A arquitetura e o inconsciente

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    1/26

    21

    ARTIGOS

    Christopher Bollas

    A arquitetura e o inconsciente*

    * Traduo de Carmem Cerqueira Cesar.

    De interessantes maneiras, o mundo da arquitetura

    de modo geral aqui definido como a preocupao deliberada

    com o ambiente humano construdo e o mundo dapsicanlise de modo geral declarado como o lugar para o

    estudo da vida mental inconsciente se entrecruzam. Uma

    construo deriva da imaginao humana, numa dialtica

    que amplamente influenciada por muitos fatores

    contribuintes sua funo declarada, sua relao com o

    entorno, suas possibilidades funcionais, seu aspecto artstico

    ou seu design, os desejos de seu cliente, a resposta antecipadado pblico e muitos outros fatores que constituem sua

    estrutura psquica. Mesmo que a obra seja proveniente do

    idioma conhecido de seu arquiteto e isto fica claro num Le

    Corbusier ou num Mies Van der Roe ela passa tambm

    atravs de muitas imagens mentais, derivadas de vriosfatores, que sero parte da direo inconsciente do projeto

    do arquiteto.

    Palavras-chave: Arquitetura, inconsciente, psicanlise, formas

    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., III, 1, 21-46

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    2/26

    22

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    Sabemos que h uma vida inconsciente para cada self. Haveriaento um inconsciente arquitetnico, ou seja, um tipo depensamento que direcionaria a projeo de uma obra, influenciadapor vrias demandas, ainda que encontre sua prpria viso em seuselementos constituintes?

    interessante notar que Freud usou a imagem de uma cidadecomo a metfora do inconsciente. Em O mal-estar na civilizao,sustentou que na vida mental nada que tenha uma vez sido criadopode perecer. Se desejssemos imaginar o inconscientepoderamos faz-lo visualizando Roma, de tal forma que se pudesseimaginar todos os seus perodos ao mesmo tempo a RomaQuadranta, a Septimontium, o perodo do muro Srvio, e as muitasoutras Romas dos imperadores que se seguiram. Onde agora ficao Coliseu escreve Freud, poderamos simultaneamente admirara desaparecida Casa Dourada de Nero.

    Freud acaba abandonando esta metfora porque, como aolongo do tempo construes podem ser demolidas e outras erigidas

    em seu lugar, uma cidade no seria um exemplo adequado parafalar daquilo que fica preservado atemporalmente no inconsciente.

    Caso Freud tivesse sustentado esta metfora um pouco mais,talvez sua dialtica teria funcionado. O esquecimento , de fato,parte da vida inconsciente do homem. Tanto que, dependendo decomo se deseje olhar Roma, podemos ver tanto o que foipreservado como o que foi destrudo.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    3/26

    23

    ARTIGOS

    Certamente para os arquitetos, assim como para as cidades ou os clientes queos empregam, destruio e criao esto intimamente ligadas. Na cidade, a maiorparte das novas obras so desenvolvidas aps a demolio da estrutura anterior; umcorpo fica onde anteriormente um outro esteve. Para aqueles que vivem buscandoesses momentos, sempre existiro duas construes: a demolida e a atual.

    Cresci na pequena cidade costeira de Laguna Beach, cerca de quarenta e cincomilhas ao sul de Los Angeles. Embora esta cidade tivesse, surpreendentemente, umcdigo de construo coerente e vigilante o que dificultava a construo de novasobras ao longo do tempo novas construes foram feitas, enquanto outras se foram.No final dos anos cinqenta, toda uma fileira de construes com estrutura demadeira, que davam para a praia principal, no centro da cidade, foi demolida. Assim,os motoristas que passavam pela Highway 101, podiam ver a areia e o mar. Todavez que penso nisto, lembro-me das singulares barracas beira-mar que abrigaramtantos ocupantes importantes, como um estdio de fotgrafos, um caf, umafarmcia, uma tpica loja de roupa de praia, um estande de suco de laranja e coisasdo gnero. Visito a cidade vrias vezes ao ano, e quando encontro os meus amigose vamos dar indicaes de locais, freqentemente nos referimos a lugares que jno existem mais.

    Cada cidade tem suas cidades fantasmas

    Os fantasmas so os habitantes dos quais nos lembramos lembro-me do nossoprimeiro e muito culto distribuidor de livros, Jim Dilley e sua esplndida livraria. Htanto tempo se foi! Mas a presena dos fantasmas claramente uma questo denossa prpria vida inconsciente. Conheo estes lugares porque estive l. Adoravaos hambrgueres do Dennys, lembro-me dos bancos altos em frente ao balco ondenos sentvamos, e o belo equipamento ao longo da parede, como a mquina de fazermalte. A energia do fantasma nossa mesmo, o fantasma o ocupante que sofreuum trauma, e que ainda no est preparado para deixar este mundo. Ele, claro, cada um de ns. Fui eu que fiquei traumatizado ao perder este lugar privilegiado, e,para sempre ele estar em algum lugar na minha mente.

    Em maior ou menor extenso, isto uma verdade para todos ns,principalmente quando voltamos para casa. Deixar o lar, mesmo quando levamosos contedos conosco, significa perder nossos cantinhos internos, ninhos para anossa imaginao. Nossa crena em fantasmas sempre ser pelo menosinconscientemente autorizada, pois sempre estaremos circulando por nossas antigascasas. Devemos tambm assumir, por outro lado, que quando mudamos para umanova casa seus antigos moradores tambm estaro vagando por l.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    4/26

    24

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    Os arquitetos remexem nessa realidade psquica. Geralmente a crueldade dademolio permite sua nobreza curiosamente desoladora. Uma escavadeira (ou seuequivalente) chega, assistimos a estrutura ir ao cho rapidamente e a terra, por ummomento, recebe a luz do sol. Algumas vezes os arquitetos honraro o que foidemolido, como Evans e Shalev fizeram na nova Tate Gallery em St. Ives, Cornwall.A galeria foi construda num local ocupado anteriormente por uma torre de gasolina,que, embora ficasse encoberta durante o dia, no deixava de ser a antiga ocupante.Agora relembrada nas formas arredondadas do museu que a espelha.

    Quem dirige as mquinas demolidoras?

    Como as horrveis visitas do sinistro ceifeiro na imaginao literria, essasmquinas se parecem com a morte s nossas portas. Suas aes so irreversveis.Uma vez que tenham tirado uma construo, ela se foi para sempre. Ento, quandouma comunidade fica sabendo que um setor ser destrudo, e algo novo serconstrudo, mesmo que o projeto seja promissor h sempre um certo terror emtestemunhar a demolio. claro, isto no deixa de ser tambm excitante. Comoassistir a um incndio ou a uma enchente arrasadores, a viso da demolio traz tona algo de nossa infncia a criana que construa castelos de areia e sentia prazerem destru-los. Deste lado da equao psquica significa liberao de amarras. Assimcomo a criana sente prazer em destruir suas prprias criaes pois nesse momento

    tambm est havendo um crescente prazer em abandonar a segura arquitetura domundo criado por mame e papai, para criar e seguir a sua prpria h a demoliodo poder do olhar do adulto sobre ela.

    Demolio sacrificial. Logo seremos erradicados desta nossa terra, removidosgraciosamente de nossos espaos, nosso lugar ser tomado pelo outro. Mas at l,as mudanas parecero oferendas sacrificiais: pelo menos eu no vou com oesquecido. Bem, no completamente. Uma parte de mim vai, uma parte que eu possoaparentemente viver sem. A destruio de uma construo que eu goste emocionalmente dolorosa, mas levo comigo algumas memrias da estrutura.

    O trabalho do arquiteto, ento, envolve importantes questes simblicas sobrea vida e a morte. Demolir a estrutura existente para abrir caminho para uma nova,joga com nosso prprio senso de limite da existncia e prediz nosso fim. Dada esta

    questo psquica, as construes parecem optar por uma dentre duas opespossveis. Podem se misturar no ambiente em torno, como para negar que uma novaconstruo seja alguma coisa nova de fato. Se elas diferem das outras estruturaspodem ainda aparentar que so a extenso lgica de uma progresso sem costurasno tempo arquitetnico. Ou podem optar por uma ruptura radical com o passado eo presente, para se declararem no futuro humano. Sendo a segunda soluo podemos pensar no Beaubourg de Roger e Piano, no Sydney Opera House, e, mais

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    5/26

    25

    ARTIGOS

    recentemente, o Bilbao de Frank Gehry elas parecem mais do que simplesconstrues, mas testemunhos materiais da nossa viso do futuro. Desta forma,podemos nos identificar com elas. Sobrevivendo a ns, iro nos representar no futuro,dando-nos um lugar no tempo histrico e na realidade existencial das futuras geraesque, ao contemplar estes objetos, podero compreender melhor o nosso tempo, ofinal do sculo vinte.

    A identificao a uma obra um testemunho de nossa inteligncia lanada nofuturo. Vai alm da nossa viso imediata, mas no to longe que aliene o idiomaimaginativo de nossa gerao. Se uma construo se projeta muito longe no futuro

    como foi o caso da Torre Eiffel na poca de sua construo as pessoas sentemcomo se o futuro tivesse invadido o presente e desdenhado sua sensibilidade.

    Construir uma forma de orao. Rezamos por meio de nossas construes.Se nossas mentes e coraes foram bem direcionados, o tempo ir provar que nossasconstrues so verdadeiras. A prpria massa de uma obra, se pensarmos nosZiggurats dos Sumrios, nas Pirmides do Egito ou nos templos da Grcia, incorporaa tenso entre a vida e a morte. To nobres estruturas so, de uma forma ou deoutra, feitas com a inteno de honrar os deuses que vivem na eternidade. So tambmoferendas de nosso prprio e limitado ser, para o ilimitado. Mas as construes estosempre beirando o profano. Como ousamos construir seja l o que for para osdeuses?

    A estrutura monumental a montanha construda pelo homem um dos

    grandes paradoxos da realizao arquitetnica. O monumento feito para sobrevivera geraes. Nessas construes muitas vidas so perdidas. Alguns, como Gaudi,que dedicaram toda a sua vida ao monumento, muitas vezes nunca iro v-lo pronto.Todos os monumentos, tendo ou no inicialmente esta inteno, acabam sendotumbas. Lanam sombras sobre as mortes dos trabalhadores, sobrevivem a seuscriadores. Em sua massa, parecem formas da morte entre os vivos.

    Estaria a arquitetura investida, ento, da sria tarefa de trazer a morte para avida? Seriam esses monumentos moradas da morte? Seria a imensa implacabilidadeda massa a expresso da destruio do orgnico pelo inorgnico?

    Se assim for, estruturas monumentais so, ento, objetos altamente ambguos.Dos materiais da terra criamos um smbolo da nossa prpria morte, seja como umatumba como as pirmides ou, mais freqentemente, como um objeto funcional

    construdo para os vivos, tais como um grande templo, uma catedral ou um prdiode escritrios. Se intencionalmente construdo para os vivos, ento o monumentoseria um tipo de espao de representao no interior de uma zona de morte, umavez que os vivos do vida ao frio mrmore ou massa de cimento, todos os diasde suas vidas, at morrerem, quando ento novas geraes caminharo sobre omesmo espao. Os monumentos nos permitem movimentos para dentro e fora dazona de morte, o ser humano viajando no mundo da grande massa de pedra.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    6/26

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    7/26

    27

    ARTIGOS

    como muitos objetos humanos e ambientais diferentes tm seu lugar nas construesgregas por meio de sua incluso pelo nome. Lynch argumenta que paisagens vvidasso o esqueleto sobre o qual muitas raas primitivas erigiram seus mitos socialmenteimportantes, incorporando os objetos relevantes do meio ambiente em suas visesculturais. Bachelard reflete que, pela reverberao sentimos um poder potico selevantando ingenuamente dentro de ns. Depois da reverberao original, estamosaptos a experimentar ressonncias, repercusses sentimentais, lembranas de nossopassado.

    Grandes montanhas, grandes rios, o mar, a pradaria, a selva e as notveis

    estruturas construdas esto gravados em nossa mente como estruturas psquicas;cada um parece possuir seu prprio pequeno universo de emoo e significado. Emcada escola veneziana, as crianas aprendem a desenhar um mapa de casa at aescola, pois essa uma cidade onde podemos nos perder com facilidade; esses mapasdemonstram como as importantes construes representam marcos notveis paranosso sentido de orientao. St Marks Square, para alguns, seria um smbolo eternoda funo de orientao do mundo do objeto que essencial para a sobrevivnciahumana, no muito diferente da viso do farol no mar, em meio neblina, ou apermanente presena do parlamento nacional durante tempos de guerra, e se poderiair adiante.

    Em seu notvel trabalho The Poetics of Space, Gaston Bachelard defende umatopoanlise, que seria o estudo psicolgico sistemtico dos lugares relacionados

    a nossas vidas ntimas. H, por exemplo, uma transubjetividade da imagem, ouseja, aqueles dentre ns situados prximos a lugares importantes, separamos aimagem do lugar, mesmo que, claro, cada um de ns o interprete de formadiferente. Lynch fez uma anlise comparativa de Boston, Jersey City e Los Angelese chegou concluso de como importante para os cidados terem objetos legveiscom alta imaginabilidade. As pessoas em Boston, por exemplo, compararamconstrues baseadas em sua diferena de idade; j os moradores de Los Angelesrevelaram ter a impresso de que a fluidez do ambiente e a ausncia de elementosfsicos que ancorem o passado so excitantes e perturbadores. Os habitantes deJersey City, uma cidade industrial meio sem graa, perto de Nova York, demonstraramsofrer de uma evidente baixa imaginabilidade do ambiente tiveram dificuldadeem descrever as diferentes partes da cidade, revelando que se sentiam insatisfeitos

    em morar l; alm do mais, eles tm um pobre sentido de orientao. Portanto, morarnuma cidade significa ter uma mentalidade. Estar em Los Angeles bem diferentede estar em Boston.

    Como uma topoanlise analisaria a mentalidade de uma cidade? Seria difcil dizerque uma cidade reflete uma viso singular e unificada. Sabemos que existem muitosinteresses conflitantes e diversas perspectivas que geram diferentes estruturas. Oqu ento guiaria tal mentalidade? O qu a sustentaria?

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    8/26

    28

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    O psicanalista ingls D.W. Winnicott argumentou que cada me supre seu filhocom um determinado ambiente. No comeo um ambiente acolhedor, uma vezque se literalmente contido e toda a circulao feita via o selfda me e seusobjetos substitutos (um andador, um carrinho de brinquedo, um bero etc). Estessustentam nossas primitivas necessidades de continncia, pois passamos nossosprimeiros nove meses no tero materno. Em seu ensaio Berlin Walls, Winnicottdiscute amplamente o conceito de proviso ambiental e seu efeito sobre odesenvolvimento das pessoas. Os processos maturacionais herdados no indivduoso potenciais, e necessitam, para a sua realizao, de um ambiente facilitador de

    um certo tipo e grau. Boston, Los Angeles e Jersey City so ambientes facilitadores,pois direcionam seus habitantes por caminhos diferentes. Uma das tarefas maternas,argumentou Winnicott, seria apresentar objetos para seu filho. Isto seria algo comouma arte. Se a me impe um novo objeto sobre a criana, esta inevitavelmente seafasta. No entanto, se ela tolera que a criana passe por um perodo de hesitao,durante o qual se afasta presumivelmente desinteressada, a criana logo retorna cominteresse e desejo maiores em direo ao novo objeto. Da mesma forma, as cidadesesto continuamente presenteando seus habitantes com novos objetos e novo espaode planificao. As propostas circulam na imprensa, constituindo, desta forma, umimportante elemento psquico na relao da populao com o novo. Vrios projetospara a celebrao do Milnio na Gr-Bretanha, por exemplo, circularam alguns anosatrs, evocando quase que uma oposio universal. Em parte porque qualquer suposto

    gasto pblico, com coisas que pareciam uma aventura frvola, era objetvel. Emparte, porque o local era desagradvel um espao porturio muito feio e desolado,numa zona industrial. Seria como colocar em primeiro plano Jersey City em vez deLondres, para os londrinos. Necessitava-se de tempo para que a idia pudesse setornar palatvel (uma metfora de paladar). bastante interessante ver que ogigantesco objeto que os ingleses selecionariam, representava um corpo de mulhertendo seu filho ao lado. Para visitar esse objeto por dentro, tanto os prprios ingleses,como os visitantes estrangeiros fizeram filas. Visitam o prprio pas, ao escalar umamulher. diferente, por exemplo, da Statue of Liberty onde se sobe at o topo objeto flico por excelncia a English Woman tem as mos estendidas para trs, ea entrada por cima do quadril. Do lado interno do corpo, nos rgos internos,entre outras coisas, haver exposies.

    A British Millenial Structure, no entanto, simplesmente mais uma expressoda mentalidade inglesa, realizada por meio do trabalho arquitetnico. De acordo coma viso de Winnicott, de que um ambiente acolhedor significa um ato de intelignciapsquica, ento, uma cidade pode ser considerada uma forma viva e continente parasua populao. Mentalidade o idioma para poder ser continente, refletindo exata-mente a cultura especfica do lugar. Nenhuma viso dela se torna a totalidade; todavez, ao longo da histria, em que os homens tentaram impor uma viso totalitria

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    9/26

    29

    ARTIGOS

    da cidade, tirou-se algo de sua populao. Parte do erro de tal pensamento, me pa-rece, a viso de que somente a conscincia pode formar uma cidade. Cidades soprocessos bastante inconscientes. Existem tantos interesses conflitantes, estticos,interesses locais e econmicos, cada elemento influenciando o outro. Uma cidade mais o aparente caos da mente inconsciente. De fato, isto carrega uma similaridadenotvel com qualquer selfcomum, pois possui interesses biolgicos, sexuais, hist-ricos, espirituais, vocacionais, familiares e econmicos, todos entrelaados, de al-guma forma, num movimento que faz nascer um tipo de viso organizacional, ouuma mentalidade. Os psicanalistas, ao trabalharem com uma pessoa por um deter-

    minado tempo, acabam tendo acesso a uma cultura muito particular. Podemos com-parar quando nos mudamos para uma nova cidade e comeamos a conhecer suasexcentricidades: suas preferncias estticas, suas averses, seus obstculos supe-rados, suas terras inspitas, seus interesses compartilhados e seus antigos conflitos.

    Quando as estruturas evocativas so construdas fazem nascer intensasassociaes entre a populao. O Getty Museum em Los Angeles, por exemplo, abriupara o pblico este ano, e j objeto de uma extensa crtica. Dirigindo para o nortena 405 Freeway, em direo ao oeste de Los Angeles, pode-se ver na encosta damontanha um evocativo objeto cultural que fala conosco atravs de associaes.Antes de sua inaugurao era somente uma nova e impressionante construo, masagora parte do que significa ser Los Angeles. Estas elaboraes, entretanto, iroeventualmente ceder, e ento, como o Metropolitan Museum de Nova York ou

    qualquer outro museu imponente, seu impacto sobre os habitantes de seu temposer perdido nas futuras geraes, que iro submet-lo sua prpria sensibilidade.De fato, quando caminhamos ou dirigimos atravs de nossas cidades, acabamosconhecendo relativamente pouco, se podemos dizer que conhecemos algo, sobre agrande maioria das construes. Mesmo que tenham sido evocativas, pelo menospara os habitantes locais que sofreram o efeito de sua chegada, passam a ser obeliscossilenciosos. Necessitariam de um considervel trabalho histrico e de decodificaopara ressuscitar suas vozes.

    Assim, estamos de volta para a morte, uma vez mais. Nossas cidades contmcentenas e milhares de construes que, embora faam parte da cultura local eestejam vivas como objetos evocativos, so tambm cemiteriais. Refletindo sobre avida inconsciente de uma cidade, observamos que esto l, como uma espcie de

    presena muda, uma voz silenciada, quem sabe evidncia no cotidiano da morte davoz do construdo. Sabemos que at mesmo as mais simples construes tm histriaspara contar. At mesmo as tumbas dos cidados desconhecidos so parte de nossavida e do nosso viver cotidiano. O silncio das construes uma presenapremonitria de nossa prpria finitude, inevitvel parte de nossa vida. Poderamos,se assim o quisssemos, colocar cartazes em cada construo, dando a data de suaconcluso, o nome do arquiteto, uma lista dos trabalhadores e talvez selecionarmos

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    10/26

    30

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    artigos dos jornais e relatos orais. Mas na maioria das vezes no o fazemos. Atmesmo os arquitetos que constroem grandes obras so, tantas vezes, esquecidos, amenos que, como Eiffel, seu nome para melhor ou para pior seja identificadocom o objeto.

    Lembrar-se de um nome um fato curiosamente conflituoso. As pessoas gostamde passear no bosque ou de olhar as flores silvestres. Mas quantas dessas pessoaspodem identificar mais do que dez rvores? Comemos uma boa quantidade de peixes,mas quantos sabem reconhecer um bacalhau, um turbotou um monkfish? A teoriafreudiana da represso sugere que quando sabemos o nome de um objeto isto acaba

    gerando uma rede maior de significados pessoais, pois os nomes distinguem objetose se enredam, de forma bastante inteligente, com outros nomes, nas emocionantesexperincias psquicas da vida cotidiana. A palavra oak(carvalho, em ingls) designauma rvore nica, mas tambm contm o fonema Oh, que poderia sugerir yoke(canga, pala, em ingls) e seus significados. Se soubssemos todos os nomes dasdiferentes rvores da floresta, assim que vssemos uma btula, um loureiro, umdogwood, um pltano, ou outras tantas rvores, estaramos imersos numa sinfoniade fonemas, que estariam em consonncia com a ordem visual.

    Ento, por que no fazemos isto?

    O problema no pode ser simplesmente intelectual ou cognitivo. Temos at muitafacilidade em lembrar como, por exemplo, se diz em francs: Por favor, onde ficao posto turstico mais prximo?, ou os personagens dos romances, como EmmaBovary, do que os nomes das rvores, plantas, peixes, alm dos objetos que soparte de nossa vida cotidiana.

    primeira vista pode parecer que temos um certo desinteresse pelas rvores,plantas, peixes ou nossas construes. Ser que representam to pouco para ns?No parece ser este o caso. Ento, por que ficamos mudos quando se trata de nomearestes objetos visuais?

    Talvez a resposta esteja no significado inconsciente que damos a uma formavalorizada. Imaginem, por um momento, que de fato gostamos de rvores, que asflores e plantas so muito importantes. Que certas estruturas construdas, sobre as

    quais nada sabemos, so verdadeiramente importantes para ns. Elas so parte denossa vida visual. Talvez tenham sido feitas para permanecer naquela ordem depercepo e imaginao, fundamentalmente como objetos visuais silenciosos.

    Lembro-me de estar dirigindo pelas plancies dos Estados da Amrica do Norteonde, at hoje, se pode viajar por horas a fio, sem se encontrar nenhum outro carro.Inmeros novelistas e poetas americanos compararam o capim alto a um vastooceano. Ondula com a brisa, como as ondas do oceano numa planura horizontal,

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    11/26

    31

    ARTIGOS

    nunca modificada pelas montanhas. O cu e a pradaria parecem se encontrar numavasta e contnua tela. Aqui e ali, uma rvore. Elas podem estar a milhas de distncia,portanto, uma nica rvore, s vezes, aparece sozinha no cenrio, em toda a suabeleza formal, revelando a essncia da rvore. Uma casa de fazenda, separadavisualmente de quaisquer outras casas de fazenda, pode ser vista a milhas de distncia,e, medida que vamos nos aproximando dela, parece incorporar a essncia de umacasa. O claro de um relmpago distncia, uma nuvem passando pelo cu, umbando de pssaros, um campo de girassis, um trator, todos estes objetos esto nasua mais completa singularidade, sobre o fundo silencioso. Cada objeto parece

    incorporar o esprito de seus irmos; uma rvore que est l, de p, permite aexistncia de todas as rvores; uma casa que est l, revela a presena de todas ascasas. como se se contemplasse a pureza de uma forma.

    Talvez escolhamos ignorar a nomenclatura dos objetos porque somos maistocados pela sua forma. At que saibamos o nome preciso de um objeto, sabemossomente seu nome genrico; isto talvez seja um compromisso entre o mundo naturale o mundo construdo pelo homem. Quem sabe nossa escolha seja somente depassear entre as rvores, as plantas, nossas ruas, a fim de comungar com a formaem si mesma. Mas ao quebrarmos essas formas damos-lhes seus nomes. E quenomes usamos? Nomes que derivam da forma em si? claro que no. Os nomesderivam da ordem patriarcal que arbitrariamente nomeia os objetos. Ento, ser queno desafiamos o conhecimento dos nomes, recusando a secularizao dos objetos

    que acreditamos conter um grande peso espiritual?Prdios e construes annimas, muitas vezes simplesmente desaparecem no

    caldeiro de uma cidade. Podem preencher nossa necessidade de formas annimas,bem como de objetos puros, ainda no contaminados pelo conhecimento. Escolhemosviver na ordem visual, e no na ordem verbal. Escolhemos, assim, viver parte denossa vida regidos pela ordem materna aquele registro de percepo que guiadopelo imaginrio materno diferente da ordem paterna, que aquela que nomeia osobjetos e os insere na linguagem. Parte de nossas errncias neste mundo visual um mundo de coisas sem nome uma errncia num mundo pr-verbal, organizadopor vises, sons, cheiros e afinidades. Este um mundo nosso, mas que, em muitosaspectos, no existe mais. Vivemos dentro de nossas mes, e depois ao lado dela.A, ao conhecermos nossas obrigaes e a linguagem falada, este mundo vai

    desaparecendo, medida que envelhecemos. Como as annimas construessilenciosas, a ordem materna vai se perdendo com a maturidade normal do ser falante.

    Precisamos saber os nomes das ruas e a localizao dos diversos edifciospblicos do local onde se fazem os licenciamentos de veculos pera; do localonde se pagam os impostos ao correio; do local onde se compram ingressos, melhorlivraria mas muitas vezes precisamos circular entre muitas construes aindaannimas.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    12/26

    32

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    Cada cidado faz associaes com alguma parte de sua cidade escreve Lynche cada imagem est repleta de memrias e significados. Quando caminhamos ouviajamos pela nossa cidade selecionamos caminhos, cada um dos quais provocandodiferentes efeitos evocativos. Que dinmico e bonito objeto um caminho escreveBachelard, pois ao longo dos caminhos que escolhemos esto os objetos querepresentam algo para ns. Elegemos os nossos prprios caminhos ao longo denossas vidas, mesmo que alguns deles estejam ordenados pela mentalidade da cidade.Se pego a via expressa para o aeroporto, ou a nica estrada para a balsa, sou guiadopela inteligncia da forma das pessoas que planejaram e executaram os caminhos.

    Morei em Nova York por um ano. Para ir da minha casa na West 94th Streetpara omeu consultrio na East 65th Street, eu tinha uma vasta gama de possibilidades decaminhos, uma vez que atravessava o parque. Embora variasse meu itinerrio quandome cansava do meu favorito percurso, tinha prazer em pegar um caminho especial.Caminhava ao longo do Central Park Westat a 81st Street, o que me proporcionavauma extensa vista do West Side e das famlias saindo dos elegantes blocos deapartamentos para as ruas. Entrava no parque e caminhava entre The Great Lawn eTurtle Pond, respectivamente o espao onde se localizavam os campos para jogosde baseball, e o lago cheio de patos e tartarugas. Depois passava por um tnel e iamargeando o Metropolitan Museum of Art. s vezes, pegava uma certa rua atCherry Hill, antes de sair voando para a 72nde Fifth, quando finalmente chegava aomeu destino. Eu me lembro bem de cada pedao da minha jornada. Cada um deles

    tem sua prpria integridade estrutural, quer dizer, seu prprio carter. Mas claroque o que eles evocavam em mim vai diferir do que estes mesmos caminhos podemevocar em outras pessoas. E embora eu gostasse muito de estar perdido empensamentos durante esses passeios, eu certamente me inspirava pelas implicaesseqenciais de cada forma integral. Como sugere um poema de Blake, um viajantemental neste mundo. Os caminhos que escolhemos tomar em nossa vida mesmoque sejam to simples quanto o caminho que eu escolhia para ir trabalhar sopartes vitais da expresso de nosso prprio e pessoal idioma.

    Cada cidade, ento, tem sua prpria integridade estrutural (a realizao materialdas formas imaginadas) pelas quais viajamos. As cidades desenvolvem suas prpriasrelaes inter-espaciais: estradas se cruzam, parques so construdos numdeterminado lugar, ruas altas so segregadas de reas residenciais, parques industriais

    so segregados dos centros de arte e outras coisas do gnero. Se, na evoluo dequalquer cidade, a espacializao o desenvolvimento inconsciente do espao, entoas relaes inter-espaciais definiriam a psicologia dos espaos como esto relacionadosuns com os outros e na maneira como convidam o cidado a atravessar fronteirase a entrar em novos ndulos (Lynch) que definem reas. Movimentando-se nestaorganizao inconsciente de lugares e suas funes, o indivduo quem eleger seuscaminhos favoritos, e que ir, idiossincraticamente, encontrar lugares mais evocativos

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    13/26

    33

    ARTIGOS

    do que outros. Mais obviamente, isto ocorre quando se foi criado numa certa reaespecfica. Ento, os objetos experienciados durante a infncia contero partes daexperincia do self, que sero projetadas nos objetos, como se fossem recipientesmnmicos da experincia vivida. Mas qualquer indivduo encontrar numa nova reaaspectos mais interessantes, e outros menos, pois gravita em direo a determinadosobjetos que so pontos de seu devaneio pessoal.

    Ao caminhar entre The Great Lawn e Turtle Pondestou entre duas estruturasdistintas (uma, um grande campo de grama verde de Kentucky com diamantes dobaseball aqui e ali; a outra, um grande lago com um penhasco de um lado, e um

    pntano no setor de grama, do outro); servem s vises pblicas (o campo para asrepresentaes humanas, o lago para a observao da vida natural), mas cada estruturaevoca associaes peculiares para minha vida.

    Tomando, como exemplo, The Great Lawn

    Como uma estrutura em si, com sua prpria integridade, h uma beleza simplessobre um campo de baseball. A forma de losango da parte interna do campo deterra e a parte externa ao campo de grama. Num campo de baseball bemconservado, o contraste entre a grama e a terra lindo. Como um puro espao vazio,minimalista, ao excluir os jogadores, representa uma familiar e variada rendio de

    um espao potencial. Quando os jogadores ocupam o campo, usando uniformesbrilhantes, no losango do baseball considerando-se especialmente que vrios timesocuparo esse espao parece que estamos admirando uma pintura de Paul Klee.Cada time tem nove participantes que, embora ocupem posies estabelecidas, sairode seus lugares criando linhas de movimento que se opem ao contorno de terrae grama que se transforma numa forma figurativa do expressionismo abstrato: asfiguras que se movem criam a abstrao que d ao jogo sua poesia visual.

    The Great Lawn considerado no como um objeto integral, mas evocativo inspira partes idiossincrticas em mim; foram projetadas naquele espao, ao longoda minha vida contm uma parte minha que, na juventude, quase foi jogar baseballprofissionalmente. Dependendo do meu estado de nimo, a viso desse campoprovoca diferentes memrias: a real, uma vontade de jogar. Do outro lado est Turtle

    Pondque tambm um objeto integral algo com sua prpria integridade estruturalno alterada pela projeo humana que tambm um objeto evocativo. No merelembra minha juventude, mas o incio dos meus quarenta anos, quando morei doisanos no campo, na parte oeste de Massachusetts. Embora ele evoque o esprito dolago e algumas lembranas dos lagos daquela parte do mundo tambm evocamemrias do meu local de trabalho, de meus interesses familiares e questes bastantepessoais daquela poca de minha vida.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    14/26

    34

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    Sem pensar muito sobre isso, quando atravessamos uma cidade oucaminhamos em nosso bairro estamos engajados num tipo de sonho. Cada olharque cai sobre um objeto de interesse pode produzir um momento de devaneio quando pensamos sobre algo mais, inspirado pelo ponto de contato emocional edurante nosso dia teremos registros desses devaneios, os quais Freud chamou deintensidades psquicas, que ele acreditava serem os estmulos para o sonho daquelanoite. Como um tipo de sonho, os devaneios produzidos por objetos evocativosconstituem uma importante caracterstica de nossa vida psquica. Qualquer um queno goste de seu bairro sentir-se- aborrecido, ou com um certo mal-estar, porque

    a ele negada a necessidade vital do devaneio pessoal. Toda pessoa precisa alimentarobjetos evocativos os ento chamados alimentos para o pensamento que estimulamos interesses psquicos do selfe elaboram o seu desejo, por meio do compromissocom o mundo dos objetos. De fato, embora tal movimento seja muito denso paraser interpretado, toda pessoa sente algo proveniente de seu prprio e nico idioma-de-ser, ao se movimentar livremente pelo espao. Ela no saber o que aquele idiomaquer dizer, mas sentir que est se movendo de acordo como compreende ainteligncia da forma, moldando sua vida pela sua seleo de objetos. Meu passeioatravs do Central Park no est disponvel para uma simples interpretaopsicanaltica (ou qualquer outra), mas o movimento das reflexes inspiradas alegre,e faz parte do sentimento de que a vida foi feita para ser vivida, e no somente para

    ser dedicada ao pensamento ou produtividade vocacional.Esta perspectiva no escapa aos arquitetos, que certamente conhecem opotencial evocativo de qualquer uma de suas obras, mesmo se o preciso idioma dodevaneio vindo dos cidados no pudesse se tornar conhecido. E embora possaser dito de novas cidades terem planejado lugares bvios para devaneios parquese coisas similares a evocatividade dos objetos no pode ser traada como umaviagem psquica, mesmo se o planejamento da Disneylndia na Califrnia (semdirees, somente o prximo reino da vida da fantasia) tentar provar a exceo. Massabemos que as estruturas vivas encontram seu caminho em nossos sonhos noite,e est aqui no mundo dos sonhos onde as vises do arquiteto e os sonhos docidado encontram uma curiosa comunho.

    Assim como os atenienses devem certamente ter tido o Parthenon em seus

    sonhos, ns tambm sonhamos com estruturas vivas. O inconsciente ento vai operarno reino material do construdo, o inconsciente que organiza cada encontro do self.Arquitetos visionrios desejam que suas construes sugiram sonhos para seusocupantes, e eu sustentarei que, at onde sabemos, as estruturas vivas entram nosnossos sonhos e afetam nossa vida onrica. De fato, poderamos dizer que somentequando a perspectiva nas artes foi alcanada, por meio dos efeitos arquitetnicosda arquitetura da Renascena (a extraordinria influncia de Brunelleschi), nossa vida

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    15/26

    35

    ARTIGOS

    onrica comeou a ser influenciada pelas perspectivas conseguidas na imaginaoarquitetnica.

    Darei um exemplo melhor: vou contar um sonho recente que tive.Estou descendo uma ladeira em Laguna Beach que vai dar em Victoria Beach.

    Estou com minha mulher, meu pai e minha me, meu irmo mais novo que eu, emeu filho, e ns todos estamos a fim de ficar relaxando na praia. Olho para a direitae, para minha surpresa, vejo o reflexo de uma onda batendo num alto penhascobordeado por altas rvores. A onda de um verde brilhante e translcido, de maneiraque no apaga a viso do penhasco e das rvores. Sobre a onda h um cu azul e

    brilhante e o efeito total visualmente espantoso. Aponto isto para minha famlia.Estamos encantados. A seguir, nos dirigimos praia, entusiasmados. Fato notvel,porm no incomum. Na prxima cena, estamos nadando no mar. As ondas soenormes. De repente, vejo meu pai, braos cruzados, flutuando sobre a branca gua,sendo levado em direo praia, e claramente se divertindo. Na cena final, deixominha famlia na porta de nosso restaurante favorito, perto de Main Beach (cercade duas milhas de Victoria Beach), para dar um pulo at a Dilleys Bookstore. Osentimento do sonho de bem-estar.

    Alguns fatos ajudaro a iluminar parte deste sonho, que no submeterei associao ou interpretao analticas, mas ser usado, em vez disto, para ilustrarum ponto neste ensaio. O sonho aconteceu aproximadamente um ano depois da mortede meu pai, e suas cinzas haviam sido espalhadas no mar em Laguna Beach. Victoria

    Beach era o lugar onde nossa famlia sempre ia, at os meus catorze anos. At osmeus dez anos, meu pai no me deixava brincar na rebentao das ondas grandes;eu tinha que brincar na gua branca. De fato, bem do jeito que meu pai aparece nosonho.

    Num restaurante do Surf and Sand Hotel (aproximadamente no meio do caminhoentre Victoria Beach e Main Beach) h um espelho no teto. Sentado numa mesacom vista para o mar, pode-se tambm olhar para cima e ver o movimento das ondasno teto, um efeito visual incomum e agradvel.

    Acho que incorporei esta inovao do design no meu sonho, no qual eu via ao reflexo da onda batendo na montanha. Mas o objeto e seu design original umespelho parece tambm uma parte do sonho, quando meu pai espelha minha maneirade nadar, como quando eu era menino. Somente agora que ele se foi disperso

    pelo mar e embora eu possa ser a cabea da famlia (vitorioso no sentido edpico,como no nome da praia), meu filho est tambm na viagem para o mar e ento, deuma certa maneira, o meu fim tambm est presente.

    O restaurante no existe mais. Nem a Dilleys Bookstore. A no ser em meusonho, ou no mundo da literatura. O fato de sair correndo para a livraria, pode muitobem ter sido a expresso de um desejo, a respeito da tarefa de escrever este ensaio,no por acaso agora j escrito, embora no seja uma boa obra literria.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    16/26

    36

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    Por alguns dias depois do sonho, eu me coloquei uma pergunta que j haviame ocorrido antes, a respeito de memorveis sonhos anteriores. Qual seria a funode to viva beleza? Por que o inconsciente se importaria em construir tais cenrios?Quem sabe os sonhos verdadeiramente profundos sejam para nunca mais seremesquecidos, para serem comemorados para sempre, por meio de um alto grau deimaginabilidade. Talvez seja nossa tarefa pass-los adiante, de uma gerao para aseguinte. No seria esta parte nossa, a que constri o sonho inesquecvel at mesmoos mais prosaicos a mesma parte que, em ns, busca construir estruturasinesquecveis?

    Seria um sonho a arquitetura visionria? Ser que construmos estruturasmonumentais para serem sonhadas nos nossos sonhos e estendidas nos sonhos dasgeraes que viro? Ainda que elas signifiquem a morte na terra, a imvel massainerte de silncio, por que deveriam ser vivas? No desejaramos que a morte fossemarginal e discreta, por tanto tempo quanto fosse possvel? A estranha conciliaoconseguida pelo monumental que ele tanto um sinal da vida, como um sinal damorte. Quando dormimos penetramos na escurido, talvez, quem sabe, para nuncamais retornar. Sonhar ter uma amostra da experincia vivida, levando conoscotoda nossa histria para a escurido. Se sobrevivemos para viver um outro dia, melhor.Mas nossos objetos dos sonhos, o mobilirio da nossa vida, podem ser as ltimascoisas que vemos, antes que tudo se torne completa e irreversivelmente escuro. Ummonumento que sustenta a morte em sua massa, suposto irnico triunfo doinorgnico sobre o orgnico, da criao sobre o criador, pode transcender suaterminabilidade com evocativa sugestionabilidade. Ele pretende, em outras palavras,estimular a imaginao enquanto caminhamos pelas sombras da morte.

    Uma cidade em particular parece ter compreendido a estranha ambigidade domonumental como um intercmbio entre a vida e a morte. Quando o sol se pe e aescurido desce em pleno deserto de Nevada, a cidade de Las Vegas ganha vida,como se lanasse luz, de forma extraordinria, sobre o desejo humano. Talvezcapitalize, em todos os aspectos, sobre a natureza desejante do evento onrico. Duranteo dia, as construes de Las Vegas so apagadas e desinteressantes, uma razo amais para seus visitantes dormirem durante o dia (talvez mantendo a cidade da noiteviva no sonho) esperando pelo momento de acordarem e reentrarem na viso

    noturna. Vive-se no meio de um tipo de sonho controlado em Las Vegas que, nosltimos quinze anos, alargou o alcance de seu mobilirio onrico, para incluir a cidadede Nova York e as Pirmides do Egito. Talvez o mundo esteja se sonhando por meiodessa estrutura arquitetnica. Parece que os planejadores de Las Vegas, astutamente,estenderam a funo evocativa do design para influenciar a vida onrica dos cidados,num lugar onde o design e o sonho podem se encontrar, no meio da noite, paralucros e perdas de todos os participantes.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    17/26

    37

    ARTIGOS

    Os arquitetos intermitentemente jogam com a idia de encontrar o desejo doselfpara a outra funo integral do objeto (aquela da evocao). Na encosta de umamontanha, que se estende de Hampstead Village at Golders Green na parte nortede Londres fica uma conhecida escola progressiva. Os prdios da King AlfredsSchool circundam um grande e irregular campo esportivo, o qual ligeiramentecircular. J na entrada da escola, esquerda, vem-se pequenas construes ondeficam as crianas pequenas. Em torno do campo, outros prdios abrigam as crianasmaiores. A Lower School,ao longo dos ltimos anos, construiu muitos outros prdiosque captam o olhar dos curiosos pais que os visitam, como smbolos de modernidade

    e bom aproveitamento dos recursos. Existem fortalezas de madeira para os quegostam de aventura, quadras de tnis e um ginsio; h tambm uma construoretangular, dos anos oitenta; uma espcie de espao pago, chamado Squirrel Hallque tem uma castanheira no meio, onde os adolescentes e os mais velhos ficam; htambm o Blue Building. Este um prdio novo construdo sobre pilotis, que seergue sobre um antigo prdio que era para ser provisrio; um dia, quando a escolapuder demolir o velho prdio, os pilotis funcionaro como uma nova pele para anova estrutura. Os pais questionadores e os membros da escola vem o esprito daeducao progressiva nessas estruturas, em parte porque ela significa inventividadeeconmica e adaptabilidade integrativa. Entre a estrutura retangular, a rea pag,e o Blue Building existe pouca integridade arquitetnica (como na maioria das vezesem que vo se fazendo evolues arquitetnicas, sem nenhum plano inicial), mas,no entanto, parece funcionar. Dois bodes amarrados ficam no centro do grandecampo; as crianas e a faculdade esto nos primeiros nomes nesta escola; emdiferentes estgios de suas vidas, constroem pequenos vilarejos no campo paraaprenderem sobre materiais, planejamento, execuo e coabitao. Assim, a evoluodo design na King Alfreds School parece ter capturado a capacidade sobredeterminadadas construes. So feitas para ter determinadas funes, mas tambm podem servira diferentes implicaes evocativas. No interessante local de encontro das crianas,pais, educadores e administradores, estruturas so construdas, o que d seguranaa todos (eles podem dormir em paz) e constitui um tipo de sonho personificado.

    Uma escola progressiva como a King Alfreds, mesmo se dotada com os fundosnecessrios, nunca iria destruir a estrutura existente para construir uma escola

    inteiramente nova; nem desejaria construes provisrias (embora existam muitasque j esto l h uns trinta anos). Para que cada criana possa se expressar, isto feito sob a forma de construo. Ela precisa ir em frente, no seu prprio ritmo,respeitando sua capacidade progressiva. King Alfreds School um tipo de mundode conto de fadas que procura atender s diversas exigncias de seus participantes,sonhando um caminho de uma realidade compartilhada, num ritmo que prprio decada um.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    18/26

    38

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    Em oposio a estes sonhos do design de uma Las Vegas ou uma KingAlfreds School esto os objetos que parecem ter sido feitos para incomodar. Tantoa Torre Eiffel, em Paris, quanto a Telecom Tower, em Londres, foram consideradascomo merda por muitos. O que poderamos pensar como excreesarquitetnicas, so construes que parecem ter sido construdas com a intenode incomodar a populao. Representam, apesar disto, traos interessantes doinconsciente arquitetnico. O objeto incomodativo, a coisa ofensiva ao olhar, podeser criada pelo arquiteto, ou passa a existir pelas mos dos urbanistas e planejadorescomo um desafio inconsciente populao. Deixando de lado o simples sadismo

    como a razo para tais atos ofensivos, por que precisariam os excrementosarquitetnicos ser tolerados?

    A arquitetura, para se desenvolver, comete erros. medida que novos materiaisse desenvolvem podem ultrapassar a compreenso do arquiteto nas suas limitaese, por um tempo, estruturas ruins certamente sero produzidas. Mas o objetoexcremental de uma gerao pode ser o ouro da outra, como , de uma certa forma,o caso da Torre Eiffel hoje em dia: pelo menos os turistas a admiram bastante. Oobjeto ofensivo, no entanto, pode ser inconscientemente bem-vindo mesmo sefor conscientemente criticado porque levanta uma interessante questo psico-espiritual. Ser nosso selfnada mais do que merda depositada sobre esta terra? medida que nossos corpos decaem, medida que vemos os sinais de nosso desgaste,sabendo que um dia seremos comidos pelos vermes e teremos mau cheiro, sair

    alguma coisa desta excreo? Seremos um dia verdadeiramente ressuscitados? Comopoderia algo ser feito com nossos restos mortais?

    A mesma questo levantada quando os arquitetos criam merda. Certamente,as pessoas pensam: como pode este excremento algum dia vir a ser alguma coisa?Que forma de interveno nas mentes das geraes vindouras poderia possivelmentetransformar esta porcaria em ouro? Disfarado nesta moldura mental incomodada,pode muito bem estar um desejo profundamente oculto: de que um dia seja possvelque esta obra seja amada por aqueles que com ela convivem. Talvez os restossejam transformados em matria viva. Talvez o rejeitado seja o ressuscitado. E seassim for, isto ir acontecer na mente do homem. Aquilo que incomoda a viso,ento, espera por uma futura moldura mental, talvez uma mais sofisticada do que anossa prpria, talvez uma que ir funcionar no mundo da medicina futurista, quem

    sabe mesmo num mundo onde, pela reproduo do DNA tirado de nossas amostrasde sangue, possamos ser ressuscitados depois de tudo. Talvez, ento, estas pilhasde restos sejam estranhas oraes para o futuro, muito diferentes daquelesmonumentos admirados e discutidos anteriormente.

    Novas construes, especialmente as visionrias, evocam os sons do espanto.No campo visual do Empire State Building devem haver inscries auditivas de muitosAaaaaaahhhhhhs ou Oooooooooohs ou Wooooowwwwws. A boca se abre

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    19/26

    39

    ARTIGOS

    para apreender a viso, o selftalvez seja lanado de volta criana boquiaberta desurpresa, quando um outro surpreendente objeto apresentado a ela. Certamente aescala de Nova York nos coloca a todos de volta nos reinos da criana entre osgigantes. Mas o espetculo do objeto, seu valor espetacular, avalia a histria dequalquer self nascido num mundo de surpresas. Assim, tambm faz oYuuuuuuuuuuck! e o olhar desviado expressa os desprazeres em relao aos objetosque no so bem-vindos no incio da vida. Ou o comum, mas surpreendente design por exemplo, de uma pequena loja recm-construda, que se encaixaadequadamente num local previamente abandonado poderia extrair um Ahhhhh!

    Eu no sabia que isto estava l! Para construir o evocativo em qualquer escala, hque se abrir para o psicossoma, expandindo a mente e o corpo num ato singular derecepo, ligando o novo objeto agradvel sensao de surpresa. Como foidiscutido anteriormente, as construes se aproveitam de nosso espanto inconscienteda estatura do mundo fsico o perder o flego que a viso de uma montanhapode provocar, ou o mar, a pradaria, e neste ponto eles tm um potencialontolgico: podemos retroceder s nossas origens, s nossas primeiras percepesdo objeto.

    Quando isto ocorre, a obra sustenta uma espcie de esprito do lugar, seu designestabelecendo um valor ontolgico, medida que somos reenviados ao lugar donascimento, para o tempo em que os novos objetos nos deixavam boquiabertos,como agora, abrindo tambm nosso psiquismo para o contnuo esprito donascimento. Se o corpo materno, do qual viemos, puder ser considerado como oDeus que nos faz nascer no nosso ser, ento a apresentao subseqente que a mefaz dos objetos pode ser vista como consagraes do mundo objetal. Cada objetoque a criana pe na boca para o teste do paladar, representa uma comunho doseio materno. Em nosso inconsciente, ento, as construes sustentam (ou falhamem sustentar) esta comunho. Este seio bom, como o denomina Melanie Klein, estdisseminado no mundo objetal, e ser encontrado por cada um nos objetos quedeixam o ser humano boquiaberto, seja no sentido fsico ou mental. Os novos objetosencontrados podem passar ou falhar neste teste do paladar. As pessoas terodiferentes idias sobre o que bom ou ruim.

    Ser a viso divina?

    Os designers e os arquitetos criam um mundo de paladar ou para o paladar, eherdam a tarefa da me, que d a luz ao self, num novo lugar, com novas vises enovos objetos. As cidades sempre tero suas reas conhecidas e propcias ao espanto, mas os pequenos objetos da vida material um copo, talheres, um lustre etc. tambm representam um pequeno pedacinho passvel de provocar prazer. O amor a

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    20/26

    40

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    nossos objetos, algumas vezes algo da ordem de um embarao, uma paixo querepresenta uma comunho.

    O mundo feito pelo homem, contrastado com o mundo natural levanta, noentanto, uma dualidade diferente, pois os objetos construdos parecem ser tes-temunhas da ordem patriarcal, enquanto o mundo natural se assemelha mais or-dem materna. Como discutimos existem, no entanto, incontveis formas de inter-cmbio entre as ordens materna e paterna. Se permitirmos que a deciso sobre in-seminao seja uma ao patriarcal peguem um templo grego por exemplo esua construo seja nomeada pelo homem, ento seu nascimento para o recm-che-

    gado (isto , o primeiro momento de v-lo) sempre vai relembrar a apresentaomaterna do objeto surpreendente. Se o monumento se parecer com uma insg-nia do triunfo monoltico do inorgnico sobre nossas vidas orgnicas, ento o fatode nomearmos suas estruturas com nomes de partes de nossos corpos busca ins-crio. Estes mesmos templos, tambm recebem nomes de partes do mundoanimal e botnico, assim como as pinturas das cavernas e as tumbas egpcias con-tm representaes ou artefatos do mundo natural. Reunimos objetos da ordem ma-terna e paterna e das formas de vida e de morte desde o comeo dos tempos,numa seqncia de justaposies que parte da obrigao inconsciente da ar-quitetura.

    O parque da cidade, o jardim dos fundos da casa, a planta envasada no quarto,

    as flores no vaso, so emblemas do mundo natural no mundo construdo, assimcomo uma pequena capela na floresta, ou uma escultura na campina so signos daordem construda no mundo natural.

    Estas formas de intercmbio so momentos espirituais, se ns entendemos poristo que cada personificao carrega consigo o esprito do significante. Uma flornum vaso representa o esprito das flores; uma igreja no bosque representa o espritoda f crist. O planejamento urbano no simplesmente funcional e pleno de sentidode uma forma localizada, ele tambm envolve um tipo de psico-espiritualidade, isto, est investido com a tarefa psicolgica de trazer o esprito da vida de umdeterminado lugar.

    Nosso tempo no permite uma anlise mais extensa da sociedade ocidental vamos ento nos limitar representao espiritual de determinados fenmenos sociais

    vitais para a vida humana. Poderamos analisar uma casa em termos de esprito deseu encanamento, ou o esprito de sua calefao, ou o esprito de seu espao devida. Cultivamos a terra e pescamos no mar. Nossa sobrevivncia depende destasduas atividades muito antigas. Na cidade moderna, os frutos da agricultura e da pescasero encaminhados para os grandes supermercados, mas talvez devssemos nosperguntar se, arquitetonicamente, estamos conseguindo representar o esprito dopescador, assim como o esprito do agricultor e da agricultura.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    21/26

    41

    ARTIGOS

    A maioria das cidades tm mercados ao ar livre, com peixeiros e produtos dafazenda, e a praa do mercado sustenta algo destes espritos. Pescadores ouagricultores, por exemplo, visitando a praa do mercado sentiro que suas vidas eo mundo do peixe ou da produo agrcola esto, de uma certa maneira, alirepresentados. Algumas vezes, os urbanistas e arquitetos fazem mais do que isto.Em Bergen, por exemplo, no porto central existem vrios tanques de peixes bemgrandes. Assim, os cidados e os turistas podem olhar essas incrveis criaturas dooutro mundo se moverem em tanques de gua do mar. Em Helsinki e Gothenburgo,lugares de honra tambm so dados ao mar, a seus contedos (o peixe), e s vidas

    dos homens e mulheres que trabalham nesse mundo (os pescadores). Mas umarepresentao arquitetnica equivalente ao nvel espiritual do peixe desapareceu halgum tempo da rea prxima da Old Town em Estocolmo, onde antigamente existia,o que representa uma perda de um elemento do esprito da cidade.

    No tempo dos partidos Tory, a impiedosa destruio das comunidadesmineradoras da Gr-Bretanha, durante o reinado de Margaret Thatcher, o CoventGarden (o mercado de frutas e vegetais do centro de Londres) foi transformadoem boutiques e lojas para turistas. O novo Covent Garden foi transferido para muitasmilhas adiante. Neste momento, Smithfields (o mercado de carne de Londres) esttambm sendo reexaminado e ser brevemente transformado em mais boutiques elojas de designers. No h necessidade de se entrar em conflito com a necessidade

    estrutural do que foi citado acima. Talvez tenha sido necessrio reestruturar a indstriada minerao, recolocar e expandir o mercado produtor, assim como h necessidadede se recolocar o mercado de carne. Mas se o meu argumento estiver correto, oplanejamento e a construo no so simplesmente funcionais, mas deve haver umtrabalho com o significado, o trabalho da comunho espiritual, caso contrrio, aerradicao desses lugares do centro da cidade passa a equivaler a uma forma deeliminao espiritual.

    Basta visitar o Pike Place em Seattle Washington para ver como o mar e aterra podem estar funcional e espiritualmente localizados. O planejamento podefacilmente alocar a vasta maioria de seu peixe, carne e produtos agrcolas para ospermetros da cidade. Ao mesmo tempo, compreendeu-se a necessidade tantodaqueles que trabalham nos campos distantes, como do povo que vive na cidade,

    de terem uma relao espiritual uns com os outros. (Lembrem-se: por esprito, querodizer o idioma preciso do efeito evocativo derivado da integridade de cada um destesreinos diferentes).

    No h razo, ento, para que uma cidade como Londres, por exemplo, nopudesse ter em seu centro um monumento para o submundo da minerao de carvoe para o esprito da minerao. Os grandes vilarejos de mineradores de Yorkshire eGales puderam encontrar representao espiritual em sua capital, onde metade de

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    22/26

    42

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    um quarteiro foi desenhado para revelar este esprito. O mesmo poderia ocorrercom a indstria naval, a indstria automobilstica e assim por diante.

    Tais totens convidariam os mundos espirituais dos homem e das mulheres aencontrar seus lugares de representao. No podemos negar a importncia domonotesmo, interessante e repleto de sentido. No entanto, foi o monotesmo queacabou com o mundo espiritual personificado, que se manifestava sob a forma dediferentes deuses menores (por exemplo, o esprito do milho, o esprito da chuvaetc.). Ele provocou uma erradicao sem sentido do esprito da vida na terra. Todosns nos originamos da me, no mesmo sentido monotesta. Mas como podemos

    honr-la, tendo realizado a destruio dos espritos corporificados do mundo objetalque nos deram acesso ao gozo? O monotesmo poderia ser ento considerado umaespiritualidade totalitria, presidida pelo que Andr Green denominou como uma memorta, uma figura cuja angstia psquica, preocupao consigo mesma e demnciaimpediram-na de passar algumas coisas para seu filho, como a relao da crianacom a realidade.

    Parte da tarefa do inconsciente arquitetnico, ento, poderia ser sobreviver aogenocdio monotesta da diferena, por meio da diversidade das estruturas. Assim,pelo menos supriria a forma para muitos espritos, embora ainda as verdadeiras casaspara os espritos da vida tenham que ser mais compreendidas e estudadas.

    Cinqenta anos antes da construo da Torre Eiffel, Roland Barthes nos relembraque o romance do sculo XIX materializava na imaginao literria o ponto de

    perspectiva, criando uma viso panormica do que seria realizado na tecnologia daTorre. Num captulo do Hunchback of Notre Dame, que nos fornece uma visoarea da cidade e em Tableau Chronologique, de Michelet, ocorre o mesmo. Nessasobras, avista-se Paris do alto, algo que se faria mais tarde, quando a Torre fosseconstruda. Barthes argumenta que a literatura de viagens tinha descrito cenas davida, mas o viajante era sempre jogado no meio da cena, ao descrever a sensaodo novo. Nesses romances e da Torre uma nova percepo nasce, a da abstraoconcreta; isto, alm do mais, o significado que podemos atribuir hoje estruturada palavra: um corpo de formas inteligentes. Olhando Paris do alto, v-se a estruturada cidade como um corpo de formas inteligentes.

    A multiplicidade de dialticas co-terminais que impulsionam as diferentes inte-ligncias de uma cidade erradicao e criao de novas ruas, novos parques, escolas

    etc. constitui o corpo que d forma a ela. Como a vida inconsciente de qualquerself, a inteligncia das formaes e transformaes urbanas deriva no de um nicoestmulo, mas de uma matriz dinmica de muitas influncias, que apesar disto pare-cem, em tempo, criar sua mentalidade. Embora aquela mentalidade, ou, permita-nos dizer, viso coletiva um sonho derivado dos muitos constituintes possa serdestruda, uma vez viva e num lugar, constitui um sistema inconsciente muito parti-cular, que ir gerar os significados complexos de uma cidade e seus habitantes.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    23/26

    43

    ARTIGOS

    O psicanalista ingls Wilfred Bion argumentou que a vida mental no pode serfalseada. A nica razo pela qual desenvolvemos a mente, sustenta Bion, porquetemos pensamentos, e eventualmente pensamentos demandam um pensador parapens-los. Temos muitas experincias na vida, mas se essas experincias no foremtransformadas em algum tipo de material para o pensamento, de acordo com Bion,elas seriam experincias indigestas e ele d o arbitrrio sinal B, ou beta, para taiselementos. Mas se o self estiver em formao, os fatores nticos da vida podemencontrar significao ontolgica, e podemos fornecer alimento para o pensamento,ao qual ele atribui o termo A ou alfa.

    Vamos tomar emprestado algo do pensamento de Bion na nossa reflexo sobrea vida de um vilarejo ou de uma cidade. A mera existncia de construes e cidadesno significa que elas tenham uma mentalidade. Elas podem j ter sido um corpode formas inteligentes, mas que podem estar mortas. Os habitantes da cidadepoderiam ser pressionados para extrair das cidades funo beta que uma operaopuramente funcional qualquer alimento para o pensamento: nada de lendas, mitos,memrias, sonhos, contemplaes, novas vises, como Jersey City no estudo deLynch. Mas se a cidade se transforma, gerando novas formas de vida, ento elaestaria criando Alfa que o alimento para o pensamento e a mentalidade dacidade, sua formao inconsciente de si mesma e de seus habitantes, e estaria vivae saudvel.

    A topografia do sul de Orange County, na Califrnia, mostra como osplanejadores tentaram passar direto de beta para Alfa, do indigesto para o digerido,por meio da criao de cidades j prontas, com temas como Spanish Village ouCape Cod. As escolas, parques, shopping centers, e bairros graduados de moradiaforam executados de uma s vez, num rpido e nico ato de desenvolvimento.Certamente tinham a inteno de fazer transparecer o esprito do lugar (por exemplo,Spain na Califrnia, ou Cape Cod tambm na Califrnia), reproduzindo umamentalidade. Mas isso no o mesmo que percorrer todos os estgios dos conflitoshumanos que fazem uma comunidade crescer, juntamente com seu prprio everdadeiro esprito.

    As novas e andinas cidades do sul de Orange County, na Califrnia, so osequivalentes, em termos de cidades do falso selfhumano, uma identidade inventada

    que toma o lugar de uma autntica vida cvica. Esses ambientes, por si s, sugeremque seus habitantes compartilhem um tipo de superficialidade do self, tencionandoviver numa aparente e imediata normalidade, como se o tema da cidade-parque ti-vesse verdadeira integridade. Tais lugares seriam assim formas vazias, intelignciasfalsamente presumidas, objetivando produzir uma mentalidade, fotocopiando e trans-pondo outros lugares e mentalidades para o novo lugar. Se Lynch estudasse essascidades diria que seus habitantes foram possudos por um contentamento curiosa-

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    24/26

    44

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    mente deslocado: eles tm tudo, mas ao mesmo tempo isto no significaria nada.O estudo da vida inconsciente um projeto que associamos a Freud e criao

    da psicanlise. Embora ainda em seus primeiros estgios como projeto intelectual, adesignao de Freud no limitaria o desenvolvimento do selfindividual. Winnicottescreveu que

    Um diagrama do indivduo humano algo que pode ser feito e a superposiode mil milhes destes diagramas representa a soma total da contribuio dos indivduosque compem o mundo e ao mesmo tempo um diagrama sociolgico do mundo.

    Resta-nos seguir o projeto psicanaltico, em direo a todas as suas implicaes,no simplesmente como tem acontecido no estudo da literatura e da cultura, masem todo lugar, como no estudo contnuo das dimenses inconscientes da arquitetura,ou o que Guy Debord, um situacionista francs denominou psico-geografia, oestudo e manipulao de ambientes para criar novas atmosferas e novas possibilidadespsquicas. (Harris)

    O projeto psicanaltico objeto de estranhas crticas, especialmente da mdiaanglo-sax. Num momento da histria da nossa civilizao, em que pensamos maissobre a natureza constituinte da vida inconsciente, em todas as suas formas, seria,no mnimo, uma maneira estranha de entrar nos prximos mil anos, fechando osolhos para uma nova viso, com propriedades nicas, levando em conta os fatoresque esto alm do campo da nossa viso imediata. Fora da viso no deveria significar

    fora da mente. Minha esperana que, acalentando o projeto psicanaltico por outroscem anos, possamos aniquilar as foras da cegueira.

    Referncias bibliogrficas

    BACHELARD, Gaston (1958). The Poetics of Space. New York, 1994.BARTHES, Roland (1979). The Eiffel Tower, in The Eiffel Tower. New York, 1984, pp. 3-22.BION, W.R. (1967). Second Thoughts. New York.BOLLAS, Christopher (1992). Being a Character. New York.

    ____ (1995). Cracking Up. New York.BURGIN, Victor (1996). In/Different Spaces. Berkeley.CRAWFORD, Harriet (1995). Sumer and the Sumerians. Cambridge.

    FIELD, Marcus. Classroom on stilts puts new life into an old prefab, in The ArchitectsJournal, 3 August 1995, p. 23.

    FREUD, Sigmund (1930). Civilisation and its discontents. Standard Edition.HARBISON, Robert (1994). The Built, the Unbuilt, and the Unbuidable. Cambridge.

    ____ (1997). Thirteen Ways. Cambridge.HARRIS, Steven & BERKE, Deborah (1997). Architecture of the Everyday. Princeton.HERSEY, George (1995). The Lost Meaning of Classical Architeture. Cambridge.

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    25/26

    45

    ARTIGOS

    LEFEBVRE, Henri (1992). The Production of Space. Oxford.LYNCH, Kevin (1996). The Image of the City. Cambridge.MONTET, Pierre (1981). Everyday Life in Egypt. Philadelphia.RASMUSSEN, Steen Eiler (1995). Experiencing Architecture. Cambridge.WINNICOTT, D.W. (1986). Berlin walls, in Home is Where we Start From. London.

    Resumos

    De modos interesantes, el mundo de la arquitectura generalmente aqu defini-

    do como la preocupacin deliberada con el ambiente humano construido y el mundodel psicoanlisis generalmente declarado como el lugar para el estudio de la vida

    mental inconsciente entrecruzanse. Una construccin deriva de la imaginacin hu-

    mana, en una dialctica que es ampliamente influenciada por muchos factores

    contribuyentes su funcin declarada, su relacin con el entorno, sus posibilidades

    funcionales, su aspecto artstico o su design, los deseos de su cliente, la respuesta

    anticipada del pblico y muchos otros factores que constituyen su estructura psquica.

    Mismo que la obra sea proveniente del idioma conocido de su arquitecto e esto que-

    da claro en un Le Corbusier o en un Mis Van der Roe ella pasa tambin por muchas

    imgenes mentales, derivadas de diversos factores, que sern parte de la direccin in-

    consciente del proyecto del arquitecto.

    Palabras llave: Arquitectura, inconsciente, psicoanlisis, formas

    De faons intressantes, le monde de larchitecture de faon gnrale dfini ici

    comme le souci dlibr par rapport lambiant humain construit et le monde de la

    psychanalyse de faon gnrale dclar comme le lieu pour ltude de la vie mentale

    inconsciente sentrecroisent. Une construction drive de limagination humaine, dans

    une dialectique qui est amplement influence par plusieurs facteurs contribuants sa

    fonction dclare, sa relation avec lenviron, ses possibilits fonctionnelles, son aspect

    artistique ou son design, les dsirs de son client, la rponse anticipe du publique et

    beaucoup dautres facteurs qui constituent sa structure psychique. Mme si loeuvre

    est tenue de lidiome connu de son architecte et cela est vident chez un Le Corbu-

    sier ou un Mies Van der Roe - elle passe aussi par beaucoup de images mentales, drives

    de plusieurs facteurs qui seront partir de la direction inconsciente du projet de

    larchitecte.Mots cls: Architecture, inconscient, psychanalyse, formes

    In interesting ways, both the architecture here defined as the deeliberate concern

    with the constructed human environment and the psychoanalysis world this latter

    pointed out as the place for the study of the unconscious mental life are interwoven.

    A construction derives from the human imagination in the core of a dialectic process

  • 8/7/2019 A arquitetura e o inconsciente

    26/26

    46

    R E V I S T A

    L A T I N O A M E R I C A N A

    DE PSICOPATOLOGIA

    F U N D A M E N T A L

    largely influenced by many contributing factors its spoken out function, its links with

    the surroundings, its functional possibilities, its artistic aspects or design, his clients

    wishes, the publics foreseen response to it and many others items that embody its psychic

    structure. Even if the work is derived from the architects well known idiom and that

    gets clear when we deal with architects as Le Corbusier and Mies Van der Roe it also

    goes through diverse mental images triggered by a numerous factors that will take part

    in the unconscious guidance of the architects project.

    Key words: architecture, unconscious, psychoanalysis, shapes