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EDUCAÇÃO: COGNIÇÃO, APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Revista FAEEBA N41.pdf

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EDUCAÇÃO: COGNIÇÃO,

APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO DE

PROFESSORES

REVISTA FINANCIADA COM RECURSOS DA PETROBRAS S.A.

Reitor: José Bites de Carvalho; Vice-Reitora: Carla Liane Nascimento dos SantosDEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretor: Valdélio Santos SilvaPrograma de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC – Coordenador: Eduardo José Fernandes Nunes

GRUPO GESTOREditora Geral: Tânia Regina DantasEditora Executiva: Liége Maria Sitja FornariCoordenadora Administrativa: Noélia Teixeira de MatosCarla Liane N. dos Santos (DEDC I), Eduardo José Fernandes Nunes (PPGEduC), Adailton Ferreira dos Santos, Walter Von Czekus Garrido, Maria Nadija Nunes Bittencourt, Ricardo Baroud (Suplente), Igor Rodrigues de Sant’Ana (discente)

Conselheiros nacionais Antônio Amorim Universidade do Estado da Bahia-UNEBAna Chrystina Venâncio MignotUniversidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJBetânia Leite RamalhoUniversidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRNCipriano Carlos LuckesiUniversidade Federal da Bahia-UFBADalila OliveiraUniversidade Federal de Minas Gerais-UFMGEdivaldo Machado BoaventuraUniversidade Federal da Bahia-UFBAEdla EggertUniversidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOSElizeu Clementino de SouzaUniversidade do Estado da Bahia-UNEBJaci Maria Ferraz de Menezes Universidade do Estado da Bahia-UNEBJoão Wanderley GeraldiUniversidade Estadual de Campinas-UNICAMPJosé Carlos Sebe Bom Meihy Universidade de São Paulo-USPLiége Maria Sitja FornariUniversidade do Estado da Bahia-UNEBMaria Elly Hertz GenroUniversidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGSMaria Teresa Santos CunhaUniversidade do Estado de Santa Catarina-UDESCNádia Hage FialhoUniversidade do Estado da Bahia-UNEBPaula Perin VicentiniUniversidade de São Paulo-USP

Conselheiros internacionaisAdeline BeckerBrown University, Providence, USAAntônio Gomes Ferreira Universidade de Coimbra, PortugalAntónio Nóvoa Universidade de Lisboa- PortugalCristine Delory-MombergerUniversidade de Paris 13 – FrançaDaniel SuarezUniversidade Buenos Aires- UBA- ArgentinaEllen Bigler Rhode Island College, USAEdmundo Anibal HerediaUniversidade Nacional de Córdoba- ArgentinaFrancisco Antonio LoiolaUniversité Laval, Québec, CanadaGiuseppe MilanUniversitá di Padova – ItáliaJulio César Díaz ArguetaUniversidad de San Carlos de GuatemalaMercedes VillanovaUniversidade de Barcelona, EspañaPaolo OreficeUniversitá di Firenze - Itália

Robert Evan VerhineUniversidade Federal da Bahia - UFBATânia Regina DantasUniversidade do Estado da Bahia-UNEBWalter Esteves GarciaAssociação Brasileira de Tecnologia Educacional / Instituto Paulo Freire

Coordenadores do n. 41: Profa. Dra. Kátia Maria Santos Mota e Profa. Dra. Valquíria Claudete Machado BorbaRevisão: Luiz Fernando Sarno; Tradução/revisão: Profa. Dra. Valquíria C. M. Borba; Capa e Editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh (“A Luz”, de Carybé – Escola Parque, Salvador/BA); Secretária: Dinamar Ferreira. Bibliotecária: Maura Icléia C. de Castro.

Revista da FAEEBA

Educaçãoe Contemporaneidade

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 01-260, jan./jun. 2014

ISSN 2358-0194 (eletrônico)

ISSN 0104-7043 (impresso)

Qualis A2-Educação

Tiragem: 1.000 exemplares

Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade / Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun., 1992) - Salvador: UNEB, 1992-

Periodicidade semestral ISSN 0104-7043 (impresso) ISSN 2358-0194 (eletrônico)

1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título. CDD: 370.5 CDU: 37(05)

Revista do Departamento de Educação – Campus I(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA) Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cul-tural. Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

ADMINISTRAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc. deve ser dirigida à:

Revista da FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Departamento de Educação I - DEDC Rua Silveira Martins, 2555 - Cabula 41150-000 SALVADOR – BAHIA - BRASILTel. (071)3117.2316E-mail: [email protected]

Normas para publicação: vide últimas páginas.E-mail para o envio dos artigos: [email protected] / [email protected] Site da Revista da FAEEBA: http://www.revistadafaeeba.uneb.br

Indexada em / Indexed in:- REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas - www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic- BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)- Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação- EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP - Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação - Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação. www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html- CLASE - Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoameri-cana - Universidade Nacional Autônoma do México:E-mails: [email protected] e [email protected] / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx- DOAJ - Directory of Open Access Journals- INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la Recherche Scientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr- IRESIE - Índice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Instituto de Inves-tigaciones sobre la Universidad y la Educación - México)- Latindex (Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal)- SEER - Sistema Eletrônico de Editoração de Periódicos- ULRICH’S - Internacional Periodicals Directory.Pede-se permuta / We ask for exchange.Este número teve o apoio da Editora da Universidade do Estado da Bahia para impressão.

Editora da Universidade do Estado da Bahia - EDUNEBRua Silveira Martins, 2555 - Cabula - 41150-000 - Salvador - Bahia - Brasil - Fone: +55 71 3117-5342

[email protected] - [email protected] - www.eduneb.uneb.br

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 1-260, jan./jun. 2014

S U M Á R I O9 Editorial

10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA Educação e Contemporaneidade

EDUCAÇÃO: COGNIÇÃO, APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

15 Apresentação Kátia Maria Santos Mota e Valquíria C. M Borba

19 Leitura e escritura: processos cognitivos, aprendizagem e formação de professores Valquíria C. M. Borba; Monalisa dos Reis Aguiar Pereira; Adelino Pereira do Santos

27 A Neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

41 Vivência e afetação na sala de aula: um diálogo entre Vigotski e Espinosa Eliana de Sousa Alencar Marques; Maria Vilani Cosme de Carvalho

51 Repercussões de descobertas neurocientíficas ao ensino da escrita Ronei Guaresi

63 Cognoteca: uma alternativa para o exercício de habilidades cognitivas, emocionais e sociais no contexto escolar Daniela Karine Ramos

77 O impacto do bi/multilinguismo sobre o potencial criativo em sala de aula - uma abordagem via teoria dos sistemas dinâmicos Márcia Cristina Zimmer; Ubiratã Kickhöfel Alves

91 A compreensão leitora e o processo inferencial em turmas do nono ano do Ensino Fundamental Francisco Jailson Dantas de Oliveira; Maria Inez Matoso Silveira

105 Leituras compartilhadas, memória e envelhecimento Kátia Maria Santos Mota; Aurea da Silva Pereira; Maria Emília Oliveira de Santana Rodrigues

117 Literatura na Formação de Professoras: Presente! Lícia Maria Freire Beltrão; Mary de Andrade Arapiraca

129 Modelos de formação para o ensino da escrita em Portugal e no Brasil. Luísa Álvares Pereira; Luciana Graça; Anderson Carnin

139 Aprendizagem profissional e políticas para formação continuada de professores: um estudo de caso Rosimar Serena Siqueira Esquinsani; Valdocir Antonio Esquinsani

149 Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática Marcia Cristina Nagy; Márcia Cristina de Costa Trindade Cyrino

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 1-260, jan./jun. 2014

253 Normas para publicação

ESTUDOS

RESUMOS DE TESES E DISSERTAÇÕES

165 Aprendizagem, ensino e desenvolvimento profissional docente na universidade: desafios, perspectivas e trajetórias de mudança Sandra Regina Soares; Flávia Vieira

179 Profissão professor: modos de gerenciar a docência em tempos de inclusão Gisele Ruiz Silva

191 Las concepciones implícitas de los profesores universitarios sobre los requisitos para el aprendizaje Iron Pedreira Alves; Juan Ignacio Pozo

205 Desenvolvimento Profissional Docente e Narrativas em diferentes momentos da formação e atuação Rosa Maria Moraes Anunciato de Oliveira; Renata Prenstteter Gama

223 Pierre Bourdieu: da “ilusão” à “conversão” autobiográfica Maria da Conceição Passeggi

237 Educação e Direitos Humanos numa Perspectiva Intercultural Maria Elly Herz Genro; Jaime José Zitikoski

249 Narrando o exame Celpe-Bras e o convênio PEC-G: a construção de territorialidades em tempos de internacionalização Ana Cecília Cossi Bizon

250 Fluências lexicais africanas e afro-brasileiras no processo de construção identitária dos estudantes da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos Lise Mary Arruda Dourado

251 A leitura-estar-no-mundo e a constituição do sujeito-leitor Rosemary Lapa Oliveira

252 De volta ao inferno – um caso de tradução intersemiótica entre literatura e videogame Marcos Paulo Lopes Pessoa

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 1-260, jan./jun. 2014

C O N T E N T S

11 Editorial

12 Themes and Submission Terms for the Upcoming Issues of Journal of FAEEBA – Education and Contemporaneity

15 Presentation Kátia Maria Santos Mota e Valquíria C. M. Borba

19 Reading and writing: cognitive processes, learning and teacher training Valquíria C. M. Borba; Monalisa dos Reis Aguiar Pereira; Adelino Pereira do Santos

27 Neuroscience findings and teacher training: a study of Brazilian reality Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

41 Experience and affectation in the classsroom: a dialogue between Vygotsky and Espinosa Eliana de Sousa Alencar Marques; Maria Vilani Cosme de Carvalho

51 Repercussions of neuroscientific findings for teaching writing Ronei Guaresi

63 Cognoteca: an alternative to exercise cognitive, emotional and social skills at school Daniela Karine Ramos

77 The role played by bi/multilingualism in creativity in the classroom – a dynamic approach Márcia Cristina Zimmer; Ubiratã Kickhöfel Alves

91 Reading comprehension and the inferential process in the elementary school´s ninth grade Francisco Jailson Dantas de Oliveira; Maria Inez Matoso Silveira

105 Shared readings, memory and aging Kátia Maria Santos Mota; Aurea da Silva Pereira; Maria Emília Oliveira de Santana Rodrigues

117 Literature and teacher training: present!!! Lícia Maria Freire Beltrão; Mary de Andrade Arapiraca

129 Training models for teaching writing in Portugal and in Brazil Luísa Álvares Pereira; Luciana Graça; Anderson Carnin

139 Apprenticeship and policies for continuous training of teachers: a case study Rosimar Serena Siqueira Esquinsani; Valdocir Antonio Esquinsani

149 Mathematics teachers in a community of practice and learning Marcia Cristina Nagy; Márcia Cristina de Costa Trindade Cyrino

165 Learning, education and teaching professional development in the university: challenges, perspectives and changing trajectories Sandra Regina Soares; Flávia Vieira

EDUCATION: COGNITION, lEARNING AND TEAChER FORMATION

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 1-260, jan./jun. 2014

257 Instructions for publication

179 The teaching profession: some ways of managing teaching in times of inclusion Gisele Ruiz Silva

191 The implicit conceptions of university professors about the requirements for learning Iron Pedreira Alves; Juan Ignacio Pozo

205 Professional development of teachers and narratives at different times at teacher education Rosa Maria Moraes Anunciato de Oliveira; Renata Prenstteter Gama

223 Pierre bourdieu: from “illusion” to autobiographical “conversion” Maria da Conceição Passeggi

237 Human rights education from an intercultural perspective Maria Elly Herz Genro; Jaime Zitikoski

ThESIS AND DISSERTATION ABSTRACTS

249 Celpe-Bras and PEG-G: the building of territorialities in times of internationalization Ana Cecília Cossi Bizon

250 African and Afro-Brazilian lexicon in the process of students’ identity construction at “Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos” Lise Mary Arruda Dourado

251 The being-in-the-world Reading and the constitution of the reading subject Rosemary Lapa Oliveira

252 Back to the inferno – a case of intersemiotic translation between literature and videogame Marcos Paulo Lopes Pessoa

9Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, jan./jun. 2014

EDITORIAl

O número temático 41 da Revista da FAEEBA-Educação e Contemporaneidade explo-ra um tema complexo e atual que se impõe ao debate acadêmico na contemporaneidade, abarcando o campo da neurociência cognitiva na área educacional. Oportunamente, esta publicação põe em destaque a relevância desse tema para a área de formação inicial e continuada de professores e, ainda, evidencia a necessidade de se incrementar a pesquisa nesse campo de conhecimento que possa contribuir decisivamente, dentre outros aspectos, para incluir esta discussão nas matrizes curriculares e fortalecer a prática pedagógica.

O tema da cognição e da natureza da aprendizagem humana não é recente, tendo desafiado diversos pensadores desde a Grécia antiga. Entretanto, foi o surgimento da ciência cognitiva que proporcionou o aprofundamento dos principais temas desse novo campo, como a natureza da relação mente-cérebro, da linguagem e da mente, as pes-quisas em inteligência artificial e as contribuições desse conhecimento para as novas formas de cognição.

A Filosofia, nesse novo cenário de ampliação das ciências cognitivas, propôs uma linha de pesquisa designada como “Filosofia da Mente”. No âmbito da Filosofia da mente os temas da neuroética e da neuromoral, têem contribuído para investigar a relação e os limites entre a neurofisiologia do cérebro e as escolhas que fazemos. No campo do Direito, organizou-se uma linha de pesquisa designada como Neurodireito, que se preocupa com a relação entre neurobiologia e a estrutura psíquica da norma. Se para esses campos não é mais possível desconsiderar a importância da relação cérebro-conhecimento-atitudes, a afirmação torna-se mais verdadeira para a Educação.

Os estudos atuais advindos da psicologia cognitiva e do avanço da neurociência levam ao reconhecimento da complexidade do ser humano, levando a uma nova visão sobre a relação cérebro-linguagem-conhecimento, diferente daquela linear e mecanicista, pois os estudos e pesquisas nessas áreas mostram a importância de considerar a interação entre os aspectos biológicos, ambientais e interacionais.

Os artigos reunidos neste número chegam ao público logo depois da Revista da FAEEBA ter coordenado com êxito, no período de 22 a 23 de abril do corrente, o VI Encontro dos Editores de Periódicos da Área de Educação das Regiões Norte e Nordeste, objetivando discutir a política editorial e o acesso aberto, com a participação de edito-res de dez estados, no intuito de intercambiar experiências contextualizadas e atualizar conhecimentos de editoração na área educacional.

Neste número entregamos aos leitores um conjunto de textos que, de forma original e consistente, enfrentaram o desafio da pesquisa sobre a relação entre cognição e apren-dizagem. Boa leitura!

Tânia Regina DantasEditora Geral da Revista da FAEEBA

Liége Maria Sitja Fornari Editora Executiva da Revista da FAEEBA

10 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, jan./jun. 2014

Enviar textos para Liége Fornari: [email protected] / [email protected] /[email protected]

Nº Tema

Alfredo Eurico Rodrigues Matta Maria Olívia Matos Oliveira

Junho de 2015

Dezembro de 2015

Dezembro de 201430.05.2014

30.10.2014

30.05.2015

Educação, Mídias e Design Pedagógico

Educação Popular

Educação à Distância

Prazo de entrega dos artigos Lançamento previsto Coordenadores

42

43

44

Luciano Sérgio Ventin BomfimEduardo José Fernandes Nunes

Mary Valda Souza SalesEmanuel do Rosário dos

Santos Nonato

11Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, jan./jun. 2014

This 41st edition of the Journal of FAEEBA – Contemporary Education explores a complex and contemporary theme that has become an important issue in the academic field nowadays, the cognitive neuroscience and education. This edition luckily empha-sizes the relevance of this theme for teacher training and continuous education and it also shows the need to increase research in this field in order to contribute decisively, among other things, to include this discussion in the curricula and to strengthen the pedagogical practice.

The theme of cognition and the nature of human learning are not recent; they have been a challenge to various thinkers since Ancient Greece. However, it was the emer-gence of Cognitive Science that has led to a further study of the main themes in this new field as the nature of the relationship mind-brain, of language and of mind, the artificial intelligence research, and the contributions of this knowledge to the comprehension of the acquisition of knowledge.

The Philosophy, in this new era of expansion of cognitive sciences, proposed a new line of research named “Philosophy of Mind”. In this field of Philosophy of mind, themes as neuroethics and neuromoral have contributed to investigate the limits be-tween the brain neurophysiology and our choices. In the field of Law, there is a line of research named Neurolaw that studies the relationship between neurophysiology and the psychic structure of standards. Once in these fields it is not possible to disregard the importance of the relationship among brain-knowledge-attitudes, the more this is true for education.

Recent studies from cognitive psychology and from advances in neuroscience led to the recognition of the complexity of the human being, resulting in a new way of viewing the relationship among brain-language-knowledge, somewhat different from the one that was linear and mechanistic. Studies and researches in these areas show how important it is to understand the relationship among biological, environmental and interactional aspects.

The papers in this issue reach out to the public shortly after the Journal of FAEEBA successfully coordinated, on April 22 and 23, the VI Encontro dos Editores de Periódicos da Área de Educação das Regiões Norte e Nordeste, which was aimed at discussing the editorial policies and the open access. Editors from ten states participated from the event, exchanging experiences and knowledge of publishing in the educational area.

We deliver to our readers in this edition a set of texts that, in an original and con-sistent manner, faced the challenge of researching the relationship between cognition and learning.

Enjoy your reading!

Tânia Regina Dantas – General EditorLiége Maria Sitja Fornari – Executive Editor

12 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, jan./jun. 2014

Email papers to Liége Fornari: [email protected] / [email protected] /[email protected]

Nº Theme

Alfredo Eurico Rodrigues Matta Maria Olívia Matos OliveiraDecember 2014

December 2015

05.30.2014Education, Media and Pedagogical Design

Popular Education

Distance Education

Submission deadline Publication date Coordinators

42

43 Luciano Sérgio Ventin BomfimEduardo José Fernandes NunesJune 201510.30.2014

05.30.201544Mary Valda Souza SalesEmanuel do Rosário dos

Santos Nonato

EDUCAÇÃO: COGNIÇÃO,

APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO DE

PROFESSORES

15Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 15-18, jan./jun. 2014

Kátia Maria Santos Mota e Valquíria C. M. Borba

Neste século XXI, com a evolução tecnológica, que permite o acesso aos processos cognitivos envolvidos na aprendizagem, possibilitando analisar e compreender como o conhecimento se dá em termos neurocientíficos, fisiológicos, e que fatores influenciam no processamento da informação, na aprendizagem, os educadores têm a tarefa de estudar, pesquisar e se atualizar a partir desses novos parâmetros de estudo. Não há mais como o educador negar os estudos neurocientíficos, a relação entre o funcionamento do cérebro e a aprendizagem. A partir desse contexto, neste número 41 trazemos estudos que discutem questões voltadas para o debate em torno da cognição, da aprendizagem e da formação de professores. Tendo em vista a discussão proposta nesta edição – Cognição, Apren-dizagem e Formação de Professores –, o primeiro artigo Leitura e escritura: processos cognitivos, aprendizagem e formação de professores, de Valquíria Claudete Machado Borba, Monalisa dos Reis Aguiar Pereira e Adelino Pereira dos Santos, traça um breve panorama das contribuições de pesquisas sobre os processos cognitivos envolvidos na aprendizagem da leitura e da escritura com base nos pressupostos científicos da neuro-ciência, enfatizando a importância desses conhecimentos para uma prática pedagógica mais significativa no desenvolvimento da leitura e da escritura.

No artigo A Neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira, Márcia Gorett Ribeiro Grossi, Aline Moraes Lopes e Pablo Alves Couto discutem a importância de perceber os fundamentos sobre neurobiologia cognitiva, necessários no processo ensino e aprendizagem, e apresentam dados de pesquisa que verificaram se os cursos de Pedagogia e dos Programas Especiais de Formação Pedagógica de docentes no Brasil têm incorporado em suas propostas pedagógicas os conhecimentos sobre a neurociência, mostrando resultados que permitem afirmar que a neurociência cognitiva na área educacional ainda não é uma realidade. Refletindo sobre as contribuições de Lev Semionovich Vigotski e Baruch de Espinosa, no texto Vivência e afetação na sala de aula: um diálogo entre Vigotski e Espinosa, Eliana de Sousa Alencar Marques e Maria Vilani Cosme de Carvalho aprofundam suas reflexões em torno da teoria de Vigotski, e revelam que ele encontrou em Espinosa a sustentação filosófica que explica a relação afeto e intelecto no desenvolvimento do psiquismo humano. A partir disso, as autoras propõem um diálogo entre Vigotski, por meio da categoria vivência, e Espinosa, a partir da categoria afetação.

No estudo Repercussões de descobertas neurocientíficas ao ensino da escrita, Ronei Guaresi explora descobertas das neurociências com alguma implicação com a educação, em especial com a aquisição e o aprendizado da escrita. De acordo com o linguista, o advento das tecnologias permitiu ampliar substancialmente o funcio-namento da linguagem no cérebro humano, como se aprende, processa, evoca ou se esquece o conhecimento verbal. A partir disso, Guaresi discute e especula sobre as seguintes questões: como se aprende? O que impede ou prejudica no processo de aprender coisas novas e aperfeiçoar conhecimentos que já se tem? Como o professor pode facilitar ou dificultar o aprendizado de seus alunos? O autor defende a conside-ração de achados neurocientíficos no ensino de língua materna e reflexão da matriz curricular dos cursos de licenciatura.

Em Cognoteca: uma alternativa para o exercício de habilidades cognitivas, emo-cionais e sociais no contexto escolar, Daniela Karine Ramos, a partir da concepção de cognoteca, um acervo de materiais e jogos que exercitam habilidades emocionais,

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Apresentação

cognitivas e sociais, que permite a proposição de atividades curriculares e extracur-riculares, contribuindo para fortalecer o enfoque globalizador de educação, apresenta os jogos cognitivos como recurso didático ao exercício dessas habilidades. Seu estudo partiu da proposição de atividades na cognoteca e observações realizadas no atendi-mento de turmas do Ensino Fundamental.

No artigo O impacto do bi/multilinguismo sobre o potencial criativo em sala de aula – uma abordagem via teoria dos sistemas dinâmicos, Márcia Cristina Zimmer e Ubiratã Kickhöfel Alves, a partir de uma perspectiva de aquisição de linguagem baseada na Teoria dos Sistemas Dinâmicos, destacam o impacto do bi/multilinguismo na construção do conhecimento, focalizando, principalmente, as questões referentes ao controle executivo e ao potencial criativo dos aprendizes bi/multilíngues. Os au-tores, com base na discussão teórica apresentada, recomendam que se reflita sobre o papel da escola, bem como os desafios enfrentados pelo educador frente à tarefa de construção colaborativa de conhecimento.

Francisco Jailson Dantas de Oliveira e Maria Inez Matoso Silveira, no artigo A compreensão leitora e o processo inferencial em turmas do nono ano do Ensino Fun-damental, tendo em vista os baixos níveis de compreensão leitora entre estudantes da escola básica no Brasil, principalmente em Alagoas, verificaram a compreensão de textos e o uso do processo inferencial entre estudantes do nono ano do ensino funda-mental, em três escolas públicas e três escolas particulares de Maceió (AL), durante o 2º semestre de 2012. Conforme os dados da pesquisa, os autores encontraram um nível elevado de déficit na compreensão leitora de estudantes das escolas públicas, significativamente maior do que dos estudantes das escolas particulares, sendo que nestas houve maior problema com questões que demandavam ativação do conhecimento prévio para consolidar as estratégias inferenciais, essenciais à leitura fluente e produtiva.

O texto intitulado Leituras compartilhadas, memória e envelhecimento, de autoria de Kátia Maria Santos Mota, Áurea da Silva Pereira e Maria Emília O. de Santana Rodrigues, discute a problemática memória e envelhecimento e apropria-se das prá-ticas de leitura literária como uma atividade propulsora da socialização de eventos pessoais / coletivos, os quais contribuem para o fortalecimento das identidades e da solidariedade em um grupo de leitoras idosas. As limitações da memória indicam ser minimizadas a partir das (re)descobertas da leitura do texto literário e do reconheci-mento de si nas trajetórias de vida.

Lícia Beltrão e Mary Arapiraca, ao produzirem o artigo Literatura na formação de professoras: presente!, nos apresentam uma possibilidade de encarar a formação docente em toques mágicos, conciliando cognição e afeto, razão e coração. A proposta em foco não se sustenta em pilares metodológicos preconcebidos; ao contrário, as autoras acreditam no respeito à liberdade das professoras no sentido de avançar nos seus conhecimentos pedagógicos em consonância com a verdade do seu ser, da auten-ticidade do seu jeito de ser professora. Apostam, assim, no convívio com a linguagem literária como uma oportunidade de se quebrar as amarras dos conhecimentos rígidos e de experimentar as imprevisibilidades fantasiosas do universo de aprendizagens no mundo ficcional.

Os autores Luísa Álvares Pereira, Luciana Graça e Anderson Carnin se preocu-pam com as políticas educacionais concernentes à formação docente para o ensino da escrita. No artigo intitulado Modelos de formação para o ensino da escrita em Portugal e no Brasil, apresentam suas concepções referentes à temática em discussão e fazem uma reflexão sobre três projetos realizados em Portugal e no Brasil. Por meio

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Kátia Maria Santos Mota e Valquíria C. M. Borba

de uma análise comparativa dos três modelos de formação docente, identificam as dimensões responsáveis pelos resultados positivos dos projetos em foco, dentre as quais destacamos a integração entre professores e investigadores e a adoção de um modelo formativo centrado na ação didática.

A partir da realização de uma pesquisa na rede pública municipal de ensino, no in-terior do Rio Grande do Sul, os autores Rosimar Serena Siqueira Esquinsani e Valdocir Antonio Esquinsani desenvolvem uma reflexão sobre as avaliações dos professores acerca dos eventos de formação continuada nos quais atuaram. A partir dos resultados encontrados, ao longo de quinze anos de pesquisa, o artigo intitulado Aprendizagem profissional e políticas para formação continuada de professores: um estudo de caso defende a formação continuada como qualificação profissional, tomando como base a cognição e aprendizagem do adulto/profissional em prol do aprimoramento e (re)significação do ato pedagógico.

Tomando como cenário pedagógico a formação de uma comunidade de prática na qual se busca compreender e compartilhar as aprendizagens relacionadas ao conheci-mento profissional do professor, o artigo Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática, de autoria de Marcia Cristina Nagy e Márcia Cristina de Costa Trindade Cyrino, analisa a atuação de nove professoras nesse processo formativo. Trata-se de uma experiência de formação continuada, com ênfase na produção de relatos e análises de relatos do desenvolvimento de tarefas em sala de aula. Os processos de partilha, análise e reflexão em um ambiente colaborativo permitiram que as professoras repensassem e modificassem suas práticas de ensino de matemática.

Preocupadas em refletir sobre a docência universitária, na intenção de propor recon-figurações para a formação docente à luz de um referencial humanista e democrático, Sandra Regina Soares e Flávia Vieira apresentam o artigo Aprendizagem, ensino e desenvolvimento profissional docente na universidade: desafios, perspectivas e tra-jetórias de mudança. Duas experiências na docência universitária, em Portugal e no Brasil, são analisadas positivamente em decorrência de se constituírem em políticas institucionais que incentivam e apoiam o caráter de indagação e de transformação da docência crítica. As autoras acreditam que podemos desenvolver modos solidários de trabalho acadêmico, associados às rotinas educacionais mais coerentes com o ser/fazer docente na perspectiva emancipatória da sociedade.

No artigo intitulado Profissão professor: modos de gerenciar a docência em tempos de inclusão, a autora Gisele Ruiz Silva analisa o discurso da inclusão escolar a partir do perfil de docência que caracteriza o professor-inclusivo. Toma como objeto de análise reportagens da Revista Nova Escola (2008-2013), fazendo o mapeamento das enunciações discursivas no decorrer desse período. Os resultados apontam para uma mudança do foco da discursividade na qual a inclusão deixa de ser uma possibilidade e passa a ser uma realidade escolar mais natural, centralizando-se na postura docente com características que proporcionam estratégias pedagógicas que permitem envolver todos os alunos, independente das suas especificidades.

Pensando nas concepções dos professores universitários sobre a relação entre os requisitos para a aprendizagem apresentados pelos alunos e a aprendizagem das dis-ciplinas, Iron Pedreira Alves e Juan Ignacio Pozo, em Las concepciones implícitas de los profesores universitarios sobre los requisitos para el aprendizaje, analisam essa relação com base nas teorias implícitas sobre ensino-aprendizagem, e avaliam as di-ferenças entre as concepções de professores de psicologia da educação e professores de outras disciplinas de cursos de formação docente.

18 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 15-18, jan./jun. 2014

Apresentação

Baseadas em experiências de uma pesquisa colaborativa, as autoras Rosa Maria Moraes Anunciato de Oliveira e Renata Prenstteter Gama apresentam o artigo Desen-volvimento profissional docente e narrativas em diferentes momentos da formação e atuação, no qual relatam a atuação dos participantes da pesquisa na produção de narrativas de processos formativos. As escritas dos participantes, complementadas com a transcrição das filmagens dos encontros presenciais, foram analisadas pelo grupo nos momentos de leitura, discussão e problematização das questões emergentes em referência à docência. A análise coletiva das narrativas resultou em revisões de crenças e atitudes, assim como de reelaboração de saberes, habilidades e competências. Os espaços das universidades são valorizados como promotores da formação docente, inicial e continuada, com ênfase na abordagem reflexiva em grupos colaborativos.

A seção “Estudos” apresenta dois artigos. O ensaio produzido por Maria da Con-ceição Passeggi, Pierre Bourdieu: da “ilusão” à “conversão” autobiográfica, analisa três produções de Bourdieu no sentido de demarcar a trajetória do autor em referência aos estudos biográficos. Passeggi analisa o pensamento bourdieusiano, seguindo o percurso cronológico das obras, em três momentos: iniciando com a “crítica” às histórias de vida, passando pela postura de “adesão” ao método biográfico e, final-mente, chegando à sua “conversão” ao autobiográfico. O segundo artigo, Educação e direitos humanos numa perspectiva intercultural, de Maria Elly Herz Genro e Jaime Zitkoski, apresenta reflexões sobre Direitos Humanos numa perspectiva intercultural relacionada aos aspectos políticos e filosóficos no âmbito educacional. Conforme os autores, é necessário o fortalecimento da temática dos Direitos Humanos na educação, tendo em vista o contexto social de atuação de cada docente em sua prática educativa e sua reflexão pautada por perspectivas sociais, políticas e filosóficas, e destacam a urgência de ressignificar a concepção de Direitos Humanos a partir da perspectiva intercultural e emancipatória da realidade educacional.

Ainda neste número, trazemos três resumos de pesquisas desenvolvidas no âmbito do doutorado e uma no do mestrado. O resumo de tese de Ana Cecília Cossi Bizon refere-se à pesquisa Narrando o exame Celpe-Bras e o convênio PEC-G: a construção de territorialidades em tempos de internacionalização. O resumo de tese de Lise Mary Arruda Dourado apresenta a síntese da pesquisa sobre Fluências lexicais africanas e afro-brasileiras no processo de construção identitária dos estudantes da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos. E, por fim, o resumo de tese de Rosemary Lapa Oliveira apresenta o seu trabalho sobre A leitura-estar-no-mundo e a constituição do sujeito-leitor. A dissertação de Marcos Paulo Lopes Pessoa, intitulada De volta ao inferno – um caso de tradução intersemiótica entre literatura e videogame, se propôs a investigar o processo de tradução entre literatura e videogame.

Agradecemos a todos que enviaram seus artigos – publicados ou não –, bem como aos pareceristas e demais colaboradores desta edição. Esperamos que os textos aqui reunidos contribuam para a discussão em torno da temática cognição, aprendizagem e formação de professores e suscitem novas reflexões, colaborando com a área da educação e com o fortalecimento dos estudos advindos da neurociência e das reflexões sobre os processos envolvidos na aprendizagem nos cursos de formação de professores.

Boa leitura!!!

Kátia Maria Santos MotaValquíria C. M. Borba

19Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 19-26, jan./jun. 2014

Valquíria Claudete Machado Borba; Monalisa dos Reis Aguiar Pereira; Adelino Pereira dos Santos

lEITURA E ESCRITURA: PROCESSOS COGNITIVOS,

APRENDIZAGEM E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Valquíria Claudete Machado Borba∗

Monalisa dos Reis Aguiar Pereira∗∗

Adelino Pereira dos Santos∗∗∗

RESUMO

Este artigo tem por objetivo geral traçar um breve panorama das contribuições de pesquisas sobre os processos cognitivos envolvidos na aprendizagem da leitura e da escritura com base nos pressupostos científicos da neurociência, enfatizando a importância desses conhecimentos para uma prática pedagógica mais significativa no desenvolvimento da leitura e da escritura. Para isso, buscamos na teoria conexionista os conceitos fundamentais para a compreensão da perspectiva neurocientífica de aquisição da linguagem.

Palavras-chave: Processos cognitivos. Leitura. Escritura. Prática pedagógica.

ABSTRACT

READING AND wRITING: COGNITIvE PROCESSES, LEARNING AND TEAChER TRAINING

This paper aims to present a general view of the contributions and researches on cognitive processes of reading and writing learning based on neuroscience and emphasizing the importance of this knowledge for meaningful pedagogical practice on the development of reading and writing. For that, we bring fundamental concepts for comprehending the neuroscience perspective of language acquisition according to the connectionist approach.

Keywords: Cognitve processes. Reading. Writing. Pedagogical practice.

∗ Doutora em Letras e Linguística. Professora Adjunta do curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus I. Professora do Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) do Campus V da UNEB. Líder do Grupo de Estudos em Educação e Linguagem (GEEL/UNEB). Endereço para correspondência: Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, Salvador – BA. CEP: 41150-000. [email protected]∗∗ Doutora em Letras. Professora Assistente do curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus I. Professora do Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) do Campus V da UNEB. Líder do Grupo de Estudos em Educação e Linguagem (GEEL/UNEB). Endereço para correspondência: Rua Silveira Martins, 2555, Cabula, Salvador – BA. CEP: 41150-000. [email protected]∗∗∗ Doutor em Letras. Professor Adjunto do curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus V. Professor e coordenador do Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) do Campus V da UNEB. Endereço para correspondência: Loteamento Jardim Bahia s/n, Santo Antônio de Jesus – BA. CEP: 44574-005. [email protected]

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Leitura e escritura: processos cognitivos, aprendizagem e formação de professores

Introdução

Nas últimas décadas, os estudos neurocientíficos avançaram muito e, hoje, temos um conhecimento profundo do funcionamento do cérebro, consequen-temente, da aquisição da linguagem, dos processos cognitivos envolvidos no desenvolvimento da lei-tura e da escritura1. E, a partir dessa compreensão, estudos têm sido realizados sobre a aprendizagem da leitura e da escritura, visando verificar estraté-gias que facilitem o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Para nossa discussão, trazemos dados de alguns estudos da última década sobre leitura e escritura, com base no paradigma conexionista, que concebe a aprendizagem como o estabelecimento de novas conexões neuroniais, tendo como objetivo traçar um breve panorama das investigações sobre as relações entre cognição e aquisição do conhecimento, mais especificamente da leitura e da escritura.

As pesquisas atuais apontam para a importância do vínculo dos estudos da educação e da linguística com os achados da neurociência, possibilitando um arcabouço teórico e metodológico para a investi-gação da cognição, visando o desenvolvimento de estratégias de ensino-aprendizagem mais eficazes. Iniciamos, então, nossa discussão com um rápido panorama das ciências da cognição. Abordamos, em seguida, a importância dos estudos conexio-nistas e das pesquisas sobre leitura e escritura com base nas descobertas da neurociência, mostrando suas contribuições para o ensino-aprendizagem da leitura e da escritura. Nessas pesquisas, os estudos sobre memória, aprendizagem de língua materna e de língua estrangeira, estratégias de ensino da leitura e da escritura, tipo de instrução, questões como o papel da atenção, da emoção, da motivação, da interação, do objetivo, da frequência e da regu-laridade da experiência com a leitura e a escritura têm sido amplamente discutidos por vários autores como Poersch e Rossa (2007), Castro (2004, 2007a, 2007b), Zimmer (2006), Borba (2013), Floriani (2007), Sigot (2007), Gabriel (2006), Guaresi (2007), Metring (2011), Cosenza e Guerra (2011),

1 Usamos o termo “escritura” por compreender que tratamos do processo do ato de escrever, que envolve diversos fatores, sendo a análise desses fatores, qualquer conhecimento, procedimento ou fator envolvido nele, objeto de nossos estudos.

Dahene (2012), entre outros tantos. Ao tratarmos dos estudos sobre aquisição do conhecimento, todos esses aspectos são importantes, e muitas pes-quisas que aliam cognição e ensino-aprendizagem têm servido como parâmetro para reflexões sobre o processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escritura. Apesar de já haver ampla literatura relacionando neurociência e ensino, tendo em vista, principalmente, o processo de ensino-aprendiza-gem da leitura e da escritura nas escolas, ainda há pouco conhecimento por parte dos professores dessa perspectiva teórica, refletindo sua formação, na qual esse arcabouço teórico é pouco discutido.2 Para início da reflexão proposta, vejamos as ciên-cias da cognição.

Ciências da cognição

Ao estudarmos o conhecimento, como ele acontece, é preciso ter claro a partir de que pa-radigma da cognição partirmos, pois, conforme nossa filiação teórica, teremos uma compreensão diferente dos processos analisados. No nosso es-tudo, o paradigma conexionista serve de base para nossas reflexões.

Dentre os paradigmas da cognição, destacamos três: o behaviorista, o simbólico ou cognitivista e o conexionista3.

No paradigma behaviorista, conforme Rossa (2004 apud BORBA, 2013, p. 31), “[...] a lingua-gem é vista como um produto decorrente de um estímulo. Assim, a aprendizagem de uma língua resume-se, nesse paradigma, ao aprendizado de um conjunto de hábitos, compreendendo um sistema de estímulo, resposta e reforço”. “O behaviorismo é um paradigma neuronial, negando a existência da mente” (TEIXEIRA, 1998 apud BORBA, 2013, p. 31).

O paradigma simbólico ou cognitivista enfatiza o papel da mente na aquisição do conhecimento, distinguindo a mente do cérebro como realidades distintas, ou seja, a linguagem (realidade física) serve para expressar o pensamento (realidade 2 A esse respeito, indicamos a leitura do artigo “Neurociências e edu-

cação: uma articulação necessária na formação docente” (HAMMES DE CARVALHO, 2011).

3 Para uma leitura mais detalhada sobre estes paradigmas da cognição, leia o primeiro capítulo do livro Instrução e produção textual: um estudo com contos de assombração (BORBA, 2013).

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Valquíria Claudete Machado Borba; Monalisa dos Reis Aguiar Pereira; Adelino Pereira dos Santos

mental). Para Poersch (1998, p. 40), a “idéia bási-ca da linguagem simbólica é a de que a cognição humana depende centralmente da manipulação de representações simbólicas (processadas em série) através de processos semelhantes a regras”. Esse paradigma é baseado no inatismo, teoria da aqui-sição da linguagem de orientação racionalista, e na linha filosófica do dualismo. O ambiente, nesse paradigma, apresenta um papel muito menor na maturação da linguagem, pois esta viria de uma base genética principal (BORBA, 2013).

Já o paradigma conexionista busca “[...] explicar os processos mentais com base em configurações estabelecidas ‘a doc’ nas redes neuroniais. Pleiteia a elaboração de configurações internas com base em processamento de distribuição em paralelo. Ad-quirir conhecimento é estabelecer novas conexões neuroniais” (POERSCH, 1998, p. 40).

Ao falarmos de aprendizagem, vemos, então, que, no paradigma behaviorista, há ênfase no sen-tido / na experiência, na observação e imitação. No paradigma simbólico, acredita-se no inatismo, nasceríamos com uma gramática universal, que afloraria a partir dos estímulos, considerados po-bres para um aprendizado da língua em tão pouco tempo.4 Ainda neste paradigma, os conceitos são arquivados de forma estanque no cérebro, em forma de símbolos prontos e localizados. A respeito disso, o paradigma conexionista contrapõe-se, pois, nessa perspectiva, com base nos estudos da neurociên-cia, o conhecimento se dá a partir dos estímulos recebidos, considerados ricos, em configurações estabelecidas ad hoc5 nas redes neuroniais, havendo um processamento distribuído em paralelo, em que as informações recuperadas são diretamente relacionadas à experiência de cada pessoa, sendo sempre diferente, mas apresentando traços comuns que possibilitam a comunicação. A aprendizagem se dá, assim, por meio de processos associativos neuroniais (BORBA, 2013). E, para que os proces-sos associativos neuroniais ocorram, vários fatores estão envolvidos: conhecimento prévio, emoção,

4 Nesse paradigma, considera-se que a língua é muito complexa e que não seria possível um bebê aprender em tão exíguo tempo a sua estrutura e usos. Por isso a crença em uma gramática universal, em um dispositivo genético, inato, que afloraria, permitindo, assim, a aquisição linguística pela criança em um tempo considerado curto, os primeiros anos de vida.

5 No momento da enunciação.

atenção, objetivo, frequência e regularidade da experiência, interação etc.

Nessa direção, a neurociência amplia a com-preensão dos aspectos cognitivos e biológicos que afetam esses processos associativos neuroniais. De posse dos conhecimentos desses aspectos cognitivos e biológicos, várias pesquisas sobre o ensino-aprendizagem da leitura e da escritura têm sido conduzidas. No Brasil, encontramos resultados significativos dessas pesquisas, que trataremos na seção a seguir. É importante ressaltar que ainda há muito mais estudos sobre os processos envolvidos na leitura do que na escritura.

leitura: aspectos cognitivos

Para iniciar esta seção trazemos algumas consi-derações de um artigo de Gabriel (2006) em que a autora questiona o que o corpo/cérebro faz quando se lê, como se dá a relação leitura-compreensão e como avaliar a compreensão leitora. Para a pesquisadora, a decifração, etapa que deve estar superada para um leitor proficiente, é uma “habi-lidade construída através de um longo processo de alfabetização e letramento” (SOARES, 2004 apud GABRIEL, 2006, p. 77), não sendo inata, e sim influenciada pelo processo de letramento, ou seja, a leitura é um produto cultural desde seu primeiro nível. O que diferencia o ser humano das outras espécies, então, é essa capacidade de “construir ou recuperar significados a partir de um conjunto de símbolos ou signos” (GABRIEL, 2006, p. 77). E essa capacidade simbólica, conforme a autora, se desenvolve “à medida que o indivíduo interage em uma sociedade que utiliza de símbolos de diversas naturezas, entre eles a linguagem verbal e escrita” (GABRIEL, 2006, p. 79).

A partir de suas reflexões, Gabriel (2006) pon-tua: a) a diferença entre um leitor proficiente e um principiante, pois o tempo e esforço demandados não são os mesmos; b) os diferentes níveis de compreensão, que dependerão do objetivo, do co-nhecimento prévio, da familiaridade com o código escrito, com o gênero textual etc. A compreensão, para a professora,

[...] prevê a integração de elementos da memória de longo prazo do leitor aos elementos trazidos pelo

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Leitura e escritura: processos cognitivos, aprendizagem e formação de professores

texto [...]. É necessário que o leitor tenha uma atitude ativa de cooperação para a construção da estrutura, a fim de que seja capaz de fazer as devidas inferências, de identificar ironias e, principalmente, de aprender através da leitura. (GABRIEL, 2006, p. 81).

Para que seja capaz de construir significado, atividade de natureza cognitiva, o leitor precisa “ativar os conhecimentos armazenados, processar diferentes tipos de informações (ortográficas, sintá-ticas, semânticas, pragmáticas), relacionar os dados novos aos pré-existentes na memória” (CASTRO, 2007a, p. 85-86). Para isso, várias habilidades são necessárias:

a) linguística: habilidades referentes aos constituintes e ao funcionamento da língua;

b) textual: habilidades relativas à organização das sequências de enunciados que compõem os textos;

c) referencial: habilidades relacionadas às experiên-cias do indivíduo e seu conhecimento prévio;

d) de relação: habilidades relativas às regras envol-vidas nas relações interpessoais, considerando os papéis e intenções dos participantes;

e) situacional: habilidades relativas aos fatores exter-nos (sociais, culturais e circunstanciais) que podem afetar a comunicação. (CASTRO, 2007a, p. 88).

Ainda, a leitura “envolve conhecimento e ex-periência no uso da língua e do sistema pragmá-tico de usos e convenções ligados à comunicação linguística e conhecimentos referentes ao tema do texto” (CASTRO, 2007a, p. 88), assim como a identificação da temática e reconhecimento das relações entre as sequências do texto, diferenciando os tipos e categoria textuais.

Todas essas informações sobre o que envolve a leitura, a compreensão leitora, vão ao encontro do que é proposto no paradigma conexionista, ou seja, a leitura é “basicamente uma questão de processamento, cuja eficiência vai depender da ex-periência lingüística do indivíduo. Essa experiência é a responsável, em última instância, pelo rápido acesso – e ativação – da informação já codificada em nodos neuroniais” (ZIMMER, 2006, p. 55).

Tratando em termos cognitivos, podemos dizer, então, com base em Zimmer, Blatskowski e Gomes (2004), que a leitura é atividade subdividida em seis áreas de habilidades e conhecimento:

a) habilidades automáticas de reconhecimento de palavras;

b) conhecimento estrutural e de vocabulário;

c) conhecimento acerca da estrutura formal do discurso;

d) conhecimento prévio de mundo;

e) habilidades de síntese e avaliação;

f) conhecimento metacognitivo e de monitoramento de habilidades.

Ainda, um leitor proficiente integra natural-mente as estratégias ascendente (bottom-up) e descendente (top-down) de leitura, conforme seus objetivos e necessidades, compensando as defici-ências em um nível por meio de conhecimentos construídos a partir de outros níveis – como o conhecimento do contexto (ZIMMER; BLATSKO-WSKI; GOMES, 2004).

Numa perspectiva conexionista, de acordo com Zimmer, Blatskowski e Gomes (2004), ao tratarmos da leitura, é preciso compreender que:

a) A compreensão leitora resulta da integração si-multânea entre diferentes níveis de processamento da informação;

b) Há interatividade entre o processamento simultâ-neo de diferentes estímulos, como o visual, traduzido no sistema de escrita alfabético, o fonológico e o semântico;

c) Efeitos de regularidade /consistência e frequência influenciam diretamente na compreensão;

d) A compreensão em leitura é basicamente uma questão de processamento, cuja eficiência vai de-pender da experiência linguística e extralinguística do indivíduo;

e) A compreensão em leitura é única, uma vez que cada sujeito possui suas próprias estratégias de integração das informações textuais à sua rede de conhecimentos que foi construída a partir da sua própria subjetividade;

f) A própria percepção do texto será singular e estará em consonância com o dado já experienciado e en-gramado em sua rede de conhecimentos e emoções.

g) O processo de ler é eminentemente ativo.

Logo, o professor deve auxiliar o aluno a tornar-se um investigador diante do texto, va-

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Valquíria Claudete Machado Borba; Monalisa dos Reis Aguiar Pereira; Adelino Pereira dos Santos

lorizando o seu conhecimento, auxiliando-o na tarefa de exame e reelaboração do dado frente ao novo por meio da manipulação cognitiva que caracteriza sua subjetividade (ZIMMER; BLATSKOWSKI; GOMES, 2004).

A partir do exposto, citamos algumas pesquisas que têm analisado aspectos cognitivos envolvidos na leitura, importantes para a compreensão da lei-tura como uma atividade altamente complexa, em que vários fatores estão envolvidos.

Sigot (2007) apresenta uma pesquisa sobre dife-renças na emergência das representações semânti-cas na leitura de alunos que aprendem inglês como língua estrangeira no Brasil e nos Estados Unidos, mostrando que “o padrão de input fornecido por ambientes distintos afeta a habilidade leitora de alunos brasileiros aprendendo língua estrangeira no Brasil e nos Estados Unidos” (SIGOT, 2007, p. 316). Para a autora, isso sinaliza que “diferentes orientações teóricas devam ser adotadas de acordo com o ambiente onde a língua é aprendida”. (SI-GOT, 2007, p. 316).

Castro (2007b) realizou uma pesquisa sobre o papel da emoção na memória relacionada à leitura. Entre os dados encontrados, a pesquisa-dora verificou que trechos emocionantes são mais recordados e melhor. Também verificou que os relatos dos sujeitos da pesquisa não representavam uma macroestrutura dos textos lidos, contrariando a ideia de que armazenamos apenas por meio de macroestruturas textuais.

Esses estudos nos mostram a complexidade envolvida na leitura, em que vários processos cognitivos estão envolvidos. Práticas pedagógicas de leitura devem partir desses conhecimentos na direção das várias conexões que podem ser esta-belecidas nas redes neuroniais. Podemos ver que o ambiente, o input é fundamental na aprendizagem, e que a emoção apresenta um papel importante na recordação.

Os estudos cognitivos conexionistas ressaltam ainda o papel da atenção (ALVES; ZIMMER, 2005), da frequência e da regularidade com que os conteúdos são trabalhados, o papel do conhe-cimento prévio, do tipo de instrução, do objetivo etc. na leitura e na escritura. A seguir trataremos deste último tópico.

Escritura: processos cognitivos

A escritura, assim como a leitura, envolve vários aspectos cognitivos. Contudo, há menos estudos sobre os processos cognitivos envolvidos na escritura do que as pesquisas sobre leitura. Para Borba (2013, p. 72),

Se a compreensão em leitura é uma questão de processamento que depende da experiência linguís-tica e extralinguística prévia do indivíduo, do que aprendeu, do que memorizou, das associações que construiu, a escritura também depende muito da ex-periência com modelos de gêneros textuais. Assim, a produção textual também depende do processamen-to, da exposição a um input significativo que chame a atenção para a sua constituição, sua função, sua importância, de forma que o indivíduo memorize, guarde informações referentes a determinados gê-neros textuais e consiga acessá-las quando preciso, fazendo as devidas relações entre o objetivo que tem ao escrever e o conhecimento prévio necessário para atingir esse objetivo.

Segundo Borba (2013), a experiência, a memó-ria implícita e explícita, os dados armazenados na memória são fundamentais para escrever determi-nado texto. Cabe à escola oferecer experiências de qualidade para o desenvolvimento tanto da leitura como da escritura. Em sua pesquisa, Borba (2013) mostra a importância do tipo de instrução, implí-cita ou implícita e explícita,6 e do conhecimento do gênero textual que se propõe ensinar para o desenvolvimento da escritura. Os dados relatados na pesquisa, feita com alunos de 9º ano, revelaram que quando recebem instrução implícita e explícita sobre a composição do gênero textual em estudo, ou seja, quando são trabalhadas explicitamente as características dos gêneros textuais, levando à re-flexão sobre sua composição, o desenvolvimento da escritura é melhor. Conforme Borba (2013, p. 176), “[...] o fator instrução exerce um papel importante no desenvolvimento da produção textual, pois, ao identificar características antes não notadas, o aluno é levado a apreendê-las e aplicá-las ao produzir seus textos”.

6 Instrução implícita caracteriza-se pela exposição ao conteúdo, no caso ao gênero textual, sem explicitar suas características. Instrução implícita e explícita caracteriza-se, aqui, pela reflexão sobre a com-posição do gênero textual durante as atividades de forma explícita.

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Leitura e escritura: processos cognitivos, aprendizagem e formação de professores

Outro estudo pautado no paradigma conexio-nista de aprendizagem é o de Floriani (2007), que mostrou a importância da exposição ao input para o desencadeamento da aprendizagem de estruturas complexas da língua materna. Por meio de ativida-des de leitura que continham construções passivas, alunos de 4ª série (hoje, 3º ano) do ensino funda-mental, sujeitos do grupo experimental, passaram a utilizá-las em suas produções textuais. Esse es-tudo mostra a importância da exposição ao objeto de estudo, do input. Para a autora, “A cada input de sentença na voz passiva captado pelo sujeito, sinapses relativas a essa estrutura são reforçadas, aumentando a probabilidade de uso correto e pre-ferência por essa construção” (FLORIANI, 2007, p. 143-144).

Essa relação entre leitura e escritura também é reforçada por Guaresi (2007) na sua pesquisa sobre a influência da experiência da leitura no desempenho em produção escrita. Nos dados da sua análise, em que verificou a correlação entre tempo de leitura diária, uso de elementos coesivos, riqueza vocabular e inadequações ortográficas, o autor concluiu que a experiência em leitura é de-terminante na riqueza vocabular, na ortografia e na coesão textual. Para o autor,

A leitura parece ser um processo privilegiado de reforços ou alterações sinápticas, o que constitui, de fato, a aprendizagem para o conexionismo. A leitura frequente faz com que as sinapses se tornem mais fortes, por meio da repetição dos estímulos. As sinapses, à medida que são reforçadas, automatizam os processos e permitem que o leitor faça leituras com grau de aproveitamento cada vez melhor. Decorre daí, que leitores frequentes e proficientes têm melhores oportunidades de apresentar maior adequação ortográfica, maior riqueza vocabular, ou seja, apresentar melhor desempenho em produção escrita. (GUARESI, 2007, p. 172).

Tanto o estudo de Floriani quanto o de Guaresi reforçam a ideia de exposição citada por Borba. Os processos cognitivos envolvidos na leitura e na escritura vão depender muito do grau de exposição implícita e implícita e explícita que os alunos ex-perienciam ao longo da vida. Não só disso, mas de uma série de outros fatores como o conhecimento prévio, o objetivo, a atenção, a emoção etc., já citados neste artigo.

Vejam que as pesquisas sobre escritura perpas-sam a leitura, impossível separá-las, embora o foco tenda mais para uma das atividades.

Ainda sobre produção textual, citamos o estudo de França (2006), que investiga o papel da memória na produção do gênero textual resumo. Nessa pes-quisa, sem instrução explícita nenhuma, a autora verificou qual compreensão três alunas tinham do gênero resumo. Por meio da produção de resumos orais, escritos e entrevistas semiestruturadas, ao analisar os dados, a pesquisadora evidenciou que

Embora o resumo seja bastante necessário no âmbito escolar, observamos que a definição adotada neste trabalho não foi apreendida. Verificamos que a von-tade de externar a opinião própria e de confrontá-la com o autor fez com que não houvesse fidelidade ao texto original e, sim, a reprodução de idéias comuns ou críticas ao falado anteriormente por alguém.

Verificamos que a memória atua diretamente na produção do resumo e que a sua elaboração nem sempre reflete a concepção que se tem do gênero. As diferentes escolhas feitas na elaboração do gênero resumo são espontâneas, levando em consideração a formação acadêmica e social do indivíduo, e, apa-rentemente, seguem uma lógica interna escolhida por nós mesmos. (FRANÇA, 2006, p. 192).

França (2006, p. 192) chega à conclusão de que é papel do professor “orientar os alunos na elabo-ração do gênero resumo e apresentar aos mesmos as técnicas de armazenamento e de recuperação de informações na memória, não só para facilitar a aquisição do conhecimento como tornar o aluno consciente de suas próprias escolhas”.

Esses estudos apresentados aqui representam um breve panorama dos estudos que vêm sendo desenvolvidos sobre leitura e escritura numa perspectiva conexionista da aprendizagem. Fran-ça (2006) expõe o que Borba (2013) mostra em seu estudo: a importância da instrução explícita. Todos os estudos aqui apresentados reforçam a importância da exposição, do input, da frequên-cia, da regularidade, da emoção, da atenção etc. Muito ainda há para se estudar e pesquisar sobre as relações entre neurociência, leitura e escritura. Neste artigo, apresentamos algumas direções atu-ais das pesquisas sobre os processos envolvidos na leitura e na escritura, buscando contribuir para uma discussão importante neste século: a relação

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Valquíria Claudete Machado Borba; Monalisa dos Reis Aguiar Pereira; Adelino Pereira dos Santos

entre neurociência e educação. Não há mais como o profissional da educação negar estes estudos. É preciso que os achados da neurociência façam parte da formação dos professores, pois a compreensão dos processos cognitivos envolvidos na leitura e na escritura, entre tantos outros aspectos não cita-dos neste estudo, lança luz para a reflexão-ação--reflexão da prática pedagógica.

Conclusão

Neste artigo, propusemos um breve panorama das contribuições de pesquisas sobre os processos cognitivos envolvidos na aprendizagem da leitura e da escritura. As pesquisas, com base nos pres-supostos científicos da neurociência, mostram a importância desses conhecimentos para uma prática pedagógica mais significativa no desenvolvimento da leitura e da escritura. Estudos baseados na teoria conexionista revelam a importância do conheci-mento por parte dos professores das relações entre o funcionamento do cérebro e a aprendizagem. Como ressalta Relvas (2012, p. 16),

A neurociência quando dialoga com a educação promove caminhos para o educador tornar-se um mediador do como ensinar com qualidade por meio de recursos pedagógicos que estimulem o estudante a pensar sobre o pensar. No entanto, torna-se fun-damental para o professor promover os estímulos corretos no momento certo para que se possa inte-grar, associar e entender os conteúdos propostos em sala de aula. Esses estímulos quando emoldurados e aplicados no cotidiano, podem ser transformadores em uma aprendizagem significativa e prazerosa no processo escolar.

E, para isso, é importante que o professor compreenda as várias possibilidades de inter-pretação, recordação de um texto, a necessidade de uma exposição continuada e significativa dos conteúdos, a diferença que uma exposição explí-cita pode fazer na apreensão das especificidades de um gênero textual, o papel do conhecimento prévio na aprendizagem etc. Além dessas ques-tões, muitas outras podem ser citadas, como a complexidade das tarefas propostas, o número de estímulos simultâneos, a maturidade neurológica, a integridade das vias sensoriais e das demais funções cognitivas, o nível intelectual, o nível de consciência, aspectos afetivos etc. (COSTA; MAIA, 2011), que não são discutidos aqui, mas que indicam a complexidade da cognição hu-mana, que envolve muitos fatores cognitivos, interacionais, biológicos. Embora já em voga, a discussão neurociência-educação ainda está lon-ge dos cursos de pedagogia, longe da educação. Precisamos desmistificar o estudo do cérebro e da sua relação com a aprendizagem. Infelizmente, “a crença de que o aprendizado ocorre na mente e esta não tem nada a ver com o corpo levou muitos educadores a acreditar que o estudo do corpo cabia apenas aos profissionais da área da saúde, ou quiçá, ao professor de educação física” (PINHEIRO, 2005 apud METRING, 2011, p. 12). Diríamos, ainda leva muitos profissionais da educação a ignorar os avanços neurocientíficos. Esperamos que esta provocação encontre eco, que os estudos aqui apresentados possibilitem novos diálogos e que levem à reflexão sobre o ensino-aprendizagem da leitura e da escrita no século XXI.

REFERÊNCIAS

ALVES, U. K.; ZIMMER, M. C. Perceber, notar e aprender: uma visão conexionista da consciência do aprendiz na aquisição fonológica da L2. In: Revista virtual de Estudos da linguagem – RevEL, v. 3, n. 5, ago. 2005. Dispo-nível em: <http://www.revel.inf.br/files/artigos/revel_5_perceber_notar_e_aprender.pdf>. Acesso em: 03 out. 2013.

BORBA, V. C. M. Instrução e produção textual: um estudo com contos de assombração. Maceió: EDUFAL, 2013.

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Recebido em: 24.01.14 Aprovado em: 18.03.14

2727Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 27-40, jan./jun. 2014

Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

A NEUROCIÊNCIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES:

UM ESTUDO DA REAlIDADE BRASIlEIRA

Márcia Gorett Ribeiro Grossi ∗

Aline Moraes lopes ∗∗

Pablo Alves Couto ∗∗∗

RESUMO

Conhecer o funcionamento, potencialidades e limitações do sistema nervoso possibilitam atender as demandas do educador frente às dificuldades de aprendizagem, levando a uma contribuição positiva na prática pedagógica. Por isso a importância de perceber os fundamentos sobre neurobiologia cognitiva, necessários no processo ensino e aprendizagem. Nesta perspectiva, o objetivo desta pesquisa foi verificar se os cursos de Pedagogia e dos Programas Especiais de Formação Pedagógica de docentes no Brasil têm incorporado em suas propostas pedagógicas os conhecimentos sobre a neurociência. Assim, foram realizadas análises nas matrizes curriculares desses cursos. Complementando o estudo, foi feita uma consulta ao banco de Teses e Dissertações da Capes, para identificar as publicações nacionais acadêmicas sobre essa temática. Os resultados permitem afirmar que a neurociência cognitiva na área educacional ainda não é uma realidade, haja vista a falta de disciplinas relacionadas com a neurociência na maioria das matrizes curriculares dos cursos pesquisados. Os dados, portanto, indicam a necessidade de uma revisão nos currículos dos profissionais da Educação. Analisando a produção nacional sobre a neurociência na educação, percebe-se que a pesquisa sobre este tema encontra-se tímida, embora exista um interesse cada vez maior nos últimos dez anos.

Palavras-chave: Prática pedagógica. Neurociência. Processo ensino e aprendizagem. Publicações nacionais. Curso de pedagogia.

ABSTRACT

NEUROSCIENCE FINDINGS AND TEAChER TRAINING: A STUDY OF BRAZILIAN REALITY

Understanding the nervous system function, its capabilities and limitations may help educators to solve their demands through new ways of viewing their pedagogical practice when facing learning difficulties. This is why it is important to understand the

∗ Doutora em Ciência da Informação pela UFMG. Mestre em Tecnologia pelo CEFET-MG. Engenheira Eletricista pela PUC--MG. Professora do Depto de Educação e Subcoordenadora do Mestrado em Educação Tecnológica do CEFET-MG. Membro do Grupo de Pesquisa AVACEFET do CEFET-MG. Endereço para correspondência: Av. Amazonas, 7.675 –Nova Gameleira, Belo Horizonte. Minas Gerais. CEP: 30510-000. [email protected]∗∗ Mestranda em Educação Tecnológica pelo CEFET-MG. Especialista em PROEJA pelo CEFET-MG. Graduada em Letras pela UFSJ. Membro do Grupo de Pesquisa AVACEFET do CEFET-MG. Endereço para correspondência: Av. Amazonas, 7.675 – Nova Gameleira, Belo Horizonte. Minas Gerais. CEP: 30510-000. [email protected]∗∗∗ Mestrando em Educação Tecnológica pelo CEFET-MG. Graduado em Ciências Biológicas pela UFMG. Membro do Grupo de Pesquisa GEMATEC do CEFET-MG. Endereço para correspondência: Av. Amazonas, 7.675 – Nova Gameleira, Belo Horizonte. Minas Gerais. CEP: 30510-000. [email protected]

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A neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira

fundamentals of cognitive neurobiology required for teaching and learning processes. In this perspective, the objective of this study was to check whether Pedagogy courses and Special Programs for teacher training in Brazil have incorporated into their pedagogical practice the knowledge of neuroscience. Thus the curricular schedules of these courses were analyzed. In order to complement this study, thesis and dissertations from Capes were also analyzed in an attempt to identify national academic publication on this topic. The results indicate that cognitive neuroscience in education is not yet a reality, given the lack of disciplines related to neuroscience in most curricular courses analyzed. Thereby, it is necessary a revision of the curricula of teacher training courses. When we analyze the national studies on neuroscience and its application in education, it is clear that there are few researches on this topic, although there is a growing interest on it in the last ten years.

Keywords: Pedagogical practice. Neuroscience. Teaching and learning processes. National publications. Pedagogy courses.

1. Introdução

O Brasil tem 12,9 milhões de analfabetos, se-gundo o relatório de 2012 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). A responsabilidade por esse índice é decorrente de vários motivos. Dentre eles destacam-se os altos índices de fracasso escolar, que podem ser verificados nos resultados apresentado pelos sistemas de avaliação como a Prova AB, que é uma parceria entre o movimento independente Todos Pela Educação, o Instituto Paulo Montenegro/Ibope, a Fundação Cesgranrio e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu-cacionais (Inep), a Avaliação da Educação Básica (Saeb) e a Prova Brasil, ambos realizados pelo Inep. Todas essas avaliações têm revelado que no ano de 2011 os alunos que chegam ao 5º ano do Ensino Fundamental não dominam as competências bási-cas de leitura, escrita e matemática, principalmente os alunos das escolas públicas. Além desses dados, a empresa Pearson apresentou em 2012 o resultado de uma pesquisa sobre habilidades cognitivas e desempenho escolar em 40 países. O Brasil ficou na penúltima colocação nesta pesquisa, que con-sidera o resultado de testes de matemática, leitura e ciências para alunos dos últimos anos do ensino fundamental, indicando que a alfabetização desses alunos não tem sido plenamente efetivada, contri-buindo para o alto índice de analfabetos brasileiros (PEARSON, 2012).

Com base no cenário exposto, acredita-se que uma possibilidade para minimizar o fracasso es-colar é aceitar as diversidades presentes nas salas

de aula. Os professores precisam estar capacitados para compreender e atender as diferenças cogniti-vas dos alunos de acordo com os princípios da neu-rociência, pois o conhecimento do sistema nervoso, fisiológico e patológico ajuda a melhorar as práticas educativas visando à diminuição das dificuldades de aprendizagem (ESCRIBANO, 2007).

Nesta direção argumentativa, a neurociência – enquanto um ramo do conhecimento que envolve várias áreas como, por exemplo, a neurologia, a psicologia e a biologia, que possuem como tema comum de pesquisa o sistema nervoso (SN) – oferece a possibilidade de entender como ocorre o processo de aprendizagem. Embora, para que a aprendizagem aconteça, seja necessário o diálogo entre a neurociência e a pedagogia, pois esta últi-ma é a responsável pelos métodos pedagógicos de ensino. Complementando esse tema, Guerra (2010, p. 4) comenta:

Os avanços das neurociências esclareceram muitos aspectos do funcionamento do SN, especialmente do cérebro, e permitiram a abordagem mais científica do processo ensino e aprendizagem. Funções relaciona-das à cognição e às emoções, presentes no cotidiano e nas relações sociais, como dormir, comer, gostar, reconhecer, falar, compreender, ter atenção, esque-cer, experimentar, ajudar, lembrar, calcular, planejar, julgar, rir, movimentar-se, trabalhar, emocionar-se, são comportamentos que dependem do funciona-mento do cérebro. Educar é aprender também.

E, para entender o que ocorre com o cérebro quando uma pessoa aprende, faz-se necessário rea-lizar releituras dos teóricos da educação, associan-

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Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

do-os aos estudos da neurociência; compreender a biologia do cérebro nas dimensões cognitivas, emocionais, afetivas e motoras; reconhecer que o processo de aprender está relacionado com as bases químicas e físicas na função neural do ser humano; e, como cada ser humano é único, cada cérebro é único e aprende de forma diferente. Portanto, é pre-ciso ensinar de formas diferenciadas. Dentre esses autores, destacam-se: Piaget, com seus estágios de desenvolvimento (sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal); Ausubel, com a aprendizagem significativa; Vygotsky e a zona de desenvolvimento proximal, a qual define a distância entre o desenvolvimento real da criança e o desenvolvimento potencial, que representa aquilo que ela tem potencial de aprender; e Markova, com sua teoria das linguagens naturais da mente. Desta forma, a neurociência na sala de aula retoma questões já estudadas por teóricos da psicologia e da educação, trazendo novos olhares sobre estas questões.

Cabe destacar que, de acordo com Metring (2011, p. 3), os neurocientistas:

[...] não estão preocupados em formular receitas, seja para a área educacional, organizacional, médi-ca ou qualquer outra. Estão, sim, preocupados em descobrir, dia após dia, coisas maravilhosas sobre a organização neuronal do ser humano e as disponibi-lizar para quem queira utilizar seus achados, mas o trabalho de articulação (no nosso caso, os processos de ensino e aprendizagem) precisa ocorrer a partir das necessidades dessas áreas e por profissionais dessas áreas.

A neurociência é compreendida por 6 aborda-gens:

• Neurociência molecular: investiga a quími-ca e a física envolvidas na função neural. Estuda as diversas moléculas de importân-cia funcional no SN;

• Neurociência celular: considera as distin-ções entre os tipos de células no SN e como funciona cada um respectivamente;

• Neurociência sistêmica: estuda as regiões do SN, de processos como a percepção, o discernimento, a atenção e o pensamento;

• Neurociência comportamental: estuda a interação entre os sistemas que influenciam

o comportamento, explica as capacidades mentais que produzem comportamentos como sono, emoções, sensações visuais, dentre outros;

• Neurociência cognitiva: estuda as capa-cidades mentais mais complexas como aprendizagem, linguagem, memória, pla-nejamento;

• Neurociência clínica: estuda as patologias do SN.

O foco de investigação desta pesquisa foi a abrangência cognitiva, ressaltando que o objetivo da neurociência na educação não é propor uma nova pedagogia, mas apontar caminhos e metodologias mais adequadas no desenvolvimento da educação.

Nessa perspectiva, objetivou-se verificar se os cursos de Pedagogia e dos Programas Especiais de Formação Pedagógica de docentes no Brasil têm incorporado em suas propostas curriculares os conhecimentos da neurociência, bem como identificar as publicações acadêmicas sobre o tema pesquisado. Para atingir esse objetivo, a metodolo-gia empregada foi a análise de conteúdo em uma abordagem qualitativa com enfoque descritivo, por meio de análises nas matrizes curriculares desses cursos e a consulta ao banco de Teses e Dissertações da Capes (BRASIL, 2013), para identificar as publi-cações nacionais acadêmicas sobre essa temática.

Nesse contexto, as contribuições deste artigo são relevantes sob dois aspectos: em razão da importância dos estudos sobre a relação entre cognição e processo de ensino e aprendizagem no cenário de educação no Brasil, e também por apresentar dados que indicam que neurociência na educação ainda não é uma realidade nos cursos de pedagogia e nem nos cursos de formação especial de professores.

2. Anatomia da aprendizagem: como o cérebro aprende

De acordo com Relvas (2011), existe uma bio-logia cerebral, uma fisiologia e uma anatomia em um cérebro que aprende. Assim, pode-se pensar em uma anatomia da aprendizagem que envolve a aná-lise e a compreensão da relação entre a cognição, que abrange os mecanismos neurais responsáveis

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A neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira

pelas funções mentais superiores como a consci-ência, a imaginação e a linguagem, e o processo de aprendizagem. Em síntese, é o vínculo entre o ato de aprender e as atividades do Sistema Nervoso Central (SNC).

Ainda de acordo com Relvas (2011), o processo de aprendizagem do cérebro está na neurociência celular, destacando neste processo a importância dos neurônios, que têm como função básica rece-ber, processar e enviar informações. A transmissão de informação de um neurônio para outro ou de um neurônio para uma célula não neural ocorre através de estruturas especializadas denominadas sinapses, que podem tanto induzir quanto inibir a despolarização da célula pós-sináptica. Cada neu-rônio pode ter de mil a 10 mil sinapses físicas e químicas. Nesse local, a informação é passada para o próximo neurônio através de neurotransmissores (MACHADO, 2002).

O processo de aprender está relacionado com as bases químicas e físicas na função neural, através das sinapses. As sinapses físicas relacionam os acontecimentos que vêm do meio externo para o in-terno, e as sinapses químicas são responsáveis pela comunicação entre neurônios por meio de media-dores químicos denominados neurotransmissores (NT), que são sintetizados pelos próprios neurônios e armazenados dentro de vesículas. Sendo assim, os estados mentais são provenientes de padrões de atividade neural, sendo a aprendizagem realizada

por meio da estimulação das conexões neurais que induzem o desenvolvimento e reorganização da estrutura cerebral, resultando em novos comporta-mentos que acontecem quando ocorre uma efetiva intervenção pedagógica. Por isso, pode-se afirmar que o cérebro que aprende é estimulado anatômica e fisiologicamente. E para compreender como a neurociência contribui com o processo de ensino é preciso conhecer a anatomia da aprendizagem e como as áreas do sistema nervoso são estimuladas e as informações são processadas. Por isso a im-portância de se conhecer as funções desenvolvidas pela região cerebral denominada córtex.

Do ponto de vista da aprendizagem, a aquisição de conteúdos teóricos está relacionada com várias regiões do encéfalo, sobretudo com estruturas do cérebro e sistema límbico, como o hipocampo, a amígdala e o córtex entorrinal (DALGARRONDO, 2008). O córtex cerebral é a camada mais externa do cérebro, responsável pelas funções mentais mais complexas e desenvolvidas, como memória, atenção, consciência, linguagem, percepção e pensamento; é o local do processamento neuronal. Existem vários graus de organização do córtex cerebral como, por exemplo, lobos, giros e cama-das teciduais. Neste estudo escolheu-se utilizar a divisão do córtex em lobos, pois, ainda que mais geral, é mais simples de compreender. O Quadro 1 apresenta a relação entre as regiões do córtex cerebral e suas principais funções.

Região do Córtex Cerebral Principais Funções

Lobo Frontal Responsável pelas funções cognitivas superiores e função motora.

Lobo Temporal Processa os estímulos auditivos e realiza associações de informações.

Lobo Parietal

É constituído por duas subdivisões: a anterior, denominada córtex somatossensorial, que é responsável pela recepção de sensações como o tato, a dor e a temperatura do corpo, e a área posterior dos lobos parietais, que é uma área secundária responsável pela análise, interpretação e integração das informações recebidas pela área anterior.

Lobo Occiptal (ou visual) Processa os estímulos visuais.

Quadro1 – Relação entre as regiões do córtex cerebral e suas principais funções

Fonte: Elaborado pelos autores deste trabalho.

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Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

Portanto, a compreensão destas funções se faz necessária na sala de aula, como explicam Guerra, Pereira e Lopes (2004, p. 1):

As estratégias pedagógicas utilizadas pelo educador no processo ensino e aprendizagem são estímulos que reorganizam o sistema nervoso em desenvolvi-mento, produzindo aquisição de comportamentos, objetivo da educação.

Por isso é fundamental que os professores es-timulem individualmente a inteligência dos seus alunos, reconhecendo as diferentes potencialidades, limitações e habilidades que cada indivíduo possui, utilizando diferentes metodologias que possibilitem a cada um aprender da maneira mais efetiva. Esses estímulos podem aumentar sua motivação para a aprendizagem, já que cada indivíduo possui especi-ficidades no processo de aprender (STERNBERG; GRIGORENKO, 2003).

Desta maneira, Markova (2000) defende a im-portância da neurociência na sala de aula e explica que as pessoas pensam e aprendem de maneiras diferentes, utilizando padrões individuais da inte-ligência natural que a mente usa para aprender e apresenta seis padrões diferentes de aprendizagem,

que se baseiam na forma como as informações são processadas pelo cérebro:

Os 6 padrões de aprendizagem trazidos por Markova estão relacionados com os 3 níveis de consciência (mente consciente, mente subconsciente e mente inconsciente) e com as 3 linguagens simbólicas que a mente usa para receber, organizar e processar informações (auditiva, visual e cinestésica). Cada estado de consciência usa uma das 3 linguagens simbólicas para processar as informações. (GROSSI; SANTOS, 2011, p. 3).

Nesta perspectiva, como existem várias formas de pensar e de aprender, também há várias formas de ensinar. O Quadro 2 apresenta diversas alternativas de estratégias pedagógicas que devem ser escolhidas para despertar as linguagens predominantemente naturais da mente, denominadas por Markova (2000) como linguagens simbólicas responsáveis pela forma como cada aluno aprende. É importante salientar que, durante o processo de aprendizagem, não se utiliza apenas e de uma só vez uma linguagem de aprendizagem, mas a combinação de várias. Portan-to, para estimular uma linguagem da mente, várias estratégias pedagógicas são requeridas.

Linguagem Natural predominante da Mente Principais Estratégias pedagógicas

Visual Portifólio; Seminários; Mapa conceitual; Estudo de caso; Filmes/vídeos; Leitura; Jogos; Interação via redes sociais.

AuditivaAula expositiva dialogada; Artes cênicas; Música; Jogos; Grupo de verbalização e de observação (GVGO); Debates e júri simulado.

Cinestésica Competições esportivas; Artes cênicas e plásticas; Dança; Jogos.

Fonte: Elaborado pelos autores deste trabalho.

Quadro 2 – As linguagens naturais da mente e as estratégias pedagógicas

O desafio da neurociência aplicada na educação é relacionar as informações dos Quadros 1 e 2, identificando as linguagens naturais predominan-tes da mente com as ações pedagógicas, que por sua vez irão estimular cada uma das regiões do córtex cerebral. Desta maneira, as práticas peda-gógicas poderão ser pautadas pela multiplicidade no aprendizado, em que informações são expostas

de maneiras diversas, usando múltiplos métodos. Por exemplo, estudos têm apontado que a diversão pode contribuir com a aprendizagem, pois nestas situações o corpo libera o neurotrasmissor dopa-mina, responsável pelas sensações de bem-estar e prazer e pelas funções relacionadas com cognição, motivação, recompensa, atenção, humor e apren-dizagem. E nas palavras de Relvas (2011, p. 19):

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A neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira

O avanço dos estudos da Neurociência aplicada escolar é de suma importância para o entendimento das funções corticais superiores envolvidas no pro-cesso da aprendizagem. Sabe-se que o indivíduo aprende por meio de modificações funcionais do SNC, principalmente nas áreas da linguagem, das gnosias, das práxis, da atenção e da memória, e, para que o processo de aprendizagem se estabeleça corretamente, é necessário que as interligações en-tre as diversas áreas corticais e outros níveis sejam integradas efetivamente.

Contudo, este avanço ainda é tímido, embora existam algumas iniciativas, como os projetos que se dedicam à neurociência, tais como:

• Projeto Plural: projeto implementado em 2010, em Ribeirão Preto, pelo Centro In-tegrado de Psicologia e Educação (CIPE) com apoio e parceria do Instituto de Neu-rociências e Comportamento (INeC), com o objetivo de promover discussões que tenham como foco os aspectos básicos da neurociência cognitiva aplicada à educação (PROJETO PLURAL, 2011).

• NeuroEduca: projeto de extensão re-gistrado na Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais, que visa orientar educadores na utilização do conhecimento das neurociências no ensino e na abordagem dos problemas de aprendizagem. Desta forma, o NeuroE-duca tem como objetivo a capacitação e orientação continuada de professores das redes públicas, esfera municipal e estadual, sobre os fundamentos neurobiológicos do processo ensino e aprendizagem e sobre as influências e intervenções neste processo. O projeto tem a participação de graduan-dos de Medicina e Psicologia da UFMG e ocorre por meio de reuniões periódicas. Ele tem obtido bons resultados, constatados pelo relato de professores participantes que se sentem mais aptos para lidar com as dificuldades e transtornos de aprendi-zagem (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2012).

• O Cérebro Vai à Escola: faz parte de um projeto do Instituto de Ciências Biológicas

(ICB) da UFMG sob a forma de Curso de Especialização em Neurociência e Compor-tamento, além dos seguintes cursos de atua-lização na área: Aspectos Biológicos Gerais do Sistema Nervoso Central, Fundamentos Básicos de Processos Comportamentais, Envelhecimento Cerebral e Doença de Alzheimer, Dependência Química, Neu-ropsicofarmacologia e Terapêutica e O Cérebro Vai à Escola: um diálogo entre a neurociência e a educação (FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUI-SA, 2011).

• Comunidade Aprender Criança: este pro-jeto é a primeira comunidade acadêmica brasileira dedicada ao aprimoramento do ensino e aprendizado através dos avanços nas pesquisas sobre o cérebro. Tem o obje-tivo de integrar educadores e neurocientis-tas, em um trabalho cooperativo, na busca de soluções que aprimorem o ensino e o aprendizado em todos os níveis (COMU-NIDADE APRENDER CRIANÇA, 2008).

• Instituto de Pesquisas em Neuroeducação: traz uma abordagem inovadora de trabalho, congregando conhecimentos da Programa-ção Neurolinguística, da Neurociência e da Física da Consciência, e oferece ferramen-tas de desenvolvimento pessoal que primam pela eficácia de resultados, possibilitando ao ser humano encontrar o equilíbrio ne-cessário para realizar seus projetos de vida. Foi formatado um curso de especialização em Neuroeducação, com o objetivo de capacitar multiplicadores para dar força e movimento ao propósito de materializar a inclusão social através da inclusão escolar, tornando o indivíduo seu próprio instru-mento de ascensão social (INSTITUTO DE PESQUISAS EM NEUROEDUCAÇÃO, 2006).

Portanto, os conhecimentos agregados pelas neurociências podem contribuir para um avanço na educação, em busca de melhor qualidade e resul-tados mais eficientes para a qualidade de vida do indivíduo e da sociedade (COSENZA; GUERRA, 2011, p. 145).

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Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

3. Metodologia

Para atingir o objetivo proposto, esta pesquisa foi dividida em quatro tapas. Em todas as etapas a metodologia empregada foi a análise de conte-údo em uma abordagem qualitativa com enfoque descritivo:

1ª etapa: realizada no segundo semestre de 2012. O universo pesquisado foi composto pelos cursos de Pedagogia de instituições públicas e privadas das cinco regiões brasileiras. Foram consultados 465 sites de instituições de ensino, cujo foco foi as matrizes curriculares dos cursos de Pedagogia. Porém a pesquisa ocorreu em 352 matrizes curriculares, pois apenas estas atendiam aos critérios descritos a seguir:• Credenciamento no Ministério da Educação

e Cultura (MEC), com dados disponíveis na plataforma e MEC, do mesmo órgão;

• Existência de sítio eletrônico que disponi-bilizasse o acesso às matrizes curriculares dos cursos de Pedagogia.

Em relação ao procedimento técnico, foi usado o levantamento por meio de instrumentos de coleta de dados compostos por análise documental e pes-quisa bibliográfica.

Das 352 matrizes curriculares pesquisadas, 39 foram da Região Norte, 70 da Nordeste, 29 da Centro-Oeste; 85 da Sudeste e 129 da Região Sul. Ressalta-se que a quantidade de instituições analisadas em cada região foi condizente com o número de instituições credenciadas pelo MEC em cada uma dessas regiões.

2ª etapa: realizada no primeiro semestre de 2013. O universo pesquisado foi composto pelos cursos do programa especial de formação peda-gógica de docentes das cinco regiões brasileiras. Foram consultados 53 sites de instituições de ensino, cujo foco foi as matrizes curriculares dos cursos do programa especial de formação pedagógica de docentes. Foram utilizados os mesmos critérios da 1ª etapa para seleção das matrizes curriculares, sendo 53 delas analisadas.

3ª etapa: realizada no primeiro semestre de 2013. Foi feita uma análise documental a partir do acesso ao portal do Ministério da Educação,

com o intuito de verificar a legislação que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares dos cursos de graduação em Pedagogia, que são as normas obrigatórias para o Ensino Superior que têm como objetivo orientar o planejamento curri-cular das instituições buscando promover uma equidade de aprendizagem, possibilitando que conteúdos básicos/ comuns estejam presentes nas matrizes curriculares associados a outros conteúdos aliados à contextualização da ins-tituição.

4ª etapa: realizada no primeiro semestre de 2013. O universo de pesquisa foi composto por publicações acadêmicas sobre o tema pes-quisado. Realizou-se uma consulta ao banco de teses e dissertações do Portal da Coordena-ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior (Capes) de Periódicos Eletrônicos, com o propósito de identificar o que tem sido produzido sobre a formação do educador e a presença da neurociência na sala de aula, entre os anos de 2000 e 2011. Os descritores adotados para as buscas foram: “formação de docentes e a neurociência”; “neurociência e educação”; “neuroeducação”; “neurociência e processos educativos”; e “neurociências e cursos de Pe-dagogia”.

4. Resultados e Análise dos dados

A demonstração dos resultados, bem como suas análises, foi agrupada em quatro itens, de acordo com as etapas da metodologia.

4.1 Primeira etapa

Os resultados apresentados na pesquisa (Qua-dro 3) mostram a presença pouco expressiva da neurociência na formação dos pedagogos. Apenas 6,25% das instituições pesquisadas contemplavam as disciplinas de neurociência e correlatas nas suas matrizes curriculares. Somando a essa informação, o número de formandos nos cursos de Pedagogia dobrou em sete anos, segundo dados do Censo do Ensino Superior realizado pelo INEP. Em 2002, o levantamento registrou a formatura de 65 mil edu-cadores em pedagogia (BRASIL, 2002); em 2009, esse número subiu para 118 mil (BRASIL, 2009).

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A neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira

Fonte: Elaborado pelos autores deste trabalho.

Região Número de instituições pesquisadas

Número de instituições que contemplam a

neurociência nas matrizes curriculares

Disciplinas

Norte 39 0 ----

Nordeste 70 2- Introdução à Neuropisicologia da Aprendizagem- Psicolinguística e Alfabetização

Centro-Oeste 29 0 ----

Sudeste 85 5

- Neuropsicologia do Desenvolvimento e Educação - Fundamentos da Neurociência- Cérebro, mente- Problemas de Aprendizagem e Neurociência- Neurociências e Aprendizagem

Sul 129 15

- Dificuldades de Aprendizagem e processos neurológicos- Teorias psicogenéticas de aprendizagem- Metacognição e motivação para a aprendizagem- Processos Neurológicos- Neuropsicologia- Linguagem Plástica Visual na Educação- Estudos em Linguagem, interação e cognição- Fundamentos Psicopedagógicos e Psiconeurológicos de Aprendizagem- Linguagem, interação e cognição (I e II)- Sistema Nervoso e Aprendizagem- Neurolinguística e Aprendizagem- Fundamentos Neurobiológicos da Aprendizagem- Psicolinguística- Fundamentos da Neuropsicopatologia- Cognição e metacognição

Quadro 3 – Disciplinas relacionadas com a Neurociência e as matrizes curriculares dos cursos de Pedagogia

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Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

Ainda de acordo com dados do INEP de 2010, o curso de Pedagogia é o curso com maior quantida-de de alunos inscritos no país: 273 mil estudantes (BRASIL, 2010). Esses dados reforçam, portanto, a necessidade de capacitar esses profissionais para compreender e atender as diferenças cognitivas dos alunos de acordo com os princípios da neu-rociência.

4.2 Segunda etapa

O universo pesquisado nesta etapa foi composto pelos Programas Especiais de Formação Pedagó-gica para Docentes. O objetivo desses cursos é habilitar profissionais graduados na modalidade bacharelado, tecnólogos e os professores que já atuam no sistema de ensino fundamental, médio e profissionalizante das redes públicas e privadas em licenciatura plena para ministrar as disciplinas que integram as séries finais do ensino fundamen-tal, médio e a educação profissional nos diferentes sistemas de ensino. O curso é regulamentado pela Resolução CNE/CEB no 02/97, que dispõe sobre os programas especiais de formação pedagógica de docentes para as disciplinas do currículo do ensino fundamental, do ensino médio e da educação pro-fissional em nível médio (BRASIL, 1997).

Foram consultados os sites de 53 instituições brasileiras públicas e privadas que oferecem este curso, mas só foi possível o acesso às matrizes curriculares de 38 instituições. Pela análise das matrizes consultadas, nenhuma das instituições contemplava as disciplinas de neurociência e cor-relatas em seus cursos. Esses dados revelam que existe uma deficiência na formação do professor quanto ao conhecimento e aplicação da neuroci-ência na educação.

4.3 Terceira etapa

De acordo com a Resolução do Conselho Nacio-nal de Educação CNE/CEB n º 1, de 15 de maio de 2006, que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia e Licen-ciatura, percebe-se que existe uma preocupação governamental em formar profissionais da área da educação habilitados para o trato de questões cognitivas dos alunos, como pode ser observado nos artigos 5º e 6º desta resolução (BRASIL, 2006):

Art. 5º O egresso do curso de Pedagogia deverá estar apto a:

V - Reconhecer e respeitar as manifestações e necessidades físicas, cognitivas, emocionais, afe-tivas dos educandos nas suas relações individuais e coletivas.

Art.6º A estrutura do curso de Pedagogia, respeitadas a diversidade nacional e a autonomia pedagógica das instituições, constituir-se-á de:

d) utilização de conhecimento multidimensional sobre o ser humano, em situações de aprendizagem;

Assim, verificou-se que nas Diretrizes Curri-culares Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia há apontamentos para a necessidade dos estudos que abordam as ciências cognitivas. Contudo, percebe-se que não existe uma exigên-cia direta do estudo de temáticas relacionadas às neurociências.

4.4 Quarta etapa

A pesquisa realizada no banco de teses e dis-sertações da Capes (BRASIL, 2013) resultou na identificação dos trabalhos que possuíam relação com as seguintes palavras-chave: “formação de docentes e a neurociência”; “neurociência e educa-ção”; “neuroeducação”; “neurociência e processos educativos”; e “neurociências e cursos de Pedago-gia”. O resultado da pesquisa foi a identificação de 42 trabalhos, sendo 27 dissertações de Mestrado Acadêmico e 15 teses de Doutorado.

Com base na análise de conteúdo dessas publi-cações e diante de uma variedade de informações, foram selecionados quatro aspectos considera-dos relevantes para essa pesquisa: 1) resumo; 2) palavras-chave; 3) áreas de conhecimento; e 4) linhas de pesquisa.

Assim, verificou-se que quatro trabalhos, uma tese de Doutorado e três dissertações de Mestrado Acadêmico, mesmo aparecendo na busca, não tinham relação com o tema pesquisado.

Outro resultado evidenciado foi a não ocorrên-cia de trabalhos quando o nível de pesquisa foi o Mestrado Profissional, revelando que o interesse pela temática tem prevalecido no âmbito do Mes-trado Acadêmico e no Doutorado, conforme o Gráfico 1.

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A neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira

A análise a partir do ano da publicação (Tabela 1) demonstrou que o interesse pela pesquisa tornou-se constante, aparecendo em todos os anos, exceto em 2002. Contudo, a partir de 2006 houve um aumento no interesse pela temática. O ano de 2010 destaca-se como o de maior produção sobre o tema pesquisado.

Fonte: Elaborado pelos autores deste trabalho com base no banco de da-dos do portal Capes.

Ano FrequênciaTrabalhos efetivamente

relacionados ao tema pesquisado

2000 2 22001 1 02002 0 02003 1 02004 3 32005 3 32006 6 62007 4 42008 4 42009 5 32010 7 72011 6 6Total 42 38

Gráfico 1 – Número de teses e dissertações de mestrado identificadas no período de 2000 a 2011 no portal da Capes.

Fonte: Elaborado pelos autores deste trabalho com base no banco de dados do portal Capes.

Tabela 1 – Número de teses e dissertações de Mestrado relacionadas ao tema pesquisado – consulta portal da Capes

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Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

Também foi pesquisado no portal da Capes o número de publicações em periódicos no período de 2000 a 2011. Foram utilizadas nas buscas as mesmas palavras-chave para a pesquisa das teses e dissertações de mestrado e selecionados apenas os trabalhos apresentados em língua portuguesa e em revistas nacionais.

No resultado da pesquisa identificou-se 52 ar-tigos, mas ao analisar o resumo destes concluiu-se que apenas 23 artigos descreviam sobre o tema

pesquisado, o que representa 44,23% da publicação nacional.

Percebe-se, pela Tabela 2, a evolução dessas publicações por ano. Observando esta evolução em relação aos trabalhos que efetivamente abordaram o tema neurociência e educação, a maior parte das publicações concentrou-se de 2009 em diante, repre-sentando 60,87% do total, o que indica um interesse crescente em desenvolver pesquisas nessa área, embora ela ainda seja muito nova e em construção.

Fonte: Elaborado pelos autores deste trabalho com base no banco de dados do portal Capes.

Ano FrequênciaTrabalhos efetivamente

relacionados ao tema pesquisado

2000 0 02001 1 02002 0 02003 1 12004 0 02005 1 12006 2 32007 2 12008 3 32009 11 62010 10 32011 8 5Total 29 23

Tabela 2 – Número de periódicos relacionados ao tema pesquisado – consulta portal da Capes

Analisando as quatro etapas, constata-se que tem aumentado o interesse sobre o conhecimen-to, funcionamento, potencialidades e limitações do sistema nervoso. Entretanto os avanços nos estudos sobre esta área de conhecimento ainda são inexpressivos. A pesquisa também revelou que a incorporação dos conhecimentos relacionados à Neurociência Cognitiva na área educacional não é uma realidade, haja vista a

falta de disciplinas sobre este tema na maioria das matrizes curriculares nos cursos de Peda-gogia e dos Programas Especiais de Formação Pedagógica de docentes em todo o país, embora pelas Diretrizes curriculares do MEC perceba-se a preocupação em se preparar os profissionais da educação habilitados em reconhecer e res-peitar as manifestações e necessidades físicas e cognitivas dos educandos.

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A neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira

5. Considerações finais

Já não é possível ignorar a influência da neuro-ciência no processo de ensino e aprendizagem. A compreensão sobre o funcionamento do cérebro, nas dimensões cognitivas, emocionais, afetivas e motoras, está associada às funções das áreas corti-cais e também com as linguagens naturais da mente. Assim, as escolhas das estratégias pedagógicas precisam ser pensadas a partir dessa compreensão.

É fundamental que educadores conheçam as interfa-ces da aprendizagem e que seja sempre um campo a ser explorado. Para isso, os estudos da biologia cerebral vêm contribuindo para a práxis em sala de aula, na compreensão das dimensões cognitivas, motoras, afetivas e sociais no redimensionamento do sujeito aprendente e suas formas de interferir nos ambientes pelos quais perpassam. (RELVAS, 2011, p. 34).

Se o educador tem o conhecimento do funciona-mento cerebral e reconhece que cada aluno aprende de uma maneira diferente, estará preparado para desenvolver suas aulas explorando os diferentes estilos de aprendizagem dos alunos e utilizando variadas estratégias pedagógicas, ressignificando sua prática docente (SOARES, 2003).

Todavia, percebeu-se que a neurociência ainda não está presente oficialmente na formação dos pedagogos. De acordo com os resultados desta pesquisa, constatou-se que dos 352 cursos de Pe-dagogia pesquisados, apenas 6,25% contemplavam as disciplinas de neurociência e correlatas. Além disso, verificou-se que de todas as instituições brasileiras pesquisadas que oferecem o Programa Especial de Formação Pedagógica para Docentes, nenhuma possui disciplina relacionada com a neurociência, o que permite concluir que o estudo da neurociência na educação ainda não é uma rea-

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______. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da

lidade nos cursos de pedagogia nem nos cursos de formação especial de professores.

Esse resultado é preocupante e indica a neces-sidade de rever os currículos dos profissionais da educação, pois o conhecimento de como o sistema nervoso funciona e sua repercussão no ambiente escolar faz com que o professor reconheça as manifestações e necessidades físicas, cognitivas, emocionais e afetivas dos alunos nas relações individuais e coletivas, além de respeitar as dife-renças naturais dos alunos, que refletem em diver-sas maneiras de aprender, exigindo metodologias de ensino diferenciadas para cada ser humano, levando a uma contribuição positiva na prática pedagógica, minimizando o fracasso escolar e, consequentemente, permitindo que a alfabetização, bem como todo processo de ensino e aprendizagem, seja plenamente efetivado, diminuindo os atuais índices de analfabetos no Brasil.

Contudo, há muito para ser discutido sobre a inclusão de propostas de novas disciplinas nas matrizes curriculares dos cursos analisados neste estudo, pois mesmo no caso das universidades que têm autonomia e um grau de liberdade para orga-nizar sua matriz curricular, existem algumas regras estabelecidas pelo CNE que não podem ser altera-das, como, por exemplo, a carga horária mínima e as disciplinas obrigatórias. Portanto, essa questão deve ser amplamente analisada e discutida em todas as instâncias das universidades e das faculdades.

No que diz respeito à produção nacional, a temática neurociência na educação ainda se en-contra tímida, embora haja um interesse cada vez maior, percebido nos últimos dez anos. Conforme os dados apresentados, no Brasil a produção do conhecimento sobre a neurociência apareceu no final da década de 1990, ganhou corpo por volta de 2006 e está crescendo a cada ano.

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Márcia Gorett Ribeiro Grossi; Aline Moraes Lopes; Pablo Alves Couto

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A neurociência na formação de professores: um estudo da realidade brasileira

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Recebido em: 06.12.13Aprovado em: 17.02.14

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Eliana de Sousa Alencar Marques; Maria Vilani Cosme de Carvalho

VIVÊNCIA E AFETAÇÃO NA SAlA DE AUlA:

UM DIÁlOGO ENTRE VIGOTSKI E ESPINOSA

Eliana de Sousa Alencar Marques ∗

Maria Vilani Cosme de Carvalho ∗∗

RESUMO

O artigo apresenta reflexões teóricas a partir das contribuições de Lev Semionovich Vigotski e Baruch de Espinosa. O aprofundamento em torno da teoria de Vigotski revela que ele encontrou em Espinosa a sustentação filosófica que explica a relação entre afeto e intelecto no desenvolvimento do psiquismo humano. Com base nisso, propomos um diálogo entre Vigostki por meio da categoria vivência, e Espinosa a partir da categoria afetação. O estudo vem sendo realizado por meio de pesquisa bibliográfica com base na obra Ética de Espinosa e nos textos pedológicos escritos por Vigotski, precisamente La crisis de los siete años, A questão do meio na pedologia e Psicologia pedagógica. Os resultados apontam que vivências alegres aumentam a potência de agir de alunos e professores. O aumento da potência de agir significa também o aumento da potência de pensar, ou seja, significa maior consciência na atividade. Para o aluno, significa vivenciar aprendizagens que façam sentido para sua vida, ou seja, o que lhe traz felicidade. Para o professor, significa saber o que faz, isto é, maior autonomia no trabalho. Portanto, as vivências que constituem encontros alegres produzem afetações que ajudam na constituição de sujeitos mais emancipados.

Palavras-chave: Vivência. Afetação. Potência de agir. Encontros alegres.

ABSTRACT

EXPERIENCE AND AFFECTATION IN ThE CLASSSROOM: A DIALOGUE BETwEEN vYGOTSKY AND ESPINOSA

This paper presents theoretical reflections on the contributions of Lev SemionovichVygotsky and Baruch Spinoza. The analytical deepening of the theory of Vygotsky reveals that his ideas for explaining the relation between affection and

∗ Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí (PPGED/UFPI). Professora das disciplinas Didática, Avaliação da Aprendizagem e Estágio Supervisionado no Curso de Licenciatura em Pedagogia da UFPI/ Campus Petrônio Portela. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicologia da Educação (NEPPED/PPGED/UFPI). Linhas de pesquisa: Atividade de ensino-aprendizagem, Formação de professores, Significados e sentidos na abordagem Sócio-Histórica. Endereço para correspondência: Rua Belchior Barros, nº 2863, Planalto Ininga, CEP: 64052-500, Teresina–Piauí. [email protected]∗∗ Professora Pós-Doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí (PPGED/UFPI). Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicologia da Educação (NEPPED/PPGED/UFPI). Endereço para corres-pondência: Universidade Federal do Piauí (UFPI) /Centro de Ciências da Educação (CCE) / Departamento de Fundamentos da Educação (DEFE)/ Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED)/ Campus Universitário Ministro Petrônio Portella – Ininga, CEP: 64049-550 – Teresina–Piauí. E-MAIL [email protected]

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Vivência e afetação na sala de aula: um diálogo entre Vigotski e Espinosa

intellect in the development of the human psyche are philosophically based on Espinosa. Thus we propose a dialogue between Vygostky, analyzing the experience, and Espinosa, analyzing the affectation. This study has being carried out through bibliographical research based on the Spinoza work Ethics and on the pedological texts written by Vygotsky, precisely, The seven-year crisis, The question of the environment in the pedology and Educational psychology. The results indicate that joyful experiences increase the power of acting of students and teachers. The increasing power of acting also means increasing power of thinking, that is to say, it means a greater awareness on the activity. For the student, it means to experience learning in a way that makes sense, what brings him happiness. For the teacher, it means knowing what to do, that means greater autonomy. Therefore, the joyful experiences produce affectations that lead to more emancipated subjects.

Keywords: Experience. Affectation. Power to act. Joyful meetings.

Introdução

Este artigo tem como objetivo estabelecer rela-ção entre o pensamento de Lev S. Vigotski e Baruch de Espinosa, na tentativa de encontrar respostas que confirmem a tese de que o professor consegue realizar com sucesso sua atividade de ensino quan-do afeta seus alunos de alegria, potencializando o desejo dos alunos por novas aprendizagens. A pes-quisa bibliográfica realizada na ocasião de estudos de doutoramento revela que Vigotski encontrou em Espinosa a sustentação filosófica capaz de explicar a dimensão afetiva como parte constitutiva da na-tureza humana. Ou seja, há fortes indícios teóricos de que a teoria dos afetos de Espinosa serviu de sustentação filosófica para os estudos realizados por Vigotski com o objetivo de explicar a relação entre afeto e intelecto no desenvolvimento do psi-quismo humano. Ao lado disso, a ideia dos afetos originarem-se nas relações sociais (ESPINOSA, 2008) e das vivências se constituírem em fonte de afetos (VIGOTSKI, 2009) são construções que aproximam de forma incontestável os dois teóricos.

A compreensão dessa tese envolve o enten-dimento acerca da relação entre conceitos como sentidos, vivência e meio, presentes na obra de Vigotski, sobretudo em alguns textos pedológicos escritos entre 1933 e 1934, como “La crisis de los siete años (VIGOTSKI, 1996)”, “Quarta-aula: a questão do meio na pedologia” (VINHA; WEL-CMAN, 2010), além de “Psicologia pedagógica” (VIGOTSKI, 2003). Junto a isso, trataremos de

abordar os conceitos de afetação e potência de agir, amplamente difundidos na obra de Espinosa, sobretudo em “Ética” (ESPINOSA, 2008).

O artigo está organizado em duas partes. Na primeira parte, fazendo referência aos textos pe-dológicos listados acima, analisamos a categoria vivência na obra de Vigotski para esclarecer como essa categoria constitui-se em unidade de análise da relação entre consciência e meio social na for-mação e desenvolvimento do psiquismo infantil. Na segunda parte, centramos nossas reflexões na Filosofia de Espinosa e na sua relação com a teoria de Vigotski, a fim de compreender a relação entre afetação e desenvolvimento da potência humana, fazendo alusão às atividades de ensino como en-contros que carregam o potencial de se tornarem vivências alegres. Finalizamos com reflexões que ajudam a compreender em que sentido vivência e afetação, na perspectiva desses dois teóricos, pos-sibilitam a emancipação de professores e alunos.

O conceito de vivência (perejivânie) em Vigostski e a importância do meio no desenvolvimento humano

Vivência na língua portuguesa é a expressão que mais se aproxima de perejivânie, termo muito usado no cotidiano da língua russa e que serve para designar uma experiência acompanhada por senti-mentos e comoções vividas. Por ser uma expressão muito usada no seu cotidiano, Vigotski passa a utilizá-la nos textos que escreveu como crítico de

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Eliana de Sousa Alencar Marques; Maria Vilani Cosme de Carvalho

arte. A obra de maior repercussão na sua carreira como crítico de arte foi “A tragédia de Hamlet – príncipe da Dinamarca”. Toassa e Souza (2010) ex-plicam que Vigotski usa perejivânie (vivência) para explicar que elas são as principais responsáveis pela criação de tantas possíveis interpretações que o ator encontra para atuar, esclarecendo que essas vivências não têm relação com os acontecimentos imediatos do mundo exterior, ou seja, o que é vi-sível à plateia, mas com o sentido atribuído a elas pelo ator. Toassa (2011, p. 215) enfatiza que “para Vigotski, as vivências são os processos dinâmicos, participativos, que envolvem indivíduo e meio. Seus exemplos remetem a uma análise profunda da vivência humana e dos sentidos atribuídos a ela”.

Toassa (2011) segue explicando que é preciso ter o cuidado de diferenciar vivência de experi-ência, pois se trata de expressões que não têm o mesmo sentido na obra de Vigotski. As vivências “envolvem necessariamente qualidades emocio-nais, sensações e percepções, acarretando uma imersão do sujeito no mundo” (TOASSA, 2011, p. 35). Isso quer dizer que o sujeito jamais se mostra indiferente a uma situação de vivência, ela sempre terá para ele uma conotação emocional forte. O que pode não acontecer quando se tratar de uma situação de experiência, já que estas podem ou não suscitar marcas na vida de uma pessoa, como também podem no máximo evocar uma lembrança. Perejivânie (vivência) sempre será um “tipo de apreensão do real que não é mera interpretação, não é mera emoção, mas integra vários aspectos da vida psíquica.” (TOASSA; SOUZA, 2010, p. 759). Ou seja, o sujeito, ao longo da sua vida, pode constituir inúmeras experiências, mas só algumas delas se constituem em vivência.

O aprofundamento acerca desse conceito na obra de Vigotski dá-se no momento em que o autor volta-se para construir os fundamentos da Psicologia histórico-cultural. Com a intenção de esclarecer que o psiquismo humano constitui-se culturalmente, Vigotski usa vivência para expli-car que o desenvolvimento da consciência é um processo racional, mas, sobretudo, emocional, afetivo, ligado à vida real dos sujeitos, ou seja, “as vivências englobam tanto a tomada de cons-ciência quanto a relação afetiva com o meio e da pessoa consigo mesma, pela qual se dispõem, na

atividade consciente, a compreensão dos aconte-cimentos e a relação afetiva com eles” (TOASSA, 2011, p. 231).

Nos textos pedológicos, sobretudo os textos “La crisis de los siete años” e “A questão do meio na pedologia”, ambas conferências proferidas entre 1933 e 1934, o conceito de vivência passa a configurar como unidade de análise sistêmica para explicar a relação entre a consciência e o meio na formação e desenvolvimento da criança. Ou seja, o conceito de vivência será então utilizado por Vigotski como unidade de análise capaz de expli-car o desenvolvimento da consciência da criança na sua relação com o meio. Vigotski (1996) parte do pressuposto de que o processo de tomada de consciência tem início por meio da relação dialé-tica entre indivíduo e meio, tendo como mediador fundamental as vivências. Sua preocupação passa a ser esclarecer em que momento uma situação deixa de ser mera experiência e passa a ser vivência na vida da criança.

No texto “La crisis de los siete años”, Vigotski (1996) inicia sua análise explicando que a criança de sete anos enfrenta uma situação de crise ou vi-rada, descrita por cientistas como a crise dos sete anos. Nesse momento de crise, a criança tem como característica mais marcante a perda da espontanei-dade. Vigotski (1996, p. 377) esclarece:

La razón de la espontaneidad infantil radica en que no se diferencia suficientemente la vida interior de la exterior. Las vivencias del niño, sus deseos, la manifestción de los mismos, es decir, la conducta y la actividad no constituyen en el preescolar un todo suficientemente diferenciado. Em los adultos esa diferencia es muy grande y por ello el comportamiento de los adultos no es tan espontáneo e ingenuo como la del niño.

Ou seja, a criança, antes dos sete anos, manifesta o que sente da forma como sente, não há aqui ainda traços dessa diferenciação. A criança não separa sensações internas de sensações externas, seus sentimentos se encontram em situação sincrética. Isso faz com que a criança não camufle suas emo-ções, pelo contrário, ela as manifesta exatamente como ela as sente. Isso acontece porque a criança ainda não é capaz de compreender o que a afeta, ela simplesmente sente e expressa de forma espontânea esse sentimento.

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Vivência e afetação na sala de aula: um diálogo entre Vigotski e Espinosa

A perda da espontaneidade pela criança de sete anos acontece, esclarece Vigotski (1996), quando ela incorpora à sua conduta, ao seu modo de agir, à sua atividade, um fator intelectual, ou seja, “El factor intelectual que se inserta entre la vivencia y el acto directo, lo que viene a ser el pólo opuestro de la acción ingenua y directa propia del niño”. (VIGOTSKI, 1996, p. 378). Explicando de outra forma, esse fator intelectual faz a mediação entre a vivência e a percepção da criança acerca dessa vivência, o que para Vigotski (1996) significa a atribuição de sentido àquilo que se vive. Isso se torna possível pelo fato da criança, ao se apropriar da linguagem, apropriar-se do seu conteúdo semân-tico, ou seja, dos significados, tornando-se capaz de generalizar. As generalizações ajudam a criança a estabelecer uma diferenciação entre mundo interior e mundo exterior, passando então a ter consciência de seus estados afetivos, ou seja, passa a compre-ender o que vive e atribuir sentido a isso. Dito de outra forma, a criança passa a compreender seus afetos e, principalmente, o que a afeta.

Para esclarecer melhor essa relação, Vigotski (1996, p. 03) ilustra sua explicação usando o exemplo do jogo de xadrez em que tomam parte um adulto e uma criança:

El desarrollo de la percepción semântica del adulto puede compararse con el modo cómo se mira um ta-blero de ajedrez o cómo juega con él un niño que no conoce el juego y el niño que ya lo conoce. El niño que no sabe jugar se divierte con las figuras del ajedrez, las selecciona por el color, etc., pero el movimiento de las figuras no se determinará estructuralmente. El niño que aprendió a jugar se portará de otro modo. Para el primer niño el peón blanco y el caballo negro no están relacionados entre si; pero el segundo, que ya conoce los pasos del caballo, comprende que la jugada del caballo amenaza a su peón. Para él, tanto el caballo como el peón constituyen un todo.

Isso explica porque a criança, na crise dos sete anos, é capaz de perceber a realidade circundante com todas as nuances, seus vínculos e relações. Ela passa a significar conscientemente àquilo que a cerca. Agora suas sensações mantêm nexo com a realidade, ela tem clareza do que sente e porque sente. Ela passa a entender suas próprias vivências, ou seja, aquilo que a afeta de uma maneira ou de ou-tra, ou seja, “en él surge la orientación consciente de

sus propias vivencias” (VIGOTSKI, 1996, p. 380). A capacidade de significar as próprias vivências

leva a criança a estabelecer novas relações com a realidade e consigo mesma. Vigotski (1996, p. 380) menciona que, nessa fase, a criança também passa a generalizar os afetos, os sentimentos passam a ter uma lógica que antes a criança não conhecia:

El niño de edad escolar generaliza los sentimientos, es devir, cuando una situación se há repetido muchas veces nace una formación afectiva que tiene la misma relación con la vivencia aislada o el afecto que el concepto con la percepición aislada e el recuerda. Por ejemplo, el niño preescolar carece de auto estimación, de amor propio. Justamente em la crisis dos siete años es cuando surge la propia valoración: el niño juzga sus êxitos, su propia posición.

As novas formações afetivas, como a autoestima e o amor próprio, tendem à conservação, entretanto, segundo Vigotski (1996), diferentes destas, surgem os sintomas de que esta criança está em crise, o que pode culminar no aparecimento de comporta-mentos difíceis na idade escolar. Vigotski (1996, p. 380) não entra em pormenores com relação a esses sintomas, apenas enfatiza que “a la formación de vivencias atribuídas de sentido, se origina uma intensa pugna entre las vivencias”. Julgamos que o autor refere-se a comportamentos da criança que nessa idade são considerados problemáticos, como birra, indisciplina, mau humor, e que longe de se-rem comportamentos voluntários, são produtos de vivências da criança com o meio. Essa intensa bata-lha só poderá ser superada quando se modificarem as relações da criança com o meio. O meio a que o autor se refere é o social, nunca visto como inva-riável e permanente, mas sim como “Uma imensa quantidade de aspectos e elementos muito diversos, que sempre estão em flagrante contradição e luta entre si. Não devemos conceber o ambiente como um todo estático, elementar e estável, mas como um processo dinâmico que se desenvolve dialeti-camente” (VIGOTSKI, 2003, p. 197).

Essa análise requer a consideração do meio como algo que vai além do que é exterior à criança. Não pode ser superficial, se atendo somente aos as-pectos que circundam a criança, mas que não chega a penetrar naquilo que lhe é essencial, no modo como essa criança se relaciona com esses aspectos, ou seja, ao modo como esse meio é subjetivado.

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A análise do desenvolvimento da criança que parte apenas da descrição de aspectos externos, como o tipo de moradia, a organização familiar, o tipo de alimentação, o nível socioeconômico dos pais etc., parte do pressuposto de que a relação do indivíduo com o meio é de pura passividade. Embora esses elementos sejam importantes no desenvolvimento da criança, análises desse tipo não revelam a face subjetiva dessa relação, pelo contrário, escondem que a atitude do ser humano com relação ao meio é sempre de atividade e não de mera dependência (VIGOTSKI, 2003). Esse tipo de análise negligencia a dimensão subjetiva (BOCK; GONÇALVES, 2009) da formação desse sujeito, dimensão essa que revela os sentidos e significados que estão sendo produzidos por esse sujeito na sua relação com o mundo e com os outros, e que constituem seu modo de ser, pensar e agir no mundo.

Para esclarecer a importância do meio nas formações afetivas da criança, Vinha e Welcman (2011, p. 691) se posicionam dizendo que meio e criança mantêm uma relação dialética de profunda formação e transformação:

O meio não pode ser analisado por nós como uma condição estática e exterior com relação ao de-senvolvimento, mas deve ser compreendido como variável e dinâmico. Então o meio, a situação, de alguma forma influencia a criança, norteia o seu desenvolvimento. Mas a criança e seu desenvolvi-mento se modificam, tornam-se outros. E não apenas a criança se modifica, modifica-se também a atitude do meio para com ela, e esse mesmo meio começa a influenciar a mesma criança de uma nova maneira. Esse é um entender dinâmico e relativo do meio – é o que de mais importante se deve extrair quando se fala sobre o meio na pedologia.

Isso leva a crer que o meio, diferentemente do que se pensa, jamais permanece imutável para criança. Uma mesma situação pode ser vivenciada de diferentes maneiras. A investigação que parte da influência do meio deve, pois, analisar a dinâmica dessas relações, sem ignorar a criança e o que o meio representa para ela. O meio para a criança é sempre social. A criança como ser social é parte do social, sendo assim, esse meio, sendo social, nunca é externo para ela, constitui e é constituído pela criança que o vivencia.

O conceito de vivência se aprofunda quando Vinha e Welcman (2011, p. 686) tratam da questão metodológica do estudo da consciência mediante unidades:

A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado – a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa – e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da per-sonalidade, todos os traços do seu caráter, traços constitutivos que possuem relação com dado acon-tecimento. Dessa forma, na vivencia, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência.

Dito isto, Vinha e Wlcman (2011) sedimentam a ideia de que a vivência é a verdadeira unidade dinâmica da consciência. Ou seja, a vivência é o que permite compreender como cada pessoa se relaciona com o mundo e como esse mundo é sub-jetivado. Essa análise, entretanto, não se produz de forma simples, pois requer o entendimento de como a criança toma consciência do meio e o concebe, de como ela se relaciona afetivamente com certos acontecimentos. Disso decorre que as vivências constituem-se, assim, em fontes de afetos. Por essa razão, nenhuma vivência pode ter o mesmo sen-tido ou produzir as mesmas afetações em pessoas distintas, mesmo em se tratando de pessoas que participam do mesmo meio. A relação da criança com o meio é sempre uma relação de sentido. E é exatamente aqui que encontramos ressonância entre as ideias de Vigotski e Espinosa.

Segundo Espinosa (2008), as afetações viven-ciadas têm o potencial de aumentar ou diminuir nossa capacidade de agir e sentir. Ou seja, o au-mento ou a diminuição da potência de agir ou força de existir relaciona-se com a capacidade de afetar e ser afetado pelo meio à nossa volta. Isso signi-fica que as vivências constituem-se em fontes de afetos. Para melhor esclarecimento dessa questão, deteremo-nos de agora em diante nos postulados da Filosofia de Espinosa dos afetos e de como essa

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Vivência e afetação na sala de aula: um diálogo entre Vigotski e Espinosa

Filosofia pode nos ajudar a refletir sobre novas pos-sibilidades de tornar o encontro entre professores e alunos na sala de aula momentos de alegria que influenciem potências de educadores e educandos, permitindo assim a cada indivíduo um aprendizado ético e, acima de tudo, feliz.

O encontro entre Vigotski e Espinosa: reflexões entre vivência, afetação e encontros alegres na sala de aula

Muito embora Espinosa não tenha tratado expli-citamente sobre uma teoria educativa, não faltam em seus escritos referências, conceitos e princípios que denotam que “o conhecimento é o instrumento de acesso a uma esfera ideal de compreensão da realidade em si mesma” (COSTA-PINTO; RODRI-GUES, 2013, p. 111). Sua filosofia aponta para a importância do conhecimento para o ser humano, no alcance da sua libertação. Dessa forma, en-gendra conceitos que levam ao entendimento das atividades educativas e, sobretudo, das atividades na qual estão envolvidos diretamente professores e alunos como vivências que guardam o potencial de aumentar ou diminuir a potência de agir de cada um dos envolvidos. Contudo, o que significa potên-cia de agir? O que isso tem a ver com a atividade de ensino? O que isso tem a ver com vivência na concepção Vigotskiana?

Espinosa (2008) explica o mundo composto por dois elementos que, embora essencialmente dife-rentes, estão integrados, constituem uma unidade dialética. Por um lado, aquilo que ele denomina de Substância infinita e perfeita que é causa de si mesmo e que, portanto, existe em si e por si, não necessitando de outro para existir. A essa substância ele chamou de Deus ou Natureza: “além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma outra substância” (ESPINOSA, 2008, p. 29). Por outro lado, os demais entes existentes como provenientes dessa substância ele chamou de “modos” dessa substância, nos quais nos incluímos, assim como tudo mais que existe no mundo: “tudo que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido” (ESPINOSA, 2008, p. 31).

Dessa explicação se segue que uma Substância não pode ser produzida por outra coisa, pois ela será sempre causa de si mesma, isto é, a sua essência

necessariamente envolve a existência, ou seja, à sua natureza pertence o existir. Sendo assim, fica entendido que a essência da Substância consiste no seu existir, logo “a existência de Deus e sua essência são a única e mesma coisa” (ESPINOSA, 2008, p. 43).

O mesmo não pode ser dito dos modos fini-tos de Substância, ou seja, dos entes singulares. Espinosa (2008, p. 93) afirma que “a essência de um ente singular é aquilo que, se dado, a coisa é posta e que, se retirado, a coisa é retirada, ou aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser concebida, e inversamente, aquilo que sem a coisa não pode nem existir nem ser concebido”. Dito isso, o filósofo então afirma que o que constitui a essência dos entes singulares é “o esforço pelo qual cada coisa se esforça para perseverar em seu ser” (ESPINOSA, 2008, p. 175), ou seja, a potência de existir. Isso significa que nenhuma coisa tem em si algo por meio do qual possa ser destruído, pois a sua essência consiste em se autopreservar, todo seu esforço é para continuar existindo.

Disso decorre que a essência dos homens é a sua potência. É o esforço para continuar existindo. Na proposição 10 da parte III da Ética, Espinosa faz a diferenciação do esforço no homem quando este está referido apenas à mente, nesse caso trata-se de vontade; quando esse esforço refere-se simultanea-mente à mente e ao corpo, ele denomina de apetite. O apetite, portanto, nada mais é do que:

A própria essência do homem, de cuja natureza ne-cessariamente se seguem aquelas coisas que servem para sua conservação, e as quais o homem está assim, determinado a realizar. Além disso, entre apetite e desejo não há nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente, refere-se o desejo aos homens à medida que estão conscientes do seu apetite. Pode--se fornecer, assim, a seguinte definição: o desejo é o apetite juntamente com a consciência que dele se tem. (ESPINOSA, 2008, p. 177).

O desejo (esforço consciente) passa a ser entendido como a essência do ser, como a força que impulsiona o ser a existir e perseverar em seu ser, o esforço consciente que varia de acordo com o aumento ou a diminuição da nossa energia vital, que Espinosa (2008) também denomina de conatus. Essa energia é aumentada ou diminuída em função das afecções do corpo e da mente, ou

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Eliana de Sousa Alencar Marques; Maria Vilani Cosme de Carvalho

seja, da capacidade que os corpos têm de afetar e serem afetados.

Sobre a condição de afetar e ser afetado, Espi-nosa (2008, p. 163) esclarece que “o corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor”. Nossa potência é aumentada quando somos afetados de alegria; por outro lado, nossa potência é diminuída quando somos afetados de tristeza. Os afetos são, portan-to, “afecções do corpo pelas quais nossa potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções”. (ESPINOSA, 2008, p. 163).

Na proposição I do livro III da Ética, Espinosa (2008, p. 165) deixa muito clara a relação que existe entre a potência de agir e os afetos quando expõe que “a nossa mente, algumas vezes, age; outras, na verdade, padece. Mas especificamente, à medida que tem ideias adequadas, ela necessariamente, age; à medida que tem ideais inadequadas, ela necessariamente, padece”.

A ação pressupõe o aumento de potência. Isso ocorre à medida que temos ideias adequadas, que temos consciência dos motivos que nos levam a agir, quando atribuímos sentido ao que fazemos, quando temos clareza do que nos afeta. Quando temos ideias claras acerca do “que fazemos” e “por que fazemos”.

Quando, do contrário, agimos movidos por ideias inadequadas, confusas, mutiladas, despro-vidas de sentidos pessoais, enfim, quando não temos clareza e consciência dos motivos que nos levam a agir, na verdade, padecemos. É a isso que Espinosa se refere quando fala que nossa mente padece. Espinosa une assim dois termos histori-camente separados, “ação e razão, identificando a potência de agir com a potência de compreender” (COSTA-PINTO; RODRIGUES, 2013, p. 115), ou seja, quanto mais consciência temos das coisas, mais agimos, mais aumentamos nossa potência. Quanto menos compreendemos, menos agimos, o que significa diminuição da nossa potência.

Essa proposição, ideia fundamental da filoso-fia de Espinosa, de que “o pensamento é sempre afetivo – no sentido de que pensar adequadamente significa compreender os afetos que estão na gê-

nese de nossas ideias cognitivas, ou seja, pensar adequadamente é o mesmo que compreender as causas que dão origem aos nossos pensamentos” (COSTA PINTO, 2012, p. 74), é a ideia que vai dar sustentação à tese de Vigotski de que, no homem, razão e emoção constituem uma unidade e, por isso, toda ação humana é significada.

Para Espinosa (2008), conhecer verdadeira-mente significa conhecer pelas causas. Significa identificar o que leva a pessoa a agir, ou seja, seus motivos, o que a impulsiona a agir. Assim como Espinosa, Vigotski (2009) também compreende que nenhuma ação humana acontece desvinculada dos motivos, afetos e emoções. Ou seja, Vigotski considera que todo pensamento é emocionado, portanto, para compreendermos a fundo o que as pessoas fazem, necessitamos conhecer seus moti-vos, ou nas palavras de Espinosa (2008), a causa precisa pela qual uma coisa existe. Portanto, para esses dois filósofos, cada um em seu tempo, são os motivos/causas que apontam, em última ins-tância, o sentido de nossas ações, e estes sentidos estão intimamente relacionados ao tipo de afetação constituída na situação vivida.

Disso decorre o entendimento de duas ques-tões. Primeira, que nossa potência de agir mantém estreita relação com os nossos afetos; segunda, que o aumento de nossa potência mantém vínculo com a compreensão adequada do que causa nossos estados afetivos. Isso tem decisivas influências nos processos educativos.

Costa-Pinto (2012, p. 80) explica-nos que “a potência de agir humana é da ordem do encontro, pois se relaciona com as infinitas possibilidades de composição entre os afetos nos encontros ativos (ações) e passivos (paixões), ou seja, relaciona-se com a nossa capacidade de afetar e ser afetado”. Isso significa que se nos encontros que temos com as outras pessoas somos afetados de alegria, a potência é aumentada; se nesses encontros o predomínio é de tristeza, a potência é diminuída. Sendo assim, os encontros representam infinitas possibilidades, podem ser “bons, alegres, ativos, potencializadores, compatíveis, ou mau, tristes, passivos, despontencializadores, incompatíveis” (COSTA-PINTO, 2012, p. 84).

O processo educativo constitui-se num meio de encontros, por isso carrega em si o potencial de afe-

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Vivência e afetação na sala de aula: um diálogo entre Vigotski e Espinosa

tar de alegria ou de tristeza os sujeitos envolvidos nesses encontros. Na sala de aula, o encontro entre professores e alunos pode ser muito mais complexo do que se imagina, pois esse encontro tanto pode ser marcado por situações de compatibilidade, como por situações de conflito. Isso ocorre em razão do dinamismo dos nossos afetos, o que nos confere múltiplas possibilidades de compreender a realidade. Isso significa que esses encontros po-dem constituir-se em vivências e como tal podem desencadear afetações alegres ou afetações tristes, podem aumentar ou diminuir a potência de agir, fato que ocorre, segundo Espinosa (2008, p. 209), porque “cada um julga ou avalia, de acordo com seu afeto, o que é bom ou mau, o que é melhor ou pior e, finalmente, o que é ótimo ou péssimo”.

Nesse sentido, aqueles que desejam realizar atividades bem-sucedidas em educação devem se esforçar por realizar encontros alegres. Espinosa (2008, p. 285) explica-nos que “o desejo que surge da alegria é, em igualdade de circunstância, mais forte que o desejo que surge da tristeza”. Sendo assim, consideramos encontros alegres na escola as atividades de ensino que promovem aprendizagem e se constituem em fonte de desenvolvimento e surgimento do novo.

Essas atividades são organizadas de tal maneira que levam os alunos a produzirem sentidos pesso-ais, mediadores do desejo em continuarem apren-dendo e se desenvolvendo. A alegria é a expressão do aumento da potência do aluno e, nos processos de ensino e aprendizagem, isso ocorre quando o aluno aprende algo que faça sentido para sua vida, quando tem consciência do que aprende e quando esse aprendizado lhe traz felicidade. O professor que vivencia a docência com alegria sabe o que faz, tem clareza de seus objetivos, o que significa maior autonomia no trabalho. Portanto, concluímos que as vivências que constituem encontros alegres ajudam na produção de sujeitos mais emancipados.

Considerações finais

Partindo do pressuposto de que os sujeitos constituem-se historicamente, a partir de múlti-plas mediações, compreendemos que vivência e afetação são partes das mediações que constituem professores e alunos envolvidos em atividades de

ensino consideradas exitosas. Para esclarecer como acontece essa mediação, propusemos neste texto estabelecer um diálogo entre Lev S. Vigostki e Baruc de Espinosa. Os resultados alcançados com o estudo levam à compreensão de que vivência e afetação são processos que medeiam o desenvol-vimento da consciência. Na atividade de ensino e aprendizagem, significa aumento da consciência de professores e alunos em atividade. Como isso acontece?

O resultado da pesquisa realizada com base nos dois teóricos apontou que a capacidade de atribuir sentidos é o que possibilita que um encontro entre professores e alunos venha a ser significado como uma vivência alegre ou triste. Vivências alegres aumentam a potência tanto de professores como de alunos. Aumentar a potência de agir significa também aumentar a potência de pensar.

Nas atividades de ensino e aprendizagem, o aumento da potência dos alunos significa maior consciência na aprendizagem, significa vivenciar aprendizagens que façam sentido para suas vidas, ou seja, o que lhes traz felicidade. Na atualidade, constitui um dos grandes desafios para todos os educadores conseguir fazer com que seus alunos encontrem um sentido para estar na sala de aula, para se envolverem mais e melhor com os conteú-dos ensinados, com as atividades propostas. É cada vez mais urgente que a escola torne-se um espaço de encontros alegres, o que significa a descoberta do prazer em estar na escola, em aprender. Isso tudo pode ser potencializado nos alunos com o aumento do desejo por novas aprendizagens, novas expe-riências e o encontro de novos sentidos pessoais relacionados à escola, aos conteúdos escolares e às relações partilhadas e vivenciadas com professores.

Para o professor, significa maior consciência do que está fazendo, clareza de seus objetivos, maior poder de decisão. No trabalho, isto representa maior autonomia. Se considerarmos que na atualidade há uma forte tendência de proletarização do trabalho docente, fato que leva muitos professores a não terem controle sobre seu próprio trabalho, a agir em conformidade com a burocracia educacional, o que contribui para o desenvolvimento de uma atividade alienada, conseguir maior autonomia para realizar a atividade profissional constitui um dos grandes desafios da profissão.

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Portanto, concluímos que vivências que constituem encontros alegres potencializam afetos que medeiam o desenvolvimento da

consciência de professores e alunos, fato que possibilita a constituição de indivíduos mais emancipados.

REFERÊNCIAS

BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. da G. M. (Org.). A dimensão subjetiva da realidade: uma leitura sócio--histórica. São Paulo: Cortez, 2009.

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COSTA-PINTO, A. B.; RODRIGUES, L. Reflexões sobre a educação em Espinosa: a experiência do encontro como segundo nascimento. Filosofia e Educação, Campinas, v. 5, n. 1, p. 111-129, 2013. Disponível em: <http://www.fae.unicamp.br/revista/index.php/rfe/article/view/4390/3836>. Acesso em: 12 jun. 2013.

ESPINOSA, B. de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

TOASSA, G. Emoções e vivências em vigotski. Campinas, SP: Papirus, 2011.

TOASSA, G; SOUZA, M. P. R. As vivências: questões de tradução, sentidos e fontes epistemológicas no legado de Vigotski. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 757-779, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642010000400007&script>. Acesso em: 26 maio 2012.

VIGOTSKI, L. S. La crisis de los siete años. In. ______. Obras escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor, 1996.

______. Psicologia e pedagogia: edição comentada. Porto Alegre: Artmed, 2003.

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VINHA, M. P.; WELCMAN, M. Quarta aula: a questão do meio na pedologia, Lev Semionovich Vigotski. Psico-logia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 681-701, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642010000400003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 out. 2012.

Recebido em: 25.01.2014 Aprovado em: 13.03.2014

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Ronei Guaresi

REPERCUSSÕES DE DESCOBERTAS

NEUROCIENTÍFICAS AO ENSINO DA ESCRITA

Ronei Guaresi∗

RESUMO

Este trabalho explora algumas descobertas das neurociências com implicação com a educação, em especial com a aquisição e o aprendizado da escrita. O advento das tecnologias permitiu ampliar substancialmente o funcionamento da linguagem no cérebro humano, como se aprende, processa, evoca ou se esquece o conhecimento verbal. Com base em Damásio e Damásio (2004), Dehaene (2012), Scliar-Cabral (2009), Hassin, Uleman e Bargh (2005), Ausubel (1982), Ausubel, Novak e Hanesian (1983), Izquierdo (2002, 2004), Boujon e Quaireau (2000), discute-se e especula-se sobre as seguintes questões: dissimetrização e invariância na alfabetização; aprendizado indireto, conhecimentos prévios e prática da leitura no contexto escolar; plasticidade cerebral e período crítico; diversidade de estimulação, emoção e nível de processamento na consolidação das memórias; atenção e aprendizagem. Defende-se, por fim, a consideração de achados neurocientíficos no ensino de língua materna.

Palavras-chave: Neurociências. Educação. Aprendizado. Escrita.

ABSTRACT

REPERCUSSIONS OF NEUROSCIENTIFIC FINDINGS FOR TEAChING wRITING

This paper explores some findings of neuroscience considering some implications for education, particularly for the acquisition and learning of writing. The advent of technology has allowed a substantially expansion of the knowledge about the functioning of language in the human brain: how we learn, process, evoke and forget the verbal knowledge. Based on Damasio and Damasio (2004), Dehaene (2012), Scliar-Cabral (2009), Hassin, Uleman and Bargh (2005), Ausubel (1982), Ausubel, Novak e Hanesian (1983), Izquierdo (2002, 2004), and Boujon and Quaireau (2000), we discuss and speculate on some questions: desymmetrization and invariance in literacy; indirect learning, previous knowledge and practice of reading in the school context; brain plasticity and critical period; diversity of stimulation, emotion and level of processing in memory consolidation; attention and learning. It is argued, finally, the importance of taking into consideration the neuroscience findings for the teaching of the mother tongue.

Keywords: Neuroscience. Education. Learning. Writing.

∗ Doutor em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor adjunto do Depar-tamento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Endereço para corres-pondência: Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL). Estrada do Bem-Querer, Km 4, UESB – Vitória da Conquista- BA. [email protected]

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Repercussões de descobertas neurocientíficas ao ensino da escrita

Introdução

John Gabrieli (2009), em publicação na Revista Science, afirma que as descobertas neurocientíficas nos últimos tempos provocaram uma nova sinergia entre ciências cognitivas e educação. Os conheci-mentos neurocientíficos1 já acumulados sobre o intrincado e engenhoso cérebro humano – o grande administrador do corpo humano – têm importante repercussão à prática educativa. Sob o ponto de vista das contribuições das aproximações entre ciências, observa-se que são vias de mão dupla. Costa e Pereira (2009) citam uma palestra de Steven Pinker2 em que ele afirma que “a linguagem é uma janela para compreender o cérebro”. Ou seja, de um lado as neurociências se beneficiam da Linguística para entender o cérebro; de outro, a Linguística, es-pecialmente a área da Aquisição da Linguagem, se beneficia dos achados neurocientíficos para enten-der como os fenômenos da linguagem ocorrem no cérebro, possibilitando, especialmente ao professor de língua materna, fazer escolhas pedagógicas que favoreçam o aprendizado.

As implicações das descobertas neurocientí-ficas já foi tema de debate de importantes órgãos internacionais. A Organização para a Coope-ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é uma organização internacional que procura fornecer uma plataforma para comparar polí-ticas econômicas e propor elementos, tanto de políticas domésticas quanto internacionais, para solucionar problemas econômicos e fomentar de-senvolvimento econômico sólido e consistente3. Pela compreensão da importância do processo 1 A acepção do termo neurociências para este trabalho tem a ver

com sua abrangência interdisciplinar, ou seja, ciências que tratam, mesmo de maneira fronteiriça, do sistema nervoso humano; entre elas destacam-se, para este estudo, a Psico/Neurolinguística e a Neuropsicologia.

2 Steven Pinker é professor e pesquisador de Harward. Para maiores informações recomendo palestra disponível sob o título Linguistics as a window to understanding the brain, ministrada por Pinker e disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Q-B_ONJIE-cE>.

3 A OCDE coordena o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), uma iniciativa internacional de avaliação com-parada, aplicada a estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. Esse teste avalia três áreas do conhecimento, sendo uma delas a compreensão leitora. O Brasil participa dessa avaliação e os resultados são divulgados pelo INEP. Maiores informações dispo-níveis em: <http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional--de-avaliacao-de-alunos>.

de aprender para o desenvolvimento econômi-co, a OCDE lançou um amplo estudo, cujos resultados constam em duas publicações sobre as implicações das recentes descobertas no que se refere às ciências do cérebro e da aprendiza-gem: Comprendre le cerveau: vers une nouvelle science de l’apprentissage (ORGANISATION DE COOPÉRATION ET DE DÉVELOPPEMENTE ÉCONOMIQUES, 2002), “Compreender o cére-bro: para uma nova ciência da aprendizagem”, e Comprende le cerveau: naissance d’une science de l’apprentissage, (ORGANISATION DE COOPÉRATION ET DE DÉVELOPPEMENTE ÉCONOMIQUES, 2007), “Compreender o cérebro – nascimento de uma ciência da aprendizagem”. Nesta, os neurocientistas da cognição confron-taram questões de interesse direto da educação. Um dos objetivos do referido estudo é encorajar o diálogo entre educadores e neurocientistas, para melhor entendimento dos intrincados processos que a aprendizagem exige.

Neste trabalho, por sua vez, pretende-se des-tacar algumas descobertas das neurociências com implicação com a educação. Conforme avançam as ciências que se dedicam a conhecer o cérebro humano, certas questões vão aos poucos sendo esclarecidas: como se aprende? O que impede ou prejudica no processo de aprender coisas novas e aperfeiçoar conhecimentos que já se tem? Como o professor pode facilitar ou dificultar o aprendizado de seus alunos? Alerta-se, contudo, que, por um lado, é apenas a eleição de alguns aspectos, sem a intenção de esgotar as implicações possíveis; por outro, alerta-se para o risco da superficialidade de abordagem dos tópicos.

O domínio da linguagem verbal nos permi-te estruturar o mundo em conceitos e reduzir a complexidade de estruturas abstratas a fim de apreendê-las. Esse fenômeno semiótico, que tem no signo linguístico o exemplo máximo de abstra-ção e complexidade, é fenômeno essencialmente humano. Como não há outra espécie com tamanha capacidade, é de se supor que as células nervosas da espécie humana são programadas de alguma forma para essa faculdade, aquisição que ocorre num tempo relativamente curto. O argumento desse aprendizado, notável pelos seus resultados e pobre de estímulos linguísticos, levou Noam Chomsky

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(1965) a supor que existe uma gramática universal inata da espécie, contrapondo a natureza ambienta-lista de aprendizagem proposta pelos behavioristas, ensejando novo vigor ao debate filosófico secular entre nature e nurture, classicamente posições de Platão e Aristóteles. Parece sensato admitir que o atual avanço das ciências não permite encerrar esse debate entre o inato e o adquirido. Pelo contrário, o instiga.

Pesquisadores afirmam que o processamento da complexidade4 dos fenômenos linguísticos, tanto da fala quanto da escrita, ocorre de forma essencialmente distribuída no cérebro (DAMÁSIO; DAMÁSIO, 2004; DEHAENE, 2012). Por conta dessa distribuição, a localização dos centros de processamento de linguagem é muito mais compli-cada que a localização de áreas sensório-motoras.

A leitura proficiente, por exemplo, depende de porção de associações sinápticas das células nervosas que, segundo hipotetiza o francês Stanis-las Dehaene (2012), têm de ser recicladas para o processamento da leitura, já que esta é fenômeno cultural recente na história da evolução do homem. Segundo esse pesquisador, o cérebro não evoluiu para a leitura, pelo contrário, a leitura se adaptou às potencialidades do cérebro humano numa espécie de reciclagem de áreas neuronais antes utilizadas para processamento de aspectos similares. Por mais que a invenção da escrita seja de aproxima-damente 5 mil anos, o autor lembra que é tempo relativamente recente na história da humanidade para que essa atividade humana tenha imprimido alguma alteração na especialidade neuronal para o processamento da escrita.

Dos conhecimentos acumulados nas neuroci-ências com reflexos ao aprendizado da escrita, os 4 Sobre a complexidade envolvida no processamento da linguagem

sugiro a leitura de Coscarelli e Novais (2010), em artigo intitulado Leitura: um processo cada vez mais complexo. Os autores descrevem as diversas operações simultâneas e integradas que o leitor deve realizar. Segundo elas, o ouvinte ou leitor deve realizar inúmeras operações para a construção dinâmica de redes referenciais, cadeias causais, relações de tempo e espaço, relações lógico-discursivas entre outras, que requerem sempre muitas e diversas operações inferenciais. Todo evento comunicativo, nessa perspectiva, faz emergir sentidos que irão demandar que as operações cognitivas se auto-organizem a todo o momento, para se adaptarem aos sentidos que estão sendo gerados, buscando a coerência ou a harmonia entre eles e entre o sentido e a situação exterior (fatores pragmáticos). Esse quadro ratifica o argumento em favor da tese de que, em todo evento comunicativo, o sentido, sob o ponto de vista cognitivo, é único, não se repete.

sobre o necessário aprendizado da dissimetrização e a capacidade do cérebro de abstrair invariâncias são importantes elementos cognitivos que subjazem um escritor experiente.

Dissimetrização e invariância na alfabetização

De acordo com Dehaene (2012), a dificuldade de aprender algo na modalidade escrita da língua está na maior ou menor capacidade de as pessoas fazerem a reciclagem neuronial. O autor lembra que diferentemente da modalidade oral, a escrita não é natural, já que é uma invenção cultural recente na história da humanidade. No estágio inicial da leitura, a dificuldade é potencializada pela necessidade de dissimetrização da escrita no cérebro, ou seja, processo em que o aprendiz tem que distinguir letras em espelho. Esse é um processo difícil, pois, segundo Dehaene, nosso cérebro não foi programado evolutivamente para distinguir diferenças entre b e d, p e q, u e n, di-ferenças distintivas na nossa língua, por isso as ocorrências de palavras em espelho frequentes no período da alfabetização (DEHAENE, 2012; SCLIAR-CABRAL, 2009). Os neurônios que processam as imagens visuais são programados para simetrizar as informações visuais. Contudo, para o processamento do sistema alfabético é necessário reciclagem das células nervosas para dissimetrizar, pois os traços das letras são distin-tivos. Segundo Scliar-Cabral (2009), essa é im-portante descoberta da neurociência com impacto para a aquisição e o aprendizado da escrita. Em proposta de alfabetização, Scliar-Cabral (2012) propõe que inicialmente não se apresentem grafe-mas passíveis de espelhamento. A automatização do fenômeno da dissimetrização é importante etapa da aquisição da escrita e um dos principais argumentos em defesa da tese de Dahaene descri-ta acima. O autor alerta que eventuais alterações de escrita, portanto, contrariamente a opiniões correntes, podem não ser sintomas de dislexia, mas consequência natural da organização das áreas visuais do cérebro.

Outra demanda cognitiva para a alfabetização também necessitando de reciclagem neuronal é a necessidade de processamento da invariância.

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Repercussões de descobertas neurocientíficas ao ensino da escrita

Afinal, há muitas formas de se grafar, por exemplo, a sequência sonora /a/: A, a, a, a, a etc. Na forma cursiva, então, cada letra grafada é única e essas diferenças devem ser processadas pelo cérebro para buscar as invariâncias daquele estímulo visu-al. Segundo Dehaene (2012), uma área na região occípito-temporal-ventral do hemisfério esquerdo, chamada pelo autor de região da forma visual das palavras, processa essas invariâncias. Lesões nessa área, segundo o autor, tornam um sujeito aléxico, sem capacidade de ler. Como forma de otimizar o aprendizado e preservar a criança de pelo menos um pouco da complexidade que envolve o aprendizado da leitura e da escrita, Scliar-Cabral (2012) sugere, em sua proposta de alfabetização, que a forma cursiva de escrita seja apresentada à criança depois de ela já escrever pequenos textos. O que para um leitor proficiente parece natural e automático, para um alfabetizando, letras com grande diversidade de grafias impõem dificuldades substanciais, pois o cérebro ainda não está preparado para processar as invariâncias das letras.

Outros achados neurocientíficos repercutem no histórico embate entre métodos de alfabetização. Segundo Dehaene (2012, p. 21, grifo do autor), “as particularidades do sistema visual [...] explicam por que as operações que nosso cérebro realiza não têm nada em comum com um reconhecimento ‘global’ da forma das palavras”. Segundo ele, o objeto vi-sual linguístico “explode em miríades de pequenos fragmentos que nosso cérebro se esforça em recom-por traço por traço, letra após letra” (DEHAENE, 2012, p. 21). Ainda, afirma ele, “reconhecer uma palavra consiste, primeiramente, em analisar essa cadeia das letras e aí descobrir as combinações das letras (sílabas, prefixos, sufixos, radicais das palavras), para enfim associá-las aos sons e aos sentidos” (DEHAENE, 2012, p. 21). Segundo o autor, o cérebro realiza esses processos sublimi-narmente e em alta velocidade, dando a impressão de leitura da palavra toda, contudo não é o que mostram as técnicas de imageamento do cérebro humano. Em artigo intitulado A desmistificação do método global, Scliar-Cabral (2013) mostra, base-ada nos recentes achados das neurociências, que o reconhecimento das palavras pelo cérebro não se dá por configuração, desmistificando, portanto, os métodos globais, os quais contam com muitos

adeptos no Brasil, a despeito de sua condenação oficial em países como a França5.

Como vimos acima, uma das propriedades do cérebro humano é a de extrair regularidades do input recebido (REBER, 1967), a maior parte das vezes sem que o sujeito se dê conta (HASSIN; ULEMAN; BARGH, 2005), e isso representa sig-nificativa parcela dos conhecimentos de que dispo-mos. Essa capacidade inferencial e de abstração de regularidades está, contudo, diretamente ligada aos conhecimentos prévios do aprendiz. Diante disso, é possível especular que a criança com maior experi-ência com a escrita no período pré-escolar e cujas condições lhe permitiram desenvolver a coordena-ção motora fina e acumular experiências linguísti-cas entra em vantagem em relação às crianças sem essas condições. Ainda, é possível especular que a capacidade de abstração de regularidade dessas crianças não é suficiente para o sucesso no processo de alfabetização6. É necessário ensino explícito da correspondência grafema-fonema, haja vista os índices de analfabetismo e as avaliações oficiais7. Além do aprendizado indireto e dos conhecimentos

5 Sobre as críticas aos métodos globais ou sintéticos, bem como um rastreamento do entendimento de vários países sobre o assunto, sugiro a leitura de publicação intitulada Lereis como Deuses: a Tentação da Proposta Construtivista, de João Batista Araújo e Oliveira (2006). Uma alternativa que consideramos interessante para não se chegar à conclusão simplista de que a solução é voltar às cartilhas de décadas atrás, com textos artificialmente construídos para a aprendizagem da correspondência grafema/fonema, sugiro a leitura de Alfabetização e letramento: caminhos e descaminhos, de Magda Soares (2004). Ainda, é importante dizer que Emília Ferreiro, a quem se atribui a proposta construtivista, cujo processo de alfabetização é de orientação pela palavra como um todo, enfatiza em entrevista o ensino do código, ainda que não o diga como. A referida entrevista está disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=BeYCWLqZvhA>.

6 Para este trabalho, entendemos alfabetização como propõe Magda Soares (2004), como assimilação do sistema convencional de escrita, distante, por sua vez, de como conceitua Emília Ferreiro. Segundo esta, o conceito de alfabetização abarca o de letramento, ficando este sem sentido. Essa postura está defendida em entrevista à Revista Nova Escola (PELLEGRINI, 2003). Como crítica de entendimento de ensino da escrita como código sugere-se assistir à entrevista de Emília Ferreiro à Nova Escola, disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ImQa0t_qVm4>.

7 Sugere-se conhecer o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), disponível em: <http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.01.00.00.00&ver=por>. Entre as avaliações oficiais sugere-se consultar especialmente o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), disponível em: <http://ideb.inep.gov.br/> e o Programme for International Student Assessment (PISA) ou Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, disponível em: <http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de--avaliacao-de-alunos>.

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Ronei Guaresi

prévios, a seção a seguir trata da relação desses aspectos com a experiência em leitura.

Aprendizado indireto, conhecimentos prévios e prática da leitura no contexto escolar

O cérebro é o grande administrador do nosso corpo; todo o organismo humano é gerenciado pelo sistema nervoso central. Os estímulos provindos dos órgãos dos sentidos são percebidos e proces-sados pelo cérebro promovendo alguma alteração na força das sinapses, fenômenos eletroquímicos no contato dos filamentos neuronais. A simples evocação de uma memória promove algum reforço daquela memória. Naturalmente, muitos desses estímulos que são percebidos pelo cérebro não estão no âmbito da consciência e têm sua parcela de influência na gama de conhecimentos de que dispomos (HASSIN; ULEMAN; BARGH, 2005).

Freud, desde o início do século XX, já postulava a existência do inconsciente, gama de conhecimen-tos que interferem nas nossas escolhas diárias. A Psicologia Cognitiva trata de processos automá-ticos, as neurociências de memória implícita, a Psicologia Social como percepção subliminar etc. Resumidamente, para os pesquisadores do assunto Hassin, Uleman e Bargh (2005), a maior parte do processamento realizado pelo cérebro é inconscien-te e interfere em nossas escolhas.

As pesquisas mostram que muito daquilo que aprendemos, aprendemos sem que queiramos, aprendemos indiretamente, incidentalmente. Flo-riani (2005) e Guaresi (2012), cada investigação com suas especificidades, verificaram em experi-mento que participantes com leitura frequente de textos com frases na voz passiva tendiam a utilizar com mais frequência frases com essa estrutura sem qualquer ensino explícito. Esses resultados mostram que muito daquilo que aprendemos, aprendemos fora do ensino direto, explícito, cons-ciente. Construções presentes na aquisição da fala como fazeu, fazi, sabo, por exemplo, são resultado de abstrações das regularidades da língua e não do ensino de alguém.

Esses elementos reforçam a importância da prática da leitura como favorecedora do desen-volvimento da habilidade da escrita. Smith (1983)

defende a ideia de que muito dos conhecimentos ne-cessários para a escrita se devem à leitura. Segundo ele, pouco ainda se sabe sobre a influência da leitura no aprendizado de múltiplos aspectos linguísticos, nem sempre possíveis de ser adequadamente abor-dados no ensino formal dada a complexidade que envolve o aprendizado da escrita. De acordo com o autor, não há como ensinar formalmente todas as sutilezas que envolvem circunstâncias formais, tipologias textuais adequadas para cada momento e intenção, estilo, entre outros aspectos. Smith (1983) defende a tese de que as convenções da escrita são adquiridas pelo sujeito sem que se perceba, indire-tamente. Para esse teórico, a aprendizagem “[...] é inconsciente, sem esforço, acidental, indireta e es-sencialmente cooperativa” (SMITH, 1983, p. 561).

Diante dos aspectos colocados acima, há pes-quisas que confirmam a observação frequente dos professores de língua materna, mostrando a relação positiva entre prática de leitura e desempenho em escrita. Essas pesquisas mostram que leitores mais experientes escrevem melhor (GUARESI, 2004). Diante desses aspectos, parece possível especular que a competência para a escrita se deve, em grande parte, à prática da leitura. Um leitor de um romance, por exemplo, está com seus recursos cognitivos / atencionais direcionados ao desenrolar da trama e não propriamente sobre os pormenores estruturais do texto, salvo poucas exceções que, por vezes, nos chamam atenção. Mesmo esses estímulos fora do âmbito da consciência são percebidos e processa-dos pelo cérebro, reforçando as sinapses daqueles fenômenos linguísticos, deixando-os, por sua vez, mais disponíveis para serem evocados e utilizados.

A frase atribuída a Monteiro Lobato, “um país se faz com homens e livros”, traz sabedoria indelével no que diz respeito à formação acadêmica de um indivíduo e que, como muito sucintamente vimos, tem base neurocientífica. Para Smith (1999, p. 73-75), o que temos no cérebro é um modelo do mundo intrincadamente organizado e inteiramente consistente e integrado em um todo coerente como resultado de uma permanente aprendizagem e pensamento adquiridos com total desenvoltura. Conforme Smith (1999), nossa habilidade para ex-trair sentido do mundo, como nossa habilidade para recordar eventos, para agir apropriadamente e para prever o futuro, é determinada pela complexidade

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Repercussões de descobertas neurocientíficas ao ensino da escrita

do conhecimento que já possuímos. Durante a lei-tura, esse background de conhecimento, chamado entre os psicolinguistas de conhecimento prévio, permitirá com que o leitor faça antecipações que serão confirmadas ou refutadas. Por outro lado, nossa limitação de compreensão leitora está estrei-tamente relacionada com os conhecimentos prévios acumulados. Ou seja, para que algo faça sentido e seja compreendido é necessário que o extrato lido ou ouvido encontre o que David Ausubel chama de subsunçores, conceitos preexistentes na estru-tura cognitiva do indivíduo que dão significado e suportam a compreensão (AUSUBEL, 1982; AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN, 1983).

Para o neurocientista Ivan Izquierdo (2004), pesquisador do Instituto do Cérebro da PUCRS, internacionalmente conhecido por seus estudos sobre a memória humana, a leitura é a forma mais completa de exercitar a memória8. Ainda nessa perspectiva, em artigo intitulado Was Weber wrong? A human capital theory of protestant eco-nomic history, publicado no periódico Quarterly Journal of Economics, de responsabilidade do Departamento de Economia da Universidade de Harvard, os autores Becker e Wößmann (2009) de-fendem uma teoria alternativa à tese de Max Weber que atribuiu a prosperidade econômica superior das regiões protestantes a uma ética de trabalho protes-tante. Os referidos autores sustentam, por sua vez, que as economias protestantes prosperaram porque a instrução na leitura da Bíblia gerou o capital hu-mano essencial para a prosperidade econômica. As pesquisas dos autores mostraram que o protestan-tismo de fato levou a uma prosperidade econômica superior, mas também para uma educação melhor, com maiores índices de alfabetização.

Supondo que a tese dos professores de Harvard esteja correta, é possível especular a importância da inserção da prática de leitura nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Até o final da adolescência, mais ainda mais na infância, o cérebro se mostra plástico, ou seja, um período em que estão favore-cidos o aprendizado e a propriedade de as células nervosas processarem estímulos para os quais 8 Sobre a interface entre memória em leitura sugiro, ainda, o artigo

de Pedro Nunes de Castro e Rosângela Gabriel (2007), Interface entre memória e leitura. Os autores desse artigo partem da afirma-ção de Izquierdo sobre a importância da leitura na consolidação de memórias.

não foram programadas evolutivamente. Cabe a lembrança de que se a aquisição da fala é natural, a aquisição e o aprendizado da escrita, segundo o neurocientista Stanislas Dehaene (2012), não o é. Segundo esse neurocientista, para o aprendizado da escrita, células nervosas devem ser recicladas para dar conta de aprendizado atual de nossa sociedade. A propriedade da plasticidade cerebral e a hipótese do período crítico são mais bem desenvolvidos na seção que segue.

A plasticidade cerebral e o período crítico

Aprender, sob o ponto de vista neurocientífico, é estabelecer ou reforçar a força das sinapses9 (POERSCH, 2007), que, segundo Popper e Eccles (1995), são delicados equilíbrios dinâmicos. As interligações das células nervosas não ocorrem de maneira fixa, estão em contínua mudança estrutural, principalmente por conta dos estímulos sensoriais, ou seja, o cérebro é plástico (FERRARI et al., 2001). Como elementos que dificultam a plasticida-de neuronal estão a especialidade ou programação das células nervosas e a idade do indivíduo.

Em relação à especialidade, as células nervosas são, de maneira inata, programadas para o proces-samento de determinados estímulos (DAMASIO; DAMASIO, 2004), daí temos neurônios progra-mados especificamente para o processamento de estímulos auditivos, outros visuais etc. No caso de lesões cerebrais, outras áreas são recrutadas para o processamento daqueles estímulos. Contu-do, isso não ocorre de maneira pronta e imediata, pois aquelas células recrutadas têm delineamento genético distinto. Assim, justificam-se a dificul-dade e a importância das sessões de terapia para o reaprendizado das funções perdidas.

A plasticidade, ainda, depende diretamente da idade do indivíduo. Estima-se que o ser humano nasce com aproximadamente um trilhão de células nervosas que, por volta dos 20 anos de idade, se reduzem para aproximadamente 86 bilhões (LENT et al, 2012). Alguns neurônios podem participar de até dez mil sinapses (STAHL, 2002). O lobo

9 Sinapses são os pontos de interação neuronal que ocorrem por meio de seus filamentos, chamados de dendritos e axônios.

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frontal, defendem os neurocientistas, é a última área a ser consolidada no cérebro humano (DEHA-ENE, 2012). Durante a infância e a adolescência há períodos de poda neuronal significativa. Da infância até a adolescência, por conta de fatores como a ampla disponibilidade de células nervosas, o aprendizado está favorecido. Daí a observação da facilidade de aprendizado de crianças em relação ao adulto ou idoso.

O cérebro é, portanto, bastante suscetível aos estímulos do meio ambiente, modificando-se sob o efeito das experiências do indivíduo. Isso permite constante adaptação e aprendizado durante a vida. Segundo o francês Stanislas Dehaene (2012), é um erro associar biologia a imobilismo, aquilo que é herdado pelos genes é passível de alteração. Segundo ele, “em nosso córtex, a imbricação dos níveis de organização é tal que toda intervenção psicológica repercute nos circuitos neuronais até os níveis celular, sináptico, molecular e vai, mesmo, modificar a expressão dos genes” (DEHAENE, 2012, p. 273). Ainda, “não é porque uma patologia se situe numa escala neurobiológica microscópica que ela não possa ser compensada por uma inter-venção psicológica [...] e vice-versa” (DEHAENE, 2012, p. 273). Para o autor, a experiência dita tanto quanto o gene.

Segundo as descobertas das neurociências ci-tadas acima, é possível especular que, na presença de desvios de fala na sua aquisição, nos indivíduos com distúrbios de aprendizagem ou portadores de síndromes, programas de intervenção têm boas chances de serem bem-sucedidos, afinal a expe-riência tem papel tão importante quanto os genes. Além desse aspecto, quanto mais jovem for o in-divíduo, melhor o resultado dessas intervenções. Ainda, a aquisição de língua adicional é favorecida se o estudante iniciar o estudo na segunda ou na terceira infância.

Os elementos explorados acima, entre eles programas de intervenção em caso de aprendizado atípico da escrita, suscitam a discussão de quais são os aspectos que favorecem a consolidação das aprendizagens. Na seção a seguir, com base em estudos científicos, são desenvolvidos a diversidade de estimulação, a emoção e o nível de processa-mento na consolidação das memórias.

Diversidade de estimulação, a emoção e o nível de processamento na consolidação das memórias

Na capa do livro do neurocientista Ivan Izquier-do (2004), A arte de esquecer: cérebro e memória, consta a epígrafe “somos aquilo que lembramos e, também, aquilo que não queremos lembrar”. De qualquer forma, o neurocientista lembra que somos o que lembramos. Uma memória, portanto, para ser evocada, deve ser consolidada suficientemente. Surge, pois, a questão: o que favorece a consolida-ção de memórias?

Elementos como carga emocional (DAMÁSIO, 1996; EKMAN, 1982) e estimulação multissen-sorial de elementos com algum grau de signifi-cação favorecem a consolidação das memórias (IZQUIERDO, 2002). Maria Montessori10, na primeira metade do século passado, já chamava a atenção para esse aspecto: a criança aprende com todo o seu ser, com todo o seu corpo. A simples “decoreba” de elementos sem associá-los aos co-nhecimentos prévios não favorece a consolidação das memórias. David Ausubel chama atenção à importância dos conhecimentos prévios ao que ele chama de aprendizagem significativa. Para o autor, cada elemento novo deve encontrar subsunçores, conceitos preexistentes na estrutura cognitiva do indivíduo para que esse elemento tenha significado e seja consolidado mais fortemente na memória (AUSUBEL, 1982; AUSUBEL; NOVAK; HANE-SIAN, 1983). Ou seja, quanto mais se sabe, mais preparado para novos conhecimentos se está. Tal hipótese de Ausubel tem sido confirmada pelos achados das neurociências (IZQUIERDO, 2002).

Em relação aos aprendizados com carga emo-cional, as neurociências mostram que há interação importante entre amígdalas e hipocampos, áreas do sistema límbico do cérebro. Os hipocampos atuam, determinantemente, na consolidação de novas aprendizagens. Em eventos com alguma carga emocional, a amígdala atua em conjunto com o hipocampo numa relação essencialmente química (IZQUIERDO, 2002). No caso de me-mórias chamadas declarativas, o hipocampo atua 10 Maria Montessori criou o Método Montessori de aprendizagem,

baseado na ação do aprendiz. Maiores informações disponíveis em: <http://www.infoescola.com/pedagogia/metodo-montessoriano/>.

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Repercussões de descobertas neurocientíficas ao ensino da escrita

com o córtex na transformação das memórias de curto prazo em memórias de longo prazo. Se-gundo Izquierdo (2002), as memórias de longo prazo são estabelecidas entre 8 e 12 horas após o evento. Em situação com forte carga emocional há intensa atividade eletroquímica para consolidar a memória daquele evento. Enfim, os neurônios das áreas que regulam as emoções têm relação sináp-tica e fisiológica importantes para a formação das memórias. Aquilo que no aprendizado o fazemos com emoção, tais elementos ficam mais disponíveis para as evocações.

Pereira et al (2013) exploram as diferentes competências no nível cerebral ligadas à mudança na força das sinapses, ou seja, ao aprendizado: cognitivas, técnicas, relacionais e emocionais. Afir-mam que cada um desses campos de competências apresenta seu modo de aprendizado particular, seu sistema de memória particular e até mesmo suas estruturas nervosas específicas. Dessas competên-cias destacam as emocionais, e como podem apoiar ou prejudicar o processo de aprender.

O aprendizado de um conjunto de elementos que envolvem certo conhecimento, por exemplo, não ocorre de momento para o outro; envolve reações químicas, produção de proteínas, envolve apren-der alguns elementos que permitirão associá-los a outros (IZQUIERDO, 2002). Por isso, a revisão de conteúdos e experiências multissensoriais e de complexidade crescente de elementos com alguma relação com os conhecimentos prévios do aprendiz são importantes para a consolidação das memórias. Segundo Boujon e Quaireau (2000, p. 172), “a uti-lização de um suporte sensorial ao mesmo tempo visual e auditivo deveria conduzir a uma atenção melhor por parte dos alunos [...] e, portanto, para a assimilação da aula”. De acordo com os autores, a utilização de raciocínios ao mesmo tempo indutivos e dedutivos aumenta a atenção e, consequentemen-te, a assimilação do conteúdo da aula (BOUJON; QUAIREAU, 2000).

O nível de processamento que se dá ao input recebido também influencia na consolidação das memórias. Craik e Tulving (1975) realizaram ex-perimento envolvendo processamento cognitivo da linguagem em três níveis: perceptivo, fonético e semântico. Os pesquisadores solicitaram a dife-rentes grupos de participantes questões envolvendo

o termo sol: A – (nível perceptivo) A primeira letra da palavra sol é maiúscula? B – (nível fonético) A palavra sol rima com chão? C – (nível semântico) A palavra sol pode completar a frase: o _____ brilha? Em relação ao tempo empregado para responder às perguntas, as respostas mais imediatas foram do nível perceptivo e as mais demoradas para o semântico.

Os pesquisadores constataram que em testes de recordação os participantes reconheceram mais facilmente as palavras quando estas foram codifica-das em um nível semântico, comparado aos níveis fonético e perceptivo. Ou seja, a informação com maior intensidade de processamento cognitivo é mais bem consolidada que as outras informações. Enfim, uma codificação semântica que exige maior nível de processamento cognitivo é mais bem ela-borada e favorece armazenamento a longo prazo (CRAIK; TULVING 1975).

Anderson (2005) traz uma pesquisa sobre a rotina de treinamento de carteiros ingleses (British Post Office), realizada por Alan Baddeley, Michael Eysenck e Michael Anderson (2011). Os carteiros treinados por somente 1 hora por dia aprenderam em menos horas de treinamento e melhoraram suas performances mais rapidamente do que aqueles que receberam o treinamento em 4 horas diárias. O grupo treinado em 1 hora por dia aprendeu em 55 horas o que o grupo treinado em 4 horas diárias aprendeu em 80 horas. Esses resultados mostram que o aprendizado é mais efetivo quando ocorre de maneira distribuída.

Todo professor experiente sabe que um dos grandes desafios que se apresenta na prática educativa é o de despertar o desejo de aprender. Quando uma criança chega à alfabetização e em casa é estimulada a aprender por meio da conta-ção de histórias e leituras de livros, por exemplo, a aprendizagem da escrita é facilitada. Há muito a Psicanálise trata da questão do desejo. Vários traba-lhos relacionam, sob o prisma psicanalítico, desejo e educação com o fracasso escolar (KHALIL, 2011; BORUCHOVITCH; BZUNECK, 2001). As pes-quisas neurocientíficas endossam a constatação de que o desejo de aprender e o instigar a curiosidade potencializam a aprendizagem. Daí convergem diferentes estruturas do cérebro que favorecem a aprendizagem (IZQUIERDO, 2002).

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Outro importante elemento que repercute na consolidação das memórias é o nível de atenção despendido na aprendizagem, pois envolve re-cursos cognitivos essencialmente limitados. Na próxima seção são explorados estudos que tratam desse aspecto.

A atenção e a aprendizagem

A atenção, disposição para selecionar e contro-lar objetos, informações, ações de maneira voluntá-ria ou não, é uma função cerebral importante para a aprendizagem. Para Boujon e Quaireau (2000), é fundamental para que se possa memorizar. Atenção é o direcionamento normalmente consciente dos recursos cognitivos para um determinado estímulo num determinado momento. Os psicólogos já as-sociaram diretamente atenção e consciência. Hoje, contudo, reconhecem que parte do processamento ativo de atenção acontece sem consciência.

Segundo Boujon e Quaireau (2000), a eficácia e a rapidez da atenção dependem do nível de vigi-lância ou de alerta no momento em que se exercita, mas também de nossa capacidade de mantê-la. A capacidade de prestar atenção está estreitamente relacionada ao desenvolvimento do lobo frontal, responsável pelo controle, pela orientação e pela seleção, feita pelo indivíduo, de uma ou mais for-mas de atividade (BOUJON, 1996). E é possível “reeducar” a atenção e, consequentemente, melho-rar o nível de atenção (BOUJON; QUAIREAU, 2000 p. 157). Contudo, alertam os autores, “a falta de atenção provém de apresentações do conteúdo da aula mal adaptadas aos alunos” (BOUJON; QUAIREAU, 2000, p. 172). Portanto, acrescentam, “não há razões para modificar as aptidões cogniti-vas dos aprendizes, mas, ao contrário, interferir no ambiente pedagógico” (BOUJON; QUAIREAU, 2000, p. 172).

As classificações mais pesquisadas sobre a aten-ção são a atenção contínua ou sustentada e atenção dividida. Em relação à primeira, os pesquisadores avaliam a capacidade de manter a atenção. A con-tinuidade da atenção gera redução na eficácia dos comportamentos (BOUJON; QUAIREAU, 2000). Estímulos novos ou significativos para aquele su-jeito aumentam as chances de atração da atenção.

A atenção dividida remete à ideia de situação rica de estímulos, sejam eles auditivos, visuais ou outros, que necessitam de utilização conjunta de várias operações cognitivas. As pesquisas têm mostrado que a realização conjunta de atividades leva a importante redução ou atraso das respostas corretas, pois os recursos cognitivos limitados estão divididos nos diversos estímulos.

No gerenciamento da atenção, assumem papel fundamental os processos automáticos e os con-trolados. Processos automáticos são importantes, necessários e não envolvem controle consciente. Eles demandam pouco ou nenhum esforço atencio-nal ou mesmo intenção, e são implementados como processos paralelos aos processos monitorados pela atenção. As ações podem ocorrer ao mesmo tempo ou sem qualquer ordem sequencial específica, sen-do relativamente rápidas. Os processos controlados são acessíveis ao controle consciente e até mesmo o requerem. Esses processos ocorrem em série. Em comparação aos processos automáticos, levam tempo para serem executados e podem ocorrer paralelamente. Com prática suficiente, até mesmo tarefas extremamente complexas – a leitura é um dos principais exemplos de atividade amplamente complexa – são possíveis de serem automatizadas. A passagem de determinada atividade cognitiva da extremidade controlada para a automática está ligada à frequência e intensidade do input.

Com base na afirmação de Boujon e Quaireau (2000, p. 7), de que a “atenção é [...] condição para que se possa memorizar”, é possível especular que, em situação de ensino formal, ambiente de muita conversa ou bagunça, com múltiplos estímulos so-noros e visuais, dividem a atenção e não permitem o aprofundamento de qualquer reflexão ou análise.

Considerações finais

Os recentes avanços nos conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro humano, especialmente no que diz respeito à percepção, ao processamento, à consolidação e à evocação das informações, são conhecimentos que possibilitam aos professores escolhas pedagógicas que qualifiquem sua prática educativa. Entre outros aspectos, esses conhe-cimentos permitem ao professor fazer escolhas

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Repercussões de descobertas neurocientíficas ao ensino da escrita

pedagógicas estratégicas ao sucesso de aprendi-zado de determinado aspecto, levando em conta as características do tópico em questão. Ainda, permitem ao docente entender afetos e eventuais dificuldades de aprendizado e, no caso de confir-mação de diagnóstico patológico, fazer as escolhas pedagógicas adequadas para minimizar as dificul-dades de aprendizado.

As intervenções pedagógicas ainda na infância, quando da identificação de eventual dificuldade, são importantíssimas, pois, de maneira geral, a capacidade de aprendizado é inversamente propor-cional à idade do indivíduo. Ou seja, quanto mais jovem, mais plástico e reorganizável é o sistema nervoso humano. Como defende Dehaene (2012), deve-se desfazer o mito do determinismo no que

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Por fim, os conhecimentos neurocientíficos, embora ainda em seu início, em relação à prática docente atual, se constituem mais como comple-mentares e menos como elementos propositores de mudanças teóricas e/ou metodológicas radicais. Ainda, gabaritam-se como conhecimentos que, uma vez agregados à educação formal e à matriz curricular dos cursos de formação de docentes, podem qualificar o nosso ensino, mudando o ce-nário precário do ensino em que nos encontramos, desvelado nos últimos tempos pelas avaliações oficiais.

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Recebido em: 25.12.2013

Aprovado em: 04.03.2014

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Daniela Karine Ramos

COGNOTECA: UMA AlTERNATIVA PARA O EXERCÍCIO DE

hABIlIDADES COGNITIVAS, EMOCIONAIS E SOCIAIS NO

CONTEXTO ESCOlAR

Daniela Karine Ramos∗

RESUMO

A cognoteca reúne um acervo de materiais e jogos que exercitam habilidades emocionais, cognitivas e sociais. A cognoteca inserida no contexto escolar permite a proposição de atividades curriculares e extracurriculares, contribuindo para fortalecer o enfoque globalizador de educação. Os jogos cognitivos são um conjunto de jogos variados que trabalham aspectos cognitivos, propondo a intersecção entre os conceitos de jogos, diversão e cognição. Considerando esses recursos, neste trabalho temos o objetivo de apresentar os jogos cognitivos como recurso didático ao exercício de habilidades cognitivas, emocionais e sociais no contexto escolar. O estudo realizado caracteriza-se como exploratório e foi realizado no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina, a partir da proposição de atividades na cognoteca e observações realizadas no atendimento de turmas e alunos do Ensino Fundamental com crianças de 6 a 10 anos. A partir disso, descrevemos três diferentes formatos de atividades com jogos cognitivos e apontamos algumas contribuições à aprendizagem. Ao mesmo tempo em que apresentamos algumas possibilidades pedagógicas, destacando aspectos relacionados ao planejamento, aos recursos e à organização do espaço no contexto escolar.Palavras-chave: Cognoteca. Habilidades cognitivas. Aprendizagem. Jogos cognitivos.

ABSTRACT

COGNOTECA: AN ALTERNATIvE TO EXERCISE COGNITIvE, EMOTIONAL AND SOCIAL SKILLS AT SChOOL

The Cognoteca gathers a collection of materials and games designed to exercise emotional, cognitive and social skills. The cognoteca inserted in the school context allows us to propose curricular and extracurricular activities, which contribute to strengthen the focus on the global education. Cognitive games are a collection of various games which trains cognitive aspects, by proposing the intersection among the concepts of games, fun and cognition. Considering these resources, in this paper, we aim to present the cognitive games as a teaching tool for exercising cognitive, emotional and social skills in the school context. The study is characterized as an exploratory study and it was carried out at Escola de Aplicação at the Federal University of Santa Catarina, based on the proposal of activities in the cognoteca and also on the observations conducted with elementary school children aged from 6 to 10 years. From that, we describe three different activity

∗ Doutora em Educação. Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Grupos de pesquisa: Edumídia e Laboratório de Neurociência do Esporte e Exercício & Laboratório de Educação Cerebral. Endereço para correspondência: Universidade Federal de Santa Catarina - Departamento de Metodologia de Ensino - Campus Universitário Trindade - Caixa Postal: 476-88040-900 – 1º andar - Bloco B/CED - Florianópolis–SC. [email protected]

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Cognoteca: uma alternativa para o exercício de habilidades cognitivas, emocionais e sociais no contexto escolar

formats with cognitive games and we point out some contributions to learning. At the same time, we present some pedagogical possibilities, emphasizing the related aspects for planning, resources and organization of space in the school context.

Keywords: Cognoteca. Cognitive skills. Learning. Cognitive games.

Introdução

Este trabalho tem o objetivo de discutir o uso de jogos cognitivos no contexto escolar para o exer-cício das habilidades cognitivas, de forma lúdica e colaborativa, para contribuir com o processo de aprendizagem dos alunos. O estudo pauta-se na revisão de literatura e nas atividades relacionadas ao uso desses jogos, desenvolvidas no LabLudens – um laboratório de pesquisa e extensão que dis-põe de uma cognoteca que se refere ao acervo de materiais e jogos que são utilizados para trabalhar, principalmente, aspectos cognitivos, priorizando a intersecção entre os conceitos de jogos, diversão e cognição.

A cognição neste trabalho é entendida como “a aquisição, o armazenamento, a transformação e aplicação do conhecimento” (MATLIN, 2004, p. 2), o que envolve uma diversidade de processos mentais, como memória, percepção, raciocínio, linguagem e resolução de problemas.

Além do exercício das habilidades cognitivas, o uso desses jogos no contexto escolar possibilita também o exercício de habilidades emocionais e sociais, pois as atividades envolvem a interação social, a colaboração e aspectos emocionais rela-cionados ao fato de se lidar com o sucesso (vitória) e a perda, a negociação, o conflito, a oposição, por exemplo. Desse modo, podem ser exercitadas emoções pró-sociais, que “são emoções de bem--estar dirigidas a outros [...] a maior parte das emoções pró-sociais que adquirimos hoje em dia com os jogos não estão necessariamente implícitas no design do jogo, elas são, na verdade, um efeito colateral por passarmos muito tempo jogando jun-tos” (MCGONIGAL, 2012, p. 91). E, no contexto escolar, jogar junto faz parte do processo, pois os jogadores partilham o mesmo espaço, têm interes-ses afins e já possuem laços afetivos.

Os jogos possuem os elementos estruturais como regras: metas ou objetivos, resultados e fe-edback; desafios que podem envolver a oposição

e a competição ou a interação e a colaboração. As regras têm a função de impor os limites, estabelecer os caminhos para se chegar aos resultados – mostrar o que é permitido e o que não é, tornar os jogos mais justos –, e os objetivos e as metas de um jogo têm, sobretudo, a função de motivar o jogador e pautar a mensuração de seu desempenho, quanto mais perto ou longe está de atingir o objetivo ou a meta (PRENSKY, 2012). Essas características dos jogos, como regras, feedbacks e desafios propostos, favorecem a interação social, pois é preciso discutir e acordar as regras, compartilhar feedbacks rece-bidos, oferer dicas e auxiliar outros colegas para superação dos desafios.

A estrutura organizada e ao mesmo tempo lúdica dos jogos pode oferecer contribuições ao desenvol-vimento e aprendizagem dos alunos no contexto escolar. Por isso, neste trabalho destacamos os jogos como recurso didático e suas possibilidades ao processo de ensino e aprendizagem.

Contribuições dos jogos ao exercício das habilidades cognitivas

A cognoteca inserida no contexto escolar permite a proposição de atividades curriculares e extracurriculares, contribuindo para fortalecer o enfoque globalizador da educação, por favorecer o exercício e o aprimoramento de habilidades cog-nitivas, emocionais e sociais.

As habilidades cognitivas podem ser entendidas como as capacidades que tornam o sujeito compe-tente e lhe permite interagir simbolicamente com o meio. Essas habilidades permitem, por exemplo, discriminar objetos, identificar e classificar concei-tos, levantar problemas, aplicar regras e resolver problemas, e propiciam a construção e a estrutu-ração contínua dos processos mentais (GATTI, 1997). Ao considerarmos as habilidades cognitivas importantes ao processo de ensino e aprendizagem, destacamos neste estudo a memória de trabalho, a atenção e a resolução de problemas.

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De modo geral, a memória é a “capacidade que tem o homem e os animais de armazenar informa-ções que possam ser recuperadas e utilizadas pos-teriormente” (LENT, 2005, p. 588). Há diferentes tipos de memória e subdivisões, entretanto aqui nos interessa a memória de trabalho que “serve para o tratamento imediato das informações” (PIOLINO; DESGRANGES; EUSTACHE, 2011, p. 15).

Outra habilidade fundamental para o ser huma-no é atenção que, segundo Lent (2005), envolve dois aspectos principais: um estado geral de sen-sibilização (alerta) e a focalização desse estado sobre certos processos mentais e neurobiológicos (atenção propriamente dita). Por meio da atenção “somos capazes de focalizar em cada momento determinados aspectos do ambiente, deixando de lado o que for dispensável” (COSENZA; GUER-RA, 2011, p. 41).

De outra forma, a resolução de problemas é utilizada “quando queremos atingir determinado objetivo, mas a solução não se apresenta imediata-mente. Se ela se apresentar, não haverá problema” (MATLIN, 2004, p. 234). E, segundo a autora, a resolução de problemas é caracterizada por três componentes: o estado inicial (situação anterior à resolução), o estado meta (objetivo relacionado à resolução do problema) e os obstáculos (restrições e dificuldades).

Enfatizamos, neste trabalho, essas três habi-lidades por reconhecermos suas contribuições ao processo de aprendizagem. A memória é fun-damental à aprendizagem e supõe que o aluno esteja atento para que possa estabelecer relações significativas entre os conteúdos de aprendizagem e os conhecimentos prévios. Do mesmo modo em atividades realizadas em sala, e a aplicação dos conhecimentos em contextos práticos supõe a resolução de problemas, que envolve o plane-

jamento, a análise das condições ou variáveis e o próprio raciocínio.

Ainda que enfatizemos essas habilidades, re-conhecemos que o uso dos jogos pode contribuir com o desenvolvimento de outras. De acordo com Prensky (2010), há habilidades de pensamento que melhoram com a exposição frequente aos jogos eletrônicos e outras mídias digitais, como a competência representacional que envolve ler imagens visuais e lidar com representações espa-ciais tridimensionais; a capacidade de criar mapas mentais; a habilidade lógica indutiva, que envolve realizar observações, formular hipóteses e descobrir as regras de um determinado comportamento ou fato; e a atenção difusa enquanto capacidade de focar várias coisas ao mesmo tempo e responder rapidamente a estímulos inesperados.

No que se refere à intesecção entre as habilida-des cognitivas e os jogos, utilizamos a denominação jogos cognitivos, considerando que os jogos adjeti-vados dessa forma possuem características comuns aos jogos, porém recebem essa denominação por envolverem mais fortemente habilidades cognitivas (RAMOS, 2013). Muitos jogos que podemos clas-sificar como cognitivos não foram desenvolvidos com o objetivo de trabalhar essas habilidades, mas podem ser considerados como tal por seus desafios e dinâmicas. A partir disso, podemos distinguir dois tipos principais de jogos cognitivos utilizados nas atividades da cognoteca:

a) Jogos de desafio: apresentam problemas que mobilizam o jogador a pensar, levantar hipóteses, experimentar, planejar, testar, realizar cálculos. Desse modo, contribuem com o aprimoramento do raciocínio lógico, da percepção visual e da atenção. Como exemplos desse tipo de jogo temos a Pirâ-mide, o Prego e Torre de Hanoi.

Fonte: SJS artefatos de madeira (2013).

Figura 1 – Exemplos de jogos de desafio

Pirâmide Prego Torre de Hanoi

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Cognoteca: uma alternativa para o exercício de habilidades cognitivas, emocionais e sociais no contexto escolar

b) Jogos de tabuleiro ou oposição: apresen-tam diversos formatos e objetivos; de modo geral, envolvem a participação de pelo menos dois jogadores, o exercício

de estratégia e o raciocínio lógico para vencer o adversário ou resolver o desafio apresentado. Como exemplos temos o Hex e o Quatro em Linha.

Além disso, esses jogos podem ter diferentes formatos, como jogos tradicionais (físicos) e digitais. Os jogos cognitivos digitais ou eletrônicos propõem desafios que exigem o exercício de aspectos cog-nitivos, por meio da interação com o computador

(RAMOS, 2013). Esses jogos podem ser apresen-tados em diferentes formatos; de modo geral são jogos simples e apresentam níveis de dificuldade crescentes, e podem, também, reproduzir os jogos de tabuleiro ou desafio, utilizando o meio digital.

Figura 2 – Exemplos de jogos de tabuleiro

Fonte: Oficina do Aprendiz (2012).Hex Quatro em linha

Bloxz Estacionamento

Figura 3 – Exemplos de jogos cognitivos eletrônicos

Colorsok

Fonte: Jogos Cognitivos (2012).

O trabalho a partir desses jogos contribui para que o exercício e o desenvolvimento dos aspectos cognitivos se tornem mais lúdicos e prazerosos, ao mesmo tempo em que se usufrui das reconhecidas contribuições que o jogo oferece ao desenvolvi-mento humano (KISHIMOTO, 2001; SEBER, 1997; VIGOTSKY, 1989; WINNICOTT, 1982).

Na intersecção entre o uso dos jogos e o trei-namento das habilidades cognitivas, apesar de haverem divergências sobre seus efeitos, temos várias pesquisas que apontam benefícios (BOOT et al, 2008; FENG; SPENCE; PRATT, 2007; GEN-TILE, 2011; OEI; PATTERSON, 2013). A pesquisa realizada por Oei e Patterson (2013) envolveu di-

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Daniela Karine Ramos

ferentes grupos – com experiências distintas com jogos –, que foram orientados a jogar diferentes tipos de jogos em um dispositivo móvel durante uma hora por dia, cinco dias por semana, durante quatro semanas. Eles foram avaliados por meio de quatro tarefas comportamentais – antes e após o treinamento com os jogos – para apreciar os efeitos de transferência. Os resultados revelaram melhorias em diferentes aspectos cognitivos e indicam que o treinamento de habilidades cognitivas específicas frequentemente exercitadas em um jogo eletrônico melhora o desempenho em tarefas que comparti-lham características e habilidades similares.

Boot et al (2008) comparou diferenças e efei-tos da interação com videogames com relação a habilidades cognitivas, como atenção, memória e controle executivo, por meio da aplicação de vários testes e avaliações em diferentes grupos. Os resultados revelaram que jogadores mais experien-tes conseguiam rastrear objetos movimentando-se em velocidades maiores, demonstravam melhor memória visual de curto prazo e conseguiam mudar mais rapidamente de tarefa.

Além disso, os jogos eletrônicos revelam resul-tados positivos no que diz respeito à motivação, persistência, curiosidade, atenção e atitude em rela-ção à aprendizagem dos alunos (SHIN et al, 2012).

Metodologia

O estudo apresentado neste trabalho possui abordagem qualitativa e características de uma pes-quisa exploratória, pois pauta-se no levantamento de algumas hipóteses sobre o uso de jogos cogni-tivos, na descrição das atividades desenvolvidas e observações feitas durante o desenvolvimento de atividades, utilizando jogos cognitivos no contexto escolar.

As atividades são desenvolvidas no LabLudens, no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina, e têm como público alunos do ensino fundamental I, abrangendo a participação de crianças na faixa etária de 6 a 10 anos. Essas atividades são objetos de pesquisa e pautam o desenvolvimento de jogos cognitivos eletrônicos, o que caracteriza o LabLudens como espaço de extensão, pesquisa e es-tudo sobre aspectos relacionados à cognição, à neu-rociência e ao uso de tecnologias na educação para

fundamentar a proposição de jogos, metodologias e inovações no campo da educação e da psicologia. Nesse sentido, destacamos que são objetivos do La-bLudens: oferecer atividades lúdicas e colaborativas utilizando jogos cognitivos no contexto escolar; apoiar as atividades de recuperação desenvolvidas na escola, reforçando aspectos trabalhados por meio do uso dos jogos cognitivos; sistematizar e planejar atividades com jogos cognitivos que contribuam com o desenvolvimento e a aprendizagem dos alu-nos; realizar intervenções pautadas no uso de jogos cognitivos com alunos que possuem dificuldades relacionadas ao processo de ensino e aprendiza-gem; constituir-se em um espaço de formação aos alunos de graduação e pós-graduação, por meio da realização de estudos, participação em pesquisas e nas atividades, desempenhando papel de mediador na intervenção com crianças e adolescentes.

Destacamos as três principais atividades desen-volvidas no LabLudens:

a) Atendimento às turmas no LabLudens: são atividades planejadas pautadas no uso de jogos cognitivos para grupos de até 13 alunos, no horário regular de aula, visando exercitar habilidades cognitivas de forma lúdica e colaborativa. Participam dessa atividade 6 turmas do ensino fundamental I, contabilizando o atendimento a aproxi-madamente 150 crianças.

b) Atendimento focal: propõe a intervenção, utilizando os jogos cognitivos, para pe-quenos grupos (2 a 4 alunos) que possuem alguma dificuldade no processo de ensino e aprendizagem. Esse atendimento envolve a avaliação do aluno, a interação com os professores e o atendimento regular dos alunos. Participam dessa atividade aproxi-madamente 10 crianças.

c) Atividades dirigidas com a Escola do Cére-bro em sala de aula: envolve a aplicação de um conjunto de jogos cognitivos eletrônicos em turmas na sala de aula; a aplicação ocor-re por um determinado tempo, diariamente, e prevê a avaliação inicial e final dos alunos participantes. Dessa atividade participam 4 turmas do ensino fundamental I, contabili-zando aproximadamente 100 crianças.

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Cognoteca: uma alternativa para o exercício de habilidades cognitivas, emocionais e sociais no contexto escolar

Essas atividades passam a ser descritas pro-curando destacar suas contribuições ao exercício das habilidades cognitivas, sociais e emocionais, bem como a aprendizagem escolar, como base nas observações e pesquisas que vêm sendo desen-volvidas no âmbito do LabLudens, que oferecem elementos para fundamentar e orientar as atividades realizadas.

Cognoteca no contexto escolar: contribuições à aprendizagem

As atividades desenvolvidas a partir da cogno-teca visam oferecer contribuições ao processo de ensino e aprendizagem no contexto escolar, por meio do uso de jogos cognitivos, da combinação de estratégias e organização do espaço e da proposição de situações lúdicas e mediadas. As atividades de-senvolvidas configuram-se como alternativa lúdica para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais e emocionais fundamentais à aprendizagem.

O interesse pelo uso dos jogos, incluindo eletrônicos, no contexto escolar se ancora em argumentos em termos de ganhos de conheci-mento, do desenvolvimento de habilidades, de aspectos motivacionais e culturais (KIRRIE-

MUIR; MCFARLANE, 2004). O jogo melhora o desenvolvimento do cérebro nas crianças, pois ativa circuitos de recompensa, o que pode facilitar a atenção, a ação e a interação social, desenvolvendo habilidades e interesses que con-tribuem com o seu desenvolvimento (WANG; AAMODT, 2012).

Ao mesmo tempo, quando pensamos no uso dos jogos cognitivos como recurso pedagógico, e nos reflexos destes sobre o desenvolvimento humano, o professor passa a ter uma função estratégica, tendo em vista que precisa incorporar este tipo de jogo à sua prática para promover a aprendizagem, bem como conhecer e lidar com a nova geração que chega à sala de aula, querendo um espaço rico em estímulos com o qual possa interagir e desenvolver sua autonomia.

Para que as crianças joguem não é preciso explicar o jogo ou ler os manuais. Elas descobrem jogando, assim, quem joga aprende a deduzir as regras a partir da manipulação e observação dos fatos. Aprendem a lidar com sistemas complexos por meio da experimentação, pela tentativa e erro, exercitando um raciocínio complexo para criar es-tratégias bem-sucedidas a fim de superar os desafios e obstáculos (PRESKY, 2010).

Figura 4 – Principais atividades desenvolvidas no LabLudens em 2013

Público: 6 turmas – 150 crianças.Instrumentos: observação, registro e entrevista com as crianças (n=10).

Público: 10 crianças (faixa etária de 7 a 11 anos) encaminhadas pelos professores.Instrumentos: observação, registro e aplicação de testes.

Público: 4 turmas (2º e 3º ano Ens. Fund. I) – 100 crianças.Instrumentos: aplicação de testes (antes de depois), observação e entrevista com as professoras.

Fonte: Elaborada pelo autor desta pesquisa com fotos do seu acervo.

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Daniela Karine Ramos

Esses aspectos reforçam que o papel do profes-sor como mediador que atua na organização das atividades, que envolve a seleção de jogos, a orga-nização do espaço e a definição das regras da pró-pria atividade. O uso dos jogos no contexto escolar pauta-se na definição de objetivos de aprendizagem que norteiam também a observação e a mediação durante o desenvolvimento da atividade. Assim, o professor pode explicar as atividades, instigar os alunos na superação dos desafios, incentivar a interação e a colaboração durante o jogo, intervin-do em situações de conflito que comprometam a realização da atividade.

Atividades com as turmas no labludens

As turmas participantes das atividades desen-volvidas no LabLudens são indicadas pela coor-

denação do ensino fundamental, que faz o convite a todos os professores no início do ano letivo. Os interessados têm um horário semanal agendado, e a cada semana metade da turma participa das atividades, enquanto a outra desenvolve outra ati-vidade dirigida pelo professor ou frequenta outro espaço da escola.

A atividade tem duração de aproximadamente 40 minutos. Cada aluno é identificado com um cra-chá e o espaço é organizado para receber os alunos, com os jogos a serem utilizados já disponíveis sobre as mesas. As atividades são anteriormente planeja-das e discutidas pelo grupo que atua como mediador nas reuniões semanais. Antes de começarem a jogar os alunos recebem as orientações iniciais sobre as atividades que serão realizadas, pois usamos diferentes jogos, estruturamos as atividades em diferentes formatos (circuito, rodízio, sorteio etc.) e trabalhamos com jogos coletivos e individuais.

Fonte: Fotos do acervo do autor desta pesquisa.

Figura 5 – Crianças em interação com jogos cognitivos no LabLudens

Ao final das atividades é reservado um momento para sua avaliação e do comportamento dos alunos, o que é feito a partir do mural das regras da cog-noteca, que também é lido durante as orientações iniciais. E a partir disso, dependendo da avaliação, os alunos recebem uma estrela no crachá. O uso dessa técnica trouxe mudanças significativas em ter-mos de maior motivação dos alunos em participar e aterem-se às regras estabelecidas para as atividades.

Durante a realização das atividades, os mediadores oferecem orientações sobre os jo-

gos, dão dicas, incentivam os alunos na troca de informações, instigam-os a resolverem os desafios propostos pelos jogos, entre outras ações que contribuem com o enriquecimento das atividades. Esse papel de mediador torna--se fundamental para o desenvolvimento das atividades com jogos, pois os alunos são ativos e exercem sua autonomia na busca de soluções e superação dos desafios. Assim os professores acompanham, observam e orientam os alunos em suas trajetórias.

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Após a realização das atividades, os mediadores fazem o registro do que foi observado com base em algumas categorias comportamentais. Esses registros foram tomados como dados de pesquisa, analisados e ampliados com a realização de algu-mas entrevistas, o que revelou a contribuição das regras e do jogo como atividade estruturada para o exercício do autocontrole e do respeito às regras e aos colegas, e a interação de forma mais cola-borativa. Aspectos como ganhar e perder também aparecem como recurso importante para trabalhar a tolerância à frustração, para lidar com a perda e o respeito ao colega na vitória (RAMOS et al, 2013).

Os aspectos sociais podem ser trabalhados a partir dos jogos ao considerarmos que todas as crianças entrevistadas reconhecem que jogar re-força os vínculos e os laços de amizade, e que é possível fazer amizades quando jogam. Segundo uma criança, quando ganha, “fico feliz... falo que ganhei, assim, ganhei, mas não fico rindo dos colegas que perdeu” (RAMOS et al., 2013, p. 15). Nessas interações também são recorrentes ações

pró-sociais e de ajuda mútua. Segundo um aluno, “é melhor jogar com os colegas, porque daí dá para perguntar e ter ajuda quando o jogo é difícil. É mais legal com o colega” (RAMOS et al., 2013, p. 13).

Nos jogos é preciso respeitar as regras e esperar o momento de executar sua jogada. Considerando isso, todas as crianças reforçam a importância das regras e apenas um diz ter vontade de burlar a regra, e outro afirma que é difícil esperar, mas ambos, ao jogar, respeitam as regras e esperam a sua vez. Segundo uma das crianças entrevistadas, “dá vontade de mudar as regras, mas eu não mudo porque daí meus amigos vão achar chata a minha regra” (RAMOS et al., 2013, p. 10). Nesse senti-do, Aamodt e Wang (2013) defendem que o jogo teria como uma de suas funções contribuir com o desenvolvimento da função cerebral básica de autocontrole, ou seja, a capacidade que os sujeitos têm de controlar seus próprios comportamentos para alcançar um objetivo.

Atendimento focal

O atendimento focal ocorre com grupos reduzi-dos de crianças que são indicadas pelos professores ao coordenador do ensino fundamental I, que faz o contato com pais para oferta da atividade, já que a ela ocorre como atividade extracurricular.

A partir do comprometimento da família é enca-minhado um comunicado explicando a atividade e enviando o contato do coordenador do LabLudens. Quando possível é agendada uma conversa para coleta de informações com os pais. Além disso, é feita uma conversa com o professor, tanto para explicar a proposta como para coletar informações sobre os alunos participantes.

A estrutura do atendimento foi organizada e inspirada na estrutura da sessão de terapia cognitiva (FRIEDBERG; MCCLURE, 2004), modificada, pois o foco da atividade reside em aspectos relacio-nados à aprendizagem no contexto escolar. O atual projeto em desenvolvimento foca o atendimento a queixas relacionadas à atenção, incluindo crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperta-tividade (TDAH) – mas não apenas estas crianças –, pois os jogos cognitivos prescindem da atenção concentrada para a sua realização e espera-se ajudar

Fonte: Elaborada pelo autor desta pesquisa.

Figura 6 – Mural das regras da Cognoteca

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os alunos a conseguirem aprimorar sua capacidade de manter a atenção.

Nesse sentido, os atendimentos têm a seguinte estrutura:

a) Registro da atenção: questiona-se a criança sobre como percebe/sente sua capacidade

de manter a atenção naquele dia/momento. Isso tem a função de começar a trabalhar a autoavaliação e a percepção de seus estados cognitivos. O registro é feito pintando um dos cinco smiles que indicam estados de atenção.

Fonte: Elaborada pelo autor desta pesquisa.

Figura 7 – Recurso utilizado para o registro da atenção

b) Revisão dos desafios da semana: ao parti-ciparem do atendimento, as crianças levam desafios para resolver em casa, como labi-rinto, sudoku, caça-palavras, e na revisão dialoga-se sobre o que fizeram e como foi fazer os desafios (se fácil ou difícil). Esse momento deve valorizar essas tarefas, que têm a função de ampliar e intensificar as intervenções realizadas na cognoteca.

c) Estabelecimento da agenda: ainda que te-nhamos um planejamento prévio, discute-se com a criança o que será feito, explicando os jogos que serão utilizados. Pede-se sua opinião e sugestão. Esse momento deve ajudar a comprometer a criança com o que se propõe e envolvê-la nas atividades.

d) Conteúdo da intervenção com jogos: desenvolve-se o que foi planejado e acor-dado, utilizando os jogos, observando as crianças jogando e interagindo, buscando compreender o modo como ela se relaciona com os mesmos e mantem sua atenção.

e) Desafios da semana: apresenta-se e explica--se os desafios que a criança terá que fazer na semana, podendo ser ulizadas atividades impressas ou indicação de jogos eletrôni-cos.

f) Feedback: no fechamento questiona-se a criança sobre o que achou dos jogos e

atividades, como se sentiu e percebe sua atenção durante a atividade. Então, passa--se à avaliação conjunta das categorias comportamentais contempladas na tabela de reforçamento.

Fonte: Elaborada pelo autor desta pesquisa.

Figura 8 – Tabela de reforçamento

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A tabela de reforçamento aborda algumas cate-gorias comportamentais definidas, como: a atitude, que inclui a paciência e a persistência para resolver os desafios; a atenção, que aborda a observação e o respeito às regras de convivência e do jogo; o com-promisso, que envolve a realização das atividades propostas e dos desafios da semana; e a interação, que propõe a avaliação do relacionamento e inte-ração com o mediador e outros colegas. A partir do diálogo e consenso é atribuído smile verde quando os comportamentos atendem bem a categoria, ama-relo quando atende em parte, e vermelho quando não atende adequadamente.

Os atendimentos ainda estão em andamento, por isso não há resultados consolidados. De qualquer modo, observa-se que os alunos participantes têm conseguido finalizar os jogos e resolver desafios com maior sucesso, e que a inserção da técnica de reforçamento – por meio do uso da tabela que lista as categorias comportamentais – tem contribuído com a maior motivação e engajamento das crianças nas atividades, incluindo a realização dos desafios da semana.

Escola do Cérebro: atividade em sala de aula

A Escola do Cérebro é um sistema que tem sido desenvolvido a partir de uma pesquisa realizada no

LabLudens, e integra jogos cognitivos a uma base de dados que permite tanto o exercício das habilidades cognitivas como o acompanhamento e a orientação sobre o desempenho e características cognitivas dos jogadores. A Escola do Cérebro tem sido utilizada em turmas do Ensino Fundamental I, por meio do uso de tablets. As atividades com as turmas ocorrem diariamente, por aproximadamente quinze minutos, por um período que tem variado de um a três meses, conforme interesse e planejamento conjunto reali-zado com os professores das turmas participantes.

Desse modo, a Escola do Cérebro pode compor os currículos escolares e oferecer espaços para ampliação e diversificação das atividades pedagó-gicas, visando contribuir com o desenvolvimento mais integral dos alunos e atender às perspectivas futuras de investimento em tecnologias no contexto escolar.

Os jogos que compõem a Escola do Cérebro focam principalmente as funções executivas rela-cionadas à aprendizagem. Para tanto, são desen-volvidos e integrados jogos que propõem desafios aos alunos, que exigem a atenção, a resolução de problemas, o uso da memória para guardar mo-vimentos e refazê-los, bem como a realização de cálculos matemáticos, o exercício da localização e orientação espacial, entre outras habilidades que trabalham diferentes funções do cérebro e contri-buem para o seu aprimoramento.

Fonte: Escola do cérebro (2013).

Figura 9 – Tela Escola do Cérebro

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Além disso, a Escola do Cérebro volta-se para o público infantil no qual a plasticidade cerebral tem grande expressividade, favorecendo a for-mação de novas conexões e a reorganização de funções cerebrais. A plasticidade cerebral pode ser definida como a “capacidade adaptativa do sistema nervoso central permitindo modificação na sua própria organização estrutural e funcio-

nal” (ODA; SANT’ANA; CARVALHO, 2002, p. 173).

A Escola do Cérebro tem como diferencial o acesso de dois tipos de usuários: alunos e profes-sores. Os alunos acessam os jogos e as informações sobre seu desempenho, bem como habilitam ou não sua participação nos rankings de desempenho, que são disponibilizados por níveis de cada jogo.

Fonte: Escola do cérebro (2013).

Figura 10 – Tela do jogo Blocos

Os professores, por sua vez, podem acessar as mesmas interfaces que os alunos e também formar grupos, criando um, pesquisando e selecionando seus alunos para compor o grupo. A partir da cria-ção do grupo é possível ter acesso a relatórios que demonstram o desempenho e outras informações relacionadas à interação com os jogos que podem subsidiar o acompanhamento e as mediações que ocorrem em sala de aula.

Os jogos cognitivos da Escola do Cérebro possuem três níveis de dificuldade: fácil, médio e difícil, e permitem jogar por tempo indeterminado cada nível. Assim, não é necessário completar um nível para seguir ao outro.

A partir das atividades desenvolvidas, observa-ções e registros e entrevistas realizadas, resultados parciais revelam que nas turmas participantes foi possível observar mudanças em relação ao aumento da capacidade de concentração, maior rapidez na resolução de problemas e execução das atividades propostas em sala, aumento da persistência e au-

tonomia dos alunos. Segundo uma das professoras participantes, “hoje eles participam de atividades em sala que exige concentração, leitura de textos maiores, interpretação, participam de rodas”. (RA-MOS, 2013, p. 25).

As mudanças comportamentais percebidas pelos professores em relação à persistência e à autonomia sugerem uma transferência do exercí-cio feito no jogo para as atividades realizadas em sala, pois nos jogos os alunos são colocados diante de desafios crescentes e feedbacks imediatos que incentivam o jogador a ser persistente na busca da solução do desafio proposto. De acordo com a professora do 3º ano, “algumas crianças estão tentando mais, são mais perseverantes em resolver; outras estão com mais facilidades” (RAMOS, 2013, p. 25). Esses aspectos são reforçados por Prensky (2012), segundo o qual as consequências dos jogos residem na maior concentração, no aumento da persistência, na capacidade de se envolver e no incentivo à criatividade.

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Cognoteca: uma alternativa para o exercício de habilidades cognitivas, emocionais e sociais no contexto escolar

Considerações Finais

O uso dos jogos cognitivos no contexto escolar revela contribuições não só ao exercício das habi-lidades cognitivas, mas também cria um ambiente rico de interação social que permite trabalhar as-pectos sociais relacionados a conteúdos atitudinais e contribui para a motivação do aluno, pois ele sente-se atraído pelo jogo, diverte-se ao mesmo tempo que aprende.

Esses recursos no contexto escolar podem ser trabalhados em sala de aula ou em outros espaços da escola, e também em diferentes momentos. São recursos capazes de lidar com os diferentes tempos dos alunos, que ao concluírem as atividades pro-postas estão liberados para jogar em sala de aula,

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Diferentes jogos, estruturas, arranjos inter-pessoais e recursos podem ser combinados para explorar seu uso no contexto escolar, buscando criar momentos de diversão e de exercício de habilidades importantes à aprendizagem. Para tanto, os professores necessitam explorar diferen-tes jogos e buscar refletir sobre quais habilidades são trabalhadas, se os desafios e mecânicas podem contribuir com o desenvolvimento cognitivo de seus alunos e incluí-los em seu planejamento, considerando esses recursos e ampliando seus objetivos de aprendizagem.

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Daniela Karine Ramos

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Recebido em: 14.11.2013

Aprovado em: 06.02.2014

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Márcia Cristina Zimmer; Ubiratã Kickhöfel Alves

O IMPACTO DO BI/MUlTIlINGUISMO SOBRE O POTENCIAl

CRIATIVO EM SAlA DE AUlA – UMA ABORDAGEM VIA TEORIA

DOS SISTEMAS DINÂMICOS

Márcia Cristina Zimmer∗

Ubiratã Kickhöfel Alves∗∗

RESUMO

Este artigo, a partir de uma perspectiva de aquisição de linguagem baseada na Teoria dos Sistemas Dinâmicos, destaca o impacto do bi/multilinguismo na construção do conhecimento. Focalizaremos, em nossa discussão, sobretudo as questões referentes ao controle executivo e ao potencial criativo dos aprendizes bi/multilíngues. A discussão teórica apresentada possibilitará que se reflita sobre o papel da escola, bem como os desafios enfrentados pelo educador frente à tarefa de construção colaborativa de conhecimento.

Palavras-chave: Bi/multilinguismo. Controle executivo. Potencial criativo. Ensino.

ABSTRACT

In this article, departing from a dynamic approach to language acquisition, we discuss the role played by bi/multilingualism in the acquisition of knowledge. We focus our discussion on the executive control and creativity shown by these learners. This theoretical presentation will pave the way for a discussion on the role played by the school system as well as on the new challenges to be faced by teachers in a cooperative construction of knowledge.

Keywords: Bi/multilingualism. Executive control. Creativity. Teaching.

∗ Doutora em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professora Adjun-ta I - Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER). Membro do Grupo de Pesquisa Dinâmica Fônica (DINAFON). Endereço para correspondência: Rua Faria Santos, 466/203. Porto Alegre- RS. CEP: 90670-150. [email protected]∗∗ Doutor em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Endereço para correspondência: Av. Bento Gonçalves, 9500 – Caixa Postal 15002.CEP 91501-970 Porto [email protected]

1. Introdução

O fenômeno da globalização mundial e a cres-cente necessidade de interação linguística entre os cidadãos do mundo, decorrente de fatores geo-gráficos, históricos e político-econômicos, enseja estudos sócio e psicolinguísticos que investiguem

o bi/multilinguismo sob a forma de projetos teó-ricos e aplicados. Com o crescimento de políticas mundiais interessadas em fomentar o ensino e a aprendizagem de várias línguas (HAJEK, 2008), é necessário o desenvolvimento de estudos que

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O impacto do bi/multilinguismo sobre o potencial criativo em sala de aula – uma abordagem via teoria dos sistemas dinâmicos

investiguem os processos pelos quais os falantes multilíngues passam ao entrar em contato com vários sistemas linguísticos.

Desde a década de 1960, mais precisamente a partir do trabalho de Peal e Lambert (1962), o bi/multilinguismo passou a ser objeto de estudo das ciências cognitivas, entre elas a Neurolinguística e a Psicolinguística. Por meio de técnicas de neu-roimagem e de uma vasta gama de experimentos, esses estudos têm revelado, ao longo dos anos, uma variedade de diferenças cognitivas entre mo-nolíngues e bi/multilíngues, sendo que algumas dessas tendem a beneficiar tanto crianças quanto adultos bi/multilíngues em todas as faixas etárias (BIALYSTOK, 2004; BIALYSTOK; FERGUS; FREEDMAN, 2007; BIALYSTOK; CRAIK; LUK, 2008; MARTIN-RHEE; BIALYSTOK, 2008). Esses benefícios advêm principalmente da rotina bilíngue denominada troca de código ou code-switching (WEINREICH, 1953) – fenômeno comunicativo que se refere ao uso de mais de uma língua, dialeto ou estilo, o que exige uma constan-te troca entre idiomas ou dialetos no decorrer de uma conversação –, e tem como principal efeito um maior controle executivo1 e atencional em tarefas não verbais, o que acarreta um aumento da neuroplasticidade.

A necessidade e o interesse pela comunicação entre diferentes culturas, somados à facilidade de acesso à informação, resultaram em uma geração cosmopolita multilíngue, beneficiária não apenas da prática de code-switching, mas também de frame-switching – tendência dos bilíngues a pro-cessarem a informação através das lentes da cultura A em uma situação, e das lentes da cultura B na situação subsequente (LEUNG; MORRIS, 2010).

Portanto, amplia-se o espectro da pesquisa em multilinguismo, levando-a para além da pesqui-sa psicolinguística – que tem se concentrado na investigação das diferenças cognitivas partindo do code-switching, em direção à investigação das vantagens que o ser multicultural desenvolve em razão do frame-switching, termo de maior espectro 1 Funções executivas são processos cognitivos responsáveis pelo pla-

nejamento e execução de atividades. Elas são processadas no córtex pré-frontal e incluem: controle executivo e inibitório; capacidade de abstração; atenção; concentração; planejamento; flexibilidade; memória de trabalho e resolução de problemas (HAMDAN; BUE-NO, 2005).

que envolve, além da capacidade de troca da lín-gua, a capacidade de troca do arcabouço (frame) mental, do modo de pensar que o conhecimento de mais de uma língua/cultura enseja. Neste trabalho, serão discutidos os efeitos de tal ampliação, com vistas a uma reflexão acerca de seus impactos para o ambiente de sala de aula.

2. Definindo o multilinguismo

Para Cenoz (2000), a aquisição multilíngue é considerada como a aquisição de outras línguas que não a L1 e a primeira língua estrangeira (L2) do indivíduo. É importante evitar uma simplificação do que realmente representa o multilinguismo, uma vez que se trata de um processo mais complexo do que a aquisição de uma segunda língua. Como argu-mentos para corroborar essa visão, pode-se chamar a atenção para o fato de que, além de implicar todos os fatores e processos associados à aquisição de L2, o multilinguismo apresenta fatores unicamente e potencialmente mais complexos, além de efeitos associados às interações que podem ocorrer entre as múltiplas línguas que são aprendidas e usadas ao mesmo tempo (BLANK; ZIMMER, 2011).

Ainda, há muito mais diversidade envolvida no processo de aquisição multilíngue quando compa-rada à aquisição bilíngue, se forem considerados fatores como a idade em que as diferentes línguas estrangeiras foram aprendidas, o ambiente em que cada uma das línguas foi aprendida e, até mesmo, a distância tipológica2 entre as línguas envolvidas (CENOZ, 2000). Geralmente, os estudos em mul-

2 Embora a tipologia linguística seja caracterizada em termos de fa-mílias linguísticas (ROSSI, 2006), esse tipo de classificação ignora a possibilidade de as línguas apresentarem padrões linguísticos bastante diversos para uma mesma característica linguística, mesmo pertencendo a uma mesma família (BLANK, 2013). Por isso, consi-deram-se no termo tipologia as três relações que podem influenciar a classificação de duas ou três línguas como sendo semelhantes ou não: relação genética, geográfica ou formal. A relação genética é definida com base nos agrupamentos de famílias linguísticas. Duas línguas são consideradas como pertencendo a uma mesma família linguística se ambas são derivadas de uma mesma língua de origem (POSNER, 1996). A relação geográfica postula que duas línguas podem apresentar semelhanças entre si em razão de serem faladas em espaços geográficos muito próximos, desenvolvendo características próprias a essas línguas, que não são encontradas nas demais línguas que compõem suas famílias linguísticas de origem (ROSSI, 2006). Por fim, a relação formal entre as línguas as classifica com base na estrutura de cada uma, de acordo com a característica específica em estudo (sintaxe, morfologia, fonética e fonologia etc.).

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tilinguismo apresentam direcionamentos teóricos que fogem, de certa forma, às visões fracionárias mais tradicionais, como, por exemplo, aquela conhecida como visão monolíngue ou fracionada de bilinguismo (ZIMMER; FINGER; SCHERER, 2008). De acordo com essa abordagem, o bilíngue teria duas competências linguísticas separadas ou isoladas. Assim, essas competências deveriam ser equivalentes às de dois monolíngues usando cada qual a sua língua. O indivíduo bilíngue seria concebido, dessa forma, como dois monolíngues numa mesma pessoa (SAER, 1923). Ao criticar a visão monolíngue de bilinguismo, Grosjean (2008) explica que a defesa dos argumentos defendidos nessa proposição mostra-se altamente negativa e destrutiva, devendo ser evitada e substituída por uma visão que aceite que bilíngues não são, de forma alguma, dois monolíngues numa mesma pessoa, mas sim falantes e ouvintes perfeitamente competentes, do seu próprio modo. Finalmente, veio o conceito de bi/multilinguismo que é vigente até hoje, sobre a existência de um continuum que vai do monolinguismo ao multilinguismo, ou seja, passando por diferentes estados intermediários de processamento e ativação das línguas, ao invés de um estágio exato a partir do qual um sujeito torna--se bilíngue (GROSJEAN, 2008).

Ao lado de fatores como a prática de exercí-cios físicos, vida social intensa, alta escolaridade, inteligência e profissão, o multilinguismo passou a ser visto também como um dos fatores promotores do aumento de reservas cognitivas, o que resulta no atraso em torno de quatro anos dos sintomas de demências, como no caso do Mal de Alzheimer (BIALYSTOK; FERGUS; FREEDMAN, 2007). Além disso, pesquisas vêm apontando que o bi/multilinguismo pode atuar positivamente sobre os processos cognitivos subjacentes à habilidade de responder adaptativamente a situações singulares, podendo ser um valioso colaborador para o aumen-to do potencial criativo das pessoas que falam duas ou mais línguas (KARKHURIN, 2008, 2009). Em razão desses achados, o bi/multilinguismo deixou de ser estigmatizado e passou ao status de colabo-rador no entendimento da relação entre a cognição humana e a linguagem.

Percebe-se também que, a partir de uma visão mais dinâmica, os estudos em multilinguismo

procuram defender a ideia de integração entre as línguas do multilíngue no sistema cognitivo (CE-NOZ, 2000; DE BOT; MAKONI, 2004). No Brasil, os resultados das pesquisas em multilinguismo já vêm corroborando a existência de um continuum entre linguagem e cognição (BLANK; BANDEI-RA, 2011; BLANK; ZIMMER, 2011; PINTO, 2009; RODRIGUES; ZIMMER, 2012). Assim, o bi/multilinguismo pode ser estudado como um fenômeno de natureza dinâmica, em constante desenvolvimento, agindo e sofrendo efeitos de diferentes variáveis, conforme será visto na seção que segue.

3. Sistemas dinâmicos, cognição e linguagem

Quando se investiga a aquisição multilíngue, pode-se partir da premissa de que essa aquisição funciona como um sistema dinâmico, em que línguas e sistema cognitivo processam padrões de maneira integrada e indissociável. A partir daí, várias interpretações podem ser feitas com o intuito de reformular as noções tradicionais que permeiam o campo de aquisição de línguas estrangeiras/adicionais.

A linguagem é um sistema complexo e di-nâmico adaptável que emerge de vários agentes (LARSEN-FREEMAN, 1997). Conforme De Bot e Makoni (2004), esse sistema dinâmico é composto por variáveis que interagem e estão em constante modificação, em razão da interação com o meio ambiente e sua auto-organização.

De acordo com Van Gelder e Port (1995, p. 3), “os modelos dinâmicos estão se tornando cada vez mais proeminentes em áreas como a psico-logia cognitiva, a psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, e em alguns campos da linguística”. No que diz respeito à linguagem, é importante mencionar que um novo paradigma se fazia necessário para que se tentasse entender tal sistema complexo, uma vez que abordagens tradi-cionais ou estáticas para a aquisição da linguagem não conseguiam explicar todos os processos ou fenômenos envolvidos.

Van Gelder e Port (1995) descrevem os sistemas dinâmicos como sistemas com estados que mudam ao longo do tempo. Para os autores, um sistema di-

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nâmico deve ser pensado como um conjunto de es-paço de estados possíveis em conjunto com regras evolutivas que determinam sequências de pontos nesse espaço (VAN GELDER; PORT, 1995). Alba-no (2012) explica que a noção de sistema dinâmico está atrelada à construção de uma teoria geral dos sistemas que passam de um estado a outro, no tem-po, obedecendo a uma determinada regra, mesmo que haja aleatoriedade nesse processo.

Uma noção cara à Teoria dos Sistemas Dinâ-micos é a da interconectividade: os elementos de um sistema estão constantemente interagindo uns com os outros. Para Van Gelder e Port (1995), a maneira como um elemento muda dentro do sistema depende diretamente da forma como se apresentam os demais elementos; por conseguinte, todas as variáveis de um sistema dinâmico estão inter-relacionadas e uma mudança em uma delas inevitavelmente afetará as outras, em maior ou me-nor grau (DE BOT; LOWIE; VERSPOOR, 2007). Assim, um conjunto de elementos de um sistema deve ser interativo e autocontido, o que equivale a afirmar que a mudança em qualquer elemento do sistema depende exclusivamente do estado de outros elementos no conjunto (VAN GELDER; PORT, 1995).

Se aplicarmos a teoria dos Sistemas Dinâmicos à cognição, perceberemos que não há lugar, nesta teoria, para a propalada premissa cognitivista de dicotomia cérebro/mente. Pelo contrário, uma abor-dagem dinamicista da cognição parte do princípio de que os componentes físicos do cérebro fazem emergir conteúdos e representações em razão da tendência dos sistemas abertos (em estado de não- equilíbrio) em formar padrões (ELMAN, 1995).

Nessa mesma linha, Kelso (1995, p. 26) afirma que o cérebro humano constitui um excelente exemplo de sistema dinâmico, uma vez que “é um sistema auto-organizado de formação de pa-drões governado por leis dinâmicas não lineares”. Observa-se que a formação de padrões e a auto--organização são características fundamentais dos sistemas dinâmicos e estão intimamente relaciona-das. De acordo com Kelso (1995), os padrões emer-gem espontaneamente como resultado da interação não linear3 de um grande número de componentes.3 A não linearidade é um conceito que vem da Teoria dos Sistemas

Dinâmicos e refere-se ao fato de que o aprendizado não se dá numa

À diferença de um sistema estático, um sistema dinâmico possui propriedades que podem variar tanto em função do tempo quanto em função do espaço. Num sistema dinâmico, alguns pontos no espaço, ou seja, alguns subconjuntos no espaço costumam ser mais preferidos que outros. Essa possibilidade que os sistemas dinâmicos possuem de se estabilizarem em determinados pontos carac-teriza, na teoria dinâmica, a noção de atratores. De acordo com Elman (1995), um atrator é um estado em direção ao qual, sob condições normais, um sistema dinâmico se movimentará (ainda que não necessariamente tal sistema dinâmico atinja este ponto). No que diz respeito à aquisição de uma segunda língua, Zimmer e Alves (2012) associam aos atratores à tendência de reproduzir os padrões já arraigados da língua materna, deixando claro que a própria noção tradicional de “fossilização”, de acordo com a qual muitos aprendizes parecem não evoluir em sua aprendizagem da(s) língua(s) adicional (is), poderia ser atribuída, também, a atratores da primeira língua. Também ao discorrer sobre a noção de atrator, Albano (2012) explica o movimento de um pêndulo real, que estaria sujeito a atrito e que possuiria um atrator pontual, que é seu ponto de repouso. Nesse sentido, o estado atrator seria classificado como um comportamento estável e categórico, ocorrendo num sistema instável, como o pendular.

Portanto, a aquisição de uma língua pode ser compreendida como emergente desse sistema dinâmico que comporta, dentre outras variáveis, o aparato cognitivo cerebral, o corpo e o ambiente. Entende-se que o sistema cognitivo não opera como uma manipulação de símbolos estáticos abstratos, mas que as representações funcionam como espa-ços de estados. O léxico se agrega em regiões do espaço de estados dentro de um sistema, ao passo que a gramática consiste na dinâmica (de atratores e repulsores) que configura movimentos nesse espaço (ELMAN, 2011,).

relação imediata de causa e efeito. Não sendo deterministas, os sis-temas não lineares se desenvolvem de forma não previsível, sendo influenciados pelo estado inicial, que será modificado ao longo do tempo por pequenas mudanças que vão redundar em diferentes estados em momentos distintos. No caso da aprendizagem, ao re-ceber uma informação o indivíduo irá processá-la havendo variação do desempenho demonstrado em diferentes momentos no tempo, e essa variação não é necessariamente uniforme nem cumulativa (ELMAN, 1995).

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Ao considerar esta multiplicidade de variáveis em ação, a Teoria dos Sistemas Dinâmicos (DST) fornece um modelo capaz de combinar tanto os as-pectos cognitivos quanto os sociais do processo de aquisição de uma nova língua, bem como aspectos que, sob uma concepção mais tradicional de aqui-sição, poderiam ser considerados não relacionados a este processo em específico (DE BOT; LOWIE; VERSPOOR, 2007). No campo da Linguística Aplicada, a DST foi proposta inicialmente no tra-balho de Larsen-Freeman (1997), que, juntamente com outros pesquisadores, como Herdina e Jessner (2002), começaram a ver o sistema linguístico e o processo de segunda língua como evidências de um sistema dinâmico. Posteriormente, tais ideias foram seguidas por De Bot, Verspoor e Lowie (2005) e Ellis (2007). A pertinência dessa nova visão para a área de Linguística Aplicada reside no fato de que tal perspectiva permite descrever e explicar como um sistema complexo, tal como a linguagem, emerge e se desenvolve ao longo do tempo.

A partir da perspectiva de Sistemas Dinâmicos, a aprendizagem da fala na L2 pode ser entendida le-vando-se em consideração os efeitos da experiência linguística nas produções em L1 e em L2, de modo a minimizar os efeitos de mecanismos maturacio-nais, ou a própria concepção de um período crítico para a aquisição de uma nova língua (ZIMMER; ALVES, 2012). Além disso, ao ser combinada com teorias emergentistas, a DST pode explicar tanto o crescimento quanto o declínio no processo de desenvolvimento linguístico. Conforme explicam Zimmer e Alves (2012, p. 244-245), ao se referirem ao processo de aquisição fonético-fonológica de um novo sistema linguístico, “o sistema dinâmico da L1, dotado de todos os atratores característicos da língua materna, age sobre o sistema da L2, modificando a dinâmica da tarefa na produção da língua estrangeira ao enviesar os atratores característicos da L2 [...]”.

Blank (2013) recomenda que a DST seja tam-bém usada para explicar o multilinguismo, visto que este constitui um fenômeno ainda mais com-plexo do que o bilinguismo. A aquisição de uma L3 ou L4 combina todos os processos encontrados na aquisição de uma L2, de modo a abarcar todos os efeitos associados às interações que podem vir a ocorrer ao longo da aprendizagem de diversos sistemas ao mesmo tempo.

Em suma, há uma relação intrínseca e inegável entre o desenvolvimento linguístico (L1, L2 e demais sistemas) e o desenvolvimento de outras habilidades cognitivas (KROLL; BIALYSTOK, 2013). É importante ter em mente que as regulari-dades encontradas no input linguístico, combinadas com a experiência linguística do aprendiz, exercem influência no aprendizado. Assim, a aquisição de uma nova língua encontra-se fortemente in-fluenciada pelo conhecimento e pela experiência que uma pessoa tem de seus sistemas linguísti-cos previamente conhecidos, o que possibilita a transferência linguística em diferentes domínios linguísticos: fonético-fonológico, morfossintático, semântico e pragmático (ZIMMER; SILVEIRA; ALVES, 2009).

4. As vantagens e desvantagens do bi/multilinguismo

É fato comprovado que os bi/multilíngues têm êxito ao usar apenas uma língua em uma situação de interação com um interlocutor monolíngue. Contudo, é também verdade que eles conseguem perfeitamente aplicar a prática da troca de código linguístico (code-switching) em interações com outros bi/multilíngues, bem como atingir variados graus de sucesso ao fazerem traduções entre suas duas ou mais línguas (GREEN, 1998). O que não está claro, uma vez que há ainda controvérsias entre teóricos, é como os bi/multilíngues conseguem evitar a produção de palavras em sua L1, por exemplo, quando o objetivo é produzir a tradução equivalente em L2, ou, ainda, como eles conseguem garantir que certas tarefas não sejam executadas em vez de outras.

Os sistemas linguísticos dos bi/multilíngues encontram-se potencialmente ativos e competem pelo controle do output. Por isso, para que haja a correta seleção de palavras, é necessário que haja a inibição dos lemas ou nós lexicais ativos que não correspondem à língua-alvo. O Modelo de Controle Inibitório (IC MODEL) (GREEN, 1998) defende a ideia de que os bi/multilíngues são dotados des-sa capacidade de inibição de um/alguns de seus sistemas linguísticos (L1/L2/L3) quando apenas um deles é exigido. Tendo essa capacidade, eles se beneficiariam também, em comparação com os monolíngues, em outros domínios cognitivos não

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verbais, já que essa prática acarreta maior exercício do controle executivo. Este fato tem sido usado como justificativa para explicar o melhor desem-penho de bi/multilíngues em vários experimentos que apresentam estímulos não alvo a serem inibidos durante as tarefas propostas.

O Modelo de Controle Inibitório prevê custos diferentes para bi/multilíngues na execução de tare-fas de produção linguística que exigem a troca entre línguas quando a L2/L3/Ln é fraca. A assimetria na proficiência entre as línguas pressupõe um esforço de inibição maior para suprimir a língua dominante, a L1. Por isso, ao fazerem a troca da L2 para a L1, o custo de troca é maior, diferentemente da situação contrária, em que os indivíduos precisam fazer a troca da L1 para a L2. Essa assimetria não é válida nos casos em que há proficiência equivalente entre as línguas (L1 e L2), nem entre uma L1 e uma L3 mais fraca (ABUTALEBI; GREEN, 2007). É importante destacar também que, no Modelo de Controle Inibitório, a prática da troca de código (code-switching) é vista não como uma relação de competição entre sistemas linguísticos, mas de coo-peração entre os processos de produção de palavras.

Observa-se, então, que a prática do bi/mul-tilinguismo tem sido apontada como promotora de diferenças cognitivas entre monolíngues e bi/multilíngues em todas as faixas etárias. Essas diferenças correspondem não apenas a vantagens, mas também a desvantagens. Vejamos inicialmente as desvantagens.

Alguns estudos apontaram que crianças bi/multilíngues apresentam uma redução no tamanho do vocabulário relativo a cada uma das línguas que falam, quando comparado ao das crianças mono-língües, em virtude de o seu vocabulário global ser compartilhado entre as línguas que elas falam (BIALYSTOK, 2009; OLLER; EILERS, 2002). Isso causa uma lentidão maior na fluência verbal das crianças, também justificada pelo acesso lexical mais lento, que é uma desvantagem apresentada pelos bi/multilíngues em todas as faixas etárias, incluindo os idosos. O acesso lexical mais lento se deve ao fato de que os sistemas linguísticos dos bi/multilíngues estão sempre ativos e em competi-ção, causando dificuldade nas tarefas que avaliam o processamento linguístico, tais como produção verbal ou nomeação de figuras (COSTA, 2005;

GOLLAN; MONTOYA; WERNER, 2002). Como os bi/multilíngues estão constantemente inibindo a(s) língua(s) que não está(ão) sendo demandada(s) pela tarefa, para que apenas uma língua possa ser acessada, a decisão lexical também se torna mais lenta (RANSDELL; FISCHLER, 1987), bem como a fluência semântica (GOLLAN et al., 2007). Além disso, os adultos bi/multilíngues experimentam mais o estado “na ponta da língua” (tip-of-the-ton-gue) (GOLLAN; ACENAS, 2004), o qual consiste em uma inacessibilidade temporária a informações que julgam estarem prestes a serem recuperadas e que estão armazenadas na memória de longo prazo

(ABUTALEBI; GREEN, 2007).No que tange às vantagens cognitivas apresen-

tadas por crianças bi/multilíngues, são encontra-dos na literatura uma grande flexibilidade mental (PEAL; LAMBERT, 1962), maior consciência metalinguística (CUMMINS, 1978) e, também, maior potencial de criatividade (KHARKURIN, 2008, 2009). Mas o destaque maior encontrado por uma grande variedade de estudos é a robustez nas funções executivas. Bialystok e outros (2004) confirmaram que os processos executivos requeri-dos ao administrar duas (ou mais) línguas durante as trocas de código são justamente os componentes executivos centrais demandados na experiência linguística de um bilíngue, influenciando numa variedade de funções executivas, incluindo o con-trole inibitório e pelo menos algumas medidas da memória de trabalho: “[...] uma simples experiência de bilinguismo, que se apoia em algum aspecto do processo executivo para produzir uma linguagem relevante, parece proporcionar amplos benefícios em uma gama de complexas tarefas cognitivas” (BIALYSTOK et al., 2004, p. 302).

As vantagens em funções executivas, apresen-tadas pelas crianças (BLANK; BANDEIRA, 2011; BRENTANO; FONTES, 2011; MARTIN-RHEE; BIALYSTOK, 2008), aparecem também em adul-tos, principalmente em tarefas não linguísticas que dependam pesadamente de controle executivo, tais como o controle inibitório, a resolução de conflito ou o controle de atenção. Esses efeitos do bi/mul-tilinguismo acarretam uma maior promoção de reservas cognitivas, aumentando a neuroplasticida-de. O Quadro 1 sintetiza as diferenças cognitivas acima descritas.

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De acordo com Bialystok (2009), crianças bi-língues apresentam uma melhor performance em tarefas envolvendo funções executivas como o controle inibitório, pois são capazes de inibir mais a atenção quando confrontadas com informações irrelevantes, em relação às crianças monolíngues.

Além das funções executivas relacionadas à aten-ção e ao controle inibitório, o bi/multilinguismo também influencia as funções executivas relaciona-das à resolução de problemas e à flexibilidade estra-tégica. Para investigar essas funções, é importante que se amplie o escopo da pesquisa relacionada

GRUPOS vANTAGENS DESvANTAGENS

Crianças

– Maior controle inibitório em tarefas de funções executivas(BLANK; BANDEIRA, 2011; BRENTANO; FONTES, 2011; MARTIN-RHEE; BIALYSTOK, 2008)

– Maior flexibilidade mental (PEAL; LAMBERT, 1962)

– Maior grau de consciência metalinguística(CUMMINS, 1978)

– Maior criatividade (KHARKHURIN, 2005, 2008, 2009; RICCIARDELLI, 1992)

– Vocabulário em cada uma das línguas menor que o de mono-língues (BIALYSTOK, 2009)

– Acesso lexical mais lento(COSTA, 2005)

– Menor fluência verbal

(BIALYSTOK; FENG, 2011)

Adultos

– Vantagens em funções executivas relacionadas ao controle inibitório e atencional (BIALYSTOK et al., 2004; FINGER; ZIMMER; FONTES, 2011)

– Aumento da neuroplasticidade (formação de reserva cognitiva)(BIALYSTOK; FERGUS; FREEDMAN, 2007)

– Acesso lexical mais lento

(GOLLAN; MONTOYA; WERNER, 2002)

– Decisão lexical mais lenta(RANSDELL; FISCHLER, 1987)

– Vocabulário em cada uma das línguas menor que o de mono-língues(BIALYSTOK, 2009)

Idosos

Atraso de aproximadamente 4 anos no aparecimento dos sintomas do Mal de Alzheimer e outras demências (BIALYSTOK; FERGUS; FREEDMAN, 2007)

Acesso lexical mais lento em cada língua(BIALYSTOK, 2009; GOLLAN et al., 2007)

Fonte: Adaptado de Rodrigues (2013, p. 26).

Quadro 1 – Sumarização das vantagens e desvantagens cognitivas de bi/multilíngues

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à troca de código (code-switching), ampliando-a para os efeitos do bi/multilinguismo sobre a troca de arcabouço mental (frame-switching). Este é assunto da próxima seção.

5. Estendendo o escopo para além do controle inibitório: frame-switching, resolução de problemas e criatividade

Como vimos na seção anterior, a aquisição e o uso de duas línguas compartilhadas por uma estrutura cognitiva que está no âmago do pen-samento humano necessariamente resulta numa configuração mental distinta daquela encontrada em pessoas monolíngues. Assim, conclui-se que o bilinguismo altera a estrutura e o funcionamento cerebral. De acordo com Kroll e Bialystok (2013, p. 3, tradução nossa)4,

[...] as mentes bilíngues são diferentes não porque o bilinguismo em si mesmo cria vantagens ou desvan-tagens, mas porque os bilíngues recrutam recursos mentais de forma diferente dos monolíngues. Esses recursos podem ser especialmente importantes quando os bilíngues produzem e compreendem frases na língua menos dominante, quando eles selecionam palavras para falar em apenas uma língua, e quando eles trocam de uma língua para a outra durante a fala.

De fato, Kharkhurin (2008, 2009) conduziu estudos que corroboram a afirmação acima, e vão ainda além. O pesquisador russo sugere que as vantagens dos indivíduos bi/multilíngues no pro-cessamento consciente da atenção provavelmente relacionam-se ao fato de manterem uma língua na memória de trabalho enquanto rapidamente recu-peram a segunda. Esse fato pode colaborar para o aumento do potencial criativo, pois a memória de trabalho é um processo que inicia no córtex pré-frontal, sítio onde também são processadas outras funções executivas, como a resolução de problemas e o planejamento do comportamento. Kharkhurin (2008) afirma, então, que a essas 4 No original: “bilingual minds are different not because bilingualism

itself creates advantages or disadvantages, but because bilinguals recruit mental resources differently from monolinguals. Those resources may be especially critical when bilinguals comprehend and produce sentences in the less dominant of their two languages, when they select the words to speak in one language only, and when they switch from one language to the other in discourse.”

vantagens, já bem documentadas na literatura da área, os bilíngues somam uma capacidade aguçada para o pensamento divergente, processo que envolve uma ampla procura por informações e gera uma variedade de respostas alternativas para os problemas. Guildford (1967) destaca que o pensamento divergente realiza uma ampla pes-quisa de informações para gerar várias respostas alternativas, enquanto o pensamento convergente seleciona, dentre todas as alternativas disponíveis na memória de longo prazo, a mais adequada para a situação. Segundo Karkhurin (2008, 2009), os pesquisadores em geral concordam que a criativi-dade constitui-se, além de outras habilidades, em iniciar vários ciclos de pensamento divergente e convergente, o que requer um processo de ativação da atenção para produzir novas soluções alternati-vas caracterizadas pela novidade (original ou ines-perada) e adequação (reunião de tarefas úteis). Isso gera um aumento no potencial criativo, exatamente pela troca de arcabouço mental (frame-switching) que certas situações bi ou multiculturais exigem desses indivíduos.

Percebe-se, assim, que neste artigo partimos dos estudos sobre os efeitos da prática de troca de código (code-switching) e agora ampliamos o escopo para investigações que possam balizar também os efeitos da prática de troca de arcabou-ço cultural (cultural frame-switching). Partimos da premissa de que o bilinguismo pode envolver uma articulação mais complexa de habilidades advindas da troca frequente de arcabouço (frame) cultural, tido como “um sistema de significado culturalmente específico, incluindo valores, cren-ças, normas e conhecimento que é compartilhado pelos indivíduos dentro de uma mesma cultura” (FITZSIMMONS, 2007, p. 163).

Portanto, a troca de arcabouço cultural en-volve questões mais amplas e complexas que as envolvidas na troca de código, sendo um processo adaptativo bastante útil em contextos de trocas multiculturais, seja em universidades, organizações ou no cotidiano das pessoas. De acordo com Fitzsimmons (2007), as empresas ou organizações precisam compreender as condições que trazem à tona as habilidades de se colocar no lugar do outro, pensando de acordo com outra cultura, o que requer a troca de arcabouço cultural

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de seus funcionários, a fim de que possam tirar proveito delas.

Ricciardeli (1992) define a criatividade como a capacidade de produzir um rol de soluções, e de selecionar a mais apropriada para a situ-ação, característica do pensamento divergente e convergente. Kharkhurin (2005) afirma que muitos pesquisadores relacionam o pensamento divergente com capacidade criativa. Embora concordem que pensamento divergente é um componente importante do processo criativo, não o consideram sinônimo de criatividade. De fato, Kharkhurin (2009) observou que os bilín-gues possuem habilidades superiores relativas ao pensamento divergente, um dos componentes da habilidade de troca de arcabouço mental (frame--switching) e, por conseguinte, da criatividade. Em sua investigação comparando monolíngues e bilíngues em uma escola particular de língua inglesa em Brasília, Mendonça e Fleith (2005) constataram a superioridade do potencial de criatividade dos alunos bilíngues em relação aos monolíngues em todos os itens por eles usados para avaliar a criatividade.

Segundo Torrance (1965), a criatividade é um fenômeno possível de ser identificado e desen-volvido em todas as pessoas. A autora afirma que a criatividade consiste em um processo, o de se tornar sensível a problemas, deficiências, lacunas, desarmonias. A partir da identificação das difi-culdades ou elementos faltantes em informações ou situações, o ser criativo elabora hipóteses, faz formulações a respeito das deficiências ou aspectos a serem mudados, testa e retesta as hipóteses a fim de modificá-las e alterar um processo, situação ou problema (TORRANCE, 1965).

A investigação do pensamento criativo ganhou muito com a elaboração do modelo de Guilford (1967), que operacionalizou a avaliação da cria-tividade por meio das seguintes dimensões: flu-ência (quantidade de ideias); flexibilidade (ideias diversificadas); originalidade (ideias incomuns) e elaboração (ideias enriquecidas e detalhadas). O modelo de Guilford trouxe consideráveis con-tribuições para o estudo da criatividade, mas é considerado de difícil aplicação, pois mensurar os fatores por ele propostos para avaliar o pensamento criativo sem a consideração explícita das variáveis

correspondentes ao ambiente e contexto social no qual a pessoa está inserida pode causar diversos problemas metodológicos.

A partir da década de 1970, a criatividade passou a ser vista pelos pesquisadores como um processo cognitivo (WECHSLER; NAKANO, 2002). No início dos anos 1990, com a emergência de uma definição consensual e abrangente para a criativi-dade, ela passou a ser entendida como o resultado da interação entre os processos cognitivos, carac-terísticas da personalidade, variáveis ambientais e elementos inconscientes. Wechsler e Nakano (2002) consideram a criatividade intrinsecamente multidimensional, o que envolve a interação entre habilidades cognitivas, características da perso-nalidade, estilos de pensar, elementos ambientais e culturais. Essa complexificação do conceito de criatividade parece ser deveras adequada, já que abarca a noção de desenvolvimento, estimulação e mudança, características fundamentais da Teoria dos Sistemas Dinâmicos.

Portanto, o referencial aqui sucintamente apre-sentado indica que a exposição e a adaptação do indivíduo a outra cultura, cujo idioma difere do seu, estimula a manifestação do comportamento de formas diferentes daquelas estabelecidas em sua cultura original, e isso encoraja o exercício da flexibilidade; tal fator poderá estar associado ao aumento do potencial de criatividade dos bi/multilíngues. Segundo Hong e Chiu (2005), o frame-switching é um exemplo de flexibilidade e uso do conhecimento cultural para adquirir ex-periências e efetuar trocas socioculturais. Dentro desse contexto, a extrapolação dos limites, ou seja, a coragem de quebrar as regras e avançar, vista como um dos indicativos emocionais de criativi-dade, talvez seja mais evidente nos bi/multilíngues do que nos monolíngues, pois atividades criativas requerem expansão conceitual. Pesquisas realiza-das com crianças bilíngues americanas asiáticas evidenciaram que a troca de arcabouço mental (frame-switching), ou seja, a tendência apresen-tada pelos bilíngues a processarem a informação por meio das lentes da cultura A em uma situação, e das lentes da cultura B na situação subsequente, estimula o desempenho criativo (LEUNG; MOR-RIS, 2010).

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O impacto do bi/multilinguismo sobre o potencial criativo em sala de aula – uma abordagem via teoria dos sistemas dinâmicos

6. Conclusão

Neste trabalho, discutimos o bi/multilinguismo sob uma visão de sistemas dinâmicos complexos, dando especial ênfase às questões referentes às funções executivas e à noção de troca de arcabouço cultural – frame-switching, de acordo com a qual os bilíngues/multilíngues podem processar a in-formação a partir das lentes de diferentes culturas. Cabe-nos, ao encerrar o presente trabalho, discutir as implicações de tais concepções para o universo de sala de aula.

A reflexão teórica aqui apresentada permite-nos levantar, minimamente, três pontos a serem refle-tidos sob o universo educacional. Primeiramente, conforme deixamos claro no início deste artigo, há uma crescente interação linguística entre as pessoas do mundo, bem como um grande interesse não somente governamental, mas também por parte dos próprios indivíduos, em viver em um mundo em que o idioma não represente mais uma fronteira para a interação entre as pessoas. É preciso que o profissional de ensino não somente esteja ciente, mas também contribua para o fortalecimento desse quadro. Considerando-se o bilinguismo como um continuum, vivemos em um mundo em que nossos alunos são multilíngues, ainda que em maior ou menor grau, ao lidarem com diferentes habilidades de interação que vão além do código linguístico per se, ao abarcarem as diversas maneiras de promover e manter a interação entre indivíduos.

Em segundo lugar, cabe-nos discutir o caráter dinâmico do processo de aquisição de linguagem, bem como de qualquer outra forma de conheci-mento a ser adquirido. Conforme visto, a Teoria dos Sistemas Dinâmicos concebe uma noção multimodal de conhecimento, entrando em choque com a tradicional visão que isola o conhecimento linguístico de outras formas do conhecimento. Sob a perspectiva da Teoria dos Sistemas Dinâmicos, não somente o conhecimento prévio exerce um importante papel, mas, também, todas as formas de estímulo corroboram para o desenvolvimento do sistema cognitivo. Tal fato se mostra de grande importância para a prática educacional, uma vez que ressalta a necessidade de integrar, cada vez mais, os conhecimentos de diferentes áreas, de

modo a associá-las a oportunidades significativas para o aprendiz, para que o aluno possa vivenciar tudo o que aprende, associando os novos saberes àquilo que ele já sabe. Em outras palavras, não há mais espaço para um conhecimento “engavetado”, seccionado em diferentes seções que não conver-sam entre si. É colocado ao educador, portanto, o desafio de integrar e tornar relevante as mais diferentes formas de conhecimento e habilidades trabalhadas em sua sala de aula.

Por fim, abordamos, neste artigo, a questão do frame switching, bem como da criatividade do falante bi/multilíngue. É preciso que o professor esteja ciente da possibilidade de diferentes olhares, sob diferentes perspectivas, para o objeto de estudo. Mais do que isso, julgamos que cabe ao professor não somente mostrar-se ciente desta possibilidade, mas, também, incentivar estes diferentes olhares e leituras sobre um mesmo objeto de discussão. Isso exige profissionais de ensino que se mostrem aber-tos para o novo e, sem dúvida alguma, dispostos a aprender coisas novas a partir da convivência de nossos alunos. Não há um conjunto de respostas, mas sim um conjunto de potencialidades de discus-sões para um dado tema. Nesse sentido, a questão da criatividade do aluno deve, também, ser aqui discutida, uma vez que estudantes cada vez mais criativos exigem, também, uma constante evolução do universo escolar, bem como um constante re-pensar de como contribuir para o desenvolvimento dos educandos.

Os desafios e demandas não são poucos. De fato, conforme explicita a própria noção dinâmica com a qual operamos, não se pode esperar um processo imediato e de resultados tangivelmente atingidos de imediato. Mais do que isso, é preciso que nos concentremos no processo em si, que, de forma gradual, poderá contribuir para um maior desenvolvimento de alunos e professores. Sob a concepção dinâmica de conhecimento, uma peque-na modificação pode exercer uma grande mudança no sistema, levando-o a um reestabelecimento que, também, apresenta caráter contínuo. Dessa forma, levando-se em consideração tais pressupostos, fica claro que o pouco que cada profissional de ensino conseguir fazer poderá vir a exercer mudanças no desenvolvimento de toda a nossa sociedade.

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Márcia Cristina Zimmer; Ubiratã Kickhöfel Alves

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Recebido em: 19.11.2013

Aprovado em: 14.03.2014

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Francisco Jailson Dantas de Oliveira; Maria Inez Matoso Silveira

A COMPREENSÃO lEITORA E O PROCESSO INFERENCIAl EM

TURMAS DO NONO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAl

Francisco Jailson Dantas de Oliveira ∗

Maria Inez Matoso Silveira ∗∗

RESUMO

Os baixos níveis de compreensão leitora entre estudantes da escola básica no Brasil, principalmente em Alagoas, tão divulgados pelos meios de comunicação, demandam da academia pesquisas que se ocupem do problema. Diante disso, este trabalho, situado na área de Leitura e Cognição, objetivou verificar a compreensão de textos e o uso do processo inferencial entre estudantes do nono ano do ensino fundamental, em três escolas públicas e três escolas particulares de Maceió-AL, durante o 2º semestre de 2012. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, interpretativa, com aporte quantitativo, fundamentada na abordagem cognitiva da leitura, que considera a importância do conhecimento prévio como essencial para o processo inferencial e, consequentemente, para a compreensão da leitura. Os instrumentos de pesquisa utilizados foram um questionário perfil do estudante, um teste de compreensão com questões de múltipla escolha, um questionário pós-teste e um teste cloze. Após a análise dos dados, concluímos que, dos 67 estudantes colaboradores das escolas públicas, 56 (83%) apresentaram déficit na compreensão leitora; por sua vez, dos 111 estudantes colaboradores das escolas particulares, 38 (34%) apresentaram tal deficiência, principalmente em questões que demandavam ativação do conhecimento prévio para consolidar as estratégias inferenciais, essenciais à leitura fluente e produtiva.

Palavras-chave: Compreensão leitora. Aspectos sociocognitivos da leitura. Testes de avaliação de leitura. Processo inferencial na leitura.

ABSTRACT

READING COMPREhENSION AND ThE INFERENTIAL PROCESS IN ThE ELEMENTARY SChOOL´S NINTh GRADE

∗ Mestre em Educação com ênfase na área de leitura e cognição pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/Centro de Edu-cação/Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor de Língua Portuguesa/Leitura e Produção Textual do Colégio Maria Montessori – Maceió. Professor Substituto de Língua Portuguesa/Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL) – Campus I – Arapiraca. Membro do Grupo de Estudos do Texto e da Leitura (GETEL) - Perspectivas Interdiscipli-nares (Diretório de Grupos de Pesquisa CNPq). Endereço para correspondência: Rua Dr. José de Castro Azevedo, 195, aptº. 302, Edifício Oscar Duarte – Pitanguinha. CEP: 57052-240 – Maceió-AL. [email protected]∗∗ Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Programa de Pós-Graduação em Letras, 2002. Professora Associada II do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística e do Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do Grupo de Estudos do Texto e da Leitura (GETEL) – Perspectivas Interdisciplinares (Diretório de Grupos de Pesquisa CNPq). Coordenadora de Projeto do Programa Observatório da Educação. Endereço para correspondência: Rua Missionário John Mein, n. 45. Pinheiro. Maceió, Alagoas. CEP: 57005-790. [email protected]

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A compreensão leitora e o processo inferencial em turmas do nono ano do ensino fundamental

The low levels of reading comprehension among students from elementary and high school in Brazil, mainly in the state of Alagoas, which have been constantly publicized in the mass media, demand academic researches on the problem. In view of that, this research, on the reading and cognition area, aimed to verify reading comprehension and the use of the inferential process among students from the elementary school´s ninth grade of three public schools and three private schools in Maceió, in the state of Alagoas, which was carried out during the second semester of 2012. The authors conducted a qualitative and interpretative research based on quantitative data, according to the cognitive approach of reading, for which the previous knowledge is essential for the inferential process and, consequently, for reading comprehension. In order to collect data, two questionnaires were applied as well as a multiple choice reading test and a cloze test. The data analysis showed that among the 67 students from the public schools, 56 (83%) of them presented deficits in reading comprehension, while among 111 students from the private schools, 38 (34%) of them presented such deficits, especially on questions which demanded previous knowledge activation in order to consolidate inferential strategies which are essential to fluent and meaningful reading.

Key-words: Reading comprehension. Cognitive and sociocognitive aspects of reading. Evaluation reading tests. Inferential reading process.

1. Introdução

A leitura, por ser uma habilidade imprescin-dível para aqueles que vivem numa sociedade grafocêntrica, marcada pela constante divulgação de avanços científicos, tecnológicos e de múltiplas atividades culturais, possibilita ao sujeito leitor re-fletir e questionar acerca dos fatos do seu cotidiano, ajudando-lhes a construir uma visão de mundo. Além disso, a leitura não está circunscrita apenas ao âmbito escolar, mas está presente em muitos momentos da vida. Por isso, faz-se necessário compreender o que se lê, pois grande parte dos conhecimentos, escolares ou não, são repassados por meio do texto escrito.

A respeito do desempenho dessa habilidade, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA)1, que visa subsidiar o aperfeiçoamento das reformas educacionais em curso nos países participantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), revelou, na última avaliação, realizada em 2009, que a 1 O PISA é um programa de avaliação internacional promovido pela

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que avalia os conhecimentos e habilidades dos alunos concluintes do ensino fundamental aos 15 anos nas áreas de Leitura, Matemática e Ciências. No Brasil, o PISA é coordenado pelo Insti-tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).

compreensão leitora dos estudantes brasileiros que concluem o ensino fundamental continua ruim nas versões já ocorridas. Esse resultado coloca o Brasil na 54º posição entre os 65 países avaliados. Entretanto, os resultados do PISA parecem não ter, ainda, contribuído para um esforço deliberado em prol de um ensino mais eficaz de leitura no dia a dia da sala de aula.

Ainda segundo essa avaliação, os estados de Alagoas e Maranhão apresentaram a pior média a respeito de competências nas áreas de matemática, leitura e ciências. Já os exames nacionais realizados pelo SAEB, a Prova Brasil 2011 (BRASIL, 2011), revelaram que o desempenho dos estudantes do nono ano das escolas alagoanas foi o pior resultado do Brasil.

Em razão dessa problemática, surgiu a pergunta que motivou este estudo: até que ponto estudantes do nono ano conseguem compreender o que leem e fazem uso de estratégias produtivas de leitura, especialmente as inferenciais, durante o processo de compreensão do texto escrito? Esse questiona-mento nos conduziu a realizar um estudo em seis escolas alagoanas, sendo três da rede pública esta-dual e três da rede particular da cidade de Maceió--AL, durante o segundo semestre do ano letivo de 2012, envolvendo 178 adolescentes.

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Francisco Jailson Dantas de Oliveira; Maria Inez Matoso Silveira

Diante disso, o principal objetivo da pesquisa foi verificar e identificar, à luz do processamento cognitivo da leitura2, os níveis de compreensão e possíveis dificuldades de compreensão de textos escritos por parte dos estudantes colaboradores, bem como, averiguar se esses estudantes, ao lerem, vão além da localização de informações e frases de conteúdos explícitos, utilizando-se de estratégias produtivas de leitura, principalmente as relacio-nadas aos processos inferenciais que permitem compreender as informações não explícitas na superfície textual. Para viabilizar a realização da pesquisa, adotamos uma metodologia predominan-temente qualitativo-interpretativa, que envolveu uma relevante presença de dados quantitativos de-monstrados através de gráficos, quadros e tabelas.

Os instrumentos escolhidos para a coleta de dados e posterior análise foram um teste de com-preensão de texto com questões de múltipla escolha (TCQME), um questionário pós-teste (QPT) e um teste cloze (TC). Para ajudar a traçarmos um perfil dos estudantes colaboradores, foi elaborado um questionário perfil do estudante, aplicado no início da pesquisa para recolher informações relacionadas à esfera pessoal, sociocultural, ao nível de escola-rização dos pais ou responsáveis, às atitudes dos estudantes colaboradores diante da leitura e ao modo como essa atividade é trabalhada na sala de aula das seis turmas envolvidas na pesquisa.

Compreendemos, a partir do referencial teórico adotado, que a prática da leitura é um processo dinâmico em que o leitor deve fazer uso de seus conhecimentos prévios, experiências e esquemas mentais para estabelecer relação com o autor, via texto, mediante o desenvolvimento e aperfeiço-amento de estratégias e habilidades cognitivas e metacognitivas, considerando que só existe leitura significativa do texto escrito se existir compreen-são (SILVEIRA, 2005). Dessa forma, neste artigo, abordamos o processo de compreensão leitora de textos escritos sob a perspectiva cognitiva, com ênfase especial no processo inferencial e sua importância para a compreensão; a questão dos instrumentos para avaliar a compreensão de textos

2 Convém esclarecer que, quando nos referimos a processo cogniti-vo, subentende-se que a cognição é, na realidade, cognição social, pois o que está em nossa mente é fruto da interação entre nossos dispositivos biopsíquicos e cerebrais e o meio social.

escritos entre estudantes; a metodologia utilizada na pesquisa; e, por fim, apresentamos a análise dos resultados da pesquisa realizada.

2. A compreensão leitora e o processo inferencial

A partir de pressupostos cognitivos (ou socio-cognitivos), a leitura é concebida como uma ativi-dade cognitiva altamente sofisticada, que envolve habilidades e processos cognitivos múltiplos, como compreensão, memória, capacidade de aprendiza-gem e atenção. A concepção cognitiva considera também o contexto social em que a interação leitor-autor, via texto, se dá. Nesta perspectiva, o conhecimento prévio do sujeito leitor (conhe-cimentos linguístico, textual e de mundo), que é construído nas interações sociais, ganha especial destaque. Dessa forma, quanto maior for o conheci-mento partilhado entre autor e leitor, ou produtor e receptor, melhor será a compreensão (KLEIMAN, 1989; LEFFA, 1996a; SILVEIRA, 2005).

Compreender bem um texto, como explica Mar-cuschi (2008), não é uma atividade geneticamente natural, tampouco precede de ações individualmen-te isoladas do meio e da sociedade em que o leitor vive. Também não pode ser considerada apenas um ato de identificação de informações, mas uma construção de sentidos com base em atividades inferenciais. A compreensão exige habilidades cognitivas e metacognitivas de leitura, interação e trabalho. Atividades como ler e escrever não são aleatórias nem voluntariosas, mas resultado de vivências sociais e culturais. Para as autoras Koch e Elias (2006, p. 11), a leitura é definida como:

[...] uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo.

O leitor, ao interagir com o texto escrito, deve observar, além das informações textuais explíci-tas, suas experiências e conhecimentos pessoais diversificados. Isso porque a atividade leitora não se limita a considerar o sentido do texto como algo pronto, visivelmente expresso na sua superfície,

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mas como um produto resultante do esforço do leitor a partir de seus conhecimentos prévios, de seus objetivos e de sua ação sobre a materialidade linguística presente no texto. Na realidade, além do conhecimento prévio, existem outros fatores que convergem para se alcançar a compreensão, como a contribuição das memórias de trabalho, de curto e longo prazo3 (IZQUIERDO, 1989, 2003; FIORI, 2008) diretamente envolvidas com o processamen-to da leitura.

Dessa forma, além desses fatores cognitivos apontados anteriormente, para que a interação entre leitor e autor, mediada pelo texto, aconteça produti-vamente, o leitor pode e deve empregar operações mentais, ou estratégias de leitura4, que o auxiliam na compreensão do texto que lê. Essas estratégias, conforme Silveira (2005) e Kleiman (1989, 2002), variam desde um nível inconsciente (cognitivas – quando o leitor automatiza a leitura) até um nível mais consciente (metacognitivas – quando o leitor desautomatiza a leitura e passa a perceber e corrigir possíveis falhas na compreensão do que está lendo).

Além dos elementos cognitivos supracitados, Leffa (1996a) afirma que a ativação de esquemas mentais, ou construtos semânticos (scripts e fra-mes) armazenados pelo leitor ao longo do tempo, permite ao leitor efetuar inferências que o ajudarão a compreender o que está lendo. Quanto a isso, que-remos enfatizar que, de acordo com a Teoria dos Es-quemas (TE), “a leitura não é nem atribuição nem extração de significado, mas resultado da interação adequada entre os dados do texto e o conhecimento prévio do leitor” (LEFFA, 1996a, p. 44).

A afirmação de que a TE influencia o processo de leitura e compreensão do texto escrito se justifica a partir do princípio de que cada ato de compreen-são envolve o conhecimento prévio do leitor, e que a interpretação coerente de um texto é desenvolvida 3 Por memória de trabalho entende-se a memória que mantém viva

e intacta, durante alguns segundos, a informação que está sendo processada, sem deixar traços e sem produzir arquivos. Já a memó-ria de curto prazo, também chamada memória de curta duração, é responsável por armazenar informações durante poucas horas; ao passo que a de longo prazo, como o nome sugere, armazena todos os nossos conhecimentos ao longo de nossa vida (KLEIMAN, 1989, 1992; LEFFA, 1996a).

4 Estratégias de leitura são as operações mentais que realizamos durante o ato de ler, na tentativa de processar as informações visuais acionando-se o conhecimento prévio para buscar os sentidos dos enunciados. São os sentidos atribuídos ao texto que levam o leitor à compreensão (SILVEIRA, 2005).

por meio do processo interativo de combinação da informação textual com a informação que o leitor traz consigo sobre o assunto do texto. Por isso, ao lermos um texto conseguimos fazer inferências a respeito do assunto, estabelecendo uma relação de sentido entre as experiências subjetivas acumuladas ao longo da vida e a informação encontrada na superfície do texto.

Diante disso, a produção dos sentidos de um texto está ligada ao seu contexto de interação entre autor e leitor via texto; e para que essa relação seja estabelecida produtivamente, entra em ação uma importante estratégia de leitura – a inferência. Fazemos inferências a partir de conhecimentos e crenças que entendemos serem relevantes para al-cançarmos uma compreensão mais aprofundada do que a mera decodificação literal do texto. Segundo Rodriguez (2004), para compreender um texto, o leitor deve realizar inferências baseadas na relação que se estabelece entre o seu conhecimento anterior e as informações textuais.

Muitos autores como Marcuschi (1985, 2008), Leffa (1996b), Kleiman (1992), Machado (2005), Silveira (2005), Tomitch (2008), dentre outros, enfatizam que esta estratégia (a inferencial) é essencial para se alcançar a compreensão leitora. E ainda, a inferência está presente na leitura da maioria dos textos, dos mais simples aos mais complexos, tanto para adultos como para crian-ças. Dessa forma, a compreensão da leitura exige que o leitor, em contato com as ideias do texto, as analise comparando-as com as informações que tem consolidadas em sua memória. Isso ocorre regularmente quando as informações aparecem de forma explícita no texto. No entanto, sabemos que muitas informações aparecem de forma implícita, ou seja, são deduzidas a partir de pistas textuais e da ativação do conhecimento prévio do leitor sobre o assunto abordado no texto. Essa habilidade de dedução é chamada de inferência ou habilidade inferencial.

Santos (2008), ao falar sobre o papel das infe-rências para a atividade de leitura e compreensão de textos, faz um apanhado de conceitos sobre inferências atribuídos a vários autores, dentre eles cita Goodman (1987) e Kleiman (1989), a partir dos quais se baseou para conceber a inferência como o resultado de uma estratégia cognitiva cujo

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produto final é a obtenção de uma informação que não está totalmente explícita no texto. Ou seja, inferir não é mais do que fazer emergir informação adicional a partir daquela que é disponibilizada ao leitor através do texto base. Portanto, inferir é suplementar informação não verbalizada no texto (SANTOS, 2008).

Com relação à tipologia das inferências, há uma variedade de classificações quase tão numerosa quanto as pesquisas sobre as práticas de leitura e o uso de inferências. Todavia, embora varie quanto ao tipo, segundo Machado (2010, p. 62), existe uma característica comum que se faz presente no momento de classificar as inferências, que é a “adição de informações ao texto feita pelo leitor ou ouvinte”. Também a esse respeito, Ribeiro (2011) afirma que, para classificar as inferências, existem pelo menos, três características básicas. A primeira está relacionada ao acréscimo de informação me-diante o estímulo apresentado; a segunda refere-se às conexões estabelecidas entre o que se encontra textualmente explícito, com o objetivo de preencher lacunas de coerência; e a terceira diz respeito à experiência e ao conhecimento de mundo do leitor.

É importante enfatizar que as inferências ge-radas pelo leitor durante a leitura podem envolver diferentes graus de complexidade. Quanto a isso, Coscarelli (2003, p. 31) nos diz que

A geração de inferências é um processo fundamental na leitura. Nenhum texto traz todas as informações de que o leitor precisa para compreendê-lo. É preciso que o leitor o complete com informações que não estão explícitas nele. Sendo assim, o bom leitor é aquele capaz de construir uma representação mental do significado do texto, estabelecendo as relações entre as partes deste, e de relacioná-lo com conheci-mentos previamente adquiridos. Isto é, o bom leitor é capaz de fazer inferências de diversos tipos e graus de complexidade.

Nessa perspectiva, ainda de acordo com Cos-carelli (2003), entre a variedade dos tipos de infe-rências, há aquela que enfatiza desde os diferentes graus de processamento que são exigidos do leitor para produzir diferentes inferências simples ou complexas, até aquele tipo de inferência realizada para conectar partes do texto, conhecida como inferência conectiva. Nesse sentido, o que tornará a realização de inferências um processo fácil ou

complexo, serão as operações cognitivas exigidas durante o processamento da leitura. Isso quer dizer que, “conforme o tipo de leitura, as operações de análise, síntese, indução, dedução, analogia, so-lução de problemas, generalização, entre outras, podem variar em grau de complexidade” (COS-CARELLI, 2003, p. 39), como também, o nível de conhecimento prévio do leitor em relação ao assunto abordado no texto.

A partir dessas informações, podemos consi-derar como inferências simples aquelas que não exigem do leitor uma atividade cognitiva mais elaborada para resgatar uma informação presente nas entrelinhas do texto. Isso quer dizer que o reconhecimento de uma palavra pelo processo de sinonímia a partir do contexto e de pistas oferecidas pelo contexto, pode ser considerado uma inferência simples.

O leitor estará realizando uma inferência com-plexa quando envolver vários processos cognitivos ao mesmo tempo, ou seja, em situações de leitura e compreensão de textos que exigem do leitor o esforço em recuperar uma informação fornecida pelo texto a partir do uso do seu conhecimento de mundo e, em seguida, poder sintetizar as principais ideias de um texto para, por exemplo, responder a um teste de compreensão leitora com questões de múltipla escolha. Dessa maneira, é válida a afirmação de que a inferência é um processo in-dispensável para a compreensão de textos escritos, sejam eles simples ou complexos, bem como é uma ferramenta que pode ser utilizada tanto pelo leitor iniciante, quanto pelo leitor maduro; o que vai diferir é o grau de profundidade semântica relativa ao texto, dependente do quão abrangente seja o nível de conhecimento prévio do leitor. Vale ressaltar que, embora a construção de inferências seja fundamental para compreensão leitora do texto escrito, esse mesmo processo, porém, não é igual e linear para todo leitor; ou seja, varia de acordo com as experiências e conhecimentos prévios pessoais. Cada leitor produz suas próprias inferências “para possibilitar a compreensão do texto e que, depois de feitas são incorporadas à representação do texto como as outras proposições não inferidas” (COS-CARELLI, 2002, p. 9).

Evidencia-se, dessa forma, o caráter individu-al da produção de inferências que, por sua vez,

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envolve habilidades e processos cognitivos múl-tiplos, como compreensão, memória, capacidade de aprendizagem, de atenção e de inferenciação, entre outros. A esse respeito, Marcuschi (2007, p. 6) afirma que:

A contribuição essencial das inferências na compre-ensão de textos é a de funcionarem como provedoras de contexto integrador para informações e estabele-cimento de continuidade do próprio texto, dando-lhe coerência. As inferências atuam como hipóteses coesivas para o leitor processar o texto, ou seja, como estratégias ou regras embutidas no processo.

O processo inferencial, portanto, garante a orga-nização dos sentidos atribuídos ao texto pelo leitor, cabendo a esse a responsabilidade de organizar as ideias apreendidas no texto e organizá-las coerente-mente a partir da íntima relação estabelecida entre partes do texto e o contexto, mediado pelo exercício do conhecimento prévio e resgate das informações contidas na memória de longo prazo do leitor e organizadas em esquemas mentais cognitivos.

Assim sendo, convém frisar que, embora a pesquisa ora relatada tenha sido realizada em três escolas da rede pública estadual e em três escolas da rede particular de Maceió, a análise dos dados não foi feita em caráter comparativo entre os dois gru-pos de redes de ensino; mesmo porque o número de estudantes colaboradores não é equivalente. E, ain-da, convém destacar que, de acordo com o objetivo geral da nossa pesquisa, foi dada maior evidência, nos comentários, às questões que envolviam o uso de inferências, consideradas por Marcuschi (1985) como uma das mais nobres estratégias de leitura e que pode variar muito em grau de complexidade, como nos afirma Coscarelli (2003).

3. A avaliação da compreensão de textos escritos e seus instrumentos

Avaliar a compreensão leitora é uma tarefa muito dificultada pela própria complexidade dessa habilidade, principalmente pelo fato de a leitura se realizar na mente das pessoas, envolvendo pro-cessos cognitivos, afetivos e psicológicos. Dada a complexidade desse fenômeno, não temos como, empiricamente, verificar, medir, avaliar diretamen-te a sua ocorrência. Por isso, temos que nos valer

de meios indiretos para avaliar o desempenho do leitor, utilizando instrumentos que evidenciem o seu comportamento de forma escrita ou falada. Nessa perspectiva, para realizar uma atividade de avaliação leitora faz-se necessário saber o que se vai avaliar e, em seguida, elaborar um instrumento adequado que possibilite avaliar o nível de compre-ensão do leitor sobre o texto lido. Quanto a isso, Borba (2007, p. 32) nos diz que:

Avaliar a compreensão leitora envolve verificar qual é o conhecimento prévio do leitor em questão. Para preparar um instrumento adequado que possa mostrar o nível de compreensão leitora, devemos respeitar os limites do conhecimento prévio dos sujeitos que serão testados.

Tradicionalmente, os instrumentos mais utiliza-dos na avaliação da compreensão de textos escritos são os questionários orais e escritos com perguntas de interpretação e de compreensão de textos. Tais procedimentos são comumente utilizados durante as aulas, geralmente apoiados em livros didáticos. Para a aferição de notas, esses procedimentos se repetem em formas de provas e testes.

A respeito da tipologia de questões sobre a ativi-dade de compreensão de textos escritos, Marcuschi (2005), com base na análise de alguns manuais didáticos de várias séries do ensino fundamental, pontua algumas ações que ele considera como problemáticas em relação à natureza da referida atividade. Essas ações estão relacionadas à com-preensão concebida apenas como atividade de de-codificação, com buscas de informações explícitas no texto ou, ao contrário, perguntas que extrapolam o texto, indagações descontextualizadas e a pouca frequência de questionamentos que possibilitam reflexões críticas e expansão ou construção de sentido.

Dessa forma, os três instrumentos de pesquisa utilizados para verificar e analisar os níveis de compreensão leitora dos 178 estudantes cola-boradores foram: um teste de compreensão com questões de múltipla escolha (TCQME), baseado nas orientações do GERI5 e contemplando alguns dos descritores da Prova Brasil/SAEB (BRASIL, 5 Guia de Elaboração e Revisão de Itens (GERI), do Instituto Nacional

de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - (Inep), órgão responsável pela elaboração e aplicação de avaliações nacionais em larga escala na educação brasileira, como a Prova Brasil.

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2011). Para elaboração desse teste foram escolhidos dois textos adequados ao grau de conhecimento de um estudante leitor do nono ano. Esse teste era composto por dez itens, ou questões, sendo uma de acasalamento, e as demais compostas por um enunciado acompanhado de quatro distratores e um gabarito.

O segundo instrumento usado foi um questioná-rio pós-teste (QPT), uma variação dos protocolos verbais (PV) que, segundo Tomitch (2008), ajudam o pesquisador a coletar dados sobre como se dá a interação do leitor com o texto escrito; e, ainda, captar os procedimentos utilizados pelo leitor na realização da atividade leitora através da verbaliza-ção de seus pensamentos a respeito dessa atividade. A finalidade do QPT era levar o nosso estudante colaborador a fazer uma autoavaliação sobre seu desempenho de compreensão leitora logo após ter respondido ao TCQME.

Por fim, o terceiro instrumento usado foi um teste cloze, ou texto lacunado, como é comumente conhecido, e que vem sendo utilizado por vários pesquisadores, a exemplo de Retorta (1995), Santos et al. (2002) e Borba (2007). Esse teste foi originalmente proposto por Taylor (1953, apud SANTOS, BORUCHOVITCH; OLIVEIRA, 2009) como um meio de avaliar a compreensibilidade e o grau de dificuldade de textos para falantes nativos da língua inglesa. A partir de então, muitas outras experiências vêm sendo realizadas em pesquisas relacionadas à compreensão do texto escrito.

A técnica cloze inicialmente proposta por Taylor consiste em lacunar um texto suprimindo uma palavra a cada cinco vocábulos, respeitando-se o primeiro e o último parágrafo. O leitor preenche-ria as lacunas para restituir o sentido completo do texto, respeitando o princípio de coerência textual interna, como nos confirmam Santos, Boruchivitch e Oliveira (2009). Na presente pesquisa, dada a versatilidade do cloze, o lacunamento se deu a cada sete vocábulos de um texto que versava sobre um tema já conhecido pelos estudantes colaboradores – a escassez de água. Dessa forma, esses estudan-tes se submeteram a dois testes cloze: o primeiro para conhecimento da técnica, contando com a nossa ajuda e orientação para encontrar a palavra suprimida; e o segundo para coleta de dados para a pesquisa, respondido individualmente.

4. A pesquisa realizada

A metodologia adotada na realização da pes-quisa contou com uma relevante presença de dados quantitativos; entretanto, o estudo pode ser caracterizado como qualitativo e interpretativo, uma vez que a pesquisa qualitativa visa “analisar e interpretar os dados, refletir e explorar o que eles podem propiciar buscando regularidades para criar um profundo e rico entendimento do contexto pesquisado” (OLIVEIRA, 2010, p. 22).

Uma das características da pesquisa qualitativa e interpretativa consiste na seleção de dados per-tinentes, cujos valores não residem neles mesmos, mas nos inúmeros resultados a que podem levar. Ademais, o rigor de uma pesquisa dessa natureza não se mede apenas por comprovações estatísticas, mas justamente pela amplitude e pertinência das explicações e teorias, ainda que estas não sejam de-finitivas e que os resultados alcançados não sejam generalizáveis (ANDRÉ; LÜDKE, 1986). Além disso, segundo Oliveira (2010, p. 24), “o processo interpretativo passa por três estágios: o descrever, o dar sentido ao dado e o argumentar”.

Como já foi informado, a pesquisa aqui rela-tada foi realizada durante o segundo semestre do ano letivo de 2012, com a finalidade de verificar o processo da compreensão leitora e o processo inferencial, abrangendo seis turmas do nono ano de seis escolas do município de Maceió, sendo três escolas da rede pública estadual e três da rede particular de ensino, totalizando 178 estudantes colaboradores (de 13 a 17 anos, a maioria meni-nas), provenientes de vários bairros da cidade de Maceió. Em geral, tratava-se de um público in-formante constituído por estudantes provenientes de camadas sociais distintas, desde a classe média baixa até a média alta.

Os testes foram aplicados seguindo uma or-dem metodológica conforme o objetivo que se pretendia alcançar com cada um deles. A data de aplicação dos testes, embora tenha variado em razão da quantidade de escolas colaboradoras e da realidade interna, respectivamente, aconteceu entre os meses de julho e agosto de 2012. É importante frisar que, por questões éticas, os nomes das seis escolas envolvidas e dos estudantes colaboradores foram preservados.

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A compreensão leitora e o processo inferencial em turmas do nono ano do ensino fundamental

Considerando o limitado espaço deste trabalho em relação à vasta quantidade de dados gerados pela pesquisa, elegemos as informações refe-rentes ao uso do processo inferencial pelos 178 estudantes colaboradores como produto final do nosso estudo para ser apresentado. Essa decisão se justifica, também, pelo fato de a inferência ter sido estabelecida como um dos mais importantes elementos investigativos que motivou a nossa pesquisa. Para realizarmos a análise dos dados, o primeiro teste foi corrigido e pontuado (1,0 para cada uma das 10 questões), conforme uma tabela6 por nós elaborada, para avaliar os níveis

de compreensão leitora dos estudantes colabora-dores dos dois grupos. Para análise do teste cloze, levou-se em consideração apenas a quantidade de recorrência das palavras esperadas, aceitáveis e inaceitáveis, sem atribuição de notas, como no TCQME.

Dessa forma, o Gráfico 1 mostra o desempenho dos 178 estudantes colaboradores no primeiro teste de compreensão leitora, o TCQME. É importante ter presente que do número geral de estudantes colaboradores, 67 pertencem ao GA (grupo das escolas públicas) e 111 pertencem ao GB (grupo das escolas particulares).

6 A referida escala, elaborada pelos pesquisadores, estabeleceu os seguintes conceitos e suas respectivas notas: E (0,0 – 2,0), D (2,1 – 4,0), C (4,1 – 6,0), B (6,1 – 8,0) e A (8,1 – 10,0).

Gráfico 1: Desempenho na compreensão leitora no teste TCQME – Maceió – 2013

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

A respeito dos resultados obtidos pelo teste TCQME, podemos fazer algumas considerações com relação às dificuldades detectadas. Primeira-mente, atribuímos que uma das possíveis causas dessa dificuldade seja a falta de familiarização com esse tipo de teste. Isso foi corroborado pelas respostas ao questionário pós-teste (QPT), em que a grande maioria dos respondentes, nos dois grupos de escola, afirmou só ter contato com um teste do tipo TCQME nas provas. Em segundo lugar, quanto ao processamento da leitura, os dados revelaram que os estudantes colaboradores dos dois grupos de escola (GA e GB) demonstraram dificuldade em

responder questões de múltipla escolha que explo-ram a habilidade de identificar informações textuais explícitas na superfície do texto. Esse resultado é preocupante, pois esse tipo de tarefa demanda re-lativamente pouco esforço cognitivo do leitor. Isso evidencia que boa parte de nossos estudantes estão terminando o ensino fundamental com dificuldades em processamentos básicos da leitura.

Relacionada a esse resultado está a confirmação da hipótese de que muitos estudantes do nono ano não conseguem compreender o que leem por não terem, possivelmente, superado o estágio de deco-dificação nos anos iniciais do ensino fundamental. O que nos leva a acreditar nisso é o fato de que esse tipo de dificuldade está ligada a uma leitura lenta e improdutiva, característica de um leitor aprendiz

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que não chegou, ainda, ao nível de leitura que vai além do processo de decodificação (KATO, 1990; KLEIMAN, 2002).

Os resultados encontrados evidenciam também que muitos estudantes colaboradores encontraram dificuldade em realizar inferências que exigem do leitor o conhecimento de habilidades meta-linguísticas e a habilidade de realizar inferências episódicas7, bem como, realizar inferências mais elaboradas, ou complexas, por envolverem a ati-vação dos conhecimentos prévios e a capacidade de análise, síntese ou indução, como nos afirma Coscarelli (2002).

Considerando que os testes de compreensão de textos com questões de múltipla escolha são aplica-dos em larga escala no Brasil pelo SAEB, como a Prova Brasil, por exemplo, uma prática maior desse tipo de atividade de leitura desde os anos iniciais do ensino fundamental ajudaria, consideravelmente, o desempenho de muitos estudantes nas práticas avaliativas de leitura em vários níveis. E, ainda, auxiliaria o desenvolvimento e/ou aperfeiçoamento de estratégias cognitivas e metacognitivas de lei-tura. Seguramente, os estudantes leitores muito se beneficiariam, especificamente, com o desenvol-vimento de estratégias inferenciais, visto que as “inferências atuam como hipóteses coesivas para o leitor processar o texto, ou seja, como estratégias

ou regras embutidas no processo” (MARCUSCHI, 2007, p. 94).

Os resultados obtidos pelo questionário pós--teste (QPT), além de evidenciarem a grave reali-dade dos estudantes colaboradores dos dois grupos de escolas em relação à falta de regularidade de atividades leitoras com questões múltipla escolha, revelou, também, que a maior dificuldade desses estudantes consiste em concentrar-se na leitura e compreensão das ideias do texto. Todavia, embora os dados gerais do QPT tenham revelado pouca familiaridade dos 178 estudantes colaboradores desta pesquisa em testes com questões de múltipla escolha, vale ressaltar que o resultado do TCQME das turmas das escolas particulares aponta para algum domínio deste tipo de atividade, em virtude do razoável desempenho desse grupo no referido teste, especialmente a turma EB38.

Depois disso, vejamos o Gráfico 2, com o re-sultado, por número de acertos e erros, do uso de inferências simples e complexas dos estudantes colaboradores das escolas públicas (GA) e das escolas particulares (GB) no teste TCQME. Re-lembramos que essa classificação de inferências está relacionada ao uso de operações cognitivas exigidas durante o processamento da leitura, espe-cificamente, ligadas às questões 04 e 05 (simples), e 07, 08 e 09 (complexas) do referido teste.

7 As inferências episódicas, segundo Pereira (2009), são habilidades do tipo de recuperação de fatos e de informações referentes ao conteúdo do texto, que ajudam na compreensão textual. 8 EB3 – Terceira turma da terceira escola da rede particular.

Gráfico 2: Uso de inferências simples e complexas no teste TCQME dos estudantes colaboradores do GA e do GB – Maceió – 2013

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

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A compreensão leitora e o processo inferencial em turmas do nono ano do ensino fundamental

O Gráfico 2 nos mostra que o número de acertos dos estudantes colaboradores do GA no uso de inferências simples (aquelas que exigem um menor esforço de processamento da leitura, por envolver operações cognitivas mais simples) foi menor do que o número de erros. Quanto ao uso de inferências complexas (que exigem maior esforço cognitivo do leitor, por envolver dife-rentes graus de processamento e complexidade de operações cognitivas diferentes), esse mesmo grupo apresentou, também, um baixo resultado, ou seja, o número de acertos foi bem menor do que o número de erros.

Esse resultado é coerente com o desempenho das três turmas das escolas públicas no teste TCQ-ME, revelando, possivelmente, pouca prática de leitura, e com isso um baixo uso de estratégias de leitura produtivas, particularmente nesse tipo de teste que envolve diferentes graus de inferências.

Com relação ao desempenho dos estudantes co-laboradores do GB nesse primeiro teste, o resultado foi diferente do GA. No tocante ao resultado no uso de inferências simples pelos estudantes colaborado-res do GB, conforme mostra o Gráfico 2, o número de acertos foi maior do que o número de erros. Com relação ao resultado do uso de inferências comple-xas por esse mesmo grupo, o número de acertos e de erros demonstra-se equilibrado. Provavelmente,

os estudantes colaboradores do grupo GB têm uma prática de leitura um pouco mais produtiva em relação ao uso de estratégias inferenciais de leitura com diferentes graus.

Antes da apresentação dos resultados obtidos com o teste cloze, convém evidenciar que este teste possibilita detectar, muitas vezes, o grau de experi-ências de leitura daqueles que a ele se submetem. Afinal, o cloze permite não apenas quantificar o número de acertos, mas também, verificar o grau de aceitabilidade das respostas fornecidas pelo leitor, possibilitando avaliar qualitativamente os resultados ao confrontar a resposta esperada com a resposta fornecida pelo leitor (SANTOS, BORU-CHOVITCH; OLIVEIRA, 2009).

É apropriado ressaltar que as habilidades exigi-das pelo cloze não são as mesmas que outros tipos de teste de compreensão leitora exigem (LEFFA, 1996a). No entanto, a aplicação do teste cloze nesta pesquisa possibilitou-nos verificar, por exemplo, um baixo nível de compreensão leitora e, ainda, uma possível dificuldade da grande maioria dos estudantes colaboradores dos dois grupos de escola no uso de estratégias de leitura que buscam coesão e coerência no texto, inclusive as inferenciais. Vejamos no Gráfico 3, o resultado do desempenho dos dois grupos de escolas colaboradoras (GA e GB) no teste cloze.

Gráfico 3: Desempenho leitor no teste cloze dos estudantes colaboradores do GA e do GB – Maceió – 2013

Fonte: Elaborado pelos autores com os dados da pesquisa.

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Francisco Jailson Dantas de Oliveira; Maria Inez Matoso Silveira

Analisando o Gráfico 3, é possível visualizar que bem mais da metade dos estudantes colabora-dores do GA preencheu os espaços com palavras inaceitáveis (50,73%), ou seja, com palavras que não correspondiam ao campo semântico do vocá-bulo retirado e que, por não contribuírem com a coerência macro e microtextual, não puderam ser consideradas. A quantidade de estudantes desse mesmo grupo que conseguiu preencher as lacunas com as palavras esperadas corresponde a 37,2%, um resultado relativamente razoável. Mesmo somando-se esse resultado com o das palavras aceitáveis (10%), o resultado não supera o de palavras inaceitáveis. Isso é preocupante porque pode evidenciar pouca prática com elementos da textualidade, tais como a coesão e a coerência. E, ainda, apresentar indícios de que a interação entre leitor-autor via texto não foi estabelecida satisfa-toriamente.

O Gráfico 3 demonstra também que o número de estudantes colaboradores do GB que consegui-ram preencher as lacunas com a palavra esperada (palavra suprimida do texto), foi quase a metade (48,58%). O número daqueles que recorreram ao processo de sinonímia para preencher a lacuna com uma palavra aceitável foi baixo (14,79%); já o pre-enchimento das lacunas com palavras inaceitáveis, apresentou um resultado maior (35,8%). Possi-velmente, poucos estudantes colaboradores desse grupo conseguiram compreender o sentido geral do texto para, pelo menos, encontrar uma palavra semanticamente correlata à palavra suprimida.

Com base em Santos, Boruchovitch e Oliveira (2009), podemos inferir que poucos estudantes colaboradores do GB conseguiram desempenhar habilidades necessárias para preenchimento do cloze a partir da compreensão do campo indepen-dente, que exige do leitor a habilidade de síntese da compreensão contextual global do texto para, em seguida, não só compreender o contexto local da palavra cancelada, como também, resgatar o vocábulo e garantir a coerência e a compreensão geral do texto.

Os resultados sinalizam, também, um baixo desempenho dos estudantes colaboradores dos dois grupos (GA e GB) no momento de processar a compreensão geral do texto, a partir dos movi-mentos top-down e bottom-up, que são igualmente

necessários a qualquer leitor na leitura de textos escritos, inclusive, no teste cloze. Esses dois tipos de processamento da leitura9 podem ajudar o leitor do cloze a resgatar, com a ajuda do seu conhecimen-to prévio, tanto as informações globais do texto, quanto a compreensão local da palavra suprimida.

Convém acentuar que os movimentos top-down e bottom-up de processamento da compreensão leitora estão relacionados aos dois campos de preenchimento do cloze – o campo dependente (apoiado no microtexto) e o campo independente (baseado no macrotexto), conforme nos recorda Condemarín & Milicic et al. (1988 apud SANTOS; BORUCHOVITCH; OLIVEIRA, 2009, p. 51). Nesse sentido, quanto maior for o conhecimento sobre o tema abordado em um teste cloze, melhor será o desempenho do leitor para recuperar o sen-tido geral do texto, utilizando-se, por exemplo, do processo inferencial; isso, supostamente, ratifica o bom desempenho da turma EA31010 no preenchi-mento do teste cloze, evidenciando, dessa forma, um bom desempenho no uso dos movimentos top--down e bottom-up.

5. Considerações finais

Considerando as informações colhidas e ana-lisadas durante a pesquisa, pudemos observar que os estudantes colaboradores das escolas públicas (GA) não se saíram muito bem no processo de compreensão leitora com o uso de inferências. Essa deficiência pode indicar uma falta de leitura significativa em que os estudantes pudessem exer-citar o desenvolvimento de estratégias inferenciais em atividades de leitura em sala de aula. Afinal, a realização de inferências pelo leitor durante a ativi-

9 Com relação aos modelos de leitura, ou modelos de processamento da leitura, Silveira (2005) faz uma apresentação dos principais modelos teóricos de leitura, mostrando a existência de modelos em que predomina o processamento descendente (ou top-down), que processa predições progressivamente sobre pequenas unidades do texto, a exemplo dos modelos defendidos por Goodman (1976) e Smith (1989). Há também modelos ascendentes (ou bottom-up), de-fendidos por outros autores, a exemplo de Philip Gough (1976), que processam a leitura a partir de uma sequência linear – começando das letras para os sons, depois palavras, sentenças, até alcançar o significado. Há, ainda, modelos que defendem o uso dos dois pro-cessamentos (bottom-up e top-down), interativamente, a exemplo do modelo de Rumelhart (1977).

10 EA3 – Terceira turma da terceira escola da rede pública.

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A compreensão leitora e o processo inferencial em turmas do nono ano do ensino fundamental

dade leitora permite e garante a organização do(s) sentido(s) que um texto pode apresentar.

Observamos, também, que o desempenho dos estudantes colaboradores das escolas particulares (GB), no mesmo tipo de atividade leitora promovi-da pela pesquisa, também não foi bom; embora esse grupo tenha apresentado um resultado diferenciado e um pouco melhor do que o das escolas públicas. Pressupõe-se que os estudantes colaboradores do GB também não realizavam regularmente ativi-dades de compreensão leitora com o incentivo ao uso de estratégias eficientes de leitura, como a inferencial.

Convém lembrar, entretanto, que os universos de informantes dos dois grupos foram diferentes, embora o número de escolas tenha sido igual.

Diante do exposto neste artigo, podemos con-siderar a inferência como o “farol” do processo de compreensão leitora por permitir ao leitor ultrapas-sar a mera interpretação literal do texto e extrair novas informações a partir do que está escrito, evocando informações que devem ser adiciona-das ao texto e, assim, completá-lo, seja no nível morfológico, sintático, semântico ou pragmático. O processo inferencial, portanto, é fundamental para se alcançar a compreensão leitora, visto que o leitor realiza inferências na proporção do seu conhecimento prévio, o que implica maior ou menor esforço cognitivo para inferir e alcançar a compreensão.

Além dos resultados da pesquisa apresentados, o caráter qualitativo deste trabalho nos possibili-tou observar outros componentes importantes da realidade escolar pesquisada, como, por exemplo, o fato da escolaridade da grande maioria dos pais dos alunos das escolas públicas não ir além do ensino fundamental completo/incompleto, en-quanto a maioria dos pais dos alunos das escolas particulares tinha curso superior completo. Foi verificada também uma considerável e preocupante evasão de alunos nas escolas públicas, por isso o número de estudantes colaboradores desse grupo foi bem menor do que aquele das escolas particu-lares. Curiosamente, percebemos, também, que as salas de aula das escolas públicas eram amplas e fisicamente mais adequadas ao processo de ensino e aprendizagem do que as das escolas particulares.

Dessa forma, mediante o reconhecimento da importância do processo inferencial para a com-preensão leitora e dos resultados do desempenho dos estudantes colaboradores dos dois grupos de escolas (GA e GB), constatamos que ambos os gru-pos apresentaram não só pouca familiaridade com os tipos de testes de compreensão leitora usados por esta pesquisa, como também, apresentaram evidências de que exercitam poucas atividades significativas de leitura de textos escritos, embora essa habilidade esteja sendo amplamente avaliada em todo país por meio da Prova Brasil, com um resultado pouco satisfatório.

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Recebido em: 06.01.2014

Aprovado em: 07.03.2014

105Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 105-116, jan./jun. 2014

Kátia Maria Santos Mota; Aurea da Silva Pereira; Maria Emília Oliveira de Santana Rodrigues

lEITURAS COMPARTIlhADAS,

MEMÓRIA E ENVElhECIMENTO

Kátia Maria Santos Mota ∗

Aurea da Silva Pereira ∗∗

Maria Emília Oliveira de Santana Rodrigues ∗∗∗

RESUMO

Neste artigo, enfocamos a prática de leitura desenvolvida nos Círculos de Leitura, mediante a recepção do texto literário e as trocas de experiências que promovem a socialização e o fortalecimento da solidariedade entre as idosas participantes do grupo “Circuleiturando”. Nosso interesse de estudo se direciona para a temática Envelhecimento e Aprendizagens, na intenção de compreender as práticas sociais das pessoas idosas que buscam novas aprendizagens, (re)descobertas de ver o mundo, a si próprio(a) e formas de (re)inventar a velhice. Como aportes teóricos, utilizamos autores que estudam memória e envelhecimento e as práticas da leitura, assim como buscamos a inspiração na literatura para fundamentar nossas motivações. A partir da receptividade e participação das idosas, concluímos que o círculo de leitura se constitui em uma atividade valiosa para estimular os diversos tipos de memória e mecanismos cognitivos, assim como para desenvolver a competência comunicativa e ativar a imaginação.

Palavras-chave: Envelhecimento. Círculo de leitura. Leitura literária.

ABSTRACT

ShARED READINGS, MEMORY AND AGING

In this article, we focus on the reading practices developed in the so-called Reading Circles, under the reception of literary texts and exchanges of experiences which promote the socialization and the reinforcement of solidarity among elderly women, participants of the group “Circuleiturando”. Our research interest centers around the

∗ Doutora em Estudos Luso-Brasileiros na Brown University, EUA. Professora Adjunta do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Vice--Coordenadora do Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (GRAFHO). Endereço para correspondência: Rua Priscila Dutra, 378 – Cond. Atlantic Ville, casa 46. Lauro de Freitas-BA. CEP: 42700-000. [email protected]∗∗ Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus II – Departamento de Educação. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Membro do Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (GRAFHO). Endereço para correspondência: Rua Vitória, 50 - Jardim Petrolar - Alagoinhas–BA. CEP: 48031-150. [email protected]∗∗∗ Professora da Universidade Aberta à Terceira Idade (UATI), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/UFBA). Especialista em Gerontologia pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Endereço para correspondência: Rua Manoel Andrade, 429, Condomínio Mansão Luiz Tourinho, Ed. Luiz Fernando, aptº 201, Pituba Ville. Salvador-BA. CEP: 41810-815. [email protected]

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Leituras compartilhadas, memória e envelhecimento

topic Aging and Learnings, and it is aimed at understanding the social practices of elderly women who look for new learnings, (re)discoveries of world views, their own selves, and the ways of (re)inventing the aging process. The theoretical approach is based on authors who study about memory and aging, and reading practices; as well as we find inspiration in literary texts as the basis of our motivation. From the receptivity and participation of this group of elderly women, we conclude that the reading circle has proven to be a valuable activity in order to stimulate the various types of memory and cognitive mechanisms as well as to develop their communicative competence and activate their imagination.

Keywords: Aging process. Reading circles. Literary reading.

“Até os livros se zangaram comigo; abro-os e as palavras escondem-se de mim, desfazem-se num rio de tinta negra que me lembra que estou sozinha, que afinal não há ninguém, que talvez nunca tenha havido ninguém a quem entregar todo o meu amor. Custa-me cada vez mais escrever”. (PEDROSA, 2005, p. 92).

Nessas palavras, Jenny, uma senhora idosa, per-sonagem do livro Nas tuas mãos1, registra no seu diário um momento de tomada de consciência, ao perceber que suas habilidades na leitura e na escrita vão lhe escapando no ar, num movimento de soli-dão e de sofrimento, ao reconhecer que, assim, vai se despedindo das palavras, da leitura e da escrita. Seus traços de identidade como leitora e escritora vão se fragmentando por razões inexplicáveis: afi-nal não fica claro se são as habilidades cognitivas que se recusam a funcionar ou se é o desencanto da vida que lhe tira os sentidos das palavras. Ao refletirmos sobre a narrativa dessa personagem, nos interessamos sobre o impacto do envelhecimento no domínio das palavras, suas questões sociocultu-rais e singularidades nas trajetórias de como cada indivíduo vivencia essa etapa da vida.

Histórias de vida, fictícias ou reais, que trazem personagens idosos como protagonistas vêm se constituindo no nosso interesse de pesquisa, pesso-as provenientes de diferentes classes sociais, níveis de escolaridade ou categorias de identidade racial 1 Trata-se de um romance que segue uma narrativa auto-

biográfica de três personagens intergeracionais: Jenny, a avó; Camila, a filha; e Natália, a neta. Os gêneros textuais produzidos se constituem num diário, num álbum de fotos e numa coleção de cartas. As tramas amorosas que envolvem as três mulheres se entrelaçam e se desvelam em diferentes formas de amar, em singulares formas de viver cada tempo da vida com suas marcas de intimidade feminina.

ou de gênero, profissional etc. Para compreender-mos essa população com mais de 60 anos, temos nos debruçado nas leituras sobre as temáticas do envelhecimento e nas escutas sensíveis através de interlocuções com esse segmento populacional. Iniciamos, recentemente, um grupo de pesquisa in-titulado “Envelhecimento & Aprendizagens”, ainda em fase de implantação, por meio do qual busca-mos compreender as práticas sociais das pessoas idosas que se efetivam com novas aprendizagens, (re)descobertas de ver o mundo e a si próprio(a), formas de (re)inventar a velhice. Nessas incursões da pesquisa, vão se desenrolando conversas entre os pesquisadores (alguns já idosos) e os atores/sujeitos da pesquisa (grupos de idosos) na intenção de tro-carmos experiências, buscarmos questionamentos sobre o “aprender a envelhecer” e propormos novas interpretações direcionadas ao “envelhecer apren-dendo”. Nessa perspectiva, o grupo de pesquisa desenvolve, em primeira instância, uma pesquisa--formativa realizada através de grupos de leitura e discussões entre os pesquisadores sobre as diversas temáticas que envolvem o envelhecimento e seus processos de aprendizagem. Decorrem dessa ex-periência formativa, então, alguns projetos-pilotos que comungam dos seguintes objetivos: investigar práticas e espaços de aprendizagem dos idosos; conhecer as motivações pessoais relacionadas ao desejo de aprender; identificar as dificuldades e os desafios de enfrentar novas aprendizagens, assim como os prazeres e experiências de sociabilidade em decorrência do convívio com o grupo; com-preender até que ponto a fase do envelhecimento se configura como uma oportunidade de se inserir em novos projetos sociais.

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Kátia Maria Santos Mota; Aurea da Silva Pereira; Maria Emília Oliveira de Santana Rodrigues

Intencionamos, assim, realizar microinvestiga-ções que abrangem um amplo leque de interesses manifestados à medida que avançamos nas leituras, discussões e participações em eventos sobre o en-velhecimento; isso em razão não só das múltiplas possibilidades temáticas que identificamos nas leituras realizadas, mas, também, do desejo de es-cutar e dialogar com as histórias de vida de idosos em diversos espaços socioculturais.

A produção deste texto relata a etapa embrio-nária de uma micropesquisa piloto realizada por alguns componentes do grupo de pesquisa – as au-toras deste texto – que se interessam em investigar sobre as práticas sociais da leitura e suas interfaces com o envelhecimento. Produzimos o texto em três seções básicas, assim organizadas: leituras do/no envelhecimento; leituras e roteiros da pesquisa; círculos de leituras literárias e as experiências compartilhadas.

1. leituras do/no envelhecimento

O aumento crescente do envelhecimento po-pulacional no mundo foi reconhecido pela Orga-nização das Nações Unidas, ao considerar que o período de 1975 a 2015 passa a ser denominado como a “Era do Envelhecimento”. O Brasil segue essa tendência no seu crescimento demográfico: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-tística, constitui-se de 23,5 milhões dos brasileiros o universo de pessoas com mais de 60 anos, mais que o dobro do registrado em 1991, quando essa faixa etária contabilizava 10,7 milhões de pesso-as. Há dois anos, eram 21,7 milhões de pessoas. Outra informação que confirma a tendência de envelhecimento do país é a diminuição do número de crianças de até quatro anos, que caiu de 16,3 milhões, em 2000, para 13,3 milhões, em 2011, concomitante ao aumento do grupo de pessoas mais velhas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2013).

Diante dessa realidade demográfica, como compreender a longevidade e os efeitos na vida das pessoas? A velhice não pode ser considerada em si como uma categoria de análise já que reconhece-mos que há muitas velhices, a depender das con-dições de autonomia do idoso, as quais permitem

assumir, integralmente ou parcialmente, a gestão da sua vida; sendo essas condições adversas, o idoso necessita entregar-se aos cuidados de outros que passam a governar os seus passos. Levando em consideração essa diversidade, o envelheci-mento, segundo Maria Cecília de Souza Minayo, pode ser traduzido como o tempo da decadência, da dependência, do isolamento ou, ao contrário, o tempo do protagonismo e do amadurecimento. Essa autora nos explica que os estudos antropológicos tencionam desconstruir

[...] discriminações e preconceitos, assegurando a desnaturalização da velhice como problema, como doença e como o lugar social estereotipado que o aparente cuidado social lhe reservou: ‘o recolhi-mento interior’ (eufemismo para o afastamento do trabalho); a ‘inatividade’ (rotulação para aposentados e aposentadas); a ‘prevenção das doenças da velhi-ce’ (medicalização da idade): ou as ‘festinhas da terceira idade’ (infantilização dessa etapa da vida). (MINAYO, 2006, p. 49, grifo do autor).

Na sociedade brasileira, o lugar preservado às pessoas mais velhas, quase sempre, é o de exclusão social. Em vista disso, a sensação de não perten-cimento vem contribuir para o seu isolamento, o sentir-se em um “não lugar”; as perdas pessoais decorrentes da aposentadoria ou as relacionadas ao distanciamento ou falecimento de entes queridos acentuam a incapacitação de se (re)descobrir na potencialidade para abrir novas perspectivas de (re)inventar a vida. Torna-se urgente, então, que o indivíduo acima dos 60 anos assuma o desafio de se programar para novas experiências e projetos de vida, conforme nos sugerem as afirmações:

A revisão do projeto de vida, adequando-o à re-alidade atual sob o ponto de vista das condições pessoais, orgânicas e econômicas, deixa entrever soluções criativas e particulares. O idoso ativo apresenta sintonia entre as fantasias e a possibilida-de de realizá-las, reapropriando-se do seu destino. (LOPES, 2006, p. 97).

A tendência contemporânea é rever os estereótipos associados ao envelhecimento. A ideia de um pro-cesso de perdas tem sido substituída pela considera-ção de que os estágios mais avançados da vida são momentos propícios para novas conquistas, guiadas pela busca do prazer e da satisfação pessoal. As expe-riências vividas e os saberes acumulados são ganhos

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Leituras compartilhadas, memória e envelhecimento

que oferecem oportunidades de realizar projetos abandonados em outras etapas e estabelecer relações mais profícuas com o mundo dos mais jovens e dos mais velhos. (DEBERT, 2004, p. 14).

Para que esses desafios sejam encarados pelos idosos, faz-se necessário que a sociedade se mobi-lize a reconstruir a imagem das pessoas de mais de 60 anos como cidadãos capazes de reinventar sua inserção social de uma forma criativa e colabora-tiva. O idoso não pode ser visto, exclusivamente, como um cliente em potencial para uma nova linha de produção mercadológica, que, quase sempre, explora concepções equivocadas sobre saúde e juvenilização do corpo. Para que o idoso não incorpore passivamente esses apelos capitalistas, a organização de grupos de idosos ou até mesmo de diferentes faixas etárias em diversos espaços sociais oferece oportunidades para se avaliar dese-jos e necessidades, compartilhar histórias de vida e discutir sobre projetos novos ou retomar aqueles abandonados. São as experiências de socialização e de autoconhecimento que fortalecem os idosos a enfrentar seus medos e dúvidas, possibilitando-os a assumir os desafios que lhes abrem novas pers-pectivas de ser e estar na vida.

Retomando o excerto literário que abre este texto, observamos que um dos maiores medos que cercam o indivíduo ao se constatar como enve-lhecendo é a perda da memória, a capacidade de regular seus pensamentos, de nomear o mundo e as coisas ao redor, de reconhecer a si e aos outros nos seus relacionamentos; enfim, de viver cada dia com consciência do que se passa no seu interior e no cotidiano da vida. Afinal, como expressa Iván Izquierdo2, “Cada um de nós é quem é porque tem suas memórias” (IZQUIERDO, 2010, p. 7). Revi-sando o que nos explica esse autor, as categorias de memória são definidas:

De acordo com sua duração, existem: a memória imediata, que dura segundos, raras vezes minutos; a memória de curta duração, que dura de uma a seis horas e a memória de longa duração, que dura muitas

2 Iván Izquierdo nasceu em Buenos Aires, sendo naturalizado bra-sileiro há mais de trinta anos; é médico, professor e neurocientista. Lecionou em diversas instituições de ensino superior, entre elas: Univ. de Buenos Aires, Univ. do Rio Grande do Sul e a PUC do Rio Grande do Sul. Izquierdo destaca-se entre os cientistas brasileiros mais citados em todas as área do conhecimento.

horas, dias ou anos. Muitos se referem à memória de duração muito longa, aquela que se estende por décadas, como memória remota. (IZQUIERDO, 2013, p. 19, grifo do autor).

A memória imediata é também considerada como a memória operacional ou a memória de trabalho, a qual possibilita a pessoa gerenciar afazeres cotidianos; essa memória se relaciona com as operações cognitivas fundamentais para a decodificação da língua escrita nos vários níveis linguísticos: a ordenação das letras em blocos si-lábicos, por exemplo, o caráter de previsibilidade relativa na organização sintática de um enunciado e a associação entre significantes e significados; em síntese, a leitura requer a memória de uma aprendi-zagem adquirida nos processos iniciais do contato com o texto escrito. Num nível mais interpretativo, o leitor precisa ter memória suficiente para relacionar os conteúdos textuais precedentes com os que vão surgindo no avançar do texto, aspectos de coerência e coesão textual, compreender a polissemia das palavras e, enfim, traduzir o texto a partir das suas próprias leituras de mundo. A leitura extrapola, assim, o universo do que é explicitado no texto, pois o leitor precisa recriar o texto a partir da sua imaginação, das suas memórias (re)construídas ao longo da vida. Reconhecendo todos esses aspectos primordiais da leitura, Izquierdo (2010) admite que a leitura é o exercício mais recomendável para a memória: “Portanto, é de bom alvitre ler, ler e ler, e se interessar pelo que se lê e pelo que se ouve. E, como lendo se aprende, estaremos praticando o funcionamento de nossa capacidade de memória e garantindo uma maturidade e, mais tarde, uma seni-lidade menos penosas” (IZQUIERDO, 2010, p. 67).

E justifica sua recomendação, usando a seguinte argumentação:

A leitura envolve, por definição, a memória visual e a verbal; nos deficientes visuais, a memória auditiva e a verbal. Os dois sentidos mais importantes para os humanos são a visão e a audição. Além da memória visual ou auditiva e verbal, a leitura envolve a memó-ria de imagens. Impossível ler a palavra ‘árvore’ sem que desfilem pela mente algumas das muitas árvores que conhecemos ao longo de nossa vida. Impossível ler a palavra ‘casa’ sem lembrar de pelo menos duas, aquela em que transcorreu nossa infância e a atual. (IZQUIERDO, 2013, p. 86).

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Kátia Maria Santos Mota; Aurea da Silva Pereira; Maria Emília Oliveira de Santana Rodrigues

O autor acrescenta, ainda, que a leitura envolve a memória motora, pois mesmo os leitores mais ilustrados fazem mexer as cordas vocais em cor-respondência ao que estão lendo durante a leitura dita silenciosa. Reforçando, assim, a importância da leitura no sentido de contribuir com a preservação da memória, Izquierdo (2013, p. 88) complementa: “E, na verdade, os psicólogos recomendam muitas vezes a seus pacientes com déficit de memória que leiam em voz alta. É o melhor procedimento para exercitar todas as funções vinculadas à memória, a pleno”.

O breve relato aqui exposto sobre a interven-ção das práticas de leitura no desenvolvimento da autonomia das pessoas mais velhas reforça o relevante impacto social das pesquisas no campo educacional sobre as questões da leitura destinadas a esse público-alvo. A partir dessa compreensão, direcionamos nossos interesses de investigação no sentido de promover grupos de leitura, em espaços formais e informais, tendo como participantes pes-soas de mais de 60 anos.

2. leituras e roteiros da pesquisa

Nossa opção pela pesquisa direcionada às pes-soas mais velhas surgiu no decorrer das leituras e discussões que aconteceram no curso “Narrativas Autobiográficas: memória, identidade e cultura”, ministrado pela professora Dra. Vera Tordino Bran-dão, em 2012, na UNEB. Na proposta do curso, Brandão esclarece que o objetivo central se insere na (auto)formação continuada de profissionais que desenvolvem pesquisas e/ou trabalhos com idosos, seguindo uma metodologia de Oficina Formativa na qual os participantes retomam seus valores e saberes nas práticas cotidianas, (re)construindo sua própria história, em interlocução com as leituras que fornecem bases teóricas para uma “Cultura da Longevidade”. Dessa experiência, surgiu o grupo de pesquisa “Envelhecimento & Aprendizagem”, já apresentado na introdução deste texto.

Como produto da nossa participação nesse gru-po de pesquisa, nos concentramos na realização de uma microinvestigação piloto intitulada “Leituras compartilhadas, memória e envelhecimento”, cujos objetivos assim se definem: investigar o processo de apropriação e recepção da leitura literária dos

idosos; expressar e compartilhar os significados dos textos no reconhecimento de si; articular as memórias de histórias de vida dos idosos com as interlocuções produzidas no processo da leitura; compreender os impactos cognitivos, emocionais e sociais da leitura literária para os idosos.

São muitos os grupos de leitura com idosos que vem surgindo em diversos espaços sociais: universidades abertas da terceira idade, associações e clubes, condomínios, igrejas etc.; entretanto, ainda é muito restrito o interesse de se instituir um caráter investigativo nessas práticas sociais de leitura. Nossa intenção, então, é se aproximar do trabalho extensionista da universidade, com os grupos de leitura da terceira idade, e estimular a produção de pesquisa no campo educacional nessa linha temática. No momento, estamos registrando observações participativas ocorridas em alguns grupos, dentro e fora das universidades, a fim de desenvolver oficinas de formadores / mediadores de círculos de leitura com idosos.

Nossa inspiração inicial, na intenção de encon-trarmos os caminhos da pesquisa, deu-se a partir da leitura de Bosi (2009), através da compreensão sobre as narrativas de velhos; percebemos com a autora que é a partir das interações estabelecidas com os sujeitos da pesquisa que vamos encon-trando as possibilidades de diálogos, de trocas de experiências que se consolidam em narrativas de si, em memórias individualizadas. Assim, as experiências do presente – um evento, um filme, um livro, uma foto – acessam na memória registros de lugares, pessoas, datas, fatos que emergem de tempos passados. Seguindo, então, uma abordagem eminentemente qualitativa, nos aprofundamos nos procedimentos metodológicos a partir das orienta-ções elaboradas por Bosi (2004) que se fundamen-tam nas subjetivações entre pesquisador e narrador no decorrer das entrevistas, nas conversas entre os sujeitos da pesquisa.

Vê-se, assim, que assumimos uma postura não convencional3, pois o nosso interesse ia além da apropriação de novos conhecimentos; buscáva-mos a ressignificação de experiências através da

3 Perspectiva apresentada por Magda Soares e Ivani Fazenda (1999), que diz que convencional ou não convencional não é propriamente a metodologia de pesquisa, é a maneira como as pessoas veem a metodologia.

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intrínseca relação entre os saberes apresentados/partilhados e as reflexões provocadas nos encontros realizados com os idosos. A adoção de tal postura possibilitou uma imersão mais atuante no contexto e atividades vivenciadas com os idosos; dessa ma-neira, mobilizamos a nossa percepção e criatividade para o desenvolvimento da pesquisa.

A observação tornou-se uma técnica de pesquisa a partir do momento que sistematizamos, planeja-mos e vivenciamos, com os idosos, as atividades de leitura com a intenção de apreender a recepção do texto e a interação entre o grupo. Outra técnica proposta foi o Círculo de Leitura, que possibilitou, a partir do uso do texto literário, que cada leitor interpretasse os textos partindo das suas experiên-cias, seu horizonte de expectativa e do lugar social que ocupa.

As práticas de leitura desencadeadas nos círcu-los tornam-se mais potencializadas porque aconte-cem em grupos, pois nessa modalidade os leitores podem usufruir tanto dos momentos solitários em interlocução com o texto, como das partilhas com outros leitores na busca de significados e sentidos que extrapolem a leitura da palavra para a leitura de mundo. Inspiramo-nos, assim, na concepção freireana sobre a dialogicidade, considerando a atemporalidade da sua aplicação nos diversos es-paços pedagógicos da leitura nos quais a palavra se ressignifica a partir do diálogo com os outros.

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamen-te, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. (FREIRE, 1988, p. 78, grifo do autor).

Na intenção de instalarmos a leitura solidária, elegemos o texto literário como o mais fértil para instigar a competência comunicativa dos nossos leitores idosos; assim, partimos dos exercícios de memória visual e auditiva, além da motora, no que diz respeito aos processos de habilidades mecânicas, e expandimos para os exercícios da memória com outros textos, advindos da palavra e da vida, buscando intertextualidades múltiplas que assegurem a interlocução consigo próprio, com os outros e com o mundo ao redor. Assumimos, então,

o que nos diz Jouve (2002), ao afirmar que o texto literário transforma o leitor a partir da associação biunívoca entre o mundo real e o fictício, os quais se entrelaçam e se complementam. Essa natureza transformadora do texto se insere nas concepções bakhtinianas sobre a realidade polissêmica da linguagem e a natureza sociointeracionista da co-municação (BAKHTIN, 2004). Ao adotarmos os círculos de leitura literária, percebemos que essa prática social permite:

[...] oportunizar a leitura solidária de textos literários diversos, de maneira prazerosa, buscando qualificar a interação pessoal com a palavra escrita e viabilizar a partilha dos processos e sentidos vivenciados. [...] Acredita-se que a leitura e o debate em grupo criam um espaço para a divisão das experiências individu-ais, que se entrelaçam ao texto artístico e alcançam o território coletivo, ressignificadas. (BOHM; MA-RANGONI, 2011, p. 146-147).

O caráter transformador dos círculos de lei-tura literária torna-se altamente terapêutico em situações como, por exemplo, no estudo de caso apresentado por Eloisa Adler Scharfstein (2003), ao narrar a reconstrução da identidade social de Paula, aluna da UnATI-UERJ4, com 76 anos e primeiro grau incompleto. A partir de um trabalho de vivên-cia criativa com circulação de textos literários e produções de textos orais e escritos, a autora analisa a produção de Paula em seis etapas evolutivas: na primeira etapa, Paula manifesta a “voz do silêncio”, mas, aos poucos, vai se soltando e ganhando autoria no seu discurso e daí se processa seu crescimento em cada etapa que se sucede; os registros da sexta etapa apontam para seu empoderamento a partir do reconhecimento de si e da assunção da sua identidade como sujeito social. Nas considerações finais da pesquisa, a autora sintetiza a repercussão do trabalho solidário com a leitura e a escrita no crescimento pessoal de Paula:

Finalmente, aos 76 anos, Paula teve a oportunidade de resgatar algo tão valioso como o ato de ler e es-crever e, juntamente com essa aquisição, recupera outras coisas valiosas tais como histórias de relação, tanto de ordem familiar como também de vida em sociedade, a partir do convívio com suas colegas em sala de aula. (SCHARFSTEIN, 2003, p. 63).

4 Universidade Aberta para Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Reconhecendo, assim, o poder transformador da leitura literária promovida em círculos de leitura, congregamo-nos aos autores que adotam essa prática pedagógica, sobretudo com pessoas idosas. Bohm e Marangoni (2011), por exemplo, nas suas experiências de pesquisa com pessoas de mais de 50 anos no Centro Superior Cenecista de Farroupilha, RS, utilizam os círculos de leitura e afirmam que:

Para a elaboração desta atividade, partiu-se da convicção de que o aprendizado pode acontecer em todas as etapas da vida, desde que haja o desejo da troca. E aqui o aprender foi entendido não apenas como conhecer algo novo, mas como se apropriar de um saber que permitisse uma nova possibilidade de viver, de ressignificar experiências, através da intrínseca relação entre os conteúdos apresentados a cada novo encontro e das reflexões espontâneas por eles provocadas em cada uma das alunas. (BOHM; MARANGONI, 2011, p. 145).

As autoras seguem a teoria do efeito estético, explicando que o importante não é unicamente compreender o texto ou identificar seus significa-dos, mas perceber os efeitos que o texto traz para o leitor, que significados afloram no sujeito após a leitura, de que forma o leitor dá vida aos textos ficcionais. Assim, explicam que “a significação passa a ser compreendida mais como o produto dos efeitos atualizados e experimentados, do que como uma ideia que antecede a obra e se manifesta nela” (BOHM; MARANGONI, 2011, p. 145).

A dinâmica dos círculos é alimentada através da singularidade de cada leitura e enriquecida pela escuta e troca de leituras dos diversos participantes; cada leitura pode ser, então, ressignificada pelo próprio sujeito no uso da sua capacidade autorre-flexiva ou pelas interlocuções que, naturalmente, ocorrem nas partilhas. Consideramos importante ressaltar o papel do leitor-guia ou mediador do círculo, na concepção de Yunes (1999, p. 19), que se constitui na:

[...] figura que mobiliza, provoca, costura as demais falas, sem fazer prevalecer a sua própria. Nesse sen-tido, sua experiência é muito relevante – longe de fazer preponderar a força do seu conhecimento, ele o partilha na medida mesma em que a solicitação direta ou indireta se faz, a partir de alguma outra colocação realizada por qualquer dos intervenientes do círculo.

Sinalizamos, então, que o papel do leitor-guia é de mobilizar o grupo, de fazer a palavra circular para possibilitar que a prática da leitura literária, experienciada no círculo, produza sentido coletiva-mente; portanto, que todos os participantes sejam coautores do que se lê.

3. Círculos de leituras literárias: experiências compartilhadas

Os encontros se constituíram em espaços co-letivos de leitura onde a disposição em círculo contribuiu para uma aproximação maior entre os idosos e a leitora-guia, estabelecendo assim um tipo de cumplicidade ou comunhão, através do compartilhar da leitura e dos relatos/experiências socializados.

Para o desenvolvimento dos círculos, partimos do pressuposto da leitura como prática social; portanto, uma atividade que se desenvolve ao longo da vida, provocando efeitos de sentidos que se transformam a partir da maturidade do sujeito, da experiência de vida do leitor, das suas histórias de leituras que se entrelaçam com a socialização dessas vivências com os outros ao seu redor.

Considerando que escolhemos trabalhar com pessoas mais velhas, temos sempre em mente que a leitura é um fator de proteção para o processo de envelhecimento, considerando-se o aspecto da cognição que é desenvolvido nas práticas leitoras, importante para a manutenção da autonomia e independência ao longo da vida.

A experiência de círculo de leitura com pessoas mais velhas, que aqui disponibilizamos, foi de-nominada “Circuleiturando”, e realizada em uma instituição privada de Salvador. Constituiu-se como uma experiência importante na fase exploratória de um projeto de pesquisa mais amplo, ainda em exe-cução. Os encontros ocorreram de agosto de 2012 a dezembro de 2013 com um grupo de doze senhoras, na faixa etária entre 55 e 78 anos, sendo 75% delas com nível superior e as 25% restantes com segundo grau completo. Essas idosas chegaram ao grupo a partir da participação em uma atividade de extensão de uma universidade privada, além de convites pessoais e contatos pessoais.

O texto literário foi o suporte utilizado para evidenciar a singularidade, assim como o enri-

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quecimento da leitura pela troca de experiências das leitoras; acreditamos, portanto, no poder de encantamento da palavra, no sentido da possibili-dade de tocar na vida de cada participante, de trazer perspectivas de novas leituras de vida.

As obras literárias foram escolhidas a partir do interesse e sugestão dos membros do grupo; em cada círculo líamos o livro selecionado no encon-tro anterior. Desta forma, o repertório de leituras do grupo foi constituído pelos seguintes autores e respectivas obras: Cora Coralina (2001) - Estórias da casa velha da ponte; Zélia Gattai (2010) - Códi-gos de Família; Jorge Amado (1982) - Mar Morto; Eduardo Moreira (2012) - Encantadores de vida; Milton Hatoum (2006) - Dois irmãos; Nora Roberts (2003) - Amor de Verão.

As experiências registradas nos encontros de leitura do “Circuleiturando” e analisadas pelas participantes revelaram sentimentos de aproxima-ção afetiva, cumplicidade e solidariedade, ganhos individuais e coletivos, como foi evidenciado nesse depoimento:

‘Circuleiturando’ é uma atividade por demais en-riquecedora: o encontro sempre muito agradável e num clima de abertura e intimidade e vejo, mesmo, de confiança. Várias são as análises, pontos de vista diferentes, cada uma foca o que mais lhe agrada e os elos da corrente vão se entrelaçando dentro de uma atmosfera de ouvir o que cada uma tem a dizer e isso é uma grande socialização, além do acrésci-mo cultural, exercício da memória e muitas coisas mais. Criou para mim estímulo à leitura que gosto muito, mas, se não tivesse esses encontros, não me sentiria motivada a ler o que estamos lendo. (D. Nita5, 76 anos).

O processo de entrega para socializar e trocar experiências foi acontecendo aos poucos; no inicio o grupo era tímido, por isso em diversos momentos incentivávamos as senhoras para que se permitissem extrapolar os significados do texto, situando-se nas tramas dos personagens e trazendo os conteúdos para sua própria realidade. No decorrer do tempo, as leitoras foram soltando a voz, suas experiências emergiam, suas opiniões se manifestavam; enfim, o texto passava a ser reinventado pelo grupo.5 Os nomes das participantes são fictícios, para preservar suas iden-

tidades.

É importante registrar que a leitura em voz alta, a escuta e as narrativas, que não estavam somente nas páginas dos livros escolhidos, mas na sociali-zação das experiências vividas, ouvidas e apreen-didas, eram práticas que faziam parte do cotidiano do grupo. Ao fazermos uso da oralidade, a memória tornou-se o “suporte” utilizado para relatar as im-pressões das idosas sobre o texto partilhado e as lembranças/experiências evocadas. Lembramos, então, do que explica Llosa (2004, p. 25):

Para as sociedades, como para o indivíduo também (o contar estórias) é uma atividade primordial, uma necessidade da existência, uma maneira de suportar a vida. Por que o homem necessita de contar e contar-se estórias? Talvez porque [...] dessa forma lute contra a morte e os fracassos, adquira uma certa ilusão de permanência e desagravo: é uma maneira de recupe-rar, dentro de um sistema que a memória estruturada com a ajuda da fantasia, esse passado que quando era experiência vivida tinha a aparência do caos. [...] Para conhecer o que somos, como indivíduos e como povos, não temos outro recurso senão sair de nós mesmos e, ajudados pela memória e pela imaginação, projetar-nos nessas ‘ficções’ que fazem do que somos algo paradoxalmente igual e diferente de nós.

Aos poucos, fomos percebendo que a partici-pação ativa das idosas no “Circuleiturando’ ia na contramão das diversas representações que se faz da velhice, nas quais o sentimento de isolamento é um traço marcante no cotidiano das pessoas de mais de 60 anos, em razão de questões socioculturais, tais como: a aposentadoria, a perda de familiares próximos, a dificuldade nas relações intergeracio-nais, as limitações do corpo.

No depoimento de outra idosa, também é reve-lado que o contato com a literatura, além de ter se tornado mais intenso, contribuía para a ativação da sua memória. Muitas comentavam que liam pouco, e até mesmo nem liam, mas ao se inserirem no grupo, buscavam ler de forma mais integrativa, comparti-lhando ideias, sugestões e novas leituras. Sentiam-se motivadas a se (re)descobrirem na leitura:

“O ‘Circuleiturando’, para mim, significa a opor-tunidade de incentivo à leitura, facilitado pela sugestão dos livros a serem lidos, além de propor-cionar momentos de integração e interação entre os participantes, contribuindo para a ativação da memória” (D. Lita, 61 anos).

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Vê-se, assim, que os círculos impulsionaram as senhoras à necessidade de narrar as suas próprias histórias de superação, ao tempo em que os laços de solidariedade se fortaleciam ao conhecer as histórias das companheiras do grupo.

Muitas das participantes associavam os mo-mentos no círculo de leitura às brincadeiras no tempo da infância, momentos vividos e comparti-lhados com as amigas. O prazer que sentiam com as rememorações trazidas a partir das leituras e comentários no grupo era notado por todas, além do reconhecimento das novas aprendizagens, inclusive com a incorporação de palavras novas que estimulavam a competência comunicativa. Em alguns momentos, até o dicionário foi trazido e utilizado para confirmarmos as significações que moviam questionamentos diferenciados.

Dentre as histórias de superação, destacamos o depoimento de uma senhora que comentou sobre a mudança de atitude em relação à leitura, conside-rando inclusive que suas dificuldades de memória poderiam ser resolvidas:

Senti uma grande motivação e escolhi deixar sempre, diariamente, um tempo para ler. Resolvi também comprar livros indicados nos encontros, em listas de seleção de revistas, como ainda visitar mais frequentemente livrarias. Descobri o gosto de ler, mesmo que em alguns momentos necessite fazer mais que uma leitura para decifrar o sentido do autor e construir as minhas próprias significações. Sinto que revivi, que sou outra pessoa. (D. Dita, 76 anos).

As práticas de leituras desencadeadas nos cír-culos, através da observação sobre as maneiras, formas e espaços de sociabilidade com a leitura, bem como seus suportes, contribuíram para que entendêssemos que:

Leitores se formam mesmo é através de suas próprias leituras, e estas se dão em diversos espaços sociais, em diversos momentos de vida, em diversos mo-mentos de relacionamentos humanos, em diversas circunstâncias culturais [...] A formação de leitores se desenvolve o tempo todo, ao longo da vida inteira, às vezes com lentidão, às vezes com dificuldades, às vezes com um ritmo alucinado e surpreendente para o próprio sujeito que se perde em suas leituras. (PAULINO, 2007, p. 146).

O desejo da leitura a cada encontro tornava-se cada vez mais evidenciado, surgiam motivações

para novas escolhas de leitura; paralelamente, discutíamos sobre as contribuições do grupo de leitura na qualidade de vida de cada uma. Nessas oportunidades, a partir da recepção do texto lite-rário, manifestada na oralidade das participantes do grupo, reconhecíamos os benefícios da prática da leitura para amenizar as perdas de memória e ativar as operações cognitivas, além dos impactos sociais na vida cotidiana.

A relação afetiva com o livro foi imediatamente (re)estabelecida a partir da identificação com o au-tor e sua narrativa; foram sinalizados trechos que se entrelaçavam com as experiências de vida e as leituras do grupo.

Os livros Estórias da casa velha da ponte, de Cora Coralina, e Códigos de Família, de Zélia Gattai, foram pretextos para muitas rememorações da infância, adolescência e juventude das partici-pantes. Uma participante, que teve oportunidade de compartilhar momentos com o casal Amado, relembrou alguns códigos da sua família:

“Só me lembrei de três códigos de minha família no momento: 1- Cejar – vontade louca de fazer xixi; 2- Safirar (eu adoro) – pechinchar, bisbilhotar nas lojas para fazer economia, olhar sem comprar; 3- ‘Mi arripindi’ (me arrependi) – quando faz algo sem pensar e tem algum prejuízo, seja de dinheiro ou não”. (D. Vita, 74 anos).

Durante essa fala de D. Vita, o grupo se des-contraía e as risadas tomavam conta da sala. Sobre esse código familiar, a autora Zelia Gattai afirma que “Os códigos que usamos aqui em casa – João Jorge, Paloma, eu e também Jorge – são antigos e recentes. Antigos ou recentes, cada qual tem sua história de origem, às vezes curta, às vezes longa, e cada um de nós é dono da sua e do seu código [...]” (GATTAI, 2010, p. 15).

A leitura de Mar Morto, de Jorge Amado (1982), trouxe à baila a realidade vivida por algumas se-nhoras que nasceram no interior, mas vieram morar bem pequenas em Salvador. Foi um exercício pra-zeroso rememorar a cidade da infância, os espaços de Salvador por onde circulavam e comparar essas imagens e sensações com as atuais. As lembranças externadas, por diversas vezes, vinham carregadas por certa melancolia, mas, também, com emoções positivas pelo reconhecimento da pessoa ter sido testemunha histórica de fatos vividos.

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Leituras compartilhadas, memória e envelhecimento

As histórias de vida das participantes emergiam por meio de fotos selecionadas e apresentadas ao grupo, assim como lembranças de músicas que povoaram a adolescência e juventude, objetos pessoais acompanhados das suas histórias, códigos familiares construídos em suas próprias famílias, com comentários de que muitos deles são ainda hoje utilizados. Foram muitos os objetos e tex-tos que povoaram aqueles momentos de leituras múltiplas, dando oportunidade às participantes de se exercitarem na construção de narrativas das memórias remotas, fazendo pontes com o tempo presente em conexão com as redes familiares atuais, trazendo o convívio com suas famílias constituídas, seus filhos, netos e bisnetos. Sentimentos diversos afloravam, permeando o reconhecimento das tra-jetórias vividas.

Dentre as memórias narradas, uma idosa nos contou do seu desejo de estudar, mas, como o pai não permitia filha mulher ser muito letrada, prefe-riu fazer a escolha de um casamento precoce para mudar o ritmo de vida. Ledo engano: uma gravidez imediata e outras tantas seguidas lhe tiraram a oportunidade de continuar os estudos. No entanto, agora, com os filhos criados e tempo disponível, buscou um espaço de estudo para atender aos dese-jos da juventude: ter novas aprendizagens, adquirir mais conhecimentos, fazer leituras.

O “Circuleiturando” foi o espaço que contribuiu para que as participantes vislumbrassem projetos de vida, ampliando seus horizontes nas “leituras de mundo”. Através das leituras literárias e da socialização e (re)leituras das suas experiências de vida, as idosas compreenderam que “lê-se para entender o mundo, para viver melhor. Em nossa cultura, quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais intensamente se lê, numa espiral quase sem fim, que pode e deve começar na escola, mas não se pode (nem costuma) encerrar-se nela” (LAJOLO, 2005, p. 7).

Em muitos encontros, a “experiência criativa” era permeada de emoções através das lembranças evocadas, e foi nesse contexto que procuramos valorizar, como mediadoras dos círculos, os comen-tários, opiniões, sínteses, dúvidas e escolhas que davam significação à importância do “ato de ler” (FREIRE, 2005). Buscamos, portanto, fazer uma escuta sensível diante dos relatos das histórias que

circulavam, além de estimularmos a expressão de si, dos significados, sentidos, sentimentos e trocas de experiências:

O trabalho de um leitor-guia é fazer luz sobre as cenas de leitura, os atos de leitura, sem impor sua condição ou a do autor. O que se quer alcançar com o Círculo de Leitura é a descoberta da condição de leitor e uma qualificação maior para a leitura, por conta mesmo da troca, do intercâmbio, da interação de vivências e histórias de leitura – segundo o reper-tório de cada um. (YUNES, 1999, p. 20).

Nossa função de leitoras-guias foi tornar o “Circuleiturando” um espaço democrático, para tecer uma rede de sentidos, a partir do respeito às vozes, pontos de vista e experiências das idosas participantes do grupo.

Finalizamos o registro da nossa experiência com os círculos de leitura do grupo de idosas com as palavras de Ferreira Gullar (2000), que diz “que caminhos não há, mas os pés na grama os inven-tarão. Aqui se inicia uma viagem clara para a en-cantação”. Realmente, caminhos não há, caminhos se inventam e são inventados para a “encantação”, termo que representa os momentos de trocas que ocorreram no “Circuleiturando”.

Considerações (in)conclusivas

O compartilhar da recepção do texto literário com as experiências de vida/envelhecimento das idosas no “Circuleiturando” promoveu uma ressig-nificação da vida, um florescer de conversas, um rejuvenescimento saudável, um despontar de novos projetos de vida. As aprendizagens aconteceram pela oportunidade de socialização, pela via afetiva; as leituras de si e da vida ao redor permearam os encontros dos grupos; o envelhecer passa a fazer sentido quando se abre novas perspectivas, quan-do se faz projetos para o futuro. Essas senhoras, sem dúvida, buscam esse espaço de convivência para assegurar sua dignidade como mulher, para se afirmar na sua cidadania, para conceber a lon-gevidade como o desafio de um (re)construir-se continuamente ao longo da vida.

Longeviver é um tornar-se velho, com estas di-ferentes marcas únicas – sempre em processo de reconstrução – de como aprendemos e vivemos todas

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as idades da vida, e construímos essas histórias de ‘nós mesmos’, marcadas pela alegria, o reconhe-cimento e a superação, ou pela tristeza, amargura e ressentimentos. (BRANDÃO; MERCADANTE, 2009, p. 78).

As obras literárias utilizadas, em razão de sua natureza polissêmica, possibilitaram em cada encontro a troca espontânea por meio da multi-plicidade de inferências e interpretações nascidas do diálogo das idosas com o texto, das memórias

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Sendo assim, a nossa intenção de desenvolver um Projeto sobre Envelhecimento e Aprendizagem se reforça ao acreditarmos que o aprendizado pode acontecer em todas as etapas da vida. As senhoras do “Circuleiturando”, por meio da leitura literária trabalhada em cada encontro, mobilizaram suas leituras do texto e da vida, a partir das suas expe-riências pessoais, para se (re)significarem.

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Recebido em: 11.01.2014

Aprovado em: 24.04.2014

117Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 117-127, jan./jun. 2014

Lícia Maria Freire Beltrão; Mary de Andrade Arapiraca

lITERATURA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS: PRESENTE!

lícia Maria Freire Beltrão ∗

Mary de Andrade Arapiraca ∗∗

RESUMO

O ensaio, inspirado nas considerações de Iser sobre representações, “um como se” bem ao gosto da escrita literária, escopo de sua discussão, partilha as experiências, concepções e práticas constitutivas da formação de professoras em exercício, que elegeu, entre outros artefatos, a linguagem, as artes, as letras e as tecnologias como fios que teceram os diálogos em torno das aprendizagens e dos ensinos. Nele, se reconhece a questão da literatura e do ensino como uma relação mais polêmica que pacífica, e mostra-se como a leitura literária levou professoras a descobrir autores e passar a incluir a literatura como realce das suas práticas pedagógicas. As escritas advindas dos diversos gêneros literários foram o alicerce para construção do memorial de formação, atividade inerente ao curso.

Palavras-chave: Literatura. Formação de professores. Projeto Salvador. Leitura.

ABSTRACT

LITERATURE AND TEAChER TRAINING: PRESENT!!!

This paper, based on Iser´s representations, a “how to” according to the literary writing, that he discusses, shares experiences, ideas and constitutive practices of teacher training of teachers in service, which elected, among other artifacts, the language, the arts and the technologies as threads that have woven the dialogues around learning and teaching. It recognizes the issue of literature and teaching as a relationship that is more controversial than peaceful, and it shows how literary reading led teachers to discover authors and now to include literature as enhancement of their teaching practices. The writings from various literary genres were the foundation for building the memorial of the training course, activity inherent to the course.

Keywords: Literature. Teacher training. Salvador Project. Reading.

∗ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Adjunto IV da Faculdade de Educação (FA-CED/UFBA). Membro do grupo de pesquisa GELING. Endereço para correspondência: Av. Reitor Miguel Calmon, s/n, Vale do Canela. CEP: 40110-100. Salvador-Bahia. [email protected]∗∗ Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Associada IV da Faculdade de Educação (FACED/UFBA). Membro do grupo de pesquisa GELING. Endereço para correspondência: Av. Reitor Miguel Calmon, s/n, Vale do Canela. CEP: 40110-100. Salvador-Bahia. [email protected]

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Literatura na formação de professoras: presente!

Anúncios e contratos

O Programa de Formação Continuada de Professores da Faculdade de Educação da Uni-versidade Federal da Bahia (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2002, 2003) nasceu sob os cuidados de muitos. E sob os cuidados de muitos vem crescendo. Entre os muitos que dele cuidou no seu instante inaugural e que dele vem cuidando, no seu crescimento, se incluem professoras, pro-fessores, estudantes da graduação em Pedagogia e da Pós-Graduação – Mestrado/Doutorado que constituem, entre outros grupos de pesquisa, o Formação em Exercício de Professores (FEP), co-ordenado pela Professora Maria Inez de Carvalho, e o de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem (GELING), coordenado pela Professora Dinéa Maria Sobral Muniz.

Não por uma visão impressionista, mas por fatos, compreendemos que, no curso dos seus fazeres, quando em questão está a formação dos nossos colegas e a nossa, consequentemente, os grupos de pesquisa FEP e GELING se aproximam e se afinam, quando elegem, entre outros artefatos, a linguagem, as artes, as letras e as tecnologias como os fios com que se tecem os diálogos em torno das aprendizagens e dos ensinos que envolvem cogni-ção e afeto, razão e coração, portanto.

Nessa perspectiva, partilhamos, neste ensaio, concepções, experiências e práticas reveladoras da opção do GELING, nas atividades constitutivas dos cursos de formação continuada de professores, de afetar os colegas cursistas com a linguagem, materializada em letras que representam a primeira das tecnologias humanas, a escrita, transfigurada na arte, cunhada, historicamente como arte verbal, como Literatura. Para representar os cursos, esco-lhemos o Projeto Salvador – Licenciatura em Peda-gogia para Séries Iniciais do Ensino Fundamental, para Professores em Exercício no Município de Salvador, e para tratar da opção pela Literatura, tomamos como base a pergunta que nos é cara e, particularmente, a Wanderley (2011), em torno da Literatura e do ensino: para que a Literatura? Toma-mos ainda os registros de aulas feitos no percurso da realização do curso que acolheu duas turmas: a primeira, no período de 2004 a 2007, e a segunda, de 2006 a 2009, e, intencionalmente, recortamos

sequências de aulas referentes ao componente curri-cular Estudos Literários, propostos para a segunda turma, ressaltando procedimentos realizados e sua relação com demandas dos professores cursistas, vinculadas à escrita do memorial formação, ativi-dade inerente ao curso, e que ia sendo realizada a partir das construções processadas durante as ati-vidades e componentes do ciclo de estudos, como um continuum, compondo o que na sua organização curricular se definiu como “Atividade Curricular de Registro e Produção”.

Na perspectiva de fortalecimento do debate que os registros suscitaram, trazemos para o texto, conformado segundo Brandão (2001) como uma arena de vozes, aqueles com quem o diálogo vem se tornando fundamental para abonação de ideias e para ratificação de nossa filiação aos que têm o campo da linguagem e da Literatura como objeto de estudo. Nesse sentido, as ideias de Brandão (2001) são também valorosas, já que, apoiada na contribuição da Análise de Discurso de linha francesa, leia-se Michel Pêcheux e Dominique Maingueneau, a autora acolhe a ideia da reflexão sobre a linguagem nos entremeios, aceitando o des-conforto de a reflexão não se ajeitar nas evidências, no lugar já-feito e, sem desconsiderar os princípios bakhtinianos, dimensiona a relação entre produção de leitura e produção escrita de texto como trabalho de interlocução, levando em conta o seu aspecto dialógico na qual o sujeito, como ser da linguagem, é um sujeito social, histórico e ideologicamente situado, que se constitui na interação com o outro, que constrói sua identidade na relação dinâmica com a alteridade e para quem o texto é o espaço de interação.

Com relação ao modo de organização do en-saio, assumimos fazer um fingimento, um “como se...”, tomando como inspiração as considerações de Iser (2002), relativas ao conceito de jogo sobre as representações, quando em questão está a inter--relação autor-texto-leitor, concebidas como uma dinâmica que há de conduzir a um resultado final, guardadas as devidas proporções, já que o escopo de sua discussão é o texto literário, no que o poten-cial ficcional o singulariza. Nesse sentido, do ponto de vista da escrita, consideramos nossos diálogos, pesquisas e experiências docentes, de modo que nossas vozes fossem lidas nesta unidade textual,

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Lícia Maria Freire Beltrão; Mary de Andrade Arapiraca

sem que perdessem o tom que nos singulariza. Do ponto de vista de leitoras do nosso próprio texto, consideramo-nos leitoras que gostariam de fracionar o texto, lendo-o por motes, com fins de reflexões desaceleradas. Em vista disso, assim procedemos na tessitura dos seus fios: iniciamos por esses que configuram a abertura e que visam fazer anúncios e dar ao leitor uma visão sincrética de nossas intenções; prosseguimos com os fios que tecem mais dois motes: a nossa opção pela Literatura no âmbito da Pedagogia; a experiência de leitura da obra Por parte de pai (QUEIRÓS, 1995), do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós, como uma ilustração das muitas aulas já realizadas. Nossas reflexões conclusivas, seguidas das referências que apoiaram a escrita do ensaio, a esses motes se somam.

Expressamos desejo de que leituras proveito-sas configurem gestos e ações curiosos e que seja compreendida a intenção de privilegiarmos mais as considerações em torno da presença da Literatura no processo formativo de professoras e menos o debate em torno dos processos formativos, assunto mais corrente na literatura acadêmica.

E vamos aos motes!

literatura: uma aposta otimista

A nossa compreensão de que a relação entre Literatura e Pedagogia vem se mantendo mais polêmica do que pacífica não nos tem impedido de colher concepções em torno da escrita literária entre aqueles que nos convencem sobre sua condição de multivocidade, de plurissignificação, de polifonia, de polissemia e de continuarmos apostando nela, nos processos educativos diversos que se integram às nossas demandas da docência e da pesquisa, com ressonâncias daquela aposta empreendida por Lajolo (1998), na leitura, como prática social.

Se por um lado, muito da aposta devemos às assinalações de Roland Barthes (1996), ao dar a essa arte o estatuto de disciplina comparável a um monumento que abriga saberes de todas as ciên-cias, aos resultados de pesquisas que nos chegam ratificando o vigor da literatura como referência na superação de pedagogias conservadoras, caso bem ilustrado na obra Literatura: saberes em

movimento (PAIVA et al., 2007), organizada pelos pesquisadores Aparecida Paiva, Aracy Martins, Graça Paulino, Hércules Corrêa e Zélia Versiani, do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEA-LE), e pelas pesquisas desenvolvidas no GELING, exemplificadas por: Salvador Lê: Observatório de Leitura; Literatura e ensino: professores e po-etas na construção de saberes, Regina Gramacho (2013); A Emília que mora em cada um de nós: a constituição do professor-contador de histórias, Luciane Souza Santos (2013); A Formação do Professor e a Literatura: a terceira margem, Au-xiliadora Wanderley (2011), Quem tem medo do lobo mau? Um estudo sobre a produção imaginária da criança e sua relação com a aprendizagem, Leila da Franca Soares (2007), por outro, deve-mos a opção à presença invariável da criança nos programas de formação, já que seus professores, nossos professores – cursistas – atuam nas classes de Educação Infantil e nas dos primeiros anos do Ensino Fundamental. Nossa inspiração, portanto, também é a criança, sujeito que protagoniza todas as cenas que compõem o cotidiano escolar, tempo--espaço de ação e formação de professor. Assim, sua voz, seus enunciados, seu modo de existir e de fazer existências, sem perder de vista processos de mutação, impulsos que a fazem mentora intelec-tual de acontecimentos na sua condição de nosso outro, na perspectiva bakhtiniana, tudo que dela vem é acolhido, é concebido, é motivo, repetimos, de nossa inspiração e tudo que dela vem conspira para que engendremos metodologias em torno da linguagem, no caso, a verbal, e dos objetos que a ela se interligam: oralidade, leitura, escrita e aspectos linguísticos.

Ao tomarmos a criança, nosso outro fundamen-tal, reconhecemos com o poeta Manoel de Barros (2009) que cada criança, na sua singularidade, traz consigo em potência a capacidade de fazer o verbo delirar, mudando sua função, provocando outros sentidos, como a que traduz esse poeta, sensivel-mente, no poema Uma Didática da Invenção: a criança escuta a cor dos passarinhos, não o seu som, a propósito do gorjeio que lhes é peculiar (BAR-ROS, 1993), como ainda trazemos, considerando a literatura como referência fundamental, o que com o mesmo poeta Barros (2013, p. 51) aprendemos a dizer: “O olho vê. A lembrança revê. A imaginação

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transvê”, expressões colhidas no Livro sobre nada.Com matizes menos poéticas, reconhecemos

predisposição da criança para se integrar ao mundo, indagando sua essência e existência, mesmo que, muitas vezes, o mundo lhe seja dado como pronto, como acabado, momento em que somos impelidas a lembrar da importância de se tratar com sensibi-lidade e, assim reconhecer que, a cada vez, a cada instante que uma criança se integra ao mundo, ele se renova, ele se amplia, ele se transforma, ele se recria, ele se reinaugura, ele se reedita, pela lingua-gem, de matriz verbal, visual, sonora e corporal. Por reconhecermos isso é que, querendo nos proteger do risco da essencialização a que a Pedagogia, às vezes, se torna refém, aproveitamos a incomensurabilidade de que trata Serpa (2004), quando aborda a conotação plural do conhecimento e da existência de pensamentos que são incomensuráveis entre si, perguntando se não nos seria possível escrever, reescrever, anotar, rascu-nhar, esboçar, contrapor, animar palavras da criança e sobre a criança que com ela se compatibilizem na sua condição inteligente, criativa e sensível de ser, e, usan-do palavras de Perrone-Moisés (1996), ao comentar as experiências lexicais feitas por Barthes em Aula, perguntar se não seria possível remergulhar a palavra criança em uma fonte de saberes e fazeres compro-metidos com sua condição histórico-cultural-afetiva, para devolvê-la à Pedagogia rejuvenescida, rica de sentidos e parentescos perdidos, esquecidos, apaga-dos, enfim considerada pelo fluxo de outra semântica. Isso significa, ainda nos prevalecendo das ideias de Perrone-Moisés (1996), perguntar se seria possível escrever palavras que desmontem os discursos pres-critivos, endurecidos, áridos, às vezes,perversos sobre a criança do ponto de vista pedagógico, se não nos seria possível escrever palavras que, generosamente, “limpem o terreno” para que se possa abrir caminhos na perspectiva de outras atualizações, sobremodo em tempos em que desafios se ampliam com mutações e rupturas geradas no mundo digital.

E, por reconhecermos que somente na compa-nhia de crianças seríamos capazes de acentuar e atenuar essas questões, construindo algumas saí-das possíveis, como a de nos educarmos com elas, orientadas por sua voz, é que elegemos a Literatu-ra, constituída por escritores diversos – nacionais e estrangeiros –, como espaço de possibilidades de engendrarmos, no jogo discursivo com os pro-

fessores, outro fluxo verbal pela via da conotação, por ser cenário em que, contemporaneamente, crianças instigantes, curiosas, corajosas, medro-sas, mas simplesmente crianças habitam, por ser linguagem da representação, por ser linguagem imagística, e por ser a que, como nenhuma outra, tem o poder de concretizar o abstrato (e também o indizível), através de comparações, imagens símbolos, alegorias (COELHO, 2000) e, com intensa algazarra, complementamos. Reconhecer a criança do mundo ficcional, como sujeito de referência, sobretudo aquela que se move no texto e fala, representando perfis culturais bastante níti-dos, conforme salienta Khéde (1986) e a literatura, como espaço da possibilidade, é assumir construir pedagogias pela via da conotação, valorando a metáfora, assegurando a disseminação de sentidos e não, exclusivamente, pedagogias que denotem definição, informações e classificações em torno dos objetos em estudo.

Na tentativa de tornar mais evidentes nossas escolhas, convidamos algumas crianças que são nossas cúmplices de sempre para que, ao modo do uni-du-ni-tê, brinquem conosco, exercendo esse direito que, a um só tempo, lhes é próprio e inerente, e colaborem na exposição de algumas das vantagens de tê-las conosco, provocando diálogos nas atividades de formação continuada.

Assim, se quisermos que a nossa memória seja ativada, torçamos pela presença de Guilherme Augusto Araújo Fernandes, amigo da Sra. Antô-nia Maria Diniz Cordeiro, criação de Mem Fox; se quisermos que a educação pela mão paterna seja contemplada, torçamos por Diego, filho de Santiago Kovadloff, criação de Eduardo Galeano, que diante da beleza de conhecer o mundo, am-pliando sua esfera de conhecimento, emudeceu de emoção; se quisermos que travessuras sejam mostradas e a sadia convivência seja festejada, torçamos pela escolha da turma do Catapimba, especialmente encenando O piquenique do Ca-tapimba, criação de Ruth Rocha; se quisermos a linguagem metafórica da criança, estranhada pela mãe e reconhecida como uma atitude estética que traduz beleza e sensibilidade, torçamos pelo menino Paulo, protagonista de Drummond em A incapacidade de ser verdadeiro; se quisermos, a um só tempo, apreciar a alegria da vida no campo, o

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gosto de ficar na rede, vendo a vida passar, e mais, o comprometimento quase em vão de uma menina que continua numa verdadeira cruzada em defesa da língua portuguesa, mesmo atenta ao argumento da Sociolinguística, o canto de músicas sertanejas, com destaque para o repertório de Luiz Gonzaga, torçamos pela Turma do Xaxado, desenhada por Antônio Cedraz; se quisermos que a curiosidade seja premiada, torçamos pela Glorinha, a menina que não economiza interrogações, perguntando sobre tudo a todos, criação de Fernanda Lopes de Almeida, assim como Clara Luz, a fada que tinha ideias e que reconhecia, sempre, muitos horizontes, para além dos que supomos haver.

Se até então contamos com a colaboração de crianças do mundo ficcional, considerando as his-tórias em que habitam, para fazermos a exposição de vantagens de tê-las conosco, provocando diálo-gos nas atividades de formação, contamos, agora, na conclusão deste mote, com a colaboração de Leahy (1999) que, ao reafirmar a literatura como parte dos currículos escolares, chama atenção para o seu caráter trilateral, por assim se compor: arte – palavra – sociedade, e sobre sua penetração no ambiente da escola, com caráter disciplinar. A esse respeito, nos diz:

[...] O uso da literatura é essencial no processo de educar sujeitos sociais, por se tratar de um assunto composto da combinação assimétrica de estudos lingüísticos, culturais e sociais. Cada mudança de ápice deste triângulo indica uma mudança de ênfase em alguma característica cultural, política e pedagógica de um grupo social. Considerando seu caráter interdisciplinar, a educação literária é uma disciplina que cruza fronteiras e esse é justamente seu papel principal na criação de uma consciência e de um saber político-social. Para melhor ou para pior (adverte). (LEAHY, 1999, p. 92).

Na expectativa de que seja para melhor, toma-mos a compreensão expressa por Gramacho (2013), no debate empreendido na pesquisa Literatura e ensino: professores e poetas na construção de saberes, quando, apoiada em Lauand (2006, p. 7), conclui que “Literatura e Educação não são reali-dades que se excluem” (GRAMACHO, 2013, p. 45), como ainda que, se o papel da educação, em última análise, é despertar a admiração, a sensibi-lidade para o mirandum, princípio da sabedoria,

professores e poetas hão de se ajudar mutuamente. Esses, expressando suas intuições nas palavras, aqueles, procurando estruturar o saber e realizar as necessárias sínteses. Esse paralelo de Gramacho nos impele a convocar A Extraordinária Aventura vivida por Vladímir Maiakóvski no Verão na Da-tcha, antológica poesia do poeta russo que nomeia o texto e que, ao apresentar um diálogo entre o poeta e o sol, assim se encerra:

Vamos, poeta,

cantar, luzir no lixo cinza do universo. Eu verterei o meu sol e você o seu com seus versos.

[...] Gente é pra brilhar que tudo o mais vá pra o inferno, este é o meu slogan e o do sol.

(MAIAKÓVSKI, 1997, p. 87-90).

Por parte de pai: um encontro com Bartô

Com a expectativa de transfigurarmos a ementa1 do componente curricular Estudos Literários em práticas que revelassem o texto literário, como um dos textos de importância nos processos formativos do professor, no caso, das Professoras participantes da segunda turma do Projeto Salvador, por uma das vias possíveis: a produção de sentidos (ORLANDI, 1986), considerando-se conteúdo, forma e o gênero de literatura memórias, compreendido tipicamente como narrativas, baseadas em fatos reais e ou fictí-cios, que se singularizam por “contar” lembranças, foi iniciado o curso, em espaço-tempo marcado pelas quartas-feiras de dez semanas do semestre letivo 2009.1.

Com a colaboração de Lobato, e renovando a ideia de Maria Antônia Ramos Coutinho2 (1992)

1 Aprofundamento dos aspectos literários relacionados ao campo educacional, à prática pedagógica e a questões de interesse do professor. Discussão e análise das possibilidades de construção de práticas educativas / pedagógicas e do conhecimento através das diferentes linguagens trabalhadas nas atividades do eixo articulador: Linguagem e Educação

2 Professora e pesquisadora da Literatura Infantil na UNEB e também escritora.

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Literatura na formação de professoras: presente!

de tomar A Onça Doente (LOBATO, 1970) como metáfora para tratar de concepções de leitura e de leitores, consequentemente, lemos a fábula – da personagem protagonista ao enredo, das ações da comadre Irara às do finório Jabuti – que orientou e introduziu o primeiro dos estudos: leitura, con-cepções, atitudes leitoras, atendendo a um requisito do curso que tomava a leitura como uma prática inerente a todas as práticas – importante ponto de ancoragem que produziu atos de leitura individual e compartilhada com os colegas de curso e de tra-balho. Esta produção também esteve fincada nos próprios textos e com seus autores, na perspectiva de pensar e sentir, criticamente, as questões funda-mentais da humanidade. Desta forma, o movimento pedagógico que compreendeu “[...] a leitura, a partir deste olhar, desenvolveu políticas culturais capazes de disponibilizar livros a mancheia e de criar espaços e tempos para leituras que sejam feitas como experiência [...]” (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2003, p. 9). Nesta pers-pectiva, as professoras moveram-se em direção aos livros e a diferentes suportes textuais, nos quais se encontravam, para empenharem-se e situarem-se neles com proficiência.

Entre acordos e desacordos, e com a sugestão colhida de Orlandi (1993, p. 11-12) de que “ler é compreender que o sentido pode ser outro”, apresentamos o mote para o qual convergiriam as experiências leitoras propostas para o curso: me-mórias. E o acervo de livros que tem a memória no seu fluxo verbal disse “presente!” em todas as situações apropriadas. Assim é que das memórias da menina Raquel de Queiroz, passando pela Infân-cia do menino Drummond, aportamos em acervo mais farto de livros que também traduziam me-mórias: Meu avô Apolinário, Daniel Munduruku: Indez, Bartolomeu Campos de Queirós; Anarquista Graças a Deus, Zélia Gattai; Minhas Memórias de Lobato contadas por Emília, Marquesa de Rabicó e pelo Visconde de Sabugosa, Luciana Sandroni; Memórias de Emília, Monteiro Lobato; O menino e seu amigo, Ziraldo; O poeta aprendiz, Vinícius de Moraes; Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis.

Desse que consideramos “acervo mais farto”, cuja escolha se tornara livre, guiada exclusivamente por critérios subjetivos, e que possibilitou a leitura

de vozes femininas e masculinas, de vozes que vêm de um passado remoto e do mundo contemporâneo, chegamos ao livro comum a todas as leitoras e eixo articulador, pela via intertextual, de todos os demais títulos escolhidos: Por parte de pai3. Escrito que revela a rica infância de um menino sensível e engenhoso, guardada na memória e no coração, Por parte de pai nos faz compreender vidas simples de personagens comuns que habitam uma cidade do interior, entre as quais se destacam a de um neto encantado e a de um avô encantador que, com letra bonita, registrava o cotidiano vivido nas paredes de sua casa, enfeitando-a. Todos os acontecimen-tos, anotava: quem adoecia, quem morria, quem visitava a família, os assuntos conversados... As histórias, próprias para leitores de maior estatura, escritas no alto das paredes, evitavam o acesso do neto- menino que, gradativamente, ia compreen-dendo a dinâmica da família, da cidade, do mundo; o valor do amor mútuo, do silêncio e da palavra. E, com palavras poéticas, o mundo das emoções e da razão ia sendo tecido e, imaginariamente, ilustrado com uma profusão de imagens, sem que houvesse, a priori, definição do leitor a quem a obra estava destinada, como se quisesse dizer que a obra de arte não pode ter a faixa etária como limite.

E de que escritor seria a obra? A isso respon-demos com intenção voltada para reflexão sobre o gênero biografia4 que, sem perder a função de informar sobre a vida, no caso restrito a de escri-tores, pode ser retextualizado na perspectiva da modulação da forma e do conteúdo de maneira a se tornar mais próximo de textos da esfera literária. E com procedimentos próprios de leitura-jogral, alternando vozes e alterando ritmo e entonação, lemos o que em parceria com Regina Campana5 3 O livro em questão recebeu premiações como: Altamente Reco-

mendável, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil- FNLIJ; Hors Concours FNLIJ; Prêmio Orígenes Lessa. Além disso, foi obra selecionada para o Projeto Cantinho de Leitura, para o Programa Nacional Salas de Leitura Bibliotecas Escolares – FAE; para compor o acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), em 2011. A obra já foi publicada no México, com o título Por parte de pa, pelo Fondo de Cultura Economico, em 1998.

4 A escrita de biografias com fios que sejam mais típicos da lingua-gem literária tem sido experiência plausível de Regina Campana, contadora de histórias, com quem partilhamos o projeto Educando pela Literatura e muitas das sequências de aulas do componente curricular em questão: Estudos Literários.

5 Durante o curso de formação, contamos com a colaboração sempre qualificada de Regina Campana, contadora de história, quer na construção de acervos, quer na elaboração de textos, quer na escolha

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Lícia Maria Freire Beltrão; Mary de Andrade Arapiraca

escrevemos: BaúBatôBarBom Bartô mineiro. 1944Nasceu e viveu sua infância em Papagaio,Cidade pequena com gosto de ‘laranja serra d’água’Sua juventude e maturidade em Belo HorizonteOnde vive até hoje.AroArBarBartô mineiro viajante. Atento às cores, cheiros,Sabores e sentidos.ArArteAtoBartô apreciador da arte e da literatura.Professor, poeta e intelectual humanista,Atento a seu tempo e à força da palavra.RetoRéuRumoBom Bartô escritor. 1974Seu primeiro livro, escrito em Paris, é publicado.O peixe e o pássaro. Escrito em pleno exílio político.‘...nasceu meu primeiro texto. O peixe e o pássaro com a intenção única de acariciar-me. Era amparar--me em meu próprio colo. Assim o peso de Paris tornou-se carregável.’ Meu TeuBartô autor de peças teatraisTextos sobre arte e educação,Livros de literatura infantil, juvenil(para todas as idades)BoloBatoBotoBartô, poeta brinca com as palavras.Inventa e reinventa ‘Raul é luar’Mário, fusão de mar e rio.Estudioso dos problemas filosóficos e estéticos.Defensor da arte no processo educativo.MotoMato Rum Rumo às obras de Bartô: O peixe e o pássaro, Pedro, Mário, Raul, Onde tem bruxa tem fada, As patas da vaca, Ah mar! Cavaleiros das sete Luas, Correspon-

de estratégias que aproximassem os professores cursistas da leitura literária.

dência, Indez, Escrituras, De não em não... Olé! Bartô – Bartolomeu Campos de Queirós!

(CAMPANA; BELTRÃO, 2009)6

Para produção de conhecimentos prévios à lei-tura integral do livro, desafiamos as Professoras: um quebra-cabeça deveria ser montado! Com as peças, que encaixadas compunham a capa do livro, prosseguimos. Que sabiam as Professoras cursistas sobre aquela obra de Bartolomeu? Sobre a obra, como realidade, as Professoras silenciaram. Sobre a obra, como possibilidade, as Professoras fizeram previsões. A fotomontagem usada na composição da capa em sépia, forjando o efeito do tempo e se mostrando envelhecida, foi ponto de ancoragem para que as Professoras nos falassem de álbum, lembranças, recordações, memórias de família, memórias de menino, do menino Bartô, talvez.

Nessa perspectiva, a de ler, considerando a pos-sibilidade, tradução do ler como ato polissêmico, gerativo, sugeriu que devolvêssemos os gestos leitores das Professoras, com palavras tomadas de Bartolomeu Queirós (2012), quando, refletindo sobre texto e leitor diz que ambos ultrapassam a solidão individual para se enlaçarem pelas inte-rações. Esse abraço a partir do texto é soma das diferenças, movida pela emoção, estabelecendo um encontro fraterno e possível entre leitor e escritor. Na sua compreensão, cabe ao escritor estirar sua fantasia para, assim, o leitor projetar seus sonhos. E ampliando a concepção ainda diz mais: que as palavras são portas e janelas. Se nos debruçarmos e repararmos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancarmos as portas, o enredo do universo nos visita. E concluindo, propõe a síntese:

Ler é somar-se ao mundo, é encantar-se com as diferenças, é iluminar-se com a claridade do já decifrado. Escrever é dividir-se. Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem cami-nhos, entre linhas, para as viagens do pensamento. O livro é passaporte, é bilhete de partida. (QUEIRÓS, 2012, p. 61).

Por compreendermos que as Professoras, naque-la circunstância, estavam “se somando” ao mundo de Bartolomeu e utilizando seu passaporte, seu

6 Poema ainda não publicado pelas autoras Regina Campana e Lícia Beltrão.

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Literatura na formação de professoras: presente!

bilhete de partida, prosseguimos. Antes, porém, conferir se o que diziam revelava coerência se fazia necessário.

Consultar a quarta capa, ou contracapa do livro, pouco lida, nada admirada e muitas vezes desprestigiada, apesar de sua função tanto infor-mativa como persuasiva, passou a ser estratégia fundamental. Constatada a coerência das leituras de textos, ainda que os textos da capa e da quarta capa fossem absolutamente díspares em termos da matriz de linguagem, avançamos. Dessa vez, para que compreendessem o escritor, do ponto de vista do acervo até então construído. Para tanto, criamos um cenário no qual livros, ou melhor, “passapor-tes”, “bilhetes de partida” se abriam generosos e se entregavam aos olhos curiosos das leitoras: O peixe e o pássaro, De letra em letra, Diário de Classe, O guarda-chuva do guarda, O pato paca-to, Ciganos, Indez, Minerações, Onde tem bruxa tem fada, Mário, Pedro, Coração não toma sol, Apontamentos, Faca afiada, Até passarinho passa, Correspondência, Flora, Estória em três atos... Contudo, para compreender a história amorosa em que um avô reina e um neto se encanta, bem como os registros informativos, curiosos e poéticos de um tempo que somente a palavra literária nos faz retomar, era preciso ler. Ler e mergulhar nas me-mórias para que, puxados os fios, numa tentativa de desmontagem do texto tecido, se conhecesse, se apreciasse a história, se apreciasse a história de um avô “e sua maneira de não deixar as palavras se perderem”.

[...] Apreciava meu avô e sua maneira de não deixar as palavras se perderem. Sua letra no meio da noite, era a única presença viva, acordada comigo. Cada sílaba, um carinho, um capricho penetrando pelos olhos até o passado. Meu avô pregava todas as palavras na parede, com lápis quadrado de carpin-teiro, sem separar as mentiras das verdades. Tudo era possível para ele e suas letras. Não ser filho de meu pai, era perder o meu avô. O pesar estava aí. E se isso estivesse escrito no teto, em alguma parte bem alta da casa onde eu só pudesse ler depois de grande? Eu sabia os poderes do Pai, o silêncio do Filho, sem conhecer o Espírito Santo. (QUEIRÓS, 1995, p. 18-19).

E as palavras não se perderam: a rua, a morada, a família, a vizinhança, a escola, a vida... Conhe-

cendo e apreciando a rua, a morada, a família, a vizinhança, a escola, a vida..., as Professoras construíram tranças de leitura, produzindo cartas, contos, cantos e, sobretudo, incluindo a Literatura como objeto de realce nas suas práticas, como se pode ler e apreciar nos excertos7 que seguem expostos, extraídos do memorial8 que configurou a conclusão de sua formação inicial no curso de Pedagogia:

Professores e professoras que levam a poesia para a sala de aula bem sabem que despertarão o prazer da leitura e escrita em seus alunos. [...] A poesia invade a alma! Na sala de aula, dá evasão a sentimentos re-cônditos que talvez não fosse a poesia jamais viesse à tona. (PROFESSORA GÉRBERA, 2009, p. 30).

Os estudos literários levam o indivíduo a apreciar, perceber emoções e sentir esse gosto prazeroso pela leitura. (PROFESSORA VIOLETA, 2009, p. 15).

No meio do caminho, me alegrei com Vinicius, Pes-soa, com Drummond, com Cora e Castro Alves... Mas foi Cecília que afagou meu coração, dando-me a chance de recitar a sua canção de amor perfeito. Nunca me esquecerei de que antes de formar alunos leitores, eu preciso gostar de ler... (PROFESSORA DÁLIA, 2009, p. 42).

Entre dias da semana, pensando-os a minha maneira houve dias importantes foram as segundas, terças, quartas, quintas e sextas-feiras. Nesses dias convivi com poetas, escritores, livros, poemas, poesias, his-tórias [...] e lá estava Ziraldo que me contou que A Bela Borboleta estava livre cada vez que o livro era aberto [...] conversei com Charles Perrault, desco-bri Elisa Lucinda e sua estreias. (PROFESSORA ORQUÍDEA, 2009, p. 38).

E assim continuo viajando... fui à Bienal do Livro pela primeira vez! Mas não ficou só nisso! As pro-fessoras me deram oportunidade de conhecer Bar-tolomeu Campos de Queirós. Com a leitura de seu livro Por parte de pai, no qual é contada a história da sua infância na casa de seus avós, onde a escrita estava sempre presente, através dos registros do seu avô nas paredes. Lá ele cresceu, as paredes da casa foi o seu primeiro livro. E assim como Bartolomeu brincava pelas calçadas da rua da paciência e pro-

7 As professoras do curso, de quem colhemos os escritos memoria-lísticos, são referidas com nomes de flores.

8 Memorial de 2009 do Programa de Formação Continuada de Pro-fessores: Projeto Salvador, Bahia (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, 2003).

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Lícia Maria Freire Beltrão; Mary de Andrade Arapiraca

curava além dos olhos, eu procuro fazer com que meus alunos busquem, através da leitura, um novo olhar sobre a educação. (PROFESSORA MARGA-RIDA, 2009, p. 25).

Nesse caminho conheci também Cecília Meireles, Bartolomeu Campos Queirós, Eva Furnari, Olavo Bilac, Ziraldo Rosana Murray, Roger Melo, Elias José, Ana Maria Machado. Nesse caminho de poetas encontrei a chave que precisava para conhecer a li-teratura. Todos esses e mais alguns que, com certeza, perdi no meio do Caminho. Como educadora levo eles para que com eles os meus aprendizes possam também viajar na fantasia e voar nas asas da ima-ginação. (PROFESSORA ROSA, 2009, p. 52-53).

Assim, acolheram Bartô e a Literatura, na sua memória, no seu coração e cremos que, ainda hoje, celebram aquele encontro feliz com escritores e poetas. Com Bartolomeu, o escritor que considerou a memória, como o grande patrimônio que temos e que guarda a vida vivida e a vida sonhada. Vida que encontra o diálogo na Literatura, no texto que dá a palavra ao leitor e o convida a se dizer com ele e diante dele. Quem leu os memoriais não teve dúvidas disso. Neles encontrou estilo, encontrou os espaços em que subjetividades foram exercidas e o diálogo com a voz de Bartô menino-escritor--professor, que no encontro, pela palavra, fundou mundos bem como muitos outros. Esse encontro que Albuquerque, Serpa e Arapiraca (2010, p. 57) consideraram ter sido “ampliação do olhar ou a transgressão ao habitual, próprio da literatura” foi também reconhecido como alimento para que as professoras cursistas se dispusessem a experimen-tar as diversas possibilidades que a língua dispõe para que ideias se materializem em escritas.

literatura e Educação: desfazendo nós e fazendo laços

Quando iniciamos este ensaio, intencionalmen-te, tomamos a questão da Literatura e do ensino mais como relação polêmica do que pacífica. E com essa compreensão o concluímos. No mínimo seria leviano de nossa parte considerar que concepção assumida e experiências realizadas por nosso grupo de pesquisa e de nossos pares responderão por esse debate que está na esteira do tempo. No entanto, por acompanharmos cenas dos processos educativos,

assumidas e narradas pelas Professoras egressas dos Cursos de Formação, podemos fazer anúncios de que a Literatura, sem adjetivos restritivos, afetou sua vida, sua docência.

Cremos que mais do que conjeturar “pilares me-todológicos do educar”, importa configurar graus crescentes de liberdade interior para que o indiví-duo passe a lidar com o saber e com a trama que imprime às suas relações, se apropriando daquilo que se mostra verdadeiro em seu ser. Possibilitar a atualização de existência a cada um pode ser uma ferramenta preciosa na busca de uma educação de qualidade. O que significa dizer que, assim como cada um de nós, as Professoras não estão prontas, fechadas em seu saber e fazer. Evidentemente, influenciam e são influenciadas pelo tempo e pelo espaço que as circundam.

A apropriação da singularidade requer um es-paço fluido e desenraizado traduzido, tantas vezes, na tópica do deslocamento, na perda de referências fixas e, sobretudo, na estratégia crítica. Algumas docentes, embora expressem um querer pertencer ao universo literário, contraditoriamente se mantêm dele afastado, muitas vezes, fechadas em certezas que não são próprias do mundo ficcional. Se não entram no jogo, se não se dispõem à Literatura, decerto não irão usufruir de tudo quanto o inco-mensurável mundo literário guarda em si.

A propósito, se você não se inclui nessa refe-rência indefinida, consideramos justo que saiba: temos intenções de que as práticas desenvolvidas, em território tão restrito, nossas salas de aula, continuem a ser disseminadas. Se você gosta do filho da Dona Zizinha e do Sr. Geraldo, certamente gostará de abrir suas Maletas, sobretudo se receber uma carta como esta:

Faz-de-Conta, 25º dia do terceiro mês do ano de 200inove

Caras Professoras:

Meu amigo, o Canguru, é uma dupla fabulação si-multânea e independente: a narrativa memorialista do texto e a narrativa visual dos desenhos que mos-tram, em diferentes situações, o “amigo canguru” e seus filhotes. “Honestamente, [...] não sei se ele é delicado”, “não sei se é violento”, “se gosta de um bate-papo (parece ser caladão)”, “se gosta de rock’n roll”, “ou prefere um violão”... Sei que um dia falei,

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Literatura na formação de professoras: presente!

pra mamãe, sem querer causar intriga: “Que bom se você tivesse uma bolsa na barriga!” Se o resultado foi bom, não vou aqui adiantar. Se vocês quiserem saber, é só ler, vir e reler... Depois, então, será que daria pra contar a história do Gugu, esse amigo tão

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querido que amo pra chuchu?O Menino Maluquinho e a Menina Nina agradecem.

Ziraldo Acertamos?

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Recebido em: 07.01.2014

Aprovado em: 28.03.2014

Luísa Álvares Pereira; Luciana Graça; Anderson Carnin

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MODElOS DE FORMAÇÃO PARA O ENSINO DA ESCRITA

EM PORTUGAl E NO BRASIl1

luísa Álvares Pereira ∗

luciana Graça ∗∗

Anderson Carnin ∗∗∗

RESUMO

Os modelos atualmente adotados, quer em Portugal quer no Brasil, no contexto da universitarização da formação de professores para a competência de escrita, em particular, têm proposto novas formas de agir didático, nomeadamente, no sentido de uma articulação entre a formação e o próprio contexto escolar. Após uma breve apresentação de algumas considerações sobre a formação de professores para o ensino da língua, em geral, e para o ensino da produção escrita, em particular, passaremos à apresentação de três processos de formação contínua para o ensino da produção de textos escritos, terminando com algumas considerações que podem ser extraídas de todo esse processo, e que nos permitem equacionar princípios-chave para a definição de um modelo de formação de professores para o ensino dessa competência.

Palavras-chave: Formação de professores. Gêneros de texto. Escrita.

ABSTRACT

TRAINING MODELS FOR TEAChING wRITING IN PORTUGAL AND IN BRAZILTeacher training models currently used, both in Portugal and in Brazil, in the context

1 Este texto foi produzido no âmbito dos seguintes projetos: 1) projeto de investigação PROTEXTOS – Ensino da Produção de Textos no Ensino Básico, coordenado pela Professora Doutora Luísa Álvares Pereira, e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/CPE-CED/101009/2008) e pelo Programa COMPETE: FCOMP-01-0124-FEDER-009134 (Programa Ope-racional Temático Factores de competitividade do Quadro Comunitário de Apoio III e comparticipado pelo Fundo Comunitário Europeu FEDER); 2) projeto de pós-doutoramento”Formação,investigação e ensino da escrita: uma articulação indispensável para a profissionalização docente financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/75952/2011) e com supervisão científica de Luísa Álvares Pereira e Joaquim Dolz; 3) Projeto “Por uma formação continuada cooperativa para o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual escrita no Ensino Fundamental”, apoiado pela Capes/Inep--Programa Observatório da Educação, Edital 38/2010, sob coordenação da Professora Doutora Ana Maria de Mattos Guimarães. ∗ Doutora em Didática do Português pelo programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Aveiro (UA). Professora auxiliar do departamento de Educação da Universidade de Aveiro (UA). Linhas de pesquisa: Ensino da Escrita - Produção de gêneros de textos na escola. Grupo de pesquisa a que pertence: Protextos - CIDTFF/UA. Endereço para correspondência: Departamento de Educação - Universidade de Aveiro. Campus Universitário de Santiago. CEP: 3810-193. Aveiro - Portugal. [email protected]∗∗ Doutora em Didática pelo programa Pós-Graduação em Educação - Universidade de Aveiro (UA). Pós-doutoranda em Didática - Ciências da Educação, com bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/75952/2011), no Departamento de Educação da Universidade de Aveiro. Linhas de pesquisa: Ensino da Escrita - Produção de gêneros de textos na escola. Grupo de pesquisa a que pertence: Protextos - CIDTFF/UA. Endereço para correspondência: Departamento de Educação - Universidade de Aveiro. Campus Universitário de Santiago. CEP: 3810-193. Aveiro - Portugal. [email protected]∗∗∗ Mestre e doutorando em Linguística Aplicada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/Capes) Campus São Leopoldo-RS. Estágio de doutoramento sanduíche (PDSE/Capes) na Universidade de Aveiro. Linhas de pesquisa: Interação e Práticas Discursivas – Linguagem e Práticas Escolares. Endereço para correspondência: Avenida Unisinos, n. 950, São Leopoldo--RS. CEP: 93022-000. [email protected]

Modelos de formação para o ensino da escrita em Portugal e no Brasil

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of the universitarization of teacher training in the competence of writing, in particular, have proposed new ways of teaching, especially in the sense of links between teacher training and the school context. After a brief presentation of some considerations of teacher training for language teaching in general and teaching of writing in particular, we present three processes of training for teaching the production of written texts. We conclude making some considerations that can be drawn from this process and that allow us to reach key principles for the definition of a model for teacher training for this competence.

Keywords: Teacher training. Text genres. Writing.

Considerações iniciais

Os modelos de formação atualmente adotados, quer em Portugal quer no Brasil, no contexto da universitarização da formação de professores de línguas, em geral, e da competência de escrita, em particular, têm insistido na relevância da articula-ção entre a formação e o próprio contexto escolar, defendendo-se assim a centralidade da experiência em sala de aula nos próprios processos de (trans)formação profissional. Na verdade, e independente-mente de várias explicações complexas para a difi-culdade atual em saber como lidar com as crianças de hoje, não podemos deixar de interrogar as me-lhores formas de melhorar os processos de ensino e de aprendizagem da escrita. Resposta esta que, naturalmente, teria também então de contemplar uma reflexão sobre o próprio processo de formação de professores. E, a este respeito, múltiplas são as interrogações que podem ser formuladas: a) qual o modelo de formação a escolher?; b) privilegiar a componente teórica e/ou valorizar a vertente prática?; c) quais as práticas efetivas de ensino a adotar?; d) e como se pode perceber o que foi efetivamente integrado, na prática de sala de aula, pelos professores em formação?2

Essas interrogações declinam-se em três principais partes: 1) apresentação de importantes considerações sobre a formação de professores para o ensino da língua, em geral, e para o ensino da produção escrita, em particular, destacando-se algumas das mais relevantes questões para as quais se foi procurando dar resposta; 2) apresentação de três processos de formação contínua para o ensino da produção de textos escritos; e 3) apresentação 2 Consultar, por exemplo, o número 13 da revista Dyptique (DOLZ;

PLANE, 2008).

de algumas das principais ilações que podem ser extraídas de todo esse processo e que nos permitam equacionar possíveis modelos de formação de pro-fessores para o ensino dessa competência, a fim de que os anos que aí chegam sejam, decididamente, os anos do ensino da produção escrita.

1. A transposição dos saberes teóricos em saberes práticos

A importância decisiva atribuída por investiga-ções científicas aos processos de formação docente, em razão da estreita ligação entre a preparação dos professores e a qualidade dos programas educativos e o próprio desempenho dos alunos, tem contri-buído para incrementar o interesse pelo estudo da influência dos saberes (re)construídos na e pela formação de professores, nas suas próprias práticas, in loco. Afinal, da existência de novos programas não decorre, necessariamente, tal mudança. Como sabemos, essa mesma passagem de conhecimentos não corresponde a uma transposição linear dos saberes implicados, sendo perturbada por diversos filtros.3 Em outras palavras, acontece que, na cadeia da transposição didática, há a registar, designada-mente, os efeitos provocados pela cultura escolar, pela cultura profissional dos professores e pela própria forma como são adotados os manuais e os restantes materiais didáticos (CASTRO; SOUSA, 1998). Todos estes elementos são responsáveis pela

3 Leia-se, a título exemplificativo, o artigo de Fabienne Rondelli (2010) La cohérence textuelle: pratiques des enseignants et thé-ories de référence, que se interessa pelos comentários feitos por professores sobre a coerência de textos narrativos escritos pelos respectivos alunos. A partir de exemplos concretos, o artigo mostra que os professores avaliam os textos numa tensão entre o apelo para determinadas noções linguísticas muito didatizadas e a sua relação pessoal com o texto.

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inscrição de professores e de alunos em determi-nadas disposições sociais e didáticas indutoras de representações e de preocupações específicas, no que às suas conceções e práticas em sala de aula diz respeito. Torna-se necessária, assim, uma con-vergência de outras tantas condições, tais como, em particular, a de fazer com que os docentes sintam-se como uma parte importante desse mesmo processo, sentindo, ainda, alguma segurança em todo ele. Daí que outras questões, ainda mais específicas, devam também ser equacionadas: i) de que forma ocorre a transposição dos saberes adquiridos na formação para a prática (quais os saberes recuperados, trans-formados e/ou eliminados, quando da atuação do-cente, em sala de aula)?; ii) de que forma(s) pode a formação produzir verdadeiros efeitos nas práticas docentes, de modo a ultrapassar-se o mero nível de integração, in loco, de uma ou de outra atividade fortuita e considerada como mais interessante?

Ora, a complexidade associada a essa articula-ção entre saberes teóricos e práticos é responsável pela definição de múltiplos modelos de formação, numa procura incessante do modelo: de um mo-delo de formação que atualize, de forma efetiva, as propostas consignadas nos documentos pro-gramáticos oficiais, no que ao ensino da escrita diz respeito, e em que a sistematicidade da ação didática do professor, em sala de aula, assume um papel de indiscutível destaque. Contudo, muitos trabalhos de investigação continuam a revelar que as práticas e os manuais ainda adotam, por vezes, um paradigma de trabalho em que a escrita, con-cebida como produto uniforme e acabado, surge no fim da linha, relativamente a outras compe-tências. De qualquer forma, e apesar da lentidão deste processo, começou já a configurar-se, tanto em Portugal como no Brasil, um contexto favore-cedor da emergência de uma Didática da Escrita, designadamente, também por meio dos estudos sobre o texto e o seu funcionamento. Ora, estes estudos, ao destacarem a visão global do texto enquanto unidade, e mostrando a dependência de todos os seus elementos relativamente a esta mes-ma globalidade, revelaram, precisamente, como a estruturação textual e a organização discursiva se instituem como instrumentos de observação e como grades de análise eficazes para a própria atividade didática. E, nesta senda, a tipologia específica

proposta por Adam (1992) também se constituiu como um referencial determinante para a produção de materiais renovadores no ensino da produção escrita. Todavia, durante muito tempo, nem todas essas dimensões estavam acessíveis a muitos dos professores, formados num paradigma formalista e enformados por uma configuração didática em que dominava a doxa lógico-gramatical (BRON-CKART; BULEA; POULIOT, 2005), caracterizada por um acesso ao domínio da produção escrita por meio da conjugação da leitura de autores consagra-dos e de exercícios de gramática.

Assim, apesar do que ditam os documentos oficiais, a despeito da existência de textos sobre Didática que assumem a importância do ensino explícito da escrita e também apesar do que os estudos sobre o texto e a competência textual já revelaram sobre o funcionamento e a organização dos vários textos (COUTINHO, 2003; KOCH; ELIAS, 2006), há ainda questões que se colocam, ao procurar erigir-se um modelo de formação adequado: afinal, não só perduram as dificuldades em transpor para a prática um ensino da escrita realizado com uma orientação de produção de tex-tos, enquanto práticas sociais diversificadas e com composições específicas, como também não basta a mera integração de tais conteúdos no processo formativo. Daí que seja importante definir não só o núcleo duro de saberes a tratar como também a forma de transmissão destes mesmos saberes aos professores: adotar uma transmissão de saberes sem qualquer interferência da experiência ou uma reflexão sobre as próprias práticas?

As investigações atuais têm defendido que a ex-periência e a reflexão sobre as práticas são decisivas para a construção do conhecimento docente, como também defendem Bulea e Bronckart (2010, p. 45): “une étroite articulation entre dispositifs classiques de transmission de savoirs et dispositifs d’analyse des pratiques”, numa perspectiva de conjugação eficaz entre o praxiológico e o epistémico. E, na verdade, importa estabelecer um equilíbrio entre o domínio teórico das noções e regras mobilizadas pelos programas e a análise de práticas a fim de desenvolver a própria capacidade de encontrar objetos teóricos nos objetos de ensino tal como circulam em sala de aula a capacidade de identi-ficar obstáculos na realização de um determinado

Modelos de formação para o ensino da escrita em Portugal e no Brasil

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projecto de ensino – resistência dos alunos, fatores socioculturais, condições de funcionamento da aula – e a capacidade de identificar as técnicas e os “truques” que os próprios professores também ativam, a fim de ultrapassar as dificuldades identifi-cadas (BULEA; BRONCKART, 2010). O que está aqui em causa, portanto, é a não adoção de uma concepção instrumental, aplicacionista e seguidista da prática, que deve, antes, ser percepcionada como aquilo que efetivamente é: experiência. A respei-to, precisamente, da formação para a excelência profissional, Maria do Céu Roldão (2003) advoga, numa ótica de reforço da exigência e da qualidade científicas da formação, a ideia do professor como um verdadeiro intelectual, profissional da cultura e do conhecimento. Por outro lado, também se colocam aqui a questão dos próprios materiais que reduzem a informação e a da própria simplificação excessiva dos campos de saberes intelectuais. Defende-se, assim, uma formação centrada, por um lado, num programa de saberes transmitidos por meio de dispositivos clássicos e a própria análise de práticas, numa perspetiva de construir uma formação voltada, enfim, para a capacidade de conhecer, de pensar sobre e de agir de forma fundamentada (ALARCÃO, 2003).

Os três seguintes dispositivos de formação constituem-se como uma tentativa de resposta a todas essas interrogações e complexidades.

2. (Três) Processos de formação para o ensino da produção de textos

2.1. Programa Nacional de Ensino de Por-tuguês (PNEP)

O Programa Nacional de Ensino de Português (2006-2010) consistiu, grosso modo, num dispo-sitivo de formação de formadores para o ensino da língua escrita, tendo tido como objetivo essencial a melhoria das aprendizagens das crianças, no que diz respeito à língua portuguesa. A formação esteve centrada nas escolas e visou atender às necessidades concretas sentidas pelos respectivos docentes do 1º ciclo do Ensino Básico. Por outro lado, também se procurou quer estabelecer uma articulação estreita entre as escolas de formação e as escolas básicas, quer deixar, no terreno, uma rede articulada de for-madores capazes de dinamizar a própria formação

nas suas escolas. No que se refere à organização da formação, distinguem-se dois grandes grupos, ainda que trabalhando em permanente sinergia: o grupo A, formado pela Coordenação Regional e pelos formadores residentes; e o grupo B, consti-tuído pelo formador residente e pelos formandos do Agrupamento (entre 10 e 15 formandos). Ao grupo A couberam as sessões de aprofundamento regionais, o apoio à formação no terreno – apoio individualizado e/ou dado em reuniões do grupo de formadores –, as sessões plenárias regionais e o próprio acompanhamento em linha. Ao grupo B couberam o acompanhamento tutorial, as ofi-cinas temáticas e as sessões plenárias regionais. Em relação ao acompanhamento tutorial, visou apoiar-se, diretamente, o docente na planificação, na realização e na reflexão/avaliação de sequências de ensino construídas para o ensino da língua. As oficinas temáticas, por sua vez, e com periodicidade quinzenal, visaram à exploração e a elaboração de materiais didácticos e de avaliação, com base no próprio debate sobre temáticas distintas, que foram consideradas como essenciais: o desenvolvimento da linguagem oral, o ensino da leitura, o ensino da expressão escrita e a utilização do computador na aprendizagem da língua. O processo de formação para o ensino da escrita decorreu, em traços gerais, da seguinte forma: 1) a Coordenadora, de uma Instituição Pública de Ensino Superior, e os pro-fessores formadores selecionados preparam, numa oficina de trabalho, a formação mais formal sobre o ensino da produção de textos escritos; 2) segue-se o trabalho de adaptação desta mesma formação, pelos próprios formadores, em razão dos seus con-textos específicos de trabalho; 3) com o apoio da Brochura PNEP relativa à escrita como dimensão textual (BARBEIRO; PEREIRA, 2007), os pro-fessores formadores realizam, junto dos colegas, a formação prevista, discutindo-se os conhecimentos divulgados; 4) segue-se o acompanhamento, no terreno, das atividades realizadas pelos formandos com os seus alunos, a partir da reflexão em conjunto sobre a temática específica e também com base na já referida Brochura; 5) as atividades efetivamente realizadas, em sala de aula, são posteriormente reelaboradas no grupo de formadores, em conjunto com a Coordenadora, com base, novamente, nos respectivos enquadramentos teóricos; 6) finalmen-

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te, procede-se à publicação, também em formato de brochura, de algumas dessas mesmas atividades reelaboradas. Naturalmente, todo este trabalho só foi possível graças, designadamente: à realização de sessões presenciais conjuntas, com apresentação e discussão sobre as temáticas selecionadas e com melhoramento e divulgação de materiais pedagó-gicos e de avaliação; à própria experimentação de materiais pedagógicos e de avaliação nas escolas; e, igualmente, ao trabalho autônomo de reflexão e de aprofundamento. E, na realidade, a utilização e a concessão de materiais adequados foram, de fato, deveras decisivas para o reforço do desenvol-vimento desses mesmos conhecimentos teóricos, por parte dos formandos (SIM-SIM, 2012).

2.2. Protextos - Ensino da Produção de Textos no Ensino Básico

O projeto de investigação Protextos – Ensino da Produção de Textos no Ensino Básico (2010-2013) – visa, em traços gerais, ultrapassar uma situação em que a informação disponível – nomeadamente, a relativa a modelos processuais de escrita. Sem o apoio de uma modelização didática consistente e de instrumentos específicos, ainda não produziu os efeitos desejáveis, em nível do currículo e das práticas de ensino da escrita. Partindo-se da premissa de que é necessário reforçar a atenção a uma fase crucial da escrita, a da aprendizagem da

textualização – visto que as respectivas operações são indissociáveis da natureza específica do (gênero de) texto a produzir, da relação que o aluno vai estabelecendo com a escrita e do saber específico sobre esse tipo de escrita, nela incluídas as próprias estruturas gramaticais a mobilizar –, foram conce-bidas oficinas de formação sobre diferentes gêneros textuais escritos e para docentes não só a lecionar em diferentes ciclos e anos de escolaridade (nos 1º, 2º e 3º ciclos do Ensino Básico e, preferencial-mente, nos 4º, 6º e 9º anos, por corresponderem a momentos de terminus de um ciclo e de passagem para o seguinte), como também a lecionar dife-rentes disciplinas curriculares (língua portuguesa, matemática, ciências da natureza).

No que se refere, especificamente, ao modelo de formação implementado, estas formações cer-tificadas para o ensino da escrita, asseguradas por investigadores/formadores do próprio projeto, além de serem pautadas pela própria relevância assumida pelos gêneros textuais, encontram-se, inclusive, em homologia com a própria Sequência de Ensino (PEREIRA; CARDOSO, 2013), fortemente deve-dora da Sequência Didática do Grupo de Genebra (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2001), em termos da forma como se encontra estruturada. O esquema seguinte procura traduzir e sintetizar a estrutura global do desenvolvimento de uma se-quência de ensino.

Quadro 1 – Sequência de ensino

Fonte: Elaborada pelos autores deste artigo.

Modelos de formação para o ensino da escrita em Portugal e no Brasil

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Assim, em todas as oficinas de formação, hou-ve quatro grandes fases de trabalho, a par de uma permanente atualização dos formandos também em nível teórico. Numa primeira fase, foram escolhidos textos mentores, que foram objeto de uma impor-tante desconstrução, de modo a perceber-se o seu processo compositivo. Fase esta precedida por uma definição do “caderno de encargos do gênero”, em que há uma identificação e caracterização das suas principais dimensões, para uma posterior definição das dimensões a ensinar (em determinado contexto e em dado ano de escolaridade). Por outro lado, foram igualmente selecionados textos produzidos pelos próprios alunos, e submetidos a uma posterior análise, de modo a proceder-se a uma identificação de algumas das principais dificuldades reveladas e de algumas das mais recorrentes capacidades que os alunos já possuem. Passou-se, em seguida, à construção de módulos de ensino, com o apoio dos formadores, e construídos numa perspetiva de progressão entre ciclos, que passaram a constituir--se como sequências de ensino a aplicar em sala de aula, e sobre o gênero textual trabalhado. Depois da sua aplicação in loco, foram estas mesmas sequên-cias de ensino objeto de análise e de reflexão por parte de investigadores, formadores e professores. Aduza-se, ainda, que, também em todas as forma-ções, foram recolhidas produções textuais iniciais – quando do começo da formação – e produções textuais finais, a fim de aferir a evolução registrada nos textos dos discentes e apresentando, assim, algumas recomendações atinentes ao ensino e à avaliação da produção textual escrita.

2.3. Gêneros de Texto em Ensino - Por

uma formação continuada cooperativa para o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual escrita no Ensino Fundamental

O projeto “Por uma formação continuada coope-rativa para o desenvolvimento do processo educa-tivo de leitura e produção textual escrita no Ensino Fundamental” – também conhecido por “Gêneros de Texto em Ensino” (CAPES/Inep-Edital 38/2010) (2011-2014) – pretende articular conhecimentos acadêmicos, profissionais e experienciais sobre o ensino da língua portuguesa, com vista ao desenvol-vimento das competências de leitura e de produção

textual dos alunos desse nível de ensino. Atuando em nível municipal, numa parceria entre a Secretaria Municipal de Educação de Novo Hamburgo (Rio Grande do Sul, Brasil) e o Programa de Pós-Gra-duação em Linguística Aplicada da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), essa proposta formativa é desenvolvida em ação, sendo os docen-tes os prin ci pais ato res, que permanentemente re-fletem sobre as suas próprias prá ti cas. E, em todo este processo, não se trata ape nas de colo car o pro-fes sor em con tato com as teo rias de lin gua gem que sustentam, teoricamente, este modelo de formação (assim como com os próprios docu men tos ofi ci ais do ensino brasileiro, como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais e das pró prias avaliações de larga escala a que são submetidos os alunos do en-sino fundamental, como a Prova Brasil).4 Trata-se, igualmente, de explorar essas mesmas teorias, de modo a ajudar os docentes a mini mi zar as pos sí veis frus tra ção e impo tên cia para lidar com teo rias que des co nhe cem (KLEI MAN, 2000).

Em relação ao processo propriamente forma-tivo, procede-se, por exemplo, através de blended learning, à lei tura e à dis cus são das referidas teo-rias, que os docentes intentam aplicar nos materiais didáticos desenvolvidos para as suas práticas em sala de aula. E da articulação dos diferentes saberes trazidos à discussão coletiva e da própria ressigni-ficação dos mesmos pelos diferentes atores desta formação, emergiu, de uma construção coletiva, a proposta de trabalho intitulada “projeto didático de gênero” (GUIMARÃES; KERSCH, 2012b). Nesta proposta, que parte da conhecida noção de sequência didática (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004), influências advindas dos estudos do letramento – como os próprios projetos de letramento (TINOCO, 2008) – conduziram o grupo à proposta de que práticas de leitura também fossem incorporadas às próprias práticas de produ-ção textual das sequências didáticas construídas. Mais especificamente, e na ótica dos estudos de letramento, as práticas de leitura e de escrita que compõem um projeto didático de gênero emergem (ou devem emergir) de outras práticas sociais da comunidade em que os alunos estão inseridos (par-tindo, assim, da realidade discente, mas não ficando 4 Para mais informações, consultar, por exemplo, Guimarães e Kersch

(2012a).

Luísa Álvares Pereira; Luciana Graça; Anderson Carnin

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circunscrita a ela). O projeto didático de gênero, a funcionar, assim, como um termo “guarda-chuva”, compreende então não só um trabalho didático de ensino da língua materna que quer que o aluno domine o próprio género trabalhado, como também pretende, à semelhança dos projetos de letramen-to, a construção de uma aprendizagem em que os alunos consigam dar conta de uma prática social relacionada com o gênero trabalhado no projeto didático de gênero em questão.

Para a formação de mais de 50 professores de língua portuguesa, entre os anos de 2011 e 2013, foi instituída uma dinâmica semestral de trabalho, tanto com encontros presenciais, mensais, para a discussão de conceitos e ideias, como também com encontros semanais, através da plataforma virtual Moodle. A cada semestre, os docentes participaram num módulo de formação continuada que versa-va sobre um dos domínios de agrupamentos de gêneros propostos por Schneuwly e Dolz (2004): em 2011, foi trabalhado o domínio do instruir; em 2012, os domínios do argumentar e do narrar; em 2013, os domínios do expor e do relatar. Em cada semestre, foram também trabalhados conceitos essenciais para a elaboração de projetos didáticos de gênero, tais como: i) gêneros de texto; ii) letra-mento; iii) modelização e transposição didática; iv) análise linguística; v) leitura e produção textual; vi) avaliação. Ao longo das 60 horas de formação por semestre, os professores também tinham de desenvolver um específico projeto didático de gê-nero relacionado com o domínio de agrupamento trabalhado naquele período e a apresentar, no final desse mesmo módulo, ao coletivo, para discussão da proposta e dos seus resultados (quando tinha já ocorrido a aplicação em sala de aula).

Como resultados (preliminares) desta forma-ção, além do vasto conjunto de materiais didáticos construídos pelos professores para o seu próprio contexto de atuação, a partir de conceitos e de me-todologias de ensino que relacionam as pesquisas acadêmicas desenvolvidas na área da linguística aplicada com o trabalho docente da rede pública de ensino de Novo Hamburgo, a verdade é que neste modelo de formação continuada e cooperativa o professor é um sujeito ativo, implicado na (co)cons-trução da sua formação e no desenvolvimento da sua profissionalidade. Foi por meio da cooperação,

na interação com os alunos e pares, que os professo-res procuraram encontrar respostas e soluções para os desafios de seu trabalho. E, ao cooperarem, e a operarem em conjunto, os resultados alcançados certamente superaram os limites da comum for-mação continuada para o ensino da escrita, já que consideramos que o agir docente é em grande parte responsável pela qualidade do ensino.

3. Para uma formação docente de qualidade

Apesar da complexidade associada à formação de profissionais de ensino, procuraremos agora agregar algumas dimensões responsáveis pelos resultados positivos dos projetos anteriormente descritos (GAGNON; DOLZ, 2009). Antes de mais nada, a formação de professores não se compagina com intervenções pontuais e nem deve surgir de forma descontextualizada, em relação aos respectivos contextos de trabalho. Por outro lado, esta formação deve também integrar professores e investigadores pertencentes a diferentes instituições e com diferentes saberes.5 Por outro lado, uma formação que compreenda momentos de aquisição de saberes teóricos e momentos de reflexão sobre as próprias experiências levadas a cabo em sala de aula. Além disso, a construção de um modelo formativo centrado na ação didática propriamente dita, com identificação das principais dificuldades de ensino e de aprendizagem, a fim de serem cons-truídos módulos de formação sobre as mesmas, é também outra exigência desse modelo de formação. Tal como a investigação tem ainda evidenciado (GRAÇA, 2010), no centro dos processos de forma-ção deve estar, igualmente, a própria preocupação com a concepção e com a organização de disposi-tivos de ensino da escrita rigorosos e fortemente

5 A este propósito, conclui Inês Sim-Sim (2012, p. 57): “O que o Programa Nacional de Ensino do Português nos ensinou é que a eficácia da formação depende da coerência e consistência interna dessa formação, que deve ser intensiva, prolongando-se num espaço temporal determinado, centrada em conteúdos curriculares bem defi-nidos, ter lugar na escola, especificamente na sala de aula, e ocorrer num ambiente de cooperação entre pares […]. A adesão voluntária dos docentes, o envolvimento dos órgãos de gestão (pedagógica e administrativa) do agrupamento de escolas, a estreita ligação com especialistas, designadamente de instituições de ensino superior, são factores determinantes no sucesso da aprendizagem profissional de docentes em exercício.”

Modelos de formação para o ensino da escrita em Portugal e no Brasil

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sustentados, em nível teórico, e prevendo uma atuação em diferentes frentes, tais como: construir instrumentos facilitadores do processo escritural, elaborar critérios de avaliação pertinentes, definir instruções de escrita adequadas, analisar procedi-mentos de escrita de cada aluno – no sentido de lhe proporcionar uma relação positiva com o saber escrever –, criar instrumentos de registo das aulas e analisar as interações didáticas. Os processos de formação devem, ainda, incluir professores de dife-rentes níveis de ensino, permitindo uma análise dos textos de níveis inferior e superior, favorecendo um olhar analítico mais fino e rigoroso e contribuindo para determinar a própria progressão dos conteú-dos. Os modelos formativos apresentados também compreendem sessões de trabalho de natureza oficinal, em que é solicitada aos formandos a rees-crita reflexiva de textos autênticos de alunos, com vista a uma sua melhoria, colocando-se depois em comum as principais estratégias mobilizadas. Além disso, uma intervenção pedagógica e didática para a escrita, levada a cabo através de uma reflexão sobre dispositivos que recubram o processo de escrita nas suas diferentes fases, é também susceptível de induzir a própria consciencialização da existência de múltiplas habilidades linguísticas implicadas em vários domínios, e que se projetam, ao mesmo tempo, de uns para os outros. Uma formação para a escrita também tem de formar docentes que sejam, eles mesmos, escreventes, praticantes da produção de todo o tipo de textos (PEREIRA; CARDOSO, 2010). Afinal, é deveras importante desenvolver o conhecimento profissional dos professores por meio de tarefas de escrita, como se sabe (VANHULLE, 2009). Se o professor não tomar também ele contato

com os problemas que a escrita coloca, como poderá ser capaz de explicitar aos alunos o processo de es-crita? O docente tem, assim, de se tornar escrevente reflexivo e confrontar a sua escrita com a de outros. Nas palavras de Nonnon (1998, p. 155), quando se refere aos diferentes textos que os professores de francês têm de produzir nas provas de concurso para a docência, “a construction et la validation d’une compétence des enseignants en matière de textes s’opère, donc, à travers des expériences textuelles, plus au moins orientées autour de trois pôles: epis-témique, identitaire, pragmatique, au sens de régula-tion de l’action professionnelle”, tais como sínteses de textos de didática, descrições analíticas de textos de alunos e descrições comparativas de documentos também didáticos. Esta formação deveria potenciar, igualmente, o próprio ensino da produção de textos em diferentes disciplinas, apostando-se num ensino em que as abordagens textuais e as questões dos gêneros de texto sejam também elas essenciais no ensino e na formação:

Pensando-se ainda nos efeitos dos princípios comuns às abordagens discursivas para o ensino, pode-se dizer que, dessa perspectiva, o ato de ensinar, no âmbito da disciplina Língua Portuguesa, implica contribuir para que o aluno utilize a língua(gem) de forma eficaz, em função dos gestos de leitura que realiza ao atribuir propósitos às acções linguageiras de seu enunciatário e em função das estratégias atra-vés das quais materializa seus propósitos, em ações também linguageiras. Isso significa dizer que ensinar e aprender uma língua é, desse ponto de vista, uma das atividades através das quais o aluno se sociabi-liza, construindo e reconstruindo sua competência para agir nas interações verbais das quais participa. (MATÊNCIO, 2002, p. 2, grifo do autor).

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Recebido em: 11.12.2014

Aprovado em: 23.02.2014

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Rosimar Serena Siqueira Esquinsani; Valdocir Antonio Esquinsani

APRENDIZAGEM PROFISSIONAl E POlÍTICAS PARA FORMAÇÃO

CONTINUADA DE PROFESSORES: UM ESTUDO DE CASO1

Rosimar Serena Siqueira Esquinsani∗

Valdocir Antonio Esquinsani ∗∗

RESUMO

O texto propõe uma discussão sobre a aprendizagem profissional como base epistemológica da formação continuada de professores. Para tanto, objetiva identificar as principais repercussões dos movimentos e ações para a formação de professores em uma rede pública municipal de ensino, partindo da problematização dos indícios do ponto de vista dos sujeitos do processo: os professores, pontuando também perspectivas para a formação, ancoradas em uma ideia de cognição e aprendizagem do adulto/profissional que se coloca em condição de aprendiz. Como metodologia, lança mão de uma pesquisa empírica de base documental, com dados coletados em uma rede municipal de ensino de porte médio, no interior do Rio Grande do Sul, ao longo de quinze anos (1997-2012). Os dados empíricos coletados permitem visualizar a frequência dos professores aos eventos de formação continuada, bem como a avaliação que realizaram acerca dos mesmos. Enquanto pauta de discussão, foram dimensionados indicativos sobre alguns significados que o professor atribui a sua formação continuada, enquanto parte inerente de suas atividades profissionais. Como conclusão defende-se a formação continuada como qualificação profissional, como parte da condição de ser professor e das atribuições distintivas do processo de aprendizagem e das práticas pedagógicas que o esteiam.

Palavras-chave: Formação de professores. Aprendizagem profissional. Redes e sistemas públicos de ensino.

ABSTRACT

APPRENTICEShIP AND POLICIES FOR CONTINUOUS TRAINING OF TEAChERS: A CASE STUDY

This paper proposes a discussion on apprenticeship as epistemological basis of the continuous training of teachers. For that, it aims to identify the main effect on movements and actions for teacher training from a city´s municipal education network, based on questioning the evidence of the point of view of the subjects of the process:

1 Agradecemos ao CNPq, a FAPERGS e ao Edital OBEDUC/2010 – CAPES/MEC/INEP, pelo financiamento que tornou esta pesquisa possível.∗ Doutora em Educação pelo programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora Titular I e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF). Pesqui-sadora CNPq 2. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre gestão e indicadores de qualidade na educação básica (GE-Quali/UPF) e pesquisadora do Grupo História, Política e Gestão da Escola Básica (UNISINOS). Endereço para correspondência: Rua Riachuelo, 472, São Cristóvão - CEP: 99062-070 - Passo Fundo/RS-RS. [email protected]∗∗ Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor e pesquisador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo (UPF). Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre gestão e indicadores de qualidade na educação básica (GE-Quali/UPF). Endereço para correspondência: Rua Riachuelo, 472, São Cristóvão - CEP: 99062-070 - Passo Fundo/RS-RS. [email protected]

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Aprendizagem profissional e políticas para formação continuada de professores: um estudo de caso

the teachers, punctuating also prospects for training, according to an idea of cognition and adult/professional learning that is an apprentice. The methodology follows an empirical research of documentary database, with data collected in a municipal school of medium size, in the countryside of Rio Grande do Sul state, over fifteen years (1997-2012). The empirical data collected allow us to visualize the frequency of teachers in the continuous education, as well as their evaluation of the courses. As part of the discussion, we bring some indicators of how teachers understand their continuous education as an inherent part of their professional activities. In conclusion, the data shows the continuous education as qualification and as part of the condition of being a teacher as well as part of the distinguishing features of the process of learning and of the pedagogical practices involved in it.

Keywords: Teacher training. Apprenticeship. Public school networks and systems.

Introdução

Ao pontuar elementos que contribuam em sínteses e debates acerca da formação de profes-sores, somos condicionados a fazer pelo menos duas observações básicas: se nos dedicamos a problematizar a formação inicial e/ou a formação continuada de professores e se, a partir desta defi-nição, temos uma conduta epistêmica retrospectiva ou prospectiva.

Considerando os elementos expostos, o texto em tela baliza-se pelos seguintes pontos de corte: trata-se da súmula de resultados aferidos em uma pesquisa com elementos empíricos, de natureza do-cumental, tendo como foco a formação continuada de professores. De igual maneira, trata-se de um texto que pontua elementos retrospectivos – em um recorte temporal longitudinal (15 anos) – e, com base nos resultados desse estudo retrospectivo, discute os possíveis significados e repercussões dos eventos de formação continuada organizados para professores atuantes.

Deste modo, o texto traça como objetivo identi-ficar as principais repercussões dos movimentos e ações para a formação de professores em uma rede pública municipal de ensino, partindo da problema-tização do ponto de vista dos sujeitos do processo: os professores, e, em outro movimento, pontuando perspectivas para a formação, ancoradas em uma ideia de cognição e aprendizagem do adulto/pro-fissional que se coloca em condição de aprendiz.

No caso em discussão, interessa-nos a forma-ção continuada, concebida como aquela que tem lugar em momento concomitante ou posterior à

formação inicial, sendo entendida como um “[...] processo dinâmico por meio do qual, ao longo do tempo, o profissional vai adequando sua formação à exigência de sua atividade profissional” (ALAR-CÃO, 1998, p. 100), na direção de “promover o crescimento dos profissionais e das instituições, realizando-se tanto dentro como fora das mesmas instituições” (DAY, 2001, p. 203).

A probabilidade da pesquisa se constituir em uma contribuição aos estudos sobre formação continuada de professores em redes e sistemas públicos de ensino reside no fato dos dados empíri-cos estarem ancorados em uma realidade concreta, histórica e situada, com sujeitos que se colocam em condição de formação e manifestam, em espaços e documentos públicos forjados para tal manifesta-ção, em relação às suas percepções pessoais sobre o tema. Assim, o texto problematiza conceitos segundo o ponto de vista dos sujeitos envolvidos em ações políticas concretas, uma vez que

[...] cada dispositivo do olhar e da observação modi-fica o objeto de estudo [...] por isso, nunca estudamos um objeto neutro, mas sempre um objeto implicado, caracterizado pela teoria e pelo dispositivo que per-mite vê-lo, observá-lo e conhecê-lo. (GAUTHIER, 1999, p. 24).

Assim, o ponto de observação em relação ao objeto de estudo é o ponto de vista dos sujeitos históricos que atuam – particularmente – em uma rede pública de ensino, sujeitos que sob determi-nadas condições históricas produziram as sínteses expressas nos documentos analisados. Outros sujeitos, em outras condições, produziriam outras

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Rosimar Serena Siqueira Esquinsani; Valdocir Antonio Esquinsani

sínteses sobre o mesmo objeto. Esta é a perspectiva singular da pesquisa com educação.

Esclarecendo a metodologia adotada para a pesquisa em tela

O texto discute dados de uma pesquisa conso-lidada sobre formação continuada de professores inferindo, a partir de tais dados, aspectos da ciên-cia cognitiva como elemento com potencial para dar sentido e autenticidade às ações de formação continuada.

Considerando que o escopo dos dados empíricos reside sobre a efetividade de programas de forma-ção continuada destinados a professores, o baliza-mento temporal para a discussão dos achados da pesquisa foi estabelecido de 1997 a 2012, em razão dos dispositivos legais contidos na LDB 9.394/96, a saber: Artigo 67, quando indica que “os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profis-sionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público: [...] V - período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho”; e Artigo 87, § 3º, com redação dada pela Lei nº 11.330, de 2006, quando infere: “O Distrito Federal, cada Estado e Município, e, supletivamente, a União, devem: [...] III - realizar programas de capacitação para todos os professo-res em exercício, utilizando também, para isto, os recursos da educação a distância” (BRASIL, 1996). Sopesando que a LDB foi sancionada no final de 1996 e, por conseguinte, sua prática efetiva inicia em 1997, é lícito afirmar que a partir daquele ano redes e sistemas de ensino têm a obrigação legal de garantir formação continuada aos profissionais do magistério a elas vinculados.

Assim, a pesquisa empírica que sustenta o texto apresentado parte do exame quali-quantitativo de um grupo de documentos produzidos em relação às 36 (trinta e seis) escolas de ensino fundamental componentes de uma rede pública de ensino, per-tencente a um município de porte médio, localizado no interior do Rio Grande do Sul.

Esses documentos são identificados enquanto: a) relatórios do final do ano letivo, produzidos pelas escolas de ensino fundamental e entregues anualmente à mantenedora (Secretaria Munici-

pal de Educação), contendo informações como: percentuais de reprovação e evasão, projetos desenvolvidos pela escola, aspectos da condição de trabalho docente e, em sua etapa final, uma avaliação de todos os programas e ações desen-volvidos durante o ano, em especial os eventos de formação continuada para professores; b) fichas com o registro das visitas que a equipe da Secre-taria Municipal de Educação faz periodicamente às escolas da rede, contendo relatos do trabalho cotidiano das escolas e ainda a opinião da equipe gestora das referidas escolas no que concerne ao andamento administrativo e pedagógico da rede, mormente no que se refere à formação continuada fornecida pela Secretaria Municipal de Educação e; c) livros oficiais de registros das presenças nos cursos de formação continuada propostos aos professores.

De tais documentos foram retiradas, basica-mente, as seguintes informações: percepções e avaliações sobre as ações de formação continuada encetadas pela Secretaria Municipal de Educação e destinadas aos professores da rede municipal, bem como a frequência dos professores da rede aos eventos de formação oficiais (via certificação).

Com base nessas informações, foram agrupados dois tipos de dados: um acompanhamento longi-tudinal e anual da frequência dos professores aos eventos de formação continuada organizados pela mantenedora (de 1997 a 2012), contrapostos com o número de professores atuantes na rede em cada ano; e as avaliações que os professores faziam a respeito dessa mesma formação, expressas nos relatórios finais e nas fichas de registros de visitas, já referidas.

Por fim, partindo do cotejo entre esses dois tipos de dados, foram elaboradas sínteses sobre os movi-mentos de formação continuada e sua repercussão junto ao “público-alvo”, ou seja, os professores aos quais os cursos e eventos destinavam-se.

Elementos garimpados dos dados empíricos...

Ao iniciar a pesquisa, balizamo-nos por duas questões: sendo compulsórios os cursos ofertados pela mantenedora, uma vez que envolvem o prin-cípio da formação em serviço ou no horário de

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Aprendizagem profissional e políticas para formação continuada de professores: um estudo de caso

serviço, qual a frequência dos professores da rede (elementos quantitativos) e como os professores avaliavam a formação que estavam sendo partícipes

(elementos qualitativos).Sobre a primeira questão, chegamos ao seguinte

Gráfico 1.

Percebe-se, no Gráfico 1, que há uma diferença entre o número total de professores vinculados à rede de ensino em tela e, destes, o número de pro-fessores que receberam certificação nos cursos de formação ofertados pela mantenedora, entre 1997 e 2012. Em relação à metodologia de produção do gráfico, cumpre fazer duas observações: como se trata de uma rede de porte médio, com um número significativo de professores, foram considerados apenas os eventos de formação proporcionados para a totalidade da rede, de acesso compulsório a todos os professores. De igual forma, não fo-ram consideradas as funções docentes, mas sim o total nominal de professores. Os dados foram coletados tendo como base o livro de registros dos certificados emitidos pela Secretaria Municipal de Educação, contabilizando apenas os professores que participaram de 75% ou mais dos encontros, fazendo jus a uma certificação oficial.

Entretanto, e com os devidos esclarecimentos metodológicos, é relevante a grande dicotomia

entre o número total de professores atuantes na rede em cada um dos quinze anos que empresta-ram dados para a produção do gráfico e o número de professores que efetivamente participaram da formação. Há registros nos relatórios examinados indicando que os professores eram dispensados de suas atividades laborais para realizarem os cursos e eventos de formação. Assim, parece que a dicoto-mia entre o número total de professores da rede e o percentual de professores que efetivamente partici-param dos eventos de formação revela, em alguma medida, a recepção dos professores aos eventos de formação, a partir da ausência ou negação do evento como experiência formativa.

Podemos procurar explicações de forma para o fenômeno, como atestados médicos, porém estes são uma porcentagem pequena. Por exemplo, ao longo de todo 2012 houve um total de 45 atestados de longa duração (90 dias ou mais) (SECRETARIA MUNICIPAL DE [...], 2012), que seriam impe-ditivos para o comparecimento aos eventos de

Fonte: Elaborado pelos autores desta pesquisa.

Gráfico 1 – Total de docentes em atividade na rede X total de docentes que participaram efeti-vamente dos eventos de formação continuada por ano em destaque

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Rosimar Serena Siqueira Esquinsani; Valdocir Antonio Esquinsani

1999 Muita ênfase teórica e pouca práticaTemas relevantes e de interesse dos professoresEspaço de partilha entre os pares

2000 Muita ênfase teórica e pouca práticaEspaço de partilha entre os paresParticipação coletiva e elaboração de currículo próprio para a rede

2001 Temas, abordagens ou palestrantes repetidosEspaço de partilha entre os paresFalta de foco ou linha condutora nos eventos

2002 Estratégias de formação inadequadas;Temas pouco relevantes e desinteressantes ou genéricosFalta de foco ou linha condutora nos eventos

2003 Palestrantes e eventos pouco dinâmicosTemas pouco relevantes e desinteressantes ou genéricosEstratégias de formação inadequadas

2004 Estratégias de formação inadequadasPalestrantes e eventos pouco dinâmicosTemas pouco relevantes e desinteressantes ou genéricos

2005 Temas, abordagens ou palestrantes repetidosMetodologia ou enfoque interessante/inovadorPouco interesse na discussão geral sobre Plano Municipal de Ensino

2006 Temas relevantes e de interesse dos professoresParticipação coletiva e elaboração de currículo próprio para a rede

Ano Categorias relevantes

formação. Também podemos procurar respostas na falta de tempo disponível para o professor partici-par da formação, mas, considerando que a mesma ocorria no horário de trabalho do professor, com dispensa de atividades laborais, esta situação não se aplica. Além do que, 486 professores (SECRE-TARIA MUNICIPAL DE [...], 2012) mantiveram, exemplarmente, no ano de 2012, apenas vínculo com a prefeitura.

Se as explicações de forma não elucidam plena-mente o descompasso entre uma formação compul-sória com base legal e os reveladores percentuais de ausências por parte dos professores, partimos para nossa segunda questão de trabalho, ou como o professor avalia os eventos de formação, projetan-do neles sentidos e significados que nos auxiliem no entendimento não apenas da ausência palpável

deles nos eventos de formação, como também das principais repercussões desta formação obrigatória nos professores.

Para tanto, foram recolhidos todos os excertos que avaliavam ou pronunciavam-se sobre os even-tos de formação continuada destinados aos profes-sores da rede. Cada excerto foi tratado como uma informação potencial. Depois os excertos foram classificados por ano de sua produção e registro (ao longo dos quinze anos em relevo). Em cada ano, os excertos foram classificados e categorizados, produzindo uma súmula com as principais avalia-ções registradas. Para fins de sistematização, foram destacadas as três categorias com maior número de citações por ano, permitindo uma leitura dos regis-tros das percepções e avaliações dos professores em relação à formação continuada de professores.

Quadro 1 – Principais tópicos apontados nas avaliações dos professores

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Aprendizagem profissional e políticas para formação continuada de professores: um estudo de caso

É interessante observar algumas contradições entre as principais categorias de qualificação dos eventos de formação e o número de professores que frequentaram os eventos no mesmo ano, assim como também estão presentes algumas contradi-ções entre as principais avaliações registradas no mesmo ano. Seguramente este fenômeno se deve ao tamanho quantitativo da rede em destaque. Todavia, consideramos que não são contradições tão expressivas para um estudo de caso detalhado.

Das principais avaliações e percepções regis-tradas e categorizadas, subjazem pelo menos duas observações. Primeiro: está patente que o professor em processo de formação deseja que a mesma tenha uma vinculação direta com sua prática pedagógica. Todavia, não há como definir se este desejo por “prática” está associado ao interesse em discutir, relacionalmente, suas vivências cotidianas em uma situação de mediação de um eventual assessor com mais conhecimento/experiência, ou se tal desejo está associado a uma redução do trabalho intelec-tual do professor, em uma tentativa de busca por “receitas” para a prática pedagógica cotidiana.

Como uma segunda observação, fica patente que a maior parte das avaliações recai sobre o tripé

forma X conteúdo X meio, ou sobre as percepções dos professores no que tange a: modalidades e estratégias adotadas para os eventos de formação (forma), em contraposição com o conteúdo (tema, assunto...) tratado em tal evento, associado ao perfil do assessor, facilitador/dinamizador ou palestrante convidado.

Em razão dos dados compilados, seria lícito in-terrogar como esses eventos têm se colocado diante do sujeito em processo de formação, suscitando a questão sobre os saberes necessários para que o profissional do magistério possa avocar as atribui-ções distintivas do processo de aprendizagem e das práticas pedagógicas que o sustentam, em toda sua complexidade.

Em outras palavras, o exercício da profissão de professor transcende o mero discurso ou os acordes da formação inicial, pois o mesmo

[...] consiste em uma mobilização, pelo professor, de seu ser integral, em diferentes situações – de planejamento, de aula, de avaliação -, com o obje-tivo de criar um meio que possibilite aos alunos a aprendizagem de um conjunto de conteúdos de sua disciplina e o desenvolvimento de capacidades espe-cíficas relacionadas a esses conteúdos, orientando-se

2007 Muita ênfase teórica e pouca práticaTemas relevantes e de interesse dos professoresParticipação coletiva e elaboração de currículo próprio para a rede

2008 Muita ênfase teórica e pouca práticaPalestrantes e eventos pouco dinâmicosFalta de foco ou linha condutora nos eventos

2009 Temas, abordagens ou palestrantes repetidosMuita ênfase teórica e pouca práticaPalestrantes distantes da realidade da escola pública

2010 Temas, abordagens ou palestrantes repetidosPalestrantes e eventos pouco dinâmicosPoucos assuntos de ordem prática

2011 Temas, abordagens ou palestrantes repetidosEstratégias de formação inadequadasPouca interação com os pares

2012 Muita ênfase teórica e pouca práticaMetodologia ou enfoque interessante/inovadorTemas relevantes e de interesse dos professores

Fonte: Elaborado pelos autores desta pesquisa.

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Rosimar Serena Siqueira Esquinsani; Valdocir Antonio Esquinsani

por um projeto de ensino que lhe é prescrito por diferentes instâncias superiores e com a utilização de instrumentos obtidos do meio social e na intera-ção com diferentes outros que, de forma direta ou indireta, estão envolvidos na situação. (MACHADO, 2007, p. 93).

Trata-se, sem dúvida, de uma tarefa com certo grau de complexidade, em que a constante atuali-zação da expertise para o desenvolvimento desta tarefa poderá ser uma atribuição inerente à própria atividade, via formação continuada.

O significado de formação continuada: a profissionalidade em discussão

Os dados empíricos parecem acenar para certo olhar de concessão em relação à formação continu-ada: a mantenedora deve realizar programas, ações e eventos de formação (até pelos dispositivos legais referidos na primeira parte deste texto), e o profes-sor é o beneficiário dessa formação. As pistas em-píricas depreendem exatamente esta repercussão, o professor como beneficiário de um movimento: a formação continuada. Entretanto, se apurarmos o olhar para outros pontos (e consequentes dis-cussões), podemos interpretar a formação docente continuada como uma circunstância da profissão, como um ato de profissionalidade, pois

[...] a competência profissional para a docência não decorre apenas da formação inicial, mas relaciona--se com o entendimento do outro, dos estudantes, da matéria, da pedagogia, do desenvolvimento do currículo, das estratégias e técnicas associadas com a facilitação da aprendizagem do aluno etc. Ser pro-fessor abrange as características do ensinar, mas vão além delas, pois envolve a participação na instituição escolar, um local próprio de uma comunidade de profissional. (MIZUKAMI et al, 2003, p. 03).

A definição da formação continuada para profes-sores parece estar associada à ideia de continuidade, do professor que ressignifica sua prática enquanto a desenvolve e a projeta para um futuro próximo.

A ideia de processo – e, portanto, de continuum – obriga a considerar a necessidade de estabelecimento de um fio condutor que vá produzindo os sentidos e explicitando os significados ao longo de toda a vida do professor, garantindo, ao mesmo tempo, os nexos

entre a formação inicial, a continuada e as experiên-cias vividas. (MIZUKAMI et al, 2003, p. 16).

Entretanto, como estabelecer este contínuo e este fio condutor? As mesmas variáveis que concor-rem por estabelecer a imperiosa necessidade de for-mação docente continuada são as que determinam o grau de dificuldade no estabelecimento de eixos orgânicos para a formação: a) os diferentes níveis e enfoques da formação inicial dos docentes; b) a heterogeneidade das escolas e suas clientelas (com demandas igualmente heterogêneas), corroborando com a ideia de que

Há escolas em zonas rurais, em vilas, em zonas su-burbanas e em zonas urbanas. Nestas há escolas no centro e em bairros, em zonas residenciais da classe média e em zonas degradadas. Como é evidente, esta heterogeneidade de contextos reflete-se na composição discente da escola e, indiretamente, na composição docente. (FORMOSINHO, 2009, p. 43).

Se é preciso a formação continuada para a atu-ação diferenciada e propositiva diante de tantas e tão complexas demandas, também é necessário que esta seja atravessada pela aprendizagem. Contudo, o que um profissional adulto – já formado – pode aprender para a qualificação de sua atividade labo-ral? A resposta aponta para um conceito de apren-dizagem diferenciado, no qual a “aprendizagem surge como processo de produção da subjetividade, como invenção de si. Além disso, a invenção de si tem como correlato, simultâneo e recíproco, a invenção do próprio mundo” (KASTRUP, 2005, p. 1277).

A aprendizagem assume um significado dife-renciado para o adulto profissional que se coloca em condição de aprendiz, uma vez que “a noção de aprendizagem inventiva inclui então a invenção de problemas e revela-se também como invenção de mundo. Trata-se de dotar a aprendizagem da potência de invenção e de novidade” (KASTRUP, 2005, p. 1277). Não se trata de aprender uma nova técnica (ainda que tal dimensão possa estar presente no processo de formação), mas de ressignificar formas de investigar o seu próprio cotidiano, contextualizando-o e datando-o na medida em que se forma em serviço.

A formação continuada caracteriza-se por ser um mecanismo de permanente construção da

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Aprendizagem profissional e políticas para formação continuada de professores: um estudo de caso

profissionalização, e, conduzida por este objetivo prático e contextual, “deve visar ao desenvolvimen-to das potencialidades profissionais de cada um, a que não é alheio o desenvolvimento de si próprio como pessoa [...] deve desenrolar-se em estreita ligação com o desempenho da prática educativa” (ALARCÃO, 1998, p. 107). Assim, a formação tem assumido equivalência com desenvolvimento profissional, em que os professores

[...] revêem, renovam e ampliam, individual ou co-lectivamente, o seu compromisso com os propósitos morais do ensino e adquirem e desenvolvem, de forma crítica [...] o conhecimento, as destrezas e a inteligência emocional, essenciais para uma reflexão, planificação e prática profissionais eficazes, em cada uma das fases das suas vidas profissionais. (DAY, 2001, p. 20-21).

Se a formação continuada “é o prolongamento da formação inicial, visando o aperfeiçoamento profissional teórico e prático no próprio contexto de trabalho e o desenvolvimento de uma cultura geral mais ampla, para além do exercício profissional” (LIBÂNEO, 2004, p. 227), ela associa-se à ideia de que o professor, como profissional histórico, vincula-se diretamente às condições concretas de produção de sua atividade laboral e, portanto, não pode ancorar sua trajetória profissional, que se es-tenderá por décadas, apenas nos conceitos e contex-tos que forneceram argumentos para sua formação inicial, sob pena de parecer anacrônico diante de uma realidade cada vez mais complexa e volátil. Não se trata apenas do desejo do profissional que se coloca em condição de aprendiz, mas também de seu compromisso com o ethos2 profissional que lhe institui e identifica.

Algumas conclusões...

Quando nos referimos à aprendizagem pro-fissional como base epistemológica da formação continuada, estamos buscando um significado prático para o dispositivo legal contido na Lei 2 O conceito de ethos é utilizado, neste texto, como um consenso

referente a valores, normas e atitudes pessoais inquestionáveis, plasmadas no cotidiano, não necessariamente conscientes e aceitas como inalteráveis. De acordo com Bourdieu (1998), o ethos con-substancia-se em um sistema de valores implícitos e interiorizados, que definem as atitudes face ao capital cultural.

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, quando estipula que: “Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de: [...] V - ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional” (BRASIL, 1996). Assim, parece que pautar a formação continuada nada tem de bondade ou concessão, mas do debate sobre a concretização de um dispositivo legal.

A epistemologia que sustenta a formação conti-nuada de professores tem mais da atividade-fim da escolarização do que possamos supor em um pri-meiro olhar: a aprendizagem do adulto/profissional que se coloca, naquele contexto, em condição de aprendiz. Defende-se, pois, a formação continua-da como qualificação profissional, como parte da condição de ser professor e das atribuições distin-tivas do processo de aprendizagem e das práticas pedagógicas que o esteiam.

Em razão dos dados retirados de um contexto concreto, sob condições históricas de produção, podemos indagar de que forma (ou com quais ca-racterísticas) os eventos de formação continuada têm se colocado diante do sujeito em processo de formação, suscitando a questão sobre os saberes necessários para que o profissional do magistério possa avocar as atribuições distintivas do processo de aprendizagem e das práticas pedagógicas que o sustentam, em toda sua complexidade.

Os professores da rede, ao negarem impli-citamente o processo de formação continuada ou a ele repercutirem de forma não propositiva, indicam uma carência em relação ao significado da formação continuada ofertada para professores e de seu possível impacto na aprendizagem do adulto/profissional com todas suas demandas e idiossincrasias.

Trata-se da ideia da formação continuada como qualificação profissional, como parte da condição inerente ao ser professor, do aprimo-ramento e (re) significação do ato pedagógico. Faz-se referência a uma condição de profissão e não a uma simples escolha de ordem do desejo ou da afeição. Por outro lado, redes e sistemas públicos de ensino são responsáveis pelo profis-sional do magistério que atua em suas escolas. Não há como deixar que a formação continuada

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Rosimar Serena Siqueira Esquinsani; Valdocir Antonio Esquinsani

aconteça de forma irresponsável ou desvinculada de discussões mais acentuadas sobre o significa-

do do momento/espaço formativo na constituição do profissional do magistério.

REFERÊNCIAS

ALARCÃO, Isabel. Formação continuada como instrumento de profissionalização docente. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org.). Caminhos da profissionalização do magistério. Campinas: Papirus, 1998. p. 99-122.

BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.394, 20 de dezembro de 1996. Lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 30 ago. 2013.

DAY, Christopher. Desenvolvimento profissional de professores – os desafios da aprendizagem permanente. Tradução Maria Assunção Flores. Porto: Porto Editora, 2001. (Coleção Currículo, Políticas e Práticas).

FORMOSINHO, João. Ser professor na escola de massa. In: ______. (Org.) Formação de professores: Aprendi-zagem profissional e ação docente. Porto: Porto Editora, 2009.

GAUTHIER, Jacques. O que é pesquisar – entre Deleuze e Guattari e o candomblé. Pensando mito, ciência, arte e culturas de resistência. Educação e Sociedade, Campinas, ano 20, n. 69, p. 13-33, dez. 1999.

KASTRUP, Virginia. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. 1273-1288, set./dez. 2005.

LIBÂNEO, José Carlos. Organização e gestão da escola: teoria e prática. Goiânia: Alternativa, 2004.

MACHADO, Anna Rachel. Por uma concepção ampliada do trabalho do professor. In: GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos; MACHADO, Anna Rachel; COUTINHO, Antônia (Org.). O interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007. p. 77-97.

MIZUKAMI, Maria das Graças Nicoletti. et.al. Escola e aprendizagem da docência: processos de investigação e formação. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2003.

PREFEITURA MUNICIPAL DE [...]. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria de Administração. Setor de Estatísticas e Levantamentos da Secretaria Municipal de Educação, 2012.

Recebido em: 30.10.2013

Aprovado em: 09.03.2014

149Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 149-163, jan./jun. 2014

Marcia Cristina Nagy; Márcia Cristina de Costa Trindade Cyrino

APRENDIZAGENS DE PROFESSORAS QUE ENSINAM

MATEMÁTICA EM UMA COMUNIDADE DE PRÁTICA 1

Marcia Cristina Nagy ∗

Márcia Cristina de Costa Trindade Cyrino ∗∗

RESUMO

Este artigo reporta-se às aprendizagens, relacionadas ao conhecimento profissional do professor, de nove professoras que ensinam matemática, ocorridas no âmbito de uma experiência de formação continuada de um grupo que se constituiu em uma comunidade de prática (Cop-MatAnosIniciais). Analisa momentos de discussão coletiva dessa CoP e procura compreender como essas professoras se engajam no empreendimento relato e análise do relato do desenvolvimento de tarefas em sala de aula na busca de repensar suas práticas de ensino de matemática. Essa CoP foi coordenada pela primeira autora deste artigo, tendo-se recorrido, essencialmente, a registros em áudio das sessões de formação e a registros escritos das professoras e da formadora para recolha dos dados. A análise dos dados revelou o que se tornou ponto de enfoque nos processos de negociação de significados da CoP, nomeadamente: o desempenho dos alunos na resolução de tarefas matemáticas; os diferentes tipos de questões feitas pelo professor durante a aplicação de tarefas de alto nível de demanda cognitiva; a gestão do tempo destinado aos alunos para a resolução de tarefas. A dinâmica assumida nessa experiência de formação continuada evidenciou elementos constituintes da prática dessa comunidade que permitiram aprendizagens das professoras.

Palavras-chave: Formação de professores que ensinam matemática. Componentes da prática de ensino de matemática. Aprendizagem. Comunidades de Prática.

ABSTRACT

MAThEMATICS TEAChERS IN A COMMUNITY OF PRACTICE AND LEARNINGThis article reflects on learning related to nine Math teachers´ professional knowledge, in the context of a continuing education experience of a Community of Practice (Cop-MatAnosIniciais). It analyses the moments of collective discussions of this CoP and it tries to understand how these teachers engage in enterprise the report action and the report analysis of the tasks development in the classroom in pursuit of rethinking their

1 Projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfei-çoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Fundação Araucária.∗ Doutora em Ensino de Ciências e Educação Matemática pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Docente da Rede Estadual de Educação do Paraná. Endereço para correspondência: Rua Bento Munhoz da Rocha Neto, 589, bloco 18A, apto 12, Castelo Branco, Cambé/PR. CEP: 86186-000. [email protected]∗∗ Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Departamento de Matemática e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Endereço para correspondência: Rua Caracas, 377, apto 2103. Londrina–PR.CEP: 86050-070. [email protected]

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Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática

teaching practices of mathematics. This CoP was coordinated by the first author, and the data were collected by audio recordings of the training sessions and written records of the teachers and the researcher. The data analysis revealed what became the focal point in the negotiation processes of the CoP, named: students’ performance in solving mathematical tasks; the different types of questions created by the teacher during the application of tasks of high level cognitive demand; the students´ time management to solve tasks. The dynamic performed in this continuing education experiment revealed components of this community of practice that allowed the teachers’ learning.

Keywords: Mathematics teachers education. Components of the practice of mathematics teaching. Learning. Communities of practice.

1. Introdução

No Brasil, como em outros países, programas de formação continuada de professores que ensi-nam matemática têm passado por (re)formulações na busca de apresentar propostas que promovam oportunidades de desenvolvimento profissional de professores que ensinam matemática. De acordo com Cyrino (2009, p. 95), “[...] os esforços nessa área visam, dentre outros aspectos, reorientar a formação desse profissional tendo em conta as de-mandas colocadas pela sociedade contemporânea e pelos sistemas educativos.”

Um número significativo de investigações tem apontado os conhecimentos necessários ao professor para ensinar matemática considerando o seu desenvolvimento profissional (SHULMAN, 1986; PONTE; CHAPMAN, 2008). No entanto, ainda é pequeno o número de investigações a respeito de quais são os contextos e como estes permitem aprendizagem do professor para ensinar (GRAVEN; LERMAN, 2003).

O Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Formação de Professores que Ensinam Matemática (GEPE-FOPEM), nos últimos dez anos, tem investigado perspectivas de formação inicial e continuada na busca de identificar fatores intervenientes no processo de desenvolvimento profissional de professores que ensinam matemática. A análise dessas perspectivas evidenciou a pouca eficácia de programas de formação continuada pautados em cursos de treinamento, porque estes muitas vezes não levam em consideração as diferentes necessi-dades da prática do professor. Considerando que as propostas de formação continuada de professores

devem ter em conta as singularidades das práticas de ensino dos professores envolvidos e os fatores que influenciam suas práticas, o GEPEFOPEM propôs a constituição de grupos de estudos envol-vendo professores que ensinam matemática, futuros professores e investigadores com a intenção de que tais grupos constituíssem comunidades de prática (WENGER, 1998).

As comunidades de prática de professores que ensinam matemática têm se apresentado na literatura (GRAVEN, 2005; CALDEIRA, 2010; CYRINO; CALDEIRA, 2011; BELINE, 2012; NAGY, 2013; CYRINO, 2013) como um espaço fecundo para explorar processos de aprendizagem de professores e futuros professores que ensinam matemática. Por conseguinte, as pesquisas do GEPEFOPEM têm como objetivo investigar que elementos do contexto de uma comunidade de prática, de professoras que ensinam matemática, revelam/permitem aprendizagens relacionadas ao conhecimento profissional do professor.

Este artigo enquadra-se no âmbito de uma dessas investigações e apresenta aprendizagens ocorridas no empreendimento relato e análise do relato do desenvolvimento de tarefas em sala de aula, definido pela Cop-MatAnosIniciais2. É ob-jetivo deste artigo compreender como professoras que ensinam matemática nas séries iniciais do Ensino Fundamental se engajam em uma proposta de formação continuada, no contexto de um grupo de estudos que se constituiu em uma Comunidade de Prática, na busca de repensar suas práticas de ensino de matemática.2 Cop-MatAnosIniciais é a abreviação de “comunidade de prática de

professores dos anos iniciais que ensinam Matemática”.

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Marcia Cristina Nagy; Márcia Cristina de Costa Trindade Cyrino

2. Aprendizagem em Comunidades de Prática

A expressão Comunidade de Prática foi cunhada por Lave e Wenger (1991, p. 98) para nomear a prática social de um grupo de pessoas que parti-cipam de “[...] um sistema de atividade no qual compartilham compreensões relativas ao que fazem e o que isso significa em suas vidas e para suas comunidades”. Segundo Wenger (1998, p. 11), naquela ocasião buscavam

[...] ampliar as conotações tradicionais do conceito de aprendizagem – de um relacionamento mestre/aluno ou mentor/aprendiz a uma mudança de par-ticipação e transformação da identidade em uma comunidade de prática.

Os conceitos de Identidade e Comunidade de Prática foram importantes para tal argumentação, mas esses conceitos só foram abordados de forma mais sistemática em Wenger (1998) ao apresentar a sua Teoria Social de Aprendizagem.

O foco principal de sua teoria é a “aprendizagem como participação social” (WENGER, 1998, p. 4). Ele destaca que participação não se refere somente

a eventos locais de engajamento em certas atividades com certas pessoas, mas sim a um processo abran-gente de sermos participantes ativos nas práticas de comunidades sociais e construirmos identidades em relação a essas comunidades (WENGER, 1998, p. 4, grifo nosso).

O autor também considera significado, prática, comunidade e identidade como componentes – in-terligados e mutuamente definidores – necessários para caracterizar a participação social como processo de aprender e conhecer. Desse modo, o conceito de aprendizagem apresentado parece distinto daquele ligado somente a imagens de salas de aulas, profes-sores, livros. Para ele, portanto, a aprendizagem é parte integral de nosso cotidiano, é parte de nossa participação em nossas comunidades e organizações.

Uma comunidade de prática é um espaço no qual o processo de negociação de significado pode ser explorado como um mecanismo para aprendi-zagem. A negociação de significado está envolvida tanto em atividades rotineiras, como comer, tra-balhar, quanto em atividades que nos preocupam ou nos apresentam desafios. Esse processo pode

envolver a linguagem, contudo não está limitado a ela; inclui nossas relações sociais como fatores na negociação, mas não envolve necessariamente uma conversa ou interação direta com outras pessoas. Wenger (1998, p. 53) afirma que o “engajamento humano no mundo é, sobretudo, um processo de negociação de significado”.

Para Wenger (1998), o processo de negociação de significado envolve a interação de outros dois processos: a participação e a reificação. A parti-cipação é entendida como uma experiência social de afiliação em comunidades sociais, bem como envolvimento ativo em empreendimentos sociais. Ela “[...] é tanto pessoal quanto social. É um pro-cesso complexo que combina fazer, falar, pensar, sentir e pertencer. Envolve toda a pessoa, incluindo nossos corpos, mentes, emoções e relações sociais” (WENGER, 1998, p. 56). A participação é um processo ativo, utilizada para descrever a interação entre membros de comunidades sociais.

O uso do termo reificação é menos comum do que participação, entretanto, “[...] em conjunto com a participação, a reificação é um conceito muito útil para descrever o nosso engajamento com o mundo como produtor de significado” (WENGER, 1998, p. 58). Etimologicamente, significa “tornar algo em coi-sa”, contudo, para o autor, isso não significa ser “essa coisa” necessariamente algo concreto ou material, pois a reificação pode ser, por exemplo, um conceito. De modo geral, o conceito de reificação se refere

[...] ao processo de dar forma a nossa experiência, produzindo objetos que congelam esta experiência em uma ‘coisa’. Com isso, criamos pontos de enfo-que em torno dos quais se organiza a negociação de significado. [...] É dada forma a certa compreensão que, então, se converte em um foco para a negocia-ção de significado [...] (WENGER, 1998, p. 58-59).

Segundo Wenger (1998) o termo reificação in-clui processos, como fazer, desenhar, representar, nomear, codifica e descrever, assim como perceber, interpretar, utilizar, reutilizar, decodificar e refor-mular. Caldeira (2010, p. 25) destaca que “[...] os produtos da reificação não se referem somente a sua forma, não são simples objetos concretos, mas são reflexos da prática de uma comunidade, extensões dos significados negociados”.

A participação e a reificação são distintas e complementares (WENGER, 1998). No processo

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Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática

de negociação de significados elas formam uma unidade, não devendo, portanto, ser consideradas separadas, nem vistas em oposição uma à outra.

Neste artigo apresentamos algumas aprendiza-gens a respeito do conhecimento profissional do professor, de professoras que ensinam matemática, desencadeadas pelos processos de negociação de significados ocorridos na Cop-MatAnosIniciais em um dos empreendimentos: a análise de tarefas ma-temáticas de acordo com sua demanda cognitiva. Desse modo, discutimos a seguir aspectos teóricos da importância de tarefas matemáticas, bem como alguns princípios que estruturam a abordagem proposta por pesquisadores do projeto QUASAR3 com relação aos níveis de demanda cognitiva e fases de tarefas matemáticas.

3. Tarefas matemáticas

As tarefas são elementos geralmente presentes no trabalho desenvolvido em sala de aula, não só na disciplina de Matemática, como também nas demais. De acordo com Stein e outros (2009), as tarefas4 estão ligadas diretamente à aprendizagem dos alunos, e selecioná-las ou elaborá-las é uma ação frequentemente realizada pelo professor. Desse modo, é relevante que os professores tenham oportunidades de refletir sobre as mesmas quando as propuserem aos seus alunos.

As tarefas têm sido foco de investigação de pesquisadores que participaram do projeto QUA-SAR (SMITH; STEIN, 1998; STEIN; GROVER; HENNINGSEN, 1996; STEIN et al., 2009).

Focar a atenção do professor em tarefas mate-máticas é relevante para a sua formação, pois “[...] as tarefas nas quais os alunos se engajam consti-tuem, em grande medida, o domínio de oportuni-dades para os mesmos aprenderem matemática” (Stein et al., 2009, p. 131). Nesse sentido, tarefas que exigem a realização de um procedimento me-morizado, de maneira rotineira, conduzem a um 3 Quasar Project (Quantitative Understanding: Amplifying Student

Achievement and Reasoning) foi desenvolvido nos Estados Unidos e destinado a melhorar o ensino de matemática para alunos que frequentam escolas (middle schools) de comunidades economica-mente desfavorecidas, com ênfase no pensamento, no raciocínio, na resolução de problemas e na comunicação de ideias matemáticas.

4 Para Stein e outros (2009, p. xxii), uma tarefa de ensino foi definida como “[...] um segmento da atividade de sala de aula dedicado ao desenvolvimento de uma ideia matemática”.

tipo de oportunidade para o aluno pensar; aquelas que exigem o engajamento com conceitos e que estimulem o estabelecimento de conexões con-duzem a um conjunto diferente de oportunidades.

Tarefas matemáticas podem ser analisadas de várias perspectivas: tipos de representações en-volvidas, variedade de formas nas quais podem ser resolvidas, níveis de demanda cognitiva. Neste estudo, optamos por tratar tarefas matemáticas se-gundo sua demanda cognitiva, porque, de acordo com Stein et al. (2009, p. 17), “[...] as demandas cognitivas das tarefas de ensino de matemática estão relacionadas com o nível e o tipo de apren-dizagem dos alunos”.

No trabalho de pesquisadores do projeto QUA-SAR, a respeito de tarefas matemáticas, dois as-pectos são centrais. O primeiro deles é que tarefas matemáticas selecionadas ou elaboradas podem requerer diferentes níveis e tipos de pensamento dos alunos. O segundo aspecto relaciona-se a possí-veis mudanças da demanda cognitiva de uma tarefa durante o desenvolvimento da aula, ou seja, uma tarefa classificada como desafiadora pode não pro-vocar pensamento e raciocínio de alto nível como se pretendia, em razão da maneira, por exemplo, de os alunos trabalharem nessa tarefa.

Esses pesquisadores apresentaram quatro cate-gorias ou níveis de demanda cognitiva para tarefas matemáticas (Quadro 1).

Ao determinar o nível de demanda cognitiva de tarefas, Stein e outros (2009) afirmam que é importante o professor ter clareza de “para que alunos” elas se destinam e não perder o foco com suas características superficiais (exigência de uti-lização de material manipulativo, uso de contexto do “mundo real”, envolver vários passos, ações, ou julgamentos, usar diagramas, ser um problema de palavras etc.).

Visando fornecer apoio aos professores na aná-lise de tarefas, de acordo com a demanda cognitiva, em situações de formação continuada, Smith e Stein (1998) elaboraram uma ferramenta nomeada Guia de Análise de Tarefas, que consiste em uma listagem de características de tarefas em cada um dos quatro níveis de demanda cognitiva.

Ao escolher tarefas, os professores têm determi-nadas expectativas de que podem não se efetivar, porque as tarefas assumem “vida própria” depois de

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Marcia Cristina Nagy; Márcia Cristina de Costa Trindade Cyrino

introduzidas no cenário de sala de aula (Stein et al., 2009), sofrendo influências das ações do professor (que as propõe) e dos alunos (que as realizam). A partir da constatação de que as tarefas sofrem

alterações durante o seu desenvolvimento em sala de aula, pesquisadores do projeto QUASAR con-cluíram que elas passam por etapas, nomeadas por “fases de tarefas matemáticas”.

Baixo nível (low-level) de demanda cognitiva Alto nível (high-level) de demanda cognitiva

- Memorização

- Procedimento sem conexão (com compreensão, significado, ou conceitos)

- Procedimento com conexão (com compreensão, significado, ou conceitos)

- Fazer matemática

Fonte: Adaptado de Stein et al. (2009, p. 17).

Quadro 1 - Níveis de demanda cognitiva de tarefas matemáticas

O quadro de tarefas matemáticas, apresentado a seguir (Figura 1), foi desenvolvido para orientar as análises das aulas e fornecer uma representação que

resume os desdobramentos das tarefas em resposta à dinâmica dos processos de ensino e de aprendiza-gem em sala de aula, ou seja, as suas fases.

Fonte: Stein et al. (2009, p. 13).

A primeira fase relaciona-se ao modo como as tarefas aparecem nos materiais curriculares ou como são elaboradas pelo professor. Essa fase envolve as demandas cognitivas exigidas do resol-vedor. A segunda fase relaciona-se às tarefas como são configuradas ou propostas pelo professor em sala de aula.

A fase de proposição inclui a comunicação do profes-sor com os alunos a respeito do que se espera que eles façam, como devem fazê-lo, e com quais recursos. A proposição de uma tarefa pelo professor pode ser breve, como dirigir a atenção dos alunos para uma tarefa que aparece no quadro de giz e dizer-lhes para começar a trabalhar nela. Ou pode ser longa e envolver uma discussão a respeito de como os alu-

nos devem trabalhar em um problema em pequenos grupos, trabalhar por meio de um problema amostra, e discutir formas de resolução que serão aceitáveis. (STEIN et al., 2009, p. 15).

Nessa fase, segundo os autores, é comum os professores alterarem a demanda cognitiva da ta-refa com relação a como foi pensada inicialmente. Essa modificação da demanda pode ocorrer de forma proposital ou involuntária. A terceira é a fase de implementação da tarefa pelos alunos, do modo como eles efetivamente as realizam. Tal fase inicia-se assim que os alunos começam a trabalhar em uma tarefa e segue até eles e o professor inicia-rem o trabalho com uma nova tarefa matemática. Nessa fase, a postura do professor e dos alunos é

Figura 1 - Quadro de Tarefas Matemáticas

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Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática

considerada essencial para o desenvolvimento da tarefa. Tanto na segunda como na terceira fases é o momento em que “[...] as tarefas deixam as páginas impressas e tornam-se parte dos pensamentos e ações dos professores e dos alunos que lhes dão vida durante as aulas em sala de aula” (Stein et al., 2009, p. 13).

Durante a fase de implementação, a demanda cognitiva de tarefas de alto nível pode se modificar com facilidade, comumente para formas menos exigentes de pensamento do aluno.

Segundo Stein e outros (2009), são vários os fatores em sala de aula que podem colaborar com a manutenção ou declínio do alto nível de deman-da cognitiva de tarefas e fazer com que sofram mudanças ao longo da aula (Stein; Smith, 1998; Stein et al., 2009).

Conhecer e discutir os níveis de demanda cog-nitiva de tarefas ou de suas fases pode permitir ao professor direcionar o seu olhar para a escolha de tarefas que estejam conectadas com seus objeti-vos para a aprendizagem de seus alunos; refletir a respeito de suas ações em sala de aula, tendo em vista suas consequências e influências; identificar fatores que afetam a proposição e implementação de tarefas em sala de aula – aprendizagens rele-vantes para tomadas de decisões relacionadas à sua prática docente.

4. Estratégia metodológica

O design do estudo combina intervenção e pesquisa, e, segundo Krainer (2003), pode ser nomeado pesquisa intervenção. Para o autor, esse tipo de pesquisa é, “[...] na maioria das vezes, um processo-orientado e um contexto-limitado, gerado por meio de interação contínua e comunicação com a prática” (KRAINER, 2003, p. 98).

O grupo de estudos desenvolveu-se com nove professoras que ensinam matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, de duas escolas municipais de Apucarana-PR, coordenado pela primeira autora deste artigo (formadora), em 41 encontros semanais de uma hora e meia de duração cada. No decorrer dos encontros, foram identifi-cados quatro empreendimentos da comunidade: i) resolução e discussão de tarefas; ii) análise

de tarefas; ii) desenvolvimento em sala de aula de tarefas resolvidas e discutidas no grupo; e iv) relato e análise do desenvolvimento de tarefas em sala de aula.

Com o objetivo de compreender como profes-soras que ensinam matemática se engajam em uma proposta de formação continuada, no contexto de um grupo de estudos que se constituiu em uma Comunidade de Prática, na busca de repensar suas práticas de ensino de matemática, foram estudados processos de negociação de significado ocorridos nessa comunidade no empreendimento relato e análise do desenvolvimento de tarefas em sala de aula, que teve início no 17º encontro.

A convite das professoras, a formadora acom-panhou o trabalho daquelas que se ofereceram para desenvolver tarefas de alto nível de demanda cognitiva, propostas no grupo, em sala de aula com alunos de 4º e 5º anos do ensino fundamental.

Os instrumentos utilizados para coleta de in-formações foram registros em áudio das sessões de formação e registros escritos das professoras (resolução de tarefas, reflexões sobre os encontros em um cardeno) e da formadora (notas das sessões de formação e das aulas observadas).

A análise dos dados foi contínua e permitiu avaliar e orientar as discussões no grupo de estudos (GRAVEMEIJER; COBB, 2006). Nas citações dos registros escritos produzidos pelas professoras são especificados de que material foram retirados, por quem foram produzidos, relativo a que encontro, e data. Quanto à transcrição de episódios dos proces-sos de negociação de significados, são informados a que encontro se refere e data. Os nomes utilizados para as professoras são fictícios5. Neste artigo a análise centra-se no que se tornou ponto de enfo-que nos processos de negociação de significados desencadeados a partir dos relatos das professoras que desenvolveram tarefas em sala de aula.

5. Aprendizagens ocorridas no contexto de uma comunidade de prática

O empreendimento relato e análise do relato do desenvolvimento de tarefas em sala de aula teve grande envolvimento das professoras, fato 5 De acordo com o termo de consentimento livre e esclarecido apro-

vado pelo comitê de ética em pesquisa da UEL.

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que demonstra a valorização e o interesse das par-ticipantes da Cop-MatAnosIniciais pela partilha de experiências de sala de aula. Os relatos e discussões a respeito do desenvolvimento de tarefas em sala de aula ocorreram, em sua maioria, no encontro seguinte à sua realização.

Na sequência, apresentamos o que se tornou ponto de enfoque nos processos de negociação de significados, nomeadamente: i) o desempenho de alunos na resolução de tarefas de matemática de alto nível de demanda cognitiva; ii) os diferentes tipos de questões formuladas pelas professoras durante a aplicação de tarefas matemáticas de alto nível de demanda cognitiva, que poderiam ajudar a manter os alunos engajados em formas complexas

de pensamento e raciocínio; iii) a gestão do tempo destinado aos alunos para a resolução de tarefas.

5.1 Desempenho dos alunos na resolução de tarefas de matemática

Descrevemos a seguir interações ocorridas na Cop-MatAnosIniciais que revelam negociações de significado a respeito do desempenho de alunos na resolução de tarefas matemáticas de alto nível de demanda cognitiva.

A preocupação quanto ao desempenho dos alunos surgiu no 17º encontro, durante o relato de Carla a respeito do trabalho com a Tarefa 1 (Figu-ra 2), com alunos de 4ª série (5º ano) do Ensino Fundamental.

Fonte: Adaptado de Caldeira (2010, p. 121).

Figura 2 - Tarefa 1

Em encontros da Cop-MatAnosIniciais, al-gumas professoras declararam ter expectativa de que poucos alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental conseguiriam resolver tarefas de alto nível de demanda cognitiva, mas mesmo assim se dispuseram a trabalhar com os alunos.

Carla relatou que entregou a Tarefa 1 fotocopia-da a cada aluno, solicitou que lessem o seu enun-ciado e buscassem resolvê-la de forma autônoma, pois desejava saber como cada aluno lidaria com uma tarefa de alto nível de demanda cognitiva. Comentou que, inicialmente, alguns alunos de-clararam não ter entendido o enunciado da tarefa, por, entre outros aspectos, terem dúvida quanto

a algumas palavras do enunciado; outros afirma-ram ter entendido, mas não saber que estratégias poderiam utilizar para resolvê-la. Ela explicitou a dinâmica utilizada para auxiliar os alunos em suas dificuldades, bem como sua impressão a respeito do desempenho de seus alunos.

Carla: [...] Eu fiz aquilo que ela [refere-se à for-madora] fez com a gente... Fui instigando: ‘Como você encontrou isso? Por que você fez isso?’. Isso é muito válido, eles [os alunos] realmente tentam resolver [a tarefa].

[...]

Carla: Eu achei que foi muito proveitosa essa

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Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática

questão de instigar os alunos, porque realmente eles tentaram até conseguir. E é gostoso ver... Como o Marcos, eu vi que na primeira [figura] ele fez certinho [refere-se ao cálculo do preço de um dos objetos presentes no quadro no enunciado da Tarefa 1], depois eu fui até a carteira dele, mas ele não tinha conseguido [calcular o preço de outros objetos do quadro]. Conversando com ele vi que fez assim: ‘Ah! Então quer dizer que...’. Ele tinha entendido, sabe. E foi muito bom, foi muito legal! E pelo que deu para perceber... Parece que as crianças têm mais facilidade que a gente [de resolver tarefas de alto nível de demanda cognitiva]...

Tânia: Ah sim! (ri)

Carla: Porque eu confesso que levei mais tempo...

Tânia: Do que seus alunos.

Carla: ... Para entender [...]

Letícia: Eu, particularmente, penso que se está difícil para mim, então para eles vai estar mais difícil ainda.

Carla: Então... É o que eu pensava.

Tânia: Então [falando para Letícia], é o que ela [refere-se à Carla] está falando, parece que é o contrário.

Carla: É, o contrário. Eles surpreendem a gente.

Tânia: E a gente, na realidade, não passa exercícios dessa forma [refere-se a tarefas de alto nível de demanda cognitiva] para eles, né?

Carla: Os alunos têm capacidade [de resolver tarefas de alto nível de demanda cognitiva]. E con-seguem [resolvê-las] se a gente buscar essa maneira assim de instigar, isso ajuda muito eles. [...]

(17º encontro, 11/05/11).

Nesse episódio, Carla demonstrou confiança nas outras participantes da Cop-MatAnosIniciais ao expor sua satisfação em relação à dinâmica de desafiar os alunos por meio de perguntas, bem como ao admitir que seus alunos surpreenderam-na quando demonstraram ter mais facilidade que ela na resolução dessa tarefa.

A experiência de desenvolver uma tarefa de alto nível de demanda cognitiva em sala de aula permitiu que Carla reificasse a imagem que tinha do desempenho de alunos dos anos iniciais na reso-lução dessas tarefas, ou seja, por meio da aplicação de tarefas de alto nível de demanda cognitiva na sua turma de alunos, ela constatou que, de fato, esses alunos conseguiram resolver tais tarefas e se surpreendeu com o fato de mostrarem ter mais facilidade que ela na resolução.

Ao longo de alguns encontros, foi possível ob-servar que outras professoras apresentaram mudan-ças quanto à imagem que tinham do desempenho desses alunos; como será exemplificado no episó-dio a seguir, após Milena retomar brevemente seu relato, referente ao trabalho com a Tarefa 2 (Figura 3) com seus alunos do 3º ano, para as participantes ausentes no encontro anterior.

Figura 3 - Tarefa 2

Na figura encontra-se um esquema de uma das salas de jantar de um restaurante, em que a mesa 1 tem 4 cadeiras e as outras foram arrumadas como mostra a seguir:

As mesas seguintes seguem a mesma sequência da figura. Nessas condições, responda:a) Quantas cadeiras terá a mesa 5? E a mesa 20?b) Qual mesa terá 48 cadeiras?c) Quantas cadeiras terá uma mesa qualquer deste tipo?

Mesa 1 Mesa 2 Mesa 3

Fonte: Adaptado do Exame Nacional de Matemática (PORTUGAL, 2006).

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Letícia: Eu quero aplicar a mesma [Tarefa 2] que a Milena, para ver como eles [refere-se aos alunos de outro 3º ano de sua escola] reagiriam, para vivenciar o que ela vivenciou, porque eu gostei. Eu até escrevi no meu caderno quando a Milena falou que ia dar aquela [refere-se à Tarefa 2] ati-vidade... Eu pensei assim: ‘Meu Deus, a Milena está doida’. (ri).

Regina: Coitados...

Letícia: Ninguém vai conseguir, vai fundir a cabeça dos alunos.

Milena: Eu também achava.

Letícia: Mas não. E eu gostei muito do que vi nos seus papeis [refere-se à produção escrita dos alunos na tarefa], Milena. Eu não sei se você reparou, mas eu li um por um... Eu li um por um e me fascinou! Aí me deu vontade. Eu também quero fazer! E quero testar já com uma turma que dou pouco por ela... Sabe... Em relação à atividade.

Formadora: Você acha que essa turma não con-seguiria?

Letícia: Não, mas agora eu tenho a perspectiva de que alguns lá vão conseguir ou vão chegar perto. Mas eu não teria essa perspectiva, de jeito nenhum, se eu não tivesse visto [os registros dos alunos] ou se eu não tivesse ouvido o que a Milena contou.

(19º encontro, 25/05/11).

Nesse episódio, Letícia declarou que acreditava que os alunos de Milena não conseguiriam resolver a Tarefa 2, pois tinha alto nível de demanda cog-nitiva. Apesar disso, notamos que no 16º encontro (11/05/11), quando Milena informou aos demais membros que pretendia desenvolver essa tarefa em sala de aula, Letícia6 não manifestou sua opinião, provavelmente para não desmotivá-la.

Conhecer a experiência de sala de aula de Milena possibilitou que Letícia reificasse a sua imagem a respeito do desempenho de alunos dos anos iniciais na resolução de tarefas de alto nível de demanda cognitiva, e tal reificação influenciou algumas de suas ações na Cop-MatAnosIniciais, como, por exemplo, emitir e defender suas opi-niões. Esse é um exemplo de interação entre os processos de reificação e de participação discutido por Wenger (1998): essa professora mudou a sua

6 Letícia era diretora da escola envolvida na investigação.

participação na comunidade após reificar a imagem que tinha do desempenho de alunos.

A participação no empreendimento relato e aná-lise do relato do desenvolvimento de tarefas em sala de aula permitiu que as professoras aprendessem que alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamen-tal são capazes de resolver tarefas de alto nível de demanda cognitiva, possibilitando-lhes repensar suas escolhas durante a seleção ou elaboração de tarefas a serem propostas em sala de aula.

5.2 Diferentes tipos de questões formuladas pe-las professoras durante a realização de tarefas de alto nível de demanda cognitiva

Em vários encontros da Cop-MatAnosIniciais ocorreram negociações de significado sobre dife-rentes tipos de questões formuladas pelas profes-soras durante a aplicação de tarefas de alto nível de demanda cognitiva, que poderiam ajudar a manter os alunos engajados em formas complexas de pensamento e raciocínio.

As discussões a respeito dos tipos de questões foram mais sistemáticas no decorrer do estudo das três fases das tarefas matemáticas propostas por Smith e Stein (1998), na busca de identificar os fatores que poderiam estar associados à ma-nutenção e ao declínio de demandas cognitivas de alto nível.

Ao acompanhar Carla, Milena e Regina durante a aplicação de tarefas discutidas na comunidade, a formadora observou que manter a demanda cogni-tiva dessas tarefas durante a fase de proposição não constituiu um problema para elas, pois solicitaram que os alunos lessem as tarefas, interpretassem e buscassem caminhos para sua resolução de modo autônomo. A fase de implementação, contudo, constituiu, inicialmente, um problema para Milena e Regina, uma vez que apresentaram dificuldades em apoiar o pensamento dos alunos e em destinar um tempo adequado para resolução.

Na prática de Regina em sala de aula, a for-madora notou que várias questões propostas aos alunos haviam colaborado para reduzir ou eliminar aspectos desafiadores das tarefas, não permitindo a oportunidade de engajamento a vários deles em for-mas complexas de pensamento e raciocínio. Tendo em vista o exposto, foi solicitado que as professoras exemplificassem, e analisassem, as suas perguntas

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Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática

aos alunos no desenvolvimento das tarefas. Nesse processo, a negociação de significados assumiu o seguinte ponto de enfoque: diferentes tipos de questões feitas pelo professor podem ou não ajudar

a manter a demanda cognitiva de uma tarefa de alto nível. Isso pôde ser observado no episódio a seguir, durante o relato de Milena, referente à aplicação da Tarefa 3.

Em uma sala de aula com 4 crianças, cada uma cumprimenta as demais com um único aperto de mão.

a) Nesta sala de aula, qual foi o número total de apertos de mão?b) Nessas mesmas condições, se nesta sala de aula estivessem 5 crianças, qual seria onúmero total de apertos de mão?c) E se estivessem 6 crianças, qual seria o número total de apertos de mão?d) Você consegue determinar uma regra para descrever o número de apertos de mãopara qualquer número de crianças? Escreva-a

Quadro 2 - Tarefa 3

Fonte: Adaptado de Blanton e Kaput (2005, p. 413).

Formadora: [...] já discutimos em outros encontros que uma tarefa pode ser de alto nível [de demanda cognitiva], mas que, dependendo do questionamento feito pelo professor, o aluno pode não se envolver em pensamento de alto nível [formas complexas de pensamento e raciocínio]. Por exemplo, a tarefa exige que o aluno estabeleça determinadas relações, mas podemos falar ou fazer algo que...

Letícia: A gente já dá o caminho para ele [o alu-no]... Aí já desandou. [...] E eu acho que esse é o nosso maior desafio, porque, às vezes, sem querer a gente fala.

Tânia: ‘Ah, falei!’.

Letícia: Isso, falei...

Milena: E até naquelas atividades mais simples [refere-se a tarefas de baixo nível], se eles [os alunos] mandam uma pergunta e você retorna uma pergunta, eles vão ter que pensar...

[...]

Formadora: [...] E se a gente perguntar: ‘Sabendo que o preço de cinco bolas é 105 reais, precisamos dividir esse valor por quanto para saber o preço de cada bola?’ [referindo-se à Tarefa 1].

Carla: Já está falando o que ele [o aluno] tem que fazer.

Formadora: [...] Milena, você se lembra de per-guntas que fez durante a aplicação dessa tarefa? [Tarefa 3]

Milena: Ah sim: ‘Como você chegou nesse resulta-do? Por que você fez desse jeito? Todos apertaram a mão dos colegas apenas uma vez?’.

Formadora: E você considera ter mantido o nível de demanda cognitiva da tarefa usando perguntas como essas?

Milena: Acho que sim. E eu já vi que temos que estar preparadas para que tipo de perguntas vamos fazer a partir da pergunta deles.

Formadora: É verdade... Mas nem sempre vamos saber o que perguntar [de modo a oferecer apoio ao pensamento dos alunos].

Andréia: É disso que eu tenho medo.

Milena: Tem que vir preparada, porque eles vão perguntar.

Formadora: E como vamos aprender [a fazer ques-tões que apoiem o pensamento dos alunos]?

Letícia: Enfrentando.

(22º encontro, 15/06/11).

Nessa ocasião, destacou-se a importância de utilizar questões de inquirição em sala de aula. Em uma de suas declarações, Letícia explicitou que um dos desafios do professor ao desenvolver tarefas de alto nível de demanda cognitiva em sala de aula é oferecer apoio ao pensamento e raciocínio dos alunos e desafiá-los a pensar por meio de questões que preservem a complexidade da tarefa, de modo

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que possam se engajar em formas complexas de pensamento e raciocínio. Por sua vez, em uma de suas declarações, Milena evidenciou ter aprendido que, independente do nível de demanda cognitiva da tarefa, desafiar os alunos por meio de perguntas, ao invés de apresentar respostas diretas, pode cola-borar na constituição de uma ação mais autônoma dos alunos em relação às tarefas que resolvem. As duas primeiras questões propostas por Milena (“Como você chegou nesse resultado? Por que você fez desse jeito?”) podem ser consideradas exemplos de perguntas que poderiam ser feitas pelo professor para estimular a argumentação dos alu-nos quanto à resolução da tarefa. A última questão (“Todos apertaram a mão dos colegas apenas uma vez?”) é um exemplo de pergunta que pode apoiar o pensamento dos alunos. A questão simulada pela formadora (“Sabendo que o preço de cinco bolas é 105 reais, precisamos dividir esse valor por quanto para saber o preço de cada bola?”) está relacionada a um dos fatores associados ao declínio de demanda cognitiva de alto nível (SMITH; STEIN, 1998), porque indica ao aluno como resolver a tarefa.

Ao acompanhar Milena em sua primeira ex-periência em sala de aula com tarefas discutidas na Cop-MatAnosIniciais, a formadora notou que, sobretudo no primeiro dia dessa experiência, ela não apresentava respostas diretas aos alunos, mas também quase não propôs questões de modo a apoiar o pensamento daqueles que não haviam resolvido a tarefa, focando-se em questionar aque-les que tinham resolvido. Contudo, após algumas discussões nessa comunidade, relativas a diferentes tipos de questões feitas pelo professor, em sua se-gunda experiência (Tarefa 3), a professora passou a fazer perguntas a todos os alunos de modo a permitir-lhes engajar-se em formas complexas de pensamento e raciocínio; e, por conseguinte, seu trabalho com uma tarefa de alto nível de demanda cognitiva mostrou-se mais efetivo, o que permitiu que se sentisse mais satisfeita com o trabalho de-senvolvido.

As discussões a respeito de diferentes tipos de questões feitas pelo professor permitiram que as professoras da Cop-MatAnosIniciais aprendessem que o fato de selecionar e aplicar tarefas de alto nível de demanda cognitiva em sala de aula não é suficiente para garantir o engajamento dos alunos

em formas complexas de pensamento e raciocínio (SMITH; STEIN, 1998).

5.3 Gestão do tempo destinado aos alunos para resolução de tarefas

Em vários encontros da Cop-MatAnosIniciais, também ocorreram negociações de significado relativas ao tempo destinado aos alunos para a re-solução de tarefas. Descrevemos a seguir interações ocorridas durante um dos relatos de Regina.

No 17º encontro (11/05/11), após conhecer as experiências relatadas por Carla e Milena com tarefas de alto nível de demanda cognitiva em sala de aula, Regina também se sentiu desafiada a desenvolvê-las. Ela propôs as Tarefas 1 e 2 a alunos de 4º ano, e disponibilizou uma hora para a resolução de cada uma dessas tarefas. No encontro seguinte relata a sua experiência:

Regina: Eu vi que eles gostaram de resolver essa aqui [refere-se à Tarefa 1], alguns queriam terminar, mas eu entreguei a outra [Tarefa 2] na mão deles e recolhi essa aqui, porque eu queria que fizessem as duas [tarefas], queria avaliar... Uma individual e a outra em grupo.

Carla: Então... Mas se a gente analisar... Essa tarefa [Tarefa 1] envolve muitas coisas, então não é em pouco tempo que eles vão resolver, né? Além do raciocínio, tem as operações, tem que explicar...

Formadora: A Regina pode retomar essa tarefa num outro dia para os alunos poderem concluir, pois a maioria deles não escreveu uma explicação [referente aos itens (a) e (b) da Tarefa 1] [...] Por isso que eu tinha perguntado por que você tinha recolhido sem os alunos terminarem...

Regina: Acabou o tempo!

Formadora: Acabou o tempo determinado pela professora...

[...]

Formadora: A Carla comentou semana passa-da que, por meio de questionamentos, os alunos conseguiram resolver essa tarefa [Tarefa 1]. Mas conseguiram no tempo deles.

Regina: E ficou o tempo todo [refere-se a um pe-ríodo de, aproximadamente, quatro horas, dividido em quatro aulas] na [Tarefa] 1? Usou o tempo só para isso?

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Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática

Carla: Usei o tempo todo da segunda-feira: as duas primeiras aulas antes do intervalo e uma aula depois do intervalo. Na última aula eles saíram para aula de recreação.

Formadora: E no outro dia...

Carla: Aí, no outro dia, nós fizemos a correção [discussão das diferentes resoluções] coletivamente.

Regina: Ah, você fez a correção coletivamente?

Carla: Eu fui perguntando como eles tinham acha-do: ‘Como você encontrou?’. Entendeu? Eu fui questionando.

[...]

Milena: [...] na continuação [da Tarefa 2], eu segui as sugestões que vocês deram. A primeira sugestão era distribuir os alunos em grupos, mas com alunos diferentes [refere-se à reorganização dos grupos formados anteriormente]. Nesse dia, nesse segundo dia, uns três... (Regina interrompe)

Regina: Então você levou dois dias para fazer isso aí?

Milena: É.

Regina: Então eu sou muito apurada... ‘Fritei o camarão7...’.

(18º encontro, 18/05/11).

Ao priorizar sua meta de propor duas tarefas, num período de, aproximadamente, duas horas, Regina acabou não destinando tempo suficiente para que a maioria dos alunos pudesse resolvê-las de modo completo.

As discussões na Cop-MatAnosIniciais possi-bilitaram que Regina refletisse a respeito do tempo que havia destinado aos alunos para a resolução das tarefas. Ficou evidenciado que, muitas vezes, necessitamos do outro para tomarmos consciência de nossas dificuldades e possibilidades e, então, reagirmos em relação ao que foi indicado. A reação de Regina foi a de desenvolver, na mesma turma de alunos, outra tarefa de alto nível de demanda cognitiva. Regina aprendeu que é preciso destinar tempo suficiente ao aluno na resolução de tarefas de alto nível de demanda cognitiva e que nem toda questão feita pelo professor apoia o pensamento dos alunos na resolução dessas tarefas.

7 A expressão “fritei o camarão” é uma metáfora utilizada por Regi-na para referir-se ao tempo insuficiente destinado ao aluno para a resolução de uma tarefa.

Regina: Da outra vez eu dei uma hora só para fazer, mandei ver. ‘Fritei o camarão’. [...]

Formadora: Dessa vez você não ‘fritou o camarão’ então?

Regina: Não. Dessa vez ‘cozinhei, refoguei, temperei e dei ponto’. Foi bom! Eu me surpreendi! E eu achei que o comportamento [dos alunos] foi muito melhor [refere-se ao seu engajamento na tarefa] [...]

(23º encontro, 22/06/12).

Além da Regina, outras professoras aprenderam a importância de destinar tempo suficiente aos alunos durante a resolução de tarefas de alto nível de demanda cognitiva (ver Figura 4, registro de Milena em seu caderno).

Figura 2 – Registro escrito no caderno, produzido por Milena referente ao 19º encontro (25/05/11)

E também no último encontro (30/11/11), al-gumas professoras declararam que, no decorrer de várias discussões, perceberam que o tempo que deveriam destinar aos alunos para a resolução de tarefas poderia apenas ser estimado previamente, mas não determinado com exatidão.

Andréia: Como professora, eu mudei bastante... Eu tratava meus alunos já dando mais tempo para eles e ia questionando, fazendo-os resolver, não dando pronto, por causa da dificuldade que eu sempre tive em Matemática, principalmente no ginásio [atual-mente nomeado Ensino Fundamental]... Mas aqui eu aprendi que tenho que questionar ainda mais, que tenho que dar mais tempo. Eu tenho que dar o tempo que ele precisa e não o tempo que eu... Antes eu dizia: ‘Vou dar um tempo x’.

(41º encontro, 30/11/11).

Tal reflexão colaborou para que as professoras passassem a priorizar a aprendizagem dos alunos em detrimento de seu planejamento.

Fonte: Elaborada por uma das professoras participantes da pesquisa.

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Marcia Cristina Nagy; Márcia Cristina de Costa Trindade Cyrino

6. Considerações Finais

A análise dos episódios apresentados neste artigo permite explicitar como as professoras da Cop-MatAnosIniciais se engajaram no que se tor-nou ponto de enfoque do processo de negociação de significados no empreendimento relato e análise do relato do desenvolvimento de tarefas em sala de aula.

Discutir o desempenho dos alunos na resolução de tarefas de matemática de alto nível de demanda cognitiva possibilitou que as professoras reifi-cassem a imagem que tinham do desempenho de alunos na resolução dessas tarefas, e modificassem seus modos de participação na Cop-MatAnosIni-ciais, na medida em que se sentiram seguras para emitir e defender suas ideias. Na interação entre os processos de reificação e de participação (WEN-GER, 1998), as professoras produziram novos significados a respeito da seleção ou elaboração de tarefas a serem propostas em sala de aula.

Ao negociar significados a respeito dos dife-rentes tipos de questões que podem ser formuladas durante a realização de tarefas matemáticas, as pro-fessoras revelaram a existência de dificuldades em elaborar e propor questões que ajudem a desafiar e manter os alunos engajados em formas comple-xas de pensamento e raciocínio (SMITH; STEIN, 1998), e tiveram a oportunidade de expressar suas compreensões a respeito dos êxitos e das limitações para manutenção do nível de demanda cognitiva de tarefas matemáticas.

Relatar e analisar o relato do desenvolvimento de tarefas em sala de aula levou as professoras a avaliarem a gestão do tempo destinado aos alunos para resolução de tarefas. Algumas professoras se sentiram desafiadas a repensar e modificar suas práticas. Smith e Stein (1998) afirmam que um dos fatores associados ao declínio da demanda cogniti-va de nível elevado de uma tarefa é o professor não oferecer tempo suficiente aos alunos para lidarem com aspectos desafiadores da tarefa, ou destinar--lhes tempo em excesso.

Assim, as professoras revelaram engajamento na Cop-MatAnosIniciais na medida em que par-tilharam experiências de sala de aula de forma

crítica e respeitosa, emitiram e defenderam suas ideias; indicaram que poderiam ter feito escolhas semelhantes às relatadas; expressaram suas com-preensões a respeito dos êxitos e das limitações dos envolvidos no desenvolvimento de tarefas; ofereceram sugestões para gestão da aula; de-monstraram uma reação positiva às sugestões e provocações das demais ao incorporá-las em sua prática de ensino; revelaram mudanças quanto ao seu modo de agir em sala de aula; reconheceram suas dificuldades e a necessidade de novas aprendi-zagens; valorizaram o trabalho dos outros (alunos e professoras); pensaram a respeito de sua imagem como professora, do como a aprendizagem muda quem somos e cria histórias pessoais de transfor-mação no contexto.

A participação das professoras no processo de formação foi marcada pelo “reconhecimento mú-tuo” e “identidade de participação” (WENGER, 1998). Nessa perspectiva, Wenger, McDermott e Snyder (2002, p. 28) afirmam que “uma comuni-dade forte fomenta interações e relações baseadas em respeito mútuo e confiança. Ela incentiva uma ação voluntária de compartilhar ideias, expor a própria ignorância, fazer perguntas difíceis, e ouvir cuidadosamente”.

O trabalho desenvolvido na Cop-MatAnosIni-ciais demandou um papel mais ativo e a respon-sabilização das professoras por sua formação ao permitir que partilhassem experiências, repertórios e conhecimentos; analisassem e refletissem a res-peito de tarefas selecionadas e desenvolvidas em sala de aula; compartilhassem sucessos e frustra-ções que vivenciavam nos processos de ensinar e de aprender; estabelecessem laços pessoais e profissionais com as demais. A colaboração, a atitude investigativa e o contato constante entre os membros da Cop-MatAnosIniciais apoiaram e de-safiaram várias professoras a repensar e modificar sua prática de ensino de matemática. Nesse sentido, entende-se ser necessária a disponibilização de propostas de formação que ofereçam ao professor tempo e espaço para fortalecer a confiança em sua capacidade de enfrentar desafios e constituir soluções para os problemas/dilemas enfrentados em sua profissão.

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Aprendizagens de professoras que ensinam matemática em uma comunidade de prática

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Recebido em: 13.11.2013

Aprovado em: 19.02.2014

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Sandra Regina Soares; Flávia Vieira

APRENDIZAGEM, ENSINO E DESENVOlVIMENTO PROFISSIONAl

DOCENTE NA UNIVERSIDADE: DESAFIOS, PERSPECTIVAS E

TRAJETÓRIAS DE MUDANÇA

Sandra Regina Soares ∗

Flávia Vieira ∗∗

RESUMO

O ensino superior tem sofrido transformações profundas como resultado de sua democratização, da globalização da sociedade e das crescentes demandas do mercado. No presente artigo discutem-se desafios atuais da docência universitária e suas implicações na qualidade das aprendizagens dos estudantes. Face a tendências neoliberais que reduzem as possibilidades de uma educação emancipatória, apresentam-se propostas de reconfiguração do desenvolvimento profissional docente à luz de um referencial humanista e democrático. Argumenta-se a favor da construção coletiva de culturas pedagógicas baseadas numa conceção do professor como intelectual crítico e agente de mudança, com propósitos educativos válidos, que sejam promotores de uma maior articulação entre investigação, ensino e desenvolvimento profissional, num ambiente em que sejam criadas condições de valorização e inovação das práticas de ensino e de aprendizagem. Descrevem-se duas trajetórias de mudança desenvolvidas nas instituições das autoras, as quais ilustram as perspectivas apresentadas e mostram que é possível olhar criticamente o presente para projetar o futuro, através da indagação e da transformação de culturas em que o ensino ocupa um lugar secundário e largamente invisível.

Palavras-chave: Universidade. Ensino. Aprendizagem. Profissionalidade docente. Mudança.

ABSTRACT

LEARNING, EDUCATION AND TEAChING PROFESSIONAL DEvELOPMENT IN ThE UNIvERSITY: ChALLENGES, PERSPECTIvES AND ChANGING TRAJECTORIES

∗ Doutora em educação pela Université de Sherbrooke (Quebec- Canadá)- programa de Pós-Graduação em Educação, 2004. Pós-doutorado em Pedagogia Universitária pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), 2009. Professora Titular do Departamento de Educação e do programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Esta-do da Bahia (UNEB). Líder do Grupo de pesquisa Docência Universitária e Formação de Professores (DUFOP) (Diretório de Grupos de Pesquisa CNPq). Organizadora da Série Práxis e Docência Universitária. [email protected]∗∗ Doutora em Educação pela Universidade do Minho (Braga, Portugal), 1997. Professora Catedrática do Instituto de Educação da Universidade de Minho e membro do Centro de Investigação em Educação (financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Projeto PEST-OE/CED/UI1661/2014). Coordenadora do Grupo de Trabalho-Pedagogia para a Autonomia (GT-PA) e do Núcleo de Estudos e Inovação da Pedagogia no Instituto de Educação (NEIP.IE). Leciona em cursos de pós-graduação em Ciências da Educação e coordena a área de Especialização em Supervisão Pedagógica na Educação em Línguas. É coordenadora do Estágio Profissional dos Mestrados em Ensino. [email protected]

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Aprendizagem, ensino e desenvolvimento profissional docente na universidade: desafios, perspectivas e trajetórias de mudança

Higher education has suffered deep transformations as a result of its democratization, the globalization of society, and the growing market demands. In this article, current challenges in university teaching are discussed as well as their implications on student learning. In order to counteract neoliberal tendencies that reduce opportunities for empowering education, we present proposals for the reconfiguration of teacher professionalism based on humanistic and democratic values. Arguments are presented for the collective construction of pedagogical cultures based on a view of the teacher as a critical intellectual and an agent of change, and on valid educational purposes, where the articulation among teaching, research and professional development is promoted, and where conditions are created for valuing and innovating teaching and learning practices. Two paths of change developed in the authors´ institutions are described, illustrating the above perspectives and showing that it is possible to look critically at the present to design the future, by promoting inquiry and the transformation of cultures where teaching occupies a secondary and largely invisible place.

Keywords: University. Teaching. Learning. Teacher professionalism. Change.

Desafios atuais da docência universitária

A qualidade do ensino e da aprendizagem na universidade é um tema de crescente preocupação nos países ocidentais, diante dos inúmeros desafios que o processo de expansão do ensino superior, verificado a partir das últimas décadas do século XX, tem provocado.

O movimento de democratização do ensino su-perior, embora assumindo proporções e contornos distintos em diferentes países, configura-se como reação a vetores de natureza diversa: de um lado, responde à pressão da sociedade contra o elitismo que historicamente caracterizou a universidade, para que os filhos das classes populares também tenham acesso a esse nível de ensino; de outro, faz parte de um projeto amplo que recoloca o ensino superior no cenário da globalização e do neolibe-ralismo, visando à formação dos técnicos qualifi-cados exigidos pelo desenvolvimento capitalista (SANTOS, 2005). Assim, diante da importância do conhecimento na economia neoliberal, a educa-ção superior adquire centralidade: “Novos papéis relativamente aos conhecimentos e à formação profissional são atribuídos à educação superior no contexto atual da globalização econômica que interferem, diretamente, nas atividades docentes” (DIAS SOBRINHO, 2009, p. 18).

Nesse projeto, capitaneado pelo Banco Mundial, a educação superior deixa de ser vista como um

bem a serviço da sociedade e passa a se constituir em uma mercadoria, um produto negociável, com objetivos de lucro, para atender a variadas possi-bilidades financeiras, em benefício de interesses individuais. A mercantilização da educação supe-rior tende a ser acompanhada de sua privatização crescente, o que acaba por favorecer as camadas sociais de rendimento médio ou alto. Esse projeto vai na contramão da perspectiva defendida na Conferência Mundial sobre Educação Superior, realizada em Paris, em 1998, pela UNESCO, que afirmava a educação como um bem público e um direito social, cuja função primordial é a formação de cidadãos capazes de construir uma sociedade mais justa e aberta, mediante um processo de ensino-aprendizagem promotor de análise crítica e visão prospectiva, baseado na vinculação com a sociedade e em atividades de criação intelectual científica, técnica e humanística.

Em sintonia com uma lógica empresarial em acelerado processo de implantação, o Estado passa de provedor a supervisor, ao realizar a avaliação externa do sistema de educação superior público e privado. Essa avaliação tende a ter funções controladoras, normalizadoras e certificadoras, dificultando a reflexão crítica sobre as práticas e a constituição de comunidades profissionais baseadas no dialógo e na reflexão. Em geral, promove-se a desvalorização da docência, ao submetê-la a formas supostamente objetivas de mensuração de resulta-dos e classificação ou hierarquização de cursos e

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Sandra Regina Soares; Flávia Vieira

instituições. Entretanto, como sugere Dias Sobri-nho (2009, p. 30), “O controle não pode ser um fim em si mesmo. Deve, sim, ser condição de reflexões, questionamentos, produção de sentidos sem o que não existe propriamente avaliação educativa”.

Ainda em consonância com essa lógica, a do-cência enfrenta, internacionalmente, um crescente desprestígio, quando comparada à atividade de pes-quisa, que é supervalorizada e se configura como referência quase exclusiva de aferição da produti-vidade do professor e da instituição (ALMEIDA, 2012; MORLEY, 2003). Isso se verifica em paralelo a reformas (trans)nacionais que visam a qualificar o ensino, como é o caso do Processo de Bolonha, na Europa, no âmbito das quais se tem expandido uma retórica de mudança de paradigma – de um ensino transmissivo para um ensino centrado no estudante –, dando origem a movimentos de reestruturação curricular que não têm sido acompanhados da formação docente nem de medidas institucionais de apoio ao ensino.

Num cenário de pressões e contradições, os professores universitários são desafiados a agir com competência e disposição para resguardar o ethos público e social, para formar as novas gerações segundo valores humanistas e democráticos e para desempenhar seu trabalho docente com criatividade e liberdade pedagógica. Nessa perspectiva, é fun-damental a ruptura das fronteiras disciplinares e a substituição, tanto na docência como na pesquisa, do trabalho solitário pelo trabalho solidário, pela constituição de equipes e pelo diálogo interdisci-plinar e insterinstitucional (DIAS SOBRINHO, 2009). É também necessário renovar as práticas pedagógicas, de forma que acolham a diversidade e sejam inclusivas, envolvendo todos os estudantes em processos de aprendizagem significativa.

O significado atribuído pelos estudantes aos objetos de aprendizagem não se impõe nem se transmite mediante o ensino transmissivo. É um ato criativo, fruto das atividades de aprendizagem dos estudantes. Em outras palavras, decorre dos seus enfoques de aprendizagem que, grosso modo, podem ser classificados em superficial e profundo. O enfoque superficial de aprendizagem nasce da intenção do estudante de liberar-se da tarefa com um mínimo esforço, ainda que dando a sensação de satisfazer aos aspectos a ele requeridos. Ao utilizar

o enfoque superficial, o estudante se centra em dados isolados, independentes uns dos outros. Isso o impede de ver o significado e a estrutura do que se ensina, e a aprendizagem se converte em uma tarefa pesada e destituída de sentido para sua vida.

Dentre os fatores que estimulam o estudante a adotar esse enfoque, destacam-se: intenção de lograr só uma aprovação, que pode ser derivada de uma ideia da universidade como um passe para o futuro, ou exigência de matricular-se em uma disciplina irrelevante para o seu programa de es-tudos; tempo insuficiente e sobrecarga de trabalho; crença de que a memorização dos dados concretos é suficiente; ansiedade elevada; autêntica incapaci-dade de compreender os conteúdos concretos em nível profundo (BIGGS, 2010). Por outro lado, o enfoque profundo é assumido pelo estudante que sente a necessidade de abordar a tarefa de forma adequada e significativa, procurando centrar-se nas ideias principais, nos temas e princípios, bus-cando assegurar a compreensão. Dentre os fatores que estimulam o estudante a adotar esse enfoque, destacam-se: curiosidade intrínseca ou determina-ção de fazer bem as coisas; capacidade de centrar--se em um nível conceitual elevado; capacidade de trabalhar conceitualmente, em vez de ater-se a detalhes desarticulados. A adoção do enfoque profundo pode ser suscitada pelo professor quando: formula perguntas ou coloca problemas, em vez de apenas expor informações; desenvolve a aula a partir dos conhecimentos prévios dos estudantes; interroga e desconstroi as concepções errôneas dos estudantes; avalia a estrutura das produções dos es-tudantes, em vez de dados isolados; ensina e avalia estimulando a criação de uma atmosfera de trabalho de liberdade para arriscar, errar e aprender com os erros; enfatiza a profundidade da aprendizagem, em lugar da quantidade de conteúdos programáticos (BIGGS, 2010).

O que foi exposto evidencia que a forma como os estudantes lidam com o conhecimento e desen-volvem a aprendizagem não é independente da forma de ensinar e avaliar assumida pelos docen-tes. Embora os estudantes, estimulados por suas trajetórias escolares e pelos contextos familiares, possuam preferência por um ou outro enfoque, a sua expressão, na prática, depende da forma como os docentes desenvolvem o ensino e avaliam a

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Aprendizagem, ensino e desenvolvimento profissional docente na universidade: desafios, perspectivas e trajetórias de mudança

aprendizagem. Isso significa que os enfoques de aprendizagem não são fixos, imutáveis.

Ademais, as novas gerações de estudantes, in-dependentemente da condição econômica familiar, adentram na universidade já imersas na cultura das tecnologias de comunicação e informação, marca-das pela rapidez, interatividade e criatividade, que não se coadunam com um ensino transmissivo, unidirecional e conteudista. Em contrapartida, provavelmente lhes faltam a disposição para a reflexão, o espírito crítico e o discernimento entre o que é prioritário e o secundário. E, como ressalta Dias Sobrinho (2009, p. 27), é provável, ainda, “que não tenham bem desenvolvidas as virtudes cívicas, a sensibilidade ao social e público. A rela-ção intensa com os meios eletrônicos lhes pode ter aprofundado um viés individualista e a sensação de autossuficiência.”

Essas situações colocam em evidência a neces-sidade de o docente universitário não apenas do-minar os conteúdos da matéria a ser ensinada, mas de ser capaz de ajudar os estudantes a atribuírem significados e a construírem conhecimento no seu processo formativo, na perspectiva de se tornarem profissionais reflexivos, críticos, investigativos e comprometidos socialmente. Isso pressupõe que o docente investigue a forma de aprender dos estu-dantes e os modos como pode apoiar aprendizagens relevantes.

Um ensino capaz de provocar desequilíbrios cognitivos, de despertar a curiosidade e o interesse dos estudantes em aprender de forma profunda e significativa não é decorrência da mera aplicação de princípios pedagógicos gerais. Pressupõe sua adequação às próprias virtudes pessoais e ao con-texto docente, o que só é possível mediante uma prática reflexiva individual e coletiva. Tal prática, conforme Elliot (1997), consiste em buscar, de forma sistemática, o progresso do próprio exercício docente. Desse modo, ela abarca a aprendizagem sobre o estudante e sobre o ensino, mas, princi-palmente, a aprendizagem sobre si mesmo como professor e a utilização da reflexão a serviço do de-senvolvimento profissional docente. Essa reflexão implica o questionamento do que se faz, por quê e para quê se faz, ou seja, implica a consideração das dimensões prática, ética e política do ensino, se qui-sermos contribuir para a formação de estudantes-

-cidadãos mais livres e socialmente responsáveis, e não apenas para a fabricação de mão de obra em resposta às demandas do mercado. Em síntese, implica uma reconfiguração do desenvolvimento profissional docente na universidade, com impacto no estatuto e na qualidade da pedagogia.

No ponto seguinte, apresentamos pressupostos e implicações dessa reconfiguração, os quais serão ilustrados posteriormente através de duas trajetórias de mudança desenvolvidas nas nossas instituições. Embora distintas, ambas apontam caminhos para a indagação e a transformação da pedagogia na universidade.

Para a reconfiguração da profissionalidade docente

Recusando uma racionalidade instrumental na educação e defendendo uma visão construtivista, de orientação emancipatória, entendemos o pro-fessor como um intelectual crítico e um agente de transformação (GIROUX, 1997; KINCHELOE, 2006; SMYTH, 1987), o que supõe conceber a pedagogia como uma prática ética e política, que “propõe versões e visões particulares de vida cívi-ca, de comunidade, de futuro, e de como podemos construir representações de nós próprios, dos outros e do nosso ambiente físico e social” (GIROUX, 2013, p. 8). Contudo, como afirmam Barnett e Coate (2005), as reformas curriculares, no ensino superior, baseiam-se, frequentemente, numa noção performativa do currículo, mais focada em aspectos técnicos e econômicos do que nos propósitos da educação superior, ou na natureza e direção das experiências de aprendizagem que o currículo deve proporcionar aos estudantes.

O que aqui propomos é que o ensino superior seja orientado por valores humanistas e democrá-ticos, potenciadores de uma sociedade humanista e democrática. Nesse sentido, como afirma Giroux (1997, p. 163), o professor será um “intelectual transformador”, o que implica “tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico”. Tornar o pedagógico mais político significa “ajudar os estudantes a desenvolverem uma fé profunda e du-radoura na luta para superar injustiças econômicas, políticas e sociais, e humanizarem-se ainda mais como parte desta luta” (GIROUX, 1997, p. 163).

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Sandra Regina Soares; Flávia Vieira

Por outro lado, tornar o político mais pedagógico significa

utilizar formas de pedagogia que incorporem interesses políticos que tenham uma natureza emancipadora: isto é, utilizar formas de pedagogia que tratem os estudantes como agentes críticos; tornar o conhecimento problemático; utilizar o diálogo crítico e afirmativo; e argumentar em prol de um mundo qualitativamente melhor para todas as pessoas. (GIROUX, 1997, p. 163).

Tudo isso supõe que os professores se assumam como “arquitetos da pedagogia” (VIEIRA, 2013a) e desenvolvam competências de pensamento crítico, ação crítica e autoconhecimento crítico nos estu-dantes (BARNETT, 1997; BARNETT; COATE, 2005). Nessa perspectiva, o currículo-em-ação se desenvolve como praxis, ou seja, como uma prá-tica ética, reflexiva, historicamente constituída e socialmente situada, que procura dar expressão ao compromisso com propósitos educativos válidos (CARR, 2007; FREIRE, 2002). Esse compromisso com valores humanistas e democráticos requer uma pedagogia de natureza reflexiva, dialógica e emancipatória, particularmente relevante numa “era de supercomplexidade”, que exige da uni-versidade uma “epistemologia para a incerteza”, capaz de promover capacidades de reconceituação revolucionária, interrogação crítica da autoridade do conhecimento, tolerância da incerteza e ação crítica (BARNETT, 2000, p. 420). Os estudantes deverão não só construir conhecimento, como também sabedoria, entendida como a capacidade de discernir o que tem valor na vida, para si e para os outros, de tal forma que o conhecimento seja colocado a serviço da descoberta de soluções para os problemas vitais da humanidade (BARNETT; MAXWELL, 2008).

Promover o desenvolvimento profissional do-cente, na direção aqui proposta, implica redefinir o estatuto da pedagogia, o que passa por reconceituar as relações entre ensino, investigação e desenvolvi-mento profissional, atividades que tendem a ocupar lugares distintos (e, por vezes, conflitantes) no meio acadêmico. O que se propõe é um movimento que coloque a investigação a serviço da aprendizagem e do desenvolvimento profissional do professor, numa linha de trabalho próxima do que tem sido designado, na literatura anglo-saxônica, como

scholarship of teaching and learning (SHULMAN, 2004), e que aqui designaremos como indagação da pedagogia. A indagação da pedagogia implica o questionamento e a transformação das práticas de ensino e aprendizagem, a disseminação e o escru-tínio público de conhecimento e de experiências, e a constituição de comunidades (disciplinares ou multidisciplinares) de professores que se dedi-quem à pedagogia como campo de construção de conhecimento. Trata-se de fazer da pedagogia uma “propriedade comunitária” (SHULMAN, 2004), possibilitando o avanço da profissão e conferindo ao trabalho pedagógico do professor uma maior relevância social.

A indagação da pedagogia representa uma for-ma de investigação pedagógica que pode assumir duas modalidades principais: investigação sobre o ensino e no ensino (VIEIRA, 2005). A primeira se concretiza através de estudos descritivos sobre discursos, representações e práticas, e a segunda assume uma dimensão interventiva, aproximando--se da investigação-ação e implicando que o docente se torne professor-investigador, renovando e estu-dando sua própria prática com a participação dos estudantes. Os dois tipos de investigação podem se desenvolver de forma articulada, mas o segundo é ainda bastante marginal na maioria das instituições, pois não se reconhece, aí, o valor de uma epistemo-logia praxeológica na construção do conhecimento pedagógico. Na verdade, verifica-se uma tendência para a especialização da investigação sobre o en-sino, originada da separação entre quem investiga e quem ensina, com um reduzido impacto sobre as práticas. A essa tendência poderemos contrapor a necessidade de desenvolver também um movimento de vulgarização da investigação no ensino, pres-supondo que a indagação da pedagogia pode ser levada a cabo por qualquer professor interessado em compreender e melhorar sua ação (VIEIRA, 2005).

A indagação da pedagogia se desenvolve fre-quentemente em oposição a modos dominantes de trabalho acadêmico e apresenta enormes desafios aos docentes, uma vez que seu mérito e sua carreira se constroem, sobretudo, a partir da investigação de natureza disciplinar. A construção de culturas pedagógicas mais transformadoras exige não só a iniciativa dos docentes, mas também medidas institucionais de apoio ao ensino, por meio de polí-

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Aprendizagem, ensino e desenvolvimento profissional docente na universidade: desafios, perspectivas e trajetórias de mudança

ticas de incentivo à inovação e ao desenvolvimento profissional, com a criação de centros de assessoria pedagógica, financiamento de projetos de investi-gação pedagógica, apoio a publicações sobre pe-dagogia e dinamização de fóruns pedagógicos. Por outro lado, importa conferir maior valor ao ensino nas avaliações internas e externas das instituições, assim como na progressão da carreira. A retórica da qualidade do ensino, que hoje perpassa muitas instituições, terá de ser acompanhada da criação de condições para que os professores possam e queiram investir nessa qualidade.

Trajetórias de mudança – dois casos

As duas trajetórias de mudança aqui relatadas são de natureza distinta e foram desenvolvidas em diferentes instituições. Contudo, ambas se baseiam nos pressupostos já apresentados e buscam cami-nhos possíveis para a mudança pretendida, sendo passíveis de exploração em outros contextos.

Trajetória 1: A indagação da pedagogia – entre a investigação e o ensino

Relata-se aqui, brevemente, a história de um movimento de mudança centrado na indagação da pedagogia, desenvolvido desde 2000 no Instituto de Educação (IE) da Universidade do Minho (UM) em Portugal, e coordenado pela segunda autora deste artigo, no qual se assume a necessidade de colocar a investigação a serviço da pedagogia e do desenvolvimento profissional docente. Importa dizer que, em 2000, pouco se falava em pedagogia nas universidades portuguesas, e que, ainda hoje, a indagação da pedagogia, tal como aqui é entendida, é bastante marginal.

O movimento veio a integrar-se, em 2004, no grupo de pesquisa Ensino Superior: Imagens e Práticas, igualmente coordenado pela segunda autora, no Centro de Investigação em Educação da UM, integrando quatro projetos sequenciais de indagação da pedagogia, conduzidos entre 2000 e 2009 por equipes multidisciplinares de docentes de Educação, Psicologia, Letras, Ciências, En-genharia, Economia e Gestão, e Enfermagem1. O 1 Esse grupo de pesquisa integrou o desenvolvimento de outros pro-

jetos como, por exemplo, sobre formação docente na universidade,

grupo de pesquisa cessou sua atividade em 2011, mas, entre 2010 e 2013, foram realizados mais dois projetos em outro cenário: o Grupo de Trabalho - Inovação Pedagógica no Instituto de Educação (GT-IP.IE)2, criado em 2010 por solicitação da Presidência do IE, com a finalidade de promover processos de mudança.

Os seis projetos desenvolvidos integraram as seguintes atividades principais: construir referen-ciais; conhecer o contexto institucional; inovar e investigar as práticas; visibilizar a pedagogia; e sistematizar e teorizar o trabalho desenvolvido. Ao longo do tempo, foram sendo criadas comunidades de prática que envolveram mais de uma centena de docentes da UM nos vários projetos, tendo sido realizados seminários e oficinas de reflexão peda-gógica, assim como encontros científicos locais e nacionais.

Logo no primeiro projeto, construiu-se um referencial para a pedagogia na universidade, constituído por oito princípios transdisciplinares com potencial transformador: intencionalidade, transparência, coerência, relevância, reflexivida-de, democraticidade, autodireção e criatividade e inovação. Esses princípios viriam a orientar um vasto número de experiências de investigação no ensino, conduzidas e avaliadas em contextos diversos da formação graduada e pós-graduada, e publicadas pelos docentes – como, por exemplo, na coletânea editada por Vieira (2009a). Nessas experiências, eles assumiram o papel de professo-res-investigadores e recolheram informações com vistas à compreensão crítica de práticas inovadoras – dialógicas, reflexivas e promotoras da autonomia –, nas quais exploraram estratégias diversificadas, como a análise e a construção de casos, os diários e portfólios de aprendizagem, a auto e heteroava-liação, e a avaliação do ensino.

Reconhecendo que as universidades, como afirma Barnett (1997, p. 17), embora pleiteando mover-se no campo do conhecimento, sabem muito pouco sobre si próprias, e pressupondo que o conhecimento das culturas locais é essencial à compreensão das condições de transformação da

avaliação da qualidade de projetos inovadores, representações da vida acadêmica e criação de parcerias entre a universidade e os contextos profissionais.

2 O GT-IP.IE foi coordenado pela segunda autora, com a colaboração de Assunção Flores e Fernando Ilídio.

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Sandra Regina Soares; Flávia Vieira

pedagogia, foram também realizadas pesquisas sobre o ensino no contexto da UM, com a coleta de dados realizada através de questionário, entrevista e análise documental. Esses estudos produziram conhecimento útil sobre concepções de pedagogia, assim como sobre políticas e práticas de formação, permitindo-nos sinalizar a coexistência de condi-ções favoráveis e desfavoráveis à mudança.

Com base na sistematização e na teorização do trabalho realizado (VIEIRA, 2009b, 2013a, 2013b; VIEIRA; SILVA; ALMEIDA, 2012), podemos afirmar que a indagação da pedagogia cria con-dições para a reconfiguração do desenvolvimento profissional docente e para a mudança das culturas pedagógicas: favorece a superação do isolamento profissional, pela constituição de comunidades ba-seadas no diálogo interdisciplinar e na colaboração entre pares; promove a inovação sustentada numa abordagem investigativa; produz conhecimento pe-dagógico sobre os contextos institucionais; confere visibilidade à pedagogia, tomando-a como objeto de estudo e disseminação.

Contudo, o essencial, nesse tipo de projeto, a construção de novas formas de trabalho acadê-mico é também o que pode causar resistências à sua legitimação e sustentabilidade, na medida em que se questionam valores e práticas dominantes. Com efeito, o grupo de pesquisa que desenvolveu os primeiros quatro projetos foi extinto em finais de 2011, como resultado de um parecer emitido pelo Conselho de Acompanhamento do Centro de Investigação, que recomendava sua extinção por considerá-lo um grupo de desenvolvimento profis-sional, e não de investigação.3 Não sendo aqui o lugar para analisar esse episódio (VIEIRA, 2013b), importa sublinhar que ele sinaliza resistências à in-corporação de movimentos desviantes face ao que é convencionalmente aceito como investigação: uma investigação disciplinar(izada) e dissociada do ensino e do desenvolvimento profissional.

Embora o GT-IP.IE, no qual se realizaram mais dois projetos, se fundamentasse em pressupostos comuns aos projetos anteriores, o fato de se tratar de uma iniciativa com um enquadramento pedagó-gico, fora dos grupos de pesquisa, tornou-a menos

3 O Conselho de Acompanhamento produz pareceres sobre o Centro, mas a avaliação externa dos Centros é conduzida por um organismo governamental, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

controversa. Entretanto, a nova Presidência do IE, que tomou posse em 2013, propôs à coordenadora do GT-IP.IE a sua formalização através da cons-tituição de um Núcleo, o qual foi aprovado em finais desse ano, com a designação de Núcleo de Estudos e Inovação da Pedagogia no Instituto de Educação (NEIP.IE). Com início de funções em 2014, esse núcleo tem como objetivo promover e apoiar a realização e a disseminação de estudos e experiências, assim como o desenvolvimento de políticas e projetos de ensino. O texto da proposta apresentava, entre outros, o seguinte pressuposto: “a mudança das culturas pedagógicas deve implicar a articulação do ensino com a investigação sobre e no ensino e o desenvolvimento profissional dos docentes (numa abordagem próxima do que tem sido denominado, na literatura anglo-saxônica, como ‘scholarship of teaching and learning’)”.

Assim, e apesar dos contratempos e reviravoltas do movimento aqui relatado, permanece firme o propósito que, ao longo de mais de uma década, o tem inspirado, embora com a consciência de que a indagação da pedagogia ocupa um lugar indefi-nido, talvez porque não é só investigação nem só ensino, mas, antes, uma prática entre a investigação e o ensino, e, por isso mesmo, difícil de situar em contextos onde se dissociam essas duas atividades.

Trajetória 2: Em busca de legitimidade da docên-cia universitária

Nesta seção analisamos três iniciativas institu-cionais promovidas na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), no Brasil, no período compreendi-do entre 2009 e 2013, resultantes da parceria entre o grupo de pesquisa Docência Universitária e For-mação de Professores (DUFOP4) e a Pró-Reitoria de Ensino de Graduação, todas elas voltadas para o desenvolvimento profissional docente: o Colóquio Práticas Pedagógicas Inovadoras na Universidade, a Série Práxis e Docência Universitária e o Edital de Pesquisa Prodocência UNEB.

Essas iniciativas se apoiaram na compreensão 4 Inscrito na plataforma de grupos de pesquisa do CNPQ desde

2009, coordenado por Sandra Soares e Édiva Sousa, o DUFOP tem desenvolvido estudos, pesquisas e ações no campo da pedagogia universitária em diversos aspectos, como qualidade do ensino, inovação pedagógica, aprendizagem, relação professor e estudante, ética na docência.

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do desenvolvimento profissional docente como um processo contínuo de renovação e aperfeiçoamento dos conhecimentos profissionais, das represen-tações, da prática e, sobretudo, do compromisso profissional do docente para fazer face aos desafios inerentes ao contexto contemporâneo, marcado pela complexidade e incerteza. Elas são decorrentes das experiências espontâneas de aprendizagem, assim como das atividades conscientemente planejadas pelos docentes ou promovidas pela instituição, com vistas à melhoria da qualidade do processo de ensino e aprendizagem (DAY, 2001). Nessa perspectiva, o desenvolvimento profissional pres-supõe o engajamento, a implicação, o compromisso do docente com seu processo de aprendizagem e mudança. A reflexão sobre a prática se configura como elemento fundamental dessa concepção de desenvolvimento profissional e, portanto, das ini-ciativas aqui analisadas.

O Colóquio Práticas Pedagógicas Inovadoras na Universidade, realizado a cada dois anos (2009, 2011, 2013), concebe como inovadoras as práticas que rompem com o estilo tradicional de ensinar e aprender, centrado em uma didática da transmissão de um conhecimento fechado, que reduz o estudan-te a um sujeito destinado a receber passivamente esse conhecimento. Tais práticas expressam uma relação dialética entre teoria e prática e envolvem uma gestão participativa e estimuladora do prota-gonismo dos estudantes, concorrendo, assim, para formar cidadãos e profissionais críticos, reflexivos, autônomos, colaborativos, comprometidos com a aplicação do conhecimento em prol da melhoria da qualidade de vida de toda a sociedade.

Estudos diversos (CASTANHO, 2000; CUNHA, 2005; MORAIS, 2000; VEIGA; RESENDE; FONSECA, 2000) apontam como principais ca-racterísticas de práticas educativas inovadoras na universidade: a introdução, na aula, da complexi-dade do real e da incerteza; o exercício do espírito crítico, investigativo e criativo dos estudantes; a ênfase na abordagem interdisciplinar dos conhe-cimentos, estabelecendo conexões entre eles e os problemas do contexto da prática profissional, objeto da formação; a assunção da pesquisa como importante espaço de mediação entre o ensinar e o aprender; a adoção da extensão como ponto de partida e de chegada da apreensão da realidade; a

participação ativa dos estudantes na reelaboração do conhecimento e na ressignificação de atitudes e valores; a relação horizontal entre professor e estudantes, tendo em conta a singularidade de cada um; a formulação de objetivos claros e negociados, com vistas à transformação, e que permitem uma avaliação consistente do processo.

Esse colóquio tem se constituído em uma opor-tunidade importante de reflexão e compartilhamen-to dos saberes e práticas da docência universitária, contribuindo para sua valorização num cenário acadêmico de invisibilidade da docência, quando comparada à atividade de pesquisa. Para aqueles que inscrevem trabalhos vinculados a alguns dos eixos do colóquio (ensino envolvendo prática de pesquisa; ensino com experiência de extensão; experiências que oportunizam a formação de ati-tude ética e de valores entre os estudantes; ensino tendo como base tecnologias de comunicação e informação; práticas significativas de avaliação da aprendizagem), o processo de reflexão se ini-cia com a escrita e reescrita dos textos (a partir das indicações dos pareceristas que integram o comitê científico do evento, sempre no sentido de dar maior fundamentação e visibilidade à prática) e culmina com o compartilhamento e o debate, com professores de áreas e instituições de ensino superior diversas, sobre as experiências narradas nas sessões de comunicação oral.

Em cada uma dessas sessões, que acontecem simultaneamente em diferentes salas, apenas três ou, eventualmente, quatro trabalhos são apresenta-dos, de forma a garantir a existência de um espaço formativo de reflexão sobre as práticas inovadoras. Nesse espaço, a experiência de ensinar se configura como ponto de partida para uma análise crítica. Em que sentido a prática é inovadora? Como foi concebida e desenvolvida? Como foi a participa-ção dos estudantes? A que finalidades se propõe? Qual o impacto da prática na formação dos futuros profissionais? Nesse sentido, a reflexão sobre a prática passa, necessariamente, pela compreen-são da tarefa educativa, pelo reconhecimento das ações e operações indispensáveis para realizá-la, possibilitando o desenvolvimento da competência de autorregulação da docência e de construção de caminhos alternativos quando os objetivos não são alcançados.

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O caráter essencialmente formativo desse even-to, na perspectiva do desenvolvimento profissional docente e da superação do isolamento pedagógico do professor universitário, apesar de ainda atingir um público pequeno, é percebido pelos partici-pantes: “Foi um evento muito rico e estimulador do crescimento dos participantes. Todos estão de parabéns pela organização e cuidados em todas as etapas do evento. De um modo geral, o evento é de extrema relevância para pensarmos e refletirmos sobre a nossa ação docente”.5

A Série Práxis e Docência Universitária, apro-vada em 2011 pelo Conselho Superior da UNEB (CONSU), consiste em publicações anuais, no formato de livro impresso, com relatos analíticos e fundamentados de práticas pedagógicas inovadoras na educação superior. Adota como seus objetivos, dentre outros: socializar as práticas educativas inovadoras de docentes da UNEB, de todas as áreas de formação, e de outras instituições de ensino superior; valorizar o ensino de graduação e estimular a reflexão sobre a ação educativa como estratégia privilegiada de capacitação dos docentes da universidade. A esse respeito, é provocativa a afirmação de Rasco (2000, p. 41) de que damos pouca atenção ao nosso trabalho: “Deveríamos, pois, desenvolver inovações sobre nossa docência, preocupar-nos por sua qualidade e por seu valor educativo. A autonomia e a independência de que ainda gozamos nas universidades permitem exercer o discurso crítico”.

Em consonância com essa perspectiva formativa dos docentes da UNEB, cada volume da Série, em-bora aberto ao público externo, deve conter mais da metade dos artigos de autoria de seus professores, conforme a resolução do CONSU. Essa é uma pretensão ainda não atingida, pois a tradição dos docentes é de escrever e publicar resultados de pes-quisa. O desafio que a Série lança para os docentes da UNEB é de não só realizar práticas inovadoras, mas teorizar e refletir sobre elas, publicando-as, numa modalidade de investigação no ensino.

Os artigos submetidos à Série, em resposta à chamada pública amplamente divulgada no Brasil e, de forma mais limitada, no exterior, são enviados para pareceristas externos, em geral es-5 Informação retirada da Ficha Individual de Avaliação do I Colóquio

Práticas Pedagógicas Inovadoras na Universidade, em 2009.

tudiosos do campo da Pedagogia Universitária. As limitações por eles apontadas são encaminhadas para os autores, que procedem às reformulações. Especialmente no caso dos docentes da UNEB, os organizadores do volume, assim como os membros do comitê científico, têm acompanhado e apoiado esse processo de reformulação, em muitos casos disponibilizando referências bibliográficas requeri-das, em geral, por docentes de áreas mais distantes da pedagogia.

Esse processo de reflexão, escritura e reescritura dos artigos se configura como bastante formativo, pois organiza a compreensão do professor acerca da situação e de suas possibilidades de defender e de transformar convicções e práticas profissionais. Além de desenvolver novas formas de perceber a docência, possibilita ao professor construir e reconstruir sua atuação autônoma, ampliando seu conhecimento no campo da Pedagogia Universitá-ria. A esse respeito, é ilustrativo o depoimento dos autores de um dos artigos, enviado para o e-mail da Série Práxis:

Gostaríamos de manifestar nossa admiração ao cuidado e zelo que tiveram ao analisar e emitir parecer opinativo, e parabenizá-los pela acuidade e adequação técnica dos pontos muito acertadamente indicados. Desse modo, agradecemos pelas contri-buições para nossa reflexão. Concordamos que ‘há mais ênfase na fundamentação teórica e menos sobre a experiência pedagógica’ e que há fragilidades quan-to ao detalhamento da descrição e reflexão sobre a prática. No entanto, este é um limite real constatado na nossa prática docente, mas presente como desafio a ser vencido pela maioria dos pesquisadores que se dedicam ao estudo mais sistemático das questões da docência universitária.

Na breve trajetória da Série, já foram lançados os volumes I e II, intitulados, respectivamente, Ensino e aprendizagem: análise de práticas (SOA-RES; BORBA, 2012) e Ensino para a autonomia: inovando a formação profissional (SOARES; SO-ARES; BARREIROS, 2013). Os artigos enviados para o volume III estão presentemente em fase de avaliação e, em breve, será lançada a chamada de artigos para o volume IV.

O Edital de Pesquisa Prodocência UNEB, lançado em 2013, é a mais recente das iniciativas aqui analisadas. Teve como objetivo fundamental

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Aprendizagem, ensino e desenvolvimento profissional docente na universidade: desafios, perspectivas e trajetórias de mudança

incentivar e oferecer apoio material e técnico à criação de grupos de pesquisa (multidisciplina-res, intra ou interdepartamentais) voltados para a ampliação do conhecimento e para a busca e desenvolvimento de soluções inovadoras para os problemas do processo de ensino-aprendizagem na UNEB. Nesse sentido, os docentes foram convocados a apresentar um projeto de pesquisa relacionado, especialmente, a algum dos aspectos seguintes do processo de ensino e de aprendizagem: articulação entre práticas cotidianas de ensino e o projeto político pedagógico do curso de graduação; competências cognitivas e sociais dos estudantes relacionadas ao perfil profissional do egresso e estratégias para seu desenvolvimento; modalidades de articulação entre os conhecimentos teóricos e a prática profissional objeto de formação dos estu-dantes; estratégias de aprendizagem e fatores que dificultam a aprendizagem; práticas pedagógicas inovadoras na universidade; concepções e práticas de avaliação da aprendizagem.

Essa primeira chamada do Prodocência visava a apoiar dez projetos de pesquisa, com dez mil reais para cada um, a serem executados no prazo de vinte e quatro meses a contar da data de assinatura do Termo de Outorga. Oito projetos foram inscritos e cinco deles não se enquadravam nas regras do Edital, uma vez que alguns não eram, efetivamente, projetos de pesquisa, outros porque seus objetos e desenhos de pesquisa não contemplavam o pro-cesso de ensino-aprendizagem na UNEB. Os três projetos enquadrados foram enviados, cada um, a três pareceristas externos. As ponderações e reco-mendações formuladas por esses pareceristas foram organizadas em um parecer único pelo comitê ges-tor e encaminhadas aos autores para procederem às reformulações. Após esse processo, os projetos aperfeiçoados foram aprovados e, conforme os pesquisadores envolvidos, muitas aprendizagens foram oportunizadas nas trocas que se desenvol-veram. O processo formativo, na perspectiva do desenvolvimento profissional docente, se desen-volverá, entre outras formas, com a realização de três encontros dos pesquisadores dos projetos aprovados, ao longo dos vinte e quatro meses, para compartilhamento e reflexão sobre dificuldades, descobertas e necessidades de apoio decorrentes da condução das pesquisas.

A pesquisa, entendida como uma indagação sistemática e autocrítica para compreender e transformar uma realidade (STENHOUSE, 1996; IMBERNÓN, 2007), seja sobre o ensino ou no ensino (VIEIRA, 2005), além de possibilitar a su-peração do divórcio entre ensino e pesquisa – essa última geralmente realizada nos campos discipli-nares de cada docente –, é uma poderosa estratégia de desenvolvimento profissional, assegurando o protagonismo do docente no seu próprio processo de mudança.

A esse respeito, a experiência de pesquisa sobre o ensino desenvolvida pelo membros do DUFOP oferece um testemunho significativo, num estudo recente intitulado Qualidade do ensino de gradu-ação na perspectiva de professores pesquisadores: a relação entre ensino, pesquisa e desenvolvimento profissional docente6, integrado numa pesquisa interinstitucional coordenada por Maria Isabel da Cunha e realizado junto a dezenove professores do quadro efetivo da UNEB. Os professores infor-mam que, ao investigarem sobre representações e práticas de outros professores, têm vivenciado um processo formativo, pois, à medida que desenvol-vem a pesquisa, deparam-se com suas próprias re-presentações de docência e são desafiados a refletir sobre elas. Dessa forma, a pesquisa da docência, especialmente se desenvolvida em grupo e numa perspectiva construtivista, além de suscitar uma multiplicidade de saberes, fazeres e atitudes que se (re)configuram num espaço de conexões que necessitam ser refletidas, também contribui para que os participantes reflitam e ressignifiquem sua prática docente.

As iniciativas aqui analisadas buscam, no seu conjunto, conquistar maior reconhecimento e legitimidade para a pedagogia, num contexto em que ela ainda tem pouca visibilidade. A partir dos resultados iniciais de cada uma delas, podemos

6 Os resultados dessa pesquisa irão a público no livro Qualidade do ensino: tensões e desafios para os docentes universitários na contemporaneidade, em fase de edição pela EDUFBA, com finan-ciamento da FAPESB. Dentre os achados dessa pesquisa, salienta-se, aqui, a fragilidade da compreensão do princípio da indissociabilida-de entre ensino, pesquisa e extensão, assim como uma concepção de docência impulsionada pela investigação (HEALEY, 2008), na qual o professor desenvolve a relação entre ensino e pesquisa mediante a apresentação, aos estudantes, de resultados de pesquisa. Nessa situação, os estudantes são colocados frente à pesquisa, na condição de espectadores.

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afirmar que a reflexão e a investigação sobre as prá-ticas educativas, especialmente com os pares, são elementos fundamentais de políticas de incentivo ao ensino na universidade, gerando o desenvolvi-mento pessoal e profissional dos docentes, que, para tal, precisam contar com condições materiais e organizacionais.

Considerações finais

O ensino superior tem sofrido transformações profundas e aceleradas como resultado da sua de-mocratização, da globalização da sociedade e das crescentes demandas do mercado. Nele operam racionalidades conflitantes: ao lado de políticas e reformas (trans)nacionais, que colocam o ensino na agenda das instituições e pressupõem uma transformação das culturas pedagógicas, verifica--se uma crescente desprofissionalização, induzida pela empresarialização da universidade, pela burocratização das funções docentes e por ava-liações essencialmente focadas na produtividade científica, diretamente associadas a políticas de financiamento.

Portanto, ser professor, na universidade de hoje, coloca desafios e dilemas que não podem ser ignorados. Ao longo deste artigo, defendemos e ilustramos posições de resistência a culturas aca-dêmicas que não conferem ao ensino o estatuto que acreditamos que ele deve ter. As trajetórias apre-sentadas, necessariamente idiossincráticas, porque desenvolvidas em contextos particulares, mostram

que é possível valorizar e transformar a pedagogia universitária de diversas formas, passíveis de serem exploradas em outros contextos.

É significativo o fato de ambas as trajetórias terem emergido em pequenos grupos de pesquisa comprometidos com a docência universitária, fortemente enraizados nos contextos em que foram alicerçados e expandiram sua ação, aca-bando por dinamizar iniciativas muito diversas que envolveram um número elevado de docentes. Isso sinaliza a importância das iniciativas locais, mesmo quando elas são marginais e de impacto aparentemente limitado. Por outro lado, ambas as trajetórias sublinham o papel decisivo das políticas institucionais na sustentabilidade da mudança e apresentam iniciativas que podem incentivá-la e apoiá-la. Fundamentalmente, ambas mostram que é possível olhar criticamente o presente para projetar o futuro, através de movimentos de indagação e transformação.

Olhar criticamente o presente para projetar o futuro implica não se deixar domesticar por lógicas que retiram a dignidade do ensino e nos negam o di-reito de ser melhores educadores. Implica construir nossa identidade profissional de um modo íntegro, recusando a obediência a exigências irracionais e absurdas, que retiram o sentido de nossa ação. Implica desenvolver modos de trabalho acadêmico solidários e comprometidos com propósitos educa-tivos válidos, acreditando que podemos contribuir para a construção de sociedades mais humanistas e democráticas.

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Recebido em 19.01.2014

Aprovado em: 23.04.2014

179Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 179-189, jan./jun. 2014

Gisele Ruiz Silva

PROFISSÃO PROFESSOR: MODOS DE GERENCIAR A DOCÊNCIA

EM TEMPOS DE INClUSÃO

Gisele Ruiz Silva ∗

RESUMO

Este artigo busca investigar como é representada a figura do professor na escola inclusiva da atualidade. Tem como perspectiva teórico-metodológica algumas ferramentas da Análise do Discurso em Michel Foucault, operando especialmente com os conceitos de enunciação, enunciado, discurso e governamentalidade. Utiliza como objeto de análise reportagens da Revista Nova Escola (2008-2013) para mapear em seus ditos as enunciações que remontam o enunciado de professor-inclusivo, evidenciando o quanto o mesmo dá a ver o discurso da inclusão escolar em nossos dias. As análises provocam pensar o professor da escola inclusiva como um profissional cujas características sejam principalmente a flexibilidade, a dinâmica, a tolerância, a criatividade, ou seja, tudo o que se espera de qualquer outro profissional no contexto da lógica de governamento pautada no neoliberalismo.

Palavras-chave: Governamentalidade Neoliberal. Inclusão escolar. Profissão docente.

ABSTRACT

ThE TEAChING PROFESSION: SOME wAYS OF MANAGING TEAChING IN TIMES OF INCLUSION

In this paper we investigate how the figure of the teacher is represented in the current inclusive schools. Our theoretical-methodological perspective is based on some analysis tools of discourse analysis according to Michel Foucault, operating especially with the concepts of enunciation, statement, discourse and governmentality. Articles in the magazine Nova Escola (2008-2013) were used as the object of analysis, in order to map those statements which recall the enunciation of inclusive teacher, highlighting how much they show school inclusion discourses nowadays. The analyses provoke us to think inclusive school teachers as professionals whose characteristics would mainly be flexibility, dynamics, tolerance, creativity that is everything that is expected from any other professional in the context of a government logic based on neoliberalism.

Keywords: Neoliberal governmentality. School inclusion. Teaching profession.

∗ Mestre em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) – Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: química da vida e saúde, 2013. Coordenadora Pedagógica da Educação de Jovens e Adultos (CAIC/FURG). Professora da Educação Infantil da Rede Salesiana de Escolas em Rio Grande-RS. Pesquisadora colaboradora do Grupo de Estudos Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia (FURG). Endereço: Rua Henrique Goldberg, 675 – Cassino, Rio Grande-RS.CEP: [email protected]

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Profissão professor: modos de gerenciar a docência em tempos de inclusão

Introdução

Nas duas últimas décadas, as discussões a respeito da inclusão escolar têm se mostrado um tanto aumentadas. Embora ainda envolvida por certa polêmica, especialmente entre os professores que alegam não terem sido devidamente prepara-dos para atender os alunos especiais, a inclusão é uma realidade nas escolas; e, mais que isso, um imperativo da lógica de governamento neoliberal. Tomadas por estas discussões, lançamo-nos na escrita deste artigo, que objetiva investigar como é representada a figura do professor na escola in-clusiva da atualidade. Para isso, utilizamos como aporte teórico-metodológico algumas ferramentas da Análise do Discurso em Michel Foucault, as quais julgamos interessantes para a problematiza-ção do material empírico selecionado. Cabe des-tacar que este artigo é resultado de uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo geral analisar o discurso da inclusão escolar na atualidade, tendo como escopo as enunciações presentes na Revista Nova Escola a partir da implantação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva.

Como corpus discursivo deste estudo, elege-mos algumas reportagens da Revista Nova Escola (RNE) no período de 2008 a 2013. Esta escolha deu-se por se tratar de um periódico de ampla circulação nos espaços escolares, apresentando--se nas versões física e on-line. A RNE tem como público-alvo professores, gestores em educação e estudantes da área. Seu conteúdo organiza-se em seções específicas, orientando diferentes aspectos relacionados à educação. Além disso, a revista se destaca por divulgar tanto aportes teóricos quanto práticos, dentre os quais podemos citar as dife-rentes concepções pedagógicas, os roteiros para planejamento de aulas, os relatos de atividades e de experiências e as intervenções pedagógicas exi-tosas, apontando-os como caminho para o sucesso da prática pedagógica em todas as disciplinas.

A página da revista na internet apresenta diver-sas possibilidades de acesso a conteúdos educacio-nais variados (vídeos, blogs, jogos, fotos, planos de aula, entre outros), assim como um link para visualização das edições impressas. Além do site oficial, a referida publicação conta com ampla cir-

culação nas redes sociais – Facebook e Twitter. No Facebook, o item “Sobre” apresenta as seguintes informações: “Nova Escola é a maior revista de Educação do país. Tem como objetivo contribuir com a formação de professores e ajudar a melho-rar a Educação Básica no Brasil” (FACEBOOK, 2013). A RNE circula no Brasil desde março de 1986; é uma publicação da Fundação Victor Civita, uma entidade criada em 1985, sem fins lucrativos. Percebe-se sua popularidade pelo número expres-sivo de registros nos campos “curtiram” e “falando sobre isso”, 280.249 e 32.537, respectivamente. No Twitter, foram registrados 56.969 seguidores. Estas informações cutucam-nos a pensar que os ditos veiculados pela revista constituem-se em verdades que produzem o campo educacional, dada sua legi-timidade e a ampla circulação entre os profissionais da educação em nosso país.

Para acessarmos o material empírico que cons-titui o corpus discursivo de nossa investigação, procedemos da seguinte forma: inicialmente, mape-amos a versão on-line da revista pela possibilidade mais ampla de acesso. No sítio eletrônico, no link “Edições Impressas”, obtivemos cada edição a partir do ano de 2006, sendo permitida a navegação pelo conteúdo interno de todos os exemplares. Ali, usamos como segunda etapa da busca: o acesso aos sumários de todas as edições, procurando as manchetes que tratavam de inclusão escolar, além dos números de Edição Especial sobre Inclusão; neste caso, 2 exemplares. Foram totalizadas 25 reportagens. Como nosso objetivo é problematizar a discursividade produzida após a implementação da Política Nacional de Educação Especial na Pers-pectiva de Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), visto que tal documento mobiliza as escolas frente à extinção das classes especiais e impulsiona a inclusão dos alunos especiais nas classes comuns, optamos por fazer um recorte a partir desta data.

Curiosamente, no ano de 2008 não há nenhuma referência à inclusão nas reportagens da RNE. As-sim, a primeira reportagem que integra o corpus empírico de nossa análise é de abril de 2009, por ser esta a primeira edição após a implementação da Política Nacional de Educação Especial na Pers-pectiva da Educação Inclusiva a tratar da temática que é recorte desta pesquisa. Sendo assim, o estudo consta de 21 reportagens apresentadas no período

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de janeiro de 2008 a maio de 2013, totalizando cinco anos de publicações.

Após mapearmos as reportagens, tendo como ponto de partida suas manchetes, passamos à aná-lise do material propriamente dito. De acordo com as pistas deixadas por Michel Foucault (2010) sobre a Análise do Discurso, procuramos nos manter no nível do dito, entendendo-o como enunciações proferidas sobre determinado acontecimento que, articuladas, irão compor enunciados específicos de um objeto discursivo. Estes enunciados, embora possam emergir de diferentes campos do saber, se sustentam mutuamente, colocando em funciona-mento certos discursos. Neste artigo, apontamos, a partir das análises realizadas, que o Discurso da Inclusão Escolar se sustenta, entre outros, pelo enunciado Professor-inclusivo, assim nomeado por nós. A intenção deste artigo é problematizar este enunciado, evidenciando o quanto ele dá a ver o discurso da inclusão escolar na atualidade.

Para que nossa proposta de pesquisa possa ficar mais evidente ao leitor, passaremos nas próximas linhas a discutir os fundamentos teórico-metodoló-gicos que nos orientam, abordando o entendimento de enunciação, enunciado e discurso, esclarecendo, assim, de que forma operamos com os dados da pesquisa.

Delineamentos Metodológicos: a Análise do Discurso em ação

Como já anunciamos, assumimos como pers-pectiva teórica os estudos do filósofo francês Michel Foucault, que, ao romper com a lógica cartesiana de fazer pesquisa, desenha os cami-nhos de suas investigações no decorrer do próprio processo. Foucault parte de uma situação, fato, acontecimento para desmantelá-lo e remontá-lo, procurando entender as condições de possibilidade que permitiram a tal fato se dar de uma determinada forma e não de outra.

Nessa perspectiva, não estamos em busca de desvelar algo que tenha, porventura, ficado su-bentendido ou mascarado nos textos analisados. O que nos interessa é manter as análises no nível do dito. O que nos importa é o que de fato foi dito, escrito, narrado. Em A Arqueologia do Saber, Foucault (2010, p. 55, grifo do autor) destaca que

“certamente os discursos são feitos de signos, mas o que fazem é mais do que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutí-veis à língua e ao ato da fala. É esse ‘mais’ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever”.

O que o filósofo nos ensina é que não há pa-lavra que preceda às coisas ou coisa que preceda às palavras. Palavras e coisas se fazem, tomam sentido no ato da fala. No caso de nossa pesquisa, aquilo que pronunciamos, compartilhamos, lemos, produzimos a respeito da inclusão escolar, vai, a cada momento, alimentando e constituindo este discurso. Daí a importância de pensarmos nossos próprios pensamentos e entendermos o que, afinal, estamos produzindo acerca deste campo do saber.

As enunciações são as coisas ditas ou as ima-gens apresentadas. A recorrência desses ditos que – mesmo que em diferentes momentos e diferentes contextos – remetam a um mesmo ponto, forma um conjunto de enunciações que Michel Foucault (2010) chamou de enunciado. Os enunciados são também coisas ditas, porém num nível mais com-plexo que as enunciações. Para que se constitua como um enunciado é preciso que seja reconhecido em três aspectos: Quem fala? De onde fala? Para quem fala? Ou seja, o status de quem fala, de que lugar fala e a quem se destina esta fala. Uma fala precisa, para ser um enunciado, ter significado, sentido, efeito em uma sociedade. Assim, os enun-ciados são raros, e se um enunciado é válido em determinado contexto, em outro talvez não o seja. Se tomarmos o enunciado de Professor-inclusivo no contexto da Educação do início do século passado, por exemplo, possivelmente este não teria sentido para a sociedade daquele momento histórico.

Retomando o raciocínio da composição da Análise do Discurso, podemos dizer que diferentes enunciados comporão o que chamamos de discurso. Um discurso é a reunião de diferentes enunciados que convergem para um mesmo objeto discursivo e que são tensionados por relações de poder. Um discurso não se sustenta sozinho, ele precisa estar em relação com outros discursos e fazer parte de uma mesma formação discursiva. Só podemos pensar a necessidade/possibilidade de inclusão escolar porque a contemporaneidade está imersa em uma lógica que nos permite pensar, seja pelo viés político, cultural ou social, que todos os indivíduos

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têm direito à igualdade de acesso à Educação, por exemplo.

Por isso, dizemos que um discurso é sempre temporal e histórico; que se sustenta dentro de um contexto e uma época específica. Em outros contextos e outras épocas, o discurso não será o mesmo. Ao fazer uma retomada do que conceituou como discurso, Foucault (2010, p. 136-137, grifo do autor) afirma que

[...] ele [o discurso] aparece como um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem suas regras de apa-recimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas ‘aplicações práticas’), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta e de uma luta política.

Nesse sentido, apontamos o Discurso da In-clusão Escolar como um imperativo do nosso tempo. Um discurso que se mantém em relação com outros, como os discursos político, científico, educacional, dos direitos humanos. Remontar as enunciações e dar a ver o enunciado de professor--inclusivo que auxilia na sustentação do Discurso da Inclusão Escolar pela ótica da Revista Nova Escola é o que nos propusemos a fazer aqui. Pas-saremos a isto, então.

Professor-inclusivo: o profissional da docência produzido na lógica neoliberal

Conforme anunciado anteriormente, durante nossa investigação, fizemos a análise de reporta-gens sobre inclusão escolar na Revista Nova Escola e, dentre os diferentes ditos ali apresentados, pude-mos agrupar um conjunto específico de enunciações que remetiam ao tipo de profissional necessário para atender à demanda da escola atual. Trata-se de um professor capaz de “gerenciar as situações cotidianas” (RODRIGUES, 2009a) da escola inclu-siva. Nesta pesquisa, nosso objetivo foi remontar um conjunto de enunciações, compondo, assim, um enunciado dentro do Discurso da Inclusão Escolar. Dessa forma, o enunciado que aqui iremos discutir é o de professor-inclusivo, buscando situá-lo no contexto histórico contemporâneo e entender suas

relações com a produção de verdades sobre a edu-cação na atualidade.

Os excertos sobre o perfil do professor extraídos das reportagens provocam-nos o pensamento de que, embora o foco da escola inclusiva seja o aten-dimento aos estudantes com necessidades educati-vas especiais, o que vai fazer a roda da maquinaria da inclusão girar é a ação do professor. Destacamos o excerto a seguir que corrobora esta ideia:

Quando se tem clareza de que cada estudante é único e que é preciso oferecer diferentes estratégias para atender às necessidades de cada um, ensinar alguém com deficiência passa a ser somente mais uma tarefa docente” (MOÇO, 2011).

É o professor quem, de acordo com a enunciação acima, fará – ou não – acontecer os processos de inclusão.

Organizamos os excertos em grupos pela ideia por eles apresentadas e obtivemos algumas caracte-rísticas do perfil esperado de um professor-inclusivo. No discurso da RNE este sujeito deve ser: compre-ensivo, tolerante, criativo, dinâmico, observador, ousado, investigativo, flexível, estudioso; ter espírito de equipe; romper com práticas tradicionais; ter uma nova postura e; perceber-se como responsável pelo sucesso – ou fracasso – da inclusão (RODRIGUES, 2009c; BIBIANO, 2010; NICOLIELO, 2012).

Ao olharmos para o material empírico com as lentes teórico-metodológicas dos estudos foucaul-tianos, especialmente com a ferramenta da gover-namentalidade, podemos entender o quanto esse novo professor está, querendo ou não, a serviço das exigências impostas pela lógica neoliberal. Para melhor evidenciar ao leitor nossas reflexões, trataremos, mesmo que brevemente, do entendi-mento de governamentalidade e neoliberalismo para então aprofundar as discussões do enunciado de professor-inclusivo no contexto atual.

O termo governamentalidade foi tratado por Michel Foucault (2008) quando, em suas pesquisas, buscava entender as práticas de gerenciamento da população. Em linhas gerais, governamentalidade refere-se à forma de governamento/condução do corpo populacional de uma dada sociedade, a fim de que se garanta a redução dos riscos para a própria população. Na lógica do neoliberalismo, a governa-mentalidade, além de buscar a diminuição do risco

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social, dar-se-á também no sentido de minimizar o envolvimento do Estado, uma vez que se trata de um conjunto de “práticas que constituem formas de vida, cada vez mais conduzidas para princípios de mercado e de autorreflexão, em que os processos de ensino/aprendizagem devem ser permanentes” (LOPES, 2009, p. 154).

Dessa forma, um dos principais objetivos do Es-tado neoliberal governamentalizado é proporcionar condições para que a população se autogerencie, se autogoverne, estando, ao mesmo tempo, inserida e atuante nas tramas do mercado. Segundo Lopes (2009, p. 155),

[...] dentro do neoliberalismo, como forma de vida do presente, certas normas são instituídas não só com a finalidade de posicionar os sujeitos dentro de uma rede de saberes, como também de criar e conservar o interesse em cada um em particular, para que se mantenha presente em redes sociais e de mercado.

Nesse viés, várias ações são disponibilizadas aos sujeitos para que se permitam capturados pelo sistema, interpelados pelas estratégias de sedução e tornem-se partícipes dos jogos de mercado. Entre essas ações, podemos citar os programas de assis-tência do Governo Federal, nas mais diversas áreas, e ainda as políticas de inclusão social de forma geral. Neste artigo, no entanto, nos propusemos a discutir o que se refere à inclusão escolar.

Com a centralidade da educação inclusiva a partir da Política Nacional de Educação Especial na Pers-pectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), se efetiva no Brasil uma nova característica das salas de aula. Os sujeitos que antes desse documento poderiam estar incluídos nas classes comuns, após essa data devem estar incluídos. Tal deslocamento impulsiona um repensar e refazer pedagógicos, os quais são atribuídos ao professorado. A esse respei-to, Fernanda de Camargo Machado (2011, p. 57, grifo da autora) aponta que mais do que um lugar de destaque, o professor “ocupa um status de ‘kit salva-vidas’ para o sucesso do grande projeto da inclusão educacional”. Nas reportagens analisadas, pode-se notar o quanto os ditos apontam a figura do professor como o sujeito capaz de garantir a efetivação da inclusão.

O professor tem em mãos a grande chance de dar autonomia a uma pessoa. (RODRIGUES, 2009d, grifo nosso).

Antes de sugerir que um aluno tem hiperatividade, veja se é sua aula que não anda prendendo a atenção. (BIBIANO, 2010, grifo nosso).

Mesmo nos casos em que não há a certeza de que o estudante tem altas habilidades, o estímulo do professor é bem-vindo. (RODRIGUES, 2009a, grifo nosso).

Nessas enunciações, percebe-se a marca de um modelo de professor que deve atender às demandas de um cenário político cuja engrenagem discursiva atribui a todos e a cada um a tarefa de contribuir para a manutenção de um bem-estar geral. Essa mo-bilização por um fazer pedagógico capaz de atender à diversidade reverte-se em “saberes sobre a inclu-são que são aclamados pelos próprios professores [...] [e são] tidos como extremamente necessários, como motores para uma boa ação pedagógica e [...] para a concretização de uma sociedade mais próspera” (MACHADO, 2011, p. 64).

Na esteira da necessidade de produção de sabe-res sobre os sujeitos incluídos, tendo no professor a mola mestra desta ação, manifestações como “[...] o caminho para uma inclusão efetiva é a formação” (MONROE; SANTOMAURO, 2010, grifo nosso) legitimam a ideia de que na formação docente está a possibilidade de ampliação de horizontes, de apro-priação e aplicação de uma gama cada vez maior de conhecimentos. No sentido da lógica neoliberal que rege nossa sociedade, quanto mais conhecimentos um sujeito possui, mais é possível que se autogo-verne e, ao mesmo tempo, seduza outros membros da sociedade a compartilhar destas ações.

Um exemplo bastante visível desse processo de sedução são os concursos que destacam as melhores práticas pedagógicas. Uma das reporta-gens analisadas apresenta a vencedora do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10 do ano de 2011. Ao explicar sua proposta de trabalho, a professora destaca: “Quando um projeto é bem planejado, ele naturalmente inclui todos os estudantes, inclusive os com NEEs [necessidades educativas especiais]” (NICOLIELO, 2012, grifo nosso). A expressão “bem planejado” nos coloca a pensar nas dife-rentes facetas que nosso professorado tem que dar conta para bem atender a todos. Tal ideia de um pro-fissional polivalente, capaz de desempenhar o seu papel com qualidade e eficiência, está fortemente

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atrelada às exigências do mundo neoliberal no qual o sujeito ideal “é aquele que é capaz de participar competindo livremente e que é suficientemente competente para competir melhor fazendo suas próprias escolhas e aquisições” (VEIGA-NETO, 2000, p. 199-200).

A aposta em uma liberdade para a realização das próprias escolhas, vastamente difundida pelo neoliberalismo, está fortemente atrelada a uma combinação entre sujeição – condição do sujeito conformado, guiado e moldado para fazer suas escolhas – e expertise – condição do sujeito que supostamente sabe só o que lhe convém. Combi-nação esta que, segundo Veiga-Neto (2000, p. 202), cria “a ilusão de que cada um é capaz de dirigir ativa e racionalmente suas escolhas”. No entanto, ao contrário do que uma leitura aligeirada possa nos permitir, essa liberdade defendida pelo neoli-beralismo está contida em um espaço definido de possibilidades que nos permite fazer determinadas escolhas, circular por entre um número pré-definido de opções. Ela é primordial para que nos tornemos sujeitos; sujeitos que desejam, produzem, conso-mem, escolhem, a partir de inúmeras interpelações. Por nossas escolhas supostamente livres, nos tor-namos “experts” no que pensamos ser o que nos convém, mas que, no entanto, são opções colocadas pela própria lógica neoliberal.

Outras questões permeiam e constituem o que aqui chamamos de professor-inclusivo. Entre elas têm-se os processos de formação docente no contexto da inclusão, que visam constituir um professor polivalente, flexível e tolerante. Esses processos agem como um artefato que controla e produz determinado tipo de profissional, atendendo à racionalidade política de nossos dias. O princípio do inacabamento característico da contemporanei-dade “tem no professor um agente e um alvo, já que o sujeito docente vai sendo constituído numa prática discursiva inclusiva [...] [em que] é preciso conhecer para se aperfeiçoar, sendo recomenda-da uma contínua busca pelo aperfeiçoamento” (LUNARDI-LAZZARIN; MACHADO, 2009, p. 10). Apontando para estas questões, destacamos os excertos a seguir:

[...] o foco do trabalho não é clínico. É pedagógico. (MONROE; SANTOMAURO, 2010, grifo nosso).

[...] O professor deve entender as dificuldades dos estudantes com limitações de raciocínio e desen-volver formas criativas para auxiliá-los. (RODRI-GUES, 2009c, grifo nosso).

[...] incluir [...] significa pensar em alternativas para quem tem dificuldade de percorrer a via tradi-cional. (RODRIGUES, 2009b, grifo nosso).

Para enfrentar momentos que fogem da rotina, o caminho é compreender que as crianças têm carac-terísticas específicas e procurar conhecer bem cada uma delas. (BIBIANO, 2011, grifo nosso).

Pelas enunciações acima, percebemos que, na perspectiva da escola inclusiva, a ênfase é em um trabalho de cunho pedagógico, para o qual cabe ao professor conhecer e compreender seus educandos, desenvolver formas criativas de ação e pensar alternativas para seu fazer. Saberes que, embora previstos em espaços de formação inicial, não podem ser totalmente constituídos ali. Isso aponta um deslocamento no processo formativo. Se até meados do século passado a prática pedagógica era desenhada e aprendida especificamente nos cursos de formação inicial, nos dias de hoje tal formação não é mais suficiente. Na perspectiva da escola inclusiva, é central que o sujeito docente seja capaz de gerenciar as questões cotidianas por meio da compreensão das diferenças entre seus estudantes (MEIRELLES; QUEEN; SOARES, 2012; SALLA, 2013), entendendo e respeitando as limitações de cada um, construindo, ao mesmo tempo, um conjunto de saberes sobre a inclusão e seus sujeitos. De acordo com estas características, o professor da escola inclusiva do século XXI carrega consigo o perfil de profissional esperado pela lógica neoliberal.

Abordando essas modificações no cenário do-cente, compartilhamos das ideias defendidas por Saraiva e Veiga-Neto (2009), quando eles mostram algumas transformações tanto no neoliberalismo atual quanto na racionalidade governamental da qual somos produtos e produtores. Segundo esses autores, no contexto de uma sociedade disciplinar, a fábrica era o centro da produção e os sujeitos fi-cavam ali dispostos lado a lado, executando tarefas bem definidas. Na sociedade de seguridade há um deslocamento das formas de produção. A fábrica perde espaço e a empresa ganha lugar nesse cenário.

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Nesse novo contexto, a figura do operário é substituída pela de outros sujeitos que, embora em menor número, possuem funções de maior amplitude no âmbito das invenções – e não mais produções/reproduções. Dessa forma, “está-se diante de um trabalho que já não prioriza o corpo e seus movimentos mecânicos, mas a alma e o seu poder criativo” (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p. 191).

Nesse sentido, o gerenciamento dos indivíduos, no contexto da sociedade disciplinar, se dava priori-tariamente no corpo e na capacidade de produção, ou seja, de forma material. Na atualidade, no contexto da sociedade de segurança, a vigilância vai atuar sobre o cérebro e sua capacidade de invenção, de for-ma imaterial. Assim, a esfera da produção evidencia as consequências do contexto: o trabalho imaterial passa a determinar as relações de trabalho. Isso não porque o trabalho material tenha deixado de existir, mas porque as características do imaterial compõem (veloz e progressivamente) as relações de trabalho de modo geral. Os afetos e ideias da multidão devem servir ao patrão, não importando se o trabalhador está em uma fábrica ou em uma empresa virtual, por exemplo. Além disso, também se diluem as fronteiras entre tempo de vida e tempo de trabalho.

Na sociedade de segurança, as características do trabalho imaterial – ao atravessarem e comporem as relações sociais, culturais, políticas e econômicas – produzem modos de vida. É assim que nossas formas de ser e agir no mundo são engendradas pela produção biopolítica. Se por um lado produz subjetividades alinhadas ao capitalismo flexível, por outro lado o imaterial só pode ser construído em comum. Lidando diretamente com a criação e os afetos, não pode prescindir da ideia de rede, da presença de outros. E é justamente aí que reside sua potência.

Em se tratando da inclusão escolar, para que a sociedade obtenha aquilo que aqui chamamos de professor-inclusivo – um professor capaz de dia-logar com a lógica de governamento neoliberal – é posta em funcionamento uma série de estratégias de gerenciamento do professorado no sentido de envolver e seduzir cada vez mais e melhor esses sujeitos pelas constantes interpelações, seja das mídias, das políticas públicas, dos discursos de

alteridade, de benevolência, entre outros. O que nos cabe aqui é pensar e problematizar que as práticas de inclusão estão tomadas de relações de poder/saber que passam a ser incutidas pelos sujeitos envolvidos, dada a visibilidade que eles desfrutam. Tomemos as palavras de Foucault (2003, p. 167), que, ao tratar a eficácia do poder produzido pelas instituições panópticas, nos aponta que uma “su-jeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia”. E acrescenta:

Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se princípio de sua própria sujeição. Em consequência disso [...] o poder externo [...] tende ao incorpóreo; e quanto mais se aproxima desse limite, mais esses efeitos são constantes, profundos, adquiridos em caráter definitivo e continuamente recomeçados. (FOUCAULT, 2003, p. 168).

Nessa correnteza, a educação contemporânea, no âmbito da escola, age na formação não só dos estudantes, mas antes e, sobretudo, na formação dos profissionais que atuam na área, assumindo a postura de que os bons professores “são aqueles que não param de estudar” (MOÇO; MARTINS, 2010). Dessa forma, a escola inclusiva, por suas premissas e objetivos, pode ser analisada com consideráveis aproximações da lógica empresarial do nosso sécu-lo. Isso porque ambas – escola e empresa – atuam como espaços educativos, embora cada qual com suas “invenções”.

Para melhor entendermos a relação entre Estado neoliberal e lógica empresarial, assim como seus efeitos no campo educacional, recorremos a Veiga--Neto. O autor nos elucida que no neoliberalismo ocorre

[...] uma reinscrição de técnicas e formas de saberes, competências, expertises, que são manejáveis por expertos e que são úteis tanto para a expansão das formas mais avançadas do capitalismo, quanto para o governo do Estado. Tal reinscrição consiste no deslocamento e na utilização de técnicas de governo que visam fazer com que o Estado siga a lógica da empresa, pois transformar o Estado numa grande empresa é muito mais econômico – rápido, fácil, produtivo, lucrativo. Isso sem falar que as próprias

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empresas — principalmente as grandes corporações – têm muito a ganhar com o empresariamento do Estado. (VEIGA-NETO, 2000, p. 198).

A relação, que para nossa análise nos parece fundamental, refere-se ao fato de que a partir da incorporação dos princípios neoliberais no geren-ciamento do Estado, determinadas ações próprias do sistema empresarial passam a ser disseminadas em diferentes instâncias da sociedade. Isso instaura a exigência de um novo tipo de sujeito, um homem já não mais “iluminista/moderno, idealizado como in-divisível, unitário, centrado e estável, amparador e ao amparo do Estado” (VEIGA-NETO, 2000, p. 199), característico do século passado. Esse novo sujeito que emerge no contexto neoliberal, especialmente nas últimas décadas, é um sujeito capaz de gerenciar--se diante de “infinitas possibilidades de escolha, aquisição, participação e consumo” (VEIGA-NETO, 2000, p. 199). O que queremos apontar é que, assim como na constituição do início da Modernidade foi a instituição escolar a maquinaria fundamental para formar o sujeito moderno, para a formação do sujeito neoliberal que se espera hoje, ainda será no âmbito da escola – não só, mas principalmente –, no espaço escolar, com suas práticas e seus profissionais que isso tende a se efetivar.

Assim, no sentido de uma lógica empresarial, bem pertinente aos princípios neoliberais, pode-mos apontar que o processo de constituição do professor-inclusivo ativa pelo menos três princípios da educação corporativa1 característica do empre-sariamento do Estado, os quais são amplamente discutidos por Maurício dos Santos Ferreira (2009). São eles: aprendendo a aprender; comunicação e colaboração; raciocínio criativo e resolução de problemas.

Estes três princípios estão intimamente inter-ligados e, desta mesma forma, os percebemos na constituição do professor-inclusivo, tendo em vista que se aproximam dos quatro pilares da Educa-ção divulgados pela UNESCO no ano de 20102. Aprendendo a aprender refere-se a um conjunto de

1 Entende-se por educação corporativa a articulação entre Educação e Trabalho. A esse respeito ver Ferreira (2009).

2 Referimo-nos aqui aos quatro pilares para a Educação apresentados no Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors (2010). São eles: aprender a aprender, aprender a conviver, aprender a fazer, aprender a ser.

novas atividades, habilidades e posturas que terão de ser adquiridas pelo trabalhador. Vai desde a “conhecida responsabilidade de garantir qualidade [...] até a implementação de melhorias contínuas”. Comunicação e colaboração é o princípio que se baseia “em habilidades. [...] Ouvir, expressar-se, colaborar com os colegas”. E raciocínio criativo e resolução de problemas refere-se à expectativa de que “o trabalhador dê conta das mudanças que chegam” (FERREIRA, 2009, p. 74).

Nesse sentido, espera-se que o profissional do sistema neoliberal seja capaz de analisar, fazer perguntas, ir em busca de esclarecimentos, pla-nejar opções para as diferentes demandas que lhe são apresentadas, enfim, que possa gerenciar a si mesmo. No cenário da inclusão escolar, o que se percebe, especialmente pelas enunciações mapea-das na Revista Nova Escola, é que os professores e colaboradores (auxiliares, atendentes e demais profissionais desta instituição) vivenciam cons-tantemente os princípios anteriormente discutidos. Destacamos, a seguir, alguns excertos que acenam para uma possível articulação entre estes princípios empresariais e o campo da educação:

Com parceria, aos poucos, conseguimos que ele se interessasse mais pelos conteúdos. (BIBIANO, 2011, grifo nosso).

R. não está sozinha nesse trabalho. Ela conta com o apoio diário de uma auxiliar, que a ajuda na execução das atividades, na alimentação e na higiene pessoal de I. Outra parceira é a professora do atendimento educacional especializado (AEE). Num encontro semanal de uma hora, elas avaliam as necessida-des da menina, pensam nas estratégias a utilizar e fazem a adaptação dos materiais. (BIBIANO, 2011, grifo nosso).

Nos excertos apresentados, expressões como parceria, apoio, avaliação e criação de estra-tégias marcam características do trabalho para o sucesso da inclusão, e são também marcas de um tipo específico de profissional do sistema neoliberal da atualidade.

Considerações finais

Os estudos realizados neste artigo nos movem a pensar que o professor, no contexto do neolibera-

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lismo, não é um profissional à parte no discurso do mundo do trabalho. Ao olharmos para a educação como potente ferramenta das práticas de gover-namento, precisamos ter o cuidado de percebê-la como parte da engrenagem que opera na mesma lógica que nos sustenta enquanto sociedade. Carac-terísticas como: ter boa formação; usar novas tec-nologias; atualizar-se nas novas didáticas; trabalhar em equipe; planejar e avaliar sempre; ter atitude e postura profissionais (MOÇO; MARTINS, 2010) são imprescindíveis para o sucesso do professor do século XXI.

Cabe destacar que nas investigações que rea-lizamos no material empírico de nossa pesquisa, percebemos que nos últimos meses referentes ao período de análise das publicações da Revista Nova Escola acontece aquilo que Foucault (2010) chamou de descontinuidade do discurso, ou seja, os ditos que até certo momento se repetiam, apon-tando para um determinado discurso em ação, deixam de ocorrer, indicando um deslocamento na lógica discursiva. No caso dos nossos estudos, notamos que a partir da edição de junho de 2012 até a edição publicada em maio de 2013 não houve mais reportagens que remetessem especificamente para os processos de inclusão. As enunciações já não mais tratam de práticas específicas para alunos incluídos ou referem-se a relatos sobre a possibili-dade de inclusão.

A discursividade já não procura mais convencer o professorado de que se possa/precise incluir os estudantes. Podemos pensar que a inclusão deixa de ser uma possibilidade e passa a ser algo dado como natural. É a ação do professor que deve se adequar a atender todos os alunos, com ou sem necessidades educativas especiais. Nas últimas reportagens, per-cebemos que as enunciações tratam cada vez mais a respeito da postura docente, apresentando-lhes

estratégias de envolver a todos os alunos, respei-tando suas peculiaridades, interesses e limitações (MEIRELLES; QUEEN; SOARES, 2012; SALLA, 2012; SALLA, 2013). Tais reportagens tratam da prática pedagógica em si, enfatizando a lógica da escola inclusiva. Ao pressupor que os professores já estão convencidos de que a inclusão é uma rea-lidade, as reportagens tratam de destacar e reforçar as características de um professor-inclusivo, que é aquele produzido na e pela lógica da governamen-talidade neoliberal.

Nossa hipótese a esse respeito é que tal fato possa ser indício de que o foco da discussão sobre inclusão não é mais convencer os professores de que ela seja possível, a partir do argumento de que os alunos sempre podem de alguma forma aprender algo no interior das escolas. Conforme percebemos nas enunciações da Revista, o foco da discursividade atual, o que está na “ordem do discurso” (FOUCAULT, 2006), é mostrar que in-diferente do público que se tenha na sala de aula, este professor, o professor-inclusivo, o profissional da docência deste século, deve ser um profissional flexível, dinâmico, tolerante e criativo, indepen-dente dos sujeitos que habitam o espaço escolar. Com isso, evidenciamos que tudo o que se espera do professorado são características intrinsecamente relacionadas com qualquer outro profissional da sociedade neoliberal.

Nesse contexto, notamos o quanto a Educação enquanto uma ciência pedagógica sofre desloca-mentos frente às mudanças no contexto histórico, político e social. Assim como os professores têm que ser profissionais neoliberais, a Pedagogia como ciência da Educação também está sujeita a atuar na e para o sistema neoliberal, uma vez que, por suas ações, constituirá outros sujeitos dentro desta mesma lógica.

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Recebido em: 14.12.2013

Aprovado em: 28.03.2014

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Iron Pedreira Alves; Juan Ignacio Pozo

lAS CONCEPCIONES IMPlÍCITAS DE lOS PROFESORES

UNIVERSITARIOS SOBRE lOS REQUISITOS PARA El

APRENDIZAJE

Iron Pedreira Alves∗

Juan Ignacio Pozo ∗∗

RESUMEN

El presente artículo tuvo como objetivos (1) analizar las concepciones de profesores universitarios sobre la relación entre los requisitos para el aprendizaje presentados por sus alumnos y la enseñanza/aprendizaje de sus disciplinas, bajo el marco conceptual de las teorías implícitas sobre enseñanza y aprendizaje, y (2) evaluar posibles diferencias entre las concepciones de profesores de psicología de la educación y de profesores de otras asignaturas de cursos de formación docente. Para eso se ha llevado a cabo entrevistas semiestructuradas con 32 profesores de universidades públicas y privadas del área de la educación, en el estado de Bahia, Brasil. El grupo de entrevistados fue compuesto por 16 profesores de Psicología de la educación y 16 de otras asignaturas. Las entrevistas fueron grabadas, transcriptas y analizadas por medio del análisis de contenido. Los resultados sugieren que los profesores adoptan en su mayoría una concepción llamada interpretativa sobre la enseñanza y el aprendizaje, lo que está de acuerdo con estudios anteriores sobre teorías implícitas. Además de esto no fueron encontradas diferencias nítidas entre las concepciones de los dos grupos de profesores en relación a los requisitos para aprender y la enseñanza y aprendizaje de las respectivas disciplinas.

Palabras-clave: Teorías implícitas. Requisitos para aprender. Educación superior. Formación docente.

ABSTRACT

ThE IMPLICIT CONCEPTIONS OF UNIvERSITY PROFESSORS ABOUT ThE REQUIREMENTS FOR LEARNING

This study aims (1) to analyze the conceptions of university professors about the relationship between the learning requirements presented by their students and the learning/teaching of their disciplines, within the conceptual framework of implicit theories on teaching and learning, and (2) to evaluate possible differences between the conceptions of professors of educational psychology and professors in charge of other training courses. A semi-structured interview was held with 32 professors from

∗ Psicólogo. Master en Educación. Doctorando en Psicología de la Educación. Profesor de Psicología de la Educación en la Universidade Estadual de Feira de Santana. Rua Jayme Sapolnik, 1185, apto 701B, Imbuí, Salvador-BA. CEP: 41720-075. E--mail: [email protected]∗∗ Psicólogo. Doctor en Psicología. Catedrático en el Departamento de Psicología Básica de la Universidad Autónoma de Madrid. E-mail: [email protected]

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Las concepciones implícitas de los profesores universitarios sobre los requisitos para el aprendizaje

public and private universities in the area of education, in the state of Bahia, Brazil. The interviewed group was formed by 16 professors from educational psychology subject and 16 from other subjects. The interviews were recorded, transcribed and analyzed according to the content analysis. The results suggest that the professors adopt mostly an interpretative conception of teaching and learning, which agrees with previous studies on implicit theories. Besides this, clear differences between the conceptions of the two groups of professors about the requirements for learning and teaching in their respective disciplines were not found.

Keywords: Implicit theories. Requirements for learning. Higher education. Teacher training.

1. Introducción

El educador estadunidense Joseph Novak (1997)1, hace más de treinta años, ya hablaba sobre la importancia de comprender la naturaleza de los procesos de aprendizaje para lograr una mejora en la educación. Junto con David Ausubel, Novak ha destacado los conocimientos previos del alumno como el factor más importante relativo al éxito de dichos procesos (MIRAS, 1993).

La idea de que aprendemos a partir de lo que ya sabemos, si no está consensuada en psicología, es por lo menos bastante aceptada por aquellos que se han dedicado al tema. Los esquemas de asimi-lación propuestos por Piaget, la zona de desarrollo próximo sugerida por Vygotsky o las estructuras cognitivas referidas por Ausubel, son algunos de los conceptos bastante conocidos y que hacen, cada uno a su manera, hincapié a qué aspectos de la experiencia previa del sujeto servirán de base para el nuevo comportamiento a ser adquirido.

Según Cubero (2005), estas concepciones o ideas previas a la enseñanza recibieron en la literatura más de una docena de nombres. Estos términos, en general, hacen hincapié a “ideas asi-miladoras previas, que indican que a lo largo de su experiencia cotidiana los alumnos han desarrollado explicaciones autónomas sobre ellos mismos, los otros y el mundo en general” (CUBERO, 2005, p. 112). Tienen como propiedad algún grado de organización interna, funcionalidad o utilidad en la experiencia cotidiana y cierta estabilidad o re-sistencia al cambio.

A parte las divergencias conceptuales, diversos autores como Pozo (2008), Brandsford, Brown 1 Publicado por primera vez en 1977.

y Cocking (2007), Marchesi y Martín (1998) y Miras (1993), refuerzan la idea de que una buena enseñanza debe tomar en consideración lo que ya saben los niños y los jóvenes a la hora de aprender las disciplinas escolares.

De especial relieve para este estudio son los trabajos de Thompson y Zamboanga, por investi-garen la interferencia de los conocimientos previos en la adquisición de conocimientos psicológicos en estudiantes universitarios. En el primer estudio (THOMPSON; ZAMBOANGA, 2003) los autores han encontrado una relación significativa entre los conocimientos previos de 422 estudiantes de un curso de introducción a la psicología, evaluados por pre-test, y su desempeño en los exámenes de la asignatura. En el segundo estudio (THOMPSON; ZAMBOANGA, 2004), participaron 353 alumnos también de un curso introductorio de psicología, que fueron sometidos a dos pre-testes de conoci-mientos previos en psicología. La diferencia en relación al primer estudio, además del segundo pre-test, fue el control de las variables aptitud académica y la participación. Sin embargo, los resultados reafirman la relación significativa entre el conocimiento previo y el desempeño académico.

Es necesario, todavía, ampliar la concepción de conocimientos previos para más allá de los cono-cimientos conceptuales y declarativos. Insistir que apenas las estructuras cognitivas participan efecti-vamente en la construcción de los conocimientos de un determinado sujeto es estar de acuerdo con la limitada visión de los “modelos fríos” de cam-bio conceptual, que olvidan la importancia de los aspectos afectivos y motivacionales, observados por los que defienden la idea de “modelos calien-tes” de cambio (RODRÍGUEZ MONEO, 1999),

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y que Solé (1993) llama de “disponibilidad para el aprendizaje”, mientras Sinatra y Mason (2008) llaman “características del aprendiz”.

Siguiendo esta línea, es particularmente útil para el presente trabajo el modelo de desarrollo de competencia y pericia propuesto por Sternberg (2005). De acuerdo con él, la inteligencia es una característica humana que se desarrolla a partir de las habilidades hacia las competencias y de estas hacia la pericia. En este proceso participan, en interacción con el contexto, cinco elementos fun-damentales: el aprendizaje (implícito y explícito), el conocimiento (declarativo y procedimental), la motivación (intrínseca y extrínseca), la metacogni-ción (planificación y evaluación) y el pensamiento (crítico y creativo).

A partir de este modelo, Castejón, Gilar y Pérez (2006) evaluaron, en una muestra de 70 estudian-tes de un máster en psicología escolar, la relación entre los elementos propuestos por Sternberg y el aprendizaje de gran cantidad de conocimiento. A excepción del ítem aprendizaje, que no fue evalua-do, todos los otros factores contribuyeron para la adquisición del conocimiento sobre el respectivo curso.

Basado en la argumentación precedente, se ha elegido utilizar la expresión “requisitos para el aprendizaje” en vez de “conocimientos previos” por entender que la primera, a parte de no estar comprometida con ninguna tradición teórica en particular, engloba más elementos que apenas los factores cognitivos involucrados por la segunda.

Este trabajo tuvo dos objetivos: El primero fue analizar las concepciones de profesores universi-tarios sobre la relación entre los requisitos para el aprendizaje presentados por sus alumnos y la enseñanza/aprendizaje de sus disciplinas, bajo el marco conceptual de las teorías implícitas sobre enseñanza y aprendizaje, descrito más adelante. El segundo fue evaluar si había diferencia entre las concepciones de profesores de psicología de la educación y de profesores de otras asignaturas de cursos de formación docente. Los datos aquí presentados y analizados hacen parte de un estudio más amplio, relativo a la tesis doctoral del primer autor bajo la dirección del segundo.

El marco teórico utilizado para el análisis de dichas concepciones fue el de las teorías implíci-

tas sobre el aprendizaje y la enseñanza, propuesto por Pozo y otros (2006). Pérez Echeverría y otros (2006, p. 79) presentan las teorías implícitas “como un conjunto de principios que restringen tanto nues-tra forma de afrontar como de interpretar o atender las distintas situaciones de enseñanza-aprendizaje a las que nos enfrentamos”.

Estas concepciones son llamadas implícitas, pues, a pesar de dirigir las acciones que responden a las situaciones de nuestra vida cotidiana, son acti-vadas sin pasar por un proceso consciente. Resultan de la experiencia personal delante del ambiente cultural del aprendizaje, es algo que sentimos, vivimos y experimentamos y, por eso, son difíci-les de ser compartidas y modificadas. Consonante con este pensamiento, para cambiar las maneras de enseñar y aprender no es suficiente presentar a quien aprende y/o enseña nuevos modos de actuar más eficientes. Es preciso modificar las creencias implícitas de estos sujetos sobre aprendizaje y enseñanza mediante la explicitación progresiva de sus representaciones implícitas subyacentes a los procesos de enseñanza y aprendizaje (POZO et al., 2006; WOOLFOLK HOY; MURPHY, 2001).

De las teorías implícitas categorizadas por Pozo y otros (2006) utilizaremos la teoría directa, la interpretativa y la constructiva, ya que la teoría post-moderna aún es poco discutida. En la teoría directa hay una expectativa de reproducción del conocimiento, tanto por parte de quien enseña como por parte de quien aprende, ya que el cono-cimiento debe reflejar, como un espejo, la realidad. Por lo tanto, sin aceptar la idea de aproximaciones sucesivas a una comprensión de la realidad, esta forma de concebir el conocimiento entiende que el saber es una cuestión de todo o nada. Sólo existen las opciones de verdadero y falso. “Se basa en una epistemología realista ingenua, de acuerdo con la cual la simple exposición al contenido u objeto del aprendizaje garantiza el resultado, concebido como una reproducción fiel de la información o modelo presentado” (POZO et al., 2006, p. 120). La teoría interpretativa aparece como una fase de transición de las teorías. Presentando la misma base epistemo-lógica de la teoría directa, en que existe una única verdad de los hechos, ésta cree que el aprendizaje es algo que consume tiempo y demanda esfuerzo deliberado. Es la teoría que predominantemente es

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Las concepciones implícitas de los profesores universitarios sobre los requisitos para el aprendizaje

percibida en los relatos de estudiantes y profeso-res al hablar de cómo es concebido el aprendizaje (SCHEUER; POZO, 2006).

En cuanto a los principios conceptuales, la teoría interpretativa articula los tres componentes básicos del aprendizaje como eslabones de una cadena causal lineal y unidireccional. Es decir, las condiciones “actúan sobre” las acciones y procesos del aprendiz, los que a su vez “provocan” unos resultados de aprendizaje (POZO et al., 2006, p. 124). Finalmente, la teoría constructiva, viene de la idea de construir conocimientos sobre la reali-dad (y no extraer de ella esos conocimientos) y se diferencia de las primeras teorías principalmente por los principios epistemológicos en que pueden existir diferentes grados de cuestionamientos y ver-dades sobre un mismo objeto y, que su apropiación implica necesariamente una transformación del contenido que se aprende y del aprendiz.

El aprendizaje implica procesos mentales reconstruc-tivos de las propias representaciones acerca del mun-do físico, sociocultural e incluso mental, así como de autorregulación de la propia actividad de aprender. No se limita a suponer que esos procesos internos son esenciales para aprender, sino que además les atribuye un papel necesariamente transformador. (POZO et al., 2006, p. 124).

2. Metodología

2.1 - Participantes

Fueron entrevistados 32 profesores de cursos de formación docente de universidades públicas y pri-vadas del Estado de Bahía, Brasil. Los participantes eran 20 mujeres y 12 hombres, con edades que variaban entre los 29 y 69 años y una experiencia docente variando entre 2 y 32 años en la enseñanza superior. De esos profesores, 16 enseñan la discipli-na Psicología de la Educación y los otros 16, otras materias del campo de la educación. Se optó por estos profesores por estar en consonancia con De La Cruz y otros (2006), cuando éstos afirman que el interés en estudiar las concepciones de enseñanza de profesores formadores docentes se basa en dos nociones: 1. Las concepciones son un componente relevante en la configuración de sus prácticas de enseñanza; 2. Esas concepciones y prácticas se

“trasladan” de algún modo a los alumnos, quienes gradualmente van “impregnándose” de las mismas hasta asumirlas como naturales y propias.

La división en dos grupos por materia tuvo como objetivo saber si existe diferencia en las con-cepciones sobre aprendizaje (en particular, sobre sus requisitos) de profesores de diversas asignaturas y profesores de psicología de la educación, ya que es esta disciplina que busca explicar los procesos de aprendizaje.

2.2 - Tareas y procedimientos

Para la obtención y análisis de los datos, la presente investigación fue realizada como se describe a continuación: Se llevaron a cabo entre-vistas semiestructuradas con todos los profesores. El entrevistador dispuso de un guión básico de preguntas que fueron hechas a todos los entrevis-tados. Después de cada respuesta, sin embargo, el entrevistador podría añadir otras cuestiones tratan-do de profundizar, aclarar, organizar o sintetizar el pensamiento del entrevistado. Las cuestiones presentadas fueron sobre la práctica pedagógica de los entrevistados y las preguntas fueron probadas en entrevistas piloto, para garantizar que fuesen comprensibles.

Los temas abordados fueron: 1- Disciplina y aprendizajes más importantes; 2- Requisitos para el aprendizaje; 3- Organización y actividades de enseñanza; 4- Motivación; 5- Dificultades; 6- Eva-luación. En el presente estudio serán analizadas sólo las preguntas que corresponden al ítem 2 y que se refieren a los requisitos para el aprendizaje. Este apartado está compuesto por las siguientes cuestiones: ¿Cuáles son los requisitos necesarios para aprender las tres cosas más importantes en tu disciplina?, ¿Cómo la presencia o ausencia de esos requisitos pueden interferir en la enseñanza (es decir, en tu práctica)? ¿Cómo la presencia o ausencia de esos requisitos pueden interferir en el aprendizaje de los alumnos?, ¿Sus alumnos poseen esos requisitos?, ¿ qué hace usted cuando no lo poseen?

Las entrevistas fueron grabadas en audio, transcritas y analizadas por medio del “análisis de contenido”. Según Bardin (2002, p. 32), el análisis de contenido se caracteriza por ser

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[…] un conjunto de técnicas de análisis de comunica-ciones tendente a obtener indicadores (cuantitativos o no) por procedimientos sistemáticos y objetivos de descripción del contenido de los mensajes, per-mitiendo la inferencia de conocimientos relativos a las condiciones de producción/recepción (variables inferidas) de estos mensajes.

En la preanálisis las transcripciones fueron leí-das para tener una primera impresión del material a ser analizado y para definirse las unidades de registro, que correspondían al segmento de conte-nido que sería necesario considerar como unidad de base con miras a la categorización y al recuento frecuencial (BARDIN, 2002).

Como las categorías de análisis ya estaban definidas previamente, en la fase de explotación del material, se ha procedido a la búsqueda y re-conocimiento de las unidades de registro que se “encajaban” en estas categorías. Antes de someter el material a este procedimiento, fue recogida una amuestra para que dos jueces apreciasen la adecua-ción de la clasificación.

No todos los entrevistados dieron respuestas que pudiesen ser clasificadas en alguna de las catego-rías. Como consecuencia de esa incompatibilidad de algunas respuestas con los criterios adoptados, el número de extractos es distinto del total de participantes.

2.3 - Criterios de análisis

Las respuestas fueron analizadas de acuerdo con dos grupos de criterios, en función de su naturaleza. Para la Cuestión 1 – “¿Cuáles son los requisitos necesarios para aprender las tres cosas más importantes en tu disciplina?”, cuyas respues-tas se refieren más a productos que a procesos, se optó por el marco teórico de Sternberg (2005), por ayudar a identificar las características o contenidos psicológicos de los requisitos descritos por los entrevistados.

De esta manera, para organizar el conjunto de respuestas, fueron utilizados los criterios presen-tados en el Cuadro 1.

Fuente: Elaboración propia.

Tipos de requisitos Aprendizaje Conocimiento Metacognición Pensamiento Motivación

Definiciones Comportamientos de carácter actitudinal que proporcionan tanto la disponibilidad para realizar como la realización efectiva de las tareas académicas.

Saberes que pueden ser tanto de carácter conceptual como procedimental.

Comprensión y control del propio proceso cognitivo.

Capacidad para reflexionar, preferentemente de manera crítica, sobre el mundo.

Proceso que dirige hacia la meta de una actividad, que la instiga y la mantiene.

Cuadro 1 – Criterios de análisis de las respuestas a la Cuestión 1, de acuerdo con Sternberg (2005)

Para las cuestiones de 2 a 5, que se refieren más a procesos, se ha elegido como marco teórico para el análisis las teorías implícitas sobre la enseñanza y el aprendizaje propuestas por Pozo y otros (2006), por entenderse que al hablar de los procesos, los

profesores revelan sus concepciones implícitas sobre la pareja enseñanza/aprendizaje.

Los criterios de análisis utilizados para las res-puestas a este grupo de preguntas se encuentran en el Cuadro 2.

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Las concepciones implícitas de los profesores universitarios sobre los requisitos para el aprendizaje

3. Resultados

A continuación serán presentados los datos obtenidos a partir de las preguntas relativas al apar-tado sobre requisitos para el aprendizaje. Para la adecuada comprensión de las cuestiones siguientes es importante saber que ellas hacen hincapié a la última pregunta del primer apartado del guión de entrevista que es “¿Cuáles son las tres cosas más importantes que tus alumnos deben aprender en tu disciplina?”.

Cuestión 1 - ¿Cuáles son los requisitos necesa-rios para aprender las tres cosas más importantes en tu disciplina?

Las respuestas a esa pregunta fueron clasifica-das según los elementos propuestos por Sternberg (2005), ya referidos en la introducción de este ar-tículo: aprendizaje, conocimiento, metacognición, pensamiento y motivación.

Fuente: Elaboración propia.

Teorías Implícitas

CuestionesTeoría Directa Teoría Interpretativa Teoría Constructiva

Cuestión 2 - ¿Cómo la presencia o ausencia de esos requisitos pueden interferir en la enseñanza (es decir, en tu práctica)?

No interfiere en la práctica por no tomar en cuenta los conocimientos previos o no sabe.

Ven los requisitos (o su ausencia) como un obstáculo al aprendizaje, como algo que dificulta o incluso impide el éxito de su trabajo.

A pesar de las dificultades, buscan partir de los requisitos para desarrollar su trabajo con el objetivo de llegar a un aprendizaje significativo

Cuestión 3 - ¿Cómo la presencia o ausencia de esos requisitos pueden interferir en el aprendizaje de los alumnos?

Creen que los requisitos impiden el aprendizaje o no saben contestar.

Ven los requisitos o su ausencia como algo que limita el aprendizaje discente.

Entienden que los requisitos son la fundación sobre la cual el conocimiento debe ser construido.

Cuestión 4 - ¿Sus alumnos poseen esos requisitos?

Creen que los alumnos no poseen los requisitos necesarios para aprender.

Creen que los estudiantes los tienen parcialmente o que una parte del grupo los tienen.

Creen que todos o la mayor parte de los alumnos poseen.

Cuestión 5 - ¿qué hace usted cuando no lo poseen?

No adaptan sus actividades a las necesidades de los alumnos. Mantienen su manera de trabajar, independiente de lo que pase en el aula.

Ajustan la actividad didáctica a las necesidades del alumno, pero sin el objetivo de lograr un aprendizaje significativo.

Cambian sus estrategias de enseñanza con el objetivo de tornar el aprendizaje más significativo para sus alumnos.

Cuadro 2 – Criterios de análisis de las respuestas a las cuestiones 2 a 5, de acuerdo con Pozo y otros (2006)

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Iron Pedreira Alves; Juan Ignacio Pozo

En la categoría Aprendizaje se han reunido las preguntas relativas a los comportamientos de carácter actitudinal que proporcionan tanto la disponibilidad para realizar como la realización efectiva de las tareas académicas. Fueron produ-cidos diecinueve extractos en total, siendo que los profesores de psicología de la educación contribu-yeron con once y los demás profesores, con ocho. Es la categoría con mayor cantidad de respuestas a esta primera pregunta.

Para esta parcela de profesores, algunas acti-tudes son favorables al proceso de aprendizaje, tales como:

Abertura e disponibilidade para estar lidando com concepções que não necessariamente estejam diretamente relacionadas à sua própria. (23, psi).2

Gostar de ler, eu acho que é importante. (27, psi).

Acho que a atitude de inquirição e a inquietação em buscar coisas novas e trazer coisas e provocar o professor, no bom sentido. (05, out).

Eu acho que esse é um exercício para além do cog-nitivo. Eu acho que tem um requisito básico aí que é a receptividade. Eu acho que você tem que estar receptivo à uma desconstrução de suas crenças. (20, out).

Bajo el título Conocimiento, se han agrupado las respuestas que tenían en común la referencia a los saberes que pueden ser tanto de carácter con-ceptual como procedimental. Fueron observados trece extractos de respuestas, siendo los profesores de otras disciplinas quienes produjeron más (ocho extractos) que sus compañeros de psicología (cinco extractos).

2 Los números entre paréntesis se refieren a los entrevistados, ordena-dos alfabéticamente, mientras las iniciales “psi” y “out” se refieren a profesores de psicología de la educación y profesores de otras materias, respectivamente.

Si la diferencia en el número de respuestas no es tan acentuada, la diferencia cualitativa es bastante evidente. Los profesores de psicología expresaron el deseo por una asignatura previa que proporcio-nase a los estudiantes una base conceptual para los nuevos aprendizajes:

Idealmente, que os alunos viessem de uma disciplina imaginariamente pensada de introdução à psicolo-gía, o que não acontece. (29, psi).

A ideia é de que eles tivessem alguns conhecimentos prévios. Mas, assim, como a disciplina anterior eu não conheço o conteúdo programático... Eu sei da ementa, de uma forma geral. Mas a gente não tem feito esse encadeamento entre as disciplinas, mas eu acho que seria necessário. (26, psi).

Los profesores de las demás disciplinas, toda-vía, sienten la necesidad de habilidades básicas de lectura y escritura:

A leitura, eu acho que é fundamental. (03, out).

Olha, ser um bom leitor, eu diria que é o primeiro requisito. (06, out).

Então, essa questão de ler, interpretar e escrever, são algumas habilidades básicas, que eu acho que em qualquer processo educativo essa é uma questão. (15, out).

El conjunto de extractos clasificados como Metacognición hacen hincapié a la comprensión y control del propio proceso cognitivo. Este grupo reúne un total de siete extractos, siendo aquellos que enseñan psicología de la educación los que produjeron más que el doble de sus compañeros: cinco extractos de los primeros contra dos de los últimos. Los temas son variados, pero, en general, se refieren al hecho de que los profesores esperan que sus estudiantes asuman un mayor control del propio aprendizaje:

Aprendizaje Conocimiento Metacognición Pensamiento Motivación Total

PSI 11 (20%) 05 (9,1%) 05 (9,1%) 01 (1,8%) 09 (16,4 %) 31 (56,4%)OUT 08 (14,5 %) 08 (14,5 %) 02 (3,6%) 02 (3,6%) 04 (7,3%) 24 (43,6%)Total 19 (34,5%) 13 (23, 6%) 07 (12,7%) 03 (5,4%) 13 (23,7%) 55 (100%)

Tabla 1 – Distribución de los extractos de respuestas a la pregunta ¿Cuáles son los requisitos necesarios para aprender las tres cosas más importantes en tu disciplina?

Fuente: Elaboración propia.

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Las concepciones implícitas de los profesores universitarios sobre los requisitos para el aprendizaje

A necessidade de estar refletindo, avaliando, se auto-avaliando o tempo inteiro. Assim: - O que é que eu me apropriei, o que ainda está faltando me apropriar? Esse processo de auto-avaliação, reflexão e auto-avaliação. (23, psi).

Outra habilidade importante, eu acho que é – não sei como traduzir isso – mas desenvolvimento do trabalho de autoria, de se sentir autor do que se faz. (15, out).

La categoría con menos extractos fue la que se refiere a las habilidades de Pensamiento, con apenas tres respuestas. Los profesores de otras asignaturas tuvieron dos extractos aquí ubicados, mientras que los de psicología tuvieron uno. Estos extractos tienen como rasgo definitorio la capacidad para reflexionar, preferentemente de manera crítica, sobre el mundo.

Acho que disposição para pensar um outro mundo talvez seja um requisito. (21, psi).

O pensar criticamente é um processo. (12, out).

Por último, fueron agrupados los extractos bajo la categoría Motivación, que hacen hincapié en los procesos que dirigen hacia la meta de una activi-dad, que la instiga y la mantiene. En este grupo, la producción de los profesores de psicología fue bastante superior a los demás, alcanzando más que el doble de extractos: nueve de los primeros contra cuatro de los últimos.

Esta diferencia en los números no es seguida, todavía, por una variedad en la naturaleza de las respuestas. En general, los dos grupos hablan de un sentimiento que los alumnos deberían poseer y que los impulsarían hacia el aprendizaje:

Ter vontade de aprender. (08, psi).

Para mim, o primeiro é a vontade. (16, psi).

O interesse dos alunos. (25, psi).

Bom... Para aprender, eu acho que eles precisam de ter interesse. (24, out).

Ter uma vontade de mudança, de provocar uma mudança positiva. (28, out).

Si se acepta que las categorías Conocimiento, Metacognición y Pensamiento poseen un carácter más racional, mientras que las categorías Aprendi-zaje y Motivación tienen rasgos más afectivos, se

puede afirmar, basándonos en la Tabla 1, que los profesores entrevistados valoran más los aspectos afectivos que los cognitivos como requisitos para que los alumnos aprendan el contenido de sus respectivas materias. Se puede afirmar también, que los profesores de psicología de la educación atribuyen más valor a los aspectos afectivos que sus compañeros de enseñanza, ya que, en la suma de las categorías Aprendizaje y Motivación, quedan res-ponsables por veinte extractos (36,4%) contra doce (21,8%) del grupo que imparte otras asignaturas.

Las respuestas a las preguntas siguientes, fueron analizadas de acuerdo con el marco teórico de las teorías implícitas sobre la enseñanza y el aprendi-zaje, propuesto por Pozo y otros (2006), y resumido en la introducción de este artículo. De esta manera, los extractos aquí identificados fueron agrupados en tres categorías: teoría directa, teoría interpretativa y teoría constructiva, de acuerdo con los criterios presentados en el Cuadro 2.

Se ha tomado como punto de partida las ideas de Torrado y Pozo (2006), para quien los profesores que tienen una concepción directa de enseñanza y aprendizaje no hacen uso didáctico de los conoci-mientos previos. Los que poseen una concepción interpretativa creen que es importante conocer lo que el alumno sabe, para enseñarlo correctamente, mientras que los de la concepción constructiva en-tienden que estos conocimientos son principios a partir de los cuales se construye todo el aprendizaje.

Cuestión 2 - ¿Cómo la presencia o ausencia de esos requisitos pueden interferir en la enseñanza (es decir, en tu práctica)?

Para los profesores que tuvieron extractos de respuestas caracterizados como siendo representati-vos de la teoría directa, los requisitos no interfieren en la práctica o ellos no saben identificar lo que serían estos requisitos.

Ningún profesor de psicología ha dado alguna respuesta que pudiera ser ubicada dentro de la concepción directa de enseñanza y aprendizaje. Los dos únicos extractos de este grupo pertenecen a profesores de las otras disciplinas:

Eu não sei. Por que, na verdade, eu não consigo... Eu tenho dificuldade até de entender o que seria pré-requisito. Quando eu penso em pré-requisito, eu fico pensando assim, seria algumas disciplinas? Entendeu? Não sei... (13, out).

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Iron Pedreira Alves; Juan Ignacio Pozo

Com a presença ou ausência [de los requisitos] eu vou fazer o mesmo trabalho, eu vou fazer o meu trabalho... (28, out).

La distribución de los extractos en las siguien-tes categorías fue equilibrada, estando cada una compuesta por trece fragmentos de respuestas. Los profesores de los dos grupos que adoptan una concepción interpretativa ven los requisitos como un obstáculo al aprendizaje, como algo que dificulta o incluso impide el éxito de su trabajo:

Sim, interfere muito. Inegavelmente, quando a gente pega uma aluna na turma, que ela não cor-responde, que ela não apresenta vontade e que ela não apresenta interesse, essa... Acontece comigo, a desmotivação também vem, me acompanha. Eu não vou negar. (16, psi).

Acho que interfere, por que, por exemplo: Se a turma chega sem nenhum conhecimento prévio daquele assunto, sobre a disciplina... Chega sem nenhum co-nhecimento prévio dado até mesmo pela leitura dos textos, né? Se você pega uma turma que está muito distante daquele conteúdo que você vai trabalhar naquela aula, é difícil que aquela aula faça algum sentido. (26, psi).

Ela interfere na medida em que eu espero que meu aluno ele construa uma compreensão. Para ele construir uma compreensão, ele precisa ser leitor. Ele não pode apenas interpretar realidades a partir do que ele já construiu na sua relação com o mundo e com o imediato. Eu acho que precisa ser substituído com a produção acadêmica sobre isso. (06, out).

Para los profesores de concepción constructiva las dificultades existen, pero siempre buscan partir de lo que los alumnos les presentan para desarrollar su trabajo con el objetivo de llegar a un aprendizaje significativo:

Bom, a gente às vezes percebe que não está alcan-çando o aluno, e quando eu percebo que não estou alcançando o aluno, quando a turma não está conse-guindo se integrar, no sentido de perceber o objetivo, eu sempre tento retomar os objetivos iniciais. - O que a gente precisa alcançar? – Qual é a compreensão que a gente precisa construir? Eu tento sempre partir do que é significativo para ele.s (17, psi).

Eu tenho tentado ao máximo a alteridade dentro da sala de aula. Tentar me colocar no lugar do outro e tentar me colocar nos aspectos do perfil desse grupo. Não quero dizer perfil de uma maneira fe-

chada, também como molde, mas o que é que esse grupo demanda de mim, professora, na condição de facilitar alguns caminhos, propor alguns caminhos para que eles consigam adentrar nos caminhos da autoformação. (18, out).

Cuestión 3 - ¿Cómo la presencia o ausencia de esos requisitos pueden interferir en el aprendizaje de los alumnos?

Los extractos aquí ubicados presentan una nítida gradación a lo largo de las tres concepciones de enseñanza y aprendizaje, partiendo de los requisi-tos (o la ausencia de ellos) como algo que impide, pasando por la idea que dificultan, hasta llegar a verlos como lo que posibilita el aprendizaje. La mayoría absoluta de las respuestas se concentra en la posición intermedia.

Entre los participantes que adoptan la concep-ción directa, algunos admiten no saber manejar los requisitos para aprender que sus alumnos disponen:

A gente fala muito de que aluno tem que vir já com algumas aprendizagens prévias, né? Com estraté-gias de aprendizagem. Mas a gente não sabe muito bem como investigar isso. Então, assim, primeira semana de aula ou as duas primeiras semanas de aula que eu investigo muito a relação deles com a disciplina, com a educação, mas como é que seria investigar as estratégias e os conhecimentos prévios? Acho que a gente, eu pelo menos, não sei como fazer isso. (26, psi).

Mas eu não sei, assim, ter uma clareza grande sobre essa situação. (11, out).

Los demás creen que los requisitos o su ausencia imposibilitan el aprendizaje:

Eu acho que bloqueia mesmo! Se você já está certo que você já sabe, para quê que você vai aprender coisas novas? Para quê que se vai aderir àquela disciplina? - Que coisa mais chata! - Já sei! - Isso já é sabido! - Não estou nem afim. (27, psi).

Se não tem interesse e se não faz sentido, certamente não vão aprender. (24, out).

Los profesores que adoptan una posición in-terpretativa frente a la pregunta en foco ven los requisitos o su ausencia como algo que limita el aprendizaje discente:

Acho que esse não envolvimento, esse não identi-ficar-se como docente, como futuro docente, como licenciatura, isso tanto dificulta a minha interação

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Las concepciones implícitas de los profesores universitarios sobre los requisitos para el aprendizaje

enquanto docente ao ensinar, mas também direta-mente a aprendizagem deles. (01, psi).

A ausência desse requisito prejudica, dificulta ao aluno essa capacidade de elaborar. Ser um alguém que possa elaborar, refletir e refletir construtivamen-te e elaborar. Me irrita muito isso. (05, out).

Por último, los profesores de concepción más constructiva en relación al tema, entienden que los requisitos son la fundación sobre la cual el conoci-miento debe ser construido:

Eu entendo que o processo de aprendizagem na gra-duação ele atende a essa relação que é mediada pelo professor, que é mediada pela leitura do material, pelas relações que são estabelecidas no processo de sociabilidade em sala de aula. Quando eu consigo garantir esses elementos todos, eu imagino que o processo de aprendizagem ele está acontecendo. (10, psi).

Se eu parto desse pressuposto, eu acho que ele sempre ajuda. Quando eles têm essa possibilidade da compra, de se deixar embalar. Talvez, porque eu acho que o que eu me proponho nessa disciplina, a relação da aprendizagem, está muito ligada à vivência e à experiência que eles... E não a algum conceito, que até me pergunto, às vezes, se não tem essa carência de um conceito. (14, out).

Cuestión 4 - ¿Sus alumnos poseen esos requi-sitos?

Esta pregunta ha generado una serie de respues-tas más cortas que las anteriores. Los profesores se distribuyen entre los que creen que sus estudiantes no poseen los requisitos necesarios para aprender; los que creen que los estudiantes los tienen par-cialmente o que una parte del grupo los tienen; y aquellos que ven estos requisitos en todos o en la mayor parte de los alumnos.

Fueron clasificadas como representantes de la concepción directa las respuestas que negaban la existencia de los requisitos necesarios para el aprendizaje de las asignaturas:

Eu tenho visto muitas dificuldades de foco, de sín-tese, de concentração, mesmo durante o período da aula, né? (26, psi).

Não, porque nós vivemos num contexto em que eles não conhecem isso em casa, correto? Eles não co-nhecem isso na dinâmica da sociedade de hoje, não existe muito essa questão da disciplina. (07, out).

Não. Em hipótese nenhuma. (09, out).

La posición intermedia, aquí llamada de con-cepción interpretativa, una vez más concentra la mayoría de las respuestas. Sin embargo, hay una expresiva diferencia entre la cantidad de extractos producidos por los profesores de psicología de la educación y los producidos por los demás profe-sores. Fueron encontrados once extractos para el primer grupo y apenas dos para el segundo.

Em potencial, sim. Mas, às vezes, por vários motivos, alguns se negam a isso. (16, psi).

Depende! Depende da turma e depende dos alunos. (21, psi).

Não há um padrão de alunos. Eu já tive oportuni-dades de trabalhar com turmas de respostas muito rápidas. Eu já tive oportunidade de chegar no final e falar: - Puxa vida, foi sofrido para mim, foi sofri-do para eles e a gente conseguiu muito pouco em relação aos propósitos. (06, out).

Los extractos clasificados como constructivos fueron los de menor cantidad. Apenas cinco, siendo que un único profesor de psicología de la educación ha expresado su creencia en los requisitos de sus estudiantes para aprender:

Eu acho que sim. Acho que o desafio é ajudar a eles a entender que eles possuem, muitas vezes. (27, psi).

De uma maneira geral, sim. A maioria mesmo pos-sui todos esses casos que eu falei para você, desses requisitos que eu acho que são basilares. (22, out).

Eu estou satisfeita. De um modo geral os alunos de-monstram interesse e eles se implicam nas atividades que são as propostas. (24, out).

Cuestión 5 - ¿ qué hace usted cuando no po-seen?

Esta es la última pregunta del apartado de los requisitos para aprender, que es el foco de este artículo. Hubo un equilibrio de extractos de res-puestas categorizados como representantes de la teoría interpretativa (diez extractos) y los clasifi-cados como teoría constructiva (once extractos). Apenas dos extractos fueron categorizados como de la teoría directa.

Los dos profesores que tuvieron sus respuestas ubicadas en la teoría directa, ambos del grupo de profesores de diversas asignaturas, no parecen creer

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Iron Pedreira Alves; Juan Ignacio Pozo

en la adaptación de sus actividades a las necesida-des de los alumnos. Antes, prefieren mantener su manera de trabajar, independiente de lo que pase en el aula:

Fica muito difícil. Muito difícil porque daí eu preciso quase que mudar. (14, out).

Eu continuo com a mesma proposta, não me abato entendeu? Aí, isso eu já demarquei, é isso que estou falando o projeto é mais meu, eu não vou, eu costumo falar isso em sala logo: Eu não vou me contaminar com a alheia, entendeu? Eu tenho uma proposta, se a proposta deles não combina com a minha proposta de expectativa, paciência. (20, out).

Las respuestas ubicadas en la teoría interpreta-tiva fueron las que demostraban una disposición de los entrevistados para ajustar la acción a la necesidad de los alumnos. Este ajuste, todavía, no tenía como objetivo tornar el aprendizaje más significativo.

Hubo igualdad en el número de extractos emi-tidos por ambos grupos, siendo que cada uno ha contribuido con cinco extractos. Sin embargo, las igualdades son apenas numéricas. Los profesores de psicología educacional concentran sus esfuerzos en sensibilizar sus estudiantes para la importancia o utilidad de lo que debe ser aprendido, mientras sus compañeros prefieren reforzar la lectura relativa a su materia:

É a questão da sensibilização, trabalhar com diver-sos recursos, tentar mostrar como aquilo ali pode ser útil. (08, psi).

É isso. Eu tento mostrar a importância da disciplina pra o trabalho deles, né? O grande problema é que a grande maioria não quer ser professor, não é? (16, psi).

Eu indico além das leituras obrigatórias, indico bibliografia complementar. (05, out).

Cara, eu trago textos que debatem isso. (09, out).

Eu tento ver onde é que tá a dificuldade e tento preencher essa lacuna fornecendo textos, conver-sando horas extras. (22, out).

Las respuestas constructivas, que para esta pre-gunta son la mayoría, se caracterizan por demostrar que los docentes buscan cambiar sus estrategias de enseñanza con el objetivo de tornar el aprendizaje más significativo para sus alumnos.

Hay una diferencia sutil de postura entre los dos grupos. Los profesores de psicología ponen énfasis en el cambio de metodología e utilización de estrategias variadas. Ya los profesores de las demás disciplinas, además de estos cambios, pa-recen estar más abiertos a la posibilidad de ofrecer una atención más individualizada a sus discentes:

O que eu faço? Eu acho que a gente tenta encontrar estratégias. (01, psi).

Eu vou construindo novas estratégias ao longo do caminho. (10, psi).

Eu tento diversificar um pouco a metodologia, né? (26, psi).

Eu começo de onde é o ponto de partida deles. Se eu precisar sentar pra poder me dedicar a ele, eu faço isso. (03, out).

Eu tenho tentado intervir, intervenho até individual-mente. Eu tenho me disponibilizado muito para os estudantes, para atendimentos, dentro do percurso da disciplina, por exemplo, pegando a esse compo-nente que a gente tá falando, eu me disponibilizo, por e-mail, pessoalmente. (18, out).

4. Conclusiones

Este trabajo tuvo como objetivo analizar las concepciones de los profesores sobre los requisi-tos previos y la relación enseñanza-aprendizaje, así como evaluar las posibles diferencias entre las concepciones de profesores de psicología de la educación y profesores de otras disciplinas de formación docente.

En relación al primer objetivo, como se obser-va en la Tabla 1, los profesores consideran mucho más los aspectos predominantemente afectivos como actitud para aprender y motivación, que aquellos aspectos predominantemente cognitivos, como son el conocimiento, la metacognición y el pensamiento. Eso puede ser visto como un aspecto positivo ya que, al tomar en cuenta la dimensión afectiva, se puede percibir al alumno de manera más holística, sin reducirlo a procesos meramente cognitivos.

Sobre las concepciones de los profesores, se encontró que la mayoría se ubica en una posición intermedia denominada teoría interpretativa. De hecho, al analizar trece estudios sobre concepcio-

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nes implícitas, Scheuer y Pozo (2006) encontraron que la mayor parte de los profesores y alumnos de diversos niveles educacionales también adoptaban la teoría interpretativa como concepción que con-ducía implícitamente sus respectivas enseñanzas y aprendizajes. En líneas generales, de acuerdo con Torrado y Pozo (2006) quienes adoptan esta pers-pectiva entienden que los conocimientos previos de los alumnos deben detectarse para ser substituidos por los conocimientos científicos.

De acuerdo con los datos aquí presentados, cabe decir que la mayoría de los docentes entrevistados creen que no todos los estudiantes poseen los requi-sitos necesarios para aprender las materias. Tanto la ausencia como la presencia de estos requisitos son vistas como obstáculos que dificultan el trabajo pedagógico y limitan el aprendizaje. Frente a este escenario, buscan ajustar sus actividades didácti-cas intentando sensibilizar a los alumnos sobre la necesidad de aprender o forneciendo fuentes de información adicionales, pero sin que el objetivo de estas acciones sea construir un aprendizaje significativo.

Tomando en consideración que el actual estado del conocimiento en el campo de la psicología del aprendizaje apunta la concepción constructiva del aprendizaje como la que mejor explica este proceso (POZO, 2008), es un aspecto importante para la formación docente percibir a partir de los datos, sumando las respuestas directas e interpretativas, que los profesores entrevistados tienden más a concepciones menos elaboradas del proceso de enseñanza y aprendizaje. Esa importancia aumenta por el hecho de que los participantes son formado-res de otros profesores, siendo que los profesores de psicología de la educación tienen como una de sus metas, ayudar a sus alumnos a comprender los procesos de aprendizaje, incluyendo ahí el papel de los conocimientos previos y/o de los requisitos en dichos procesos.

Empezar por las palabras de Woolfolk Hoy y Murphy (2001) puede ayudar a reflexionar sobre los datos relativos al segundo objetivo:

Una gran parte del reto de enseñar psicología de la educación es ayudar a los estudiantes a ver el poder del conocimiento previo actuando en su propia vida – y no sólo como un término clave en un capítulo sobre los enfoques cognitivos del aprendizaje o como la respuesta a una pregunta de opción múltiple. (WOOLFOLK HOY; MURPHY, 2001, p. 168).

Partiendo del principio que los procesos de aprendizaje fueron tradicionalmente objeto de es-tudio de la ciencia psicológica, es legítimo esperar que aquellos que enseñan psicología de la educa-ción tengan un conocimiento diferenciado sobre el tema, incluso cuando comparado a otros docentes que, de manera más o menos cercana, tienen el aprendizaje como tema de sus reflexiones teóricas.

Los datos aquí presentados no permiten, toda-vía, identificar diferencias nítidas en el discurso de los dos grupos de profesores sobre los cono-cimientos previos o los requisitos para aprender. Tal vez con un tratamiento más cuantitativo de los datos obtenidos esa diferencia pueda aparecer. Esa que puede ser considerada una limitación de este estudio, deberá ser solucionada futuramente.

La indiferenciación en relación al grupo de pro-fesores de otras asignaturas sumada al número de extractos categorizados como representantes de las teorías directa e interpretativa parecen corroborar la creencia de Strauss (2001) en que incluso expertos en el área del aprendizaje pueden mantener con-cepciones psicológicas ingenuas sobre el mismo, cuando están enseñando.

Para el campo de la formación de profesores esos hallazgos tienen su contribución en la medida que refuerzan las ideas anteriormente defendidas por Scheuer y Pozo (2006), que afirman que no basta con apropiarse del discurso constructivista para haber un verdadero cambio conceptual y re-presentacional que se traduzca en una práctica en harmonía con este discurso. Es necesario que los profesores responsables de difundir este discurso también se sometan a constante reflexión para dis-minuir al máximo la distancia entre lo que hablan y lo que hacen.

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Iron Pedreira Alves; Juan Ignacio Pozo

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Recebido em: 30.11.2013 Aprovado em: 22.02.2014

Rosa Maria Moraes Anunciato de Oliveira; Renata Prenstteter Gama

205Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 205-219, jan./jun. 2014

DESENVOlVIMENTO PROFISSIONAl DOCENTE E NARRATIVAS

EM DIFERENTES MOMENTOS DA FORMAÇÃO E ATUAÇÃO

Rosa Maria Moraes Anunciato de Oliveira∗

Renata Prenstteter Gama∗∗

RESUMO

Este artigo tem como objetivo compreender os aspectos envolvidos no processo reflexivo individual e coletivo mobilizados pela escrita de narrativas sobre a trajetória como estudante, a formação, a prática profissional e sua discussão em grupo. A pesquisa constituiu-se de um grupo colaborativo com a participação voluntária de pesquisadores universitários, pós-graduandos, graduandos em Pedagogia e professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental em um curso de extensão universitária. A pesquisa de natureza qualitativa e interpretativa utilizou a narrativa da trajetória escrita e transcrição das filmagens dos encontros presenciais nos momentos de leitura, discussão e problematização das narrativas. A escrita da narrativa caracterizou-se a princípio pela reflexão individual, revelando crenças, saberes e teorias implícitas sobre a aprendizagem da docência. No grupo, outras articulações foram vivenciadas, surgindo a percepção dos participantes de seus próprios conhecimentos, em especial de matemática, e a possibilidade de socializá-los. Um dos mais expressivos resultados obtidos foi a experiência de que a universidade pode promover espaços formativos tendo como princípio a concepção de desenvolvimento profissional por meio de questionamentos, identificações e estranhamentos que a própria história e a história do outro possibilitam nestes espaços.

Palavras chave: Desenvolvimento Profissional. Narrativas. Grupos Colaborativos. Processo reflexivo.

ABSTRACT

PROFESSIONAL DEvELOPMENT AND NARRATIvES IN TEAChER EDUCATION

This paper aims to understand the aspects involved in individual and collective reflective processes according to writing narratives of the story as student as well as of his/her education, professional practice and group discussion. The research

∗ Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2001. Professora Associada do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas da UFSCar. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSCar). Líder do Grupo Estudos sobre a Docência: Teorias e Práticas (Diretório de Grupos de Pesquisa CNPq). Endereço para correspondência: Rodovia Washington Luís, km 235, SP-310, São Carlos – São Paulo – Brasil. CEP 13565-905. [email protected]∗∗ Doutora em Educação Matemática pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2007. Professora Adjunta do Departamento de Metodologia de Ensino da UFSCar. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSCar) e do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação (PPGEP/ UFSCar). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Práticas Formativas e Educativas em Matemática (GEPRAEM/UFSCar) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Narrativas Educativas, Formação e Trabalho Docente (NEPEN/UFSCar) - Diretório de Grupos de Pesquisa CNPq, e participa do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Formação de Professores de Matemática (GEPFPM/UNICAMP). Endereço para corres-pondência: Rodovia Washington Luís, km 235 - SP-310, São Carlos – São Paulo – Brasil. CEP 13565-905. [email protected]

Desenvolvimento profissional docente e narrativas em diferentes momentos da formação e atuação

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was conducted with a collaborative group, with voluntary participation of university researchers, graduate students, undergraduate Pedagogy students and Elementary school teachers in a university extension course. The qualitative and interpretative research was based on the written narratives of their trajectory and video transcripts of the meetings when there were moments of reading, discussion and problematisation of his/her own narratives. The written narrative is characterized initially by individual reflection, revealing beliefs, knowledge and implicit theories of teacher education. Other points of view were experienced by the group, and the participants’ perception came from their own knowledge, especially of mathematics, as well as the ability to socialize them. One of the most significant results was the experience that the university can promote formative spaces based on the conception of professional development through questions, identifications and strangeness that our own story and those of others make possible in these spaces.

Keywords: Professional development. Narratives. Collaborative groups. Reflective process.

Introdução

Este trabalho é parte dos resultados de uma pesquisa que teve como objetivo geral identificar indícios de desenvolvimento profissional docente por meio de narrativas de formação a partir de dinâmicas colaborativas1. O projeto envolveu parti-cipação voluntária de pesquisadores universitários, graduandos do curso de Pedagogia e professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental em um curso desenvolvido no ano de 2010, que emitiu certificados de extensão universitária para os par-ticipantes.

Para este artigo, nosso objetivo geral é compre-ender os aspectos envolvidos no processo reflexivo individual e coletivo mobilizados pela escrita de narrativas sobre a trajetória como estudante, a formação, a prática profissional e sua discussão em grupo. Procuramos compreender como essas práticas de escrever e discutir sua produção em um grupo colaborativo podem ser potencializadoras do desenvolvimento profissional docente.

A partir de uma indicação das formadoras para que fosse construída uma narrativa sobre a expe-riência vivida com a matemática no seu processo de escolarização, produziram-se narrativas escri-

1 Trata-se de projeto de pesquisa financiado pelo Edital Universal, CNPQ, Processo nº 480207/2009-7, intitulado Desenvolvimento profissional docente por meio de narrativas de formação, do grupo Estudos sobre a Docência: teorias e práticas, do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFS-Car), coordenado por Rosa Maria Moraes Anunciato de Oliveira.

tas com formatação livre. Posteriormente, estas foram lidas e discutidas no grupo a partir de uma metodologia formativa que privilegia a reflexão compartilhada entre os formadores e participantes do curso de extensão. Procurou-se criar condições pedagógicas para a constituição do grupo com características colaborativas de modo a promover a reflexão sobre o próprio processo formativo, em especial na relação com o ensino e a aprendizagem de matemática. Partimos do pressuposto de que a participação em grupo possibilita o redimensiona-mento de concepções, potencializa a capacidade de reflexão e orienta prospectivamente cenários alternativos no campo da atuação docente (OLI-VEIRA; PASSOS, 2008; PASSOS; OLIVEIRA; GAMA, 2009).

A partir disso, apresentaremos alguns pressu-postos teóricos sobre o desenvolvimento profis-sional e, dentre as práticas que o potencializam, a reflexão e a construção de narrativas em processos formativos.

Processos Formativos: narrativa, reflexão e desenvolvimento profissional

Consideramos que a expressão desenvolvi-mento profissional do professor é polissêmica, ou seja, ela tem assumido diferentes perspectivas e significados, sendo utilizada em diferentes contex-tos, e alude a diversos tipos de práticas, conforme

Rosa Maria Moraes Anunciato de Oliveira; Renata Prenstteter Gama

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Marcelo e Vaillant (2009). É um conceito que se modificou ao longo da última década, e, se antes era visto como decorrência do exercício profissio-nal após a formação inicial, hoje é entendido em termos mais amplos e processuais.

Ainda, segundo Marcelo (2009), o desenvol-vimento profissional tem um caráter intencional, pois engloba atividades e experiências planejadas sistematicamente que visam promover a mudança e consideram o professor como um sujeito que aprende ao se envolver em atividades de ensino, avaliação, observação e reflexão. Para ele, utilizar o termo desenvolvimento é importante, pois pres-supõe evolução e continuidade, “rompendo com a tradicional justaposição entre formação inicial e continuada” (MARCELO, 2009, p. 9).

O conceito de desenvolvimento profissional pode ser compreendido como um processo pessoal, interativo, dinâmico, contínuo, evolutivo e sem fim, que envolve aspectos conceituais e comportamen-tais. As aprendizagens advindas desse processo são de natureza pessoal, profissional, institucional, social, e acontecem ao longo das trajetórias de vida (GAMA, 2007).

Day (1999) concorda que o desenvolvimento profissional depende de experiências passadas (história de vida e de carreira), da disposição e das capacidades intelectuais, mas acrescenta a influência das condições sociais e do apoio ins-titucional para que isso ocorra. Para ele, para se desenvolverem profissionalmente, os professores necessitam “envolver-se em diferentes tipos de reflexão, na investigação e na narrativa, ao longo de sua carreira, e ser apoiados para enfrentarem os desafios que tal empreendimento implica” (DAY, 1999, p. 84).

As implicações disso para o processo forma-tivo advêm de que a utilização de narrativas de formação pode potencializar o desenvolvimento profissional pelo movimento de escrita na medida em que esta exige (re)elaboração e (re)signifi-cação do pensamento pela própria estrutura do ato de escrever, que possibilita uma formulação mais acurada das ideias do que a comunicação oral e favorece a realização de articulações entre experiências de história de vida, de formação e da prática educativa. Nesse sentido, compartilhamos com Souza (2006, p. 38) que

A reflexão sobre o processo de formação, mais es-pecificamente, sobre as trajetórias de escolarização, concede uma ênfase às experiências formadoras construídas e que marcam as histórias de vida. O princípio da reflexibilidade é propulsor da formação centrada na abordagem biográfica, porque evidencia o lugar do sujeito ao formar-se, visto que o trabalho com a narrativa de formação implica o autor-ator.

A narrativa, na perspectiva da formação, é um modo de “refletir, relatar e representar a experiên-cia, produzindo sentido ao que somos, fazemos, pensamos, sentimos e dizemos” (FREITAS; FIO-RENTINI, 2007, p. 63).

A construção e reconstrução das histórias pes-soais e sociais das pessoas têm inspirado muitas pesquisas e revelado que os professores apresentam um considerável desenvolvimento profissional quando passam por essas experiências (BUENO et al., 2006; GALVÃO, 2005; FREITAS; FIOREN-TINI, 2008; MIZUKAMI et al., 2002; NÓVOA, 1995; NÓVOA; FINGER, 2010; OLIVEIRA, 2011; PASSOS; OLIVEIRA; GAMA, 2009).

Um estudo já clássico de Clandinin e Connelly (1996) indica que esses profissionais conhecem a docência por imagens, rituais, hábitos, ciclos, roti-nas e ritmos que têm por base a própria experiência e que se apresentam nas histórias dos professores e das escolas.

Diversas estratégias têm sido utilizadas para acessar a reflexão sobre a prática tanto na pesquisa como em processos formativos por meio de diá-rios, casos de ensino, portfólios etc. O conteúdo de uma narrativa sobre a história de vida, na qual o estudante ou o profissional relata suas ações e reflexões em determinada situação vivida, permite o acesso ao seu pensamento. Assim, o processo de narrar a própria experiência possibilita reconstruir a trajetória e oferecer novos sentidos em uma relação dialética entre experiência e narrativa, me-diada pelos processos reflexivos (CUNHA, 1997; RODGERS, 2002).

Ao contrário de práticas de pesquisa ancoradas em outras tradições científicas, as pesquisas auto-biográficas ou as histórias de vida não podem ser separadas dos processos formativos a ela inerentes. Em síntese, a narrativa permite, a partir da reflexão que a envolve, construir o conhecimento sobre a docência em uma visão mais ampla, mais profunda,

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pois nela está o sentimento, a significação, o sentido das histórias trazido por meio da voz, das narrativas de seus protagonistas, os professores.

Passeggi (2010, p. 104), ao analisar os tra-balhos do Terceiro Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica (III CIPA), conclui que “as potencialidades das fontes (auto)biográficas revelam-se na diversidade dos trabalhos, oriundos de diferentes horizontes disciplinares”. Para ela, a disparidade nas abordagens exige um programa de investigação sobre aspectos epistemológicos e teórico-metodológicos da pesquisa (auto)bio-gráfica. Nessa perspectiva, propusemos o uso de narrativas e sua socialização em um grupo de discussão como práticas de formação a exercitar permanentemente a reflexão crítica na produção do conhecimento, de forma a articular de maneira mais coerente os movimentos da teoria e da prá-tica. Esse processo permite maior conhecimento sobre si próprio, reflexão sobre como suas atitudes afetam o próximo, assim como se tem um maior conhecimento sobre seus limites pessoais e pode-se redefinir modos de agir.

Processos Reflexivos e Formação de Professores

Como afirmam Reali, Tancredi e Mizukami (2010, p. 501): “se tornar um professor reflexivo por meio da redação de narrativas envolve mais do que o domínio de algumas técnicas de construção de produções escritas. Envolve aprender a pensar reflexivamente”. Isso pode ser potencializado por meio de narrativas que são capazes de “revelar pensamentos, motivos, intenções, concepções, necessidades, pré-concepções, frustrações e outros sentimentos que nem sempre são evidentes”.

É importante observar o alerta de Pimenta e Ghedin (2002), para quem a concepção de pro-fissional como um prático reflexivo, proposta por Schön (1983), tem sido adotada de forma genérica e banalizada, dando-se ênfase no aspecto individual, esquecendo-se dos fatores sociais que envolvem o processo educativo.

A reflexão não pode ser compreendida como panaceia para todos os problemas identificados na educação brasileira, entretanto, a compreensão

da sua natureza nas experiências humanas pode colaborar para tornar os processos formativos mais adequados tendo em vista os desafios postos atualmente para a ação dos professores.

Uma importante contribuição para a investi-gação sobre a reflexão e a maneira como pode ser estimulada na formação inicial é o trabalho de Hatton e Smith (1995), a partir de Dewey, reconhe-cido como o autor chave do conceito de reflexão. Os autores definem a reflexão como capacidade de resolução de problemas, como um processo não apenas racional e deliberativo, mas influenciado pelas crenças, motivos pessoais etc.

Que a reflexão pode ser vista como um processo cognitivo ativo e deliberativo envolvendo sequên-cias de idéias interconectadas que levam em conta crenças subjacentes e conhecimentos. O pensamento reflexivo geralmente é endereçado a problemas prá-ticos, permitindo a dúvida e perplexidade antes que possíveis soluções sejam encontradas. (HATTON; SMITH, 1995, p. 34, tradução nossa).

Com base em levantamento sobre as diferentes concepções de reflexão abordadas na literatura educacional, os autores propõem questões sobre o tema: a reflexão é ligada ao pensamento sobre a ação ou está ligada à própria ação? Ocorre, num curto prazo, de forma imediata, ou implica em pensar melhor, de forma mais extensa e sistemática como Dewey propõe? A reflexão é, por sua nature-za, centrada no problema ou não? Como a reflexão leva em conta padrões culturais, políticos ou cren-ças no processo de reflexão crítica? É importante observar que muitas delas continuam sem uma resposta definitiva, mesmo tendo passado quase duas décadas do estudo apresentado (HATTON; SMITH, 1995).

Assim, se um dos objetivos principais da forma-ção de professores é desenvolver a ação reflexiva, precisa ser levada em consideração a análise persis-tente e cuidadosa da prática à luz dos conhecimen-tos e crenças, mostrando atitudes de mente aberta, responsabilidade e sinceridade. Esses requisitos são identificados inicialmente por Dewey e posterior-mente por autores como Schön (1983), Zeichner (1993), Hatton e Smith (1995) e Rodgers (2002) entre outros. Zeichner (1993) e Pimenta e Ghedin (2002) lembram do caráter socialmente situado des-

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ses processos reflexivos e Rodgers (2002) enfatiza o aspecto coletivo e colaborativo dos processos reflexivos que demandam experiências junto aos pares. Como apontam estudos de Cochran-Smith e Lytle (1999), nos quais o grupo de pares é tratado como uma comunidade de investigação, este é um meio que tem se mostrado promissor para promover o desenvolvimento profissional de professores. A pesquisa aqui apresentada procurou pautar-se nesses pressupostos da reflexão no processo formativo de-senvolvido no curso de extensão.

Consideramos que a narrativa potencializa um processo de reflexão pedagógica que permite aos seus autores compreender causas e consequências de suas ações ou de acontecimentos e circunstân-cias de um passado remoto ou recente e, se for o caso, criar novas estratégias a partir de um processo de reflexão, ação e nova reflexão. Permite, ainda, uma compreensão mais clara das relações sobre o que ocorreu, os fins pretendidos e as dificuldades, vistas dentro de mais amplas perspectivas culturais e profissionais. Isso possibilita, ainda, que um dos entraves ao processo de desenvolvimento profissio-nal, que é a permanência de visões estáticas sobre o ensino (MARCELO; VAILLANT, 2009), possa ser enfrentado e, quem sabe, superado.

O cenário da pesquisa

Para o trabalho com narrativas no processo de formação é importante considerar que uma abor-dagem eminentemente instrumental dos conteúdos de ensino não possibilita os recursos necessários para a ação no contexto da aula. Há que se levar em conta a relação pedagógica, na expressão de Tardif (2002), como um encontro entre pessoas em que a interação com o outro é o elemento mais importante da ação na perspectiva dos futuros professores e dos professores em exercício.

Nos processos formativos desenvolvidos, bus-camos exercitar permanentemente a reflexão crítica na produção do conhecimento de forma a articular de maneira mais coerente os movimentos da teoria e da prática, vinculando de forma coesa as práticas educacionais e os pressupostos teóricos que as fundamentam a partir de modelos metodológicos e processos reflexivos-avaliativos que favoreçam essa articulação.

O grupo foi constituído por vinte e três par-ticipantes, sendo três participantes professoras do ensino público da rede estadual paulista, sete professoras e um professor da rede municipal da cidade de São Carlos. Além desses professores, participaram cinco alunas e um aluno do curso de Pedagogia, uma mestranda, uma doutoranda e quatro professoras pesquisadoras.2 Neste estudo, não priorizamos uma análise comparativa entre licenciandos e professores, que são identificados por nomes fictícios e respectiva condição para identificação dos participantes.

As reuniões do curso aconteceram na universi-dade, às terças-feiras do 1º e do 2º semestre do ano de 2010, das 14h às 16h.

A dinâmica estabelecida no curso de extensão foi cenário para produção, socialização e discussão de narrativas sobre a trajetória escolar e profissio-nal na qual se procurou problematizar a relação do professor e do estudante com a Matemática. A temática do curso foi escolhida tendo em vista ou-tros trabalhos que indicam que a matemática é uma das áreas do conhecimento em que mais os alunos apresentam dificuldades no seu processo de esco-larização (PASSOS; OLIVEIRA; GAMA, 2009).

A constituição do grupo com características colaborativas pressupõe a criação de vínculos de confiança. Para compartilhar a própria história e criar uma empatia com a história do colega, foi necessária a criação de vínculos de amizade, com-panheirismo. Não foi um processo espontâneo, exigiu intencionalidade por parte dos formadores e dos participantes. No início, isso se deu pela comunicação dos objetivos de cada um ao buscar a formação continuada.

Foi realizada uma pesquisa qualitativa e inter-pretativa adequada ao objeto, que é o estudo das narrativas de formação de professores e licencian-dos em processo de formação continuada e inicial. Como fonte de dados, foram utilizadas a narrativa da trajetória escrita e a transcrição das filmagens dos encontros presenciais nos momentos de leitu-ra e discussão das narrativas. Os eixos de análise emergiram da análise a partir dos objetivos de

2 O grupo de cursistas, as pesquisadoras e pós-graduandas são licen-ciados em Pedagogia, Matemática ou Letras. Duas pesquisadoras ensinam matemática na formação de professores, e os professores em exercício ensinam matemática no ensino fundamental.

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estudo: compreender os acontecimentos de vida escolar narrados, procurando identificar situações marcantes na relação com a matemática; identificar nas narrativas situações marcantes na relação com a matemática na prática profissional, procurando compreender como se deram nas histórias de vida de cada participante; identificar e analisar como são compartilhados saberes, a partir de diálogos e reflexões entre os participantes no grupo na sociali-zação das narrativas; e analisar a potencialidade do grupo de discussão para aprofundar, sistematizar e reconstruir acontecimentos da trajetória.

Aspectos do processo reflexivo individual mobilizado pela escrita das narrativas

A análise das narrativas escritas no que se re-fere aos aspectos do processo reflexivo individual evidenciou que dois elementos se destacaram: os acontecimentos marcantes na trajetória como es-tudante e os acontecimentos marcantes durante a formação e a atuação como docente.

A) Acontecimentos Marcantes na Trajetória Estudantil

A narrativa escrita revela fragmentos da vida com cores, sensações, afetos:

Lembro com exatidão, como se fosse hoje, de como a matemática entrou na minha vida: na série do ensino fundamental, em uma tarde horrível de quente, em que a professora estava nos apresentando a divi-são. Pra ser mais específica, ela estava dividindo no quadro 12 por 2, e desenvolveu toda a conta. Minha primeira impressão foi de que era a maior conta que eu já havia visto, e que aprender isso seria muito difícil. Para minha surpresa, eu entendi tudo o que a professora falou e ainda gostei, querendo resolver mais e mais, me senti inteligente por saber resolver. Estava feliz com a matemática. (EVELINE, licencianda).

Ao evocar a relação com a matemática, apa-recem dados do contexto (dia quente); crenças e sentimentos se misturam: conta muito grande é difícil. A capacidade de entender e resolver e o sentimento de autoconfiança, o sentir-se inteligente. Isso se evidencia quando Eveline afirma:

“Sempre tive uma relação de amor e brincadeira com a matemática. Adorava tudo, principalmente porque entendia todos os conteúdos ensinados” (EVELINE, licencianda).

Nas narrativas, permeadas de sentimentos evocados, outros três aspectos aparecem: a meto-dologia utilizada, o próprio conteúdo e a relação professor-aluno.

Na relação com a matemática, ganha importân-cia a interação com o professor ou professora que ensina matemática. Os aspectos humanos, as ca-racterísticas pessoais são lembradas com exatidão. Quanto aos aspectos da docência, foram marcantes o tradicionalismo em relação à matemática, bem como o foco na memorização e repetição de exer-cícios, tabuadas e operações.

A seguir, temos excertos de narrativas tradu-zindo sentimentos, atitudes suas ou dos docentes e outros aspectos que foram constituindo um tipo de relação com o conhecimento matemático marcado pelo medo, fuga, negação, vergonha etc.

Não entendia o conteúdo ensinado pelos professores, e nunca tirava minhas dúvidas com eles. (LIPE, professor).

Minha professora da 1ª série pediu que eu fizesse o número um na lousa. Eu tinha acabado de aprender os números e achei que o meu número ‘1’ estava lin-do, até que a professora disse que estava parecendo um palhaço. Fiquei muito envergonhada de errar novamente. (LENE, licencianda).

Quando minha professora dizia ‘amanhã vou tomar as tabuadas’, eu entrava em pânico, até doença eu inventava para não ir para a escola, no dia seguinte. (NEIA, professora).

Esse aspecto sobressaiu-se nas narrativas, indicando atitudes relacionadas ao silenciamento das dúvidas, ao medo das avaliações, de não obter sucesso na resolução de problemas, operações etc. O professor aparece como figura central, mediando a relação com os conteúdos escolares, geralmente pendendo para negativo. Isso não é regra geral, pois na mesma trajetória verificam-se alternâncias. Em dois excertos isso foi evidenciado:

A primeira professora, como ela era linda; alegrava as aulas com música. Tudo se tornava mais fácil quando ela falava... Ano novo, professora nova... tudo já não era tão bom... Os números já não eram

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tão acessíveis, não cabiam mais tantos pauzinhos no roda-pé da folha!? Tabuada, chamada oral, di-minuir, dividir, somar... Ah! Meu Deus?! (MARIA, professora).

Como estudante, lembro-me da professora, muito divertida, diferente das demais, moderna, usava calças boca de sino, as aulas passavam rapidamente e os conteúdos sempre foram claros para mim. Conti-nuando a vida escolar me deparei com um professor ‘antigo’ que trazia exercícios em folhas amareladas, que ‘escrevia’ ou ‘transcrevia’ aqueles para a lousa e depois nós resolvíamos sozinhos e ele passava a correção. Ao contrário da professora, ele era sério e não se escutava um ‘piu’ em sua aula; o caderno tinha que ser impecável, com cores para diferenciar formas, incógnitas e tudo mais. (EVE, licencianda).

Nas narrativas, aspectos da metodologia de ensino aparecem nas oposições e são indicadas por diferentes vocábulos e construções. Na primeira, temos: “linda”, “alegrava”, “música” e “fácil” em oposição a “já não era tão bom”, “já não eram tão acessíveis”, “não cabiam mais”. Ao final, a enumeração de conteúdos/atividades: “tabuada”, “chamada oral”, “diminuir”, “dividir”, “somar”, finalizando com a exclamação “Ah, meu Deus!”.

Na segunda narrativa, a mesma estrutura se repete: “divertida”, “diferente”, “moderna”, “as aulas passam rápido”, “os conteúdos claros” em oposição a “antigo”, “sério”, “folhas amareladas”, “resolvíamos sozinhos”, “não se escutava um piu”. O caderno deveria ser mantido impecável e o uso de diferentes cores não remete à alegria, possui um objetivo “sério”: diferenciar formas e incógnitas.

Na relação professor-aluno, a importância de uma professora alegre que fazia com que as aulas se tornassem fáceis e compreensivas pareceu fun-damental para que houvesse aprendizagem naquele período. É importante verificar o quanto a relação com os conteúdos perpassa a relação com as pes-soas o quanto as marcas dessas relações pessoais afetam positiva ou negativamente as aprendizagens escolares. É importante não esquecermos de que os conhecimentos formais que fazem parte dos currículos escolares exigem um formalismo fruto do seu próprio desenvolvimento como conteúdo de uma área científica ou cultural que pode ser mais ou menos acessível nas diferentes etapas da escolarização.

Não podemos perder de vista que, possivelmen-te, no período da infância se está mais sensível às descobertas. O ensino dos números, das tabuadas, a chamada oral, tudo isso pode parecer corriqueiro aos olhos dos adultos, porém será que as crianças que chegam à escola com as características comuns dessa fase trazem as mesmas expectativas dos adultos? Os dados parecem indicar que a alegria, a dimensão do que é sentido como “gostoso”, do que desperta curiosidade e sentimentos afins foram relevantes e, ao se depararem com o chamado ensi-no tradicional, onde não poderia haver questiona-mentos, com aprendizagens regradas e únicas, tudo isso parece ter gerado nesses alunos sentimentos de rejeição a determinados conteúdos, especialmente pelo fato de os professores que os ensinaram utili-zarem metodologias com pouca flexibilidade. Foi uma marca importante nas narrativas a imbricação metodologia de ensino, conteúdo e pessoa do pro-fessor ou professora.

Assim, os episódios com experiências posi-tivas podem ser elucidativos dos percursos em que são lembrados mais sucessos que fracassos. Essas experiências frequentemente passam a ter impacto positivo na escolha da carreira e direcio-namento para as ações pedagógicas na atividade profissional.

Quando penso na matemática me recordo da pro-fessora de primeira série: dona Shirley, que com muito carinho e dedicação ensinava-nos a contar, somar, subtrair dezenas e unidades com palitinhos de sorvete. Hoje me pego repetindo as mesmas me-todologias básicas utilizadas por ela, com as quais tanto aprendi. Tudo o que ela fazia era com muito carinho e hoje percebo que era de forma lúdica, o que proporcionou um ensino prazeroso, sem grandes traumas. (PAULA, professora).

Esse depoimento consegue juntar o afeto, a metodologia de ensino, o compromisso profissional e o conteúdo matemático de modo a ser um ideal a ser seguido no exercício da docência. Notamos a explicitação da influência da trajetória vivida como estudante para o desenvolvimento profissional, e a reflexão sobre como isso se dá na história pessoal e profissional parece ter sido potencializada pela narrativa escrita.

Outros participantes destacam a capacidade dos professores de auxiliá-los enquanto estudantes

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a vencer dificuldades e experiências traumáticas anteriores.

Minha primeira ‘crise’ com a disciplina surgiu no Ensino Médio, quando, terminado o 1° ano do Ensino Médio, na escola pública, ingressei em uma escola particular. Minha primeira avaliação de ma-temática nesse colégio foi minha única nota verme-lha em toda a minha trajetória escolar. O conteúdo da prova era Trigonometria – passei a detestar esse conteúdo naquele momento do Ensino Médio. Com um tanto mais de estudo com algumas amigas e com uma conversa deliciosa com a professora, recuperei o fôlego para encarar a disciplina para o resto da trajetória escolar. Minha professora me fez olhar bem em seus olhos e prometer que nunca mais em toda minha vida sairia de uma aula com qualquer dúvida. (ARIEL, licencianda).

Foi então, graças a minha professora de Matemática do 3º colegial, que decidi ser professor de Matemá-tica! (CYRILLO, professor).

Os excertos acima evidenciam aspectos singu-lares na história de cada participante, com destaque para ações, atitudes de professores que puderam facilitar o processo de ensino/aprendizagem do conteúdo e marcaram a vida de seus alunos com base em exemplos, apresentando um diferencial nas atitudes. Essas relações, mais que a imbricação entre conteúdo estudado e pessoa-professor(a), mostram uma singularidade, um episódio em que houve um encontro entre quem ensina e quem aprende e que representou um divisor de águas, explicitado pela narrativa.

Uma conversa franca do professor com o aluno, a confiança e carinho que prometem uma boa expe-riência e bom relacionamento com os conteúdos ou disciplina, o uso de métodos diferenciados e práti-cos, com os quais os alunos aprendem de maneira divertida e lúdica, de forma criativa, foram alguns aspectos que os conquistaram até hoje e, por vezes, mostraram-se decisivos na opção profissional.

B) Acontecimentos Marcantes na Formação e Atuação Docente

Ao tratar de aspectos marcantes na formação, as lembranças, por vezes se focalizam nos trabalhos de revisão como atividade monótona. Adriana, em sua narrativa, oferece algumas indicações das consequências dessa relação na formação docente:

[...] só me lembro dos exercícios decorativos e repetitivos que os professores passavam. Fujo de situações-problema, até em brincadeiras, porque me acho incapaz de resolvê-las ou, na verdade, prefiro não tentar, sei lá o que acontece [...] Terminando a 8ª série, fui fazer o magistério e acho que foi aí que a minha situação com a matemática ficou muito prejudicada. (ADRIANA, professora).

Um dos aspectos indicados é a atitude de fuga nos contatos sociais que implicam uma exposição da pessoa e seus saberes para resolver um pro-blema ou entender um enigma. A metodologia utilizada no ensino de matemática colaborou para o desenvolvimento de uma atitude de fuga de Adriana.

É importante verificar que esses sentimentos e atitudes, resultam de influências da metodologia adotada e não se restringem à vida social, podendo balizar atitudes na formação profissional: “Assim foi até entrar para o curso de pedagogia. Acabou--se o contato em aula com a matemática, até o quinto semestre. Nossa! Simplesmente, parecia que havia esquecido tudo o que havia aprendido” (EVELINE, licencianda).

A relação com a matemática fica meio esquecida no curso de Pedagogia, como diz outra participante, ao que uma professora acrescenta:

Isso que ela fala do esquecer a matemática, isso é muito claro pra nós. Assim, eu cursei pedagogia, é isso mesmo, você põe de lado. Daí vem tudo nova-mente, num certo período do curso, aí você toma o que havia esquecido, deixado de lado. Eu acho que isso me chamou muito atenção porque eu comecei a lembrar da minha época, que a matemática ficou um pouco de lado. (LUCIANA, professora).

Na formação, além da metodologia de ensino, a própria fragmentação do currículo em disciplinas estanques fica marcada nas narrativas e discussões. A formação continuada é vista como alternativa ao não saber como modificar as práticas pedagógicas, como ensinar na perspectiva de construção de con-ceitos ou resolução de problemas:

Me sinto bem ensinando meus alunos, mas não posso negar que sempre surgem dúvidas, inseguranças que me levam a trocar experiências com meus colegas, buscar novos caminhos para poder alcançar os ob-jetivos e é com eles que mais aprendemos (PAULA, professora).

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Na trajetória como estudante e na atuação docente, mesmo quando a relação com a matemá-tica foi bem-sucedida no seu início, apresentam descontinuidades e esse processo é marcado por quebras, como pouca carga horária na formação. Avolumam-se os problemas, pois como afirma Gatti (2009), hoje as estruturas formativas de

professores, seus conteúdos, as didáticas, estão colocados como um enorme problema político e social.

A Figura 1 sintetiza os principais resultados evidenciados nas narrativas sobre acontecimentos marcantes na trajetória e na formação/atuação docente.

Figura 1 – Principais resultados evidenciados nas narrativas sobre acontecimentos marcantes na trajetória e na formação/atuação docente

Assim, observamos que aspectos marcantes na escolarização básica permanecem, influenciam toma-das de decisões e são pouco discutidos na formação inicial, gerando inseguranças na atuação docente.

Aspectos do processo reflexivo coletivo mobilizado pela socialização de narrativas

Um dos objetivos do trabalho está relaciona-do a compreender o processo reflexivo coletivo deflagrado no grupo do curso de extensão pela leitura das narrativas, questões e comentários que se seguiram nos encontros. As discussões serviram como fonte de dados para a compreensão de racio-cínios argumentativos, momentos de tomada de

Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo.

decisão, flexibilização, negociação, dentre outros. Consideramos que esses momentos puderam auxi-liar os participantes no redimensionamento de seu conhecimento de si, das influências e referências.

A sistemática estabelecida iniciava com a leitura oral da narrativa, acompanhada por todos por meio de projeção digital, seguida de uma problematização, muitas vezes sendo solicitado que manifestassem se também viveram situações parecidas, ou diferentes, ou algum comentário sobre o que foi lido.

Após a leitura de sua narrativa, Sandra diz:Eu esqueci de colocar aí, que eu terminei em 1999, eu fiz pedagogia e em 2000 eu fiz também a especialização na UFLA em Lavras (SANDRA, professora).

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Esse olhar para a própria escrita contribui na percepção de lacunas cujo preenchimento é necessário ao entendimento do processo vivido, o que mostra o movimento de reflexão experi-mentado.

O mesmo ocorreu em relação ao olhar para as outras histórias e se permitir compartilhar. Aos poucos começaram alguns relatos indicativos de identificação com acontecimentos e trajetórias, como “não escrevi isso, mas também vivi”. Com a confiança, o estabelecimento de vínculos surge a possibilidade de compartilhar. Percebemos que a convivência foi necessária para a decisão de compartilhar ou não sua história num misto de identificação e de estranhamento.

O grupo favoreceu o olhar para si para escrever e olhar para o grupo e discutir a sua narrativa. Olhar para sua história, partilhar as narrativas, olhar para o grupo tendo a história do outro como elemento para pensar sua história.

A socialização das narrativas teve por objetivo oportunizar a reflexão sobre diferentes temas, espe-cialmente sobre temas silenciados ou naturalizados. Um desses assuntos que apareceram em diferentes narrativas foi a culpabilização de ex-professores pelos problemas enfrentados na história da es-colarização, como se fosse uma ação deliberada daqueles docentes para colocar obstáculos no desenvolvimento dos seus alunos.

A supervisão do processo formativo deve estar atenta a essa naturalização, colocando questões que remetam a aspectos não abordados como: será que o professor escolhia conscientemente produzir uma aula incompreensível? Tinha consciência das consequências nefastas dos seus atos? Em qual contexto cultural se estava envolvido? Como esses professores foram formados?

Enfim, a intenção do questionamento não é justificar o que houve, mas procurar escapar da armadilha simplista de procurar culpados, de personalizar os problemas educacionais como problemas de um ou outro docente. Procurou-se superar visões estáticas que, para Marcelo e Vaillant (2009), representam um dos maiores entraves ao desenvolvimento profissional docente.

Na condução do estudo, as situações mais difí-ceis de serem problematizadas foram as que envol-

viam aspectos da personalidade dos ex-professores, e os que mais permitiram novos desdobramentos foram aqueles relacionados à metodologia de ensino.

Por exemplo, uma das participantes narrou que na sua trajetória como estudante “entendia e adorava a matemática, sem fazer ‘nenhuma’ relação com a vida cotidiana [...]” (LAINE, professora). Após a discussão de sua narrativa, ela completou:

[...] A primeira pergunta que a gente faz hoje, quan-do começa a ensinar matemática, nunca! Nunca ninguém falou: Ah, vamos fazer uma pesquisa do número do sapato. O que representa? Nunca. Nunca tinha isso na matemática. Isso não era matemática. Na minha época não era estudado na matemática. A rua da sua casa, imagina, isso aí era Estudos So-ciais. Era só tabuada, adição, na matemática. [...] (LAINE, professora).

Na discussão sobre as mudanças na metodologia de ensino evidencia-se a atual concepção de que se deve começar a ensinar procurando relacionar o assunto com algum assunto do dia a dia, do meio físico ou social, o que não era percebido outrora. Houve uma revisão da influência recebida.

No excerto sobre a narrativa da professora Adriana acontece um diálogo envolvendo Vânia e Laine, também professoras. Especialmente o seguinte trecho motiva o debate:

[...] Há 20 anos trabalho com as séries iniciais do Ensino Fundamental e os conteúdos são muito simples e procuro planejar minhas aulas de maneira prazerosa para os alunos de acordo com os obje-tivos da idade que trabalho, mas vivo numa eterna dúvida se estou agindo corretamente ou não, se vou ajudá-los(as) a seguir bem nos próximos anos de escolaridade e mesmo em suas práticas cotidianas [...] (ADRIANA, professora).

Acho que essa dúvida dela, se a gente tá fazendo certo ou não, acho que nessa questão eu me identifico muito, sim. (VÂNIA, professora).

Eu não tenho problemas com a matemática, mas eu fico em dúvida nessa questão, será que eles tão aprendendo mesmo? Porque pra mim é muito sim-ples, mas talvez pra eles não esteja tão claro, eu tô falando aqui e eles tão lá ‘hã hã’, mas... (LAINE, professora).

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Eu acho que o fugir dessa relação é o gostar e o não gostar também, né, porque, assim, ao invés de jogar o jogo aquele dia, se tivesse a escrita de uma criança pra analisar que nível ela tá, eu adoro fazer isso. Então tem essa diferença, do que você gosta mais e do que você não gosta. Você não pode ficar fugindo sempre né, você tem que enfrentar. Eu já fiz outras formações aí, mas sempre era no português, a matemática raramente, foi uma ou duas vezes. (ADRIANA, professora).

Mas quando você faz, você gosta? Por exemplo, do jogo você gostou? (PESQUISADORA).

Sim, mas eu fico sempre assim, com um pé atrás, achando que não vou gostar. Você acaba se envol-vendo, mas, assim, sempre que eu posso escapar... Mas agora eu procurei mesmo pra tentar melhorar [...] (ADRIANA, professora).

O dilema escrito pela professora: dificuldade em avaliar se está realizando um bom ensino, encontra ressonância em duas colegas que ver-balizam o mesmo dilema. Isso parece encorajar Adriana a retomar o diálogo, explorando a sua dificuldade em trabalhar o conteúdo matemático, especialmente porque não gosta. Ela se dá conta de que o gostar/não gostar tem implicado em fu-gir de uma tarefa sempre que possível. Quando tem oportunidade de realizar uma tarefa mais prazerosa, no seu caso a avaliação do nível de aquisição da língua escrita infantil com base na teoria construtivista, ela foge de uma atividade envolvendo a matemática.

Adriana tem buscado a formação continuada em outras áreas e raramente na que apresenta di-ficuldade. Agora se diz motivada a enfrentar essa questão, encorajada pela pesquisadora, embora ainda demonstre relutância.

Esse é um bom exemplo de uma situação dile-mática que pode ser explorada no grupo, entretanto, parece haver necessidade de uma decisão prévia. No caso de Adriana, a decisão de não mais fugir das suas dificuldades e procurar a formação continuada precede a decisão de ir mais fundo nos seus dile-mas e explicitar para o grupo que, além do dilema, comum a muitas delas, de não saber autoavaliar o seu desempenho como professora, para ela o dilema real está em como se fortalecer para não fugir mais do compromisso de, além da alfabetização, ensinar matemática nos anos iniciais.

Outro aspecto que pareceu relevante para o sucesso da socialização é a problematização colocada pelos formadores sobre as situações vividas, especialmente as que definem o rumo de ações na prática pedagógica. Um exemplo é a narrativa de Alina, na qual ela afirma, com base na sua experiência como aluna, que sua professora premiava com pontos positivos os alunos que faziam as tarefas mesmo que incor-retamente, e atribuía pontos negativos a quem deixava exercícios sem resposta. Isso favorecia uma estratégia de apenas preencher os espaços sem que isso representasse compreensão. Como ela se recusava a “fingir”, apresentava exer-cícios em branco e recebia notas baixas. Essa experiência a levou a tomar uma decisão como professora de utilizar-se de correções coletivas na lousa e procurar saber junto ao aluno o por-quê da não realização de uma tarefa. O diálogo abaixo mostra como essa decisão é analisada nas interações no grupo:

[...] queria perguntar pra Alina dessa questão. Ali-na, você tá colocando só aspectos positivos dessa correção coletiva. E a negativa, qual que seria? (FORMADORA 1).

Você não conseguir necessariamente atingir aquela dificuldade em especial, pois se aquilo que você está abordando na correção coletiva não é a dúvida do aluno. Mas eu acho que ela tem que existir, deve existir. (ALINA, professora).

Será que então é a correção coletiva ou você traba-lhar com os que apresentaram dificuldade? O que significa? Tem diferença? (FORMADORA 2).

Tem, tem diferença, mas eu acho assim, numa tarefa feita em casa é difícil, você não consegue pegar o erro do aluno. (ALINA, professora).Na socialização e discussão em grupo das nar-

rativas escritas são movimentados argumentos para a reflexão de assuntos referentes às principais te-máticas da narrativa lida. Assim, Alina é solicitada a refletir sobre diferentes aspectos que envolvem a metodologia por ela indicada, a correção coletiva das tarefas.

A Figura 2 procura sintetizar aspectos envol-vidos nos processos vividos na socialização de narrativas no grupo.

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216 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 205-219, jan./jun. 2014

O desenvolvimento de argumentos, raciocí-nios, a flexibilização das certezas apresentadas mostraram-se como ações importantes para o redimensionamento de conhecimento de si, das influências e referências recebidas.

Percebe-se, ainda, que esse compartilhamento de conhecimentos sobre o conteúdo aparece mais nas entrelinhas, em diferentes atividades. Em um momento, Eveline fez menção ao uso do ábaco e do material dourado. Isso permitiu que o grupo explorasse seus saberes e suas dúvidas em relação ao uso dos materiais tradicionais no ensino de ma-temática e possibilitou que umas das formadoras trouxesse o material Cuisenaire3, desconhecido do grupo. Umas das participantes, Eveline, trouxe material para construir um quadro de tabuada de pano, o que foi muito apreciado pelos participantes. Para o processo formativo, esse é um dado impor-tante em relação ao campo da matemática, pois essas participantes puderam em alguns momentos conscientizar-se de que detinham um conhecimento e que poderiam ensiná-lo.3 O material Cuisenaire é constituído por uma série de barras de

madeira com tamanhos variando de uma até dez unidades. Cada tamanho corresponde a uma cor específica. São geralmente utili-zados para ensino de conteúdos matemáticos fundamentais como contagem, estimativas de quantidades, operações com números naturais, frações etc.

Considerações finais

A escrita de narrativas dos participantes do curso de extensão e as reflexões suscitadas pela socialização no grupo possibilitaram uma expe-riência que lhes permitiu escrever o que muito se pensa e pouco se fala. Pudemos articular dimensões entre o que se pensa, na reflexão individual, o que se escreve e o que se discute na reflexão coletiva. Isso foi possibilitado pelos aspectos envolvidos no processo formativo: escrever, ler a própria história, ouvir outras histórias, identificar-se ou não com outras histórias, ampliar seus repertórios de vida. Refletindo sobre suas práticas, suas motivações, suas aulas, seus alunos e suas aprendizagens, en-contramos licenciandos e professores em processos de desenvolvimento profissional.

Ao tomar as narrativas como ponto de partida para as discussões em grupo, podemos articular as experiências narradas aos contextos em que surgiram, ampliando a nossa compreensão sobre as circunstâncias em que foram produzidas. Assim, os participantes passam a refletir sobre suas crenças, teorias individuais ou do grupo de estudantes, as quais podem ser também cotejadas com as teorias da área educacional, o que torna essas atividades

Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo.

Figura 2 – Aspectos envolvidos nos processos vividos na socialização de narrativas em grupo

Rosa Maria Moraes Anunciato de Oliveira; Renata Prenstteter Gama

217Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 205-219, jan./jun. 2014

potencializadoras para promover a aprendizagem da docência.

A análise coletiva das narrativas permite construção de sínteses, revisando sua trajetória,

reelaborando saberes de diferentes naturezas no processo de ensino e aprendizagem, como saberes curriculares, habilidades e competências, crenças e atitudes, como se pode observar na Figura 3.

Fonte: Elaborada pelas autoras deste artigo.

Figura 3 – Narrativas e desenvolvimento profissional

Dessa maneira, nosso estudo corrobora a ideia de que o desenvolvimento profissional docente é polissê-mico não apenas pelas diferentes acepções do termo, mas pela multiplicidade de ações, tempos e agentes que o envolvem. O desenvolvimento profissional docente inscreve-se na identidade pessoal ancorado na formação inicial e contínua, decorre do exercício profissional e das interações humanas nos espaços coletivos. Nesse processo individual e coletivo, com-preender o papel da reflexão sobre a própria história, sobre como nos tornamos professores é também dia-logar com as histórias alheias, compartilhar as marcas relacionadas ao sentir, ao fazer docente, às relações interpessoais, no dizer de Nóvoa (1995), produzir a vida do professor e produzir a profissão docente.

Um dos mais expressivos resultados obtidos foi a experiência de que a universidade pode promover

espaços formativos tendo como princípio a concep-ção de desenvolvimento profissional por meio de questionamentos, identificações e estranhamentos que a própria história e a história do outro possi-bilitam nestes espaços.

Não podemos olvidar o papel que a universida-de tem nesse processo como instância formadora de professores e o papel do formador no sentido de estimular a partilha de experiências, o diálogo evidenciando os processos reflexivos desenca-deados, sem perder de vista seu lugar como um membro do grupo e sem esquecer a necessidade de uma condução segura no propósito da formação profissional em curso, procurando minimizar a queixa estéril ou a eclosão de conflitos pessoais intensos que demandariam ajuda especializada na área da saúde.

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ESTUDOS

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Maria da Conceição Passeggi

PIERRE BOURDIEU:

DA “IlUSÃO” À “CONVERSÃO” AUTOBIOGRÁFICA

Maria da Conceição Passeggi*

RESUMO

A ilusão biográfica, título do artigo de Pierre Bourdieu, publicado em 1986, quando as histórias de vida ressurgiam nas Ciências Humanas e Sociais, tornou-se uma expressão emblemática da tensão entre tendências opostas: a que lança um olhar de suspeição sobre o biográfico e a que defende sua legitimidade em pesquisa. A reedição, em 2013, do livro de Franco Ferrarotti, Histoire et histoires de vie, que certamente contribuiu para o contra-ataque de Bourdieu, é uma ocasião privilegiada para retomar o pensamento bourdieusiano sobre o biográfico, entre 1986 e 2001. Nosso objetivo é apresentar considerações iniciais resultantes de pesquisas sobre a epistemologia da pesquisa (auto)biográfica, na qual se inserem três trabalhos de Bourdieu: A ilusão biográfica (1986 e 1998), por sua “crítica” às histórias de vida; A Miséria do Mundo (1993 e 2003), por sua “adesão” ao método biográfico, e Esboço de auto-análise (2004 e 2005), por sua “conversão” ao autobiográfico. Após considerações sobre as perspectivas de Bourdieu, Ferrarotti e o movimento das histórias de vida em formação, que surge também nos anos 1980, pontuaremos a inflexão (im)provável do pensamento de Bourdieu com o objetivo de tematizar suas contribuições para pesquisa (auto)biográfica e ultrapassar o marco de A ilusão biográfica.

Palavras-chave: Pesquisa (auto)biográfica. Pierre Bourdieu. Narrativa. Educação.

ABSTRACT

PIERRE BOURDIEU: FROM “ILLUSION” TO AUTOBIOGRAPhICAL “CONvERSION”

“The Biographical Illusion”, by Pierre Bourdieu, published in 1986, at the time of the re-emergence of life stories in the Human and Social Sciences, became an emblematic expression of the tension between opposing tendencies: one that throws a suspicious glance at biographies, and the other one that defends its legitimacy in research. The reprint, in 2013, of Franco Ferraroti’s “History and life stories”, which certainly contributed to Bourdieu’s counter-attack, was a privileged occasion to return to bourdieuian thought on biographies, which he proposed from 1986 to 2001. Our aim is to present initial considerations from a study on the epistemology of (auto)biographical research, in which

∗ Pós-doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pela Université de Paris 13. Pós-Doutora em Fundamentos da Educação pela Université de Nantes. Doutora em Linguística pela Université Paul Valéry (Montpellier 3, França). Pesquisadora do CNPq. Professora Titular do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Orientadora de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Grupo de Pesquisa: Líder do GRIFAR/PPGEd/UFRN/CNPq. Endereço para correspondência: Rua Alameda das Margaridas,1275, ap. 201, Ed. Victor Hugo, Tirol. Natal-RN. CEP: 59020-580. [email protected]

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Pierre Bourdieu: da “ilusão” à “conversão” autobiográfica

we study three works by Bourdieu: “The Biographical Illusion” (1986/1998), for its “criticism” to life stories; “The Weight of the World” (1993/2003), for its “adherence” to the biographical method; and “Sketch for a Self Analysis” (2004/2005), for its “conversion” to the autobiographical analysis. Through considerations on Bourdieu’s and Ferrarotti’s perspectives and the developing life-stories movement, that also emerged in the 80s, we highlight the (im)probable slant on Bourdieu’s thought looking forward to providing you a thematic framework of his contributions to the (auto)biographical research and going beyond the “biographical illusion”.

Keywords: (Auto)biographical research. Pierre Bourdieu. Narrative. Education.

Ilusão ou revolução biográfica?

Eu constato com prazer a dissolução da ‘ilusão biográfica’ de Pierre Bourdieu. O método biográfico afirmou e consolidou a sua autonomia e fecundidade.

Franco Ferrarotti (2013, p. 8).

Com as palavras da epígrafe, Franco Ferra-rotti, aos 87 anos, celebra a consolidação, trinta anos depois, de sua tese em defesa da autonomia e fecundidade do método biográfico nas Ciências Humanas e Sociais. Colocadas na abertura da reedi-ção comemorativa de seu livro Histoire et histoires de vie (FERRAROTTI, 2013), publicado pela pri-meira vez na França em 19831, elas ecoam como uma resposta deferida às provocações levantadas pelo artigo de Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica (BOURDIEU, 1986, 1998), que se insurgia contra o método que Ferrarotti2 propunha enquanto uma via humanista e política para as Ciências Sociais3.

A “ilusão biográfica” de Pierre Bourdieu e a “autonomia do método biográfico” de Franco Fer-rarotti fizeram seu caminho, nestes últimos trinta anos, e travaram um embate até hoje estimulante para a pesquisa num terreno de tensão entre duas tendências opostas: a que lança um olhar de suspei-ção sobre as histórias de vida como fonte e objeto de pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais e a

1 Publicado originalmente na Itália (FERRAROTTI, 1981).2 Franco Ferrarotti publicou em 1979, na França, o texto que se

encontra no livro organizado por Nóvoa e Finger (2010). Maria Isaura de Queiroz (1988, p. 43) cita em sua “Bibliografia de apoio” quatro trabalhos de Ferraroti, entre os quais Storia e storie di vita, de 1981.

3 Para Antonella de Vincenti e Gaston Pineau (2013, p. 13), o livro de Franco Ferrarotti, “publicado na instabilidade sociológica dos anos 1980, contribuiu sem dúvidas, em 1986, para desencadear o contra-ataque de Bourdieu [...]”.

que defende sua legitimidade, suas potencialidades políticas e sua fecundidade para suas diferentes disciplinas.

O objetivo desta reflexão é apresentar resulta-dos de estudos sobre a epistemologia da pesquisa (auto)biográfica em Educação, retomando aqui a tensão, reconhecidamente polêmica, que ressoa em surdina cada vez que se empreende o desafio de recorrer a narrativas biográficas e autobiográficas, em Educação, como objeto de pesquisa e disposi-tivo de formação. O foco deste artigo é tematizar a inflexão do pensamento de Pierre Bourdieu sobre o autobiográfico, entre 1986 e 2001, pois as cita-ções dos argumentos do autor contra o (mal) uso das histórias de vida, que encontramos em muitos artigos, dissertações e teses acadêmicas, chega a ser quase um ritual, antes de se adotar um posicio-namento, seja para aceitar suas críticas, seja para se opor a elas.

Partilhei um primeiro esboço deste trabalho com pesquisadores e estudiosos da obra de Pierre Bourdieu4 com o intuito de submeter essa reflexão a um público de especialistas. A expectativa aqui é aprofundar o debate e prosseguir na tentativa de melhor estabelecer parâmetros sobre a epistemo-logia da pesquisa biográfica e autobiográfica em Educação. Reconheço a minha pretensão ao tentar abordar o que aqui proponho, quando considero a vasta obra de Bourdieu, a profundidade de seu pensamento e o alcance das repercussões de seu pensamento sobre os mais diversos temas. Pensar 4 Simpósio Internacional sobre Pierre Bourdieu e a Educação,

promoção conjunta da Pós-Graduação em Educação e do Centro de Educação da UFRN, Universidade Paris 8, Centre Interuniver-sitaire de Recherche Culture, Éducation, Formation, Travaille e do Observatoire National de la Vie Étudiante (OVE), UFRN| Natal, de 24 a 26 de abril de 2013.

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Maria da Conceição Passeggi

que Bourdieu “converteu-se” ao biográfico, para alguns é no mínimo prestar desserviço à sua obra, mas prefiro acreditar no que afirma Wacquant (2002, p. 96) sobre o compromisso do autor com a ciência e não com suas próprias teorias sociais:

Pierre Bourdieu ilustrou brilhantemente e desmen-tiu enfaticamente suas próprias teorias sociais com uma vida repleta que, por meio de improváveis conversões e mudanças bastante sinuosas, ancorou--se em um fiel compromisso com a ciência, com o institution-building intelectual e com a justiça social.

É sob um ângulo epistemológico que desejo discutir aqui sua provável “conversão”, a partir de questionamentos, provocações e contribuições que encontrei em seus escritos e que considero importantes para as pesquisas (auto)biográficas que se afirmaram nos últimos anos no Brasil. Basta pensar no número crescente de teses e dissertações defendidas desde o final dos anos 1990. Stephanou (2008), ao centrar sua pesquisa nos descritores “biografia” e “autobiografia”, entre 1997 e 2006, afirma que a ocorrência desses termos passa de 2%, em 1997, para 20,66%, em 2006. O fortalecimento da vertente biográfica em Educação é reconhecido por Gatti e André (2010) ao fazerem um balanço da relevância dos métodos da pesquisa qualitativa no Brasil. Desde 2004, o movimento biográfico brasileiro já conta com um congresso científico de abrangência internacional5, uma produção bibliográfica de grande densidade6 e associações científicas7, vinculadas ao movimento internacional da pesquisa biográfica8.

Defenderei a tese de uma “revolução biográfica” contra uma mera “ilusão”. E procurarei mostrar que Pierre Bourdieu aderiu e converteu-se ao biográfico, deixando um importante legado, ainda 5 Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica (CIPA),

bianual, e que prepara a sua sexta edição para 2014. 6 Resultam dos cinco CIPAs um total de 25 coletâneas, além de seus

ANAIS, reunindo trabalhos de reconhecidos pesquisadores das Américas e da Europa .

7 BIOgraph e ANNHIVIF, no Brasil, e na Europa a ASHIVIF-RBE, a Red NAUE na América Latina e BioGraFia Rede Cientifica América Latina–Europa.

8 Há mais de trinta anos, tornaram-se referências no mundo anglo--saxão a Biographical research, e na tradição alemã, a Biographie-forschun. Mais recentemente, se fortalecem na França a Recherche biographique en Education, e no mundo ibero-americano a Investi-gación biográfico-narrativa en educación. Os pesquisadores mais representativos dessas tradições em pesquisa vêm participando regularmente dos CIPA.

não estudado, talvez pelo impacto do próprio “es-tardalhaço” de “A ilusão biográfica”. Este estudo se interroga, portanto, sobre as contribuições pouco evidenciadas de Pierre Bourdieu ao biográfico, que ficaram estagnadas no marco de uma “ilusão biográfica”, que fez sombra a uma “revolução biográfica”, à qual se opõe uma “ilusão objeti-vista”. Procuro melhor compreender e discutir a inflexão/evolução do seu pensamento, tomando como base três de seus escritos publicados entre 1986 e 2001, escolhidos por seus vínculos com o biográfico. Numa ordem cronológica: A ilusão biográfica (1986), cujo interesse é a sua “crítica” às histórias de vida; A Miséria do Mundo (1993), mais particularmente o capítulo “Compreender”, que me leva a propor sua “adesão” ao biográfico; e, finalmente, Esboço de auto-análise (2005), escrito no ano de sua aposentadoria e um ano antes de sua morte, para sugerir sua “conversão” (improvável ou não) ao autobiográfico.

Na perspectiva da pesquisa (auto)biográfica em Educação, em que me situo, as narrativas au-torreferenciais são utilizadas como objeto, fonte e método de pesquisa qualitativa, e como dispositivo pedagógico de reflexão crítica e de formação. É sobre essas vertentes que gostaria de tecer minhas considerações, com o objetivo de tematizar as contribuições de Pierre Bourdieu em A Miséria do Mundo e Esboço de auto-análise para as diferentes vertentes da pesquisa (auto)biográfica e desmisti-ficar A ilusão biográfica.

“A ilusão biográfica” e a “autonomia do método biográfico”

Depois de um eclipse de trinta anos9, os traba-lhos de Daniel Bertaux (2010) com narrativas de vida, conduzidos numa perspectiva etnossociológi-ca, dão um novo fôlego ao biográfico, na França dos anos 1970. No campo da Sociologia, esse ressurgir é fortalecido com as traduções para o francês dos trabalhos de Franco Ferrarotti em defesa da auto-nomia do método biográfico nas Ciências Sociais. Para Dosse (2009, p. 249), Bertaux e Ferrarotti, “malgrado suas divergências [...] arrancaram a

9 Os trabalhos da Escola de Chicago datam dos anos 1920-1930. Após a Segunda Grande Guerra, a pesquisa quantitativa se impõe até os anos 1970.

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Pierre Bourdieu: da “ilusão” à “conversão” autobiográfica

biografia de uma situação de desafio exterior às considerações científicas”, conferindo-lhes valores heurístico e hermenêutico. E é justamente contra esse “contrabando no universo científico”, que Bourdieu (1998, p. 183) dispara um alerta:

As histórias de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram como contrabando no universo científico, inicialmente, sem muito alarde, entre etnó-logos, depois, mais recentemente, com estardalhaço, entre os sociólogos.

A crítica bourdieusiana volta-se contra a possi-bilidade de os sociólogos aceitarem, por intermédio de uma noção do senso comum, uma teoria da narrativa, repousando numa lógica insidiosamente gerada pela criação artificial de sentidos. Bourdieu (1998, p. 185) alerta ainda contra as leis que re-gem, explícita ou implicitamente, a produção do discurso, e que tendem a impor e a oficializar uma representação pública ou privada da vida. Portan-to, seria um contra senso admitir que a ciência se conformasse com uma “ilusão retórica”.

Franco Ferrarotti, ao contrário de Pierre Bourdieu, preocupa-se em seus trabalhos10 com a defesa da autonomia do método biográfico numa perspectiva crítica e numa crítica ao isolamento da Sociologia. Posiciona-se contra o uso das narrati-vas biográficas e autobiográficas como ilustração, ou uma “verdade” a ser verificada, ou ainda como casos, histórias “exemplares”, publicadas, muitas vezes, à revelia de quem as narrou. Ferrarotti (1983, p. 39, grifo do autor) defende a “autonomia do método biográfico e de seu caráter decisivo para o futuro da pesquisa nas ciências sociais”. Adota uma postura epistemológica, ética e política alinhada à percepção que privilegia “as vastas massas huma-nas” desvalidas, suas necessidades materiais, sua sobrevivência cotidiana, destinadas ao esquecimen-to. Para tanto, defende uma deontologia do método contra a tendência em Sociologia a abolir o sujeito participante da pesquisa biográfica. A prioridade são as fontes primárias que devem ser recolhidas direta-mente por um pesquisador, politicamente engajado, consciente do dever de garantir a quem lhe oferece sua história uma escuta respeitosa e o anonimato. Desde o primeiro capítulo do livro: “Uma metodo-10 Para uma síntese de sua defesa da autonomia do método autobio-

gráfico, ver o capítulo introdutório do livro organizado por Nóvoa e Finger (2010).

logia sociológica como técnica da escuta”, Ferrarotti (1983) dá o tom da revolução biográfica que viveu e empreendeu ao longo de seu caminho. A entrevista ocupa o lugar central do método, como descreve no capítulo 3: “A biografia como interação”, e sua defesa se alicerça na necessidade de que a entrevista se realize “num pé de igualdade entre pesquisador e o grupo pesquisado, uma comunicação não apenas metodologicamente correta, mas humanamente significativa (essa significância não é um acréscimo moral facultativo, mas parte integrante e garantia da honestidade metodológica)”11 (1983, p. 46).

É a perspectiva de Franco Ferrarotti que se tor-nará uma das referências epistemológicas fundantes do movimento socioeducativo das histórias de vida em formação, que surgia no âmbito da formação de adultos, na Europa e no Canadá, no início dos anos 1980. O vigor militante do movimento, como nos lembra Dominicé (2008), encontra no enga-jamento político e epistemológico de Ferrarotti (1983) argumentos a favor do autobiográfico na pesquisa-formação, defendida pelos pioneiros12 desse movimento.

Em 1983, foi também publicado em Montreal e Paris o livro Produire sa vie: autobiographie et autoformation (Produzir sua vida: autobiografia e autoformação), de autoria de Gaston Pineau e Marie-Michèle13. O livro tornou-se o marco inaugural das histórias de vida em formação por constituir uma primeira proposta sistematizada do uso das histórias de vida como dispositivo de formação na educação permanente de adultos, que se institucionalizara no início dos anos 1970, face ao desemprego crescente. Das universidades, 11 Traduzimos para o português todos os excertos de textos citados

em francês.12 Tomo como referência os autores que publicaram no primeiro

número da Revista Education permanente (nº 72-73, mars 1984) e que participaram do movimento: Gaston Pineau, Mona Distiheim (Canadá, França); Bernadete Courtois, Guy Bonvalot, Guy Jobert, Vincent de Gaulejac, Simone Clapier-Valladon, Jean Poirier, Henri Desroche, Laurence Crayssac, Jean Pierre Brunet (França); Pierre Dominicé, Marie-Christine Josso, Matthias Finger, Michael Huberman (Suíça); Nóvoa (Portugal); Guy de Villers (Bélgica); Christine de Panafiou (Alemanha). Encontram-se ainda entre os autores os sociólogos Franco Ferrarotti (Itália) e Maurizio Catani (França).

13 O livro de Gaston Pineau e Marie-Michèle foi reeditado, em 2012 (PINEAU; MARIE-MICHÈLE, 2012), na mesma coleção do livro de Ferrarotti. Essas duas obras fundadoras, que se encontravam fora de circulação há trinta anos, são hoje colocadas ao alcance dos pesquisadores, graças ao esforço de Gaston Pineau e Christine Delory-Momberger.

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esperavam-se respostas de formação que atendes-sem a um público de adultos, marcado pela desi-gualdade: migrantes, desempregados, mulheres, jovens..., que enfrentavam dificuldades de inserção ou de reinserção profissional e social. É importante lembrar que Franco Ferrarotti e Gaston Pineau não se conheciam e que suas obras não rementem uma à outra. Um ano depois, seus nomes aparecem no sumário do primeiro número dedicado às “Histórias de vida”, pela Revista Education permanente (nº 72-73, mars 1984), e dois anos depois do venda-val provocado por “A ilusão biográfica”, Nóvoa e Finger (1988, 2010) consolidam os laços da “autonomia do método biográfico” com o movi-mento das histórias de vida em formação, no livro que organizaram para um público de leitores de língua portuguesa e que se tornou uma referência fundante, no Brasil, para a pesquisa e a formação de professores com escritas autorreferenciais.

Ora, para as pesquisas com as narrativas de vida, a etiqueta de “ilusão biográfica” provocava, e ainda provoca, questionamentos sobre a repre-sentatividade dos dados e sua validade. As mu-danças societais, ao longo dos últimos trinta anos, esmaeceram, no entanto, os argumentos utilizados por Bourdieu para denunciar a ilusão biográfica. Por isso, reduzir seu pensamento a esse artigo não faz justiça ao seu modo de entender a permanente revolução da ciência.

Não podemos esquecer que ainda em 1983, Paul Ricoeur (1983) publica Temps et récit (tomo I), em que desenvolve a tese do papel mediador do enredo para a compreensão dos dramas humanos, aos quais não podemos ter acesso fora das histórias narradas pelos outros ou por nós mesmos. Pesquisadores em História, Literatura, Psicologia, Antropologia, Filo-sofia, Sociologia renderam-se, nos últimos anos, ao biográfico, como matéria-prima para compreender a vida humana na “modernidade líquida”, como a denomina Bauman (2001, 2007), ou na “sociedade biográfica”, defendida pelos sociólogos Astier e Duvoux (2006). Para Dosse (2009), estamos na “Idade hermenêutica” do biográfico, em que os narradores e leitores vivem o tormento das apo-rias das interpretações as mais díspares, inclusive oriundas do discurso científico.

Bourdieu focalizava as narrativas “ordenadas”, lineares, de historiadores e romancistas, criadas por

uma “ilusão retórica”, que se contrapunha inclusive ao romance moderno que se afirmara por mostrar que o real é descontínuo e aleatório. Contudo, Bourdieu parece esquecer a natureza da narração como um fato antropológico: “Narrar é humano!” (PASSEGGI, 2010). Nesse sentido, Jovchelovitch e Bauer (2003, p. 91) retomam uma citação lapi-dar de Barthes, que vai nessa direção: “a narrativa começa com a própria história da humanidade”. A história de uma vida não é linear. É a narrativa que empresta à vida uma sequência, cria um percurso orientado, linear, da história, como lembram Pineau e Le Grand (2012, p. 60):

É, aliás, quase sempre o inverso, o surgimento de uma ruptura, de um acontecimento cujo sentido é buscado e construído depois. E é justamente porque a vida humana não é uma história, mas intervalos de turvação às voltas com múltiplas histórias, con-tinuidades e descontinuidades a serem articuladas, que os vivos procuram fazer da vida uma história. Por que motivo?

Por pelo menos dois motivos interligados: um social e outro psicológico. Quando um aconteci-mento provoca rupturas nas rotinas canônicas, os grupos humanos criam narrativas para explicá-lo, um enredo que permita o retorno a uma situação de equilíbrio mesmo que seja provisório. O que é válido para o grupo é igualmente válido para o indivíduo. A narração, como sugerem Bruner (1997, 2002) e Bronckart (1999), serve para aliviar as pressões sociais e psicológicas sofridas pelas aporias de interpretações paradoxais. Sua fecun-didade como fenômeno antropológico provém do entrelaçamento que se realiza, na linguagem e pela linguagem, entre o ser e o tempo, o ser e o espaço, o ser e o outro, “o ser e o nada”.

Quer a narração seja construída pelo homem co-mum, quer pelo historiador, o romancista, o erudito, o teólogo, o cientista, ela é sócio-historicamente situada e traz as marcas da subjetividade do narrador (eu/nós), da intersubjetividade (eu-você; nós-vocês), pondo em relação suas coordenadas espaço-tempo-rais a partir do aqui e agora (hic e nunc).

Retomaremos mais adiante outros excertos de A ilusão biográfica, em que Bourdieu (1998, p. 184) se refere ao narrador e a uma “propensão a tornar-se o ideólogo de sua própria vida”, às noções de habitus, trajetória, identidade e à “situação da

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Pierre Bourdieu: da “ilusão” à “conversão” autobiográfica

investigação”, que nos parecem ainda mais impor-tantes para o presente estudo, mas que só poderão ser abordadas esquematicamente.

Compreender: “um exercício espiritual”

Como lembra Wacquant (2002, p. 100), o livro coletivo A Miséria do mundo, coordenado por Bourdieu (1993), é “uma sócio-análise de mil pá-ginas sobre as formas emergentes do sofrimento so-cial na sociedade contemporânea”. Seu “estrondoso sucesso popular” se justifica, segundo Montagner (2009, p. 259), porque ele “atingiu o objetivo de sensibilização dos leitores e a própria mídia, subs-tituindo grande parte das análises complexas do mundo social por discursos dos próprios agentes”.

Na abertura do livro, Bourdieu (2003, p. 9) dirige-se “Ao leitor” [...] entregando-lhe [...] os de-poimentos que homens e mulheres nos confiaram a propósito de sua existência e de suas dificuldades de viver”. Para os leitores de Franco Ferrarotti, o que surpreende nesse livro é a harmonia com os grandes princípios do método biográfico, defendidos por esse autor, mas também o esquecimento de sua grande contribuição para o uso de autobiografias em Sociologia. Entretanto, foi sem dúvidas pela harmonia entre suas propostas que fui facilmente seduzida pelo livro, e em particular pelo capítulo “Compreender”, que se tornou uma leitura com-plementar aos textos de Ferrarotti e uma forma de desmitificar a “ilusão biográfica”, que me impedia de melhor compreender a contribuição de Bourdieu para a pesquisa (auto)biográfica. O mais acolhedor na leitura desse capítulo era observar o quanto Bourdieu, ao aderir ao autobiográfico, se deixara seduzir pela pessoa que narra sua existência. Essa dimensão humana do cientista e do homem me convinha. Para os que bem conhecem sua obra, Bourdieu (2003) explica nesse capítulo a atitude científica em três etapas cruciais da pesquisa com narrativas autobiográficas orais, ou seja, com fontes primárias: a entrevista, a transcrição e a publicação, alertando contra os riscos de violência simbólica nesses diferentes procedimentos.

Na recolha dos dados, o pesquisador não deve deixar que a preocupação teórica se sobreponha à prática de uma escuta cuidadosa e sensível. A entrevista é então considerada como um “exercício

espiritual visando a obter pelo esquecimento de si uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida” (BOURDIEU, 2003, p. 704, grifo do autor). Para Bourdieu (2003, p. 701), somente essa empatia permitiria penetrar “na singularidade da história de uma vida e tentar compreender ao mesmo tem-po na sua unicidade e generalidade os dramas de uma existência”. Estamos mais próximos do que afirmava Ferrarotti em 1983 sobre o indivíduo universal-singular e a possibilidade de ler uma sociedade por meio de uma autobiografia, do que dos argumentos apresentados por Bourdieu em “A ilusão biográfica”, em que o autor salientava a pretensão do narrador tornar-se o ideólogo de si mesmo.

Quanto ao trabalho de transcrição, encontrei recomendações tão lúcidas14 quanto as que lera em Ferrarotti. Esse tipo de trabalho deve ser conduzido “em nome do respeito devido ao autor”, afirma Bourdieu (2003, p. 710). Chama a atenção para o trabalho de transposição do registro oral para o es-crito. A textualização das entrevistas deve ser capaz de “tocar e de comover, de falar à sensibilidade, sem sacrificar ao gosto do sensacional” (BOUR-DIEU, 2003, p. 711). Somos todos conhecedores das dificuldades de restituição do valor semântico das falas. Sem os devidos cuidados, os vícios da oralidade fazem do entrevistado um “idiota cultu-ral”. As operações envolvidas nessa transposição da oralidade para a escrita, que se realiza com o devido respeito ao narrador e com a atenção voltada para o leitor, definem as condições necessárias à compreensão da “miséria do mundo”. Deixar que falem os entrevistados e que em sua história se possa ler e interpretar os processo de exclusão, discriminação, abandono... Não eram relatos de guerra como os que Bourdieu ouvira na Argélia, que o afetavam “tão profundamente, a ponto de voltarem em sonhos” (BOURDIEU, 2003, p. 78), mas como eles, as entrevistas deviam também comover profundamente o leitor, sensibilizá-lo a tal ponto de poder “voltar em sonhos”.

Quanto à publicação das entrevistas, a preocu-pação de Bourdieu é propor a democratização da

14 Em nota de rodapé, Bourdieu (2003, p. 694) sintetiza como os “princípios (provisórios) da entrevista”, as dificuldades e ensina-mentos decorrente da pesquisa eram “regularmente submetidos à discussão nos seus seminários do Collège de France de 1991-1992”.

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postura hermenêutica tanto na transcrição, como vimos anteriormente, quanto na recepção das nar-rativas ordinárias. O pesquisador deve atentar para as interpretações, até mesmo as dos leitores mais bem intencionados. Essas são as suas primeiras palavras dirigidas “Ao leitor” na abertura do livro: “esperamos que o leitor lhes conceda [aos depoi-mentos] um olhar tão compreensivo quanto o que as exigências do método científico nos impõe e nos permite conceder-lhes” (BOURDIEU, 2003, p. 9). Em suma, o que sugere Bourdieu é que se dê “[...] às declarações de um operário metalúrgi-co o acolhimento fervoroso que certa tradição de leitura reserva às formas mais altas da poesia ou da filosofia” (BOURDIEU, 2003, p. 712).

Entrevistar, transcrever e publicar tratava-se, portanto, para Bourdieu, de um “exercício espi-ritual” que se desdobrava em “amor intelectual”. Para o leitor de Ferrarotti (1983, p. 150), ecoam nessas preocupações o que ele dizia no Prólogo da primeira edição do seu livro. Tratava-se, sobretudo, para Ferrarotti, de

Uma operação difícil e perigosa. Diante dos textos das biografias, tive sempre a impressão de não ser suficientemente cuidadoso ou perspicaz para compreendê-los profundamente. Tive também a im-pressão de não merecê-los. Se não uma atitude, mas pelo menos uma certa disposição religiosa me parece indispensável. Medo de uma profanação? Talvez.

Para Ferrarotti (1983)15, em sua visão socioló-gica e política, as histórias de vida de pessoas em situação de pobreza não deviam ser confundidas com

violação da privacy16 sobre a qual divagam os bur-gueses, na apatia sombria e aveludada dos quarteirões residenciais de luxo, ou a imprensa bem pensante dos amantes da ordem e das pessoas decentes. [Trata-se] Ao contrário de um objetivo declarado, louvável e progressista de restituir a palavra aos pobres [...] de aceitar com um amor fraterno e cuidadoso o que eles têm a dizer. (FERRAROTTI, 1983, p. 151).

Para além da harmonia do pensamento de Bour-dieu com o de Franco Ferrarotti sobre o uso das narrativas de vidas para denunciar a exclusão, pela 15 Cf. Ferrarotti (1983, 2013), Apêndice 1 “Les biographies comme

instrument analytique et interprétatif” [As biografias como instru-mento analítico e interpretativo].

16 Em inglês no original.

voz dos próprios excluídos, encontrei ainda nesse capítulo “Compreender” o que não li em Ferrarotti, ou seja, a intuição bourdieusiana sobre o poder de formação das narrativas autobiográficas para a pes-soa que narra. Nesse sentido, o capítulo contempla as duas vertentes já consolidadas da pesquisa (auto)biográfica em Educação: a que recorre às narrativas autorreferenciais como método de pesquisa e a que as propõe como dispositivo de formação. Para o autor, os entrevistados, particularmente os mais carentes, aproveitavam as entrevistas para construí-rem “seu próprio ponto de vista sobre eles mesmos e sobre o mundo” (BOURDIEU, 2003, p. 704). A perspicácia dessa reflexividade que emergia na entrevista é o que lhe permitia falar “de autoanálise provocada e acompanhada” (BOURDIEU, 2003, p. 704, grifo do autor).

Como o próprio Bourdieu afirma: “em mais de um caso nós sentimos que a pessoa interrogada aproveitava a ocasião [...] para realizar um trabalho de explicação, gratificante e doloroso ao mesmo tempo [...] e enunciar [...] experiências e reflexões há muito reservadas ou reprimidas” (BOURDIEU, 2003, p. 704).

O que Bourdieu afirmava sobre as entrevistas narrativas como um exercício espiritual, uma espécie de amor intelectual e uma autoanálise provocada e acompanhada me preparou, indi-retamente, para acolher Esboço de auto-análise e compreender melhor a sua travessia da ilusão à conversão autobiográfica. Talvez para que eu também pudesse compreender e aceitar melhor a minha própria travessia em busca de argumentos para fundamentar respostas a questões que me ator-mentavam no início dos anos 2000 (PASSEGGI, 2000, 2002, 2006), entre elas: “Quantos memoriais seriam necessários para se buscar uma ‘verdade’ científica?”; “A injunção institucional nesse tipo de gênero memorialístico apaga sua dimensão for-mativa?”; “Por que essas escritas autorreferenciais produzidas na academia e para a academia eram relegadas a um segundo plano na pesquisa sobre a formação docente e a história do sistema educa-cional brasileiro?”. Contra a “ilusão biográfica”, as abordagens de Ferrarotti e de Bourdieu priorizavam a qualidade do material, a sua riqueza, e não uma representatividade estatística o que vinha fortalecer

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Pierre Bourdieu: da “ilusão” à “conversão” autobiográfica

a hipótese de Ferrarotti (2010, p. 44): “nosso siste-ma social encontra-se integralmente em cada um de nossos sonhos, delírios, obras, comportamentos. E a história desse sistema está contida por inteiro na história de nossa vida individual”. Só que é preciso saber decifrar!

A sociologia é um instrumento de autoanálise e a reflexividade, um método

A primeira leitura que fiz de “Esboço de auto--análise” (BOURDIEU, 2005) foi guiada pelo desejo de tentar entender por que Pierre Bourdieu havia justamente escolhido sua própria trajetória intelectual como objeto de reflexão. Pulici (2006, p. 197) resume assim o interesse do livro:

Para aqueles que achavam que com Homo Academi-cus (1984) e Meditações Pascalianas (1997) Pierre Bourdieu (1930-2002) já havia levado ao limite a análise sociológica do mundo intelectual, esquadri-nhando os princípios classificatórios e as relações de força simbólicas que atravessam o ambiente acadêmico francês, Esboço de Auto-Análise é sem dúvida o fecho mais coerente que se poderia esperar de uma obra que tanto criticou o fato de muitos inte-lectuais interrogarem o mundo e poucos intelectuais interrogarem o mundo intelectual.

Ao deparar-me com a epígrafe logo na abertura do livro: “Isto não é uma autobiografia - Pierre Bourdieu”, pareceu-me evidente que Bourdieu voltava ao seu posicionamento de 1986 e se desfaria ali o meu encantamento com A Miséria do mundo. O que queria nos dizer? Na Introdução, Sergio Miceli (2005, p. 7-20) lembra que Bourdieu havia abandonado a análise da obra de Manet por não ter localizado “dados biográficos” importantes, o que reputava como um empecilho à sua interpre-tação. Parte da resposta encontra-se no final do livro, quando afirma que o escreveu “acima de tudo na mira dos meus leitores mais jovens” para que pudessem “apreender uma obra e uma vida no movimento necessário de sua realização”.

Por que então se recusava a admitir que escrevia sua história? Passei então a associar a epígrafe a uma provocação de Bourdieu, uma alusão à céle-bre obra do pintor surrealista René Magritte, “Isto

não é um cachimbo”,17 cuja intenção era provocar a desconstrução da relação habitual entre imagem e linguagem, com o propósito de desconcertar e de obrigar o leitor a buscar um sentido novo para a relação com o objeto, mediada pela arte. À se-melhança de Magritte, Bourdieu queria com essa provocação levar o leitor a estabelecer uma nova relação com as escritas autobiográficas? O que você vai ler pode dar a impressão, mas não é uma autobiografia.

Nas primeiras linhas do livro, um alerta aos leitores: “Não pretendo me sacrificar ao gênero autobiográfico, sobre o qual já falei um bocado como sendo, ao mesmo tempo, convencional e ilusório” (BOURDIEU, 2005, p. 37). Em seguida, afirma explicitamente que sua intenção é “apenas tentar reunir e revelar alguns elementos para uma auto-socioanálise”18 (BOURDIEU, 2004, p. 11). Numa segunda epígrafe, que consta apenas da edição francesa do livro, lê-se na “Nota do editor”: “Análise sociológica excluindo a psicologia, salvo alguns impulsos de humor - Pierre Bourdieu, Notas preparatórias” (BOURDIEU, 2004, p. 7). Passo a entender então que ele pretende opor ao gênero auto-bio-gráfico uma auto-sócio-análise que se realiza quando o narrador, “adotando o ponto de vista do analista, [se obriga (e se autoriza)] a reter todos os traços pertinentes do ponto de vista da sociologia, ou seja, apenas aqueles que são neces-sários à explicação e à compreensão sociológica” (BOURDIEU, 2005, p. 37).

Falar de si, para Bourdieu, é antes de tudo falar de sua vida acadêmica: de “todos os momentos de minha história, em particular os diferentes partidos assumidos em matéria de pesquisa” (BOURDIEU, 2005, p. 38). Passei então a buscar no livro sua semelhança com os memoriais acadêmicos, o que me parecia coerente com o seu pensamento, ou seja, conferir à “auto-socioanálise” do homem de ciência, as “credenciais de nobreza acadêmica”,19 aqui entendida como honestidade científica. Essa 17 Entre 1928 e 1929, o pintor surrealista belga René Magritte (1898-

1967) produziu uma série de pinturas intitulada A Traição das Imagens (La Trahison des Images), entre elas encontra-se “Isto não é um cachimbo” (Ceci n’est pas une pipe).

18 Na tradução em português substitui-se “uma auto-socioanálise” por “uma auto-análise”, mais coerente com o título do livro, mas que retomo aqui por seu interesse para minha argumentação.

19 Retomo a expressão de Bourdieu (2005, p. 51) ao se referir a Freud e Lacan.

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aproximação não é vã, pois mais adiante, Bourdieu, ao lembrar sua pesquisa a propósito do celibato dos filhos mais velhos no Béarn (sua região natal), afirma: “Talvez não seja de todo descabido enxergar uma espécie de Bildungsroman20 intelectual na his-tória dessa pesquisa, a qual constituiu a ocasião e o detonador de uma verdadeira conversão”. A de sua visão de mundo, correlata à “passagem da filosofia para a sociologia” (BOURDIEU, 2005, p. 86-87).

Entendo melhor, hoje, que Bourdieu teorizava nesse livro uma nova forma de falar de si, que já constituía, grosso modo, desde os anos 1930, uma tradição acadêmica quase secular, no Brasil. Con-trariamente ao que fizera Rousseau em As Confis-sões, em que afirma estar criando um novo gênero literário, Bourdieu não pretende situar Esboço de auto-análise num novo gênero memorialístico au-tobiográfico. François Dosse (2009, p. 229), em O Desafio biográfico, lembra que “os tempos atuais são mais sensíveis às manifestações das singulari-dades, que legitimam não apenas o interesse pela biografia como a transformação do gênero num sentido mais reflexivo”. É nesse sentido que evolui o pensamento de Bourdieu em sua autobiografia intelectual, ou seja, na direção da reflexividade da “Idade Hermenêutica” como denomina Dosse (2009, p. 229).

As noções de reflexividade e cientificidade são cruciais para a compreensão da sócio-autoanálise como uma modalidade acadêmica do autobiográ-fico. É importante lembrar que a primeira versão de “Esboço de auto-análise” (Esquisse pour une auto-analyse) encontra-se nas últimas páginas do livro “Science de la science et réflexivité” (Ciências da ciência e reflexividade), que reúne as aulas de seu último curso no Collège de France, no ano le-tivo 2000-2001 (BOURDIEU, 2001). No prefácio desse livro, Bourdieu afirma que ele decidira tomar a ciência como objeto de reflexão, por considerar que, estando em perigo, “ela se tornava perigosa” (BOURDIEU, 2001, p. 6).21 Assim, se propunha a adotar uma postura crítica contra “instrumentos de conhecimento” que pudessem se voltar “contra o su-jeito do conhecimento” (BOURDIEU, 2001, p. 15).

“Esboço para uma auto-análise”, no capítulo “Pourquoi les sciences sociales doivent se prendre 20 “Romance de formação” na tradição alemã.21 Interesses midiáticos, econômicos, competição entre pares...

pour objeto”22, apresenta-se como uma forma de aplicar a si mesmo o rigor científico dos métodos que utilizara em suas pesquisas sociológicas, em suma, “fazer a sociologia do objeto que eu sou” (BOURDIEU, 2001, p. 184). Para tanto, “só a refle-xividade, que é sinônimo de método” (BOURDIEU, 1993, p. 694, grifo nosso) apresenta-se como a condição indispensável para a objetivação científica do sujeito da objetivação, portanto como garantia da cientificidade em sua intenção explícita de fazer ciência com uma escrita subjetiva, ou seja, conciliar o inconciliável na tradição sociológica clássica.

Em A Miséria do mundo (BOURDIEU, 1993, p. 709), lê-se que o pesquisador, para realizar o seu desejo de “descobrir a verdade”, que é constitutiva da intenção científica, deve, à maneira de um partei-ro, improvisar estratégias para “ajudar o pesquisado a dar a sua verdade ou, melhor, a se livrar de sua verdade” (BOURDIEU, 1993, p. 709). Talvez não seja exagerado afirmar que no esforço de sua auto--socioanálise, Bourdieu se coloca na posição de analista como uma estratégia para “se livrar de sua verdade”, o que há muito tempo o perseguia. Como lembra Catani (2008, p. 50), Bourdieu já tentara falar “de si de maneira franca e emocionada” nas primeiras páginas de Esquisse d’une théorie de la pratique23 (BOURDIEU, 1972).

O seu percurso na sua auto-socioanálise é tão revelador de sua intenção de fazer ciência quanto do desejo de se livrar de sua verdade. O seu projeto quase obsessivo de compreender e explicar o mun-do social cientificamente desliza, no entanto, de um texto contundente, amargo, de uma “descrição (ácida e irônica) do estado do campo intelectual--filosófico-universitário francês no momento de seu ingresso” (ALMEIDA, 2006, p. 126), para um relato transpassado pela emoção contagiante de uma escrita literária, subjetiva, emotiva, sobretudo quando se trata do retorno às suas origens, à sua infância, ao seu mundo familiar, às suas dúvidas e incertezas. Bourdieu refere-se a um habitus cliva-do, para explicar a ambivalência fundante de seu pensamento, essa angústia de se sentir dividido, por exemplo, entre duas forças dilacerantes que o obrigam a admirar e a negar as instâncias nas quais e contra as quais ele se tornou o intelectual que era: 22 Por que as ciências sociais devem se tomar como objeto.23 Esboço de uma teoria da prática.

232 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 223-235, jan./jun. 2014

Pierre Bourdieu: da “ilusão” à “conversão” autobiográfica

“como se a certeza de si, ligada ao fato de sentir-se consagrado, fosse corroída, em seu próprio princí-pio, pela mais radical incerteza quanto à instância de consagração, espécie de mãe malvada, falha e enganosa” (BOURDIEU, 2005, p. 123). Ou ainda em passagens como essa: “E tudo o que disse aqui a respeito das causas ou das razões de cada uma das experiências evocadas, como minhas aventuras argelinas ou meus entusiasmos científicos, mascara, portanto, a visão subterrânea e a intenção secreta que constituíam a face oculta de uma vida dilace-rada” (BOURDIEU, 2005, p. 98).

Numa conferência pronunciada em 1984, a propósito de seu livro Homo Academicus, ele já afirmara o seguinte:

[...] a sociologia é um instrumento de autoanálise extremamente poderoso que permite a cada um compreender melhor o que ele é, dando-lhe uma compreensão de suas próprias condições sociais de produção e da posição que ocupa no mundo social. Sem dúvidas isso é completamente decepcionante e não é em absoluto a visão que se tem comumente da sociologia. (BOURDIEU, 2007, p. 101, tradução nossa).

O autor reconhece que corria o risco de decep-cionar aqueles para quem a Sociologia tinha uma função profética, escatológica, política, mas ele mesmo só considerava como certo que em Socio-logia “a análise poderia ter também uma função clínica, até mesmo terapêutica” (BOURDIEU, 2007, p. 101). Essa (inter)subjetividade explosiva só emerge na parte final do livro. É essa compre-ensão de que não se narra uma história já existente, como insiste Delory-Momberger (2008), mas que a história se constrói na ação de narrar, que Bourdieu parece abrir mão da cientificidade imposta pela visão sociológica da objetivação do sujeito, por “alguns impulsos de humor”, para deixar viver em si o sujeito da experiência, que, como sugere Jorge Larrosa (2002), sai de si, não para propor mas para “ex-por” sua historicidade, ou seja, as razões mais autênticas de suas escolhas refletidas e irrefletidas.

Considerações em aberto

Esbocei aqui alguns argumentos sobre a infle-xão/evolução do pensamento de Pierre Bourdieu com relação ao biográfico, entre 1986 e 2001, na

tentativa de evidenciar o seu importante legado para a pesquisa (auto)biográfica em Educação, ainda não suficientemente explorado. A hipótese é que o impacto de sua crítica às histórias de vida em seu artigo “A ilusão biográfica” parece impedir que se avance nas leituras de Pierre Bourdieu, que no nosso entender aderiu ao biográfico em A Miséria do Mundo e escreve sua autobiografia intelectual em Esboço de auto-análise, comprovando a sua “conversão” ao gênero. Todavia trazendo para ele a força de seu pensamento revolucionário, trans-formando a narração numa reflexividade (auto)crítica, sociologicamente fundamentada. Sua sócio-autoanálise condensa o que defendia para a sociologia reflexiva, que só agora, como sugere Lash (1997, p. 187) “podemos ver em que sentido”. Para Lash (1997, p. 185), “Bourdieu fala de refle-xividade em termos de descoberta sistemática de categorias impensadas que em si são precondições das nossas práticas mais autoconscientes (nesse caso sociológicas)”. Entretanto esse é outro assunto de grande interesse que emerge desse livro, cuja complexidade convida a outros estudos.

Os princípios éticos de método e o posiciona-mento político preconizados por Bourdieu em A Miséria do Mundo me permitiram aproximar o que se pratica no movimento socioeducativo das histórias de vida em formação e na pesquisa (auto)biográfica, na perspectiva defendida por Ferrarotti, da autonomia do método biográfico nas Ciências Sociais e Humanas.

Dois movimentos merecem destaque nestas considerações em aberto. Em primeiro lugar, que a produção do conhecimento se inicia e se conclui em múltiplos momentos de reflexividade (inter)relacional. Na entrevista biográfica: na relação entre o pesquisador e o entrevistado. Na transcri-ção da entrevista: na relação entre pesquisador, entrevistado e leitor. Na publicação da pesquisa: entre o leitor, o pesquisador e o entrevistado. Nesses diferentes momentos, a reflexividade dos parceiros da interação entra em jogo para que cada um possa compreender a si mesmo e ao outro, no esforço de afirmar, duvidar, sugerir... Por isso, o conhecimento produzido é coletivo e não apenas do sociólogo ou do pesquisador, que em nome da cientificidade, poderia fazer prevalecer um ponto de vista em detrimento de outros.

233Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 223-235, jan./jun. 2014

Maria da Conceição Passeggi

Em segundo lugar, não se busca uma “verdade ontológica”, mas compreender como as pessoas, enquanto sujeitos da experiência, percebem o que as afetou no seu processo de formação intelectual, profissional e humana, e como a narrativa aguça sua reflexividade para compreender o habitus e o habitar. O narrador das novas classes média e baixa, na modernidade líquida, avançada ou tardia, não é o mesmo de 1980, o senso comum se tornou, para muitos, mais científico e mais reflexivo, graças aos novos sistemas de comunicação e de informação que difundem de forma planetária as conquistas e erros científicos, políticos, humanos... Tornou-se prioritário que cada um se aproprie de sua histori-cidade e, portanto, de sua margem de liberdade para se compreender como sujeito do conhecimento e melhor agir e interagir no mundo. Nesse caso, não há, portanto, um viés prioritário e uma suposta cientificidade em detrimento da deontologia em pesquisa, que se desdobra em uma questão episte-mológica, política, ética e estética, daí a importân-cia do “reconhecimento social da validade objetiva dessas falas subjetivas autorreferenciais”, como defendem Pineau e Le Grand (2012).

O que guardo de “Esboço de auto-análise” é a contribuição inegável de Bourdieu ao gênero acadêmico autobiográfico como modalidade de reflexividade científica necessária ao próprio avan-ço das ciências e de novos rumos para as ciências do humano. É justo que tenha sede de permanecer vivo junto aos seus leitores, sobretudo os mais jovens. Sua esperança era que a leitura de sua

auto-socioanálise permitisse a cada um converter “um autor embalsamado, aprisionado nas banda-gens mumificadas do comentário acadêmico num verdadeiro alter ego, ou melhor, num companheiro no sentido dos antigos ofícios, o qual tem proble-mas ao mesmo tempo triviais e vitais, como todo mundo” (BOURDIEU, 2005, p. 134).

Suas palavras finais aproximam-se de tantas outras que li em inúmeros memoriais escritos por professores universitários e do ensino fundamental: o desejo de que a leitura não se transformasse num julgamento, mas que a história de sua vida pudesse ser útil para a vida de quem a lê:

E nada me deixaria mais feliz do que lograr levar alguns de meus leitores a reconhecer suas expe-riências, suas dificuldades, suas indagações, seus sofrimentos etc. nos meus e poder extrair meios de fazer e de viver um pouco melhor aquilo que vivem e fazem (BOURDIEU, 2005, p. 135).

Se entendi bem a provocação de Bourdieu ao iniciar um livro autobiográfico com uma epígrafe de abertura “Isto não é uma autobiografia”, isso significa que no livro não há nada de linear, muito menos de imaginário, mas que ele emana de uma reflexividade refletida. Nele se misturam a racio-nalidade mais lógica e a emotividade explosiva do eu examinado, refletido, reflexivo. O que essa narrativa de si evoca é que, no mundo da vida e no mundo do texto, a experiência e a razão hu-mana só podem apreender a vida parcialmente, confusamente.

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Recebido em: 18.01.2014

Aprovado em:27.04.2014

237Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 237-245, jan./jun. 2014

Maria Elly Herz Genro; Jaime José Zitkoski

EDUCAÇÃO E DIREITOS hUMANOS

NUMA PERSPECTIVA INTERCUlTURAl

Maria Elly herz Genro ∗

Jaime José Zitkoski ∗∗

RESUMO

O presente artigo tem como finalidade suscitar reflexões sobre Direitos Humanos numa perspectiva intercultural relacionada aos aspectos políticos e filosóficos no âmbito educacional. Compreende-se a necessidade de um fortalecimento da temática dos Direitos Humanos na educação, tendo em vista o contexto social de atuação de cada docente em sua prática educativa e sua reflexão pautada em perspectivas sociais, políticas e filosóficas. Em relação à metodologia, trata-se de um estudo de análise teórica, contendo elementos históricos e conceitos teórico-filosóficos. Considera-se que todo individuo é um sujeito com direito à dignidade humana e que os Direitos Humanos precisam ser compreendidos numa perspectiva intercultural, superando a visão eurocêntrica predominante ainda hoje. Concebe-se que a formação da cidadania acontece através da vida social, política e cultural. Por isso, destaca-se a urgência de ressignificar a concepção de Direitos Humanos, a partir da perspectiva intercultural e emancipatória da realidade educacional. Por meio de uma educação envolvida com o aprimoramento da cidadania e da emancipação humana e social é possível oportunizar o direito à aprendizagem como constituinte dos Direitos Humanos na agenda das práticas sociais.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Interculturalismo. Educação. Cidadania.

ABSTRACT

hUMAN RIGhTS EDUCATION FROM AN INTERCULTURAL PERSPECTIvE

This article aims to stimulate reflections on Human Rights from an intercultural perspective related to political and philosophical aspects in the educational field. We understand the need for strengthening Human Rights issues in education, taking into consideration each teacher’s social context of action in his/her educational practice and reflection based on social, political and philosophical perspectives. In terms of methodology, this study comprises theoretical analysis with historical elements and

∗ Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-doutora do Centro de Estudos Sociais (CES) - Universidade de Coimbra. Professora Adjunta da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEdu/UFRGS). Endereço para correspondência: Av. Paulo Gama, s/n. CEP: 90046-900. Faculdade de Educação - Prédio 12201. Tel.: (51) 3308-4137. [email protected]∗∗ Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Adjunto 4 na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Endereço para correspondência: Av. Paulo Gama, s/n. CEP: 90046-900. Faculdade de Educação - Prédio 12201. [email protected]

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Educação e direitos humanos numa perspectiva intercultural

theoretical-philosophical concepts. We consider that every individual is a subject with the right to human dignity and that Human Rights must be understood from an intercultural perspective, overcoming the Eurocentric view which still prevails today. We see the constitution of citizenship as a process that takes place through social, political and cultural life. Therefore, we stress the need of redefinition of Human Rights concepts, from an intercultural and emancipatory perspective of the educational reality. Through an education engaged in the enhancement of citizenship and human and social emancipation, it is possible to give opportunity to the right to learn as an essential element of Human Rights on the social agenda.

Keywords: Human Rights. Interculturalism. Education. Citizenship.

Introdução

O objetivo estabelecido para esse texto é o de interpretar os aspectos relativos à dimensão polí-tica e filosófica da educação em e para os Direitos Humanos. O foco da reflexão, portanto, é fornecer elementos que contribuam para fundamentar a noção de Direitos Humanos e as práticas que ela enseja, a fim de ressaltar sua importância e signi-ficado na educação de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

Deseja-se construir referenciais que tenham significado e/ou sentido para o professor em suas práticas, considerando o contexto em que ele atua. Será necessário proporcionar acesso aos aspectos históricos, filosóficos, culturais e políticos que estão implicados na reflexão teórica e nas práticas em Direitos Humanos.

Aspectos teórico-históricos da noção de Direitos humanos vinculados à educação escolar

A noção de Direitos Humanos (DH)1 traz consi-go a expressão de aprimoramentos produzidos nas relações sociais, políticas e humanas entre pessoas e em sociedade. O Relatório Anual da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos Direitos Humanos no Brasil 2007 (SYDOW; MENDONÇA, 2007, p. 13) afirma que

A consciência de que os ‘direitos humanos’ precisam ser respeitados cresce em todos os continentes e

1 Para assistir vídeos sobre direitos humanos, acessar: <http://www.youtube.com/watch?v=yioq9-WSaA8&feature=fvw>, <http://www.youtube.com/watch?v=vKB9G5Y8Kdo> e <http://www.youtube.com/watch?v=Qb89fQiZ6wc&feature=related>.

constitui um dos pilares da construção de um ‘outro mundo possível’. Para que essa construção chegue a termo, é indispensável definir ‘direito humano’ como aquele direito inerente à pessoa em si, inde-pendentemente da sua nacionalidade, da sua classe social, da sua religião, da sua condição pessoal. Até um criminoso é sujeito de direitos humanos, sem prejuízo da punição que deva receber pelo delito praticado.

Portanto, a noção de Direitos Humanos é am-pla e complexa, e a sua história e o seu conceito não estão isentos de polêmicas, dificuldades de delimitação e contradições. Trata-se de uma no-ção relativamente recente na história dos tratados produzidos pela comunidade internacional, a qual remete às próprias contradições que a vida social proporciona.

Três grandes tratados dão base para a formação da noção de DH. O primeiro é datado do período histórico da Revolução Francesa, em 1789, com o título Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O segundo tratado se localiza na constituição da Independência Norte-Americana, em 1787. O mais recente acordo internacional é o documento intitulado Declaração Universal dos Direitos Humanos, elaborado no período posterior à Segunda Guerra, em 1948.

A expressão Direitos Humanos remete, muita vezes, a posições de cunho apaixonado, seja em sentido favorável, seja em sentido crítico a esses direitos. Entre aqueles que se dizem seus críticos, é corriqueiro ouvir-se argumentos de que tais direitos defendem apenas os que cometem delitos. Essa visão adota o pressuposto de que certos indivíduos não merecem defesa e, quem sabe, nem merecem atenção por parte dos outros e da sociedade.

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Maria Elly Herz Genro; Jaime José Zitkoski

Nessa perspectiva, falar em direitos humanos de pessoas que agrediram a lei ou a norma social significaria desrespeitar essas regras e leis. A partir dessa visão, seria preciso punir severamente, até mesmo sem acatar direitos básicos da pessoa que desrespeitou a lei ou regra.

A visão exposta acima é preconceituosa e isso pode ser constatado a partir da ideia de que todas as pessoas têm direito à dignidade humana, inde-pendentemente de quem seja, de que característica possua ou de que delitos ela possa ter cometido. Dignidade é algo difícil de definir em poucas pala-vras, mas pode ser compreendida por aqueles que compartilham de valores de sensibilidade humana ou de identificação subjetiva com o outro, simples-mente por ser humano. Esse fato permite que sejam respeitadas as condições básicas, tais como: não oprimir ou violentar, não causar medo, não expor a outra pessoa a situações que a desqualifiquem ou que sejam humilhantes.

Os seres humanos, embora sejam bastante diferentes entre si, nos seus modos de viver e de ser, bem como quanto às condições materiais e de sobrevivência que possuem, estão em condição de igualdade em relação ao fato de que partilham a fragilidade humana. Somos todos sujeitos a limites físicos, psíquicos e de outras naturezas, limites esses que, quando ultrapassados, causam algum tipo de dor e/ou sofrimento. Portanto, ter dignidade ou exercer a dignidade está diretamente vinculado a ter e exercer direitos que são humanos e que se vinculam à tolerância e ao respeito humano.

Maria Vitoria Benevides (2005, p. 12) define dignidade como “[...] aquele valor – sem preço! – que está encarnado em todo o ser humano. Direito que lhe confere o direito ao respeito e à segurança – contra a opressão, o medo e a necessidade – com todas as exigências que, atual etapa da humanidade, são cruciais para sua constante humanização”.

Benevides, além de ser pesquisadora, é edu-cadora em e para os Direitos Humanos, e está preocupada e comprometida com os processos de-mocráticos que fortaleçam o exercício da cidadania. Para ela, o fortalecimento da cidadania ocorre por meio de práticas sociais na vida política e cultural. Essas práticas precisam enfrentar as desigualda-des sociais, os preconceitos, as discriminações e, ao mesmo tempo, afirmar a ética da participação

política e da dignidade humana. Assim, a ideia de dignidade humana tem origem em um posiciona-mento ético, pois “A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano” (FACHIN, 2009, p. 5).

Esse valor ético é universal, ou seja, independe de nações ou comunidades que estabeleçam regras próprias, muitas vezes capazes de conviver ou até promover condições de sofrimento humano. Assim é que se entende que os Direitos Humanos são universais e não nacionais ou locais.

A Declaração Universal dos Direitos dos Humanos, que foi adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, é que deu início à compreensão contemporânea de Direitos Humanos. Podem-se distinguir os direitos em Direitos Huma-nos, mas também em Direitos Fundamentais e em Direitos Sociais. Como entender e diferenciar essas formas de adjetivar o direito a ter direitos? Como garantir e lidar com direitos que são universais, individuais ou, ainda, coletivos no contexto de sociedades culturalmente diversificadas?

Os Direitos Fundamentais que foram instituídos pelas revoluções burguesas, quase dois séculos an-tes da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), embora sejam direitos conceitualmente distintos, possuem relações entre si. Aqueles foram fruto da modernidade iluminista, como ficou ex-presso por meio da Revolução Francesa, e puderam afirmar liberdades e direitos registrados nos textos constitucionais, ou seja, são direitos positivados, transformados em leis.

O termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humanos reconhecidos e po-sitivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os do-cumentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam

240 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 237-245, jan./jun. 2014

Educação e direitos humanos numa perspectiva intercultural

um inequívoco caráter supranacional (internacio-nal) (SARLET, 2006).

A relação entre os dois tipos de direitos está basicamente na compreensão de que ambos su-põem a existência de bens que são universais para a humanidade: o direito de expressão, pensamento, credo, desde a Revolução Francesa de 1789; e o direito à dignidade humana, independentemente de que pessoa se trate ou que possível delito tenha co-metido, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

O processo histórico das sociedades ocidentais criou também a noção de direitos sociais, para além dos direitos civis e políticos e mesmo dos direitos humanos. Os chamados Direitos Sociais são emi-nentemente coletivos e respondem a necessidades materiais dos indivíduos em sociedade, como é o caso do acesso à saúde, moradia, educação, entre outros.

Se os direitos fundamentais são direitos posi-tivos, que garantem segurança jurídica por meio de pactos legais, constitucionais, existentes nos contextos de estados democráticos, por sua vez, os direitos humanos são conquistados para além do ordenamento jurídico existente. Os DH possuem uma dinâmica intensa, ou seja, são reconhecidos como tais à medida que a sociedade e os segmen-tos sociais transformam um conflito em regra de respeito à dignidade humana.

Além do caráter universal, os Direitos Humanos constituem-se como unidade indivisível porque não dispensam os direitos de outra natureza que o precederam historicamente, como, por exemplo, os direitos civis, políticos e sociais. Recentemente passamos a valorizar a diversidade cultural, cons-tituindo novos direitos.

Aspectos culturais contemporâneos sobre a ideia de Direitos humanos

A sociedade, fundamentada na desigualdade, no desperdício e na destruição do meio ambiente, permite também a afirmação de novos valores, produzidos por diversos movimentos sociais e ins-tituições. Com esses valores ocorre a revitalização das energias de autorrealização de pessoas vincu-ladas a projetos coletivos que buscam a satisfação das necessidades humanas. Pensar a produção e o consumo na ótica do humano significa reconhe-

cer que o mercado não seja a única instituição organizadora da sociedade e das políticas. Outras instituições e movimentos têm o compromisso de desenvolver conhecimento e experiências que valorizam práticas solidárias, as quais atendem diferentes necessidades humanas em diferentes contextos culturais.

Para pensarmos alternativas de transformação, frente às novas questões colocadas pelo contexto contemporâneo, necessitamos desenvolver um pro-cesso de interrogação em relação aos nossos modos de pensar e de atuar na relação com os outros. Nessa perspectiva, o nosso tempo aponta para a atenção às demandas educacionais, ecológicas, étnicas, de gênero, de sexualidade, entre outras questões cul-turais. Esses são aspectos culturais contemporâneos que têm colaborado para o aprimoramento da ideia e das práticas de Direitos Humanos.

A multiplicidade de conflitos que estão presen-tes na sociedade contemporânea direciona o nosso pensar sobre os direitos humanos, para além das questões de classe, indicando outros conflitos que perpassam os diferentes espaços-tempo-estruturais (SANTOS, 2005), incidindo numa construção mais complexa e ampla de uma subjetividade política que aposta na dignidade humana. Como exemplo identificamos a força presente no espaço doméstico da cultura patriarcal, em que as diferentes formas de violência (física, simbólica, estrutural) regulam, formatam nosso fazer e pensar na sociedade. Num tensionamento de dinâmicas de geração de desi-gualdades, discriminações e exclusões, apostamos numa responsabilidade educacional de abertura do ser frente à visão essencialista da condição humana.

Esse sujeito ativo, segundo Arendt (2010), se constitui na esfera pública, num espaço de interação entre sujeitos, no não isolamento, mas numa experi-mentação de singularidades, num mundo plural, em que podemos nos reinventar como comunidades, grupos e pessoas, como consequência da qualidade das interações humanas.

Diante disso, sentimos a necessidade de pensar a atuação das diferentes instituições educativas, suas contribuições para desenvolver experiências voltadas para a promoção da dignidade humana que reconheça a dimensão cultural dos Direitos Humanos. Esta necessidade está alicerçada no reconhecimento de que os direitos humanos, se-

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gundo Santos (2013), são muito mais um objeto de discurso do que propriamente de políticas e práticas efetivas na construção das relações sociais na contemporaneidade.

Boaventura de Souza Santos nos inspira a pensar a ideia de “reconstrução intercultural dos direitos humanos”, uma vez que esses podem ser concebidos de várias formas e não com base em um universalismo único. Os tratados e conven-ções, segundo o autor, traduzem as aspirações dos agentes dominantes na cultura ocidental, impe-dindo que sejam expressão universal dos direitos humanos (SANTOS, 2006). Estes tratados, de conteúdo liberal, enfatizam os direitos individuais em detrimento dos direitos coletivos, sociais, que envolvem diferentes comunidades e grupos com demandas pela igualdade efetiva e pelo direito ao reconhecimento das suas diferenças.

Os Direitos Humanos precisam ser reconceitu-alizados como interculturais. Essa seria uma pers-pectiva emancipatória de transformação conceitual e de práticas, a qual pressupõe “relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local” (SANTOS, 2006, p. 442). O questionamento sobre as concepções de direitos humanos vinculadas à matriz liberal e ocidental se desdobra numa construção permanente de uma política contra-hegemônica dos direitos humanos, para que possamos atuar como sujeitos políticos no cotidiano das diferentes instituições e movimentos da sociedade civil. Santos (2013) aponta algumas tensões que atravessam as lutas políticas, podendo contribuir para o tensionamento das versões hegemônicas sobre os DH (ocidental, capitalista e colonialista) na produção de pensa-mentos e práticas inovadoras.

Entre as várias tensões nos direitos humanos, ressaltamos a tensão entre o humano e o não hu-mano. O conceito de humano, presente na tradição moderna, ocidental, colonial e capitalista exclui um grande contingente de seres humanos, considerados sub-humanos, produtos de políticas colonialistas, historicamente construídas. Outra dimensão desta tensão diz respeito à questão da natureza, conside-rada como um recurso a ser explorado infinitamen-te, inserido num modelo extrativista na relação do ser humano com a natureza. Existem outras epis-temologias, diferentes culturas em que a natureza

está conectada com a humanidade, e vice-versa.A relação entre igualdade e diferença é outra

tensão constituinte em que se articulam direitos sociais, econômicos e direitos culturais. As de-mandas culturais (gênero, etnia, orientação sexual), singulares de grupos\comunidades são silencia-das, excluídas do conjunto dos direitos humanos. As lutas pela redução das desigualdades sociais e econômicas precisam ser ampliadas para um combate às diferentes formas de discriminação e exclusão. Neste sentido, a transformação cultural e institucional se constrói por um processo educa-tivo de um pensar e atuar ao encontro da luta pelo reconhecimento e respeito às diferenças.

Esse modo de interpretar supõe a relatividade de todas as culturas, pois todas as culturas tendem a constituir como universais os valores que lhes parecem ou são tomados como fundamentais. O que se anuncia como viável é a busca de conver-gências entre óticas culturais que “na melhor das hipóteses será possível obter uma mestiçagem ou interpenetração de preocupações e concepções [sobre direitos humanos]. Quanto mais igualitárias forem as relações de poder entre culturas, mais provável será a ocorrência dessa mestiçagem”. (SANTOS, 2006, p. 443).

Numa sociedade de frágil reflexividade, a rela-ção entre direitos humanos e democracia precisa ser potencializada por uma educação para pensar numa mudança civilizatória capaz de valorizar o ser e o estar no mundo, em que saberes, experiências e emoções sejam capazes de produzir sentidos que dignifiquem a condição humana.

O século XXI comporta o aguçamento do senso crítico, uma capacidade de palavras e ações coleti-vas, em que o pensamento não se reduz à mesmice do existente, nas lamentações de vozes cansadas e apartadas do mundo público, produzidas pelas con-dições de uma sociedade sustentada pela lógica do mercado, em detrimento da potência de uma vida reconfigurada na direção do bem público.

Três gerações de direitos humanos em Educação

Como se vê, a história dos direitos humanos não só está em constituição como também precisa estar sujeita a transformações. Se nas sociedades

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Educação e direitos humanos numa perspectiva intercultural

ocidentais é possível afirmar a existência de vá-rios tipos de direitos – civis, políticos, sociais e humanos –, do ponto de vista da educação há uma interpretação que afirma pelo menos três ênfases para esse tema, e a questão dos direitos culturais está presente, desafiando as novas elaborações teóricas, bem como o trabalho escolar.

Schilling (2005, p. 118) distingue três tipos de direitos vinculados à educação formal: “os direitos de primeira geração situam-se no postulado do ensino universal para todos; o direito de todas as crianças e todos os jovens irem a mesma escola, até mesmo com uniforme que disfarça as diferenças”. Seria o direito político de acesso à educação que, uma vez consolidado, precisaria garantir a “quali-dade da aprendizagem”.

A qualidade a ser garantida, de fato, aproxima--se da ideia de direito social, já que daria acesso intelectual e material à aprendizagem a todos os indivíduos. A autora chama atenção para o fato de que a educação e a cultura escolar pouco consi-deram essa qualidade, porque tratam, a princípio, todos igualmente. Tratar igualmente indivíduos com culturas e modos de vida distintos contribui para limitar o acesso a conhecimentos e consolida as desigualdades existentes. Assim, a primeira e a segunda geração de direitos no que tange à educa-ção seriam excludentes. Nesse sentido, agrediriam os Direitos Humanos das pessoas, quando estas não têm a dignidade proporcionada por meio da educação formal e da sociedade letrada.

A mesma autora, inspirada em estudos sobre a cultura escolar (Pierre Bourdieu e Claude Forquin), fala em uma terceira geração de direitos vincula-dos à educação formal. Estes seriam urgentes e se constituiriam em direitos capazes de reconhecer a dignidade de diferentes culturas e pessoas na escola2, limite ainda não superado pela visão pre-dominante que nivela todos a partir de um mesmo parâmetro de história, de vida e de cultura. Esse limite da educação escolar deixa de reconhecer que a própria educação é um direito humano que não pode dispensar o reconhecimento à diversidade. De acordo com a autora:

A terceira geração dos direitos educacionais pauta-se pelo signo da tolerância, mediante a qual o encontro

2 Sobre esse assunto recomenda-se assistir ao documentário “Pro dia nascer feliz”, dirigido por João Jardim.

de culturas se faça e se refaça constantemente em uma sempre renovada convivência e partilha entre diferentes nações, diferentes povos, diferentes comu-nidades, diferentes grupos sociais, diferentes pessoas (SCHILLING, 2005, p. 125).

É indispensável destacar que se falamos em direitos vinculados à educação escolar ou formal, também o fazemos relacionados com noções de direitos mais amplos do ponto de vista social. Em outras palavras, o direito à aprendizagem na diver-sidade deve ser proporcionado pelo meio escolar, sob pena de se estar agredindo/infringindo um direito humano e sob pena de se estar diminuindo a dignidade da pessoa que não aprende porque sua cultura não é objeto de atenção pela escola. Incor-porar gradativamente direitos às práticas sociais e ao ordenamento jurídico é condição para obter conquistas sociais e políticas.

O surgimento dos direitos sociais foi dinâmico e está aberto porque está sujeito a novas ampliações e reinvenções. O mesmo ocorre com os direitos hu-manos: obter dignidade é obter empoderamento nas relações sociais, portanto é indispensável equilibrar poderes para garantir dignidade, como também são lutas e movimentos sociais os principais meios e agentes para a produção e/ou reconhecimento de direitos e de dignidade. A escola precisa agir no sentido dos direitos humanos na educação e na diversidade cultural e social3. Isso, entretanto, só pode se consolidar na medida em que houver disputas e lutas que procurem afirmar aquilo que ainda não foi reconhecido como direito, em espe-cial como direito humano: a diversidade. Um dos caminhos para que a educação trabalhe em e para os Direitos Humanos tem como sustentação o res-peito à diversidade cultural. Contudo, esse objetivo é também um grande desafio, uma vez que exige a combinação de elementos de natureza variada para que possa ser efetivado.

Praticar educação em e para os Direitos Huma-3 Ao trabalhar com crianças e adolescentes sobre a noção de Direitos

Humanos, sugere-se a consulta da cartilha Os Direitos Humanos (ZIRALDO, 2008). A obra, que é uma parceria do Ministério da Educação com a Unesco, traz todos os artigos da Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos e um personagem bem conhecido nas ilustrações: o Menino Maluquinho. As páginas coloridas da publi-cação foram desenvolvidas pelo próprio criador do personagem, o cartunista Ziraldo. O Menino Maluquinho participa de situações que retratam os diversos temas dos Direitos Humanos como cidadania, igualdade, saúde, meio ambiente, educação e moradia.

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nos nos diferentes espaços educativos significa que estes devem ter capacidade de trabalhar com seg-mentos socioculturais que ela ainda não foi capaz de reconhecer ou lidar, e, de outro lado, significa também que temas sociais, culturais, religiosos, econômicos, entre outros, necessitam de atenção e de produção de conhecimentos no conjunto dos espaços educativos, a partir de reflexão crítica sobre saberes cujos sujeitos são portadores.

Fomentar atividades educativas que ampliem tempos, espaços e oportunidades educativas, com vistas à inclusão de temas como direito de ir e vir, acesso a moradia, renda mínima, segurança alimentar, enfrentamento a preconceitos, relações desiguais de gênero, etnia, sexualidade, dentre outros, são elementos básicos para se educar e promover Direitos Humanos. Ainda assim, con-sideramos crucial tratar de fatores culturais que tornam complexa a ideia de direito humano como algo universal.

Os Direitos Humanos (concepção de dignidade humana correlata) precisam ser tensionados pela diversidade cultural, considerando que a ideia de dignidade humana pode ser permanentemente am-pliada, resignificada por novas demandas oriundas de formas diferenciadas e sofisticadas de precon-ceitos e discriminações. No fortalecimento de uma concepção não hegemônica dos Direitos Humanos (alternativa ao padrão ocidental da razão ilumi-nista) constatamos que os diferentes movimentos que buscam uma democracia de alta intensidade, mais participativa, substantiva, direcionam-se pela tensão entre igualdade e diversidade. Valores como igualdade, liberdade e diversidade humana, con-ceitos em disputa, são referências incompletas que podem servir eixos articuladores na qualificação das práticas educativas para\em direitos humanos, como formação política, ética e estética.

Considerações finais

Refletir sobre a Educação em e para os Direitos Humanos no contexto da diversidade cultural nos remete para alguns elementos prévios que gostarí-amos de evidenciar, pois o cultivo de uma cultura de direitos, ou do reconhecimento de direitos, não é uma ação espontânea. Ao contrário, requer informação e, mais do que isso, um trabalho de

conscientização (FREIRE, 2001) através de proces-sos educativos com capacidade de sensibilizar as pessoas e a cidadania em relação ao direito incon-dicional de uma vida digna para todo ser humano, indistintamente.

Nesse sentido, em primeiro lugar vem o desafio de que, para além das concepções modernas que exacerbam a liberdade (o livre arbítrio) entendida apenas em nível individual, a discussão sobre os Direitos Humanos requer o reconhecimento da Diversidade, da Pluralidade e o respeito ao Outro. Essa primeira exigência nos remete para uma se-gunda, que é a concepção antropológica que requer entender a existência humana e a vida em sociedade de forma intersubjetiva.

Ou seja, a coerência entre discurso e ação em prol dos Direitos Humanos implica em nos enten-dermos a partir das relações que nos caracterizam como pessoas e, portanto, enquanto um ser social em constante busca de novas sociabilidades (SAN-TOS, 2007). Dessa forma, Direitos Humanos dizem respeito à busca de superação da lógica civiliza-cional da modernidade europeia a partir de novos fundamentos antropológicos, éticos e políticos. Isso porque a civilização moderna convergiu, em pleno século XX, para a própria destruição com as atro-cidades das duas Guerras Mundiais. E a declaração de 1948 em defesa dos DH é uma manifestação clara de que as lideranças do Ocidente na época percebiam a necessidade de um novo rumo para a própria civilização ocidental, que convergisse para uma Cultura da Paz via entendimento e diplomacia.

Assim, para além da visão eurocêntrica, que buscava impor um modelo de sociedade centrada no Estado Moderno, a fundamentação dos Direitos Humanos e o diálogo que esse campo suscita com a Educação para a Diversidade e o respeito às di-ferenças, o mundo que nos circunda na atualidade está mais para uma perspectiva do Cosmopolitismo do que uma convenção política ou de normas e regras já pré-formatadas. Esse debate, portanto, requer um profundo respeito às diferentes tradições e formas de vida na sociedade contemporânea, que emergem de núcleos culturais diversos.

Entretanto, a despeito de todas as diferenças e a diversidade cultural que emerge nas sociedades atuais, entendemos que o diálogo torna-se possível, pois o que nos une, para além das diferenças his-

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Educação e direitos humanos numa perspectiva intercultural

tóricas e culturais, é algo profundamente comum, já que estamos em uma condição humana muito semelhante diante do desafio de viabilizar o futuro em nosso planeta. Ou seja, diante da ameaça da morte de espécies e da possibilidade concreta de nosso planeta não suportar os níveis crescentes de agressão à natureza, o nosso ímpeto a favor da vida, em suas múltiplas formas de manifestar-se, emerge como um valor mais forte e plausível à sensibili-dade humana. Eis ali o desafio importante para a discussão dos Direitos Humanos – a valorização da vida em sua fragilidade e interdependência cada vez mais evidente na atualidade.

Nessa perspectiva, falar em direitos humanos passa a ser, acima de tudo, defender o direito à vida em sua integralidade. Ou seja, para além da ga-nância humana, que via de regra é legitimada pelo modelo civilizatório da modernidade ocidental, nós precisamos nos educar para uma existência mais simples e corresponsável diante da fragilidade da vida em nosso planeta.

Somente uma educação comprometida com os desafios da emancipação humana e social e com o cuidado para com o meio ambiente poderá colaborar com a luta política por um mundo mais humanizado e justo. Por isso, na contemporaneida-de, o discurso dos Direitos Humanos sinaliza para uma percepção aberta da realidade, um espaço de reconhecimento da alteridade e das diferenças, que se materializam nos espaços públicos enquanto resistência à barbárie (ADORNO, 1995) e à insen-

sibilidade humana que produz a exclusão social e alimenta os preconceitos.

Portanto, precisamos somar esforços nos dife-rentes espaços onde atuamos como educadores, sujeitos políticos, ativistas de movimentos sociais, entre outras frentes de inserção social. Nossas lutas para construir uma cultura democrática, partici-pativa e aberta às diversidades no modo de ser e viver em sociedade poderá ser o antídoto contra as diferentes formas de pré-conceitos que (re)produ-zem a barbárie e a violação dos Direitos Humanos.

Como bem nos coloca Santos, precisamos tra-balhar na perspectiva das gramáticas da Dignidade Humana como um fio condutor na construção do BEM VIVER. “A desumanidade e a indignidade humana não perdem tempo a escolher entre as lutas para destruir a aspiração humana de humanidade e dignidade. O mesmo deve acontecer com todos os que lutam para que tal não aconteça” (SANTOS, 2013, p. 125).

O Bem Viver como horizonte de sentido de nossa existência converge para a potencialização da cultura dos Direitos Humanos, como um con-junto de práticas, ideias e condutas. Essa dinâmica pressupõe a luta pela igualdade com políticas (re)distributivas, bem como o respeito à diversidade como fator de riqueza e dignidade humana. Nesta perspectiva, a educação como processo formativo da cidadania é o lócus constituinte da cultura dos Direitos Humanos como um horizonte em constru-ção da nossa dignidade.

REFERÊNCIAS

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ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

BENEVIDES, Maria Vitória. Prefácio. In: SCHILLING, Flávia (Org.). Direitos humanos e educação: outras palavras, outras práticas. São Paulo: FEUSP/Cortez, 2005. p. 11-17.

FACHIN, Melina Girardi. Fundamentos dos direitos humanos: teoria e práxis na cultura da tolerância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. São Paulo: Unimep, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10. ed. S ã o Paulo: Cortez, 2005.

______. A gramática do tempo: por uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

______. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.

______. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.

245Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 237-245, jan./jun. 2014

Maria Elly Herz Genro; Jaime José Zitkoski

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SCHILLING, Flávia (Org.). Direitos humanos e educação: outras palavras, outras práticas. São Paulo: FEUSP/Cortez, 2005.

SYDOW, Evanize; MENDONÇA, Maria Luisa (Org.). Direitos humanos no Brasil 2007: relatório anual da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo, 2007. Disponível em: <http://www.social.org.br/relatorio2007.pdf>. Acesso em: 05 out. 2009.

ZIRALDO. Os direitos humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos/Unesco, 2008.

Recebido em: 18.01.2014

Aprovado em: 23.03.2014

RESUMOS DE TESES E

DISSERTAÇÕES

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BIZON, Ana Cecília Cossi∗. Narrando o exame Celpe-Bras e o convênio PEC-G: a construção de territorialidades em tempos de internacionalização, 2013, 415f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas∗∗, Campinas, 2013.

* Docente em ensino de línguas da Universidade Estadual de Campinas, na área de Português-Língua Adicional. Publicou o livro Estação Brasil (Editora Átomo & Alínea, 2005), além de vários artigos sobre o ensino-aprendizagem de português como língua adicional. É membro do Grupo de Pesquisa Vozes na Escola, CNPq, sob coordenação das professoras Doutoras Marilda do Couto Cavalcanti e Terezinha de Jesus Machado Maher. Endereço para correspondência: Rua Votorantim, 100, ap. 94 Vila Nova Campinas, SP. CEP: 13073-090 [email protected]** Orientadora: Profa. Dra. Marilda do Couto Cavalcanti (Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP). Data da defesa: 11 de julho de 2013. Banca examinadora: Terezinha de Jesus Machado Maher (Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP), Maria de Fátima Silva Amarante (Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas), Leandro Rodrigues Alves Diniz (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG), Kátia Maria Santos Mota (Universidade do Estado da Bahia – UNEB).

O Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G), intercâmbio de cooperação estudantil do Brasil com países em desenvolvimento, é importante instrumento de internacionalização das universidades brasileiras. Oferecendo vagas para cursos de gradua-ção, apresenta-se com objetivo de fortalecer relações culturais e econômicas com os países beneficiados, nota-damente africanos, contudo, estipula regras estritas, exi-gindo que o aluno custeie sua estada no país e apresente o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras). Afiliando-se à Linguística Aplicada Indisciplinar, na perspectiva de Moita Lopes, em diálogo com posições epistemológicas dos estudos pós-colonialistas de Bhabha, esta pesquisa investiga como quatro estudantes congoleses narram o Celpe-Bras e o PEC-G, posicionando-se e sendo posicionados em re-lação a eles, e como performatizam narrativamente suas des(re)territorializações. O corpus analisado constitui-se principalmente de áudio-gravações de interações em aulas de português L2 e de conversas e trocas de e-mail com os estudantes e responsáveis pelo convênio.

A análise indicou que os estudantes conceberam o Celpe-Bras como um instrumento que contribui para a apropriação de espaços e construção de multiterritoria-lizações, e o PEC-G como um instrumento que restringe e controla essas apropriações, gerando territorializações precárias e vivências marcadas por preconceitos e ex-clusões. A análise das narrativas aponta a necessidade de se repensar o funcionamento dessa política pública, problematizando o papel do Brasil como agente de horizontalidades.

Palavras-chave: Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G). Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras). Internacionalização. Territorialidades.

ABSTRACT

The Student Program-Undergraduate Agreement (PEG--G), an exchange program with developing countries, is an important tool in the internationalization process of the Brazilian universities. The Program, whose most well known beneficiaries are the African countries, offers, under specific protocol, vacancies free of charge for undergraduate courses at either public or private Brazilian universities. That proto-col establishes, for instance, that students who apply for the program are expected to afford their studies in the country and also to get their Celpe-Bras Certificate. This research study is affiliated to a part of Applied Linguistics named as INdisciplinary, according to Moita Lopes and in dialogue with some epistemological positions from Postcolonial Studies of Bhabha. The aim of this study was to investigate how four Congolese students narrated their Celpe-Bras and PEC-G expe-riences, positioning themselves and being positioned regarding both processes, and also how these four students performed their de(re)territorialisation processes within the narratives created by themselves. The corpus analyzed consists primarily of audio-recordings of interactions in L2 Portuguese lessons and conversations and email exchanges with the students and also with people responsible for the agreement.

The results of the analysis pointed out that the students view the Celpe-Bras Exam as an instrument that lead to an appropriation of space and to the construction of multiterrito-rialisation. Concerning PEC-G, it was narrated as an instru-ment that mainly controls and inhibits appropriation of space, producing precarious territorialisation, based on Haesbaert, or the experience of situations measured by prejudice and exclu-sion. The analysis of the students’ narratives also highlights the need to rethink the operation of this public policy and the need to discuss Brazil’s role as a promoter of horizontalities.

Keywords: The Student Program-Undergraduate Agree-ment (PEC-G). Celpe-Bras. Internationalization. Territorialities.

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DOURADO, Lise Mary Arruda*. Fluências lexicais africanas e afro-brasileiras no processo de construção identitária dos estudantes da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos. 2014. 256 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós--graduação em Educação e Contemporaneidade, Departamento de Educação, Univer-sidade do Estado da Bahia**, Salvador, 2014.

* Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Membro do Grupo de Trabalho de Lexicologia, Lexicografia e Termi-nologia da ANPOLL (GTLex) e do Grupo de Estudos em Semântica Cognitiva (GESCOG/UFBA). Doutora em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (UNEB), 2014. Mestra em Estudo de Linguagens (UNEB), 2010. Especialista em Metodologia do Ensino Superior (UNEB), 2002. Licenciada em Letras Vernáculas pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL), 1997. Endereço para correspondência: Rua Conselheiro Menandro Minahim, Quadra K, Lote 12, Cond. Ipitanga Privillege Residence, Casa nº 06, Praia de Ipitanga, Lauro de Freitas - Bahia. CEP: 42700-000. [email protected].

** Orientadora: Profª. Drª. Katia Maria Santos Mota (Universidade do Estado da Bahia – UNEB). Coorientadora: Profª. Drª. Celina Márcia de Souza Abbade (Universidade do Estado da Bahia – UNEB). Data da defesa: 25 de abril de 2014. Banca Examinadora: Profª. Drª. Nelly Medeiros de Carvalho (Universidade Federal de Pernambuco – UFPE), Profª. Drª. Vanda Machado da Silva (Secretaria de Cultura do Estado da Bahia – Secult/BA), Profª. Drª. Ana Célia da Silva (Universidade do Estado da Bahia – UNEB), Profª. Drª. Maria Nazaré Mota de Lima (Universidade do Estado da Bahia – UNEB).

A presente tese constitui-se um estudo de caso rea-lizado na Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, em Salvador, Bahia, vinculada ao terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Investigamos sobre as práticas curriculares que envolvem vivências com lexias africanas e afro-brasilei-ras e o impacto sociolinguístico na construção identitária dos estudantes. A partir de observações in lócus, tais vivências são descritas, orientadas pela contação de mitos afro-brasileiros, por meio de: livros didáticos e pa-radidáticos; uso cotidiano de saudações de gentileza, em yorubá; consultas lexicográficas e elaboração de peque-nos dicionários; nominações na ambientação escolar e nos espaços circunvizinhos; cânticos em yorubá e wolof. Realizamos uma escuta dos falares de um grupo amostral de doze estudantes, na intenção de identificar a fluência de tais lexias no uso cotidiano e de registrar sentimentos de pertença identitária. Dialogamos com autores como Munanga e Nascimento, que defendem uma educação voltada para a pluralidade cultural, e Rajagopalan, que discute o conceito de identidade a partir da língua, em consonância com o conceito de identidade nos estudos culturais, defendidos por autores como Bauman e Hall. Nos falares dos estudantes, foram verificadas sessenta e cinco lexias africanas e afro-brasileiras, categorizadas e glosadas, considerando o contexto sociolinguístico em que surgem. A análise dos dados possibilita concluir que tais fluências lexicais conduzem os estudantes ao conhecimento do legado cultural afro-brasileiro, à desconstrução de estereótipos referentes à população negra e a construções identitárias pautadas no respeito à diversidade.

ABSTRACT - African and Afro-Brazilian lexicon in the process of students’ identity construction at “Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos”.

This thesis presents a case study which was held in Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, a school located at a Candomblé sight named Ilê Axé Opô Afonjá, in Salvador, Bahia. We investigated the curriculum practices with the African and the Afro-Brazilian lexicon and its sociolinguistic impact with the students’ identity construction. Based on in locus observation, such experiences are described, followed by the narration of Afro-Brazilian myths, by means of: textbooks, daily use of greetings in yorubá, a lexicographical survey with the production of small dictionaries, the use of yorubá for naming places of the school environment and its surrounding, and the learning of songs in yorubá and wolof. We recorded the speech of a sample group of twelve students, aiming at identifying the students’ fluency concerning the use of this lexicon in daily activities, as well as to register the feelings of identity belongingness. Our theoretical basis is constituted by authors such as Munanga and Nascimento who defend an education model based on plurality, and Rajagopalan who discusses language and identity relationship, associated with the conceptions of identity in Cultural Studies supported by Bauman and Hall. In the students’ speech, sixty-five words of African and Afro-Brazilian origins were registered and analyzed in categories considering the sociolinguistic contexts from which they emerge. The data analysis indicates that the use of such lexicon leads the students to get familiar with Afro-Brazilian cultural heritage, to deconstruct stereotypes associated to the black population, and to construct identities that show respect for diversity.

Keywords: Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos. African lexicon. Language and identity. Afro-Brazilian culture.

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OLIVEIRA, Rosemary Lapa*. A leitura-estar-no-mundo e a constituição do sujeito--leitor. 156 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Edu-cação**, Universidade Federal da Bahia-UFBA, Salvador, 2013.

* Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, na área de concentração Educação, Sociedade e Práxis Pedagógica da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), atuando no Curso de Pedagogia. Pesquisa temas da Formação de Professores: leitura, letramento, análise de discurso, metodologia do ensino de Língua Portuguesa. Endereço para correspondência: Rua Conselheiro Correa de Menezes, nº 344, Edf. Maria Regina, Ap. 602, Horto Florestal –.Salvador – Bahia. CEP: 40 295 030. Email: [email protected]** Orientadora: Profª Drª Dinéa Maria Sobral Muniz (Universidade Federal da Bahia – UFBA). Data da defesa: 06 de setembro de 2013. Banca Examinadora: Marcos Bispo dos Santos (Universidade do Estado da Bahia – UNEB); Lícia Maria Freire Beltrão (Universidade Federal da Bahia – UFBA); Permínio Souza Ferreira (Universidade do Estado da Bahia – UNEB); Roberto Sidnei Macedo (Universidade Federal da Bahia – UFBA) e Obdália Ferraz (Universidade do Estado da Bahia – UNEB).

A presente pesquisa teve por objetivo investigar como se dá a mediação da constituição do sujeito leitor nas aulas de língua portuguesa, nas turmas de 9º ano. A investigação se deu através de entrevistas com docentes e discentes de três escolas públicas da capital baiana. Além disso, foi realizada uma atividade de leitura com os discentes, focando a produção de leitura, tudo isso, considerando a escuta sensível e a epoché. A análise das evidências levantadas apontou para uma prática de produção de leitura superficial, mas apontou também para o alcance do enleituramento através da mediação docente, ou seja, a capacidade de tornar o texto inte-ligível em suas várias nuances: lexical, gramatical, de conhecimento de mundo, indo além da leitura das palavras, momento que o sujeito leitor interage com o sujeito autor, sendo essa a tese defendida. Buscou-se, à luz de teóricos do discurso, principalmente Orlandi, e da pedagogia, como Freire e Macedo, descrever uma pedagogia que incida na formação do leitor, através do enleituramento, considerando que a leitura é o caminho privilegiado da formação cidadã. A análise ancorou-se em dispositivos etnográficos e foi guiada por categorias presentes nas práticas pedagógicas, derivadas de pres-supostos da Análise de Discurso: silenciamento, o qual gerou o não-silenciamento, e o assujeitamento, o qual gerou o reassujeitamento, privilegiando a discussão que gira em torno da constituição do sujeito-leitor. Os resultados encontrados apontam para um trabalho com leitura que precisa ampliar a constituição do sujeito--leitor, ampliando o conhecimento de mundo.

Palavras-chave: Análise de Discurso. Leitura. Sujeito-leitor. Ensino.

ABSTRACT

The being-in-the-world Reading and the constitution of the subject-reader.

The present study aimed to investigate how occurs the mediation in constitution of the subject reader in Portuguese language 9th grade classes. The research was collected through interviews with teachers and students from three public schools in Salvador. Moreover, a reading activity with the students was performed, focusing on the production of reading all this, considering the sensitive listening and epoche. The analysis of the evidence pointed to a raised production practice superficial reading, but pointed also to the scope of inliteracy through teacher mediation, ie, the ability to make the text intelligible in its various nuances: lexical, grammatical knowledge world , going beyond reading the words, now that the subject reader interacts with the subject author, which is the thesis defended. Was sought in the light of theoretical discourse, especially as Orlandi, and pedagogy, as Freire and Macedo, describe a pe-dagogy that focuses on training the reader through inliteracy, whereas reading is the privileged way of civic education. The analysis was anchored in ethnographic devices and was guided by categories present in pedagogical practices, derived from assumptions of Discourse Analysis: silencing, which generated the non- silencing and subjugation, which generated the resubjugation, focusing the discussion revolves about the constitution of the subject reader. The results indicate that the job of reading needs to expand the constitution of the subject reader, expanding knowledge of the world.

Keywords: Discourse Analysis. Reading. Subject reader. Education.

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PESSOA, Marcos Paulo Lopes*. De volta ao inferno – um caso de tradução interse-miótica entre literatura e videogame. 2012. 165 f. Dissertação (Mestrado em Edu-cação) – Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade**, Departa-mento de Educação, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2014.

* Mestre em Educação e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor da União Metropolitana de Educação e Cultura (UNIME). Av. Luis Tarquínio Pontes, 600, Pitangueiras, Lauro de Freitas. CEP: 42700-000. E-mail: [email protected]

** Orientadora: Profª. Drª Lynn Alves (Universidade do Estado da Bahia – UNEB). Data da defesa: 02 de abril de 2012. Banca Examinadora: Dr. Roger Tavares (Serviço Nacional do Comércio – SENAC-SP), Drª Lícia Soares (Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem da Universidade do Estado da Bahia – UNEB), Dr. Arnaud de Lima Junior (Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia – UNEB).

Na presente pesquisa, dispõe-se a investigar o pro-cesso de tradução entre literatura e videogame definindo como foco de análise o jogo Dante’s Inferno e o primeiro cântico da Divina Comédia de Dante Alighieri: o In-ferno. Tal investigação procurou destacar os pontos de aproximação e de afastamento entre o texto de partida e a tradução. Para compreender a transmutação de um poema medieval para o formato videolúdico, utilizou-se principalmente a semiótica narrativa de Greimas, a teoria de tradução intersemiótica de Plaza, além do conceito de narrativa transmidiática formulado por Jenkins. Essa é uma pesquisa bibliográfica, de caráter qualitativo, descritiva e interpretativa, permeada pela metodologia proposta por Greimas.

Palavras-chave: Tradução. Narrativas transmidiá-ticas. Semiótica. Videogame.

ABSTRACT

Back to the inferno – a case of intersemiotic translation between literature and videogame.

In this research, has to investigate the translation process between literature and video game defining analytical focus the game Dante’s Inferno and the first song of the Divine Co-medy of Dante Alighieri: Inferno. This is a literature review, qualitative, descriptive and interpretative permeated the me-thodology proposed by Greimas, the theory of intersemiotic translation Plaza, beyond the concept of transmedia narrative formulated by Jenkins. This is a literature review, qualitative, descriptive and interpretive permeated the methodology pro-posed by Greimas.

Keywords: Translation. Transmedia narratives. Semiotics. Videogame.

253Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, jan./jun. 2014

A Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade é um periódico temático e semestral, que tem como objetivo incentivar e promover o intercâmbio de informações e resultados de estudos e pesquisas de natureza científica, no campo da educação, em interação com as demais ciências sociais, relacionando-se com a comunidade regional, nacional e internacional. Aceita trabalhos originais, que analisam e discutem assuntos de interesse científico-cultural, e que sejam classificados em uma das seguintes modalidades:- ensaios: estudos teóricos, com análise de conceitos;- resultados de pesquisa: texto baseado em dados de pesquisa;- estudos bibliográficos: análise crítica e abrangente da literatura sobre tema definido;- resenhas: revisão crítica de uma publicação recente; - entrevistas com cientistas e pesquisadores renomados; - resumos de teses ou dissertações.

Os trabalhos devem ser inéditos, não sendo permitido o encaminhamento simultâneo para outro pe-riódico. A titulação mínima para os autores é o mestrado. Mestrandos podem enviar artigos desde que em co-autoria com seus orientadores.

A revista recebe artigos redigidos em português, espanhol, francês e inglês, sendo que os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores. Os originais em francês e inglês poderão ser traduzidos para o português, com a revisão realizada sob a coordenação do autor ou de alguém indicado por ele. Os autores e co-autores que tiveram artigos publicados devem ficar com um intervalo de dois números sem publicar. Os textos não devem exceder a três autores.

Os temas dos futuros números e os prazos para a entrega dos textos são publicados nos últimos números da revista, assim como no site www.revistadafaeeba.uneb.br, ou podem ser informados pelo editor executivo a pedido. Também será publicada, em cada número, a lista dos periódicos com os quais a Revista da FAEEBA mantém intercâmbio.

Os textos recebidos são apreciados inicialmente pelo editor executivo, que enviará aos autores a confirmação do recebimento. Se forem apresentados de acordo com as normas da Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, serão encaminhados para os membros do Conselho Editorial ou para pareceristas ad hoc de reconhecida competência na temática do número, sem identificação da autoria para preservar isenção e neutralidade de avaliação.

Os pareceres têm como finalidade atestar a qualidade científica dos textos para fins de publicação e são apresentados de acordo com as quatro categorias a seguir: a) publicável sem restrições; b) publicável com restrições; c) publicável com restrições e sugestões de modificações, sujeitas a novo parecer; d) não publicável. Os pareceres são encaminhados para os autores, igualmente sem identificação da sua autoria.

Os textos com o parecer b) ou c) deverão ser modificados de acordo com as sugestões do conselheiro ou parecerista ad hoc, no prazo a ser definido pelo editor executivo, em comum acordo com o(s) autor(es). As modificações introduzidas no texto, com o parecer b), deverão ser colocadas em vermelho, para efeito de verificação pelo editor executivo.

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Após a revisão gramatical do texto, a correção das referências e a revisão das partes em inglês, o(s) autor(es) receberão o texto para uma revisão final no prazo de sete dias, tendo a oportunidade de introduzir eventuais correções de pequenos detalhes.

O encaminhamento dos textos para a revista implica a autorização para publicação. A aceitação da matéria para publicação implica na transferência de direitos autorais para a revista. A reprodução total ou parcial (mais de 500 palavras do texto) requer autorização por escrito da comissão editorial. Os autores dos textos assumem a responsabilidade jurídica pela divulgação de entrevistas, depoimentos, fotografias e imagens.

Sendo a Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade um periódico temático, será dada pre-ferência à publicação de textos que têm relação com o tema de cada número. Os outros textos aprovados somente serão publicados numa seção especial, denominada Estudos, na medida da disponibilidade de espaço em cada número, ou em um futuro número, quando sua temática estiver de acordo com o conteúdo do trabalho. Se, depois de um ano, não surgir uma perspectiva concreta de publicação do texto, este pode ser liberado para ser publicado em outro periódico, a pedido do(s) autor(es).

O autor principal de um artigo receberá três exemplares da edição em que este foi publicado. Para o autor de resenha ou resumo de tese ou dissertação será destinado um exemplar.

Os textos devem ser encaminhados exclusivamente para o endereço eletrônico do editor executivo ([email protected] / [email protected]). O mesmo procedimento deve ser adotado para os contatos posteriores. Ao encaminhar o texto, neste devem constar: a) a indicação de uma das modalidades citadas no item I; b) a garantia de observação de procedimentos éticos; c) a concessão de direitos autorais à Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade.

Os trabalhos devem ser apresentados segundo as normas definidas a seguir: 1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereços

residencial (somente para envio dos exemplares dos autores) e institucional (publicado junto com os dados em relação a cada autor), telefones (para contato emergencial), e-mail; c) titulação principal; d) instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m).

2. Resumo e Abstract: cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resultado e conclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de, no mínimo, três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo e do resumo, assim como do trabalho resenhado. Atenção: cabe aos autores entregar traduções em inglês de boa qualidade.

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias (em formato TIF, cor cinza, dpi 300), quando apresen-tados em separado, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências de sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida pelo Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.

4. Sob o título Referências deve vir, após a parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos autores e das publicações conforme as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Vide os seguintes exemplos:

a) Livro de um só autor:BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.b) Livro até três autores:NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tra-dução de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.

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c) Livro de mais de três autores:CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.d) Capítulo de livro:BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.). Mul-tirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.e) Artigo de periódico: MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.f) Artigo de jornais: SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4. g) Artigo de periódico (formato eletrônico):TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de história, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000.h) Livro em formato eletrônico:SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.i) Decreto, Leis:BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.j) Dissertações e teses:SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestra-do) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996. k) Trabalho publicado em Congresso:LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autorida-des brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE: história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.

IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego da pontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme.

5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR 10520 de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou, quando ultrapassa três linhas, em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte do texto, este deve aparecer em letra cursiva e submeter-se aos procedimentos gramaticais da língua. Exemplo: De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deve aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir: A pedagogia das minorias está à disposição de todos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídas de sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data de acesso. Para qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginas do texto devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias, que devem obedecer à NBR 10520, de 2003.

6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os agradecimentos, apêndices e informes complementares.

7. Os artigos devem ter, no máximo, 50 mil caracteres com espaços e, no mínimo, 30 mil caracteres com espaços; as resenhas podem ter até 20 mil caracteres com espaço. Os títulos devem ter no máximo 90 caracteres, incluindo os espaços. Os resumos de teses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras,

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e conter título, número de folhas, autor (e seus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição, e data da defesa pública, assim como a tradução em inglês do título, resumo e das palavras-chave.

8-As referências bibliográficas devem listar somente os autores efetivamente citados no corpo do texto.Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no processador Word for Windows ou

equivalente: • letra: Times New Roman 12 • tamanho da folha: A4 • margens: 2,5 cm • espaçamento entre as linhas: 1,5;• parágrafo justificado.Os autores são convidados a conferir todos os itens das Normas para Publicação antes de encaminhar

os textos. Deste modo, será mais rápido o processo de avaliação e possível publicação.

Para contatos e informações:

Administração:Secretária: Dinamar FerreiraE-mail: [email protected]. 71.3117.2316

Editora Geral:Tânia Regina DantasE-mail: [email protected]

Editora Executiva: Liége Maria Sitja FornariE-mail: [email protected]@gmail.com

Site da Revista da FAEEBA: www.revistadafaeeba.uneb.br

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The Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade is a thematic and semestral periodic which have for objective to stimulate and promote the exchange of informations and of results of scien-tific research, in the field of education, interacting with the other social sciences, interconnected to the regional, national and international community.

The Revista da FAEEBA receive only original works which analyze and discuss matters of scientific and cultural interest and that can be classified according to one of the following modalities:- essays: theoretical studies with analysis of concepts;- research results: text based on research data- reviews of literatures: ample critical analysis of the literature upon some specific theme;- critical review of a recent publication; - interviews with recognized researchers; - abstract of PhD and master thesis.

Submitted works should be unpublished and should not be submitted simultaneously to other journal. Papers written in Portuguese, Spanish, French and English are received. Views published remain their authors’ responsibility. Texts originally in French and English may be translated into Portuguese and published after a revision made by the author or by someone he has suggested. Authors who published in this journal should wait two volumes to become newly authorized to publish. No paper should have more than 3 authors.

Themes and terms of the futures volumes are published in the last volumes are also available on-line at www.revistadafaeeba.uneb.br. In each volume, appears also the list of academic journals with which the Revista da FAEEBA have established cooperation.

Texts submitted are initially appreciated by the Editor which will confirm reception. If they are edited in accordance with the norms, they will be sent, anonymously so to assure neutrality, to other member of the editorial committee or to ad hoc evaluators of known competence .

Evaluators’ reports will confer the submitted work scientific quality and class them in four categories: a) publishable without restrictions b) publishable with restrictions; c) publishable with restrictions and modifications after new evaluation; d) unpublishable. Evaluators’ reports are sent anonymously to the authors.

In the b) or c) case, the works should be modified according to the report’ suggestion in the terms determined by the editor in agreement with the authors. Modifications made should appear in red so as to permit verification.

After the grammatical revision of the text, the correction of the bibliography, and the revision of the part in English, the authors(s) will receive the text for an ultimate opportunity to make small corrections in a week.

258 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, jan./jun. 2014

Submitting text to the journal means authorizing for publication. Accepting a text for publication imply the transfer of copyrights to the journal. Whatever complete or partial reproduction (more than 500 hun-dreds words) requires the written authorization of the editorial committee. Papers’ authors should assume juridical responsibility for divulging interviews, photographies or images. As the Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade is a periodic journal, preference will be given to the publication of texts related to the theme of each volume. Other selected approved text may only be published in a special section called Studies depending of available space in each volume or in a future volume more in touch with the text content. If, after a year, no possibility of a publication emerges, the text can be liberated for publication in another journal if this is the will of the author.

The main author of a paper will receive three copies of the volume in which his paper was published. The author of an abstract or a review will receive one.

Texts as well as ulterior communication should be sent exclusively to the e-mail address of the editor ([email protected]/ [email protected] ). In should be explicited initially a) at which modality the text pertains; b) ethical procedures; c) copyrights concession to the Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade.

Works should respect the following norms:1. In the first page, should appear: a) the paper’s title; b) authors’ name, address, telephones, e-mail;

c) main title; d) institutional affiliation and post.2. Resumo and Abstract: each with no more than 200 words including objective, method, results and

conclusion. Immediately after, the Palavras-chave and Keywords, which desired number is between 3 and 5. Authors should submit high quality translation.

3. Figures, graphics, tables and photographies (TIF, grey, dpi 300), if presented separately should come with indication of their localization in the text, have a title and indicates author and reference. In this sense, the tabular norms of tabular presentation, established by the Brazilian Conselho Nacional de Estatística and published by the IBGE in 1979.

4. Under the title Referências should appear, at the end of the paper, in alphabetic order, the list of authors and publication according to the norms of the ABNT (Associação Brasileira de Normas Técni-cas). See the following examples:

a) Book of one author only:BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.b) Book of two or three authors:NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tra-

dução de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.c) Book of more than three authors:CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.d) Book chapter:BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.). Mul-

tirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.e) Journal’s paper: MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma

breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.

259Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, jan./jun. 2014

f) Newspaper: SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público.

O Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4. g) On-line paper :TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de

história, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Available at: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000.h) E-book:SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.

bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.i) Laws:BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para

despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.

j) Thesis:SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestra-

do) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996. k) Congress annals:LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autori-

dades brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE: história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.

IMPORTANT: Organizing references, the author should take care of punctuation correct use, so as to preserve uniformity.

5. This journal use the author-date quote system, according to the NBR 10520 de 2003. Biblio-graphical quotes or quotes from on-line publications, if inserted into the text, should appear between quotation marks or if the quotation is more than three lines long, distanced and without quotation marks with author reference. Examples: 1- According to Freire (1982: p.35), etc. 2-Minority pedagogy is for all (Freire, 1982, p.35). On-line quotes should indicate the URL and access date. Footnotes should only contain explanatory notes strictly necessary respecting the NBR 10520, of 2003.

6. Texts can contain footnotes, thanks, annexes and complementary informations.7. Papers should have no more than 50.000 characteres and no less than 20.000 characteres includ-

ing spaces. Titles should have no more than 90 characteres including spaces. Reviews are limited to 5 pages. Thesis abstracts should contain no more than 250 words and should include title, number of page, author data, key-words, name of the director and university affiliation, as well as the date of the defense and the English translation of text, abstract and key-words.

Look out: texts will only be accepted formated in Word for Windows or equivalent: • font: Times New Roman 12 • paper dimension: A4 • margins: 2,5 cm • line spacing: 1,5;• paragraph justified.

Authors are invited to check the norms for publication before sending their work. It will ease the process of evaluation and facilitate an eventual publication.Contact and informations:

Secretary: Dinamar Ferreira - Email: [email protected] - Tel. 71.3117.2316General Editor: Tânia Regina Dantas - E-mail: [email protected] Editor: Liége Maria Sitja Fornari - E-mail: [email protected] of the Revista da FAEEBA: www.revistadafaeeba.uneb.br