a proteção dos direitos do cida-dão contra as arbitrariedades do Estado.Nesse momento, é criada a instituição doombudsman parlamentar ou “ justitiombuds-man”, que tinha como missão exercer o con-trole da administração pública, verificar aobservação da lei pelos tribunais, podendoprocessar aqueles que cometessem negligên-cia ou ilegalidades no exercício de seus deve-res, obrigando-os a reparar a falta cometida.

Para Vera Giangrande (1997: 19), desdeseu surgimento a instituição do ombudsmanfoi identificada com a proteção aos direitosindividuais. Ficou clara também, uma níti-da divisão entre os atos políticos do gover-no e os atos de administração, sobre os quaiso ombudsman poderia exercer sua fiscali-zação. Anos mais tarde o parlamento vaiassumir a função de gestão estatal, afastan-do o rei da administração da nação. Ficasendo a Suécia um país parlamentarista e,atualmente, unicameral.

No Brasil não existe a figura constitucio-nal do ombudsman. Houve na AssembléiaNacional Constituinte de 1988 uma ten-tativa de se criar a função, que não obteveêxito. Segundo relata Marcos Amaral Filho(1993: 117) os parlamentares rejeitaram aemenda da deputada Raquel Capiberibe, do

PMDB do Amapá, que propunha a criaçãodo defensor do povo. Contra a criação des-sa figura se levantaram poderosos lobbiescorporativos do Tribunal de Contas daUnião e do Ministério Público, que muni-ram os adversários da idéia com inúmerosargumentos, desde o ônus de se criar maisuma estrutura no país até a afirmação deque o controle jurisdicional possibilita maio-res garantias aos cidadãos. Dessa maneiraas tradicionais funções do ombudsman fi-caram diluídas entre estes dois órgãos e oCongresso Nacional.

Cabe ao Ministério Público, por exem-plo, conforme rege o artigo 129 da Consti-tuição Federal “zelar pelo efetivo respeitodos poderes públicos e dos serviços de rele-vância pública aos direitos asseguradosnesta Constituição, promovendo as medi-das necessárias a sua garantia”; já no quediz respeito ao Tribunal de Contas da Uniãoficou definido que auxiliará o CongressoNacional no controle externo das contaspúblicas, fazendo a fiscalização contábil,financeira e orçamentária conforme o artigo71 da Carta Magna. O Congresso Nacional,por sua vez, teve sua função bastante am-pliada pela Constituição cidadã, podendo,segundo o artigo 49, “fiscalizar e controlar,diretamente, ou por qualquer uma de suasCasas, os atos do Poder Executivo, incluí-dos os da administração indireta”. Comple-ta, ainda, o artigo 50:

A Câmara dos Deputados e o Se-nado Federal, ou qualquer de suas co-missões, poderão convocar Ministrode Estado ou quaisquer titulares deórgãos diretamente subordinados àPresidência da República para pres-tarem, pessoalmente, informações so-bre o assunto previamente determina-do, importando em crime de respon-sabilidade a ausência sem justificaçãoadequada.

Seria injustiça se não fosse reconhecidoo crescimento do papel do Poder Legislati-vo brasileiro. Desde a promulgação da Cons-tituição, algumas das mais importantes pas-

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sagens históricas contaram com uma parti-cipação ativa da Câmara dos Deputados edo Senado Federal. Não se pode olvidar doprocesso de cassação do ex-presidenteFernando Collor de Mello e, mais recente-mente, do ex-senador Luiz Estevão. Tambémas Comissões Parlamentares de Inquéritotem contribuído para a legitimação do po-der de fiscalização e de investigação do par-lamento. No entanto, a hipertrofia do PoderExecutivo é inegável. O sistema presidenci-alista brasileiro é extremamente centraliza-do e autoriza a utilização de dispositivos,como as medidas provisórias e o orçamentoautorizativo, que acabam por redundar emum desequilíbrio de poder. Assim fica bas-tante prejudicado o controle da máquinaestatal por meio destes três órgãos.

Ocorreram outras tentativas para que afunção de “ombudsman” existisse no país.Pode-se destacar o CODICI – Conselho deDefesa e Informação do Cidadão, que tinhacomo finalidade proteger o indivíduo con-tra erros, omissões ou abusos de autorida-des administrativas, mediante petição dequalquer cidadão. Segundo sua regulamen-tação ele podia receber reclamações e suajurisdição abarcava todas as entidades daadministração direta e indireta. Mas a pri-meira tentativa perene na esfera pública deatuação da ouvidoria deu-se em 1986, coma iniciativa do então prefeito de Curitiba,Roberto Requião. Posteriormente, ao assu-mir o cargo de governador, implantou a ou-vidoria na esfera estadual também. Há dese ressalvar, no entanto, que o trabalho ini-cial da Prefeitura Municipal de Curitiba ti-nha um enfoque diferenciado, pois atuavaestritamente no controle interno, com audi-torias e não por meio do atendimento à po-pulação.

Ocorreu, especialmente nos últimos dezanos, uma grande disseminação das ouvi-dorias nos órgãos públicos. No entanto, di-ferente dos modelos clássicos, no Brasil op-tou-se por uma ação descentralizada, órgãopor órgão, deste mecanismo de controle.Desta feita, a instituição ¨ombudsman¨, na

forma brasileira de funcionar, atua comouma instância de controle interno da admi-nistração pública em suas variadas figuras.Podemos encontrar estruturas de represen-tação do cidadão nos três poderes da Repú-blica e nas diversas esferas de poder. A ex-periência da Câmara dos Deputados, órgãoco-irmão do Senado Federal, é um exemploclaro do tipo de controle que as ouvidoriaspúblicas tem feito, uma vez que ela preten-de ser uma ligação entre o cidadão e a admi-nistração pública e apoiar a população nagarantia dos direitos explicitados na Cons-tituição Federal e na legislação em geral.

Ainda que com uma proposta ampla dedefesa da cidadania, na prática as ouvido-rias, por vezes, tem tido um papel limitadobaseando seu trabalho no estabelecimentode um canal formal de informações e na ga-rantia de tramitação da manifestação do ci-dadão. Sem dúvida os passos acima cita-dos são fundamentais, mas tem faltado aomodelo brasileiro o papel opinativo dosouvidores, que com suas investigações e noefetivo controle interno, estaria autorizadopara atuar de forma mais ampla, além dasresoluções de questões pontuais. Uma bre-ve reflexão poderá nos levar à conclusão que,por ter sido implantado de forma “fatiada”e extremamente especializada o caráter doombudsman de defesa de grandes temasnacionais afetos a administração públicaficou prejudicado . Faz-se necessário umnovo olhar sobre a função do ouvidor e umaampliação de seu leque de atividades paraque os efeitos da atividade possam cami-nhar no mesmo sentido da busca de ummaior espaço de ação social .

O ombudsman legislativo clássico, quetrabalha a partir de um enfoque externo daadministração pública e se encontra em umambiente parlamentarista, tem quatro carac-terísticas fundamentais. A primeira delas éseu estabelecimento pela constituição, porlei ou por estatuto de um órgão legislativo,assegurando-se o caráter de instituição per-manente, a neutralidade e independênciaem relação à autoridade administrativa re-

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clamada. O modelo do ouvidor parlamen-tar nacional segue a mesma tendência, sen-do normalmente criado por ato do legislati-vo, mas ao invés de lei ou emenda constitu-cional, por estar afeto apenas a sua própriainstituição, é regulado por projeto de reso-lução da casa legislativa.

A segunda característica diz respeito acapacidade de receber e investigar reclama-ções do público contra qualquer parte daadministração pública relacionada ao Po-der Executivo, podendo, inclusive, iniciarinvestigações sem provocação prévia. Nes-se sentido o ouvidor legislativo brasileirotem papel bastante distinto, uma vez quetrabalha intra-corporis, ou seja, sua jurisdi-ção limita-se efetivamente a organização aoqual pertence. Aos demais órgãos, sejam elesdo Executivo ou do Judiciário, cabe apenasa solicitação de informações em nome docidadão, mas sem a possibilidade de intro-missão.

O terceiro traço do ombudsman clássicotambém difere do ouvidor parlamentar exis-tente no Brasil. Enquanto na Suécia e nospaíses que adotaram as atribuições de con-trole externo o ombudsman é um órgão deapelação, no sentido que investiga uma au-toridade apenas se a reclamação tiver sidopreviamente apresentada à autoridade pú-blica, no Brasil não existe relação entre asesferas de demanda e a área de atuação doouvidor.

A quarta função fundamental do ombu-dsman parlamentar clássico é apenas, emparte, desenvolvida pelo ouvidor parlamen-tar no país. Enquanto que o primeiro, se con-cluir pela procedência da reclamação, fazrecomendações para a autoridade reclama-da suprir a deficiência constatada e, se taisrecomendações não forem aceitas ele as apre-senta, diretamente, ao chefe do executivo,no Brasil o ouvidor só tem tal amplitude deresultado garantida quando a questão ocor-re dentro de sua casa legislativa de origem.No entanto, pode-se afirmar,que ambos pos-suem uma função não coativa, ou seja, exer-cem a magistratura de persuasão, não ten-

do, portanto, suas atividades confundidascom os órgãos do Poder Judiciário.

Além do ombudsman parlamentar, ou-tros órgãos públicos adotaram a função emseus organogramas. Atualmente a gama deouvidores é tamanha que se corre o risco deerrar ao tentar precisar a grande diversida-de de ramos da função. Exemplos clássicosno Brasil são as ouvidorias das policias, devariadas prefeituras e governos de estado,de bancos de economia mista, das agênciasreguladoras, entre outros. Também se des-tacam os ombudsman universitários, de ór-gãos da imprensa, de instituições financei-ras, de serviços privatizados e de grandesempresas dos mais variados segmentos. Asexperiências, por exemplo, do grupo Pão deAçúcar e do jornal Folha de São Paulo jáforam transformadas em obras literárias esão exemplos de iniciativas bem sucedidase já consolidadas em seus respectivos ra-mos e empresas.

4. A inserção das ouvidorias no ramodo Direito Administrativo

O Direito Administrativo, que surge noséculo XIX na França, é o ramo autônomodo Direito que se preocupa com o estudo doconceito aglutinador de administração pú-blica tomada em seus aspectos objetivos esubjetivos. Em relação a suas atividades,aspectos objetivos, trata de realizar o fomen-to social, de abarcar as questões relativas aoserviço público, atua como polícia adminis-trativa e faz algumas intervenções, devida-mente reguladas, na propriedade privada.No que diz respeito aos aspectos subjetivosé integrada por pessoas jurídicas que com-põem a administração direta e indireta nosníveis federal, estadual e municipal.

Esse segmento do direito tem como prin-cipal traço seu papel regulador em relaçãoao comportamento de toda a atividade ad-ministrativa do Estado frente aos cidadãos,no sentido de protegê-los contra os desman-dos do poder estatal, que é imensamentemaior que a cidadania individualmente, por

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isso ele é, por excelência o direito defensivodo cidadão. Para deixar claro os princípiosque devem nortear a ação do organismopúblico, a Constituição Federal, no seu arti-go 35 explicita quais são os alicerces e asvigas-mestras sobre as quais se constrói oedifício-jurídico desta área.

A forma como está organizada a estru-tura jurídica brasileira em relação ao Direi-to Administrativo faz com que o Poder Judi-ciário apenas se pronuncie a respeito documprimento pela Administração Públicadas etapas exigidas por lei para a tomadade decisão, no entanto, não faculta a análi-se sobre o mérito da questão. Ou seja, con-trola-se a forma do procedimento, mas nãoseu conteúdo. Segundo Adalberto Braz(1992, p. 149) o principal neutralizador ju-rídico-político do Judiciário tem sido a teo-ria prevalente do Direito Administrativo queinibe esse poder de entrar no mérito do atoadministrativo.

O ombudsman, ou a ouvidoria, quandoimbuída das funções do primeiro atua nocontrole da administração pública, poden-do ser considerada um instrumento do Di-reito Administrativo, especificamente em seucaráter fiscalizador. Esse traço de ação ficabastante claro quando analisada a nature-za objetiva da função, que, segundo Braz(1992: 91), diz respeito às suas atribuiçõescomo supervisor da aplicação das leis e de-mais normas. No entanto, a formatação daestrutura de origem da função modelará otipo de auditoria a ser feito pela ouvidoria,dando o seu caráter interno ou externo. Ocontrole será externo quando o segmento aser investigado for proveniente de uma es-trutura de poder diferente daquela que dálegitimidade à ouvidoria, por exemplo, secoubesse à Ouvidoria da Câmara Federalinvestigar atos relativos à regulamentaçãodas normas por parte do executivo. Nessesentido a legislação nacional dá, por exem-plo, aos congressistas a possibilidade de pormeio das comissões, fiscalizar a ação dosoutros poderes, sendo uma estrutura volta-da para o controle externo.

Na forma em que estão sendo constituí-das no país, no entanto, as ouvidorias po-dem ser denominadas de instrumentos decontrole interno da administração pública,não na forma global do termo, mas na espe-cificidade de cada órgão que a compõe.Assim, por exemplo, a ouvidoria da PolíciaMilitar de São Paulo fiscalizará, a partir dedenúncias ou por ofício, ações dos membrosde sua própria estrutura. Em relação asmatrizes político-ideológicas inspiradas naatuação deste tipo de órgão, segundo o pro-fessor Rubens Pinto Lyra (1993: 117) pode-mos diferenciar a vertente modernizadora,que se preocupa com a eficiência, da verten-te democrática, que preza a formação debaixo para cima da estrutura da ouvidoria,com a participação dos grupos sociais naconsolidação e administração da estrutura.Praticamente, no primeiro caso o ombudsmanseria um membro do órgão e, no segundo,poderia ser alguém de fora da estruturaque trabalharia com as atribuições den-tro dela.

Outro marco legal que justifica a exis-tência das ouvidorias, inspiradas nas fun-ções do ombudsman clássico sueco é o Arti-go 37 da Emenda Constitucional no 19 de1998, que estende ao cidadão a tarefa departicipar do controle dos atos do PoderPúblico. O parágrafo 3o, inciso I diz “as re-clamações relativas à prestação dos servi-ços públicos em geral, asseguradas a ma-nutenção de serviços de atendimento aousuário e a avaliação periódica, externa einterna, de qualidade de serviço”. Ou seja,esse dispositivo autoriza a cidadania a exer-cer diretamente, com presença ativa, a fun-ção de fiscalização da atuação da Adminis-tração Pública. Como é, na prática, impossí-vel que milhões de agentes atuem em relaçãoa função de auditoria foram sendo criadoscanais, meios específicos e o mais relevantedeles é o ombudsman, para exercer de formadelegada e organizada o que preconiza a cha-mada Reforma Administrativa de 1998.

Por fim, como colocou o senhor Hum-berto Pedrosa Espíndola, Coordenador-

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geral do Conselho de Defesa dos DireitosHumanos, no seminário “Ações de Cidada-nia”, promovido pela Câmara dos Deputa-dos em 26 de junho de 2001, o Estado demo-crático de direito tem como uma de suas prin-cipais características o estabelecimento decanais entre os poderes constituídos e oscidadãos, a população. Esses canais facili-tam a circulação das informações e permi-tem a transparência, indispensável ao de-sempenho do regime democrático. Portan-to, completa ele, a ouvidoria é um agente-meio na prestação de determinado serviço,trabalhando com a circulação de informa-ções e, então reforçando seu caráter demo-crático.

5. O papel do Código de Defesa doConsumidor no desenvolvimento

das ouvidorias

O Código de Defesa do Consumidor,nome pela qual é conhecida a Lei nº 8.078,de 11 de setembro de 1990, sancionada peloentão presidente Fernando Collor de Melo,tem um relevante papel no desenvolvimen-to da consciência de consumo e de cidada-nia. Apesar de regular as relações de consu-mo e restringir sua eficácia a situações decompra ou utilização de produtos ou servi-ços, a apropriação de direitos que o cidadãobrasileiro começou a fazer a partir do Códi-go fez com que surgisse não apenas um con-sumidor mais maduro e sabedor de seusdireitos, mas também um cidadão consci-ente de seu papel e fiscalizador das atitu-des do Estado, enquanto representante dagama de nacionais. Nesse sentido torna-seimportante entender esse instrumento pararefletir sobre o modelo de ouvidoria interes-sante para a Administração Pública e seusórgãos.

Mais do que resultante de uma disposi-ção transitória da Constituição Federal de1988 ou do disposto na própria Carta Mag-na, o direito do consumidor é resultado daevolução dos direitos humanos, uma vez queas relações de consumo, como fator social,

podem ser parte dos segmentos que com-põem o direito difuso e, portanto, conquistada terceira geração dos Direitos Humanos.

A história da defesa do consumidor re-mete aos movimentos populares relaciona-dos à carestia como a Marcha da Fome em1931, a Marcha da Panela Vazia em 1953, oprotesto contra o alto custo de vida em agos-to de 1963 e ao boicote da carne de 1979. Sobo enfoque jurídico, tanto o Código Comercialde 1850, como os Códigos Civil de 1916 ePenal de 1940 já tratavam de alguns assun-tos afetos à defesa do consumidor, ainda quesem mencionar expressamente o termo. Noentanto, é a partir dos anos 70 que a questãose tornará mais organizada no país e sofre-rá um processo de amadurecimento até oano de 1988, com o advento da AssembléiaNacional Constituinte. Durante esses anosforam criadas as Associações Nacionais deDefesa do Consumidor, os PROCONs, oCódigo Brasileiro de Auto-RegulamentaçãoPublicitária, as Delegacias do Consumidore o Conselho Nacional de Defesa do Consu-midor.

Talvez o marco mais importante no pro-cesso de amadurecimento das relações deconsumo tenha sido a mobilização nacio-nal quando do Plano Cruzado, em 1986. Oscidadãos brasileiros retomaram, nesse epi-sódio, ainda que simbolicamente, o espaçopúblico e agindo como agentes e parceirosda administração federal tomaram iniciati-va de defender seus direitos. Apesar da de-silusão posterior, especialmente em relaçãoaos rumos do plano econômico, a experiên-cia de participação fez com que amadure-cessem os movimentos de retomada da ci-dadania, o que em grande parte possibili-tou e estimulou o aparecimento do Códigode Defesa do Consumidor.

A Lei 8.078, entre outras mudanças, re-conheceu e detalhou os direitos básicos doconsumidor, criou normas específicas paraa responsabilidade civil do fornecedor, in-verteu o ônus da prova, dispôs sobre publi-cidade, estabeleceu mecanismos para o con-trole das condições gerais dos contratos e

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dos contratos de adesão, instituiu instru-mentos para serem utilizados pelos consu-midores para sua própria defesa e dispôssobre o aparato repressivo administrativo epenal. A importância desta norma foi sen-do comprovada paulatinamente e sua vali-dade principal se deu pela inovação que cau-sou no contexto jurídico e social, melhorandoe equilibrando as relações de consumo.

O fortalecimento que ocorreu na relaçãoconsumidor/detentor dos produtos e servi-ços refletiu-se na forma com que o cidadãocomeçou a encarar o Estado. Da mesma for-ma que, como cliente, o indivíduo começoua exigir com maior freqüência os seus direi-tos, como cidadão ele também passou a bus-car maior participação na administraçãopública e a se sentir mais a vontade paraquestionar seus procedimentos. Encontra-se aí a intersecção entre as ouvidorias e oCódigo de Defesa do Consumidor. Essa le-gislação também foi um vetor para a modifi-cação na estruturação dos diversos órgãospúblicos no sentido de maior transparênciae melhor fluxo de informação, o que resul-tou no aumento do número de ouvidoriasnas diversas instâncias do Estado. Portan-to, como coloca o professor Rubens PintoLyra a expansão vertiginosa das ouvidori-as está associada ao crescimento dos novosespaços públicos, representados pelos dife-rentes instrumentos da democracia partici-pativa no Brasil.

6. As falhas no modelo atual deouvidoria parlamentar

As ouvidorias parlamentares criadas,têm trabalhado no sentido de implementarcanais formais e agilizar o fluxo de infor-mação entre a organização e todos aquelesque com ela mantém relação. Dessa manei-ra se acredita que o principal objetivo des-tas estruturas é buscar a aproximação doadministrador público com o cidadão, deforma que ambos percebam a importânciado registro de uma reivindicação. Ou seja,cria-se um órgão focado no processo de par-

ticipação, que tem como gênese de seu tra-balho atender a reclamações/sugestões in-dividuais, no intuito de com a resolução deum determinado caso evitar-se outras con-dutas não desejáveis.

Essa forma de ação, no entendimentodesse estudo, encontra-se incompleta. Apro-ximar o cidadão da administração públicae estimulá-lo a participar dela por meio dacolocação de sua satisfação é, sem duvida,o primeiro passo. No entanto, resumir o tra-balho da ouvidoria somente a isso é mini-mizar suas possibilidades. Como colocaOliveira (2000, p. 26) uma ouvidoria é maisabrangente que um sistema de atendimen-to, pois não se limita apenas a recepção dereivindicações, mas participa de todo o pro-cesso do estabelecimento de políticas públi-cas.

É importante frisar que, exatamente porexercer uma função de caráter público, oouvidor deve trazer as questões relevantesdas demandas individuais para o coletivo eaproveitar a função concomitante de ouvi-dor e parlamentar, o que ocorre na maioriadas casas legislativas, para colocar à comu-nidade as discussões que chegam até a ou-vidoria. Em um caso, por exemplo, de recla-mação no que diz respeito à adaptação dosprédios públicos para deficientes físicos,não é bastante que se resolva uma situaçãoparticular, mas se faz necessário o debaterelativo ao verdadeiro espaço que os porta-dores de necessidades especiais estão ocu-pando na sociedade, se estão sendo garan-tidas as prerrogativas para que estes indiví-duos exerçam sua cidadania, além de ques-tões práticas corretivas, como a que questio-na se uma administração de um órgão pú-blico que desrespeita a lei (nesse caso a quegarante acesso e locomoção aos cadeiran-tes) deve sofrer modificações sérias na suaforma de conduta.

Acredita-se que dois aspectos poderiamenriquecer o molde sob o qual têm sido cons-truídas as ouvidorias parlamentares. O pri-meiro aspecto diz respeito à criação de umsistema completo de participação popular,

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formado por formas de captação das mani-festações dos cidadãos (linhas 0800, e-mail,carta,etc.), uma ouvidoria que além de aten-der aos casos de forma individual projetas-se as discussões para os fóruns públicos euma comissão de participação legislativapara onde, se fosse o caso, as iniciativas dospopulares poderiam ser enviadas. Para aefetivação deste último passo, caberia a ou-vidoria a utilização dos órgãos técnicos dacasa legislativa no sentido de formatar osprojetos de lei adequados às normas da boaprática legiferante. Além da existência detodas essas estruturas é interessante que elasfuncionem em permanente 0diálogo e cola-boração e que se utilizem das estruturas decomunicação das câmaras de vereadores,assembléias legislativas e do CongressoNacional para divulgar seus trabalhos e osresultados desses. Pode, ainda, o serviço deatendimento ao cidadão, via Internet, tele-fone ou outro meio, fazer parte da estruturada ouvidoria, o que além de ter sentido prá-tico facilita o trânsito das informações e ocontrole dos processos.

Outro aspecto ressalta a importância deum controle das leis e leva a uma reflexão arespeito da inserção da norma criada naCasa Legislativa no corpo social. A esse res-peito comenta a coordenadora executiva doInstituto de Defesa do Consumidor – IDEC,Marilena Lazarini, na palestra que proferiuno dia 26 de junho de 2001, na Câmara dosDeputados, por ocasião do seminário Açõesde Cidadania, que o trabalho dos deputa-dos e dos senadores não se esgota na apro-vação de um projeto de lei. Depois que a leié aprovada, é preciso que se saiba se ela foiimplementada e como ocorreu esse proces-so. Isso quer dizer que, assim como as em-presas possuem um serviço de pós-venda,caberia à ouvidoria a realização de procedi-mentos para verificar a inserção da normana realidade. Seria o serviço de pós-vendados parlamentos.

Praticamente poderiam ocorrer investi-gações, a partir da motivação de uma de-núncia ou por observação própria do ouvi-

dor, a respeito da regulamentação e da im-plantação dos projetos aprovados. Se verifi-caria se a lei “pegou”, como se diz popular-mente, se esta sendo respeitada e, em casonegativo, por quem e quais as atitudes dopoder constituído para punir esses desres-peitos. Após a análise de cada caso o ouvi-dor agiria segunda a magistratura de per-suasão e emitiria seu parecer, tanto para aautoridade pública responsável pelo caso,como para os próprios parlamentares paraque eles tomassem ciência da situação e, porque não, refletissem sobre as possibilidadesdas leis aprovadas, efetivamente, influenci-arem a vida do cidadão.

Essa atribuição teria um papel avaliati-vo, uma vez que daria aos parlamentares areal oportunidade de observar como cadanova norma criada beneficia ou apenas tor-na mais atribulado o sistema jurídico brasi-leiro. Por outro lado, desmistificaria a ima-gem de “fábrica maluca” de leis que os par-lamentos possuem e fortaleceria a importân-cia das normas junto à sociedade em geral.

7. A ouvidoria da AssembléiaLegislativa do Rio Grande do Sul

A ouvidoria parlamentar da AssembléiaLegislativa do Rio Grande do Sul foi criadano ano de 2001, por meio da resolução nº421, de iniciativa da mesa diretora, para serum elo entre o cidadão e o poder legislativoestadual e um canal para o encaminhamen-to de reclamações, denúncias e sugestões porparte da comunidade. Essa iniciativa esti-mulada pelo então presidente da Casa e atu-al Senador Sérgio Zambiasi fez parte de umasérie de ações para aumentar a transparên-cia dos atos da assembléia, bem como darvisibilidade a seus trabalhos e fortalecer suaimagem institucional junto à comunidadegaúcha.

Compete à ouvidoria parlamentar:I – Receber, examinar e encaminhar aos

órgãos operacionais da Assembléia Legis-lativa as reclamações de pessoas físicas ejurídicas a respeito de:

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a) funcionamento ineficiente de serviçoslegislativos ou administrativos da Assem-bléia;

b) violação ou qualquer forma de desres-peito aos direitos ou liberdades fundamen-tais;

c) ilegalidade ou abuso de poder;II – Sugerir medidas para sanar viola-

ções de direitos, ilegalidades ou abusos depoder;

III – Propor medidas necessárias à regu-larização dos trabalhos legislativos e admi-nistrativos, bem como ao aperfeiçoamentoda organização da Assembléia;

IV – Encaminhar à Mesa Diretora denún-cias que necessitem de maior esclarecimen-to junto ao Tribunal de Contas do Estado,Ministério Público ou outro órgão compe-tente;

V – Responder aos cidadãos e entidadesquanto às providências tomadas pela As-sembléia sobre procedimentos legislativose administrativos de interesse dos mesmos;

VI – Propor à Mesa Direitora audiênciapública com segmentos da sociedade;

VII – Encaminhar aos outros poderes doEstado e ao Ministério Público reclamaçõesou representações de pessoas físicas ou ju-rídicas, a fim de que tomem conhecimento ese manifestem a respeito.

Quanto às atribuições pode-se verificarque existe uma clara função de controle in-terno do órgão, como demonstram os itensIa, III e V, também existe uma preocupaçãocom a defesa dos direitos individuais e dasgarantias constitucionais, conforme itens Ib,Ic e II e, por fim, um intuito de maximizar asdiscussões da ouvidoria, por meio do enca-minhamento aos outros órgãos, como de-monstram os itens IV e VII. No entanto aobservação feita na ouvidoria da Assem-bléia Legislativa, bem como os dados cole-tados por meio dos relatos dos servidoresali lotados demonstram que o controle in-terno dos atos administrativos tem sido oviés de trabalho mais desenvolvido.

Vale ressaltar ainda, a abertura para ocontrole dos atos legislativos, além dos ad-

ministrativos. O importante nessa questãoé a possibilidade de intervenção no méritodos trabalhos dos deputados estaduais enão apenas na forma de comportamento deum órgão da administração pública no seuaspecto institucional.

A Ouvidoria Parlamentar é formada, emtermos de recursos humanos, por umOuvidor-Geral e um Ouvidor-Substituto,ambos parlamentares, uma equipe técnico-operacional que analisa as demandas e dá aelas os encaminhamentos devidos e uma equi-pe formada por 05 atendentes da linha 0800.

O acesso ao órgão pode ser feito por meioda linha 0800, através de e-mail, correspon-dência ou via fax. Quando a demanda é fei-ta pela linha 0800 ela pode ser respondidana hora, caso a questão seja simples e suaresposta esteja disponível no site da Assem-bléia, ou gerará uma ocorrência que serásanada posteriormente por correio eletrôni-co ou carta. Todas essas formas de acessogeram ocorrências registradas no sistema.O prazo máximo de resposta ao cidadão éde 15 dias corridos.

Desde o início de suas atividades até odia 14 de janeiro de 2004 foram realizados11.518 atendimentos, dos quais 72% ou 8.362foram respondidos de forma instantânea eos 28% restantes geraram ocorrências. Ape-nas 1,05% dos contatos ficou sem respostasnestes quase 3 anos de funcionamento.

O próximo projeto que está em desenvol-vimento pelo setor é a criação de um portalde ouvidorias legislativas gaúchas, ondeserá disponibilizado pela Assembléia paraas Câmaras de Vereadores a central de aten-dimento. O atendente cadastrará o cidadãoe sua demanda no sistema e repassará paraa Câmara, que terá um funcionário respon-sável pelo processamento e acompanhamen-to da demanda. Cada Câmara indicará, tam-bém, um vereador –ouvidor que será respon-sável pela resposta, a ser despachada paraa Assembléia, que retornará ao cidadão.

A proposta da Assembléia Legislativa defacilitar a criação de ouvidorias nas Câma-ras de Vereadores do Estado é, sem dúvida,

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inovadora e contribuirá para a aproxima-ção do poder legislativo, como um todo, docidadão gaúcho. No entanto, é necessárioentender que, apesar da disseminação daestrutura ser favorável ao processo demo-crático e a transparência do processo legis-lativo e administrativo, o foco da iniciativasegue sendo na criação de um canal de co-municação para estimular a participaçãopopular sendo pouco focada na revisão dosprocessos políticos de decisão e na amplia-ção das atribuições das ouvidorias.

8. Proposta de OuvidoriaParlamentar no Senado Federal

O Senado Federal, especialmente a par-tir da década de 90, iniciou um proveitosotrabalho com o objetivo de se aproximar dapopulação. Algumas iniciativas, como a es-trutura de comunicação, especialmente a TVSenado, foram verdadeiras revoluções narelação da Casa Parlamentar com a cidada-nia. A transparência que os veículos de in-formação trouxeram para os trabalhos dosparlamentares atribuiu novo grau de impor-tância às sessões plenárias e às comissões.

Outras ações importantes acompanha-ram o movimento em direção a uma aproxi-mação com a sociedade. Pode-se citar a cri-ação do Serviço 0800Senado – A Voz do ci-dadão, uma linha telefônica de chamadagratuita, a modificação da página do Sena-do na Internet e, mais recentemente, a cria-ção da Comissão de Participação Legislati-va. No entanto, para completar o que aquise denominou de “sistema de participaçãopopular”, falta a inclusão de uma ouvido-ria na estrutura do Senado Federal.

Apesar de já existirem exemplos de ou-vidorias em órgãos legislativos, como oexemplo da Assembléia Legislativa do RioGrande do Sul e da própria Câmara dosDeputados, o que se vai propor é a constru-ção de um novo modelo, com atribuiçõesmais amplas e com uma função além de umcanal estruturado e controlado de entrada etrânsito de informações do cidadão para a

administração pública, dessa entre seus se-tores e da ouvidoria em direção ao cidadão.Não há como se questionar o sucesso dasestruturas já existentes e, pretende-se, a par-tir das experiências anteriores, melhorarainda mais a relação do cidadão com a ad-ministração pública.

A proposta aqui apresentada divide osistema de ouvidoria do Senado Federal emseis funções distintas, quais sejam:

1 – Função de Informação: Nessa funçãoestão englobadas todas as atividades vin-culadas a captação e fluxo de informações.Aqui estão inseridas ações de busca de par-ticipação, como o gerenciamento da linha0800 do Senado, a construção de uma pági-na na Internet, de um endereço de correioeletrônico e de um sistema de atendimentopessoal. Também a essa função cabe o con-trole dos fluxos internos para a circulaçãodos dados, por meio de um programa de com-putador que controle os prazos e os destinosdas solicitações e a responsabilidade dos pro-cedimentos de resposta aos cidadãos.

2 - Função de Investigação: Aqui estãoinseridas todos os estudos técnicos e proce-dimentos administrativos para a investiga-ção das denúncias e reclamações recebidas.Também para as sugestões deverão ser de-senvolvidos estudos que avaliem a viabili-dade de cada caso. Quando o âmbito da in-formação for interno, ou seja, envolvendo aprópria estrutura do Senado, o ouvidor po-derá solicitar os documentos que achar ne-cessário, convocar servidores e contar como apoio de todos os órgãos afetos ao temainvestigado. Cada investigação redundaráem um arquivo com a inicial, os anteceden-tes, a investigação e as conclusões técnicasdo caso.

3 – Função de Controle: Essa função éresponsável, especificamente, para os casosenvolvendo desrespeito, no âmbito da ad-ministração pública, de normais legais. Esseseria o sistema de controle do Senado a res-peito da eficiência e da eficácia das leis fei-tas pelo parlamento. Funciona como um ser-viço de pós-venda de uma das mais impor-

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tantes atribuições constitucionais do Con-gresso Nacional, que é legislar.

4 – Função de Aconselhamento: Aquiestão enquadradas as confecções de todosos aconselhamentos proferidos pelo ouvi-dor nos casos analisados. Os documentosproduzidos não têm força coativa, mais de-verão ser remetidos às autoridades envolvi-das nos casos estudados, bem como paraseus superiores hierárquicos, independen-tes da denúncia estar no âmbito do SenadoFederal ou dizer respeito a outras estrutu-ras da administração pública, como nasações relativas a Função de Controle.

5 – Função de Reflexão: As atividadesdessa função funcionam como uma aplica-ção das experiências e das informações dasquais a ouvidoria tomou ciência em relaçãoa atividade parlamentar. Para isso o ouvi-dor poderá utilizar a tribuna de forma espe-cial para fazer reflexões e propor estudos arespeito de temas relevantes. Assim a ouvi-doria daria, também, um feedback de seutrabalho voltado exclusivamente para osinteresses dos parlamentares.

6 – Função de Divulgação: Essa últimafunção engloba todas as ações para a difu-são do trabalho da ouvidoria. Estariam in-cluídos aqui programas na TV e na RádioSenado, uma coluna semanal no jornal doSenado, a realização de seminários, a buscade meios de comunicação dirigida para adivulgação das formas de acesso e do resul-tado dos trabalhos da ouvidoria, a confec-ção e divulgação do relatório final anual,entre outras ações.

Os recursos físicos, materiais e de pesso-al de uma futura ouvidoria do SenadoFederal poderão ter por base as funções ex-plicitadas acima. Deve-se ressalvar, ainda,que é interessante que ela tenha possibili-dade de encaminhar projetos para a Comis-são de Participação Legislativa sempre quejulgar alguma idéia recebida viável e ade-quada, desde que já tenha submetido tal ini-ciativa ao estudo técnico dos órgãos da Casa.

É importante destacar que já existe umagrande sensibilização dos parlamentares

para a implantação de uma ouvidoria par-lamentar no Senado Federal. Duas iniciati-vas nesse sentido tramitam na Casa, nomomento do fechamento desta investigação,uma delas, de autoria do Senador PauloPaim, que se encontra pronta para a apreci-ação da Comissão de Constituição e Justiçatendo voto favorável do relator, pretendeinstituir a Ouvidoria Permanente do Sena-do Federal para encaminhar denúncias depreconceitos e discriminações e a segunda,do Senador Siba Machado, também prontapara apreciação na CCJ, com voto favoráveldo relator, visa a alteração do RegimentoInterno do Senado Federal para instituir aOuvidoria Parlamentar.

9. Conclusões

As ouvidorias, especialmente quandoimbuídas da função de ombudsman, vêmtendo grande crescimento no país, sem, noentanto, repetir o modelo clássico do dele-gado parlamentar, que é o criado na Suéciae posteriormente difundido em várias na-ções. No Brasil as ouvidorias, quando naesfera estatal, têm sido implantadas de for-ma descentralizada e, em sua maioria, como objetivo de efetuar um controle interno daadministração pública.

A atividade de ombudsman, termo ori-ginal do que é nacionalmente chamado deouvidor, buscou, desde o seu surgimento, agarantia dos direitos individuais e a prote-ção do cidadão em relação à máquina doEstado, restringindo sua atuação, no entan-to, aos atos administrativos. No Brasil houveuma tentativa de se criar o modelo consagra-do de ombudsman parlamentar na Assem-bléia Nacional Constituinte, mas, com a ale-gação de que as atribuições do ombudsmanjá encontravam-se contempladas na ativida-de do Ministério Público, no Tribunal deContas da União e no próprio CongressoNacional, foi rejeitada a iniciativa. Sendoassim, coube a cada órgão da Administra-ção Pública criar ou não sua estrutura deatendimento ao cidadão independente, o

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que resultou no aparecimento de um novotipo de ombudsman, que atua de forma pon-tual no órgão ao qual pertence.

Dentro do ramo do Direito as ouvidoriassão caracterizadas como instrumento doDireito Administrativo, por promoverem ocontrole das atividades da AdministraçãoPública. Também estão ligadas ao Direitodo Consumidor, uma vez que o Código deDefesa do Consumidor fortaleceu o papeldo homem-consumidor e, conseqüentemen-te, qualificou o homem-cidadão e o estimu-lou a buscar de forma mais atenta seus di-reitos. Por fim, em virtude de ter a possibili-dade de defender os direitos difusos e o ob-jetivo de resguardar as garantias individu-ais, as ouvidorias estão de alguma formavinculadas aos Direitos Humanos.

As várias ouvidorias parlamentares cri-adas têm primado pela construção de ca-nais formais e eficientes de comunicação,sem focalizar a questão da participação po-lítica no processo decisório dos órgãos daadministração pública, o que, segundo oentendimento deste estudo tem resultado emuma forma de trabalho incompleta. O casoda Assembléia Legislativa do Rio Grandedo Sul é um claro exemplo disso. Apesar daqualidade de seu atendimento e do bom pla-no de expansão que prevê a construção deum portal de participação legislativa e, ain-da que esteja previsto em seu ato de criaçãouma ação mais abrangente, os trabalhos doórgão tem se limitado à apreciação de formaprofunda das questões envolvendo a As-sembléia e à coleta de informações quandoas demandas abrangem outros órgãos.

A partir dessas observações, foi propos-ta a criação de um modelo de participaçãopopular para o Senado Federal, que seriacomposta de um serviço de atendimento aocidadão, da ouvidoria e da Comissão deParticipação Legislativa. Esses três órgãostrabalhariam de forma interligada e conjun-ta para que as provocações baseadas emcasos particulares pudessem ser resolvidase que gerassem um processo de reflexão daatividade parlamentar.

Dessa forma a estruturação de uma ou-vidoria seria calcada em seis funções bási-cas: informação,investigação, controle, acon-selhamento, reflexão e divulgação. Assimpretende-se ampliar o leque de trabalho daouvidoria parlamentar do Senado Federal,criando um novo perfil de trabalho e dife-renciando os esforços dessa Casa Legislati-va em relação às demais ouvidorias parla-mentares já existentes.

10. Referências Bibliográficas

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Constituição Federal de 1988

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IntroduçãoNão é de hoje que, mediante acordos,

convênios e tratados, os países buscam coo-peração mútua em diversas áreas da ativi-dade humana. O Direito não poderia deixarde posicionar-se diante dessa realidade, aqual se convencionou chamar de globaliza-ção. É por esse motivo que o Direito Interna-cional Público vem adquirindo tamanha im-portância.

Diante de tal situação, embora não serepitam na ordem internacional as mesmascondições de coerção existentes na ordem

Janice de Carvalho Lima

O Direito Internacional e o PoderLegislativo na condução da política externa

Janice de Carvalho Lima é aluna do Cursode Especialização em Direito Legislativo pelaUNILEGIS.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. JORGE LUIZFONTOURA NOGUEIRA.

Considerações iniciais; 1. A Evolução doDireito Internacional; 1.1. A Sociedade Inter-nacional: Características e Conceitos; 1.2. Des-centralização das Sociedades Internacionais; 1.3.Diferenças entre Direito Interno e Direito In-ternacional; 1.4. Princípios Gerais; 1.5. As fon-tes do Direito Internacional; 1.6. Sujeitos doDireito Internacional: Os Estados Soberanos,as Organizações Internacionais e demais sujei-tos Internacionais; 2. Tratados; 2.1. Origem; 2.2.Conceito; 2.3. Importância; 2.4. Elaboração dostratados; 2.5. Condições de validade; 2.6. Clas-sificação dos tratado;. 2.7. Processo de forma-ção; 2.8. O legislativo não ratifica tratado; 2.9.Aplicabilidade; 2.10. Pirâmide de leis Kelsia-na; 2.11. Situação jurídica dos Tratados; 2.12.Conflitos Internos; 2.13. Separação versus dis-tribuição do poder; 3. O Poder Executivo e oPoder Legislativo no Processo de formação dosTratados; 3.1. Do Poder Executivo; 3.2. Do Po-der Legislativo; 4. Conclusão;

Sumário

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interna dos diferentes Estados, as relaçõesentre eles, ou entre eles e nacionais de ou-tros Estados, ou ainda entre nacionais deEstados diferentes, se processam segundoprincípios e normas gerais que devem seraceitos universalmente.

O novo sistema de Direito Internacional,que resultou da definição das fronteiras, foibaseado no equilíbrio de poder entre os Es-tados, ou, em outras palavras, entre as orga-nizações responsáveis por uma ordem quemantenha os indivíduos em constante rela-ção uns com os outros.

Após o clima de tensão oriundo da dis-puta militar e ideológica travada entre assuperpotências Estados Unidos e UniãoSoviética, as guerras étnicas e a conseqüen-te ascensão dos direitos humanos, a preo-cupação com o meio ambiente e um acelera-do processo de globalização econômica ini-ciou-se a formação de um sentimento de so-lidariedade internacional.

Neste contexto, intensificou-se a coope-ração entre as nações, como forma de pro-mover o bem-estar mútuo e auferir ganhosrecíprocos, embora ainda se trate de um pro-cesso que demandará um grande esforçointernacional para que efetivamente se con-cretize. Mas, “a questão é de grande impor-tância, sobretudo na época atual, quandoas relações interestatais se intensifica”(MIRTÔ FRAGA, 1998, p.3).

É por tudo isto que o Direito Internacio-nal Público deve ser entendido não como aLei do mais forte, mas sim como um sistemaplanetário cada vez mais efetivo e necessário.

O presente estudo tratará dessa evolu-ção pela qual tem passado o Direito Inter-nacional Público, caracterizando a univer-salidade de seus princípios gerais, suas fon-tes, sujeitos entre outros. Além disso, seráabordado o processo de aprovação dos tra-tados e suas fases regulares; a sua situaçãojurídica, definindo, para tanto, com que tipode norma eles se equiparam; e, ainda, qual amedida que se deve adotar para a soluçãode um possível conflito com a legislação in-terna brasileira.

1. A Evolução do Direito Internacional

Durante a Idade Média, por força dasnecessidades do comércio, sobretudo o ma-rítimo, os povos cristãos começaram a esta-belecer regras que hoje são apontadas comoas primeiras manifestações de um ordena-mento internacional, porém, só no Renasci-mento, com a formação dos Estados moder-nos e o estabelecimento das relações diplo-máticas, é que realmente passa existir o Di-reito Internacional Público (cf ENCICLOPÉ-DIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1981,p.21-7).

O advento da Segunda Guerra Mundial(1939-1945), conquanto haja sido extrema-mente prejudicial ao Direito Internacional,possibilitou, em seu termo, a criação dasNações Unidas, cuja Carta foi firmada emSão Francisco (EUA), a 26 de junho de 1945(MACEDO, 1997, p.33).

A partir de então, principalmente com acriação da Comissão do Direito Internacio-nal das Nações Unidas, em 1947, o DireitoInternacional ingressou em nova era de de-senvolvimento.

Como bem ressaltado por SILVIO DEMACEDO:

De lá a esta parte, sua atualizaçãoe os novos enfoques que passou a abor-dar foram constantes: guerra fria,guerra nuclear, o espaço ultraterres-tre da lua e dos corpos celestes, os fun-dos e os subsolos dos leitos marinhos,mereceram tratados específicos pelacomunidade internacional (1997, p.37).

Mais recentemente, sua preocupação re-caiu sobre questões de meio ambiente, direi-tos humanos, clima e biodiversidade, alémde reforçar as preocupações já existentesacerca do trabalho da mulher e do menor e,também, sobre normas de comércio interna-cional.

Inúmeras entidades internacionais no-vas surgiram a partir de tais preocupaçõese passaram a atuar nesse cenário, como asOrganizações Não Governamentais, as Or-

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ganizações Regionais e Sub-Regionais, comoa Comunidade Econômica Européia, o Mer-cosul, o Pacto Andino, a Liga Árabe, etc.

A concepção atual é no sentido de que oEstado já não é mais o único sujeito de Di-reito Internacional, havendo, mesmo, umapluralidade de sujeitos atuando constante-mente nas relações externas entre os países,embora se reconheça que, a despeito disso,os Estados Soberanos ainda constituem asentidades mais importantes desse relacio-namento sem, no entanto, excluir as demais.

1.1. A Sociedade Internacional:Características e Conceitos

O que diferencia esse tipo de Organiza-ção (Sociedade Internacional) das demais éo fato de ser universal, paritária, de não pos-suir organização institucional com a socie-dade interna e de ter um direito originário.

A Sociedade Internacional é constituída,em regra, por tratado, o qual criará a perso-nalidade jurídica internacional, razão pelaqual se pode prever nesse tratado, a superi-oridade deste sobre outros tratados (art. 103o

da Carta das Nações Unidas), bem como asuperioridade dos atos praticados pelos ór-gãos, razão pela qual são tratados que pro-íbem a aposição de reservas ao tratado ins-titutivo e a sua própria superioridade sobreos outros tratados celebrados pela Organi-zação Internacional.

1.2. Descentralização dasSociedades Internacionais

Como bem afirmado por HANS KELSEN:No plano internacional, verifica-

se uma ausência de órgãos especial-mente designados para a criação eaplicação de regras internacional-mente válidas, inexistindo uma auto-ridade central independente, com mi-lícia permanente, caracterizando-se, asociedade internacional, pela descen-tralização (1960, p. 201).

As relações interestatais, dessa forma,são reguladas pelos acordos negociados efirmados entre eles, bem como pelos costu-

mes e princípios gerais de direito internaci-onal.

Contudo, ressalte-se que os tratados sórepresentam um compromisso para as par-tes contratantes, de modo que não se poderesponsabilizar um país pela violação deum acordo que não assinou. Como se vê, aresponsabilização de um país é complica-da, uma vez que os meios para puni-lo ain-da são insuficientes.

Assim, nota-se que a inexistência de umaautoridade superior compromete a eficáciado direito internacional como um todo. AOrganização das Nações Unidas (ONU) temtentado assumir este papel, embora a idéiaainda sofra muitas resistências.

Talvez a ascensão de temas considera-dos universais, como meio ambiente e di-reitos humanos, possa levar à consolidaçãode um sistema jurídico internacional.

1.3. Diferenças entre DireitoInterno e Direito Internacional

Várias são as diferenças entre esses doisramos do direito. Uma delas diz respeito àmatéria objeto de estudo, haja vista o Direi-to Interno estar vinculado às normas que seaplicam aos assuntos de interesse interno(que não são do âmbito Internacional), en-quanto que o outro trata de questões univer-sais, que envolvem várias nações.

Mas são as fontes que vão distinguir odireito interno do direito internacional pú-blico, pois enquanto que o primeiro é, via deregra, de criação unilateral (lei), o segundoé de criação bilateral, ou seja, se dá por meiode Tratados e Convenções.

1.3.1. Do Direito Interno

O objeto material do direito interno, ouseja, a matéria a que ele se reporta, é a vidasocial dos indivíduos, ou, em outras pala-vras, pode-se dizer que ele vai estudar asrelações dos homens que compõem umadeterminada sociedade.

A partir desse estudo, serão criadas, pelaprópria sociedade, ou pelos seus órgãos re-presentativos, regras comuns que irão re-

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gulamentar o convívio dos indivíduos nomeio social. O conjunto de tais regras iráformar o direito positivo (interno) daque-la sociedade.

HANS KELSEN define direito (interno)nos seguintes termos: “o direito se constituiprimordialmente como um sistema de nor-mas coativas permeado por uma lógica in-terna de validade que legitima, a partir deuma norma fundamental, todas as outrasnormas que lhe integram”(1989, p. 189).

O direito interno, portanto, reflete os va-lores e sentimentos básicos a serem preser-vados dentro da contextura de determina-da coletividade, os quais podem variar desociedade para sociedade. Entre as suasprincipais características destaca-se o fatode que, além do Estado, o homem tambémaparece como sujeito de direito, as normasjurídicas externas são a expressão da von-tade estatal, a sua estrutura se baseia nasubordinação, entre outras.

1.3.2. Do Direito Internacional Público

Deve-se conceituar o Direito Internacio-nal Público como a disciplina jurídica queestuda o complexo normativo das relaçõesde direito público externo.

As relações interestatais não constituem,contudo, o único objeto do Direito Interna-cional Público: além dos Estados, pode-secitar as coletividades criadas artificialmen-te pelos próprios Estados, como as NaçõesUnidas, a Organização dos Estados Ameri-canos (OEA) e outros.

Entre as suas características, destaca-seo fato de que a fonte das normas jurídicasadvém da vontade coletiva dos Estados, quese manifesta expressamente nos tratados etacitamente no costume internacional, ex-trapolando a vontade de uma única socie-dade.

Além disso, a estrutura das ordens jurí-dicas desse ramo do direito está baseada narelação de coordenação e cooperação entreos países e não mais na de subordinação(Estado-indivíduo), como ocorre no direitointerno.

1.3.3. O Moderno Direito Internacional

Dada a fluidez e a peculiaridade dasnormas jurídicas que regem as relações in-ternacionais, são numerosas as teorias vol-tadas para caracterizar o fundamento emque se estriba esse ramo do direito público eao qual se deva atribuir sua existência.

Procurou-se sua razão de ser no própriodireito natural, seja de origem divina, sejacomo concepção filosófica; ou então no sim-ples consentimento dos Estados soberanos,na imposição dos mais poderosos ou no in-teresse da própria convivência dos povos.

Modernamente têm curso, no campo doDireito Internacional Público, teorias que,se no fundo não diferem muito das do pas-sado, lhe dão, contudo, nova feição. Assim,para os partidários da renovada doutrinado direito natural - que procuram, já agora,construí-la sobre dados da própria realida-de social - o ordenamento jurídico interna-cional, tal como o interno, repousaria nodever moral de reparar as lesões injustifica-das, e no respeito ao compromisso livremen-te assumido.

Esses princípios, que não estariam su-jeitos à vontade arbitrária dos Estados, sefirmariam na idéia de justiça inerente à ra-zão humana. Outros, apoiados na velha re-gra de que os tratados devem ser cumpridos(pacta sunt servanda), limitam, nessa idéia, ofundamento do Direito Internacional Público.

Mas não só as obrigações internacionaistendem a se estender além dos limites dosimplesmente ajustado entre Estados sobe-ranos, como atrás de tal regra o que se im-põe é um princípio ético de justiça interna-cional, acima da vontade coletiva.

Outros ainda, como o jurista francês LéonDuguit, fundam a validez da ordem interna-cional não na vontade dos Estados, mas noprincípio da solidariedade, sem a qual nãosobreviveria a própria comunidade humana.

1.4. Princípios Gerais

Os princípios gerais têm assumido umaimportância cada vez maior nas relações

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internacionais contemporâneas. Em razãoda ausência de um órgão supranacionalcapaz de efetivamente obrigar os países acumprirem os pactos firmados, tais princí-pios surgem como a principal referência daatuação internacional de um Estado, umavez que o desrespeito aos mesmos compro-mete sua imagem e credibilidade junto àcomunidade internacional.

Segundo MARIA HELENA DINIZ:Os princípios gerais de direito são

cânones que não foram ditados, expli-citamente, pelo elaborador da norma,mas que estão contidos de forma ima-nente ao ordenamento jurídico. São re-conhecidos pelas nações civilizadascomo um substrato comum a todos ospovos, indistintamente (1997, p. 71-2).

Além disso, uma vez que o Direito Inter-nacional rege o relacionamento entre diver-sos Estados, a observância de determinadosprincípios é indispensável para que um paísnão interfira na soberania do outro.

Entre os princípios basilares do DireitoInternacional, os quais deverão, sempre, serobservados, pode-se citar o Princípio DeRespeito Pela Integridade Territorial e PelaSoberania dos Estados; Princípio da NãoAgressão; Princípio da Não Ingerência emAssuntos Internos; Igualdade de Benefíciosentre os Estados; Princípio da CoexistênciaPacífica e Princípio do Ônus da Prova.

1.4.1. Aplicabilidade dos Princípios no Brasil

O Brasil, atualmente, tem assumido umapresença cada vez maior nos fóruns de de-bates internacionais, nos quais seus repre-sentantes têm sempre defendido o respeitoaos princípios gerais de direito como formade alcançar a harmonia e o bem-estar de todaa sociedade internacional.

Na prática, o Brasil tem norteado suaatuação no plano internacional através des-ses princípios, sendo hoje reconhecido ex-ternamente como um país que se compro-mete com a defesa dos mesmos, motivo peloqual o então Ministro de Estado das Rela-ções exteriores, CELSO LAFER, referiu-se ao

Brasil como “ país que reconhece o multila-teralismo como princípio ordenador da con-vivência entre Estados” (Correio Brazilien-se, 2002).

Vale lembrar que, embora estejam elen-cados alguns princípios gerais no art. 4o daCF/88, a legislação brasileira não é taxati-va quanto ao alcance desses princípios. Emalguns dispositivos, a Constituição Federalfaz expressa referência à possibilidade daaplicação de outros princípios, além dashipóteses previstas, como no art. 5o, § 2o,verbis: “Os direitos e garantias expressos nes-ta Constituição não excluem outros decorren-tes do regime e dos princípios por ela adota-dos, ou dos tratados internacionais em que aRepública Federativa do Brasil seja parte”.

1.5. As Fontes do Direito Internacional

O sentido jurídico da palavra fonte nãodifere daquele que lhe é atribuído cotidia-namente. Sendo assim, fonte é sinônimo denascente, origem, causa.

As fontes do direito representam o modode criação e revelação das normas jurídicas,podendo distinguir-se entre fontes formais(processo como a norma é criada ou revela-da) versus fontes materiais (razões substanti-vas que levam à formação de uma norma).

Ainda que controvertido o caráter cogen-te do direito internacional, a verdade é quea Comunidade Internacional carece de uminstrumento com valor universal que deter-mine quais são as fontes de direito interna-cional.

Na lacuna da universalidade, no entanto,vigora um texto de natureza para-universal,de grande importância em função do númerode Estados que a ele aderiram: o Estatuto daCorte Internacional de Justiça, que elenca emseu artigo 38 algumas das fontes do direitointernacional, as quais são denominadas defontes formais como será visto a seguir.

1.5.1. Das Espécies de Fontes

O Estatuto da Corte Internacional de Jus-tiça, elenca, exemplificativamente, em seuartigo 38 as fontes do direito internacional:

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Art. 38 – I) A Corte, cuja função édecidir de acordo com o direito inter-nacional as controvérsias que lhes fo-rem submetidas, aplicará:

a) as convenções internacionais,quer gerais quer especiais, que esta-beleçam regras expressamente reco-nhecidas pelos Estados litigantes;

b) o costume internacional, comoprova de uma prática geral aceitacomo sendo direito;

c) os princípios gerais de direito re-conhecidos pelas nações civilizadas;

d) sob ressalva da disposição doart. 59, as decisões judiciárias e a dou-trina dos juristas mais qualificadosdas diferentes nações, como meio au-xiliar para a determinação das regrasde direito.

Parte da doutrina não inclui como fontesubsidiária de direito internacional a juris-prudência, a doutrina nem a equidade.Defendem que as duas primeiras são sim-ples meios auxiliares para determinação deregras de direito, caso semelhante ao daequidade, que em sua tripla função – corre-tiva, supletiva e supressora – mais se asse-melha a uma forma de solução de litígio (cf.ROSSEAU, 1970, p. 72).

De modo geral, estas fórmulas de solu-ção de litígios não podem ser consideradasfontes de direito, nem subsidiárias nem in-diretas, pois faltam-lhes a principal carac-terísticas de uma fonte: a autonomia de cri-ação do direito.

1.6. Sujeitos do Direito Internacional: osEstados Soberanos, as Organizações

Internacionais e Demais SujeitosInternacionais

Além dos Estados, cuja personalidadejurídica internacional resulta do reconheci-mento pelos demais Estados, outras entida-des são modernamente admitidas como pes-soas internacionais, ou seja, como capazesde ter direitos e assumir obrigações na or-dem internacional.

Tais pessoas, ou são coletividades, cria-das artificialmente pelos próprios Estados– o que lhes empresta um reconhecimentoimplícito - como as Nações Unidas, a Orga-nização dos Estados Americanos (OEA) eentidades congêneres, ou são de criaçãoparticular, como a Cruz Vermelha Interna-cional, a Ordem de Malta e outras associa-ções reconhecidas, de âmbito internacional.

Alguns tratadistas reconhecem, no pró-prio indivíduo, personalidade jurídica in-ternacional, vale dizer, capacidade para sersujeito de direitos e obrigações internacio-nais, em determinadas situações.

Entre estas situações, cite-se a doproprietário do navio ou da carga, peranteo tribunal de presas; as relações entre o piratae o Estado que o persiga; as condições de imu-nidade do agente diplomático; e a situaçãodos apátridas (cf. ACCIOLY e EULÁLIO,1998, p. 18).

Há, no entanto, um entendimento mino-ritário na doutrina que não atribui às pes-soas a qualidade de sujeitos de Direito In-ternacional, ao argumento de que, tal comoa fauna e a flora, os indivíduos são protegi-dos por inúmeras normas internacionaismas, nem por isso, e aí sua atuação se dife-rencia daqueles dos Estados e das organiza-ções, envolvem-se, à título próprio, na formu-lação das normas internacionais e nem guar-dam qualquer relação direta e imediata comesse corpo de normas (cf. FRANCISCOREZEK, 1998, p. 156).

Há, ainda, casos especiais de personali-dade internacional de fato, como o das co-munidades beligerantes, reconhecidascomo tais, cuja atuação incide no âmbito doDireito Internacional Público.

2. Tratados

No sistema jurídico brasileiro, o tratado,regularmente concluído, é uma fonte de di-reito, expressamente prevista na Constitui-ção Federal, produzida com a colaboraçãoexterna, ao lado de outras, emanadas ape-nas de órgãos internos.

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Advertem ACCIOLY e EULÁLIO que: “Odireito das Organizações Internacionaissomente foi reconhecido com a complemen-tação dada pela Convenção sobre o Direitodos Tratados entre Estados e OrganizaçõesInternacionais ou entre Organizações Inter-nacionais, de 1986”. (1998, p. 23)

Dada a sua importância, os tratados,após a sua vigência, produzem alguns efei-tos tais como o da obrigação de cumprimen-to, conforme o que fora convencionado, ob-servando o princípio da boa-fé e pacta suntservanda (art. 26o da CV) que é uma normade ius cogens e que tem caráter imperativo(art. 27o, com as exceções do art. 46o da CV).

Outro efeito interessante seria quanto àsua aplicação temporal e territorial só parao futuro, ressalvados os casos em que aspartes houverem convencionado de outraforma (art. 28o da CV). No que concerne àsua aplicação Territorial, o princípio geral éo da aplicação a todo o território do respecti-vo Estado, salvo se as partes houverem con-vencionado de outra forma (art. 29o da CV).

2.1. Origem

O tratado é uma figura existente desde ascivilizações mais remotas. Segundo FRAN-CISCO REZEK: “o primeiro registro de cele-bração de um tratado, foi o realizado entreHatusil III, rei dos Hititas e, Ramsés II, faraóegípcio da 19a Dinastia, chegando, inclusive,a instituir regras de extradição” (1996, p. 82).

O autor GERSON DE BRITTO MELLOBÓSON (2000, p. 41), entretanto, ventila apossibilidade de considerar como sendo oprimeiro tratado realizado ao berço das ci-vilizações clássicas, o escrito num monu-mento de pedra, em idioma sumérico, en-contrado na região da Mesopotâmia, esta-belecendo, por volta de 3.100 a.C., inviola-bilidade de fronteiras entre a Cidade-Estadode Lagash e a de Umma.

2.2. Conceito

A Convenção de Viena de 1969 definiutratados como sendo um acordo internacio-nal concluído por escrito entre Estados e

regido pelo Direito Internacional, quer cons-te de um instrumento único, quer de dois oumais instrumentos conexos, qualquer queseja sua denominação escrita (Art. 2 a).

Para FRANCISCO REZEK, “tratado étodo acordo formal concluído entre sujeitosde direito internacional, e destinado a pro-duzir efeitos jurídicos” (1998, p. 14).

2.3. Importância

Na celeuma doutrinária sobre fontes for-mais e materiais revela-se a importância deduas fontes de direito internacional – os cos-tumes e os tratados – sobre as quais se de-senvolveu toda a teoria das fontes de direitointernacional.

Embora inexista hierarquia, uma ordemtaxativa de aplicação de uma fonte sobreoutra, deve-se considerar uma e outra fontede maior relevância que as demais para asolução de litígios, vértice máximo da de-claração normativa de um direito: um docu-mento escrito firmado entre as partes temum grande valor para a interpretação darelação jurídica estabelecida entre elas.

Esta prática escrita para fixação de di-reitos e obrigações, que ao longo dos anosganhou espaço sobre o direito consuetudi-nário, teve seu reconhecimento no artigo 7o

da Convenção XII de Haia de 1907, na qualse declarou os tratados como fonte maisimportante de direito internacional. Alémdisso, vale lembrar que é por intermédio dostratados que se encontra o consenso expres-so dos sujeitos de direito internacional.

2.4. Elaboração dos Tratados

Embora o Presidente da República seja otitular da dinâmica das relações internacio-nais, cabendo-lhe decidir tanto sobre a con-veniência de iniciar negociações, como deratificar o ato internacional já concluído, ainterveniência do Poder Legislativo, no pro-cesso de elaboração dos tratados, sob a for-ma de aprovação congressual é, via de re-gra, necessária, pois, sem a participaçãodestes dois Poderes, a realização do ato nãose completa.

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Cabe, portanto, ao Poder Executivo pre-sidir a política externa e, ao Legislativo, cum-pre exercer o controle dos atos executivos.

2.5. Condições de Validade

Como exposto anteriormente, no direitobrasileiro, a simples aprovação do legislati-vo não é capaz de gerar norma interna oude transformar o tratado em direito interno,pois consiste apenas em uma etapa do pro-cesso de conclusão dos mesmos. Sendo as-sim, para que um tratado tenha validade noordenamento jurídico vigente, é necessáriaa participação tanto do Poder Executivocomo a do Poder Legislativo.

As condições de fundo para a validadedos tratados, no seu processo de elabora-ção, resumem-se aos seguintes elementos:Capacidade dos Sujeitos (partes), concedi-da aos Estados Soberanos, organizaçõessociais, aos beligerantes, à Santa Sé, e ou-tros entes internacionais.

Habilitação dos agentes signatários, osquais recebem a denominação de plenipo-tenciários, sendo dispensáveis da habilita-ção o Chefe de Estado, Ministro das Rela-ções Exteriores e chefes de missão.

Regularidade do Consentimento, ou seja,que os Estados quando prestem o consenti-mento à vinculação, o façam de forma regu-lar, livre e esclarecida. O erro, o dolo e a co-ação viciam os tratados.

E, por último, a licitude do Objeto – otratado não pode ser incompatível com asnormas de Ius Cogens, que são normas im-perativas de Direito Internacional, nem podecontrariar a moral. Além disso, o objeto deveser possível de ser executado.

Vale ressaltar que, promulgado o Trata-do, para que ele passe a ter validade jurídi-ca no âmbito do direito interno, é necessárioque o mesmo seja Publicado; abolindo devez a diplomacia secreta.

2.6. Classificação dos Tratados

No que se refere à classificação dos tra-tados, será exposto aqui de acordo com o

objeto a ser apreciado. Sendo assim, umaprimeira classificação considera a existên-cia de quase-tratados em contraposição ànoção tradicional de tratado.

Segundo esta corrente doutrinária, sãoconsiderados quase-tratados os acordosentre Estados e uma pessoa privada estran-geira; os demais, celebrados entre Estados,seriam classificados como tratados propri-amente ditos.

Uma segunda classificação divide os tra-tados em bilaterais e multilaterais, distintospelo número de partes envolvidas. Quandoas partes envolvidas (no caso dos tratadosmultilaterias) são em grande número, dá-sea estes o nome de tratados coletivos, abertosà assinatura de todos os sujeitos de DireitoInternacional.

Há, ainda, uma terceira classificação:tratados solenes e tratados em forma sim-plificada. Seguindo esta linha de pensamen-to, os tratados solenes são os celebrados se-gundo uma forma tradicional, e necessitamde ratificação para serem eficazes, enquan-to que os tratados em forma simplificadaprescindem de ratificação.

A doutrina diverge desta opinião no sen-tido que estes tipos de tratado sejam simpli-ficados somente em seu procedimento de ce-lebração, oriundo das dificuldades cons-titucionais que têm determinados Estados emcelebrar tratados solenes (cf. SORENSEN,1960).

Segundo o entendimento doutrinário, oEstado está obrigado internacionalmenteainda que não ratifique o tratado, sendo,pois, para tanto, desnecessário o acolhimen-to do mesmo pelo direito interno.

2.7. Processo de Formação

No Brasil, toda negociação de ato inter-nacional deve ser acompanhada por funcio-nário diplomático, que aprova a estruturaregimental e indica a natureza e competên-cia do Ministério das Relações Exteriores.

O texto final do ato internacional, juridi-camente, deve ser aprovado pela Consulto-ria Jurídica do Itamaraty e, sob o aspecto

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processual, pela Divisão de Atos Internacio-nais.

Enquanto acordo formal, o tratado exigeuma série de etapas a serem cumpridas atéque seja efetivamente internalizado pelo or-denamento jurídico. De uma forma geral, otratado segue as seguintes etapas: negocia-ção, assinatura e ratificação. Existem, po-rém, uma série de fases intermediárias, ine-rentes à instituição de cada país, que nãosão, necessariamente, exigidas por todos,como a promulgação, a publicação e o re-gistro do mesmo.

Na fase inicial, tem-se a negociação doacordo e de suas cláusulas. Em regra, oscompetentes para o exercício desta fase sãoos chefes de Estado e de Governo; secunda-riamente, tem-se os plenipotenciários, pormeio da apresentação da Carta de PlenosPoderes, e as delegações nacionais, especi-ficamente enviadas para este fim.

Cabe ressaltar, ainda, a competênciaderivada do Ministro das Relações Exterio-res, a quem compete auxiliar o Poder Execu-tivo na formulação da política exterior dopaís, conforme o Decreto no 2.246, de 06 dejunho de 1997.

Possui também competência derivada,prescindindo da Carta de Plenos Poderes,os Chefes de Missão Diplomática (embaixa-dores ou encarregados de negócios), massomente para negociar tratados entre o Bra-sil e o Estado acreditante.

Após a negociação do tratado, submete-se ao crivo do Parlamento, representativoda vontade da Nação, com a incumbênciade apreciá-lo e aprová-lo.

O Congresso Nacional por meio do de-creto legislativo, materializa o que ficou re-solvido sobre os tratados, acordos ou atosinternacionais.

O decreto legislativo está dentre as espé-cies normativas do art. 59 da ConstituiçãoFederal, aprovada pelo Legislativo sobrematéria de sua exclusiva competência, e porisso, não está sujeito à sanção presidencial.Apenas é promulgado pelo Presidente doSenado Federal. Segundo PONTES DE

MIRANDA, “decretos legislativos são as leisa que a Constituição não exige a remessa aoPresidente da República para a sanção (pro-mulgação ou veto)” (1958, p. 338).

O que não pode o Presidente da Repú-blica fazer é manifestar definitivamente oconsentimento sem o abono do CongressoNacional. Embora ele seja o titular da dinâ-mica das relações internacionais, cabendo-lhe decidir tanto sobre a conveniência deiniciar negociações, como a de ratificar o atointernacional já concluído, o abano do Po-der Legislativo, sob a forma de aprovaçãocongressual é, via de regra, necessário.

No momento da Ratificação, a autorida-de nacional competente informa às autori-dades correspondentes do Estado, que con-firma a assinatura do Tratado negociadopelo plenipotenciário. Os Tratados somen-te tornam-se obrigatórios após a ratificaçãodos Estados.

Em seguida, tem-se a promulgação, ouseja, ato jurídico de natureza interna, peloqual o governo de um Estado afirma ou atestaa existência de um tratado por ele celebradoe o preenchimento das formalidades exigi-das para a sua conclusão, ordenando suaexecução.

Promulgado o Tratado, para que ele pas-se a ter validade jurídica no âmbito do direi-to interno é necessário que o mesmo sejapublicado; abolindo, como dito anteriormen-te, a diplomacia secreta.

Finalmente, tem-se o Registro do trata-do, que serve para a informação dos demaisEstados.

2.8. O Legislativo Não Ratifica Tratado

O Congresso Nacional não tem compe-tência para ratificar tratados. Somente o che-fe do Estado, Presidente da República, temesse poder.

O ilustre Professor ANTÔNIO PAULOCACHAPUZ, a respeito desse assunto, res-salta o seguinte:

Os Parlamentos não ratificam tra-tados internacionais. Somente os exa-minam, autorizando ou não o Poder

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Executivo a comprometer o Estado. (...)A ratificação, por conseguinte, é atoprivativo do Chefe do Executivo, peloqual este confirma às outras partes,em caráter definitivo, a disposição doEstado de cumprir um tratado inter-nacional. (1983, p. 128).

2.9. Aplicabilidade

Na Inglaterra os tratados, para produzi-rem efeitos, devem ser transformados em lei,sem o que os tribunais estão impedidos deaplicá-los, devendo conferir eficácia ao Di-reito interno. Nos Estados Unidos, o trata-do é aprovado apenas pelo Senado.

Não é o que acontece com o Ordenamen-to brasileiro. Aqui, o Poder Judiciário, porimposição constitucional, aplica diretamen-te o tratado, ao contrário do juiz inglês queaplica a norma de Direito interno na qual,porventura, se tenha transformado o trata-do. No Brasil, não há necessidade da trans-formação do tratado em Direito interno. Bas-ta a promulgação que lhe confere força exe-cutória.

Ainda quanto à aplicabilidade dos tra-tados, vale lembrar que o Brasil é signatárioda Convenção de Havana, cujos artigos 10,11 e 12 dispõem:

a) um Estado só pode deixar deexecutar um contrato se houver con-cordância dos demais contratantes;

b) os Tratados continuarão a pro-duzir seus efeitos ainda que se modi-fique a constituição interna dos con-tratantes;

c) a parte que inexecutar culposa-mente um tratado é responsável pelosprejuízos resultantes de sua inexecu-ção.

2.10. Pirâmide de Leis Kelsiana

Buscando solucionar o problema da fon-te de validade de uma norma jurídica, o filó-sofo alemão, HANS KELSEN (1961), desen-volveu uma teoria que ficou conhecida comoPirâmide das Leis. De acordo com esta teo-ria, uma norma é válida porque foi criada

de uma forma determinada por outra nor-ma, que é a razão de sua validade. Entreestas normas surge uma relação de subor-dinação, em que a norma geradora é cha-mada de superior e a norma gerada de infe-rior.

Observa-se, desse modo, uma hierarquiade diferentes níveis de normas superpostas,cuja unidade deriva do fato de que o funda-mento para a criação de uma norma é deter-minado pela norma superior corresponden-te, que por sua vez tem seu fundamentonuma terceira norma que lhe é superior, eassim por diante.

No topo da pirâmide, enquanto normabásica da estrutura jurídica, está a Consti-tuição, concebida como o fundamento detodas as normas, ocupando, assim, o nívelmais alto da hierarquia do direito nacional.

Segundo este modelo, uma ciência nor-mativa não pode admitir qualquer contra-dição entre duas normas que pertencem aomesmo sistema. O próprio sistema resolveum possível conflito entre duas normas vá-lidas, situadas em estratos diferentes, emfavor daquela de nível mais elevado.

2.11. Situação Jurídica dos Tratados

Na Carta Brasileira de 1988, como sesabe, infelizmente, à exceção da regra ins-culpida no seu art. 5o, § 2o, sobre os tratadosde proteção dos direitos humanos, não existesequer uma cláusula de reconhecimento ouaceitação do direito internacional pelo nos-so direito interno.

Diferentemente, a título de comparação,a Lei Fundamental alemã (Grundgesetz) ex-pressamente dispõe, em seu art. 25, que asnormas gerais do Direito Internacional Pú-blico constituem parte integrante do direitofederal e sobrepõem-se às leis nacionais.

O que existe na Constituição brasileira éum rol de princípios pelos quais o Brasil serege em suas relações internacionais, con-sagrados pelo art. 4 o, bem como disposiçõesreferentes à aplicação dos tratados pelos tri-bunais nacionais (arts. 102, III, b, 105, III, a109, inc. III e V).

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2.11.1. O Tratado no OrdenamentoJurídico – CF

Segundo os ensinamentos de GABRIELDEZEN JÚNIOR, “a hierarquia federativadas normas no ordenamento jurídico brasi-leiro segue a estrutura e a organização polí-tico-administrativa do País, explicitada noart. 18 da Constituição Federal de 1988”(2001, p. 63).

Dessa forma, no primeiro nível está aConstituição Federal, norma fundamental esubordinadora das demais; no segundonível, encontram-se as Constituições Esta-duais (art. 25 da CF/88), subordinadas aosprincípios da Constituição Federal; e, no ter-ceiro e último nível, estão as leis orgânicasdos Municípios (art. 29 da CF/88), subor-dinadas duplamente à Constituição Fede-ral e à Constituição do seu Estado respecti-vo.

Abordando mais especificamente as de-mais normas e, tomando como critério amaior ou menor complexidade do processode elaboração legislativa, a ConstituiçãoFederal de 1988 hierarquiza os diversostipos normativos em seu art. 59 (emendasà Constituição, leis complementares, leisordinárias, leis delegadas, medidas pro-visórias, decretos legislativos e resolu-ções).

Como se pode ver, os tratados não foramelencados no referido dispositivo. Contudo,devem ser equiparados às leis ordinárias,uma vez que o processo de aprovação deum tratado se assemelha àquele de votaçãode um projeto de lei.

Os tratados de direitos humanos, alémde terem natureza de norma constitucional,têm incorporação imediata no ordenamen-to jurídico interno. Já, os demais tratados(tratados tradicionais), além de apresenta-rem natureza infra-constitucional nos ter-mos do artigo 102, III, b, da Constituição(que admite o cabimento de recurso extraor-dinário de decisão que declarar a inconsti-tucionalidade de tratado), não são incorpo-rados de forma automática pelo nosso orde-namento interno.

2.12. Conflitos Internos

Solucionar os conflitos de lei e tratados,em nosso mundo globalizado e internacio-nalizado, passou a ter importância funda-mental para que coexistam e possam se re-lacionar os países neste novo mundo.

De acordo com FRANCISCO REZEK, oproblema da concorrência entre tratados eleis internas de estatura infraconstitucional,pode ser resolvido, no âmbito do direito dasgentes, em princípio, de duas maneiras:

Numa, dando prevalência aos tra-tados sobre o direito interno infra-constitucional, garantindo ao com-promisso internacional plena vigên-cia, sem embargo de leis posterioresque o contradigam; Noutra, tais pro-blemas são resolvidos garantindo-seaos tratados apenas tratamento pari-tário, tomando como paradigma leisnacionais e outros diplomas de grauequivalente (1998, p.146).

Posteriormente, será visto que a posiçãodo Supremo Tribunal Federal é no sentidodo sistema paritário, ou seja, não há hierar-quia normativa entre os tratados e as leisnacionais.

Cabe ressaltar a lição de MIRTÔ FRAGA,segundo a qual:

O tratado não se confunde com alei, e vice-versa. Isto se deve ao fato deque seus processos de elaboração sãodistintos. Diante disso, não se podeaplicar, automaticamente, a regra lexposterior derogat priori, ou seja, o crité-rio temporal, pois deve ser levada emconta a citada hierarquia normativaentre as normas conflitantes (1998, p.49).

2.12.1. Conflito Aparente de Normasno Brasil e o Posicionamento do STF

Face aos conflitos de norma, necessária setorna a criação de Tribunais Internacionais,o que antes era inimaginável, dar força coer-citiva a esses tribunais, elaborar-se novas le-gislações, ratificarem-se tratados e alianças

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entre países que se interessem em participardessa nova realidade, sob pena de caírem naestagnação econômica e literalmente ficarempara traz diante das transformações ocorren-tes em todo o mundo nos dias atuais.

Segundo o entendimento do SupremoTribunal Federal, qualquer tratado ratifica-do pelo Brasil passa a fazer parte do direitointerno brasileiro, no âmbito da legislaçãoordinária, sem força para mudar o texto cons-titucional, pois, sendo a Constituição Fede-ral a expressão máxima da soberania nacio-nal, está ela acima de qualquer tratado ouconvenção internacional que com seu textoconflite (MAZZUOLI, 2000, p.30).

Não há, segundo o Supremo, garantiade privilégio hierárquico dos tratados inter-nacionais sobre o direito interno brasileiro,devendo-se garantir a autoridade da normamais recente, pois é paritário o tratamentobrasileiro, dado às normas de direito inter-nacional (lex posterior derogat priori).

No caso de simples portarias, decretos eresoluções do Poder Executivo e do PoderLegislativo, não se questiona que deve serreconhecida a prevalência do tratado. Agrande questão diz respeito ao eventual con-flito entre um tratado e uma norma infra-constitucional, já que possuem tramitaçãosemelhante no Congresso Nacional.

De acordo com o posicionamento adota-do pelo STF, dois são os critérios para soluci-onar um possível conflito entre tratado e leiordinária: a regra da especialidade (análisede qual norma trata a matéria de maneira maisespecífica) e a regra lex posterior derogat priori(critério temporal em que deverá prevalecer anorma editada mais recentemente).

2.13. Separação versus Distribuição do Poder

Para conter o absolutismo das monar-quias nacionais, buscou-se consolidar umsistema em que não fosse mais possível queum único indivíduo chegasse a exercer taldominação. Surgiu, então, a teoria da sepa-ração dos poderes, a qual desmembrava opoder do Estado em três – Executivo, Legis-lativo e Judiciário (KELSEN, 1961, p. 269).

Contudo, o termo separação não é apro-priado, pois o que se observou foi a divisãodo poder absolutista do monarca entre elemesmo, o parlamento e os tribunais. O ter-mo mais correto seria distribuição, pois oque se verifica é a atribuição de competênciase funções estatais a cada um dos Poderes,que são exercidas de forma autônoma, mascoordenada, sem que haja o isolamento denenhum dos Poderes, como pressupõe apalavra separação.

No que se refere ao tema dos tratados, oassunto é muito importante, pois, depen-dendo do momento em que se analisa o tra-tado, a competência é atribuída a apenasum dos Poderes, mas as decisões tomadasinterferem na futura atuação dos demais.

Como bem ressaltado por MIRTÔFRAGA:

Ao aprovar o tratado assinadopelo Poder Executivo, o CongressoNacional dá o seu assentimento paraque se conclua o ato internacional,trabalhando, sempre, de forma autô-noma e coordenada. Por fim, estandoultrapassados os trâmites de aprova-ção para a vigência de um tratado,caberá ao Poder Judiciário conferir-lheeficácia, quando aplicável ao caso emjulgamento (1998, p.56).

Portanto, no Brasil, ainda há muito queevoluir tocante ao chamado Direito dosTratados. De fato, a posição externada e de-fendida pelos três Poderes muitas vezes“não converge para um denominador co-mum, sobretudo em razão dos interesses es-pecíficos de cada um” (MARQUES, 2001,p.4).

3. O Poder Executivo e o PoderLegislativo no Processo de

Formação dos Tratados

No Brasil, os tratados internacionais sãocelebrados pelo Presidente da República(art. 84, VII, da CF), submetendo-se à poste-rior aprovação do Congresso Nacional (art.49, I, da CF).

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Conforme o art. 84 da Constituição de1988, “compete privativamente ao Presiden-te da República: VIII – celebrar tratados, con-venções e atos internacionais, sujeitos a re-ferendo do Congresso Nacional”.

Por sua vez, o art. 49 da Constituição dis-põe ser da competência exclusiva do Con-gresso Nacional: “I – resolver definitivamen-te sobre tratados, acordos ou atos internacio-nais que acarretem encargos ou compromis-sos gravosos do patrimônio nacional”.

Assim, é competente para a celebraçãode atos internacionais em nome do Gover-no brasileiro o Presidente da República, ca-bendo ao Ministro de Estado das RelaçõesExteriores, nos termos do parágrafo únicodo art. 1o, do Anexo I do Decreto no 2.246/97, a tarefa de “auxiliar o Presidente da Re-pública na formulação da política exteriordo Brasil, assegurar sua execução e manterrelações com Estados estrangeiros, organis-mos e organizações internacionais”.

Ao Poder Legislativo é atribuída a in-cumbência de examinar, uma vez consuma-da a celebração do ato pelo Presidente daRepública, se tal decisão pode ser mantidaem nome do interesse nacional, conceden-do, ou não, o seu abono.

3.1. Do Poder Executivo

O processo de formação dos tratados teminício com os atos de negociação, conclusãoe assinatura do tratado, que são da compe-tência do órgão do Poder Executivo.

No Brasil, toda negociação de ato inter-nacional deve ser acompanhada por funcio-nário diplomático, que aprova a estruturaregimental e indica a natureza e competên-cia do Ministério das Relações Exteriores.

O texto final do ato internacional, juridi-camente, deve ser aprovado pela Consulto-ria Jurídica do Itamaraty e, sob o aspectoprocessual, pela Divisão de Atos Internacio-nais.

Após a assinatura do tratado pelo chefedo Executivo, submete-o ao crivo do Parla-mento, representativo da vontade da Nação,com a incumbência de apreciá-lo e aprová-lo.

3.2. Do Poder Legislativo

O Congresso Nacional, por meio de de-creto legislativo, materializa o que ficou re-solvido sobre os tratados, acordos ou atosinternacionais. A ele caberá analisar se otratado é constitucional, legal, oportuno econvencional.

O decreto legislativo está dentre as espé-cies normativas do art. 59 da ConstituiçãoFederal, aprovada pelo Legislativo sobre ma-téria de sua exclusiva competência e, porisso, não está sujeito à sanção presidencial.Apenas é promulgada pelo Presidente doSenado Federal.

Como dito anteriormente, após os atosde negociação do tratado pelo Poder Execu-tivo, caberá ao Legislativo apreciá-lo e, sefor o caso, dar o seu abono.

Este abono Parlamentar, na visão doMinistro FRANCISCO REZEK:

Não obriga à ratificação. Isto signi-fica, noutras palavras, que a vontadenacional, afirmativa quanto à assun-ção de um compromisso externo, repou-sa sobre a vontade conjugada dos doispoderes políticos. A vontade individu-alizada de cada um deles é necessária,porém não suficiente (1998, p. 40).

Quanto à necessidade indispensável daparticipação dos dois Poderes no processode formação dos tratados, salienta MIRTÔFRAGA que:

Com a simples concordância doCongresso, completa-se, apenas, umadas fases de sua elaboração. O decre-to legislativo é autorização ao Execu-tivo para concluir o acordo e é a aqui-escência do Congresso à matéria nelecontida.(...) O decreto legislativo, semo decreto de promulgação do Presi-dente da República, após as demaisformalidades, nenhum valor norma-tivo possui (1998, p.31).

ConclusãoConforme o que fora aqui apresentado e,

com base na política atual da globalização,

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percebe-se que o mundo está passando pordiversas mudanças: surgem os Blocos Eco-nômicos como a União Européia, o Merco-sul, o NAFTA, etc., as chamadas Organiza-ções não Governamentais ganham uma for-ça muito grande, começam, também, a sercriados Tribunais Internacionais.

Embora o seu processo de evolução aindademande bastante tempo até que efetivamen-te se consolide, o Direito Internacional temhoje sua importância e abrangência crescen-temente reconhecidas pela opinião pública.

Especialmente em face da relevância as-sumida por grandes temas da agenda inter-nacional como meio ambiente e direitos hu-manos, as nações têm percebido que, coope-rando entre si, podem mais facilmente al-cançar objetivos comuns.

Dessa forma, ganha destaque o papeldos tratados neste cenário, pois é atravésdeles que os Estados se relacionam, trazen-do harmonia e bem-estar às relações inter-nacionais no mundo de hoje.

Como se vê, é imprescindível o estudodas relações entre o Direito interno e o Di-reito Internacional, presente a possibilida-de, a cada dia, de conflito entre a norma con-vencional e a de Direito interno.

O tema ainda carece de uma maior aten-ção por parte dos órgãos competentes doPaís, em especial devido ao fato de que aregulamentação dos tratados está previstaem diversos artigos dispersos, ou seja, nãoexiste um capítulo específico no texto cons-titucional ou numa legislação própria paratratar da matéria, o que faz com que dificil-mente um acordo atinja a eficácia pretendi-da quando de sua celebração (MARQUES,2001, p.9).

Além da reforma de suas instituiçõesinternas, faz-se necessário que o Brasil re-conheça o importante papel das relaçõesinternacionais na formulação da política detodos os países, na medida em que não maisse concebe um Estado que possa se desen-volver sem cooperar com os demais.

Nas condições atuais, como bem expos-to por MIRTÔ FRAGA:

É impossível afirmar-se, com cer-teza, qual o caminho que seguirá a ju-risprudência brasileira, embora ain-da haja a esperança de que a Supre-ma Corte passe a dar prevalência aoDireito Internacional sobre o DireitoPátrio, com amparo na Lei Magna, nadoutrina e nos próprios julgados pas-sados do Supremo Tribunal Federal(STF). (1998, p. 128)

Vale ressaltar que a celebração de acor-dos internacionais tem por escopo tambémo desenvolvimento social da humanidade,não visando apenas satisfazer os interesseseconômicos e financeiros. Por isso, os go-vernos devem ter em mente que o processode globalização por que passa o mundo atu-almente não implica, necessariamente, nasubordinação da prioridades nacionais.

Para finalizar, veja-se um discurso do en-tão Presidente da República, FERNANDOHENRIQUE CARDOSO:

As dificuldades existem na medi-da em que muitas de nossas institui-ções, empresas e indivíduos, aindanão estão preparados para internali-zar a dimensão da sustentabilidadeglobal. Mas enfrentamos esse desafiodemocraticamente, e esperamos queos outros países também o façam(2002).

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1. IntroduçãoA partir do momento que o homem pas-

sou a viver em sociedade, à conta de suacarência primária, tornaram-se necessáriasformas de organizações humanas bem sim-ples, até como fator de uma convivênciamínima. Neste contexto surge o Estado, talcomo é conhecido hoje e num nível de com-plexidade que merece uma análise mais de-tida, com enfoque especial para sua relaçãocom o indivíduo e com os grupos sociais.

A relação do Estado com o indivíduo e asociedade demanda maior atenção porquevai apontar não apenas o modo como cuidadessas gentes, mas como gere seu dia a dia.

Neste estudo urge se ater ao modelo deEstado moderno e conhecido no mundo oci-dental, concebido como Estado de Direito, oqual basicamente é marcado pela liberdadee o exercício do poder pelo próprio povo,não olvidando, por certo, outros direitosnaturais.

José Mendonça de Araújo Filho é servidorde carreira do Senado Federal, atuou na Advo-cacia-Geral do Órgão, ocupou a função de Con-sultor-Geral do Prodasen e atualmente com-põe a assessoria do Primeiro-Secretário, Sena-dor Romeu Tuma.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realizadopela Universidade do Legislativo Brasileiro –UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito para ob-tenção do título de Especialista em Direito Le-gislativo. Orientador: Prof. PAULO FERNANDOMOHN E SOUZA.

Medida provisória legislativa

José Mendonça de Araújo Filho

Sumário1. Introdução. 2. Instrumentos Processuais

de Emergência de que dispõem as Funções Ju-diciária e Executiva. 2.1 Instruções Processuaisde Emergência. 2.2 Das Medidas de Emergên-cia no Poder (Função) Judiciário. 2.3 Das Medi-das de Emergência no Poder (Função) Executi-vo. 2.4 Dos Efeitos Práticos dos InstrumentosProcessuais de Emergência. 3. Das Medidas deEmergência no Poder (Função) Legislativo. 3.1Da Medida Provisória Legislativa. 4. Da Con-clusão. 5. Referências.

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Pois bem, dentro da realidade ocidental,em particular do Brasil, encontra-se um Es-tado arquitetado sob a égide da teoria deMontesquieu (com méritos a Locke), funda-do na tripartição do poder. E aqui vale umacorreção da doutrina, pois a melhor exegesedesta é a organização do Estado não em trêspoderes, mas por três funções, haja vista opoder ser único.

As três funções são por todos bem co-nhecidas, fala-se da função legislativa, querege as relações para o futuro, as ações quedevem ser tomadas pelo organismo socialou mesmo delas se abster; da função execu-tiva, que rege o presente, executando asações do Estado sob o pálio da lei; e a fun-ção judicial, que se manifesta sobre o passa-do, sobre a ação ocorrida. De maneira su-cinta, este é em poucas e breves palavras oEstado brasileiro.

Buscar-se enfrentar nesse trabalho o im-portante papel da função legislativa, nota-damente quando esta é convocada a ter ple-na atuação em situações consideradas deemergência e de grande clamor público.Haveria instrumentos hábeis à disposição?

De posse dessa realidade introdutória éde todo conveniente promover análise so-bre como é exercida cada uma dessas fun-ções no cotidiano das pessoas.

2. Instrumentos Processuais deEmergência de que dispõem as Funções

Judiciária e Executiva

A Constituição Federal traça a organi-zação do Estado e isso compreende desde oseu nome até a sua composição (arts. 20/47).

Com os poderes (funções) não é diferen-te, a Carta Maior descreve cada um per si edelimita-lhes as divisas, não sem antes fir-mar que eles são independentes e harmôni-cos entre si. Esta é uma regra de ouro consti-tucional (art. 2o).

A Lei Maior não descura, ainda, de dis-por da defesa do Estado e das instituiçõesdemocráticas (arts. 136/144).

Relembra-se tudo isso para se ter firmeque o Estado, cada dia mais demandado, e,portanto, mais carente em modernizar-se,tem a urgente necessidade em aparelhar-se,adequadamente, para situações hodiernas,em especial, para aquelas mais emergentes.Opta-se neste trabalho por estudar os ins-trumentos do Estado voltados a atender osrogos urgentes, os quais, indubitavelmente,colocam o representante do Estado de plan-tão em uma situação por demais delicada.

A atuação do Estado dentro dos limitesprevisíveis e rotineiros é por demais confor-tável, mas o confronto com as surpresas davariabilidade da própria vida, mormente deuma sociedade complexa e dinâmica comoa nossa, exigem, e muito, do agente públicoe/ou político, uma forte atuação no campodo poder discricionário, ou seja, dele muitose cobrará uma atitude firme e zelosa den-tro dos princípios constitucionais, haja vis-ta que serão estes seus únicos meios e instru-mentos numa situação como a aqui descrita.

Pensando nisso, tanto o constituinte,como o legislador ordinário, procuraramdotar o Estado de mecanismos para essesmomentos. Por certo não previram todoseles, nem haveria como, mas minoraram aesfera discricionária do agente estatal, numaclara afirmação da vontade em se dar fielcumprimento ao princípio-mor da legalida-de e capitulado no artigo 5 o, II da Carta Polí-tica, de 1988. Segundo este vetor magno,“ninguém será obrigado a fazer ou deixarde fazer alguma coisa senão em virtude dalei”. Para o Estado significa, poder fazerapenas aquilo que a lei permite.

Na lição do professor Hely LopesMeirelles temos que:

Na Administração Pública não háliberdade nem vontade pessoal. En-quanto na administração particular élícito fazer tudo que a lei não proíbe,na Administração Pública só é per-mitido fazer o que a lei autoriza. A leipara o particular significa ‘pode fazerassim’; para o administrador públicosignifica ‘deve fazer assim. (1989, p. 78).

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O administrativista Celso AntônioBandeira de Mello (1997, p. 35) fazendo re-ferência à lição acima do Professor Hely, re-força que:

Não quis, certamente, restringir oprincípio da legalidade ao agente, istoé, ao administrador, embora haja sereferido expressamente a ele. O prin-cípio, que formulou com tanta clare-za, diz respeito à Administração emsi, à atividade administrativa comoum todo, englobando, é certo, seusagentes. Tanto isso é verdade que omesmo doutrinador com precisão as-sinalou: ‘A eficácia de toda atividadeadministrativa está condicionada aoatendimento da lei. Na Administra-ção Pública não há liberdade nem von-tade pessoal. Enquanto na administra-ção particular é lícito fazer tudo que alei não proíbe, na Administração só épermitido fazer o que a lei autoriza’.

A última frase sintetiza, excelentemente,o conteúdo do princípio da legalidade.

O publicista Diógenes Gasparini (1993,p. 6) adverte que “com efeito, o agente daAdministração Pública está preso à lei equalquer desvio de suas imposições podenulificar o ato e tornar o seu autor respon-sável, conforme o caso, disciplinar, civil ecriminalmente”.

2.1 Instruções Processuais de Emergência

Mas como ficou registrado, e convém re-lembrar, o Estado rege-se por três funçõesbem nítidas e importantes, e no pleno exer-cício de cada uma delas ele enfrentará assituações de emergência ou urgência con-forme normas preestabelecidas. Infelizmen-te, pelo atual ordenamento jurídico brasilei-ro, nem todas elas podem dispor de instru-mentos hábeis a favorecer uma pronta res-posta nessas oportunidades.

Impõe estudar cada uma de per si, dei-xando a função legislativa para análise der-radeira.

A função jurisdicional está bem defini-da nos artigos 102, 105, 108, 109, 114 e 124,

da Constituição Federal, e há todo um arca-bouço legal que define a competência domagistrado em seu mister.

O Código de Processo Civil, em particu-lar, é a maior compilação nacional a estabe-lecer os procedimentos que devem ser ado-tados nas mais diversas situações do coti-diano dos particulares e até do Estado emrelação a estes. Interessa atentar, como ditoacima, o enfrentamento dos casos segundoa ótica de emergência e risco.

2.1.1 Oportunidade da Medida Cautelar

Os artigos 796 a 889, do estatuto proces-sual indicado, cuidam das Medidas Caute-lares e logo em seus primeiros dispositivosé possível ler que, “além dos procedimentoscautelares específicos... poderá o juiz deter-minar as medidas provisórias que julgaradequadas, quando houver fundado receiode que uma parte, antes do julgamento dalide, cause ao direito da outra lesão grave ede difícil reparação” (art. 798). Completa olegislador citado que “poderá o juiz, paraevitar o dano, autorizar ou vedar a práticade determinados atos, ordenar a guarda ju-dicial de pessoas e depósito de bens e imporprestação de caução” (art. 799). Essa açãopreventiva poderá ocorrer, igualmente, mes-mo depois de proposta a ação principal.

O artigo 273, do mesmo CPC, é bem enfá-tico ao prescrever:

O juiz poderá a requerimento daparte, antecipar, total ou parcialmen-te, os efeitos da tutela pretendida nopedido inicial, desde que, existindoprova inequívoca, se convença da ve-rossimilhança da alegação e haja fun-dado receio de dano irreparável ou dedifícil reparação; ou fique caracteriza-do o abuso de direito de defesa ou omanifesto propósito protelatório doréu.

2.1.2 Do Objetivo Assecuratórioda Medida Cautelar

Na hipótese das medidas cautelares oCódigo de Processo Civil cuidou em asse-

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gurar o efetivo cumprimento do resultadoadvindo com a ação principal, ou seja, aque-la que abriga a discussão de mérito e recebea sentença. De outra banda, a tutela anteci-pada, como o nome deixa antever, represen-ta a antecipação de parcela do mérito, ouseja, do direito material alegado pelo autor.Em síntese, enquanto na antecipatória hácomo concedido parte do direito pleiteado,na medida cautelar isso não ocorre, masapenas a garantia de utilidade e certeza documprimento efetivo da sentença de méritoquando proferida.

2.2 Das Medidas de Emergência noPoder (Função) Judiciário

2.2.1 Medidas Cautelares eAntecipação de Tutela

O juiz do Tribunal Regional Federal, 4a

Região, Doutor Teori Albino Zavascki, aotraçar um interessante paralelo entre asmedidas cautelares e a recente tutela anteci-pada, afirma que o:

Que se operou, inquestionavel-mente, foi a purificação do processocautelar, que assim readquiriu sua fi-nalidade clássica: a de instrumentopara obtenção de medidas adequadasa tutelar o direito, sem satisfazê-lo.Todas as demais medidas assecurati-vas, que constituam satisfação ante-cipada de efeitos da tutela de mérito,já não caberão em ação cautelar, po-dendo ser, ou melhor, devendo ser re-clamadas na própria ação de conhe-cimento, exceto nos casos, raros, já re-feridos, em que a lei expressamenteprevê ação autônoma com tal finali-dade. Postulá-las em ação cautelar, naqual os requisitos para a concessãoda tutela são menos rigorosos, signi-ficará fraudar o art. 273 do Código deProcesso Civil, que, para satisfazerantecipadamente, supõe cognição emnível mais aprofundado, pois exigeverossimilhança construída sobre pro-va inequívoca (1997, p. 45).

O juiz federal, citado no parágrafo ante-rior, em breve resumo assevera que:

Há casos em que apenas a certifi-cação do direito está em perigo, semque sua satisfação seja urgente ou quesua execução esteja sob risco; há ca-sos em que o perigo ronda a execuçãodo direito certificado, sem que a suacertificação esteja ameaçada ou quesua satisfação seja urgente. Em qual-quer de tais hipóteses, garante-se odireito, sem satisfazê-lo. Mas há ca-sos em que, embora nem a certificaçãonem a execução estejam em perigo, asatisfação do direito é, todavia, urgen-te, dado que a demora na fruição cons-titui, por si, elemento desencadeantede dano grave. Essa última é a situa-ção de urgência legitimadora da me-dida antecipatória (1997, ps. 47/48).

2.2.2 Liminares em Ações Autônomas

A Lei do Mandado de Segurança, no

1.533/51, é outra boa fonte de consulta parao tema em foco. Seu artigo 1 o define que “con-ceder-se-á mandado de segurança para pro-teger direito líquido e certo, não amparadopor habeas corpus, sempre que, ilegalmenteou com abuso do poder, alguém sofrer viola-ção ou houver justo receio de sofrê-la por par-te de autoridade, seja de que autoridade forou sejam quais forem as funções que exerça”.

Cotejando ambos os institutos citados, atutela antecipada e a liminar em mandadode segurança (art. 7 o, da Lei do Mandado deSegurança), podemos verificar que não hádiferença substancial entre um e outro.Acresça-se até, sob a lição do magistradoindicado linhas atrás, que “o art. 7o da Leido Mandado de Segurança não constituiempecilho à antecipação da tutela em outromomento processual que não o do despa-cho da inicial. Aplicam-se, aqui, inteiramen-te, as regras e princípios do procedimentocomum ordinário”. (ZAVASCKI, 1997, p. 194)

Colhe-se que a prestação jurisdicional,mais precisamente, a função de prestar odireito ao caso posto ao Judiciário, dispõe

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de ferramentas bem completas, atuais e efi-cientes a socorrer as vítimas quando se de-param com as inesperadas agruras da vidae não só para os episódios de normalidadequanto de excepcionalidade, como no casode uma situação de risco iminente.

É possível assim dizer que a função ju-risdicional detém os melhores meios e con-dições de atender aos mais variados recla-mes da sociedade, notadamente para aque-las hipóteses de elevado risco ou urgênciaem uma imediata resposta do Poder Públi-co, seja antes ou até mesmo depois de pro-posta a ação principal. O juiz para o cum-primento de seu múnus poderá inclusive,valer-se da analogia, costumes e princípiosgerais do direito. Descreve a Lei de Introdu-ção ao Código Civil (Decreto-lei no 4.657, de04/09/42), em seus artigos 4o e 5o respecti-vamente que: “quando a lei for omissa, ojuiz decidirá o caso de acordo com a analo-gia, os costumes e os princípios gerais dodireito” e “na aplicação da lei, o juiz aten-derá aos fins sociais a que ela se dirige e àsexigências do bem comum”.

2.3 Das Medidas de Emergência noPoder (Função) Executivo

2.3.1 Das Medidas Provisórias

Em seu quadrante, a função de executar,própria do Executivo, tem a relevante mis-são de pôr em prática o que determina a LeiMaior e as normas infraconstitucionais.

A Carta Política de 1988, por seus arti-gos 76/91, distingue detalhadamente a com-petência do Poder Executivo, sendo que oartigo 84, XXVI define que “compete ao Pre-sidente da República editar medidas provi-sórias com força de lei, nos termos do art.62”. Este dispositivo constitucional a seuturno exara que “em caso de relevância eurgência, o Presidente da República poderáadotar medidas provisórias, com força delei, devendo submetê-las de imediato aoCongresso Nacional”.

A medida provisória está capituladaentre as normas decorrentes do processo le-

gislativo (art. 58, V, da Constituição Federalde 1988), e como lido, tem cabimento paraos “casos de relevância e urgência”.

O distinguido professor e doutorAlexandre de Moraes as compara aos an-tigos decretos-leis e menciona como suaorigem a Constituição italiana (art.77). Éele quem descortina de forma apropriadaa este estudo que:

Apesar dos abusos efetivados como decreto-lei, a prática demonstrou anecessidade de um ato normativo ex-cepcional e célere, para situações derelevância e urgência. Pretendendoregularizar essa situação e buscan-do tornar possível e eficaz a presta-ção legislativa do Estado, o legisla-dor constituinte de 1988 previu aschamadas medidas provisórias, es-pelhando-se no modelo italiano.(2003, p. 1121)

O ministro do STF, Celso de Mello, emvoto lapidar sobre a natureza jurídica damedida provisória decretou, verbis:

As medidas provisórias configu-ram espécies normativas de naturezainfraconstitucional, dotadas de forçae eficácia legais (...) O que justifica aedição dessa espécie normativa, comforça de lei, em nosso direito constitu-cional, é a existência de um estado denecessidade, que impõe ao PoderPúblico a adoção imediata de provi-dências, de caráter legislativo, inal-cançáveis segundo as regras ordiná-rias de legiferação, em face do própriopericulum in mora que fatalmente de-correria do atraso na concretização daprestação legislativa (...) O que legi-tima o Presidente da República a an-tecipar-se, cautelarmente, ao proces-so legislativo ordinário, editando asmedidas provisórias pertinentes, éo fundado receio, por ele exteriori-zado, de que o retardamento da pres-tação legislativa cause grave lesão,de difícil reparação, ao interessepúblico.

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2.3.2 Medidas de Poder de Polícia eContratos Administrativos

No âmbito da Administração seria pos-sível citar um grande número de medidasde emergência (cautelares) utilizadas peloagente público em nome do interesse públi-co, com forte acento no exercício do poderde polícia, e.g., embargo de obra consideradaperigosa, podendo assinalar, também, outrasdecorrentes da gestão da coisa pública.

Aqui vale abrir um parêntese para con-ferência do lúcido conceito de poder de po-lícia proferido pelo professor Hely (1989, p.110), segundo ele representado pela “facul-dade de que dispõe a Administração Públi-ca para condicionar e restringir o uso e gozode bens, atividades e direitos individuais,em benefício da coletividade ou do próprioEstado”.

Poderiam ser citadas, ainda, as hipóte-ses de revogação de contratos firmados peloPoder Público com os particulares “por ra-zões de interesse público decorrente de fatosuperveniente devidamente comprovado,pertinente e suficiente para justificar tal con-duta”. (artigo 49, caput, primeira parte, daLei no 8.666/93).

2.4 Dos Efeitos Práticos dos InstrumentosProcessuais de Emergência

Portanto, não fica difícil de divisar queos efeitos práticos dos instrumentos proces-suais destinados às ocasiões de emergênciae risco são de ingente valia para o dia-a-diadas pessoas que freqüentemente estão sedeparando com casos desse jaez.

Como registrado linhas acima, a vidahumana não segue um padrão, mas revelaum turbilhão de mudanças que vez ou ou-tra coloca o cidadão de frente com realida-des impensáveis e que dele exigem umapronta resposta. O exemplo a ser trazido é odo contribuinte que se vê compelido a reco-lher um tributo inconstitucional e para evi-tar a ação deletéria do Estado sobre seu pa-trimônio impetra mandado de segurança,com pedido de liminar, para conter o Erário.

O exemplo escolhido atraiu a necessida-de do exercício da função jurisdicional,quanto identicamente, da função executiva,eis que o exator foi obrigado a valer-se demedida extrema diante do Poder Judiciáriopara cancelar a ação do Estado sobre seusbens e o próprio Estado abster-se de reco-lher o imposto, numa clara atitude executi-va, à conta da ordem judicial.

Como já ficou expresso, o legislador, pormais alerta que esteja para os problemas deseus representados, jamais terá condições delegislar integralmente sobre a solução daque-les, até por sua limitação humana. Ciente dis-so ele aperfeiçoou as funções judiciária e exe-cutiva com as medidas cautelares, marcada-mente assecuratórias, e também com a ante-cipação da tutela, mandado de segurança ecom o poder de polícia da Administração.

3. Das Medidas de Emergência noPoder (Função) Legislativo

A pergunta que se faz agora é quanto àfunção legislativa. Qual ou de quais medi-das dispõe para enfrentar situações de emer-gência ou urgência? Como visto há pouco,as outras duas funções do Estado têm seusmeios para atender as demandas de riscoiminente, ao passo que a função legislativanão dispõe de um instrumento hábil e efi-caz nesse sentido. É disso que se tratará commais vagar ao ser abordado sobre a MedidaProvisória Legislativa.

Ao se fazer uma incursão no Título IV,artigos 44/75, da Constituição Federal, nãoserá possível detectar uma medida de natu-reza cautelar à disposição do Congresso oude quaisquer de suas Casas, para suprir asnecessidades de uma situação de emergên-cia ou risco. Algo próximo disso, mas que seapresenta de uma maneira ainda muito tí-mida, diz respeito ao poder de investigaçãodas Comissões Parlamentares de Inquéritoe próprio das autoridades judiciais. (artigo58, § 3o).

A se comparar os casos de urgência eperigo submetidos ao crivo das funções ju-

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diciária e executiva com aqueles da legisla-tiva, de antemão será percebida a grandezada responsabilidade desta última, sem des-merecer, por óbvio, as duas primeiras.

A função legislativa tem por fito a solu-ção dos problemas nacionais, tanto quantointernacionais envolvendo os interesses doPaís. Só essa realidade leva a todos racioci-nar o quanto é séria e ingente a responsabi-lidade do Legislativo e adicionando-se ochamamento deste para resolver os confli-tos emergentes e de risco, faltarão númerospara dimensionar sua missão.

O que não se pode é descurar que o Le-gislativo tem um público alvo bem maiorque o Executivo e o Judiciário e, mesmo seminsinuar uma menor grandeza destes, suaatuação tem que ser exemplar em qualquerhipótese, notadamente nos casos de emer-gência ou perigo.

Ocorre que o Legislativo, pela ausênciade mecanismos próprios para esses momen-tos de forte clamor público, iminente perigoou emergência, à exemplo das cautelares,antecipatórias e liminares, termina por edi-tar normas ou que chegam tarde para socor-rer o problema posto ou, muitas das vezes,desprovidas dos comandos esperados pelacomunidade que a aguarda ansiosa. O pri-meiro e negativo resultado prático disso é odescrédito do Parlamento, o que não é sau-dável para o estado de direito, muito menospara o País.

Não é raro assistir o Congresso parar ocurso de seus trabalhos para ter que legislarsobre um tema que ocupa a mídia e preocu-pa a sociedade naquele momento. Na maio-ria das vezes o ponto em discussão não pos-suiu nenhuma previsão legal, carecendo sernormatizado o mais rapidamente possível.É o que chamamos de crise do vácuo legal.

Assim como o juiz não pode deixar dejulgar, o mesmo vale, e com mais intensida-de, para o legislador, ou seja, este não podedeixar de legislar, e com mais cuidado nashipóteses de risco e emergência. Ademais afunção de legislar é um serviço público emaltíssima conta e não pode sofrer, de forma

alguma, solução de continuidade. Poder-se-ia dizer que lança aqui suas raízes o Princí-pio da Continuidade do Serviço Público.

De uma sorte ou de outra, a populaçãocostuma ser mais exigente e crítica nas opor-tunidades descritas no parágrafo anterior,em relação à função precípua do Legislati-vo, notadamente os grupos de pressão, es-sencialmente representados por aqueles quesofrem a angústia pela ausência da norma.Em casos tais, ou o Congresso presta umapronta resposta à sociedade ou corre o riscode ser denominado de inoperante e outrosadjetivos mais.

De outra banda, se na hipótese citada oLegislativo se vê compelido à prestação le-gislativa imediata, não pode perder o focode sua responsabilidade quanto ao proces-so legislativo, o qual, por enquanto, nãoaparelha o legislador com instrumentospara o embate de uma situação de emergên-cia e risco. Impõe, pois, a criação de um de-vido processo legal suficiente a gerar umamedida urgente, segura e efetiva como res-posta rápida às ocasiões de emergência eperigo.

3.1 Da Medida Provisória Legislativa

É desejo, nesse momento, apresentarcomo sugestão de solução para o preenchi-mento desse hiato processual, no âmbito dafunção legislativa, o que se resolveu chamarde medida provisória legislativa, para dife-rençar daquela baixada pelo Presidente daRepública.

Antes de mais nada, a medida provisó-ria legislativa tem que apresentar fina sin-tonia constitucional, profundo respeito aosprincípios norteadores do Direito e primarpela simplicidade, sem perder de vista oprestígio que se deve dar à eficiência e eficá-cia. Deverá ter o condão de ser expedita, cons-titucional e muito eficiente para atender ademanda do povo, sob pena de fracassarantes de ter nascido para o mundo jurídico.

Feita a apresentação do projeto do novoinstituto normativo cabe agora traçar algu-mas considerações a propósito dele.

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3.1.1 Da Natureza Jurídica da MedidaProvisória Legislativa

Quanto a sua natureza jurídica, a medi-da provisória assinala com traços de umaação acautelatória e preparatória, seguin-do, assim, a mesma trajetória de sua co-irmã,a medida provisória do Executivo, a qual,segundo o Ministro Celso de Mello, justifi-ca-se quando “há fundado receio, segundoo Presidente da República, de que o retarda-mento da prestação legislativa cause gravelesão, de difícil reparação, ao interesse pú-blico”. Explica-se.

A natureza assecuratória da medida pro-visória legislativa é imanente à situação derisco e emergência posta à responsabilida-de do legislador que, não podendo esperarpela conclusão do complexo processo legis-lativo, diante do clamor público a uma de-manda iminente, se vê obrigado a tomar umaação preventiva, com valor de norma, atéque esta receba a análise final através dodevido processo legal.

A ação efetiva do legislador frente a umasituação de risco e emergência sempre po-derá ser vista como uma atitude imprópria,eis que, poderá suscitar o debate sobre apossibilidade de serem editadas normas de“conveniência” e, portanto, absolutamenteíntimas apenas daquele fato isolado que agerou. Em outras palavras, seria uma preci-pitação do legislador exercer seu múnus deforma açodada, pois o fruto dessa investidapoderia ser uma norma inconseqüente.

Com a devida licença, não nos parece oraciocínio mais consentâneo com os fins damedida provisória legislativa, haja vista que,à luz de seu próprio nome, ela seria “provi-sória” até merecer a redação final após ocrivo do processo legislativo próprio. E nes-se passo é encontrado o segundo elementoque compõe a natureza jurídica da medidaprovisória legislativa.

A natureza preparatória deste institutojurídico proposto está justamente nessa vo-cação de intervenção anterior à norma defi-nitiva. Nos moldes das cautelares, a medi-

da provisória legislativa também age demaneira preparatória, garantindo uma se-gurança futura.

3.1.2 Da Medida Provisória (art. 62, da CF/88) x Medida Provisória Legislativa

Trazendo de volta o disposto no artigo62, podemos ler naquela passagem da Car-ta Política Maior que “em caso de relevân-cia e urgência, o Presidente da Repúblicapoderá adotar medidas provisórias, comforça de lei, devendo submetê-las de imedi-ato ao Congresso Nacional”.

O mesmo artigo, seguindo sua finalida-de, discorre sobre o processo legislativo es-pecífico para as medidas provisórias e esta-belece seus limites. Indaga-se, então, se odesiderato primordial da função executivanão é legislar, sendo este apenas um aspec-to secundário de sua incumbência constitu-cional, onde estaria a inconveniência dafunção legislativa ser exercida pelo próprioParlamento em sua plenitude, mormente nassituações de risco e urgência? Ora, como aler-tado pelo Ministro Celso de Mello, se a me-dida provisória tem o mesmo elemento tele-ológico da cautelar, ou seja, de evitar a gra-ve lesão, de difícil reparação ao interessepúblico, pela demora na prestação do Esta-do, com mais ênfase deverá ter a medidaprovisória legislativa, por inconteste voca-ção constitucional para esse mister.

Entendemos que, com mais razão, é cru-cial que o Legislativo, antes mesmo do Exe-cutivo – como de sorte previu Montesquieu– atue cautelarmente, assegurando à socie-dade uma resposta imediata em seus mo-mentos de dificuldade e quando ela estámais necessitada e sensível.

3.1.3 Medida Provisória Legislativa, umaMatéria de “Lege Ferenda”

O Brasil tem muito a que se orgulhar desua democracia, entretanto, não podemosperder de vista que ela ainda se encontraem processo de constante amadurecimento.A medida provisória legislativa, como nor-ma a ser criada, viria aproximar ainda mais

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o Legislativo do povo brasileiro, e contribui-ria, e muito, como dito, no restabelecimentodefinitivo da confiança deste em sua Casaparlamentar.

Nada impediria, antes se recomendaria,que a medida provisória legislativa viesseao ordenamento constitucional na confor-mação de sua irmã a medida provisória doExecutivo, guardadas as devidas diferenci-ações, por óbvio. Estamos falando, portan-to, da inserção na Carta Magna de um arti-go próprio para a medida provisória legis-lativa.

A medida provisória legislativa teria umpapel importantíssimo a ser cumprido, eisque representaria a primeira e imediata im-pressão do Congresso Nacional sobre umfato marcante no cenário nacional e de rele-vância e urgência para o País. Sua ediçãonecessariamente não afastaria a função exe-cutiva, ainda que pela dicção de uma medi-da provisória, posto que a Constituição es-tipularia de forma nítida quando uma e ou-tra, ou até mesmo ambas, teriam seu lugar.

Não se pode olvidar o velho brocardojurídico de “quem pode o mais pode o me-nos”. Posto assim, se ao Legislativo é dadolegislar, nada mais legítimo do que ter suaprópria medida provisória legislativa. É dig-no de apontamento o fato de estranhar-se oporquê de não ter ele contado com este ins-trumento desde a promulgação da CartaCidadã em 1988.

3.1.4 Da Legitimidade Constitucional daMedida Provisória Legislativa

Outro aspecto igualmente relevante é vis-lumbrar, ainda, a legitimidade maior damedida provisória legislativa frente a suaco-irmã do Executivo. O Chefe maior do Exe-cutivo é eleito para gerir e administrar o País,ao passo que os congressistas para legislar.Partindo dessa realidade, não fica difícilperceber que a medida provisória legislati-va estaria partindo de quem originariamen-te tem a competência magna para legislar e,dessarte, representaria melhor a vontadepopular.

Até o Poder Judiciário tem legislado emcaráter emergencial, seja quando decretapara os casos concretos posto a sua consi-deração, seja quando decreta a inconstitu-cionalidade de uma lei (artigo 102, I, a; 102,§ 2o c/c 52, X, da Constituição Federal de1988), assim, nada justifica fique mais o Le-gislativo sem a medida provisória legisla-tiva.

Recorde-se que a medida provisória le-gislativa seria apenas provisória, nada alémdisso, e que tão logo cumprida sua missãoimediata, tanto ela como seus efeitos seriamsubmetidos ao processo legislativo ordiná-rio ou até mesmo constitucional, a critériodo Parlamento.

Acredita-se que a medida provisória le-gislativa seria cabível em quaisquer daque-las hipóteses em que os parlamentares têmcompetência para apresentar projeto de leie que o caso vertente fosse marcado pela re-levância e urgência. E esse juízo de valornão seria nenhuma dificuldade para o le-gislador, como é possível conferir pelo exa-rado no artigo 57, § 6o, II, da Lei Maior.

3.1.5 Da Competência para expedir aMedida Provisória Legislativa

Quanto ao titular da edição da medidaprovisória legislativa, esta função poderiaestar vinculada ao Presidente do Congres-so Nacional ou até mesmo de um colegiadocomposto por notáveis representantes doLegislativo federal que já tenham ocupadocargos de relevância em sua Mesa Diretora,e.g., ex-presidentes do Congresso, da Câma-ra e do Senado. Seria uma espécie de Conse-lho composto por membros exclusivamentedo Legislativo federal e com mandado coin-cidente com o das Mesas Diretoras da Câ-mara e Senado.

O Conselho ou o editor da medida pro-visória legislativa teria outra função primor-dial, qual seja, perscrutar se a norma a serelaborada já não pertenceria ao mundo jurí-dico, o que poderia ser feito pelo própriocorpo de assessores das Casas legislativase Secretarias-Gerais, como de resto, por toda

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a estrutura hoje existente para a elaboraçãodas demais normas de competência do Con-gresso Nacional.

Se a opção do legislador for o Conselho,este poderia espelhar-se, também, mudan-do o que tiver de ser mudado, na comissãoque representa o Congresso Nacional nosperíodos de recesso (artigo 58, § 4o, daConstituição Federal de 1988).

Como ficou registrado, a medida provi-sória legislativa exsurgiria no ordenamen-to legal brasileiro através de emenda consti-tucional apresentada por iniciativa de par-lamentar e ato contínuo, poderia ser regula-mentada por normas infraconstitucionais,a exemplo dos regimentos internos do Se-nado e Câmara. O que deveria ficar muitoclaro no texto constitucional é a naturezajurídica da medida provisória legislativa,repise-se, ser preparatória para norma futu-ra e assecuratória de uma situação emergen-te e de risco, ou, em linguagem da própriaConstituição, editada em casos de relevân-cia e urgência.

3.1.6 Da Medida Provisória Legislativa comocomplemento ao Processo Legislativo Ordinário

Numa atenção mais detida, em verdade,a medida provisória legislativa terminariapor representar um complemento do proces-so legislativo ordinário, haja vista que acres-ceria a este mais uma fase, frise-se, uma eta-pa prévia. Essa inovação, também por esseenfoque, seria de todo salutar para o País,pois estaria permitindo ao legislador umafase a mais para seus estudos e preparaçãode uma norma mais consentânea com a rea-lidade. Senão vejamos.

Num primeiro momento o legislador de-para-se com o fato relevante e urgente, dis-põe de forma a assegurar o interesse da so-ciedade e, com o tempo destinado pela leie/ou Constituição, conclui sua missão commais conhecimento, discussão e segurança.Logo, ao contrário do que poderia a princí-pio parecer, a medida provisória legislativanão viria como uma norma de conveniên-cia, mas como uma ação preventiva e im-

portantíssima de nosso Congresso Nacio-nal.

O verdadeiro Estado de Direito se faz cominstrumentos hábeis a garantir ao cidadãoo mínimo de dignidade e exercício de seusdireitos, caso contrário é um Estado virtuale imaginário que, a cada dia, fica mais desa-creditado. O Congresso Nacional tem umpapel fundamental para impedir que issoocorra, e esse trabalho é uma pequena con-tribuição nesse sentido.

Se o processo é uma seqüência de atosvisando um fim comum, o processo legisla-tivo não transborda deste conceito, até o re-força com a idéia de contar com mais umprocedimento que venha a ajudá-lo na pro-dução e normas mais eficazes e realistas.

Essa é uma idéia que se traz à baila comouma oportunidade de discussão se, verda-deiramente, não é passada a hora do PoderLegislativo ter um instrumento eficiente naresposta às necessidades de seus principaisalvos, o povo brasileiro e o País.

A mudança radical no modo de vida daspessoas é reflexo de um mundo cada maisveloz, exigente, medido pelo ponteiro dossegundos e décimos e, sem dúvida de errar,influenciando diretamente na maneira deser das pessoas. Isso implica dizer que oCongresso hoje conta com um tipo de ci-dadão que exige dele muito mais do queno passado, e, certamente, ainda mais nofuturo. Por isso mesmo deve contar cominstrumentos hábeis a não decepcionar anação.

A medida provisória legislativa, acredi-tamos, poderá ajudar, e muito, no grandeobjetivo da função legislativa, ou seja, aten-der plenamente a sociedade que a justifica.

Este instrumento, a ter endereço consti-tucional, ainda mais se justifica se relem-brarmos que o Princípio da Legalidade émuito restritivo para o administrador e Ad-ministração, ou seja, “somente ser permiti-do fazer aquilo que a lei permite”, e comoficou averbado, nas hipóteses de risco eemergência, nem sempre há previsão legalde como agir.

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4. Da Conclusão

Em síntese apertada sobre a matéria épossível afirmar que o Estado brasileiro édividido em 3 (três) funções bem definidas enão Poder. São elas as funções Legislativa,Executiva e Judiciária. A melhor doutrinaensina que a função legislativa rege as rela-ções para o futuro, as ações que devem sertomadas pelo organismo social ou mesmodelas se abster; a função executiva rege opresente, executando as ações do Estadosob o pálio da lei; e a função judicial se mani-festa sobre o passado, sobre a ação ocorrida.

Certo é, o Estado tem uma grande parcelade atuação na seara do poder discricionário,eis que o legislador não tem como prever to-das as situações a serem enfrentadas, princi-palmente naquelas de emergência e risco.

A seu turno, o Estado-Juiz tem a seu dis-por para as ocasiões de risco e emergênciaas medidas cautelares, tutela antecipada,poder geral de cautela e liminares em açõesautônomas e recursos.

À sua vez, o Estado-Administração tema seu favor para as hipóteses de risco e emer-gência as medidas provisórias e o poder depolícia, além de outros instrumentos decor-rentes da gestão da coisa pública.

Restou revelado que o Estado-Legiferantenão dispõe de instrumentos hábeis paraenfrentamento das circunstâncias que deno-tem risco e emergência.

Também não é dado perder de vista quea complexidade cada vez maior de nossasociedade, torna-se imperioso que o Legis-lativo esteja mais atuante e entregue ao povoo que ele efetivamente precisa.

Assim como não é dado ao juiz deixarde julgar, não é dado ao legislador deixarde legislar.

Igualmente é verdade que a medida pro-visória legislativa, com sede constitucional,seria o instrumento expedito do Legislativonos embates que compreendam situação deemergência e risco. Ela teria a dupla funçãoacautelatória e preventiva. Acautelatóriapara as hipóteses de risco e emergência,

quando o legislador não tem como aguar-dar o desfecho do processo legislativo ordi-nário sem o perigo de sérios e graves danose preparatória como ferramenta de interven-ção anterior à norma definitiva.

Comparada a sua co-irmã do Executivo,a medida provisória legislativa gozaria atéde maior legitimidade, haja vista sua gêne-se no Poder Legislativo.

Não é demais ratificar, a medida provi-sória legislativa teria lugar para quaisquerdaquelas hipóteses que os parlamentarestivessem competência para apresentar pro-jetos de lei e que o caso em análise fosse dis-tinguido pela relevância e urgência.

Quanto ao titular da edição da medidaprovisória legislativa, esta função poderiaestar vinculada ao Presidente do Congres-so Nacional ou até mesmo de um colegiadocomposto por notáveis representantes doLegislativo federal que já tenham ocupadocargos de relevância em sua Mesa Diretora,e.g., ex-presidentes do Congresso, da Câma-ra e do Senado. Seria uma espécie de Conse-lho composto por membros exclusivamentedo Legislativo federal e com mandado coin-cidente com o das Mesas Diretoras da Câ-mara e Senado.

Por fim, a medida provisória legislativaseria, na verdade, uma fase anterior e com-plementar ao processo legislativo ordinário.Uma vez editada e com seus efeitos em vigor,poderia ser imediatamente submetida ao ritodo processo legislativo comum ou outro a serestabelecido pela Constituição Federal.

5. Referências

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Gasparini, Diógenes. - Direito Administrativo - 3a ed.Revista e ampliada – São Paulo: Editora Saraiva,1993.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Bra-sileiro - 14a ed. Atualizada pela Constituição de 1988– São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989.

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Mello, Celso de. - Revistas dos Tribunais de Justiça151/331.

Moraes, Alexandre de. - Constituição do Brasil Inter-pretada e Legislação Constitucional - 3a ed. – São Paulo:Editora Atlas S/A, 2003.

Zavascki, Teori Albino. - Antecipação da Tutela - 1a

ed.: - São Paulo: Editora Saraiva, 1997.

Constituição Federal de 1988.

Código de Processo Civil, 5 a ed. – São Paulo: Edito-ra Revista dos Tribunais, 2003.

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1. IntroduçãoEste trabalho procurará demonstrar que

o Estado democrático de direito, em que seconstituem a República Federativa do Bra-sil e os demais Estados de direito contem-porâneos, legitima-se pelo processo legisla-tivo entendido como o procedimento legis-lativo realizado em contraditório. Em outraspalavras, o Estado de direito brasileiro en-contra sua legitimidade no procedimentolegislativo em que os destinatários do pro-vimento final por ele preparado são, tam-bém, seus co-autores. Ainda em outros ter-mos, a República Federativa do Brasil so-mente se constitui em verdadeiro Estadodemocrático de direito à medida que os bra-sileiros, seja diretamente ou mediante repre-sentantes por eles eleitos, participem, emsimétrica paridade, dos procedimentos deelaboração das leis as quais sobre eles pro-duzirão efeitos.

Para tanto, recorrer-se-á à teoria discur-siva do direito de HABERMAS e à teoria doprocesso de FAZZALARI, como marcos te-óricos dentro dos quais se entenderão tantoo Estado democrático de direito como o pro-cesso legislativo.

Júlio Roberto de Souza Pinto

Processo legislativo no Estado Democráticode Direito

Júlio Roberto de Souza Pinto é Advogado,assessor jurídico da SGM/Câmara dos Deputa-dos, professor de Direito Constitucional e deProcesso Legislativo no CEFOR/Câmara dosDeputados, escritor; especialista em Educação,mestre em Liberal Arts (EUA).

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. HENRIQUESAVONITTI MIRANDA.

1. Introdução; 2. A Teoria Discursiva doDireito de Jürgen Habermas; 3. A Teoria doProcesso de Elio Fazzalari; 4. O Estado Demo-crático de Direito e o Processo Legislativo noMarco do Pensamento de Habermas e Fazzala-ri; 5. Conclusão.

Sumário

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Concluir-se-á pugnando pela ampliaçãodo controle de regularidade ora exercidopelo Supremo Tribunal Federal sobre o pro-cesso legiferante e pela atuação efetiva doMinistério Público como fiscal da legitimi-dade do direito assim produzido.

2. A Teoria Discursiva do Direitode Jürgen Habermas

O pensamento de JÜRGEN HABERMASsofreu uma sensível modificação a partir de1992, com a publicação de sua obra Direito edemocracia: entre facticidade e validade.1 Nostrabalhos anteriores, havia uma relação decomplementaridade entre moral e direito.Desde 1992, HABERMAS declina dessacomplementaridade em favor de umarelação de co-originariedade. O pensamen-to habermasiano aqui representado é o desua fase posterior.

Em Direito e democracia: entre facticidadee validade, observa-se, na teoria habermasi-ana do discurso, a transição de uma racio-nalidade prático-moral para uma raciona-lidade comunicativa deontologicamenteneutra. Essa neutralidade do direito em re-lação à moral é explicada pela tensão entrefactualidade e validade, que é inerente à lin-guagem e perpassa o direito à medida queeste se propõe a atender, ao mesmo tempo,aos reclamos de concreção e de universali-zação. Na verdade, é esse vai-e-vem entrefactualidade e validade que permite ao di-reito moderno constituir-se como meio deintegração social e, assim, conduzir a umprocesso legislativo resultante da opinião eda vontade discursiva dos cidadãos.

No ato da linguagem, afirma HABER-MAS, busca-se o entendimento com alguémsobre algo no mundo. Na busca desse en-tendimento, levantam-se as seguintes pre-tensões universais de validade: o falante temde se expressar de maneira a se fazer enten-der; sua fala há de se fazer por meio de umconteúdo proposicional verdadeiro, em ou-tras palavras, ele tem de dar a entender algo;suas intenções hão de ser expressas veraz-

mente, de modo a se firmar um entendimen-to a partir do que é falado; e sua manifesta-ção tem de ser correta, de forma a possibili-tar o entendimento. Assim, ao se entenderalgo com alguém sobre o mundo por meioda linguagem, surge uma tensão entre a re-alidade e a idéia, pois, ao se agir comunica-tivamente, fazem-se idealizações inevitáveisque se podem opor aos fatos.

Para HABERMAS, há uma diferençaentre pensamento e representação. A repre-sentação é sempre propriedade de uma pes-soa no singular. Em outros termos, a repre-sentação sempre se refere ao modo como al-guém representa para si um dado qualquer.O pensamento, ao contrário, pertence à co-letividade, uma vez que não está circunscri-to a uma consciência individual apenas. Opensamento é expresso por meio de enuncia-dos que denotam fatos ou estados de coisas.HABERMAS também distingue o verdadei-ro do real. Real é o que pode ser representa-do por proposições verdadeiras, ao passoque verdadeiro é o que pode ser explicado apartir da pretensão levantada em relação aooutro, no momento em que se faz uma pro-posição. Portanto, a pretensão de verdadetem de ser criticável e aberta a objeções parafazer jus a um acatamento racional da co-munidade interpretativa. Mais ainda: a pre-tensão de verdade, pelo nexo com a valida-de, supera os limites pontuais de qualquercomunidade interpretativa particular, por-quanto a pergunta pela validade de um pro-ferimento supõe a transcendência, por fa-lantes e ouvintes, dos padrões particularesde uma comunidade. É precisamente issoque possibilita o entendimento da verdadecomo algo aceito racionalmente por umacomunidade de intérpretes, a apontar comu-nicativamente para além das fronteiras es-paciais e temporais.

O agir comunicativo, conclui HABER-MAS, é a disponibilidade existente entre fa-lantes e ouvintes para estabelecer um en-tendimento decorrente de um consenso so-bre algo no mundo. Nessa quadra, as açõesse situam em um mundo intersubjetivamen-

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te compartilhado, permeado por um fundoconsensual. Todavia, no momento em queessa estrutura básica não basta para garan-tir a integração social, surge a possibilida-de do dissenso ou a respectiva necessidadede legitimação racional das pretensões.Uma pretensão de validade, para ser racio-nalmente aceita, tem de se constituir, a umsó tempo, como factualidade, uma vez quepertence a uma comunidade real, histórica,e como validade, eis que, necessariamente,faz idealizações ao se remeter às razões po-tenciais, transcendentais.

Mesmo havendo risco de dissenso, con-tinua HABERMAS, no mundo vivido asações se coordenam de maneira a possibili-tar uma ordem social. Elas se movem nabase de entendimentos formados em umhorizonte de sentidos comuns, o qualfunciona como um fundo consensual a for-necer, imediatamente, um padrão espontâ-neo de interpretação. Essa fonte de saber étão intimamente original que as pessoas seremetem a ela como se fosse algo inquestio-nável. Tal saber, no entanto, perde essa con-dição de fonte indiscutível no momento emque é chamado a se confrontar com as pre-tensões de validade.

Já nas instituições arcaicas, detentorasde uma autoridade praticamente incontes-tável, o saber disponível se forma pela fu-são da factualidade com a validade, media-do pelo agir comunicativo, que canaliza, porintermédio de tabus, o agir para uma basecomum. O agir comunicativo deixa, assim,de ser considerado como um entrelaçamen-to de diversas ações na busca de uma baselegitimadora, para se entender como um frag-mento de uma realidade em que se depositao peso da tradição. A tradição, dessarte, fun-ciona como um depósito dos fragmentos darealidade a informar imediatamente toda asociedade e, como tal, assume um caráterprescritivo, unindo a autoridade ao sa-grado.

As sociedades secularizadas, por suavez, ao recusarem a integração por meio dareligião e da tradição, enfrentam tremenda

dificuldade na coordenação das ações soci-ais. KANT e seus seguidores tentaram re-solver esse problema recorrendo à razãoprático-moral.

Na visão habermasiana, o direito emKANT se apresenta como uma relação in-terna entre coerção e liberdade. O direito seentende como a categoria que apela para acoerção monopolizada pelo Estado toda vezque alguém, pelo abuso de sua liberdade,causar empecilhos à liberdade de outrem.Da relação interna entre coação e liberdade,surge a pretensão de validade do ordena-mento jurídico, porquanto o direito é a insti-tuição que, pela coerção, garante a liberda-de, entendida esta como a soma das liber-dades individuais.

O direito, todavia, não se pode efetivarunicamente a partir de demarcações em umespaço específico para a configuração his-tórica das liberdades individuais, contra-põe-se HABERMAS, porquanto o corpo po-lítico se constitui de pessoas que se reco-nhecem mutuamente como portadoras dedireitos recíprocos. Esse reconhecimento dedireitos por todos os cidadãos, é verdade, sefunda em leis que lhes asseguram esses di-reitos. Tais leis, entretanto, para se legitima-rem, têm de garantir o acesso de todos aosmesmos níveis de liberdade.

O processo legislativo, arremata HABER-MAS, erige-se como o meio por excelênciada integração social. Por meio dele as pes-soas abandonam a figura de um sujeito so-lipsista de direito para se constituírem comomembros de uma comunidade jurídico-po-lítica livremente formada. Para tanto, adver-te, tem de possibilitar aos sujeitos a assun-ção da perspectiva de membros que se ori-entam pela busca de um entendimento in-tersubjetivamente alcançado. Somente quan-do os sujeitos vislumbrarem nas leis a ma-nifestação racional e livre de suas própriasvontades, ou, em outros termos, quando seenxergarem destinatários e co-autores doordenamento jurídico, o direito se trans-formará em fonte primária da integraçãosocial.

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3. A Teoria do Processo deElio Fazzalari

A teoria do processo de ELIO FAZZA-LARI, o outro marco teórico dentro do qualse entenderá o processo legislativo como le-gitimador do Estado democrático de direi-to, acha-se representada, no Brasil, pela obrade AROLDO PLÍNIO GONÇALVES, intitu-lada Técnica processual e teoria do processo. Épela ótica de GONÇALVES que se aprecia-rá a obra de FAZZALARI.

No desenvolvimento do Direito Proces-sual Civil como ciência autônoma, a doutri-na reagiu contra a postura tradicional deséculos passados, que absorvia o processono procedimento e considerava este comomera sucessão de atos componentes de umrito de aplicação judicial do direito. Paula-tinamente, buscou estabelecer a distinçãoentre processo e procedimento, encontran-do no critério teleológico a base dessa dife-renciação. Essa distinção prevaleceu inques-tionável por muito tempo, até despontaroutra proposta que possibilitou a conside-ração das relações entre procedimento e pro-cesso. Entre os autores mais divulgados,FAZZALARI foi quem melhor sistematizoua nova propositura.

A corrente doutrinária que separa o pro-cedimento do processo com fundamento nocritério teleológico enfrenta um problemapara o qual não se encontra solução ade-quada: se o procedimento se constitui emmeio necessário à existência e ao desenvol-vimento regular do processo – pois aindanão se pôde suprimir a necessidade do pro-cedimento –, segue-se, então, que também oprocedimento tem o caráter teleológico ine-rente a toda e qualquer técnica.

Afora isso, essa vertente continua a tra-tar o processo com apelo a categorias con-ceituais antigas, como as da relação jurídi-ca e do direito subjetivo. Nela a relação jurí-dica é vista como um enlace normativo en-tre duas pessoas, em que uma pode exigirda outra o cumprimento de um dever jurídi-co. Já os direitos subjetivos são pensados

em termos de uma liberdade absoluta que,derivada do direito natural ou a ele relacio-nada, se opõe ao Estado e ao direito deleemanado. O direito de ação, assim, configu-ra-se a partir de um conceito de relação jurí-dica engendrado por uma noção de direitosubjetivo.

Todavia, a teoria da relação jurídica –denominação por que essa corrente doutri-nária ficou conhecida – em breve se revela-ria insuficiente para explicar as situaçõesjurídicas que, a toda evidência, não corres-pondem a vínculos entre sujeitos.

HANS KELSEN, depois de analisar oconceito de relação jurídica e os possíveisempregos da expressão, chegou mesmo aconcluir pela existência não de um vínculode vontades ou de sujeitos, mas sim de umaconexão de normas que determinam a con-duta de indivíduos.

Em bases diferentes da adotada porKELSEN, mas se destinando, também, à su-peração do conceito de relação jurídica, de-senvolveu-se a teoria das situações jurídi-cas a partir das diferentes contribuições deLÉON DUGUIT, GASTON JEZÈ e PAULROUBIER. Em todas essas propostas, a si-tuação jurídica não se estrutura como vín-culo jurídico entre dois sujeitos, em que umtem o poder de exigir uma determinada con-duta do outro, mas se forma a partir de umfato ou ato jurídico produzido segundo a leique governa sua constituição. Uma vez cons-tituída, ela se transforma no complexo dedireitos e deveres de uma pessoa, direitos edeveres que não mais se confinam no planoabstrato e genérico da norma, mas que serealizam na situação de um determinadosujeito.

Nesse diapasão, convém salientar que ateoria das situações jurídicas não pretendeueliminar a noção de um direito fluindo danorma para um determinado titular. Preten-deu, isto sim, escorá-lo em outras bases, eisque a reflexão jurídica havia demonstradoa possibilidade do direito qualificado desubjetivo ser visto como uma faculdade oucomo um poder de agir, mas nunca como

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um poder sobre a conduta alheia. Nas pala-vras de GONÇALVES (2001, p. 92),

a doutrina contemporânea reconheceque o único ato imperativo que podeincidir sobre a universalidade de di-reitos de uma pessoa é o ato imperati-vo do Estado, proferido segundo umprocedimento regulado pelo Direito,que disciplina o próprio exercício dopoder, manifeste-se ele no cumpri-mento de qualquer das funções doEstado, legislativa, administrativa oujurisdicional.

A teoria das situações jurídicas cumpreseu papel ao demonstrar a impossibilidadede se considerar vínculos imperativos entresujeitos, superando, dessarte, o conceito derelação jurídica. Isso não basta, contudo,para definir processo como situação jurídi-ca. As situações jurídicas nele estão presen-tes, mas não o delimitam.

A grande contribuição para a renovaçãodo conceito de procedimento vem de ELIOFAZZALARI. FAZZALARI caracterizou osprovimentos como atos imperativos do Es-tado, promanados dos órgãos que exercemo poder, nas funções legislativa, adminis-trativa e jurisdicional. O procedimento,como atividade preparatória do provimen-to, possui uma estrutura específica, consti-tuída da seqüência de normas, atos e posi-ções subjetivas de tal maneira conectadosque o cumprimento de uma norma é pressu-posto tanto da incidência da norma seguin-te quanto da validade do ato nela previsto.

Nessa quadra, o processo caracteriza-secomo uma espécie do gênero procedimento,pela participação, na atividade de prepara-ção do provimento, dos interessados, junta-mente com o autor. Os interessados sãoaqueles em cuja esfera particular o ato estádestinado a produzir efeitos. A caracteriza-ção do processo, não obstante, conclui-secom a apreensão da estrutura legal específi-ca desse procedimento: a participação dosinteressados em contraditório. Há proces-so, por conseguinte, sempre que o procedi-mento se realiza em contraditório entre os

interessados, e a essência do contraditórioestá na simétrica paridade da participação,nos atos que preparam o provimento, dosinteressados, porque, como destinatários,sofrerão seus efeitos.

É evidente que a atividade que prepara oprovimento, seja administrativo ou jurisdi-cional, nem sempre constitui processo, poiso contraditório pode dela estar ausente. Oprocedimento legislativo, porém, sempre háde constituir processo, porquanto sempredeve realizar-se com a participação de par-lamentares que representam e reproduzemos interesses divergentes dos grupos e co-munidades dos cidadãos.

4. Estado Democrático de Direito eProcesso Legislativo no Marco do

Pensamento de Habermas e Fazzalari

Delineados os marcos teóricos, segue-seagora para um entendimento do Estado de-mocrático de direito e do processo legisla-tivo.

Duas tradições políticas têm buscadoentender a relação entre Estado de direitoou constitucional e democracia: a liberal e arepublicana.

A tradição política liberal, de JOHNLOCKE a IMMANUEL KANT, de EMMA-NUEL SIÈYES e THOMAS PAINE a BEN-JAMIN CONSTANT ou JOHN STUARTMILL, passando por JEREMY BENTHAN eoutros, chega a nossos dias pelos ensaiosde ISAIAH BERLIN e por obras tão diver-sificadas como as de JOHN RAWLS,ROBERT NOZICK, CHARLES LARMOREou RONALD DWORKIN. Entretanto, é otrabalho de RAWLS que, revisando o jus-naturalismo de matriz kantiana e não uti-litarista, reacendeu, nos Estados Unidos edali se alastrando por todo o mundo, o de-bate entre liberais (sociais ou não) e republi-canos (comunitaristas ou não).

A tradição política republicana, a seuturno, remete-se a ARISTÓTELES, passan-do pela filosofia romana republicana e pelohumanismo cívico do movimento renascen-

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tista italiano. Foi recepcionada pelo pensa-mento de JAMES HARRINGTON, o famosoopositor de THOMAS HOBBES, e, por meioda obra de HARRINGTON e outros, influ-enciou os debates norte-americanos da Con-venção de Filadélfia. Esse republicanismocívico foi vertido para a linguagem moder-na do jusnaturalismo pela obra de JEAN-JACQUES ROUSSEAU, influenciando gran-des nomes das Revoluções Americana e Fran-cesa. Mereceu as reflexões de G.W. F. HEGELe KARL MARX, despertando, já no século XX,a admiração e recepção crítica de CARLFRIEDRICH e HANNAH ARENDT. Hodier-namente, são considerados republicanos au-tores como CHARLES TAYLOR, MICHAELWALZER, MICHAEL SANDEL e ALAS-DAIR MCINTYRE, além de juristas comoNEIL MACCORMICK, MICHAEL PERRYe FRANK MICHELMAN.2

Essas duas tradições, em suas versõescontemporâneas, compartilham a idéia se-gundo a qual todos os cidadãos são livres eiguais. Ambas defendem, assim, não ape-nas a existência de um Estado de direito ouconstitucional e da democracia, mas tam-bém a constitucionalização de direitos fun-damentais. Isso não significa, contudo, queconstituição, democracia e direitos huma-nos sejam por elas interpretados da mesmamaneira.

LOCKE, o pai do liberalismo, vê o direitoà liberdade como direito à autodetermina-ção privada no tocante à propriedade e àfelicidade, a ser garantida perante os outrosindivíduos e a própria organização político-estatal. A liberdade natural se institucionali-za juridicamente no plano da comunidadepolítica como liberdade civil, por meio do re-conhecimento e garantia, pelo Estado, da exis-tência de uma esfera privada. ROUSSEAU,na linha da tradição republicana, enxerga odireito à liberdade como direito à autodeter-minação política, a se realizar pelo exercí-cio da liberdade civil e da soberania do povo,na construção de um corpo ou comunidadeético-política. A liberdade natural se insti-tucionaliza juridicamente no âmbito da co-

munidade política como liberdade civil, paraa participação política.

LOCKE e ROUSSEAU mantêm entendi-mentos convergentes e divergentes no quetange às finalidades do contrato social ouconstituição do Estado. Ambos concordamque a constituição é o meio efetivo e legítimode assegurar os direitos naturais dos indi-víduos. Na visão de LOCKE, porém, o con-trato ou o pacto fundamental tem por fim aconstituição de uma organização socialmediante a qual o indivíduo, compreendi-do antes como sujeito de direitos privadosdo que como cidadão, possa exercer, comsegurança e sem interferências, seus direi-tos à vida, à liberdade privada e, principal-mente, à propriedade. Distingue, por conse-guinte, o pacto fundamental do pacto queforma o governo, pois um é o processo polí-tico fundador, outro o processo eleitoral deescolha de representantes. A dissolução dogoverno, nesse diapasão, não implica ne-cessariamente a dissolução da sociedade.Já para ROUSSEAU, o contrato social con-substancia a formação de um corpo políticoque, pela comunhão de seus membros, exer-ce o direito comunitário à autodetermina-ção, na busca da realização da felicidade eda auto-realização ética. O processo políti-co, mesmo o que forma o governo, é o centrointegrador e constituidor do social. É neleque se expressa a vontade geral e se confir-ma o pacto social concernente a suas finali-dades ético-políticas.

Dessarte, o processo político, na tradi-ção liberal representada no pensamentolockeano, tão-somente realiza a tarefa deprogramar o governo de acordo com o inte-resse da sociedade, entendendo-se o primei-ro como um aparato administrativo e a se-gunda como uma rede de interações entresujeitos privados, organizada na forma demercado. Em outras palavras, a política tema função de reunir os interesses privados eencaminhá-los à administração público-estatal, cuja finalidade é utilizar-se do po-der político para atingir objetivos coletivosmajoritários. O exercício desse poder se le-

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gitima a partir de uma formação democráti-ca da vontade e da opinião. Na tradição re-publicana ilustrada pelo pensamento deROUSSEAU, a seu turno, a política é conce-bida para além dessa função de mediaçãosocial, porquanto ela é, primariamente, cons-titutiva dos processos societários em geral.Ela é a forma em que se reflete a vida éticareal. É o meio pelo qual os indivíduos, soli-dariamente, se tornam conscientes de suadependência uns dos outros e, agindo comocidadãos, modelam e desenvolvem suas re-lações de reconhecimento recíproco, trans-formando-se em uma associação de pesso-as livres e iguais perante o direito.

O status de cidadão, para o liberalismo, édeterminado por direitos negativos em facedo Estado e de outros cidadãos. O processodemocrático se dá sob a forma de compro-missos entre interesses divergentes, deven-do a igualdade civil ser assegurada pelodireito geral e igualitário de votar e pela com-posição representativa dos corpos parla-mentares. Já na perspectiva republicana, acidadania não é determinada somente porliberdades negativas a serem reivindicadaspelos cidadãos na qualidade de sujeitos dedireitos privados. Os direitos políticos são,sobretudo, liberdades positivas, uma vezque garantem não a liberdade de coerçãoexterna, mas a possibilidade de participa-ção política, por meio da qual os cidadãos,na construção de uma identidade ético-política comum, reconhecem-se como asso-ciados livres e iguais. Um governo republi-cano nunca estaria somente incumbido deexercer um mandato amplamente aberto,como no modelo liberal, mas estaria tam-bém obrigado a cumprir certos programas,permanecendo ligado à comunidade políticaque se autogoverna. A formação democráticada vontade se daria, pois, sob a forma de umdiscurso ético-político, com um fundo con-sensual culturalmente estabelecido e compar-tilhado pelo conjunto dos cidadãos.

Tanto a tradição liberal como a republi-cana pressupõem uma visão de sociedadecentrada no Estado. Todavia, enquanto para

a primeira o Estado é o guardião de umasociedade de mercado, para a segunda ele éa institucionalização autoconsciente de umacomunidade ética. De acordo com os liberais,a separação entre o Estado e a sociedade nãopode ser elidida pelo processo democrático,mas somente atenuada. Nessa quadra, a cons-tituição, como mecanismo ou instrumento degoverno, tem a função de compatibilização.Diferentemente, segundo os republicanos, aformação política da vontade e da opiniãodos cidadãos cria o meio pelo qual a socieda-de se constitui como uma totalidade política.Nesse diapasão, não faz sentido distinguir oEstado da sociedade, porquanto a sociedadeé, desde sempre, uma sociedade política. Aconstituição é compreendida, dessarte, comouma consubstanciação axiológica concretada identidade ética e da auto-organizaçãototal de uma sociedade política.

O liberalismo e o republicanismo, con-tudo, têm perdido muito de seu poder deconvencimento por não levarem seriamenteem consideração a complexidade da socie-dade hodierna.

A tradição liberal, excessivamente céti-ca, tende a reduzir o debate político, à luzde um modelo econômico de mercado, a umamera disputa entre atores políticos e nãoexplica como esses atores, voltados exclusi-vamente para a satisfação de interesses pró-prios, podem concordar acerca de normasque regerão, de modo imparcial, sua vidacomum. RAWLS, por exemplo, limita a po-lítica e a esfera pública ao Estado e a seusfóruns oficiais, excluindo do que chama de“uso público da razão” os debates empre-endidos pela sociedade civil, bem como res-tringe as questões públicas e políticas a umaagenda fechada e predefinida de temas, dei-xando de fora importantes matérias relacio-nadas aos diferentes modos de vida presen-tes na sociedade. A par disso, a posiçãorawlsoniana é por demais estreita no queconcerne às “questões constitucionais essen-ciais” (1993, p. 212 et seq.).

O republicanismo, por sua vez, emborapossua a vantagem de compreender a polí-

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tica como algo mais que uma mera concor-rência entre atores políticos à busca da sa-tisfação de interesses próprios, diversos edivergentes, e procure resgatar a dignidadepolítica, considerando-a como uma formadialógica de integração social, é um modeloextremamente normativo, pois tende a re-duzir o debate político a um processo deauto-esclarecimento coletivo sobre um modoou projeto de vida que se pressupõe comum,com forte lastro num consenso ético. Ora,conquanto o integrem, os discursos éticossobre o bem não exaurem o debate político.Como assevera HABERMAS (1995, p. 107-121), no contexto das sociedades comple-xas hodiernas, marcadas por uma plurali-dade de formas racionais de vida, assimcomo por interesses sistêmico-funcionais,argumentos éticos acerca do que é bom sãotemperados por questões pragmáticas deinteresse, à luz de razões morais sobre o queé justo, possibilitando, senão a construção deconsensos, ao menos a formação de compro-missos políticos sob condições equânimes.

Assim, quando comparado ao liberalis-mo, o modelo republicano de política deli-berativa tem a vantagem de preservar o sig-nificado original da democracia, no sentidoda institucionalização de um uso públicoda razão, exercida conjuntamente pelos ci-dadãos, em sua prática de autodetermina-ção. Entretanto, os republicanos contempo-râneos tendem a dar uma interpretação co-munitarista excessivamente idealista a essaprática comunicativa, de tal sorte que o pro-cesso democrático fica à mercê das virtudesde cidadãos devotados ao bem comum, as-segurado por um fundo consensual ético.

Com efeito, em que pese a sua importân-cia para a política, as questões éticas devemser subordinadas às questões morais – dejustiça – e vinculadas às questões pragmá-ticas – de interesse. Se, por um lado, no pro-cesso legislativo deve-se levar em conta nãosomente o que é bom para uma comunidadeconcreta, mas também o que é justo no igualinteresse de todos, por outro, há que se reco-nhecerem os compromissos como constitu-

indo a maior parte dos processos políticos,sob as condições determinadas pelo plura-lismo axiológico, cultural e religioso, nassociedades complexas hodiernas.

Nessa nova perspectiva da relaçãoentre Estado de direito e democracia, de-senvolvida a partir da teoria discursivade HABERMAS, o êxito da política deli-berativa depende da institucionalizaçãojurídico-constitucional dos procedimentose das condições de comunicação correspon-dentes. A idéia de um “eu” coletivo – tantona visão liberal do conjunto de indivíduosa atuarem como variáveis independentes emprocessos sistêmicos aleatoriamente desen-volvidos, quanto na leitura republicana deuma vontade geral a refletir a totalidade eem nome desta agir –, dá lugar às formas decomunicação sem sujeito a regularem o flu-xo das deliberações, de tal modo que seusresultados falíveis se revestem da presun-ção de racionalidade.

A partir desse novo ângulo – o do Esta-do democrático de direito –, a constituiçãonão mais pode ser vista, nem em termos li-berais, como a guardiã de uma esfera priva-da e de uma autonomia entendida como li-berdade negativa, nem em moldes republi-canos, como a protetora de uma estabilida-de ético-política, a se realizar pelo exercíciode uma autonomia compreendida como li-berdade positiva. Por semelhante modo, ademocracia não mais pode ser concebida,nem em termos liberais, como uma mera dis-puta de mercado regulada por regras alea-tórias, sob um governo comprometido comos interesses majoritários daqueles supos-tamente por ele representados, nem, emmoldes republicanos, como um processoautocompreensivo mediante o qual a iden-tidade ética presumidamente homogênea deuma comunidade concreta se realiza.

Diversamente, para se ajustar a essa vi-são procedimentalista do Estado de direitoe da democracia, a constituição há de serentendida como a prefiguração de um siste-ma de direitos fundamentais que apresentaas condições procedimentais de institucio-

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nalização jurídica das formas de comuni-cação necessárias a um processo legislativoautônomo ou democrático. A soberania po-pular, dessarte, assume forma jurídica, pormeio do processo legislativo democrático,que realiza o nexo interno entre as autono-mias privada e pública dos cidadãos. É di-zer, a soberania popular procedimentalmen-te interpretada garante a articulação dessasduas dimensões da autonomia jurídica, eisque os destinatários das normas jurídicas,na condição de sujeitos jurídicos privados,pelo processo legislativo democrático, naqualidade de cidadãos se tornam co-auto-res de seus direitos e deveres.

5. Conclusão

A tarefa precípua do direito foi e ainda éa de ser uma das formas de integração social.Assumindo e transcendendo a função ou-trora exercida pela religião e pela tradição,o direito deve, a um só tempo, assegurar asrelações jurídicas e fundamentar-se a simesmo. Na verdade, por meio da institucio-nalização jurídico-constitucional de meioscomunicativos político-democráticos de for-mação da vontade e da opinião, o direitorealiza as condições procedimentais de sualegitimidade, as quais correspondem à prá-tica política deliberativa de cidadãos que,no exercício de sua autonomia, são co-auto-res de seus direitos e deveres. Esses proces-sos não são surdos a questões éticas, a in-dagações morais ou a interesses, mas nãose reduzem a nenhum deles.

No desempenho desse papel integrador,o direito não se pode cingir a regular a atu-ação de atores sociais movidos por interes-ses egoísticos, como no modelo liberal, nemimpor, aprioristicamente, uma única formade vida como válida para a sociedade, comono modelo do bem-estar social. Para umateoria do Estado constitucional e da demo-cracia que supere os paradigmas liberais edo bem-estar social, o direito deve ser com-preendido, fundamentalmente, como pro-cesso, ou em termos procedimentalistas.

Nesse novo paradigma – o do Estadodemocrático de direito –, o processo legisla-tivo caracteriza-se como uma seqüência dediversos atos jurídicos que, formando umacadeia procedimental, assumem seu modoespecífico de interconexão, estruturado pornormas jurídico-constitucionais e realizadodiscursivamente ou em contraditório entreos interessados nos provimentos normativos- atos finais daquela cadeia procedimental.Nas palavras de MARCELO ANDRADECATTONI DE OLIVEIRA (2000, p. 110),

sob o paradigma do Direito procedi-mentalizado do Estado Democráticode Direito, um processo político deli-berativo legítimo, conformado consti-tucionalmente, só poderá ser compre-endido, sob as condições de uma so-ciedade complexa, em termos da teo-ria da comunicação, como um fluxocomunicativo que emigra da periferiada esfera pública – cujo substrato éformado pelos movimentos sociais epelas associações livres da sociedadecivil, surgidos das esferas de vida pri-vada – e atravessa as comportas oueclusas (VIEIRA, J. R., 1997: 221-222)dos procedimentos próprios à Demo-cracia e ao Estado de Direito, ganhan-do os canais institucionais dos pro-cessos jurídicos não somente legisla-tivos, mas também jurisdicionais e atéadministrativos, no centro do sistemapolítico (HABERMAS, 1997b: 2:86-91).

Por último, em vista da importância fun-damental, para o Estado democrático de di-reito, do processo legislativo entendidocomo o procedimento legiferante caracteri-zado pela participação, em simétrica pari-dade, na atividade de preparação do provi-mento normativo, daqueles que sofrerãoseus efeitos, cumpre repensar o controle deregularidade sobre ele ora exercido peloSupremo Tribunal Federal – STF, bem comoalinhavar a indispensável atuação do Mi-nistério Público como fiscal da legitimida-de do direito desse modo produzido.

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A jurisprudência do STF sobre essa ma-téria se tem caracterizado por um sistemáti-co alargamento do que se deve compreen-der por “matéria interna corporis” do PoderLegislativo. Em outras palavras, as questõesreferentes à regularidade regimental nãoseriam passíveis, em sua maior parte, deverificação por parte do Poder Judiciário, aoargumento de que a interpretação e aplica-ção do Regimento Interno das Casas Parla-mentares são da competência exclusiva de-las. Nesse sentido, o controle judicial de re-gularidade do processo legislativo só sepoderia exercer no que se refere a requisitosprocedimentais previstos na Constituição,e não simplesmente com base nos aludidosRegimentos, conforme firmado, em 1980, noMandado de Segurança no 20.257-DF e rei-terado em inúmeros outros, a exemplo doMS no 22.503-DF, cuja ementa se transcrevea seguir:

Ementa – Mandado de segurançaimpetrado contra ato do Presidente daCâmara dos Deputados, relativo à tra-mitação de emenda constitucional.Alegação de violação de diversas nor-mas do regimento interno e do art. 60,§ 5o, da Constituição Federal. Prelimi-nar: Impetração não conhecida quan-to aos fundamentos regimentais, porse tratar de matéria interna corporis quesó se pode encontrar solução no âm-bito do Poder Legislativo, não sujeitaà apreciação do Poder Judiciário; co-nhecimento quanto ao fundamentoconstitucional. Mérito: Reapresenta-ção, na mesma sessão legislativa, deproposta de emenda constitucional doPoder Executivo, que modifica o siste-ma de previdência social, estabelecenormas de transição e dá outras pro-vidências (PEC no 33-a, de 1995).

Assim, segundo entendimento assenta-do pelo STF, somente no caso de descum-primento de normas constitucionais atinen-tes às formalidades do processo legislativo,teriam os parlamentares legitimação ativapara impetrar mandados de segurança pe-

rante aquela Corte Suprema, porquanto lhesassistiria um direito público subjetivo, “en-quanto partícipes do procedimento de ela-boração das normas estatais”, de não teremde votar projetos de lei ou propostas de emen-das à Constituição que julguem inconstitu-cionais.3

Ora, colocada nesses termos, a questãoacerca da regularidade da tramitação de umprojeto de lei ou emenda constitucional sereduz ao nível dos interesses particulares eexclusivos dos deputados e senadores, es-vaziando-se de sua relevância para a pro-dução do direito e para a cidadania. De fato,diferentemente da jurisprudência do STF,esses requisitos procedimentais são, daperspectiva do Estado democrático de di-reito, condições processuais que devem ga-rantir um provimento legislativo democrá-tico. Em outros termos, são a institucionali-zação jurídica de formas discursivas e ne-gociais que devem assegurar o exercício daautonomia dos cidadãos. O que está em xe-que, portanto, é a própria cidadania e nãomeramente o direito subjetivo de um deter-minado parlamentar. A propósito, não sedeveria tratar do exercício de um mandatorepresentativo como um assunto privado,ainda que sob o rótulo de “direito públicosubjetivo”, uma vez que os parlamentares,na verdade, exercem função pública de re-presentação política. O direito ao devidoprocesso legislativo é um direito de todo equalquer cidadão brasileiro.

Dessarte, deveria o controle de regulari-dade ora exercido pelo STF sobre o processolegiferante ampliar-se para alcançar aque-les requisitos procedimentais inscritos ape-nas nos Regimentos Internos das Casas Par-lamentares, à medida que tenham tambémestes o condão de assegurar a participaçãoparitária e simétrica, nas atividades prepa-ratórias dos provimentos normativos, da-queles que sofrerão seus efeitos.

Tal é a importância do processo legisla-tivo assim entendido para a realização doEstado democrático de direito, que tambémo rol dos legitimados a provocar o controle

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jurisdicional da regularidade desse proces-so de produção do direito deveria ser ex-pandido para incluir, entre outros, o Minis-tério Público. No cumprimento de seus mis-teres constitucionais de defesa da ordemjurídica, do regime democrático e dos inte-resses sociais e individuais coletivos, deve-ria o Parquet atuar, efetivamente, como fis-cal da legitimidade do direito dessa manei-ra produzido.

Notas1 O segundo volume dessa obra foi traduzido

para o português por Flávio Beno Siebeneichler epublicado pela Tempo Brasileiro em 1997.

2 GISELE CITTADINO percebeu a presença dopensamento republicano comunitarista, de matrizsocial, nas obras de grandes juristas brasileiroscontemporâneos, como JOSÉ AFONSO DA SILVA,PAULO BONAVIDES, FÁBIO KONDER COMPA-RATO, CÂNDIGO RANGEL DINAMARCO e tan-tos outros, influenciados por constitucionalis-tas portugueses e espanhóis como GOMESCANOTILHO, JORGE MIRANDA, GARCÍA DEENTERRÍA e PÉREZ LUÑO (Pluralismo, direito ejustiça distributiva, p. 15 ss).

3 MS no 21.642-5-DF, Ministro Celso de Mello.

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1. IntroduçãoNas últimas décadas, a lavagem de di-

nheiro e os crimes associados – narcotráfi-co, corrupção, seqüestro, terrorismo – tor-naram-se delitos cujo impacto tem-se mos-trado incomensurável em nível mundial. Osefeitos dessa conduta ilícita espalham-separa além das fronteiras nacionais, deses-tabilizando sistemas financeiros e compro-metendo atividades econômicas.

A fim de evitar e combater a lavagem dedinheiro, governos de vários países vêm-sededicando bastante à questão, mobilizan-do pessoal das mais diversas áreas de atua-ção, criando órgãos e assinando acordosinternacionais, numa tentativa de coibir acirculação nos seus sistemas financeiros decapital de origem criminosa. A união dasnações interessadas nesse desafio tem pro-

Léa Marta Geaquinto dos Santos é bachare-la em Estatística pela Universidade de Brasíliae taquígrafa do Senado Federal.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo.Orientador: Prof. ALEXANDREPAIVA DAMASCENO.

O desafio do combate à lavagem dedinheiro

Léa Marta Geaquinto dos Santos

1. Introdução; 2. A definição de lavagem dedinheiro; 3. A relevância do combate à lava-gem de dinheiro; 4. Os esforços para coibir alavagem de dinheiro; 5. A atuação das institui-ções brasileiras contra a lavagem de dinheiro;5.1. Conselho de Controle de Atividades Fi-nanceiras – COAF; 5.2. Congresso Nacional eCPIs; 5.3. Departamento de Combate a IlícitosCambiais e Financeiros –DECIF; 5.4. Conselhoda Justiça Federal – CJF; 5.5. Departamento deRecuperação de Ativos e Cooperação JurídicaInternacional – DRCI; 6. Estratégia Nacionalde Combate à Lavagem de Dinheiro – ENCLA;7. Conclusões; 8.Notas; 9. Referências.

Sumário

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vocado alterações e inovações nas suas le-gislações e nos seus procedimentos institu-cionais, permitindo um melhor ataque àscada vez mais diversas e audaciosas moda-lidades de lavagem de dinheiro.

Acompanhando a tendência mundial, oBrasil tem travado intensa luta contra a la-vagem de dinheiro, adotando, no âmbito detodos os Poderes, medidas para evitar o cres-cimento dessa prática lesiva às suas finan-ças, que se utiliza de modernas e sofistica-das técnicas para dissimular a conversãode recursos ilícitos em lícitos.

2. A definição de lavagemde dinheiro

Dinheiro “sujo” é aquele proveniente dolucro percebido com a prática de um crime,como o narcotráfico, o contrabando de ar-mas e a corrupção entre outros cujos auto-res pertencem geralmente a uma organiza-ção criminosa, já definida pela ONU, Orga-nização das Nações Unidas, como grupo detrês ou mais pessoas que obtêm benefíciosfinanceiros e materiais a partir de ativida-des ilegais (Cf. ROMANTINI, 2003). Os cri-mes que provocam ganho de capital, queprecisa ser “lavado” para retornar ao mer-cado sem que sua origem seja descoberta,são chamados “crimes antecedentes” quan-do relacionados à lavagem de dinheiro.

Segundo SILVA (2001), lavagem de di-nheiro é “a expressão que passou a ser utili-zada para designar o dinheiro ilícito comaparência de lícito, ou seja, o ‘dinheiro sujo’transformado em ‘dinheiro limpo’, ou, ain-da, o ‘dinheiro frio’ convertido em ‘dinhei-ro quente’, com a ocultação de sua verda-deira origem”.

A lavagem de dinheiro caracteriza-sepelo conjunto de operações comerciais oufinanceiras efetuadas a fim de transformaresse dinheiro “sujo” – recursos ganhos ematividades ilegais – em ativos aparentementelegais, ocultando a sua origem e permitindoque sejam utilizados para financiar estilosde vida luxuosos e para investir na conti-

nuidade da atividade criminosa ou até ematividades lícitas.

Lavar dinheiro é, pois, fazer com queprodutos de crime pareçam ter sido adqui-ridos legalmente. Para alcançar o objetivode encobrir, de qualquer forma, a origem ilí-cita do dinheiro “sujo” e de apagar os vestí-gios que permitam às autoridades públicasdescobri-la, é inevitável o seu trânsito pelossetores regulares da atividade econômica.Com o desenvolvimento tecnológico dosmeios de comunicação e com a globaliza-ção do mercado financeiro internacional (Cf.SILVA, 2001), os criminosos movimentamgrandes quantias de forma rápida e de di-versas maneiras, podendo comprometer aestabilidade financeira dos países e permi-tir que traficantes, contrabandistas de ar-mas, terroristas ou funcionários corruptoscontinuem suas atividades ilegais.

A lavagem de dinheiro envolve teorica-mente três fases independentes, que, comfreqüência, ocorrem simultaneamente:

1. Colocação: é a primeira etapa do pro-cesso e refere-se à introdução do dinheirono sistema econômico preferencialmente depaíses com regras mais permissivas e quepossuem um sistema financeiro liberal;

2. Ocultação: a segunda etapa do proces-so consiste em dificultar o rastreamento con-tábil dos recursos ilícitos, escondendo evi-dências sobre a origem do dinheiro. Os cri-minosos o fazem por meio de contas “fan-tasmas” ou em países amparados por lei desigilo bancário;

3. Integração: na última etapa, o dinheiroé incorporado formalmente ao sistema eco-nômico de uma forma que facilite a sua legi-timação.

O processo de lavagem de recursos ilíci-tos ocorre por meio de operações ou transa-ções realizadas pelos mais diversos presta-dores de serviços financeiros. Os setoresmais visados são: as instituições financei-ras, que, no Brasil, são controladas pelo Ban-co Central do Brasil; os paraísos fiscais –países que oferecem oportunidades vanta-josas para depósitos em suas instituições

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financeiras e que normalmente são protegi-dos por lei que garante sigilo bancário –; oscentros offshore – centros bancários extra-territoriais que não são submetidos ao con-trole de nenhum país –; as bolsas de valo-res; o mercado imobiliário; e os jogos e sor-teios, como bingos e loterias.

Muitas outras operações comerciais rea-lizadas internacionalmente também facili-tam a lavagem de dinheiro, entre as quais sedestacam a compra e a venda de jóias e obrasde arte, por envolverem bens de alto valor,tratarem de objetos comercializados comrelativa facilidade e possibilitarem a garan-tia do anonimato.

Apesar de a movimentação de capitaisentre países ser um recurso utilizado porcriminosos para despistar a repressão esta-tal e usualmente levantar suspeitas sobreoperação ligada à lavagem de dinheiro, amanutenção por um cidadão brasileiro deuma conta bancária no exterior não implicanecessariamente crime, visto não ser proibi-do o envio de recursos para depósito embancos com sedes fora do território nacio-nal. Entretanto, deve-se destacar que re-cursos depositados em instituições ban-cárias de outros países sem a devida de-claração à Receita Federal é crime contrao Sistema Financeiro Nacional, de acor-do com a “Lei do Colarinho Branco” (art.22, parágrafo único, da Lei no 7.492/86)1,além de significar sonegação fiscal, pornão ter havido recolhimento de impostoem data correta.

3. A relevância do combate àlavagem de dinheiro

A grande quantia de dinheiro “sujo” en-volvida em transações nacionais e interna-cionais tem motivado os representantes doBrasil e de vários países a modificar o seusistema legal e bancário, a fim de coibir edificultar a circulação e a utilização peloscriminosos do dinheiro ilícito, e a assinaracordos de cooperação bilaterais e multila-terais com esse intuito.

O tema passou a integrar agendas dediscussões e programas de organismos in-ternacionais, sendo objeto de reuniões emtodo o mundo. Chefes de Estado, por meiode suas autoridades competentes, têm dis-pensado bastante atenção a essa condutaque visa dissimular produto oriundo de cri-me, procurando combatê-la mediante cons-tante esforço que inclui a adoção de políti-cas comuns a fim de cercear o enriquecimen-to das pessoas envolvidas em delitos ante-cedentes à lavagem de dinheiro.

Segundo o Embaixador RUBENS ANTO-NIO BARBOSA2 (1995),

Tema de importância crescente naagenda internacional, o combate aonarcotráfico possui característicaspróprias das chamadas questões glo-bais, que afetam a comunidade dasnações em seu conjunto. Tanto a pro-dução e o consumo quanto o tráficode entorpecentes, ainda que suscitemníveis diferenciados de responsabili-dade, fazem parte de uma mesma pro-blemática em que a ação isolada dosEstados deixa nos dias de hoje de serinstrumento de solução efetiva e pas-sa a depender de esforços conjuntosno âmbito da comunidade interna-cional.

Por ser um problema que ameaça as na-ções de forma crescente, ocultando crimesantecedentes, inúmeros países e organiza-ções internacionais envolveram-se nessaluta principalmente a partir da “Conven-ção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecen-tes e de Substâncias Psicotrópicas”, apro-vada em Viena em 20 de dezembro de 1988,conhecida como “Convenção de Viena”.Vários países interessados que ainda nãohaviam tipificado o crime de lavagem dedinheiro comprometeram-se a fazê-lo, cri-ando agências governamentais responsá-veis pelo seu combate. Essas agências sãoconhecidas mundialmente como UnidadesFinanceiras de Inteligência – FIU (sigla eminglês de Financial Intelligence Unit).

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4. Os esforços para coibir alavagem de dinheiro

Atendendo ao princípio da legalidadedos delitos e das penas inserido na Consti-tuição (art. 5o, XXXIX)3 e no Código Penal(art. 1o)4, o Brasil aprovou, em março de 1998,a Lei no 9.613 – “Lei da Lavagem de Dinhei-ro”, que tipifica a lavagem de dinheiro e aocultação de bens, direitos e valores oriun-dos de determinados crimes de especial gra-vidade. Essa política é continuidade aocompromisso assumido quando da ratifica-ção, pelo Decreto no 154, de 26 de junho de1991, da já aludida “Convenção de Viena”,ocorrida em 1988.

Quanto ao rol de crimes antecedentes àlavagem de dinheiro, o narcotráfico (Lei no

6.368, de 21 de outubro de 1976), os crimespraticados por organização criminosa, in-dependentemente do bem jurídico ofendido(Lei no 9.034, de 03 de maio de 1995), o terro-rismo (art. 20 da Lei no 7.170, de 14 de de-zembro de 1983) e o contrabando ou tráficode armas, munições ou material destinadoà sua produção (art. 334 do Código Penal eart. 12 da Lei no 7.170, de 1983) compõem ascategorias de infrações perseguidas pelosmais diversos países. Incluem-se ainda nes-sas considerações os crimes contra o Siste-ma Financeiro Nacional (Lei no 7.492, de 16de junho de 1986).

A Lei no 9.613, de 1998, foi posteriormen-te modificada pela Lei no 10.467, de 2002,significando um eficiente instrumento naluta contra as modalidades mais audacio-sas do crime organizado e de suas ilícitasconexões e sugerindo uma política de coo-peração internacional a ser realizada entreos países interessados.

Para promover uma ação internacionalcoordenada, o G-7, formado pelos sete paí-ses mais ricos do mundo, criaram, em 1989,a Financial Action Task Force ou o Grupo deAção Financeira sobre Lavagem de Dinhei-ro – GAFI/FATF – no âmbito da Organiza-ção para a Cooperação e DesenvolvimentoEconômico – OCDE –, para estabelecer polí-

ticas de controle de lavagem de dinheiro aserem utilizados pelos 29 Estados membros.Os procedimentos definidos pelo GAFI/FATF envolvem as mais diversas áreas deconhecimento, como finanças, justiça, rela-ções internacionais, administração fazendá-ria etc e foram compilados nas QuarentaRecomendações, que devem ser seguidaspelos países interessados no combate à la-vagem de dinheiro.

Os principais capítulos das QuarentaRecomendações do GAFI/FATF tratam dopapel dos sistemas jurídicos nacionais naluta contra a lavagem de dinheiro; do papeldo sistema financeiro na prevenção e com-bate à lavagem de dinheiro; e do reforço dacooperação internacional.

As Quarenta Recomendações são sem-pre revisadas a fim de se atualizarem osprocedimentos utilizados para coibir alavagem de dinheiro e as potenciais amea-ças futuras. O Brasil integra esse organismocomo membro efetivo, tendo passado poravaliação que constatou o cumprimentointegral das Quarenta Recomendações. OGAFI/FATF tem ainda a tarefa de estimu-lar a adoção das Quarenta Recomendaçõesaos países não-membros (ROMANTINI,2003).

Também a OEA – Organização dos Es-tados Americanos, com o propósito de com-bater as diferentes formas de práticas crimi-nosas, aprovou, em 1992, o “RegulamentoModelo sobre Delitos de Lavagem de Di-nheiro Relacionados com o Tráfico Ilícito deDrogas e Crimes Conexos”, elaborado pelaComissão Interamericana para o ControleAbusivo de Drogas – CICAD. O citado Re-gulamento é o principal instrumento reco-mendatório para o continente americano,buscando a harmonização das legislaçõesnacionais referentes ao combate à lavagemde dinheiro. O Regulamento Modelo tratada repressão e da prevenção do crime delavagem e da criação de um órgão centralpara combatê-lo em cada país. O Brasil par-ticipa ativamente das reuniões plenárias daCICAD.

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Num esforço conjunto contra o crime or-ganizado transnacional – narcotráfico, ter-rorismo, tráfico de armas e imigração ilegal–, Brasil e Estados Unidos assinaram, emoutubro de 1997, o Acordo de AssistênciaMútua em Assuntos Penais, MLAT (siglaem ingês de Mutual Legal Assistance Treaty).Esse acordo visa facilitar a quebra de sigilobancário a partir de operações em que hajaclara evidência de crimes de narcotráfico elavagem de dinheiro.

No Brasil, o órgão especializado paraaveriguar a prática de operações de lava-gem, nos moldes de uma FIU (FinancialIntelligence Unit), é o COAF, Conselho de Con-trole de Atividades Financeiras, que, criadopela citada Lei no 9.613/98, visa a imple-mentação de políticas nacionais voltadas aocombate à lavagem de dinheiro.

Com o intuito de promover a troca deinformações entre as Unidades Financeirasde Inteligência – FIUs, Bélgica e EstadosUnidos uniram-se para criar o Grupo deEgmont, um organismo internacional infor-mal de que fazem parte atualmente 48 FIUs.Em 1999, o Brasil, por meio do COAF, pas-sou a integrar o Grupo de Egmont, que com-pilou num relatório 100 casos provenientesde experiências colhidas pelas mais diver-sas FIUs relacionados à lavagem de dinhei-ro. O COAF, depois da devida tradução eadaptação das terminologias para o portu-guês, publicou o livro “Prevenção e Comba-te à Lavagem de Dinheiro. Coletânia de ca-sos do Grupo de Egmont”.

As FIUs de cada país recebem, analisame transformam as informações sobre ativi-dades suspeitas, e, tendo em vista o carátertransnacional do crime de lavagem de di-nheiro, é importante o inter-relacionamentodessas Unidades Financeiras de Inteligên-cia, que remetem as informações às autori-dades competentes dos Estados para queprocedam às medidas cabíveis.

Em sua maioria, as FIUs orientam-se deacordo com as recomendações contidas noGlobal Plan Against Money Laundering(GPML) ou Plano de Ação Contra Lavagem

de Dinheiro, uma das estratégias adotadaspela ONU, dez anos após a “Convenção deViena”, para o problema das drogas:

1. Adoção de legislação e programasnacionais para conter a lavagem de dinhei-ro até o ano 2002;

2. Adesão às diretrizes referentes à lava-gem de dinheiro e aos assuntos correlatoscontidas na “Convenção de Viena”;

3. Maior cooperação internacional e ju-dicial em casos envolvendo lavagem de di-nheiro;

4. Inclusão da lavagem de dinheiro comocrime em acordos de assistência legal mú-tua;

5. Estabelecimento de um regime efetivode regulação financeira que impeça os cri-minosos e os recursos ilícitos de penetra-rem no sistema financeiro;

6. Criação de procedimentos de identifi-cação e verificação que apliquem o conceitoknow your customer 5[conheça seu cliente];

7. Superação dos obstáculos que o sigilobancário impõe, dificultando a investigaçãoe a punição da lavagem de dinheiro;

8. Assistência contínua a instituições, or-ganizações e entidades comprometidas como controle da lavagem de dinheiro, princi-palmente por meio do oferecimento de pro-gramas de treinamento e cooperação téc-nica.

5. A atuação das instituições brasileirascontra a lavagem de dinheiro

5.1. Conselho de Controle de AtividadesFinanceiras – COAF

Criado pela “Lei da Lavagem de Dinhei-ro” e subordinado ao Ministério da Fazen-da, o COAF funciona como força-tarefa per-manente e é composto por servidores cedi-dos pelo Banco Central do Brasil – BACEN,pela Comissão de Valores Mobiliários –CVM, pela Superintendência de SegurosPrivados – SUSEP, pela Procuradoria-Geralda Fazenda Nacional – PGFN, pela Secreta-ria da Receita Federal – SRF, pela AgênciaBrasileira de Inteligência – ABIN, pelo

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Departamento de Polícia Federal – DPF epelo Ministério das Relações Exteriores –MRE.

Para que sejam submetidas à averigua-ção, as operações suspeitas de lavagem dedinheiro devem ser comunicadas ao COAFpelos órgãos de supervisão e fiscalização,como o Banco Central, a Comissão de Valo-res Mobiliários – CVM, a Secretaria de Pre-vidência Complementar – SPC, e a Superin-tendência de Seguros Privados, ou pelossetores que, não possuindo órgão regulador,são disciplinados pelo COAF, como empre-sas de factoring , bingos, administradoras decartões de crédito, loterias e sorteios, bolsasde valores e seus corretores.

Desde a sua criação até 2002, o COAFrecebeu 19.856 comunicações de operaçõessuspeitas, sendo 14.064 – aproximadamen-te 70% – provenientes do Banco Central doBrasil, o órgão regulador do Sistema Finan-ceiro Nacional, o que demonstra a provávelcirculação pelos bancos oficiais de recursosobtidos em atividades ilegais. O COAF rece-be também de outras fontes públicas ou par-ticulares denúncias sobre a prática de açõessuspeitas relacionadas à lavagem de dinhei-ro, assim como pedidos de informações dosórgãos envolvidos no combate a esse crime.

Após a análise das comunicações sus-peitas e denúncias, o COAF deve enviar re-latório às autoridades competentes – Minis-tério Público e Polícia Federal –, para quesejam tomados os procedimentos necessá-rios à abertura de inquérito policial e à con-denação dos culpados.

O COAF mantém ainda contato com asagências FIUs de outros países para trocade informações relacionadas a movimenta-ções suspeitas de recursos entre bancos in-ternacionais. Os indicadores que mais fre-qüentemente foram observados pelas FIUscomo indícios de lavagem de dinheiro e quemerecem comunicação a FIUs de outros pa-íses para futura investigação são: grandesmovimentações de dinheiro em espécie;transferência atípica ou não-justificável derecursos de e para jurisdições estrangeiras;

transação ou atividade comercial estranha;movimentações grandes e/ou rápidas derecursos; riqueza incompatível com o perfildo cliente; e atitude defensiva em relação aperguntas (COAF, 2001a).

5.2. Congresso Nacional e CPIs

Além de proceder às alterações e inova-ções na legislação “antilavagem”, o SenadoFederal e a Câmara dos Deputados, com ospoderes que lhes são reservados pela Cons-tituição Federal para proceder a investiga-ções6, vêm instaurando, nos últimos anos,comissões parlamentares de inquérito, emconjunto ou separadamente, com o intuitode coibir a lavagem de dinheiro e os crimesque a antecedem. Juntando-se aos demaisórgãos do Estado que combinam seus esfor-ços em prol dessa luta, as comissões parla-mentares de inquérito – CPIs – e as comis-sões parlamentares mistas de inquérito –CPMIs –, com a força política de que dis-põem, têm contribuído bastante para a dis-solução de organizações criminosas, inves-tigando os indícios de crimes de naturezaeconômica amplamente divulgados pelaimprensa do País e propondo o aperfeiçoa-mento de leis que versam sobre a matéria.

Com a divulgação pelos meios de comu-nicação dos trabalhos da CPI dos TítulosPúblicos ou “CPI dos Precatórios”, destina-da a “apurar irregularidades relacionadasa autorização, emissão e negociação de títu-los públicos, estaduais e municipais, nosexercícios de 1995 e 1996” (SENADO FE-DERAL, 1997), as investigações voltaram-se para a região de Foz do Iguaçu, que apre-sentava operações suspeitas que poderiamindicar lavagem de dinheiro. O Banco Cen-tral, então, enviou ao Ministério Público Fe-deral ofício em que comunicava àquele ór-gão regulador indícios de práticas de ilíci-tos penais na cidade de Foz do Iguaçu, combase no art. 22 da Lei no 7.492/86 – “Lei doColarinho Branco” –, que prevê pena a quem“efetuar operação de câmbio não autoriza-da, com o fim de promover evasão de divi-sas do País”.

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Como conseqüência, a Polícia Federalinstaurou aproximadamente 205 inquéritosem Foz do Iguaçu, que ainda não foram con-cluídos, tendo em vista a extensa documen-tação bancária a eles concernente, emborajá tenham sido solicitados pedidos de pri-são provisória de envolvidos.

Segundo relatório do Tribunal de Con-tas da União (TCU, 2001), a pouca disponibi-lidade de recursos reservados às instituiçõesresponsáveis pelas investigações relativas aoschamados crimes econômicos tem dificulta-do bastante a sua resolução. PINHEIROJÚNIOR (2003) define criminalidade econô-mica como “a potencialidade para lesar a es-trutura econômica do país em geral”.

A “CPI dos Precatórios” teve relevantesresultados, como o incentivo à aprovaçãoda Lei no 9.613, de 1998, e a formação deforças-tarefas integradas por servidores daSecretaria da Receita Federal, do Banco Cen-tral do Brasil e do Departamento de PolíciaFederal para investigação conjunta de ca-sos concretos.

Outra CPI que trouxe muitas informa-ções referentes a procedimentos suspeitosrelacionados à lavagem de dinheiro foi a“CPI do Narcotráfico”, cujo relatório, entre-gue em dezembro de 2000, apontou que o Bra-sil vem-se tornando bastante atrativo paraorganizações criminosas, que fazem circularno sistema financeiro nacional grandes quan-tias oriundas de suas atividades ilícitas. Su-gere ainda o aludido relatório a conivênciada instituição bancária brasileira, que, visan-do a crescentes lucros, acaba permitindo ope-rações com recursos de origem duvidosa.

Ainda com o intuito de investigar envol-vidos em crimes que possam anteceder alavagem de dinheiro, instalou-se no Con-gresso Nacional, em 2000, a “CPMI do Rou-bo de Cargas”, para “apurar o elevado cres-cimento de roubo de cargas (...) e de proce-der investigações no que concerne à lava-gem de dinheiro (...) por pessoas envolvidascom as quadrilhas (...)”. O relatório finaldessa CPMI concluiu que inúmeros são “osdesdobramentos e as conseqüências nefas-

tas advindas do roubo de cargas” e sua es-treita ligação com o crime organizado, quese mantém com a lavagem do dinheiro re-sultado de suas atividades ilegais. Com aconclusão dos trabalhos da “CPMI do Roubode Cargas”, foram propostas várias ações nosentido de prevenir, fiscalizar e reprimir o furtoe roubo de veículos e cargas, significandomais uma forma de coibir a ação de crimino-sos que se utilizam da lavagem de dinheiro.

A partir da comunicação pelo BancoCentral ao Tribunal de Contas da Uniãosobre a existência de indícios de remessasirregulares de divisas ao exterior por meiodas contas CC51 , da investigação realizadapela Polícia Federal, denominada OperaçãoMacuco, e da divulgação pela imprensa dosvalores e do nome dos prováveis envolvi-dos, houve a instalação, em junho de 2003,da “CPMI do Banestado”, que vem apuran-do as responsabilidades sobre a evasão deUS$30 bilhões, efetuada entre 1996 e 2002por meio das chamadas contas CC5.

A evasão de vultosos montantes, por sisó, já pressupõe movimentação suspeita eprecisa ser investigada, tendo em vista quea primeira etapa do processo de lavagem dedinheiro, a colocação, consiste na introdu-ção em outros países de recursos oriundosde crimes antecedentes. Com o objetivo decoibir a evasão de divisas, a “CPMI do Ba-nestado” deve apresentar seu relatório fi-nal em junho de 2004, apontando aquelesque se utilizaram das contas CC5 para fazê-lo e propondo alterações na legislação paramelhor fiscalizar a saída de dinheiro do País.

Com a superexposição na mídia brasi-leira das atividades da “CPMI do Banesta-do” relacionadas às investigações sobre oenvio de dólares por meio das contas CC5,houve uma queda expressiva nas operaçõescambiais vinculadas à sua movimentaçãono ano de 2003.

5.3. Departamento de Combate a IlícitosCambiais e Financeiros – DECIF

Como órgão regulador das instituiçõesbancárias, o Banco Central deve ser comu-

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nicado pelos bancos sobre qualquer movi-mentação suspeita em que haja indício delavagem de dinheiro, de acordo com a Lei n o

9.613/98. Esse Departamento foi criado, noâmbito desse Banco, justamente com a fina-lidade de centralizar as notificações recebi-das pelos bancos, que devem informar aoDecif qualquer solicitação de envio ao exte-rior de valor superior a R$10.000 (dez milReais), um critério objetivo que demandauma investigação posterior para análise dacompatibilidade financeira da pessoa quedeseja fazer a operação e de outros dados,como a origem do dinheiro e o recolhimentodos impostos devidos.

Após apuração, se ainda considerar sus-peitas a movimentação e as pessoas que asolicitaram, o Decif deve enviar relatório aoCOAF, que dará prosseguimento às demaisinvestigações necessárias.

5.4. Conselho da Justiça Federal – CJF

Recente pesquisa realizada pelo Centrode Estudos Judiciários do Conselho da Jus-tiça Federal apontou para um insignifican-te número de processos relacionados ao cri-me de lavagem de dinheiro em trâmite noPoder Judiciário, embora seja um delito queocupa as páginas dos principais jornais doPaís há algum tempo. Após entrevistas comDelegados Federais, Procuradores da Repú-blica e Juízes Federais em que se colheraminformações a respeito do combate à lava-gem de dinheiro que vem sendo realizadono Brasil e da aplicabilidade da Lei n o 9.613,de 1998, o Conselho da Justiça Federal, vin-culado ao Superior Tribunal de Justiça,criou, em setembro de 2002, a Comissão deEstudos sobre Crime de “Lavagem” de Di-nheiro.

Tendo já iniciado as suas atividades, essaComissão tem feito várias sugestões paraaprimorar a aplicação da lei e para comba-ter o crescimento do crime de lavagem dedinheiro, ressaltando a importância de umaunião de esforços em todos os âmbitos doGoverno Federal para enfrentamento dessamodalidade criminosa.

Para um controle mais eficiente dos pro-cessos que envolvem as práticas delituosasrelacionadas a essa modalidade criminosa,a Justiça Federal vem instalando, nas capi-tais, varas especializadas em crimes contrao sistema financeiro e de lavagem de dinhei-ro, atitude elogiada pelo já citado Grupo deAção Financeira sobre Lavagem de Dinheiro– GAFI.

5.5. Departamento de Recuperação de Ativos eCooperação Jurídica Internacional – DRCI

Criado em junho de 2003, no âmbito daSecretaria Nacional de Justiça, do Ministé-rio da Justiça, o DRCI é o primeiro órgãocuja função fim é recuperar principalmenteno exterior recursos provenientes de ativi-dades criminosas. É também responsável,além de coordenar as negociações de coo-peração judiciária com outros países, porarticular as ações dos órgãos brasileiros decombate à lavagem de dinheiro e à evasãode divisas.

Instalado recentemente, o Departamen-to de Recuperação de Ativos vem trabalhan-do intensamente contra a lavagem de dinhei-ro, auxiliando as investigações da PolíciaFederal e as ações do Ministério Público, daAdvocacia-Geral da União e do COAF.

6. Estratégia Nacional de Combate àLavagem de Dinheiro – Encla

Com vistas a adotar uma atuação coor-denada para prevenção e combate à lava-gem de capitais, autoridades dos PoderesExecutivo e Judiciário, bem como do Minis-tério Público Federal reuniram-se, em dezem-bro de 2003, em Pirenópolis (GO) a fim deestabelecer objetivos para a Estratégia Na-cional de Combate à Lavagem de Dinheiro– Encla. Criou-se, nesse encontro, o Gabine-te de Gestão Integrada de Prevenção e Com-bate à Lavagem de Dinheiro – GGI-LD, com-posto por servidores pertencentes a vinte edois órgãos federais. O objetivo desse Gabi-nete, que não terá estrutura formal nem cri-ará cargos, será produzir um constante e

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estreito contato entre os representantes des-ses órgãos no que se refere a ações integra-das contra a lavagem de dinheiro.

Entre as propostas apresentadas para aEncla, estão as relacionadas a mudançasnas normas para a circulação de informa-ções bancárias e fiscais, a fim de que o Paíspossa ter mais instrumentos para combatero crime organizado. Como a morosidade e adificuldade de acesso às movimentaçõesbancárias de pessoas e empresas facilitama dissimulação dos indícios de crime de lava-gem de dinheiro, representantes dos órgãospresentes no citado encontro propõem a fle-xibilização do direito ao sigilo bancário e obloqueio pelo Banco Central de operaçõessuspeitas de crime de lavagem de dinheiro.

Juntamente com o Gabinete de GestãoIntegrada de Prevenção e Combate à Lava-gem de Dinheiro – GGI-LD, que tem a res-ponsabilidade de coordenar as ações estra-tégicas dos órgãos a ele vinculados, no âm-bito de suas competências; com o COAF, quemantém a sua característica de agência deinteligência definida pelos moldes interna-cionais; e com as forças-tarefas específicasa serem criadas para operar em casos con-cretos, forma-se o Sistema Nacional de Pre-venção e Combate à Lavagem de Dinheiro.

Como produto da Estratégia Nacional deCombate à Lavagem de Dinheiro, Encla, fo-ram elaboradas 32 metas a serem compri-das no ano de 2004 pelos órgãos que for-mam o Sistema Nacional de Prevenção eCombate à Lavagem de Dinheiro. As metasreferem-se à apresentação de projetos demudanças na legislação brasileira, à elabo-ração de sistemas de informação e banco dedados para auxílio dos agentes públicos queatuam no combate à lavagem de dinheiroenvolvidos, à criação de cursos de capacita-ção e treinamento relacionados ao tema e àampliação da coordenação internacional.

7. Conclusões

Os mecanismos e recursos criados pelosavanços da tecnologia em telecomunicações

e informática para a movimentação nacio-nal e internacional de capitais têm facilita-do cada vez mais a retirada rápida, o inves-timento de curto prazo e o anonimato decontas bancárias, tornando intenso o fluxode dinheiro entre países. Os criminosos, porsua vez, procuram sempre atualizar e di-versificar seus procedimentos a fim de man-ter a clandestinidade de suas ações, fazen-do circular, como conseqüência, a cifra esti-mada de US$500 bilhões de dinheiro ilícitono sistema financeiro internacional, segun-do dados do Fundo Monetário Internacio-nal, divulgados pelo COAF.

Percebendo o caráter transnacional dalavagem de capitais ilícitos e do crime orga-nizado, os países vêm-se unindo cada vezmais por intermédio de órgãos e agênciasinternacionais integradas e de sistemas decooperação judiciária, numa tentativa dedificultar a ação das organizações crimino-sas, que fazem uso de múltiplas e modernasrotas para minimizar o impacto de uma even-tual ação do Estado.

A luta contra o narcotráfico tem signifi-cado combate também à lavagem de dinhei-ro, pois o crescimento e a manutenção dotráfico de drogas precisam da circulação doslucros ilícitos nos sistemas financeiros, o queurge um trabalho conjunto também de insti-tuições internas dos países, a fim de coibir edificultar o enriquecimento dos criminosos.

Desde a “Convenção de Viena”, em 1988,quando vários países firmaram acordo parao estabelecimento de ações que visassemcoibir a lavagem de dinheiro e os crimes cor-relatos, o Brasil, por intermédio de órgãosligados aos Poderes Executivo, Judiciário eLegislativo, ao Ministério Público Federal eao Banco Central, tem-se dedicado bastantea essa luta, formando grupos de trabalhomultidisciplinares e forças-tarefas em níveisestadual e federal para coibir o crime orga-nizado e, conseqüentemente, a circulação decapital ilícito e procurando investir no trei-namento de servidores e na estrutura neces-sária para obtenção de dados referentes amovimentações financeiras suspeitas.

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Como não resta dúvida de que os órgãosenvolvidos na apuração dos crimes de la-vagem de dinheiro devem trabalhar em equi-pe, proporcionando maior intercâmbio deinformações, rapidez nas investigações epadronização nas medidas a serem utiliza-das para a prevenção dessa complexa ativi-dade ilícita, formou-se no País o SistemaNacional de Prevenção e Combate à Lava-gem de Dinheiro, que apresentou importan-tes metas no final de 2003 a serem cumpri-das em 2004, para melhor atuação dos agen-tes públicos na luta contra a lavagem decapitais ilícitos.

Os constantes esforços de vários paísesrealizados desde a década de 80, para com-bater os prejuízos sociais e econômicos quea lavagem de dinheiro e os crimes que a an-tecedem têm causado à sociedade, trazendomudanças a leis e acordos de cooperaçãointernacionais, demonstram o reconheci-mento acerca da obtenção de resultadospositivos apenas e tão-somente com a exis-tência de integração e colaboração entre asnações.

8. Notas1 Art. 22, parágrafo único, da Lei no 7.492/86:

“Incorre na mesma pena quem, a qualquer título,promove, sem autorização legal, a saída de moedaou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósi-tos não declarados à repartição federal competen-te”.

2 Rubens Antonio Barbosa, diplomata, é o em-baixador do Brasil em Washington. Foi coordena-dor nacional do Mercosul (1991-93) e embaixadorno Reino Unido.

3 Art. 5o, XXXIX, da CF: “não há crime sem leianterior que o defina, nem pena sem prévia comi-nação legal”.

4 Art. 1o do Código Penal, Decreto-Lei no 2.848,de 7 de dezembro de 1940: “Não há crime sem leianterior que o defina. Não há pena sem prévia co-minação legal”.

5 Política desenvolvida em 2001 pelo Comitê deSupervisão da Basiléia que trata dos critérios míni-mos a serem adotados pelos bancos para aceitaçãode clientes.

6 Art 58, § 3o, e art. 71, VI, da Constituição daRepública Federativa do Brasil.

7 CC5 são as contas-correntes mantidas em ban-cos no Brasil autorizados a operar em câmbio. Fo-ram criadas a partir da Carta Circular no 5, de 27/02/1969, do Banco Central do Brasil, para servirtitulares não-residentes. As contas CC5 eram lar-gamente utilizadas por pessoas físicas e jurídicaspara converter ativos em moeda estrangeira e en-viá-los ao exterior, com pouca burocracia, para fu-gir do risco das desvalorizações do câmbio.

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1. IntroduçãoEm um mundo cada vez mais preocupa-

do com a proteção do meio ambiente e com aprópria sobrevivência do homem no plane-ta, a Convenção-Quadro da ONU sobreMudança do Clima, firmada em 1992 com opropósito de conter o aquecimento global eas mudanças climáticas que dele podemadvir, é hoje um dos acordos com maior vi-sibilidade no cenário internacional.

Embora a questão do aquecimento glo-bal seja muito complexa e ainda não estejasuficientemente conhecida pelo homem, amaioria dos cientistas acredita que crescen-tes concentrações na atmosfera dos gasescausadores do chamado “efeito estufa” 1 – aelevação da temperatura média do planeta– podem levar a mudanças dramáticas e ir-reversíveis no clima do mundo. A Conven-ção da ONU surgiu exatamente para darsuporte aos esforços conjuntos de todos ospaíses e estabelecer um compromisso inter-nacional de redução das emissões dessesgases.

Deseja-se com este artigo mostrar a im-portância da Convenção-Quadro sobre

Márcia Fortuna Biato

Convenção-Quadro das Nações Unidassobre Mudança do Clima

Márcia Fortuna Biato é Consultora Legisla-tiva do Senado Federal.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. JORGE LUIZFONTOURA NOGUEIRA.

Sumário1. Introdução; 2. As Questões Ambientais e

o Direito Internacional Público; 3. TratadosAnteriores à Convenção do Clima; 4. Conven-ção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima;5. Aplicação do Tratado; 6. Conclusões e Reco-mendações; 7. Referências Bibliográficas.

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Mudança do Clima, que constitui um mar-co importante tanto no trato das questõesambientais globais quanto na evolução dopróprio direito internacional público. Estetratado é fruto de um longo processo detransformação na maneira como o mundoencara os problemas ambientais e represen-ta a primeira iniciativa conjunta de tentarconter as rápidas alterações que o clima glo-bal poderá vir a sofrer como resultado daação do homem. Do ponto de vista do direi-to internacional, incorpora conceitos e prin-cípios que vêm se cristalizando ao longo dotempo, bem como mecanismos inovadores.

Para os países em desenvolvimento, emparticular, a Convenção pode representartambém uma forma de atrair recursos paracustear o desenvolvimento. No caso do Bra-sil, recursos externos poderão viabilizar pro-jetos de preservação ambiental e desenvol-vimento sustentável. O fato de o País nãoestar respondendo mais rapidamente àsoportunidades oferecidas por um mercadoavaliado em mais de US$ 10 bilhões é algoque merece ser analisado.

2. As Questões Ambientais e oDireito Internacional Público

Não é recente a preocupação do homemcom o meio ambiente. Platão, na Grécia an-tiga, por exemplo, reconhecia a importân-cia das florestas na preservação da água edo solo, e, em Roma, Cícero já criticava osque abatiam as florestas. Em 1306, a polui-ção do ar levou o Rei Eduardo I a proibir ouso, em Londres, de carvão em fornalhasabertas. No Brasil, ainda no início do perío-do colonial, Duarte Coelho combateu osaventureiros que pretendiam fazer fortunaderrubando árvores e matando animaispara vender suas peles. O Regimento doPau-Brasil, de 1605, exigiu expressa autori-zação real para o corte do pau-brasil e, em1799, o primeiro Regimento de Cortes deMadeiras estabeleceu rigorosas regras paraa derrubada de árvores. E, na primeira Con-ferência Brasileira sobre Proteção da Natu-

reza, realizada em 1934, já havia a consci-ência da possibilidade de extinção de mui-tas espécies e ecossistemas.

Mas foi a partir da II Grande Guerra[1939-45] que surgiu uma preocupação mai-or com a poluição atmosférica em si. A chu-va ácida contaminou rios e lagos escandi-navos e obrigou a comunidade internacio-nal a tomar conhecimento desta nova ame-aça ao meio ambiente. O fog londrino, a po-luição do rio Ruhr, o smog de Los Angeles,entre outros, contribuíram para intensificaressa consciência da vulnerabilidade ambi-ental. No final da década de 1960, diversoslivros de autores norte-americanos pintaramum futuro negro para o planeta Terra, e, em1972, o Clube de Roma apresentou um mo-delo gerado por computador que previa aexaustão de recursos naturais e crescentepoluição, chegando-se a um ponto em que aTerra não mais seria capaz de sustentar apopulação existente. Essas previsões pessi-mistas pareciam estar sendo corroboradaspor desastres como a contaminação da Baíade Minamata e a fome em Biafra.

Tais acontecimentos provocaram, nospaíses desenvolvidos, forte ansiedade emrelação ao futuro do planeta e, como resul-tado, a ONU foi levada a convocar uma Con-ferência para debater as ameaças ao meioambiente. A Conferência de Estocolmo, rea-lizada em 1972, foi um marco importante,pois, antes dela, os problemas ambientaisinternacionais haviam sido tratados de for-ma esporádica e ad hoc, e a ênfase se concen-trara na proteção de determinadas espéciesanimais e vegetais. A partir dessa Conferên-cia, surgiu uma consciência mais ecológica,que passou a se preocupar com o conjuntodos problemas ambientais.

Inúmeros desastres ambientais ocorri-dos na década de 1980 vieram reforçar anecessidade de medidas urgentes para evi-tar a recorrência de males irreparáveis. Nohemisfério norte, os verões com temperatu-ras bem acima do normal levaram a opiniãopública a exigir das autoridades a adoçãode medidas mais concretas, fazendo eco aos

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sinais de alarme emitidos por cientistas eclimatologistas.

Para permitir a adoção de medidas maisefetivas em escala global, o próprio direitointernacional precisou aventurar-se pornovos caminhos. Intensificaram-se as trans-formações que já vinham ocorrendo desde oinício do século XX: a comunidade interna-cional passou a abrir-se cada vez mais paranovos direitos e princípios, e os tratadosprecisaram contemplar novos atores e as-sumir novos formatos.

Na visão clássica da ordem jurídica po-sitiva, predominava o conceito de um siste-ma fechado, marcado pela coerência formale pela lógica interna. Hoje, contudo, preva-lece o sistema normativo sob forma de rede,que se destaca pela multiplicidade de suasregras, pela variabilidade de suas fontes e,principalmente, pela provisoriedade desuas estruturas normativas, que são quasesempre parciais, mutáveis e contingenciais(FARIA, JOSÉ EDUARDO, 1996. p. 8). Estenovo Direito conta com múltiplas cadeiasnormativas e microssistemas legais, capa-zes de capturar pragmaticamente a crescen-te complexidade da realidade socioeconômi-ca. Um dos reflexos desse desenvolvimento éa ampliação do campo de atuação do Direito.A título de exemplo, vale mencionar que maisde metade dos tópicos abordados na Confe-rência do Rio, em 1992, não haviam constadoda agenda da Conferência sobre Meio Ambi-ente realizada em Estocolmo em 1972.

Por outro lado, até o final da I GuerraMundial, a visão clássica que se tinha doDireito Internacional era a de um conjuntode normas direcionadas, quase que exclusi-vamente, às necessidades de manutençãode um status quo, de fonte voluntária, comforte base contratual, originada da vontadede Estados soberanos, que deste modo seautolimitavam. A partir do Tratado de Ver-salhes, de 1919, o mundo passou a reconhe-cer que, “para a consecução de qualquerobjetivo, em nível internacional, inclusive asobrevivência, não haveria outra possibili-dade senão conceber o Direito Internacio-

nal como um corpo de regras para o aperfei-çoamento desejável em suas relações recí-procas, pela via da cooperação” (SOARES,2002 volume 1, p. 31).

Esta necessidade de cooperação, entreoutros fatores, deu origem à diplomaciamultilateral institucionalizada, caracteriza-da por um número cada vez maior de trata-dos multilaterais.

Outra novidade foi a crescente partici-pação de organizações internacionais e não-governamentais. Embora o sujeito, por ex-celência, do direito internacional continuesendo o Estado, as organizações internacio-nais e intergovernamentais vêm desempe-nhando um papel cada vez mais ativo naformulação e no desenvolvimento desse di-reito, sobressaindo a atuação das NaçõesUnidas. E, a partir sobretudo da Conferên-cia do Rio, de 1992, as organizações não-governamentais também passaram a serconvidadas a participar.

O reconhecimento da fragilidade domeio ambiente levou à crescente conscienti-zação de que os seres humanos têm direitoa uma vida saudável e produtiva, em har-monia com a natureza. Surge, a partir daí, oconceito de desenvolvimento sustentável,definido como a forma de desenvolvimentoque satisfaz as necessidades das geraçõespresentes sem comprometer a capacidadedas gerações futuras de alcançar a satisfa-ção de seus próprios interesses.2 Outra prer-rogativa consagrada na Declaração de Es-tocolmo, de 1972, é a de que Estados têm odireito soberano de explorar seus própriosrecursos, de acordo com sua política ambi-ental, desde que suas ações, levadas a efeitodentro de sua jurisdição ou sob seu contro-le, não prejudiquem o meio ambiente de zo-nas situadas fora da jurisdição nacional.

Para que esses novos conceitos pudes-sem ser aplicados em escala mundial, foinecessário levar o Direito Internacional aacatar novos princípios. Um dos primeirosa ser mais amplamente aceito foi o de que osEstados têm uma responsabilidade ambien-tal. O Estado poluidor é responsável pelos

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prejuízos que causa aos demais e, por essarazão, cada Estado deve desenvolver umalegislação nacional relativa a esta respon-sabilidade, prevendo inclusive a indeniza-ção das vítimas de poluição e de outros da-nos ambientais.

Um segundo princípio que vem norte-ando o direito é o da solidariedade entregerações. Os Estados se obrigam a abando-nar políticas de desenvolvimento não sus-tentável, em respeito aos valores ambientais,tanto das gerações presentes quanto dasfuturas.

Outro princípio que tem sido cada vezmais importante no contexto ambiental é oda precaução, ou cautela. No Direito Inter-nacional tradicional, uma atividade não eraproibida ou restringida, a menos que hou-vesse um nexo causal direto entre o exercí-cio dessa atividade e os prejuízos a ela im-putados. No caso de muitos problemas am-bientais, a comunidade internacional vemaceitando o princípio da precaução, segun-do o qual atividades que constituem gravesameaças à humanidade podem ser restrin-gidas, antes mesmo que se chegue a umacerteza cientifica sobre seus efeitos.

Por fim, há o princípio das responsabili-dades comuns, mas diferenciadas, dos Es-tados. A idéia é distribuir o mais eqüitativa-mente possível os sacrifícios necessários àproteção dos recursos globais, segundo asrespectivas capacidades e condições soci-ais e econômicas.

Além de incorporar esses novos direitose princípios, o Direito Internacional viu-sena contingência de adotar novos formatosde tratados, mais condizentes com a com-plexidade e as incertezas inerentes aos te-mas tratados e com a dificuldade de obter-se um consenso global. A grande inovaçãofoi o surgimento da sistemática da Conven-ção-Quadro, novo tipo de tratado multilate-ral, dotado de grande flexibilidade.

Na descrição feita por Guido Silva Soaresde um tratado-quadro,

Os Estados-partes traçam grandesmolduras normativas, de direitos e

deveres entre eles, de natureza vaga eque, por sua natureza, pedem umaregulamentação mais pormenorizada.Para tanto, instituem, ao mesmo tem-po, reuniões periódicas e regulares, deum órgão composto de representan-tes dos Estados-partes, a Conferênciadas Partes, COP, com poderes delega-dos de complementar e expedir nor-mas de especificação, órgão esse au-xiliado por outros órgãos subsidiá-rios, técnicos e científicos, previstosno tratado-quadro, compostos de re-presentantes de cientistas e técnicosde todos ou de alguns dos Estados-partes. O conjunto normativo que seforma, dos dispositivos do tratado-quadro e das decisões das Conferên-cias das Partes, as COPs, deve for-mar um sistema harmônico, entre osmesmos Estados-partes submetidosa todas elas (SOARES, 2002 volume1, p. 63).

É a consolidação do chamado soft law,em que se exorta as partes contratantes aagir desta ou daquela maneira, mas semadotar normas capazes de obrigá-las a tan-to (SILVA, 2002. p. 31).

3. Tratados Anteriores àConvenção do Clima

Nas últimas décadas, a comunidade in-ternacional adotou inúmeros tratados deenorme importância na área ambiental. Épossível citar, a título de exemplo, a Con-venção sobre Comércio Internacional dasEspécies da Flora e da Fauna Selvagens emPerigo de Extinção, de 1973, a Convençãosobre o Direito do Mar, de 1982, a Conven-ção de Basiléia sobre o Controle de Movi-mentos Transfronteiriços de Resíduos Peri-gosos e Seu Depósito, de 1989, e a Conven-ção sobre Diversidade Biológica, de 1992.Nesta seção, contudo, serão examinadosapenas aqueles tratados que se relacionammais diretamente com o tema da mudançado clima.

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3.1. Conferência de Estocolmo - 1972

O primeiro tratado global na área domeio ambiente foi firmado por ocasião daConferência de Estocolmo, convocada pelaONU em virtude da preocupação crescente,sobretudo nos países desenvolvidos, com adegradação ambiental do planeta.

No inicio, a idéia de realizar uma Confe-rência das Nações Unidas sobre meio ambi-ente não teve repercussão positiva entre ospaíses em desenvolvimento. No caso de al-guns, a reação chegou a ser antagônica,como ocorreu com o Brasil. Uma das razõesera que a Década do Desenvolvimento daONU chegava ao fim com poucos resulta-dos, e a Conferência de Estocolmo era enca-rada por aquele grupo de países como táti-ca diversionista, tendente a relegar os pro-gramas de desenvolvimento a um segundoplano. Mais importante ainda, as questõesambientais tinham relevância secundáriapara os países em desenvolvimento, poissupunham eles que os grandes desafios seconcentravam na pobreza e suas seqüelas(SILVA, 2002. p. 27).

Nas reuniões preparatórias, o represen-tante brasileiro chegou a criticar “a filosofiainaceitável que busca um equilíbrio ambi-ental global, na qual certas áreas ou regiõesdevem ser consideradas intactas, capazesde compensar os fatores de poluição cria-dos em abundância nos países desenvolvi-dos” (SILVA, 2002. p. 27).

A Assembléia Geral da ONU aceitou essacrítica e recomendou à Comissão Prepara-tória incluir nas suas sessões a discussãode itens específicos relativos a aspectos eco-nômicos e sociais de interesse dos paísesem desenvolvimento. O objetivo era permi-tir a estes países harmonizar seus planosnacionais de desenvolvimento com umapolítica ambiental mais consciente.

Uma das principais virtudes da Decla-ração de Estocolmo reside em haver reco-nhecido que os problemas ambientais dospaíses em desenvolvimento eram e continu-arão sendo distintos dos problemas dospaíses industrializados:

Entre os países desenvolvidos,grande parte dos problemas ambien-tais decorria da intensificação do usodos recursos naturais por tecnologiassofisticadas, alto consumo energéticoe um padrão de consumo de bens in-dustrializados que gera desperdício eresíduos. Em contrapartida, nos paí-ses em desenvolvimento, problemasdemográficos, pobreza e exaustão dasterras estariam levando a uma degra-dação ambiental igualmente grave(NEDER, 2002. p. 32).

Apesar de não ter adotado normas maisrígidas, a Conferência exerceu influenciadecisiva. A biosfera foi identificada comoalgo a ser preservado e inserida na agendada política nacional e internacional. Criou-se o Programa das Nações Unidas para oMeio Ambiente (PNUMA), o primeiro pro-grama internacional com um mandato ex-clusivamente ambiental. A Declaração finalcontém 26 princípios que tratam dos direi-tos e das obrigações de indivíduos e gover-nos no tocante à preservação do meio ambi-ente. Muitos foram incorporados a tratadosinternacionais posteriores. Os mais signifi-cativos são:

• Direito a um meio ambiente de quali-dade (Princípio 1).

• Responsabilidade em relação às gera-ções futuras (Princípios 1, 2 e 5).

• Direito de um país de explorar seusrecursos de acordo com suas políticas am-bientais e obrigação de não provocar preju-ízos transfronteiriços (Princípio 21).

• Obrigação dos estados de cooperarpara desenvolver uma legislação internacio-nal que trate de responsabilidade e indeni-zação por prejuízos extraterritoriais. (Prin-cípio 22).

3.2. Convenção de Viena para aProteção da Camada de Ozônio - 1985

Outro tratado de grande importância foia Convenção de Viena para a Proteção daCamada de Ozônio, assinada em 1985. Seupropósito é o de proibir o uso dos cloroflu-

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orcarbonetos, conhecidos como CFCs, quedestroem o ozônio na atmosfera3.

Em 1974, foi dado o primeiro sinal dealarme em relação aos malefícios dos CFCs,até então tidos como gases quase perfeitos,sem cheiro, sem sabor e de longa duração.Estudos realizados em laboratórios mostra-ram que os CFCs atacavam e destruíam acamada de ozônio. Em 1978, o Governo dosEstados Unidos passou a proibir o uso dosCFCs em aerossóis, sendo o seu exemplo logoseguido pelo Canadá e pelos países escan-dinavos.

Por iniciativa do Programa das NaçõesUnidas para o Meio Ambiente, doravantereferido como PNUMA, foi criado, em 1982,um grupo de peritos em questões legais etécnicas, com a incumbência de preparar umesboço de Convenção para a Proteção daCamada de Ozônio. O grupo tinha a res-ponsabilidade de submeter à comunidadeinternacional um projeto pautado em supo-sições, visto que não havia ainda qualquerprova concreta de dano à camada de ozô-nio, provocado pelos CFCs. Diante de tan-tas incertezas, adotou-se o modelo de umaconvenção com princípios genéricos, quepermitiria, ao longo do tempo, a negociaçãode metas quantitativas mais específicas.Dependendo dos avanços no conhecimen-to científico, novos protocolos poderiam seraprovados, com novas medidas de proteçãoà ozonosfera. O projeto foi discutido e apro-vado em março de 1985, na Conferencia re-alizada em Viena. As ratificações necessá-rias para a sua entrada em vigor foram rapi-damente obtidas, inclusive do Brasil.

Antes mesmo de serem ultimados os tra-balhos de elaboração do esboço da Conven-ção, o grupo de peritos começou a estudarum projeto de protocolo, que fora submeti-do pelos países escandinavos, mediante oqual se propunha a adoção de regras pe-remptórias para limitar a fabricação e utili-zação de CFCs. Houve forte oposição dospaíses europeus, responsáveis pela fabrica-ção e uso de aproximadamente 85% dosCFCs. Depois de longos e infrutíferos deba-

tes, ficou decidido que uma série de traba-lhos preparatórios seriam encetados nosdois anos seguintes, em busca de uma solu-ção.

A revelação feita, em maio de 1985, porcientistas ingleses, de que ocorrera perda de40% na camada de ozônio acima da Antár-tida, criou forte impacto na opinião públi-ca. Depois de um verão quentíssimo na Eu-ropa, de queimadas na Amazônia e dos in-formes de cientistas sobre os perigos do efei-to estufa, a opinião pública européia pas-sou a pressionar em favor da proibição dosCFCs. Em setembro de 1987, quando da as-sinatura do Protocolo de Montreal sobresubstâncias que destroem a camada de ozô-nio, as delegações dos países da União Eu-ropéia passaram a advogar soluções bemmais severas que as defendidas pelos Esta-dos Unidos, que, desse modo, deixaram deser o país mais empenhado na adoção demedidas de controle de produção e utiliza-ção de CFCs. Com base nos dados relativosao consumo em 1986, as partes contratan-tes se comprometeram a diminuir a produ-ção e o consumo desses gases em 50%, até1998-94.

3.3. Conferência da ONU sobre MeioAmbiente e Desenvolvimento – 1992

Constatando que o progresso em maté-ria ambiental fora insignificante nos vinteanos que se seguiram à Conferência de Es-tocolmo, a Assembléia Geral da ONU deci-diu pela convocação de uma nova conferên-cia, desta vez no Rio de Janeiro, a ECO-92.Estiveram presentes 178 delegações, inclu-sive chefes de estado ou de governo, de 115países. Além de dar grande visibilidade auma série de questões ambientais, produ-ziu a Declaração do Rio, a Agenda 21 e ain-da viu a assinatura das Convenções-Qua-dro sobre Mudança do Clima e sobre Biodi-versidade.

A Agenda 21, que contém o pensamentoda Conferência sobre poluição atmosférica,reitera o direito à vida saudável e produti-va, em harmonia com a natureza. E consa-

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gra a tese de que o direito ao desenvolvi-mento abarca tanto as necessidades de de-senvolvimento quanto as exigências ambi-entais de gerações presentes e futuras. Daí aimportância de se promover o desenvolvi-mento sustentável. Os países em desenvol-vimento conseguiram fazer valer sua posi-ção de que as necessidades de desenvolvi-mento de um país não deveriam estar su-bordinadas de forma absoluta a considera-ções ambientais. A idéia de direito sobera-no era importante para contrapor-se à posi-ção de alguns países desenvolvidos que ar-gumentavam que, em se tratando de ques-tões de meio ambiente, o conceito de sobera-nia deveria ser revisto. Quis-se criar umaentidade supranacional, bem como sanções,inclusive econômicas, contra países queapresentassem má conduta em matéria deproteção ambiental.

A poluição atmosférica foi indiscutivel-mente a questão mais controvertida da Con-ferência do Rio sobre Meio Ambiente, querdo ponto de vista ecológico, quer do pontode vista político. A obstinada oposição dosEUA à Convenção sobre Mudança do Cli-ma foi para o grande público o aspecto polí-tico mais importante, mas não o único. Ará-bia Saudita e Kuwait também buscaramimpedir o andamento das negociações. Poroutro lado, a defesa do projeto revestia-sede suma importância para alguns peque-nos países em desenvolvimento, para osquais a estabilização dos níveis de emissõesde gases de efeito estufa era questão de vidaou morte. Pequenos países do Pacífico e doCaribe, geralmente pequenas ilhas, poderiamdesaparecer na hipótese de o aquecimentoglobal provocar o degelo das calotas pola-res e elevar o nível do mar.

4. Convenção-Quadro da ONUsobre Mudança do Clima 4.1. Considerações Gerais

Na década de 1980, as mudanças climá-ticas se haviam transformado em tema polí-tico controvertido. Reconhecendo a neces-

sidade das autoridades de obterem informa-ções científicas atualizadas e confiáveis so-bre a questão, a Organização MeteorológicaMundial e o PNUMA criaram, em 1988, oPainel Intergovernamental sobre MudançasClimáticas (IPCC, em inglês).

Em 1990, o Painel emitiu seu primeirorelatório de avaliação, confirmando que aação do homem poderia estar causando oagravamento do efeito estufa e recomendan-do um tratado global para lidar com a ques-tão. Em dezembro do mesmo ano, a Assem-bléia Geral da ONU fez a abertura formaldas negociações, que foram conduzidas poruma Comissão Negociadora Intergoverna-mental (INC, em inglês).

Em 9 de maio de 1992, a INC adotou, porconsenso, a Convenção-Quadro da ONUsobre Mudança do Clima, que foi aberta àassinatura, em 4 de junho de 1992, durantea Conferência da ONU sobre Meio Ambien-te e Desenvolvimento (ECO-92), no Rio deJaneiro. A Convenção entrou em vigor nodia 21 de março de 1994, noventa dias apósa data de depósito do qüinquagésimo ins-trumento de ratificação, aceitação, aprova-ção ou adesão. Hoje, 186 países (incluindoos da Comunidade Européia) já são partesna Convenção, o que representa uma parti-cipação quase universal.

O objetivo primordial do tratado é o deestabilizar as concentrações atmosféricasdos gases de efeito estufa em níveis que evi-tem uma interferência humana “perigosa”para o clima mundial.

Como no início da década de 1990 nãohavia ainda tanta convicção ou consensosobre como proceder em relação às mudan-ças climáticas, optou-se por seguir procedi-mento semelhante ao aplicado pela Conven-ção para a Proteção da Camada de Ozônio.Adotou-se uma Convenção geral que esta-belece princípios e instituições, e permite oinício de um processo de negociação. De-pois, à medida que os conhecimentos cien-tíficos fossem aprofundados, as Partes ado-tariam protocolos e ajustes para aperfeiçoaros procedimentos.

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A Convenção-Quadro requer a reduçãonas emissões dos gases de efeito estufa, dosquais o dióxido de carbono (CO2), o metano(CH4) e o óxido nitroso (N20) são os princi-pais5. Os gases de efeito estufa, embora cor-respondam a menos de 0,001% da atmosfe-ra – que é constituída sobretudo de oxigê-nio (21%) e nitrogênio (78%) –, são fundamen-tais para preservar o calor no planeta. Noentanto, se as emissões continuarem aumen-tando nas taxas atuais, os cientistas anteci-pam um aquecimento da ordem de 1,5 a 4,5graus centígrados nos próximos 100 anos e,conseqüentemente, mudanças significativasnos ciclos de chuva e vento, e no nível do mar.

A Convenção não quantificou de modorigoroso os níveis de emissões a serem al-cançados, porque o conhecimento cientifi-co da época não permitia tal precisão, masrecomendou que esses níveis, sejam quaisfossem, deveriam ser alcançados em umperíodo de tempo que permitisse aos ecos-sistemas se adaptarem naturalmente àsmudanças climáticas, de modo a não haverameaça à produção de alimentos e ao de-senvolvimento econômico sustentável.

O propósito da Convenção foi o de ser-vir como ponto de partida para as açõesvoltadas para a redução das emissões. Seuarcabouço flexível permitiria aos países tor-nar as exigências mais ou menos rigorosas,dependendo de novas descobertas cientifi-cas e dos riscos que a comunidade interna-cional estivesse disposta a aceitar.

Uma das vantagens desse arranjo con-sistiu em permitir que os países começas-sem a discutir a questão, antes mesmo quese tivesse chegado a um consenso sobre amagnitude do problema. E como nenhumpaís quis se sentir excluído, criou-se umacerta legitimidade para a questão e tambémuma certa pressão para que todos os paíseslevassem o problema a sério.

A Convenção reafirma muitos dos prin-cípios enumerados em tratados anteriores ereconhece a soberania dos Estados, mas ino-va, ao lembrar que “a natureza global damudança do clima requer a maior coopera-

ção possível de todos os países e sua parti-cipação em uma resposta internacional efe-tiva e apropriada, conforme suas responsa-bilidades comuns mas diferenciadas e res-pectivas capacidades e condições sociais eeconômicas”6.

Além disso, a Convenção reconhece que“a maior parcela das emissões globais, his-tóricas e atuais, de gases de efeito estufa éoriginária dos países desenvolvidos, que asemissões per capita dos países em desenvolvi-mento ainda são relativamente baixas, e quea parcela de emissões globais originárias dospaíses em desenvolvimento crescerá paraque eles possam satisfazer suas necessida-des sociais e de desenvolvimento”7. Reco-nhece ainda a especial vulnerabilidade depaíses específicos, como os caracterizadospela baixa altitude, pelas regiões insulares,pela fragilidade de seus ecossistemas, e atéos que dependem pesadamente da produ-ção e utilização de combustíveis fósseis. Poressas razões, todos os países são agrupa-dos em duas principais categorias.

Os países industrializados que histori-camente mais contribuíram para as mudan-ças climáticas estão listados no Anexo I. Estegrupo de 41 países inclui os 24 paísesrelativamente mais ricos, que, em 1992, erammembros da Organização para a Coope-ração e o Desenvolvimento Econômico(OCDE) (também listados no Anexo II), e ospaíses com economias em transição (EITs),inclusive a Federação Russa, os EstadosBálticos e vários estados da Europa Orien-tal e Central. Os demais países, em númerode 145, são basicamente classificados comoem desenvolvimento.

Os países que constam do Anexo I têmemissões per capita mais altas que as dospaíses em desenvolvimento e maior capaci-dade financeira e institucional para lidarcom as conseqüências das mudanças climá-ticas. Por isso, se comprometem a adotarmedidas que baixem suas taxas de emissõesaos níveis de 1990. As 24 nações integran-tes da OCDE (Anexo II) têm a obrigação adi-cional de prestar “recursos financeiros no-

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vos e adicionais” aos países em desenvolvi-mento, para ajudá-los a enfrentar as conse-qüências das mudanças climáticas. Têmigualmente a obrigação de facilitar a trans-ferência de tecnologias propícias à preser-vação do clima, tanto para países em desen-volvimento quanto para os países EIT.

Os recursos oriundos dos países do Ane-xo II são canalizados sobretudo por inter-médio do mecanismo financeiro da Conven-ção, operado pelo Mecanismo AmbientalGlobal (Global Environment Facility – GEF)8.Esse fundo destina-se a prover recursos fi-nanceiros, a fundo perdido ou em condiçõesfavorecidas, para auxiliar os países em de-senvolvimento a implementar a Convençãoe tratar da mudança do clima. Os recursospodem servir inclusive para fins de transfe-rência de tecnologia.

No intuito de reduzir as emissões, a Con-venção requer das Partes que levem em contaas implicações, para o clima, de suas políticaseconômicas, sociais e ambientais, nas áreasde agricultura, energia, recursos naturais eatividades que envolvam os litorais. Mais es-pecificamente, as Partes se comprometem a:

• Elaborar, manter atualizados e divul-gar inventários nacionais das emissões an-trópicas por fontes e dos gases de efeito es-tufa não controlados pelo Protocolo de Mon-treal que foram reabsorvidos. Essas infor-mações permitirão monitorar as mudançasem emissões e determinar o impacto dasmedidas adotadas;

• Promover o desenvolvimento e a difu-são de tecnologias que reduzam essas emis-sões em todos os setores pertinentes, parti-cularmente nos setores de energia, transpor-tes, indústria, agricultura, silvicultura e ad-ministração de resíduos;

• Cooperar nos preparativos para aadaptação aos impactos da mudança doclima;

• Promover e cooperar no intercâmbiode todas as informações relativas ao siste-ma climático.

Os países que constam do Anexo I de-vem submeter relatórios regulares, conheci-

dos como comunicações nacionais, que de-talham suas políticas e medidas para pre-servar o clima. A maioria desses países jáencaminhou duas comunicações nacionais.Além disso, devem apresentar um inventá-rio anual de suas emissões de gases de efei-to estufa, bem como os dados para o anobase de 1990.

Os países classificados como EIT gozamde um certo grau de flexibilidade e alguns jáelegeram adotar como referencial de volu-me de emissões anos anteriores a 1990, ouseja, quando ainda não haviam sofrido asgrandes modificações econômicas que leva-ram a uma forte queda nas emissões.

Os países classificados como em desen-volvimento, embora também sujeitos a apre-sentar relatórios sobre as medidas tomadase inventários de emissões em seus países,têm obrigações e prazos mais flexíveis. Osinventários de emissões, por exemplo, nãoprecisam ser apresentados anualmente, e, atéhoje, apenas cerca de 80 desses países já en-caminharam seu primeiro relatório nacional.

Além de estipular a necessidade de re-dução de emissões, a Convenção fixa proce-dimentos a serem adotados pela Conferên-cia das Partes, órgão supremo do tratadoque se reúne anualmente e está encarrega-do de promover a efetiva implementação daConvenção. Também institui um órgão sub-sidiário de assessoramento científico e tec-nológico responsável por avaliar o estadodo conhecimento científico relativo à mu-dança do clima, os impactos da implemen-tação da Convenção, e as tecnologias e co-nhecimentos técnicos inovadores.

A Convenção traz quatro anexos. OsAnexos I e II, como já mencionado, classifi-cam os países com maiores ou menores obri-gações, o Anexo A lista os gases de efeitoestufa e as categorias de fontes desses ga-ses, e o Anexo B lista o compromisso de re-dução de emissões de cada país.

4.2. Protocolo de Quioto

Durante a década de 1990, a ONU per-cebeu que os compromissos voluntários fir-

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mados na Convenção não seriam suficien-tes para enfrentar adequadamente o proble-ma, nem estavam sendo cumpridos adequa-damente. Reconheceu também que seria di-fícil para os países cumprir as metas e im-por sacrifícios à sua população. Como re-sultado de longas negociações, foi apro-vado, em dezembro de 1997, na cidade deQuioto, o Protocolo que, entre tantas outrascoisas, transformava as reduções voluntá-rias em obrigatórias e ainda introduzia “me-canismos” inovadores destinados a redu-zir o custo desses cortes nas emissões.

O objetivo principal era amenizar as di-ficuldades a serem enfrentadas pelos paí-ses na hora de reduzir as emissões. Por isso,precisava preservar o meio ambiente, semprejudicar, de forma excessiva ou desneces-sária, o desenvolvimento econômico e social.Adotou-se então uma estrutura flexível quedá aos países a escolha de quais gases re-duzir (bastando para isso haver um fator deconversão entre eles), em que anos fazer aredução (pois o inverno poderá ser muitofrio e exigir mais energia), e ainda aceita acompensação de redução de emissões entrepaíses.

O Protocolo trabalha com um processode longo prazo constituído de períodos decompromisso de cinco anos cada. Para oprimeiro período, de 2008 a 2012, estabele-ce que a emissão dos gases deve ser reduzi-da até atingir um nível 5,2% menor do que oíndice global registrado em 1990. Os paísestêm até 2008 para implementar esses pro-gramas, comprovando a redução durante oprimeiro período de compromisso. Em 2005devem começar as negociações para o se-gundo período de compromisso, provavel-mente entre 2013 e 2017. A idéia é pôr emfuncionamento um processo contínuo deimplementação e negociação, que se fortale-cerá à medida que houver um aprofunda-mento do conhecimento científico e um for-talecimento da vontade política.

Para facilitar o cumprimento das metas,o Protocolo permite às Partes abater do seutotal de emissões o volume de gases que são

retirados da atmosfera por meio de “sumi-douros”9 de carbono. Esse “seqüestro decarbono” se dá por meio de projetos de mu-dança do uso da terra e de manejo florestal.As emissões retiradas da atmosfera por meiode atividades permitidas pelo Protocolo ge-ram créditos conhecidos como unidades re-movidas (removal units – RMUs).

Adicionalmente, cria três mecanismosconhecidos como implementação conjunta,mecanismo de desenvolvimento limpo e co-mercialização de emissões.

No mecanismo de implementação con-junta, um país do Anexo I pode implemen-tar projetos que reduzam emissões (projetosde eficiência energética, por exemplo) ou queabsorvam essas emissões (de reflorestamen-to, por exemplo) no território de outro paísdo Anexo I, e abater as respectivas unidadesde redução de emissão (emission reduction units- ERUs) de sua própria meta.

No mecanismo de desenvolvimento lim-po – destinado a auxiliar os países em de-senvolvimento a atingir o desenvolvimentosustentável e contribuir para a redução deemissões –, os países do Anexo I podem in-vestir em projetos de redução de emissões10,localizados em países fora do Anexo I, e re-ceber créditos (Certified Emission Reductions– CERs) por essa redução.

Há ainda a previsão de comércio de emis-sões, num sistema global de compra e ven-da conhecido como Leilão de Certificado deEmissões. A moeda de padronização é o“carbono equivalente”, ou seja, quantas to-neladas de carbono correspondem à redu-ção do gás que está sendo eliminado. Qual-quer país do Anexo I que tenha ratificado oProtocolo pode transferir um certo montan-te de unidades (Assigned Amount Units –AAUs) para outro país do Anexo I que este-ja com mais dificuldade de atingir suas me-tas de emissões, desde que cumpra com asobrigações metodológicas e de notificaçãoprevistas no Protocolo, e que comprove queessas ações constituem um complemento àsiniciativas domésticas. Empresas, ONGsambientais e outras pessoas jurídicas po-

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dem participar do mecanismo, sob a respon-sabilidade de seus governos.

Esses mecanismos têm o mérito de aju-dar os países industrializados a cumprirsuas metas, pois permitem que eles patroci-nem projetos de redução de emissões empaíses onde o custo é menor e depois conta-bilizem essa redução a seu favor. Como, paraa atmosfera como um todo, não importa olocal da redução de emissões, todos saemganhando, países desenvolvidos e em de-senvolvimento.

4.3. Conferência das Partes de Marraqueche

O Protocolo de Quioto limitou-se a esta-belecer os princípios gerais dos três novosmecanismos. Por isso, a Conferência dasPartes realizada em Marraqueche, em 2001,aprovou dispositivos que detalham a imple-mentação do Protocolo de Quioto e que sãoparticularmente importantes para os paísesem desenvolvimento. Criou-se um grupo deespecialistas em transferência de tecnologia,encarregados de estimular o desenvolvi-mento e a transferência de tecnologias commenor impacto no clima. No âmbito do GEF,foram ampliadas as atividades qualificadaspara financiamento e criados três novos fun-dos, voltados para a capacitação, transfe-rência de tecnologia, preparação para asmudanças climáticas e diversificação eco-nômica dos países altamente dependentesde combustíveis fósseis.

Há os que acreditam que, com o detalha-mento trazido pelos Acordos de Marraqueche,os países do Anexo I se sentirão mais segurospara ratificar o Protocolo. A cada dia, torna-se mais importante assegurar a entrada emvigor do Protocolo, pois o IPCC vem com-provando os temores em relação aos efeitosdos gases estufa. O Relatório de 1990, quemotivou a Assembléia Geral da ONU a con-vocar a negociação da Convenção-Quadrosobre Mudança do Clima, não afirmava comcerteza a responsabilidade do homem peloaquecimento solar. O relatório de avaliaçãode 1995, que serviu de embasamento técni-co e cientifico para a decisão política de ini-

ciar a negociação do Protocolo de Quioto,indicou haver um razoável grau de certezade que o aumento da temperatura, no ulti-mo século, era conseqüência da ação dohomem. Já o relatório de 2000 conclui cate-goricamente que cerca de 0,6°C do aumentoobservado na temperatura nos últimos 100anos é resultado da ação do homem.

5. Aplicação do Tratado 5.1. Dificuldades na

Implementação da Convenção

O Protocolo de Quioto foi aberto à firmaentre 16 de março de 1998 e 15 de março de1999. Nesse período, oitenta e quatro paísesassinaram o Protocolo, incluindo todas asPartes do Anexo I menos duas, o que indicaa aceitação do texto e a intenção de se torna-rem Partes nele. Contudo, o Protocolo só“entra em vigor no nonagésimo dia após adata em que pelo menos 55 Partes da Con-venção, englobando as Partes incluídas noAnexo I que contabilizaram no total pelomenos 55 por cento das emissões totais dedióxido de carbono em 1990 das Partesincluídas no Anexo I, tenham depositadosseus instrumentos de ratificação, aceitação,aprovação ou adesão.” 11 Em 26 de no-vembro de 2003, 120 nações haviam rati-ficado, aceitado, aprovado ou ascendido aoProtocolo, representando 44,2 % das emis-sões12.

O principal responsável pela demora naentrada em vigor do Protocolo é o governonorte-americano, que não aderiu e faz críti-cas veementes ao Protocolo, apontando-ocomo um golpe contra a economia e os em-pregos nos Estados Unidos. Os americanosrespondem sozinhos por 36,1% das emis-sões de gases poluentes no mundo e teriamde fazer grandes investimentos para aten-der às metas de redução, com reflexos nasua atividade econômica. A posição da ad-ministração Bush influencia países como aAustrália, que acabou se manifestando con-tra o Protocolo, e a Rússia, que ainda não sedecidiu.

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Apesar de todos os países desejarem evi-tar os males do aquecimento global, as pro-fundas divergências em relação à reparti-ção dos ônus dificultam a implementaçãodo tratado.

Há os que acreditam que quem chegouprimeiro tem direito adquirido. Cada paísdeveria ter o direito de manter suas emis-sões per capita . Ocorre que as emissões estãoassociadas às necessidades de energia e dedesenvolvimento e, a valer esse princípio, ospaíses em desenvolvimento não poderiamcrescer, pois isso, inevitavelmente, aumenta-ria as emissões.

Outros países aderem à teoria da contra-ção e convergência, que dá a cada cidadãodo mundo igual direito de emissão. Se der-mos um título para cada um e se alguémemitir menos, outro poderá emitir mais.Apesar de constituir uma atitude bastanteutópica, fortalece a posição daqueles quequerem comprar o direito de poluir. E a “dis-seminação de um mercado chamado ‘direi-to de poluir’, ou mercado das normas deemissão, não representa eternizar a misériade muitos em proveito dos países já desen-volvidos?” (MACHADO, 2002. p. 31)

Há também aqueles que criticam o Pro-tocolo por quantificar a redução de emis-sões apenas em termos de dióxido de carbo-no. De fato, o Anexo B só cita os compromis-sos em termos do CO2 – porque é o gás maisabundante e também aquele cujas fontes sãomais bem conhecidas –, mas os termos dotratado prevêem a redução de CO2 e outrosgases de efeito estufa. Os defensores desseenfoque abrangente, em particular os Esta-dos Unidos, argumentam que deveria serpermitido aos países cumprir seus compro-missos com a redução de qualquer dos ga-ses de efeito estufa. Se houvesse essa flexibi-lidade, cada país poderia escolher a combi-nação mais eficiente e barata de gases a se-rem reduzidos. O argumento faz sentido,mas muitos o consideram um pretexto parapedir mais pesquisas e ganhar tempo.

Por fim, há os que sustentam que o po-luidor deve pagar. Neste caso, para cada

grau Celsius em que é aumentada a tempe-ratura global, seriam feitas as contas paraverificar qual a responsabilidade de cadapaís.

Os Estados Unidos, os maiores críticosdo Protocolo, vêm-se manifestando contraimposições quantitativas. Pleiteiam um sis-tema global de comércio de emissões, seme-lhante ao mecanismo já usado naquele paíspara reduzir o dióxido de enxofre (SO2), res-ponsável pela chuva ácida. Lá, são distri-buídas quotas de emissão que podem sercomercializadas. Os norte-americanos afir-mam que uma solução de mercado pode re-solver o problema do aquecimento terrestrecom uma melhor relação de custo-benefício.Esse mecanismo pode até ser eficiente, mastraz embutida, entre outras, a dificuldadetécnica de se definir quotas de emissão paraas diversas fontes, em todo o mundo. Alémdisso, se a redução de emissões for reduzi-da a uma questão de mercado, não há dúvi-da de que os mais ricos sairão ganhando: ospaíses mais poluidores, os mais ricos, emsua maioria, poderão pagar para continuarpoluindo em alguma medida, enquanto osdemais receberão para não poluir mais epara tirar da atmosfera, com suas florestas ematas, o dióxido de carbono ainda produ-zido por seus financiadores. E há ainda umagravante. Tudo indica que “os setores quemais poluem estariam agora se preparandopara ganhar muito dinheiro com o comér-cio de licenças e a venda de tecnologias lim-pas”. (FARIA, CARMEN, 1999. p. 71).

Os norte-americanos também se recusama submeter-se ao Protocolo enquanto os pa-íses em desenvolvimento não assumiremmetas de redução de emissões. O Brasil, ape-sar de reconhecer que a médio e longo pra-zo os países em desenvolvimento terão decomprometer-se com quedas nas emissões,defende proposta segundo a qual é precisomensurar a responsabilidade histórica e atu-al de cada país no processo de aquecimentoterrestre (FARIA, CARMEN 1999. p. 72).

Um outro desafio a ser enfrentado peloProtocolo diz respeito ao baixo preço que os

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países desenvolvidos estão oferecendo pe-los créditos de carbono: em média, US$ 5,00pela tonelada de carbono equivalente. Comosão os compradores dos créditos, eles ditamos preços. Ninguém pode prever como secomportarão esses preços. Tanto podemsubir, a partir da entrada em vigor do Proto-colo de Quioto (porque haverá menor incer-teza), quanto podem cair (porque haverámais oferta de créditos). Então, apesar dehaver estimativas de que o mercado anualde carbono, da União Européia, por exem-plo, crescerá de 1 bilhão de euros em 2005,para 7,4 bilhões de euros em 2007, não ha-verá necessariamente um grande afluxo derecursos para os países em desenvolvimen-to. Os projetos são arriscados, precisam terescala, e sua implantação e manutenção se-rão dispendiosas. E os preços ainda não sãotão convidativos. Mas não há dúvida de quepara um país com grande escassez de re-cursos, trata-se de uma oportunidade quenão pode ser desperdiçada.

Falta relativamente pouco para que o tra-tado entre em vigor. A meta de 55% será atin-gida se Rússia e mais um país, que poderáser Polônia, Canadá ou Austrália, assinar oacordo. Para o Vice-Primeiro-Ministro bri-tânico, John Prescott, a ausência dos EUAnão impedirá que isso ocorra. “Não vamosparar o mundo porque os americanos nãoestão a bordo”, disse ele. Há previsões oti-mistas de que o Presidente Bush não resisti-rá e terá de aderir ao Protocolo, cedo ou tar-de. Segundo o Ministro holandês do Ambi-ente, Jan Pronk, há empresas americanasmuito interessadas no mercado de créditosde carbono, e todos sabem que haverá “mui-to mais custos para os EUA”, se demoraremmuito para aderir13.

5.2. Impactos da Convenção no Mundo

Embora a Convenção tenha completadopouco mais de uma década de existência e oProtocolo de Quioto não tenha ainda entra-do em vigor, a Convenção-Quadro vem con-seguindo mudar as atitudes das pessoas epromover políticas que revertam a tendên-

cia de volume cada vez maior de emissõesde gases de efeito estufa.

Todos os governos, em maior ou menorgrau, vêm procurando ajustar suas políti-cas internas de modo a promover eficiênciaenergética, práticas sustentáveis de manejoflorestal, formas novas e renováveis de ener-gia, tecnologias ambientalmente seguras, eaté a redução de incentivos fiscais, isençõestributárias e tarifarias e subsídios para to-dos os setores emissores de gases de efeitoestufa. Os controles sobre emissões de veí-culos estão cada vez mais exigentes; há maisênfase no uso de transporte público; hámaior utilização das energias solar e eólica;há mais controle sobre as florestas e assimpor diante.

Os países desenvolvidos estão recolhen-do dados sobre suas emissões e muitos jáconseguiram efetivamente aproximar-se desuas metas. Embora não esteja ainda dispo-nível a totalidade dos dados que permitamavaliar se os países do Anexo I consegui-ram baixar suas emissões para os níveis de1990, as indicações preliminares sugeremque o conjunto desses países já terá alcan-çado a meta, embora haja muita variaçãoentre os mesmos. Nos países EIT as emis-sões caíram significativamente (mais de 40%entre 1990 e 1999), mas, na maioria dos pa-íses do Anexo II, as emissões continuam cres-cendo (a média foi de 6,6% entre 1990 e 1999).

Alguns países desenvolvidos já estãoinvestindo em formas inovadoras de redu-zir as emissões de gases. A Holanda, porexemplo, que deverá eliminar a emissão de200 milhões de toneladas de carbono, desti-nará para esse fim 250 milhões de euros.Metade desses recursos será aplicada nodesenvolvimento de novas tecnologias e nasubstituição de fontes de energia poluentespor fontes limpas, reduzindo parte das emis-sões. A outra metade vai para países como oBrasil, onde financiará projetos de recupe-ração e preservação ambiental, o que rende-rá os créditos necessários para abater as re-duções que não forem feitas em territórioholandês14.

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E, mesmo nos Estados Unidos, no mer-cado chamado de non-compliance Quioto,doze estados norte-americanos já aderiramàs regras propostas pelo Protocolo.

Organismos internacionais também têmtido um papel ativo. O Banco Mundial for-mou o maior fundo para compra de créditos(o Prototype Carbon Fund – PCF), hoje refe-rência do mercado, com US$ 300 milhõesem projetos em desenvolvimento. E, desde oestabelecimento do GEF em 1991 (inicial-mente como um programa piloto), um totalde US$ 8,2 bilhões foi alocado às atividadesde mudança do clima. No relatório do GEF,referente ao período de julho de 2000 a ju-nho de 2001, o financiamento total de proje-tos para atividades de mudança do climaultrapassou US$ 817 milhões, dos quais oGEF forneceu US$ 197 milhões a fundo per-dido. Agências bilaterais, países receptorese o setor privado participaram com US$ 620milhões.

Além disso, é muito alentador perceberque o próprio setor privado está acreditan-do nas mudanças propostas pela Conven-ção. A Bolsa de Chicago está criando o Lei-lão de Chicago para a negociação de carbo-no. E empresas americanas, como a DuPont,a Ford e a General Motors já formaram, porconta própria, uma espécie de bolsa priva-da, a Chicago Climate Exchange (CCX)”(COSTA, 2003).

5.3. Impactos da Convenção no Brasile a Política Ambiental Nacional

O Brasil assinou a Convenção Quadroem 1992 e adotou o Protocolo de Quioto em1997. Para um país que se opôs à políticaambientalista por ocasião da Conferenciade Estocolmo em 1972, a adesão ao Protoco-lo representa um grande avanço.

O País, por estar inserido na comunida-de global, naturalmente sofreu a influênciade todos os movimentos internacionais emfavor da defesa do meio ambiente. Não obs-tante, o discurso pró-ambiente de hoje nemsempre se traduz numa política consistenteem favor do meio ambiente. O legado do

passado e a força do poder econômico ain-da estão muito presentes.

Quando ainda era colônia, o Brasil jáaplicava regulamentos ambientais, mas ascartas régias, alvarás e outros não tinham apreocupação da conservação, mas visavamapenas defender os interesses econômicosdo governo, como foi o caso do pau-brasil.Uma exceção seria a Carta Régia de 13 demarço de 1797, que defendia a necessidadede tomar todas as precauções para a con-servação das matas, da fauna e das águas.Outra seria a criação do Jardim Botânico doRio de Janeiro em 1808, com o propósito depreservar espécies e estimular estudos cien-tíficos.

No período do Império, a Lei no 601, de1850, instituiu o princípio da responsabili-dade por dano ambiental, fora do âmbito dalegislação civil, e incumbiu delegados depolícia de conservarem as matas nacionaise processarem os infratores. Mas a preocu-pação com a defesa dos recursos naturaiscontinuava se devendo ao valor econômicodesses recursos.

As primeiras iniciativas brasileiras nocampo da regulação pública do meio ambi-ente surgiram na década de 1930 e forammarcadas pelo controle federal sobre o usodo território e de seus recursos naturais. Alógica era de disputa de hegemonia entre asforças políticas e elites econômicas locaisde diferentes estados e o governo central(NEDER, 2002. p. 25). Nos anos 1960, “asdisputas eram inicialmente canalizadaspara um locus de poder setorial com a cria-ção de órgãos que arbitravam sobre águas,energia elétrica, florestas, pesca, minérios,parques nacionais – a partir da titulariza-ção federal desses bens. A isso associavam-se financiamentos, políticas de fomento, leisde incentivo à produção e, dessa forma, con-vertia-se o que era verbo (legislação) em moe-da (econômica) entre elites locais e governocentral” (NEDER, 2002. p. 26).

Na década de 1970, os governos milita-res encarnaram o Estado desenvolvimentis-ta e usaram a exploração de recursos natu-

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rais como forma de promover a ocupaçãogeopolítica do território e ao mesmo tempoconverter recursos naturais em riqueza. O IPlano Nacional de Desenvolvimento (IPND), para ser executado no período de 1972a 1974, foi um desastre em matéria de ecolo-gia. A economia de fronteira destruía siste-maticamente grande parte dos recursos nãoimediatamente aproveitáveis pelo mercado.A devastação, particularmente na Amazô-nia, foi tão grande que, já no II PND, o go-verno abandonou sua política de desenvol-vimento a qualquer custo.

Já surgiam os primeiros sintomas de umaconsciência ambiental, mormente nos mei-os científicos e intelectuais. A crise do pe-tróleo despertou o País para a importânciados recursos renováveis, e a poluição indus-trial passou a ser uma preocupação nasgrandes cidades. Conservacionistas recla-mavam a abertura de agências governamen-tais que tirassem do papel os compromis-sos internacionais do governo brasileiro emEstocolmo. Mas a questão do meio ambien-te continuou sendo tratada de forma limita-da e isolada. Criou-se em 1973 a SecretariaEspecial do Meio Ambiente (SEMA), mas asdecisões relativas ao desenvolvimento eramtomadas sem preocupação com o meio am-biente. Não existia ainda a visão integradade que o problema ambiental é decorrênciado modelo econômico.

Na década de 1980, o Estado adotou umaatuação conservacionista: estabeleceu umaPolítica Nacional do Meio Ambiente com pro-posta descentralizadora, criou o ConselhoNacional do Meio Ambiente (CONAMA),reuniu no Instituto Brasileiro do Meio Ambi-ente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBA-MA) órgãos ambientais antes dispersos, einstituiu instrumentos importantes como ocontrole da poluição, o zoneamento ambi-ental e a avaliação de impactos ambientais.Mas as decisões desenvolvimentistas deoutros setores continuavam influenciandoo campo ambiental. Embora o Estado tives-se um discurso conservacionista diante dadiplomacia internacional, acobertava ma-

deireiros e fazendeiros, em diferentes regi-ões do país, em sua ação de converter a flo-resta em pasto para o gado.

A partir do período da redemocratiza-ção, no fim da década de 1980, “a agendaconservacionista internacional passou acobrar espaço nas estruturas de governo emBrasília e nos principais estados da federa-ção. A presença dessa orientação políticaampliou-se com o apoio de mecanismos mul-tilaterais de financiamento a projetos de pro-teção à diversidade biológica das espécies eàs áreas de proteção ameaçadas” (NEDER,2002. págs. 15-16). Na Constituição de 1988,o meio ambiente deixou de ser apenas fontede recursos naturais para ser reconhecidocomo o próprio suporte da vida. Reconhe-ceu-se o direito de todos a um meio ambien-te saudável, e o Estado deixou de ser o úni-co responsável pela regulação pública damatéria: ganharam voz os empresários, osmovimentos sociais e as associações de ci-dadãos. Abriu-se o debate sobre quem temdireito de usar os recursos naturais e como.

A década de 1990 foi marcada por umamaior consciência das vinculações entreeconomia e ecologia. Ainda assim, estudosrevelam que a sociedade civil econômicaaliou-se incondicionalmente ao mito desen-volvimentista e atribuiu deliberadamenteexcessivo peso ao Estado como agente decontrole contra formas sociais e ecologica-mente regressivas de exploração. O Estadotomou medidas importantes. Aprovou, em1997, a Lei de Recursos Hídricos, em 1998,a Lei de Crimes Ambientais, e, em 2000, a leique criou o Sistema Nacional de Unidadesde Conservação da Natureza. Embora es-sas e outras medidas constituam importan-tes instrumentos de defesa ambiental, elasse limitam a combater sintomas: não procu-ram promover a reorientação dos processosde produção e consumo que são a raiz dadegradação ambiental.

Não obstante, o Brasil vem se esforçan-do por adequar suas políticas aos termosda Convenção do Clima e do Protocolo deQuioto. Embora o País não esteja sujeito ao

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mesmo grau de exigência imposto aos paí-ses desenvolvidos, há uma preocupaçãocada vez maior com a eficiência energética,com o uso de fontes renováveis de energia,com a preservação das florestas, entre ou-tros aspectos.

E o País pode beneficiar-se muito dosmecanismos criados pela Convenção doClima. Além de ganhar o reforço da opiniãointernacional em prol da preservação ambi-ental e do uso de fontes renováveis de ener-gia, muitos projetos internos com excelentepotencial, mas sem fontes de financiamen-to, podem agora vislumbrar uma oportuni-dade de saírem do papel.

Diante da perspectiva de entrada em vi-gor do Protocolo de Quioto – com seu poten-cial de mobilização de dezenas de bilhõesde dólares por ano, uma fração dos quaispoderá ser orientada para o Mecanismo deDesenvolvimento Limpo (MDL) –, o gover-no brasileiro compreendeu a importância daformalização de um mecanismo dentro doGoverno que pudesse direcionar esse poten-cial para as prioridades de desenvolvimen-to nacionais. Assim, em 7 de julho de 1999,o Presidente da República criou a Comis-são Interministerial de Mudança Global doClima15, coordenada pelo Ministério de Ci-ência e Tecnologia. A sociedade civil tam-bém se mobilizou e, em junho de 2000, foicriado o Fórum Brasileiro de Mudanças Cli-máticas.

Embora o Brasil esteja entrando no mer-cado dos créditos de carbono mais lentamen-te do que outros países, já há projetos emoperação. A siderúrgica PLANTAR, porexemplo, fechou, em setembro de 2002, seuprimeiro contrato de venda de crédito de car-bono com o Banco Mundial. Ela vai receberUS$ 5 milhões por 1,5 milhão de toneladade carbono que será “entregue” ao longo desete anos, a partir de 2004. E ainda dispõede 13 milhões de toneladas de carbono paravender por um período de 21 anos, o quepode lhe conferir até US$ 65 milhões, aospreços de hoje. A empresa vai ainda buscaruma valorização do preço do ferro que pro-

duz, já que emprega uma tecnologia maiscorreta, em termos ambientais.

Além disso, já são quatro, de um total de21, os projetos brasileiros em tramitação noComitê Executivo do MDL, órgão responsá-vel pela aprovação da metodologia a serusada nos projetos. Três prevêem a reduçãode emissão de gás metano em aterros sani-tários. O quarto gerará energia a partir dobagaço de cana, em substituição ao gás na-tural, diesel ou carvão mineral. Outros jáestão em preparação, nas áreas de reflores-tamento e substituição do carvão mineralpelo vegetal.

O Brasil, contudo, poderia estar fazendomais. A Índia, por exemplo, já tem 26 proje-tos aprovados pelo programa de leilões, e aCosta Rica já tem 4 selecionados.

Cabe às autoridades brasileiras, às em-presas e às lideranças ligadas à proteçãoambiental estimular a apresentação de maisprojetos dessa natureza. O mercado de cré-ditos de carbono é uma realidade, e o Brasilé um ator importante. Segundo FábioFeldmann, Secretário-Executivo do FórumBrasileiro de Mudanças Climáticas:

O Mecanismo de Desenvolvimen-to Limpo é o evento mais importanteque surgiu nos últimos anos na áreaambiental para o Brasil.{...} Ainda quea política internacional atrase ou abor-te a aprovação do Protocolo de Quioto,a economia já tratou de colocar em fun-cionamento o mercado de créditos, mes-mo que estes não existam oficialmente.É um comércio secundário, e por issoainda muito arriscado, mas dá a enten-der que sobreviverá independentemen-te da aprovação do Protocolo, queiramou não os senhores George W. Bush eVladimir Putin (COSTA, 2003)

Hoje, o crédito de carbono pode determi-nar a viabilidade ou não de projetos comgrande repercussão social. Nas palavras deMarcos Vinicius Gusmão, coordenador doPrograma de Pesquisa em Eletrificação Ru-ral e Energia Renovável do Centro de Pes-quisa de Energia Elétrica (Cepel), “hoje, só é

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viável a geração de energia usando biogásem grandes aterros e com outros projetosassociados ao empreendimento, como o devenda de crédito de carbono... O governodeveria olhar a questão do lixo do ponto devista ambiental e criar mecanismos concre-tos para estimular a recuperação dos ater-ros” (CARVALHO, 2003).

6. Conclusões e Recomendações

A Convenção-Quadro de Mudança doClima já completou 11 anos, e o Protocolode Quioto, 6 anos. Apesar do relativamentecurto espaço de tempo, é evidente a trans-formação que já se operou na atitude dohomem em relação ao clima. Embora os re-sultados concretos possam estar ainda lon-ge do desejável, não há dúvida de que háum empenho generalizado em reduzir asemissões de gases que podem levar a umsuperaquecimento global.

As políticas para se conter ou reverter asemissões são necessariamente muito custo-sas. E constitui sinal de grande sucesso o fatode a Convenção ter conseguido operar astransformações que já produziu, apesar denão poder impor sanções aos países que nãose adequarem. Talvez mais impressionanteainda seja o fato de que, apesar do Protocolode Quioto não ter ainda entrado em vigor,países, organizações internacionais e empre-sas já estão se mobilizando para o mercadode créditos de carbono criado pelo Protocolo.

Não obstante esses êxitos, os desafiosainda são enormes.

Em relação ao Protocolo em si, existe acrítica de “que os valores fixados pelo Pro-tocolo são muito modestos, mesmo paramanter os atuais níveis de emissão. Além dis-so, os compromissos foram postergados porcerca de 20 anos após a data proposta inici-almente” (FARIA, CARMEM. 1999, p. 71).

Outra crítica diz respeito ao poder dospaíses mais fortes. Apesar do texto da Con-venção ser aparentemente muito duro comos países responsáveis pelas emissões, naprática, muitos já conseguiram reduzir seus

compromissos ou então ficar de fora. A Is-lândia e a Austrália, por exemplo, ganha-ram o direito de aumentar suas emissões emrelação ao ano de 1990. Já países como Emi-rados Árabes, Arábia Saudita e Cingapura,que apresentam baixo volume total de emis-sões, mas volumes per capita muito altos,conseguiram ficar de fora dos compromis-sos de redução. Como resumiu a revista NewScientist, “são inegáveis os avanços conse-guidos em Quioto. Mas faltou eqüidade: osfortes ganharam”16.

Seja como for, o Brasil precisa mobilizar-se para conquistar uma fatia maior dessemercado. Isso irá exigir, da parte do Estado,uma atuação mais firme no sentido de pro-mover uma estratégia ecologicamente sus-tentável de desenvolvimento. Apesar de oPaís dispor de legislação que protege o meioambiente, sabe-se que, na prática, a falta decapacidade de fiscalização impede o efeti-vo cumprimento das normas, com a açãoquase que livre dos infratores. O resultado éum forte desestímulo aos projetos sérios depreservação e desenvolvimento sustentável,que, naturalmente, geram um retorno me-nos atraente que as atividades alheias aquaisquer precauções ambientais.

Será preciso complementar os instru-mentos de regulação existentes com meca-nismos de estímulo a formas ecologicamen-te equilibradas de produção. Instrumentoscomo “tributos ambientais, sistemas de co-brança pelo uso de recursos ambientais, sub-sídios públicos, sistemas de devolução dedepósitos, licenças ou créditos negociáveis eseguro ou caução-ambiental” (CARNEIRO,2001. p. 77), que atribuem um preço/custo àdegradação ambiental, podem motivar em-presários e a população em geral a buscarformas de produção e consumo que sejameficientes do ponto de vista econômico e eco-lógico. O maior recurso a esses instrumen-tos, ainda pouco explorados no Brasil, cer-tamente contribuiria para estimular ativida-des econômicas com impacto ambiental po-sitivo e, em particular, projetos que se en-quadrassem nos critérios exigidos pelos

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mecanismos previstos pela Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima.

7. Notas1 Segundo a definição adotada no texto da Con-

venção sobre Mudança do Clima, a expressão “ga-ses de efeito estufa” designa os constituintes gaso-sos da atmosfera, naturais e antrópicos, que absor-vem e reemitem radiação infravermelha.

2 RELATÓRIO BRUNDTLAND, da ComissãoMundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.1987.

3 A camada de ozônio, situada entre 10 e 50quilômetros acima da superfície da terra, é consti-tuída de um gás azulado, com cheiro forte, veneno-so e poluente que, no entanto, atua como um escu-do protetor da Terra contra os raios ultravioletas,nocivos à vida animal, às plantas e ao homem, prin-cipalmente como causadores de câncer de pele.

4 Estes objetivos foram subseqüentemente con-siderados insatisfatórios e, em março de 1989, foideterminada uma redução de 85%. Mesmo estameta passou a ser contestada e, em junho de 1990,ficou decidido que a redução deveria ser de 50%antes de 1995; 85% antes de 1997; e 100% antes dofim do século.

5 O dióxido de carbono é o mais abundantedesses gases, proveniente da queima de combustí-veis fósseis (70%) e também da mudança na formade uso da terra/desmataments (30%). Ele não éperigoso em si mesmo, mas leva a um acúmulo decarbono na atmosfera. O metano, o mais nocivo,resulta da decomposição de matéria orgânica sema presença de oxigênio, e o óxido nitroso decorreespecialmente do uso de fertilizantes nitrogenados.

6 Preâmbulo da Convenção-Quadro das Na-ções Unidas sobre Mudança do Clima.

7 idem.8 O GEF, que dispõe de vários bilhões de dóla-

res, foi estabelecido, em 1990, pelo Banco Mundial,pelo Programa das Nações Unidas para o Desen-volvimento (PNUD) e pelo Programa das NaçõesUnidas para o Meio Ambiente (PNUMA), para pro-ver recursos para certos projetos dos países emdesenvolvimento que geram benefícios ambientaisglobais, não apenas na área da mudança do clima,mas também nos campos da biodiversidade, pro-teção da camada de ozônio e recursos hídricos in-ternacionais.

9 Segundo a própria definição usada no textoda Convenção, “sumidouro” significa qualquerprocesso, atividade ou mecanismo que remova umgás de efeito estufa, um aerossol ou um precursorde um gás de efeito estufa da atmosfera.

10 Os projetos de MDL são divididos em trêscategorias: 1). eficiência energética; 2) energias al-ternativas; e 3) seqüestro de carbono.

11 Protocolo de Quioto. Artigo 25.12 Dados obtidos da página do Ministério de

Ciência e Tecnologia. Disponível em: <http://www.mct.gov.br/Clima/quioto/signata.htm>.Acesso em 08 de março de 2004.

13 O ESTADO DE SÃO PAULO. Créditos deCarbono. Editorial de O Estado de São Paulo, 6 dejulho de 2002. Disponível em: <http:// www.estado.estadao.com.br/editorias/02/07/06/editoriais002.html >. Acesso em: 16 de abril de 2003.

14 idem15 São funções da Comissão Interministerial:

avaliar e aprovar projetos considerados elegíveispara o MDL; definir critérios de eligibilidade adicio-nais aos do Protocolo de Quioto, com vistas aodesenvolvimento sustentável.

16 Trecho citado em FARIA, CARMEN RACHELS.M.; JURAS, ILÍDIA DA A.G. MARTINS. A faltade democracia nas negociações sobre a mudançado clima. In: Cadernos Aslegis, Brasília, v. 3, no 7,jan/abr 1999. p. 71.

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1. IntroduçãoO Mercado Comum do Sul (MERCO-

SUL), ideal a ser atingido pelos países sig-natários do Tratado de Assunção, firmadoem 1991 pela Argentina, Uruguai, Paraguaie Brasil, teve como principal objetivo a am-pliação de seus mercados internos, medi-ante integração econômica intrabloco. Pas-sou por um período de transição, durante oqual foram exigidas medidas de ajuste in-terno de cada país, para seu efetivo funcio-namento como zona de livre comércio até oadvento do Protocolo de Ouro Preto, que oalçou à condição de União Aduaneira.

A estrutura orgânica do Mercosul, du-rante o período de transição, restringiu-se àcriação do Conselho do Mercado Comum edo Grupo Mercado Comum, cujas decisõeseram tomadas em reuniões das autoridadeseconômicas e diplomáticas de cada país,bem como de uma Secretaria para a guardade documentos e comunicações das ativi-dades do Bloco.

Como bem nos explica Rezek (1997, p.228): “Eram reuniões periódicas de Minis-tros de Estado da Economia e das RelaçõesExteriores e, eventualmente, Chefes de Esta-do, e no Grupo Mercado Comum, de servi-

Maria Terezinha Nunes é Analista Legisla-tivo do Senado Federal, Economista, Advoga-da e Especialista em Direito Legislativo pelaUNILEGIS.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. JORGE LUIZFONTOURA NOGUEIRA.

Harmonização tributária e consolidação doMercosul

Maria Terezinha Nunes

1. Introdução; 2. Por que harmonizar a Le-gislação Tributária?; 3. Obstáculos para a Har-monização Tributária; 4. Reforma Constitucio-nal e Harmonização Tributária; 5. Conclusão.

Sumário

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dores públicos alocados para esses encon-tros, que traçavam as diretrizes de ação dapequena comunidade”.

Essa estrutura simples e a inexistênciade uma burocracia que respaldasse o Mer-cosul eram alvos de críticas pela Comuni-dade Européia, que “estranhava tudo aqui-lo que inicialmente era nosso ponto de hon-ra: não criar despesas ou mecanismos one-rosos, antes de obter resultados, é dizer, dever funcionar a integração naquilo que elatem de mais elementar e de mais fecundo doponto de vista das sociedades humanas porela atendidas” (REZEK, 1997, p. 228).

O Tratado de Assunção estabeleceu adata limite de 31 de dezembro de 1994 paraque os Estados Partes adotassem diversasmedidas de adequação interna e externa,com vistas à criação do Mercado Comum,conforme consta do art. 1o, a saber:

1. eliminação dos direitos alfande-gários e restrições não tarifárias à cir-culação de mercadorias ou de qual-quer outra medida de efeito equiva-lente;

2. estabelecimento de Tarifa Exter-na Comum;

3. coordenação de políticas macro-econômicas e setoriais entre os Esta-dos Partes;

4. harmonização legislativa.O Programa de Liberalização Comercial,

a Coordenação de políticas macroeconômi-cas e a Adoção de uma Tarifa Externa Co-mum e de acordos setoriais foram os instru-mentos previstos pelo Tratado de Assunçãopara, inicialmente, estabelecer uma zona delivre comércio e posterior conformação deuma União Aduaneira com ampla mobili-dade, no Bloco Regional, de seus fatores deprodução para a formação do mercadocomum.

O Tratado de Assunção previu que asmedidas de adequação, mediante desgrava-ção tarifária, seriam realizadas de formagradual durante o período de transição, poiso objetivo era ampliar e fortalecer os merca-dos nacionais e não desmantelá-los com a

liberação indiscriminada das importaçõespelos países participantes do Bloco.

Prevendo as dificuldades que sobreviriam,dadas as diferenças na economia dos quatropaíses integrantes do Mercosul, foram esta-belecidos, para esse período: a adoção doRegime Geral de Origem, um Sistema paraSolução de Controvérsias e Cláusulas deSalvaguardas.

Constam do Tratado de Assunção o prin-cípio da reciprocidade de direitos e obriga-ções e o princípio da não-discriminação,conforme arts. 2o e 7o, respectivamente:

Art. 2o O Mercado Comum estaráfundado na reciprocidade de direitose obrigações entre os Estados Partes.

Art. 7o Em matéria de impostos,taxas e outros gravames internos, osprodutos originários do território deum Estado Parte gozarão, nos outrosEstados Partes, do mesmo tratamentoque se aplique ao produto nacional.

De modo simples, pode-se dizer que aintegração dos mercados intrabloco objeti-va dar tratamento isonômico aos produtosestrangeiros, oriundos do Bloco Regional,em relação aos produtos nacionais. O idealda integração é chegar ao ponto em que acomercialização entre qualquer Estado dafederação brasileira seja semelhante à co-mercialização de um Estado brasileiro coma Argentina, por exemplo. O que determina-ria a escolha seriam os fatores que envol-vem o livre mercado e não as restrições tari-fárias (impostos de importação) e restriçõesnão-tarifárias, exemplificadas por J. K.Nakayama (2003, p. 31) como: “Garantia dequalidade dos produtos; normas burocráti-cas, formalidades aduaneiras, políticas decompras públicas, aspectos monetários e fi-nanceiros, controles de câmbio, além do fe-deralismo fiscal brasileiro”.

Não obstante os objetivos traçados peloTratado de Assunção não terem sido alcan-çados em sua inteireza, o período de transi-ção chegou a termo com a assinatura do Pro-tocolo de Ouro Preto em 17.12.1994, quan-do os países signatários, reafirmando o in-

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teresse em manter o compromisso de consti-tuição do Bloco Regional, reforçaram suaestrutura institucional com a criação de no-vos órgãos, ampliação e definição de com-petências, além de conferir-lhe personalida-de jurídica de direito internacional, possi-bilitando-lhe comercializar em nome dosquatro países que o integram.

A Comissão Parlamentar Conjunta, pre-vista no Tratado de Assunção passa, a par-tir do Protocolo de Ouro Preto, quando lheforam conferidas atribuições, a ter papelfundamental na consolidação do Mercosul,vez que as Decisões, Resoluções e Diretri-zes emanadas dos órgãos Conselho do Mer-cado Comum, Grupo Mercado Comum eComissão de Comércio do Mercosul, respec-tivamente, têm natureza obrigatória para osEstados Partes e devem integrar de pronto oordenamento jurídico interno de cada país.

Nesse aspecto, o Protocolo de Ouro Pre-to enfatiza a importância da incorporaçãoao ordenamento jurídico interno das nor-mas emanadas dos Órgãos do Mercosulconsoante estabelecem os seus arts. 38 a 40,atribuindo à Comissão Parlamentar Conjun-ta do Mercosul a harmonização dessas le-gislações.

Assim, dada a relevância da harmoni-zação legislativa para o fortalecimento doprocesso de integração do Mercosul, expres-sada no Tratado de Assunção e por ocasiãodo Protocolo de Ouro Preto, em que foramreafirmados os compromissos iniciais doMercosul, é que este trabalho se propõe aestudar a exigência e dificuldades que o Bra-sil vem enfrentando na conformação des-sas legislações no ordenamento jurídico in-terno, notadamente no campo tributário,para adequar-se a uma nova realidade deinserção no mercado regional e mundial.

Entre os obstáculos que se apresentam,destacam-se a recepção do Tratado no orde-namento jurídico interno, a qual gera inse-gurança quanto à validade do mesmo, quan-do questionada sua aplicação no País, emface de legislação posterior divergente; ainterpretação restritiva feita pelo Supremo

Tribunal Federal ao art. 98 do Código Tri-butário Nacional, distinguindo Tratado-norma de Tratado-contrato e, somando-se aisso, as distorções tributárias incidentes so-bre o consumo, as quais, para a sua elimi-nação, esbarram no princípio constitucio-nal da federação.

Diante de todas essas dificuldades,oriundas da assimetria tributária entre oBrasil e os demais Estados do Mercosul, eda necessidade de harmonizar seus tribu-tos, é de se questionar se nas diversas pro-postas de emenda constitucional ao capítu-lo do sistema tributário, apresentadas aolongo do governo de Fernando HenriqueCardoso, a reforma recentemente aprovadae a PEC no 228/2004, ora em tramitação naCâmara dos Deputados, tiveram como obje-tivo a consolidação do Mercosul, medianteinserção no texto constitucional de disposi-tivos que garantam a harmonização da le-gislação tributária do País.

2. Por que harmonizar aLegislação Tributária?

2.1 O compromisso

Quando os países signatários do Trata-do de Assunção decidiram constituir o Mer-cado Comum do Sul, estabeleceram comocompromisso a busca da harmonização le-gislativa, nas áreas pertinentes que recla-massem esse ajuste, visando ao fortalecimen-to do processo de integração.

Tendo em vista que o objetivo primordialdessas nações é estimular o desenvolvimen-to econômico e fazer circular a riqueza noBloco Regional, a harmonização tributáriafoi, sem dúvida, a mais reclamada para im-pulsionar a circulação de bens, serviços efatores produtivos, inclusive com as ade-quações necessárias, no plano jurídico in-terno, conforme preceitua o art. 1o do Trata-do de Assunção.

De fato, as medidas iniciais, exigidaspara cada país, por ocasião da criação doMercosul, alcançavam apenas a alteraçãodos impostos relativos à importação e ex-

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portação de mercadorias para o comérciointrabloco. Não é sem razão que o ato deconstituição do Bloco Regional, constantedo Tratado de Assunção, pretendeu, numprimeiro momento, a criação da zona de li-vre comércio, mas avançou nos objetivoscom a previsão de uma União Aduaneira,mediante o estabelecimento de uma TarifaExterna Comum -TEC para regular a impor-tação de produtos oriundos de outros países.

Contudo, constituiu-se esse Tratado emprotocolo de intenções, com período de tran-sição definido para a gradual adequação desuas políticas de eliminação tarifária, comvistas a sua efetivação em 31.12.1994.

Pelo Protocolo de Ouro Preto, realizadoem 17.12.1994, e de acordo com o calendá-rio previsto pelo art. 18 do Tratado de As-sunção, foram reafirmados os compromis-sos assumidos naquela ocasião pelos paí-ses componentes do Mercosul.

Nessa ocasião, foram definidas as atri-buições da Comissão Parlamentar Conjun-ta do Mercosul, passando a ter papel fun-damental na harmonização da legislaçãotributária no Brasil, haja vista as graves dis-torções existentes no sistema tributário na-cional, notadamente no imposto que incidesobre o consumo e que envolve conflitos fe-derativos.

Nesse sentido, o que impulsiona a bus-ca da harmonização da legislação tributá-ria, gerando obrigações para os EstadosPartes em envidar esforços para a sua efeti-va concreção, tem origem no próprio ato desua constituição, em seus arts. 1o e 7o, pelosquais ficou estabelecido o compromisso as-sumido pelos quatro países membros emadequar seus regimes tributários, bem comono desejo de continuar fazendo parte desseBloco, usufruindo dos benefícios advindosdessa integração.

2.2 Pressuposto da integração

O termo integração, para Odete Maria deOliveira, citada por J.K. Nakayama (2003, p.229), é originário da metade do século XX,sendo designado para definir fenômenos de

economia internacional em que duas oumais economias se juntam para compor umespaço econômico de maior dimensão.

A integração econômica, pressupondo alivre circulação de mercadorias, serviços efatores produtivos, só será alcançada com aeliminação das barreiras tarifárias sobre aimportação de produtos intrabloco e conse-qüente implantação da zona de livre comér-cio; em seguida com a adoção de políticasexternas comuns para conformação de umaunião aduaneira, além de diretrizes tributá-rias conjuntas, aplicáveis aos países do blo-co como um todo.

A integração deve pautar-se pela com-petitividade, determinando bons produtos,de boa aceitação no mercado, que geremlucros para o investidor e acréscimo deganhos para o trabalhador. Isso sem depen-der de protecionismo oficial, de reservas ofi-ciais ou de nichos de exclusividade que de-terioram o processo de desenvolvimento eimpedem o progresso (Cf. NAKAYAMA,2003, p. 29).

É nesse sentido que a harmonização tri-butária se faz necessária, ou seja, para re-forçar o processo de integração, eliminandoas distorções que afetam a competitividadedos produtos comercializados dentro doBloco Regional (Cf. VICTOR UCKMAR, inSILVA, 2003, p. 96).

Entende Edison Fernandes (2001, p. 208)que não existe qualquer documento ou tra-tado que tenha criado um sistema tributáriopróprio para o Bloco Regional. Por isso, anecessidade de harmonizar as legislaçõesde cada país integrante do Mercosul, e, àvista da complexidade que envolve a har-monização dos tributos dos quatro países,a coordenação tributária surge como opçãomais viável para o Bloco.

Para definir os institutos da coordena-ção e harmonização tributárias, EdisonFernandes (2001, p. 205) traz o seguinte en-sinamento de Xavier Basto:

Quando esses efeitos minoramatravés de medida que não envolvesubstanciais modificações internas

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dos sistemas fiscais, isto é, quando seestabelecem apenas providências ca-pazes de evitar ou minorar esses efei-tos indesejáveis sem, todavia, aproxi-mar-se (ou, no limite, eliminar) as di-ferenças de fiscalidade que os provo-cam, diz-se que se promoveu a coor-denação fiscal internacional (ou inter-jurisdicional).

Quando se vai mais longe e, paraerradicar a fonte daqueles efeitos, seaproximam os sistemas fiscais – as es-truturas e tipos de impostos adotados,as suas bases de incidência, eventual-mente as suas taxas – diz-se que esta-mos perante medidas de harmoniza-ção fiscal internacional (ou interjuris-dicional). A harmonização fiscal impli-ca, assim, modificações internas dospróprios sistemas de impostos e é umprocesso típico de espaços econômicosintegrados ou em vias de integração.

Comungando desse mesmo entendimen-to, J. K. Nakayama (2003, p. 149) ressaltaque um dos aspectos mais relevantes do pro-cesso de integração entre os países do Mer-cosul diz respeito à eliminação de diferen-ças legislativas que possam dificultar ouobstaculizar o seu desenvolvimento. Nessesentido, esclarece que “em relação às nor-mas tributárias, aceita-se que o processo deaproximação legislativa esteja enquadradona fase de coordenação”.

Conforme assente pela doutrina, é tam-bém de fundamental importância a harmo-nização dos impostos incidentes sobre a ren-da, com a finalidade de se evitar a bitributa-ção sobre o consumo, bem como daqueles queincidem nas relações de trabalho ao compo-rem os preços dos produtos de forma direta,em sua produção, e de forma indireta, inclu-indo a mão-de-obra aplicada no comércio eprestação de serviços (Cf. SILVA, 2003, p. 98).

2.3. A Natureza dos Impostos Alfandegários

Outro fator que converge para a harmo-nização tributária é a possibilidade de utili-zação dos impostos aduaneiros para fins

de políticas macroeconômicas comuns, pe-los países integrantes do Bloco Regional,uma vez que representam pouco em termosde arrecadação e são utilizados como ins-trumentos de intervenção econômica.

Os impostos aduaneiros foram os primei-ros a se sujeitarem à harmonização tributá-ria, pois, sem essa providência, não seriapossível dar os primeiros passos para a cri-ação da zona de livre comércio e da adoçãoda tarifa externa comum, rumo à consolida-ção da integração e ao alcance de seu objeti-vo de aceleração do desenvolvimento dospaíses integrantes, com justiça social, con-forme preceitua o Tratado de Assunção.

Segundo SILVA (2003, pp. 97-98), essaprimeira etapa, “embora de difícil implanta-ção devido às grandes diferenças tarifáriasque podem existir entre os diversos paísesconstituintes no mercado em processo deintegração, não reserva maiores problemasde cunho jurídico, devido à natureza extra-fiscal que passou a ser conferida ao impos-to de importação no último século”.

Com efeito, os impostos incidentes sobreo comércio exterior, de importação e expor-tação, devido a sua pouca significância emtermos de arrecadação para o Estado, sãoutilizados como instrumentos reguladoresdo comércio exterior e de política cambial,conforme prevêem os arts. 21 e 26 do Códi-go Tributário Nacional. Nesse sentido, cres-ceriam em importância como instrumentosde política macroeconômica e de interven-ção econômica comum, a serem implemen-tados pelos Estados Partes do Mercosul.

3. Obstáculos para aHarmonização Tributária

3.1 Os Tratados na Ordem Jurídica Interna

Muito se discute acerca da forma comoos tratados são recepcionados na ordem ju-rídica nacional. Essa discussão toma vultoa partir do momento em que o País se pro-põe a integrar um bloco econômico, cujasnormas, conjuntamente adotadas, obrigamseus signatários.

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O caráter intergovernamental de toma-da de decisões submete qualquer tipo dedeliberação do bloco à apreciação internade cada Estado, o que torna o processo decondução do Mercosul um processo maisdemorado e burocrático. (Cf. MENEZES,2002, p. 150).

Analisando os dispositivos constantesdas constituições brasileiras, desde o impé-rio, acerca da obrigatoriedade do tratado naordem interna, FRAGA (2001, p. 47) obser-vou que pouca, ou nenhuma, foi a evolução,no que respeita ao disciplinamento das re-lações entre o direito interno e o direito in-ternacional, permanecendo situação quaseidêntica à de 1891.

Nesse mesmo sentido, Mariângela Ariosi,citada por SILVA, (2003, p. 33), assim se ex-pressa:

Como fora visto, ao se analisar aevolução jurídico-constitucional bra-sileira, no capítulo anterior, verificou-se uma verdadeira ausência de dis-positivos constitucionais acerca deuma definição da norma a ser aplica-da em caso de conflito que envolvessetratados internacionais e leis internas.Não apenas a Constituição brasileirade 1988 pecou por omissão nesta ma-téria, mas, como oportunamente foraobservado, nunca houve, em nenhumtexto constitucional da história dasConstituições brasileiras, qualquerorientação acerca de uma direção, sejaesta, monista – radical ou moderada,ou dualista para os conflitos entre tra-tados e leis internas.

Para Mirtô Fraga (2001, p. 47), a partirdo que dispõe a Constituição Federal e a po-sição majoritária do Supremo Tribunal Fe-deral, o tratado não se confunde com a lei,pois que ambos têm fases de elaboração com-pletamente distintas e obedecem a preceitosconstitucionais específicos. A fase de elabo-ração do tratado não se encerra após o tér-mino da negociação do País com outras na-ções, pois, depois disso, ele é submetido àaprovação pelo Congresso Nacional, medi-

ante promulgação de decreto de autoriza-ção do presidente do Senado, é feita a ratifi-cação por depósito do instrumento do acor-do, efetivando-se somente após a promul-gação e publicação de decreto do executivofederal, quando passará a ter eficácia naordem interna do País, vinculando direitose obrigações entre particulares e Estado.

Assim, os tratados não têm aplicaçãoimediata no ordenamento jurídico interno.Esse é o entendimento do Supremo Tribu-nal Federal, inclusive quanto aos tratadosno âmbito do Mercosul (Cf. MENEZES,2002, p. 15).

Uma vez integrado ao ordenamento ju-rídico interno, passando por todas aquelasfases acima descritas por Mirtô Fraga, o tra-tado ganha status de lei, consoante entendi-mento do Supremo Tribunal Federal no jul-gamento do RE 80.004/77, em que foi alte-rada a jurisprudência daquela Corte paranão mais conferir primazia ao direito inter-nacional sobre o interno. Assim, estando namesma hierarquia das leis internas sujeita-se às regras de aplicação destas em caso deconflito e ao controle de constitucionalida-de, pelo Supremo Tribunal Federal.

Esse entendimento do Supremo Tribu-nal Federal, que deu primazia ao ordena-mento jurídico interno sobre o direito inter-nacional, vem, desde aquela data, sofrendocríticas severas por parte da doutrina, que,inclusive, atribui caráter político e não jurí-dico àquele julgamento. (Cf. SILVA, 2003, p.42).

Nesse aspecto, as observações de JorgeFontoura (2002, p. 115):

O fato de termos um ordenamentofrancamente dualista, como reflexoinelutável de nossa cultura jurídica,onde nada pode atentar contra o que-rer constitucional, nem mesmo o tra-tado, havendo de resto a possibilida-de sempre presente de o legislador na-cional dispor contra a norma contidaem tratado anterior, é um dado fun-damental para situarmos corretamen-te o grau de nosso avanço jurídico. A

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supremacia da norma interna, conso-ante à prevalente jurisprudência doSupremo Tribunal Federal – RE80.004/SE, bem como o silêncio obse-quioso da Constituição Federal sobreo potencial conflito, não deixam es-paço a interpretações inovadoras.Como conseqüência, não estamos pre-parados para as demandas de nossotempo.

Quanto à solução dos conflitos geradosentre dispositivo de Tratado e a Constitui-ção Federal, a doutrina majoritária e o Su-premo Tribunal Federal, à exceção dos estu-diosos dos Direitos Humanos, estão de acor-do em que, havendo conflito entre o Tratadoe a Constituição Federal, resolve-se o mes-mo em favor desta. (Cf. SILVA, 2003, p. 53).

Foi esse o entendimento do Supremo,quando julgou o HABEAS CORPUS No

73.044, negando eficácia à disposição con-tida na Convenção Americana de DireitosHumanos (Pacto de São José da Costa Rica),segundo a qual somente seria permitida aprisão civil em razão de dívida alimentícia,contrariando, assim, aquele Tratado ao dis-posto no inciso LXVII, do art. 5o, da Consti-tuição Federal, que estabelece, também, apossibilidade da prisão do depositário infi-el. (Cf. SILVA, 2003, p. 53).

A Constituição Federal só dispõe de doisartigos que tratam da relação entre o direitointernacional e as normas de direito inter-no: o art. 178, que não tem qualquer influên-cia no processo de integração, e o § 2 o do art.5o, que, segundo Flávia Piovesan, atribui aosdireitos internacionais a natureza de nor-ma constitucional e, sendo assim, é da maiorimportância nos processos de harmoniza-ção legislativa no campo tributário, em fun-ção do princípio constitucional da capaci-dade contributiva, quando o tratado ou con-venção referir-se a dupla tributação darenda. (Cf. SILVA, 2003, p. 54).

Para J.K. Nakayama (2003, p. 63), a au-sência de qualquer grau de supranacionali-dade para a constituição do Mercosul im-pede que a harmonização das legislações

se processe mediante a adoção de normascompletas. Entende que a aplicação imedi-ata da norma no Bloco, por exemplo, é umaspecto que facilitaria a desobstaculizaçãopara a harmonização das normas tributá-rias.

3.2. O art 98 do Código Tributário Nacional ea interpretação do Supremo Tribunal Federal

A simples leitura do art. 98 do CódigoTributário Nacional, que estabelece: “os tra-tados e convenções internacionais revogamou modificam a legislação tributária inter-na e serão observados pela que lhes sobre-venha”, leva à compreensão de que o direi-to internacional, no tocante à legislação tri-butária, tem primazia sobre a lei ordinária,não sendo, assim, os tratados passíveis dealteração por legislação que lhes sobreve-nha.

Contudo, tem sido outro o entendimentodo Supremo Tribunal Federal a partir dojulgamento do RE no 80.004, de 01.06.1977,quando foi questionada a validade da Con-venção de Genebra em face de norma internadivergente, conforme se observa da ementa:

CONVENÇÃO DE GENEBRA –LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DECÂMBIO E NOTAS PROMISSÓRIAS– AVAL APOSTO A NOTA PROMIS-SÓRIA NÃO REGISTRADA NOPRAZO LEGAL – IMPOSSIBILIDADEDE SER O AVALISTA ACIONADO,MESMO PELAS VIAS ORDINÁRIAS.VALIDADE DO DECRETO-LEI No

427, DE 22.01.1969.Embora a Convenção de Genebra,

que previu uma lei uniforme sobre le-tras de câmbio e notas promissórias,tenha aplicabilidade no direito inter-no brasileiro, não se sobrepõe ela àsleis de nulidade do título.

Sendo o aval um instituto do direi-to cambiário, inexistente será ele sereconhecida a nulidade do título cam-bial a que foi aposto.

Recurso extraordinário conhecidoe provido.

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Nesse julgamento, o Ministro CunhaPeixoto fez constar de seu voto a interpreta-ção quanto à aplicabilidade do art. 98 doCTN, tendo assim se expressado:

Como se verifica, o dispositivo re-fere-se a tratados e convenções. Isto,porque os tratados podem ser norma-tivos ou contratuais. (...) Por isto mes-mo, o art. 98 só se refere à legislaçãotributária, deixando, destarte, claronão ser o princípio de ordem geral. Sea lei ordinária não pudesse, pela cons-tituição, revogar a que advém de umtratado, não seria necessário disposi-tivo expresso de ordem tributária.

Acompanhando a mesma linha de ar-gumentação do Ministro Cunha Peixoto, noque se refere à aplicabilidade do art. 98 doCTN, o Ministro Cordeiro Guerra fez cons-tar de seu voto o seguinte entendimento:

Argumentou-se com o art. 98 doCódigo Tributário Nacional, para con-cluir pela irrevogabilidade dos trata-dos por legislação tributária internaque lhes sobrevenha. Mas, como bemobservou o ilustre Ministro CUNHAPEIXOTO, sob pena de inconstitucio-nalidade deve ser compreendido comolimitado aos acordos contratuais detarifas, durante a vigência destes.

Essa interpretação do Supremo TribunalFederal constituiu-se em divisor de águas,pois que antes considerava a supremaciado direito internacional sobre o interno, porisso não entender inconstitucional o art. 98do CTN, em sua totalidade, mas, a partirdesse julgamento, foi dada interpretaçãorestritiva ao citado dispositivo tributário, nostermos do voto do Ministro Cordeiro Guer-ra, acima transcrito, passando a fazer dis-tinção entre Tratado-contrato e Tratado-nor-ma, aceitando a supremacia apenas do pri-meiro sobre a lei interna.

Não faltaram respeitáveis juristas a cor-roborar a tese do Supremo e nem outros arefutá-la de forma veemente. Hugo de BritoMachado, entendendo que a decisão não foicorreta, registra o antagonismo nas decisões

do Supremo, pela prevalência dos Tratados,em outros julgados posteriores a esse (Cf.MACHADO, 2002, p. 91).

3.3. O Federalismo Fiscal, ICMS e o IVA

O ideal federalista brasileiro foi perse-guido durante sessenta anos por intermé-dio das rebeliões “Balaiadas”, “Cabana-das”, “Sabinadas” e “República de Pirati-ni”, mas não obteve êxito no período damonarquia, sendo alcançado apenas com aproclamação da República, mediante Decre-to do Marechal Deodoro, em 15/11/1889, ea promulgação da Constituição de 1891, queconsagrou o princípio federativo, mediantea adoção da forma de governo da RepúblicaFederativa (Cf. AFONSO, 2003, p. 102-103).

O princípio implícito no federalismo estárepresentado pela autonomia conferida aosdiversos entes da federação para dispor so-bre suas políticas administrativa, financei-ra e orçamentária, mas para as relações in-ternacionais conta a unidade desses entes,representada pelo Estado Federal, como bemnos ensina AFONSO (2003, 100-101):

Estado federal é o todo, dotado depersonalidade jurídica de Direito Pú-blico internacional. A União é a enti-dade federal formada pela reunião daspartes componentes, constituindopessoa jurídica de Direito Público in-terno, autônoma em relação aos Esta-dos e a que cabe exercer as prerrogati-vas da soberania do Estado brasilei-ro. Os Estados-membros são entidadesfederativas componentes, dotadas deautonomia e também de personali-dade jurídica de Direito Público in-terno. O Estado federal é considera-do uma unidade nas relações inter-nacionais.

J. K. Nakayama (2003, p. 31) classifica ofederalismo fiscal como restrição não-tari-fária à livre circulação de mercadoria intra-bloco além de considerar um empecilho àharmonização tributária com os demaispaíses do Mercosul, uma vez que o Brasil éo único deles que confere competências dis-

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tintas para os três impostos incidentes so-bre o consumo: IPI, ICMS e ISS.

Dessa forma, o problema que apresentao federalismo fiscal para o Mercosul estádiretamente ligado à distribuição das com-petências que a Constituição Federal confe-re aos diversos entes da federação para le-gislar sobre os tributos que incidem sobre oconsumo: cabe à União legislar sobre o IPI –Imposto sobre Produtos Industrializados;aos Estados legislar sobre o ICMS e aosMunicípios legislar sobre o ISS – Impostosobre Serviços.

A incidência cumulativa desses impos-tos acaba por refletir-se na competitividadedos produtos nacionais e estrangeiros, ge-rando entraves à livre circulação dos bens eserviços, em dissonância com o preceitua-do no Tratado de Assunção e que é requisi-to essencial para a consolidação do Merco-sul.

A diferença crucial entre o ICMS – Im-posto sobre Operações Relativas à Circula-ção de Mercadorias e Prestações de Servi-ços de Transporte Interestadual e Intermu-nicipal e de Comunicação, adotado peloBrasil e o IVA – Imposto sobre Valor Agre-gado, adotado por Argentina, Paraguai eUruguai é a característica da neutralidade,essencial para a integração econômica, en-contrada no IVA e que falta ao ICMS.

O ICMS tem características não só fiscal,de arrecadação, mas também extrafiscal,quando utilizado para políticas de investi-mentos. Contudo, tais políticas têm geradoconflitos entre os Estados componentes dafederação brasileira, entre si, e com os Esta-dos Partes do Mercosul.

Discorrendo sobre o IVA instituído pelaUnião Européia, Sergio Silva (2003, p. 108)esclarece que a tônica da harmonização datributação do consumo consiste na neutra-lidade da tributação da incidência do IVAsobre as operações realizadas pelos diver-sos agentes econômicos. Essa neutralidadevisa a alcançar a isonomia entre tais agen-tes, reduzindo, com isso, a utilização extra-fiscal do IVA como incentivo ao desenvolvi-

mento de determinados setores da econo-mia.

O ICMS tem origem no antigo ICM, pri-meiro imposto criado segundo a técnica dovalor agregado no mundo e que substituiuo imposto cumulativo sobre venda e sobreconsignação – IVC. Apareceu no SistemaTributário brasileiro com a Emenda Consti-tucional no 18, de 1o de dezembro de 1965,incidindo sobre todas as etapas da cadeiaprodutiva: a produção, distribuição e ven-da ao consumidor final de um bem. PelaConstituição de 1988, sofreu alteração emrelação ao antigo ICM, uma vez que incor-porou os serviços de transportes interesta-duais e intermunicipais e de comunicação(Cf. NAKAYAMA, 2003, p. 125).

A competência para instituir e disporsobre esse imposto cabe aos Estados e Dis-trito Federal, conforme estabelece a Consti-tuição Federal, em seu art. 155, inciso II.Contudo, não obstante a obrigação dos Es-tados em observar as disposições constitu-cionais e as normas gerais estabelecidaspela lei complementar, ficava a cargo des-ses entes a possibilidade de conceder isen-ções, incentivos e benefícios fiscais, resul-tando em uma multiplicidade de normasregendo o ICMS, com disciplinamento dife-rente para cada Estado.

Os problemas advindos desse desorde-namento fiscal estão registrados nas pala-vras de José Matias Pereira (2003, p. 109),quando explana sobre os entraves da refor-ma tributária no Brasil, nestes termos: “(...) eo esdrúxulo ICMS, cujos inumeráveis defei-tos se processam à sombra da arbitrarieda-de dos governos estaduais. O exemplo maisevidente são as guerras fiscais, as barreirasnas estradas e a inoperância do sistema decrédito fiscal, quando se trata de mercado-ria isenta, que transita de um Estado paraoutro”.

A discussão que se faz sobre o ICMS, noâmbito do Mercosul, é que ele, além de cons-tituir-se em um dos principais impostos emtermos de arrecadação de competência es-tadual e distrital, incide sobre a entrada de

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bens e serviços provenientes do exterior.Dessa forma, fica limitada a ação da Uniãona celebração dos tratados que visem à livrecirculação de bens e serviços, vez que a ela évedado dispor sobre isenção em impostosde competência dos Estados (Cf. MARTINS,2002, p. 37).

Respondendo ao questionamento pro-posto no XXII Simpósio Nacional de DireitoTributário, o insigne tributarista Hugo deBrito Machado, falando sobre o ICMS e asmercadorias oriundas de países do Merco-sul, esclarece que a incidência do ICMS nasoperações de importação implica verdadei-ra restrição à circulação de mercadorias en-tre os países que integram o Bloco e, em semantendo essa incidência do ICMS nas ope-rações entre os vários países, a efetiva inte-gração do Mercosul somente ocorrerá nomomento em que houver a uniformizaçãotributária dos países que o compõem (Cf.MACHADO, 2002, p. 88).

4. Reforma Constitucional eHarmonização Tributária

4.1 Perspectivas para o Mercosul

Desde 1995, quando da assinatura doProtocolo de Ouro Preto, foram enviadasinúmeras propostas de alteração do Siste-ma Tributário Nacional ao Congresso. To-davia, por envolver algumas delas a discus-são da quebra do pacto federativo, vez quepropunham a criação do IVA, em substitui-ção aos impostos incidentes sobre a circula-ção de mercadorias e serviços, alterando acompetência tributária desse imposto, ne-nhuma alcançou os objetivos propostos.

Analisando as diversas propostas dereforma constitucional, na área tributária,apresentadas até 2001, J.K.Nakayama (2003,p. 142) concluiu que a discussão central re-fletia a preocupação com a guerra fiscal en-tre os Estados e “não se viu uma preocupa-ção imediata com o Mercosul, seus princí-pios e muitos menos com suas respectivasliberdades para a concretização do merca-do comum”.

Considera a autora que a reforma cons-titucional tributária é imprescindível paraos objetivos do Mercosul, pois que a harmo-nização tributária pressupõe o questiona-mento do princípio do federalismo, que obs-taculiza a possibilidade de implantação doIVA no Brasil, em substituição aos impos-tos IPI, ICMS, ISS, os quais incidentes sobreo consumo (inclusive sobre bens importa-dos) congregam competências legislativasdistintas.

Das propostas apresentadas nesseperíodo, J.K.Nakayama (2003, p. 136) dis-corre sobre o Substitutivo do DeputadoMussa Demes à Proposta de Emenda à Cons-tituição no 175-A/95 listando seus pontoscontroversos, os quais, na sua concepção,contribuíram para que não fosse adiante,destacando nessa proposta a extinção doIPI, ICMS, ISS, COFINS, PIS-PASEP e a cria-ção de um novo ICMS com legislação fede-ral, arrecadação estadual e federal, não cu-mulativos, substituição do IPI e do ISS comalíquota uniforme no país; ICMS seletivo in-cidente sobre grupo de produtos, como ener-gia elétrica e telecomunicações e criação doIVA.

Em sua opinião, a proposta do governo,enviada ao Congresso Nacional, em 1997,pretendia rediscutir o verdadeiro pacto fe-derativo, prevendo a reformulação do Siste-ma Tributário Nacional mediante a criaçãodo IVA, em substituição ao ICMS. Registra,ainda, as propostas de criação de um im-posto único, de Marcos Cintra Cavalcantide Albuquerque; o projeto de Ciro Gomes deimplantação do IVA e cobrança no destino;e a proposta da Academia Brasileira de Di-reito Tributário de criação de um impostocirculatório, substituindo o ICMS, IPI, ISS,PIS e COFINS, além das mini-reformas tri-butárias em 2001, objetivando a unificaçãodo ICMS e ISS; prorrogação da CPMF, e fe-deralização do ICMS, com a uniformizaçãoda legislação do referido imposto.

Em 2003, foi enviada ao Congresso Na-cional, pelo governo Lula, a Proposta deEmenda Constitucional no 41, a qual visava

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alterar o Sistema Tributário Nacional, con-centrando a maior parte dessas mudançasno imposto sobre operações relativas à cir-culação de mercadorias e sobre prestaçõesde serviços de transporte interestadual eintermunicipal e de comunicação – ICMS,cuja competência, para criar e dispor sobreesse tributo, recai no âmbito dos Estados eDistrito Federal.

Vislumbrando as discussões em torno dopacto federativo, em virtude das alteraçõespropostas no ICMS, o governo tratou logode buscar o consenso e apoio dos Governa-dores para que essas mudanças se efetivas-sem. Assim, analisando a proposta do Go-verno e os pareceres técnicos, emitidos pe-los órgãos do Congresso Nacional, pelosquais tramitou, destacam-se os objetivos desimplificação da legislação do ICMS, com aunificação nacional e suas alíquotas e proi-bição expressa das unidades federadas deconcederem incentivo fiscal, bem como atransformação da COFINS e da Contribui-ção do empregador sobre a Folha em inci-dências não cumulativas, permitindo deso-nerar integralmente as exportações dessasincidências, os quais, se alcançados terãoreflexos benéficos no comércio intrabloco.

Embora não haja nenhuma referênciaexpressa nos textos da Proposta de EmendaConstitucional no 41/2003 ao Mercosul,constata-se que ela, embora de forma tími-da, em caso de ter sido aprovada naquelascondições, poderia produzir alterações nosistema tributário nacional que beneficiariama livre circulação das mercadorias entre ospaíses do Bloco, como, por exemplo, a deso-neração dos tributos incidentes sobre a fo-lha de pagamentos que beneficiariam asexportações; a federalização das normasregentes do ICMS, com a unificação das alí-quotas, e a proibição dos Estados concede-rem incentivo fiscal retirando o caráter ex-trafiscal do ICMS.

A proposta de adoção do IVA, em subs-tituição ao ICMS, IPI, ISS foi novamente in-tentada mediante emenda à PEC 41/2003.Contudo, foi rejeitada pelo Relator da Câ-

mara, sob a alegação de que tal medida exi-ge a reformulação das competências dos en-tes da federação, cuja discussão o Executivo eo Congresso esquivaram-se de enfrentar.

Contudo, com o desmembramento daPEC 74/2003/SENADO, que resultou napromulgação da Emenda Constitucional no

42, de 2003, cujo texto não teve nenhum re-flexo positivo para as relações com os par-ceiros do Mercosul, todos os objetivos refe-rentes às alterações do ICMS foram poster-gados para o futuro, na Proposta de Emen-da Constitucional no 228/2004.

O Relator designado pela Comissão Es-pecial, destinada a proferir parecer sobre aProposta de Emenda à Constituição no 228-A, Deputado Virgílio Guimarães, após apre-ciação das cem emendas apresentadas à re-ferida proposta, entendeu por bem sugerir odesdobramento dessa PEC, de no 228-A, comfundamento no art. 57, III do Regimento In-terno, apresentando substitutivo ao textooriginal, com vistas à rápida apreciação detexto que garanta o aumento da partilha daCIDE-combustíveis.

Nota-se pelo estudo das emendas, cons-tante do Parecer, a preocupação dos Parla-mentares com a “partilha dos resultados fi-nanceiros obtidos pela administraçãofederal”, a qual, segundo o Relator “exibecaracterísticas nitidamente distintas dasmatérias tributárias no sentido estrito, istoé, das matérias relacionadas com técnicas decaptação das receitas públicas e de distribui-ção do ônus do financiamento do Estado”.

Desta forma, a solução encontrada, se-gundo o Relator, para “viabilizar uma de-manda majoritária que, por acréscimo, res-ponde ao mais alto interesse público”, foi atransferência, mais uma vez, das grandesalterações que envolvem a essência do ICMS,para uma nova proposta de emenda, agorasob o no 255, de 2004.

5. Conclusão

A harmonização tributária, não há comonegar, é imprescindível para a consolida-

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ção da fase de União Aduaneira, em que seencontra o Mercosul e passe para o objetivofinal que é o mercado comum, com a efetivacirculação dos bens, serviços e fatores deprodução, como foi inicialmente propostono Tratado de Assunção.

O Brasil, sendo um dos maiores parcei-ros do bloco, em contraste com sua iniciati-va e esforços políticos para efetiva concreti-zação do Mercosul, possui os maiores en-traves aos processos de harmonização tri-butária e, conseqüentemente, a sua consoli-dação.

A polêmica acerca da prevalência do di-reito interno sobre o direito internacional ea jurisprudência do Supremo quanto à apli-cação dos tratados, em face de conflito denormas, coloca em xeque a segurança jurí-dica das relações pactuadas pelos governos,retardando a aplicação interna dos objeti-vos oriundos das diversas normas emana-das dos órgãos do Mercosul.

Tendo em vista que a integração econô-mica visa à ampliação do comércio intra-bloco e à circulação de riqueza entre as na-ções que o compõem, e que, para isso, pre-viu o tratado que cada País tomasse as me-didas necessárias à efetivação desses pro-pósitos no mercado interno, no caso brasi-leiro, forçosa é a mudança de preceitos cons-titucionais para eliminar as distorções tri-butárias que afetam a competitividade dosprodutos que circulam intrabloco.

Nesse sentido, as expectativas que en-volviam a PEC no 41, hoje Emenda Consti-tucional no 42, de 2003, resultaram frustra-das em virtude dos objetivos referentes àuniformização e simplificação das normasdo ICMS terem sido transferidas para umanova proposta, a ser apreciada pelo Con-gresso Nacional.

A questão do federalismo fiscal nova-mente retarda os objetivos do Mercosul, as-sim, tendo em vista a dificuldade de se ado-tar imposto semelhante ao praticado pelosdemais Países do Mercosul, mediante refor-ma tributária, alternativas vão sendo bus-cadas para contornar os empecilhos de or-

dem federativa e assim possam os objetivosda integração econômica com esses Paísesserem atingidos.

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1. Introdução

O processo de reformulação da previdên-cia social brasileira teve início em 1995,quando a primeira proposta foi encaminha-da ao Congresso Nacional. Em 16 de dezem-bro de 1998, a proposição foi aprovada econsubstanciada na Emenda 20. A partir dodiagnóstico de que a reformulação empre-endida havia sido insuficiente, o Governoseguinte enviou, em abril de 2003, nova pro-posição ao Congresso Nacional, que, apro-vada em dezembro do mesmo ano, transfor-mou-se na Emenda 41.

O presente estudo mostra um panoramageral do processo de reforma da previdên-cia social no Brasil, com destaque para as

Meiriane Nunes Amaro

O processo de reformulação da previdênciasocial brasileira (1995-2004)

Meiriane Nunes Amaro é Consultora Le-gislativa do Senado Federal e Mestre em Eco-nomia (UnB).

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. ALEXANDREPAIVA DAMASCENO.

Sumário1. Introdução; 2. O problema da previdên-

cia social brasileira; 3. Reforma da previdênciasocial: o que o Executivo queria e o que conse-guiu efetivar com a aprovação da Emenda 20;4. A regulamentação da Emenda 20; 5. Princi-pais resultados da Emenda 20 e restrições ain-da presentes; 6. Emenda 41: a ora e a vez apenasdos servidores públicos, (a) Fixação e reajustedo valor das aposentadorias e pensões, (b) Res-trições ao montante de rendas auferidas – apli-cação do teto, (c) Contribuições de servidoresinativos e de pensionistas, (d) Aposentadoriapor tempo de contribuição – regras transitóri-as, (e) Regime de previdência complementarpara servidores públicos; 7. A “PEC Paralela”;8. Considerações Gerais e Perspectivas.

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mudanças primordiais empreendidas notexto constitucional como resultado dasEmendas 20 e 41, bem como da regulamen-tação da primeira destas emendas constitu-cionais.

O diagnóstico acerca dos principaisproblemas que fundamentaram a neces-sidade de reformulação do sistema de pre-vidência brasileiro precede o panoramamencionado, que inicia com a compara-ção entre o que o Executivo queria e o queconseguiu efetivar mediante as mudan-ças empreendidas na primeira etapa doprocesso de reformulação da previdênciasocial brasileira.

O processo de regulamentação da Emen-da 20 é objeto da parte seguinte, com ênfasenas mudanças na previdência privada e, nocaso do regime geral de previdência social,na instituição do chamado “fator previden-ciário”.

Complementam a análise, os principaisresultados da primeira etapa do processode reforma e sua repercussão nas contasprevidenciárias, enfocados sob o prisma dosimpactos nas previdências pública e priva-da, bem como as principais restrições aindaverificadas.

A análise da segunda etapa do processode reformulação constitucional compõe aparte seguinte do estudo, onde são explici-tados os indiscutíveis avanços alcançadose detalhadas as principais mudanças. Al-guns comentários relativos à denominada“PEC Paralela”, instrumento utilizado paraviabilizar a aprovação da Emenda 41 noSenado Federal e que se encontra em trami-tação na Câmara dos Deputados, conclui aanálise dessa etapa.

Considerações gerais sobre o processode reforma da previdência até aqui empre-endido (fev/2004) e perspectivas acerca deseus rumos encerram o estudo. Afinal, háque se esperar por novas mudanças relevan-tes ou apenas pela concretização das alte-rações legais até aqui estabelecidas, com osajustes que se fizerem necessários?

2. O problema da previdênciasocial brasileira

Os sistemas previdenciários podem ope-rar, basicamente, na forma de dois regimes:capitalização e repartição. No regime decapitalização, os benefícios de cada indiví-duo são custeados pela capitalização pré-via dos recursos das próprias contribuiçõesfeitas ao longo da vida ativa. Já no regimede repartição, os benefícios são financiadospelos segurados que estão contribuindonaquele momento, que, por sua vez, terãoseus benefícios financiados pelos ativos dageração seguinte. Na prática, na maioria dospaíses, os sistemas são híbridos, isto é, hámecanismos de capitalização que convivemcom outros de repartição.

A Constituição de 1988 previu o regimede repartição, pois já havia ocorrido a dila-pidação das reservas capitalizadas pelasantigas caixas e institutos, e foi escrita coma preocupação muito mais de assegurar oacesso de diferentes grupos e categorias aosrecursos transferidos pelo governo, do quede viabilizar as fontes de financiamento quepermitissem atingir esse objetivo. Ela am-pliou o rol de direitos dos servidores públi-cos e, na área rural, incrementou os benefí-cios de meio para um salário mínimo, redu-ziu em cinco anos a idade e o tempo de ser-viço para efeito de aposentadoria e incorpo-rou milhares de trabalhadores que nuncahaviam contribuído para o sistema. O re-sultado foi o expressivo aumento dos gas-tos da previdência social.

Além disso, até recentemente, o Brasil eraum dos poucos países do mundo que ado-tavam a figura da aposentadoria por tempode serviço. Essa figura, combinada com apossibilidade de aposentadoria proporcio-nal, permitiu que um contingente substan-cial de pessoas se aposentasse antes dos 50anos de idade.

Ao lado da generosidade da legislaçãoprevidenciária e da concessão de aposenta-dorias precoces, sobressai, ainda, o envelhe-cimento gradativo da população brasileira

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e sua repercussão na queda da relação en-tre o número de contribuintes e de benefici-ários da previdência social.

Diante dos maiores gastos associados àconjugação desses dois fatores, os sucessi-vos governos foram-se acomodando a essasituação mediante aumento das alíquotascontributivas, o que onera o custo da mão-de-obra e incentiva o trabalho informal.

No âmbito dos regimes de previdênciados servidores, apenas em 1993 foi introdu-zida na Constituição regra que permitiu acobrança de contribuição do servidor parao custeio de sua aposentadoria – até então,a alíquota de contribuição dos servidoresfederais civis era pequena, e destinada ape-nas ao custeio das pensões.

O regime geral de previdência social(RGPS), gerido pelo Instituto Nacional doSeguro Social (INSS), alcança basicamenteos empregados regidos pela CLT, sendo cus-teado por contribuições dos empregados edos empregadores. Para os segurados, opiso atual dos beneficiários é de um saláriomínimo e o teto, desde janeiro de 2004, é deR$ 2.400,00, o que equivale a dez saláriosmínimos.

As despesas com benefícios previdenci-ários do INSS subiram de 2,5% do PIB em1988, ano da promulgação da atual CartaMagna, para 6,7% em 2002. Como resultadodesse aumento de gastos, do menor cresci-mento do PIB e da expansão do desemprego eda informalidade, que afetam negativamentea receita do sistema, constata-se, desde 1995,um contínuo crescimento do saldo negativoentre arrecadação e pagamento do RGPS.

Com relação ao regime próprio de previ-dência do servidor público (RPSP)1 , este temsemelhanças com o regime de repartição doINSS, mas sempre existiram diferenças sig-nificativas. Uma delas se refere à gestão doregime, que ainda é feita conjuntamente coma do pessoal ativo, como se não houvessequalquer diferença entre ativos e inativos.Nesse sentido, o governo deixa de explici-tar qualquer recolhimento de contribuiçãopara aposentadorias e pensões. Paga, sim-

plesmente, o valor corrente desses benefíci-os, incorporando, na sua receita geral, quais-quer contribuições cobradas dos funcioná-rios ativos.

Além disso, até fins de 2003, o valor doprovento de aposentadoria e da pensão eramaior do que a última remuneração líquidado servidor quando em atividade, na medi-da em que correspondia à sua última remu-neração bruta (integralidade) sem incidên-cia de contribuição previdenciária. Ou seja,não tinha qualquer relação com as contri-buições recolhidas. Ademais, tais benefíci-os eram sempre reajustados na mesma pro-porção do aumento da remuneração do car-go que gerou a aposentadoria/pensão (pa-ridade de reajustes), o que, muitas vezes, sig-nificou concessão de aumentos reais. Am-bas as sistemáticas inexistem em qualquersistema efetivamente previdenciário. Emoutras palavras, o regime dos servidorespúblicos nunca foi, realmente, um regimeprevidenciário, mas, sim, um item da des-pesa pública.

Como resultado das sistemáticas menci-onadas e de outras diferenciações, comoexistência de teto para os benefícios doRGPS, os valores pagos aos inativos do ser-viço público sempre foram, em média, maiselevados do que os efetuados no regime ge-ral da previdência. Como ilustração, o valormédio da aposentadoria por tempo de con-tribuição no RGPS foi, entre junho de 2002 emaio de 2003, R$ 773,29. Em contrapartida,os inativos do Poder Executivo do setor pú-blico federal perceberam, no mesmo perío-do, o valor médio de R$ 2.396,00.

As despesas do regime dos servidorescivis da União têm se mantido, desde 1996,em torno de 1% do PIB. Contudo, a diminui-ção na contratação de novos servidores e aconseqüente redução da força de trabalhono serviço público, nos últimos anos, fize-ram cair sobremaneira as receitas previden-ciárias. Como resultado, aumentou o des-compasso entre a receita das contribuiçõesdos servidores na ativa e os benefícios rece-bidos por inativos e pensionistas. Como

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exemplo, em 2002, o governo central pagouR$ 31,7 bilhões a cerca de 944 mil aposenta-dos e pensionistas enquanto recolheu R$ 3,2bilhões em contribuições de apenas 883 milservidores (os dados incluem os militares).

A grave situação financeira no âmbitodos regimes próprios de previdência deve-se também à forma como foi estruturada aprevidência dos servidores na Constituiçãode 1988. Até os anos 80, além dos servido-res estatutários, a administração públicafederal, estadual e municipal era compostapor grande contingente de servidores regi-dos pela CLT.

Após a promulgação da CF de 1988, amaior parte dos celetistas foi convertida emestatutários com a instituição do RegimeJurídico Único, que previa também a possi-bilidade da existência de regimes própriosde previdência no âmbito dos estados e dosmunicípios. Os estados e grande parte dosmunicípios adotaram essa política, assu-mindo a responsabilidade pelo passivo pre-videnciário desses servidores que, anterior-mente, haviam contribuído para o RGPS. Aolongo do tempo, os encargos com benefíciosforam se avolumando e o desequilíbrio dosregimes próprios de previdência, se agra-vando. Em 2002, a necessidade de financia-mento da previdência dos servidores (con-tribuições dos funcionários e dos entes fe-derados menos pagamento de benefícios)dos estados e dos municípios foi, respecti-vamente, de R$ 14,5 e de R$ 2,4 bilhões (1,1%e 0,2 % do PIB).

Na União, além ter ocorrido o mesmoprocesso, a descentralização proporciona-da pela Carta de 1988 redundou num esto-que de servidores federais que foram sendorepostos por estaduais ou municipais, bemcomo a redução de servidores passou a con-figurar estratégia de gestão administrativapossibilitada pela Emenda Constitucionalno 19, de 1998 (Reforma Administrativa).Resultado: em 2002, a necessidade de finan-ciamento do regime de previdência dos ser-vidores federais (incluídos os militares) cor-respondeu a R$ 22,9 bilhões (1,7% do PIB).

Outro tema diretamente relacionado como déficit previdenciário é o reajuste do salá-rio mínimo. Como se sabe, desde a promul-gação da CF de 1988, esse salário tornou-seo piso para os benefícios da seguridade so-cial. Isso significa que, a todo aumento dosalário mínimo, os benefícios previdenciá-rios que se encontram entre o valor antigo e onovo piso nacional recebem um incremento.

Para se avaliar o aumento dos gastosprevidenciários a cada elevação do saláriomínimo, temos que considerar seu reflexotanto na receita, em função da expansão dabase tributável em termos de valor, como nadespesa, em decorrência dos maiores bene-fícios pagos. O problema é que a despesaaumenta muito mais que a receita. Essa dis-paridade acontece porque 66% dos benefí-cios pagos no RGPS correspondem ao valordo salário mínimo, enquanto a maior parteda receita advém das contribuições inciden-tes sobre remunerações superiores a essevalor, as quais não são aumentadas na mes-ma proporção da elevação do piso salarialda economia.

Em suma, o problema da previdênciasocial é essencialmente de ordem financei-ra, embora argumentos vinculados à buscade maior eqüidade social, de forma a fazerconvergirem as regras entre o RGPS e oRPSP, sejam também levantados para justi-ficar a necessidade de reformulação do sis-tema.

3. Reforma da previdência social: o queo Executivo queria e o que conseguiu

efetivar com a aprovação da Emenda 20

Inicialmente, a coordenada central daproposta de reformulação da previdênciabrasileira era a unificação dos regimes pre-videnciários dos servidores públicos (inclu-sive dos militares) e dos trabalhadores dainiciativa privada e a criação de dois siste-mas gerais: um básico e unificado, com be-nefícios limitados a valor inferior ao teto doRGPS (em torno de três salários mínimos) eoperado pelo regime de repartição; e outro

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complementar e baseado na capitalização,destinado a atender àqueles com remunera-ção superior ao valor máximo estabelecidono regime básico. Este último sistema, porseu turno, seria obrigatório até dez saláriosmínimos e voluntário a partir deste valor.Tal concepção, conhecida como “modelo detrês pilares”, baseava-se em estudos e indi-cações de técnicos e instituições internacio-nais.

Todavia, ao longo do processo inicial deanálise e discussão da matéria, tal mudan-ça estrutural do sistema provou ser implau-sível, seja do ponto de vista político, seja dofinanceiro. No primeiro caso, havia o poderde influência dos lobbies corporativos. Nosegundo, o elevado custo financeiro da tran-sição entre o sistema previdenciário vigentee o novo, em especial num ambiente de sériarestrição fiscal.

Assim, pressionado pela perspectivaconcreta de déficits orçamentários crescen-tes, o Governo Fernando Henrique Cardoso(FHC) encaminhou ao Congresso, em mar-ço de 1995, uma proposta de reforma da pre-vidência social que buscou o caminho maisfactível para sua aprovação: manutençãodos três principais regimes – dos trabalha-dores da iniciativa privada, dos servidorespúblicos civis e dos militares –, mas sujeitosa regras uniformes (embora com importan-tes exceções). Isso significou a continuida-de do modelo de dois pilares: o primeiro re-presentado pelos regimes obrigatórios(RGPS e os regimes próprios dos servidorespúblicos); o segundo, pelos voluntários (pre-vidência privada). Ademais, a proposta go-vernamental retirava da Constituição osdetalhamentos dos regimes existentes (“des-constitucionalização”), restringia os planosde benefícios e exigia contribuições de apo-sentados e pensionistas.

Após o longo processo de tramitação damatéria no Congresso Nacional, muitos pon-tos da proposta original não conseguiramser aprovados, não se concretizando, inclu-sive, a intenção de “desconstitucionalizar”a matéria. Com efeito, o texto final da emen-

da ficou ainda mais detalhado do que o daCF de 1988.

A Emenda 20, promulgada em dezem-bro de 1998, igualou algumas regras doRGPS e do RPSP. O regime das forças arma-das, entretanto, foi mantido intacto. Ademais,após a aprovação da Emenda Constitucio-nal nº 18, de 1998, os militares – membrosdas Forças Armadas e das polícias milita-res e corpos de bombeiros militares – passa-ram a ser considerados tão-somente milita-res da União, dos estados, do DF e dos terri-tórios, deixando de ser considerados servi-dores públicos.

Não obstante, vários avanços foram al-cançados (ajustes paramétricos). Dentre osprincipais, pode-se destacar a introduçãode dispositivos direcionados a reduzir, nomédio e no longo prazos, os gastos do Te-souro com a folha de pagamento de servi-dores inativos e pensionistas, valendo ci-tar:

a) imposição de idade mínima para apo-sentadoria integral por tempo de contribui-ção: 60 anos para homem e 55 anos paramulher;

b) imposição de dez anos de serviço pú-blico para habilitação a aposentadorias pro-gramáveis e de cinco anos no cargo ocupado;

c) fim da acumulação de aposentadori-as, bem como impossibilidade de aumentode renda quando da passagem do servidorpara a inatividade;

d) restrições à acumulação de aposenta-doria e salário e imposição de teto a qual-quer rendimento oriundo dos cofres públi-cos (não efetivado por falta de legislaçãoinfraconstitucional).

A imposição da idade objetivou reduziras despesas previdenciárias no médio e nolongo prazos, tendo em vista que força oadiamento do pedido de aposentadoria, di-minuindo o tempo de seu usufruto. A exi-gência da carência de dez anos no serviçopúblico cumpriu o objetivo de aproximar ofluxo de receitas oriundas de contribuiçõese o de gastos com pagamento de benefícios.Isso, porque passou a impedir que pessoas

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que sempre tivessem trabalhado no setorprivado, tendo, portanto, contribuído parao RGPS com base em salário de contribui-ção de valor limitado (a no máximo dez sa-lários mínimos), ingressassem no serviçopúblico, nos últimos anos de atividade, re-querendo aposentadoria, pouco depois, gra-ças à contagem recíproca de tempo de con-tribuição. Nesses casos, em especial quan-do o cargo público ocupado proporcionavaelevada remuneração, era totalmente inad-missível, sob o ponto de vista da coletivida-de, a disparidade entre as contribuições re-alizadas, necessariamente limitadas ao tetodo RGPS, e o montante recebido de aposen-tadoria e pensão, cujo cálculo do valor ain-da tomava por base a remuneração integraldo servidor. A mesma lógica aplicou-se àexigência de cinco anos no cargo. Como obenefício era definido com base na remune-ração do servidor no último cargo ocupado(aposentadoria integral), e não em toda suavida contributiva, garantiu-se que, pelo me-nos durante cinco anos, as contribuiçõesfossem mais compatíveis com o valor dobenefício.

Com relação à imposição do teto remu-neratório, vale adicionar que, até o adventoda Emenda 20, o teto valia para o valor decada remuneração, provento e pensão, con-siderado individualmente. Com a emenda,passou a ser aplicado à soma total dos pro-ventos (inclusive quando decorrentes daacumulação de cargos ou empregos públi-cos e de atividades sujeitas à contribuiçãopara o RGPS) e à adição dos proventos compensão e com remuneração de cargo acu-mulável na forma da Constituição, de cargoem comissão e de cargo eletivo. Tal teto tam-bém ficou estabelecido na Reforma Admi-nistrativa. Ademais, nas duas reformas,além de não se ter previsto regra de transi-ção, não se reconheceu, em princípio, direi-to adquirido.

Contudo, as restrições vinculadas à im-posição de teto no setor público não passa-ram de um conjunto de “boas intenções”. Olimite estipulado na Emenda 20 não che-

gou a ser efetivamente implementado. Porum lado, todas as vantagens pessoais fica-ram fora do limite máximo constitucionali-zado, de acordo com jurisprudência firma-da pelo STF. Por outro, a Reforma Adminis-trativa, que, dentre outros objetivos, buscouresolver a questão, não o fez definitivamen-te. Isso, porque sua vigência passou a de-pender de regulamentação infraconstitucio-nal, que não chegou a ser editada.

Outra inovação fundamental foi a pos-sibilidade de criação de fundos de pensãofederal, estaduais e municipais. A Emenda20 estipulou que a União, os estados, o DF eos municípios, desde que instituíssem taisfundos, poderiam fixar o mesmo teto doRGPS para as aposentadorias e pensões aserem concedidas a seus servidores. Comisso, ficou aberta a possibilidade de insti-tuição de limite superior aos rendimentossujeitos às regras previdenciárias específi-cas dos servidores públicos, equivalente aoteto do RGPS. Ou seja, desde que criado oregime de previdência complementar, po-der-se-ia eliminar a aposentadoria e pensãointegrais e a correção pela paridade para osservidores com maiores salários, no caso,aqueles que recebem mais que o teto do regi-me geral de previdência.

Ressalte-se que essa situação se aplica-va ao servidor que ingressasse no serviçopúblico após a publicação do ato de insti-tuição do correspondente regime de previ-dência complementar, que, por seu turno,só poderia ser instituído depois da vigênciada lei complementar sobre o assunto. Paraos demais servidores, a aplicação da novasistemática só poderia ocorrer medianteopção.

Resumindo, ficou previsto o estabeleci-mento de um sistema semelhante ao vigenteno âmbito do RGPS: benefícios sujeitos a umteto, nunca superior a valor correspondentea cerca de dez salários mínimos. Rendimen-tos adicionais, somente se oriundos da pre-vidência complementar, que dificilmentegarantiria a percepção dos rendimentosmédios auferidos pelo servidor quando em

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atividade. Com efeito, a expectativa era queos planos de previdência a serem criadosfossem baseados no sistema de “contribui-ção definida”, onde benefícios futuros de-pendem da capitalização das contribuições,ao invés de “benefício definido”, onde ovalor dos benefícios é garantido indepen-dentemente do montante acumulado nascontas individuais. Isso, porque o primeirosistema é mais apropriado à garantia deequilíbrio de longo prazo dos fundos depensão.

Sublinhe-se que a maioria dos dispositi-vos constitucionais modificados na área doserviço público, grande foco da Emenda 20,seguiu a premissa básica de redução de des-pesas, embora tenham cumprido, acessoria-mente, o objetivo de aproximar os requisitose critérios vigentes para o regime de previ-dência dos servidores civis e para o RGPS.

Abrangendo tanto o regime dos servido-res quanto o geral, pode-se mencionar a ex-tinção da aposentadoria proporcional, a re-dução do elenco de professores contempla-dos com aposentadoria especial e a substi-tuição da aposentadoria por tempo de ser-viço pela aposentadoria por tempo de con-tribuição.

Especificamente quanto ao RGPS, pou-cas foram as alterações empreendidas, ca-bendo destacar apenas a abertura do segu-ro de acidentes do trabalho para o setor pri-vado. Quanto à inovação, cabe lembrar que,embora há muitos anos o risco de acidenteslaborais seja coberto com exclusividade pelaprevidência social, nem sempre foi assim.Com efeito, houve períodos em que a con-cessão de tal benefício era responsabilida-de exclusiva do setor privado. Nessa época,era comum acidentados não receberem, deimediato, o benefício, principalmente os devalor mais elevado, devido a questionamen-tos pela seguradora quanto à caracteriza-ção ou não do ocorrido como acidente dotrabalho. Assim, é aconselhável que a regu-lamentação futura da matéria seja ampla-mente discutida, a fim de que não se repi-tam erros do passado.

No que concerne ao regime de previdên-cia privada, que acumula um estoque de re-cursos da ordem de 14% do PIB (R$ 202 bi-lhões, em abril de 2003), dos quais 62% per-tencentes aos fundos patrocinados por em-presas públicas, era fundamental buscarsoluções para o importante foco de cresci-mento do déficit público oriundo do relacio-namento entre tais empresas e seus respec-tivos fundos. Assim, não surpreende que asprincipais mudanças relacionadas a essesegmento, na Emenda 20, também tenhamobjetivado a redução de gastos públicos,nesse caso aqueles representados pelos re-cursos públicos direcionados aos fundos depensão patrocinados por empresas estatais.

Nesse contexto, dois dispositivos funda-mentais devem ser ressaltados. O primeiroestabeleceu que os fundos de pensão patro-cinados por entidades públicas deveriamrever seus planos de benefícios e serviços,de modo a ajustá-los atuarialmente a seusativos. Ou seja, impôs-se “disciplina finan-ceira e atuarial” a esses fundos. O segundo,e mais importante, reiterou a proposta inici-al do Executivo de estabelecer a paridadeentre as contribuições dos participantes edo patrocinador público.

A Emenda 20 estabeleceu ainda que trêsleis complementares deveriam passar a re-gular o regime de previdência privada noBrasil: (a) uma estabelecendo as regras ge-rais do sistema, destinada a modernizar aprevidência privada como um todo; (b) ou-tra direcionada a fixar regras específicas aorelacionamento entre empresas estatais eseus fundos de pensão; (c) outra dispondosobre as normas gerais para instituição deregime de previdência complementar pelaUnião, estados, DF e municípios.

Em termos gerais, é importante destacarque a Emenda 20 preservou os direitos ad-quiridos daqueles que, até a data de suapublicação, tivessem cumprido os requisi-tos para obter aposentadoria e pensão.

Por fim, sublinhe-se que o texto final daemenda deixou de contemplar os seguintespontos cruciais (além da não-aplicação efe-

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Revista de Informação Legislativa274

tiva do teto remuneratório para o setor pú-blico):

(a) limites de idade nas regras da apo-sentadoria por tempo de contribuição dostrabalhadores da iniciativa privada;

(b) incidência de contribuição previden-ciária sobre aposentadorias e pensões noâmbito do setor público (a partir do teto doRGPS);

(c) fim da paridade entre ativos e inati-vos/pensionistas.

A rejeição pelo Congresso Nacional daimposição de limites mínimos de idade paraefeito de habilitação à aposentadoria portempo de contribuição pelo RGPS foi umduro golpe para o Executivo, que conside-rava essa a principal medida de contençãode despesas, e mesmo de aperfeiçoamentoda eqüidade social, no âmbito do regime emquestão. Com isso, as condições para a per-cepção desse benefício pelos trabalhadoresda iniciativa privada ficaram praticamenteinalteradas, introduzindo, assim, uma dife-renciação marcante em comparação com osservidores públicos, para os quais foi esta-belecida a exigência de idades mínimas.

O recolhimento de contribuições previ-denciárias por parte de servidores aposen-tados e pensionistas era outro ponto impor-tante, em especial porque representava umadas poucas medidas com impacto de curtoprazo nas contas públicas. Aqui, o argu-mento governamental básico sempre esteverelacionado à iniqüidade e à falta de sus-tentação financeira de benefícios que supe-ram a renda líquida do servidor em ativida-de. Além disso, ao viger o regime financeirode repartição simples e não o de capitaliza-ção, a contribuição não representa apropri-ação indevida, mas, sim, participação soli-dária no custeio dos próprios benefícios cor-rentes.

Por fim, com relação à eliminação da re-gra de reajustes pela paridade, sua impor-tância residia na expressiva repercussão fi-nanceira do dispositivo, na medida em quequalquer revisão na remuneração dos ati-vos, inclusive aumento real decorrente de

transformação ou reclassificação de cargo,tem que ser repassada aos correspondentesservidores inativos e aos pensionistas. As-sim, além de desestimular a melhoria decarreiras específicas, a paridade faz com queos gastos com a folha de pagamento dosaposentados e pensionistas cresçam subs-tancialmente.

4. A regulamentação da Emenda 20

A Emenda 20, além de ter instituídomudanças imediatas nos regimes de previ-dência existentes, abriu caminho para mo-dificações posteriores, por intermédio de leisdestinadas a regulamentar diversos dispo-sitivos constitucionais.

No caso da previdência privada, dentreas três leis complementares previstas, duasforam promulgadas: Leis Complementaresno 108 e 109, ambas de 29 de maio de 2001.A primeira regulamentou as novas restri-ções impostas ao relacionamento entre asempresas estatais, enquanto patrocinadorasde fundos de pensão, e suas respectivas en-tidades fechadas de previdência comple-mentar. A segunda, e mais importante, esta-beleceu as regras gerais vigentes para todoo sistema de previdência privada comple-mentar, seja na esfera de patrocinadorespúblicos, seja na de privados, (antes dispos-tas na Lei no 6.435, de 15 de julho de 1977).

Esta lei geral trouxe substanciais mudan-ças rumo à modernização do regime de pre-vidência complementar no Brasil, conferin-do-lhe maior flexibilidade, credibilidade etransparência, bem como fortalecendo a ca-pacidade de regulação e fiscalização porparte do Estado. Preservou a organizaçãobásica do sistema em entidades de previ-dência complementar fechadas (acessíveisapenas aos empregados de patrocinadorasou associados de instituidores) e abertas(acessíveis a qualquer pessoa física), masconferiu relevância às entidades multipa-trocinadas (aquelas que congregam mais deum patrocinador ou instituidor) e aos mul-tiplanos (entidades que administram pla-

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nos para diversos grupos de participantes,com independência patrimonial).

Outra inovação foi a criação da figurado “instituidor”, como forma de constitui-ção de entidades fechadas de previdência.O objetivo foi permitir que as pessoas jurídi-cas de caráter profissional (associações, sin-dicatos, federações) também instituam, paraseus associados, planos de previdênciacomplementar. Assim, a tendência é que afigura do “instituidor” democratize o aces-so de expressiva parcela da população à pre-vidência fechada, até então restrito aos em-pregados de empresas. Ao mesmo tempo, afigura da patrocinadora foi mantida e ampli-ada, ao incluir nessa categoria os entes federa-dos, quando instituírem entidades de previ-dência complementar para seus servidores.

Outro aspecto de extrema relevância foia introdução da chamada “portabilidade”e do vesting (benefício diferido). A “portabi-lidade” significa a possibilidade de trans-ferência, de uma entidade para outra, dapoupança acumulada pelo participante. Ovesting, a possibilidade de o participantereceber a devolução de sua poupança naforma de benefício proporcional diferido.Dessa forma, o participante que saia de umaempresa patrocinadora pode ou levar seusrecursos para outra entidade de previdên-cia privada ou optar por receber o benefícioproporcional ao seu tempo de contribuiçãona data em que se tornar elegível para obtê-lo.

Por fim, sublinhe-se que o Governo quetomou posse em 2003 posicionou, a princí-pio, a aprovação do projeto de lei que trata-va das normas para instituição da previdên-cia complementar pela União, estados, DF emunicípios (Projeto de Lei no 9, de 1999),previsto na Emenda 20, como um dos prin-cipais temas da legislatura que se iniciava.Contudo, a tramitação legislativa da propo-sição mostrou-se desfavorável aos objetivosgovernamentais. Assim, o Executivo prefe-riu desconsiderar o projeto. Com isso, a novaproposta de reforma previdenciária, enca-minhada ao Congresso Nacional, em abrilde 2003, não mais previu a edição de lei para

regulamentar o estabelecimento de tal previ-dência complementar. Restringiu-se a reite-rar a possibilidade e estipular algumas nor-mas gerais no texto da própria Constituição.

Com relação ao RGPS, cabe ressaltar quea Emenda 20, ao “desconstitucionalizar” asregras de cálculo do valor dos benefícios eestabelecer, explicitamente, o caráter contri-butivo da previdência social e seu necessá-rio equilíbrio atuarial e financeiro, abriucaminho para substancial alteração no cál-culo dos benefícios (Lei no 9.876, de 26 denovembro de 1999). Isso se deu mediante aintrodução do fator previdenciário no cál-culo da aposentadoria por tempo de contri-buição. Com ele, foram inseridos a expecta-tiva de sobrevida, a idade e o tempo de con-tribuição do segurado, ou seja, critérios atu-ariais que aumentam a correlação entre con-tribuição e benefício, de tal forma que o se-gurado que sai mais cedo, provocando de-sembolso antecipado, recebe, em contrapar-tida, aposentadoria de menor valor. Ade-mais, ao invés de considerar apenas os últi-mos três anos de contribuição como basepara a fixação do valor da aposentadoria,como antes estabelecido na CF, o novo cál-culo considera toda a vida laboral do traba-lhador (a partir de julho de 1994).

Verifica-se, pois, que a introdução do fa-tor previdenciário compensou, em grandemedida, a não-estipulação de limites de ida-de para concessão da aposentadoria portempo de contribuição para os trabalhado-res da iniciativa privada, representando pas-so significativo em direção à construção deum sistema previdenciário mais equilibrado.

5. Principais resultados da Emenda 20e restrições ainda presentes

Embora seja cedo para computar os efe-tivos resultados de uma reforma aprovadahá apenas cinco anos e cujos impactos subs-tanciais são de médio e longo prazo, valeapontar alguns dados disponíveis.

Nos quase quatro anos em que a primei-ra proposta de reforma da previdência tra-

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mitou no Congresso Nacional, o cenário dasfinanças públicas, que levou o Governo FHCa encaminhá-la, agravou-se progressiva-mente. Entre 1995 e 1998, o déficit entre aarrecadação líquida do INSS e os gastos combenefícios previdenciários passou de R$ 465milhões para R$ 10,2 bilhões, ou seja, au-mentou cerca de 2.000%. Nos quatro anosseguintes, ou seja, após a reforma e sua re-gulamentação, o aumento do déficit foi bemmenos expressivo – 79%.

Outra variável relevante foi a elevaçãoda idade média de concessão da aposenta-doria por tempo de contribuição dos segu-

rados que tiveram o valor de seus benefíciosafetados pela Lei no 9.876/99. Esta aumen-tou de 48,9 para 53,2 anos entre 1998 e20022 .

Também vale destacar que projeções atu-ariais da Secretaria de Previdência Socialindicam que o déficit do RGPS em relaçãoao PIB tendia a se estabilizar em torno de1,20%, como decorrência das medidas im-plementadas no bojo da primeira etapa dareforma da previdência. Situação bastantedistinta da projeção da relação déficit/PIBquando se considera a inexistência da Emen-da 20 e leis posteriores:

Fonte: SPS/MPAS

Projeções de Déficit do RGPS

0

1

2

3

4

2002

2004

2006

2008

2010

2012

2014

2016

2018

2020

% P

IB Com reformaSem reforma

Comprovam-se, pois, os primeiros resul-tados positivos das mudanças implemen-tadas e a tendência de melhoria no longoprazo. Mesmo assim, não há como negar quea situação continuou crítica. Em 2001, o dé-ficit do RGPS foi da ordem de R$ 12,8 bi-

lhões, equivalente a 1,1% do PIB, o que re-presentou aumento real de 18% em relaçãoao ano anterior. No ano seguinte, passoupara R$ 17 bilhões, ou seja, 1,3% do PIB,conforme pode ser ilustrado na tabela abai-xo.

Evolução da arrecadação líquida, despesa com benefícios previdenciários e saldoprevidenciário, segundo a clientela urbana e rural – 1997/2002

(Valores em R$ milhões correntes)

ANO CLIENTELA ARRECADAÇÃO LÍQUIDA (a)

BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS (b)

SALDO (a – b)

1997 TOTAL

Urbana Rural

44.148 42.670 1.478

47.249 38.182 9.067

-3.101 4.488 -7.589

1998 TOTAL

Urbana Rural

46.641 45.301 1.340

53.743 43.872 9.870

-7.102 1.429 -8.531

1999 TOTAL

Urbana Rural

49.128 47.801 1.327

58.540 47.886 10.654

-9.412 -85

-9.328

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Não obstante, é importante analisar cor-retamente os dados concernentes a esse dé-ficit. Como se sabe, dentre as mudanças ad-vindas da CF de 1988, destacam-se as refe-rentes aos trabalhadores rurais. Embora taismudanças tenham representado substanci-al avanço social, não foram acompanhadasde correspondente fonte de receitas que via-bilizasse o equilíbrio financeiro de longoprazo do sistema. Com efeito, as contribui-ções oriundas da área rural nunca ultrapas-saram 13% dos dispêndios totais com bene-fícios rurais.

Nesse contexto, o que se verifica é que acomponente básica do déficit do RGPS en-contra-se na área rural, onde milhões de se-gurados recebem benefícios sem terem apor-tado as respectivas contribuições ao siste-ma. Os dados da tabela anterior demons-tram essa assertiva, possibilitando verificarque a previdência na área urbana é pratica-mente equilibrada. Na verdade, a maioriados segurados da área rural não configu-ram típicos participantes de um seguro so-cial como o previdenciário. Representam, emrealidade, beneficiários da assistência soci-al, onde não se exige contribuição préviapara usufruto de benefício. Como tais, deve-riam, ter o custeio de suas aposentadoriassob a responsabilidade da assistência soci-al, a partir de contribuições gerais, e não daprevidência.

Tal percepção é essencial, na medida emque permite que se discuta de forma apro-priada a questão vinculada ao montantereal do déficit do RGPS. Isso é, que se saibaque ele embute expressivo montante de gas-tos que deveriam estar em outra rubrica, a

da assistência social. Na verdade, a previ-dência conduz o maior programa de assis-tência social do país, porquanto, segundoestimativa da Secretaria de Previdência So-cial, retira 18 milhões de pessoas da linhade pobreza.

Outro condicionante significativo doaumento do déficit do RGPS é a política deelevação gradual do valor real do saláriomínimo – que representa o valor do benefí-cio da maior parte dos participantes da pre-vidência social – que vem sendo implemen-tada nos últimos anos. Entre maio de 1997 emarço de 2002, enquanto a inflação foi32,87%, o salário mínimo foi reajustado em66,67%. Ou seja, foi objeto de aumento realde 25,44%.

Há, ainda, outro fator não-atuarial queinfluencia significativamente o déficit: asrenúncias previdenciárias presentes nossetores com regras especiais (empresas doSIMPLES, segurados especiais, entidadesfilantrópicas, empregadores rurais e domés-ticos, clubes de futebol), estimadas em R$10,8 bilhões em 2002.

Em suma, a despeito dos componentesatuariais, por trás do déficit da previdênciasocial estão: (a) a política assistencial detransferência de renda da área urbana paraa rural; (b) política de distribuição de rendapor meio de aumentos reais conferidos aosalário-mínimo; (c) políticas de subsídios adeterminados setores. Ou seja, tal desequi-líbrio repousa muito mais na utilização daprevidência para efetivação de políticas so-ciais de cunho eminentemente assistenciaisdo que nas regras intrínsecas ao seguro so-cial previdenciário.

ANO CLIENTELA ARRECADAÇÃO LÍQUIDA (a)

BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS (b)

SALDO (a – b)

2000 TOTAL

Urbana Rural

55.715 54.172 1.543

65.787 53.614 12.173

-10.072 558

-10.630

2001 TOTAL

Urbana Rural

62.492 60.651 1.841

75.328 60.711 14.617

-12.836 -60

-12.776

2002 TOTAL

Urbana Rural

71.028 68.726 2.302

88.027 70.954 17.072

-16.999 -2.228

-14.770 Fonte: SPS/MPAS.

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Quanto ao regime especial dos servido-res públicos, os impactos preliminares daEmenda 20 ficam evidentes quando se nota

a diminuição brusca das aposentadoriasconcedidas após 1998, conforme ilustra ográfico a seguir.

Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal-Julho/2002 - MPOG

Evolução do Quantitativo de Aposentadorias Civis da União

0

1000

2000

3000

4000

5000

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

Méd

ia m

ensa

l

Também alvissareira foi a projeção dedeclínio e estabilização – em torno de 1,0%– da participação da necessidade de finan-ciamento da previdência dos servidores fe-derais civis no PIB, no período 2003/2020,constante do Projeto de Lei de DiretrizesOrçamentárias (LDO) – 2003.

Não obstante, mesmo com os avançosmencionados, ainda persiste sério desequi-líbrio entre receitas e despesas. Basta ver queo Estado (governos federal, estadual e mu-nicipal) pagou em benefícios R$ 61,0 bilhõese arrecadou apenas R$ 7,3 bilhões no exer-cício de 2002. Considerando a contribuiçãode 22% sobre a folha de pagamento, quepode ser arbitrada ao Estado como empre-gador, a necessidade de financiamento daprevidência no setor público (diferença en-tre as despesas com inativos e pensionistase as receitas de contribuições), em 2002, cor-respondeu R$ 39,1 bilhões, representando3% do PIB brasileiro.

É importante frisar, entretanto, que osdados acima incluem os militares, cujo regi-me de previdência não foi alvo de qualquermudança, e cujos proventos de inatividadee pensões representam cerca de 36% dosgastos com inativos e pensionistas do setorpúblico, mas cujas contribuições represen-tam apenas 0,5% do total das contribuiçõesrecolhidas para os dois sistemas.

6. Emenda 41: a hora e a vez apenasdos servidores públicos

Baseado no diagnóstico antes menciona-do acerca do desequilíbrio financeiro e atua-rial do regime geral, o Governo que assumiuo país em 2003 considerou que seu aprimo-ramento deveria ter como foco medidas decaráter gerencial, tais como: (a) incentivo àfiliação e contribuição, na tentativa de trazerpara a previdência social o enorme contin-gente de trabalhadores alocados no mercadode trabalho informal (atualmente maior queo mercado formal)3 ; (b) combate à sonegaçãoe às fraudes, melhoria dos serviços de aten-dimento, ampliação do esforço de recupera-ção de créditos e aumento da arrecadação.

No caso da previdência privada comple-mentar, a Emenda 20 e posterior regulamen-tação (Leis Complementares no 108 e 109)foram consideradas suficientes para impri-mir os rumos modernizantes essenciais paraa expansão e consolidação do sistema, bemcomo para o equilíbrio atuarial no escopodos fundos de pensão patrocinados porempresas públicas.

Em contrapartida, o diagnóstico do novoGoverno em relação ao RPSP era o de querestava muito a aprimorar nesse regime. Emespecial, porque a respectiva necessidadede financiamento, ao representar 3% do PIB,

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pressiona sobremaneira as contas públicase compromete o necessário ajuste fiscal doEstado. Assim, o Governo Lula propôs àsociedade brasileira o aprofundamento dasmedidas até então implementadas, no quese refere aos regimes próprios dos servido-res. Tal proposta foi encaminhada ao Con-gresso Nacional em abril de 2003 e, depoisde apenas oito meses de tramitação, con-substanciou-se na Emenda 41.

Nessa segunda etapa do processo de re-formulação da previdência social brasilei-ra, apenas duas medidas impactaram oRGPS. Uma, a elevação do teto de benefíciose de contribuições para R$ 2.400,00, de for-ma a restabelecer o valor equivalente a dezsalários mínimos da época da aprovação daEmenda 20. Outra, a previsão de lei desti-nada a instituir um sistema especial de in-clusão previdenciária para trabalhadores debaixa renda, que lhes garanta acesso a bene-fícios no valor de um salário mínimo (excetoaposentadoria por tempo de contribuição).

No caso dos militares, a eles se aplicouapenas a sujeição ao teto e aos subtetos re-muneratórios do setor público. Na verdade,a Emenda 41 desconstitucionalizou as nor-mas referentes às aposentadorias e pensõesdos militares, permitindo que a matéria sejadisciplinada apenas por lei ordinária.

Todas as demais medidas só atingiramos servidores públicos e foram bem maisseveras do que as constantes da proposta

de emenda constitucional inicialmente apre-sentada pelo Governo FHC.

Em linhas gerais, a nova proposta de re-forma seguiu o mesmo rumo inicialmentetraçado pela Emenda 20. Dessa vez, no en-tanto, a força política do novo governo deesquerda instaurado no poder conseguiuimplantar medidas duras, antes eficazmen-te combatidas por esta mesma força políticae, portanto, politicamente inviabilizadas.Com efeito, o Governo Lula conseguiu nãoapenas efetivar as principais medidas rela-tivas ao regime do servidor que ficaram foradas modificações até então empreendidas,como ir além. Ademais, ao contrário da ex-periência anterior, conseguiu aprovar pra-ticamente tudo o que quis (e em tempo re-corde), ou seja, conseguiu manter as linhasbásicas de sua proposta inicial.

Analisam-se, a seguir, as principaismudanças advindas da promulgação daEmenda 41 (ajustes paramétricos), agrupa-das nos seguintes temas:

• fixação e reajuste do valor das aposen-tadorias e pensões;

• restrições ao montante de rendas aufe-ridas – aplicação do teto;

• contribuições de servidores inativos ede pensionistas;

• aposentadoria por tempo de contribui-ção – regras transitórias;

• regime de previdência complementarpara servidores públicos.

(a) Fixação e reajuste do valor das aposentadorias e pensões

CONSTITUIÇÃO DE 1988 + EMENDA 20, de 1998 EMENDA 41, de 2003

Aposentadorias e pensões: mantidas a integralidade e a paridade, sendo que tais benefícios, por ocasião de sua concessão, passaram a não poder exceder a remuneração do servidor no cargo efetivo em que se desse a aposentadoria ou que servisse de referência para a concessão da pensão. Aposentadorias: restrições adicionais passaram a viger: 10 anos no serviço público e 5 no último cargo, bem como

Aposentadorias e pensões: além da manutenção das exigências estabelecidas pela Emenda 20, fim da paridade de reajustes, passando ambos os benefícios a serem corrigidos pela inflação. Aposentadorias: proventos calculados com base nas remunerações sobre as quais incidiram as contribuições ao RPSP e ao RGPS, ou seja, fim da integralidade. Pensões: equivalentes ao valor da totalidade: (a) dos proventos do servidor falecido, até o limite máximo do RGPS, acrescido de 70% da parcela excedente a este limite, caso o servidor esteja aposentado à data do óbito; ou

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Nos aspectos vinculados à fixação e rea-juste dos benefícios, a Emenda 41 foi muitoalém das exigências introduzidas pela re-formulação anterior. Em primeiro lugar, con-seguiu eliminar da CF a previsão de que osproventos de aposentadoria, por ocasião desua concessão, sejam calculados com basena remuneração integral do servidor. Ouseja, conseguiu eliminar a integralidade dosproventos das regras permanentes (veremosadiante que há possibilidade de viger emuma das opções das regras transitórias).Doravante, tais proventos passam a ser cal-culados com base nas remunerações sobreas quais incidiram as contribuições ao RPSPe ao RGPS, isso é, com base na remuneraçãointegral e no salário-de-contribuição limita-do ao teto do regime geral (R$ 2.400,00). Comisso, perdeu sentido a averbação do tempode contribuição no RGPS, acabando, conse-qüentemente, seu efeito perverso para o equi-líbrio entre fluxo de contribuições e paga-mentos no âmbito do regime próprio do ser-vidor público4 . Ressalte-se, ainda, que, si-milarmente ao estipulado para o RGPS, fi-cou garantida a atualização monetária dossalários-de-contribuição considerados parao cálculo dos proventos.

Em segundo lugar, a Emenda 41 conse-guiu eliminar a garantia de equivalênciaentre os reajustes dos proventos de aposen-tadoria e das pensões e os das remunera-

ções dos servidores em atividade. Isso é, aca-bou a regra de paridade entre ativos e inati-vos/pensionistas. Mais ainda, deixou deexistir sequer nas regras transitórias. Dora-vante, os benefícios previdenciários passama ser reajustados apenas pela inflação, con-forme critérios estabelecidos em lei, tal qualvige para o RGPS.

Em terceiro, a emenda modificou sobre-maneira a fixação do valor da pensão, quepassou a ser integral somente até o teto doRGPS. Acima deste, concede-se apenas 70%do valor. Nesse caso, o argumento central éque a perda de um membro da família im-plica na necessidade de menor renda percapita para manter o mesmo padrão de vidafamiliar. Contudo, o mesmo argumento nãose aplicou quando considerada a isençãode contribuição para as pensões até o tetodo RGPS. Neste último caso, a explicaçãomais satisfatória vincula-se à necessidadede aplicar o mesmo critério vigente no regi-me geral, onde a pensão é integral.

Por fim, vale agregar que a Emenda 41empreendeu sutil mudança com relação àaposentadoria por invalidez. No lugar daprevisão de lei que apenas especifique asdoenças graves, contagiosas ou incuráveis,a Constituição passou a prever a regulamen-tação geral dessa aposentadoria mediantelegislação infraconstitucional.

b) Restrições ao montante de rendas auferidas – aplicação do teto

CONSTITUIÇÃO DE 1988 + EMENDAS 19 e 20, ambas de 1998 EMENDA 41, de 2003

A remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do DF e dos municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos

As rendas abarcadas pelo teto no âmbito do setor público (subsídio dos Ministros do STF) permaneceram as mesmas estipuladas nas Emendas 19 e 20. Foram adicionados, entretanto, os chamados subtetos no âmbito dos municípios, estados e DF (art. 37, XI, da CF). Assim, os limites máximos de remuneração passaram a ser os seguintes:

CONSTITUIÇÃO DE 1988 + EMENDA 20, de 1998 EMENDA 41, de 2003

idades mínimas de 60/55 anos para aposentadoria por tempo de contribuição.

(b) da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der o falecimento, até o limite do RGPS, acrescido de 70% da parcela excedente a este limite, caso em atividade na data do óbito.

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A segunda etapa da reforma da previ-dência conseguiu o que a anterior e a Refor-ma Administrativa não conseguiram: sub-meter todas as rendas no âmbito do setorpúblico a limites máximos, passando a vi-ger teto federal e subtetos estaduais e muni-cipais. O teto da União (limite máximo paraqualquer ente federado), embora tenha con-tinuado a corresponder ao subsídio mensaldos Ministros do STF, deixou de ser iniciati-va dos três Poderes, tal qual previsto na Re-forma Administrativa. Ademais até que seestabeleça a nova sistemática, ficou consi-derado, para fins de teto, a partir da vigên-cia da Emenda 41, o valor da maior remune-ração de Ministro do STF, estipulada em R$19.115,19 a partir de janeiro de 2004. Issoimplica a vigência imediata do teto remune-ratório.

Assim, quaisquer remunerações e ren-das de benefícios em desacordo com os te-tos e subtetos estipulados para a União, es-tados, DF e municípios serão imediatamen-te reduzidas. Isso inclui, a princípio, qual-

quer acúmulo de renda, como, por exemplo,de pensão e salário e atinge todos os servi-dores públicos ativos, inativos e pensio-nistas.

Destaque-se que, além de não haver re-gra de transição, não se reconhece direitoadquirido com relação à aplicação dos tetose subtetos remuneratórios, o que, provavel-mente, redundará em longa discussão naJustiça. Isso, porque é controverso o enten-dimento de que as disposições de uma emen-da constitucional possam retroagir paradesconstituir direitos adquiridos. Grandeparte da doutrina entende que o poder deemenda está sujeito às limitações que o po-der constituinte originário lhe impõe (naConstituição de 1988, tais limitações estãopositivadas no art. 60, § 4 o). Assim, não podedesconstituir direitos e garantias individu-ais, como é o caso da irredutibilidade dosvencimentos. Com efeito, apenas contra aConstituição, tal como originalmente posta,é que não há, efetivamente, que ser argüidoqualquer direito adquirido. Tanto é assim,

CONSTITUIÇÃO DE 1988 + EMENDAS 19 e 20, ambas de 1998 EMENDA 41, de 2003

cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderiam exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do STF (art. 37, XI, da CF).

Tal subsídio deveria ser fixado por lei de iniciativa conjunta dos Presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF. Contudo, a falta desta lei implicou a não-implementação do teto. Além disso, jurisprudência foi sendo firmada de modo a excluir várias parcelas remuneratórias do teto previsto.

(a) União: subsídio dos Ministros do STF;

(b) municípios: subsídio do prefeito; (c) estados e DF: – Executivo: subsídio do governador, – Legislativo: subsídio dos deputados estaduais e distritais,

– Judiciário: subsídio dos desembargadores do Tribunal de Justiça (limitado a 90,25% do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do STF e aplicável aos membros do Ministério Público, aos procuradores e aos defensores públicos).

Foi eliminada a previsão da iniciativa conjunta da lei que virá a fixar o subsídio dos Ministros do STF, ficando estipulado que, até que seja estabelecido esse subsídio, considerar-se-á, para fins de teto, o valor da maior remuneração atribuída a tais Ministros (art. 8o, Emenda 41). A esta última determinação, somou-se a invocação do disposto no art. 17 do ADCT, que estipula que as rendas percebidas em desacordo com a Constituição devem ser imediatamente reduzidas aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título (art. 9o, Emenda 41).

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que o constituinte originário pôde estatuir odisposto no art. 17 do ADCT, agora invoca-

(c) Contribuições de servidores inativos e de pensionistas

do para respaldar a aplicação imediata doslimites de renda.

A Emenda 41 conseguiu outra proeza:estabelecer a incidência de contribuição pre-videnciária sobre proventos de aposentado-ria e pensões concedidas pelo RPSP comvalores superiores ao teto do RGPS. Ou seja,até o valor do teto, há isenção. Esta, por suavez, existe para conferir tratamento isonô-mico com os aposentados e pensionistas doRGPS, já que estes não contribuem sobresuas aposentadorias e pensões (art 195, II,CF).

No caso dos que estavam na condiçãode aposentados e pensionistas na data dapromulgação da nova emenda constitucio-nal, bem como daqueles que cumpriram to-dos os requisitos para obtenção de tais be-nefícios até esta data, também passou a in-cidir a contribuição previdenciária, porémcom menores limites de isenção. O argumen-to governamental para tal diferenciação foio de que, por terem contribuído menos parao custeio de seus benefícios do que os futu-ros beneficiários o farão, os atuais aposen-tados e pensionistas devem contribuir maispara a cobertura do vultoso desequilíbriofinanceiro do RPSP.

Destaque-se que, tal qual a questão vin-culada à aplicação do teto, a contribuição

dos que já eram inativos e pensionistas nadata da entrada em vigor da Emenda 41 edos que cumpriram todos os requisitos paraobtenção do benefício previdenciário atéessa data representa ponto cuja constitucio-nalidade certamente será questionada jun-to ao STF, na medida em que é objeto de sig-nificativa controvérsia doutrinária.

Quando da apreciação da matéria noCongresso Nacional, vários argumentos fo-ram invocados a favor da constitucionali-dade da contribuição dos inativos e pensio-nistas, destacando-se o que argüia a inexis-tência de direito adquirido à não-incidên-cia de tributo, sendo certo que a naturezajurídica da contribuição previdenciária é ade espécie do gênero tributo.

Todavia, juristas conceituados susten-tam que tais argumentos não são suficien-tes para corroborar a contribuição daquelesque já estavam aposentados e dos que jáeram beneficiários de pensão na data dapublicação da Emenda 41. O Deputado Fe-deral Michel Temer, advogado e professorde direito constitucional da PUC-SP, porexemplo, defende a não-tributação dos quejá eram inativos e pensionistas. Entretanto,não invoca, nesse caso, o direito adquirido,

CONSTITUIÇÃO DE 1988 + EMENDA 20, de 1998

EMENDA 41, de 2003

Embora não tenha sido intenção do Governo, muito pelo contrário, ficou explicitamente vedada, na Constituição, a imposição de contribuições de aposentados e pensionistas. Assim, estes continuaram sem contribuir para seus regimes de previdência.

Regra geral: incidência de contribuição sobre as aposentadorias e pensões do RPSP que superem o teto do RGPS, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos (art. 40, §18, da CF). Inativos e pensionistas em gozo de benefícios na data da publicação da emenda e aqueles que até esta data cumpriram todos os requisitos para obtenção de aposentadoria e pensão: também deverão contribuir, mas a contribuição previdenciária deve incidir sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere: (a) 50% do teto do RGPS, no caso dos estados, DF

e municípios; (b) 60% desse limite, no caso da União.

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visto entender que a aquisição do direito àaposentadoria e à pensão não representaaquisição do direito à imunidade após ainatividade ou ao início do recebimento depensão. Seu argumento é que a aposentado-ria (bem como o início da percepção de pen-são) constitui ato jurídico perfeito, ou seja,ato que se integralizou sob uma ordemnormativa em vigor antes da alteração legalpertinente. Como tal, passa a constituir patri-mônio jurídico de quem dele se beneficia, ad-quirindo o beneficiário um direito definitivo.

Na mesma linha de raciocínio, é plausí-vel argüir que aqueles que decidiram, espon-taneamente, postergar a entrada na inativi-dade ou que estavam no curso da tramita-ção burocrática para início do recebimentode pensão, por ocasião da entrada em vigorda Emenda 41, não podem ser prejudica-

dos, sendo admissível que também arguama inconstitucionalidade da contribuição.

No caso dos regimes próprios de previ-dência dos estados, do DF e dos municípios,ficou estipulado, ainda, que as alíquotas decontribuição dos servidores ativos e dos ina-tivos/pensionistas, além de passarem a serobrigatórias, não poderão ser inferiores àvigente para os servidores da União.

Por fim, vale adicionar que, como formade incentivar a prorrogação do pedido deaposentadoria até o advento da aposenta-doria compulsória (70 anos de idade), foiestabelecido o direito à percepção de abonode permanência no serviço equivalente aovalor da contribuição previdenciária, nocaso de servidores que, tendo adquirido odireito de se aposentar, optem por perma-necer em atividade.

CONSTITUIÇÃO DE 1988 + EMENDA 20, de 1998

EMENDA 41, de 2003

– integral: proventos de aposentadoria equivalentes à remuneração integral no último cargo exercido, se atendidas as seguintes condições: • acréscimo no tempo de contribuição equivalente a 20% do tempo ainda por cumprir para atingir 35 anos de contribuição, se homem, ou 30, se mulher, na data da publicação da Emenda 20 (conhecido como “pedágio”); • idade mínima de 53 (homem) ou 48 (mulher) anos e 5 anos de exercício no cargo em que se desse a aposentadoria. – proporcional: eliminada das regras permanentes, mas mantida nas transitórias, aplicando-se as mesmas condições acima, com a diferença de que o pedágio era de 40%. – paridade de reajustes: mantida, em ambos os casos.

(art. 2o, Emenda 41): – fim da aposentadoria integral: proventos calculados com base nas remunerações sob as quais incidiram as contribuições ao RPSP e ao RGPS. – fim da aposentadoria proporcional também nas regras transitórias. – fim da paridade: proventos reajustados pela inflação. – idade, tempo de contribuição e de exercício no último cargo: mantidas as exigências estipulados na Emenda 20, mas os proventos passaram a estar sujeitos a redução, para cada ano antecipado em relação aos limites de idade estabelecidos nas regras permanentes (60/55 anos), na seguinte proporção: (a) 3,5%, para aquele que completar as exigências para aposentadoria até 31/12/05; (b) 5%, para o que as completar a partir de 01/01/06.

(art. 6o, Emenda 41): Regra transitória alternativa: direito a proventos integrais, embora não garanta a correção nem pela paridade nem pela inflação, satisfeitas as seguintes exigências: (a) 60 anos de idade e 35 de contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher; (b) 20 anos de efetivo exercício no serviço público; 10 anos na carreira e 5 anos no cargo em que se der a aposentadoria.

(d) Aposentadoria por tempo de contribuição – regras transitórias

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Conforme visto, a Emenda 20 conseguiuavançar bastante em termos de garantir umamaior correlação entre contribuições e pa-gamento de benefícios no âmbito do setorpúblico, tendo imposto limites de idade etempos mínimos no serviço público e nocargo para efeito de concessão da aposenta-doria por tempo de contribuição. Na oca-sião, regra transitória foi estabelecida paraaqueles que já eram servidores públicos nadata da vigência da emenda constitucional.

A Emenda 41, sob o argumento de nãoser justo conceder aposentadoria integral aservidores com apenas 48 ou 53 anos de ida-de, tal qual estipulado na regra transitória,alterou substancialmente a sistemática an-tes estabelecida, conforme mostrado no qua-dro anterior.

De acordo com a nova regra, o servidorem atividade quando da publicação daEmenda 20, que foi, por questão de justiça,incluído em regra transitória, passou a es-tar sujeito à seguinte situação: se optar porse aposentar aos 53 anos de idade (ou 48,no caso de servidora), a partir de janeiro de2006, por exemplo, terá direito a apenas 65%dos proventos, que não mais terão relaçãodireta com a última remuneração (fim daintegralidade) nem com os reajustes dos ati-vos (fim da paridade). É inegável que taisalterações afetaram fortemente os direitos emprocesso de aquisição.

Ressalvado o direito de opção pela apo-sentadoria pelas novas regras permanentesou pelos novos critérios vinculados às con-dições transitórias estabelecidas na Emen-da 20, foi estabelecida outra regra de transi-ção para aposentadoria dos servidores queingressaram no serviço público até a datada publicação da Emenda 41. Trata-se dapossibilidade de aposentadoria com pro-ventos integrais (pensão não está incluída),desde que o servidor preencha, cumulativa-mente, determinadas condições. Nesse caso,a correção dos proventos dar-se-á na mes-ma proporção e na mesma data, sempre quese modificar a remuneração dos servidoresem atividade, na forma da lei. Ou seja, cabe-rá à lei estabelecer os critérios de correção.Isso significa que a nova regra transitóriagarante a integralidade, mas não a parida-de. Na verdade, o servidor que decida seaposentar sob o bojo de tal regra alternativanão terá a garantia nem da paridade nemdo reajuste pela inflação.

Apenas os aposentados e pensionistasna data da promulgação da Emenda 41 eaqueles que cumpriram todos os requisitospara obtenção de aposentadoria e pensão atéesta data conseguiram manter o direito à pa-ridade com os servidores ativos (art. 7o). To-dos os demais deixaram de ter esse direito,não tendo sido estabelecida qualquer regrade transição, o que é sobremaneira injusto.

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A União, os estados, o DF e os municípios, desde que instituíssem regime de previdência complementar para seus servidores, poderiam fixar, para as aposentadorias e pensões a serem concedidas, o mesmo limite máximo estabelecido para o RGPS. Essa situação só se aplicava ao servidor que ingressasse no serviço público após a publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar, que, por seu turno, só poderia ser instituído depois da vigência de lei complementar sobre o assunto. Para os demais servidores, a aplicação da nova sistemática só poderia ocorrer mediante opção.

Permanecem os mesmos dispositivos estabelecidos na Emenda 20, com a diferença de não mais ser requerida lei complementar que disponha sobre as normas gerais para a instituição de regime de previdência complementar pela União, estados, DF e municípios, para atender a seus servidores. Além disso, ficou estabelecido que a instituição do regime complementar deve se dar mediante lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observadas as regras da previdência complementar, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida.

(e) Regime de previdência complementar para servidores públicos

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A Emenda 41, da mesma forma que aEmenda 20, estipulou que os entes federa-dos poderão instituir, mediante lei de inici-ativa do respectivo Poder Executivo, regimede previdência complementar para seus ser-vidores. A diferença, vale repetir, é que dei-xou de requerer a edição prévia de lei com-plementar destinada a estabelecer as regrasgerais a serem observadas. Tal dispensa jus-tifica-se pelo fato de as Leis Complementa-res no 108 e 109 já disporem satisfatoriamen-te sobre tais regras.

Além disso, conseguiu-se estipular, naprópria Constituição, um dos parâmetrosbásicos que se queria estabelecer no âmbitoda previdência complementar dos servido-res públicos: planos de benefícios somentena modalidade de contribuição definida.Sublinhe-se que este foi um dos pontos maiscontroversos durante o processo de apreci-ação do Projeto de Lei no 9, de 1999, na me-dida em que foi objeto de acirrada objeçãodo Partido dos Trabalhadores.

Com relação à exigência de que os fun-dos de pensão dos servidores deverão ternatureza pública, cabe apontar a preocupa-ção com a regulamentação da matéria, namedida em que o termo “natureza pública”não possui significação jurídica estabeleci-da. Assim, seu significado dependerá danormatização da matéria. Se esta for no sen-tido do estabelecimento de institutos de pre-vidência constituídos como fundações ouautarquias públicas, estar-se-á quebrandoum dos pilares da organização da previdên-cia complementar no Brasil, que sempre tevenatureza privada. Além disso, correr-se-á orisco de o sistema ficar mais vulnerável àsingerências políticas. Ademais, caso ve-nham a ser fundos públicos, o Governo Fe-deral poderá encontrar dificuldades parasupervisionar e regular as entidades cria-

das por estados e municípios, devido aosprincípios constitucionais de autonomiafederativa.

Quanto aos demais dispositivos sobre amatéria, estes são basicamente os mesmosestipulados pela Emenda 20, com a diferen-ça de que os regimes próprios de previdên-cia que vigorarão até o teto do RGPS terãoregras muito mais duras do que as previs-tas na Emenda 20. Enquanto antes as re-gras concernentes à aposentadoria integrale à paridade de reajustes continuavam a vi-ger para os servidores com salários até o tetodo regime geral, a partir da Emenda 41, oscritérios de concessão e de correção de be-nefícios ficaram praticamente iguais aos vi-gentes no âmbito do RGPS.

Aliás, a nova configuração dos regimespróprios de previdência dos servidores ten-de a inviabilizar a alternativa disponibili-zada pela Reforma Administrativa e regu-lamentada pela Lei no 9.962, de 2000, quedisciplina o regime de emprego público dopessoal da Administração Federal direta,autárquica e fundacional. Ou seja, a contra-tação de servidores públicos pelo regimeceletista, no caso de carreiras não-típicas degoverno. Isso tende a ocorrer porque prova-velmente será menos oneroso para o Estadoadmitir servidores estatutários do que em-pregados públicos regidos pela CLT, namedida em que os encargos trabalhistasdestes últimos deverão ser maiores do queos dos primeiros.

7. A “PEC Paralela”

Originária do Senado Federal, a Emen-da à Constituição no 227, de 2004, conheci-da como “PEC Paralela”, foi fruto dos deba-tes e negociações políticas empreendidasnaquela Casa, por ocasião da apreciação eaprovação da Emenda 41. Representou ino-

CONSTITUIÇÃO DE 1988 + EMENDA 20, de 1998 EMENDA 41, de 2003

Também ficou vedada a existência de mais de um RPSP e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal (exceto para militares).

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vadora estratégia do Governo e de sua basealiada para conseguir a aprovação, pratica-mente sem alterações, do texto da reformada previdência previamente aprovado naCâmara dos Deputados, o qual mantinhaas linhas básicas da proposta original doGoverno Lula. Assim, a proposição parale-la contém as alterações básicas da Emenda41 acordadas pelos senadores e aceitas peloGoverno, mas não consubstanciadas no tex-to da emenda constitucional aprovada. Emtramitação na Câmara dos Deputados, aproposição foi já aprovada na Comissão deConstituição e Justiça e de Cidadania.

As principais alterações trazidas pelaPEC Paralela vinculam-se à imposição doteto e dos subtetos às rendas do setor públi-co. A nova redação conferida ao inciso XIdo art. 37 da CF retira do alcance dos limitesde renda as pensões e as vantagens de qual-quer natureza não especificadas no texto.No primeiro caso, a modificação sustenta-se no argumento de que é injusto, em casode cônjuges que ocupam elevados postos noGoverno, que o falecimento de um impinjabrutal redução de renda à família. Aindamais quando se considera que as pensõesdos altos funcionários já sofrerão corte sig-nificativo com as novas regras impostas pelaEmenda 41. No segundo caso, a modifica-ção objetiva não dar margem à interpreta-ção de que verbas indenizatórias estejamabarcadas pelos limites de renda estipula-dos.

Com relação aos subtetos, é conferida aosentes federados, por determinado períodode tempo, maior flexibilidade na estipula-ção de seus respectivos limites de renda.Afora a regra básica estabelecida na Emen-da 41, outras duas opções são instituídas.Possibilita-se que o Poder Executivo dos es-tados e do DF estipule, como seu limite má-ximo de renda, valor de referência não infe-rior ao subsídio do governador nem superi-or ao do desembargador do respectivo Tri-bunal de Justiça (limitado a 90,25% do sub-sídio do Ministro do STF). No caso dos mu-nicípios, é conferida possibilidade similar,

com a diferença de que o limite inferior dovalor de referência deve corresponder aosubsídio do prefeito. Aos Poderes Executi-vo e Legislativo dos estados e do DF, é facul-tada a adoção do mesmo limite do PoderJudiciário (subsídio do desembargador doTribunal de Justiça). Além disso, os estados,o DF e os municípios terão ainda a alterna-tiva de fixar, em seu âmbito, como limiteúnico para todos os poderes, o subsídiomensal dos desembargadores do respectivoTribunal de Justiça. Algumas vedações re-lativas aos subsídios dos governadores sãosubsidiariamente estipuladas, bem como éprevista a retroação benéfica da aplicaçãodos novos dispositivos sobre tetos e subte-tos à data da vigência da Emenda 41.

Outra alteração fundamental ocorre noescopo da regra de transição que garante,para os servidores em atividade até a publi-cação da Emenda 41, desde que atendidoscondicionantes básicos, proventos integrais,mas sem garantia de paridade nem de rea-juste pela inflação (art. 6o da Emenda 41). Anova proposição concede a esses servido-res o justo direito à paridade, inclusive nocaso de pensões derivadas de proventos deservidores falecidos que se aposentarem emconformidade com a regra transitória emquestão.

Ainda com relação a regras transitórias,nova opção é disponibilizada ao servidorque tenha ingressado no serviço público atéa data da publicação da nova emenda cons-titucional. Este poderá optar pela aposenta-doria com proventos integrais e garantia dereajustes pela paridade, desde que preen-cha, cumulativamente, as seguintes condi-ções: (a) 35 anos de contribuição, se homem,ou 30 anos, se mulher; (b) 25 anos de efetivoexercício no serviço público, 15 anos de car-reira e 5 no cargo em que se der a aposenta-doria; (c) idade mínima reduzida em rela-ção a 60/55 anos, na proporção de um anopara cada ano que exceda os 35/30 anos decontribuição.

Essa nova sistemática busca conferir tra-tamento mais apropriado àqueles que in-

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gressaram cedo no mercado de trabalho, ten-do exercido basicamente funções públicasao longo de suas vidas profissionais. As-sim, por exemplo, um trabalhador que te-nha ingressado no mercado laboral aos 18anos de idade, poderá se aposentar, com amaior parte das garantias que o impulsio-naram a atuar no serviço público por pelomenos 25 anos, aos 53 anos de idade e, sen-do mulher, aos 48 anos. Dessa forma, corri-ge-se, pelo menos para aqueles que traba-lharam no serviço público durante a maiorparte de suas vidas, uma das maiores injus-tiças impetradas pela Emenda 41: a radicalalteração das regras transitórias estipula-das pela emenda constitucional anterior.

São as seguintes as demais mudançaspropostas pela PEC Paralela:

(a) condições especiais para aposenta-doria de portadores de necessidades espe-ciais (no caso de servidores públicos e departicipantes do RGPS);

(b) no caso de servidor aposentado epensionista portador de doença incapaci-tante, o limite de isenção da contribuiçãoprevidenciária previsto nas regras permanen-tes aumenta, passando a corresponder aodobro do teto do RGPS, ou seja, R$ 4.800,00;

(c) previsão de lei específica do respecti-vo ente federado para aposentadorias e pen-sões dos servidores policiais (estes passam,assim, a ter direito a tratamento diferencia-do, tal qual ocorre com os militares);

(d) estipulação de condições mínimasque deverão ser observadas pelas unidadesgestoras dos fundos de pensão de servido-res públicos, bem como pelos gestores daSeguridade Social;

(e) especificações mais detalhadas acer-ca do sistema especial de inclusão socialprevisto na Emenda 41 (art. 201, §12, da CF),que deverá abranger os trabalhadores semvínculo empregatício e aqueles sem rendaprópria dedicados, exclusivamente, ao tra-balho doméstico no âmbito da residência daprópria família e que terá alíquotas e carên-cias inferiores às vigentes para os demaissegurados do RGPS;

(f) ampliação das possibilidades de di-ferenciação de alíquotas e de bases de cál-culo das contribuições sociais dos empre-gadores para a Seguridade Social, de modoa incluir a possibilidade de diferenças emrazão do porte da empresa e da condiçãoestrutural ou circunstancial do mercado detrabalho.

Ressalte-se que esta última modificaçãovisa complementar recente alteração do art.195 da CF, que trata das contribuições à Se-guridade Social, empreendida pela Refor-ma Tributária (Emenda no 42, de 19 de de-zembro de 2003). De acordo com a nova re-dação do dispositivo, as contribuições so-bre folha de salários poderão ser, doravan-te, substituídas gradual, total ou parcial-mente pelas incidentes sobre receita ou fa-turamento. Com isso, espera-se desonerar afolha de salários e incentivar a formaliza-ção do emprego. Também se espera abrircaminho para a implantação do sistema deinclusão social destinado a trazer para aprevidência social contingente expressivode brasileiros que têm renda, mas estão forada proteção previdenciária, por exercerematividades informais ou mesmo autônomas.

Do exposto, fica claro que a PEC Parale-la representa aperfeiçoamento justo e neces-sário das novas regras previdenciáriasestabelecidas a partir da Emenda 41, comdestaque para a flexibilização das regrasrelacionadas aos tetos remuneratórios, bemcomo para a atenuação do esforço contri-butivo de servidores em situações especi-ais, como é o caso daqueles em fase detransição.

8. Considerações gerais e perspectivas

O presente estudo buscou fornecer umaampla visão do recente processo de refor-mulação da previdência social no Brasil,mostrando os avanços alcançados.

Certamente a reforma empreendida pormeio da Emenda 20 não foi a ideal. Contu-do, é importante ter em mente que foi a refor-ma possível de ser implantada naquele mo-

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mento. Mesmo assim, conseguiu avançarsobremaneira em termos de garantia de re-lativo equilíbrio de longo prazo do sistemaprevidenciário, além de ter implantado vá-rios ajustamentos paramétricos, que, no casodo regime do servidor público, conseguiramconter a trajetória explosiva do déficit aolongo do tempo.

O problema é que, sendo de curtíssimoprazo a necessidade de ajuste fiscal do Bra-sil, a redução do déficit previdenciário tam-bém se configura como urgente. Entretanto,previdência social é, por sua natureza in-trínseca, política de longo prazo, visto queafeta diversas gerações. Assim, não se deveigualar os que ainda vão entrar no mercadode trabalho, os já filiados a algum regimeprevidenciário e os que se encontram emgozo de benefícios, porque muitas decisõesindividuais foram tomadas levando em con-sideração o arcabouço legal vigente, sendoimpossível ou sobremaneira injusto paramuitas pessoas fazerem ajustes inesperados.Isso não quer dizer, entretanto, que cada umdos grupos envolvidos – ativos, inativos efuturos segurados – não devam arcar comparte do ônus do ajuste. Pelo contrário. Éimportante que assim seja, para que não seimponha sobrecarga insuportável sobre asgerações futuras.

Também ficou evidente que o processode regulamentação da Emenda 20 foi posi-tivo. Modernizou e racionalizou o sistemaprevidenciário brasileiro, explorando satis-fatoriamente as possibilidades de conten-ção de gastos abertas pelo novo texto cons-titucional.

Conforme visto, com o novo governo deesquerda alçado ao poder, em 2003, o pro-cesso de reformulação da previdência soci-al ganhou novo fôlego, sendo conferida pri-oridade absoluta à aprovação de nova pro-posta de reformulação destinada a aprofun-dar as modificações até então empreendi-das. Foi, assim, aprovada em tempo recor-de, a Emenda 41, cujas mudanças foramsubstanciais e terão impactos sobremanei-ra positivos no equilíbrio atuarial de longo

prazo dos regimes próprios de previdênciados servidores públicos vinculados àUnião, aos estados, ao DF e aos municípios.

Na verdade, com as últimas mudançasempreendidas, a aposentadoria e a pensãodo servidor público deixaram de constituirdireitos intrínsecos à carreira pública, pas-sando a representar efetivos benefícios pre-videnciários. Antes, as despesas com essesdireitos corriam à conta do Tesouro, tal qualos gastos com remuneração e outras despe-sas de pessoal. Doravante, os benefícios se-rão concedidos a partir de regras previden-ciárias, tal qual ocorre no âmbito do regimegeral e da previdência privada. Ou seja, se-rão fruto das contribuições efetivamenteaportadas pelo servidor e por seu emprega-dor, aliviando, assim, os orçamentos públi-cos.

Em termos gerais, pode-se dizer que oprocesso de reformulação da previdênciaque vem sendo empreendido no Brasil, játendo estabelecido importantes ajustes pa-ramétricos, caminha na direção de consoli-dar um eficiente modelo misto de previdên-cia, calcado em dois pilares básicos. O pri-meiro abrange o RGPS e o regime dos servi-dores públicos limitado ao mesmo teto doregime geral, consolidado sob bases atuari-ais e equilibradas no longo prazo. Esses doisregimes, embora não unificados, passarama ter regras bastante homogêneas. O segun-do pilar, um amplo, flexível e eficiente siste-ma privado de previdência complementar,que abarcará tanto trabalhadores da inicia-tiva privada quanto do setor público. Ob-serve-se que tal configuração do sistemaprevidenciário representará, em termos prá-ticos, a consecução do objetivo inicial deunificação entre o RGPS e o RPSP.

Vale complementar que a consolidaçãodesse modelo misto segue o mesmo direcio-namento adotado em países, tais como: Es-panha, EUA, Finlândia, Grécia, Holanda,Itália, Irlanda, México, Japão, Noruega, Rei-no Unido, Suíça e Suécia. Nesses países, osfundos de pensão, além de se constituíremem fonte de renda para a aposentadoria, têm

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papel fundamental no dinamismo do mer-cado de capitais e no financiamento produ-tivo. Assim, são boas as perspectivas nessesentido.

Com efeito, é grande o potencial de cres-cimento da previdência privada no Brasil.Afinal, existem cerca de 40 milhões de inte-grantes da força de trabalho não vincula-dos a nenhum sistema fechado de poupan-ça previdenciária, dentre os quais pelo me-nos 3 milhões estão situados em altas fai-xas salariais e detêm bom nível de qualifi-cação profissional (dados PNAD-IBGE).Estes constituem, portanto, participantespotenciais da previdência complementar.

Outro importante ponto relaciona-se aomodelo ideal de sistema previdenciário parao Brasil. No início da década de 90, a ques-tão da reforma da previdência era aborda-da em termos da opção entre regime públicode repartição versus regime privado de capi-talização e entre regime de benefício definidoversus de contribuição definida. Ou seja, im-plicava reformulação estrutural do sistema.

Decorridos mais de dez anos, as opçõespassaram a se dar sob bases mais amplas.Antigas crenças foram contestadas, como,por exemplo, a que afirmava que a privati-zação do regime previdenciário conduz aoaumento da poupança nacional (emboraesteja confirmado seu impacto positivo nodesenvolvimento do mercado de capitais).Com efeito, o aporte financeiro do Estado,em caso de privatização do sistema previ-denciário, é uma carga tripla. Isso, porque,em primeiro lugar, cabe ao Governo cobrir odéficit do sistema público. Em segundo,transferir contribuições do regime antigopara o novo. Por último, arcar com a apo-sentadoria mínima, que, em geral, é conferi-da àqueles segurados que não acumularamo suficiente para financiar sua própria con-ta individual.

No caso brasileiro, estima-se que tal cus-to representaria 2,5 vezes o PIB, o que, dian-te da crítica situação fiscal, significa que oBrasil jamais poderia optar por essa alter-nativa. Na verdade, o País despendeu tem-

po demais em discussões e análises centra-das na alternativa de privatização do siste-ma, nos moldes do modelo de três pilaresdo Banco Mundial. Após anos de debates eestudos, pode-se dizer que o caminho esco-lhido não foi copiar modelos adotados emoutros países, mas ajustar os elementos po-sitivos de cada modelo à realidade brasileira.

Com relação ao regime geral de previ-dência, a tendência é que os esforços pas-sem a se direcionar ao aprimoramento ge-rencial em curso, com destaque para altera-ções das renúncias previdenciárias nos se-tores com regras especiais e à ampliação dacobertura previdenciária, que hoje equivalea apenas 45% da população ocupada. Nes-se último caso, trata-se de procurar abarcarcontingente substancial dos chamados“sem-previdência”.

De qualquer forma, vale sublinhar queos dados relativos às projeções atuariais dasdespesas do RGPS preocupam. Afinal, deacordo com a LDO para 2004, enquanto asdespesas com o regime de previdência dosservidores públicos federais (não conside-rados os militares) deverão diminuir de1,18% para 0,77% do PIB entre 2003 e 2020;as relativas ao regime geral aumentarão de6,66% para 7,29% (LIMA).

Os benefícios rurais, por exemplo, emvista de sua importância social e impactodistributivo, reclamam abordagem diferen-ciada. A necessidade de financiamento dosbenefícios pagos à clientela rural, por cons-tituir política de assistência social destina-da a combater a pobreza, deve ser explicita-da e devidamente coberta com recursos pro-venientes de outras contribuições sociais.Nesse contexto, vale lembrar a possibilida-de trazida pela Emenda 42 (Reforma Tribu-tária) de substituição da contribuição sobrea folha salarial pela incidente sobre receitaou faturamento.

Na verdade, a forma atual de financia-mento da previdência rural evidencia umequívoco distributivo: o de trabalhadorespobres do setor urbano financiarem traba-lhadores mais pobres do setor rural. Isso se

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dá porque, depois de utilizadas as exíguascontribuições oriundas do setor rural, aces-sam-se os recursos das contribuições urba-nas para a previdência. Apenas quandoexaurida esta última fonte, é que se recorreàs contribuições parafiscais da seguridadesocial (Cofins, Contribuição sobre o LucroLíquido e CPMF, e outras fontes de menorpeso). Tal sistemática é socialmente iníqua,devendo, pois, ser modificada. A necessi-dade de financiamento da previdência rural,que gira em torno de 1% do PIB (CASTRO &DELGADO), precisa ser explicitamente as-sumida como ônus fiscal de longo prazoassumido pelo conjunto da sociedade.

Ainda na esfera do RGPS, em vista docrescente envelhecimento da população bra-sileira e de seus efeitos no financiamento doregime de repartição vigente, cabe conside-rar a possibilidade de igualar o tratamento,em termos de idade e de tempo de contribui-ção, entre homens e mulheres e entre profes-sores não-universitários e as demais cate-gorias profissionais (tanto no RGPS quantono RPSP), bem como entre trabalhadoresurbanos e rurais. Além disso, é igualmenteoportuno considerar a estipulação de umaidade mínima para aposentadoria por tem-po de contribuição, no âmbito do regimegeral, ou mesmo a vigência, no longo prazo,apenas da aposentadoria por idade em to-dos os regimes previdenciários do país. Noprimeiro caso, a proposta decorre do fato deque o fator previdenciário, embora reduza ovalor da aposentadoria precoce, não a eli-mina. Com efeito, a incidência do fator ten-de a não inibir a aposentação precoce dotrabalhador que aufere maior rendimento eparticipa de fundo de pensão destinado acomplementar sua aposentadoria. No se-gundo caso, a idéia é igualar a previdênciabrasileira à tendência mundial de existên-cia apenas da aposentadoria por idade e porinvalidez.

Outra perspectiva de mudança está nareformulação da previdência dos militares.Como visto, estes passaram incólumes pe-las reformas previdenciárias até aqui em-

preendidas. Na verdade, o regime de previ-dência dos militares experimentou apenaspequenas mudanças, via legislação infra-constitucional, a mais relevante, o aumentode 1% para 7,5% na alíquota de contribui-ção para financiamento das pensões. Aomesmo tempo, contudo, enquanto o custoda previdência dos servidores civis vem sereduzindo, a dos militares tem subido deforma preocupante. “Entre 1995 e 2002, ocrescimento real do gasto público federalcom pessoal ativo foi de apenas 2,1% a.a.,enquanto o gasto com inativos cresceu 2,4%.Ao desagregar esse número, constata-se,porém, que os gastos com inativos civis emilitares cresceram a taxas muito diferencia-das entre si, de 0,9% a.a. e 5,6% a.a., respec-tivamente” (GIAMBIAGI & CASTRO).

É certo, ainda, que estamos na iminên-cia de novas alterações no texto constitucio-nal, fruto da iminente aprovação da PECParalela. Além disso, algumas questões es-tabelecidas na Emenda 41 poderão vir a sermodificadas pelo STF, caso este decida quecontêm vício de inconstitucionalidade. Sãoexemplos a aplicação imediata do teto e dossubtetos a todos os servidores em atividadequando a emenda entrou em vigor, bemcomo a incidência da contribuição previden-ciária sobre as rendas dos que, na mesmaocasião, já estavam aposentados ou erambeneficiários de pensões.

Cabe reconhecer que, como asseguraBALERA, “o direito previdenciário é direitoem formação, que o dia-a-dia vai conforman-do e que se aperfeiçoa, segundo regras inici-almente fixadas pelo quadro normativo, aolongo das etapas sucessivas da vida dossegurados”.

Com efeito, deve-se vislumbrar a Refor-ma da Previdência Social como uma seqüên-cia de modificações, um processo que secompleta em fases sucessivas. No caso bra-sileiro, esse processo teve início em 1995,segue seu curso em 2004, com a PEC Parale-la e a legislação destinada a regulamentar aEmenda 41, devendo prosseguir ao longodos anos seguintes. Ou seja, ainda não se

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esgotou. Assim, a resposta para a questãocolocada ao final da introdução do presen-te estudo é que há, sim, que se esperar novasmudanças relevantes no escopo da Refor-ma da Previdência Social. Não obstante, asalterações na Constituição tendem a sermenores do que aquelas a serem empreen-didas mediante legislação infraconstitucio-nal. O importante é que a agenda do proces-so de reforma não deixe de mirar o objetivode se chegar, no longo prazo, a um cenáriofiscal relativamente confortável e sem queos tesouros públicos sejam chamados a co-brir déficits previdenciários crescentes, dis-ponibilizando, assim, recursos para outrasáreas sociais importantes.

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Notas1 A União, todos os 27 estados, o DF e 2.140

municípios (38,5% do total) possuem regime pró-prio de previdência social para seus servidores pú-blicos. Os demais 3.419 municípios brasileiros es-tão vinculados ao INSS.

2 Ressalte-se que os efeitos do fator previdenci-ário só passarão a ser integralmente verificados apartir do final de 2004, tendo em vista a regra detransição estabelecida quando de sua instituição.

3 O Ministério da Previdência Social estima que,tendo em vista o elevado grau de informalizaçãodo mercado de trabalho, cerca de 40,2 milhões detrabalhadores não contribuem para qualquer regi-me previdenciário. A grande maioria desses indiví-duos, quando perder a capacidade laboral, deman-dará benefícios assistenciais a serem custeados portoda a sociedade.

4 O Ministério da Previdência Social estima queo tempo médio de serviço dos servidores anterior àentrada no regime próprio da União corresponde a11,7 anos, que pode ter sido exercido tanto no RGPScomo em outro regime próprio.

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1. IntroduçãoCriada recentemente, a Polícia do Sena-

do Federal ainda é desconhecida para amaioria dos brasileiros e mesmo dentro doCongresso Nacional. Sua importância ain-da não foi de todo compreendida, restandoainda muitas dúvidas sobre seu funciona-mento, suas atribuições e poderes.

Em uma “casa política”, como o SenadoFederal, geralmente a polícia é vista com res-salvas, pois se acredita que política e polí-cia são coisas totalmente incompatíveis. NoBrasil, esse pensamento foi reforçado, du-rante o período de ditadura, pelo uso de for-ças policiais para o controle político dos ci-dadãos e dos próprios parlamentares. Po-rém, apesar dessa aparente dicotomia, asduas palavras têm a mesma origem etimo-lógica, a palavra grega polis, que significa“cidade” e de sua derivação politeia que sig-nifica “governo ou administração de uma

Robson José de Macedo Gonçalves é Agen-te de Polícia da Polícia do Senado Federal pós-graduado em Direito Legislativo pela Univer-sidade do Legislativo Brasileiro.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. ALEXANDREPAIVA DAMASCENO.

Robson José de Macedo Gonçalves

A polícia do Senado Federal

1. Introdução; 2. A previsão legal; 3. Ori-gens da polícia no legislativo; 4. O Poder dePolícia; 5. A polícia e a política; 6. Classificaçãoda polícia; 6.1. Polícia Administrativa; 6.2. Polí-cia Judiciária; 6.3. Polícia Eclética ou Mista; 6.4.A classificação da Polícia do Senado; 7. Áreasde Atuação da Polícia do Senado; 7.1. Proteçãode Dignitários; 7.2. Proteção ao Patrimônio doSenado Federal; 7.3. Investigação e Inquérito;7.4. Inteligência; 8. A atuação da polícia e osDireitos Humanos; 9. Conclusão; 10. Notas; 11.Referências.

Sumário

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cidade”. Em latim ganhou a grafia politia,derivando então para o português com overnáculo polícia. Essa proximidade entreos vernáculos política e polícia se mostraclaramente na Idade Média, onde o Alcaide1

tinha a dupla função de administrar a cida-de e dar proteção e segurança à comunidade,ou seja, a ele cabia a administração políticada cidade e o policiamento da mesma.

No cenário político, esta ligação ganhamuita importância, pois a polícia é umaoperadora da política de governo, ou seja, éum braço do poder, mais comumente doPoder Executivo, podendo assumir, em cer-tos casos, um poder político tão forte quan-to o do próprio governo.

Em uma democracia como o Brasil, pres-supõe-se uma divisão clara dos poderesExecutivo, Legislativo e Judiciário. Cada umdesses poderes tem sua função na manu-tenção da democracia, devendo exercê-lasem interferências de outro poder. Ora, aspolícias existentes no Brasil, em sua maio-ria, fazem parte da estrutura do Poder Exe-cutivo, e desta constatação vem o questio-namento: É possível a polícia manter a neu-tralidade com respeito às ações do governo?

O presente artigo é uma descrição sucin-ta do que vem a ser a Polícia do Senado Fe-deral, de sua previsão legal, origem, deve-res e poderes, bem como do papel que a mes-ma deve ocupar para garantir a indepen-dência dos poderes e a manutenção da de-mocracia. Também discorre sobre as ques-tões da história da instituição policial, suaclassificação e missão na sociedade.

2. A previsão legal

A Constituição Federal de 1988, em seuartigo 52, XIII, prevê que “compete privati-vamente ao Senado Federal... dispor sobresua polícia”. Com base nesta previsão legalo Senado Federal regulamentou, em 05 dedezembro de 2002, através da resolução no

59/2002, a Polícia do Senado Federal.A previsão para a criação de uma polí-

cia exclusiva para uma casa legislativa pode

parecer uma inovação da Constituição Fe-deral de 1988, porém uma análise mais pro-funda mostra que tal previsão já se encon-tra presente em nossa primeira constituição,a Constituição Política do Império do Brazil(25 de Março de 1824), quando trata do Po-der Legislativo, em seu art. 21, citando a“polícia interior”, tal previsão se repete emtodas as outras constituições brasileiras,como podemos ver:

• Constituição da República dos Esta-dos Unidos do Brasil (1891), art. 18, pará-grafo único, “A cada uma das Câmaras com-pete: ... regular o serviço de sua polícia in-terna”.

• Constituição de 1934, art. 91, VI, “Com-pete ao Senado Federal: ... regular a sua pró-pria polícia”.

• Constituição de 1937, art. 41, “A cadauma das Câmaras compete: ... regular o ser-viço de sua polícia interna”.

• Constituição de 1946, art. 40 – “A cadauma das Câmaras compete dispor, em Regi-mento interno, sobre sua ..., polícia”,

• Constituição de 1967, art. 32, “a cadauma das Câmaras compete dispor, em Regi-mento Interno, sobre ... sua polícia”.

Quanto a atuação das polícias do Con-gresso Nacional, o Supremo TribunalFederal, quando questionado sobre a vali-dade de prisão efetuada nas dependênciasdo Senado Federal, reconheceu em sua sú-mula 397 de 03/04/1964 que: “O Poder dePolícia da Câmara dos Deputados e do Se-nado Federal, em caso de crime cometidonas suas dependências, compreende, con-soante o regimento, a prisão em flagrantedo acusado e a realização do inquérito”.

Como se pode observar, a Resolução 59/2002 do Senado Federal, veio apenas regu-lamentar uma necessidade vislumbrada hámuito tempo por nossos constituintes.

3. Origens da polícia no legislativo

As origens da polícia legislativa remon-tam à Roma clássica, quando já existia umaseparação dos poderes, cada qual com suas

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respectivas polícias. Tal estrutura tinha afinalidade de preservar a independênciados poderes, sobretudo do Senado, que eraformado pela nobreza da época e não podiaconfiar a segurança de seus membros a guar-das leais ao imperador. Desta forma ao mes-mo tempo em que o Senado mantinha suaGuarda Senatorial, o Imperador possuía ocontrole e a lealdade da Guarda Pretorianaque funcionava como uma equipe de guarda-costas treinados especialmente para defen-der e proteger os chefes do Estado romano.

Existia também a figura do Exército Ro-mano, uma das mais importantes institui-ções daquele império, que tinha como fun-ção a defesa do Estado e ser o sustentáculodo poder do imperador, porém, apesar des-sa condição de destaque o Exército Romanonão tinha autorização para entrar na cida-de de Roma.

No Brasil, a primeira polícia nasceu em1530 por ordem de D. João III, que outorgoua Martins Afonso de Souza uma carta régiapara estabelecer, entre outras coisas, a orga-nização de ordem pública. Naquela época,os policiais encontravam-se subordinadosa várias autoridades, inclusive ao Senado eà Câmara; desta forma, apesar de não pos-suir uma polícia própria, o Senado tinhaascendência sobre a polícia e dispunha doapoio dos quadrilheiros2 no policiamentointerno e no cumprimento das determina-ções dos senadores. Com a chegada de D.João VI ao Brasil e a criação da IntendênciaGeral da Polícia da Corte e Estado do Bra-sil3, em 1808, o Senado perdeu sua ascen-dência direta sobre a polícia e passou a con-tar apenas com o apoio de policiais da Cor-te na sua segurança.

As mudanças na segurança do Senadose mantiveram estáveis por muitos anos, apresença da polícia na casa era vista ape-nas como em função da segurança patrimo-nial, a visão de proteção do Poder, da insti-tuição Senado Federal não existia. O con-ceito de segurança dentro do Senado Federalevoluiu lentamente, inicialmente a Casapossuía apenas um serviço de vigilância,

que não era especializado e se restringia acontrolar o acesso à Casa e resguardar o seupatrimônio, a segurança pessoal dos sena-dores não era de responsabilidade da Casa,mas de seguranças particulares dos sena-dores ou de policiais requisitados ou desta-cados para esta missão.

Com o fim do regime militar e o fortaleci-mento da democracia, o Congresso Nacio-nal passou a ser um grande fórum de deba-tes, diversos parlamentares e projetos ga-nharam destaque e despertaram as atençõesda mídia e do povo. A Constituição de 1988ampliou a participação popular na vidapolítica nacional e, desta forma, criou no-vas demandas para a segurança do Con-gresso e dos parlamentares. O Senado pas-sou a contar então com um serviço de segu-rança formado por servidores da Casa e porpoliciais requisitados de outros órgãos. Po-rém, apesar da previsão legal, as ações desegurança não eram exercidas por policiaispertencentes ao quadro de servidores daCasa.

Em 1991, foi realizado concurso públicopara preencher vagas no Serviço de Segu-rança do Senado – esse foi o primeiro passopara a criação da atual Polícia do Senado.A maioria dos aprovados no concurso cita-do era formada por detentores de diplomade curso superior, com formação em diver-sas áreas, tal fato propiciou um amadureci-mento da questão “segurança” no SenadoFederal, a pluralidade de formações acadê-micas contribuiu para o surgimento de de-bates internos sobre a estrutura e os proce-dimentos de segurança, criando assim anecessidade de mudanças e permitindo oinício de um processo de modernização.Buscando a profissionalização dos quadrosda segurança do Senado, diversos cursosforam ministrados e todo pessoal treinadopara melhor servir aos objetivos da Casa.

Com a publicação da Resolução do Se-nado Federal no 59/2002 os policiais requi-sitados foram devolvidos aos seus órgãosde origem e, atualmente, a segurança daCasa e dos parlamentares é exercida exclu-

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sivamente por agentes de polícia do SenadoFederal.

4. O poder de polícia

O professor Luiz de Oliveira AMARALdefine o policial como “um profissional doDireito” (2003, p. 14) e, como tal, sua forma-ção deve refletir esta verdade, para que, noexercício de sua formação o policial possaservir ao cidadão e ao Estado da melhor for-ma possível. Para que este objetivo seja al-cançado, é mister que o conceito de poderde polícia seja compreendido em sua pleni-tude pois no exercício deste poder o policialcaminha sobre uma tênue linha que o sepa-ra de um lado da boa aplicação da lei e dooutro o abuso de autoridade e, conseqüen-temente, do crime.

MAX WEBER afirmava: “o Estado..., rei-vindica com sucesso por sua própria contao monopólio da violência física legítima”.Essa reivindicação é materializada na polí-cia, que tem poderes outorgados pelo Esta-do para impedir, mediante o uso de forçafísica, quando necessário, que outra pessoautilize o recurso da violência, ou seja, aoEstado pertence o monopólio da violência.Tal prerrogativa não deve ser entendidacomo uma licença para que os governantesse utilizem da polícia para cometer atroci-dades e intimidar a população, e sim comouma ferramenta do estado na manutençãoda ordem pública e na garantia dos direitosindividuais, sempre dentro de limites legaise em consonância com os direitos humanos.Em resumo, o papel da polícia é tratar dosproblemas da sociedade quando sua solu-ção necessite ou possa necessitar do empre-go da força.

A definição do que vem a ser poder depolícia não é fácil, por ser matéria abstrata eampla, que se estende pelos mais diversoscampos da vida em sociedade. Mais sim-ples é verificar se um caso em particular seenquadra naquele poder, do que chegar auma conceituação satisfatória sobre o as-sunto.

A dificuldade em conceituar o poder depolícia é tratada por CRETELLA JÚNIOR(1999, p. 7) com bastante propriedade:

... concorre para dificultar o assunto,a dualidade reconhecida de concep-ções a respeito existentes, distinguin-do-se a chamada concepção européiacontinental, bem distinta da concep-ção norte-americana.

E continua:Na França, por exemplo, predomi-

na a idéia de proteção imediata daordem pública, resolvendo-se, pois, aação policial, em atividade adminis-trativa assecuratória daquela ordem,no sentido de ordem exterior dos fa-tos, mais que do Direito, pois o con-ceito de ordem pública, referente aoslimites da atividade jurídica dos indi-víduos é noção distinta. Esta ordempública, por exemplo, existe sobre odireito privado, limitando a liberda-de de contratar, especialmente em cer-tas esferas (trabalho, serviços públi-cos). Não é esta a ordem pública quese refere a polícia administrativa.

Sobre o conceito norte-americanoCRETELLA JÚNIOR acrescenta:

Nos Estados Unidos, o poder depolícia tem considerável extensão, nãose limitando à segurança pessoal con-tra as vias de Direito, nem à salubri-dade e moralidade públicas, mas com-preendendo também os meios prote-tores da condição econômica e socialdos indivíduos no fomento do bem-estar da comunidade e na regulamen-tação da vida econômica.

Em sua obra Derecho Administrativo (12ed., 1968, p. 456), GABINO FRAGA define:

o poder de polícia do Estado é enten-dido, dentro do direito positivo demuitos países, como o conjunto de atri-buições que lhe correspondem parapromover o bem-estar por meio de res-trições e regulamentações dos direi-tos do indivíduo, de tal forma que pos-sam prevenir-se ou acautelar-se das

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conseqüências prejudiciais que suadisposição, em termos absolutos acar-retaria para a vida em comum.

José CRETELLA JÚNIOR (1999, pp. 3 e4) comenta:

... poder de polícia e polícia são pala-vras que traduzem duas noções rela-cionadas e interpretáveis, inconfun-díveis, porque o poder de polícia é opressuposto ou antecedente lógico dapolícia, ... Abstrato, o poder de políciaconcretiza-se na polícia, força organi-zada visível, cuja ação se faz sentir nomundo e no mundo jurídico.

E, após ponderar sobre a dificuldade deconceituar o poder de polícia e de conside-rar as definições de diversos juristas do di-reito administrativo, concluiu:

O poder de polícia é a causa, o fun-damento; a polícia é sua conseqüên-cia. O poder de polícia é algo in po-tentia, traduzindo in actu, pela açãopolicial. Poder de polícia é a faculda-de discricionária da administração de,dentro da lei, limitar a liberdade indi-vidual em prol do interesse coletivo.

Hely Lopes MEIRELLES (1972, pp. 287-288) nos ensina que:

Poder de polícia é a faculdade dis-cricionária de que dispõe a Adminis-tração Pública em geral, para condicio-nar e restringir o uso e gozo de bensou direitos individuais, em benefícioda coletividade ou do próprio Estado.

E continua:podemos dizer que: o poder de polí-cia é o mecanismo de frenagem de quedispõe a Administração Pública, paradeter os abusos do direito individual.Por esse mecanismo, que faz parte detoda Administração, o Estado (em sen-tido amplo: União, Estados e Municí-pios) detém a atividade dos particu-lares que se revelar contrária, nocivaou inconveniente ao bem-estar sociale à segurança nacional.

O poder de polícia é fundamentado nanorma constitucional e nas normas de or-

dem pública, onde estão definidas expres-samente ou implicitamente faculdades paraa autoridade pública fiscalizar, controlar erestringir o uso de bens ou exercício de di-reitos e atividades individuais em benefícioda coletividade e a cada restrição de direitoindividual corresponde equivalente poderde polícia administrativa à AdministraçãoPública, para torná-la efetiva e fazê-la obe-decida, isto porque a razão da existência dopoder de polícia é o interesse social.

Neste sentido, o do benefício da coletivi-dade, o regimento interno do Senado Federal,bem como diversos atos administrativos daCasa, impõem normas e restrições que ca-bem à Polícia do Senado fazer cumprir.Como exemplo podemos citar: prover a se-gurança dos Senadores (Regimento Inter-no do Senado Federal Art. 9o, II e V); restri-ção ao acesso e circulação pela Casa e plená-rios (Regimento Interno do Senado FederalArt. 182 a 185, Ato da Comissão Diretora no

9/99); fazer cumprir as normas de comporta-mento durante as sessões (Regimento Inter-no do Senado Federal Art. 184, Parágrafoúnico, Resolução do SF no 94/92) e evitar quepessoas acessem à Casa armadas sem a devi-da autorização (Regimento Interno do Sena-do Federal Art. 184, RSF 59/2002, Art. 3o).

A Polícia do Senado Federal também é res-ponsável pelo atendimento às ocorrênciaspoliciais registradas nas dependências daCasa e de promover investigações que le-vem ao esclarecimento dos fatos. É tambémde sua competência manter um serviço deinteligência capaz de obter, analisar e dis-seminar informações que possam ter influ-ência sobre o processo decisório ou afetar asegurança da Casa ou de seus membros eservidores (RSF 59/2002, Art. 2o, VII).

Todas estas atribuições eram limitadas,ou mesmo impedidas, pela não regulamen-tação do poder de polícia no Senado Federal.Assim, a Resolução do Senado Federal no

59/2003, que regulamentou a Polícia doSenado, foi um grande avanço para as açõesde segurança no legislativo, já que funda-menta legalmente a atuação dos policiais

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do Senado, principalmente no que diz res-peito à segurança física do Exmo. SenhorPresidente e dos Srs. Senadores, e, como es-ses dão suporte para a democracia e federa-lismo brasileiros, pode-se afirmar, em últi-ma análise, que a polícia do Senado Federaltambém é responsável pela manutenção doEstado democrático.

5. A polícia e a política

Desde a criação das primeiras forçaspoliciais, a política tem feito parte do cotidi-ano das polícias e das ações policiais, sen-do muitas vezes, orientadas de acordo cominteresses políticos. Neste sentido, PaulCHEVIGNY (1995, p. 119) afirmou que “apolítica, no sentido mais exato, tem feitoparte da polícia, como a polícia tem feitoparte da política”.

A existência de influência política nasações policiais, apesar de ser freqüentemen-te negada, ainda é muito visível no Brasil.Casos de espionagem, prisões, investigaçõesnão oficiais, entre outras ações, são noticia-dos com freqüência, pela imprensa nacio-nal, como casos de ação policial comanda-da politicamente.

A interferência política nas polícias émais nítida nos estados e tem origem no iní-cio da República. Com a queda do Impériodo Brasil, em 1889, grande parte dos pode-res centralizados do governo foi transferidapara os recém criados estados, entre estes acompetência para legislar sobre segurançapública. O governo republicano, em seu pri-meiro ato legislativo (Dec. no 01, art. 8o), au-torizou aos governos locais, isto é, aos go-vernadores, legislarem sobre a matéria. Estaautorização seria ampliada posteriormentecom a promulgação do primeiro texto cons-titucional republicano.

Sob a República, muitos governos locaisaumentaram seu poder com o aperfeiçoa-mento da polícia estadual. Desta forma res-tringiam cada vez mais o poder dos senho-res rurais e aumentavam seu próprio poder.O raciocínio era de que uma polícia local

forte permitiria a quebra da influência polí-tica das oligarquias locais e o controle sobrea agitação operária. Em São Paulo, o gover-nador Tibiriçá (1904 – 1908) tinha em men-te proteger o estado das investidas do Go-verno Federal e, em 1906, contratou umaconsultoria francesa para treinar sua polí-cia, tinha em mente criar uma polícia fortecapaz de enfrentar, se fosse o caso, tropasfederais.

O conflito de interesses entre o GovernoFederal e os estados permanece até hoje, e oCongresso Nacional, em particular o Sena-do Federal, é palco de diversas disputaspolíticas entres os estados e entre estes e oGoverno Federal.

O domínio da polícia é tão importantepara os políticos que, nas últimas eleiçõespara governador, em Brasília (2002), houveuma polarização entre dois candidatos aogoverno do Distrito Federal, onde um con-seguiu o apoio da Polícia Civil do DistritoFederal e o outro o apoio da Polícia Militar.Ocorreram brigas entre integrantes dasduas corporações, prisões e acusações mú-tuas. Tal fato foi amplamente divulgadopela impressa nacional, em particular pelojornal Correio Brasiliense, que publicou umasérie de reportagens sobre o assunto.

O que se vê é que as forças policiais, quenão deveriam ceder a pressões de qualquernatureza ou a interesses diversos, acabamrenunciando à sua independência em proldas benesses conseguidas, pelas corpora-ções ou por membros destas, em virtude dorelacionamento com a máquina política. Poroutro lado, a máquina política se beneficiada lealdade da polícia para manter seu pró-prio poder sobre a oposição e sobre os in-disciplinados. James RICHARDSON (1974,p. 46) em um estudo sobre a polícia urbananos Estados Unidos afirma:

quem quer que dominasse a políciadispunha de uma fonte importante declientelismo; podia controlar a entra-da em negócios ilegais e seu funcio-namento... [tinha controle sobre] ne-gócios lícitos sujeitos à regulamenta-

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ção pública, como bares, e tinha im-portante vantagem nas eleições.

O trabalho policial, por essência, deve-ria ser totalmente isento e desprovido deconteúdo político, porém essa inegável pro-ximidade da polícia com a política nos levaà uma reflexão sobre a independência dospoderes e a manutenção da democracia.Pode uma polícia, pertencente a um deter-minado Poder, ser totalmente independen-te com relação a outro Poder?

As polícias no Brasil, com exceção dasPolícias do Senado Federal e da Câmara dosDeputados, são todas ligadas hierarquica-mente ao Poder Executivo e desse recebemos policiais seus vencimentos, fazem carrei-ra, tem assistência médica, aposentadoria etodas vantagens oferecidas ao servidor pú-blico, do Poder Executivo recebem suas or-dens e a ele prestam contas.

A dependência e a subordinação daspolícias ao Poder Executivo pode produziralguns entraves à atuação de outro Poder.Como exemplo temos o relacionamento con-turbado entre as polícias e o Poder Judiciá-rio e entre aqueles e o Ministério Público. Achamada “Polícia Judiciária” não possuinenhuma subordinação funcional, adminis-trativa ou disciplinar com o Poder Judiciá-rio, porém, deve concorrer para a Justiça,quando da apuração das infrações penais esua autoria, no auxílio nas medidas caute-lares e de jurisdição administrativa, contu-do nem sempre tal função é cumprida com aharmonia necessária, gerando, de parte aparte, reclamações quanto a essa atuaçãoconjunta. O Ministério Público, por outrolado, trava uma guerra árdua com aspolícias judiciárias, buscando questionar acompetência exclusiva da polícia de condu-zir os inquéritos policiais.

Outro fator que deve ser considerado é ainterferência estrangeira nos órgãos polici-ais brasileiros. Tal interferência é notória e,diga-se de passagem, é prática corriqueirade diversos países a ajuda às polícias deoutros países em troca de facilidades e deinformações.

Os Estados Unidos da América utilizama ajuda às forças policiais de outros paísescomo parte de sua política externa. Esta for-ma de cooperação, através do fornecimentode equipamentos e treinamento de polici-ais, nada mais é do que uma forma de dou-trinar e moldar as forças policiais segundoo pensamento do país colaborador e de co-letar informações importantes para os inte-resses daquele país.

Como já comentamos em 1906, o gover-no de São Paulo contratou consultores fran-ceses para treinar sua polícia. Esses consul-tores, porém, não vieram ao Brasil apenascom a missão de profissionalizar a políciapaulista, mas também de conter a influên-cia alemã na América Latina e ganhar in-fluência política e ideológica no Brasil, as-segurando para a França uma posição pri-vilegiada no comércio com o Brasil.

O fortalecimento da polícia do Estado deSão Paulo causou diversos conflitos à épo-ca. Os policiais da cidade de São Paulo serevoltaram por estarem sendo desprezadospelo governo estadual. O poder da forçapública estadual aumentava de tal formaque causou desconforto nas forças armadasque viram seu papel na proteção da unida-de federativa ameaçada. Na década de 1920a polícia do estado de São Paulo contavacom aproximadamente 14.000 homens e oExército dispunha de apenas 5.675 homens,além disso, a remuneração dos oficiais daForça Pública estadual era melhor, que a deoficiais do Exército (HUGGINS, 1998, pp.42 e 43).

Atualmente, as polícias do Brasil têmcomo seu principal parceiro órgãos polici-ais americanos, que promovem cursos aquie no exterior, fornecem equipamentos e di-nheiro para o pagamento dos gastos dasmissões efetuadas. Essa parceria tem pro-duzido frutos no combate ao crime organi-zado e à lavagem de dinheiro em nosso paíse, de fato, a natureza global da lavagem dedinheiro requer padrões globais e coopera-ção internacional para reduzir a capacida-de dos criminosos lavarem seus rendimen-

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tos e conduzirem suas atividades crimino-sas. Somente a cooperação internacionalvigorosa e prolongada pode colocar em xe-que os lavadores de dinheiro.

Os esforços antilavagem de dinheiro, quesão projetados para evitar ou limitar a capa-cidade de criminosos utilizarem ganhosobtidos de forma ilegal, são componenteseficazes e fundamentais de programas decombate ao crime. Porém, tal associação nãoé isenta de críticas. As revistas Isto é (no 1551,23/06/1999 e no 1729, 21/11/2002) e CartaCapital (no 205, de 04/09/2002) fazem de-núncias de que o DEA (Drug EnforcementAdministration), órgão do governo ameri-cano de combate ao narcotráfico e a CIA(Central Inteligence Agency), órgão de inte-ligência do governo americano, atuaram li-vremente no Brasil, protegidos pelo mantoda cooperação policial. Estes órgãos polici-ais americanos, segundo as denuncias dasrevistas, têm promovido ações de espiona-gem, inclusive com gravações de conversastelefônicas do ex-Presidente FernandoHenrique Cardoso, e recrutamento e coop-tação de agentes policiais brasileiros.Submetendo-os ao teste do polígrafo paradeterminar quais são os mais suscetíveis aosobjetivos americanos.

O uso da estrutura policial, para fins polí-ticos, é fato que também ocorre em terras nor-te-americanas. Ficou célebre o caso de JohnEdgar Hoover (1895-1972) que esteve à frentedo FBI (Federal Bureau of Investigation), aPolícia Federal norte-americana, por 48 anose a transformou numa das mais importantesorganizações policiais do mundo. Porém,grande parte do poder conseguido por Hoo-ver foi devido a utilização que fazia das prer-rogativas policiais para criar e manter ar-quivos implacáveis contra inimigos ou po-tenciais adversários.

Considerando todos esses fatores, enten-de-se a preocupação dos constituintes empossibilitar, às Câmaras do Poder Legislati-vo, a criação de suas próprias polícias. Umapolícia leal aos objetivos da Casa, não influ-enciável por questões políticas externas à

Casa e com independência financeira comrelação a outro Poder.

Neste sentido, a Polícia do SenadoFederal ocupa um papel de destaque na pro-teção dos Senadores e servidores da Casa,na proteção de suas dependências e de seupatrimônio, e na garantia de isenção nasinvestigações de fatos ocorridos no SenadoFederal. Apesar da Casa vivenciar a políti-ca diariamente, as ações da Polícia do Sena-do não estão sujeitas a pressões políticasexternas ao Senado Federal. Seus agentes,todos pertencentes ao quadro efetivo do Se-nado Federal, podem desenvolver suasações sem a preocupação de pressões ourepresálias de outro Poder.

6. Classificação da polícia

As polícias no Brasil são mais comumen-te divididas em polícia administrativa epolícia judiciária. Tal divisão provém domodelo francês. Em 1667, quando da sepa-ração dos poderes naquele país, houve aseparação da Justiça e da Polícia, surgindoassim a necessidade de distinção da políciaem dois ramos denominados: polícia admi-nistrativa e polícia judiciária. Essa separa-ção ocorreu efetivamente em 1791, atravésda Assembléia Nacional Francesa, porém,tais princípios sobre a legislação policialsurgiram com a Revolução Francesa em1789.

No Brasil, a influência francesa chegouem 1831, com a publicação da Lei no 261, de3 de dezembro e com o Regulamento no 120,de 31 de janeiro de 1842, que tratava sobre aexecução policial e criminal, versando so-bre a polícia administrativa e polícia judici-ária, ficando a Polícia judiciária com a fun-ção de auxiliar a Justiça na busca da verda-de real e de sua autoria, desta forma, agindoa posteriori, isto é, depois que a segurançafoi violada e a boa ordem perturbada; en-quanto que a polícia administrativa ficoucom a função preventiva, agindo a priori,para evitar a infração. Para MENDES DEALMEIDA, “A polícia administrativa infor-

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ma; a polícia judiciária prova” (1973, p. 60).No entendimento do professor CRETELLAJÚNIOR, a polícia brasileira acumula suces-sivamente a função de polícia administrati-va e de polícia judiciária, desta forma deve-ria receber a denominação de polícia mista.

O professor Hely Lopes MEIRELESexemplifica assim a distinção entre a atua-ção da polícia administrativa e da judiciá-ria: “quando a autoridade apreende uma car-ta de motorista por infração de trânsito, pra-tica ato de polícia administrativa, quandoprende o motorista por infração penal, prati-ca ato de polícia judiciária” (1972, p. 298).

6.1. Polícia Administrativa

Também denominada polícia preventi-va, a polícia administrativa tem como obje-tivo impedir as infrações das leis e susten-tar a ordem pública. Sua atuação deve evi-tar o cometimento dos crimes.

O campo de atuação da polícia adminis-trativa é extremamente amplo. A naturezadinâmica do homem o faz exercer as maisdiversas atividades, com características bempeculiares. Tal liberdade de atuação e deexpressão produz uma dinâmica nos ramosde atuação da polícia administrativa. Àmedida que tal liberdade possa atingir di-reitos de outras pessoas, violar leis e nor-mas ou comprometer a ordem pública, faz-se necessário a intervenção da polícia ad-ministrativa.

A Lei 3 Brumário (Código dos Direitos edas Penas), em seu artigo 19, já definia:

A polícia administrativa tem porobjeto a manutenção habitual da or-dem pública em cada lugar e em cadaparte da Administração Geral. Tende,principalmente, a prevenir os delitos.

A função de polícia administrativa pres-supõe uma atuação imprevisível, pois é im-possível determinar de qual recurso lança-rá mão o homem para cometer um delito.Assim, a atuação da polícia administrativanão deve ser limitada por uma legislaçãoque pretendesse regular de antemão todosos atos da polícia. Essa liberdade de atua-

ção é discricionária, porém, não é absoluta,pois é limitada pelo respeito às leis e aosdireitos e garantias assegurados expressa-mente pela legislação. Tais limites não de-vem ser transpostos sem que haja uma ver-dadeira necessidade.

Dentro da polícia administrativa existeo ramo da polícia de segurança, que se con-funde com o próprio conceito de polícia ad-ministrativa, pois é a essência da polícia porexcelência, tem ela “por objeto a execuçãodas leis e regulamento que disciplinam ime-diatamente a liberdade individual e coleti-va”. (VILLEGAS BASA, Derecho Adminis-trativo, 1954, vol. V, p. 345).

... a polícia de segurança age “contraos eventos que ameaçam a vida, a li-berdade, a propriedade; assegura aossúditos de todo ataque violento e ilíci-to à pessoa, honra, direitos, patrimô-nio; garante tanto a existência de todoo Estado, quanto a ordem pública e asegurança geral das pessoas e proprie-dade dos cidadãos. (RANELLETTI, Lapolizia di sicurezza, em Primo Trata-do de ORLANDO, Vol. IV, parte 1a, p.301).

6.2. Polícia Judiciária

A Polícia Judiciária, também conhecidacomo polícia repressiva, funciona como au-xiliar do Poder Judiciário na procura de pro-vas dos crimes e contravenções e na buscapor seus autores. Tal caráter a torna essen-cialmente repressiva. Segundo a Lei de Bru-mário4, Art. 20:

... a polícia judiciária investiga os de-litos que a polícia administrativa nãoconseguiu evitar que se cometesse, re-úne as respectivas provas e entregaos autores aos tribunais encarregadospela lei de puni-los.

A polícia judiciária tem por fim efetuar ainvestigação dos crimes e descobrir os seusagentes, procedendo à instrução preparató-ria dos respectivos processos e organizar aprevenção da criminalidade, especialmen-te da criminalidade habitual.

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Na legislação brasileira, o exercício dasatribuições judiciárias da polícia está pre-visto e disciplinado no Código de ProcessoPenal, nos arts. 4o e 23, que dizem respeitoao Inquérito Policial5.

6.3. Polícia Eclética ou Mista

Além das polícias administrativa e judi-ciária existe também a polícia eclética, oumista, que exerce simultaneamente as fun-ções preventiva e repressiva. A polícia bra-sileira se encaixa nesta definição pois ummesmo órgão acumula as duas funções.

Em seu tratado, CAVALCANTI acreditaque esta divisão não corresponde à realida-de: “a divisão embora aceita pela generali-dade dos autores, merece ser criticada por-que, dificilmente, será possível estabeleceruma distinção perfeita entre as duas cate-gorias de polícia. A verdade é que mesmodentro de determinada manifestação dopoder de polícia, a medida pode revestir-seou de um caráter administrativo, ou pura-mente policial, quer sua finalidade seja atranqüilidade pública, quer o cumprimentode um regulamento administrativo. A clas-sificação interessa, por conseguinte, mais ànatureza da medida, do que propriamenteà esfera dentro da qual deve agir a autorida-de”. (CAVALCANTI, 1956, pp. 10-11).

A prática ensina que a distinção entrePolícia Judiciária e Polícia Administrativaé delicada, passando muitas vezes, um agen-te, durante a sua atuação, da função de Po-lícia Administrativa para a de Polícia Judi-ciária.

6.4. A Classificação da Polícia do Senado

A Polícia do Senado é essencialmenteeclética, visto que desempenha as funçõesde polícia administrativa, de segurança fí-sica das instalações do Senado Federal e deproteção aos senadores, e tem, entre suasprerrogativas, as funções de “investigaçãoe de inquérito” (Resolução do SenadoFederal no 59/2002, art. 2o, IX), quando defato ocorrido nas dependências sob a res-ponsabilidade do Senado Federal.

A fundamentação jurídica para a atua-ção da Polícia do Senado Federal na funçãode Polícia Judiciária, além texto legal já ana-lisado (Constituição Federal de 1988, art. 52,XIII, súmula do Supremo Tribunal Federalno 397/1964 e Resolução do Senado Federalno 59/2002, Art. 2o, IX), se encontra tambémdefinida no Código de Processo Penal (De-creto-Lei no 3.689 de 3 de outubro de 1941),art. 4o, onde, em nova redação dada pela Leino 9.043, de 09/05/1995, temos que “A po-lícia judiciária será exercida pelas autori-dades policiais no território de suas respec-tivas circunscrições e terá por fim a apura-ção das infrações penais e da sua autoria”desta forma a Polícia do Senado assume afunção de Polícia Judiciária quando de cri-mes ocorridos em suas dependências, ca-bendo a ela a investigação e a instauraçãodo inquérito policial.

7. Áreas de atuação da Polícia do Senado

A Polícia do Senado Federal tem por fi-nalidade a proteção à integridade física dosSenhores Senadores, de autoridades brasi-leiras e estrangeiras presentes ao SenadoFederal ou em dependência sobre sua res-ponsabilidade, a proteção de seus servido-res, bem como a proteção de seu patrimô-nio. Desta missão e das atribuições elenca-das, como atividades típicas, pela RSF no

59, de 2002, surgiu a necessidade de se es-truturar a Polícia do Senado de modo que asua missão fosse cumprida integralmente ecom eficácia.

As principais áreas de atuação da Polí-cia do Senado, definidas na RSF no 59, de2002, são: A proteção de dignitários (Art. 2 o,I, II e III); a proteção ao patrimônio do Sena-do Federal (Art. 2o, IV e VI, e Art. 3o); as deinvestigação (Art. 2o, IX e Art. 4o) e as de In-teligência (Art. 2o, VII).

7.1. Proteção de Dignitários

Dignitário é, segundo o Dicionário deAurélio Buarque de Holanda, aquele queexerce cargo elevado; que tem alta gradua-

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ção honorífica; ou o que foi elevado a algu-ma dignidade.

Nesse contexto, uma das principais fun-ções da Polícia do Senado é a proteção dossenadores, em especial do presidente daCasa. Para tanto dispõe de equipes especia-lizadas, treinadas e preparadas para atuarna proteção individual da autoridade e emseus deslocamentos tanto internos quantoexternos. Essas equipes também são respon-sáveis pela segurança das sessões plenári-as e pela proteção de qualquer autoridadepresente na casa, seja nacional ou estran-geira.

7.2. Proteção ao Patrimônio do Senado Federal

É a polícia administrativa e de seguran-ça da Casa, e a equipe que tem a função maisabrangente dentro da estrutura da políciado Senado e, desta forma, possui o maiorcontingente. Sua presença é percebida emtodas as dependências da Casa, em seusedifícios anexos, residências oficiais e ou-tras dependências pertencentes ao SenadoFederal ou que estejam sob sua responsabi-lidade.

Realiza o policiamento preventivo atra-vés de rondas internas e externas; mantémpostos avançados de controle; é responsá-vel por adotar medidas de proteção contraações ou acidentes que possam ameaçar,atrapalhar, danificar, destruir instalaçõesou o patrimônio do Senado Federal, adotaainda medidas que visam impedir a inter-rupção (ainda que temporariamente) dassessões plenárias ou trabalhos administra-tivos da Casa, faz a prevenção e controle deentrada de visitantes e controla a entrada esaída de veículos e materiais.

7.3. Investigação e inquérito

Dentre as competências da Polícia doSenado as de investigação e inquérito estãoentre as mais importantes. Como vimos nafundamentação legal da Polícia do Senado,todos os delitos ou crimes ocorridos em de-pendência sobre a responsabilidade do Se-nado Federal são investigados pela Polícia

do Senado, sendo que, quando houver cri-me no fato apurado, deve ser instaurado oinquérito policial.

O Código de Processo Penal (Decreto-Leino 3.689, de 3 de outubro de 1941), art. 4o

conceitua:Art. 4o A Polícia Judiciária será

exercida pelas autoridades policiaisno território de suas respectivas cir-cunscrições e terá por fim a apuraçãodas infrações penais e da sua autoria.

Parágrafo único. A competência de-finida neste artigo não excluirá a de au-toridades administrativas, a quem porlei seja cometida a mesma função.

O art. 70 do citado Código trata da “com-petência pelo local da infração”.

Art. 70. A competência será, de re-gra, determinada pelo lugar em quese consumar a infração, ou, no casode tentativa, pelo lugar em que for pra-ticado o último ato de execução.

Conseqüentemente, quando conhecido olocal da infração como sendo o Senado Fe-deral ou uma de suas dependências, caberáo exercício do poder de Polícia Judiciária àPolícia do Senado Federal.

A instauração de inquérito policial care-ce de regulamentação interna e treinamentoespecializado, desta forma esta função ain-da não é plenamente exercida pela Políciado Senado Federal, que tem contado com oapoio da Polícia Federal e da Polícia Civil doDistrito Federal na instauração dos inquéri-tos policiais. A previsão é que até o final de2004 o serviço cartorário da Polícia do Sena-do Federal esteja completamente implantado.

7.4. Inteligência

As atividades de inteligência são im-prescindíveis ao serviço policial. Algunsautores chegam a afirmar que não existepolícia sem inteligência.

Segundo a conceituação oficial vigenteem nosso país, “inteligência é a atividadeque objetiva a obtenção, análise e dissemi-nação de conhecimentos dentro e fora doterritório nacional sobre fatos e situação de

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imediata ou potencial influência sobre oprocesso decisório e a ação governamentale sobre a salvaguarda e a segurança da so-ciedade e do Estado”. (Art. 1o §2o, Lei 9.883,de 7 de dezembro de 1999).

A Polícia do Senado possui em sua es-trutura um serviço de inteligência, que bus-ca principalmente resguardar e proteger oSenado Federal. Partindo dessa premissa, oServiço de Inteligência da Polícia do Sena-do procura estar em constante contato comoutros órgãos de inteligência do país, ob-tendo informações que possam ter influên-cia direta ou indireta com o Senado Federal,com os projetos que lá tramitam ou com seusmembros e servidores da Casa.

Esse serviço é responsável, dentre outrascoisas, pelo levantamento de dados de pes-soas sob investigação da Polícia do Senado;levantamento de dados e acompanhamen-to do pessoal e empregados envolvidos di-reta ou indiretamente com a autoridade efamiliares; pelas investigações especiais,pelo registro áudio-visual das missões epelas ações de contra-inteligência.

A contra-inteligência é um segmento dainteligência que busca identificar e neutra-lizar ações que possam comprometer a ima-gem da organização, sua integridade, osconhecimentos e dados sigilosos pertencen-tes à mesma.

O Senado Federal, como a Câmara Altado país, é alvo em potencial de diversos gru-pos, com os mais diversos interesses oumesmo de outros países que podem adotarações para comprometer, sabotar, ou se an-tecipar a medidas e decisões tomadas poressa Casa legislativa. Desta forma as açõesde contra-inteligência devem prevenir, obs-truir, detectar e neutralizar qualquer tenta-tiva de coleta, sabotagem, fraude, desinfor-mação e propaganda contra a instituição.

A atividade de contra-inteligência estáassim definida na lei que Institui o SistemaBrasileiro de Inteligência (Lei 9.883/99):“Entende-se como contra-inteligência a ati-vidade que objetiva neutralizar a inteligên-cia adversa” (Art. § 3).

8. A atuação da polícia eos Direitos Humanos

A questão do respeito aos Direitos Hu-manos é parte de um processo de amadure-cimento da consciência, que passa pela pro-teção aos direitos sociais, econômicos e cul-turais. A história da humanidade é repletade exemplos de doutrinas onde a moral e aética são determinados por governos,religiosos e por costumes sociais.

Muitas dessas doutrinas segregaram porséculos grupos antagônicos que diferiamdos grupos dominantes apenas pelo sexo,cor, religião ou crenças. A esses grupos nadaera permitido, não existiam direitos, apenasdeveres.

Com a evolução da humanidade, pas-sou-se a observar o Homem de uma outraforma, como um ser que possui direitos nasua sociedade. Neste momento, os direitossociais, econômicos e culturais passam a servalorizados, estudados e exigidos em diver-sas sociedades.

A evolução dessa mentalidade e a pro-gressiva aplicação de mecanismos para pos-sibilitar que o indivíduo, em sua sociedade,possa desfrutar dos seus direitos sociais,econômicos e culturais, levaram ao desen-volvimento da questão dos Direitos Hu-manos, o indivíduo passou a ser vistocomo um ser que tem direitos inerentes aele como humano e não apenas comocidadão.

Essa nova visão passou a impor ao poli-cial moderno novos limites de atuação e umareflexão sobre sua autoridade de usar a for-ça sob certas circunstâncias.

Sob esta ótica, para que o trabalho poli-cial seja executado de forma eficaz, as insti-tuições policiais devem ser comandadas egerenciadas com base em princípios expres-sos na Resolução no 34/169 da AssembléiaGeral das Nações Unidas, de 17 de dezem-bro de 1979, são eles: respeito e obediência àlei; respeito pela dignidade inerente da pes-soa humana e respeito pelos direitos huma-nos.

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Por razões éticas e legais, a polícia devese pautar pelo cumprimento de tais princí-pios. Os abusos e excessos devem ser puni-dos para evitar que todo o trabalho de seconstruir uma polícia justa, eficiente e com-prometida com o Estado democrático, sejacomprometido. Não se deve confundir estapreocupação com a proteção ao criminoso,pois seu objetivo é conter o abuso de poder egarantir a dignidade do ser humano e ocumprimento da lei de forma justa e eficaz.

9. Conclusão

A criação da Polícia do Senado Federaltrouxe, para os meios policiais e jurídicosbrasileiros, um debate sobre a real neces-sidade de criação desse tipo de instituição.Muito se falou, mas pouco se refletiu sobre aimportância desta polícia no contexto nacio-nal.

Pautado por esse questionamento, estetrabalho apresentou algumas idéias sobre aatuação da Polícia do Senado Federal, so-bre as razões de sua criação e sobre seu papelna vida política nacional e na independên-cia do Poder Legislativo, possibilitando, des-ta forma, um debate mais amplo que possaesclarecer aspectos jurídicos, ainda não to-talmente compreendidos, desta nova polícia.

Sobre sua atuação, a Polícia do SenadoFederal pretende se guiar pelo respeito àdemocracia e aos direitos humanos, preten-de ser uma polícia não letal, evitando o usode armas de fogo e a utilização de força emsuas ações. Sua forma de atuar é primordi-almente preventiva e, nesse sentido, diver-sas ações são desencadeadas para protegero Senado Federal, os Senadores, servidores,convidados e visitantes de qualquer con-tratempo. Porém, tal preferência pela preven-ção não a impossibilita de atuar a posteriori,pois seus quadros estão plenamente capaci-tados a atuar na função de Polícia Judiciária.

A Polícia do Senado Federal pretendeainda ser uma polícia moderna, integradapor policiais bem preparados, treinados econscientes de que são profissionais do Di-

reito e que, dessa forma, devem zelar para ocumprimento das leis.

As pretensões aqui apresentadas pres-supõem muito treinamento em todas as ver-tentes da atuação policial, investimentos emequipamentos modernos, veículos e em con-vênios com outras polícias do Brasil e domundo. Pressupõem também o desenvolvi-mento das atividades de inteligência, pro-porcionando mais subsídios à atuação pre-ventiva da Polícia do Senado.

Alcançados os objetivos propostos, acre-dita-se que a Polícia do Senado Federal seráfortalecida e contribuirá para o fortalecimen-to das polícias de outras casas legislativas edesta forma contribuirá de forma decisivapara a manutenção da independência entreos Poderes e para o fortalecimento da demo-cracia no Brasil.

10. Notas1 Alcaide: 1 Antigo governador de castelo ou de

província. Antigo governador de castelo, provínciaou comarca, com jurisdição civil e militar. 2 antigofuncionário incumbido de cumprir as determina-ções judiciais; oficial de justiça. (Dicionário Eletrô-nico Houaiss da língua portuguesa).

2 Quadrilheiro: Grupo de soldados de polícia;cidadãos civis investidos de função pública queauxiliavam o Alcaide na segurança das cidades.

3 Este ato também determinou o surgimento daPolícia Civil no Brasil.

4 Brumário: Segundo mês do calendário daPrimeira República Francesa

5 O Inquérito policial surgiu no Brasil atravésda Lei no 2.033, de 20 de setembro de 1871 e foiregulado pelo Decreto no 4.824 do mesmo ano.

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IntroduçãoNo processo de fundamentação teórica e

de consolidação dos pensamentos econômi-co-liberal-capitalista e jurídico-positivista,tratou-se de incorporar o que tinham em co-mum nos seus arcabouços ideológicos, ouseja, o espírito e a crença na existência deuma ordem natural, despojada da reflexãometafísica e deôntica. Uma realidade con-cebida enquanto normativista e providen-cial, transmitida ao inconsciente coletivo,como evento determinista e escatológico.

Entrementes, a crença na realidade en-quanto categoria e expressão de uma ordemnatural e inevitável, obriga a rever a tramahistórica e o discurso desta simbologia ideo-lógica e mítica, a doxa capitalista, fortemen-te sedimentada no plano cultural e moralda sociedade democrática liberal.

Dissecar o caráter simbólico e político doprocesso de institucionalização e domina-ção sobre o Estado moderno, torna-se um

Ruy dos Santos Siqueira

O processo de institucionalização dasupremacia da ordem econômica e jurídicana constituição do Estado democrático

Ruy dos Santos Siqueira é Secretário daComissão de Direitos Humanos e Minorias daCâmara dos Deputados e Professor de Ética eCidadania no UniCeub.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. ALEXANDREPAIVA DAMASCENO.

Introdução; 1. O processo de produção e fal-seamento ideológico da realidade na perspec-tiva da teoria sociológica e semiológica; 2. Odilema epistemológico e conceitualista da teo-ria do Estado; 3. A limitação sistêmica do con-ceito positivista e funcional da teoria do Esta-do moderno; 4. Análise crítica do processo deconstitucionalização do Estado Democrático; 5.Reflexão sobre o processo de judicialização doEstado democrático: A República tomada peloDireito Positivista; Conclusão.

Sumário

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ato imperativo e imprescindível para bus-car a compreensão do enredo ideológico doliberalismo mercadológico e do direito po-sitivista, que de forma dogmática e funda-mentalista, continuam a afirmar que o ca-minho e o alcance do desenvolvimento ma-terial e moral do homem moderno passampela aceitação de uma cultura disciplinadapela divisão do trabalho e pela mística vi-gente, da “ordem e do progresso”, propug-nada pela racionalidade tecno-burocráticae convalidada pela moral e ética calvinista,da subcomissão e respeito à autoridade vi-gente.

Entender os meandros da temática pro-posta é de grande valia e pertinência, já queo novo quadro político internacional rede-senhado pela teoria do Estado Mínimo nosanos 90 do século XX, reduziu drasticamentea função estatal a mera defensora do patri-mônio público e da economia de mercado.

A década de 90 caracterizou-se pela su-premacia da política neoliberal como fiocondutor das demandas políticas e sociais.A ação dos Estados, sobretudo “emergen-tes” passou a ser determinada pelo discur-so econômico e jurídico. Nunca antes nahistória da humanidade o fator econômico,convalidado pelo ordenamento jurídico po-sitivista, se havia sobreposto à própria con-dição e existência humanas.

Perplexos diante do autoritarismo deter-minista do discurso hegemônico da econo-mia de mercado e do realismo jurídico libe-ral, desconstruir o discurso oficial tornou-se imprescindível para buscar compreendera base material e teórica das razões que jus-tificam a supremacia da ordem econômica ejudicial nas constituições liberais e nos par-lamentos da Era Moderna.

Por entender e considerar que a realida-de é um constructo idealizado e materiali-zado na perspectiva da estratificação soci-al, desmitificar o discurso oficial da dogmá-tica capitalista e jurídica positivista forma-lista-normativista significa desnudar a falaoficial, fala esta, nitidamente intencionadaa manter, via controle institucional, teológi-

co e estatal, as demandas sociais, preteriza-das pela ideologia do Estado Mínimo, a par-tir do fim da Guerra Fria.

1. O processo de produção e falseamentoideológico da realidade na perspectiva da

teoria sociológica e semiológica

O cidadão moderno, na sistemáticagramsciana e althusseriana, é um ser confi-gurado pelos aparelhos ideológicos de re-produção do Estado, que desde seu nasce-douro até ao processo de aprendizagem ouexistencialização, passa a incorporar a con-vicção de que o mundo, tal como se apre-senta, é real e inconteste em si mesmo. Ummundo natural e auto-revelado.

Absorvidos na condição de que a reali-dade é um fato natural, estratificado e irre-versível, cabe aos cidadãos subalternos ape-nas enquadrar-se dentro de sua funcionali-dade e dinamicidade, de um realismo dog-mático e escatológico, onde a crença nomundo revelado ou natural serve como umaespécie de moldura existencial acoplada aoinconsciente coletivo, com a finalidade ape-nas de traduzir e preservar as aspirações einteresses ideológicos da classe dirigente.

Peter Berger e Thomas Luckmann afir-mam no intróito de sua clássica obra intitu-lada “A Construção social da realidade”, que:

O homem da rua habitualmentenão se preocupa com o que é real paraele e nem com o que ‘conhece’, e a nãoser que esbarre com alguma espéciede problema, dá como certa a sua ‘re-alidade’ e o seu ‘conhecimento”1

No desiderato de desnudar a linguagemcomo instrumental do processo de falsea-mento da realidade – realidade esta conso-lidada pelo binômio Estado burguês e de-mocrático de direito – deve-se observar quese trata de um problema de desconstrução dalinguagem oficiante, ou na esteira marxista,do discurso ideológico de quem enuncia.

O processo de concepção e construçãoda realidade, como fruto de uma lei naturale de uma existência absoluta e inquestioná-

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vel, condiz com a função primordial de pro-duzir no imaginário social, a crença de quea apropriação do fato social é um imperati-vo deontológico, e que sem esta “assimila-ção existencial e social”, a historicidadehumana experimentaria o caos ou a desor-dem civilizatória.

Para que a realidade concebida tenha suadevida eficácia, a classe dominante trans-formou o seu discurso político e econômicoem produção simbólica2 e arquetípica3. Oêxito do processo de convencimento e do-minância dando-se na formulação simbóli-ca do discurso e em sua transposição para aconsciência e o imaginário social.

Gilbert Durand nos fornece a devida fun-damentação teórica, formulando o pressu-posto de que:

A consciência dispõe de duas ma-neiras de representar o mundo. Uma,direta, na qual a própria coisa pareceestar presente na mente, como na per-cepção ou na simples sensação. Aoutra, indireta, quando, por qualquerrazão, o objeto não se apresentar à sen-sibilidade ‘em carne e osso.4

Na definição do significado de imaginá-rio social, o professor Denis Moraes subs-tancializa sua definição, descrevendo:

O imaginário social é composto porum conjunto de relações imagéticasque atuam como memória afetivo-social de uma cultura, um substratoideológico mantido pela comunidade.Trata-se de uma produção coletiva, jáque é o depositário da memória que afamília e os grupos recolhem de seuscontatos com o cotidiano.5

Outro expoente dos estudos da semiolo-gia, Bronislaw Baczko diz que a imagina-ção social é um aspecto muito significativoda sociedade, através do qual os grupos so-ciais se percebem e projetam na elaboraçãode uma imagem de suas realidades própriase atribuem identidades sociais e institucio-nais a seus membros.

É desta forma que uma coletividade oucivilização designa sua esfinge, planeja uma

certa representação de si, estabelece a dis-tribuição de papéis sociais, impõe sistemasde crenças teológicas e deônticas e, princi-palmente, constrói códigos de conduta.

Destarte, é no campo do imaginário so-cial que a elite idealiza e impõe aos subal-ternos, os papéis sociais institucionalmen-te estabelecidos, como forma de garantir osseus interesses privados e estatais.

Estruturalmente sistematizado, dar-se-áinicio ao processo de dominação. O camposimbólico atuará como um campo de repro-dução do jogo de poder. Estrategicamente,um poder que não coage fisicamente, masreverbera-se no interior dos indivíduos e dotecido social, com a finalidade de manter arealidade instituída.

Buscando compreender o fenômeno soci-al enquanto espetáculo produzido, BronislawBaczko, ressaltou que o imaginário socialinforma acerca de uma determinada reali-dade. Constituindo-se numa convocatóriaà ação da coletividade. A sociedade precisaimaginar e inventar a legitimidade que atri-bui ao poder, desse modo, o processo de in-teriorização é de fundamental importânciae contará com os atributos do campo simbó-lico na constituição de um sistema de repre-sentação. Como indica Baczko:

A imaginação social, além de fatorregulador e estabilizador, também é afaculdade que permite que os modosde sociabilidade existentes não sejamconsiderados como definitivos e osúnicos possíveis, e que possam serconcebidos outros modelos e outrasfórmulas.

A rede imaginária possibilita-nosobservar a vitalidade histórica dascriações dos sujeitos – isto é, o usosocial das representações e das idéias.Os símbolos revelam o que está portrás da organização da sociedade e daprópria compreensão da história hu-mana. A sua eficácia política vai de-pender da existência daquilo queBaczko chama de comunidade deimaginação ou comunidade de senti-

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do. As significações imaginárias des-pertadas por imagens determinam re-ferências simbólicas que definem,para os indivíduos de uma mesma co-munidade, os meios inteligíveis deseus intercâmbios com as instituições.Em outras palavras: a imaginação éum dos modos pelos quais a consci-ência apreende a vida e a elabora. Aconsciência obriga o homem a sair desi mesmo, a buscar satisfações queainda não encontrou.

O imaginário não é apenas cópiado real; seu veio simbólico agenciasentidos, em imagens expressivas. Aimaginação liberta-nos da evidênciado presente imediato, motivando-nosa explorar possibilidades que virtual-mente existem e que devem ser reali-zadas. O real não é só um conjunto defatos que oprime; ele pode ser recicla-do em novos patamares. Como nospropõe Ernst Bloch ao indicar umnexo entre as potencialidades ‘ainda-não-manifestas’ do ser e a atividadecriadora da ‘consciência antecipado-ra’. A função utópica da consciênciaantecipadora é a de nos convencer deque podemos equacionar problemasatuais em sintonia com as linhas queantecipam o futuro.

O ‘ainda-não-ser’ – categoria fun-damental da filosofia blochiana dapráxis – baseia-se na teoria das po-tencialidades imanentes do ser queainda não foram exteriorizadas, masque constituem uma força dinâmicaque projeta o ente para o futuro. Imagi-nando, os sujeitos ‘astuciam o mundo’.O futuro deixa de ser insondável, parase vincular à realidade como expectati-va de libertação e de desalienação.

Devemos distinguir, como Bloch,imaginação e fantasia: a primeira ten-dendo a criar um imaginário alterna-tivo a uma conjuntura insatisfatória;a segunda nos alienando num con-junto de ‘imagens exóticas’ em que

procuramos compensar uma insatis-fação vaga e difusa. Só a imaginaçãopermite à consciência humana adap-tar-se a uma situação específica oumobilizar-se contra a opressão.”6

Diante das reflexões de Dênis Moraessobre a teoria do imaginário social deBaczko, pode afirmar que o cidadão, rotini-zado pelos tempos modernos de individua-ção, de forma tácita e cadenciada, ao ser con-duzido e formatado pelo ideário e os inte-resses da classe dominante, tem a predispo-sição de naturalizar a vida cotidiana, comoespaço axiomático de manifestação da pró-pria realidade; mormente, prescindindo dareflexão, da dúvida e da indagação acercado modo em que se operou a construção darealidade exposta.

Ampliando à análise na perspectiva his-tórico-filosófica, a modernidade, ao despir-se do temor e da mítica medieval, busca con-sagrar uma realidade versada pelo espíritocartesiano, guiando-se pela lógica da hete-ronomia burguesa.

Uma realidade que passa a ser decodifi-cada e determinada pela ação de um poderrevestido por uma razão instrumentaliza-da sob o signo da objetividade técnica, des-cartando quaisquer alusões subjetivas ouindagação reflexiva sobre o que é a realida-de, apenas aceitando-a enquanto manifes-tação de si mesma e de um destino linear eirreversível.

Corroborando com a critica sobre o con-ceito positivista de realidade, o professorRonald Ayres Lacerda, especialista em filo-sofia e teologia do processo de Whitehead,afirma:

Que a realidade social é um todocomplexo, possuindo um caráter dis-tinto da realidade natural. Logo nãose pode pretender aplicar os métodosda física às ciências naturais, comonuma certa tradição positivista.7

Contudo, o desencantamento e a descren-ça na construção de novas utopias a partirda hegemonia do capitalismo, esboçados emtempos de civilização pós-moderna, não fo-

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ram capazes de sepultar a premissa de KarlMarx proferida no preâmbulo do ManifestoComunista, em 1848.

Ao contrário, continua marcante e atuala sua assertiva de que a história/realida-de/existência é ato contínuo de luta e con-flito de classes. Mais atual, quando assisti-mos o fracasso da euforia e do triunfo doneoliberalismo dos anos 90 e, principalmen-te do seu poslúdio: o “fim da Historia”.8Parece-nos que o pensamento marxista ain-da será por muito tempo, a principal ferra-menta de análise dos fenômenos civilizató-rios e sociais no mundo da divisão do tra-balho e do exercício do poder.

Diante da contínua e atualizada sistê-mica marxista, pode-se inferir que a reali-dade e suas complexas estruturas institucio-nais, dogmáticas e normativas é um ato ouuma invenção intencionalizada, com focodirigido e, especialmente manobrado poraqueles que detém as diversas formas deexercício do poder e da dominação.

A realidade é um espectro do processode ideologização vinculado às condiçõesmateriais de produção, processadas a par-tir do dinamismo das relações humanas.

Marx objetiva e consolida a sua consis-tente análise, ao afirmar que a realidade/humanidade caracteriza-se pela produçãomaterial e espiritual e não por um estado deconsciência puro ou metafísico.

Entretanto, para que a realidade simula-da tenha validade e eficácia, será exigida aelaboração de um sistema de crença e dog-ma. A ação mimética será primordial no pro-cesso de passagem do mundo discursivo eideológico para a permanente realidade si-mulacro.

Neste sentido, a ritualização da condi-ção humana, pelo disciplinamento e pelacoação psicossocial, será pêndulo vital parao processo de assimilação e de incorpora-ção do simbolismo e do ideário da classedominante, detentora e produtora do espí-rito da modernidade.

No afã de alcançar e manter os seus inte-resses, a burguesia capitalista, mesmo des-

pindo-se das vestes teológicas e da moralmedieval, não abdicou da estrutura ritual emítica, uma vez que a presença da estruturadeu maior eficácia ao processo de manuten-ção da ordem eclesiástica vigente.

Na estruturação e na hierarquização dasociedade moderna, o fator lingüístico tor-na-se viés de dialógica social e psicológica,calcada no suporte mítico e ritual.

A burguesia apropria-se do papel dosimbolismo, outrora sacro, colocando nasua essência uma nova condição humanapermeada de simbolismo “logocêntrico”. Apalavra, na integração e construção da rea-lidade ganha força transcendental dentrodo tecido social. Dessa forma, a elite tradicio-nal, no processo de racionalização da lin-guagem, não abstrairá do mito e do rito.

Para assegurar a eficácia ideológica esimbólica da realidade vigente, fez-se neces-sário ritualizar e mitificar a cotidianidadeatravés do jogo da linguagem. A linguagemdeixa de ser mero formalismo de comunica-ção e de integração e, transforma-se numagir intencional, igualmente ao agir ideoló-gico.

Terry Eagleton, em seu estudo sobre acorrelação analítica entre linguagem e ideo-logia relembra:

A primeira teoria semiótica da ide-ologia foi desenvolvida pelo filosófi-co soviético V. N. Voloshinov em ‘Mar-xismo e filosofia da linguagem’ (1929)– uma obra em que o autor audaciosa-mente proclama que ‘sem signos nãohá ideologia’. Em sua visão, o domí-nio dos signos e o da ideologia sãocoextensivos à consciência, que sópode surgir na corporificação materi-al dos significantes, e como essessignificantes são em si mesmos, ‘lógi-ca da consciência’, que segundoVoloshinov, ‘é a lógica da comunica-ção ideológica, da integração semióti-ca de um grupo social’. Portanto, seprivássemos a consciência de seu con-teúdo semiótico e ideológico, não lherestaria absolutamente nada. A pala-

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vra é o ‘fenômeno ideológico par exce-llence’, e a própria consciência é ape-nas a internalização de palavras, umtipo de ‘discurso interior’. Em outraspalavras, a consciência é menos algo‘dentro’ de nós que algo ao redor denós e entre nós, uma rede de signifi-cantes que nos constitui inteiramente.9

Para tanto, a segurança e a manutençãoda realidade produzida logrará eficácia, re-correndo à linguagem mítica e ritual. Ob-serva-se uma grande simetria entre o dis-curso religioso e o político, no transcursoda modernidade empírica.

Convalidando a análise sobre esta sime-tricidade, Ernest Cassirer afirmou:

A consciência teórica, prática e es-tética, o mundo da linguagem e doconhecimento, da arte, do direito e damoral, as formas fundamentais dacomunidade e do Estado, todas elasse encontram originariamente ligadasà consciência mítico-religiosa.10

A psicanálise, o estruturalismo e a feno-menologia afirmam que para postular umadescrição sobre a realidade, é fundamentalentender a função social do mito e do rito noprocesso de consolidação da realidade, pro-cessada pelo discurso e internalizada numrito de passagem para o inconsciente cole-tivo.

Diante da relação simbiótica entre mitoe rito, elementos basilares de construção elegitimação da realidade, Paul Ricoeur,Ernest Cassirer e Saussure11 deslocarão o con-ceito de mito e o de rito, a partir da lingua-gem. Ambos não serão mais compreendidose tampouco interpretados pelo caminho teo-lógico, mas como fenômenos de linguagem.

Roland Barthes afirmou que o mundofornece ao mito elementos da realidade his-tórica, referindo-se à maneira como os sereshumanos a reproduzem. Em contrapartida,o mito devolve a realidade em imagem, mi-metismo lingüístico e comportamental.

Contribuindo com a perspectiva críticade Barthes, o sociólogo francês PierreBourdieu ressalta que o poder simbólico/

mítico, é um poder de construção da reali-dade que tende a estabelecer uma ordemgnoseológica, podendo incorrer no confor-mismo social ou numa compreensão do realhomogeneizante do tempo, do espaço e daforma existencial.

Na sociedade moderna, extremamentehierarquizada, o discurso oficiante serásempre um discurso de poder de domina-ção. Será uma locução planejada visando acontrole social através da legitimação dainvestidura política, religiosa, midiática oueconômica. O discurso acerca da realidadeserá intencional, dirigido e ideológico, per-meado de forte conteúdo deontológico e teo-lógico; um enunciado composto de domi-nação.

Max Weber, refletindo sobre sociologiada dominação, diz:

Por dominação compreendemos,então aqui, uma situação de fato, emque uma vontade manifesta (manda-do) do dominador ou dos dominado-res quer influenciar as ações de ou-tras pessoas (do dominado ou dosdominados), e de fato as influenciamde tal modo que estas ações, num grausocialmente relevante, se realizamcomo se os dominados tivessem feitodo próprio conteúdo do mandado, asmáximas de suas ações (obediência).12

2. O dilema epistemológico econceitualista da teoria do Estado

Há várias tentativas de se construir umateoria do Estado. Não há dúvida que esta-mos diante de um conceito polissêmico.Gero Lenhardt e Claus Offe, precursores daEscola Crítica Alemã, chamam a atenção queas definições tipificadas nas diversas lite-raturas sociológicas e jurídicas, gravitam ese orientam numa conceitualização formale procedimental, tornando assim, uma defi-nição, meramente pragmática e positivada.

Ao refletir sobre teoria do Estado e polí-tica social, advertem que em torno do estu-do sociológico sobre teoria do Estado:

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A investigação do Estado e da po-lítica estatal se orienta nas ciênciassociais liberais por conceitualizaçõesformais. Quando eventualmente en-contramos definições sociológicas doEstado de direito parlamentar-demo-crático, essas definições se referem aformas e procedimentos, a regras einstrumentos da atividade estatal enão a suas funções, relações de inte-resse e resultados.13

A fortiori, estes autores buscam desmiti-ficar o conceito esboçado pelo academicis-mo positivista que, herdeiro da tradição jus-naturalista e dos textos clássicos de Hobbes,Leibnitz, Locke e Kant, deu sustentação àidéia de um Estado metafisicamente puro.

Claus Offe oblitera ao tradicional con-ceito liberal e conservador, da crença de umarealidade permeada da idéia metafísica euniversalista, e de uma ordem existencialapriorística e determinista, onde o Estado éapenas a expressão desta sistematizaçãopsicossocial e ideológica.

Diante desta definição tradicional, umestudo analógico e histórico sobre o proces-so de transposição da estrutura simbólica emetalingüística das epocalidades Ociden-tais revela, que se na Idade Média a Igrejaera a representante natural da ordem divi-na e política, na modernidade, com o fim doabsolutismo e a consolidação dos ideais ilu-ministas, o Estado apropria-se deste cons-tructo, incorporando um estilo de autorida-de autocrática, dotado de uma ordem hu-manística e tecno-burocrática.

Transformando-se numa “potência ins-titucional divinizada” pelo ideal calvinis-ta, o Estado passa a ser o legitimo mediadordo projeto de sociedade contratualista.Dentro do pressuposto junguiano de análi-se sobre arquétipo, houve apenas uma mu-dança de objeto, pois a base metafísica ematerial continuou vigente, ou seja, daobediência à Igreja e ao Estado racional edisciplinador.

É verdade que um dos objetivos funda-mentais do Iluminismo foi sistematizar filo-

soficamente, uma utopia civilizatória e doser individual, tendo como finalidade a suaemancipação histórica e humana pelo do-mínio da razão. Entretanto, conformeThomaz Hobbes este caminho não se pro-cessará pela determinação da história.

Diante da constatação da experiênciadas constantes guerras no transcurso dahistória, a razão e o desejo humano só po-derão ser contidos pelo Estado. Pois, já di-zia Hobbes, que a história é uma constanteinteração de guerra civil.

Reinhardt Koselleck, no seu comentáriosobre o pensamento de Hobbes, expressou:

O Leviatã é, ao mesmo tempo, cau-sa e efeito da fundação do Estado.Assim Hobbes acaba com a pretensaprioridade das resoluções internasdos indivíduos e tenta demonstrar ocondicionamento congênito de qual-quer moral que se realize pela ordemestatal. A conseqüente eliminação ab-solutista de qualquer dualidade entreestamentos e monarca, entre povo esoberano, se quisesse ser dotada desentido, também interditava uma se-paração entre lei moral e legalidadepolítica. A guerra civil, que é vividacomo ameaça mortal, alcança a pazno Estado. Este Estado, como Estadoterreno, é um deus mortal. Como deusmortal, assegura e prolonga a vidados homens, mas ao mesmo tempo,permanece mortal, pois é uma obrahumana e pode sempre sucumbir aoestado de natureza que marcou suaorigem, a guerra civil.14

Diante da contradição entre o significa-do e a objetividade do Estado, NorbertoBobbio chama atenção da dificuldade exe-gética e epistemológica de se formular umconceito puro e preciso, uma vez que, emboa parte dos compêndios e tratados socio-lógicos, ficou adstrito ao viés liberal e pro-testântico.

Tratando-se de uma crítica teórica doEstado, deve-se ater ao parâmetro e ao sig-nificado da influência do calvinismo, do li-

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beralismo e do positivismo moderno na ela-boração conceitual do Estado vigente nomundo contemporâneo.

Do pensamento calvinista, o Estado va-leu-se da imunidade em suas ações contra-ditórias. O processo de divinização da au-toridade foi uma das principais contribui-ções para a autonomia e soberania do Esta-do moderno.

Calvino formulou a idéia de que Igreja eEstado procedentes do mesmo princípio esimbolismo. Ambos, com funções específi-cas, são instrumentos de Deus para a vindae a preservação de seu Reino. Enquanto oEstado tem a função de resguardar a ordemcircunstancial e histórica, a Igreja tem a ta-refa específica de orar pelas autoridades,independentemente dos atos serem bons oumaus ou de provocarem a desumanizaçãodas pessoas e a injustiça social.

No pensamento político e ideológico deCalvino, as sociedades deveriam ser com-postas de pessoas obedientes e distancia-das da atividade política. A exigência deuma servidão cívica e teológica ao Estadofoi uma das características de Calvino. Apreservação da ordem estatal e social erauma exigência incondicional para os discí-pulos da Igreja Reformada.

Vale destacar que, diante do processo deprotestantização do Estado que varria aEuropa dos séculos XVI a XVIII, Karl Marxinsurgiu-se contra este paradoxo que aindaafronta o espírito e propósitos do pensamen-to moderno. Críticando a religião que se es-tabelece no processo de configuração donovo Estado, busca defende-lo da impostu-ra religiosa, propondo em definitivo a secu-larização do poder político e público.

Chama a atenção para isso em seu clás-sico “A Questão Judaíca”, ao afirmar que“retirar a religião do Estado não significatirá-la da vida das pessoas”15, apenas ad-vertia que o Estado deveria ser laico.

Com relação aos princípios do liberalis-mo, o Estado herdou a crença fundamentalnum ideal político em que os indivíduos sãolivres para concretizar os seus objetivos. A

crença na igualdade, nos direitos humanos,na liberdade individual, na propriedade, nomercado livre e na democracia será a marcadeterminante deste Estado liberal.

No Estado liberal-democrático, o impé-rio da lei precederá a própria existência. Aanterioridade existencial, sob a ótica e o es-pírito objetivista, não dará espaçamentopara o espírito objetivo e racional. A máxi-ma da modernidade liberal é transformar econtrolar o mundo, restringindo a sançãomoral ao dever privado, libertando a econo-mia de qualquer injunção teológica e ética.Ao Estado cabendo apenas a tarefa de regu-lar a moral privada. Assim:

O iluminismo triunfa na medidaem que expande o foro interior priva-do ao domínio público. Sem renunci-ar à sua natureza privada, o domíniopúblico torna-se o fórum da socieda-de que permeia todo o Estado. Por úl-timo, a sociedade baterá à porta dosdetentores do poder político, para aítambém exigir publicidade e permis-são para entrar.16

No entanto, Claus Offe ressalta que oprocesso de formulação de uma teoria do Es-tado não pode continuar restrito a uma per-cepção normativa e formalista, uma vez que:

Quando eventualmente encontra-mos definições sociológicas do Estadode direito parlamentar-democrático,essas definições se referem as formas,procedimentos, a regras e instrumen-tos da atividade estatal e não a suasfunções, relações de interesses e resul-tados.17

Assim, impulsionado pelo espírito deClaus Offe, de contraposição ao conceitodefinição funcionalista e weberiano sobrea teoria do Estado, como detentor do mono-pólio da violência, faz-se necessário pergun-tar: Quem governa e quem exerce esta açãocoercitiva contra quem?

Percebe-se na tradição liberal-funciona-lista, a tentativa da construção de uma con-cepção linear, despindo-a da inquestioná-vel indagação: Quem controla o poder esta-

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tal, uma vez que é portador de interessesindividuais, corporativos e de classe?

Além disto, há de enfrentar outro dilemateórico acerca da condição do governante,sobretudo, estabelecida no pressuposto depotência soberana de Jean Bodin18 . Seupostulado do tipo ideal de governantetransforma-se em mero exercício de abstra-ção, quando tenta sustentar a idéia de que ogovernante deve estar acima do bem e domal, sem a sanção moral.

Este aparente delírio teórico de Bodincontinua muito presente no inconsciente dosgovernantes. Recentemente no Brasil, maisespecificamente no governo de FernandoHenrique Cardoso, foi enviada uma propos-ta ao Congresso Nacional no sentido de ga-rantir foro privilegiado para ex-autoridades,numa clara semelhança e assimilação doideário de Bodin.

Os teóricos da racionalidade moderna,principalmente nos séculos XVII e XVIII,buscaram enquadrar o Estado, tirando-lheo caráter absolutista e reduzindo-o a meromediador neutralista.

No entanto, este ideário de neutralidadeestatal esbarrava na contradição principio-lógica de um novo ethos humano formuladopelos filósofos da natureza, os quais sus-tentavam uma nova moralidade em que ohomem da modernidade é tido como possu-ído por uma natureza perversa e devorado-ra de si mesma.

Diante deste conceito de demonização epredestinação da condição humana, produ-zido para justificar a teoria e a práxis liberaldo exercício do poder no controle social emoral, deve-se perguntar e refletir sobrecomo é possível conciliar a utopia de umEstado contratual, se a nova humanidadepropugnada por Calvino, Hobbes e outrosnaturalistas, é dotada de uma natureza sub-jugada moral e existencialmente?

Por esta razão, compreendemos que ateoria marxista parece mais lógica e plausí-vel. A idéia de que o Estado é um ente querepresenta os interesses de uma classe do-minante é muito mais compatível à idéia de

Estado neutro, técnico e funcional. A escolamarxista e a gramsciana explicitam o Esta-do como expressão da dominância da maio-ria pelo espectro de uma minoria que gover-na e manipula os subalternos, impondo-lhes a ideologia da servidão predestinada.

Portanto, é uma ilusão falar num Estadocontratualista, diante de um processo his-tórico que reflete claramente as interminá-veis lutas de classes.

Buscando ampliar a corrente marxista,os protagonistas da Escola Crítica deFrankfurt: Marcuse, Adorno e Habermas,contrapõem-se ao realismo jurídico-positi-vista, afirmando que não há nenhuma vali-dade na idéia de um Estado existente em simesmo, ou seja, um Estado em potência.

Seguem afirmando que a formulação te-órica de Estado é estritamente intencional ehistórica, fadado que é, à impossibilidadedo estabelecimento de um espírito de neu-tralidade frente à existência e à história dosconflitos no ambiente hostil e bélico da civi-lização Ocidental, expressão de seu princi-pal empecilho, a impossibilidade de umagovernabilidade neutra e isenta, na medidaem que se cristaliza na lógica perversa daexploração humana.

3. A limitação sistêmica do conceitopositivista e funcional da teoria do

Estado moderno

O pensamento burguês Ocidental insis-te nos ensinamentos positivistas de que aIdade Moderna significou o rompimentocom o modo de produção da economia feu-dal e o destronamento do absolutismo ecle-siástico e político-estatal. Depreendendohistórica e moralmente que a modernidadesignificou o fim da tirania dos governantese dos religiosos; o fim da intervenção filosó-fica e teológica na esfera pública e política e,por fim, a consagração do indivíduo en-quanto sujeito protagonista da própria his-tória e do destino humano.

É verdade que a sociedade moderna tevea capacidade de sepultar todas as formas

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de absolutismo e intervencionismo da mol-dura medieval e feudalista. Não obstante,deve ficar atentos a que a secularização davida, do poder e da esfera pública, não sig-nificou a planificação do exercício do poderpolítico e econômico dentro do tecido social.

A alternância dos modelos civilizatórios,estatais e políticos, na trajetória e tradiçãoOcidental, obedece rigorosamente ao idealde um Estado proclamado no idealismo pla-tônico, agostiniano e calvinista, no qual seafirma que a essência do Estado seria, nãoum agrupamento de indivíduos semelhan-tes e iguais, mas dessemelhantes, desiguaise de ações estratificadas, portanto, sendoimpossível atender-lhes as demandas deforma isonômica, dada a crença na realida-de predestinada e determinada.

O Estado moderno tornou-se uma repre-sentação simbólica e institucional do pró-prio antagonismo e dualismo existencial doser humano. Contudo este impasse concei-tual se impõe diante do dilema de compre-ender que, ao mesmo tempo em que cede-mos e transferimos o nosso direito de gover-nar, receamos deste mesmo Estado que, paragarantir e assegurar a paz e a defesa comum,passa usar da força e de todos os recursos,da maneira que considerar conveniente eprovidencial.

O dilema: quem governa quem? Sem con-siderar as contradições e a análise do estra-to social, sempre ronda e ameaça a nossaliberdade.

A sociedade capitalista-liberal teve omérito de demolir o palco da ontologia e doestamento medieval e feudalista, mas pre-servou para si o arquétipo estrutural destesprecedentes históricos. O Estado modernonão escapa a esta ação contraditória, orabenfeitor, ora malfeitor da historicidade eexistencialidade humana.

O Estado capitalista incorporou para siuma moralidade racional e tecno-científicaque, sedimentada no espírito do positivis-mo, continua a afirmar que a vida, a histó-ria e a existência, reverberam nas ações po-líticas, econômicas e jurídicas, trilha orgâ-

nica e institucional sob o fio condutor deuma história linear e progressiva.

A história e realidade, delineada pelosintelectuais representantes da aspiração daburguesia, transforma-se num desenvolverdirecionado pelos princípios da ordem e doprogresso. Sob o princípio de uma ordemnatural a-histórica, onde qualquer mudan-ça de percurso humano e político vai exigiruma transformação funcional ordenada,não comportando quaisquer transforma-ções violentas e abruptas.

Esta mentalidade se faz presente na his-tória política e social, em especial, na cultu-ra das elites da América Latina. Nos anos80, durante o processo de democratização doContinente, os representantes dos regimesmilitares e das elites escravocratas, fiéis se-guidores da cartilha e da impostura positi-vista, exigiram que as transformações soci-ais, institucionais e políticas, deveriam seguirum ritmo “lento”, “gradual” e “consensual”.

A realidade do sujeito autônomo e histó-rico, estampada no Iluminismo, na Refor-ma Protestante e nos tratados de direitoshumanos da história Ocidental, esvaziou-se na medida em que a ordem econômica ejurídica se sobrepôs e ocupou o lugar dacentralidade existencial e histórica da hu-manidade.

O sujeito autônomo, perfilado pela mol-dura iluminista e pelos ideais do liberalis-mo, foi deslocado da condição de centrali-dade do paradigma moderno, sendo subs-tituído pela supremacia da ordem econômi-ca e jurídica positivista. Preterido deste eixocivilizacional, passou a incorporar na suapsiquê e existencialidade, o novo modo de pro-dução econômica, tido como valor de referên-cia na estruturação e eticidade humana.

Recorrendo à historicidade da tradiçãomoderna, deve ser lembrada a importânciada Revolução Francesa e da RevoluçãoIndustrial, que marcaram e determinaramos séculos XVIII e XIX, no plano político-ideológico e econômico.

Enquanto a Revolução Francesa signifi-cou uma transformação e reelaboração da

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ontologia humana dentro da sociedade e dosistema estatal, a Revolução Industrial sig-nificou um conjunto de transformações naforça produtiva e econômica, abrindo-se oterreno para a afirmação e consolidação docapitalismo, como modo de produção do-minante, tendo a burguesia e o proletariadocomo novos atores sociais desta nova dinâ-mica de exploração.

Vale mencionar que a partir da Revolu-ção Industrial consagra-se, na modernida-de, o fenômeno da divisão social do traba-lho. Saí da modernidade humanista, da cen-tralidade humana para a modernidade mer-cadológica marcada pelo fetiche dos objetos.

Do ponto de vista da nova ordem econô-mica, a burguesia vai impondo ao Estado ea sociedade, o princípio do laissez-faire, se-gundo o qual, a economia deve se desenvol-ver de acordo com leis naturais, sem inter-venção do Estado.

No entanto, o processo de consolidaçãoda economia capitalista é acompanhado dedesorganização e enfraquecimento do pró-prio trabalhador e do Estado moderno.Claus Offe afirma:

Uma das características da or-ganização do trabalho capitalista ésubmeter a força de trabalho, tantoquanto possível, a uma orientaçãoexterna e a um controle externo in-tegral.19

Pode ser afirmado, que o controle exter-no das atividades laborais e da vida priva-da na sociedade de classes ou hierárquica,tem sua vitalidade e vitaliciedade garanti-dos, graças à concepção liberal do Estadomoderno, conformado com precisão concei-tual e epistemológica por Claus Offe, que odenomina Estado de direito parlamentar-democrático. O sistema político institucio-nal da sociedade e do Estado capitalistacaracteriza-se pela consagração do sistemaeconômico como independente do Estado, epelo monopólio da classe economicamentedominante, sobre o sistema político conva-lidado pelo ordenamento jurídico.

Neste sentido, a tentativa de buscar con-

figurar o que é o Estado, e seu conteúdo den-tro do pensamento moderno, é uma tarefacontínua de desconstrução dos conceitostradicionais.

O próprio Max Weber ao definir o Esta-do como detentor do “monopólio da violên-cia”, nada revela sobre a reflexão a respeitode quem a exerce e contra quem está dirigi-da. O conceito weberiano omite a questãodas classes. O Estado weberiano é um Esta-do funcionalista com os traços e adornos daburguesia emergente.

Deste modo, ultrapassando a falácia doordenamento biológico e ideológico da teo-ria liberal do Estado, e a mera abstração con-ceitual e epistêmica, finalmente, Karl Marxvai desmascarar o mito da neutralidadepolítica, ao confronta-lo, dizendo que o Es-tado é uma expressão da vontade humana edas classes dominantes e que a sua açãologra eficácia graças ao discurso do deter-minismo econômico e jurídico.

A confiabilidade e a legitimidade de umaconfiguração consensual da teoria do Esta-do moderno esbarram na dualidade insti-tucional e nos desafios de compatibilizar acomplexidade social e a sua condição de re-presentativo e formalístico. Fernando Pauloda Silva comprova esta contradição, argu-mentando que:

Toda esta extraordinária heteroge-neidade civilizatória vem a ser reuni-da, controlada e dominada por umaparelho noológico (a religião de Es-tado). Este Estado centralizador, cons-trutor e repressor, constitui um novomodo de organização da complexida-de a partir de um aparelho central, oqual vem a desenvolver-se segundo osprincípios da hierarquia (a qual vema ser imposta como um princípio ge-ral de organização, o que ainda vemaumentar mais o aparelho coercitivoe repressivo do Estado) e a especiali-zação do trabalho, contribuindo paraa diferenciação da sociedade em clas-ses, ao mesmo tempo que se molda nahierarquia diferenciadora.20

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4. Análise crítica do processo deconstitucionalização do Estado

Democrático

Ferdinand Lassalle em sua prédica e tesesobre o poder constitucional, apresentadana Associação Liberal-Progressista de Ber-lim, em 1862, afirmou que questões consti-tucionais não são questões jurídicas, mono-pólio segmentado, mas sim, questões políti-cas.

A Constituição, portanto, é uma expres-são da disputa pelo poder entre os atoressociais. Segundo Konrad Hesse, os atoressociais são:

O poder militar, representado pe-las Forças Armadas, o poder social,representado pelos latifundiários, opoder econômico, representado pelagrande indústria e pelo grande capi-tal, e finalmente, ainda que não se equi-pare ao significado dos demais, o po-der intelectual, representado pelaconsciência e pela cultura em geral.As relações fáticas resultantes da con-jugação desses fatores constituem aforça ativa determinante das leis e dasinstituições da sociedade, fazendo comque estas expressem, tão-somente, acorrelação de forças que resulta dos fa-tores reais de poder; fatores esses queformam a Constituição real do país.Esse documento chamado Constitui-ção – a Constituição jurídica – nãopassa, nas palavras de Lassalle, de umpedaço de papel.21

Dessa maneira, a configuração e a sus-tentabilidade da normatividade constitucio-nal, para além do fundamentalismo exegé-tico, caracteriza-se por seu estrito vínculocontextual com o espírito cientificista, como discurso liberal-individualista e com acultura normativista e tecno-industrial.

A dogmática jurídica positivista22, coma pretensão falaciosa da univocidade e uni-versalismo dos seus códigos, sofre o proces-so de crise de legitimidade e esgotamento,em razão de sua persistência na defesa do

formalismo dicotômico entre Estado e Soci-edade, isto porque o senso comum jurídicoe os discípulos da ciência normativa e dog-mática jurídico-positivista, têm uma histó-ria de íntima ligação com o status quo.

Karl Marx afirmou que a ordem jurídicaé uma configuração determinante dos inte-resses da burguesia, preconcebidos a ela, ouseja, à propriedade concretamente existentee à necessidade de manter a dominação ob-jetiva e racional.

O ideário de neutralidade científica ehumana, como critério de aplicabilidade dalei, serve muito mais para a acomodação dasrelações macro e microfísicas do poder. LuizAlberto Warat, numa releitura de Foucaulte sua obra “Vontade de Saber”, toma-o comosuporte da crítica ao saber e ao poder jurídi-co neutro:

Coloque-se a bio-política comoquinta razão da desumanização dohomem moderno, isto é, desumaniza-do desde que a vida natural começoua ser incluída nos mecanismos e noscálculos do poder estatal e no desen-volvimento triunfante do capitalismo,que precisa de corpos dóceis para ob-ter esse triunfo genocida com que hojese apresenta. Parece-me que não sepode perder de vista, também no ter-reno do direito, o valor da bio-políticacomo acontecimento fundacional. To-das as categorias com as quais atual-mente se intenta pensar o Direito, eque foram fundadas na política jurí-dica moderna, são vinculadas ao ho-rizonte bio-político.23

Canotilho contradizendo ao conceitua-lismo cartesiano, afirma que o princípio desteEstado constitucional estreita-se muito coma teoria da supremacia do Direito, uma vezque na era Moderna, a base teórica do Esta-do e da ação de seus governantes é a sujei-ção ao império das leis, ao lado da preser-vação da vida e da propriedade privada.

A era Moderna impõe-se politicamenteatravés do princípio da inter-regulação en-tre os Três Poderes, sempre observando aten-

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tamente as contradições da ação estatal e asintenções do príncipe, governante ou sobe-rano.

Deve-se reconhecer o mérito de que, con-tra a possibilidade da tirania e o despotis-mo, fez necessário estabelecer um novo con-trato social, levando em conta a supremaciada lógica individualista e do dogma positi-vista-constitucional.

A elaboração do “Contrato Social”, ins-pirado e idealizado por Locke, Rousseau,Montesquieu, Kant e outros importantes li-berais do século XIX, objetivou definir o Es-tado como guardião dos direitos e princípiosfundamentais, direitos estes, da tradição li-beral, da liberdade individual, da livre ex-pressão política e da livre iniciativa econô-mica. Consagrando assim, o processo deestatização da sociedade através da consti-tucionalização do Estado.

O mundo das representações, de inspi-ração burguesa liberal, corresponde a umdeterminado estágio do desenvolvimentosocial, oriundo da progressiva emergênciae afirmação triunfante do capitalismo indus-trial moderno e ocidental, conjunto de fenô-menos variados que teorizou a organizaçãosocial a partir da afirmação de concepçõesradicadas na defesa do individualismo con-tratualista iluminista e que por interaçãocom o pensamento desse tempo, o cientifi-cismo, o legalismo e o formalismo, veio aproduzir o positivismo jurídico.

Dessa forma, o Estado constitucionalfunde-se com o próprio significado da teo-ria do Estado contemporâneo, que se estru-tura sob o império do liberalismo e do sensocomum jurídico positivista. Os direitos fun-damentais, do status quo, são a garantia dasociedade burguesa, protegendo-a de qual-quer ação autoritária do Estado e do dés-pota.

Entretanto, a eficácia deste novo Estadoconstitucional não estará restrita si mesma.Trata-se de impor uma nova moldura neste“ente” moderno. O Estado necessitará des-vencilhar-se da vontade do soberano e datrans-racionalidade popular, o que o torna

utópico e irrealizável. A idealização daConstituição como princípio basilar da for-mação do Estado moderno, será um impe-rativo para o novo ordenamento antropoló-gico e jurídico.

A Constituição será o instrumento ideo-lógico, simbólico e material de equilíbrio, decorrelação e de tentativa de controle do tri-pé liberal: indivíduo-governante-Estado.Pode afirmar que a modernidade promove-rá o processo de constitucionalização doEstado e da esfera pública.

A Constituição torna-se a configuraçãopolítico-ideológica de uma sociedade orga-nizada. O Estado constitucionalista, por-tanto, consiste na divisão do poder, de modoque se impeça todo arbítrio do tirano.

Ressalta-se que o princípio constitucio-nal do Estado moderno, é o da pluralidadenas decisões e nos poderes soberanos, inde-pendentes e harmônicos, que se caracteri-zam na forma de governo. Porém, no enten-dimento dos defensores da teoria do tripar-tite, o equilíbrio constitucional não pode sermantido, sem a primazia da Constituiçãocomo princípio da correlação entre os trêspoderes.

Contrapondo a este espírito conceitualpositivista, o Estado constitucional, confor-me definido por Canotilho, deveria ser umente apriorístico que antecede ao letramen-to da Constituição, uma vez que é da cultu-ra particular que extrai prática permanentede ação constitucional entre povos.

Canotilho, na sua refutação à falaciosaargumentação da defesa do princípio dog-mático e fundamentalista de que o Estadoconstitucional é uma realidade empírica emsi, afirma que não passa de um mito de ide-alidade, sem qualquer sustentação lógica ecientífica.

O Estado, como formação histórica deorganização social, ética e jurídica, assumedefinitivamente, a partir do liberalismo mo-derno, a estrutura formalística e constitucio-nal. Um Estado que definitivamente se or-dena conforme ao poder jurídico, do impe-rativo categórico do dever ser e das leis.

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No entanto, Canotilho rompe com a con-cepção tradicional e formalística dos libe-rais acerca do Estado constitucional, pro-pondo condicionar a legitimidade deste Es-tado à radicalidade do espírito da democra-cia. Esta proposta impedirá quaisquer mei-os de manipulação e autoritarismo das eli-tes, no modo de governar.

Qualquer tentativa de cristalização ematerialização do Estado constitucional dedireito obrigará a sociedade a considerar opluralismo cultural. O Estado constitucio-nal de direito deve levar em conta a diversi-dade, as circunstâncias históricas e deveráextrapolar a visão etnocêntrica Ocidental.

Canotilho ao desconstruir a tradicionaldefinição de Estado constitucional, tentaampliar o leque de sua existência, rompen-do com a abstração conceitual dos liberais.Propõe ir além do formalismo moderno, ouseja, o Estado constitucional não deve serapenas um Estado de direito formal. Ao con-trário, deve ser modelado pela contínua açãohumana e pela dinâmica social, devendosua articulação existencial organizar-se eexercer-se em termos democráticos.

Neste sentido, Canotilho nos traz umaenorme contribuição ao afunilar a máximaconceitual de Estado constituicional,adicionando-lhe o elemento democracia,como forma de travar os excessos e a tenta-ção autoritária do poder instituído. De for-ma didática e imperativa, Canotilho enfati-za o risco da dogmatização do Estado cons-titucional:

Se quisermos um Estado constitu-cional assente em fundamentos nãometafísicos, temos de distinguir cla-ramente duas coisas. Uma delas é alegitimidade do direito, dos direitosfundamentais e do processo de legis-lação no sistema jurídico; a outra é alegitimidade de uma ordem de domí-nio e de legitimação do exercício dopoder político. O Estado impolítico doEstado de direito não dá resposta aeste último problema: de onde vem opoder? Só o princípio da soberania

popular, segundo o qual, todo o po-der vem do povo, assegura e garante odireito à igual participação na formademocrática da vontade popular. As-sim, o princípio da soberania popu-lar concretizado segundo procedi-mentos juridicamente regulados, ser-ve de ‘charneira’ entre o ‘Estado dedireito’ e o ‘Estado democrático’, pos-sibilitando a compreensão da moder-na fórmula: ‘Estado de direito demo-crático.24

5. Reflexão sobre o processo dejudicialização do Estado democrático: a

República tomada pelo Direito Positivista

A judicialização do Estado democrático-liberal representativo implica na sua apro-priação pelo poder jurídico. O direito esta-tal vai assumindo proporções dantescas decontrole absoluto de todo o aparato institu-cional.

O Estado moderno passa a ter o controlesocial e disciplinar pela normatividade dopoder jurídico. O poder jurídico, na socie-dade socialmente disciplinada e hieraqui-zada pela divisão do trabalho, vai desven-cilhando-se de qualquer possibilidade decontrole social.

O próprio funcionamento do Estado seconfunde com o funcionamento do Direito.O professor Ronald Ayres Lacerda em seuartigo sobre “A crise do conhecimento jurí-dico na modernidade”, escudado na cita-ção de Wolkmer, reafirma ao seu leitor que“a história do direito é a história de sua iden-tificação com o poder do Estado, que visaregulamentação e a manutenção da força deuma formação social determinada, legiti-mando a ordem capitalista.”25

O poder jurídico moderno transformou-se num certificado de legitimação da aspi-ração do Estado moderno burguês, semqualquer temor de sanção coletiva. O sujei-to burocrático desta complexa feição jurídi-ca encontra-se frontalmente para além docontrole externo, salvo o controle interpo-

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deres, que pouco resulta em eficácia institu-cional e ética.

O processo de judicialização significaráa privatização do Estado democrático. Oideal de democracia representativa encon-tra-se ameaçado na medida em que o poderjurídico toma o lugar das iniciativas dosmovimentos sociais.

A burocratização e a estatização da esfe-ra pública foi um dos grandes equívocos doagir intencional dos ideólogos liberais pelamodernidade. O processo de limitação dacoisa pública à esfera estatal produziu umgrande fosso e distanciamento entre a soci-edade e o Estado.

Não resta dúvida de que a libertação dopoder político e do poder econômico quecaracterizou a ruptura com o feudalismo,apontava para a divisão entre as esferaspública e privada. Num processo de deslo-camento da coexistência entre sociedade eEstado que favoreceria a emancipação dopoder judiciário.

Considerando que o desenvolvimento ea consolidação da sociedade moderna este-ja marcado pela separação entre Estado esociedade, Nuria Cunill vai dizer que estaseparação não é definitiva, uma vez que éno âmbito privado-mercantil que a coisapública encontra a originalidade da suaexpressão.

A modernidade vive o momento da crisede seus próprios paradigmas. A propaladacrise do valor jurídico é reflexo da crise dosparadigmas científicos e histórico-sociais,já que a teoria pura do direito kelseniano,determinante no âmbito jurídico, fundou-seno princípio da objetividade e do cartesia-nismo, impulsionado pelo capitalismo avan-çado, tecnológico e informacional.

Para entender a pretensa imunidade dopoder jurídico como guardião do Estadodemocrático, é de fundamental importânciacompreender um dos grandes ideólogos daprodução do direito moderno: Hans Kelsen.

Em seu tratado sobre a “Teoria Pura doDireito”, Hans Kelsen afirma que a pressu-posta “ciência jurídica” deve manter-se eqüi-

distante da sociologia jurídica, uma vez quenesta esfera de análise, o objeto não é o pró-prio Direito, mas os fenômenos ou aconteci-mentos circundantes ao Direito.

Hans Kelsen tenta isolar o Direito dequalquer influência dos pressupostos filo-sóficos ou sanções ético-morais. A autono-mia do direito teve como objetivo, dar sus-tentação orgânica e burocrática a uma soci-edade que trilhava para a racionalidade e oempirismo dogmático.

O pressuposto básico de Kelsen se as-senta na idéia de norma por excelência, va-lorizando apenas a ordem jurídica auto-aplicante, numa clara feição fundamenta-lista onde o texto é condutor da própria rea-lidade, acomodando a sociedade na pers-pectiva da ordem textual-jurídica.

A dogmática jurídica de Kelsen se mani-festa na medida em que os seus pressupos-tos teóricos fundamentaram-se no conheci-mento científico, especialmente, no postu-lado de que é possível fazer separação radi-cal entre sujeito cognoscente e objeto cog-noscível.

Kelsen defende que a ciência jurídicadeve fornecer esquemas de interpretaçãoespecificamente jurídicos dos fatos, e restrin-gir-se a um juízo de valor objetivo desses fa-tos. O Direito buscando consolidar-se na es-trutura estatal como feixe do universo lin-güístico e burocrático, hermético e fechado.

No entanto, Luiz Alberto Warat adverteque na “Teoria Pura”:

Não se encontra devidamente es-clarecido o duplo papel significativoque Kelsen atribui às normas jurídi-cas. Por um lado, elas são o sentidodos atos de vontade e, por outro, oobjeto da ciência jurídica, que outor-ga sentido objetivo às normas, vistascomo fatos empíricos do mundo doser. Essa duplicidade significativapoderia ser esclarecida no momentoem que aceitemos, em Kelsen, a dupladimensionalidade da noção de lín-gua. As normas, como expressões dosórgãos de autoridade, seriam um có-

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digo que operaria como condição desentido do ato.26

O processo de judicialização do Estadose sucede na medida em que o Estado, aoser considerado a única fonte de poder legí-timo, recorre exclusivamente à ordem jurí-dica para a garantia de sua estrutura buro-crática e institucional. A segurança do Es-tado democrático não repousa mais na dia-lógica: Estado e sociedade, mas no ordena-mento jurídico, como nova fonte de sua con-servação.

O direito que se configura ao longo doprocesso civilizatório Ocidental é o direitoda defesa do Estado enquanto instituiçãopretensamente autônoma e imune. Não maisum Estado configurado no ideal democráti-co, mas “juridisciocrático.”27

Por um lado, deve-se reconhecer que esteprocesso de judicialização do Estado ocor-re em razão do esvaziamento da participa-ção social na esfera pública, do declínio dohomem político e do desencantamento coma política partidária e institucional. A de-manda da supremacia da justiça na aspira-ção societária vem do desamparo político eda indiferença burocrática. O direito passaa tornar-se a última reserva moral comumem uma sociedade que não mais a possui.

O enfraquecimento do Estado diante dasupremacia desproporcional da economiainternacional e do espírito globalitário, cir-cunda o planeta. Num flagrante desprezoao poder tutelar do Estado, multiplica-se arecorrência jurídica.

O crescente processo de aceleração daexpansão jurídica não é conjuntural, masassociado à própria dinâmica e dilemas dassociedades democráticas e à descrença nospoderes do Executivo e do Legislativo, porsua incapacidade de operar e atender asdemandas sociais voltadas para a cidada-nia.

Também vale alertar que a opção da so-ciedade pela mediação do poder midiáticoe econômico na condução da esfera público-estatal, deixa em segundo plano o papel tra-dicional do poder político formal, num

raro precedente ameaçador ao equilíbrio dasatribuições dos Três Poderes.

A superposição do poder Judiciário nocontrole do processo legislativo e constitu-cional, significa restringir a capacidade deatuação dos atores sociais no processo departicipação do ideário de Estado democrá-tico. A ascensão da Justiça está diretamenteligada ao fim da Guerra Fria e à internacio-nalização da economia de mercado.

Para empreender-se a devida compreen-são sobre a ascensão da Justiça como novacentralidade do poder estatal, é impres-cindível a recorrência às análises dePachukants sobre a relação simétrica entreo discurso da circulação das mercadorias ea forma jurídica.

Pachukants, na elaboração teórica, bus-ca desvendar a relação de determinadas for-mas do Direito com as formas da economiamercantil. Discorre sobre a relação entreDireito e capitalismo, que imediatamentepode ser desdobrada para a relação entre asinstituições e o capital, e também entre oEstado e a democracia.

Ao estudar a relação lingüística entre oDireito e o capitalismo, Pachukants concluique a forma jurídica é uma produção econô-mica e social resultante do princípio da di-visão do trabalho. Marcio Bilharinho Neves,por sua vez, destaca:

Em tal sociedade mercantil, o cir-cuito das trocas exige a mediação ju-rídica, pois o valor de troca das mer-cadorias só se realiza se uma opera-ção jurídica – o acordo de vontadesequivalentes – for introduzida, esta-belecendo uma forma que reproduz aequivalência, essa ‘primeira idéia pu-ramente jurídica’ a que ele se refere.28

Assim, a hipótese da consolidação de umEstado moderno caricaturado pela ciênciajurídica deve ser repelida, quando se sabeque Michel Foucault em seu livro “Vigiar ePunir”, nos mostra a estreita relação entrejustiça e punição, num autêntico processode mera manutenção do poder e do isola-mento social. Quanto mais o Estado venha

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a apoiar-se na formalidade cartesiana e ju-rídica positivista, mais se burocratizará edistanciará das aspirações do conjunto dasociedade.

Além desta advertência foucaultiana,deve ser relevado que a atual configuraçãodo Estado democrático de direito e o Estadototalitário podem ser considerados idênti-cos, na proporção em que crêem numa açãolinear e unilateral de puro dogmatismo, re-sistindo a qualquer outra possibilidade,além da validade da verdade particular docientificismo vulgar e superado.

6. Conclusão

Ao propor o desenvolvimento analíticoe crítico de um tema extremamente comple-xo e polissêmico na sua concepção e inter-pretação, fiz convictos de sua incompletu-de e da limitação de se formular um tratadoenciclópedico consensual.

A crise dos paradigmas científicos dasutopias messiânicas, a socialista e a liberal;o desencantamento com o modelo represen-tativo da política tradicional e o fim da Guer-ra Fria; culminando com a hegemonia daeconomia de mercado, provocaram o fenô-meno da ascensão e supremacia do poderjurídico, como principal peça ontológica delegitimação da nova ordem econômica glo-balitária.

Este fenômeno é resultante da derroca-da dos diversos modelos de Estado totalitá-rio durante e após as Grandes Guerras Tan-to no Leste-Europeu quanto nas democraci-as européias, o mundo ficou horrorizadocom a tirania de seus governantes.

Da Alemanha de Hitler à América Lati-na dos generais, passando pelo comunis-mo estatal soviético, a sociedade modernavivenciou as contradições destes Estadosrepresentativos, decantados nos ideais damodernidade.

A tirania dos generais latinoamericanos,os déspotas do comunismo estatal e os agen-tes operadores da democracia liberal, reve-lam um profundo comportamento simétri-

co. As diferenças foram apenas de ordemvalorativa. A essência é a mesma, agiramem nome do povo (demós).

Observa que as ações destes atores, dife-renciaram-se apenas em adereços e estratégi-cas políticas. O pano de fundo seguiu o mes-mo roteiro da teoria do Estado representati-vo. Todos seguiam a cartilha de Montesquieu.Havia o tirano, o Parlamento e o Judiciário,e como sempre, a submissão ao Executivo,num autêntico jogo de simulação e simbo-lismo constitucional.

Todos falavam em nome da população,mas excluindo-a das opiniões e decisõesgovernamentais. No sistema de Estado re-presentativo, a população transformou-seem mera marionete dos atos dos governantes.

Percebemos no transcurso deste traba-lho que a teoria do Estado representativoencontra-se em questionamento nos deba-tes acadêmicos e políticos, sobre como o seuproceder frente à hegemonia do mercado e àcrescente onda de exclusão social que, noentendimento do senso crítico, não podecontinuar, sob pena de situar o Estado nacondição de impotente e omisso, diante datirania da economia de mercado e do mono-pólio jurídico.

Foi de suma importância recuperar ana-liticamente a dimensão ética e política dopapel da democracia liberal que no passa-do, deixou o legado da inserção do ser hu-mano na centralidade da existência e doscondicionamentos históricos, e que hoje sesente ameaçado pelo livre trânsito das mer-cadorias.

Foi importante entender que a decadên-cia da democracia representativa, advindada ilusão do exercício do poder e do contro-le social através do burocratismo estamen-tal, não pode servir de pretexto à aceitaçãodo fim da história ou do fim das ideologias,como se fossem ícones do fatalismo e dodeterminismo existencial.

É através da reflexão e da ação político-coletivista sobre a dimensão econômico-jurídico-social do modelo atual do Estadoconstitucional burguês, que vamos detectar

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a viabilidade de rever os postulados dos te-óricos tradicionais que mantém a ordem vi-gente, e abrir a possibilidade da construçãode novos paradigmas de modelo, na pers-pectiva de superação da cultura da indife-rença civilizatória que permeia o imaginá-rio social pós-moderno.

Reconhecemos que o Direito e a Econo-mia transformaram o Estado em atividademinimalista, e que a sociedade encontra-sesocial e corporalmente refém do estrutura-lismo econômico e judiciário.

No entanto, toda a descrição analíticaneste trabalho reafirma nossa convicção deque a doutrina jurídica positivista e o orde-namento econômico do mercado são íconesconstruídos e determinados pelo modo deprodução de uma epocalidade.

Não se pode perpetuá-los como se fos-sem realidade irremediável e retilínea. Estánas mãos da humanidade, com sua infinitacapacidade de criar e inventar, produzir umnovo modelo de Estado capaz de absorver adinâmica existencial impulsionada atual-mente pelos movimentos sociais e organi-zações não-governamentais: o Terceiro Setor.

7. Notas1 Berger, Peter e Luckmann, Thomas. A cons-

trução social da realidade, 12a edição. Rio de Janei-ro, Petrópolis. Editora Vozes, 1973, p. 12.

2 Gilbert Durand afirma, no seu livro “A imagi-nação simbólica”, que “o símbolo é uma represen-tação que faz aparecer um sentido secreto, sendo aepifania de um mistério. A metade visível do sím-bolo, o significante, estará sempre carregada domáximo de concretude e, como diz muito bem PaulRicoeur, todo símbolo autêntico possui três dimen-sões concretas: ele é ao mesmo tempo, cósmico (ouseja, retira toda a sua figuração do mundo visívelque nos rodeia), onírico (enraíza-se nas lembran-ças, nos gestos que emergem em nossos sonhos econstituem, como bem mostrou Freud, a massaconcreta de nossa biografia mais íntima), e final-mente, poético, ou seja, o símbolo também apelapara a linguagem, e à linguagem mais impetuosa,portanto, a mais concreta.” (p.16).

3 Carl Gustav Jung define: “arquétipo é umaespécie de aptidão para reproduzir constantemen-te as mesmas idéias míticas, senão as mesmas, pelo

menos parecidas. Parece, portanto, que aquilo quese impregna no inconsciente é exclusivamente a idéiade fantasias subjetivas provocadas pelo processofísico. Logo, é possível supor que os arquétipossejam as impressões gravadas pela repetição dereações subjetivas” (p. 61). Define também que “oinconsciente coletivo é uma figuração do mundo,representando a um só tempo a sedimentação mul-timilenar da experiência. Com o correr do tempo,foram definindo-se certos traços nessa figuração,que são denominados arquétipos ou dominantes –os dominadores sendo os deuses -, isto é, configu-rações das leis dominantes e dos princípios que serepetem com regularidade à medida que se suce-dem figurações, as quais são continuamente revivi-das pela alma. Na medida em que essas figuraçõessão retratos relativamente fiéis dos acontecimentospsíquicos, os seus arquétipos, ou melhor, as carac-terísticas gerais que se destacam no conjunto dasrepetições de experiências semelhantes, também cor-respondem a certas características gerais de ordemfísica.”(pp.86).

4 Durand, Gilbert. A imaginação simbólica. SãoPaulo, Editora Cultrix, 1995 p.11.

5 Moraes, Denis, 2004. Citação de referências edocumentos eletrônicos. Disponível em: http://www.bpg.ufpr.br/normas1.html. Acessado em13.03.2004.

6 Baczko apud Moraes (2003).7 No seu texto, o professor Ronald menciona no

rodapé que Michel Löwy apresenta uma boa análi-se crítica do pensamento comteano. Para ele, “apressuposição fundamental do positivismo deAugusto Comte é de que as leis naturais regulam ofuncionamento da vida social, econômica e políti-ca, sendo do mesmo tipo que as leis naturais, por-tanto, o que reina na sociedade é uma harmoniasemelhante à da natureza, uma espécie de harmo-nia natural. Disso decorrem as seguintes afirma-ções epistemológicas: 1) os métodos e procedimen-tos para conhecer a sociedade são exatamente osmesmos que são utilizados para conhecer a nature-za; 2) se a sociedade é regida por leis de tipo natu-ral, a ciência que estuda essas leis naturais da soci-edade é do mesmo tipo que a ciência que estuda asleis da astronomia, da biologia, etc; 3) da mesmamaneira que as ciências da natureza são ciênciasobjetivas, neutras, livres de juízos de valor, de ide-ologias políticas, sociais ou outras, as ciências soci-ais devem funcionar exatamente segundo esse mo-delo de objetividade científica. A concepção positi-vista, portanto, afirma a necessidade e a possibili-dade de uma ciência social completamente desli-gada de qualquer vínculo com as classes sociais,com as posições políticas, os valores morais, asideologias, as utopias e as visões de mundo. Todoesse conjunto ideológico, em seu sentido amplo,deve ser eliminado da ciência social. São prejudici-

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ais, posto que são preconceitos; 4) Como não háliberdade de consciência nem subjetividade na ma-temática ou na astronomia, não pode haver tam-bém em matéria de sociologia. Como os cientistasimpõem seu veredito aos ignorantes e aos amado-res em matemática e astronomia, devem logica-mente fazer o mesmo em sociologia e política. Oque pressupõe que a sociologia possa determinar oque é, o que será e o que deve ser. Há um determi-nismo social equivalente ao determinismo natural.Portanto, Comte quer, como Bacon no século XVII,ao assentar um sistema de idéias fundamentais daevolução humana, descobrir um determinismo glo-bal que os homens pudessem, de certo modo, utili-zar para construir a ordem e o progresso. O queComte faz na verdade é legitimar uma hierarquia euma elite, a própria exploração. Ele quer explicar aorganização dessa hierarquia temporal, a posiçãoexata dos chefes, industriais e banqueiros.” (Ideo-logia e ciência social: elementos para uma análisemarxista. 12a ed., São Paulo, Cortez Editora, 1985,pp. 35-40).

8 Influenciado pela euforia capitalista que to-mava conta do mundo após a derrocada dos regi-mes estabelecidos nos países do Leste Europeu ena extinta URSS, e pelo ufanismo da proposta doConsenso de Washington no campo econômico epolítico, o nipo-americano Francis Fukuyama, em1992, em seu livro “O fim da história”, tentou elabo-rar uma linha de abordagem histórica, indo de Pla-tão a Nietzche, passando por Kant e Hegel, objeti-vando legitimar a tese de que o capitalismo e ademocracia burguesa constituem-se na consagra-ção da história da humanidade, ou seja, de que ahumanidade teria atingido, no final do século XX, oponto culminante de sua evolução com o triunfoda democracia liberal Ocidental, sob todos os de-mais sistemas e ideologias concorrentes.

9 Eagleton, Terry. Ideologia. São Paulo, Bomtem-po Editorial, 1991, p. 172.

10 Cassirer, Ernest. Linguagem e mito. São Pau-lo, Editora Perspectiva, 1992, p. 18.

11 Siqueira, Ruy. Revista Ethos. Da Ritualizaçãoda Modernidade ao Fetiche Consumogônico, Ano 1no 1 – jan/jun/2000, p. 148.

12 Weber, Max. Economia e sociedade, vol 2, Bra-sília, Editora UNB, 1999, p. 191.

13 Offe, Claus. Problemas estruturais do estadocapitalista. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasilei-ro, 1984, p.10.

14 Koselleck, Reinhardt. Crítica e crise. Rio deJaneiro, Editora UERJ/Contraponto, 1999, p. 32.

15 Marx em sua obra a Questão Judaica se in-surge contra o paradoxo do Estado moderno ger-mano que se insere no ambiente da modernidade,mas mantendo-se debaixo da moralidade cristã.Para Marx o Estado tinha que ser eminentemente

laico e secular. A religião reduziria apenas ao es-paço da vida privada.

16 Koselleck, Reinhardt. Op. Cit, p. 49.17 Offe, Claus. Problemas Estruturais do Esta-

do Capitalista. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,19884, p. 10.

18 0 jurista francês Jean Bodin (1530-1596) pu-blicou em 1576, o livro “De la Republique”, vastaobra de teoria política, que se destacou pelos con-ceitos emitidos sobre a soberania e o direito divinodos reis. A soberania foi definida como o poderabsoluto que o chefe de Estado tem de fazer leispara todo o país, sem estar, entretanto, sujeito aelas nem às de seus predecessores, porque “nãopode dar ordens a si mesmo.” A República (sinôni-mo de Estado ou de comunidade política), sem opoder soberano não é mais República. Além de ab-soluta, a soberania é também perpétua e indivisí-vel. Bodin afirmou que a soberania deve ser exerci-da por um príncipe (caracterizando uma monar-quia), por uma classe dominante (caracterizandouma aristocracia) ou pelo povo inteiro (seria umademocracia). Ao exercer a soberania, o governantedeve criar órgãos, associações ou conselhos (comoos “Estados Gerais”, na França) que facilitem aadministração. Porém o poder de decisão em últi-ma instância é sempre do príncipe, sob pena dedesmoronamento da soberania, que é tão alta e tãosagrada. As noções de soberania de Bodin consti-tuíram as bases da ciência política e do direito pú-blico durante o Antigo Regime e sua influência ul-trapassou as fronteiras da França.

19 Offe, Claus. Op. Cit, p. 19.20 Suordem, Fernando Paulo da Silva. O princí-

pio da separação de poderes e os novos movimen-tos sociais. Portugal. Editora Almedina, 1995, p.27 e 28.

21 Hesse, Konrad. A força normativa da Consti-tuição. Porto Alegre. Sérgio Antonio Fabris Editor,1991, p. 9.

22 Termo usado pelo professor Luiz AlbertoWarat que define “a dogmática como atividadeque não só acredita produzir um conhecimentoneutralizado ideologicamente, mas também des-vinculado de toda preocupação, seja de ordem so-ciológica, antropológica, econômica ou política.”,p. 41.

23 Warat, Luiz Alberto. Educação, direitos hu-manos, cidadania e exclusão social: Fundamentospreliminares para uma tentativa de refundação.Texto apresentado no Seminário Internacional “Edu-cação e diversidade”, em Brasília – promovido peloMinistério da Educação e Cultura, 2003, p. 22.

24 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. DireitoConstitucional 4a ed., Coimbra, Livraria Almeida,1989.

25 Lacerda, Ronald Ayres. Op. Cit., p. 57.

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26 Warat, Luiz Alberto. O direito e a sua lingua-gem 2a ed. Aumentada, Porto Alegre, Sérgio Anto-nio Fabris Editor,1995, p. 23.

27 Buscamos usar o neologismo: “juridisciocrá-tico”, para tentar explicar a precisão da atual con-figuração do Estado moderno que não se traduzmais na idéia clássica de democracia (poder dopovo), mas na do exercício do poder e da conserva-ção estatal através do burocratismo jurídico. Fala-se com bastante intensidade que a democracia e arepública foram privatizadas pela ordem jurídica.O controle judiciário sobre a vida coletiva é um dosmaiores fenômenos do processo civilizatório con-temporâneo. Enquanto os poderes Executivo e Le-gislativo submetem-se a referendo popular atravésdo voto, o Judiciário caminha para a autonomiza-ção absoluta dos seus atos e decisões corporativas.

28 Naves, Márcio Bilharinho. Marxismo e direi-to. Um estudo sobre Pachukants, São Paulo, 1999,p. 57.

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1 - IntroduçãoAs comissões parlamentares de inquéri-

to, no desempenho de suas funções, buscamreunir informações necessárias à análise do“fato determinado” a que se destinam in-vestigar. Para isso, elas podem, de acordocom o artigo 2o da Lei 1.579, de 1952:

“determinar as diligências que repu-tarem necessárias e requerer a convo-cação de ministros de Estado, tomar odepoimento de quaisquer autoridadesfederais estaduais ou municipais, ou-vir os indiciados, inquirir testemu-nhas sob compromisso, requisitar derepartições públicas e autárquicas in-formações e documentos, e transpor-tar-se aos lugares onde se fizer mistera sua presença”.

Tarciso Aparecido Higino de Carvalho éBacharel em Arquivologia e Mestre em Ciên-cia da Informação, pela Universidade de Brasí-lia; Especialista em Direito Legislativo, pelaUniversidade do Legislativo Brasileiro (UNI-LEGIS) e Universidade Federal do Mato Gros-so do Sul (UFMS); Analista Legislativo e Secre-tário da Comissão Especial de Documentos Si-gilosos da Câmara dos Deputados.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. ALEXANDREPAIVA DAMASCENO.

Tarciso Aparecido Higino de Carvalho

A produção de provas no inquéritoparlamentar na Câmara dos Deputados

1-Introdução; 2-Origem das comissões par-lamentares de inquérito no Brasil; 2.1-Defini-ção de comissão parlamentar de inquérito;2.2-Gênese das comissões parlamentares deinquérito; 2.3-O Poder Legislativo e as comis-sões parlamentares de inquérito no Brasil;3-Produção de provas no inquérito parlamen-tar; 3.1-Aspectos gerais sobre o inquérito par-lamentar; 3.2-O universo da pesquisa; 3.3-Acoleta de dados; 3.3.1-A prova no inquéritoparlamentar; 3.4-Resultados e análise dos da-dos; 3.4.1-As provas produzidas no inquéritoparlamentar na Câmara dos Deputados;3.4.2-Análise geral; 4-Sugestões e recomenda-ções; Referências.

Sumário

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Essas informações que subsidiam os tra-balhos das comissões parlamentares de in-quérito constam de diversas fontes, as quaissão valoradas pelos membros da comissão,a fim de que os parlamentares possam re-quisitá-las e, com base nelas, formarem juí-zo acerca da matéria investigada, podendo,ao final dos trabalhos, sugerir ao MinistérioPúblico o indiciamento dos envolvidos.

Assim, o Ministério Público e os órgãosdo Poder Judiciário poderão utilizar subsi-diariamente essas fontes levantadas pelasCPIs. Para tanto, ao final dos trabalhos, ascomissões parlamentares de inquérito en-caminham, juntamente com o relatório, osdocumentos comprobatórios. Constatou-se,porém, que esses órgãos responsáveis peloindiciamento e julgamento, posteriormenteà remessa daqueles, solicitam, ao Presiden-te da Câmara dos Deputados, documenta-ção complementar. Há, porém, uma decisãoda Comissão de Constituição e Justiça e deRedação à Consulta no 4, de 1995, formula-da pela Comissão Especial de DocumentosSigilosos, estabelecendo que “sendo a Câ-mara dos Deputados depositária de docu-mentos obtidos, no uso de suas atribuições,pela quebra de sigilo bancário e que infor-mam seus estudos ou investigações, não sãodisponíveis para requisições pelo Poder Ju-diciário ou Ministério Público que são titu-lares de vias próprias para obtê-los”.

Diante desse quadro, se constrói umatensão entre dois interesses. De um lado, ointeresse da sociedade que deseja que asinvestigações iniciadas pelas comissõesparlamentares de inquérito cheguem a bomtermo. De outro, o peso de uma decisão téc-nica tomada pela CCJR, comissão que de-tém a competência para decidir sobre os as-pectos constitucional, legal, jurídico e regi-mental. Ressalta-se, ainda, que a decisãoquanto ao envio de documentos aos órgãosdo Poder Judiciário e ao Ministério Público,posteriormente ao encerramento dos traba-lhos das CPIs, é sobre fato pretérito. A Co-missão Especial de Documentos Sigilosos,órgão técnico da Câmara dos Deputados

que decide quanto ao acesso a documentossigilosos, já se declarou, em seus pareceres,incompetente para deliberar sobre quaisdocumentos teriam fundamentado denún-cias formuladas por parlamentares de CPIscujos trabalhos já se encerraram.

Essa situação se revela como um fator dedesarticulação dos desdobramentos previs-tos nos relatórios finais das comissões par-lamentares de inquérito e se apresenta comoa principal justificativa para a realizaçãodessa pesquisa. Em razão disso, o desen-volvimento de estudos no sentido de se iden-tificar as principais tipologias de provasproduzidas no inquérito parlamentar reve-lou-se necessário e urgente. Porém, fez-semister iniciar este estudo apresentando umrelato sobre a origem das comissões parla-mentares de inquérito no Brasil.

2 - Origem das comissõesparlamentares de inquérito no Brasil

Investigar a origem das comissões par-lamentares de inquérito, no Brasil, implica,antes, despender esforços no sentido de de-finir melhor essas comissões, pois, a partirda identificação e da delimitação das prin-cipais características das comissões parla-mentares de inquérito, poder-se-á estrutu-rar uma definição desse instituto e, assim,chegar mais acertadamente à gênese desseórgão colegiado que se constitui no âmbitodo Poder Legislativo. Para tanto, apresentar-se-á, inicialmente, uma definição de comis-sões parlamentares de inquérito e, posterior-mente, uma narração histórica sobre o Legis-lativo e o surgimento das CPIs no Brasil.

2.1 - Definição de comissãoparlamentar de inquérito

Definição, segundo Juan Sager (1993, p.67), é o processo de explicar o significadode símbolos expressos lingüisticamente.Sager (1993, p. 69) salienta que a definição,como produto, é uma descrição lingüísticade um conceito, com base em um determina-do número de características que transmi-

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tem o significado do conceito. Assim, defi-nir comissões parlamentares de inquéritoimplica enumerar todas as suas caracterís-ticas.

O texto constitucional vigente, em seuartigo 58, § 3o, estabeleceu que CPIs são co-missões criadas no âmbito do Poder Legis-lativo e dotadas de poderes de investigaçãopróprios das autoridades judiciais, além deoutros previstos nos regimentos das respec-tivas casas do Congresso, e que se destinamà apuração de fato determinado e por prazocerto. Identificam-se, nessa definição: a na-tureza da atividade desempenhada pelasCPIs, o âmbito de atuação, a extensão de seupoder, o objeto de investigação e o prazo defuncionamento.

A natureza da atividade, qual seja, a in-vestigação, é o principal elemento a orien-tar a pesquisa sobre a gênese das comissõesparlamentares de inquérito.

2.2 - Gênese das comissõesparlamentares de inquérito

Nelson de Souza Sampaio (1964, p.3)ressaltava que a investigação “representaum meio auxiliar para que o parlamentopossa cumprir suas finalidades”. Assimconsiderando, o poder de inquérito é “umaprerrogativa inerente às câmaras legislati-vas, independentemente de consagração emtexto legal”.

O Ministro Paulo Brossard (1996, p.1)salienta que:

“(...) às câmaras legislativas pertencempoderes investigatórios, bem como osmeios instrumentais destinados a tor-ná-los efetivos. Por uma questão defuncionalidade, elas os exercem porintermédio de comissões parlamenta-res de inquérito, que fazem as suasvezes. Mesmo quando as comissõesparlamentares de inquérito não eramsequer mencionadas na Constituição,estavam elas armadas de poderes con-gressuais, porque sempre se entendeuque o poder de investigar era inerenteao poder de legislar e de fiscalizar, e

sem ele o Poder Legislativo estariadefectivo para o exercício de suas atri-buições.”

Nesse mesmo sentido, José Celso de Me-llo Filho (apud Manoel Messias Peixinho eRicardo Guanabara: 2001, p. 32) salienta que“o poder de investigar está diretamente con-dicionado à competência para legislar”.Pontes de Miranda (1936, p. 499) distinguea investigação parlamentar das demais in-vestigações, acrescentando que ela não per-tence ao Direito Penal, processual ou mate-rial, e que suas conclusões se destinam ainformar e a fundamentar as resoluções doPoder Legislativo.

Nota-se, portanto, que a gênese das co-missões parlamentares de inquérito está re-lacionada à do próprio parlamento moder-no. Segundo Aguinaldo Costa Pereira (1948,p. 21), a prática das comissões parlamenta-res de inquérito se origina na Inglaterra.Galloway (apud Aguinaldo Costa Pereira:1948, p. 22) cita, como exemplo, a constitui-ção de comissão legislativa de inquérito pelaCâmara dos Comuns para investigar fatosrelativos a casos eleitorais. O referido autorressalta que, a partir de 1571, o uso das in-vestigações se tornou constante.

2.3 - O Poder Legislativo e as comissõesparlamentares de inquérito no Brasil

A história do Poder Legislativo brasilei-ro começa ainda no Brasil colônia com asCâmaras dos Municípios. A primeira delasfoi constituída no período de Martim Afon-so de Souza, segundo Luiz Navarro de Brit-to (1984, p. 125).

Mais tarde, com a Revolução Liberal por-tuguesa do Porto, vitoriosa em 15 de setem-bro de 1820, os brasileiros liberais deraminício a um movimento que, exercendo pres-são sobre D. João, fez com que este, em feve-reiro de 1821, editasse um decreto convo-cando procuradores das cidades e das vilascom o objetivo de se estabelecer as basesconstitucionais adequadas à situação par-ticular do Brasil. Em 3 de março, um outrodecreto do Imperador determinou que se

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procedessem às eleições para deputadosbrasileiros que teriam assento no ConselhoSoberano em Portugal.

Nesse Conselho ficou evidente a diver-gência entre interesses e objetivos dos cons-tituintes portugueses e dos constituintesbrasileiros, pois, à medida que aqueles ele-vavam a antiga metrópole, subtraíam direi-tos do novo Reino. Cita-se, como exemplo, adeterminação do Conselho para que D. Pe-dro voltasse a Lisboa. D. Pedro, porém, de-clarou que permaneceria no Brasil e convo-cou, em fevereiro de 1822, um Conselho deProcuradores das Províncias. Em junho domesmo ano, o Conselho requereu a convo-cação de uma Assembléia Constituinte. Emsetembro, foi proclamada a independênciado Brasil, e, em maio de 1823, foi instaladaa Assembléia Geral Constituinte e Legisla-tiva do Império do Brasil.

A Assembléia foi dissolvida por D. Pe-dro I, com o uso da força, em 12 de novem-bro de 1823, devido aos conflitos geradosentre ela e o Imperador. Um mês depois dadissolução, foi criada, pelo Imperador, umaComissão destinada a elaborar um projetode Constituição. A citada comissão concluiuos trabalhos em 11 de dezembro, apresen-tando o projeto a D. Pedro I. O Imperador,após realizar modificações, outorgou a pri-meira Constituição do Brasil em 25 de mar-ço de 1824.

Na Constituição de 1824, o Poder Legis-lativo foi delegado à Assembléia Geral, coma sanção do Imperador (art. 13). José Anto-nio Pimenta Bueno (1958, p. 59) classificouas atribuições da Assembléia Geral de acor-do com três modalidades: 1) atribuições con-servadoras da forma de governo e da ordempolítica; 2) atribuições legislativas; 3) atri-buições de inspeção ou de fiscalização cons-titucional.

Acerca da inspeção e da fiscalização,José Antônio Pimenta Bueno (1958, p. 106)ressaltava que poderiam ser exercidas pordiversos meios, a depender das circunstân-cias e das exigências. O autor afirmava queessas atribuições “poderiam ser exercidas

por meio de comissões ou inquéritos quepenetrassem nos detalhes da gestão admi-nistrativa, mormente, quanto à administra-ção financeira”. Embora essas atribuiçõessejam idênticas àquelas inerentes ao Tribu-nal de Contas de União de hoje, pode-se infe-rir a possibilidade de constituição de comis-sões de inquérito no âmbito do Legislativo.

Nelson de Souza Sampaio (1964, p. 20)ressaltava, porém, que “as circunstânciaspolíticas do Império não constituíram cli-ma propício para o florescimento da inves-tigação parlamentar, que somente se expan-de onde as Câmaras dependem fortementeda opinião pública”. Aguinaldo Costa Pe-reira, no entanto, informa que, durante oImpério, a Assembléia Legislativa promo-veu diversos inquéritos em repartições pú-blicas submetidas ao Poder Executivo.

Com a Proclamação da República, em 15de novembro de 1889, tornava-se mister aelaboração de uma nova Constituição queprescrevesse a nova estrutura e o funciona-mento do Estado. Em 3 de dezembro do mes-mo ano, o Governo Provisório nomeou umacomissão composta de cinco membros quese destinariam a elaborar o anteprojeto daConstituição Republicana. Os trabalhosdessa comissão foram concluídos em 20 dejunho de 1890. Nessa mesma data, foi edita-do o Decreto no 510 que convocava a As-sembléia para apreciar o projeto de Consti-tuição. No dia 24 de fevereiro de 1891, aAssembléia Constituinte Republicana pro-mulgou a nova Carta. Segundo CláudioPacheco (1987, p. 27), faltou legitimidadepopular à Constituição de 1891, pois o seufato gerador, a Proclamação da República,resultou de um golpe militar que não veiopela onda de um movimento coletivo.

A Constituição de 1891 implementoumudanças significativas na estrutura e nofuncionamento do novo Poder Legislativo.João Barbalho (1924, p. 113) salientava quea nova Constituição tinha proporcionadouma importante conquista ao sistema de-mocrático brasileiro, pois a extinção do sis-tema eleitoral indireto, o qual estabelecia o

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eleitorado de segundo grau entre o povo e orepresentante, revelava a pretensa intençãode se ajustar o sistema eleitoral à incapaci-dade do povo em se fazer representar, o queproporcionava a deturpação e o falseamen-to da expressão da vontade nacional.

O Poder Legislativo, na Constituição de1891, passou a ser exercido pelo CongressoNacional. Segundo Octaciliano Nogueira(1983, p. 44), o Poder Legislativo e o Con-gresso Nacional são conceitos distintos umdo outro. O primeiro constitui um dos po-deres da União, enquanto que o segundo é oórgão que o exerce. Esse Poder correspondeao princípio abstrato, à faculdade de mate-rializar a lei; já o Congresso Nacional cor-responde ao organismo atuante.

A Constituição de 1891, assim como ade 1824, não fez constar, em seu texto, dis-positivos sobre comissões parlamentares deinquérito. Nelson de Souza Sampaio (1964,p. 21), no entanto, manifesta “que, apesarde algumas discussões a respeito do tema,prevalecia a interpretação de que o silênciodo texto constitucional não impedia quequalquer das Casas do Congresso realizas-se investigações”.

Aguinaldo Costa Pereira (1948, p. 147)asseverava, no entanto, que as investigaçõesocorreram com baixa freqüência e que “nun-ca atingiam as mais altas autoridades, nemmesmo os menos poderosos”. O autor acres-centava que o Poder Executivo estava intei-ramente resguardado de qualquer inquéri-to compulsório por parte do Legislativo.

No período de 1891 a 1930, AguinaldoCosta Pereira (1948, p. 148) identificou, pormeio de pesquisa nos anais da Câmara dosDeputados, a apresentação de mais de umadezena de requerimentos que buscavamconstituir comissões parlamentares de in-quérito. Citam-se, por exemplo: 1) requeri-mento apresentado pelo deputado Vergnede Abreu, em 20 de agosto de 1895, cuja co-missão se destinaria a “examinar severa-mente a situação das companhias estran-geiras de seguros, propor medidas legislati-vas tendentes a regularizar o seu funciona-

mento e a acautelar os interesses dos segu-rados”; 2) requerimento do deputado Bar-bosa Lima, de 26 de agosto de 1901, solici-tando que “a Câmara elegesse uma Comis-são de Inquérito Parlamentar para verificarquais os membros do Congresso Nacional edo Poder Executivo que, no momento em queo Banco da República cessou os seus paga-mentos, eram devedores ao mesmo Banco”;3) requerimento dos deputados Nicanor doNascimento e César Magalhães, de 4 de agos-to de 1924, no qual se postulava “a nomea-ção de uma comissão de inquérito que exa-minasse os casos em que, por fraude, doloou culpa, o Tesouro tenha sido lesado”.

Esse período foi caracterizado pela im-plementação de um sistema denominado depolítica dos governadores que, de acordocom Octaciliano Nogueira (1983, p. 110), semantinha graças a um acordo tácito entreas lideranças políticas. Cláudio Pacheco(1987, p. 39) afirmava que essa política teveseu natural andamento para uma situaçãode predomínio, especialmente, dos grandesestados, São Paulo e Minas Gerais, que pre-ponderavam, principalmente, pelas suaspopulações mais numerosas, refletindo umaquota mais ampla de representação no Con-gresso, na qual não se punha, como hoje,um limite numérico. Afirma Cláudio Pache-co (1987, p. 39) que esse quadro foi rapida-mente degenerando a vida política do país,pois os partidos já não eram apenas de opo-sição contra o governo, mas já se rotulavamde estados contra estados.

O principal indicativo de que esse siste-ma já se apresentava em decadência foi aatitude de Washington Luís, escolhendo efazendo eleger um sucessor também paulis-ta. Octaciliano Nogueira (1983, p. 110) res-salta que esse fato motivou Minas Gerais aincentivar a ascensão de Getúlio Vargas,representando o Rio Grande do Sul, que eraconsiderado o terceiro pólo do poder. Essaascensão veio por meio de um golpe militarque, utilizando-se da força, dissolveu o Con-gresso Nacional e os partidos políticos, re-vogando a Constituição.

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Afonso Arinos de Melo Franco (1976, p.96) afirmava que o Governo Provisório, es-tando sensível às pressões de amplos seto-res políticos e populares, convocou, em 14de maio de 1932, uma Assembléia Constitu-inte que deveria ser eleita no dia 3 de maiode 1933. Em novembro do mesmo ano, foiconstituída uma Comissão Especial desti-nada a elaborar o anteprojeto de Constitui-ção, a qual era formada por doze membros,dentre eles, cinco ex-deputados. No dia 3 denovembro, a Comissão Especial concluiu ostrabalhos, apresentando, ao Governo Pro-visório, o anteprojeto que deveria ser apre-ciado pela Assembléia Constituinte.

Esse anteprojeto de Constituição previaem seu artigo 29, §§ 1o e 2o, a criação de co-missões parlamentares de inquérito, nosseguintes termos:

“§ 1o A Assembléia poderá criarcomissões de inquérito; e fá-lo-á sem-pre que o requerer um quarto dos seusmembros.

§ 2o Aplicar-se-ão a esses inquéri-tos as regras do processo penal. Asautoridades judiciárias e administra-tivas procederão às diligências queessas comissões solicitarem e lhes for-necerão os documentos oficiais quereclamem.”

O deputado Odilon Braga (apud Agui-naldo Costa Pereira, 1948, p. 167) salienta-va que a inclusão desse instituto nas consti-tuições se revelava uma tendência do perío-do pós-guerra.

A Assembléia Constituinte acatou a pro-posta constante do anteprojeto, dando aoinstituto a seguinte redação:

“Art. 36. A Câmara dos Deputa-dos criará comissões de inquérito so-bre fatos determinados, sempre que orequerer a terça parte, pelo menos, dosseus membros.

Parágrafo único. Aplicam-se a taisinquéritos as normas do processo pe-nal, indicadas no Regimento Interno.”

A nova Constituição foi promulgada em16 de julho de 1934. No dia 20, do mesmo

mês, a Assembléia Nacional Constituinteelegeu Getúlio Vargas Presidente da Repú-blica. Após ter dado posse ao Presidente, aAssembléia, de acordo com artigo 2o dasDisposições Transitórias, se transformou emCâmara dos Deputados e passou a exercer,cumulativamente, as funções do SenadoFederal até a instalação da Câmara e do Se-nado, cujos representantes deveriam ser elei-tos no prazo de noventa dias. Em 3 de maiode 1935, após serem eleitos os membros decada Casa, iniciou-se a primeira legislaturada Segunda República.

A Constituição de 1934, segundo Josa-phat Marinho (1987, p. 45), “fortaleceu o re-gime representativo, consagrando o votosecreto e a supervisão, no processo geral daseleições, da Justiça Eleitoral; estabelecendoa obrigatoriedade de comparecimento dosMinistros de Estado à Câmara dos Deputa-dos; e assegurando o mandato aos deputa-dos quando nomeados ministros de Estadoou designados para o desempenho de mis-sões diplomáticas.”

Afonso Arinos de Melo Franco (1976, p.101) ressaltava que embora a Constituiçãode 1934 tivesse adotado formalmente asnovas idéias do Estado de Direito, inaugu-radas com a Constituição Alemã de 1919,ela era um documento de transição entre ten-dências teóricas e políticas contraditórias,uma vez que sofreu influência não apenasdo novo pensamento democrático, mas tam-bém da nova realidade ditatorial que emer-giu na Itália, na Alemanha, na Espanha, emPortugal e, de forma mais branda, no Brasil,com a visível confrontação entre comunis-tas e integralistas.

O Poder Legislativo, na Constituição de1934, passou a ser exercido pela Câmara dosDeputados, com a colaboração do SenadoFederal. Essa inovação eliminou o Congres-so Nacional da estrutura do Legislativo ecomprometeu o sistema bicameral, o qual,segundo Rosah Russomano (1960, p. 20),provém da Inglaterra, onde o Parlamento sebipartiu em Câmara dos Comuns e Câmarados Lordes, tendo sido adotado no Brasil

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desde a Constituição de 1824. Russomanoafirma que o sistema de duas câmaras pro-picia um melhor entendimento entre o Le-gislativo e o Executivo, abranda as diver-gências e contorna os obstáculos, evitandoatritos e cooperando para consolidar a li-berdade do indivíduo e os direitos do gruposocial.

Sob esse regime constitucional, o depu-tado João Simplício requereu, na sessão daCâmara de 16 de janeiro de 1935, a nomea-ção de uma comissão parlamentar de inqu-érito para investigar as condições da mari-nha mercante brasileira. Conforme narraAguinaldo Costa Pereira (1948, p. 172), orequerimento foi aprovado na sessão da Câ-mara do dia 19 de janeiro. Essa comissão,cuja primeira reunião se deu no dia 29 dejaneiro, reuniu-se pelo menos 29 vezes, en-cerrando suas atividades em 14 de abril de1935.

Em 5 de junho, do mesmo ano, o deputa-do João Mangabeira e outros requereram aconstituição de comissão de inquérito para“pesquisar as condições de vida do traba-lhador urbano e agrícola”. Segundo Agui-naldo Costa Pereira (1948, p. 174), essa co-missão realizou poucas reuniões.

De acordo com Afonso Arinos de MeloFranco (1976, p. 100), os confrontos entrecomunistas e integralistas, e o conturbadocontexto mundial, comprometiam cada vezmais a estabilidade da democracia consti-tucional. Quando um golpe militar armadofoi tentado pelos comunistas, a Câmara rea-giu aprovando três emendas constitucio-nais que agravaram mais a situação, tornan-do mais comprometida a precitada estabili-dade. A primeira emenda criava a figurajurídica do estado de guerra interna; a se-gunda permitia a cassação de posto e pa-tente dos militares subversivos; e a terceiraprevia a demissão dos funcionários civis nasmesmas condições. Em junho de 1936, aCâmara concedeu permissão para que fos-sem processados os deputados presos. Con-forme afirmava Afonso Arinos de Melo Fran-co (1976, p. 101), as posições partidárias,

dentro da Câmara, continuavam desliga-das da realidade política e continuavamuma rotina política inatual, enquanto queos instrumentos do Executivo, criados emfunção das emendas à Constituição, exerci-am o verdadeiro poder.

Em 2 de abril de 1937, o deputado Adal-berto Corrêa e outros requereram a nomea-ção de duas comissões referentes à repres-são ao Comunismo. Segundo AguinaldoCosta Pereira (1948, p. 176), uma das comis-sões, a “Comissão de Inquérito para tomarconhecimento das investigações secretaspromovidas pela Comissão Nacional deRepressão ao Comunismo”, realizou seustrabalhos sob o regime de reuniões secretas.A outra comissão desenvolveu os trabalhosde natureza não sigilosa, ou seja, reuniõespúblicas.

A convulsão social e política que seaproximava foi usada por Getúlio Vargascomo justificativa para a instalação do Es-tado Novo. No dia 10 de novembro de 1937foi apresentada à Nação uma nova CartaConstitucional que, sendo outorgada, revo-gou a de 1934. O texto da nova Constituiçãopossuía a seguinte justificativa:

“Atendendo às legítimas aspira-ções do povo brasileiro à paz políticae social, profundamente perturbadapor conhecidos fatores de desordem,resultantes da crescente agravaçãodos dissídios partidários, que umanotória propaganda demagógica pro-cura desnaturar em luta de classes, eda extremação de conflitos ideológi-cos, tendentes, pelo seu desenvolvi-mento natural, a resolver-se em termosde violência, colocando a nação sob afunesta iminência da guerra civil”.

Com base em seu artigo 178, foram dis-solvidas, naquela data, a Câmara dos De-putados, o Senado Federal, as AssembléiasLegislativas dos Estados e as Câmaras Mu-nicipais.

Paulo Bonavides e Paes de Andrade(1991, p. 333) manifestaram que a Consti-tuição de 1937 tinha, como base, o surgi-

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mento de uma burocracia estatal com pre-tensões legislativas de um Poder Executivocentralizado e extremamente forte, e de umLegislativo pulverizado e convertido emConselho Administrativo.

O Presidente da República, de acordocom o artigo 73 da Constituição de 1937, eraa autoridade suprema do Estado. A ele eramatribuídas as seguintes funções: coordenaras atividades dos órgãos representativos degrau superior; dirigir a política interna eexterna; promover ou orientar a política le-gislativa de interesse nacional; superinten-der a administração do país. Ao Presidenteda República era, também, reservado o di-reito de dissolver a Câmara dos Deputados,no caso do parágrafo único do artigo 167.

Na Constituição de 1937, o Poder Legis-lativo passou a ser exercido pelo Parlamen-to Nacional, com a colaboração do Conse-lho de Economia Nacional e do Presidenteda República, mediante parecer daquele nasmatérias da sua competência consultiva edeste pela iniciativa e sanção dos projetosde lei e promulgação dos decretos-leis auto-rizados na Constituição.

O Parlamento se compunha de duasCâmaras: a Câmara dos Deputados e o Con-selho Federal. A Câmara dos Deputadosseria composta por representantes do povo,eleitos pelo sufrágio indireto, sendo indica-dos pelas Câmaras Municipais. O númeroseria proporcional à população do Estado,não podendo ser superior a dez e nem infe-rior a três por Estado.

Esse período foi caracterizado pela ina-tividade do Poder Legislativo, pois o artigo178 da sobredita Constituição, que dissol-veu os órgãos legislativos existentes, confe-riu ao Presidente da República o direito deconvocar eleições para os membros do Par-lamento Nacional. Porém, ele não as convo-cou. Em razão de a Câmara dos Deputadose o Conselho Federal não terem sido insta-lados, a elaboração legislativa ficou a cargodo Executivo, pois, de acordo com o artigo180, enquanto não se reunisse o Parlamen-to Nacional, o Presidente teria o poder de

expedir decretos-leis sobre todas as matéri-as de competência da União. Destarte, aConstituição de 1937 permitiu a GetúlioVargas governar o país sem que o Parlamen-to Nacional funcionasse.

Porém, a primeira importante manifes-tação política de inconformidade com o Es-tado Novo, segundo Afonso Arinos de MeloFranco (1976, p. 101), foi o Manifesto Minei-ro, de outubro de 1943. Ressalta o autor queos desdobramentos da Segunda GrandeGuerra começaram a virar em favor das de-mocracias. Vamireh Chacon (1997, p. 163)afirma que os militares da Força Expedicio-nária Brasileira, enviados aos campos debatalha da Itália para o combate contra osnazifacistas, reivindicavam para o Brasil ademocracia dos aliados por quem lutavam.

O processo de redemocratização se tor-nava mais evidente. De acordo com PauloBonavides e Paes de Andrade (1991, p. 349),a entrevista de José Américo de Almeida aoCorreio da Manhã, em 22 de fevereiro de 1945,serviu para deflagrar o processo da volta dademocracia no Brasil. Vamireh Chacon(1997, p. 163) apresenta um trecho da cita-da entrevista, na qual se percebe o caráterirreversível e urgente da deposição do Pre-sidente Getúlio Vargas. Por conseguinte, nodia 25 de outubro de 1945, as Forças Arma-das afastaram Getúlio Vargas e indicaramo Presidente do Supremo Tribunal Federal,José Linhares, para ocupar o Cargo de Pre-sidente do Governo Provisório. Em novem-bro do mesmo ano, foram expedidas leisconstitucionais que dispunham sobre a con-vocação e a ampliação dos poderes da Cons-tituinte. As eleições para os membros daConstituinte ocorreram no dia 2 de dezem-bro de 1945, tendo sido eleito, para Presi-dente da República, o General Eurico Gas-par Dutra. Também, nessa data, foram elei-tos os membros da Assembléia Constituintecujos trabalhos foram instalados no dia 2fevereiro de 1946. Em 15 de fevereiro, sob aPresidência do Senador Nereu Ramos, a Co-missão de Constituição, designada para ela-borar o projeto de Constituição, reuniu-se e

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dividiu-se em grupos de trabalho. SegundoAfonso Arinos de Melo Franco (1976, p. 104),a Constituição de 1934 foi utilizada comoanteprojeto. O projeto elaborado pela Comis-são de Constituição foi apresentado em Ple-nário no dia 27 de maio de 1946 e, em 18 desetembro, foi promulgada a nova Constitui-ção.

Uma das grandes preocupações daConstituinte de 1946, segundo Paulo Bona-vides e Paes de Andrade (1997, p. 418), foi arestauração do equilíbrio e da harmonia dospoderes que ficou traduzida no artigo 36 daseguinte forma: “são Poderes da União oLegislativo, o Executivo e o Judiciário, inde-pendentes e harmônicos entre si”. O PoderLegislativo que, de acordo com os citadoautores, estivera prostrado e ausente duranteo período de 1930 a 1945, foi revitalizado apartir de 1946, sendo exercido pelo Con-gresso Nacional que se compunha da Câ-mara dos Deputados e do Senado Federal.

Nesse período, os partidos políticos ga-nharam maior expressão, pois os membrosda Câmara passaram a ser eleitos pelo sis-tema de representação proporcional dosEstados. De acordo com Aliomar Baleeiro(1987, p. 6), o sistema proporcional dá maissensibilidade à representação popular, per-mitindo ter voz, pelo menos, qualquer gru-po consistente da opinião pública. Porém,esse sistema favorece a multiplicação dospartidos, o que enfraquece tanto o Governo

quanto às oposições. Essa representaçãoproporcional dos partidos também ficougarantida na composição das comissõespermanentes e temporárias da Câmara dosDeputados.

A Constituição de 1946 restabeleceu, emseu artigo 53, o instituto das comissões par-lamentares de inquérito. Pontes de Miran-da (1936, p. 499), ao comentar o artigo 36 daConstituição, afirmou que “de certo modo,as comissões de inquérito eram arma possí-vel do Poder Legislativo contra o Poder Exe-cutivo, quiçá de minoria da própria Câma-ra dos Deputados contra a maioria”.

Aliomar Baleeiro (1950, p. 135), no en-tanto, afirmava “ser inteiramente supérfluaa disposição porque, no desempenho de suasfunções, ambas as câmaras poderiam recor-rer aos inquéritos sobre quaisquer fatos, de-terminados ou não, assim como a todo e qual-quer meio idôneo que lhe não seja vedado porcláusula expressa, ou implícita, da Consti-tuição”. O autor acrescenta que “tais comis-sões sempre foram criadas pelas câmaras in-glesas e norte-americanas e nenhum disposi-tivo se julgou necessário para esse fim”.

Foi, porém, a partir de 1946, que o Legis-lativo brasileiro passou a utilizar mais fre-qüentemente as investigações parlamenta-res. Registra-se, no período de 1946 a 1988,a constituição de 303 comissões parlamen-tares de inquérito. O gráfico abaixo apresen-ta o número de CPIs distribuídas por ano.

Verifica-se, portanto, que as comissõesparlamentares de inquérito já se figuramcomo um importante instrumento à dispo-

sição do Poder Legislativo brasileiro e quesua gênese está diretamente relacionada aosurgimento do Parlamento moderno.

Gráfico1 - Total de CPIs por Ano

Total CPIs por Ano

2 25 3 4

1

15

86

1915

13

611

914

6

30

16

24

16 16 15

1

74 5

26

84 3

14

2

05

101520253035

46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 73 75 76 77 78 79 80 81 83 84 85 87

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3 – Produção de provas noinquérito parlamentar

Os aspectos históricos sobre as comis-sões parlamentares de inquérito, apresen-tados no capítulo anterior, propiciarão ummelhor entendimento e uma análise maisacertada acerca da produção de provas noinquérito parlamentar na Câmara dos De-putados, pois os termos pelos quais essamatéria está disciplinada na Carta Consti-tucional de 1988 revelam a forma emprega-da na construção da democracia no Estadobrasileiro. Assim, conforme consta do textoconstitucional, as CPIs são comissões cria-das no âmbito do Poder Legislativo e dota-das de poderes de investigação próprios dasautoridades judiciais, além de outros pre-vistos nos regimentos das respectivas Ca-sas do Congresso, e que se destinam à apu-ração de fato determinado e por prazo certo.

3.1 - Aspectos gerais sobre oinquérito parlamentar

Pontes de Miranda (1936, p. 499), ao co-mentar a Constituição de 1934, que foi a pri-meira a disciplinar esse tema, afirma que “adecisão no inquérito não é despacho ou sen-tença no sentido do Direito Processual Pe-nal, nem, tampouco, deliberação no sentidodo Direito Administrativo”. Acrescenta oautor que o caráter do inquérito parlamen-tar é um tipo específico, ao qual não se podeopor nulidade, anulação ou falta de defesasuficiente. Nelson de Souza Sampaio (1964,p. 4) ressalta que os inquéritos parlamenta-res, em sentido estrito, “não podem recomen-dar imposição de penas ou medidas disci-plinares”. Em razão disso, o citado autormanifesta que não se pode falar em indicia-dos ou acusados.

Para Nelson de Souza Sampaio (1964, p.4), essas comissões se destinam a “informaras Câmaras para que elas cumpram suasfunções, principalmente, a de legislar e a decontrolar o Executivo”. O uso dessa prerro-gativa restaura o papel do Legislativo, poisa Câmara dos Deputados e o Senado Fede-

ral, podendo, por meios próprios, de formamotivada e sem a presença de “filtros”, co-nhecer a situação, as condições e os resulta-dos das políticas implementadas pelo Exe-cutivo na condução dos rumos do País, evi-ta, conforme salienta Barhélemy (apud Nel-son de Souza Sampaio, 1964, p. 5) que o Par-lamento se torne “um cego constitucional con-denado a conhecer apenas o que o governose dispõe a lhe informar”.

Agassiz Almeida (2000, p. 9) asseveraque, recentemente, as comissões parlamen-tares de inquérito vêm se destacando, prin-cipalmente, no que concerne à fiscalizaçãoe à salvaguarda do erário público, bem comoaos interesses coletivos e difusos. Cabe, po-rém, ressaltar que as CPIs, ao longo dos anos,têm sido criadas para investigar temas maiscomplexos, do ponto de vista jurídico. Talpossibilidade encontra abrigo na interpre-tação que se construiu acerca do conceitode “fato determinado”. Para Pontes de Mi-randa (apud Alaor Barbosa, 1988, p. 94), porexemplo, fato determinado se refere a “umacontecimento concreto com relevância erepercussão na ordem jurídica constitucio-nal do País e sob seus efeitos”. Essa inter-pretação, bastante elástica, permitiu que fos-sem constituídas, por exemplo, CPIs parainvestigar os seguintes casos: em 1953, aexistência de jogos de azar em todo o territó-rio nacional; em 1973, as causas do tráfico eo uso de substâncias alucinógenas; em 1991,a impunidade de traficantes de drogas noPaís, bem como o crescimento do consumo;em 1991 e 1993, crimes de “pistolagem” nasregiões Centro-Oeste e Norte, especialmen-te, na chamada área do “Bico do Papagaio”;em 1999, o avanço e a impunidade do nar-cotráfico.

Essas investigações se referem a aconte-cimentos sujeitos a inquéritos policiais e aprocessos judiciais. Porém, entende o Mi-nistro Celso de Mello (2001, p. 91) não ha-ver impedimento à realização de inquéritosparlamentares dessa natureza, desde que“sejam respeitados os limites inerentes àcompetência material do Poder Legislativo

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e observados os fatos determinados que di-taram a sua constituição”. Assim proceden-do, as comissões parlamentares de inquéri-to se configuram como órgão deflagrador deuma ação judicial, colaborando, de formaprévia, com o Ministério Público. Nesse sen-tido, entendeu o Ministro Nelson Jobim(2001, p. 36) tratar-se de economia proces-sual o envio ao Ministério Público de docu-mentos reunidos por comissão parlamen-tar de inquérito, inclusive os que envolvamsigilo fiscal ou de operações financeiras.

Esses documentos não se caracterizamapenas como fontes de informação, apresen-tam-se, também, como provas que servem àformação de convicção dos membros dascomissões parlamentares de inquérito. As-sim, buscou-se, neste estudo, identificar,descrever e classificar as tipologias de pro-vas produzidas por essas comissões no de-sempenho de suas atividades. Para tanto,decidiu-se analisar de forma exaustiva ostrabalhos de uma comissão parlamentar deinquérito e, a partir dessa análise, fazer in-ferências sobre a produção de provas noâmbito do inquérito parlamentar.

3.2 - O universo da pesquisa

Para se definir o universo a ser pesqui-sado, levou-se em conta a natureza da in-vestigação, a relevância do tema, a reper-cussão na sociedade e o tempo de funciona-mento da CPI. Em razão desses critérios, ele-geu-se a “Comissão parlamentar de inqué-rito destinada a investigar o avanço e a im-punidade do narcotráfico” (CPI do narco-tráfico), constituída na Câmara dos Deputa-dos, em 13 de abril de 1999, a partir do reque-rimento apresentado, em 3 de fevereiro de1999, pelo Deputado Moroni Torgan e outros.

Essa CPI realizou 129 reuniões, 29 via-gens para a realização de diligências em 17unidades da Federação, mantendo-se emfuncionamento até o dia 30 de novembro de2000. No curso de seus trabalhos produziufarta documentação, totalizando 248 caixas-arquivo, com aproximadamente onze mildocumentos.

3.3 - A coleta de dados

Após a definição do universo da pesqui-sa, buscou-se estabelecer as bases do planode coleta de dados. De acordo com AmadoLuiz Cervo e Pedro Alcino Bervian (1983, p.155), essa é uma importante tarefa da pes-quisa que envolve diversos passos como adeterminação da população, a elaboraçãodo instrumento adequado, a programação ea execução da coleta de dados. De acordocom Roberto Jarry Richardson (1989, p. 142),a informação obtida nessa fase permite ob-servar as características de um indivíduoou grupo. Richardson afirma que a descri-ção adequada das características de um gru-po beneficia a análise a ser feita pelo pes-quisador e pode ajudar outros especialis-tas, tais como, planejadores e administra-dores.

Considerando, então, a dimensão doacervo documental produzido pela referidaCPI e as especificidades do inquérito parla-mentar, perquiriram-se as fases concernen-tes à produção de provas por esse órgão le-gislativo de investigação.

3.3.1 - A prova no inquérito parlamentarA prova, de acordo com Camargo Ara-

nha (1996, p. 23), tem por objeto o fato cujaexistência se deseja ver reconhecida. Ama-ral Santos (apud Camargo Aranha, 1996,p.5) afirma que “a prova visa, como fim últi-mo, incutir no espírito do julgador a convic-ção da existência do fato perturbador dodireito a ser restaurado”. Entretanto, por nãose tratar de processo judicial, inexiste, noinquérito parlamentar, a proposição de pro-vas pelas partes, cabendo ao deputado essaprerrogativa. Assim, o parlamentar, em de-terminados momentos do inquérito, atua deforma semelhante à autoridade policial, bus-cando conhecer a materialidade e a autoriade um determinado injusto penal, que se rela-ciona com o fato investigado pela comissão,colhendo todas as provas possíveis. Noutros,atua como juiz, estabelecendo, por competên-cia própria, a coleta e a produção de elemen-tos que visam à apuração da verdade.

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Esse julgamento quanto aos meios deprova necessários ao inquérito parlamen-tar ocorre em dois planos distintos. Um en-volve a apreciação realizada com base nosparadigmas do “conhecimento objetivo”.Outro se refere àquela norteada pelos para-digmas do “conhecimento tácito”. No pri-meiro, leva-se em conta a validade da pro-posição da prova, ou seja, se ela atende àsprescrições constitucionais, legais e regi-mentais, bem como a viabilidade técnica eprocedimental. No segundo, julga-se com baseem elementos de um “saber subjetivo”. Esse,conforme afirma Tarciso Carvalho (1999, p.150), se refere: a) às teorias aceitas pelo parla-mentar; b) às ideologias políticas e partidári-as do grupo parlamentar ao qual pertença odeputado; c) às crenças desse parlamentar eàs experiências por ele acumuladas.

Essa proposição concernente à produ-ção ou à coleta de provas, no âmbito do in-quérito parlamentar, se faz mediante a apre-sentação de requerimento por qualquermembro da comissão, sendo necessária adevida fundamentação. Quanto a essa exi-gência, o Supremo Tribunal Federal já fir-mou entendimento sobre a inafastabilidadedesse requisito procedimental para os ca-sos relativos à prova documental a ser obti-da em razão da quebra de sigilos bancário,fiscal ou telefônico. O Ministro Celso deMello, relator do Mandado de Segurança no

23.452-1/RJ, a esse respeito, manifestou-seda seguinte forma:

“As Comissões Parlamentares deInquérito, no entanto, para decretaremlegitimamente, por autoridade pró-pria, a quebra do sigilo bancário, dosigilo fiscal e/ou do sigilo telefônico,relativamente a pessoas por eles in-vestigadas, devem demonstrar, a par-tir de meros indícios, a existência con-creta de causa provável que legitime amedida excepcional (ruptura da esfe-ra da intimidade de quem se acha sobinvestigação), justificando a necessi-dade de sua efetivação no procedimen-to de ampla investigação dos fatos

determinados que deram causa à ins-tauração do inquérito parlamentar,sem prejuízo de ulterior controle ju-risdicional dos atos em referência (CF,art. 5o, XXXV).

As deliberações de qualquer Co-missão Parlamentar de Inquérito, àsemelhança do que também ocorre comas decisões judiciais (RTJ 140/514),quando destituídas de motivação,mostram-se írritas e despojadas de efi-cácia jurídica, pois nenhuma medidarestritiva de direitos pode ser adota-da pelo Poder Público, sem que o atoque a decreta seja adequadamentefundamentado pela autoridade esta-tal (...) ”

Considerando as manifestações supra-citadas, decidiu-se realizar a coleta de da-dos a partir dos instrumentos de comunica-ção oficial que se dá entre a CPI e os órgãosou entidades custodiadoras de fontes pri-márias da informação necessária aos traba-lhos de investigação. Pois é por meio dessesinstrumentos, ou seja, dos ofícios expedidos,que o Presidente da comissão solicita aosdiversos órgãos públicos e entidades priva-das os insumos imprescindíveis aos traba-lhos por ela realizados, isto é, as provas.

Assim, os dados identificadores e quali-ficadores das tipologias de provas produzi-das pela CPI do Narcotráfico foram obtidosmediante consulta à guia de transferênciados documentos da CPI ao Arquivo da Câ-mara dos Deputados. Esse instrumento detransferência apresenta uma descrição su-mária dos documentos ostensivos produzi-dos e recebidos pela Comissão, dentre eles,os ofícios expedidos pelo Presidente da CPIdo Narcotráfico.

3.4 - Resultados e análise dos dados

A coleta dos dados permitiu verificar que,no período de 15 de abril de 1999 a 5 dedezembro de 2000, registraram-se 2.715 ofí-cios, de acordo com a numeração do últimoofício assinado pelo Presidente da referidaCPI. Ademais, houve a expedição de alguns

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ofícios sem número, bem como de outroscom números repetidos. Por esse motivo, osofícios expedidos totalizaram mais queaquele número constante do derradeiro ex-pedido pela CPI. Porém, 2.699 foi o númerode ofícios analisados neste estudo, em ra-zão de serem, apenas esses, os constantesda referida guia de transferência.

Antes de apresentar e caracterizar as ti-pologias de provas produzidas no referidoinquérito parlamentar, faz-se necessáriosalientar que, por razões metodológicas, nãose optou por apresentar os resultados combase nas tipologias de provas arroladas noCódigo de Processo Penal. De acordo comesse diploma legal, podem servir como pro-va: a) o exame de corpo de delito e das perí-cias em geral; b) o interrogatório do acusa-do; c) a confissão; d) as perguntas ao ofen-dido; e) as testemunhas; f) o reconhecimen-to de pessoas e coisas; g) a acareação; h) osdocumentos; i) os indícios; j) a busca e aapreensão. Assim, neste trabalho, optou-sepor recorrer à doutrina.

Conforme ensina Camargo Aranha(1996, p. 23), a doutrina apresenta diversoscritérios de classificação de provas. Toda-via, afirma o referido autor que aquela for-mulada por Framarino Malatesta é a quemerece destaque especial. Segundo Malates-ta, as provas classificam-se quanto ao obje-to, ao sujeito e à forma. Quanto à forma, asprovas podem ser: testemunhal, documen-tal e material. Acerca dessa classificação,Gusmão (apud Camargo Aranha, 1996, p.22) manifestou-se da seguinte forma:

“Esse método de classificação en-cerra, ao nosso ver, a virtude de as-

sentar-se em um critério seguro e ver-dadeiramente científico, pois que temcomo base a prova considerada emsua natureza e em relação ao métodode produção. Qualquer outro método,partindo de critérios meramente aci-dentais, só pode produzir classifica-ções estéreis, sem valor algum teóricoe sem o mínimo alcance prático.”

Assim, decidiu-se por adotar o critériode classificação elaborado por Malatesta, oqual se mostrou científica e metodologica-mente mais adequado para a apresentaçãodos resultados da pesquisa.

3.4.1 - As provas produzidas no inquéritoparlamentar na Câmara dos Deputados

Do estudo dos dados, constatou-se quedos 2.669 ofícios analisados, 1.509 se referi-am à produção ou à coleta de provas, ouseja, 56,54% do total examinado neste estu-do. Esse resultado confirma o posiciona-mento da doutrina que afirma ser os pode-res outorgados às comissões parlamentaresde inquérito limitados ao campo da indaga-ção probatória. A esse respeito, Gilvan Cor-reia de Queiroz Filho (2001, p. 151) ressaltaque “a esse tipo de comissão, na busca daverdade real, é dado utilizar-se de instru-mentos conferidos ao juiz na instrução cri-minal, como promover diligências, ouvirindiciados, determinar o comparecimento einquirir testemunhas”.

Quanto à tipologia de prova, verificou-se que 911 ofícios se referiam a provas do-cumentais, correspondendo a 60,37%; 582,a testemunhais, perfazendo 38,57%; e 16, aprovas materiais, equivalente a 1,06%.

9 1 1

16

582

0

200

400

600

800

1 0 0 0

D o c u m e n t a l Mater ia l Tes temunha l

Gráfico 2 – Total de solicitações de provas

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Os dados atinentes às provas documen-tais referem-se a solicitações de documen-tos e informações pela CPI a órgãos e enti-dades públicas e privadas. Informação, se-gundo Yves-François Le Coadic (1996, p. 5),“é o conhecimento inscrito (gravado) sob aforma escrita (impressa ou numérica), oralou audiovisual”. O autor conclui manifes-tando que a informação comporta um ele-mento de sentido, ou seja, “é um significadotransmitido a um ser consciente por meiode uma mensagem inscrita em suporte es-pacial-temporal: impresso, sinal, elétrico,onda sonora, etc”. O documento, então, éconstituído pela informação e seu suporte.

Sobre o conceito de documento, HeloísaLiberalli Belloto (1991, p. 14) manifesta-seda seguinte forma:

“(...) documento é qualquer elementográfico, iconográfico, plástico ou fô-nico pelo qual o homem se expressa.É o livro, o artigo de revista ou jornal,o relatório, o processo, o dossiê, a cor-respondência, a legislação, a estam-pa, a tela, a escultura, a fotografia, ofilme, o disco, a fita, magnética, o obje-to utilitário etc, enfim, tudo o que sejaproduzido por razões funcionais, ju-rídicas, científicas, técnicas, culturaisou artísticas pela atividade humana.”

Camargo Aranha (1996, p. 221) afirmaque, no âmbito jurídico, documento “é en-tendido como todo meio legal pelo qual arepresentação se faz pela escrita, por sinaisda palavra falada ou pela reprodução deum fato ou acontecimento em um objeto físi-co, possível de servir como prova em juízo”.Amaral Santos (apud Camargo Aranha,1996, p. 221) ensina que “documento é a coi-sa representativa de um fato e destinada afixá-lo de modo permanente e idôneo, repro-duzindo-o em juízo”.

Assim, sob a tipologia de prova docu-mental, ficaram compreendidas todas assolicitações da CPI atinentes a elementosprobatórios ou de informação, produzidosou reunidos por órgãos e entidades públi-cas e privadas, que auxiliaram os parlamen-

tares integrantes da comissão parlamentarde inquérito na busca da verdade real. Ci-tam-se, como exemplo, as requisições, aosórgãos competentes, de documentos e infor-mações concernentes à quebra de sigilos ban-cário, fiscal e telefônico, bem como aquelascapazes de delinear a gravidade dos proble-mas relacionados ao narcotráfico no Brasil.

Em relação aos dados atinentes às pro-vas testemunhais, registra-se que esses sereferem à produção de provas no âmbito doinquérito parlamentar, ou seja, revela a pre-tensão dos membros da CPI em ouvir pesso-as que possam contribuir, por meio de rela-tos, para o conhecimento e os esclarecimen-tos dos fatos por ela investigados. O Códigode Processo Penal, em seu artigo 203, esta-belece que “a testemunha fará, sob palavrade honra, a promessa de dizer a verdade doque souber e lhe for perguntado, (...) expli-cando sempre as razões de sua ciência ouas circunstâncias pela quais possa avaliar-se de sua credibilidade”. Segundo Fernan-do da Costa Tourinho Filho (2001, p. 461),“testemunhas são terceiras pessoas quecomparecem perante a autoridade para ex-ternar-lhe suas percepções sensoriais extra-processuais: o que viu, o que ouviu etc”.

Camargo Aranha (1996, p. 128) apresen-ta a seguinte definição de testemunha:

“Testemunha é todo o homem, es-tranho ao feito e eqüidistante às par-tes, capaz de depor, chamado ao pro-cesso para falar sobre fatos caídos sobseus sentidos e relativos ao objeto dolitígio. É a pessoa idônea, diferente daspartes, convocada pelo juiz, por inici-ativa própria ou a pedido das partes,para depor em juízo sobre fatos sabi-dos e concernente à causa.”

Neste estudo, porém, as provas testemu-nhais não se referiam apenas àquelas pro-duzidas em razão da oitiva dessa pessoaestranha ao feito e eqüidistante às partes.Utilizou-se o conceito amplíssimo de teste-munha. Dessa forma, as intimações de en-volvidos e de testemunhas, em sentido es-trito, as convocações de autoridades públi-

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cas e os convites a especialistas nos temasatinentes ao narcotráfico foram classifica-dos como intenção de se produzir provastestemunhais, isto é, esses relatos serviriamà formação da convicção dos membros daCPI, em especial de seu Relator.

No que se refere aos dados atinentes àsprovas materiais, ressalta-se que eles fica-ram adstritos às solicitações da CPI no to-cante à realização de perícias. A perícia, se-gundo Camargo Aranha (1996, p. 160),“constitui uma peça eminentemente técni-ca mediante a qual o experto nomeado fazuma declaração de ciência, uma afirmaçãode um juízo ou então de ambas conjunta-mente”. Assim, a perícia persegue o esclare-cimento e a compreensão de um determina-do fato, com vista a alicerçar uma decisãoprocessual.

3.4.2 - Análise geral

Da análise geral dos dados, conclui-seque, em razão de as provas documentaisserem as mais solicitadas (60,37%), as co-

missões parlamentares de inquérito ao de-sempenharem suas funções específicas e aoexercerem suas atribuições constitucionaise legais, as fazem com o zelo de se evitar apredominância de influências subjetivas,pois, conforme manifesta Camargo Aranha(1996, p. 222), a prova documental não esta-ria sujeita “aos efeitos da memória humanae da corrupção possível entre os homens”.

Observando-se o gráfico 3, que apresen-ta os totais de solicitações de provas distri-buídos nos meses nos quais a CPI do narco-tráfico esteve em funcionamento, verifica-seque, ao iniciar os trabalhos, a CPI dedicou-se, quase que exclusivamente, à coleta deprova documental. Nos meses de abril, maioe junho de 1999, esse tipo de prova compu-nha-se de documentos oficiais que demons-travam o cenário brasileiro sobre o tema.Infere-se, portanto, que tais documentos te-nham sido fundamentais para o planeja-mento das atividades da CPI, bem comopara o desenvolvimento da metodologia deinvestigação utilizada pela comissão.

Gráfico 3 – Total de solicitações de provas no período de funcionamento da CPI

A coleta de provas documentais nosmeses seguintes se dedicou a fatos específi-cos e às pessoas neles envolvidas. Registra-se que 46,21% do total de requisições de pro-vas documentais se referiam a documentose a informações sobre sigilos bancário, fis-cal e telefônico.

Constata-se, ainda, que a coleta de pro-vas documentais foi predominante duranteos trabalhos da CPI, à exceção para os me-ses de novembro de 1999, março, abril e maiode 2000, períodos nos quais a CPI se dedi-cou à produção de provas testemunhais,conforme demonstra o gráfico 3.

4 – Sugestões e recomendações

Conforme evidenciado no capítulo ante-rior, verifica-se que a produção de provas,no âmbito do inquérito parlamentar na Câ-mara dos Deputados, revela-se como umadas principais atividades desenvolvidaspor essas comissões, quiçá a mais impor-tante. Em razão disso, cabe ressaltar a ne-cessidade de serem observadas, com o rigorde um órgão técnico, as exigências constan-tes do Código de Processo Penal, no que serefere a provas, bem como os ensinamentosda doutrina e os julgados dos tribunais so-

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bre essa matéria. Cita-se, por exemplo, o votodo Ministro Nelson Jobim ao Mandado deSegurança no 24.135-7, lembrando que a ju-risprudência do Supremo Tribunal Federaljá se fixou no sentido de que a quebra desigilo bancário, fiscal e telefônico “deve re-velar-se na existência de fato concreto, peloqual se indique causa provável de justificara medida”.

Não se pode prescindir do cumprimen-to estrito desses requisitos fundamentais,pois, conforme ensina Gilvan Correia deQueiroz Filho (2001, p. 156), “os poderesdessas comissões têm limites nos direitosindividuais dos cidadãos”. Observa-se, ain-da, que o abandono de tais procedimentoscompromete os trabalhos realizados por es-sas comissões de inquérito, eivando as pro-vas e tornando-as proibidas, em razão deofensa a normas constitucionais ou legais.Camargo Aranha (1996, p. 49) salienta quea ofensa ao direito material torna a provailícita; enquanto que a ofensa ao direito pro-cessual a torna ilegítima.

Poder-se-ia, então, argumentar ser des-necessário tal rigor na produção de provaspelas comissões parlamentares de inquéri-to, devido à impossibilidade legal de utili-zá-las como provas emprestadas em proces-sos judiciais. Porém, não se pode dizer queo Ministério Público ou o Poder Judiciárionão as requisitem como meras provas docu-mentais. Nesse sentido, observa-se um sig-nificativo aumento do número de requisi-ções dessa natureza à Câmara dos Deputa-dos, logo após o envio do relatório de CPIàqueles órgãos.

Ressalta-se, ainda, que tais procedimen-tos devem ser observados não apenas pelosmembros da CPI ao formularem suas requi-sições de provas. Com igual rigor, as secre-tarias das comissões parlamentares de in-quérito devem cumprir os ritos legais perti-nentes à organização e ao tratamento des-ses documentos que embasaram o inquéritoparlamentar. Pois, quando da requisiçãopelo Ministério Público e Poder Judiciáriodaqueles que serviram à fundamentação das

conclusões e dos encaminhamentos cons-tantes do relatório final da CPI, registra-seum atendimento não muito satisfatório emrazão de, em alguns casos, a organizaçãodo acervo documental da CPI não apresen-tar elementos de vinculação entre os casosinvestigados e as provas constantes dosautos do inquérito parlamentar.

Cumpre, portanto, à Câmara dos Depu-tados dedicar esforços no sentido de se edi-tarem normas procedimentais mais especí-ficas quanto ao inquérito parlamentar, bemcomo em relação à organização e ao trata-mento do acervo documental produzidopelas comissões parlamentares de inquéri-to, importante instituto do Legislativo.

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Valéria Ribeiro da Silva Franklin Almeida

1. IntroduçãoRaramente o pesquisador se defronta

com certezas e unanimidades ao início deuma investigação, já que, ao contrário, é adúvida o ponto de partida de toda busca.Porém, no caso do objeto de estudo destetrabalho, o direito à informação, é obrigató-rio reconhecer a convicção dos estudiososquanto à relevância do tema e sua insepará-vel relação com a história da humanidade,mesmo quando os registros dessa ligaçãosão inexistentes.

É de posse desta premissa que a presen-te reflexão partirá à procura da trajetória deconexão entre os dois campos de estudo: oDireito e a Comunicação, voltados, no queaqui interessa, à garantia do direito à infor-mação. Pela amplitude de análise que cadaassunto abrange, torna-se necessário res-tringir o horizonte de pesquisa, mesmo por-que são numerosas as ocorrências em queas áreas se mesclam. Cuidará o artigo, por-tanto, de apontar a disposição do direito àinformação no âmbito da doutrina jurídica,conectando o tema às teorias de comunica-ção. Não há, no entanto, intuito de esmiu-

A comunicação do Senado e o direito àinformação

Introdução; Direitos Humanos Fundamen-tais; O Homem, a Informação e a Democracia;O Senado e a Comunicação Institucional; AAgência Senado: Um Estudo de Caso; A MídiaEletrônica e a De- mocratização da Informa-ção; O Direito Inquestionável; Referências.

Valéria Ribeiro da Silva Franklin Almeidaé formada pela UnB, trabalha no Congressocomo jornalista há 15 anos. É analista legislati-va da área de Comunicação Social do Senado eatua na Agência de Notícias.

Trabalho final apresentado ao Curso deEspecialização em Direito Legislativo realiza-do pela Universidade do Legislativo Brasilei-ro – UNILEGIS e Universidade Federal do MatoGrosso do Sul – UFMS como requisito paraobtenção do título de Especialista em DireitoLegislativo. Orientador: Prof. ALEXANDREPAIVA DAMASCENO.

Sumário

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çar, com rigor teórico, os dois assuntos, masantes de localizar os princípios comuns queorientam a ambos na defesa da democraciae da igualdade de direitos.

O notório conceito de democracia servi-rá de arcabouço para esse levantamento,pois a idéia é desvendar como se dá a con-cretização do direito à informação, con-siderando-se este como direito fundamen-tal e um dos pilares da democratização deuma sociedade.

Atualmente, são vários os instrumentosreconhecidamente capazes de promoveruma coletividade justa e democrática. O Di-reito e a Comunicação Social, neste cenário,destacam-se pela posição que ocupam e de-sempenham na defesa dos Direitos Huma-nos. Consciente desse potencial é que o tra-balho irá reafirmar, teoricamente, os dadosque comprovam o poder da informação e aresponsabilidade do Estado em assegurar efacilitar o acesso do homem ao direito de serinformado.

Por outro lado, é preciso expor de prontoque a análise a ser feita não tem possibilida-de de desvincular o panorama ideal de de-mocratização da informação das reais con-dições de acesso hoje verificadas no país.Dessa maneira, a exposição levará em con-ta que, apesar de constante dos diplomaslegais, em especial da Constituição Federal,o direito à informação, assim como os de-mais direitos fundamentais, estão distantesde serem concretizados.

No entanto, é possível supor que algu-mas ações vêm sendo empreendidas paraviabilizar a realização desses direitos, o quedemonstra a validade do presente levanta-mento. Assim, além de delinear as medidaslegislativas e as abordagens teóricas quesustentam o tema, a pesquisa quer verificarse, na prática, o direito à informação se efe-tiva no que diz respeito às atribuições dasinstituições e órgãos públicos. Para tanto,elegeu-se a estrutura de comunicação doSenado como modelo de avaliação.

Foram três os motivos principais queconduziram à escolha desse sistema para

ilustrar o trabalho: o fato de o Senado repre-sentar fração de um dos poderes de um Es-tado que se pretende democrático e trans-parente; o complexo sistema de comunica-ção que a instituição apresenta, apontadoentre os mais modernos do mundo, e a ca-rência de estudo sobre o papel da comuni-cação institucional no contexto da democra-tização da informação (em contrapartida aofarto material disponível relativo à atuaçãodos veículos de propriedade privada).

Ainda é razão para a opção ora adota-da, a consciência de que ao Senado cabe atarefa de legislar e de tomar decisões queafetam diretamente a vida do cidadão, entreelas as normas do direito. Assim, a institui-ção é, ao mesmo tempo, para esse levanta-mento, provedora de informação e instru-mento de definição das leis que asseguramo direito à informação.

A pesquisa se justifica porque ao se apre-ender o mecanismo em que o direito à infor-mação é aplicado na atuação dos veículosde comunicação do Senado, será possível aobtenção, concomitantemente, de duas res-postas para os seguintes questionamentos:o Estado, representado pelo Senado, estácumprindo o seu dever de fornecer informa-ção? O indivíduo, inserido em condiçõescoerentes com a realidade social do país,exerce seu direito de ser informado pelo Es-tado?

Não é pretensão descobrir se a informa-ção sobre a atividade legislativa realmenteatinge o cidadão por meio dos veículos decomunicação do Senado. Para tal fim, seri-am necessários o aprofundamento da pes-quisa e a utilização de metodologia capa-zes de monitorar as formas de acesso ao ve-ículo, comparando os dados com os deoutros veículos.

O que se vislumbra é a possibilidade de,feito um recorte da atividade de comunica-ção do Senado, com a escolha de um veículoespecífico, identificar se as condições emque a informação é transmitida estão coe-rentes com o objetivo de prover conhecimentoao cidadão, permitindo, ao final, que esse

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exerça seu direito à informação. Naturalmen-te, o trabalho deverá traduzir-se em umasondagem da atuação do sistema, permitin-do senão uma resposta definitiva sobre suaparticipação no quadro de realização dodireito à informação, ao menos a identifica-ção de sinais sobre a validade ou não daexistência desse modelo.

Nessa plataforma, a abordagem destacao caso da Agência de Notícias do Senadopara a análise em questão, pois o órgão di-vulga a atividade parlamentar utilizando ainternet como meio de veiculação. A esco-lha não é aleatória, já que é interesse tam-bém do trabalho perscrutar o diferencial deutilização dessa nova tecnologia com vis-tas à democratização do acesso à informa-ção. Daí porque o tema da inclusão digitalcomo fator de inclusão social perpassa apresente análise.

Dispostas as limitações, é mister escla-recer que a base teórica utilizada se detémaos dados históricos e conceituais do direi-to à informação, buscando encaixar a ativi-dade de comunicação do Senado aos pre-ceitos que compõem esse direito. Os dadosquantitativos, por sua vez, servem para sub-sidiar conclusões sobre a pergunta inicial:colaboram os veículos de comunicação ins-titucionais, em particular os do Senado, coma proposta de democratização do acesso àinformação pública? As estatísticas regis-tradas também serão utilizadas para proje-ções do quadro de alcance atual da Agênciade Notícias, não podendo, no entanto, pe-las limitações já expostas, esta análise avan-çar além de um cenário de indicações.

A partir do que prescreve o direito, é pos-sível dirimir dúvidas quanto ao modelo decomunicação implantado na instituição: seútil e produtivo; se sub-utilizado, se desco-nhecido, ou ainda, se desnecessário. Outrapossibilidade de resposta é quanto à poten-cialidade que detêm sistemas desta nature-za para abrir novos espaços democráticos,principalmente se considerados os mono-pólios na comunicação nacional e até mes-mo os oligopólios internacionais, alvos de

críticas pelo modelo de comunicação quehoje alimentam.

As respostas encontradas, de maneirageral, traçam o modelo em vigor, podendoser apontadas as vantagens e lacunas deatuação dos veículos de comunicação insti-tucional do país, e especificamente, do Se-nado. Ao mesmo tempo, as análises permi-tem que se trace um esboço sobre o esquemade comunicação ideal para a instituição,com vistas à colaboração no esforço de tor-nar pública e sujeita ao controle social, demaneira permanente, a atividade do Parla-mento.

2. Direitos Humanos Fundamentais

Ainda que a comunicação sempre tenhaestado atrelada à existência do homem, aconsciência social sobre a relevância dessarelação e sua conceituação parece haverpermanecido latente nas antigas culturasregistradas pela História. Apenas depois doinício dos debates sobre os direitos do ho-mem, o tema do direito à informação, decor-rente do exercício da comunicação, começoua ganhar forma e características próprias.

Assim, para situar o direito à informa-ção, objeto deste trabalho, no âmbito do di-reito, é necessário antes, que se proceda auma recapitulação da história dos direitoshumanos, com base nas opiniões dos vári-os estudiosos do assunto. Este exercício ser-virá também para clarear as posições ado-tadas pela pesquisa quanto às característi-cas e à origem da expressão utilizada paraidentificar esses direitos.

Para um dos mais dedicados autores dotema, Norberto Bobbio (1992, p. 04), os di-reitos do homem começaram a ser firmadosna formação do Estado moderno (2a metadedo séc. XVIII), quando teve início uma in-versão da relação entre o indivíduo e o Esta-do, passando o segundo a também ter obri-gações para com o primeiro, o que até entãonão ocorria, como bem ilustra a relação sú-dito/rei. A partir daí, sustenta ele, não maiso homem poderá viver sob um regime total

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de opressão, devendo dispor de um mínimode liberdades fundamentais. Começa a ocor-rer, na opinião de Bobbio, uma mudança doparadigma da visão da vida em sociedade,assumindo o indivíduo o papel principalda cena.

O autor não se detém em afirmar o cará-ter histórico e a ligação direta dos direitosdo homem com o contexto social em que es-tes surgem e se inserem.

Do ponto de vista teórico, sempredefendi e continuo a defender, forta-lecido por novos argumentos – que osdireitos do homem, por mais funda-mentais que sejam, são direitos histó-ricos, ou seja, nascidos em certas cir-cunstâncias, caracterizados por lutasem defesa de novas liberdades contravelhos poderes, e nascidos de modogradual, não todos de uma vez e nemde uma vez por todas. (BOBBIO, 1992.p. 5)

Da mesma maneira, o professor AluízioFerreira pontua que os direitos fundamen-tais, mais do que qualquer outro tipo de ins-tituto jurídico, “nascem, vivem, desapare-cem ou revitalizam-se amalgamados pelahistoricidade, já que mais intensamente re-fletem pretensões gerais e afetam interessescontraditórios” (1997, p. 63).

Pelo que se apreende, os fatos sociais,liderados pelos indivíduos e localizados notempo e no espaço, compõem a história econdicionam o surgimento dos direitos.Como para cada momento da trajetória hu-mana, novas necessidades e posturas polí-ticas vão surgindo, as leis que as configu-ram também são alteradas.

Já convencidos do teor histórico dos di-reitos humanos, é possível avançar na abor-dagem, analisando algumas das tantas ex-pressões utilizadas para cunhar essa cate-goria de direitos: absolutos, naturais ou fun-damentais. Qual seria a relação de tais ter-mos com as características pertinentes a es-ses direitos?

Para a maioria dos autores, poderiam serelencados como naturais todos aqueles di-

reitos que, como a própria denominação re-vela, dizem respeito à natureza humana esão inerentes à condição de ser humano. Ouainda, são aquelas garantias inquestioná-veis e inalienáveis de que já dispõe o ho-mem ao nascer: como o direito à vida, à li-berdade, à segurança. Definições similaressão encontradas para os chamados direitosabsolutos.

A designação de direitos fundamentais,por sua vez, está consensuada no meio dou-trinário como aquela que se refere aos direi-tos com características de primariedade eindispensabilidade, possuindo também ca-ráter essencial para a dignidade e existênci-as humanas. São também assim considera-dos os que preenchem as condições acima eainda estão positivados juridicamente, depreferência na Constituição, como é citadopor Afonso da Silva:

Direitos Fundamentais do homemconstitui a expressão mais adequa-da..., porque, além de referir-se a prin-cípios que resumem a concepção domundo e informam a ideologia políti-ca de cada ordenamento jurídico, éreservada para designar, no nível dodireito positivo, aquelas prerrogativase instituições que ele concretiza emgarantias de uma convivência digna,livre e igual de todas as pessoas.(1990, p. 159)

Quanto a essa última exigência, porém,não há unanimidade. Para Aluízio Ferrei-ra, por exemplo, não são apenas os direitosexplicitamente positivados pelas normasque podem ser tomados como fundamen-tais, mas todos aqueles que pertençam aoordenamento jurídico de uma comunidadepela natureza dos princípios que abarcam,“bem como porque universalmente reconhe-cidos como fundamentantes de todo e qual-quer Estado de direito” (1997, p. 31).

Coerentemente com o entendimento an-terior, de que os direitos do homem são con-dicionados pelas conjunturas sociais emque se inserem é que Bobbio acrescenta,avançando no assunto, que as noções de

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natureza e fundamentação dos direitos es-tariam sujeitas às mudanças necessárias aoatendimento de novas carências humanas.“O que parece fundamental numa épocahistórica e numa determinada civilizaçãonão é fundamental em outras épocas e emoutras culturas” (1992, p. 19).

Para reforçar seu conceito de relativis-mo dos direitos, Bobbio observa que mesmodiante de direitos ditos válidos em qualquersituação, a história registra momentos deconcorrência com outras garantias tambémalçadas a tal posição. Este é o caso, citadopelo autor, dos eventos de extinção da es-cravidão nos países, quando os direitosde liberdade (dos negros) e de propriedade(dos senhores de escravos), tomados comofundamentais, confrontaram-se (1992, p.20).

Mais radicalmente ainda, o filósofo ita-liano alerta que não é a designação empre-gada o dado mais relevante na definição dequais são os direitos básicos de um cidadãoperante o Estado ou outro cidadão, “massim qual o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenesdeclarações, eles sejam continuamente vio-lados” (1992, p. 25).

Para os fins deste trabalho e com basenas posições já registradas, a expressão “di-reitos fundamentais” será empregada, en-tendendo-se serem estes os direitos básicose imprescindíveis ao homem que devem sertutelados pelo Estado. A ressalva que se devefazer, no entanto, é de que a noção de fun-damentação aqui adotada é relativa e nãodesvinculada da realidade em que o homemestá inserido, sendo portanto mutável.

2.1 – A trajetória dos direitos

Os primeiros direitos constantes de de-clarações, denominados de direitos de pri-meira geração, assentavam na lei a garantiadas liberdades fundamentais do indivíduoe surgiram com o advento das doutrinas li-berais, ao final do século XVIII. Tinhamcomo marca a defesa da pessoa contra a ex-ploração desmedida do Estado. Os princi-

pais dessa lista são: o direito à vida, à liber-dade, à propriedade, à segurança.

O fervilhar das mudanças econômicas,políticas e de cunho religioso que culmina-ram com a Revolução Francesa em 1789 fo-ram geradoras do documento de instalaçãodesses direitos – a Declaração dos Direitosdo Homem e do Cidadão – aprovada nessemesmo ano. Não que inexistissem, até aquelemomento, outras leis de garantias de direi-tos, como a Declaração da Virginia, dos Es-tados Unidos da América, anterior mesmoàquela, já que redigida em 1776. Ocorre quena declaração francesa se identificam, pelaprimeira vez na história, a feição universa-lista dos preceitos e a mudança de paradig-ma na relação já citada entre o governante eo governado. O documento francês instaloua emancipação política do cidadão.

A segunda geração dos direitos mantémo homem como titular dos interesses, maslança a idéia do contrato social. Aí, não maissomente o indivíduo é visto como detentorde exigências perante o Estado, mas tam-bém a coletividade que ele integra. A possi-bilidade de participar em ações que promo-vam o bem-estar social e a igualdade entreos homens passa a ser requisitada, surgin-do reivindicações pelo trabalho, saúde, edu-cação. Para Bobbio (1992, p. 10), esses direi-tos, apesar de formalmente declarados, nun-ca saíram integralmente do papel. “Umacoisa é proclamar esse direito, outra é des-frutá-lo efetivamente”.

A Declaração Universal dos Direitos doHomem, aprovada pela Assembléia Geraldas Nações Unidas (ONU), na seqüência dofinal da II Guerra Mundial (1948), é o maisemblemático desses documentos, pois repre-senta um consenso mundial sobre um gru-po de valores e, dali em diante, passa a nor-tear as normas constitucionais dos paísessignatários.

Conforme Bobbio, uma terceira e até umaquarta geração de direitos já são discutidasna contemporaneidade, sob a ótica dos gru-pos sociais como titulares de direitos: à paz,ao desenvolvimento econômico, a um meio

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ambiente não poluído, entre outros. Para oautor, tais pretensões com características devalores de solidariedade, integram uma ca-tegoria “ainda excessivamente heterogêneae vaga” (1992, p. 6). Aluízio Ferreira (1997,p. 26) acrescenta, sobre o assunto, “que talfase ainda não é plenamente reconhecida”.

Vê-se, assim, que os diversos direitospodem estar inseridos tanto em uma quan-to em outra categoria dos direitos, ficando aconvicção, por hora, de que em algumas si-tuações o Estado é chamado a auxiliar egarantir ao homem e à sociedade o alcancedos mesmos, e, em outras, a não impedir ouobstaculizar sua concretização.

Neste ponto, a pergunta natural que sefaz é: como enquadrar, no contexto das con-ceituações descritas, o direito à informa-ção? A tarefa não é simples, pois de acordocom o teórico ou visão preponderante a ori-entar a análise, este é um direito possível deser enquadrado em todas as fases da histó-ria dos direitos humanos, pois como já ex-ternado, a humanidade nunca abdicou do atode comunicar-se. A tarefa também demanda,a priori, uma passagem por construções ana-líticas sobre o conceito de informação.

3 – O Homem, aInformação e a Democracia

Até aqui, empregou o estudo os termoscomunicação e informação praticamentecomo sinônimos. De maneira breve, será fei-ta uma abordagem sobre a etimologia daspalavras para justificar esse uso e avançarnos conceitos dessas denominações. Paraisso, vai se socorrer apenas do jornalistaAlberto Dines para o resumo. Informa eleque COMUNICAÇÃO vem do latim commu-nis, comum e communicare, tornar comum,compartilhar.

[...] A comunicação é interpessoale não intrapessoal. Consigo o própriohomem não se comunica, ele apenasse observa, reflete, devaneia...Para seter algo em comum com alguém é pre-ciso que haja este alguém. A comuni-

cação é portanto, coletiva a partir dasua essência. (1986, pp. 60-61)

Na busca da raiz do outro termo, “infor-mação”, o escritor esclarece que este se ori-gina igualmente do latim, in formatio, darforma, enformar, organizar. Para simplifi-car, fica o entendimento mais corriqueiro deque a comunicação é o processo pelo qual ohomem, como emissor, utilizando um meio(canal), atinge um receptor, para expressaralguma idéia, a mensagem ou informação.

Dois detalhes ainda são necessários parafechar a concepção. Um que lembra o cará-ter de interatividade da comunicação, poisos papéis dos personagens são reciproca-mente exercidos, ou seja, um agente ora éreceptor, ora é emissor. Outro aspecto, de-corrente do primeiro, é de que apesar de otermo informação melhor se adequar ao atode publicar, fornecer ou disponibilizar in-formação – objeto desta análise – a palavracomunicação não pode ser banida do cená-rio, já que a existência da informação nãopode prescindir do ato comunicativo.

Assim descrito, o processo de comuni-cação já sugere seu expressivo potencial derealizações e mudanças no tecido social. Sãonumerosas e inevitáveis também as defini-ções desse processo como intrínseco à de-mocracia e ao desenvolvimento das co-munidades.

A Declaração nascida com a RevoluçãoFrancesa – cujos ditames representavammanifestações contrárias ao poder autoritá-rio dos soberanos – já delineava essa rela-ção, pois previa, em seus artigos 10 e 11, aliberdade de opinião e de livre manifesta-ção das idéias. O direito individual de serinformado e de falar, como componentes domoderno Estado que nascia, se contrapu-nha à opressão das antigas autoridades.Bem assim defende Norberto Bobbio:

O poder autocrático dificulta o co-nhecimento da sociedade; o poderdemocrático, ao contrário, enquantoexercido pelo conjunto dos indivídu-os aos quais, uma das principais re-gras do regime democrático atribui o

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direito de participar direta ou indire-tamente da tomada de decisões coleti-vas, o exige. O cidadão deve ‘saber’,ou pelo menos, deve ser colocado emcondição de saber. (2000, p. 392)

Antonio Hohlfeldt (2000, p. 63) tambémsuscita a idéia ao assentar que o estudo dahistória das civilizações “evidencia umaíntima relação entre a existência de siste-mas comunicacionais e o auge do desenvol-vimento”. Ele avança ao colocar, em outrotrecho, que sem um eficiente sistema de co-municação, todo processo de desenvolvi-mento de uma comunidade “acaba por su-cumbir ou desaparecer” (2003, p. 97).

Continuando nesta linha, DesantesGuanter pode ser arrolado. Para ele, a co-municação é um dos meios de que deve dis-por o homem, a título de direito, para reali-zar sua essência humana. Ser informado,argumenta, é uma condição sine qua non paraque o homem participe da vida pública,como diz textualmente:

La relación directa entre informacióny democracia es tan evidente como la ra-zón inversa existente entre totalitarismo einformación. Ha podido, con razón, de-cirse que el totalitarismo no es otra cosaque la falta de información. El mundo lu-cha por una democratización total a la quesolamente se pude acceder a través de laparticipación... que se entiende por la in-tervención en las decisiones políticas y lacorrelativa assunción de responsabilidadpor ellas. (1974, p. 29).

Boa parte dos pensadores da matériaassume, na verdade, a concepção de quemais do que sua relevância para a interaçãodo ser com a realidade que o engloba e seupapel na realização da democracia, a infor-mação é uma necessidade preliminar parao atendimento de outras necessidades. Por-tanto, para a satisfação de cada carência dapessoa, tais como saúde, trabalho, seguran-ça, educação, ela necessita receber uma in-formação específica sobre aquele assunto.

Ao montar uma pirâmide de hierarqui-zação das necessidades, Aluízio Ferreira

(1997, p. 80) posiciona, na parte inferior, asnecessidades básicas, no meio, as necessi-dades de participação e, no topo, a necessi-dade de auto-realização. A necessidade deinformação, em sua visão, está na base, sen-do mesmo “a mais básica das necessidadeshumanas, constituindo-se num direito fun-damentalíssimo, porquanto pressuposto detodos os demais. “Deter informação é ques-tão de sobrevivência”, apregoa.

Também interessante é a observação fei-ta por Sánchez Ferriz (1974, pp. 80 a 82)quanto ao caráter de anterioridade da ne-cessidade do cidadão de ser informado.Para ela, esse é um aspecto tão imprescindí-vel da vida que serve como pré-requisitopara que o homem tenha consciência de suasoutras obrigações e direitos. Ela qualifica odireito à informação como “paladín de la cre-ación de uma opinión en favor de los otros dere-chos”.

3.1 – A informação e a liberdade

Com as características já listadas, não édifícil deduzir seu sentido libertador para ainformação. Conforme Sánchez Ferriz, “elrégimen de la información en una sociedad es unindicador de su grado de libertad” (1974, p. 82).Não pretende, este estudo, fazer a apologiada informação como mais qualificado ins-trumento na condução da liberdade e dapromoção do bem comum, pois que outrasinstâncias, como o próprio direito tambémpoderiam avocar tal título.

Esta pretensão, aliás, foi a base de umadas correntes mais notórias dos estudos dacomunicação, quando as teorias apontavama atividade como a panacéia da era contem-porânea. Mas, outras posições questiona-ram tal poder, sustentando que seria neces-sária a adoção de uma postura crítica dian-te dos fenômenos comunicacionais, vistoque eles, na verdade, seriam veículos dedominação e alienação da opinião pública.O tema, de momento, não é o foco de interes-se e será tratado mais adiante.

A posse da informação, assim, ou o di-reito de recebê-la, mereceu papel relevante

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nas declarações de direitos que priorizavamas liberdades públicas. Vai daí a ocorrênciacomum nesses textos de normas que asse-guram a liberdade de expressão, especial-mente da imprensa.

Os dois conceitos, inclusive, de direito àliberdade de expressão e de direito à infor-mação seguem atrelados porque, em sínte-se, como afirma Ferriz:

Estes dos derechos no quedan subor-dinados en principio, el uno al otro, aun-que por sus funciones sociales se hallenestrechamente vinculados en su ejercicio,viniendo a ser derechos o facultades com-pletamente reversibles, cada uno de ellos,y ambos entre s”. (1974, p. 113).

Existe pois, uma vinculação lógica entrea liberdade de imprensa, a formação da opi-nião pública e a participação política.

3.2 – O Estado e a informação

Se já caminhou esta análise no sentidode reconhecer a informação como um direi-to prioritário e fundamental da pessoa paraque ela possa exercer suas opções com li-berdade, é conseqüência admitir-se que,para tanto, há de corresponder um dever.No caso, um dever do Estado de tutelar agarantia do fornecimento de informações aocidadão.

Essa obrigação deve ser cumprida, aprincípio pelo reconhecimento do direito,depois por sua afirmação no ordenamentojurídico e, finalmente, pela geração das con-dições e meios de garantia para sua efetiva-ção.

Novamente Sánchez Ferriz pondera seresse direito um direito público, pelo fato deexigir a intervenção e, mais ainda, a presta-ção por parte do Estado. Para ela, esse é tam-bém um direito subjetivo, já que supõe a exis-tência de um poder jurídico, suscetível deinstitucionalização e regulação (1974, p. 77-tradução nossa).

Outra peculiaridade da relação Estado/informação diz respeito à obrigação que temo primeiro de prestar contas ao cidadão deseus atos. Para tanto, estudiosos defendem

que o Estado disponha de seus próprioscanais de informação.

3.3 – Direito à informação no tempo e no espaço

Entendido agora como direito funda-mental, cumpre a esta análise descrever combase em material preparado por Aluízio Fer-reira (1997, pp. 114 a 147), a trajetória dodireito à informação. Ele lista:

• (Inglaterra) 1215 – Magna Carta Liber-tatun – assegura a notificação prévia a pa-rentes sobre o casamento de herdeiros. É anoção preliminar desse direito.

• (Inglaterra) 1628 – Bill of Rights – pre-vê a obrigação de informar ao preso as ra-zões de sua detenção.

• (Inglaterra) 1689 – Bill of Rights – ga-rante a liberdade de expressão para os mem-bros do parlamento.

• (EUA) 1776 – Virginia’s Bill of Rights –A liberdade de expressão ganha positiva-ção jurídica no que concerne à liberdade deimprensa.

• (França) 1789 - Declaração Universal dosDireitos do Homem e do Cidadão – é unani-memente reconhecido como documento deinstalação dos direitos do homem. Serve tam-bém de marco para o direito à informação,pois além de assegurar a liberdade de impren-sa, prega a liberdade de pensamento e de co-municação entre os homens. É o primeiro comcaráter universalista dos direitos.

• (EUA) 1789 – 1a emenda da Constitui-ção Americana – proíbe que se proíba a li-berdade de palavra da imprensa.

• (ONU) 1948 – Declaração Universaldos Direitos Humanos – documento símbo-lo que orienta a defesa dos direitos em todoo mundo. Além de postular a liberdade deexpressão, de maneira original, a declara-ção reconhece a necessidade básica do ho-mem de ser informado. Sua abrangência é tãoreconhecida que alguns, como DesantesGuanter, apontam-no como suficiente, na fal-ta de outros diplomas nacionais, para garan-tir esse direito ao cidadão. “...la autoridadmoral de la Declaración en los países de laOrganización es indiscutible” (1974, p. 34).

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É válido citar o artigo em questão:Art. 19 – Todo homem tem direito

à liberdade de opinião e de expressão,direito esse que inclui a liberdade de,sem interferências, ter opiniões e deprocurar receber, e transmitir informa-ções e idéias por quaisquer meios eindependentemente de fronteiras.

• (Vaticano) 1963 – Pacem in Terris – do-cumento da Igreja Católica em que o PapaPaulo VI diz que o direito à informação éuniversal, inviolável e inalterável.

• (ONU) 1989 – Pacto de San Jose daCosta Rica – mais recente, essa carta confir-ma os propósitos das declarações anterio-res na defesa dos direitos básicos.

3.4 – O direito à informação na Constituição

O direito à informação não figura comoramo, mas como sub-ramo do direito civil,com assento constitucional. Alguns autorespostulam, inclusive, que o alcance da maté-ria é tão amplo, que a despeito de seu trata-mento na Constituição, mereceria a criaçãode uma disciplina específica no campo doDireito.

Essa nova realidade já captada de-sordenadamente embora – pelas Ci-ências da Informação e da Comunica-ção, as Ciências do Direito – em espe-cial, a Dogmática Jurídica – precisamtraduzir, a começar pela visão unifi-cada das diferentes modalidades deinformações e das respectivas regula-ções jurídicas, visando à formulaçãofutura de uma teoria geral do Direitoà Informação, sintetiza Aluízio Ferrei-ra sobre o assunto (1997, p. 148).

Também Grandinetti Carvalho reconhe-ce o crescente interesse jurídico da informa-ção com a sofisticação dos meios de comu-nicação. Para ele, “o progresso tecnológicotransformou a informação em um bem jurí-dico capaz não só de satisfazer a necessida-de do saber, como de influir decisivamenteno seu uso” (1999, p. 18). Ainda para o au-tor, o estudo sistemático do direito de infor-mação está incluso nas modernas tendênci-

as do Direito que tratam dos interesses difu-sos.

Tida como moderna no tocante ao reco-nhecimento dos direitos fundamentais doser humano, a Constituição Brasileira (CF1988) não destoa no tocante ao direito à in-formação, tratado como fundamental, tan-to no que se refere à liberdade de expressãoquanto ao direito do cidadão de ser infor-mado.

São vários os artigos relacionados aotema, sendo que o principal deles e de mai-or repercussão para este trabalho é o incisoXIV, do art. 5o do Capítulo I do Título dosDireitos e Garantias Fundamentais que as-sim reza: “É assegurado a todos o acesso àinformação e resguardado o sigilo da fonte,quando necessário ao exercício profissio-nal”. É necessário observar que apesar de oartigo falar em acesso, estão subentendidase asseguradas as faculdades do cidadão deprocurar e receber informações ao mesmotempo em que garante a todos, também, aliberdade de expressão.

Os outros preceitos relacionados são osseguintes:

• Art. 5o, inciso XIV, Cap. I, Título II, queassenta no texto a liberdade de manifesta-ção do pensamento;

• Art. 5o, inciso V, Cap. I, Título II, asse-gurando o direito de resposta.

Especificamente sobre a atividade decomunicação social, o texto dedica cincoartigos – 220 a 224 – em que descreve,entre outras, normas para a atividade jor-nalística e publicitária, a proibição dacensura, a regulação dos meios de comu-nicação.

No plano da informação que deve serprestada pelo Estado, vale citar o que prevêo habeas data, disposto no inciso LXXII, a e bdo Cap. I, Título II; o inciso XXXIII, da mes-ma seção, definindo o direito do cidadãoreceber informações de seu interesse da par-te dos órgãos públicos e ainda as regras quetratam do direito de petição (inciso XXIV,Cap. I, Tit.II) e o que descreve o princípio dapublicidade dos atos públicos.

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No plano internacional, o Brasil é sig-natário de todos os documentos assinados apartir da década de 50 e já citados neste texto.

4. O Senado e aComunicação Institucional

Cerne da presente exposição, o título quese inicia visa situar a relação entre o Sena-do, como instituição, e a atividade de comu-nicação voltada para a informação do cida-dão. Por meio de parâmetros teóricos e prag-máticos, é necessário descobrir se o exercí-cio da comunicação institucional pode sercaracterizado como elemento de cumpri-mento do direito de informação.

O passo inicial é definir o que é comuni-cação institucional. Para Aluízio Ferreira(1997, p. 236), recebe essa expressão todainformação “cuja fonte ou proveniência sejauma entidade ou órgão estatal, ou um enteprivado que realize atividade que tenha ca-ráter público”.

Além da definição, o autor faz uma aná-lise sobre a conveniência da existência des-te tipo de serviço de comunicação. Sob seuponto de vista, as mudanças sociais, econô-micas e políticas que impulsionaram a for-mação dos modernos Estados democráticosde direito provocaram novas situações quedevem ser encaradas como desafios. Sãoelas: o esgotamento do modelo político-re-presentativo baseado na distância entre re-presentantes/representados; o amadureci-mento da idéia de transparência e visibili-dade e a exigência de um Estado comuni-cante e não apenas comunicador de seusatos (1997, p. 237)

Quanto a este último requisito, inclusi-ve, o autor lembra que o Estado não precisaaguardar que o cidadão solicite informações,antes oferecendo-na antecipadamente a ele(cidadão). A atitude de comunicar, sustentaAluízio Ferreira, atende também ao deverde publicidade dos atos dos públicos e, ain-da, abre possibilidade para que os órgãosrealizem divulgação de suas próprias ativi-dades.

Decorrente deste pensamento, outro as-pecto levantado por alguns teóricos diz res-peito à hipótese que têm os veículos de in-formação institucional de “furarem” osmonopólios e oligopólios privados de co-municação e seus respectivos vínculos co-merciais. Sánchez Ferriz alerta para esserisco quando afirma que, “indudablemente,la información, y por tanto el derecho a ella, pu-ede peligrar com la comercialización de lamisma...descuidando de la función social, for-madora, instructura, que hemos señalado a laactividad informativa” (1974, p. 46). Grandi-netti afirma consenso ao citar a necessida-de de pluralismo das fontes de informaçãopara que se evite o monopólio da opiniãopública (1999, p. 138).

Segundo Desantes Guanter, a pluralida-de das fontes de informação é condição paraque o cidadão possa optar, por ele mesmo,por qual delas irá decidir-se. “en el momentoen que haya una sola información, o una solaopinión, o ideología, puede decirse que la facul-tad de recibir informaciones y opiniones no sefacilita plenamente” (1974, p. 80).

O que se deve tomar cuidado, e nesseaspecto concordam os teóricos, é para que opoder de informar de que dispõem os ór-gãos públicos não seja utilizado de manei-ra desvirtuada, ou nas palavras do próprioGuanter, “el poder de informar se ejerce enmuchos casos de um modo totalitário, monár-quico u oligárquico” (1974, p. 61).

Tal hipótese pode se concretizar, princi-palmente, quando os meios institucionaissão utilizados como canais de propagandapolítica governamental. O registro desse tipode ocorrência está esmiuçado nas análisessobre os períodos ditatoriais. Para citar umexemplo, no Brasil, o programa a Voz doBrasil, criado por Getúlio Vargas em 1938,com o nome de “A Hora do Brasil”, tinhaclaro esse propósito.

Os críticos desse tipo de apropriação damáquina pública para fins de auto-propa-ganda alegam, com razão, que ao contrárioda finalidade para o qual foram criados –de fornecer informação ao público – esses

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veículos acabam prestando um deserviço aopaís. É muito provável que venham daí asrestrições e desconfianças que a chamadagrande imprensa e a própria sociedade de-monstram com as assessorias de imprensados órgãos públicos.

Para Guanter, quando agem assim, es-sas instâncias acabam atuando como“membranas” que impedem que a fonte ori-ginal seja diretamente investigada, “forzan-do los datos, ocultando aquello que es ocultable,facilitando solamente aquella parte de la noticiao del comentário que le interesa” (1974, p. 77).

Este é o mais iminente risco que corremos veículos oficiais de comunicação – o deservir aos propósitos de manutenção nopoder de quem já o detém. É Bobbio quemprovoca com a frase incisiva: “O poder temuma irresistível tendência a esconder-se”(2000, p. 387). Para o escritor, ficar invisívelàqueles que pretende dominar concede se-gurança para quem almeja manter-se nopoder. Ele sustenta assim, a necessidade deo homem possuir instrumentos capazes deefetivar e proteger seus direitos, entre ele, ode ser informado.

As crescentes e constantes transforma-ções por que vêm passando as sociedadesimpõem ações eficazes e rápidas para aten-der novas demandas. Essa premência, alia-da à necessidade cada vez maior que tem ohomem de conhecer os fatos de maneira ver-dadeira, objetiva, completa e imparcial –para poder decidir conscientemente – indi-ca que todos os recursos, providos de lisu-ra, no sentido de democratizar o acesso àinformação, denotam validade.

Essa parece ser a razão pela qual Osval-do Leon defende, como item integrador deuma nova agenda social em comunicação,“o resgate e o incentivo à criação de meios decomunicação públicos de caráter cidadão”,desde que estes se encontrem sob um modelode controle da sociedade civil (2003, p. 411).

4.1 – A política e a notícia

Em interessante retrospectiva de Anto-nio Hohfeldt (2003, pp: 80-84) sobre as ori-

gens da comunicação nas civilizações, oautor observa que Roma (séc. I aC a I dC), aolado da Grécia (V aC) figuram como cultu-ras preocupadas com a integração do indi-víduo na comunidade pela cultura e infor-mação. O interesse pela manutenção do po-der também era motivo relevante, ao que sesabe, para a atenção ao tema.

A imagem da Agorá ateniense, lembraBobbio (2003, p. 387), é a primeira represen-tação da democracia, pois em assembléia aoar livre, os cidadãos se reuniam para ouviros oradores e expressar sua opinião erguen-do a mão. Segundo o autor, na mudança dademocracia direta para a democracia repre-sentativa, “desaparece a praça, mas não aexigência de ‘visibilidade’ do poder” quepassa a ser satisfeita de maneira diferente,com a publicidade das sessões do parlamen-to, com vistas à formação de uma opiniãopública através por meio do exercício da li-berdade de imprensa.

Certamente, foi com a visão desses me-canismos da política que o imperador ro-mano Júlio César, no ano de 69 aC instituiuas chamadas acta diurna, informa Hohnfel-dt (2003, p. 82), obrigando o Senado a regis-trar em documento o teor de todos os deba-tes que ocorriam nas sessões. Esses docu-mentos, diz ele, são prenúncios da atualnotícia jornalística, pois contêm os elemen-tos de fidedignidade, periodicidade, atuali-dade e relato dos acontecimentos.

As acta diurna eram registradas em papi-ros e colocadas nos muros do Senado, paraque a população tomasse conhecimento dapolítica romana. Depois eram copiadas eredistribuídas para as demais regiões doImpério. Esse seria, ao que parece, o modelosíntese daquele que foi denominado porBobbio, como “poder em público”:

Expressão sintética para indicartodos aqueles expedientes instituci-onais que obrigam os governantes atomarem as suas decisões às clarase permitem que os governados “ve-jam” como e onde os tomam (2003,p. 386).

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Tudo indica que sim, pois dando umsalto de quase dois mil anos na história,observa-se que, guardadas as devidas pro-porções, o modelo de distribuição instituci-onal das notícias sobre a atividade políticasegue os mesmo objetivos.

4.2 – A estrutura de comunicação do Senado

Apesar de não estar documentada demaneira sistematizada, a história da atua-ção dos veículos de comunicação do Sena-do nunca deixou de acontecer. Mesmo quede maneira incipiente ou tímida, o Congres-so sempre cuidou de registrar as ações dapolítica e legislativas que aconteciam, ain-da que sob o formato de atas.

Aparentemente, as atitudes nesta áreaanteriores ao processo de redemocratizaçãodo país, se não eram de impedimento doacesso do cidadão às informações, tampou-co denotavam interesse particular pelo as-sunto, em uma atitude de maior passivida-de frente à necessidade.

Por coerência ou coincidência, a partirda promulgação da Constituição de 1988,novas ações, aí mais ativas, no sentido dedemocratizar a notícia legislativa foram to-madas. Uma delas foi a realização do pri-meiro concurso público para jornalistas daCasa, em 1989.

Os 38 novos funcionários já empossa-dos prepararam um plano de reestrutura-ção do sistema de comunicação do Senado,com o aval do então presidente, senador JoséSarney. Assim, a partir de 1993, foram inici-adas as ações de remodelação daquela es-trutura, visando o atendimento das no-vas demandas por informações sobre o Le-gislativo. Também era motivo de preocupa-ção o escasso espaço, na mídia, destinadoàs atividades desse Poder.

O primeiro veículo a ser criado foi a Agên-cia Senado, depois a Rádio, o Jornal e, final-mente a TV Senado. Todas ainda sob a for-ma de núcleos de produção. A Agência e aRádio distribuíam material de divulgaçãopara o agendamento dos demais veículosde comunicação e para a Radiobrás.

Com a aprovação da regulamentação de-finitiva da TV à Cabo, em 1995, e o incremen-to das redes de computadores, especialmen-te a Internet, os avanços na área foram acele-rados. A reestruturação do sistema, transfor-mando os núcleos em subsecretarias foi ofi-cializada com a Resolução no 9 de 1997.

Hoje, o complexo de comunicação funci-ona com a seguinte estrutura básica:

• Agência Senado: fornece material paraveículos do interior por meio de listas deassinaturas e disponibiliza, na Internet,matérias e notas em tempo real de todas asatividades legislativas dos senadores;

• Jornal do Senado: em impressão coloridadesde 2003, tem uma tiragem de 40 mil exem-plares e é distribuído para todos os órgãospúblicos das três instâncias de poder e paraentidades da sociedade civil organizada.

• Rádio Senado: funciona desde 1997, for-necendo matérias por Ondas Curtas (OC)para as regiões Centro-Oeste, Norte e Nor-deste. Em Freqüência Modulada (FM) atin-ge um raio de até 150 quilômetros de Brasí-lia e transmite notícias e programação cul-tural para 300 emissoras do país.

• TV Senado: Com tecnologia de trans-missão digital, transmite sua programaçãovia cabo ou via satélite (para quem possuiantena parabólica). Segundo estimativas, dopróprio veículo, atinge cerca de 12 milhõesde pessoas.

• Serviço de Relações Públicas : coordena aCentral 0800 – A Voz do Cidadão, criadoem 1997 para atender sugestões, críticas eopiniões dos eleitores. Recebe cerca de 150mil ligações anuais.

O Sistema de Comunicação do Senado éo mais moderno dos parlamentos da Amé-rica do Sul e um dos melhores do mundo etem o propósito de prover o Senado de umcanal próprio de comunicação. Além dasatividades comuns aos demais meios decomunicação, deve realizar uma coberturacompleta das atividades da instituição, como diferencial de ser obrigado a distribuir, demaneira equânime, o espaço noticioso a to-dos os 81 senadores, sem distinção quanto

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ao estado que representam, região de ori-gem ou filiação partidária.

5. A Agência Senado: um Estudo de Caso

Inserida na estrutura de comunicação doSenado, a Agência de Notícias foi escolhidapara ilustrar esta análise por utilizar hoje,como seu principal ambiente de veiculação,a rede mundial de computadores, conhecidacomo Internet. A instantaneidade da trans-missão, por sua vez, é o dado mais relevanteno contexto da atuação deste veículo.

O funcionamento da Agência pode serresumido pela cobertura por parte dos re-pórteres, dos eventos de cunho institucio-nal que ocorrem no Senado, visto que os acon-tecimentos político-partidários não recebemcobertura desses veículos. Matérias com umamédia de 30 linhas são redigidas e disponi-bilizadas na rede momentos após o evento.A linguagem deve ser direta e os repórterestambém têm a incumbência de explicar ostermos legislativos não comuns ao público.

Esse serviço também cuida de fazer o re-gistro fotográfico e a produção de notas cur-tas (entre 5 e 10 linhas), chamadas de notasde tempo real. Esse serviço permite que apessoa possa acompanhar votações, discur-sos, debates quase simultaneamente ao acon-tecimento. Ainda são realizadas matériasespeciais sobre projetos em análise pela ins-tituição. Todo o material diário da Agênciaé utilizado, após edição, para a elaboraçãodo Jornal do Senado.

De acordo com o último relatório de ati-vidades da Agência Senado, referente ao anode 2003, foram produzidas e publicadas8.175 matérias, 35.325 notas para a confec-ção de agendas e processadas 79.429 fotosno laboratório digital do próprio órgão, dasquais 23.959 foram retrabalhadas e dispo-nibilizadas na rede.

5.1 – A Agência Senado na Internet

Para essa etapa do levantamento, a bus-ca que se operou visando à demonstraçãoestatística do uso dos serviços prestados

pela Agência de Notícias por meio da Inter-net utilizou duas ferramentas de pesquisa:o portal de buscas Google e o programa We-btrends - que coleta indicadores das cone-xões na Internet, configurado para identifi-car tráfego específico nas páginas virtuaisdo Senado Federal.

Os dados do Google são relativos às pá-ginas da Internet atualizadas até março de2004. Já os dados do programa Webtrendssão referentes ao primeiro semestre de 2001,até quando o programa foi utilizado pela ins-tituição. Não integram a utilização dessasferramentas os dados que apontam o núme-ro de acessos em 2002, obtidos no contadorde acessos do próprio servidor do Senado.

Assim, em 2002, a página do Senado re-cebeu 6.673.149 acessos, enquanto a pági-na da Agência recebeu 773.781 desse total.Em 2003, a Agência teve um total de1.266.520 acessos, que mostra um cresci-mento de cerca de 80% nos números do anoanterior.

No Google os dados obtidos são os se-guintes:

• Existe, apenas neste buscador, o regis-tro de nove sites que mantêm link, ou pontei-ro constante para a página da Agência Se-nado. São eles: Observatório da Imprensa,Maxpress, Embaixada do Peru no Brasil,Associação Brasileira de Municípios, Agên-cia Brasil, a Contingência (site de notíciasmilitares), Assembléia Legislativa do Esta-do do Acre, Jornal Correio Popular de Ron-dônia e Contas Municipais de Pernambuco;

• Foram localizados, no decorrer de umano, 189 registros de citações da fonte “Agên-cia Senado” em outros servidores da Inter-net. A título de comparação, foram consta-tados 439 registros para a Agência Folha e1.274 para a Agência Estado, ambas empre-sas privadas. A observação neste dado dizrespeito ao fato de que existem sites que uti-lizam as matérias, mas não dão crédito àsfontes;

• Quatro agências de notícias de um to-tal de dez pesquisadas mencionam comofonte da informação veiculada a Agência do

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Senado. São elas: o Globo, o JB on line, aRadiobrás e a Agência de Notícias dos Di-reitos da Infância (Andi);

• De 21 partidos políticos com site dis-ponível, três citam notícias com origem naAgência. São eles: o Partido dos Trabalha-dores (PT), o Partido do Movimento Demo-crático Brasileiro (PMDB) e o Partido da So-cial Democracia Brasileira (PSDB);

• De cinco grandes provedores de notíci-as da Internet, dois registram o uso da Agên-cia Senado como fonte: o UOL e o Terra;

• No total, esse buscador encontrou6.880 citações da Agência Senado, aí inclu-ídas as visitas originadas no âmbito do pró-prio Senado.

No Webtrends:Dentro do servidor de páginas virtuais

do Senado Federal existe uma separação daspáginas por pastas que, por sua vez, corres-ponde a um tipo específico de serviço. Du-rante o mês de junho/2001, as quatro pas-tas com maior número de acessos são as se-guintes:

1 - www/web (a página principal do Se-nado); 2 - www/web/secs/defa/imagens(fotos produzidas pela Agência ); 3 – www/bdtextual (pesquisa de legislação) e 4 –www/agencia (página da Agência). Estegrupo contabiliza 68% do total de visitas,assim distribuídos: 26%, 20%, 16% e 6%, res-pectivamente, do volume de acessos (hits).Os outros 32% estão distribuídos nas 21pastas restantes.

2 – Do total de 25 pastas de armazena-mento (diretórios) de páginas virtuais, dezoferecem páginas de notícias da Agência Se-nado.

6 – A Mídia Eletrônica e aDemocratização da Informação

Enquanto os teóricos das diferentes cor-rentes da comunicação debatiam as poten-cialidades e limitações da comunicaçãocomo instrumento de democratização, o fe-nômeno das mídias digitais “atropelou” asanálises, exigindo dos pensadores do tema

um esforço de visualização do cenário pre-sente e futuro.

Antes de tentar apreender aspectos des-sa nova realidade, na qual se insere o servi-ço da Agência Senado, este texto irá utili-zar-se de resumo preparado pelo professorVenício Lima quanto aos principais estu-dos sobre o impacto da mídia eletrônica nasociedade (1996, pp. 200 e 201).

A síntese descreve que na década de 50,as atenções da área estavam voltadas paraas questões profissionais da atividade jor-nalística e para as possibilidades da co-municação no campo do marketing. A refe-rência teórica era o behaviorismo de origemnorte-americana.

A problemática do desenvolvimento dospaíses e a participação da comunicação nes-te contexto passam a ser o foco das pesqui-sas da área na década de 60. A informação éestudada como instrumento de persuasão,não na linha do marketing, mas como “va-riável explicativa da modernização”.

Na década de 70, com as transmissõestelevisivas, o quadro de repressão política,a censura e a internacionalização da econo-mia, os estudos da chamada Escola deFrankfurt, que apontam a mídia como maisum produto da indústria cultural, nortea-ram os debates do setor. Nessa época sur-gem também as ponderações da UNESCOsobre o fluxo da notícia. Segundo essas pes-quisas, as relações de dominação econômi-ca no eixo Norte-Sul se reproduziam no cam-po cultural e na comunicação.

Desse ponto em diante, entrando peladécada de 90, o assunto tornou-se recorren-te, às vezes sob o formato de discussõesquanto às estruturas empresariais e, em ou-tras situações, pela ótica da regulamenta-ção dos serviços ou ainda sobre as políticaspúblicas de comunicação.

Segundo Antonio Hohlfeldt (2003, p. 96),com as novas conquistas tecnológicas, re-tornou-se, de certo modo, à condição da co-munidade grega no campo da comunicação.“Tornamo-nos, uma vez mais, para usarmosa expressão de Marshall McLuhan, uma al-

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deia global (1969)”. Expressão sugerida pararetratar situação em que os meios de comu-nicação ficariam tão completos e complexos,como a Internet, a ponto de reduzir ou anu-lar as distâncias mundiais que separam osindivíduos.

Também com uma visão positiva, Gran-dinetti (1999, pp. 3 e 4) sugere que apesardos riscos de isolamento que corre o homempelo uso excessivo do computador, a Inter-net tem condições de contribuir decisiva-mente para a democratização da informa-ção. “Pois a rede não é de ninguém; nin-guém a tutela; ninguém a gerencia. Ela é umpatrimônio da sociedade cosmopolita quepermitirá ao cidadão participar, de seu com-putador, das decisões governamentais”.

Ciberdemocracia e ciberespaço são duasoutras expressões para denominar um pa-norama de elevada utilização da rede ele-trônica e foram sugeridas por Pierre Lévy(2003, pp. 367 a 383). Para este autor, o nas-cimento da Internet, ao final do século pas-sado, abriu possibilidades reais de inclu-são dos indivíduos nos espaços de conheci-mento e decisão. Ele vislumbra um cenárioem que o eleitor não apenas terá condiçãode se expressar, mas também de acessar in-formações, em um quadro de transparênciae universalidade das esferas públicas.

Para Dênis de Moraes (2003, pp. 210 e211), o baixo custo e a rapidez da tecnologiadigital favorecem a “difusão extensiva deinformações e conhecimentos”. Ele cita avantagem da ausência de filtros ideológi-cos e de controles presentes na mídia con-vencional. Capacidade de disseminação deidéias contra-hegemônicas, pluralismo po-lítico-cultural e a conexão entre a TV e a In-ternet também são enumeradas, por Leonar-do Trevisan (2001, p. 324), como potenciali-dades desse meio.

Manuel Castells (2003, p. 255), por suavez, vai ainda mais longe. “A Internet é otecido de nossas vidas neste momento... Éum meio para tudo...É mais do que uma tec-nologia. É um meio de comunicação, de in-teração e de organização social”. Conforme

prevê, entre as mudanças carreadas pelo usoda rede estará a instituição de mecanismosde interatividade entre governantes e gover-nador. Ele lista algumas previsões que dãoconta de que entre 2005 e 2007, o planetachegará a 2 bilhões de usuários da rede, nomínimo, o que representa um terço da po-pulação mundial.

6.1 – O desafio da exclusão digital

Uma outra linha de raciocínio tambémtem significativo número de defensores. Paraeste grupo não há porque a sociedade nu-trir ilusões sobre os poderes da Internet comoferramenta apoteótica de democratização dainformação. O motivo para a descrença é achamada exclusão digital.

Dênis de Moraes (2003, p. 211) é um dosque, apesar de acreditar nas vantagens, aler-ta para a infoexclusão que “restringe o aces-so dos países periféricos”. O escritor obser-va também que o forte interesse das corpo-rações sobre o ciberespaço da Internet ame-aça as possibilidades democratizantes darede, chamando a atenção para o fato de omercado global de mídia pertencer a cercade oito grandes conglomerados de comuni-cação (2001, pp. 14 a 19). De acordo com oautor, a única saída para se evitar que osgigantes dessa indústria dominem tambémesse cenário seria a implementação de ins-trumentos de fiscalização e de regulação daatividade.

Em advertência ainda mais contunden-te, Ladislau Dowbor (2001, p. 58) lembra quemetade da população da terra ainda viveno campo, com um bilhão dos seis bilhõesde habitantes analfabetos e apenas 15% doshabitantes do planeta controlando 80% doPib mundial. “Bilhões de pessoas foram re-duzidas a um nível de pobreza que torna aInternet e semelhantes uma piada”, enfati-za Dowbor que não descarta, porém a idéiade que novas tecnologias, capazes de trans-mitir informação mais generalizada, pos-sam atuar “como ferramenta poderosa parafacilitar a reconversão social que se pre-para”.

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Pesquisador da área, Murilo César Ra-mos (2000, pp. 91 a 193) adverte para as di-ficuldades de regulação das modernas prá-ticas de comunicação, mas não retira delas,destacadamente da TV por assinatura e daInternet, as possibilidades que encerram,especialmente para barrar a ação dos oligo-pólios de comunicação. A seu ver, a forma-ção das esferas públicas depende de doisfatores: a autonomia do cidadão gerada pormecanismos democráticos de base, e, o am-paro dos instrumentos de comunicação einformação a essa autonomia.

A maneira como o governo brasileiroaplica o Fundo de Universalização dos Ser-viços de Telecomunicações (Fust) é, para opesquisador Aurélio Galvão, um demons-trativo do pouco interesse do Estado em in-vestir em políticas de inserção da popula-ção nos cenários informatizados. Segundoele, o fundo que foi criado para combater aexclusão digital, já recolheu mais de R$ 2bilhões nos últimos dois anos. O Fust, po-rém, adverte Aurélio, que arrecada 1% dofaturamento bruto das empresas de teleco-municações, não está cumprindo a finali-dade para o qual foi criado, pois cerca de 13mil escolas públicas – que estão entre osbeneficiários do fundo – ainda não possu-em laboratórios de informática com acessoà Internet.

6.1.1 Dados da exclusão

Alguns dados quantitativos guardamrelação com o levantamento porque delinei-am o quadro de ação e inserção da Internetna sociedade. Eis os principais:

• De acordo com a Divisão de Estatísticada Organização das Nações Unidas (ONU),o Brasil saltou de 4,66% de usuários da In-ternet em 2001 para 8,22% em 2002;

• Relatório do Centro de Pesquisas Soci-ais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ela-borado em 2003, destaca dados colhidos peloInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE) que apontam 12,46% da populaçãode 178 milhões de pessoas com computadorem domicílio e, 8,31% com acesso à Internet;

• Conforme o Comitê Gestor da Internetno Brasil, o país ocupa a oitava posiçãomundial, a terceira das Américas e primeirada América do Sul em número de hosts (pro-vedores de páginas na Internet) com 3.163.349páginas;

• O relógio da inclusão digital, controla-do pelo Comitê para Democratização da In-formática (CDI) indicava em janeiro de 2004que 30.890.852 brasileiros têm acesso à in-formática. Falta a inclusão de mais de 147milhões;

• Também de acordo com o CDI, dos seis(6) mil municípios brasileiros, somente 800possuem condições para acessar a Internet;

• Segundo dados divulgados em Gene-bra, no Fórum Econômico Mundial de 2003,o Brasil caiu de 29a para 39a posição noranking dos países mais bem preparadospara os benefícios da tecnologia.

7. O Direito Inquestionável

A comunicação é marca indelével dassociedades contemporâneas e não existehipótese de a humanidade retroceder nestaprática. Apenas esta frase é suficiente paraindicar o grau de responsabilidade que duaspoderosas ferramentas dos Estados democrá-ticos, o Direito e a Comunicação, têm no sen-tido de garantir o acesso à informação do ci-dadão e o livre exercício da comunicação.

A análise aqui desenvolvida provou queexistem bases teóricas e legais, com desta-que na ordem constitucional, suficientespara assegurar a legitimidade do direito àinformação. O país não dispõe, no entanto,apesar do já elaborado sistema de comuni-cação que abriga, de mecanismos de garan-tia de efetivação desse direito.

Mesmo com a sofisticação das tecnolo-gias, ainda é elevado o nível de pobreza eexclusão de significativa parte da popula-ção nesse novo cenário. Medidas que possi-bilitem o crescimento do número de fontesde informação e uma verdadeira predispo-sição do Estado em cumprir seu dever defornecer informações de maneira transpa-

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rente e dinâmica demonstram ser o cami-nho para a democratização do acesso docidadão à informação.

Neste panorama, os serviços de comuni-cação do Senado cumprem a função de im-primir visibilidade às atividades do Legis-lativo, ao mesmo tempo em que participamdeste esforço pela democratização da infor-mação. Mesmo a Agência de Notícias, namedida das condições que dispõe, já quedepende do uso da Internet para fazer che-gar notícia ao cidadão, mostrou potencialde crescimento.

São recomendáveis o estudo mais apro-fundado e o acompanhamento do alcancedo serviço de comunicação do Senado, as-sim também como a criação de mecanismosde monitoração da atividade jornalísticadesta estrutura, talvez sob o formato de con-trole social ou de avaliação do próprio Con-selho de Comunicação Social, que funcionano âmbito do órgão. Outro encaminhamen-to deve guiar-se para a elaboração de medi-das legais capazes de elevar os números dainclusão digital, de maneira a que a infor-mação legislativa chegue a um número cres-cente de cidadãos. Ainda, é apropriado oplanejamento de outras ferramentas de in-teratividade, com base no setor de comuni-cação social, entre o cidadão e os parla-mentares, visando ao esclarecimento dasatividades do Senado.

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O Poder Legislativo no Brasil, desarma-do e de ingerência limitada sobre os recur-sos orçamentários, sempre foi rigoroso nafiscalização das atividades dos demais po-deres e da aplicação correta dos recursospúblicos. As primeiras comissões de inves-tigação foram criadas no Congresso em 1823,antes mesmo da vigência da primeira CartaConstitucional.

Embora não previstas expressamente nasprimeiras Constituições, as investigaçõesparlamentares nunca foram proibidas. Osdeputados e senadores fiscalizavam o fun-cionamento dos órgãos públicos sem regraspreestabelecidas e tendo por base os proce-dimentos do Poder Judiciário e das polícias.

Os constituintes de 1934 previram, pelaprimeira vez no texto da Carta Magna, a fi-gura das comissões parlamentares de inqué-rito. A partir daí, as CPIs ganharam statusjurídico. Com exceção da Polaca, a Consti-tuição de 1937 do Estado Novo, todas asoutras Constituições brasileiras contempla-ram o direito dos deputados e senadores decriarem comissões parlamentares de inqué-rito para investigar fato determinado.

A Comissão Parlamentar de Inquérito nasConstituições brasileiras

Carlos Homero Vieira Nina

1. A Constituição do Império – 1824. 2. AConstituição da República de 1891. 3. A Cons-tituição de 1934. 4. A Constituição de 1937 – OEstado Novo. 5. A liberal Constituição de 1946.6. A Constituição do Brasil de 1967. 7. A Emen-da Constitucional no 1, de 1969. 8. A Constitui-ção Cidadã de 1988. 9. Conclusão.

Sumário

Carlos Homero Vieira Nina é servidor doSenado Federal e advogado.

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Na Carta de 1988, as CPIs foram equipa-radas aos órgãos do Poder Judiciário, ga-nhando poderes similares aos de tribunais,entre eles o de quebrar sigilos bancários, te-lefônicos e fiscais e o de se deslocar a qual-quer ponto do território nacional ou mesmono exterior em diligências e investigações.

A fiscalização de autoridades e a inves-tigação de fatos relevantes por comissõesparlamentares evoluiu ao longo da históriajurídico-constitucional do Brasil. Os pode-res dessas comissões foram ampliados su-cessivamente, na proporção em que a de-mocracia se consolidou no Brasil e que opróprio Congresso se fortaleceu como po-der de Estado.

1. A Constituição do Império – 1824A Constituição de 1824 era omissa no

que se refere às comissões parlamentares deinquérito, mas não as proibia. Tanto que al-gumas foram criadas, à época, com o nomede comissões auxiliares.

Relata Erival da Silva Oliveira (1999, p.23), escudado no voto do Ministro PauloBrossard, proferido no HC n. 71.039 – STF:

“sob a égide desta Constituição há no-tícia de que houve inquéritos parla-mentares sobre questões comerciais,industriais, agrícolas, financeiras eoutras. Entre outros casos, a comissãoparlamentar nomeada em 24 de outu-bro de 1882 para instaurar inquéritosobre as condições do comércio, danossa indústria fabril e do serviço dasnossas alfândegas, que apresentou in-formações em 30 de agosto de 1883.”

2. A Constituição da República de 1891A Constituição de 1891 não continha dis-

positivo sobre o inquérito parlamentar. Pre-valecia a interpretação de que o silêncio dotexto constitucional não impedia que qual-quer das Casas do Congresso realizasse in-vestigações (SAMPAIO, 1964, p. 21). A faltade previsão do instituto da comissão parla-mentar de inquérito, durante a Primeira

República (1891-1930), não impediu a in-vestigação parlamentar como relata JoséAlfredo de Oliveira Baracho (2001, p. 104)quando diz que, “apesar da ausência depreceito constitucional, foram propostos naCâmara 19 (dezenove) inquéritos parlamen-tares”.

Das várias comissões que foram institu-ídas no período de vigência da Constitui-ção de 1891, nenhuma delas, no dizer deOvídio Rocha Barros Sandoval (2001, p. 24),“levou a termo a sua tarefa, pois ainda nãotinham, os nossos parlamentares, plenaconsciência da função delas”.

Confirmando a inoperância da investi-gação parlamentar no período, FranciscoRodrigues da Silva (2000, p. 31), apoiadono dizer de Aguinaldo Costa Pereira (1948)em seu livro comissões parlamentares de in-quérito, registra:

“Na Primeira República, as inves-tigações do Congresso: por vezes esserecurso foi empregado, mas debilmen-te, nunca atingindo as mais altas au-toridades; nem mesmo as autoridadesmenos poderosas; o Executivo estavainteiramente resguardado de qualquerinquérito compulsório por parte doLegislativo.”

Nota-se aqui a força do instituto da in-vestigação parlamentar. Nem o silêncioconstitucional sobre o tema, nem a falta deprevisão legal impediram o Legislativo derealizar investigações. Ademais, sobre o fatode as altas autoridades não serem objeto dainvestigação, não é demais lembrar que afalta de previsão legal do instituto favoreciaàqueles que se contrapunham.

3. A Constituição de 1934Com a Constituição de 34, o instituto das

comissões parlamentares de inquérito é ele-vado ao patamar constitucional1.

Alguns aspectos referentes às CPIs de-vem ser mencionados. O primeiro é que, deacordo com esta Carta, apenas à Câmara dosDeputados era facultada a criação dessas

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comissões, não havendo previsão de tal pos-sibilidade para o Senado Federal. O segun-do ponto, de acordo com Luiz Carlos dosSantos Gonçalves (2001, p. 34), é que “o per-fil destas Comissões de inquérito inauguratradição que será respeitada pelas demaisCartas Constitucionais, no que se refere ànecessidade de fato determinado justifica-dor da apuração e à necessidade de requeri-mento de um terço dos membros da casa con-gressual para a proposição da instauraçãodas Comissões. Sua oportuna menção àsregras processuais penais, como conduto-ras dos inquéritos, na medida de previsãoregimental, não fez, porém, escola”.

Das seis propostas de CPIs apresenta-das no período da Constituição de 34, ape-nas duas foram conclusas, segundo o levan-tamento de Aguinaldo Costa Pereira (1948,p. 177). Conforme Nelson de Souza Sampaio(1964, p. 24), “a curta vida da Constituiçãode 1934 não deu tempo para que nos habi-tuássemos às comissões parlamentares deinquérito”.

Na visão de Uadi Lammêgo Bulos (2001,p. 180), “os parlamentares da época talveznão tenham conseguido apreender, em todaa sua plenitude, o valor do novo instrumen-to de vigilância e controle”. O certo é que oconstituinte de 1934 tem o mérito de fazeringressar no plano constitucional, de ma-neira expressa e taxativa, o instituto das co-missões parlamentares de inquérito.

4. A Constituição de 1937– o Estado Novo

A Carta de 1937, de cunho ditatorial,conhecida como “polaca”, também nãoprevia a investigação parlamentar, emboranão faltem exemplos de constituiçõesautoritárias que abriguem esse instituto,como, entre outras, a “da URSS (art. 51), daBulgária (art. 28), da Hungria (art. 17), daRomênia (art. 58) e da China Comunista (art.35)” (2001, p. 182).

Observam Manoel Messias Peixinho eRicardo Guanabara (2001, p. 40):

“A Carta de 1937 registra mera-mente uma presença formal dos trêspoderes, uma vez que há, de fato, umahipertrofia do Poder Executivo e umaausência, também de fato, do Legisla-tivo, impedido de funcionar. No quese refere ao Judiciário, sua autonomiafora afrontada pela criação do Tribu-nal de Segurança Nacional, indicadopara o julgamento de crimes contra adefesa do Estado.”

Vivia-se o “Estado Novo”, período his-tórico no qual Getúlio Vargas dominava au-toritariamente o cenário político, tutelava ostrês poderes da República e não admitia in-terferência no Poder Executivo. Daí a au-sência do instituto da comissão parlamen-tar de inquérito no texto constitucional.

5. A liberal Constituição de 1946A Constituição liberal de 1946 reimplan-

ta o instituto das comissões parlamentaresde inquérito na ordem jurídica nacional,seguindo o modelo adotado pela Constitui-ção de 1934. Nascida após o término da Se-gunda Guerra Mundial, essa Constituiçãoreflete o clima democrático da época, queimpunha um novo contexto político ao país.A derrota de Hitler e Mussolini criou em todomundo, inclusive no Brasil, ambiente fran-camente favorável à ampliação das liberda-des democráticas.

Dentro desse espírito, ocorreram inova-ções com o instituto das CPIs: enquanto aCarta de 34 reportava-se a “fatos determi-nados”, no plural, o texto de 46 usa a ex-pressão no singular, “fato determinado”, eimpõe, também, a exigência da proporcio-nalidade partidária, que fez inaugurar, noâmbito do direito constitucional brasileiro,o princípio da colegialidade.

Uadi Lammêgo Bulos (2001, p. 183) in-forma que esse princípio veio ser aperfeiço-ado, mais tarde, pelo constituinte de 1967 eensina:

“Pelo princípio da colegialidade,as comissões parlamentares de inqué-rito sujeitam-se às regras da delibera-

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ção majoritária e da proporcionalida-de partidária.

Deliberação majoritária no senti-do de que uma CPI só poderá ser ins-taurada pela vontade da maioria deum terço, que se torna juridicamenterelevante.

Proporcionalidade partidária naacepção de que o direito das minoriasparlamentares numa CPI encontra-seplenamente assegurado pela repre-sentação proporcional dos partidosno Legislativo. Dessa forma, as mi-norias podem exercitar a prerrogati-va de requerer e ser ouvidas sobrediligências propostas ou efetuadas.Contribuem oferecendo soluções paraos problemas ligados ao interessepúblico.”

Outra importante inovação do textoconstitucional de 1946 é a autorização ex-pressa para que o Senado Federal possatambém instaurar CPIs 2.

Há que se destacar que, no período devigência da Constituição de 1946, foi apro-vada a Lei no 1579, de 18 de março de 1952,“que foi a primeira lei da história jurídicafederal brasileira a disciplinar as comissõesparlamentares de inquérito”(OLIVEIRA,1999, p. 30). Como conseqüência do resta-belecimento da presença constitucional dascomissões parlamentares de inquérito, talinstituto teve presença marcante na nossahistória política, no período de império daCarta de 46.

Estudo elaborado por Peixinho eGuanabara (2001, p. 44) mostra que 253(duzentas e cinqüenta e três) comissõesparlamentares de inquérito foram criadas,sendo 240 (duzentos e quarenta) pelaCâmara dos Deputados e 13 (treze) peloSenado Federal.

6. A Constituição do Brasil de 1967

Não obstante a supremacia do PoderExecutivo, como conseqüência do regime mi-litar implantado em 1964, a edição de novo

texto constitucional não reflete o quadro vi-vido no período, quando, além de inúmerascassações de mandatos parlamentares, sedeu o fechamento temporário do próprioCongresso Nacional.

A Constituição de 1967 traz de volta ahipertrofia do Poder Executivo. Mas, ape-sar de seu conteúdo centralizador, formal-mente não suprime os poderes da Câmara edo Senado para criar comissões parlamen-tares de inquérito, cuja previsão constavado artigo 39 do texto3.

A Carta de 67 não apenas confirma asCPIs como admite, pela primeira vez na his-tória política do país, a possibilidade de seinstalarem comissões mistas de inquérito,compostas por Senadores e Deputados Fe-derais. Outra inovação no mesmo texto é afixação de prazo certo para a investigaçãoparlamentar.

Erival da Silva Oliveira (1999, p. 32) es-clarece sobre as novidades inseridas no tex-to constitucional:

“A possibilidade das comissõesparlamentares de inquérito seremcompostas por Senadores e Deputa-dos Federais, em conjunto, tambémconhecidas por comissões mistas deinvestigação, era uma das aspiraçõespolíticas da época.

No que diz respeito ao ‘prazocerto’, os Constituintes confirmarama natureza temporária das comissõesparlamentares de inquérito, inclusive,perfilando-se ao previsto no § 2o doartigo 5o da Lei no 1579/52, que prevêo término da comissão com a sessãolegislativa em que tiver sido outor-gada, salvo deliberação da respectivaCâmara, que poderá prorrogá-ladentro da legislatura em curso.”

Bem ao contrário, o novo texto, apesarde centralizar poderes no Executivo, formal-mente não suprime a prerrogativa congres-sual de criar comissões de inquérito, re-gulamentando, inclusive, as comissões mis-tas, bem como a natureza temporária doinstituto.

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7. A Emenda Constitucionalno 1, de 1969

Após o afastamento do presidente Costae Silva, sob a vigência do Ato Institucionalnúmero 5, o Poder Executivo foi tomadopelos três ministros militares. A chamadajunta de governo fechou o Congresso Naci-onal e promoveu uma reforma constitucio-nal, de inspiração revolucionária, impondoao País a Emenda Constitucional no 1/69,considerada como a “Constituição daRepública Federativa do Brasil de 1969”. Am-pla e detalhista, a emenda foi na verdade umaConstituição e não uma emenda”(OLIVEIRA,1999, p. 32). Luiz Carlos dos Santos Gonçal-ves (2001, p. 35) concorda com tal conceito,ao explanar que “a Emenda Constitucionalno 1, de 17 de outubro de 1969, na verdade,uma nova Constituição, tamanhas a suaabrangência a as alterações procedidas notexto emendado...”.

No que se refere ao instituto das comis-sões parlamentares de inquérito, ela repete,no seu artigo 37, os preceitos da Constitui-ção de 1967. Inova, ao dificultar o compa-recimento de Ministros de Estado à Câmarae ao Senado e, também, ao limitar o núme-ro de CPIs simultâneas ao máximo decinco4.

Ao registrar as limitações impostas pelotexto da Emenda Constitucional no 1/69,Erival da Silva Oliveira (1999, p. 33) diz que:

“Pela sua simples leitura percebe-se o aumento da dificuldade para con-vocar um Ministro de Estado (auxili-ar do Poder Executivo), só sendo pos-sível com a deliberação da maioria daCasa Legislativa solicitante, o queantes não era necessário.

A Constituição de 1969, à épocadenominada de Emenda Constitucio-nal no 1, impôs outras limitações àsinvestigações parlamentares quantoao número de comissões de inquéritoe os seus deslocamentos.”

Embora autorizadas pelo texto constitu-cional em vigor, nenhuma CPI foi criada nos

chamados anos de chumbo. Não havia cli-ma propício para tal. Deputados e senado-res tinham sua atuação tolhida pela hiper-trofia do Poder Executivo. O Congresso fi-cou fechado durante meses. Dezenas demandatos parlamentares foram cassados,a imprensa estava sob censura e as ga-rantias constitucionais, suspensas. Nes-se tempo, não ocorreu a criação de nenhu-ma comissão parlamentar de inquérito,como informa Rodrigues da Silva (2000,p. 51):

“[...] seguindo a tradição anterior, tam-bém não há notícia de criação deComissão Parlamentar de Inquéritosobre fato determinado, sequer re-querimento formulado por partidospolíticos, embora, no último período,já existisse uma tendência social paraa instalação de um regime semi-democrático, que efetivamente seinstalou logo depois.”

A partir de 1974, o regime militar come-ça a dar os primeiros sinais de abertura po-lítica. A oposição elege 17 senadores e tomaposse o general Ernesto Geisel, considera-do um dos mais democratas do Exército, naPresidência da República. O Congresso serenova com o fortalecimento dos políticos eda atividade parlamentar. Em 78, é extintoo AI 5 e são restabelecidos o habeas corpus eas liberdades individuais.

Esses novos ares permitem a retomadadas CPIs e pelo menos duas Comissões Par-lamentares de Inquérito são instaladas, coma concordância do governo: a CPI das mul-tinacionais e a CPI do Acordo NuclearBrasil-Alemanha.

Peixinho e Guanabara (2001, p. 47-48)registram o que ocorreu no período:

“Entre 1969 e 1973, nenhuma co-missão parlamentar de inquérito foicriada no Senado e apenas uma foicriada na Câmara. Após 1974, o ritmode criação de investigações parlamen-tares foi retomado, sem, no entanto,jamais alcançar o ritmo e a intensida-de do período de 1946 a 1967.”

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8. A Constituição Cidadã de 1988

Com o fim do regime militar, 21 (vinte eum) anos após o golpe de 1964, tem-se aposse de um governo civil, com a sociedadeclamando por uma nova ordem constituci-onal, adequada aos novos tempos de liber-dade democrática. É convocada, então, aAssembléia Nacional Constituinte que iráescrever a Carta Constitucional de 1988.

O tratamento conferido pela Constitui-ção de 1988 ao dispositivo das comissõesparlamentares de inquérito fortalece a ativi-dade de fiscalização do Poder Legislativo,já que foi extraordinária a alteração intro-duzida no seu disciplinamento constitucio-nal.

Uadi Lammêgo Bulos (2001, p. 190), aoconstatar o fortalecimento do dispositivo,assim se pronuncia:

“Sem sombra de dúvida a discipli-na ampla do instituto aumentou a suadifusão entre nós, o que é positivo numprimeiro momento, embora venha cau-sando problemas na prática.

Agora as CPIs têm poderes instru-tórios, e os seus relatórios, para pro-duzir efeitos, não mais dependem daapreciação prévia do plenário dasCasas ou do Congresso Nacional,como era outrora.

O Diploma Político de 1988, por-tanto, prestigiou as comissões parla-mentares de inquérito, concebendo-ascomo formidáveis instrumentos decontrole do Poder Executivo.”

A mais recente Lei Fundamental inovoudando poderes de investigação própriosdas autoridades judiciais às comissões con-gressuais de inquérito, que não eram con-templados nos textos anteriores. “Esta ino-vação”, no dizer de Erival da Silva Oliveira(1999, p. 37), “ocasiona até o presente umasérie de dúvidas jurídicas que serão dirimi-das por decisões judiciais”. Ao discorrersobre o novo texto constitucional, especifi-camente sobre o artigo 585, que trata das co-missões parlamentares de inquérito, Luiz

Carlos dos Santos Gonçalves (2001, p. 35) en-sina as alterações ocorridas com o instituto:

“As inovações trazidas pelo arti-go mencionado da Carta de 1988 refe-rem-se à definição dos poderes de in-vestigação das Comissões e a necessi-dade de encaminhamento das conclu-sões alcançadas no inquérito para oMinistério Público, ‘se o caso’. Repro-duziu-se a possibilidade de instaura-ção das Comissões a partir do reque-rimento de um terço dos membros decada Casa Congressual, a exigênciade apuração de fato determinado e porprazo certo. Deixaram de ter sede cons-titucional a vedação de funcionamen-to de mais do que cinco Comissõesconcomitantemente, ‘salvo delibera-ção da maioria’ e a de custeio de via-gens acaso realizadas pelos parlamen-tares dentro das atividades do inqué-rito.”

Sob a égide da Constituição de 1988,pode-se destacar a criação de importantescomissões parlamentares de inquérito que,na ótica de Erival da Silva Oliveira (1999, p.36), seriam as seguintes:

“– Comissão Parlamentar Mista de In-quérito do PC Farias (1992) para apu-rar fatos contidos nas denúncias dosenhor Pedro Collor de Mello referen-tes às atividades do senhor PauloCésar Cavalcante Farias, ou seja, a li-gação de uma rede de corrupção den-tro do governo com Presidente daRepública Fernando Collor de Mello,que resultou no seu impeachment;– Comissão Parlamentar Mista de In-quérito do Orçamento (1993) para in-vestigar desvio de verba do Orçamen-to da União, que resultou na cassaçãode seis parlamentares e na renúnciade outros quatro;– Comissão Parlamentar de Inquéritodos Precatórios do Senado Federal(1997) para investigar prefeitos e go-vernadores acusados de causar pre-juízos aos governos em operações com

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títulos da dívida pública, na qual nin-guém foi punido.– Comissão Parlamentar de Inquéritodo Sistema Financeiro (CPI dos Ban-cos) do Senado Federal (1999) parainvestigar operações de socorro ao sis-tema privado com recursos públicos,que solicitou ao Ministério PúblicoFederal que iniciasse investigaçõescontra o Banco Central pelas opera-ções de socorro ao sistema privadodentro do Programa de Estímulo àReestruturação e ao Fortalecimento doSistema Financeiro Nacional, bemcomo pela compra de contratos futurosde dólar por dois bancos privados;– Comissão Parlamentar de Inquéritodo Narcotráfico da Câmara dos De-putados (1999) para investigar o cri-me organizado ligado ao tráfico ilíci-to de entorpecentes, que viabilizou acassação e prisão de um deputado fe-deral, dois deputados estaduais, bemcomo a prisão de vários policiais, umadvogado, entre outros.”

Desses exemplos, verifica-se ser o poderde fiscalização um dos mais expressivos ins-trumentos do Legislativo. Reforçado e am-pliado pela Carta de 88, deu aos deputadose senadores meios e informações para in-vestigar, processar e até mesmo levar aoimpedimento de um Presidente da Repú-blica.

Por meio da função fiscalizadora ou decontrole, o Poder Legislativo exerce a defesado interesse coletivo e responde aos clamo-res da opinião pública. Na visão do profes-sor Josaphat Marinho (1954, p. 99), quandoo Parlamento utiliza-se dessa “forma deação, visando, geralmente, à análise de fa-tos determinados, concorre mais do que otrabalho legislativo ordinário para a con-quista do respeito popular”.

9. Conclusão

O Brasil, ao longo de sua história, alter-nou momentos de abertura política e de fe-

chamento institucional. Os grupos que sefortaleceram em cada um desses momentoscuidaram de adaptar o texto da Constitui-ção ao regime então vigente. Ao analisar osdiversos textos constitucionais que vigora-ram desde a Independência, é impossívelnão constatar que há um paralelo entre ademocracia e as comissões parlamentaresde inquérito.

Expressões maiores da independência eda autonomia do Poder Legislativo, as CPIsem geral sempre foram requeridas e instala-das a partir de iniciativas dos partidos deoposição. São instrumentos das minorias,que só funcionaram quando as forças majo-ritárias agiram de maneira democrática eaceitaram se submeter à investigação.

As forças políticas dominantes durantea elaboração da Carta de 88 tiveram visãodemocrática e grandeza, dotando as comis-sões parlamentares de inquérito de poderesaté então exclusivos das autoridades judi-ciais. O bom trabalho realizado por algu-mas dessas comissões, em especial as doesquema Collor-PC e do orçamento, mobili-zaram o País e tornaram o parágrafo 3o doartigo 58 da Constituição Federal verdadei-ra cláusula pétrea.

No Brasil atual, será vista como antide-mocrática e repelida com absoluto rigor pelasociedade qualquer iniciativa de Governoou de grupo político no sentido de restrin-gir os poderes investigativos ou de inviabi-lizar e tentar obstruir a instalação de comis-sões parlamentares de inquérito.

Notas1 Constituição da República dos Estados Uni-

dos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934Art. 36. A Câmara dos Deputados creará com-

missões de inquerito sobre factos determinados,sempre que o requerer a terça parte, pelo menos,dos seus membros.

Paragrapho unico. Applicam-se a taes inqueri-tos as normas de processo penal indicadas no Regi-mento Interno.

2 Constituição dos Estados Unidos do Brasil,de 18 de setembro de 1946

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Art. 53. A Câmara dos Deputados e o SenadoFederal criarão comissões de inquérito sobre fatodeterminado, sempre que o requerer um terço deseus membros.

Parágrafo único. Na organização dessas comis-sões se observará o critério estabelecido no pará-grafo único do art. 40.

3 Constituição do Brasil, de 24 de janeiro de1967

Art. 39. A Câmara dos Deputados e o SenadoFederal, em conjunto ou separadamente, criarãocomissões de inquérito sobre fato determinado epor prazo certo, mediante requerimento de um ter-ço dos seus membros.

4 Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubrode 1969, à Constituição do Brasil de 1967

Art. 30. (...)e) não será criada comissão parlamentar de in-

quérito enquanto estiverem funcionando concomi-tantemente pelo menos cinco, salvo deliberação porparte da maioria da Câmara dos Deputados ou doSenado Federal;

(...)Art. 38. Os Ministros de Estado serão obriga-

dos a comparecer perante a Câmara dos Deputados,o Senado Federal ou qualquer de suas comissõesquando uma ou outra Câmara, por deliberação damaioria, os convocar para prestarem, pessoalmen-te, informações acerca de assunto previamente de-terminado.

5 Constituição Federal 1988Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas

terão comissões permanentes e temporárias, cons-tituídas na forma e com as atribuições pevistas norespectivo regimento ou no ato de que resultar suacriação.

(...)§ 3o As comissões parlamentares de inquérito,

que terão poderes de investigação próprios das au-toridades judiciais, além de outros previstos nosregimentos das respectivas Casas, serão criadas pelaCâmara dos Deputados e pelo Senado Federal, emconjunto ou separadamente, mediante requerimentode um terço de seus membros, para a apuração defato determinado e por prazo certo, sendo suasconclusões, se for o caso, encaminhadas ao Minis-

tério Público, para que promova a responsabilida-de civil ou criminal dos infratores.