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Revista de Psicanálise n. 1

Revista de Psicanálise · Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com O inconsciente não existe Augusto Corrêa Vaz de Melo [email protected] Comecemos esse

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Revista de Psicanálise

n. 1

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Editorial

Eis aqui mais uma edição da nossa revista. Com ela, reafirmamos nosso

compromisso com a transmissão da psicanálise sob os moldes de uma escrita que se

pretende acessível e aberta ao debate. Ela sai em abril de 2020, em um momento

gravíssimo de pandemia global, quando nossa comunidade analítica se depara com a

urgência de revisitar seus fundamentos e suas instituições a fim de suportar a demanda de

atendimentos on-line. Nossa aposta teórica, trabalhada no corpo dessa revista, não poderia

vir em outra ocasião. Servimo-nos de uma pergunta, tão importante quanto banal, para

reinterrogar a matéria, a substância, daquilo que constitui a nossa prática. “O que faz um

psicanalista?” é o questionamento que abrimos sem pretender, jamais, fechar. Que se

conclua uma escrita, isso é oferta bem distinta. É isso que se apresenta aqui: dez artigos

que, partindo de pontos, por vezes, absolutamente divergentes, demonstram um esforço

localizado para sustentar uma proposta que em muito os ultrapassa. Desde a lógica até a

topologia, da linguística à antifilosofia, esforçamo-nos para incluir questões do nosso

cotidiano clínico, dúvidas relativas ao manejo transferencial e obviedades que, como

poderão notar, nada têm de evidentes. E, então, cabe a ocasião de lembrar que o grupo

Borda se define por sustentar uma leitura que para uns pode inclusive ser considerada

como hermética. Claro, em hipótese alguma julgamos ter a pretensão de falar sobre tudo,

para todos. Mas, para aqueles que se interessem pelos temas e propostas que trabalhamos,

aí está. Sirvam-se.

Com efeito, ao embarcar na leitura dos artigos a seguir, há de se levar em

consideração a ambiguidade própria à pergunta que lançamos. O que ele, o analista, faz,

se confunde com o que o faz, e esse é o paradoxo que lança cada um de nós ao abismo de

sustentar uma prática fundada sobre a total falta de garantias. Reconhecer isso deveria

nos catapultar em direção ao franco debate teórico com nossos pares e colegas e, nunca,

jamais, nos isolar. Essa é uma lição desse abril de 2020, no qual um grupo de psicanalistas

que, em sua maioria, não se conhecem pessoalmente, sustentam seus trabalhos pela

virtualidade que, hoje, suporta a inteireza do nosso ofício.

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Sumário

O inconsciente não existe ................................................................................................ 3

Augusto Corrêa Vaz de Melo

Introdução ao sujeito do inconsciente ........................................................................... 14

Lucas C. S. Pires

Função e campo do analista no ato analítico.................................................................. 24

Ramiro Faria de Melo e Souza

O lugar do analista e seu manejo: prudência na prática clínica...................................... 44

Priscilla Ribeiro G. Costa

O que acontece numa análise? ....................................................................................... 53

Bruno Oliveira

Qual geometria para a psicanálise? ............................................................................... 62

Jefferson Weyne Silva Soares

O inconsciente como coisa e o inconsciente como estrutura de linguagem: diferenças

teórico-epistemológicas entre Freud e Lacan ................................................................ 79

Jessika Gomes do Carmo

Construções em análise: a imprecisão teórica enquanto resistência do analista ........... 90

Camila Q. Kushnir

O setting discursivo ..................................................................................................... 100

Pedro Henrique de Oliveira Costa

O dinheiro na clínica e na formação psicanalítica ....................................................... 122

Paulo Henrique de Oliveira Arruda

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Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com

O inconsciente não existe

Augusto Corrêa Vaz de Melo

[email protected]

Comecemos esse texto com uma espécie de compromisso. Nossa tese se propõe

sobre um motivo lateral, mas não menos importante, qual seja: há de se transmitir o que

fazemos da maneira mais clara possível. Essa é uma diretriz que tentaremos perseguir.

Com efeito, convém partir do acordo estabelecido ao fim do último artigo: não há

psicanálise sem o suporte do pensamento matemático (VAZ DE MELO, 2020). Agora

cabe dizer um pouco mais sobre essa proposta.

Em primeiro lugar, pensemos a matemática como um discurso que se articula

assentado sobre peças mínimas. Em termos técnicos, trata-se de axiomas. Entendemos

aqui o tecido axiomático como uma condição necessária à formação de qualquer que seja

o pensamento e, por conseguinte, ao método de construção de objetos. Axioma vale como

o tijolo primeiro de um edifício e como a regrinha de ouro que se deve aceitar para entrar

na partida e conduzir o jogo. Isso tudo de modo extremamente resumido serve para dizer

que a psicanálise se vale das matemáticas para declarar que haveria, no nosso ofício, um

punhado de regrinhas que funcionam como operadoras de todo e qualquer movimento

que fazemos. A tarefa é estabelecer, com essas premissas básicas, a inteireza de nosso

trabalho. Chamemos como quisermos: conceitos, fundamentos, conceitos fundamentais,

axiomas… tanto faz. Se uma psicanálise depende do pensamento matemático, tal como

estou propondo, isso se dá porque partimos dessa forma de acordo inicial, por sobre um

conjunto limitado de axiomas. Mas ora, por quê? Guardemos a pergunta por enquanto.

Avancemos ao lembrar que a interrogação que colocamos como condutora desta

revista é “o que faz um psicanalista?”. Então, eis a resposta sem rodeios: um analista faz

o inconsciente. O que poderia nos atrapalhar e nos complicar um pouco é que um analista,

aquele que faz o inconsciente, só aparece porque fez um inconsciente. Mas esperemos um

pouco para entender isso. De todo modo, cabe uma interrogação aqui: como assim, ele

faz o inconsciente? Coloquemos os pingos nos “is”. O inconsciente é o que se deduz

daquilo que alguma pessoa fala para outra, dado que esse outro tem como tarefa ler algo

aí, nessa mesma fala, orientado por uma chave de leitura muito específica.

Reparem, de partida cabe reconhecer nessa definição que a condição mais

fundamental para haver inconsciente é a linguagem. Sem linguagem não há inconsciente.

Mas qualquer linguagem? Não. Trata-se de um experimento de fala em condições

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artificiais. Se não há fala, não há psicanálise. A isso se soma que deve haver ao menos

duas pessoas envolvidas na efetivação de uma análise. É necessário, também, que haja

uma operação sobre o que é dito. Trata-se de um segundo passo que estabelece uma

fronteira radicalmente arbitrária, sobre a qual nos debruçaremos aqui.

É verdade, reconheço que essa proposta pode de fato parecer um pouco esquisita.

Como assim nós “fazemos” o inconsciente? Ele está lá onde sempre esteve, não é? Ora,

uma pessoa sonha, comete lapsos de fala e até padece por causas “desconhecidas” –

menos para nós que sabemos que se trata aí do inconsciente. Portanto, nada mais claro e

evidente.

Mas reparem também no seguinte: a nossa crença mais imediata, enquanto

praticantes da “arte” psicanalítica, é de que o inconsciente de fato existe. Ele é de cada

um. As pessoas têm, cada uma em seu mais profundo âmago-interior-subterrâneo, um

inconsciente para chamar de seu. É uma propriedade privada que se formou em

decorrência da nossa constituição enquanto seres no mundo. Chegamos inclusive a dizer

que se trata de uma evidência empírica. Nós o observamos em alguém1. É claro, nós

analistas o explicamos porque somos dotados dessa espécie de proficiência que

adquirimos quando nos consultamos com um outro analista. Somos analistas, então,

devido ao fato de sermos mais esclarecidos ou advertidos dessa evidência cabal,

justamente porque passamos pela mesmíssima experiência que empregamos com nossos

analisandos. E, claro, essa experiência se daria com alguém que, por sua vez, também

passou pela mesma iniciação. E assim por diante. Já sabemos onde isso vai dar, não? Não

parece causar espanto nenhum encontrarmos gente, por aí, dizendo que a formação do

analista se constrói como uma árvore genealógica.

Mas, ora, essa concepção de inconsciente é essencialista. E ela, apesar de ser nossa

forma mais comum de lidar com a coisa – coisa freudiana, diria Lacan –, está não só

equivocada, como também pode ser radicalmente perigosa. Claro, essa pode muito bem

ser a proposta freudiana e, portanto, talvez necessitasse de um melhor desenvolvimento

que não caberia nas linhas deste texto. Mas em nenhuma hipótese pode ser a que se

organiza ao redor da noção de significante – que foi pensada por Lacan, mas isso é, hoje,

indiferente. Me explico.

Se entendemos – ou melhor, postulamos – o inconsciente como uma existência de

fato, se ele é um dado concreto/essencial da realidade de cada um de nós, um analista

1 Há, inclusive, aqueles que observam e interpretam o inconsciente em expressões corporais!

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seria precisamente aquele que melhor lidaria com os efeitos imediatos dessa realidade. E

notem – esse passo é simples, mas vejam a dinâmica que isso de fato produz –, o analista

jovem, chamemos assim aquele que começou a atender há pouco tempo, este só pode ser

alguém que, invariavelmente, sofre com profundas dificuldades no seu ofício. Mas, por

quê? Em geral, trata-se de alguém que acredita piamente – assim lhe é transmitida a coisa

– que ainda não ultrapassou uma barreira que corresponde a um melhor se virar com o

seu próprio inconsciente e com o de seu analisando. Óbvio, leva tempo. Ele ainda não

chegou ao famigerado momento da “travessia do fantasma”, logo, não parece possível ao

jovem analista “se autorizar por si mesmo”. E, como nosso jovem, além de se dobrar aos

ritos sagrados, acredita que cada um tem o seu próprio inconsciente, a ele cabe se policiar

no seu fazer clínico para que seu próprio inconsciente não atrapalhe tanto, nem acabe por

se confundir com o do seu paciente. Reparem que nosso colega não chegou ao ponto onde

é possível se dizer analista, mas mesmo assim ele mantém uma clínica ativa e atende às

vezes muitas pessoas. Ora, mais uma das inúmeras contradições do nosso campo. Não

nos autorizamos a sermos analistas, mas recebemos pacientes. Fazemos o que com isso,

então?

De todo modo, o que vale reparar, por enquanto, é que o inconsciente pensado

dessa maneira acaba por se situar como uma grande de uma assombração. Ao que parece,

há um perigo eminente na condução do tratamento dos nossos analisandos, e o analista,

então, só poderia ser um tipo de caça fantasmas. Digo isso, também, porque geralmente

nos confrontamos com a pergunta do que fazer na clínica para evitar uma sorte de

acontecimento desastroso, tal como uma explosão. Bem como diante de uma bomba

relógio saída de filmes de Hollywood, o analista se vê em plena sudorese, prostrado em

frente a um monte de fios – ou seriam nós? –, tendo que cortar o correto a fim de desarmar

a perigosa ameaça e salvar a humanidade – sempre é o vermelho que devemos cortar!

Isso sob a pena de poder causar danos irreparáveis na subjetividade do outro que lhe

consulta. O analista, além de ser um bom caça fantasmas, também deve ser um expert em

desarmar bombas – isso faz de um sintoma uma bomba-fantasma! Mas, é claro, ele assim

deve ser porque passou por um intenso – e caríssimo – processo de “aprendizagem”, que

mais se parece com uma iniciação eclesiástica, com alguém mais experiente, mais sabido.

Então, porventura, em um dado momento, acredita-se, nosso aspirante acaba por se

encontrar plenamente qualificado para analisar eficazmente.

Insisto. Dentro dessa concepção, tudo que se diz em uma análise, tudo que se faz,

tudo que o paciente traz, gestos que faz, roupa que usa, espirros entre as palavras, tosse,

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a maneira que falta à sessão, a forma como se justifica, ora, tudo carrega necessariamente,

por detrás de sua aparência – semblante, como costumamos ouvir – o inconsciente. Agora

vejam, essa ideia que chamei essencialista só pode resultar em uma espécie de paranoia.

Não é incomum ouvir colegas dizendo terem medo de produzir surtos psicóticos em seus

pacientes com as suas intervenções.

Outro efeito dessa maneira de pensar o inconsciente é que, se temos por um lado

o jovem que ainda não aprendeu direito a se situar nessa loucura, há, no extremo oposto,

o analista experiente. Na nossa comunidade de analistas, existem aqueles que chamam a

atenção de muitos com suas intervenções pirotécnicas, que mais se parecem com algo

saído de um livro de poesias de tão incríveis. São aqueles que alimentam a eterna fantasia

de que há um momento muitíssimo específico para dizer o que de fato tem que ser dito,

ou mesmo para encerrar a sessão sem dizer absolutamente nada, onde, por fim, se

produziriam efeitos espantosos na subjetividade dos analisandos. Esse analista pode

muito bem ter lido todos os seminários e escritos, ou não. Não faz muita diferença para

nós porque em geral acabamos por não saber bem do que é feita essa aura quase mística

que os rodeia e, com efeito, acabamos por apostar nossas fichas nesse que dribla a

“castração”. Inclusive, temos um nome para essa nossa sideração em relação a essas

pessoas que extraímos da nossa bagagem teórica e usamos sem pudor. Trata-se da

transferência. Nos vemos encantados, ou “transferidos”, com essas figuras que

transmitem seus casos e ficamos nos perguntando como diabos vamos poder fazer as

mesmas coisas. Que dia vou ser capaz de dizer essas coisas encantadoras para os meus

analisandos? Ora, como todos os caminhos levam a Roma, aqui acabamos nos reenviando

para a exigência cabal da formação de um analista: haja análise!

É fato, tem muita gente por aí que anda profundamente angustiada com essa

maquinaria que se desprende dessa simples evidência do inconsciente com sendo algo em

si mesmo. Claro, isso também convém para manter em funcionamento não só as

supervisões, mas também os ambientes dos consultórios dos analistas “experientes”

sempre povoados. Ao que parece, testemunhamos o surgimento dessa outra função de

uma análise, qual seja: lidar com os efeitos do inconsciente e seu manejo pelos próprios

analistas. Vou para análise não porque algo na minha vida anda mal, mas porque tenho

profundo horror das consequências possíveis e, talvez, inevitáveis da minha clínica2. Ora,

haveria uma saída diferente para isso?

2 Vale lembrar que Lacan não cansou de criticar a ideia de análise didática.

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A chave do problema aqui é a noção de existência. Reparem que mencionei uma

clínica que diz que o inconsciente existe e que um analista deve saber o que fazer com

ele. E nada mais coerente que propor um tratamento que se dê na direção de o analisando

também aprender a “saber-fazer” com o seu próprio inconsciente. É o famoso caso da

responsabilização subjetiva. É uma ideia simples e completamente plasmada pelo senso

comum lacaniano. A coisa está ali, determinando minha vida. Tenho que me

responsabilizar pelos efeitos que advém daí. Curioso que não dizemos coisas como “seja

seu próprio analista!”, talvez porque não queremos nossos consultórios vazios. Aliás,

mais um tabu: o fim de uma análise, mas deixemos isso para depois.

Ora, na contramão dessa proposta tão poderosa e, convenhamos, predominante,

diria que, com Lacan, há de se afirmar com todas as letras que o inconsciente não existe.

Pelo menos não de fato. E é aqui que podemos fazer bascular a hipótese de que a novidade

trazida por Lacan, esse conceito radicalmente diferente de significante, é este que induz

a existência do objeto com o qual lidamos. Em termos muito gerais, o significante

lacaniano, e vale dizer que ele não tem nada a ver com o de Saussure, é o operador

existencial do inconsciente3. Se o inconsciente não existe como dado da nossa realidade,

ele se estabelece como fato lógico. E esse é o caráter realmente subversivo do seu ensino.

Trata-se, então, de uma torção, que chamarei antifilosófica. O inconsciente não

poderia jamais ser necessariamente algo essencial e dado, pois se configura como algo de

natureza lógica. Depende de uma operação artificial e arbitrária, de uma intervenção que

toma o discurso comum – as palavras, frases, pontos – e o transforma em significante,

onde se pode escrever e ler a dimensão do inconsciente. Eis uma forma de entender por

que o estatuto do inconsciente é ético, não ôntico (LACAN, 1964/2008). É ético, porque

depende da limitação de um marco teórico e da sua aplicabilidade prática. Estou falando

do já popular “ato analítico”.

Como vimos acima, vale lembrar que a psicanálise de Lacan se assenta sobre uma

hipótese teórica que tem como articuladores alguns axiomas necessários ao

funcionamento da nossa clínica. Trata-se da “hipótese de que o indivíduo que é afetado

pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante, o

que eu enuncio sob essa fórmula mínima: ‘um significante representa um sujeito para

outro significante’” (LACAN, 1972-73/2010, p.271). Notem, não há clínica sem o apoio

3 Aos desavisados, aqui há uma imprecisão que não pode passar batida. Há uma diferença importante e

nada trivial entre inconsciente e sujeito do inconsciente. Aquilo que se produz pelo ato significante é o

sujeito. O inconsciente é o saber que resulta daí. Tal precisão fica para uma outra ocasião.

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do conceito. Se não emprego nossa noção básica e seu correlato operacional, não pode

haver experiência com o inconsciente. Isso derroga a pregnância da dimensão sensível e

imediata.

Nessa medida, não há maneira de sustentar o que quer que seja sem o suporte, ou

mediação, da teoria. Essa é uma leitura lacaniana que podemos rastrear, se quisermos, até

Hegel. Mas o mais evidente operador dessa aposta é Koyré, epistemólogo de suma

importância para o projeto de ciência que Lacan visou estabelecer. De todo modo, o que

interessa para a nossa discussão é que o inconsciente, desde o pensamento organizado

pelo significante, é um artifício produzido pontualmente por uma leitura. Nesse caso,

trata-se de uma intervenção no discurso – e pelo discurso analítico –, que, sob condições

artificiais, gera a coisa com a qual trabalhamos. Nós damos um sentido novo ao que se

traz como material de sessão, ou seja, ao que um analisando nos diz. Dessa maneira, a

vulgata “um charuto pode ser só um charuto” deve ser entendida tal qual: um charuto

nunca é mais do que um charuto, senão em condições especiais onde se interroga pelo seu

sentido, pela sua identidade, sob a finalidade radical de um tratamento.

Um significante não é algo imediatamente dado. Ele é um construto experimental.

Nós o induzimos artificialmente junto com o inconsciente. E, embora essa seja uma

proposta um tanto ousada, ela se dá caso aceitemos a sua premissa – se não for o caso

temos outro tipo de clínica! Lembremos então do que se trata. Para Lacan, trata-se, sim,

de um axioma:

axioma que é aquele que avancei da última vez: que o significante – esse

significante cuja função temos aqui definido, de representar um sujeito para

outro significante – esse significante, o que representa ele em face dele mesmo,

de sua repetição de unidade significante? Isto está definido pelo axioma de que

nenhum significante – mesmo se ele está, e mui precisamente quando ele está

reduzido a sua forma mínima, aquela que chamamos a letra – não poderia se

significar a ele mesmo4 (LACAN, 1966-1967/2008, p.29).

O significante, que tem por função representar um sujeito para outro significante,

tem como substrato axiomático a especificidade de não poder significar a si mesmo.

Reparem que qualquer palavra, frase ou pontuação que chamemos de significante, nunca,

jamais, podemos inferir daí seu significado. Estamos sempre diante da urgência de

estabelecer uma relação. Então não pode haver só um significante, pois sua definição

4 Aos não advertidos, vale consultar o livro do matemático Paul Halmos (1960, Teoria ingênua dos

conjuntos. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2001). Trata-se de um famoso texto de teoria dos

conjuntos. Não se espantem ao encontrar a mesma definição axiomática por lá. Inclusive, no quesito “não

há universo de discurso” (LACAN, 1966-67/2008, p.24), é de lá que isso vem. Seria o significante o nome

lacaniano para os conjuntos da matemática?

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intrínseca depende, necessariamente, de um segundo. Por si só, um significante não quer

dizer absolutamente nada. Em suma, não há um sem dois.

Uma pessoa que fala em sessão, ou mesmo em qualquer ocasião, julga dominar a

intenção de produzir sentido no que fala. Nós analistas, porque postulamos a dimensão

do inconsciente dessa maneira muito peculiar, avaliamos que uma pessoa não tem morada

confortável no que fala. Que, quando fala, já não está mais onde [isso5] falou. E essa nossa

hipótese teórica chamamos de inconsciente. Claro, isso se suporta, de maneira prática, no

manejo dos significantes. E é por isso que dizemos que um analista lê o que escuta. Trata-

se de uma operação de segunda ordem, onde acrescentamos algo lá onde não havia nada.

Bom, isso produz algumas alterações no entendimento comum sobre nosso ofício. Ou ao

menos deveria.

Reparem, não há neutralidade do analista. A fantasia de que deveríamos zelar por

um bom distanciamento entre o nosso inconsciente e o do analisando não tem lugar nessa

definição que Lacan propôs. E isso por um motivo bem claro. Não há essa separação. Só

há um inconsciente em jogo numa análise. Um inconsciente que se conta, ou ainda, se

quisermos, um saber insabido, que se articula por haver sido produzida uma relação entre

(ao menos) dois significantes. E esse é resultado de uma intervenção que tem como baliza

nosso axioma acima mencionado. O oposto de uma psicanálise neutra é, portanto, uma

clínica comprometida. Sempre que interpretamos estamos forçando uma barra, fazendo

consistir algo radicalmente artificial e, porque não, impróprio. Estamos dentro da coisa,

dos pés à cabeça. Lembremos o bom e velho Freud quando, para ele, uma análise seria

justamente o que se passa por sobre uma neurose de transferência.

Outro aspecto que parece ser decisivo é o seguinte: se na proposta clínica exposta

acima nós tínhamos que lidar com a consistência real – leia-se real de realidade – do

inconsciente, agora trata-se de uma posição que depende da sustentação de marcos

teóricos mínimos para que ela, a clínica, sequer se estabeleça. E aqui, como salientei

antes, estamos no campo da lógica. Notem que, se antes era necessário que o inconsciente

estivesse em cada ação, ato de fala, gesto e etc., agora sua realidade efetiva é radicalmente

contingente. Dito de outro modo, se antes a coisa não podia não estar ali, agora, dado que

depende de uma operação arbitrária, pode se fazer presente, ou não.

Essa não é uma proposta que nos faria mais indiferentes ou mesmo cínicos em

relação ao inconsciente. Não se trata de algo que nos retira a responsabilidade pela

5 Ça parle. Isso fala, diria Lacan.

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condução das análises. Mas de fato estamos diante de uma maneira de pensar a clínica

que retira o véu da assombração. É como nos desenhos de Scooby-doo, onde se tira o

lençol de cima do fantasma para podermos ver o que – ou quem – está de baixo. O detalhe

capcioso é que não vamos encontrar o velho zelador da casa supostamente mal

assombrada. Não se trata aqui da verdade como desvelamento. Não há ser por debaixo!

De fato, não encontramos absolutamente nada. E talvez a coisa pode até se anunciar como

ainda mais assustadora, é verdade. Ora, se não tem nada por debaixo do véu, o que fazer?

Bom, a sugestão lacaniana parece ser a de passar de caça fantasmas, ou de experts em

desarmar bombas, a lógicos6.

E mais uma vez o pensamento matemático7 pode nos socorrer. Quando falou que

a lógica é a ciência do Real (LACAN, 1972/2003), a intenção de Lacan era demonstrar

que a realidade efetiva, tal qual a que nos relacionamos de maneira mais ingênua, essa

mesma onde apontamos a existência do inconsciente, bom, esta não serve para nossos

propósitos. A categoria de Real surge para indicar a existência na medida em que esta

depende de um Outro, mais precisamente, da estrutura significante. E aqui entra em

função a radical novidade que Lacan parece encontrar nas matemáticas. Vejamos como

ele diz:

é preciso crer que a matemática, durante séculos, prescindia de qualquer

questionamento a esse respeito, uma vez que só tardiamente, e por intermédio

de uma interrogação lógica, ela deu um passo nessa questão que é central

quanto à verdade, isto é, como e por que há o um. Vocês me desculparão, não

sou o único. Há o um, ao redor desse Um gira a questão da existência. Já fiz

algumas observações a esse respeito, isto é, de que a existência nunca foi

abordada como tal antes de uma certa época e que se levou tempo para extraí-

la da essência. (...) É aí que começa algo que pode nos interessar. Trata-se de

saber o que existe. Não existe senão o Um – com essa pressa ao nosso redor,

sou forçado aqui também a me apressar – a teoria dos conjuntos é a

interrogação: por que “há o um”? (LACAN, 1971-1972, p.120).

Aquilo do que se trata nessa leitura é a maneira pela qual a matemática pôde

refazer a pergunta pelo estatuto da existência, desde a teoria dos conjuntos, extraindo-a

da essência. Há um não quer dizer nada além disso. Ou seja, o um se conta dentro de uma

estrutura que exige ao menos dois, sendo o dois a estrutura significante, o Outro.

6 Não pode passar despercebido que traduzimos erroneamente para português o “fantasme” de Lacan por

fantasma, onde deveria vir corretamente a fantasia. Nossa tradução é o melhor índice do nosso medo com

a coisa. 7 Nesse parágrafo e em toda a proposta do presente texto, lógica e matemática aparecem em conjunção, às

vezes se confundindo por completo. Esse parece ser um problema aberto por Lacan, mas infelizmente pouco

abordado ao longo do seu ensino. Em ocasiões, sua posição é de que a matemática deveria ser logicizada -

como queria Frege - e, em outros momentos ele sequer reconhece uma distinção. Essa não é a posição do

autor, mas sua discussão pormenorizada ficará para outra ocasião.

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Por fim, o inconsciente não existe. Ele ex-siste. “O verbo ‘existere’ significa

‘surgir, sobressair’. Literalmente, a palavra significa ‘estar fora de’, ‘destacar’. Aquilo

que existe se destaca, ele se destaca dos outros objetos por meio de suas características”

(GABRIEL, 2016, p.58). A palavra também indica algo que se coloca de pé, que se firma.

Que surge a partir de algo firme. Depende de uma instância de onde se o fundamenta. O

inconsciente não existe por si mesmo e a despeito de nós. Podemos até dizer que ele está

lá desde sempre, desde que se o deduza a posteriori, dentro de um campo muito

específico. Eu posso, depois de passar por uma análise, dizer que meu problema sempre

foi um desejo reprimido em razão da minha estrutura familiar. Ou ainda dizer que sempre

me relacionei com meus pares românticos em razão de um encontro fortuito. Mas esse

saber não estava dado antes. E é por isso que seu estatuto é exclusivamente lógico. Então,

antes de nos consternar e nos assombrar com a “evidência” fantasmática do inconsciente,

deveríamos pensar que há uma outra proposta, muito menos intuitiva, que pode servir

para organizar um pouco melhor nossa tarefa do dia a dia clínico.

Lembremos, também, que a teoria dos conjuntos à qual Lacan se refere leva em

consideração os trabalhos de Cantor e Frege. A proposta em jogo no projeto aberto por

ambos, para os fins da nossa argumentação, implica a conceitualização do zero e do

infinito. Em linhas muito gerais, para Lacan, trata-se do passo dado pela ciência ao

sustentar que a sua operação é de produzir uma escrita do Real e, portanto, dar um lugar

para o vazio. Essa ciência tão diferenciada que Lacan insiste ser condição para a

psicanálise é, então, a formalização do nada, daquilo que “não existe”. Por isso mesmo

ele pode falar de “insubstância” e reler – ou seria desler? – a “coisa” kantiana como

“acoisa” dele, Lacan. Ora, quando um analista intervém na fala de um analisando, por

exemplo, está forçando a nomeação de um ponto de vazio, produzindo um contorno para

esse saber que não se sabia até então. Se isso ocorre, se essa intervenção produz marcas

que podem ser lidas e retomadas em outro momento, tal como um texto – eis o saber

insabido como rébus –, ali podemos dizer que houve um analista. Note que dizer que o

analista é uma função é também fazê-lo depender desse aparelho lógico. Em suma, jamais

somos analistas. Apenas podemos constatar que fomos, em uma dada análise, com um

dado analisando, em um pontual instante. E assim fomos para não ser mais depois. É

intervalar, como um suspiro que nunca podia ter acontecido senão depois de alguém notar.

E, quando isso tudo ocorre, se cura.

Em resumo, e agora com mais elementos técnicos para melhor definir a coisa, o

inconsciente é o saber que se produz em razão dessa leitura, dado que se leva em

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consideração o buraco, o abismo que abrimos na estrutura, isso que justamente damos o

nome próprio de sujeito do inconsciente. Esse abismo, enfim, deve guardar íntima relação

com a ideia limite de Real, ou seja, com a conjectura lógica de que essa estrutura é

incompleta.

Esta me parece uma proposta clínica radicalmente subversiva, onde o que se faz

depende de uma reforma no entendimento. Com ela podemos garantir uma espécie de

eficácia sem sucumbir à fantasmagoria assustadora que se produz ao redor da noção mais

básica da nossa prática. Agora, se estamos falando da raiz do nosso ato, da razão por

detrás da nossa clínica, assentados em outra maneira de pensar que não a mais usual da

nossa comunidade, haveria ainda lugar para ideia de que, para poder operar aí, é preciso

mais e mais análise? Tem lugar, também, para ainda se sustentar uma concepção

ritualística e essencialmente cronológica das nossas formações? Ou mesmo para pensar

que o que temos a fazer é unicamente responsabilizar nossos analisandos por algo que

eles carregam no âmago de seus seres? Fica a provocação.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LACAN, J. (1966-1967). O Seminário, livro 14. A lógica do fantasma. Seminário

inédito, Recife, 2008.

LACAN, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19. O saber do psicanalista. Seminário

inédito.

LACAN, J. (1972). O aturdido. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2003, p. 448-497.

LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra

Freudiana, 2010.

VAZ DE MELO, A. C. Questões preliminares a todo tratamento possível do Matema.

Do terrorismo dogmático à lógica cosmopolita. Revista Borda, Rio de Janeiro, n.0, p.41-

53, 2020. Disponível em: <https://bordalacaniana.com/wp-content/uploads

/2020/01/Borda-N.0.pdf>.

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Introdução ao sujeito do inconsciente

Lucas C. S. Pires

[email protected]

“Estamos aqui ainda a amestrar os ouvidos ao termo sujeito.”

(LACAN 1951[1966]/1998, p.214)

Quando falamos estamos sujeitos à polissemia de sentidos e não há meios para

escapar disso. Ter a mesma nacionalidade ou falar o mesmo idioma não garante que não

haverá equívocos e desencontros, o que exige certo esforço de nossa parte na tentativa

de minorá-los o máximo possível para comunicar algo. Esse esforço também se faz

necessário e é de suma importância quando estamos em um campo teórico, para que

seja possível o debate de ideias calcadas em um conceito que seja de conhecimento de

todos. Na Física, por exemplo, quando se fala nas três leis de Newton, os praticantes

dessa área têm noção do que se trata e conseguem tecer discussões a respeito, pois são

conceitos bem delimitados. Agora, quando olhamos para o campo da Psicanálise, o

mesmo movimento talvez não seja possível, mesmo olhando para uma única vertente

dela. Entre os lacanianos não há um consenso sobre a definição de conceitos

fundamentais como inconsciente, real, pulsão, objeto a, sujeito, entre outros. Estamos

em uma Babel1 com cada um falando um idioma diferente sem conseguir estabelecer

um ponto de partida, um marco zero teórico em comum. O problema aqui é que sem

isso não conseguiremos avançar o debate teórico, visto que nem estamos conseguindo

ter um debate de fato.

Para poder falar em uma teoria lacaniana é necessário que façamos certas

delimitações, caso contrário ficaremos perdidos em um senso comum sem fim ou presos

a tudo o que é sensível. Essas delimitações são importantes também para saber qual é o

nosso objeto de trabalho e para poder desenvolver uma prática minimamente séria,

pautada em um rigor teórico. Mas o que isso quer dizer? Façamos um exercício de

pensamento. Ao lançarmos uma moeda que possui dois lados, cara e coroa, quais os

resultados possíveis? Ou teremos cara ou teremos coroa. Partindo dessa premissa

inicial, temos apenas essas duas possibilidades de conclusão. É um pequeno exemplo,

mas a forma de raciocínio é similar quando partimos de uma premissa teórica inicial, de

um axioma, e cabe a nós utilizar raciocínios e argumentos lógicos para deduzir e chegar

1 Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Torre_de_Babel

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até às últimas implicações lógicas possíveis. Sendo assim, algumas conclusões são

possíveis enquanto outras não são, e está tudo bem!

Frente a isso, a proposta deste artigo é trazer algumas delimitações e possíveis

chaves de leitura presentes na teoria lacaniana – lembrando que esta é calcada em quatro

disciplinas que são linguística, lógica, topologia e antifilosofia – para, quiçá, fazer uma

introdução sobre nosso objeto de trabalho e estudo que é o sujeito do inconsciente, e

assim apresentar eventualmente uma saída para essa situação babélica que persiste em

pleno 2020.

Primeiro, é preciso dizer que Lacan era francês e, portanto, falava e escrevia em

francês. Ao longo de seu ensino podemos ver a presença da palavra sujet2 (sujeito, em

francês), que é uma palavra comum do idioma e possui alguns significados: 1) indivíduo

ou pessoa; 2) “estar sujeito a…”, uma relação de dependência; 3) assunto, tema ou

matéria; 4) elemento da gramática que faz a ação de um verbo em uma frase. Lacan se

utilizou dos vários significados da palavra sujet, tal como podemos ver nesse exemplo

da versão francesa do seminário sobre “L'Angoisse” [A Angústia] (1962-1963), edição

da Staferla, na lição de 14/11/1962:

Je vais vous parler cette année de l’angoisse. Quelqu’un qui n’est pas du tout

à distance de moi dans notre cercle, m’a pourtant l’autre jour laissé

apercevoir quelque surprise que j’aie choisi ce sujet [assunto] qui ne lui

semblait pas devoir être d’une tellement grande ressource. (LACAN, lição

14/11/1962)

E podemos comparar com o mesmo trecho dessa vez na versão em português do

seminário (1962-1963/2005):

Vou falar-lhes este ano da angústia. No entanto, um dia desses notei em

alguém que não é nada distante de mim em nosso círculo uma certa surpresa

por minha escolha deste assunto, que não lhe parecia ser de tão grande

potencial. [grifo nosso] (LACAN, lição 14/11/1962, p.11)

A leitura e o entendimento do texto requerem o trabalho de tentar definir qual

sentido de sujet, em francês, está sendo utilizado em cada trecho. Porém, nos deparamos

com parte dessa confusão na tradução para o português, pois as ocorrências do termo

“sujeito” são indiscriminadas, não levando em consideração a diferença entre sujeito do

inconsciente ou pessoa. Esse esforço não pode ser legado ao acaso ou à vontade, já que

é preciso avaliar o contexto do parágrafo, ou parágrafos, onde a palavra se encontra,

sendo bem vinda e necessária a postura de “um leitor não modesto” (COSTA, 2020).

2 Cf. <https://dicionario.reverso.net/portugues-frances/sujeito/forced> e <https://www.le-dictionnaire.com

/definition/sujet>.

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Somado a isso é preciso destacar quando que o sentido se refere ao sujeito do

inconsciente, e para isso precisamos verificar do que se trata esse conceito.

Quando não temos noção clara do que nos guia e nos orienta, ou seja, nossas

premissas e nossos axiomas, ficamos sem saber qual é o nosso objeto de estudo e

trabalho, e muito menos como operar na clínica, uma vez que é o arcabouço teórico que

gera uma clínica específica. Dessa forma, nosso foco não é empírico, dado que “o

verdadeiro móbil de uma estrutura científica é sua lógica, não sua face empírica”

(LACAN, 1967/2006, p.58). Precisamos de uma delimitação, de uma redução, como

podemos ver nessa citação do texto “A ciência e a verdade”:

O status do sujeito na psicanálise, acaso diremos que no ano passado o

fundamentamos? Chegamos a estabelecer uma estrutura que dá conta do

estado de fenda, de Spaltung em que o psicanalista o situa em sua práxis.

Essa fenda, ele a reconhece de maneira como que cotidiana. Admite-a na

base, já que o simples reconhecimento do inconsciente basta para motivá-la e

que, além disso, ela o submerge, por assim dizer, em sua constante

manifestação. Mas, para que ele saiba o que acontece com sua práxis, ou

simplesmente que a dirige em conformidade com o que lhe é acessível, não

basta que essa divisão seja para ele um fato empírico, nem tampouco que o

fato empírico tenha-se constituído em um paradoxo. É preciso uma certa

redução, às vezes demorada para se efetuar, mas sempre decisiva no

nascimento de uma ciência; redução que constitui propriamente seu objeto. É

isso que a epistemologia se propõe definir em cada caso e em todos eles, sem

que se haja mostrado, pelo menos a nosso ver, à altura de sua tarefa [grifo

nosso] (LACAN, 1966/1998, p.869).

Me parece que é preciso resgatar a delimitação do nosso objeto para que seja

mais clara nossa práxis. Aqui pretendo arremeter contra o que me parece ser o principal

problema em torno do sujeito, que é a confusão entre sujeito e indivíduo. No trecho

acima temos que o sujeito na psicanálise se trata de um sujeito dividido, e aqui já

podemos ver a diferença a partir da palavra, uma vez que indivíduo3 quer dizer aquilo

que não é possível dividir, que é indiviso: uma unidade. Me parece contraditório pensar

que duas coisas diferentes são iguais, porém precisamos avançar mais em nossa

investigação. Ainda em “A ciência e a verdade” podemos extrair que há equívoco em

tentar igualar sujeito a algo encarnado em um corpo:

Seja como for, afirmo que toda tentativa, ou mesmo tentação - nas quais a

teoria em curso não deixa de ser reincidente - de encarnar ainda mais o

sujeito é errância: sempre fecunda em erros e, como tal, incorreta. Como

também encarná-lo no homem, o que equivale voltar à criança [grifo nosso]

(p.873).

3 Cf. <https://www.dicio.com.br/individuo/>.

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E expressa que precisamos distinguir o sujeito que nos interessa do indivíduo

biológico:

Em suma, reencontramos aqui o sujeito do significante, tal como o

articulamos no ano passado. Veiculado pelo significante em sua relação com

outro significante, ele deve ser severamente distinguido tanto do indivíduo

biológico quanto de qualquer evolução psicológica classificável como objeto

da compreensão [grifo nosso] (p.890).

Não é o biológico aquilo que nos interessa, sendo necessário distingui-lo

severamente do sujeito do significante, que abordaremos em breve. Seguindo essa linha,

podemos ver no seminário “De um Outro a ao outro” (1968-1969/2008), na lição de

14/05/1969, que mais uma vez é apontada uma distinção entre sujeito de um lado e

pessoa, dessa vez, do outro:

É mensurável a distância entre o que define um sujeito e o que se sustenta

como uma pessoa. Isso significa que é preciso distingui-los com muito rigor.

Qualquer espécie de personalismo em psicanálise é propício a todas as

confusões e desvios. Aquilo que se marca como sendo a pessoa em outros

registros, ditos morais, não pode ser situado em outro nível, na perspectiva

psicanalítica, senão o do sintoma. A pessoa começa ali onde o sujeito está

ancorado de maneira diferente da que lhes defini, ali onde ele se situa de

maneira muito mais ampla, aquela que faz entrar em jogo o que sem dúvida

se situa na origem do sujeito, isto é, o gozo [grifo nosso] (p.308).

Lacan com frequência nos chama a atenção em seu ensino para a importância do

rigor em nosso meio. Isso se dá porque sua base para a epistemologia da ciência sempre

foi Koyré, chamado por Lacan de “nosso guia” (LACAN, 1966/1998, p.870). Tal base

rompe com o empírico, como já mencionado, e foca no rigor, devido à noção de ciência

moderna postulada pelo epistemólogo.

Nos deparamos com distinções entre sujeito e indivíduo, pessoa, organismo ou

corpo biológico desde o período inicial do ensino de Lacan como, por exemplo, na lição

de 17/11/1954 do seminário “O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise”

(1954-1955/2010):

O sujeito como tal, funcionando como sujeito, é algo diferente de um

organismo que se adapta. É outra coisa, e para quem sabe ouvi-lo, a sua

conduta toda fala a partir de um outro lugar que não o deste eixo que

podemos apreender quando o consideramos como função num indivíduo, ou

seja, com um certo número de interesses concebidos na aretê4 individual

(p.19).

4 Relativo à virtude. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Aret%C3%AA>.

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Vemos a mesma insistência em seminários localizados no período final de seu

ensino, como o seminário sobre “O Sinthoma” (1975-1976/2007), na lição de

11/05/1976:

Vocês precisam perceber que o que eu lhes disse sobre as relações do homem

com o seu corpo atém-se inteiramente ao fato de o homem dizer que o corpo,

seu corpo, ele o tem. Dizer seu já é dizer que ele o possui, como se fosse,

naturalmente, um móvel. Isso nada tem a ver com qualquer coisa que permita

definir estritamente o sujeito, que, por sua vez, só se define de modo correto

na medida em que é representado por um significante junto a outro

significante (p.150).

A teoria não diz que não há um corpo ou que ele não existe. É claro que ele

existe e faz parte da consistência do imaginário, porém esse corpo não é o que nos

interessa enquanto objeto de estudo e sim o sujeito que é representado por uma relação

entre ao menos dois significantes. Por algum motivo insistimos em pessoalizar, em

personificar, em dar corpo físico ao sujeito. Entretanto, segundo Lacan (1968/2006),

o sujeito de que se trata nada tem a ver com que é chamado de subjetivo no

sentido vago, no sentido do que mistura tudo, nem tampouco com o

individual. O sujeito é o que defino no sentido estrito como efeito de

significante. Eis o que é um sujeito, antes de poder ser situado, por exemplo,

nesta ou naquela das pessoas que se acham aqui no estado individual, antes

mesmo de sua existência de viventes [grifo nosso] (p.89-90).

Não se trata de algo próprio de uma pessoa, de algo subjetivo, e tampouco tem

relação com algo que seja individual e, portanto, não há aqui a ideia de que cada um tem

um inconsciente. Essa não é uma premissa para nós, e partimos de outro lugar. O sujeito

que nos interessa é aquele que é efeito de significante e de suas articulações. É

importante destacar que o significante aqui distingue-se do significante da linguística de

Saussure. Enquanto o segundo está em relação direta com o significado, onde um

invoca o outro, significando algo, o primeiro, que é o significante na psicanálise, está

esvaziado de significado já que a barra que os separa (S/s) é intransponível. Um

significante enquanto tal não significa nada. Isso quer dizer que se temos apenas um ele

não significa nada e muito menos produz uma significação, um sujeito do inconsciente.

Um significante aqui representa um sujeito para outro significante, o que demonstra que

precisamos articular ao menos dois (S1 → S2) para produzir o sujeito.

Podemos encontrar diversas vezes essa definição de que um significante

representa um sujeito para outro significante ao longo do ensino de Lacan, como nos

seguintes exemplos:

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Isso permite adiantar uma formulação que lhes apresento como uma das mais

primordiais. É uma definição do que é designado como “elemento” na

linguagem. Isso sempre foi designado como “elemento”, mesmo em grego.

Os estóicos chamaram-no de “significante”. Enuncio o que o distingue do

signo: é que o “significante é o que representa o sujeito para outro

significante”, não para outro sujeito (LACAN, 1967/2006, p.45-46).

Tal qual em:

Pois o que define um significante é o fato de ele representar um sujeito não

para outro sujeito, mas para outro significante. Essa é a única definição

possível do significante enquanto algo diferente do signo. O signo é algo que

representa alguma coisa para alguém, mas para o significante é algo que

representa um sujeito para outro significante (LACAN, 1976, p.206).

Mais uma vez:

O registro do significante institui-se pelo fato de um significante representar

um sujeito para outro significante. Essa é a estrutura, sonho, lapso e chiste, de

todas as formações do inconsciente. E é também a que explica a divisão

originária do sujeito (LACAN, 1964/1998, p.854).

E ainda:

Há estruturas – não poderíamos designá-las de outro modo – para caracterizar

o que se pode extrair daquele em forma de sobre o qual me permiti, ano

passado, enfatizar um emprego particular – quer dizer, o que se passa em

virtude da relação fundamental, aquela que defini como sendo a de um

significante com outro significante. Donde resulta a emergência disso que

chamamos sujeito – em virtude do significante que, no caso, funciona como

representando esse sujeito junto a um outro significante (LACAN, lição

26/11/1969, 1969-1970/2007, p.11).

Em muitas outras citações podemos encontrar essa definição canônica de

significante, porém não quero deixar o artigo excessivamente extenso. Até aqui já temos

algumas premissas para poder pensar o sujeito do inconsciente. Vale ressaltar que se um

significante enquanto tal não significa nada, uma frase como “o paciente repete muito o

significante x”, que escutamos com frequência, não faz sentido dentro dessa lógica, pois

é necessário que se articule ao menos dois significantes. Ademais isso denota o

equívoco frequente em confundir significante com palavra. Uma palavra pode ser um

significante, porém um significante não é necessariamente uma palavra. Ele é aquilo

que representa um sujeito para outro significante, e com isso um significante pode ser

desde uma palavra, frase, até todo um discurso de uma sessão.

Agora uma pergunta: se mudamos os significantes que estão articulados isso

altera o sujeito do inconsciente? Pense no caminho que percorremos até aqui e tente

responder antes de continuar. O analista lê o discurso e intervém nele destacando

trechos, elevando-os à categoria de significante e dessa maneira opera através da

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articulação desses significantes. Quando mudamos um dos significantes que estão

articulados isso produz um sujeito diferente. Isso é parte do tratamento. Alteramos

aquilo que é efeito de linguagem, de um discurso, de um dizer, de significantes e não a

pessoa/indivíduo que está em nossa frente. Dessa forma outro equívoco que podemos

localizar é dizer que a pessoa é histérica, sendo que “a histérica é um efeito, como todo

sujeito é um efeito (...) e desse fato constitui um discurso” (LACAN 1976b/2016, p.59).

Passamos a não mais nos referir a uma pessoa neurótica, mas sim a um discurso

neurótico. Discurso que causa efeitos específicos.

Parte da proposta que apresento aqui como uma introdução ao sujeito do

inconsciente implica certa delimitação necessária, como vocês podem ver. Acredito que

devemos acrescentar essa delimitação em nosso vocabulário também e fazer diferente

de Lacan, que utilizou de forma indiscriminada o termo “sujeito”, se quisermos começar

a ter alguma clareza dentro desse assunto. Proponho o uso do sujeito apenas para

quando for o sujeito do inconsciente, e se for necessário falar de pessoa ou indivíduo

utilizar uma dessas outras opções. Temos que trabalhar com o que implica a nossa

proposta teórica, como podemos ver no seguinte trecho do texto “Situação da

psicanálise e formação do psicanalista em 1956”: “Exercendo-se a técnica da

psicanálise na relação do sujeito com o significante, o que ela conquistou de

conhecimentos só é situável ao se ordenar a seu redor” [grifo nosso] (LACAN,

1956/1998, p.475).

Recuar após a delimitação ser feita seria algo contraproducente. O interessante

para que possamos ter um trabalho com rigor e estabelecer o debate de ideias é nos

ordenar ao redor dessa redução. Talvez assim possamos atenuar a confusão o máximo

possível, além de minorar o tempo gasto. É importante deixar claro que não há garantias

e isso se trata de uma aposta para tentar reduzir o campo, como dito no início.

Estamos no campo da linguagem e a leitura se torna um exercício importante

para o analista operar no discurso pela articulação dos significantes. Assim como o

nosso sujeito não deve ser confundido com a pessoa que fala, ele não deve ser

confundido com os pronomes pessoais de uma frase, o que seria equivalente ao engano

anterior. Este exercício de leitura que visa produzir o nosso sujeito passa pelo caminho

da lógica matemática. Desse modo sua redução é possível, uma vez que

um sujeito segundo a linguagem é aquele que conseguimos depurar com

grande elegância na lógica matemática. Salvo que resta sempre alguma coisa

a citar que é de antes. O sujeito é fabricado por um certo número de

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articulações produzidas e de onde ele caiu como fruto maduro da cadeia

significante (LACAN, 1967/2006, p.53-54).

Quando recebemos alguém que nos procura para tratamento utilizamos hipóteses

para deduzir a lógica do caso a partir do discurso que se estrutura em sessão, daquilo

que analista e analisando conversam. Pela lógica, o que nos interessa é a forma do

argumento e não o seu conteúdo, pois esse último pode variar de inúmeras maneiras

enquanto a forma se mantém. De articulação em articulação vamos decifrando a lógica

do caso enquanto se produz um sujeito a cada articulação diferente.

Outro ponto relativo à linguagem que merece esclarecimento diz respeito à dupla

“sujeito do enunciado” e “sujeito da enunciação”, termos que estamos acostumados a

ouvir, porém vamos ver o que encontramos a respeito para auxiliar na delimitação e,

consequentemente, em nossa comunicação dentro do campo teórico:

Por que introduzi a função de sujeito como algo distinto do que é do âmbito

do psiquismo? Não posso fornecer verdadeiramente uma teoria sobre isso,

mas quero mostrar-lhes como isso se liga à função do sujeito na linguagem,

que é uma função dupla. Há um sujeito que é o sujeito do enunciado. É fácil

reparar nisso. Eu [Je] quer dizer aquele que está falando agora no momento

em que digo eu. Mas o sujeito nem sempre é o sujeito do enunciado, pois nem

todos os enunciados contêm eu. Mesmo quando não existe eu, mesmo quando

vocês dizem “está chovendo”, há um sujeito da enunciação, há um sujeito

mesmo que não seja perceptível na frase. Tudo isso permite representar

muitas coisas. O sujeito que nos interessa — sujeito não na medida em que

faz o discurso, mas em que é feito por ele, e inclusive feito como um rato — é

o sujeito da enunciação [grifo nosso] (LACAN, 1967/2006, p.45).

Não devemos confundir o nosso sujeito com aquele que fala. Sendo assim, na

linguagem não é o sujeito do enunciado que nos interessa. Se não é aquele que fala que

nos interessa, então não é aquele que enuncia o discurso o nosso alvo. Nosso interesse

recai sobre aquele que é feito pelo discurso, que é efeito de um discurso, ou seja, o

sujeito da enunciação. Sujeito esse que não está na frase, mas ao mesmo tempo está lá.

Por último, quero retomar a ideia trazida quando disse que falamos a partir de

outro lugar. A partir da teoria baseada em uma geometria euclidiana, que usa uma esfera

para pensar suas estruturas, concebendo um dentro e um fora, é possível dizer que uma

pessoa possui um inconsciente em seu interior. Agora, quando passamos para outro tipo

de geometria, uma geometria não-euclidiana, e passamos a considerar superfícies que,

portanto, não possuem dentro nem fora, aqui temos outras possibilidades. A figura

topológica utilizada para descrever o sujeito do inconsciente é a Banda de Moebius,

figura que possui apenas um lado, uma superfície, por conta de sua torção. Nessa

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proposta teórica não trabalhamos com significados ocultos ou profundos, mas sim com

uma superfície de discurso na qual se operam cortes.

Quero deixar claro que há uma limitação aqui, pois a Banda de Moebius serve

apenas para isso. Não tem como explicar Real, Simbólico e Imaginário a partir dela, por

exemplo, e está tudo bem. Não há algo que sirva para tudo. Não faria sentido isso se

estamos trabalhando com delimitações.

É sempre bom reforçar que, se trabalhamos com o axioma de que um

significante enquanto tal não significa nada, então temos pelo menos duas implicações

aqui: 1) não há como ter significados por trás do significante, pois é necessário fazer

articulação entre ao menos dois; 2) não há como saber o que significa quando um fala, e

caímos novamente na necessidade da articulação de significantes.

Acredito que podemos nos servir da ideia que Lacan apresentou do que ele diz

que seria o fim, a finalidade de seu ensino: “O fim do meu ensino, pois bem, seria fazer

psicanalistas à altura dessa função que se chama ‘sujeito’, porque se verifica que só a

partir desse ponto de vista se enxerga bem aquilo de que se trata na psicanálise” [grifo

nosso] (LACAN, 1967/2006, p.53).

Novamente percebemos a importância de ter um ponto de partida teórico quando

vemos que por essa função que se chama sujeito é possível ter noção daquilo que se

trata na psicanálise. Reforço que na proposta teórica abordada falamos do sujeito do

inconsciente, e não de outra coisa. Ou utilizamos os axiomas que possuímos à nossa

disposição para pensar ou nunca deixaremos a Babel, além de continuar presos à

necessidade de ter que ouvir um dizendo o que precisamos fazer.

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Função e campo do analista no ato analítico

Ramiro Faria de Melo e Souza

[email protected]

1. O que é “ato analítico”?: necessidade e fundação

Desde a abertura do Seminário XV a pergunta sobre o ato incomoda Lacan, que,

por sua vez, se pergunta: tratar-se-á da sessão, da interpretação, do silêncio, da

transferência? (LACAN, 1967-1968). Em primeiro momento, anuncia que o ato analítico

é sempre um ultrapassamento. Por conta disso, “é certo que reencontramos o ato na

entrada de uma psicanálise” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 22/11/1967).

Não há análise sem ato analítico. O ultrapassamento que está em questão pode ser lido

sob essa chave: trata-se de inaugurar algo – que estava lá esperando ou não estava?

Sabemos que o ato é necessário para a psicanálise, mas ela já estaria lá à espera ou, pelo

contrário, é o ato que a funda e, consequentemente, o sujeito que lhe interessa?

Quando falamos do ato de nascimento da psicanálise - o que há seguramente

um sentido porque ela apareceu um dia - justamente esta é a questão que se

evoca: é um campo que ela organiza, sobre o qual ela reina, governando-o mais

ou menos?; é um campo que existia antes? É uma questão que vale a pena ser

evocada quando se trata de um tal ato. É uma questão essencial neste momento

de virada. Seguramente, há todas as chances que esse campo existisse antes.

Não iremos de modo algum contestar que o inconsciente não fizesse sentir seus

efeitos antes do ato de nascimento da psicanálise. Mas, de qualquer forma, se

prestarmos muita atenção, podemos ver que a questão ‘quem o sabia?’ não é,

talvez, sem alcance aí [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição

15/11/1967).

Propomos ler a pergunta “quem o sabia?” como “quem havia o formulado?”.

Trata-se, na chave que acreditamos ser coerente com o ensino lacaniano, da aparição, em

determinado momento da história, de uma hipótese que coloca a existência de algo como

possibilidade. Nesse sentido, é o ato – enquanto hipótese de que haja inconsciente – que

coloca a existência da psicanálise, assim como a do sujeito, em jogo.

Dando continuidade à problemática, Lacan convoca Cantor e Pavlov. Os

transfinitos estavam lá esperando o matemático desde sempre? O estabelecimento do

condicionamento estava no cérebro do cachorro? Enquanto realidade bruta, aguardava

pela mente brilhante que o encontrasse dormente? Segundo Lacan, a questão da

anterioridade, quando se trata do ato, é inútil:

o que é que supomos já estar lá antes que o descubramos? Se, por todo um

campo [religioso, no caso, mas também científico], verifica-se que seria, não

fútil, mas pouco importante pensar que esse saber já está lá esperando-nos

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antes que o fizéssemos surgir, isso poderia levar-nos a fazer questionamentos

mais profundos, pois é bem disso que vai se tratar a respeito do ato

psicanalítico [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 15/11/1967).

Trata-se de uma pergunta superficial. Não importa a realidade anterior, mas a

fundação de um campo. Fiat lux, disse Ele, e fez-se a luz. “Havia luz antes?” é uma

pergunta tão infundada no campo religioso quanto “o que há antes do ato?” para a

psicanálise. Trata-se de uma inauguração. Nesse sentido, o ato orienta-se por suas

próprias leis, determinando o começo à revelia do que existia antes, pois “designa uma

forma, um invólucro, uma estrutura tal que, de alguma maneira, suspende tudo que até

então foi instituído, formulado, produzido como estatuto do ato, à sua própria lei”

[tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 06/12/1967).

Delineia-se, diante de nós, o caráter rigorosamente autônomo e fundador do ato.

Dissemos no início que ele também é necessário para que uma análise exista. Essa

característica não pode ser tratada com ingenuidade. Afirmar que o ato é necessário para

uma análise significa dizer que, caso o ato não ocorra, não haverá análise possível. Da

mesma forma, sua falta impossibilita o surgimento do sujeito do inconsciente. Apostar na

existência do dito sujeito independentemente do ato e contentar-se em esperar sua

milagrosa aparição implica uma postura realista, que ontologiza justamente aquilo cuja

existência depende de uma operação. Tal operação, como sabemos, é o ato, que marca

um começo justamente porque tal início não se inscreve autonomamente: “um ato está

ligado à determinação do começo, especialmente aí onde há necessidade de fazê-lo,

precisamente porque não existe” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição

10/01/1968). Dissemos “não se inscreve autonomamente”, mas a questão é mais radical.

O começo simplesmente não existe sem o ato. Não que ele esteja lá mas não se inscreva.

Ele rigorosamente sequer existe caso algo não marque seu começo. Essa é a acepção que

Lacan pretende dar ao “verdadeiro começo” que o ato marca: a instauração de algo que

não existia, a criação de um mundo, a determinação de algo que se sustenta apenas

mediante a execução do ato. Aqui – ironicamente – Criação e ciência moderna se

aproximam. Ao discutir o princípio que o ato inaugura, Lacan afirma que

é concebível que o ato constitua (se podemos exprimir-nos assim, sem aspas)

um verdadeiro começo, que haja um ato, para dizer tudo, que seja criador e que

o começo esteja lá. Ora, basta evocar esse horizonte de todo funcionamento do

ato para se dar conta que evidentemente é aí que reside sua verdadeira

estrutura, o que é totalmente aparente, evidente, e que mostra a fecundidade,

aliás, do mito da Criação. É um pouco surpreendente que não tenha surgido,

de uma maneira agora que seja corrente, admitida na consciência comum, que

há uma relação certa entre a fratura que se produziu na evolução da ciência no

começo do século XVII e a realização, o advento do alcance verdadeiro desse

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mito da Criação (...) Eu não poderia insistir demais nessa observação que,

como sublinho a cada vez, não é minha, mas de Alexandre Koyré [tradução

nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 10/01/1968).

Lacan se apoia frequentemente em Koyré para destacar a relação da psicanálise

com o campo da ciência. Novamente os votos são renovados. Aqui, em uma estranha

triangulação, ato analítico, mito da Criação e advento da ciência moderna compartilham

a característica central de constituir um novo começo. Essa é a própria estrutura do ato.

Chamar ao palco a ciência moderna é uma cena usual na obra lacaniana. Lacan

procura ressaltar que, tal qual a fórmula de Newton foi um ato que inaugurou um novo

mundo, também o ato analítico desempenha essa função. O exemplo de Newton é

primoroso: as maçãs caíam antes de sua fórmula? Caso adotemos uma postura ingênua

em relação ao corte (ato?) produzido pela ciência moderna, poderíamos de bom grado

admitir que sim pois, afinal, o que mais elas fariam? Como diria Machado, “o cancro rói,

roer é seu ofício”. Contudo, se levarmos a argumentação de Lacan – apoiado em Koyré

– às últimas consequências, podemos afirmar seguramente que as maçãs não caíam de

modo algum. De acordo com a regência aristotélica, elas apenas se encaminhavam ao

lugar natural que lhes era prescrito. O ponto convulsivo da questão é: Newton não

observou as quedas da maçã, como realidade bruta que preexistia à fórmula, para propor

a gravidade. Hipotetizou a gravidade, produziu a fórmula, daí as maçãs, como objetos

que se adequavam à fórmula, caíram. A queda das maçãs é um fenômeno que só foi

autorizado pela escritura da fórmula, pela criação de um campo conceitual que

demonstrou uma hipótese. Lacan, quando se filia a essa tradição, procura transpor a lógica

desse pensamento ao campo analítico. O ato não recolhe o que estava no campo e o acusa,

mas, se sustentado na hipótese fundamental da psicanálise (há inconsciente/há sujeito),

pode criar o campo no qual o sujeito há de vir. É sobretudo – e provavelmente apenas –

pelo ato analítico que o sujeito pode aparecer uma vez que ele depende inteiramente desse

ato. Em suma: o inconsciente não existe sem o ato. Não vai às ruas, não anda pela calçada,

não está à espreita, esperando ser revelado: ou é produzido ou não existe.

Pois bem, o ato é fundador e necessário. Ainda que saibamos de sua necessidade,

permanecemos desavisados de sua operação, ou seja: não sabemos como operá-lo nem

seus efeitos. Falar do ato é falar de uma ação específica, de um agir qualquer? Já sabemos

que o ato funda o sujeito – e o campo analítico –, mas de que sujeito estamos falando?

Lacan dedica os momentos iniciais para dar conta da primeira pergunta que

elencamos. Sistematicamente tirando do campo da psicanálise qualquer tipo de ação que

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esteja arraigada em um corpo biológico ou tecido fisiológico, o ato de que se trata em

psicanálise não se limita a uma ação, ou melhor, a um agir qualquer. Tratando-se de

psicanálise e, mais especificamente, da emergência do sujeito, o que está em jogo é a

articulação significante. Pouco importa o arco reflexo motor ou qualquer outra matriz

natural da ação. Em psicanálise, ato é precisamente ato significante e, em seu estatuto,

nada mais: “o que caracteriza o ato: sua ponta significante, e que sua eficiência de ato,

que não tem nada a ver com a eficácia de um fazer, é alguma coisa contígua a essa ponta

significante” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 10/01/68).

A produção do sujeito que interessa à análise, portanto, não é a de um sujeito

hipostasiado, significado de si mesmo, mas de um sujeito que só se atualiza enquanto

dividido (justamente entre um significante e outro, definição célebre de Lacan). Nesse

sentido, devemos entender o ato significante justamente como a produção da divisão do

sujeito, ou melhor: a tentativa da extração do objeto (a) como objeto dejeto que

justamente marca o resto da operação simbólica. Parece-nos que é isso que Lacan tem em

mente quando fala da destituição do sujeito:

a tarefa à qual o ato psicanalítico dá seu estatuto é uma tarefa que implica já

nela mesmo essa destituição do sujeito (...) isso se chama castração, que deve

ser tomada em sua dimensão de experiência subjetiva na medida que em

nenhuma parte, senão por essa via, o sujeito se realiza exatamente enquanto

falta [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 17/01/1968).

2. O estatuto do analista

Já falamos sobre a importância do ato para a existência do sujeito do inconsciente

e da própria psicanálise. Cabe-nos descobrir se ele seria de fato atuado pelo analista, pelo

analisando, pelo significante ou pelo sujeito – hipóteses momentâneas que elencamos

para o prosseguimento da argumentação. Ao longo de nossa exposição veremos como

que a pergunta por um “quem” não se reduz a uma pessoa específica, tampouco a um

único ator dentre as quatro hipóteses. Um ato analítico é complexo e, portanto, abarca

uma diversidade de fatores para que ocorra. De toda forma, focaremos nossa investigação,

neste momento, na responsabilidade do analista.

Inaugural em nossa argumentação é uma passagem, já em um momento tardio do

seminário, que choca pela sua simplicidade e aparente mudez conceitual. Em uma das

últimas lições, Lacan afirma:

a psicanálise, partamos então do que é, no momento, nosso único ponto firme:

ela se pratica com um psicanalista. É necessário entender "com" no sentido

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instrumental, ou ao menos eu proponho a vocês que entendam assim. Como se

dá que exista alguma coisa que só possa ser situada com um psicanalista?

[tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 13/03/1968).

Duas noções contidas nessa passagem são dignas de menção e serão cruciais para

nossa argumentação. A primeira, menos evidente, é a necessidade do analista para que o

ato ocorra. A segunda, evidente mas de consequências complexas para nosso propósito,

é a noção de instrumento. Como tentaremos demonstrar, o analista é imprescindível ao

ato, contudo não é seu único ator. Não é o único vetor que entra em cena para desencadeá-

lo. É um instrumento: serve a um propósito, se encaixa em um lugar – em uma estrutura.

Imprescindível, mas localizado, ou melhor: possui uma função necessária, mas um campo

restrito1. Na mesma lição, Lacan nos dá uma indicação da função desse instrumento:

com efeito, se o que é do saber deixa sempre um resíduo, um resíduo de alguma

maneira constitutivo de seu estatuto, a primeira questão que se coloca não deve

ser a propósito do parceiro, daquele que está lá, não digo “ajudante”, mas

“instrumento” para que alguma coisa se opere, que é a tarefa psicanalisante?

[tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 13/03/1968).

Se o saber é produzido pelo analisando em associação, o analista marca o resto

inassimilável que o habita insidiosamente. O psicanalista, que garante a tarefa

psicanalisante, é um instrumento às voltas com o resto, ou melhor: é a operacionalização

desse resto da operação do saber. Ora, como pensá-lo, senão a partir da operação do objeto

resto, objeto dejeto, (a), na lógica dos discursos?

Como vimos, o ato garante a existência da psicanálise. Ele, por sua vez, necessita

da função do sujeito suposto saber para que ocorra:

o ato psicanalítico, nós o colocamos como consistindo nisto: suportar a

transferência – não dizemos quem a suporta: aquele que faz o ato, o

psicanalista, então, implicitamente – essa transferência que seria uma pura e

simples obscenidade, diria, redobrada de bobagem, se não lhe restituíssemos

seu verdadeiro nó na função do sujeito suposto saber [tradução nossa]

(LACAN, 1967-1968, lição 17/01/1968).

Suportar a transferência de maneira a sustentar um ato significa, para Lacan, dar-

lhe seu estatuto correto a partir de sua referência ao sujeito suposto saber. O analista,

contudo, sabe que o lugar do suposto saber não existe, ou melhor: o que está em jogo é a

produção de uma falha nele justamente para produzir a destituição desse lugar

1 Campo que parece tão mais elástico quanto menos estudamos epistemologia. Aberrações como o real do

coronavírus e a famosa pergunta “O que a psicanálise tem a dizer sobre isso?”, se não chocam pela falta de

fundamento teórico, tornaram-se tão usuais que já mostram sua verdadeira face insossa. Uma retórica

sonolenta que, como tal, preza pelos floreios discursivos mais do que pelo rigor e consequência da

argumentação.

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privilegiado. Caso o analista regozije-se em ocupar a função de Outro que lhe é

endereçada pelo analisando, nada se produz. Operando ilusoriamente a função de (A), o

analista deixa de fazer a única coisa que lhe cabe no momento: promover uma ruptura em

relação ao lugar da onipotência e marcar o lugar da impossibilidade na estrutura. Trata-

se, pelo contrário, do que Lacan chama de desertificação do ser (désêtre) do sujeito

suposto saber. Ora, é necessário então que o analista advenha nessa posição que lhe é

prescrita. É por conta disso que Lacan retoma a célebre frase freudiana “Wo Es war, soll

Ich werden” (onde Isso esteve, devo Eu advir) para repensá-la de acordo com a

responsabilidade do analista no ato analítico: “‘lá onde isso esteve’, traduzamos ‘eu devo

advir’, continuem: psicanalista” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição

10/01/1968). O analista, portanto, deve advir na estrutura para que um ato se efetive e,

consequentemente, um sujeito seja produzido. Ele advém justamente ocupando a função

de resto que marca, no significante, a incompletude, ou melhor, a inconsistência do

sujeito:

wo $ war, e permitam-me – esse Es –de escrevê-lo com a letra aqui barrada, lá

onde o significante agia, no duplo sentido de que ele acaba de cessar e ia

justamente agir, de modo algum soll Ich werden, mas muss Ich, eu que ajo, eu

que – como dizia outro dia – lanço no mundo essa coisa à qual é possível

endereçar-se como a uma razão, muss Ich pequeno (a), muss Ich (a) werden,

eu – daquilo que introduzo como nova ordem no mundo – devo tornar-me o

dejeto. Tal é a nova forma sob a qual proponho colocar uma nova maneira de

interrogar em que consiste, em nossa época, o estatuto do ato [tradução nossa]

(LACAN, 1967-1968, lição 17/01/1968).

Lê-se: onde o analista leu o significante, ele deve advir como (a), dejeto. Fica

evidente que a participação no ato não depende apenas do analista: é necessário que ele

ocupe uma função prescrita na estrutura que Lacan investiga nesse seminário.

Obviamente não há ato, também, sem o discurso do analisando em associação. Ainda que

não seja responsável único, podemos afirmar, contudo, que sem sua participação o ato

não pode ser operado:

Eis-nos então nesse ponto $ que situa o que é especificamente do ato analítico,

na medida em que é ao redor dele que está suspensa o que chamo 'a resistência

do psicanalista'. 'A resistência do psicanalista' nessa estruturação se manifesta

nisso, que é totalmente constitutivo da relação analítico: ele se recusa ao ato

[tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 24/01/1968).

Caso ele não se recuse ao ato, ele deve advir como objeto (a) na estrutura. Por essa

posição singular o analista efetiva o ato que, por um lado, permite a circunscrição de uma

perda e, por outro causa um sujeito barrado como efeito. São duas faces de uma mesma

moeda. Trata-se, para Lacan, do que constitui o estatuto do analista. Pergunta-mo-nos,

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acima, acerca do estatuto do ato, e indagamos como ele ocorre. Nesse momento, parece-

nos que a ocorrência do ato coincide justamente com a existência de um psicanalista, ou

melhor: só há psicanalista quando há ato. À pergunta “o que constitui um analista?”,

Lacan é preciso em responder: um ato, que coincide com a circunscrição do resto na

estrutura discursiva e com a destituição do sujeito suposto saber.

O que é necessário que seja possível para que haja um analista? Eu o repito:

isso do que partimos, é que para que toda uma esquematização seja possível,

para que a lógica da psicanálise exista, é necessário que haja aí um psicanalista.

Quando ele se coloca aí – depois de ter ele mesmo percorrido o caminho

psicanalítico – ele já sabe onde o conduzirá, então, como analista, o caminho

a percorrer novamente: ao deserto do ser (désêtre) do sujeito suposto saber, a

ser apenas o suporte desse objeto que se chama objeto (a) [tradução nossa]

(LACAN, 1967-1968, 17/01/1968).

Essa citação coloca uma questão importante para nossos fins. Além de deixar

evidente a posição do analista como objeto (a), deixa entrever uma pista que será utilizada

para tentar dar conta do nosso próximo questionamento, acerca do saber que o analista

possui. Aqui, Lacan indica que o analista se coloca aí “depois de ter ele mesmo percorrido

o caminha psicanalítico”. Podemos afirmar, então, que um analista se faz pura e

simplesmente na experiência singular com sua própria análise? Uma passagem, próxima

dessa, coloca a mesma questão de maneira diferente:

o sujeito do ato analítico, nós sabemos que ele não pode saber nada do que se

aprende na experiência analítica, senão que aí opera o que chamamos de

transferência. A transferência, eu a restaurei em sua função completa ao

reportá-la ao sujeito suposto saber. O fim de análise consiste na queda do

sujeito suposto saber e sua redução ao advento deste objeto (a) como causa da

divisão do sujeito que vem ao seu lugar. Aquele que, fantasmaticamente com

o psicanalisante, desempenha o papel em relação ao sujeito suposto saber, a

saber, o analista, é ele que vem ao final da análise suportar ser nada além de

que esse resto, esse resto da coisa sabida que se chama objeto (a) [tradução

nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 10/01/1968).

Novamente, o que está em questão é a própria condição de emergência do objeto

(a), como causa de divisão no sujeito, causa de desejo, a partir da tarefa analisante

permitida por um analista que só é enquanto tal a partir de seu advento lógico como resto

estrutural, decantação da impotência do saber produzido pelo analisando. Aqui, contudo,

Lacan adota uma postura diferente sobre o processo que leva ao ato, afirmando que o seu

sujeito (o analista) “não pode saber nada do que se apreende na experiência analítica”,

apenas que “aí opera o que chamamos de transferência”. Parece haver uma oposição entre

a última e a penúltima citações. Trata-se, afinal, de um saber adquirido pela experiência

ou pelo conhecimento da lógica que rege o discurso analítico? Outra questão que desponta

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da citação passada – e talvez tenha uma explicação em comum à última pergunta – é a

relação temporal que parece estar em jogo. O analista, segundo Lacan, “vem ao final da

análise suportar ser nada além do que esse resto, esse resto da coisa sabida que se chama

objeto (a)”. Se a temporalidade nessa frase é verdadeira, como é possível que o analista

se coloque, desde o início, na posição de resto, já que apenas ao final essa posição lhe é

possível? Para que ele seja resto de “uma coisa sabida”, é necessário que o processo desse

saber já tenha ocorrido. Como, então, ele pode ser, de início, o resto de um processo que

só permite resto no final de seu percurso? Ambas as perguntas elencadas – a

temporalidade e a questão com o saber – podem ser tratadas, pelo menos inicialmente, a

partir do que Lacan fala sobre a “dissimulação” necessária ao ato:

o que constitui o ato analítico como tal é singularmente essa dissimulação pela

qual o analista esquece que em sua experiência de psicanalisante ele pôde ver

essa função do sujeito suposto saber se reduzir ao que ela é (...) e fingir também

que a posição do sujeito suposto saber seja sustentável, porque está nela o

único acesso a uma verdade da qual o sujeito vai ser rejeitado para ser reduzido

à sua função de causa de um processo em impasse [tradução nossa] (LACAN,

1967-1968, lição 29/11/1967).

A noção de dissimulação ou fingimento causa certo estranhamento. Trata-se de

um analista enganador, tal qual o gênio maligno de Descartes? Um analista com olhos de

ressaca? Essa astúcia é fruto da análise própria do analista, como Lacan diz? Pensamos

que a “dissimulação” sai de cena tão logo pensamos a questão analítica sob a visada

lógica. Lacan parece indicar essa saída quando diz que “o ato psicanalítico essencial do

psicanalista comporta alguma coisa que eu não nomeio, que esbocei sob o título de

dissimulação e que torna-se grave se vira esquecimento: fingir esquecer que seu ato deve

ser causa do processo” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 29/11/1967). A

dissimulação em jogo não pode afetar a estrutura. Ainda que o analista saiba – de uma

forma ainda a ser investigada no detalhe – que o sujeito suposto saber deve cair, ou

melhor, que ele não existe, ele ainda assim ocupa seu lugar, pois conhece a estrutura que

garante seu estatuto e sabe da necessidade de sua posição para o processo de análise. Sua

posição lógica é necessária justamente para que o saber se mostre em sua impotência e

um sujeito, causado pelo objeto (a) circunscrito por ela, emerja como efeito. Ele sabe –

e não pode se esquecer! – que é parte imprescindível desse processo. Ciente da estrutura,

o analista faz com que o saber produzido pelo analisante esteja sempre endereçado à

verdade. É disso que não pode se esquecer, ainda que se engaje no jogo de dissimulação

que discutimos acima. Em outras palavras, é o ato do analista que garante a existência do

psicanalisando:

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a extração, a ausência desta dimensão [que dá suporte à realidade do

outro], justamente pelo fato que haja um ser – ser de psicanalista – que possa

fazer girar, por estar ele mesmo na posição de (a), tudo o que diz respeito ao

destino do sujeito psicanalisante, a saber, sua relação à verdade, de fazê-lo

girar pura e simplesmente ao redor desses termos de uma álgebra que não

concerne em nada uma multiplicidade de dimensões existentes e mais que

aceitáveis, uma multiplicidade de dados, multiplicidade de elementos

substanciais no que está aí em jogo, no lugar e respirando sobre o divã: eis o

que é a produção totalmente comparável àquela de tal ou qual máquina que

circula em nosso mundo científico e que é, propriamente dito, a produção do

psicanalisante [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 14/02/1968).

A produção do psicanalisando está associada à máquina do mundo científico.

Depende, parece-nos, principalmente de um arranjo algébrico, de fazer o sujeito

psicanalisante girar em torno dos termos que constituem o discurso analítico. Trata-se de

procurar uma fórmula adequada que torne a operação possível. Nesse sentido, não se

trataria apenas de uma experiência vivida em sua análise própria, mas de um

conhecimento (não no sentido do conhecimento de si mesmo) da estrutura que permite o

ato. Trata-se de saber operacionalizar a fórmula para que o resultado seja adequado ao

esperado.

Contudo, se por um lado a produção do analisando depende da produção do

analista, essa também depende daquela. Aqui, o problema temporal se soluciona: se o

analista se coloca em posição de objeto (a) no início do percurso, é por estar ciente da

estrutura que lhe garante seu estatuto. É apenas no final do processo, que também depende

de o analisando executar a “tarefa psicanalisante”, que o analista advém no lugar que já

ocupava:

ao se colocar no lugar que é aquele do analista, ele chegará enfim a ser, sob a

forma do (a), este objeto rejeitado, este objeto em que se especifica todo o

movimento da psicanálise, a saber aquele que chega, no final, ao lugar do

psicanalista, na medida em que aqui o sujeito decisivamente se separa, se

reconhece como causado pelo objeto em questão [tradução nossa] (LACAN,

1967-1968, lição 21/02/1968).

Podemos sugerir que o psicanalista, já que é necessário que haja um para que o

processo ocorra, está lá desde o início, mas realiza-se “só-depois”. Em seu ato, garante e

orienta a tarefa psicanalisante, mas necessita dela para que seu lugar seja efetivado. Do

início do percurso até seu fim, ele não sabe nada, no sentido do saber inconsciente que se

produzirá pelo discurso do analisando. Contudo, conhece a forma, ou melhor, a lógica

necessária para que o percurso seja trilhado. Nesse sentido, ele não sabe o que será o

percurso. Isso cabe à associação do analisando, incumbido da tarefa. Entretanto, sabe,

como vimos, fazer girar esse percurso sempre em torno dos termos necessário para que a

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lógica que subscreve o processo analítico seja realizada. O problema temporal, paradoxo

aparentemente insolúvel, se dissipa pelo mecanismo lógico do discurso analítico:

ao final da análise, vem o psicanalista pela operação do psicanalisando,

operação que ele autorizou de alguma forma sabendo qual é seu final, e

operação da qual ele se institui a si mesmo como ponto de chegada, malgrado,

se podemos dizer, o saber que ele tem do que é este final [tradução nossa]

(LACAN, 1967-1968, lição 21/02/1968).

Esse jogo temporal só se explica mediante a lógica própria ao discurso analítico.

Podemos dizer, então, que o analista é sobretudo um lugar ocupado no pretérito que só se

realiza no futuro. Ele é autorizado por uma lógica discursiva que o coloca como resto da

operação de saber produzida pelo analisando. Operacionalizando o objeto (a), produz

justamente essa causação do sujeito que faz com que este apareça como desejo. Resta-

nos investigar dois problemas no ato analítico. O primeiro, já delineado aqui, diz respeito

ao saber que o analista possui no processo. Podemos dizer, como o próprio Lacan parece

indicar em diversas passagens, que é sobretudo a experiência de análise própria que

autoriza um analista? O segundo diz respeito à extração do objeto (a). Falamos

exaustivamente que essa é a posição que cabe ao analista. Porém, como sustentá-la?

3. Perdoai-vos, pai, eles não sabem o que fazem?

É muito comum escutarmos no meio analítico que o “analista se autoriza de si

mesmo”. Essa passagem inclusive é uma citação direta de Lacan em “Nota Italiana”.

Contudo, acreditamos que, tanto no texto em questão quanto no desenrolar da obra

lacaniana, a questão da autorização e formação do analista não se esgota nesse axioma.

Pretendemos colocá-lo em evidência, a fim de jogarmos luz sobre o que está sub-

repticiamente em jogo. Dizer que um analista se autoriza por si mesmo entra em nítido

conflito com o argumento desenvolvido aqui, uma vez que afirmamos cabalmente que

um analista é autorizado por uma lógica discursiva própria. Dois anos depois do

Seminário XV, Lacan chama essa lógica de “discurso do analista”:

O lugar reservado ao analista, mediante ato, é o “a”, no canto superior esquerdo.

Ao dirigir-se ao sujeito como o resto que precisamente o cinde, o analista faz com que o

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sujeito produza o significante-mestre que o representa para todos os outros significantes.

Fazendo o “a” agir no tratamento, o analista permite interrogar o saber produzido em

termos de verdade. É a mesma coisa que dissemos anteriormente através de uma citação

de Lacan: o analista, através de sua álgebra – como a máquina –, faz com que o discurso

do analisando esteja constantemente remetido à perda irreparável, à ausência de

significação, enfim, à insubstancialidade do sujeito. Questionar o saber enquanto verdade

é justamente remetê-lo ao objeto (a), encontro que irremediavelmente resultará em um

sujeito dividido entre um significante e outro. É justamente esse movimento que

produzirá uma perda de ser, fazendo com que o sujeito possa ser produzido em sua

diferença. Incidindo justamente na identificação ilusória com um significante (“eu sou

assim”; “sempre fui assim” ou algo do gênero), a tarefa analítica é justamente produzir

uma hiância entre a suposta substância e o significante. Onde supostamente há ser,

substância, significado unívoco e identidade, o ato vem indicar sua falha, sua perda de

substância, sua hiância.

Se analisarmos o discurso do analista mais atentamente, veremos que o lugar da

verdade, ocupado pelo saber, é justamente aquilo que o analista escamoteia. Como se dá,

então, a relação do analista com o saber? Podemos dizer, com efeito, que ele sabe alguma

coisa? Caso a resposta seja afirmativa, uma segunda se impõe: como ele sabe?

Na seção precedente dissemos que o analista, fraturando o saber suposto no

suposto sujeito saber, veicula o objeto (a) na estrutura como resto da própria operação de

saber. Uma vez que essa é a operação analítica, faz sentido pensarmos que o analista não

sabe de nada. Como vimos, o saber inconsciente é uma operação produzida do lado do

analisando. Contudo, vimos Lacan reforçar que o analista, para endereçar o saber do

analisando à verdade, deve fazer com que sua associação livre sempre esteja circulando

em volta dos fatores da álgebra que comanda o discurso analítico, a saber: $, (a), S1 e

S2. É justamente por não saber que o analista consegue manejar os significantes a fim de

produzir o efeito de ruptura desejado. Caso soubesse, conferiria substância e realidade

usual ao narrado, aniquilando a possibilidade de produzir uma perda de significação.

Portanto, podemos responder parcialmente à primeira pergunta. O analista, para produzir

a operação que lhe cabe, não pode saber de antemão o que é produzido pelo discurso do

analisante. É justamente por isso que sua postura é ativa: pergunta, interpreta, busca

remeter a produção de saber à verdade que sustenta o discurso analítico. Contudo, essa é

uma resposta parcial. Reformulando a pergunta, podemos vislumbrar outra quina. O

analista não sabe da produção de saber pelo analisando e sua função é produzir aí uma

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ruptura. Mas podemos dizer que eles não sabem nada? Ou melhor: eles não sabem o que

fazem?

Na seção precedente, já deixamos entrevista a resposta à nossa pergunta. Não é

justamente por saber algo do percurso que o analista se coloca na posição que será

legitimada apenas em um momento posterior? O analista sabe que deve produzir uma

ruptura no sujeito suposto saber e fazer com que o objeto (a) emerja em sua função de

causa. Sabe, também, que a produção do sujeito depende inteiramente dessa operação.

Como vimos, não há psicanálise sem ato e não há ato sem o advento do objeto (a) na

estrutura. Ora, o analista – como Lacan frisa diversas vezes – está avisado desse processo.

Caso não estivesse, ocuparia a função de sujeito suposto saber, empacando o tratamento

e impossibilitando o ato. Desavisado do que é a clínica analítica e o percurso que ela

compreende, poderia cair na ilusão do entendimento, da compreensão ou até da

legitimação de um saber todo, fechado. Digamos: de um grande Outro não barrado, da

identidade do sujeito com o significante. Ora, a operação analítica é justamente criar uma

fenda entre identidade e significante. Nesse aspecto, torna-se evidente que o analista deve

saber alguma coisa. Então, do que sabe? E como sabe?

A última pergunta está insidiosamente presente no percurso de nosso trabalho.

Como já dissemos, há duas possibilidades: sabe por experiência e seu acúmulo ou por

estar avisado de uma estrutura lógica. Algumas citações precedentes permitem entrever a

primeira possibilidade como correta. Contudo, propomos que a premissa “um analista só

se produz mediante análise” não é verdadeira. O tripé sobre o qual a formação do analista

se apoia (análise, supervisão e teoria) é frequentemente limado dos outros apoios e

sustentado em um pé só (análise). Um pé só é Oedipus, pés inchados, Édipo, aquele que

não enxerga o próprio caminho, não vê onde pisa. Tentaremos mostrar que a função do

analista não se desempenha apenas pela experiência própria de análise, mas requer

imprescindivelmente um entendimento da estrutura em questão no ato. Caso um analista

não esteja avisado da lógica que garante seu estatuto e sua função, dez, quinze ou vinte

anos de análise podem muito bem fazer dele um sujeito menos mal-ajambrado em sua

existência cotidiana, mas não farão dele um analista. Em que momento de análise o

analisando, futuro analista, se dá conta da lógica do toro, por exemplo? Ou da operação

discursiva em jogo no ato? Quando ele se depara com a circunscrição do (a) ou com a

tábua da sexuação? Como exaustivamente martelamos ao longo do presente percurso, o

analista é sobretudo uma função autorizada pela lógica do discurso. É daí, portanto, que

o analista parte:

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o psicanalista nessa posição [objeto a] pode não ter – de tudo isso que venho

de desenvolver, a saber, disso que a condiciona [condiciona sua posição] – a

mínima ideia, a mínima ideia da ciência, por exemplo. Isso é comum. Na

verdade, não lhe é pedido que a tenha, visto o campo que ocupa e a função que

ele deve aí desempenhar. Do suporte da lógica da ciência, pelo contrário, ele

teria muito a aprender [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição

20/03/1968).

O que está em questão, para Lacan, é o suporte da lógica que comanda o

desenvolvimento da ciência. O analista, em sua função, não precisa ter uma ideia do que

seja a ciência, do que seja o advento da ciência moderna, por exemplo, mas deve estar

atento – teria muito a aprender – ao suporte da lógica, uma vez que é desse mesmo suporte

que a análise, em sua condição formal, ganha estatuto. O projeto de formalização da

psicanálise empreendido por Lacan desde os primórdios de seu ensino sempre procura

estabelecer os fundamentos da clínica desde uma articulação lógica e matemática. Ainda

que essa formalização esteja comprometida com o resto que lhe confere estatuto não-

todo, ela nunca é abandonada por Lacan. Muito pelo contrário: esse esforço o acompanha

desde 1955, em seu seminário sobre “A carta roubada”, até o final de seu percurso, focado

nas tranças e nos nós. Dessa forma, podemos afirmar que Lacan se esforçava em fazer

com que seus interlocutores abandonassem preconceitos biológicos, naturalistas ou

empiristas em prol de uma acepção lógica e antissubstancial da psicanálise. E como o

analista se forma nesse campo, senão a partir da lida com os matemas que Lacan

disseminou em profusão? Apenas o matema é transmissível. Podemos propor, então, que

o analista, na percepção lacaniana, ganha seu estatuto a partir do confronto com a lógica

que o subscreve, não com o real inefável de sua experiência singular. Caso desconheça

essa lógica, desconhecerá também o que garante sua existência e chancela seu ato.

Falamos em abundância sobre a função do ato analítico na seção precedente.

Trata-se de operacionalizar o (a), cernir o resto discursivo que cai da associação “livre”

do psicanalisando. Trata-se da ruptura do saber produzida justamente por esse dejeto. A

questão com a qual nos deparamos então foi: como que isso se opera? Quebrando

palavras, produzindo interpretações em tudo aquilo que parece estranho ao analista,

ficando em silêncio? A resposta a essa pergunta depende inteiramente da lógica. É

sobretudo no Seminário IX: “A identificação” que encontramos uma operacionalização

da emergência do objeto (a) a partir do discurso. Na ocasião, Lacan convoca uma

superfície topológica para servir de suporte à operação analítica: o toro.

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O que está em jogo em sua formalização é a produção de um sujeito desejante, ou

melhor, de um sujeito enquanto desejo. Ora, o que diabos isso pode ter a ver com uma

figura matemática?

No início do Seminário IX, falando sobre a relação do sujeito com o significante,

Lacan afirma que inicialmente o sujeito se constitui como -1, ou seja, como ausência de

traço (LACAN, 1961-1962). O traço unário, o “Um irremediavelmente diferente”, é

justamente aquilo que engendra a repetição significante por ser o suporte absoluto da

diferença. Um significante, buscando recuperar o traço que somente articula a diferença,

não consegue repetir-se idêntico a si mesmo. Repete-se, portanto, diferencialmente:

penso ter marcado suficientemente para vocês que a noção da função da

repetição no inconsciente se distingue absolutamente de todo ciclo natural no

sentido que o que é acentuado não é o seu retorno, é que o que é buscado pelo

sujeito é sua unicidade significante – e na medida que um dos tours da

repetição, se podemos dizer, marcou o sujeito que se coloca a repetir o que ele

não poderia senão repetir, pois isso será sempre apenas uma repetição, mas

com a finalidade, com o desígnio de fazer ressurgir o unário primitivo de uma

de suas voltas [tradução nossa] (LACAN, 1961-1962, lição 07/03/1962).

Essa repetição é a chamada insistência significante ou demanda (representada

como D na imagem). Repete-se justamente porque um significante jamais coincide

consigo mesmo, jamais é idêntico a si mesmo, jamais recupera esse unário miticamente

primitivo. Em outras palavras, x≠x. Uma vez que a repetição sempre implica uma

diferença, o sujeito se constitui exatamente como ausência de traço, como busca sempre

fracassada de sua unicidade. Em outras palavras, o sujeito encontra-se, na lógica da

repetição, foracluído pela própria operação da demanda:

dizer que o sujeito se constitui de início como -1 é alguma coisa onde vocês

podem ver que efetivamente, como podíamos esperar, é como verwofen

[rejeitado/foracluído] que nós iremos o reencontrar, mas para perceber que isto

é verdade, será necessário uma volta tremenda [tradução nossa] (LACAN,

1961-1962, lição 07/03/1962).

A “volta tremenda” a que Lacan faz alusão é justamente a volta do toro que faz

emergir pelas voltas da demanda (D) o desejo2 (d), ou melhor, o sujeito desejante.

2 Lacan chama o desejo de "a metonímia das demandas" nesse momento.

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Interessa-nos destacar que é apenas pelo entendimento da lógica do toro que o analista

pode supor um sujeito aí onde ele é foracluído. Essa volta, inclusive, não é percebida pelo

analisante, foracluído pela repetição de suas demandas. O sujeito, como -1, é

primeiramente subtraído (rejeitado, foracluído) em relação a seu próprio desejo

precisamente pela volta que ele não conta – percorre sem saber. O que Lacan procura

pontuar é que o sujeito, ao fazer as voltas de sua demanda, se subtrai ao próprio desejo,

ou seja, se vê privado de sua própria condição desejante:

na medida em que o sujeito percorre a sucessão das voltas de sua demanda, ele

necessariamente se enganou por 1 na sua conta, e nós vemos aqui reaparecer o

-1 inconsciente em sua função constitutiva. Isso pela simples razão que a volta

que ele não pode contar é aquela que ele fez ao fazer a volta do toro (...) Porque,

em relação a essas voltas que se sucedem – sucessão dos círculos plenos [D] –

vocês devem se dar conta que os círculos vazios [d], que são de alguma

maneira tomados nos anéis desses giros e que unem entre eles todos os círculos

da demanda, deve ter aí alguma coisa que tem relação com o pequeno (a),

objeto da metonímia, na medida em que ele [o sujeito] é este objeto [tradução

nossa] (LACAN, 1961-1962, lição 07/03/1962).

É necessário um analista para efetivar um sujeito, produzi-lo como +1 onde ele

estava foracluído (-1). Essa produção se dá pelo advento do objeto (a) na estrutura do

toro. Ora, como que um analista se produziria tão somente a partir de sua análise se um

analisando, por estar estruturalmente elidido em sua própria repetição, não se dá conta de

uma das voltas que perfaz, ou seja, engana-se por 1 na conta? É o analista que advém aí,

ciente da estrutura do toro, para fazer aparecer esse (a) justamente pela segunda volta

despercebida pelo analisando. Este, alienado à repetição, não se dá conta que as demandas

que se esvaem (D) completam uma outra volta, aquela de sua condição desejante (d). O

toro, em seu percurso, comporta duas voltas. O sujeito está em posição completamente

objetal em relação ao seu próprio discurso. É nesse lugar que o analista opera o (a) como

resto do saber fraturado do analisando. É justamente ao cernir essa segunda volta, esse

lugar do objeto (a), que um sujeito desejante emerge como consequência.

Resta-nos desenvolver mais a fundo como se dá a produção desse lugar, a extração

desse objeto que terá por consequência a emergência do sujeito – e a consecução do ato

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analítico. Trata-se, como veremos, da produção de um lugar chamado por Lacan de

“mesmo”. A partir da lição do dia 11 de abril de 1962, Lacan começa a elaborar a figura

do “oito interior” para exemplificar o movimento do toro. Trata-se do movimento

limítrofe da operação significante, que produz uma “zona de exclusão” cuja função é de

marcar o lugar da emergência do objeto (a) e, consequentemente, do real (LACAN, 1961-

1962).

O “oito interior” permite formalizar as operações que a lógica do significante

coloca em jogo. O significante, como vimos, implica a diferença em relação a si mesmo

(x≠x). Sobretudo, esse corte possibilita a Lacan a consideração de um movimento

extremamente específico da lógica significante: seu retorno sobre si mesmo. Trata-se da

emergência do limite simbólico, do campo em que, pela repetição da operação

significante, um real é colocado em jogo pela figura do "mesmo" que aludimos acima. É

esse movimento que deve ser desempenhado pelo analista em sua função: produzir uma

operação no limite do simbólico, circunscrevendo um lugar lógico real do (a) que tem por

efeito um sujeito dividido:

No lugar marcado por Lacan como um “X” propomos assinalar o próprio advento

do objeto (a), produzido nos limiares do significante na tentativa de atingir sua unicidade.

Como ela é impossível, cabe ao analista marcar o lugar de resto dessa tentativa. É isso

que representa, para nós, a fratura do sujeito suposto saber: circunscrever o dejeto que

inevitavelmente está em jogo sempre que o significante, tentando repetir-se em busca da

sua unidade, ou seja, buscando significar-se a si mesmo, aparece como diferença de si

mesmo. Segundo Lacan, essa operação é um corte produzido pelo significante e recolhido

pelo analista. Em um primeiro momento, há o significante como “seção de corte”:

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Aí, contudo, o lugar que nos interessa ("X") não foi ainda produzido. É necessário

que se produza um outro corte (um re-corte) para que o looping significante seja fechado

e o lugar real, responsável pelo advento do (a) como resto da operação significante, marca

da divisão e da fratura do sujeito suposto saber, seja produzido:

Nesse sentido, o ato consiste justamente na queda da significação e substância

supostamente inequívocas que S1 conferiria ao sujeito. Amarrando esse S1 a um outro

significante – pela circunscrição do objeto a – o ato analítico opera justamente a falta de

substância do sujeito, a abertura da hiância entre aquilo que seria o ser do sujeito e o que,

pela lógica significante, subscreve seu movimento: estar entre um significante e outro.

Esse local, para Lacan, é real:

o corte levado sobre o real manifesta aí – no real – o que é sua característica e

sua função, e o que ele introduz em nossa dialética – contrariamente ao uso

que se faz dele, que o real é o diverso – o real, desde sempre eu me servi dessa

função original, para dizer-lhes que o real é o que introduz o mesmo, ou mais

exatamente: "O real é o que retorna sempre ao mesmo lugar". O que isso quer

dizer, senão que a seção de corte, em outras palavras, o significante, sendo isso

que nós dissemos – sempre diferente de si mesmo –, A não é idêntico a A,

nenhuma maneira de fazer aparecer o mesmo, senão do lado do real [tradução

nossa] (LACAN, 1961-1962, lição 30/05/1962).

Ora, qual pode ser o interesse em produzir esse lugar real, marcado pelo advento

do (a), senão pela simples razão de que, segundo Lacan, o sujeito depende dele para

emergir? É isso que afirma em “O aturdito”, quando diz que “o sujeito (...) como efeito

de significação é resposta do real” (LACAN, 1973/2003, p.458). É a partir do cernimento

produzido por um analista pelo seu ato, fraturando o saber inconsciente colocado em jogo

pelo analisando e a suposta substância que o faz sofrer, que esse lugar real do resto

simbólico emerge em sua função de causação. É aí que o analista deve advir. É aí que seu

ato tem campo e função delimitados. Trata-se, como vimos, de cernir o campo do resto

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produzido pelo significante em sua tentativa de recuperar unicidade, de significar a si

mesmo: circunscrever a impossibilidade dessa operação. É uma tarefa que se coloca nos

estertores do simbólico, no limite de significante. Ao produzir seu ato, o analista sublinha

essa segunda volta da qual o analisando não pode se dar conta. Em um primeiro momento,

o sujeito estava foracluído justamente pela repetição das demandas, pelas voltas

significantes. Ao produzir um re-corte, circulando o resto dessa operação, o analista faz

de fato advir o objeto (a) na estrutura discursiva.

A temporalidade peculiar do ato analítico e da posição do analista pode ser

também elucidada pelo toro. Dissemos anteriormente que o analista ocupa uma posição

que só será legitimada no futuro, pois ele sabe o percurso que está em jogo no processo

analítico. Ora, de que sabe ele, senão justamente da superfície tórica ou, em termos gerais,

da estrutura que lhe concerne? Pois sabe que há uma segunda volta, e ali ele há de advir

como efeito de corte e circunscrição do real pela impossibilidade de o significante

significar a si mesmo, ou melhor, de o sujeito ser idêntico ao significante que

supostamente lhe confere substância. Quando Lacan começa a elaborar sobre o “oito

interior”, diz que a área marcada pelo “X” é justamente uma área de exclusão:

há em algum lugar necessariamente – pelo fato que o significante se duplica, é

chamado à função de significar-se a si mesmo – um campo produzido que é de

exclusão e pelo qual o sujeito é rejeitado no campo exterior [tradução nossa]

(LACAN, 1961-1962, lição 09/05/1962).

O sujeito, na repetição significante, é rejeitado, foracluído, comparece alienado

em sua própria demanda, em suma: -1. Segundo Lacan, contudo, esse campo de

foraclusão deve ser guardado (LACAN, 1961-1962). A estranheza da afirmação dilui-se

quando percebemos que esse é o movimento do ato analítico: trata-se justamente de

guardar esse campo de exclusão por estar ciente da estrutura. Ou seja: guarda-se o campo

de foraclusão do sujeito justamente porque é a partir dele que o analista vai cernir o lugar

da repetição, lugar limítrofe produzido como resto pelo próprio simbólico. O analista,

aqui também, guarda um campo no pretérito que se atualizará no futuro como lugar por

excelência de causação do sujeito. Guarda, pois, ciente da estrutura que, ao dar uma volta,

completa na verdade duas.

Retomemos a pergunta: perdoai-os, pai, eles não sabem o que fazem? De fato,

como dissemos, o analista não possui o saber inconsciente que será produzido pelo

analisando. Contudo, de acordo com nossa exposição, o axioma segundo o qual “um

analista só se autoriza por sua própria análise” não se sustenta de modo algum. Isso se dá

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pela simples razão de que um sujeito está sempre foracluído por conta da repetição de sua

demanda. Ora, já que ele nunca se dá conta da segunda volta que o analista supõe, como

ele haveria de se tornar analista tão somente por sua análise? Em que momento ele se

daria conta da segunda volta do toro, senão a partir de sua lida direta com a estrutura

topológica? É claro que sua função é produzir justamente uma ruptura no campo do saber,

endereçando-lhe à verdade, mas ele não faz isso sem estar apoiado nas estruturas lógicas

que garantem existência à sua função, seu estatuto e seu ato. Em relação ao ato, o analista

deve se restringir à efetividade do seu limitado campo e deve, sim, saber o que fazer.

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497.

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O lugar do analista e seu manejo: prudência na prática clínica

Priscilla Ribeiro G. Costa

[email protected]

Retomando algumas considerações sobre a proposta temática do fazer do analista,

voltamos a um ponto crucial de discussões que tocam a clínica de maneira essencial e

com uma certa urgência. Pensar como se dá o manejo do analista e quais critérios definem

seu lugar é tão importante quanto sua execução, deixando claro de antemão que aqui o

trabalho será de questionar os critérios e em que momento eles deixam de ser atendidos

ou não na prática clínica, bem como suas consequências.

É comum escutarmos como o estereótipo do analista passa por um lugar por vezes

frio, distante ou calado, sempre priorizando o que nos é suposto sobre o que seria um

lugar de objeto a. Nos discursos, Lacan é enfático ao colocá-lo como agente no discurso

do analista, justamente se dirigindo a um sujeito barrado que seja possível interrogar

enquanto outro.

No entanto, quando falamos de clínica não podemos definir lugares estáticos, ou

presumir que o analista trabalhe o tempo todo do mesmo lugar e isso seja a definição de

função analítica bem cumprida enquanto tarefa. A clínica vem nos exigindo cada vez mais

flexibilidade frente às demandas de sofrimentos que chegam por vezes caóticos e

desorganizadores. Partindo dos discursos, Lacan chama atenção, no seminário XVII “O

avesso da Psicanálise” (1969-1970/1992), que tanto o discurso da histérica quanto o

discurso do analista são preponderantes no setting da análise, no entanto outros dois

discursos são colocados: o do mestre e o universitário.

O que se percebe é que frente às demandas de análise, especialmente em casos

mais delicados com possíveis medicalizações, questões suicidas, escarificações,

melancolias graves, dentre inúmeros casos, presumir que o analista só trabalhará com

intervenções sobre as formações do inconsciente, com silêncio, ou apenas fazendo

escansões dos significantes junto a cortes é por vezes simplório. Que responsabilidade

carrega o analista na medida em que define a condução de tratamento? Podemos apostar

que a responsabilidade seria, antes de tudo, ser prudente. A palavra prudência vem do

latim, Prudentia, significando previsão, sagacidade, olhar adiante, preparar, antecipar.

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Lacan situa sua preocupação com a prática clínica em seu seminário sobre “O Ato

Psicanalítico”1 (1967-1968), na tentativa de definir qual seria o estatuto do ato. Nesse

mesmo período, ele estava instalando o procedimento do passe e tentando estabelecer

critérios sobre a produção do analista, posições que mais adiante levantariam novas

questões. De fato, esse ponto é motivo de inquietações até hoje, a saber, o que viabiliza a

produção do analista e quais fundamentos são necessários para que a prática clínica seja

possível.

Na lição de 15 de novembro de 1967, Lacan comenta sobre um possível

engajamento quando se trata do curso da análise, afirmando:

Falei há pouco de engajamento, seja do analisado ou do analista, mas, afinal,

porque não colocar a questão do ato2 de nascimento da psicanálise, pois, na

dimensão do ato, logo surge esse algo que implica um termo como esse que

acabo de mencionar, a saber, a inscrição em algum lugar, o correlato do

significante, que, na verdade, não falta jamais no que constitui um ato. Se posso

caminhar aqui de um lado para o outro, falando-lhe, isso não constitui um ato,

mas se um dia ultrapassar certo limiar em que me coloque fora da lei, nesse dia

minha motricidade terá valor de ato (LACAN, 15/11/1967, p.15).

Ele comenta que o ato de nascimento da psicanálise, se assim podemos chamar,

não se trata de nada novo, afinal a psicanálise está aí faz muito tempo. Mas quando nos

referimos ao ato analítico, este implica uma inscrição em algum lugar, um correlato do

significante, uma vez que o manejo também requer o que ele chama de engajamento. E o

que seria pensar um engajamento em uma análise? Que o analista possa fazer operar sua

função para que a análise se dê já seria um bom começo. Lacan afirma que começar uma

análise é um ato, mas faz questão de chamar atenção do lado de quem estaria esse ato: do

analista.

Uma psicanálise é uma tarefa, e alguns dizem até um ofício. Não sou eu quem

o disse, mas pessoas que, ainda assim, são muito competentes. É preciso

ensinar-lhes seu ofício, às pessoas que têm ou não que seguir a regra de

qualquer forma que os senhores definam. Enfim, neste campo não se diz o

ofício do psicanalisante (LACAN, 10/01/1968, p.82).

Se o ofício é claramente do analista, cabe a ele a responsabilidade de encontrar a

melhor forma de conduzir o tratamento levando em conta a teoria que o instruiu a isso.

Em uma análise não há garantias do que poderia ser a melhor intervenção ou o melhor

ato analítico, até porque o ato não é racionalizado anteriormente, mas não deixa de seguir

1 Seminário que foi iniciado em 1967 e interrompido por Lacan em solidariedade ao movimento estudantil

de maio de 1968. 2 No original acte, que tanto significa ato, ação, movimento, como ata, declaração ou certidão (LACAN,

1967-1968, p.15).

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uma formalização lógica da função do analista operando ali. Retomemos então nosso

título, acerca do que caracterizaria uma postura prudente.

É importante retomar aqui o seminário XVII “O avesso da Psicanálise” (1969-

1970/1992) para localizar o momento em que Lacan pontua e faz uma distinção do que

está em questão no discurso enquanto estrutural, que ultrapassaria a palavra, elaborando

então seu tão famoso aforismo de que “é um discurso sem palavras”:

É que sem palavras, na verdade, ele pode muito bem subsistir. Subsiste em

certas relações fundamentais. Estas, literalmente, não poderiam se manter sem

a linguagem. Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo

número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever

algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas

(LACAN, 1969-1970/1992. p.11).

Esse é o momento em que vamos nos ater para tentar esclarecer o que proponho

sobre o manejo clínico prudente. Lacan chama atenção nesse momento para as estruturas,

o que pode se caracterizar em forma de, se atentando para o que se passa nessa relação

que é fundamental na qual enunciou a emergência do sujeito frente a um significante que

representa esse sujeito junto a outro significante. Partindo desse ponto, vamos trabalhar

com quatro lugares distintos que tomariam a forma do discurso: o agente, o outro, a

produção e a verdade. As quatro fórmulas dos discursos (centrais no ensino de Lacan)

giram em torno desses lugares de acordo com a estrutura proposta para cada discurso. É

interessante aqui como o objetivo do analista passa a ser a histerização do discurso, como

o mesmo diz, uma introdução estrutural no que seria o discurso da histérica. Mas Lacan

também diz aqui talvez uns dos detalhes mais curiosos sobre essa estrutura do discurso

histérico:

Esse discurso existiria de qualquer jeito, quer a psicanálise estivesse lá ou não.

Eu disse de maneira figurada, dando a isto seu suporte mais comum, aquele de

onde surgiu para nós a experiência principal que é, a saber, o rodeio, o traçado

em ziguezague onde repousa esse mal-entendido que, na espécie humana, as

relações sexuais constituem (LACAN, 1969-1970/1992, p.34).

É entendido que a possibilidade de histerização do discurso (discurso da histérica)

carrega consigo uma possibilidade importante que seria de situar o sujeito barrado no

lugar de agente, para que dessa forma pudesse emergir o desejo de saber. Se partimos de

uma divisão estrutural feita pela linguagem, proporcionar um trabalho analítico que

questione o significante mestre a partir desse sujeito dividido enquanto agente – e

podendo produzir um saber sobre sua verdade – é no mínimo um trabalho interessante a

ser feito e conduzido enquanto possibilidade analítica rigorosa.

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Mas aqui entra uma questão com a qual comumente nos deparamos a respeito de

uma das condições do lugar do analista que consequentemente perpassa o lugar do

analisante na estrutura dos discursos. Pode o analista estar sempre no seu discurso

enquanto objeto a? Deve o analisante sempre estar no lugar do discurso histérico? Qual é

o objetivo da análise mediante as fórmulas dos discursos? Trata-se de uma das mais

importantes formalizações de Lacan em seu ensino.

No entanto, um dos pontos principais fica de lado quando pensamos na prática

clínica a partir dessa leitura e chamo atenção para o que poderia nos servir enquanto uma

das pedras fundamentais da prudência do analista e das diretrizes do tratamento: o analista

faz o discurso girar. Aqui podemos chamar atenção para o estatuto do ato analítico: faz

parte dele também essa mudança lógica no discurso a partir de seus tempos e formas de

laço social.

Darei um exemplo clínico na tentativa de esclarecer. Uma paciente chega ao

consultório com histórico severo de tentativas de suicídio e escarificações, trazendo para

análise um sofrimento devastador, passando por melhoras e pioras durante o tratamento,

mas seguindo suas sessões ancorada na transferência com a analista, sempre colocando o

quanto tomava grandes decisões em momentos de crise que afundavam sua vida

posteriormente, tornando-se um ciclo repetitivo que desencadeava angústia e

desorganização psíquica. Em determinado momento da sessão, diz que não suportará

passar por isso de novo e que prefere morrer do que ver isso acontecer novamente,

relatando suas opções para uma nova tentativa de suicídio. Chega então a pergunta que

poderia ser a mais temida entre os analistas, embora seja a mais antiga e conhecida

também. Ela pergunta: “O que devo fazer? Por favor me diga o que devo fazer”. E a

analista responde: “Tente não tomar decisões importantes nos seus momentos de crise”.

Após essa fala, a analisante consegue parar por um instante e acalmar-se durante a sessão,

abrindo aí um espaço de fala para dissipar o que chamava de pensamentos suicidas.

Como pensar nos discursos a partir de uma resposta do analista à questão de um

analisante trazida dessa forma, por vezes tão comum em processos de análise, se

repetidamente escutamos o quanto o analista deve evitar responder a uma demanda do

analisante? Se pensarmos o analisante no lugar de discurso da histérica, lembramos que:

(...) quanto ao discurso da histérica, nem sempre sabemos o que é esse sujeito

barrado. Mas se é de seu discurso que se trata, e esse discurso é o que possibilita

que haja um homem motivado pelo desejo de saber, trata-se de saber o quê? –

que valor ela própria tem, essa pessoa que está falando. Porque, como objeto

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a, ela é queda, queda do efeito de discurso, por sua vez quebrado em algum

ponto (LACAN, 1969-1970/1992, p.35).

Como fica o próprio discurso do analista frente a uma demanda em que o

analisante obtém uma resposta? Seria esse um discurso que se manteria constante em

análise? O exemplo clínico sugere que não, não é um lugar permanente. O caminho

definido aqui é novamente pela condição de que o ofício é do analista e não do analisante.

Esse é um exemplo de um caso grave, mas poderia não ser também, poderia ser um

momento qualquer da análise que demandasse uma ampliação de leitura sobre os lugares

dos discursos em movimento. O analista não sabe o que entrará por sua porta ao receber

um analisante, mas precisa estar advertido de sua responsabilidade em estar disponível

àquele que aceita tratar em seu consultório. Há um tempo lógico em questão que não

determina o que seria um início, um meio e um fim, e uma posição do analista que também

é lógica baseada nesses tempos.

Podemos aqui retomar o texto de Lacan sobre “O tempo lógico e a asserção da

certeza antecipada: um novo sofisma” (1945/1998), que poderá ajudar na discussão da

posição lógica do analista. O texto começa com a história que se passa em um presídio,

onde o diretor pede que compareçam três detentos escolhidos e lhes comunica que um

deles será libertado, mas haverá a condição de passar por uma prova, um problema de

lógica. São três pessoas e cinco discos que se diferem por sua cor, três brancos e dois

pretos. Sem que os detentos possam escolher ou ver, lhes são colocados cada um dos

discos em suas costas, e a partir dos exames dos companheiros, o primeiro que puder

deduzir sua própria cor é que poderá ter o benefício da liberdade. Será preciso que sua

conclusão seja fundamentada em motivos de lógica e não de probabilidade. O texto

mostra como os três conseguem sair simultaneamente após a análise dos demais, seguros

das mesmas razões de concluir. Os três são discos brancos.

Lacan põe em xeque que o valor lógico da solução apresentada, tendo em vista a

questão do sofisma como aquele que se apresenta como um possível erro lógico, tem a

função de produzir uma ilusão de verdade que pode recair sobre uma estrutura

inconsistente, baseada em um argumento que pode ser bem colocado, desde que convença

seu interlocutor. Um desafio da verdade. O que o sofisma revela, entretanto, é a prova da

discussão. Ele chama atenção para a prevalência da estrutura temporal e não espacial do

processo lógico, levando em conta três tempos de possibilidade que ajudaram os detentos

a chegarem em suas conclusões, se utilizando através da lógica não daquilo que os

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detentos veem, mas do que descobrem positivamente a partir do que não veem – os discos

pretos. E aqui entram os mesmos tempos que podem aparecer em um processo de análise.

Como se vê na determinação lógica dos tempos de parada que elas constituem,

a qual, objeção do lógico ou dúvida do sujeito, revela-se a cada vez como o

desenrolar subjetivo de uma instância de tempo, ou, melhor dizendo, como a

fuga do sujeito para uma exigência formal (LACAN, 1945/1998, p.203).

Ele evidencia que não é a saída dos outros que possibilita a conclusão de um

detento, mas o recuo, chamando atenção dessa forma para o momento de concluir, que

poderia lhes ter custado a liberdade. Mais uma vez aqui cabe entrar a prudência do lugar

do analista frente aos tempos da análise.

Mostrar que a instância do tempo se apresenta de um modo diferente em cada

um desses momentos é preservar-lhes a hierarquia, revelando neles uma

descontinuidade tonal, essencial para seu valor. Mas, captar na modulação do

tempo a própria função pela qual cada um desses momentos, na passagem para

o seguinte, é reabsorvido, subsistindo apenas o último que os absorve, é

restabelecer a sucessão real deles em compreender verdadeiramente sua gênese

no movimento lógico (LACAN, 1945/1998, p.204).

A partir das proposições até a conclusão, o que se evidencia são os seguintes

tempos: o instante de olhar, possuindo um valor de instantaneidade, um tempo iminente.

Um tempo para compreender, que seria um tempo de mediação, um tempo que se define

entre o sentido e seu fim.

Mas, desse tempo assim objetivado em seu sentido, como medir o limite? O

tempo de compreender pode reduzir-se ao instante de olhar, mas esse olhar,

em seu instante pode incluir todo tempo necessário para compreender. Assim,

a objetividade do tempo vacila com seu limite (LACAN, 1945/1998, p.205).

O movimento lógico dos tempos permite uma asserção de certeza antecipada, uma

possível conclusão apresentada como uma decisão: há uma urgência do momento de

concluir. Mais uma vez, Lacan chama atenção que é nessa urgência do movimento lógico

que se pode apostar em uma saída. Essa conclusão será posta à prova através da dúvida,

mas ele não seria capaz de verificá-la se primeiramente não estabelecesse tal conclusão

ou certeza.

Os tempos não teriam uma produção de verdade, seguindo o texto de Lacan, se

não tivessem passado pelo outro.

Nessa corrida para a verdade, é apenas sozinho, não sendo todos, que se atinge

o verdadeiro, ninguém os atinge, no entanto, a não ser através dos outros (...)

A coletividade já está integralmente representada, na forma do sofisma, uma

vez que se define como um grupo formado pelas relações recíprocas de um

número definido de indivíduos, ao contrário da generalidade, que se abrange

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abstratamente um número indefinido de indivíduos (LACAN, 1945/1998, p.

212).

Podemos ver aqui como a lógica pode ajudar a chegar a conclusões importantes

no que tange os discursos, enquanto um instrumento também teórico que possa contribuir

na orientação da prática clínica. Um outro recurso que caberia para ajudar a reforçar os

critérios do lugar do analista e conceber a direção do manejo seria a topologia, que traz

pontualmente os recursos que nos seriam suficientes para pensar também uma estrutura

RSI. Algumas considerações de Alfredo Eidelsztein em seu livro sobre “O grafo do

Desejo” (2017) podem auxiliar nas dimensões que ele situa enquanto implicações sobre

topologia importantes para pensar essa estrutura:

A primeira: que em topologia se ignora forma, ou seja, que em topologia as

formas não cumprem nenhuma função. (...) A segunda: em topologia, nenhuma

função de tamanho ou de distância mensurável, é levada em consideração. Em

psicanálise fazemos extensiva esta propriedade ao tempo e espaço. Vocês

sabem perfeitamente que às vezes um instante não termina nunca, e que outras

vezes muitos anos se passam em um momento, de modo que essas dimensões

do tempo já não coincidem em absoluto com nenhuma categoria de medida:

um instante pode ser mais longo do que vários anos. A respeito do espaço é

ainda mais fácil perceber o problema. Em psicanálise, a dimensão do espaço

não vale pela medida. (...) A terceira: a topologia nos permite trabalhar com

uma nova relação entre interior e exterior. (...) A quarta: a topologia subverte

a relação sujeito/objeto. (...) A quinta: a topologia trabalha com a noção de

invariantes. Os invariantes são propriedades estruturais. Eu não sei se vocês

têm a mesma sensação, a sensação de que a partir do que estamos dizendo tudo

vai se desmanchando. Não ficam, nem a distância, nem a forma, nem tamanho.

Parece que tudo se desmancha. O fato é: tudo se desmancha, exceto os

invariantes, ou seja, fica a estrutura (EIDELSZTEIN, 2007/2017, p.18).

A partir das dimensões colocadas por Alfredo, podemos perceber que a topologia

nos proporciona instrumentos teóricos para trabalhar com a complexidade que a clínica

nos apresenta. Ele comenta sobre um desmanche que se percebe, na medida em que se

leva em consideração as propriedades topológicas para a estrutura RSI. No entanto, é esse

mesmo desmanche que irá nos permitir novas construções partindo da leitura dessa

estrutura borromeana. Lacan passa todo seu ensino para encontrar uma medida comum

para o Real, Simbólico e Imaginário – nenhum sobrepondo o outro, mas uma medida de

comum importância. Ele propõe invariantes, como Alfredo situa, justamente no que toca

a estrutura, e isso fará toda diferença ao analista em sua leitura.

No seminário XXII “RSI” (1974-1975), Lacan nomeia os buracos da cadeia

borromeana e discorre sobre as implicações clínicas das relações dos registros a partir dos

buracos nomeados em movimento: inibição, sintoma e angústia. Ele pede desde o início

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do seminário que prestemos atenção na estrutura da qual parte o RSI. No seminário de 10

de dezembro de 1974 ele diz:

Gostaria de retê-los um instante sobre o nó borromeano. Este nó consiste

estritamente ao fato de que três é seu mínimo (...) A definição do nó

borromeano parte de três. É, a saber, que se de três vocês rompem um dos

anéis, eles ficam livres, ou seja, os outros dois se soltam (p.7).

A partir de suas colocações sobre a estrutura e sua importância, pode-se retomar

o que Alfredo (2007/2017) coloca em relação aos invariantes. Tudo muda, menos a

estrutura. E o que isso significa na clínica? Uma maior liberdade e flexibilidade de leitura

dos fenômenos clínicos. Já não há necessidade de encaixar os analisantes em estruturas

enquanto diagnóstico como se pensava na psicanálise, sejam elas: neurose obsessiva,

histeria, psicose, perversão. Se tudo pode mudar ou desmanchar, as manifestações

clínicas também podem se dar nessa mesma lógica.

Uma vez que o coração do nó borromeano está feito, os três registros não podem

se desfazer, há uma estrutura que mesmo em constante movimento é a base do

enlaçamento. O analista irá trabalhar a partir de uma possível leitura topológica da cadeia

em mutação, porque é justamente essa mobilidade que permite que se trabalhe novos

arranjos de lugares que podiam estar desarranjando.

A prudência do analista está em fazer da sua leitura teórica o seu manejo, e com

isso ter algo que sirva à análise que está conduzindo para poder proporcionar ao analisante

a possibilidade de que o mesmo possa escutar o que diz de um novo lugar, menos sofrido.

Não perdendo de vista o que Lacan afirma que distingue o analista do que é universal,

que “é indispensável que o analista seja ao menos dois. O analista para causar efeitos e o

analista que teoriza esses efeitos” (LACAN, 1974-1975, p.5), podendo dessa forma

transmitir, também, algo daquilo que faz o analista.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EIDELSZTEIN, A. (2007). O grafo do desejo. São Paulo: Toro Editora, 2017.

LACAN, J. (1945). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: Escritos. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 197-213.

LACAN, J. (1967-1968). O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico. Inédito.

LACAN, J. (1969-1970). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de

Janeiro: Zahar, 1992.

LACAN, J. (1974-1975). Seminário 22: R.S.I. Tradução do site Lacan em PDF.

Disponível em: <http://lacanempdf.blogspot.com/2017/03/o-seminario-22-rsi-jacques-

lacan.html>.

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O que acontece numa análise?

Bruno Oliveira

[email protected]

A prática psicanalítica e suas consequências tendem a render uma série de

mistérios sobre como se opera e como ocorrem suas funcionalidades. Sua premissa básica

se coloca como um ofício que visa abordar o mal-estar e tratá-lo, mas de que forma ocorre

o tratamento desse sofrimento que leva pessoas a procurarem uma análise? O que se passa

numa sessão, como trabalha um analista? A proposta deste texto visa tocar em alguns

pontos norteadores para essas questões e levantar algumas investigações necessárias para

a sustentação de uma prática que requer rigor e comprometimento por parte dos que fazem

operar a função analista.

Uma primeira consideração importante a ser feita remete ao fato de qual campo

se trata ao se pôr tais articulações em questão, tendo em vista que para fazer uma

delimitação teórica e epistemológica é necessário prudência a respeito das divergências e

oposições de fundamentos no que concerne ao campo lacaniano e freudiano. O pai da

psicanálise divide sua tópica em instâncias psíquicas nomeadas de inconsciente, pré-

consciente e consciente (1915/1996), reorganizando, oito anos mais tarde, em uma

dinâmica com o Eu, Supereu e o Isso (1923/2007). Para Lacan, a realidade psíquica e a

estrutura estão enodadas nas dimensões do Real, Simbólico e Imaginário. É através da

cadeia borromeana enquanto estrutura do sujeito, como axioma invariante, que tais

questões referidas à análise serão abordadas neste texto.

Desde “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, de 1953, Lacan

chama atenção para o instrumento do analista apontando para a fala e o significante, e em

1956 ele já introduz a Letra e sua instância no inconsciente. Esse é o primeiro norteador

que condiciona o ofício ao axioma: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. O

instrumento do analista não pode ser outro senão o simbólico, à medida em que,

intervindo pela via do significante e da letra no texto do analisante, é possível provocar

efeitos de Real e Imaginário presentes na estrutura.

Mas, então, o que significa afirmar que a dimensão operada pelo analista é a do

Simbólico?

O que de mais difícil eu introduzi, sublinhemos, é que na medida em que o

inconsciente se sustenta nesta alguma coisa que é por mim definida,

estruturada como o Simbólico, é do equívoco fundamental para com esta

alguma coisa, que se trata, sob o termo do Simbólico com que sempre vocês

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operam. Falo aqui àqueles que são dignos do nome de analista (LACAN, 1974-

1975, 10/12/1974).

Através da pontuação sobre os significantes que se repetem, que emergem na rede

ou que ficam elididos em um momento na fala de um analisante, é possível intervir e

questionar, e com essa aposta produzir efeitos de interpretação, ou seja, uma modificação

ou suspensão de sentido. “Que história é esta de sentido? Sobretudo se vocês introduzirem

aí o que eu me esforço em lhes fazer sentir. É que, no que diz respeito à prática analítica,

pois é daí que vocês operam, mas por outro lado, é para reduzir este sentido que vocês

operam” (LACAN, 1974-1975, 10/12/1974).

Há uma diferença instaurada pelo laço social proposto por uma análise em sua

operação, pois não se trata de uma fala qualquer ou de um diálogo entre duas pessoas. É

preciso considerar que o que estrutura um dispositivo de análise possui alguns critérios.

Não basta falar para curar, não é esse o alcance da palavra. O que os linguistas conseguem

articular com sua teoria estrutural toca no fato de que há uma insistência para o sentido,

ou seja, há uma insistência para fazer signo, para fazer uma junção biunívoca entre

significante e significado (LACAN, 1956/1998).

Quando Lacan reformula a noção de signo colocando o significante como

independente do significado não é apenas uma releitura do trabalho de Saussure que está

em jogo, mas um apontamento e uma direção que dizem respeito a uma intervenção

analítica:

Para que não seja vã nossa caçada, a nós, analistas, convém reduzir tudo à

função de corte no discurso, sendo o mais forte aquele que serve de barra entre

o significante e o significado. Ali se surpreende o sujeito que nos interessa,

pois, ao se vincular à significação, ei-lo no mesmo barco que o pré-consciente.

Pelo que chegaríamos ao paradoxo de conceber que o discurso na sessão

analítica só tem valor por tropeçar ou até se interromper: como se a própria

sessão não se instituísse como ruptura num discurso falso, digamos, naquilo

que o discurso realiza ao se esvaziar como fala (...) (LACAN, 1960/1998,

p.815).

Reduzir tudo à função de corte no discurso, sendo o mais forte aquele que serve

de barra entre significante e o significado, é o que afirma Lacan nessa citação de

"Subversão do Sujeito”, sinalizando que a intervenção analítica se realiza através de uma

operação de corte que separa e isola o significante do seu significado correlato em cada

situação relatada pelo analisante.

Tentarei abordar essa operação através de um breve enxerto de um caso. Uma

moça que havia me procurado para fazer análise relata nas sessões iniciais sua dificuldade

em suas relações profissionais, mas que não consegue entender o porquê disso. Comenta

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o quanto precisa se sentir em controle sobre as situações e, mesmo fazendo isso com

bastante esforço, não obtém êxito. Proponho a ela que fale e vou interrogando-a sobre as

situações ditas visando levá-la a poder discorrer mais sobre. Após um certo momento,

quando pergunto sobre o que era esse controle sobre o qual tanto falava, a analisante diz

que não pode ser pega desprevenida – "não posso ser pega de saia curta". Nesse momento

eu interrompo, interrogando-a sobre o significante “saia curta”, o que a leva a tentar

explicar a expressão no seu sentido comum, de ser pega de maneira despreparada. Na

sessão seguinte, a paciente relata um sonho de que estava em uma festa – que jamais

frequentaria em sua condição lúcida – em que havia muitas pessoas, bebidas e flertes.

Num dado momento, ela percebe um rapaz olhando fixo pra ela com uma expressão de

desejo que a cativava, e de repente a mãe dela aparecia no sonho com um olhar

extremamente repressivo, e era então que ela se percebia com uma saia curta demais,

sobre a qual a mãe dizia que dava até para ver suas partes íntimas.

Esse breve relato leva a algumas indicações de como a prática opera. Os

significantes advindos do Outro produzem um sentido delimitado ao significante em

relação a qual a analisante se vê identificada. Neste ponto, com a intervenção analítica

tornou-se possível uma descolagem de sentido através da pontuação sobre o significante

“saia curta”, corte do significante com seu significado correlato que fora fixado e que

passou a ser articulado de outra maneira, produzindo uma nova ficção que provocava

outros efeitos. A analisante passou a falar sobre suas dificuldades de ordem amorosa e de

como a figura da mãe sempre se fazia presente na cena sexual em que se via.

Eis uma maneira de se articular um corte, como uma forma de elevar à categoria

de significante o que é dito como um signo: um processo que requer, de maneira

fundamental, que haja uma função, o analista, que leia o que a analisante diz fora do

campo do sentido e assim pontue sobre esses significantes para que possam ser lidos pelo

analisante de outra forma. O que fora inclusive uma das críticas que Lacan direcionava a

vários analistas na década de 1950, apontando suas dificuldades com a psicanálise devido

à confusão feita entre imaginário e simbólico (LACAN, 1958/1998).

Com toda obviedade dos fatos, não era do meu conhecimento como analista que

havia alguma inibição sexual naquela analisante. Mas é a partir do saber teórico que

respalda a função do analista – de que há uma lógica significante – que se opera uma

lógica simbólica, e que, na transferência, é possível pontuar e produzir assim uma

modificação interpretativa por parte do analisante no texto que produz seu sintoma.

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E é justamente daí que pode se produzir a interpretação, isto é, por causa do

fato que nós temos uma ‘atenção flutuante’ nós ouvimos o que ele disse alguma

vez simplesmente pelo fato de uma espécie de equívoco, isto é, de uma

equivalência material. Nós percebemos que o que ele disse (...) que isso que

ele disse poderia ser ouvido de maneira completamente diferente. E é

justamente por entendermos tudo de maneira diferente que nós possibilitamos

que ele se dê conta de onde seus pensamentos, sua relação com a semiótica, de

onde ela emerge: ela emerge nada mais nada menos que da ex-sistência da

lalíngua. Lalíngua ex-siste alhures que nesse lugar que ele crê ser seu mundo

[tradução nossa] (LACAN, 1973-1974, lição 11/06/1974).

No fim da década de 60, Lacan traz uma estrutura que contribui de maneira muito

pertinente ao fazer analítico: os quatro discursos radicais1. A introdução dos discursos por

Lacan no seu ensino possibilita um rigor ao se conceber o dispositivo analítico através de

posições discursivas, o que traz um avanço significativo para a clínica. Permite, pois, que

ele seja formalizado e articulado através de recursos lógicos-matemáticos, posições e

lugares que, ocupados por uma letra, possibilitam engendrar os outros campos com as

demais letras em sua lógica dextrógera ou levógera, elucidando de que maneira, neste

discurso sem palavras, momentos do dispositivo de uma análise podem ser estruturados

(LACAN, 1969-1970/1992).

Lacan introduz as noções dos discursos no seminário 17, inserido no contexto

francês da revolução estudantil de maio de 68. Num momento que, após assistir a um

seminário de Foucault que trabalhava, dentre muitas temáticas, a noção de discurso

enquanto liame social, Lacan fisga a possibilidade de articular as maneiras de se produzir

laço social em uma análise em intensão.

São definidos nesse dispositivo quatro lugares, organizados pelo agente na

produção discursiva que se dirige ao lugar do outro para se constituir. Tem-se assim,

como produção de um discurso, o lugar de seu produto, abaixo da barra do lado outro,

que mantém sua relação de impossibilidade – assim como os demais lugares – com a

posição da Verdade, que sustenta a causa do discurso, abaixo da barra do lado do agente.

Lacan sinaliza também que o lado direito encontra sua alteridade em relação ao agente

do discurso, e que abaixo da barra, como na maioria dos conceitos e matemas lacanianos,

é demarcado o inconsciente. O agente se encontra na impotência de se dirigir totalmente

ao outro, e todas as posições possuem uma impossibilidade de acesso à Verdade, mesmo

1 “aparelho de quatro patas, com quatro posições, pode servir para definir quatro discursos radicais”

(LACAN, 1969-1970/1992, p.18). “Meus esqueminhas quadrípodes - digo-lhes isto hoje para que tomem

muito cuidado -, não é a mesa espírita da história. Não é obrigatório que isto sempre passe por ali, e que

gire no mesmo sentido. É só um meio de dar-lhes referências em relação ao que bem pode-se chamar de

funções radicais, no sentido matemático do termo” (LACAN, 1969-1970/1992, p.179).

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que ela provoque efeitos nas demais, inclusive no próprio agente. Trata-se de uma

impossibilidade marcada pelo caráter de Real da Verdade.

agente outro

Verdade produção

Nestes quatro lugares foram articulados quatro letras: o $, sujeito do inconsciente,

dividido pela barra; o S1, significante mestre, que representa o sujeito e a determinação

significante, desprovido de sentido; o S2, saber ao qual o S1 faz referência; e o objeto a,

objeto de gozo, causa do desejo, mais-gozar. Essas quatro letras ocupam uma ordem

determinada a partir do discurso inaugural, do mestre, onde o significante mestre como

agente representa o sujeito, para outro significante, o qual produz o objeto causa de

desejo. E, a partir de um dextrogiro ou levogiro dessas letras, se concebem os demais

discursos.

As letras que ocupam o lugar do agente nomeiam o discurso, assim como

determinam as demais posições. Através disso, Lacan inaugura o discurso do mestre,

tendo o S1 (significante mestre) como agente; o discurso histérico, tendo o sujeito como

agente; e, no Universitário, o Saber dispara o discurso. No avesso do discurso do mestre,

como é trabalhado exaustivamente no seminário “O avesso da psicanálise”, encontramos

o dispositivo que Lacan nomeia como discurso do analista: o discurso que põe o objeto

mais-gozar no lugar do agente.

Discurso do mestre Discurso da histérica

S1 S2 $ S1

$ a a S2

Discurso do universitário Discurso do analista

S2 a a $

S1 $ S2 S1

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Apesar de essas letras não terem a mesma significação quando ocupam lugares

diferentes em cada discurso, principalmente quando descem a barra, essa referência

inicial é o ponto de partida da percepção dos laços sociais possíveis numa análise. E

somente numa análise, pois os discursos radicais são concebidos para a psicanálise em

intensão, no dispositivo clínico pautado na transferência, evidenciando sua radicalidade

em referência aos laços sociais impossíveis situados por Freud.2

A leitura da operação analítica com os discursos permite articular que, quando se

parte do início de um tratamento, o sofrimento que leva a uma análise sustenta a posição

discursiva do mestre. Sofrimento, portanto, lastreado por identificações prévias e

sustentado nas significações que ordenam as posições de gozo e sofrimento representado

pelo S1 (significante mestre), que traz uma ideia de ilusão de que o significante representa

o sujeito, dirige-se ao saber de maneira tal qual se encontra relacionado. Uma posição na

qual, no lugar de fala, o sujeito é colado nos significantes em sua queixa e aos nomes

advindos do Outro.

Entra em questão então de que lugar o analista responde às demandas do

analisante. Esse ponto funda a possibilidade de esse laço social se tornar uma análise, pois

é na medida em que o analista enquanto função responde de um outro lugar, não cedendo

às demandas e pondo em questão o saber prévio trazido pelo analisante, que ele pode

provocar uma mudança no discurso. Uma báscula que possibilita a emergência do

discurso histérico, tendo como agente o $ (sujeito barrado) que, defrontado pela sua

divisão, pela sua condição sintomática de demanda como agente discursivo, põe o

significante mestre em questão, no lugar do outro/trabalho, para que responda quanto ao

seu desejo, quanto à inconsistência do Outro. Nessa posição discursiva se produz um

saber inconsciente, que jamais dará conta de sua Verdade, onde se encontra o objeto mais-

gozar.

É importante levar em consideração algumas observações quanto a essas

operações no seu contexto devido, que é o de uma análise. As posições discursivas estão

sempre mudando pelas básculas que o discurso do analista produz. E, principalmente,

levemos em consideração que o lugar de agente não se confunde com as pessoas em

questão, afinal, o discurso se presta como semblante de posições, e nenhum dos matemas

dispostos nos discursos remetem a alguém ou a uma pessoa. O analisante não é o sujeito

2 Lacan faz referência aos 3 ofícios impossíveis do governar, educar e analisar com os discursos. “Não se

pode deixar de ver recobrimento entre estes três termos e aquilo que distingo este ano como o que constitui

o radical dos quatro discursos” (LACAN, 1969-1970/1992).

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barrado, não somente pela condição de que o sujeito do inconsciente nada tem a ver com

indivíduo, mas também que a posição discursiva da histérica remete ao fato de que o

sujeito do inconsciente, sempre e inexoravelmente representado por um significante

enquanto efeito de linguagem, provoca a operação de discurso. Da mesma maneira que,

no discurso do psicanalista, a ideia corrente de que o analista ocupa o lugar de objeto não

se verifica, pois se trata do objeto enquanto condição de semblante.

O que cabe verificar são seus limites, sua estrutura, sua função. Num discurso,

a relação entre o pequeno a, o mais-gozar e o $, o S barrado do sujeito, ou seja,

precisamente a relação que é rompida no discurso do mestre, é isso que temos

de verificar em sua função, quando, na posição totalmente oposta, a do discurso

do analista, o pequeno a ocupa o lugar de semblante, e é o sujeito que fica em

frente a ele. Esse lugar em que ele é interrogado, é aí que a fantasia deve

assumir seu status, definido pela própria parcela de impossibilidade que há na

interrogação analítica (LACAN, 1970-1971/2009, p.27-28).

Vale ressaltar também que afirmar que o analista ocupa o lugar de objeto numa

situação de análise seria análogo a responder a demanda objetificante, enquanto objeto de

amor, de gozo, cristalizando o fantasma do analisante, uma fantasia perversa. A função

de semblante de objeto é algo completamente diferente e importante de ser sinalizado,

pois não se trata de postura, pose, ou simplesmente o silêncio. Se trata de causa do desejo,

desejo do analista que faz funcionar o laço social que provoca na análise a manutenção

de sua associação automática, produção de ficções e de um outro saber (LACAN, 1970-

1971/2009).

O discurso do psicanalista, contingencial, possui no lugar do agente o objeto mais-

gozar que se dirige ao outro, neste ponto ocupado pelo $ (sujeito barrado), pela divisão

do sujeito posta em questão nos momentos de formações do inconsciente, nos quais

significantes mestres são produzidos abaixo da barra como atos falhos, sintomas ou

sonhos, e nos significantes que emergem na fala, desprovidos de sentido e demarcados

através da intervenção analítica, que se descolam de suas significações, ocasionando

assim o não-sentido. E o saber do analista, neste momento, ocupa o lugar da Verdade, na

impossibilidade Real que caracteriza e causa esse discurso. Ou seja, ao avesso do discurso

do mestre em que o S1 e o S2 possuem uma relação acima da barra, no discurso analítico,

essas duas letras abaixo da barra são demarcadas pela impossibilidade de um se dirigir ao

outro (LACAN, 1969-1970/1992).

A báscula discursiva pode ocorrer a partir do momento em que diante da fala, ao

incidir sobre as formações do inconsciente, sobre os significantes mestres, a função

nomeada de analista promove o surgimento do sujeito, apontando ali a divisão que

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ultrapassa a condição do analisante de não ser lido mais como um indivíduo, indiviso.

Temos a consequência imediata então de que é de responsabilidade da função analista a

emergência desse aporte discursivo, desse laço social no qual se pode trabalhar, dentro

desse campo delimitado, o inconsciente.

Dado que não há realidade pré-discursiva, isso também se aplica à forma de se

abordar o sofrimento como possuindo uma causalidade significante, manobra que é

realizada somente pelo analista. Se aquele que conduz análises supõe de maneira equívoca

que o inconsciente estaria posto independentemente de seu papel no laço social, é

pressuposta uma condição de que o inconsciente opera à revelia do analista. O equívoco

se dá devido ao fato de não se compreender que, se o sofrimento aponta uma impotência,

um excesso de identificação com o significante que organiza o sintoma, é a leitura do

analista sobre este sofrimento enquanto inconsistência do Outro, S(Ⱥ), enquanto

impossibilidade, que permite que uma análise opere.

Os quatro discursos também oferecem as coordenadas para as demais posições

que um analista pode assumir e provocar enquanto laço social numa análise. Pois, na

medida em que cada análise se desenrola, se faz necessário responder as demandas a partir

de outros lugares, como uma possibilidade de intervir indicando que em determinada

ocorrência da vida de uma pessoa seja preciso encaminhá-la para o uso do medicamento,

ou se consultar com um psiquiatra. Formalizar as posições possíveis para as demandas

que surgem possibilita ao analista exercer seu ofício de forma responsável frente sua

resistência. Tendo em vista que essa é sempre do analista, pode-se definir desta forma

que é quando ele responde de um outro lugar de discurso, sem se dar conta, que a análise

perde seu rumo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Janeiro: Imago, 2007. v. 3.

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Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. (1956). A instância da letra no inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente

freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. (1969-1970). O seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de

Janeiro: Zahar, 1992.

LACAN, J. (1970-1971). O seminário, livro 18. De um discurso que não seria

semblante. Rio de Janeiro: Zahar, Rio de Janeiro. 2009.

LACAN, J. (1973-1974). O seminário, livro 21. Os não-tolos vagueiam. Seminário

inédito. Disponível em: < http://staferla.free.fr/S21/S21.htm>

LACAN, J. (1974-1975). O Seminário, livro 22. RSI. Seminário inédito. Disponível em:

< http://staferla.free.fr/S22/S22.htm>

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Qual geometria para a psicanálise?

Jefferson Weyne Silva Soares

[email protected]

“Essa topologia, que se inscreve na geometria projetiva e nas superfícies do analysis situs, não deve ser

tomada como os modelos ópticos em Freud, na categoria de metáfora, mas como representando a

própria estrutura.”

Jacques Lacan (1967/2003)

Desde 1953, em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, e até o

fim de seu ensino, Lacan se utiliza da topologia como forma de representar a estrutura

mesma do sujeito com o qual trabalhamos em psicanálise. Superfícies como o toro,

garrafa de Klein ou o cross-cap aparecem aos montes na obra do psicanalista francês.

Desenvolvimentos estes que lhe renderam a alcunha de “hermético e ambíguo” [tradução

nossa] (GREENSHIELDS, 2017), fama que persegue seus trabalhos até hoje.

Ao examinar detidamente a obra do psicanalista, podemos constatar que tal

designação não se sustenta, sendo a formalização empreendida por Lacan um fator

necessário para trabalharmos conceitos completamente contraintuitivos, tais como

“sujeito do inconsciente”, “pulsão” ou “objeto a".

Portanto, no presente artigo, pretendo tratar os motivos que levaram Lacan a

introduzir a topologia em seu trabalho com a psicanálise, quais problemas tentava resolver

dentro de nosso campo e o porquê de propô-la como matéria fundamental para a formação

do psicanalista (LACAN, 1975/2003).

1. As diferentes geometrias

Antes de entrarmos nas relações entre psicanálise e a topologia abordadas por

Lacan, observemos os diferentes tipos de geometria presentes na matemática, a fim de

que tal conhecimento nos ajude a entender por que Lacan elege a topologia e não outro

ramo da geometria. Trabalhemos dois tipos diferentes de geometrias, as chamadas

“euclidianas” e as “não euclidianas”.

A geometria euclidiana diz respeito a um estudo de medidas e formas,

propriamente dito, como do nome se deduz (geo = terra, metria = medição). Para esse

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ramo, é fundamental que a figura estudada conserve sua medida e forma ainda que tenha

sofrido um deslocamento no espaço. (EIDELSZTEIN, 1992)

Tomemos como exemplo a figura abaixo.

Figura 1

O triângulo equilátero, ainda que tenha sofrido deslocamento (mudado de

posição), mantém conservada suas propriedades de forma e tamanho.

Geometrias não euclidianas recebem esse nome pois, diferentemente da anterior,

não carecem da necessidade de que suas figuras preservem forma ou tamanho. Compondo

esse grupo temos a geometria projetiva e a topológica.

A chamada geometria projetiva se presta ao estudo das sombras e da perspectiva,

das propriedades que se conservam mediante a projeção, não levando em conta a

distância, o ângulo, nem correspondência entre figuras de formas idênticas que guardem

correspondência entre partes. Contudo, tais condições não fazem parte da geometria

projetiva puramente qualitativa.

Deve-se ressaltar, no entanto, que a geometria projetiva não se torna puramente

qualitativa. Poincaré diz assim: "O fato de uma linha ser reta não é um fato

puramente qualitativo; não se pode garantir sem fazer medições ou sem

deslizar sobre essa linha um instrumento chamado régua, que é uma espécie de

instrumento de medida". Como a projeção exige a linha reta para ser realizada,

a geometria projetiva fica a meio caminho entre a geometria euclidiana

(métrica) e a topologia (puramente qualitativa) [tradução nossa]

(EIDELSZTEIN, 1992, p.19).

Isso quer dizer que por implicar uma relação métrica em suas linhas, tal geometria

não pode ser classificada como puramente qualitativa.

Figura 21

1 Eidelsztein, A. Modelos, esquemas y grafos en la enseñanza de Lacan. Buenos Aires: Editora Letra

Viva, 1992. p.20

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Figura 32

Na figura 2, observamos um feixe de luz projetado sobre uma superfície plana,

produzindo, atrás da superfície, uma imagem com as mesmas propriedades, mas com

tamanho diferente.

Já na figura de número 3, observamos o uso da geometria projetiva, mais

especificamente a perspectiva, comum em obras de arte renascentistas, a fim de provocar

a ideia de profundidade.

Há diversos tipos de topologia na matemática. Mas a que nos interessa definir e

com a qual iremos trabalhar mais detidamente se chama “topologia combinatória”,

originariamente denominada “analysis situs”. (FRÉCHET, KY FAN, 1967) Tal topologia

(também chamada de geometria da lâmina de borracha) caracteriza-se por ser puramente

qualitativa e não métrica, tendo em vista que sua característica principal consiste no fato

de que suas superfícies conservam a vizinhança entre pontos e, para tanto, não pode haver

cortes e nem fusões. Chamamos essa característica de “transformação contínua”

(EIDELSZTEIN, 1992). Justamente por sua estrutura bidimensional, elimina qualquer

ideia de profundidade ou “dentro e fora” presente nas geometrias anteriores.

A topologia passa a apresentar superfícies completamente abstratas, algumas

impossíveis de serem submersas em nossa realidade tridimensional sem que sejam

adquiridas propriedades que não lhes pertencem (chamadas propriedades extrínsecas).

Para citar exemplos de tais superfícies, temos a banda de Möbius e a garrafa de Klein. Ao

serem representadas na realidade, apresentam características que em sua estrutura

original, bidimensional, não apresentariam.

2 Disponível em: https://historiaartearquitetura.com/2017/04/26/perspectiva/

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Figura 43: Garrafa de Klein Figura 54: Banda de Möbius

Na figura 6, logo abaixo, podemos observar a transformação de uma superfície

sem, no entanto, apresentar roturas ou fusões.

Figura 65

E é dessa mesma geometria que se serviu Lacan: por suas características não

métricas e completamente maleáveis, as superfícies das geometrias não-euclidianas são

perfeitas à clínica psicanalítica e à estrutura do sujeito do inconsciente. Mas qual a relação

entre tais geometrias e a psicanálise?

2. Uma psicanálise euclidiana e outra não euclidiana

Após distinguirmos alguns dos diferentes tipos de geometria que existem dentre

as matemáticas, podemos melhor definir que relevância tem tais geometrias para a

psicanálise e o fazer analítico. Em que contribuem ou limitam a prática psicanalítica?

Iniciemos definindo o que Alfredo Eidelsztein (2014) chama “psicanálise

euclidiana” e “não euclidiana”. Segundo o psicanalista argentino, podemos distinguir as

3 Eidelsztein, A. Modelos, Esquemas y grafos en la enseñanza de Lacan. Buenos Aires. Editora Letra Viva,

1992. p.28. 4 Lacan, J. (1965-66) L'objet de la psychanalyse. p.34. Disponível em: <http://staferla.free.fr/S13/S13.htm> 5 Eidelsztein, A. Modelos, esquemas y grafos en la enseñanza de Lacan. Buenos Aires: Editora Letra Viva,

1992. p.21

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diferentes psicanálises em dois grupos, dependendo do campo geométrico a partir do qual

estruturam sua clínica e o fazer analítico.

Para uma psicanálise que se aproxime de uma geometria euclidiana, suas

elaborações apresentam-se de forma a incutir uma concepção de tridimensionalidade ou

profundidade. Como bem coloca Freud ao dizer de “(...) um Id no qual certos instintos se

tornaram independentes, perseguem seus objetivos sem considerar os interesses da pessoa

inteira e obedecem apenas às leis da psicologia primitiva que vigora nas profundezas do

Id” [grifo nosso] (FREUD, 1926/2014, p.152). Tal geometria para a psicanálise implica

uma concepção de espaço tridimensional em sua teoria e clínica. As consequências de tal

tridimensionalidade para o fazer analítico são várias.

Podemos pensar que esta concepção teórica introduz um apego imaginário às

consistências corpóreas, no qual o inconsciente pertence a alguém e se figura no interior

do corpo. Tal apego fica claro em textos onde Freud estabelece, em outras palavras, o

fator de que, mesmo não conseguindo “provisoriamente" localizar anatomicamente o

lugar do inconsciente, este ainda sim se encontra no corpo (FREUD, 1915/2010).

Uma elaboração como essa suscita a ideia de dois inconscientes em análise. Assim

como no setting há dois corpos, também há dois inconscientes, sendo cada um pertencente

a cada pessoa presente na sala. O que logicamente nos leva a pensar a relevância de quem

fala na análise, se o que é dito provém dos conteúdos inconscientes que emergem do

paciente ou se tais conteúdos emergem do inconsciente do analista. Essa distinção é

fundadora de todas as concepções que tornam a análise em Freud um embate de forças

entre analista e analisando (FREUD, 1912/2010). Nesse embate, o analista deve estar em

posição de lutar contra suas manifestações instintuais para manter a neutralidade e se ater

somente aos conteúdos que pertencem ao paciente (FREUD, 1912/2010).

Fica claro, portanto, que a geometria presente nesta forma de conceber a análise

se mostra completamente euclidiana. Pois, para tais analistas, os dois personagens

presentes em análise seriam como duas esferas tridimensionais com seus limites bem

estabelecidos (corpo) de onde emergem conteúdos antes recalcados. A figura que melhor

representa a lógica geométrica de que se serve Freud seria uma esfera oca.

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Figura 76

Podemos encontrar tal geometria nas próprias formulações de Freud,

especificamente na figura que elege como representando seu aparelho psíquico.

Figura 87

Para o psicanalista vienense, o objeto de seu fazer clínico se exemplifica em uma

esfera oca que por diversas vezes chama de “reservatório da libido”.

Agora, após a distinção entre Eu e Id, temos de reconhecer o Id como o grande

reservatório da libido, no sentido da "Introdução ao narcisismo" [1914]. A

libido, que aflui para o Eu através das identificações aqui mostradas, produz o

seu "narcisismo secundário" (FREUD, 1923/2011, nota 13, p.37).

Tal elucubração faz sentir seus efeitos, também, na direção da cura. Se para Freud

existe uma distinção entre mundo externo e interno, ao qual muitas vezes chama

“realidade interna” (FREUD, 1933/2010) e, em outras, “realidade psíquica” (FREUD,

1917/2014), a direção que o tratamento deve tomar torna-se meramente adaptativa, sendo

a realidade externa o que deve prevalecer. No caso “a terapia analítica segue-a então,

procurando achá-la, torná-la novamente acessível à consciência, pô-la a serviço da

realidade” [grifo nosso] (FREUD, 1912/2010).

Portanto, assim como na geometria euclidiana em que as figuras mantêm sua

identidade imaginária a partir da conservação de forma e tamanho, mesmo sofrendo

deslocamento, a psicanálise orientada por tal lógica geométrica dirige o tratamento a uma

conservação de determinados aspectos, muitas vezes se arvorando em uma mera

6 Lacan, J. (1965-66) L'objet de la psychanalyse. p.31. Disponível em: <http://staferla.free.fr/S13/S13.htm> 7 Freud, S. (1923) O eu e o id. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 30.

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adequação à realidade ou adaptação ao sofrimento. Pautando sua clínica na figura da

esfera, arma-se também uma forte noção ontológica de íntimo ou essência: aquilo que

estaria no núcleo do ser e se manteria imutável por ser uma marca ou representação

psíquica da realidade.

Para compreender esse passo adiante, devemos lembrar que todas as

representações vêm de percepções, são repetições das mesmas. Assim,

originalmente a existência da representação já é uma garantia da realidade do

representado [grifo nosso] (FREUD, 1925/2011, p.279).

A fim de superar os limites produzidos por tal sistema de pensamento e oferecer

um outro modo de pensar o tratamento, Lacan passa a servir-se de uma geometria não

euclidiana, mais especificamente a topología. Ao passo que a geometria euclidiana se

desenvolve em uma consistência tridimensional, Lacan introduz a inconsistência das

superfícies topológicas, abstratas, somente possíveis em espaço bidimensional e

constituídas por buracos.

Para o psicanalista francês, o inconsciente é o discurso do Outro, com maiúscula,

representando a estrutura de linguagem (LACAN, 1953/1998). É dessa forma que ele

formula também um dos axiomas fundamentais da teoria que constrói, ao dizer que “o

inconsciente está estruturado como uma linguagem”. Com isso, introduz uma lógica

bidimensional para trabalhar o sujeito enquanto hiância resultante dessa articulação

significante.

Se a psicanálise deve se constituir como ciência do inconsciente, convém partir

de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Daí deduzi uma

topologia cuja finalidade é dar conta da constituição do sujeito (LACAN,

1964/1988, p.193).

O inconsciente do qual fala Lacan, debitário de sua articulação simbólica, pode

ser muito bem representado por uma banda de Möbius.

Figura 9

Contrariamente à concepção anterior de um inconsciente interior ao corpo, ou de

algo que se encontre nas profundezas do indivíduo psíquico, em Lacan ele se encontra na

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superfície de linguagem, superfície bidimensional, convocando, para sua representação,

uma figura também bidimensional representada pela faixa moebiana. Não apresentando

interior e exterior, mas sim uma única face, uma única borda, um único lado (unilateral),

o espaço desenvolvido pelo matemático Möbius em 1858, serve a Lacan para estabelecer

o discurso do inconsciente pelo qual se passa, se percorre, sem necessariamente adentrar

uma profundidade ou fazer emergir qualquer conteúdo.

Uma formiga que caminhe por ela passa de uma das faces aparentes para a

outra sem ter necessidade de passar pela borda. Em outras palavras, a banda de

Moebius é uma superfície de uma única face, e uma superfície de uma única

face não pode ser virada. (LACAN, 1963/2005, p.109)

O paciente que nos fala em análise percorre a face de um mesmo discurso, porém

este sujeito do inconsciente que surge em determinado momento da análise é produto de

uma manobra do analista que Lacan denomina corte.

Figura 108: Corte na faixa de Möbius – Oito interior

Corte mediano Vazio moebiano

Para Lacan, o que engendra ou revela a estrutura do sujeito é efeito do próprio

corte. Somente a partir do corte9, produzido pelo analista, o sujeito do inconsciente pode

advir como intervalo.

Queremos dizer que somente o corte revela a estrutura da superfície inteira,por

poder destacar nela os dois elementos heterogêneos que são (marcados em

nosso algoritmo ($◇a) da fantasia) o $, S barrado da banda, a ser esperada aqui

onde ela efetivamente surge, isto é, recobrindo o campo R da realidade, e o a,

que corresponde aos campos I e S (LACAN, 1966/1998, nota 16 p.560).

Para efetuar tal corte e fazer aí surgir o sujeito do inconsciente, a fim de abrir as

possibilidades para uma mudança na estrutura discursiva à qual o paciente está submetido,

8 Greenshields, W. Writing the Structures of the Subject: Lacan and Topology. Palgrave Macmillan, 2017.

P. 52. [tradução nossa] 9 O corte a que me refiro, não se trata necessariamente do encerramento da sessão por parte do analista, ao

qual se convencionou chamar “corte da sessão”. Falo, antes, de uma intervenção do analista que vise um

efeito analítico neste fazer.

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é necessário que o analista esteja bem munido de sua teoria. Somente assim poderá efetuar

um ato que reordene completamente as coordenadas do sujeito, deslocando seu lugar no

discurso.

Outra formalização importante de Lacan foi o toro, figura por meio da qual pôde

pensar a relação significante, bem como a constituição do desejo enquanto desejo do

Outro (LACAN, 1957/1998).

Figura 1110:Toro

O toro possibilita representar sua teoria do significante como uma subversão

completa da teoria de Saussure, linguista suíço, e oferece um solo fértil para uma crítica

à lógica euclidiana predominante na psicanálise. Lacan serve-se dessa superfície já em

seu “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, onde nos diz que:

Dizer que esse sentido mortal revela na fala um centro externo à linguagem é

mais do que uma metáfora, e evidencia uma estrutura. Essa estrutura é

diferente da espacialização da circunferência ou da esfera onde nos

comprazemos em esquematizar os limites do vivente e de seu meio: ela

corresponde, antes, ao grupo relacional que a lógica simbólica designa

topologicamente como um anel. Ao querer fornecer dele uma representação

intuitiva, parece que, mais do que à superficialidade de uma zona, é à forma

tridimensional de um toro que conviria recorrer, na medida em que sua

exterioridade periférica e sua exterioridade central constituem apenas uma

única região (LACAN, 1953/1998, p.321-322).

Em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, expõe sua

concepção de cadeia significante do seguinte modo:

Com a segunda propriedade do significante, de se compor segundo as leis de

uma ordem fechada, afirma-se a necessidade do substrato topológico do qual

a expressão "cadeia significante", que costumo utilizar, fornece uma

aproximação: anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis

(LACAN, 1957/1998, p.505).

A teoria da lógica significante enquanto cadeia culmina no que Lacan chama de

voltas da demanda que, por sua vez, constituem o desejo. Para o psicanalista, os pares

significantes (S1 → S2) formam uma mecha significante que funda a repetição e fecha-

10 Lacan, J. (1961-62) L’identification. p.84. Disponível em: <http://staferla.free.fr/S9/S9.htm>

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se sobre si mesma, formando a demanda. As várias demandas, por sua vez, se relacionam

intimamente com o desejo. O toro, portanto, representa a máxima lacaniana de que o

desejo se produz no para-além da demanda (LACAN, 1958/1998).

Figura 1211 :Volta da demanda mediante repetição significante

Tal retorno da demanda comporta em si a frustração em satisfazer-se produzindo

assim uma outra volta significante da demanda. Essa operação compete ao analista, sendo

resultado de uma leitura do mesmo diante do que se apresenta na clínica, precisando,

inicialmente, apresentar ao analisando o ponto de repetição dessa cadeia fechando a

mecha significante da demanda. Ou, melhor dizendo, fundando a demanda.

Figura 1312

Na figura 13, acima demonstrada, observamos no interior do toro as voltas da

demanda que Lacan chama “círculo pleno” (LACAN, 1962/2003). As inúmeras

repetições da demanda também se fecham entre si produzindo uma superfície com furo.

Ou seja, as voltas da demanda constituída por significantes fecham-se, instaurando um

vazio central ou “círculo vazio” (LACAN, 1962/2003). Lacan define, então, que essa

volta é o que constitui a função do desejo.

11 Eidelsztein, A. La topología en la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Editora Letra Viva, 2006, p.126,

127. 12 Lacan, J. (1961-62) A identificação. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003. p.186.

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Figura 1413

Figura 1514

Na figura de número 15, podemos observar algo fundamental pra o fazer clínico:

para produzir o desejo, caminho do qual o analisando se extraviou ao prender-se à

demanda do Outro, é preciso antes identificar quais demandas estão presentes em seu

discurso, a fim de estabelecer o desejo que se encontra para além da demanda.

A elaboração do toro no arcabouço teórico de Lacan também serviu para resolver

a problemática concepção de quantos inconscientes estão presentes em uma análise. É a

partir da introdução dos dois toros anelados que podemos pensar a superação deste

problema.

13 ibid. p.200. 14 ibid. p.222.

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Figura 1615 Figura 1716

Estando o inconsciente na superfície de linguagem e não no interior do corpo, as

consequências de tal elucubração topológica acarretam o uso de uma superfície

bidimensional. Sendo o toro um espaço composto originalmente por uma

bidimensionalidade, não apresenta consistência ou profundidade, sendo possível que uma

superfície penetre a outra formando um único espaço topológico.

As consequências clínicas de tal concepção de inconsciente nos permite saber que

só há um sujeito do inconsciente que fazemos surgir e com o qual operamos em análise.

Portanto, todo e qualquer fenômeno nesse contexto é passível de ser elevado ao

status de significante, entregando assim tal elemento às associações do paciente. Em seu

seminário sobre “o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise”, essa mesma

concepção de inconsciente já se faz presente, quando Lacan nos diz que:

Voltem ao que dizíamos nos anos precedentes sobre estes concursos

estupendos que Freud nota na ordem daquilo que ele denomina telepatia.

Coisas muito importantes, na ordem da transferência, se efetuam

correlativamente em dois pacientes, quer um esteja em análise e o outro apenas

tocado, quer os dois estejam em análise. Mostrei-lhes na época que por serem

agentes integrados, elos, suportes, anéis num mesmo círculo de discurso, dá-

se o fato de os sujeitos verem surgir, ao mesmo tempo, tal ato sintomático, ou

revelar-se tal recordação (LACAN, 1955/1987, p. 118).

Dito isto, não há, portanto, conteúdo do paciente a ser diferenciado do meu

conteúdo enquanto analista. Todo material surgido em análise é, sim, material digno de

questionamento por parte do analista.

Já que a direção do tratamento é de total responsabilidade do analista e o sujeito

do inconsciente subordinado à sua intervenção, não há nada que seja conteúdo

especificamente do paciente ou do analista. Mas, sim, material construído nesse entre

dois, nessa produção de discurso subordinada ao dispositivo que funciona por meio do

discurso do analista.

15 ibid. p.200 16 ibid. p.272

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Fica claro que tal topologia não leva em conta a consistência imaginária dos

corpos presentes na sala, mas sim a univocidade do discurso posto em ato no contexto da

análise.

Ao servir-se da topologia, outra concepção comum em psicanálise que se torna

alvo de críticas por parte de Lacan, se chama “realidade psíquica”. Em uma das aulas de

seu seminário 22, sobre o RSI, diz que:

O que Freud fez? Vou lhes dizer: ele fez um nó de quatro com aqueles três que

eu suponho serem como casca de banana sob os pés. Mas então, veja como ele

procedeu: inventou algo que chama de realidade psíquica [tradução nossa]

(LACAN, 1975/2002, p.13).

E um pouco mais adiante diz:

O que ele chama de realidade psíquica tem perfeitamente um nome, é o que se

chama complexo de Édipo. Sem o complexo de Édipo, nada se sustenta da

ideia que ele tem da maneira em que se sustenta da corda do simbólico, do

imaginário e do real [tradução nossa] (ibid., p.14).

Para Lacan, seus três registros (real, simbólico e imaginário) são a “casca de

banana” sob os pés de Freud, pois pensa a realidade como o resultado de uma articulação

entre seus três, diferindo-se completamente da dicotomia em que Freud está enredado

(realidade interna x externa).

Se observarmos pontos importantes do arcabouço teórico de Lacan, poderemos

constatar que diversas elaborações do psicanalista rechaçam o conceito de realidade

psíquica. Uma delas é a ideia de que “não existe verdade da verdade” (LACAN, 1971), o

que significa dizer que não há para fora do que se enuncia nada que garanta a verdade do

que se diz. Ou seja, não existe nada para fora do que o paciente nos enuncia que seja mais

coerente com uma realidade externa mais verdadeira, à qual o analista deve estar atento,

propondo uma adequação da libido ou do que quer que seja. Tal elaboração não se trata

de negar que há verdade, entregar-se a um niilismo ou relativismo, mas sim descartar

qualquer visão dicotômica da realidade, ou acreditar que existe algo externo à realidade

fundada pela articulação simbólica, imaginária e real que seja mais verdadeira. O

contrário seria suscitado, portanto, se aceitássemos tal distinção entre realidade externa e

interna. A realidade é estruturada a partir de seus três registros, aos quais chama de

“registros essenciais da realidade humana” (LACAN, 1953).

Ao fantasma ($◇a), Lacan dedica um seminário inteiro entre 1966-67. É neste

seminário que a fórmula pode ser melhor explorada através do cross-cap.

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Figura 1817: Cross-Cap e banda de Möbius

O cross-cap constitui-se de uma esfera esburacada após ter sido cortada ao meio

e uma banda de Möbius autoatravessada por sua linha mediana e posta no interior da

esfera. Trata-se de uma das superfícies mais contraintuitivas e heterogêneas dentre as

superfícies topológicas, sendo composta por duas superfícies de dimensionalidades

opostas. Enquanto a esfera se apresenta passível de ser submersa no espaço

tridimensional, uma banda de Möbius autoatravessada por sua linha mediana é um objeto

impossível de ser representado em um espaço ordinário (EIDELSZTEIN, 2006).

A montagem de tal figura nos serve para pensar a realidade enquanto fantasmática

na medida em que, sendo composta por uma superfície fechada e aparentando haver uma

delimitação entre interior e exterior, é ao mesmo tempo aberta, por conter em seu centro

uma banda de Möbius que não apresenta tal distinção. Podemos melhor representá-la da

seguinte forma:

Figura 1918

17 Lacan, J. (1965-66) L'objet de la psychanalyse. p.34. Disponível em <http://staferla.free.fr/S13/S13.htm> 18 Lacan, J. (1966-67) Logique du fantasme. p.6. Disponível em: <http://staferla.free.fr/S13/S13.htm>

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A articulação feita na figura acima coloca a banda de Möbius de um lado,

relacionando-a ao sujeito barrado ($) ou sujeito do inconsciente. Abaixo dessa correlação

temos a esfera constituída por um buraco e o objeto a, causa do desejo.

O que pretendo expor aqui é que essa representação nos serve para pensar a

realidade enquanto fantasmática e única realidade possível, na medida em que essa

montagem simbólica, imaginária e real resulta em que a realidade se mostre como uma

relação do sujeito dividido e o mundo enquanto constituído por uma falta estrutural. De

onde parece haver uma perfeita simetria e consistência imaginária há, na verdade, uma

falta constitutiva que causa o desejo e perturba a estabilidade.

Não há nessa configuração uma dicotomia entre sujeito e objeto, mas sim o

resultado de uma articulação simbólica, imaginária e real que funda uma realidade escrita

como $◇a. Portanto, para Lacan, não há nada por fora dessa montagem, pois a realidade

é a própria articulação que a engendra.

Conceber tal topologia para a clínica nos possibilita operar de forma a não

questionar se o que o paciente nos apresenta seria interno ou externo, verdadeiro ou falso.

Tal distinção não existe, não sendo importante se os fatos relatados pelo paciente

realmente ocorreram ou não, pois, enquanto fatos de discurso (LACAN, 1971), são

constituídos pela bidimensionalidade da linguagem, sendo assim passível de

transformação topológica a partir do ato do analista. Do mesmo modo como a banda de

moebius autoatravessada por sua linha mediana modifica a estrutura da própria banda e

da superfície à qual está acoplada (semi-esfera), a realidade pode ser transformada e

modificada por um ato que tenha um norte bem estabelecido por suas coordenadas

teóricas.

O uso da topologia para a clínica psicanalítica nos aponta uma estrutura muito

mais maleável e pronta para transformações. Estudá-la e dominar bem esse campo nos

fornece um manejo clínico não afeito a uma estrutura rígida e consistente que inviabiliza

o tratamento e o torna, no máximo, uma adaptação ao sofrimento.

Assim como o campo da linguagem, bem como todo o campo do simbólico, a

estrutura discursiva com a qual trabalhamos em análise é perfeitamente maleável e

transformável, abrindo assim uma gama de possibilidades para torções e subversões do

que nos é apresentado. Nada está atrelado a uma natureza imutável ou a uma essência

pré-estabelecida.

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O inconsciente como coisa e o inconsciente como estrutura de linguagem: diferenças

teórico-epistemológicas entre Freud e Lacan

Jessika Gomes do Carmo

[email protected]

“O trabalho do pensamento (...) é tornar problemático tudo que é sólido.”

(FOUCAULT, 1984/2014, p.217)

A proposta do grupo Borda é de questionar alguns enunciados ritualizados no

campo analítico. Penso que seria proveitoso, como grupo, assumir o método de trabalho

proposto por Foucault (1984/2014) em sua genealogia, a saber, que “nem tudo é ruim,

mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente ruim. Se tudo é perigoso, então temos

sempre algo a fazer”.

É comum o pensamento, dentro da comunidade analítica e fora dela, que todo

analista lacaniano é, consequentemente, freudiano, como se houvesse uma continuidade

teórico-epistemológica entre os dois autores. Minha proposta, nesse artigo, é fazer

algumas considerações acerca dos possíveis perigos que essa continuidade pode trazer

para a nossa prática clínica. Quero deixar claro de que não se trata de jogar fora a teoria

freudiana, mas, essencialmente, procuro desentronizar a ideia de que a psicanálise

lacaniana só pode ser legítima se fizer uma continuidade com o que Freud disse.

Podemos, inicialmente, questionar a continuidade que nossos colegas fazem entre

o inconsciente freudiano e o inconsciente lacaniano. Freud descobre o inconsciente como

se descobre uma coisa (FOUCAULT, 1965). Há, em Freud, um certo postulado coisista,

sequela da lógica das ciências empíricas. Ora, quando Freud (1937/2018) afirma que “não

se deve esquecer de que ela [a psicanálise freudiana] não é realmente uma teoria, e sim

um primeiro inventário dos fatos de nossa observação”, ele está dizendo que toda a teoria

freudiana se arvora pela observação clínica, ou seja, a observação precede a teoria.

O afã de Freud de construir a psicanálise aos moldes das ciências empíricas – aliás,

ideia rejeitada pela comunidade que faz uma continuidade entre Freud e Lacan – pode ser

notado mesmo em textos tardios. Freud não abandonou, como dizem nossos colegas, a

pretensão de cientificidade. Vejamos o que ele diz:

Todas as ciências se baseiam em observações e experiências que são

intermediadas por nosso aparelho psíquico. (...) Fazemos nossas observações

mediante o mesmo aparelho perceptivo, precisamente com o auxílio de lacunas

no psíquico, completando o que falta por meio de inferências plausíveis e

traduzindo-o em material consciente. Assim produzimos como que uma série

complementar consciente para o psíquico inconsciente. A relativa certeza da

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nossa ciência psíquica repousa no caráter forçoso dessas inferências. Quem se

aprofundar nesse trabalho verá que nossa técnica se mantém firme ante toda

crítica (FREUD, 1938/2018, p.280).

Podemos notar a preocupação de Freud em distinguir a psicanálise da filosofia e

aproximá-la da ciência. Para Freud, o que dá valor à ciência é o método experimental, ou

seja, uma concepção positivista de que todo conhecimento científico deriva da observação

experiencial e que os fatos são verificados por meio da experiência. Podemos verificar, a

partir disso, que Freud parte de uma cosmovisão científica unívoca. A ciência parte

sempre do mesmo método experiencial.

Não estamos, porém, falando do “Projeto para uma psicologia científica” (1895

[1950]/1977) – aliás, comentado por nossos colegas apenas para descartá-lo, como se

fosse uma obra sem importância –, mas de um dos últimos textos freudianos: “Pode

parecer que essa divergência entre a psicanálise e a filosofia é apenas uma mera questão

de definição, de resolver se devemos dar o nome de psíquico a uma ou a outra série de

fenômeno” (FREUD, 1938/2018, p.207).

Freud, no final de sua obra, pretende possuir legitimação em termos de ciência:

Enquanto a psicologia da consciência nunca foi além daquelas séries com

lacunas, obviamente dependentes de outra coisa, a nova concepção – de que o

psíquico é inconsciente em si – permite conformar a psicologia numa ciência

natural como qualquer outra. Os processos de que ela se ocupa são, em si, tão

incognoscíveis como os das demais ciências, a química ou a física, mas é

possível constatar as leis a que obedecem, observar suas relações mútuas e

dependências por largos trechos ininterruptamente, ou seja, aquilo que se

denomina compreensão da esfera dos fenômenos naturais em questão. Isso não

pode ocorrer sem novas hipóteses e sem a criação de novos conceitos, mas

esses não devem ser menosprezados como evidência de nosso embaraço, e sim

apreciados como um enriquecimento da ciência; podem reivindicar o mesmo

valor de aproximações [à verdade] que as equivalentes construções auxiliares

de outras ciências naturais, aguardam modificações, correções e determinação

mais precisa pela experiência acumulada e filtrada. Portanto, corresponde

inteiramente à nossa expectativa que os conceitos fundamentais da nova

ciência, seus princípios (Trieb, energia nervosa etc.), permaneçam os das

ciências mais velhas (força, massa atração) (FREUD, 1938/2018, p.207-208).

Pela perspectiva do empirismo, todo campo de conhecimento que se utilize de um

método, neste caso, o experimental, pode se considerar ciência. O modelo imperante, por

muito tempo, foi o da física newtoniana. Todo conhecimento que pretendia ser científico

deveria reduzir-se necessariamente à física mecanicista. O que Freud abandonou, desde

o seu “Projeto para uma psicologia científica” (1895 [1950]/1977), foi a ênfase dada na

reação do organismo ao meio. Na edição, James Strachey (1954/1977) comenta que

“temos no projeto uma descrição pré-id – defensiva – da mente” (p.391) e que

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(...) na descrição feita por Freud do mecanismo de percepção, a introdução da

noção fundamental de realimentação (feed-back) como modo de corrigir erros

no próprio relacionamento da máquina com o meio. Essas e outras

semelhanças, caso confirmadas, constituirão sem dúvida novas provas de

originalidade e fertilidade das ideias de Freud e, talvez, uma sedutora

possibilidade de ver nele um precursor do behaviorismo de nossos dias

(STRACHEY, 1954/1977, p.392).

Em análise, Freud abandona em seu projeto um pré-behaviorismo e leva adiante

sua hipótese defensiva da mente. A partir das citações expostas, podemos concluir que

ele nunca abandonou o projeto de construir uma teoria científica. Como dito

anteriormente, Freud possuía uma concepção unívoca e positivista de ciência; a saber, a

ciência só se legitima através do método experiencial. Vamos ao texto:

A filosofia (...) perde o rumo com seu método de superestimar o valor

epistemológico de nossas operações lógicas e ao aceitar outras fontes de

conhecimento, como a intuição (FREUD, 1932[1933]/2018).

Verifica-se que Freud não criou sua teoria ex-nihilo, como falam seus seguidores.

Foucault (1976/2017) diz que a psicanálise tem como condição de possibilidade a scientia

sexualis, a saber, prática discursiva que diz a verdade do sexo e surge pelo dispositivo da

confissão e pela discursividade científica. Os psicanalistas, porém, rejeitam a ideia – aliás,

é um movimento parecido aos dos psiquiatras em relação à “História da loucura”

(FOUCAULT, 1972/2019).

Ao ler a obra freudiana podemos notar a influência que a biologia tem para sua

teoria. No texto “Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise”

(1932[1933]/2018), Freud diz que a teoria dos instintos “também se baseia

essencialmente em considerações biológicas”. Podemos notar, também, o recurso da

biologia no texto “O mal-estar na civilização” (1930/2018):

O passo seguinte foi dado em Além do princípio do prazer (1920), quando tive

a ideia da compulsão de repetição e do caráter conservador da vida instintual.

Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos,

concluí que deveria haver, além do instinto para conservar a substância vivente

e juntá-la em unidades cada vez maiores, um outro, a ele contrário, que busca

dissolver essas unidades e conduzi-las ao estado primordial inorgânico (p.55).

É claro que Freud não sustentava a ideia de que toda sua teoria se arvora em termos

biológicos e empíricos, mas não porque ele não buscasse isso, mas porque, para ele, não

tinha recursos técnico-teóricos para tal. Freud esperava que essas questões pudessem ser

respondidas pela biologia:

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Dada a íntima relação entre as coisas que diferenciamos como físicas e como

psíquicas, pode-se prever que chegará o dia em que se abrirão caminhos — de

conhecimento e, esperamos, também de influência — da biologia dos órgãos e

da química para o âmbito dos fenômenos neuróticos. Esse dia ainda parece

distante, atualmente esses estados patológicos nos são inacessíveis desde o

lado médico (FREUD, 1926/2018, p.151).

O que podemos pensar do empirismo na teoria freudiana? “Encontramos” a inveja

do pênis à tort et à travers na clínica porque ela sempre existiu e foi diagnosticada por

Freud ou lemos nossos casos a partir desse conceito e, por isso, ela “surge” em nossa

clínica? Ora, se levarmos a cabo a teoria freudiana e seu empirismo, a inveja do pênis é

uma coisa que sempre esteve ali esperando para ser descoberta. Segundo Feyerabend

(2003):

O empirismo (...) demanda que o conteúdo empírico de qualquer conhecimento

que tenhamos seja aumentado tanto quanto possível. (...) Ao excluir testes

valiosos, diminui o conteúdo empírico das teorias a que é permitido

permanecer e diminui em especial o número daqueles fatos que poderiam

mostrar suas limitações. É assim que os empiristas que defendem a condição

de consistência, não estando cientes da natureza complexa do conhecimento

científico, esvaziam de conteúdo empírico suas teorias favoritas,

transformando-as, assim, no que mais desprezam, a saber, doutrinas

metafísicas (p.55).

O que podemos aprender com Feyerabend (2003) é que o vocabulário de cada

sistema determinará o modo lógico que se trabalha com os fenômenos e dará as respostas

para os problemas expostos.

Quando Foucault (1966/2016) afirma que a vida não existia antes do século XVIII

é no sentido de que só existia uma grande distribuição dos seres vivos em caráter

taxonômicos. A doença se manifestava em manifestação visível da classificação dos

sintomas e não no corpo. Como a doença não está no corpo, não havia sentido procurá-la

nele. A vida só aparece quando Cuvier delimita as coerências anatômicas e fisiológicas

dos seres vivos e os elementos que fazem seu corpo próprio. É daí que se pode falar das

condições de vida. É o rabo que balança o cachorro, não o contrário.

É nesse sentido que Foucault (1966/2016) fala que o homem só emerge na

modernidade, quando se torna objeto das ciências humanas. Isso não significa dizer que

o ser humano só existe a partir da modernidade, mas que o homem representável por seu

labor (economia), sua existência corpórea (biologia) e pela fala (linguística) só é possível

a partir deste momento. É nesse espaço de representação do homem que as ciências

humanas se debruçarão.

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Como vimos, para o empirismo, é a experiência que mede o êxito de uma teoria e

é ela que tem o poder de comprometê-la ou não. Dessa maneira, “para um empirista,

‘progresso’ significará a transição a uma teoria que permite testes empíricos diretos da

maioria de seus pressupostos básicos” (FEYERABEND, 2003, p.42).

Novamente, nada do que trago nesse texto é novo ou tem um caráter de

denuncismo personalista. Não tenho essa pretensão aqui. Foucault (1965) já falava desse

postulado coisista em Freud – a saber, que Freud trabalha com o inconsciente como algo

que está, desde sempre, no interior do ser humano esperando para ser descoberto. Para

Foucault, trata-se de um inconsciente antropológico. Autores como Alfredo Eidelsztein

também fazem um excelente trabalho nesse sentido. Minha preocupação é com a

produção em nosso campo, especialmente no Brasil.

Nossa proposta como grupo não é afirmar que os freudianos ou os empiristas estão

errados, não pretendemos assumir uma posição pernóstica e improdutiva quanto a isso. O

que trago, a partir dessa discussão, é que não cabe trabalhar com o empirismo e a biologia

na teoria lacaniana, isso porque, para Lacan, a concepção de ciência não pode ser o

empirismo, já que ele é atravessado por teses ontológicas, pressupostos biológicos, que

aludem para o estatuto da existência das coisas. Como articular essas ideias com uma

teoria que as criticam do começo ao fim?

Para Lacan, o conceito cria a coisa. Nesse sentido, não há realidade pré-discursiva,

ela se funda pela linguagem. O que entendemos hoje por realidade pode mudar,

dependendo do paradigma que é utilizado para fazer essa leitura. Para Freud a coisa é

natural e fatídica, para Lacan ela é pós-discursiva; primeiro surge o conceito – a

linguagem – e depois a coisa. Lacan diz que “não é o bastante dizer que o conceito é a

própria coisa (...). É o mundo das palavras que cria o mundo das coisas, inicialmente

confundida no hic et nunc do todo em devir, dando um ser concreto à essência delas”

(LACAN, 1953/1995, p.278).

Não se trata, porém, de um racionalismo, já que Lacan não recusa a experiência.

Para ele, a experiência está atrelada a um discurso. O que Lacan coloca em questão é o

que se articula com o conhecimento. Não é possível, em Lacan, fazer uma oposição do

que é dado pela experiência e o que é mediado pelo conceito. Definitivamente, o que

Lacan põe em questão é a imediatez ingênua da percepção. A experiência está atrelada a

um discurso.

Dessa forma, no paradigma lacaniano a existência das coisas é produzida, não está

dada. O “argumento com base na observação” é, portanto, uma grande falácia, já que,

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para descrever o que é revelado pelas aparências, é necessária uma rede conceitual que

passa pela linguagem. Poderíamos dizer que a pedra caía em movimento retilíneo e

circular antes de Galileu? Não. O movimento retilíneo e circular está na teoria, não na

pedra que cai.

Ora, se Lacan propõe um retorno a Freud, não seria uma continuidade ou

complementação da teoria freudiana? Em seus Escritos Lacan (1965-1966/1995) diz que

“a palavra de ordem com que nos armamos, do retorno a Freud, nada tem a ver com o

retorno às fontes, que, aqui como alhures, poderia significar apenas uma regressão” (p.

368).

Não se trata, portanto, de um retorno às fontes – se fosse isso, recorreríamos a uma

regressão. Lacan constrói uma nova rede conceitual, já que “nenhuma nova noção foi

introduzida na análise desde Freud” (LACAN, 1956/1995, p.462). Podemos dizer que,

em termos conceituais e epistemológicos, quem faz um retorno literal à Freud é Anna

Freud, Winnicott, Melanie Klein. Claro que esses autores produzem novos conceitos, mas

a fundamentação conceitual continua sendo freudiana.

Lacan constrói um pensamento totalmente novo, subvertendo o sistema freudiano,

“a palavra de ordem de um retorno a Freud significa uma reviravolta” (LACAN,

1955/1995, p.403). “Para resgatar o efeito da fala de Freud, não é a seus termos que

recorremos, mas aos princípios que a regem” (LACAN, 1953/1995, p.293). O retorno a

Freud proposto por Lacan é um retorno ao que Freud inaugurou e não a Freud mesmo.

Lacan parte de concepções totalmente diferentes das de Freud.

Nessa demarcação das diferenças entre Freud e Lacan, podemos destacar a

diferença acerca da ciência. Se para Freud a ciência deveria partir de um empirismo,

Lacan trabalhava com a ideia de ciência conjectural:

Exercendo-se a técnica da psicanálise na relação do sujeito com o significante,

o que ela conquistou de conhecimentos só é situável ao se ordenar a seu redor.

Isso lhe confere seu lugar no grupo que se afirma como ordem das ciências

conjecturais. Pois a conjectura não é o improvável: a estratégia pode ordená-la

como certeza. Do mesmo modo, o subjetivo não é o valor de sentimento com

que o confundem: as leis da intersubjetividade são matemáticas (LACAN,

1956/1995, p.475).

O que Lacan diz sobre o caráter biologicista presente na teoria freudiana?

Vejamos:

Acreditamos cumprir melhor os deveres do rigor científico ao apontar a

hipocrisia que, nesse como em outros desvios, reduz ao benévolo ou até ao tolo

aquilo que a experiência freudiana demonstra. Queremos referir-nos ao

emprego indefinível que é comumente feito de referências como esta: nesse

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momento de sua análise, o doente regrediu à fase anal. Daria gosto ver a cara

do analista se o doente viesse a “fazer força” ou, simplesmente, babar em seu

divã. Tudo isso não passa de um retorno mascarado à sublimação que encontra

abrigo no inter urinas et faeces nascimur, implicando que essa origem sórdida

concerne apenas a nosso corpo. O que a análise descobre é uma coisa

completamente diferente. Não são seus andrajos, é o próprio ser do homem que

vem alinhar-se entre os dejetos em que seus primeiros deleites encontraram seu

cortejo, desde que a lei da simbolização em que deve engajar-se seu desejo o

apanhe em sua rede, pela posição de objeto parcial em que ele se oferece ao

chegar ao mundo, a um mundo em que o desejo do Outro constitui a lei.

(LACAN, 1955-1956/1995, p.589n).

De fato, alguma coisa parece mudar com a psicanálise lacaniana. Não é mais de

um inconsciente primordial nem instintivo que estamos falando, mas de um inconsciente

que “conhece apenas os elementos do significante” (LACAN, 1957/1995, p.526). Por

isso, para Lacan, os textos canônicos freudianos em matéria de inconsciente são a

“Traumadeutung”, a “Psicopatologia da vida cotidiana” e “O chiste (Witz) em suas

relações com o inconsciente”, porque são os textos que mais se afastam – não totalmente

– da lógica biologicista do inconsciente.

O projeto de Lacan é, a meu ver, audacioso porque ele pretendeu alcançar na

psicanálise – com implicações em todas as áreas do conhecimento – a mesma força de

“mutação” do intelecto humano, descrita por Koyré (1966/1980) – epistemólogo que

influenciou Lacan – que Galileu ensejou com a geometrização do espaço e a dissolução

do Cosmos.

É necessário explicitar essas diferenças teórico-epistêmicas nas teorias de Freud e

Lacan porque elas possuem implicação em nossa clínica. Se para Freud é a observação

clínica que vai construir e determinar a teoria, para Lacan é a teoria que determinará a

nossa prática clínica:

É tão central para a ação analítica a noção que queremos aqui alcançar que ela

pode servir de medida para a parcialidade das teorias em que há quem se

detenha em pensá-la. Ou seja, não estaremos enganados em julgá-las segundo

o manejo da transferência que elas implicam. Esse pragmatismo é justificado.

É que esse manejo da transferência é idêntico à noção dela, e por menos

elaborada que seja esta na prática, ela só pode incluir-se nas parcialidades da

teoria (LACAN, 1958/1995, p.609).

Segundo Koyré (1966/1980) não se trata de combater teorias errôneas ou

insuficientes, mas de transformá-las, de “trocar uma atitude intelectual, em suma, muito

natural, substituindo-a por outra, que não era de todo” (p.5). Ou seja, as leis não são

naturais, elas estão dadas por uma atitude científica que desenvolve um problema de

acordo com a teoria com a qual se investiga. Essa teoria é sempre um efeito de discurso.

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Koyré rompe com as histórias tristes da verdade. Se pensarmos a história das

ciências a partir desse epistemólogo, não veremos mais as teorias de Freud, Copérnico e

Darwin como as três grandes frustrações impostas ao narcisismo do homem

(FOUCAULT, 1961/2013).

O que vai estabelecer o efeito de verdade ou falsidade dos enunciados será os

recursos conceituais. Por isso que não é possível responder a um problema lacaniano com

uma rede conceitual e epistemológica freudiana. Assim como não é possível responder

uma problemática freudiana com uma rede conceitual lacaniana.

Segundo Koyré (1966/1980), “quanto à experimentação – questionamento

metódico da natureza – isso pressupõe tanto a linguagem na qual suas perguntas são

formuladas quanto o vocabulário que permite interpretar as respostas” [tradução nossa]

(p.3). Essa discussão parece mister para nossa comunidade, que faz isso à tort et à traver.

Enquanto nossa comunidade parte de um pressuposto freudoaristotélico, em que a

verdade estaria na correspondência do ser com a experiência, com a coisa, Lacan se apoia

na razão artesanal de Sócrates; a noção de ciência conjectural, que fala Lacan, tenta

resgatar a tradição de Teeteto. Segundo Lacan (1953/1995):

Essa noção se degradou, como se sabe, na inversão positivista que, colocando

as ciências do homem no coroamento do edifício das ciências experimentais,

na verdade as subordinou a estas. Essa noção provém de uma visão errônea da

história da ciência, baseada no prestígio de um desenvolvimento especializado

dos experimentos (p.285).

O que quero dizer é que não é possível, em uma clínica lacaniana, buscar o

inconsciente de nossos analisandos como o trabalho de um arqueólogo que busca os ossos

de um dinossauro enterrado nas areias de um deserto do Saara. Freud propõe isso, Lacan

não. O inconsciente de Lacan é uma produção de análise, o de Freud é um inconsciente

pré-discursivo e a-histórico. Para Lacan, o inconsciente é estruturado como uma

linguagem, que só se encontra em superfície e que é parte do discurso concreto (LACAN,

1953/1995, p.260); o inconsciente freudiano é um inconsciente instintivo, profundo e a-

histórico.

Quais as implicações clínicas disso? Ora, um psicanalista lacaniano não vai ler

seus casos por meio de repercussões fisiológicas com certas doses de Édipo, ele vai ler o

caso como se lê um texto. Lacan (1946/1995, p.185) diz que se posicionou contra

(...) a maneira arriscada como Freud interpretava sociologicamente a

descoberta, capital para o espírito humano, que lhe devemos nisso. Penso que

o complexo de Édipo não surgiu com a origem do homem (se é que não é

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insensato tentar escrever sua história), mas no alvorecer da história, da história

“histórica”, no limite das culturas “etnográficas”. Ele só pode surgir,

evidentemente, na forma patriarcal da instituição familiar, mas nem por isso

deixa de ter um valor liminar incontestável; estou convencido de que, nas

culturas que o excluíam, sua função devia ser exercida por experiências

iniciáticas, como aliás a etnologia nos permite ver ainda hoje, e seu valor de

fechamento de um ciclo psíquico decorre de ele representar a situação familiar,

na medida em que, por sua instituição, esta marca no cultural o recorte do

biológico e do social (LACAN, 1946/1995, p.185).

Lacan deixa claro que o sujeito não surge a partir de um inconsciente a-histórico,

o sujeito do inconsciente é determinado pelo discurso do Outro, ele é engendrado pela

linguagem, sem ser idêntico a ela. Ele não é determinado por um corpo anátomo-

biológico. O que o determina é uma cadeia de significantes que opera para além do corpo

biológico. O sujeito é um efeito de linguagem, não de instintos.

Enquanto a psicanálise freudiana interpreta uma oração independente de seu

contexto, a psicanálise lacaniana a lê como um discurso. O único contexto em jogo na

psicanálise freudiana é o complexo de Édipo. O padre escolheu ser padre por conta do

seu complexo edípico: na igreja ele pode matar o pai, comer sua carne e adorar a mãe

virgem.

Quanto a psicanálise ser ou não uma ciência, o imbróglio pode ser ainda maior.

Em “Função e campo da fala e da linguagem” (1953/1995), Lacan diz que a psicanálise

ainda não é uma ciência, mas pode tornar-se, se buscar um maior rigor teórico e técnico.

O que destaco, a partir dessa breve discussão, é que Lacan introduz uma mudança

de pensamento e, partir dessa mudança, vai pensar uma outra forma de pensar a clínica

psicanalítica, seus problemas e suas necessidades. Não se trata de dizer que Lacan supera

Freud – isso seria colocar o acento no lugar errado –, mas que ele dá outras respostas e

desenvolve novos problemas em relação a nossa prática. Não há uma continuidade entre

esses dois autores, mas uma ruptura.

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Construções em análise: a imprecisão teórica enquanto resistência do analista

Camila Q. Kushnir

[email protected]

Em um congresso, uma psicanalista lacaniana apresenta um caso clínico. Ela diz:

E aí a paciente deixou de vir. Resistiu até não poder mais. Não bancou o

próprio desejo. Sua dificuldade estava em aceitar as interpretações. Dizia que

não conseguia mudar, mas faltava ali um esforço necessário. Passar por uma

análise não é fácil. Não é para todos.

Essa pequena passagem se assemelha em muito a várias outras que escutamos

todos os dias em nosso campo. Colegas, sejam iniciantes ou “doutos” (como Lacan1

costumava referir-se ironicamente aos mestres), colocam do lado do paciente e da teoria

a seu serviço a justificativa para a interrupção dos tratamentos. Se os atendimentos vão

bem, os analisantes não faltam, não questionam o analista, não perguntam nada sobre sua

vida pessoal, estão bancando o desejo. Se, contudo, a transferência surge e dificuldades

começam a se interpor, o analisante está resistindo, logo ele não quer/não está preparado

para bancar uma análise.

O interessante da discussão sobre o caso é que em nenhum momento foi explorada

a dimensão significante. Muito se falava sobre o comportamento. O analisante fez isso ou

aquilo. E as intervenções analíticas? Como a teoria que fundamenta a prática estava sendo

trabalhada? Karl Popper (1995), assim como Robert Castel (1978), teceram sérias críticas

à psicanálise quanto ao seu poder de imunização, isto é, tudo poderia ser explicado através

da teoria freudiana, mesmo o que se mostrasse ilógico. Não haveria possibilidade de uma

hipótese equivocada por parte do psicanalista2.

Um exemplo disso está em “Alguns fragmentos de análise de um caso de histeria”,

conhecido como o caso Dora:

Esse amor pelo pai, portanto, fora recentemente reavivado e, sendo esse o caso,

podemos perguntar-nos com que finalidade isso ocorreu. Obviamente, como

sintoma reativo para suprimir alguma outra coisa que, por conseguinte, ainda

1 No Escrito “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, por exemplo, Lacan (1953/1998)

questionou: “Mas, não terão elas [as formas iniciáticas e poderosamente organizadas em que Freud viu a

garantia da transmissão de sua doutrina] levado a um formalismo enganador, que desencoraja a iniciativa

ao penalizar o risco, e que faz do reino da opinião dos doutos o princípio de uma prudência dócil onde a

autenticidade da pesquisa se embota antes de se esgotar?” [grifo nosso] (p.240). 2 Uma hipótese é uma proposição (ou conjunto de proposições) antecipada provisoriamente como

explicação de fatos ou fenômenos, e que deve ser ulteriormente verificada pela dedução ou pela experiência.

Se uma hipótese não for passível de refutação, isto é, não puder ser analisada e contestada, ela jamais poderá

dar lugar a outra mais admissível.

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era poderosa no inconsciente. Considerando a situação, não pude deixar de

supor, em primeiro lugar, que o suprimido era seu amor pelo Sr. K. Foi-me

forçoso presumir que ela ainda estava apaixonada por ele, mas que desde a

cena do lago, por motivos desconhecidos, seu amor tropeçava numa violenta

resistência, que a moça retomara e reforçara sua velha afeição pelo pai para

não ter de notar nada em sua consciência sobre esse amor [pelo Sr. K.] dos

primeiros anos de sua adolescência, que agora se tornara penoso para ela [grifo

nosso] (FREUD, 1905 [1901]/1996, p.60).

Frequentemente quando Freud se deparava com alguma contradição entre aquilo

que esperava encontrar e o que de fato ouvia dos pacientes, rapidamente o que não

encaixava era absorvido e suprimido pela suposição do inconsciente e do recalque. Se

Dora mostrava ciúmes pelo pai, esse amor, obviamente, era um sintoma reativo ao amor

pelo Sr. K., o que era negado por Dora. Sua oposição a essa interpretação configurava

para Freud uma resistência contra conteúdos inconscientes. A ideia aqui é a de que o

analista está a favor do desejo, do inconsciente. Logo, se sua interpretação é rejeitada, há

um movimento do paciente não contra o dito do analista, mas sim contra aquilo que ele

deseja sem saber, porque recalcado. Isso legitimaria qualquer intervenção analítica.

Em outro momento, Freud passa a analisar um dos sonhos de Dora:

- Como é isso da caixa de joias que sua mãe queria salvar?

- “Mamãe gosta muito de joias e ganhou várias do papai.”

- Talvez você não saiba que “caixa de joias” é uma expressão muito apreciada

para a mesma coisa a que você aludiu, não faz muito tempo, com a bolsinha

que estava usando: os genitais femininos.

- “Sabia que o senhor ia dizer isso.”

- Ou seja, você sabia disso… (...). Ela [sua mãe] é, como você sabe, sua rival

anterior nos favores de seu pai (...). Isso quer dizer, então, que você estaria

disposta a dar a seu pai o que sua mãe lhe recusava, e a coisa que se trata teria

a ver com uma joia. Pois bem, lembre-se agora da caixa de joias que o Sr. K.

lhe deu (...). Ele lhe deu uma caixa de joias e, portanto, você tem de presenteá-

lo com sua caixa de joias. Logo, você está disposta a dar ao Sr. K. o que a

mulher dele lhe recusa. Aí está o pensamento que você teve de recalcar com

tanto esforço e que tornou necessária a transformação de todos os elementos

em seu oposto. O sonho torna a corroborar o que eu já lhe tinha dito antes de

você sonhá-lo: que você está evocando seu antigo amor por seu pai para se

proteger de seu amor pelo Sr. K. Mas, o que mostram todos esses esforços?

Não só que você temeu o Sr. K., mas que temeu ainda mais a si mesma, temeu

ceder à tentação dele. Confirmam também, portanto, quão intenso era seu

amor por ele. Naturalmente, Dora não quis acompanhar-me nessa parte da

interpretação [grifo nosso] (ibid., p.70-72).

Freud não apenas persiste em uma interpretação que se mostra equivocada, o que

ele mesmo admite em uma nota de rodapé de 19233, como atribui diversos significados

3 “Quanto mais me vou afastando no tempo do término dessa análise, mais provável me parece que meu

erro técnico tenha consistido na seguinte omissão: deixei de descobrir a tempo e de comunicar à doente

que a moção amorosa homossexual pela Sra. K. era a mais forte das correntes inconscientes de sua vida

anímica” [grifo nosso] (FREUD, 1905 [1901]/1996, p.113). Segundo Lacan (1951/1998), o sujeito

[subject], tema da análise do caso Dora não era o amor pelo Sr. K., mas sim a questão da feminilidade.

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constantemente rejeitados por Dora, como a ligação feita entre a caixa de joias e os

genitais femininos. Segundo essa hipótese, ela estava disposta a dar ao Sr. K. o que ele (e

ela mesmo) queria. Dora disse saber qual seria o pensamento de Freud em relação à caixa

de joias. Ele iria dizer aquilo, não ela. E, por quê? Talvez porque desde o início de sua

teoria, já na Interpretação dos Sonhos (1900) até o fim, Freud não abdicou de atribuir

significados sexuais, especulando sobre qual era o objeto de desejo dos pacientes. O

simbolismo era empregado por ele, de modo que se criava uma relação imperativa entre

representante inconsciente e significado, tal como um dicionário.

Na página 121 da Interpretação dos sonhos, vol. IV, Freud disse: “a técnica que

descrevo nas páginas seguintes difere do método da Antiguidade num ponto essencial:

ela impõe a tarefa de interpretação à própria pessoa que sonha”. Logo depois, acrescenta:

“no caso do método de decifração, tudo depende da confiabilidade do ‘código’ – o livro

dos sonhos –, e quanto a isso não temos nenhuma garantia” (FREUD, 1900/1996, p.122).

Não haveria, portanto, como confiar em uma correspondência prévia entre partes de um

sonho e um dado significado. Este precisaria ser produzido em análise, a partir do

sonhador.

Entretanto, posteriormente, Freud endossou o oposto:

Nos sonhos produzidos por homens, a gravata aparece amiúde como símbolo

do pênis. Sem dúvida, isso ocorre não apenas porque as gravatas são objetos

longos, pendentes e peculiares aos homens, mas também porque podem ser

escolhidas de acordo com o gosto – uma liberdade que, no caso do objeto

simbolizado, é proibida pela Natureza (...). É altamente provável que todos os

aparelhos e máquinas complicados que aparecem nos sonhos representem os

órgãos genitais (e, em geral, os masculinos) (...). Tampouco há qualquer

dúvida de que todas as armas e instrumentos são usados como símbolos do

órgão masculino: por exemplo, arados, martelos, rifles, revólveres, punhais,

sabres, etc.. Da mesma forma, muitas paisagens nos sonhos, especialmente

qualquer uma que tenha pontes ou colinas cobertas de vegetação, podem ser

claramente reconhecidas como descrições dos órgãos genitais [grifo nosso]

(ibid., p.337).

Em “Construções em análise”, texto que poderíamos caracterizar como do

ultimíssimo Freud, ele discorre sobre a referida imunização da psicanálise como uma

intriga da oposição:

(...) expressou ele [bem-conhecido homem de ciência] uma opinião sobre a

técnica analítica que foi, ao mesmo tempo, depreciativa e injusta (...). Se o

paciente concorda conosco, então a interpretação está certa, mas, se nos

contradiz, isso constitui apenas sinal de sua resistência, o que novamente

demonstra que estamos certos. Desse modo, estamos sempre com a razão

contra o pobre e desamparado infeliz que estamos analisando, não importando

como ele reaja ao que lhe apresentamos (...). Uma revelação como essa sobre

a natureza de nossa técnica foi muito bem acolhida pelos opositores da análise.

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Vale a pena, portanto, fornecer uma descrição pormenorizada de como estamos

acostumados a chegar a uma avaliação do ‘sim’ ou do ‘não’ de nossos

pacientes durante o tratamento analítico - de sua expressão de concordância ou

de negação (...). Surge a questão de saber que garantia temos, enquanto

trabalhamos nessas construções, de que não estamos cometendo equívocos e

arriscando o êxito do tratamento pela apresentação de alguma construção

incorreta (...). Nenhum dano é causado se, ocasionalmente, cometemos um

equívoco e oferecemos ao paciente uma construção errada como sendo a

verdade histórica provável (...) (FREUD, 1937/1996, p.291-295).

Freud aqui declara que o analista pode se equivocar quanto à construção que faz

e apresenta ao paciente, afirmando, contudo, que nenhum dano é, ocasionalmente, gerado

caso esse erro técnico ocorra. Complementa: “posso garantir, sem me gabar, que um tal

abuso de ‘sugestão’ jamais ocorreu em minha clínica” (ibid., p.296). Contudo, essa

certeza não se sustenta quando relemos os principais casos elencados como

paradigmáticos em sua obra4. Ademais, ele mesmo reconheceu por diversas vezes ter

exercido sua influência sobre os pacientes, como com Dora, o que acarretou o

rompimento da análise.

Além disso, reiterou que “se a construção é errada, não há mudança no paciente,

mas, se é correta ou fornece uma aproximação da verdade, ele reage a ela com um

inequívoco agravamento de seus sintomas e de seu estado geral” [grifo nosso] (ibid.,

p.300). Declara, assim, que uma construção errada é inofensiva, mas uma certa ou que

caminha em direção à verdade leva ao agravamento dos sintomas. Não à toa, portanto,

muitos analistas acreditam que o aumento do sofrimento no paciente seja um mal

necessário, já que, com outras palavras, é isso que Freud ratifica. Se o analista se

equivoca, nada se altera. Mas se a interpretação é precisa, o analisante piora. Resiste a

melhorar. Como não crer que quando alguém está faltando, mostrando-se descontente

com a análise, isso não seja efeito do bom trabalho de um analista? Ele está na direção

apropriada. É o analisante que não está suportando passar pelo processo.

Para finalizar, Freud esclarece que as reações dos pacientes são ambíguas e só

seria possível decidir se uma construção seria correta ou inútil no a posteriori, isto é,

pelos efeitos desencadeados:

Podemos resumir o assunto afirmando que não há justificativa para a censura

de que negligenciamos ou subestimamos a importância da atitude assumida

pelos que estão em análise para com nossas construções. Prestamo-lhes

atenção e, com frequência, dela derivamos informações valiosas. Mas essas

4 Sobre isso, Lacan (1953/1998) afirmou: “examinando mais de perto, os problemas da interpretação

simbólica começaram por intimidar nosso pequeno mundo, antes de se tornar embaraçosos. Os sucessos

obtidos por Freud surpreendem agora pela sem-cerimônia da doutrinação de que parecem proceder, e a

exposição que dela se observa nos casos de Dora, do Homem dos Ratos e do Homem dos Lobos não deixa

de nos escandalizar” [grifo nosso].

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reações do paciente raramente deixam de ser ambíguas, e não dão

oportunidade para um julgamento final. Só o curso ulterior da análise nos

capacita a decidir se nossas construções são corretas ou inúteis (...). Não

exigimos uma concordância direta do paciente, não discutimos com ele, caso

a princípio a negue. Em suma, conduzimo-nos segundo modelo de conhecida

figura de uma das farsas de Nestroy – o criado que tem nos lábios uma só

resposta para qualquer questão ou objeção: “Tudo se tornará claro no decorrer

dos futuros desenvolvimentos” [grifo nosso] (ibid., p.296-300).

Não se exige, portanto, que o paciente concorde com o analista e sobre isso não

se discute, se... a princípio ele rejeita a construção proposta. Mas, e depois? Sabemos o

quanto os analistas insistem em suas hipóteses enquanto uma “verdade histórica

provável”.

Sobre essa insistência, Lacan engendra uma ruptura. Vamos segui-lo passo a

passo:

Os analistas enveredaram no caminho daquilo que Freud lhes ensinou, e

acreditam saber. Freud diz a eles que o desejo é o desejo sexual e eles

acreditam. Eis justamente o engano deles – porque não entendem o que isto

quer dizer. Quando Freud sustenta que o desejo sexual está no âmago do desejo

humano, todos aqueles que o seguem acreditam, acreditam tão forte que eles

se convencem de que é de uma total simplicidade (...). Basta dizer ao paciente

– o senhor não se dá conta mas o objeto está aí. Eis o que se apresenta, numa

primeira abordagem, como sendo a interpretação. Só que não funciona. Nesta

hora – é a virada – diz-se que o sujeito resiste. Por que é que se diz isto?

Porque Freud também o disse. Mas também não se entendeu melhor o que

quer dizer “resistir” do que se entendeu “desejo sexual”. Pensa-se que é preciso

empurrar. E é aí que o analista sucumbe ele próprio ao engodo [grifo nosso]

(lição 19/5/1955, 1954-1955/1995, p.285-286).

O engano dos analistas é, seguindo com Freud, acreditar que se deseja um objeto

sexual representado no inconsciente, esperando para ser des-coberto pela interpretação

analítica. Lacan alega, todavia, que direcionar o analisante para o que seria esse objeto de

desejo não funciona, e é aí que os analistas anunciam a resistência do lado do analisante.

Por que o fazem? “Porque Freud também o disse”. Essa colocação de Lacan pode parecer

irrelevante, mas é como costumamos nos defender daquilo que não sabemos explicar por

uma via racional e lógica, ou seja, utilizamos um discurso de autoridade. Se alguém

importante disse, então isso se sustenta por si mesmo.

Na perspectiva que acabo de abrir-lhes, são vocês que provocam a resistência

(...). Não há resistência por parte do sujeito. Trata-se de libertar a insistência

que existe no sintoma. O que, neste caso, o próprio Freud chama de “inércia”

não é uma resistência – como qualquer espécie de inércia, é uma espécie de

ponto ideal. Vocês é que a supõem, para poderem entender o que está

acontecendo. Vocês não estão enganados, caso não se esqueçam de que a

hipótese é de vocês (...). Vocês é que chamam isso de resistência (...). O sujeito

está no ponto em que está. Trata-se de saber se ele vai mais adiante ou não.

Está claro que ele não tende, de maneira nenhuma, a ir mais adiante, mas por

menos que ele fale, por menor que for o valor daquilo que ele disser, o que diz

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é a interpretação dele no momento, e a continuação do que diz é o conjunto das

suas interpretações sucessivas [grifo nosso] (LACAN, lição 19/5/1955, 1954-

1955/1995, p.286-287).

A teoria de Lacan subverte aquilo que a teoria freudiana sustenta: não há

resistência por parte do sujeito. Os analistas fazem uma hipótese, que de modo algum é

um dado da realidade. É sim uma abstração, o pressuposto de um ponto ideal, uma espécie

de inércia que chamam de resistência, o que os auxilia a entender o que está acontecendo.

Mas o sujeito5 está onde está, e ao falar, por menos que seja, produz, juntamente com o

analista, um discurso, que ao ser trabalhado a partir de articulações significantes, liberta

a insistência que existe no sintoma.

Vocês introduzem a ideia de um ponto morto, que chamam de resistência, e de

uma força, que faz com que isso vá adiante. Até aí está perfeitamente correto.

Mas se daí forem chegar à ideia de que a resistência deve ser “liquidada”, como

se escreve a toda hora, cairão no absurdo puro e simples. Depois de terem

criado uma abstração, vocês dizem – é preciso fazer desaparecer esta

abstração, é preciso que não haja inércia. Existe apenas uma resistência, é a

resistência do analista. O analista resiste quando não entende com o que ele

tem de lidar. Não entende com o que ele tem de lidar quando crê que

interpretar é mostrar ao sujeito que, o que ele deseja, é tal objeto sexual.

Engana-se. O que ele imagina aqui como sendo objetivo é apenas pura e

simples abstração. Ele é que está em estado de inércia e de resistência [grifo

nosso] (p.287).

Ter como hipótese que há um ponto morto e uma força necessária para levar o

sujeito adiante em suas associações, isto não é fundamental na discussão sobre a

resistência. A questão é crer que é necessário acabar com esse ponto de abstração criado

pelo próprio analista. É nesse equívoco que reside sua resistência. Ele acredita que para

liquidar uma inércia do sujeito faz-se necessário apontar para o objeto que ele deseja.

Ajudá-lo a encontrar-se com isso.

Lembro-me das diversas leituras sobre temas como cirurgias bariátricas e de

transgenitalização. Muitos analistas se opõem a elas, assim como à medicalização

psiquiátrica, por considerarem que se o sintoma é produzido discursivamente, não se trata

de intervir no corpo físico para eliminá-lo. Confundem o que é sintoma analítico, ou seja,

aquele que só pode ser produzido e trabalhado em uma análise, com qualquer outro tipo

de mal-estar que extrapola os limites de nosso campo. Supõem e transmitem que uma

ação sobre o corpo é incapaz de apaziguar aquilo que acreditam ser objeto de uma análise.

Trabalham, assim, com a hipótese – que passa a ser tomada como uma verdade dogmática,

estando aí seu engodo – de que a psicanálise tem melhores ferramentas para guiar o

5 Aqui Lacan utiliza o termo “sujeito” como sinônimo de pessoa, analisante.

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sujeito ao que ele, de fato, deseja. Militam contra a sugestionabilidade da ciência e do

capitalismo no contemporâneo, mas não se interrogam sobre a influência que exercem

sobre quem os procuram.

Lacan (1962-1963/2005) apropriou-se da tradição filosófica moderna, através da

fenomenologia husserliana, visando realizar um contraponto quanto à questão da função

da intencionalidade que, segundo ele, gera mal-entendidos no que se concebe como objeto

do desejo. Conforme Husserl, todo objeto seria objeto para uma consciência. Ademais,

toda motivação do sujeito seria consciente, estando na esfera da intencionalidade. Pode-

se dizer que Freud despertou uma contradição implicada nesta ideia ao observar como,

por exemplo, nos atos falhos, o paciente, ao intencionar dizer algo, acabava por expressar

outra coisa. Se a fala malogra em sua intenção consciente, o “querer dizer” relaciona-se,

assim, à ordem do não sabido, expressando-se pelas chamadas formações do inconsciente.

Lacan radicalizou essa ideia ao afirmar que o objeto de que se trata no desejo não

deve ser localizado em o que quer que seja de análogo à intencionalidade, isto é, o objeto

não está na intencionalidade do desejo. Se este objeto não é passível de ser captado pela

consciência na operação do pensamento, pode-se considerar que ele não está como que à

frente do desejo, mas sim atrás, sendo-lhe causa; a causa do desejo, representado pelo

objeto (a).

Um analista, ao confundir-se quanto ao conceito de objeto, desejo e interpretação

pode fixar-se na miragem que representa certa intencionalidade, crendo existir um objeto

sexual para o desejo, como um alvo a ser atingido. Bastaria, então, dizer ao paciente: o

senhor não percebe, mas é isto que o senhor deseja. Em supervisão, Lacan costumava

alertar:

(...) cuidem principalmente de não compreender o doente, não há nada como

isso que os possa pôr a perder. O doente diz uma coisa que não tem pé nem

cabeça e, ao relatá-la, dizem-me – “Pois bem, entendi que ele queria dizer

isso”. Quer dizer que, em nome da inteligência, há mera e simplesmente elisão

daquilo que deve deter-nos, e que não é compreensível (LACAN, 1954-

1955/1995, p.115).

Em nome da inteligência – não admitindo não saber o que algo significa –, os

analistas suprimem aquilo que deve deter-lhes, e que não é compreensível. Por quê?

Porque o significante lacaniano, diferente do saussuriano, não significa nada. É necessário

que seja posto em relação a pelo menos mais um significante para que uma dada

significação possa surgir. O que se elide é a dimensão do inconsciente, do discurso do

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Outro, já que a significação é apresentada ao analisante enquanto proveniente da intuição

do analista, ou de sua própria neurose, e não pelo trabalho com a lógica discursiva.

“O analista resiste quando não entende com o que ele tem de lidar” (ibid., p.287).

Saber do que precisa se ocupar é estar advertido da teoria. Portanto, podemos concluir daí

que a resistência do analista é, antes de tudo, uma resistência teórica. Se ele opera

atribuindo sentido, o faz a partir de uma especularidade, respondendo de um lugar que

Lacan (1954-1955/1995) atribui como a’ no conhecido esquema L, através de um

acoplamento egoico no qual é convocado pelo analisante, em transferência, a estar.

“Para saber o que acontece na análise, é preciso saber de onde vem a fala. Para

saber o que é a resistência, é preciso saber o que encobre o advento da fala: e isso não é

uma dada disposição individual, mas uma interposição imaginária” [grifo nosso]

(LACAN, 1956/1998, p.463). De onde vem a fala? Do campo do Outro. Esse Outro não

está nem dentro nem fora de alguém. A fala, assim, não é do analisante ou do analista,

mas, nesse encontro entre eles, um saber, como uma rede articulada de significantes, se

produz desde o campo do Outro. É por isso que a resistência, que frequentemente é

tomada como do sujeito, não é uma dada disposição individual. Não é do analisante. Mas

se apresenta como uma interposição imaginária ligada a uma falta de bússola teórica.

Sigamos com um exemplo. Um analista escuta o relato de um sonho de uma

analisante: “ganhei uma fita amarela”. Antes do sonho ela estava falando sobre a relação

com a mãe e como o ódio imperava entre elas. Ao ouvir o relato, o analista lê no que

escuta: “amar ela”. Com receio de ser mal interpretado ele deixa passar o que leu, não

intervindo sobre o que poderia ser destacado enquanto significante. Em que “pé teórico”

ele estava? Considerou que a analisante estava falando de outras coisas no sonho e se

intervisse poderia prejudicar seu processo associativo. Ademais, como ela falava de uma

cor, referir-se ao amor seria inserir ao contexto significantes que não eram dela.

Se, com a teoria de Lacan, não há mais um inconsciente individual, o mais íntimo

de cada um, como estabelecido por Freud, mas sim um inconsciente transindividual, que

não está localizado dentro/fora de alguém, dizer que há significantes de um ou de outro

não se sustenta. O mesmo podemos pensar sobre a noção de neutralidade. O analista

lacaniano não é neutro! Ele não apenas intervém, como decide o que é importante do que

está sendo dito e o põe em articulação. Ele não é, assim, um revelador de algo que está

inconsciente. O inconsciente não está em algum lugar para ser trabalhado. Ele é originado

em uma análise, a partir da leitura do analista. Este é, portanto, responsável não apenas

pela teoria que sustenta seu ato, como também pela direção do tratamento. Por isso, Lacan

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diz que “[uma certa coerência] se marca já na maneira pela qual abordei o conceito de

inconsciente – da qual vocês podem lembrar-se que não pude separá-lo da presença do

analista” (lição de 15/4/1964, 1964/1988, p.121). O conceito de inconsciente não pode,

assim, ser separado da presença do analista. O inconsciente não existe, portanto, fora de

uma análise.

Para finalizar, cabe levantarmos dois pontos relevantes. O primeiro é quanto ao

analisante. Dizer que a resistência não é dele não significa que não ocorram interferências

com as quais o analista precisa lidar. Alguém, por exemplo, pode se recusar a continuar

o tratamento ao descobrir que quem o atende é de esquerda, ou de direita. Isso, contudo,

não configura o que podemos conceituar enquanto “resistência”, ou seja, não é disso que

se trata quando Lacan diz que a resistência não é do analisante.

A declaração de que a verdadeira resistência em uma análise é do analista (lição

de 29/6/1955, 1954-1955/1995, p.404) nos suscita também uma segunda questão. Assim

como o sujeito é um efeito de fala, o analista é efeito de um ato. Isto é, apenas pelos

efeitos de interpretação, no a posteriori, é que se poderá dizer que ali houve um analista.

Se tanto o sujeito, como o que um significante representa para outro significante, quanto

o analista não são tomados enquanto pessoas, como afirmar que isso que é efeito resiste?

Essa contradição nos impõe a tarefa de irmos além de Lacan, pensando não apenas as

consequências de sua teoria, mas as possibilidades de nos desenredarmos de certo fascínio

e amor pelo autoral que nos impede de avançar com a psicanálise.

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O setting discursivo

Pedro Henrique de Oliveira Costa

[email protected]

“a chamada clínica, que é um outro uso do leito.”

(LACAN, 17/02/1976, p.98)

“não há final possível se não se produzem as aberturas.”

(EIDELZSTEIN, 24/04/2003, p.2)

1. Mobíliarquétipa

O divã de Freud, que o acompanhou quando deixou seu país tomado pelos

nazistas, é hoje peça de museu. O de Lacan foi preservado no lugar que estava quando

morreu. Há uma reverência na psicanálise por este mobiliário, mas qual a referência que

lhe dá lugar, e como dele se servem, no setting psicanalítico, paciente e psicanalista?

Tencionamos introduzir nosso questionamento pelo lado do praticante, tomando

este como responsável pelos conceitos que opera, dado que é sua teoria que suporta a

direção do tratamento que emprega e a formalização do que faz. Propomos uma

investigação sobre como se concebe o setting analítico e, partindo de apontamentos

acerca do divã, sobre como operamos e conceituamos esta concepção e as relações

possíveis entre o início do tratamento, início da análise e a passagem do paciente para o

divã.

Ressaltamos que clinicar, escrever e transmitir, “têm a potência de colocar o

praticante em contato direto com as exigências necessárias à formação, que jamais

excluem do horizonte a dificuldade e a angústia, que jamais deveriam apoiar-se nas

garantias imaginárias e da mestria” (FARIA, 2018, p.19), podendo nos situar diante do

desafio da clínica e da formalização de nossa operação, que neste outro tripé constrói uma

possibilidade de avanço com premissas coerentes à nossa clínica e ao nosso limite teórico

e prático.

Do início do tratamento à mobiliarquétipa do setting, almeja-se um conceito de

onde ocorre uma psicanálise, em uma tentativa de escrita atenta à sua borda e aberta à

expansão. Não catalogaremos os usos ou promoveremos uma investigação histórica do

mobiliário ou do setting psicanalítico, pesquisa que talvez possa ainda ser conduzida em

outro espaço, passando por outros psicanalistas, textos e práticas. Contamos que restarão

outros pontos, caminhos possíveis de investigação e questões a serem feitas, posto que

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fazemos um recorte em um tema tão amplo, mas intencionamos cumprir com o papel de

podermos ainda nos situar a seu respeito e de termos colocado algo nosso na leitura e no

debate, ainda aberto para alguns psicanalistas. Desta maneira procuraremos, naqueles que

outrora nos foram guias clínicos, e por alguns momentos detentores de regras rígidas, nos

servir como leitores críticos-investigativos, em uma tentativa de formalizar como

pensamos teoria, prática e clínica psicanalítica1 a respeito do setting e início do

tratamento.

Informamos o/a leitor/a que não temos compromisso cultural com um autor

específico. Tomaremos aqueles que nos trouxeram ideias diversas em relação aos

conceitos de nossa investigação. Não se encontrará aqui a busca de uma evolução, menos

autor que, por ter dado sorte, conseguiu determinado caminho que acrescenta, torna mais

eficaz” (p.82), e é desta maneira que buscamos aparelhos teóricos que sirvam de

acrescentamento, sem ter o rabo preso. São as possibilidades de extrairmos de uma leitura

os conceitos aplicáveis à experiência que a psicanálise nos dá que nos interessa.

Que Freud ou Lacan ou qualquer mestre psi tenha dito isso ou aquilo – uma,

oitenta ou vinte vezes – não torna suas palavras uma sentença, nem os torna clínicos

inquestionáveis. É mesmo por um tipo de relação com alguns de seus ditos que ações

nefastas reverberam na direção de instituições e tratamentos, servindo a interpretações

performáticas, cortes de sessões sem sentido, fixação em diminuir o tempo das sessões (e

não menos de alongar o tratamento), não escuta, responsabilização dos pacientes por tudo

que lhes ocorrem, ideia de que o mundo todo pode ser lido pelos conceitos psicanalíticos,

além de uma cerimônia rígida sobre o setting. “Saber que nos deixaram aí próteses que

podemos ou não usar, pode até ser útil em determinado momento”, mas nossa relação

com os autores não pretende se oprimir “pelas decantações das cagadas de sucesso, que

estão por aí nos atrapalhando a vida” (MAGNO, 1994, p.220).

Do que os autores tenham dito, podemos nos servir, sabendo como e porquê, mas

“manter uma psicanalise sem possibilidade de questionamento para alem da patente dos

‘pais e fundadores’, sem novas hipoteses ou problematizacao das que ja existem, e cair

no mesmo equivoco milenar que a incompreensao e um sintoma” (COSTA, 2020, p.93).

1 Camarena (2018) destrincha estes três termos que destaca de sua leitura de Lacan. A “prática” sendo

relativa ao momento de escuta dos pacientes, a “clínica” como uma tomada de distância da prática, a

reflexão que constrói um caso, e a “teoria” como uma proposição, crítica e desenvolvimento de conceitos.

Disponível em <https://youtu.be/0N-sc2exxNg>.

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ainda um duelo de autores. Magno (2018) nos lembra que “podemos supor determinado

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Se ficarmos com o que disseram amparados na figura que representam para alguns, se

não os questionarmos, se não pudermos questioná-los – não como pessoas mas como

autores, teóricos, protéticos – assumimos um compromisso religioso que trata o autor

como autoridade, único autorizado, que com os princípios de seu poder estaciona o

progresso do campo científico no qual a psicanálise se insere.

2. Freud e a maca

A fim de nos situarmos sobre o setting psicanalítico (substantivo inglês usado aqui

no sentido de situação, configuração ou ambiente), para não dizer que não falamos de

Freud, tomando-o em um “movimento de fidelidade ao texto, no sentido de estarmos

atentos nao apenas as suas bases, mas tambem ao seu desenvolvimento e horizonte

teorico-clinico” (ARRUDA, 2020, p.6), retomemos alguns de seus enunciados sobre o

início do tratamento e o divã.

No texto “O início do tratamento” (FREUD, 1913/2010), o autor nos expõe como

pensa os primeiros contatos entre paciente e psicanalista, aludindo a questões relativas ao

dinheiro, indicações e contraindicações do método e cerimoniais sobre a disposição dos

corpos. Nos traz condições, observações e regras da terapia, conforme sua

esqueçamos que mesmo esse texto, partindo de Freud, segue uma cartilha, “mesmo que

de modo implicito” (KUSHNIR, 2020, p.28).

Freud (1913/2010) nos aponta ter se habituado, ao receber um paciente que

conhece pouco, a iniciar o tratamento como provisório, por uma ou duas semanas, período

que ele denomina de “tratamento de ensaio”. Um curto período – pois manifesta que

“longas entrevistas antes do início do tratamento” têm “nitidas consequências

desfavoráveis, para as quais deve estar preparado” (p.167) –, que funcionando como uma

“triagem”, um “esclarecimento dos enfermos, cresce o número dos que passam na

primeira prova” [grifos nossos] (p.173); esse “tratamento experimental” (p.166) tem a

função de esclarecimento para o paciente, mas também para o psicanalista: ao primeiro

sobre como se dá o tratamento e se será possível mantê-lo, ao segundo como um critério

de avaliação e diagnóstico.

Em uma nota de rodapé, Freud (1913/2010, p.164) nos remete a um texto de 1905,

no qual se permitiu corrigir erros e fornecer alguns esclarecimentos, onde se lê: “recusem-

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individualidade, “segundo seus vícios, suas taras” (MAGNO, 2018, p.84) - e não nos

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se os doentes que não têm certo grau de educação e um caráter razoavelmente confiavel”,

“pessoas sadias que nada valem” (FREUD, 1905/2016, p.341), e podemos notar sua

individualidade e seus preconceitos em sua técnica; conjuntamente, acrescenta que

“psicoses, estados de confusão e de abatimento profundo (tóxico, poderia dizer) também

são inadequados para a psicanálise, ao menos tal como ela é praticada até agora” (p.341-

342), definindo assim seu lugar no tempo e um limite de sua aplicabilidade em relação ao

praticante, ao paciente e à teoria.

Freud, desse modo, inicia o tratamento como um ensaio, amparado em uma série

de orientações, experiências e desconfianças, uma espécie de “sondagem para conhecer

o caso e decidir se é próprio para a analise” (FREUD, 1913/2010, p.165), como um

momento diferente do que ocorre “durante a sessao”, mas que “ja é o começo da análise,

e deve seguir as regras da mesma” (p.165). Pouco antes de encerrar suas observações

sobre o início do tratamento (tempo das sessões, honorários, duração do tratamento,

diagnóstico e dificuldades da terapia), nos diz “algo a respeito de um cerimonial da

situacao” e nos introduz a questão do divã, num parágrafo único, para o qual chamamos

a atenção do/a leitor/a. Pois, devido à forma em que é escrito – situando o divã

textualmente como uma peça entre o final do tratamento de ensaio, quando estão

acertados os modos de condições, e um momento onde “tudo considerado […] se inicia

o tratamento” (FREUD, 1913/2010, p.180) –, questionamos: teria a passagem ao divã,

primeiro textualmente, na cronologia da escrita de Freud, e depois religiosamente, como

um cerimonial freudiano, se tornado para a comunidade psicanalítica uma liturgia de

início da análise e fim do tratamento de ensaio e assim fixado a importância deste

mobiliário aos psicanalistas?

É uma questão que deixaremos aberta, pois não temos condições de responder, e

talvez não possamos responder. Contudo, sabendo que desde Freud existem práticas e

razões diversas quanto ao uso do divã e o setting, pensemos também com outros

psicanalistas.

Segundo Fink (2018), as primeiras etapas de uma análise servem a alguns aspectos

pedagógicos, a uma forma de aprendizagem de como ali se trabalha, que o analista não

deve se abster de incentivar que ocorra. Para esse psicanalista, é “bem possível que se

consuma um ano de encontros cara a cara” antes da transição da poltrona para o divã. A

transição, assim, não é imediata, ocorrendo somente quando um sintoma dá lugar a uma

“demanda de analise” (p.24). Retomaremos este termo – “demanda de análise” – adiante,

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mas percebamos que tanto Freud quanto Fink falam em um tempo inicial do tratamento,

porém o conceituam de forma diferente. Para Freud, após uma ou duas semanas de

“tratamento de ensaio”, há uma decisão (com base nos critérios citados acima) pelo

encerramento ou continuação do tratamento, e se deita o paciente. Já para Fink (2018), a

primeira etapa do tratamento pode durar até um ano, ultrapassando um período de ensaio

e de prova, porém as sessões “devem ocorrer face a face” [grifo nosso] (p.24), e

meramente quando acontecer uma “transicao”, uma definição de “demanda de analise”,

se pode pôr o paciente no divã.

Apesar disso, em outro momento de sua obra, Fink (2017) discorre sobre sua

prática pelo telefone, com seus “teleanalisandos” (p.320). Sem divã e sem transição física,

em outra forma de setting, afirma realizar análises inteiras sem que psicanalista e paciente

tenham se visto, demarcando que este dispositivo “oferece tudo que é necessário para a

análise prosseguir” (p.332), e argumenta, com uma referência a Jacques Lacan (outrora2

foi a Jacques Alain-Miller, portanto amparado em outra teoria), que quando há uma

entrada no discurso analítico “nao há mais nenhuma questão de encontro de corpos”3

(LACAN, 21/06/1972 citado por FINK, 2017, p.322). Ou seja, o que o autor nos expõe

sobre a disposição dos corpos face a face, que via de regra deveriam ocorrer em um

primeiro momento do tratamento (dando suporte a este argumento via uma teoria

freudomilleriana), é diferente a como o mesmo considera sobre os tratamentos que realiza

pelo telefone (quando argumenta referenciado à teoria produzida por Lacan).

Fica evidente a necessidade de compreendermos não os psicanalistas e suas

práticas, se fazem algo ou não, mas sem descartá-las visarmos a teoria que as suporta,

seja nesta operação de passagem ou quanto ao setting onde ocorrem. Para isso, por um

2 Fink (2018) afirma que “o que esperamos, nas palavras de Jacques Alain-Miller, é que “uma ‘demanda

autônoma’ emerja da própria relacao” - ou seja, que a demanda de que o sintoma seja extirpado como um

tumor dê lugar a uma ‘demanda de analise’, e que a relação com o analista, por si só, transforme a vontade

do analisando de não saber coisa alguma numa vontade de levar adiante sua analise” (p.24). Porém, numa

nota de rodapé, responsabiliza o psicanalista por se empenhar num contato com “pacientes que faltam às

sessões” (p.246), ou com aqueles que acha que entre eles houve um mal entendido que pode inviabilizar o

tratamento, visando a continuidade da terapia, o que nos denota que uma demanda de análise pode não vir

da “relacao com o analista, por si so”, dependendo antes de uma responsabilização e uma atividade do

analista para que uma demanda se instaure. 3 É digno de nota como a escolha de tradução no livro de Bruce Fink é diferente da que consta na versão

traduzida do texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, também diferente da versão em francês do site:

starfela.free.fr. Citar Lacan pode ser, como nos adverte Ricardo Rodríguez Ponte, “na melhor das

hipoteses”, citar incorretamente. “Para falar de uma diferença, há que se buscá-la teoricamente, não no

nível dos textos fonte. Ninguém pode se basear em um texto fonte para dizer “aqui Lacan disse symptome

ou synthome, aqui sem h e lá com h”, “temos que ir à teoria ou localizá-lo no contexto” (BAUAB e RUIZ,

2015, p.79).

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momento, visando o rigor de nossa formalização, retomemos a cartilha freudiana, quando

este nos relata sobre um jovem, que “ao deitar-se para sua primeira sessao” (FREUD,

1913/2010, p.186) algo se verifica; e percebamos que o doutor conduzia pacientes ao divã

na primeira sessão, como “via de regra” (p.186) em um “cerimonial da situacao” (p.178),

apesar de não ser muito claro se após o “tratamento de ensaio” ou desde o início dos

encontros. Freud também afirma saber que outros analistas atuam de maneira diversa em

relação a esta cerimônia, e questiona se teriam encontrado alguma vantagem nisso ou se

“ha sobretudo uma ânsia de agir de outro modo” (p.179), mas interessantemente não

desenvolve essas questões, apenas cita que sabe, sem comentar o porquê de seu

desinteresse em articular com sua teoria as demais posições possíveis tomadas pelos

colegas.

O doutor afirma manter o “conselho de fazer o paciente deitar” (FREUD,

1913/2010, p.178), em um arranjo que “tem um sentido historico”, como “vestigio do

tratamento hipnótico, a partir do qual se desenvolveu a psicanalise” e que “merece ser

mantido por razões diversas. De imediato por um motivo pessoal” (p.179); decisões que

demonstram que “motivos puramente subjetivos foram determinantes para isso”

(FREUD, 1905/2016, p.335). O autor guarda ainda suas “razões diversas”, mas revela no

imediato de um motivo pessoal como para um analista pode ser útil o divã, declarando

que não consegue ser olhado durante tantas horas e que suas caras e bocas interfeririam

na fala de seu paciente.

Anos antes em sua obra, falando de si em terceira pessoa acerca do “metodo

terapêutico que emprega e designa como psicanalise” (FREUD, 1904/2016, p.322), no

texto “O método psicanalítico de Freud”, o autor nos dá outros detalhes de sua técnica e

os vestígios que esta mantém. Relata que modificou e introduziu, no procedimento

catártico de Breuer, “mudancas na técnica; mas elas conduziram a novos resultados e, em

seguida, tornaram necessária uma concepção diversa do trabalho terapêutico, que não

contradizia a anterior, porém” [grifo nosso]. Acrescenta que seu abandono da hipnose,

“o passo seguinte” (p.323), o levou a tratar os pacientes fazendo “com que se deitem

comodamente, de costas, sobre um sofá, enquanto ele próprio fica sentado numa cadeira

atrás deles, fora de sua visão. Não solicita que fechem os olhos e evita tocá-los, assim

como qualquer outro procedimento que possa lembrar a hipnose”. Dessa maneira, tenta

levar “a aplicabilidade do tratamento a um número ilimitado de pacientes” (p.324), ainda

que não se possa dizer “que a sua aplicação seja irrestrita” (FREUD, 1904/2016, p.328),

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mas tendo o divã como algo que favorece a fala do paciente, permitindo um relaxamento

muscular por deitar-se, e que ao não olhar para algo específico depositaria sua atenção no

mundo psíquico, como nos aponta Martínez (2019).

Freud esclarece como o divã tem para ele a função de facilitar o tratamento.

Favorecendo a livre associação, sua técnica muda de posição em relação à hipnose – pois

“se verificou que não era uma única impressão (“traumatica”) que participava da gênese

do sintoma, mas, geralmente, toda uma série delas, de difícil apreensao” (FREUD,

1904/2016, p.323) –, o conduzindo a uma necessária outra concepção do trabalho

terapêutico, porém mantendo o paciente deitado. Esclarece-nos também o divã como um

artifício, uma ferramenta que viabiliza e permite um trabalho, dado que considera que a

sua pessoa, suas expressões corporais e faciais podem criar uma relação que interfere no

tratamento como privação para aquele que o procura.

E não podemos negar que isso ocorra, com a pessoa do analista ou o setting (seja

em relação à posição do mobiliário ou dos corpos, endereço do consultório ou de onde

usar o celular ou computador nas análises não presenciais, se com fones e câmera ou não,

e tantos outros). Mas não podemos negar que isso possa, dependendo da habilidade do

analista e disposição do paciente, se tornar um material das falas nas sessões e nem

sempre empecilho ou privação, tornando possível, como comumente se diz, trabalhar

estas questões nas análises, buscando saber dos efeitos que teve para o paciente o encontro

com este psicanalista e seu setting (ou quem sabe até o encaminhar a outro analista, se a

resistência se tornar uma privação que inviabilize o trabalho).

Verificamos como o setting psicanalítico, conforme conceituado no texto “O

início do tratamento”, serve ao paciente, ao tratamento e principalmente à pessoa de

Freud, que em suas recomendações ao praticantes da psicanálise endossa que sua técnica

revelou-se adequada para sua individualidade, que não se atreve “a contestar que uma

personalidade médica de outra constituição seja levada a preferir uma outra atitude ante

os pacientes e a tarefa a ser cumprida” (FREUD, 1912/2010, p.148). O que nos assinala

que a postura e decisão do analista, que compreende a sua individualidade e sua teoria,

deve ser considerada pelos praticantes no decorrer dos atendimentos. Neste viés, de

Macedo (2011) nos aponta que, em relação ao divã, seu conforto como analista é o

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primeiro critério, e nos lembra que Piera Auglagnier4 mandava sentar os pacientes que a

entediavam, e então podia se concentrar e não cair no sono.

Sem embargo, se existem psicanalistas não adeptos a falar com outra pessoa sem

olhar sua face, por que deveriam usar o divã? O jovem analista que não pode comprar

um, deveria aguardar tê-lo antes de se pôr a atender? Ou outro que preferisse o divã de

frente à sua poltrona, ou ainda aquele que se encontra melhor sentado somente um pouco

atrás sem perder toda a expressão do paciente, ou outro que como se em uma virada de

pescoço psicanalista e paciente ainda pudessem se olhar, são mais, ou menos,

psicanalíticos? Sabemos que são inúmeras as formas de se dispor os móveis e corpos em

uma sala, e lendo Freud, e Fink quando se fundamenta em Lacan, percebemos que é o

psicanalista que precisa ter a mobilidade de encontrar uma forma de trabalho que o sirva

melhor.

Todavia há pacientes que ao procurar um psicanalista sentem falta de algum

mobiliário (não gostam da disposição da sala, do estacionamento, quadro na parede) ou

como nas análises não presenciais, onde se lida com o próprio ambiente em que cada um

está (suas residências, carros, conexões de celulares), não são adeptos a lidar com o que

possa supostamente interferir no tratamento – e não excluamos que há, para alguns

pacientes, a impossibilidade de um atendimento online, pelas mais diversas condições,

assim como não há a possibilidade de exigir uma presença estritamente física para outros.

O praticante ainda assim, caso o paciente decida ir adiante no tratamento, pode trabalhar

com essa falta, questioná-la, não tratá-la como um déficit, mas como uma associação a

mais, desde que surja na fala do paciente, pois “para obter a confissão, é preciso que fale

disso” (LACAN, 1953/1998, p.249) dado que “a psicanálise dispõe de apenas um meio:

a fala do paciente” (p.248).

Outros, porém, não sentirão falta da mobília nem do consultório. Não há garantia

quanto a isso. Como apontamos, são pontos que podem ser questionados pelos

psicanalistas, tratados como qualquer outra fala associada durante as sessões, com cada

paciente que os procure, e assim verificados e decididos por ambos como continuar.

Apesar da recomendação de Freud para que se deitem os pacientes, outro analista

pode solicitar que se sentem, ou que escrevam, desenhem, modelem massinhas, que se

4 “Analisanda de Jacques Lacan, foi sua discípula predileta. (…) A ruptura ocorreu em torno da questão da

formação dos psicanalistas, quando ela recusou a proposta lacaniana de fazer do passe o eixo do

reconhecimento da qualidade do postulante. (…) Ao se separar de Lacan, fundou o Quarto Grupo” (de

MACEDO, 2011, p.295).

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conectem por outro programa de celular ou computador, que joguem, caminhem – o

próprio Freud, sem a frieza de um cirurgião, não tão freudiano, o fez. Fink (2017) afirma

partir de um princípio que se o psicanalista estiver disposto a engajar o paciente no

processo, deve ser tudo menos um observador objetivo e distante, “deve manifestar

participação ativa no processo” manter um envolvimento do tipo aberto, “interessado e

incentivador e não de defesa, sufocante ou autorrevelador” (p.27).

Mas e o setting hoje, em 2020? O que o sustenta, seja presencialmente ou por

telefone ou vídeo-chamada? Sabemos que com Freud – que não era um homo zappiens5,

não viveu as consequências da cyber cultura e só pôde realizar consultas presenciais –

não temos uma teorização, um recurso definido, apesar das recomendações e regras, sobre

como conceituar o setting nas diversas modalidades de atendimento que hoje praticam os

psicanalistas, inseridos em ambulatórios, hospitais, centros sociais, assistência

domiciliar, escolas, serviços de internação ou as consultas via internet6.

Podemos tentar, claro, estender o sentido da proposta freudiana ao que realizamos

hoje, quando pensamos o que poderíamos atualmente chamar de triagem. Por exemplo,

nos atendimentos feitos à distância, conforme nos aponta Fink (2017), independente do

dispositivo usado (celular, computador, telefone ou outro), paciente e psicanalista

precisam definir como se darão as possibilidades deste encontro – se haverá uma conexão

de internet ou rede telefônica, qual programa ou aplicativo usar, o local onde estarão,

forma de pagamento, assim como presencialmente precisam definir horários, datas e

valores. São “pontos importantes no começo da terapia analitica” (FREUD 1913/2010,

p.168), pois neste momento podem ser esclarecidas algumas questões relativas ao

trabalho e mesmo o primeiro contato pode ser uma primeira prova de sua possibilidade,

tanto para o praticante quanto para o paciente.

Apesar de Freud ter estabelecido uma conduta medianamente adequada para os

praticantes, a questão da qual partimos talvez não seja uma questão freudiana. Para nós

está claro que com Freud faz-se um ensaio, contudo a divisão que apresenta e a maneira

que toma o divã não respondem a nossa investigação. Notamos que para o doutor,

delimitada a possibilidade de haver tratamento, este se inicia no divã, mas não há uma

5 Conforme o conceito de Veen e Vrakking (2009), “o homo zappiens não apenas representa uma geração

que faz as coisas de maneira diferente - é um expoente das mudanças sociais relacionadas à globalização,

à individualização e ao uso cada vez maior da tecnologia em nossa vida” (p.4). 6 Conforme se ouve em “Bordacast EP.2: Há análise pela internet?”, disponível em

<https://youtu.be/SLMQ6Almz6c>.

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conceituação rigorosa sobre uma diferença entre início do tratamento e início da análise,

apenas um acerto das “condicões da terapia” (FREUD, 1913/2010, p.180).

Rezada a cartilha com Freud, vejamos o que nos traz o já citado Jacques Lacan.

Passemos a investigar sobre o uso desta maca-gourmet para o francês, quando deita seus

pacientes, se os deita, e principalmente se na sua divergência de Freud há ânsia de

mudança ou alguma vantagem. Como dito, não se pretende aqui um catálogo ou histórico

psicanalítico do divã, menos ainda propor um tratado acerca do setting, antes poder

apontar como podemos conceituar sua função no processo de uma análise hoje. Buscando

uma formalização sobre como o pensamos e utilizamos, talvez possamos nos abster de

uma rigidez sobre regras de conduta e mobília e passemos a operar com um suporte

teórico mais rigoroso e uma maior liberdade clínica.

3. Lacan e o leito

Betty Millan, em um relato de sua análise com Lacan7, nos revela que sua

transição da poltrona para o divã ocorreu “depois de um ano de trabalho”, quando chega

para uma sessão, entra e lá se joga, em um movimento que é seguido por uma

interpretação do psicanalista. A autora nos destaca – além dos trejeitos de Lacan, da

pessoa daquele psicanalista e seus vestígios de individualidade – haver “uma razão

estrutural para que alguém passe da cadeira para o diva”, almejando um efeito de

propiciar ao paciente a experiência de uma nova história subjetiva.

As narrativas sobre atendimentos de Lacan são as mais diversas, não podemos

tomá-las ao pé da letra ou interpretá-las com nossas imagens sem contexto e sem a

explicação do morto sobre porque ocorreram assim. Não é desta forma (com exemplos

superficiais e sem conceituação) que avançamos no campo que nos interessa. A precaução

que mais cedo apontamos sobre os ditos dos mestres e nossa relação com eles, que nos

adverte de Lacan como um clown, dirige nosso foco ao campo teórico. É assim que, ao

que nos serve o exemplo de Betty Milan – sobre como se deu seu primeiro contato com

Lacan8, sua fala sobre não querer “absolutamente ir para o diva” e em qual momento

cronológico do tratamento passou a usar tal recurso –, é distinguir o trabalho de Freud e

7 “Betty Milan: Análise com Lacan (2/11)”, disponível em: <https://youtu.be/LlRk6Fytzck>. 8 “Betty Milan: entrada na psicanálise (1/11)”, disponível em: <https://youtu.be/3OpXd88s-zM>.

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Lacan, ao percebermos que os pacientes deste não estavam “via de regra” no divã desde

o início do tratamento (ou duas semanas depois) como os daquele.

Ou seja, quando tomamos um relato como o de Betty Millan, por mais que

saibamos o que Lacan disse, o que escreveu, e tenhamos a fala de uma ex-paciente como

um resumo da situação, não temos acesso a toda “ordem certa na articulação significante”

(LACAN, 1972/2012, p.221) na qual o divã está inserido e constitui uma relação. Pois é

em uma “ordem certa” que, a partir da teoria que se orienta e desenvolve Lacan, pode-se

ler que há algo (uma relação de significantes, uma cadeia de significantes, uma relação a

uma cena, pontos que retomaremos adiante) que faz a paciente se decidir pelo divã. Essa

ordem não sabemos, não temos acesso. O que temos é o relato de seu efeito, que propicia

a continuação de uma experiência psicanalítica, e no que se refere a nossa questão sobre

o divã, percebemos que seu uso ali não se impõe, mas passa a ocorrer dentro de uma

ordem, uma relação, uma associação.

Lacan, que teve uma forma de transmissão diferente de Freud, trata do divã em

poucas passagens de seu seminário e raras vezes em seu único livro. Afirma que se trata

de um “artificio” (LACAN, 1955-1956/1988, p.99), um “outro leito” (LACAN, 1975-

1976/2007, p.98), atrás do qual se confina “a timidez de Freud” (LACAN, 1953/1998,

p.276), mas diferente deste, não nos faz orientações objetivas de seu uso.

É sem citar o mobiliário, no entanto, que nos aponta um momento relativo às

entrevistas preliminares, que anteriormente citado, podemos agora nos deter. Em seu

seminário oficialmente estabelecido9, se lê:

Quando alguém me procura no meu consultório pela primeira vez e eu escando

nossa entrada na história com algumas entrevistas preliminares, o importante

é a confrontação de corpos. É justamente por isso partir desse encontro de

corpos que este não entra mais em questão, a partir do momento que entramos

no discurso analítico (LACAN10, 1972/2012, p.220).

Partindo do relato de uma paciente e seguindo o ensino do psicanalista, sem

cairmos na ingenuidade de buscar entre eles uma ligação inequívoca, notemos que Lacan

define um tempo como “entrada na historia”, ligado às “entrevistas preliminares”, sendo

9 Ver nota 3. 10 Outra maneira que este texto foi estabelecido, sem as edições de Miller, pode ser encontrado no site:

staferla.free.fr, no Seminário 19 “… Ou pire”: “Parce que quand quelqu’un vient me voir dans mon cabinet

pour la première fois et que je scande notre entrée dans l’affaire de quelques entretiens préliminaires, ce

qui est important c’est ça, c’est la confrontation de corps. C’est justement parce que c’est de là que ça part,

cette rencontre de corps, qu’a partir du moment où on entre dans le discours analytique, il n’en sera plus

question” (LACAN, 21/06/1972, 1971-1972/2012, p.145-146).

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importante neste momento a “confrontacao de corpos”, que funciona como um ponto de

partida a um discurso, que por passar a existir como tal os corpos já não são mais a

questão. Ou seja, a questão passa a se desenvolver em outro nível do discurso quando,

enquanto paciente e psicanalista, “entramos” no discurso analítico.

Antes de compreendermos este tempo para Lacan, consideremos outros trechos,

como um contexto de sua fala na mesma data. O psicanalista declara que “no nível do

mestre/senhor, é perfeitamente possível dizer o que há entre, de um lado as funções do

campo do discurso, tais como se articulam por S1, S2, o S barrado e o pequeno a, e de

outro esse corpo que os representa aqui e ao qual, como analista, eu me dirijo”, e que “no

nível do mestre/senhor, vocês como corpos, estão petrificados”, sendo “evidente que

vocês são afetados numa analise” (LACAN, 1972/2012, p.220).

Segundo Gomes e Vaz de Melo (2017), o termo “estar petrificado” se trata de um

equívoco de tradução, posto que “o sentido de pétrir, que evidentemente visa Lacan aí é

o de ‘moldar, modelar’”11 (p.147). Assim, tratar-se-ia “de o sujeito, enquanto corpo, ser

amassado de modo a ganhar certa forma, moldado ou modelado. O discurso do mestre,

portanto, sova, amassa, modela corpos, preenchendo-os de uma forma” (p.147). Isso nos

leva a apontar que quando Lacan recebe um paciente em seu consultório, se encontram

dois corpos, moldados, suportados pelo discurso do mestre.

As fórmulas e discursos desenvolvidos por Lacan usando “S1, S2, o S barrado e

pequeno a”, assim como os registros – simbólico, imaginário e real –, são recursos do

campo lacaniano, que nos permitem pensar como os corpos são teorizados por Lacan

quando se encontram nas entrevistas e quando adentram o discurso analítico. O sujeito

(conceito de Lacan pelo qual o praticante que com ele opera é responsável) é modelado

em uma análise, existe dentro do campo dos significantes e “nao se reduz ao seu suporte

humano” (LACAN, 1954-1955/2010, p.261). Podemos dizer que existe em um campo no

qual aceita-se “a conjectura de que, do ponto de vista psicanalítico, pensamos a matéria

(toda matéria) dentro do campo dos significantes” (GOLDENBERG, 2018, p.198).

A partir do campo lacaniano, de acordo com Goldenberg (2018), “transformar

alguém de paciente a analisando é tarefa do psicanalista” (p.56). Essa transformação, que

partindo do discurso do mestre permite o discurso analítico, segundo Eidelsztein (2003)

11 “Au niveau du discours du maître, dont vous êtes - comme corps - pétris, ne vous le dissimulez pas,

quelles que soient vos gambades, c’est ce que j’appellerai les sentiments et très précisément les bons

sentiments” (LACAN, 21/06/1972, 1971-1972/2012, p.146).

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é o que dá forma à demanda analítica, produzindo o analisante, no “primeiro grande corte

do trabalho psicanalítico, a entrada em analise” [tradução nossa] (p.15).

É com os recursos desse campo que propomos pensar que o setting analítico não

se limita nem se confunde a um lugar físico, um consultório, o eixo longitudinal do corpo

ou um mobiliário. Mas é concebido na produção de um discurso que se instaura a partir

e para além de um dispositivo e o confronto de corpos físicos com seu suporte humano,

ou seja, é modelado no nível dos significantes e do sujeito, concebidos através das

associações do paciente quando lidas pelo psicanalista e questionadas em uma cadeia de

significantes.

Porém, fora de seu ensino habitual, falando a outro público que não aquele que

frequenta seu seminário, em algumas entrevistas e conferências, Lacan nos dirá algo mais

sobre “a experiência do diva” (LACAN, 1971). Se referirá ao divã de maneiras diversas,

em alguns momentos como uma metáfora, em outros como um lugar de passagem ou de

tratamento. Contudo são referências que não podemos nos fiar sem pestanejar, como já

nos advertiu Ricardo Rodríguez Ponte, menos ainda esquecer que o sujeito que fala no

divã já não é o homem no divã.

Em Genebra, Lacan faz um apontamento muito direto que merece nossa atenção,

pois um congelamento da palavra de Lacan ao que enuncia poderia servir de objeção ao

acrescentamento que seus conceitos trazem para nossa investigação clínica. Nesta

conferência, diz:

O que eu queria dizer é que na análise, quem trabalha é a pessoa que chega

verdadeiramente a dar forma a uma demanda de análise. Na condição de que

vocês não a tenham colocado de imediato no divã, caso no qual a coisa já está

arruinada. É indispensável que essa demanda verdadeiramente tenha tomado

forma antes que vocês a mandem deitar12 (LACAN, 1975).

Vemos então ressurgir a expressão, muito difundida no campo psicanalítico e já

citada anteriormente, de “demanda de analise” seguida de uma fala que pode soar como

uma clara indicação, quiçá uma regra, de que se não se deita o paciente de imediato no

divã. Lembremos que vimos como Lacan opera a partir de um certo discurso e sua

12 Conforme tradução de Ricardo Rodríguez Ponte, onde também se encontra a versão em francês: “Lo que

yo quería decir, era que en el análisis, es la persona que viene verdaderamente a formar una demanda de

análisis, la que trabaja. A condición de que ustedes no la hayan puesto inmediatamente sobre el diván, en

cuyo caso el asunto está arruinado. Es indispensable que esta demanda haya verdaderamente tomado forma

antes de que ustedes la hagan acostar” Disponível em:

<https://www.lacanterafreudiana.com.ar/2.5.1.25%20%20%20%20CONFERENCIA%20EN%20GINEB

RA%20 SOBRE%20EL%20SINTOMA,%201975.pdf>.

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concepção, que quando alguém se dirigia a seu consultório – pois ele também não era um

homo zappiens –, podiam abandonar um confronto de corpos em um nível e adentrarem

em outro. Já aqui, acrescenta que é “indispensavel” dar forma a uma demanda “antes que

vocês a mandem deitar”.

esta citação de Genebra, Alfredo Eidelsztein (2003) não se decide se Lacan estaria falando

realmente ou metaforicamente (querendo dizer, como fez em tantos outros lugares) sobre

o uso do divã, contudo nos propõe que formalizar uma demanda analítica é uma meta

para a passagem de paciente a analisante, mas esta não teria relação direta com a

passagem ao divã. Para o autor, deitar alguém não significaria precipitar uma entrada em

análise, podendo ser antes uma manobra que permita uma pessoa que não suporte ser

olhada, por exemplo, encontrar outra forma de poder falar ao psicanalista – ou deste ouvir,

pois é preciso, como já dissemos, considerar a individualidade do praticante, e este talvez

seja um ponto do qual sua análise ou supervisão possam somar-se à sua teoria e servir à

sua função. Desta maneira, o divã não deveria ser associado indubitavelmente à entrada

em análise, pois apesar de Lacan ter o dito em Genebra, seu contexto e suas palavras não

nos permitem distinguir se como metáfora ou uma alusão objetiva.

Visando tal meta apontada por Eidelsztein (2003), tanto o divã quanto outros

lugares e dispositivos poderiam ser tomados como facilitadores do discurso analítico

teorizado por Lacan. Resta-nos compreender, dado que a passagem ao divã não seria a

“entrada em analise” e esta podendo ocorrer muito tempo depois de iniciado o tratamento,

como este momento ocorre, e como se dá tal meta.

Eidelsztein (2003) nos adverte que muitas análises não funcionam devido a

maneira como são interpretadas as “demandas de analise” (por alguns psicanalistas dadas

como existentes ao serem procurados e chamados por esta alcunha) e por haver ainda uma

confusão deste conceito com “desejo de analise” (afirmando que esta última relação não

é permitida a partir da teoria lacaniana, podendo vir a existir, sim, a partir de um outro

ponto). Além disso, o autor nos aponta que a clínica psicanalítica, mais que uma clínica

da escuta é uma clínica da leitura, que “a posição do psicanalista não é escutar, mas ler

no que escuta” [tradução nossa] (p.2). Por meio desta leitura, o analista deve suceder um

corte que produza o lugar de onde advém o trabalho com o inconsciente, questionando o

paciente através dos significantes elaborados em cada sessão, que são compreendidos em

relação a outros e às demais sessões.

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Segundo Magno (2018), Lacan era ambíguo até para dar bom dia. Ao interpretar

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Para o argentino, “a demanda é o produto da aparição do sujeito, na medida em

que a pessoa que consulta se vincula com o que disse” [tradução nossa] (EIDELSZTEIN,

2003, p.8). Lembremos que o sujeito é um conceito, não o confundamos com o paciente

(a pessoa, o corpo físico), este “sujeito advém quando se produz a abertura entre o que se

disse e a posição que se assume a respeito do que se disse: o horizonte da articulação

significante e ali o sujeito (…) está confrontado com sua demanda” (p.8).

Desta maneira Eidelsztein conceitua a noção de “demanda de analise” como a

posição que assume uma pessoa a respeito de seus ditos. A entrada em análise ocorreria,

como um trabalho do psicanalista, quando se estabelece o que se demanda no que se pede,

quando se estabelece uma “demanda de analise” que parte de uma demanda comum,

imediata. “A análise começa quando se logra pôr em forma a demanda em jogo” [tradução

nossa] (EIDELSZTEIN, 2003, p.5).

Segundo o autor, a seguinte frase: “a demanda é uma cadeia significante do Outro

que se repete” nos serve para pensar a demanda. Analisemos este trecho a partir de

algumas pontuações de seu seminário. Por “cadeia” compreendemos a articulação entre

S1 e S2, a articulação entre os significantes. Por exemplo, na fala “o procuro porque me

separei”, temos o S1, e nos falta um S2 tal como “e por isso me sinto triste”, para termos

uma cadeia, que se forma com ao menos dois anéis. Um sozinho não tem o valor de

significante, é preciso saber o que ele “quer dizer”, pois sem uma relação a outro

significante aquele não pode dizer. Assim, o que o significante S1 quer dizer, só o faz

quando encontra S2, mas ainda o que dizem “nao pode ser algo que provenha da relação

de S1 com S2, pois como significantes não dizem nada”, mas “tem a ver com outra cena,

a outra cena onde ‘se separar’ se estabelece como algo triste” [tradução nossa]

(EIDELSZTEIN, 2003, p.14).

Sobre o genitivo “do Outro” (p.14), Eidelsztein nos propõe trabalhar em ambos

sentidos, como ditos pelo Outro e ditos sobre o Outro, que precisam apresentar uma

“estrutura de repeticao”. Em um trabalho além do “sessao por sessao”, o analista deve

buscar ler a relação dos significantes que formam uma cadeia “a”, também outra relação

que formaria uma cadeia “b”, para ler na repetição da cadeia “a-b” a demanda (o que pode

ocorrer em uma mesma sessão ou em relação às demais do tratamento) e questionar a

pessoa que consulta que posição assume a respeito. Esta seria grande parte do trabalho

analítico, pois é ao repetir-se que há um fechamento da cadeia que permite uma leitura e

um questionamento – as manobras que produzem um sujeito.

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Desta maneira percebemos que pôr uma demanda de tratamento em forma

analítica, ir além do confronto de corpos, dos ideais da imagem, e torná-la uma demanda

de análise, depende do psicanalista instaurar e manter um questionamento no qual alguém

pode se vincular e se posicionar sobre o que disse.

O primeiro trabalho do analista, de acordo Eidelsztein (2003), consiste em

estabelecer uma pergunta e elaborá-la, que partindo do motivo da vinda ao consultório

(ou da ligação) almeja como resposta um assunto que é o sujeito. Sujeito do insconsciente

seria, portanto, um trabalho de leitura sobre o que é dito. O autor afirma que nesta “forma

de conceber o sujeito como sujeito do inconsciente, como assunto, (…) há uma

implicação para a singularidade (…) o assunto é singular”, uma condição singular que ali

é dada forma, na qual propõe justamente o sintoma, o sinthome do início da análise.

No entanto, caso esta pergunta elaborada na leitura do psicanalista encontre um

paciente da qual nada quer saber (que não se questione “o que isso quer dizer?”), não há

possibilidade de análise, dado que sua demanda de cura (seja qual for) depende desse

querer saber para ser convertida em demanda de análise. Mesmo que seja uma pergunta

que inclua a busca da causa, atravessada pela condição particular e a história da pessoa,

caso esta disso nada queira saber, não há produção de um sujeito, uma relação entre S1 e

S2, pois não basta a pergunta para que exista a demanda analítica.

Percebemos assim, como Lacan sustenta uma outra operação em seus tratamentos,

teorizando um nível de confronto de corpos que o psicanalista busca encaminhar para

outro plano, onde as pessoas possam dar lugar ao sujeito do inconsciente em seu valor

singular, o sinthome. Este, conforme nos esclarece Montiel (2018) através de nós e tranças

que marcam o ensino de Lacan, é necessário para que o psicanalista realize sua tarefa,

dado que “no início da análise, todas as interpretações chegam ao sinthome” (p.93), “que

permite realizar o trabalho analítico e chegar à estrutura da linguagem” (p.63) que

“encarna um caso particular” [tradução nossa] (p.137) neste método terapêutico que

praticamos a partir da palavra.

4. Outro artifício

Ao buscar compreender a fala de um autor, como viemos tentando fazer, não

podemos esquecer que lidamos com teorizações que se incluem em uma dada época,

como uma tecnologia, uma prótese, e nem deixar de nos atentar a como pensamos o novo

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a partir do velho. Se em um dado momento precisamos de uma cartilha para construir um

argumento, não esqueçamos que às vezes a prótese não serve mais. É preciso que nos

sirvamos das consequências das teorizações que temos acesso e nos posicionemos.

Podemos definir, após buscarmos compreender as teorizações de alguns autores

sobre o divã e a entrada em análise, que o setting é sustentado pela lógica teórica que os

dá lugar. Consideramos que o divã como mobiliário não garante a existência de um setting

psicanalítico, mas pode como artifício permitir uma entrada em análise, sendo uma

ferramenta da qual paciente e psicanalista podem se servir, decidindo entre eles como

usá-la ou não. Serão outros os artifícios das análises não-presenciais (que não são a

mesma coisa que as presenciais, claro, pois há outra forma de confronto de corpos), assim

como nos tratamentos que ocorrem em hospitais e demais ambientes que hoje o

psicanalista se insere. Porém estes artifícios são empregados através de um recurso que

dá suporte ao manejo que deles faz o praticante: o discurso (a relação que há entre

significantes e sujeito).

Quando decidido a possibilidade de um encontro entre paciente e psicanalista, este

terá como meta o discurso analítico, que é posto em forma em uma demanda de análise.

Desta maneira, uma psicanálise pode ocorrer através de diversos artifícios que buscam

engendrar um lugar para o sujeito – este lugar portanto é o setting que nos interessa,

discursivo e não físico.

Verificamos que não abrimos mão de um tempo de ensaio, o tomamos como uma

primeira confrontação de corpos, que sabemos que não é totalmente superada, como se

houvesse a este respeito um sentido evolutivo do tratamento. A “entrada em analise”

conforme teorizada por Lacan, sem dispensar parte daquilo que iniciamos com Freud, não

é relativa à maneira freudiana de ensaio, sondagem, verificação e decisão. Eidelsztein

(2003) nos propõe pensarmos graficamente este momento, em Lacan, da seguinte maneira

através da figura 1:

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Notemos que o ponto marcado como “entrada em análise” (figura 1) está mais

próximo à última sessão que a primeira, porém trata-se aqui de uma escolha que é menos

determinada por uma cronologia do que por uma lógica. Poderíamos colocá-lo mais à

esquerda ou mais ao centro, e ainda perceberíamos que a lógica que satisfaz a explicação

deste gráfico talvez não pertença à geometria euclidiana na qual ele se insere.

Dado que Freud teoriza com outros recursos, não podemos então associar o fim

de seu “tratamento de ensaio” e passagem do paciente ao divã com a “entrada em analise”

conceituada por Lacan, que ocorre não apenas com a decisão por levar um tratamento

adiante, mas quando o caso (aquilo que se dá na relação paciente/psicanalista) toma a

forma de uma demanda de análise e então há entrada no discurso analítico. Sobre a

decisão que se verifica em Freud, por continuar ou encerrar o “tratamento de ensaio”,

como vimos com seus textos, podemos pensar graficamente as seguintes possibilidades:

Figura 2

Figura 3

Esta decisão que encontramos em Freud (figura 2 e 3), que não podemos dizer que

não exista no campo teorizado por Lacan (visto que este aponta como somos afetados em

uma análise), admitimos como essencial que dela o psicanalista se sirva, devendo saber

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o que a suporta, se um limite da prática psicanalítica, de seu campo teórico, decisão

pessoal ou outra questão. Como sabido, há sofrimentos e doenças que não se curam indo

a um psicanalista. Além disso não são todos os psicanalistas que se sentem capazes de

atender todos os casos que lhes chegam (geralmente a prática com crianças e com as

psicoses são tidas como difíceis, ou até com “pessoas com idade próxima dos cinquenta

anos”13), e não é preciso que todos o sejam, que se obriguem. O psicanalista não é um ser

raro, é uma função, que nem sempre suportamos ocupar, e podemos encaminhar um caso

a outro profissional.

Fink (2018) evidencia que as entrevistas “servem a um objetivo específico para o

analista, que deve situar o paciente com bastante rapidez, no que concerne aos critérios

de diagnosticos”, que “permita a continuação do tratamento” (p.22). Neste aspecto,

apontamos como esta postura não difere do que é proposto por Freud14 quanto ao começo

do tratamento, ademais não encontramos motivos para não mantermos uma forma de

sondagem e de decisão individual quando somos procurados.

O setting, porém, não deve ser imposto. Para isso, Calligaris (2008) nos chama a

atenção, enfatizando que “por mais que essas intolerâncias [ao divã] possam parecer

sintomáticas, forçar a barra não tem sentido” (p.111), pois o propósito do psicanalista é

permitir que o paciente se engaje na cura, e não colocar dificuldades na relação

terapêutica. Mas tais dificuldades podem também surgir de outras maneiras, pois há

situações em que a confrontação não permanece no discurso analítico outrora adentrado,

podendo o discurso do mestre inviabilizar o tratamento, com suas imagens e ideais

recaindo sobre o psicanalista ou o paciente em um plano tal que não seja possível mais

ser mantida uma relação entre aquelas pessoas, impedindo a retomada do discurso

analítico e o tratamento, uma razão para que o psicanalista esteja advertido que ali está

como função mas ainda como pessoa.

Isto posto, sustemos que não temos por que jogar o divã fora, e nem neurotizar se

não tivermos um. Também não precisamos ser todos adeptos aos atendimentos não

presenciais ou fora dos consultórios, mas saibamos o que ampara a direção dos

13 Freud declarava que “acentuadas deformações do caráter, traços de constituição realmente degenerada

se revelam, durante a terapia, fontes de resistências dificilmente superáveis. Nisso a constituição

verdadeiramente estabelece um limite para a possibilidade de cura mediante a psicoterapia. Também uma

idade próxima dos cinquenta anos cria condições desfavoráveis para a psicanálise. A massa de material

psíquico já não pode ser dominada, o tempo necessário para a recuperação se torna muito longo, e a

capacidade de desfazer os processos psíquicos começa a fraquejar” (FREUD, 1904/2016, p.329). 14 “O começo do tratamento com um período de prova de algumas semanas tem também uma motivação

relacionada ao diagnostico” (FREUD, 1913/2010, p.165).

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tratamentos que empenhamos, seja qual for o dispositivo. Temos nas recomendações

freudianas uma partida, na conceitualização lacaniana uma possibilidade de formalização,

e em tantos outros autores uma forma de nos relacionarmos e repensarmos nossas

condutas clínicas. Se justifica a nós chamar este escrito de “O setting discursivo” por

compreendermos que, por acréscimo e não evolução, há uma teoria aqui apresentada e

formalizada sobre o que sustenta nossos atendimentos hoje, como pensamos o setting a

partir das relações entre os significantes lidos em um discurso, que considera e parte da

individualidade dos corpos, independente do dispositivo em que duas pessoas se

encontrem para tratar de um caso, tomando o divã – o telefone ou um jogo – como uma

ferramenta, um artifício para viabilização do tratamento, e não uma convenção imóbil.

Percebemos, ao longo deste texto, como “o analista é menos livre em sua

estratégia do que em sua tática” (LACAN, 1958/1998, p.595), que sua individualidade

está inserida na relação com o paciente, no tratamento, no caso e no setting, que existe

suportado por uma teoria que lhe dá lugar, viabiliza o uso de seus artifícios e determina

as possibilidades de tratamento e cura.

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O dinheiro na clínica e na formação psicanalítica

Paulo Henrique de Oliveira Arruda

[email protected]

A psicanálise tem ocupado já há algum tempo certo papel de protagonismo nos

debates que são feitos acerca do capitalismo. Ela geralmente comparece como disciplina

interessante para pensar as relações e efeitos desse sistema na economia psíquica do

indivíduo. Žižek (2015) e Safatle (2008), por exemplo, possuem extensas reflexões sobre

essas questões. Além disso, não é incomum encontrar eventos sobre a temática. A política

e seus sistemas econômicos, portanto, não parecem ser temas estranhos à nossa

comunidade.

No entanto, quando se trata de capitalismo e psicanálise é muito mais comum

encontrar reflexões macro, ou seja, reflexões que tenham relação com um contexto maior

que, aparentemente, ultrapassaria o campo da nossa disciplina e do seu fazer clínico. O

que quer dizer que temos debates acalorados sobre o social, mas frequentemente

negligenciamos um ponto que me parece até bastante óbvio e que tem relação com essa

esfera micro, a saber, o dinheiro.

Pensemos: quantas vezes paramos para questionar o manejo e a função do dinheiro

dentro da clínica psicanalítica ou no interior de nossa formação? O presente artigo procura

fazer alguns apontamentos introdutórios sobre a temática do dinheiro na psicanálise.

Nesse sentido, é importante dizer que tentarei abordar o problema não só a partir de uma

perspectiva técnica, que diz respeito ao setting analítico, mas também a partir de uma

perspectiva que considere a nossa formação. Meu interesse nesse segundo âmbito diz

respeito aos movimentos da comunidade psicanalítica como um todo e à forma como ela

parece se posicionar diante de determinados fenômenos que a concernem. Minha hipótese

é que de alguma maneira essas duas dimensões se relacionam e se retroalimentam.

Iniciemos então nossas reflexões a partir de algumas considerações freudianas

sobre o dinheiro. O psicanalista vienense trata dessa temática em uma série de

oportunidades. De saída, é preciso dizer que para ele é necessário levar em conta os

aspectos sexuais envolvidos quando falamos do tema, daí a ideia de que o homem

civilizado trata o dinheiro de maneira semelhante ao sexo, ou seja, com falso pudor,

hipocrisia e duplicidade. Então, o psicanalista

(...) já está decidido a não fazer igual, a tratar de assuntos de dinheiro, diante

do paciente, com a mesma natural franqueza na qual pretende educá-lo em

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questões sexuais. Ele demonstra ter se desembaraçado ele mesmo da falsa

vergonha, ao comunicar espontaneamente em quanto estima seu tempo

(FREUD, 1913/2010, p.175-176).

Vamos deixar de lado a notação de que o papel do analista seria educar o

analisando no que tange aos aspectos relacionados ao campo da sexualidade e do dinheiro.

A fala é certamente problemática por indicar uma lógica de mestria, mas poderá quem

sabe ser abordada em outra oportunidade. Esse não é nosso foco. Avançaremos em nossas

indagações se, na verdade, notarmos a ideia de que o analista não deve tratar do dinheiro

com pudor. É seu dever se posicionar de forma clara e livre de rodeios na hora de lidar

com esse fator. Ele seria aquele que cobra sem tergiversar, o que naturalmente coloca o

analisando na posição daquele que paga.

O par composto pelo analista que cobra/analisando que paga parece ter virado uma

dupla onipresente do folclore psicanalítico. A partir de agora pretendo então trazer para

o artigo algumas falas muito comuns de nossa comunidade. O leitor reconhecerá uma

porção delas em livros e artigos, mas outras não, posto que circulam apenas de maneira

extraoficial dentro do nosso discurso. Nesse sentido, meu interesse primário será colocar

um pouco de luz naquilo que ganha corpo nos corredores e conversas informais,

trabalhando então ditos que, apesar de não serem plenamente visíveis, têm certo grau de

operatividade.

Provavelmente os leitores já se depararam com frases como: “o analisando deve

pagar pelo seu sintoma”, “o analisando paga pelo silêncio do analista” ou “o analisando

paga pelo seu gozo”. Além dessas também temos suas ramificações, que comportam

dizeres como: “é preciso bancar o desejo”, “a análise não é cara, caro é sofrer” e “o preço

da sessão é alto”.

Talvez a naturalidade com que entoamos tais bordões seja um empecilho para

pensarmos essas questões de forma mais aprofundada, mas em todos esses exemplos

vemos o quanto opera, no interior do nosso discurso, todo um léxico que aponta para um

curioso regime de associação com o capitalismo. Os analistas formalmente se levantam

contra o sistema vigente, é verdade, mas reproduzem em sua prática uma série de

significantes que denotam um estreito avizinhamento com aquilo que denunciam.

Nesse sentido, poderíamos argumentar que de fato Freud teve sucesso em

transmitir a ideia de que não devemos adotar uma posição pudica diante do dinheiro. No

entanto, nossa atual situação faz pensar se rejeitamos essa vergonha em nome de um jogo

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obsceno com tal elemento. Saímos de um extremo para o outro, o que quer dizer que

provavelmente não avançamos muito nessa questão.

Contra isso talvez fosse interessante relembrar algumas indicações de Lacan, que

diz muito claramente que o analista também tem que pagar:

- pagar com palavras, sem dúvida, se a transmutação que elas sofrem pela

operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação; - mas pagar também

com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como

suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência; - e

haveremos de esquecer que ele tem que pagar com o que há de essencial em

seu juízo mais íntimo, para intervir numa ação que vai ao cerne do ser

(LACAN, 1958/2010, p.593).

Ou seja, o analista seria aquele que paga, e o faz em três registros. Primeiro:

através do movimento de interpretação ao operar com palavras. Segundo: ele paga com

sua pessoa em termos propriamente imaginários, posto que na clínica ele não está lá com

tais atributos, mas comparece enquanto função. Terceiro: também paga com o seu ser, já

que a psicanálise lacaniana é radicalmente anti-ontológica, o que nos faz conjecturar que

com suas intervenções ele no final das contas transmite uma falta dentro da própria

estrutura, minando assim o famoso “eu sou” do analisando (LACAN, 1958/2010).

O que chama atenção aqui é que as colocações de Lacan parecem ir na contramão

dos comentários listados acima. Nesse sentido, ele interroga o par “analista

cobra/analisando paga” para colocar no lugar uma reflexão que esteja cônscia da

responsabilidade do analista e de seu lugar na direção do tratamento. É o que fica claro

quando pouco antes da referida citação ele diz que “é pelo lado do analista que

tencionamos introduzir nosso assunto” (p.593), o que quer dizer em última instância que

ele está interessado em “mostrar como a impotência em sustentar autenticamente uma

práxis reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder”

(p.592). Vale a pergunta: o quanto de poder está arraigado em nossa prática quando

insistimos constantemente na responsabilidade do analisando e o exortamos nessa espiral

credor/devedor? Em uma lógica desse tipo quanto custa um tratamento psicanalítico?

Para responder a presente pergunta poderíamos trazer Freud, que coloca que “o

valor de um tratamento não é aumentado aos olhos do paciente quando se cobra bem

pouco por ele” (FREUD, 1913/2010, p.176), ou seja, é preciso cobrar caro, afinal, um

preço mais baixo pelo tratamento fatalmente desemboca em um cenário onde o analisando

toma o processo analítico como algo desinteressante. Ora, se não há investimento alto,

quais seriam as razões para continuar? Freud também coloca que um dos argumentos

possíveis para sustentar a reivindicação desse alto preço é o fato de que, embora o analista

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trabalhe muito, naturalmente ele não conseguirá jamais ganhar tanto como outros

especialistas da medicina.

Vamos descartar de saída esse argumento que pretende estabelecer uma espécie

de comparação entre o montante de dinheiro que cada classe profissional pode

efetivamente apurar a partir de seu exercício. Que um cirurgião ou um dentista ganhe

supostamente mais que um psicanalista não deveria ser algo que preocupe, afinal, o que

tais considerações têm a ver com a clínica e o estabelecimento do preço das sessões?

Nada, a não ser que o psicanalista esteja preocupado com isso e se julgue merecedor de

ganhar o mesmo valor que esses profissionais. No entanto, entrar em uma lógica

imaginária de comparações e rivalidades não gera ganhos para a nossa prática.

Aliás, é curioso que Freud sustente essa posição em 1913, já que a própria

Roudinesco (2016) esclareceu que entre os anos de 1900 e 1914 ele havia conquistado

um status social equivalente ao de grandes professores de medicina, que inclusive não

apenas lecionavam, mas também atendiam pacientes de forma particular. Ela também

assevera que nessa época ele “era tão rico quanto os clínicos mais reputados de sua

geração e seu padrão de vida, similar” (p.300).

Contudo, a constatação freudiana de que é preciso cobrar caro pelo tratamento que

ofertamos deveria inspirar algumas interrogações de ordem prática. Em um cenário desse

tipo quem frequenta os nossos consultórios? Ora, os ricos, pois os pobres não entram na

conta. Sobre isso Freud chega a dizer que devemos recusar empreender qualquer tipo de

tratamento sem receber nossos devidos honorários. Para sustentar o ponto o vienense faz

um pequeno cálculo:

tenha-se em vista que um tratamento gratuito significa bem mais para um

psicanalista que para qualquer outro, ou seja, a subtração de parte considerável

do tempo de que dispõe para ganhar a vida (uma oitava, uma sétima parte,

talvez), durante muitos meses. Um tratamento gratuito simultâneo lhe roubaria

já um quarto ou um terço de sua capacidade de ganho, o que seria equivalente

ao efeito de um grave acidente traumático (FREUD, 1913/2010, p.176-177).

Para validar o argumento ele ainda assevera que passou cerca de dez anos

dispondo de uma hora ou duas de seu dia para tratamentos gratuitos. Fez isso “porque

queria trabalhar com a menor resistência possível, a fim de me orientar no estudo da

neurose” (p.177), mas não encontrou nenhum tipo de sucesso. O que chama atenção aqui

não é exatamente o fato de Freud ter empreendido tais procedimentos durante 10 anos,

mas as razões para tanto. Sobre isso poderíamos talvez perguntar se os tratamentos

falharam não por serem gratuitos, mas pelo fato de Freud iniciá-los com o interesse de

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estudar, não exatamente tratar. Tal diferença é crucial para o posicionamento do analista

diante do caso.

Diante disso caberia mais uma vez a pergunta: quais as possibilidades de alguém

pobre efetivamente fazer um tratamento psicanalítico? Freud (1913/2010) responde à

questão:

Podemos nos situar bem longe da condenação ascética do dinheiro, e no

entanto lamentar que a terapia analítica, por razões externas e internas, seja

quase inacessível para os pobres. Quanto a isso não há muito o que fazer.

Talvez haja verdade na afirmação frequente de que sucumbe com menor

facilidade à neurose aquele a quem as necessidades da vida fazem trabalhar

duramente. Indiscutível é sem dúvida uma outra experiência, a de que um

homem pobre que produziu uma neurose dificilmente se livra dela. São muito

bons os serviços que ela lhe presta na luta pela autoafirmação; o ganho

secundário trazido pela doença é muito importante para ele (p.177-178).

Ou seja, para Freud não há muito o que fazer sobre o tratamento com os pobres.

Simples assim. Além disso, nas linhas acima ele também sustenta algumas teses

problemáticas, como a ideia de que pessoas pobres que trabalham duramente dificilmente

incorrem em neurose. Algo que pode ser lido como a fala muito frequente de que a

“terapia do pobre é a lavagem de roupa”, como se o espaço clínico fosse de início vetado

a essas pessoas. É sabido inclusive o quanto o cuidado com a saúde mental é

historicamente elitista, no sentido de ser naturalizado apenas para as camadas mais altas

da sociedade. Aos ricos o divã, aos pobres o tanque. Também encontramos na citação a

ideia de que um pobre, quando de fato produz uma neurose, dificilmente consegue se

curar dela. Isso porque haveria em sua doença um ganho secundário muito maior. Ele

encontra nela certo senso de identidade que antes não tinha, o que faz com que ele resista

para manter a sua condição.

Diante de tais colocações, muitos leitores se apressam em recuperar textos de

Freud em que ele faz pontuações que destoam um pouco da ideia de impossibilidade de

tratamentos psicanalíticos para pessoas pobres. Um frequentemente citado se chama

“Caminhos da terapia psicanalítica”, de 1919. Nele, podemos encontrar de fato um Freud

bem mais aberto:

Agora suponhamos que alguma organização nos permitisse aumentar nosso

número de forma tal que bastássemos para o tratamento grandes quantidades

de pessoas. Pode-se prever que em algum momento a consciência da sociedade

despertará, advertindo-a de que o pobre tem tanto direito a auxílio psíquico

quanto hoje em dia já tem a cirurgias vitais. E que as neuroses não afetam

menos a saúde do povo do que a tuberculose, e assim como esta não podem ser

deixadas ao impotente cuidado do indivíduo. Então serão construídos

sanatórios ou consultórios que empregarão médicos de formação psicanalítica,

para que, mediante a análise, sejam mantidos capazes de resistência e de

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realização homens que de outro modo se entregariam à bebida, mulheres que

ameaçam sucumbir sob a carga de privações, crianças que só têm diante de si

a escolha entre a neurose e o embrutecimento. Esses tratamentos serão

gratuitos. Talvez demore muito até que o Estado sinta como urgentes esses

deveres. As circunstâncias presentes podem adiar mais ainda esse momento.

Talvez a beneficência privada venha a criar institutos assim; mas um dia isso

terá de ocorrer (FREUD, 1919/2010, p.291-292).

Como veem, aqui temos um Freud conjecturando de forma afirmativa sobre a

possibilidade dos tratamentos gratuitos e o papel do Estado na implantação de tais

medidas, mas que tal avançarmos para o parágrafo seguinte, que inclusive é o último do

texto?

Veremos, provavelmente, que os pobres se acham ainda menos dispostos a

renunciar a suas neuroses do que os ricos, porque a difícil vida que os espera

não os atrai, e a doença significa, para eles, mais um título à assistência social.

(...) É também muito provável que na aplicação em massa de nossa terapia

sejamos obrigados a fundir o puro ouro da análise com o cobre da sugestão

direta, e mesmo a influência hipnótica poderia ter aí seu lugar, como teve no

tratamento dos neuróticos de guerra (p. 292).

Ou seja, na verdade o que temos é uma reedição dos comentários de 1913, onde

novamente encontramos a ideia de que pobres dificilmente renunciam a suas neuroses,

bem como encontramos a indicação de que o tratamento ofertado para essas pessoas

provavelmente teria que ser uma espécie de híbrido entre elementos nobres da análise

(ouro) e elementos rasteiros da sugestão direta (cobre). Portanto, é importante dizer que

mesmo aqui o que Freud oferece aos pobres não é exatamente psicanálise, mas uma

deformação da mesma. Trata-se de um método que precisa se servir da sugestão direta ou

da hipnose (que inclusive já havia sido abandonada pela psicanálise) justamente porque

os pobres não iriam facilmente renunciar ao seu estado. Ora, mas não foi o próprio

vienense que havia descoberto que essa posição de mestria não tinha nenhum efeito

duradouro nos tratamentos, posto que os sintomas das histéricas retornavam depois que a

influência do médico se dissipava? O que temos aqui, ao que parece, é a suposição da

existência de uma espécie de funcionamento psíquico diferente entre pobres e ricos.

Aliás, esse argumento da diferença entre pobres e ricos na clínica não é tão

incomum assim. Colegas sustentam, por exemplo, a ideia de que “pessoas mais pobres

têm pouco vocabulário para fazer análise”. Lacanianamente dizem que “há uma pobreza

simbólica em tais analisandos”, o que supostamente dificultaria a prática clínica e o seu

desenvolvimento. Sendo assim, estamos diante de uma espécie de ideal de como as

pessoas efetivamente deveriam falar sobre as suas angústias, como se houvesse um

código de comunicação pré-determinado que deveria ser seguido dentro dos consultórios.

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“Para que eu consiga te atender você precisa expressar seu sofrimento de forma x”.

Naturalmente, esse tipo de conduta reforça o elitismo de nossa prática ao eleger um

modelo de discurso que iremos tratar, o que denuncia a nossa incapacidade de operar com

o sofrimento para além de uma determinada bolha de classes.

Algumas medidas já são tomadas com o intuito de minorar esse tipo de questão.

Acerca de tal problemática poderíamos tecer algumas considerações sobre o famoso

“valor social”, medida cada vez mais comum dentro das práticas psis e que também pode

ser encontrada em algum nível dentro da psicanálise. Não é incomum ver psicanalistas

ofertando atendimentos no instagram, facebook e outras redes sociais sob a rubrica dos

“valores sociais”, o que quer dizer que tais profissionais prestam serviço com valores

“mais baixos” para contemplar determinadas camadas da população, como pessoas

pobres ou mesmo universitários1.

A primeira pergunta diante disso é a seguinte: que valor não passa pelo social? Ou

seja, até que ponto a prática de atendimentos com “valor social” acaba de alguma maneira

reforçando o abismo entre as classes no interior do nosso discurso? Nesse sentido, é como

se o “valor social” desconsiderasse que todo valor circula pela sociedade e mantém com

esta uma estreita relação. Ora, o valor de uma sessão com alguém rico também é social.

Para além dessas considerações é curioso como essa estratégia é utilizada dentro

do nosso campo. Vejamos o recorte de uma entrevista feita por Antonio (2015) com um

psicanalista em sua tese sobre o funcionamento das escolas e a formação do psicanalista

lacaniano:

O que eu quero te falar é o seguinte: há muitas pessoas que abriram seus

consultórios, estão em análise ainda, tem três pacientes, cobra quinze paus,

cinquenta, são iniciantes, então, tem um chão imenso até o cara se transformar

num analista mesmo. Ó [estala os dedos], demora [...] tem membros jovens,

com 30 anos, 35; são mais jovens, mas é um processo longo, é uma profissão

de velhos: você tá com 50 anos e é aí que você virou um psicanalista, demora

muito mesmo. Mas é aí que você pode receber os pacientes jovens e tem uma

certa condição pra isso (p.175).

O interessante dessa citação é sua lógica interna. O entrevistado diz que quem abre

o consultório há pouco tempo cobra R$15,00, R$50,00 por sessão. Nesse sentido, esse

valor aparentemente baixo é um dos demarcadores que denunciam a falta de tempo em

1 Além do “valor social” também temos as famosas clínicas abertas, que procuram fazer intervenções em

espaços públicos através da psicanálise. É possível sustentar uma análise fora dos moldes clássicos

preconizados por Freud? Deixaremos a análise detida dessa problemática para outra oportunidade, mas

Costa (2020) já começa a pensar algumas dessas questões em seu artigo da presente edição da Revista

Borda.

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um percurso. Naturalmente, o que fica implícito na passagem é a ideia de que um analista

de verdade, que só pode ser uma pessoa velha de 50 anos, irá cobrar mais por seus

serviços. Além disso, o final também suscita o debate que estamos pontuando, posto que

sustenta que é justamente quando você é um jovem analista que você pode efetivamente

receber pessoas igualmente jovens no seu consultório, ou mesmo de camadas sociais mais

baixas.

Aqui tudo funciona como uma espécie de escada onde nos inserimos em um

campo, mas o objetivo é ir subindo cada vez mais alto até chegar no topo. Nesse meio

tempo é possível atender pessoas que não têm condições financeiras tão elevadas, mas

esses atendimentos serão mantidos apenas como suporte para que mais na frente exista a

oportunidade de prescindir deles. É por isso que a partir dessa lógica um jovem

psicanalista pode fazer atendimentos com “valor social”, mas um velho psicanalista não.

Então retornamos: se a “análise é cara”, isso diz muito não só de quem frequenta

os nossos consultórios, mas também de quem efetivamente se forma psicanalista, afinal,

não custa lembrar que a formação do analista de fato parece bastante custosa. Análise

pessoal, livros, eventos, escola, análise pessoal, supervisão e mais análise pessoal. Tudo

isso de forma perpétua, no sentido de não ter fim.

O curioso é que a formação do psicanalista se apresenta em tese como algo

acessível, horizontal, afinal, para formar-se analista o indivíduo não precisa cursar uma

faculdade, ter uma formação prévia ou qualquer coisa do tipo. A ele bastaria o tripé (o

que não é pouco). No entanto, o paradoxo da questão apareceria justamente se

perguntássemos que tipo de pessoa consegue sustentar o tal tripé dentro de um ponto de

vista financeiro, pois lembrem-se, tudo é caro. Em nosso meio inclusive não é incomum

escutar que “análise não é para qualquer um”, como se só algumas pessoas conseguissem

passar pela via crucis da análise e de todas as suas provações. Se no argumento dos

colegas a análise não é para qualquer um, tornar-se psicanalista também não, mas isso,

obviamente, é de responsabilidade inteira do analisando.

Ou seja, não estamos interessados em questionar o formato verticalizado de nossa

formação e de como concebemos a nossa prática. Não consegue pagar uma escola que

cobra R$200,00 mensais?2 É uma questão que tem a ver com o seu desejo (ou falta dele);

mora em uma cidade isolada nos confins do Brasil? Você não pode estudar sozinho ou

por meios virtuais. É preciso entender que uma hora ou outra você precisa largar tudo e

2 E há inúmeras escolas de psicanálise que sustentam que só é possível formar-se psicanalista dentro de

uma.

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ir para um grande centro; não consegue mais pagar sua análise que custa R$150,00 por

sessão e por isso vai desistir? A resistência é sua, pois provavelmente o seu analista estava

se aproximando de um complexo patogênico.

É possível que o fato da nossa formação ser atravessada pela palavra “caro” de

alguma forma nos deixe muito confortáveis para, quando de fato nos autorizamos

analistas, cobrarmos igualmente caro dos nossos analisandos. Nesse sentido, até que

ponto tal palavra assume uma dimensão de significante no interior da nossa formação e o

quanto há um jogo de forças que se retroalimenta dentro dessa dinâmica?

Há analistas que trabalham, por exemplo, com a ideia de que o preço de sua sessão

custa a partir do valor “x”. Ora, se algo desse tipo é sustentado, o que temos é um valor

cristalizado, algo da ordem do significado. Trabalhar com significantes é entender que o

preço da sessão pode assumir o valor que for, o que não necessariamente quer dizer que

alguém rico tenha que pagar muito ou que alguém pobre tenha que pagar pouco.

Um analisando muito rico pode chegar em sua primeira sessão se queixando que

todos a sua volta só estabelecem contato por conta de seu dinheiro, ao que o analista no

final do encontro diz tranquilamente que a sessão custa R$10,00. Aqui vemos o preço da

sessão assumindo de fato uma dimensão de significante que se encontra dialetizado com

outros e não está submetido a um cálculo pré-estabelecido e estanque. Proceder dessa

forma é tentar restituir a potência do ato analítico dentro do tratamento. É propiciar, a

partir da intervenção, o advento do novo.

Sobre isso talvez poderíamos questionar se valeria a pena trabalhar e sustentar de

forma radical a ideia de um preço lógico, e isso não só para o tratamento como um todo,

mas para cada sessão. No entanto, essa questão fica como uma provocação para outra

oportunidade.

Acerca desse debate um outro ponto de extrema atualidade também poderia ser

destacado. Com o advento e avanço do COVID-19 no ano de 2020 vários analisandos

sofreram perdas consideráveis dentro de um ponto de vista salarial. Reduções de

rendimentos e cortes orçamentários acabaram pegando as pessoas desprevenidas, o que

muitas vezes acaba engendrando pedidos para que os analistas revisem o valor da sessão.

A questão é que diante disso não é incomum ver analistas se recusando formalmente ao

pedido. Os bordões e palavras de ordem listados no começo do artigo aparecem aí como

justificativas para não ceder.

Debates são então sustentados com o intuito de discutir quais seriam os malefícios

de uma mudança desse tipo para o caso. “Que quota de gozo o analisando estaria aí

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querendo recuperar a partir desse pedido? Quais as implicações clínicas para o caso se eu

de fato reduzir o preço da sessão?”. Dúvidas que denotariam a seriedade com que tais

analistas parecem levar o seu ofício. Contudo, sobre isso poderíamos perguntar por quais

razões os mesmos tipos de questões não parecem ser feitas quando o analisando é

promovido no emprego e o analista decide aumentar o valor da sessão. Ora, para diminuir

há sempre uma série de considerações, mas para aumentar o nosso espírito preocupado e

investigativo simplesmente parece não comparecer.

A advertência dessas dinâmicas pode funcionar como um primeiro voo que

propicie uma reflexão menos engessada sobre o dinheiro dentro da clínica. Se o dinheiro

em nosso contexto atua apenas como mais um significante, então talvez seja o caso de

pensar as possibilidades de haver um pagamento em análise, mas que não passe pelo

registro do dinheiro. Essa é uma tese que precisa ser considerada. Por exemplo, em um

cenário onde um analisando perde boa parte de seus recursos financeiros, um analista

pode sugerir que o pagamento seja feito com alguma coisa que não tenha necessariamente

a ver com o papel moeda. Se o analisando faz tortas, então o pagamento será com uma

torta. As possibilidades são infinitas e devem ser verificadas no interior da lógica daquele

caso. No entanto, se diante de uma situação desse tipo caminhamos na direção contrária

e sustentamos a ideia de que sem dinheiro não há psicanálise, só conseguimos repetir o

mesmo cenário de imobilismo que tem marcado a nossa prática. É o desejo do analista

que deve atuar como mola da transferência, e não a quantificação de cifras.

Contudo, é importante dizer que com isso não estamos aqui defendendo uma

espécie de compreensão franciscana do nosso ofício, como se o analista devesse operar a

partir de uma lógica de caridade. Advogar por tal empreitada seria desconsiderar questões

concretas que no final das contas todos nós enfrentamos ao longo do nosso percurso,

principalmente se optamos por trabalhar na clínica particular. Falo aqui, por exemplo, do

aluguel de nossa sala ou mesmo das nossas contas mais básicas.

É verdade que objetivamente não podemos negligenciar essas questões, mas isso

não quer dizer que devamos deixar de lado o fato de que a nossa comunidade parece fazer

uma associação teórica rasteira entre o caro e o dinheiro, o que configura a adoção e

promoção de certo imperativo no interior de nossa prática e formação. É isso que está em

jogo na nossa argumentação.

Por fim, é preciso ressaltar que discutir o dinheiro na psicanálise a partir de um

contexto clínico é no final das contas abordar apenas um lado do problema. Para de fato

atingir um nível amplo de complexidade que tenha a chance de promover reais mudanças

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estruturais em nosso fazer também é necessário considerar o outro verso da questão, ou

seja, abordar de forma frontal a discussão sobre o dinheiro no interior de nossa formação.

Uma psicanálise que esteja interessada nesse debate terá mais chances de promover e

sustentar um ambiente plural e horizontalizado não só para os analisandos, mas também

para aqueles que de alguma maneira aspiram ocupar a função de analista.

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