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SEGURANÇA PÚBLICA REVISTA BRASILEIRA DE ISSN 1981-1659 Volume 9 Número 1 fevereiro/março 2015

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  • SEGURANA PBLICAREVISTABRASILEIRADE

    ISSN 1981-1659

    Volume 9

    Nmero 1

    fevereiro/maro 2015

  • 2Expe

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    Frum Brasileiro de Segurana Pblica

    Elizabeth Leeds Presidente de Honra

    Humberto Viana Presidente do Conselho de Administrao

    Renato Srgio de Lima Vice-Presidente do Conselho de Administrao

    Samira Bueno Diretora Executiva

    Expediente

    Comit Editorial

    Arthur Trindade Maranho Costa - Editor Chefe (Universidade de

    Braslia - Braslia / Distrito Federal / Brasil)

    Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (Pontifcia Universidade Catlica

    do Rio Grande do Sul - Porto Alegre/ Rio Grande do Sul/ Brasil)

    Renato Srgio de Lima (Frum Brasileiro de Segurana Pblica

    So Paulo / So Paulo / Brasil)

    Conselho editorial

    Elizabeth R. Leeds (Centro para Estudos Internacionais (MIT)

    e Washington Office on Latin America (WOLA)/ Estados Unidos)

    Antnio Carlos Carballo (Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro

    Rio de Janeiro/ Rio de Janeiro/ Brasil)

    Christopher Stone (Open Society Foundations - Nova Iorque/

    Estados Unidos)

    Fiona Macaulay (University of Bradford Bradford/ West

    Yorkshire/ Reino Unido)

    Luiz Henrique Proena Soares (Fundao SEADE So Paulo/

    So Paulo/ Brasil)

    Maria Stela Grossi Porto (Universidade de Braslia

    Braslia/ Distrito Federal/ Brasil)

    Michel Misse (Universidade Federal do Rio de Janeiro -

    Rio de Janeiro/ Rio de Janeiro/ Brasil)

    Srgio Adorno (Universidade de So Paulo So Paulo/

    So Paulo/ Brasil)

    Esta uma publicao semestral do Frum Brasileiro de Segurana Pblica.

    ISSN 1981-1659

    Rev. Bras. segur. pblica vol. 9 n. 1 So Paulo fev/mar 2015

    Equipe RBSP

    Beatriz Rodrigues, Cau Martins, Cludio Dantas Monteiro,

    David Marques, Las Figueiredo, Patrcia Nogueira Prglhf

    Reviso de textos

    Denise Niy

    Tradues

    Paulo Silveira e Miriam Palacios Larrosa

    Capa e produo editorial

    Urbania

    Endereo

    Rua Mrio de Alencar, 103

    Vila Madalena So Paulo SP Brasil 05436-090

    Telefone

    (11) 3081-0925

    E-mail

    [email protected]

    Apoio

    Open Society Foundations e Ford Foundation.

    Conselho de Administrao

    Humberto Viana

    Cristiane do Socorro Loureiro Lima

    Danillo Ferreira do Nascimento

    Luis Flvio Sapori

    Luiz Antnio Brenner Guimares

    Marcos Aurlio Veloso e Silva

    Renato Srgio de Lima

    Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    Srgio Roberto de Abreu

    Silvia Ramos de Souza

    Rev. bras. segur. pblica | So Paulo v. 9, n. 1, 2-4, Fev/Mar 2015

  • 3Sumrio

    Dossi: Ensaios da mudana em polcias de pases lusfonos..................... ...6Cristina.Zackseski

    O inqurito policial e a diviso do trabalho jurdico-penal no Brasil: discursos e prticas................................................................................................... ...12Bruno.Amaral.Machado

    O(s) saber(es) e a formao como nmos de afirmao dos modelos constitucionais de polcia ....................................................................................... ...34Manuel.Monteiro.Guedes.Valente

    Aspectos sobre os saberes policiais investigativos: a superao de alguns desafios............................................................................. ...50Clio.Jacinto.dos.Santos

    Reformar a polcia ou reformar o seu discurso? Uma anlise da chegada da filosofia de policiamento comunitrio a uma organizao policial militar brasileira ........................................................................................ ...62Ludmila.Mendona.Lopes.Ribeiro.e.Ana.Maria.Alemo.Montandon

    Fluxos e dinmicas do sistema de justia criminal nas representaes sociais dos operadores envolvidos ....................................................................... ...82Maria.Stela.Grossi.Porto

    Cooperao internacional e construo de um modelo original de polcia em Angola..................................................................................................102Cristina.Udelsmann.Rodrigues

    Formao internacional, comunidades de saberes e mudana institucional: os oficiais de polcia africanos formados em Lisboa ................122Susana.Duro.e.Daniel.Seabra.Lopes

    Direitos Humanos e atuao policial: percepes dos policiais em relao a uma prtica cidad ................................................................................................140Simone.Maria.Santos.e.Lvia.Henriques.Oliveira

    A predisposio para chamar a polcia: um estudo sobre a percepo do desempenho e da confiabilidade das instituies policiais .......................158Almir.de.Oliveira.Junior.e.Rafael.Augusto.da.Costa.Alencar

    Escala de Atitudes diante da Delinquncia: validade e preciso.....................172Carlos.Eduardo.Pimentel,.Thiago.Gomes.Nascimento,.Giovanna.Barroca.Moura,..Anny.Edze.Maia.Clementino.e.Larissa.Souza.Soares

    Plano de Comando da Polcia Militar de Santa Catarina: a construo de um modelo de gesto por meio da MCDA-C.........................................................184Nazareno.Marcineiro,.Jorge.Eduardo.Tasca,.Izaas.Otaclio.da.Rosa,..Leonardo.Ensslin.e.Fernando.Antnio.Forcellini

    Homicdios no Distrito Federal: retratos e relatos...............................................212Bilmar.Angelis.de.Almeida.Ferreira,.Eduardo.Ferreira.Coelho..e.Jane.de.Oliveira.Rabelo.de.Almeida

    Policiamento Orientado Soluo de Problemas na Polcia Militar do Estado de Santa Catarina..........................................................................................232Igor.Arajo.Barros.de.Morais.e.Thiago.Augusto.Vieira

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    Sumrio

    Apresentao

    Dossi

    Artigos

    Nota tcnica

    Regras de publicao

    Rev. bras. segur. pblica | So Paulo v. 9, n. 1, 2-4, Fev/Mar 2015

  • Summary

    Dossier: Attempts at changing police organizations in Portuguese-speaking countries............................................................................... ...6Cristina.Zackseski

    The division of labor in the realm of criminal justice and police investigation in Brazil: discourse and practice ............................................................................. ...12Bruno.Amaral.Machado

    Training and skills that consolidate the development of police models ........... ...34Manuel.Monteiro.Guedes.Valente

    Overcoming some challenges in the development of police investigation skills ................................................................................................... ...50Clio.Jacinto.dos.Santos

    Police reform or police discourse reform? Analyzing the introduction of community policing practices in a Brazilian military police organization .......... ..62Ludmila.Mendona.Lopes.Ribeiro.e.Ana.Maria.Alemo.Montandon

    Flows and dynamics of the criminal justice system and the social representations shared by its agents .................................................................. ...82Maria.Stela.Grossi.Porto

    International cooperation and the development of a new police model in Angola.......................................................................................................................102Cristina.Udelsmann.Rodrigues

    International training, knowledge communities and institutional change: African police officers trained in Lisbon ..............................................................122Susana.Duro.e.Daniel.Seabra.Lopes

    Human Rights and police performance: police officer perceptions of ethical police practices ........................................................................................140Simone.Maria.Santos.e.Lvia.Henriques.Oliveira

    Citizens willingness to call the police: a study on the perception of police performance and trustworthiness .........................................................................158Almir.de.Oliveira.Junior.e.Rafael.Augusto.da.Costa.Alencar

    An Attitude Scale on Criminal Activity: validity and accuracy .........................172Carlos.Eduardo.Pimentel,.Thiago.Gomes.Nascimento,.Giovanna.Barroca.Moura,..Anny.Edze.Maia.Clementino.e.Larissa.Souza.Soares

    The Santa Catarina State Military Police Command Plan: designing a management model using the MCDA-C ...............................................................184Nazareno.Marcineiro,.Jorge.Eduardo.Tasca,.Izaas.Otaclio.da.Rosa,..Leonardo.Ensslin.e.Fernando.Antnio.Forcellini

    Murders in Brazils Federal District: portraits and accounts..............................212Bilmar.Angelis.de.Almeida.Ferreira,.Eduardo.Ferreira.Coelho..e.Jane.de.Oliveira.Rabelo.de.Almeida

    Problem-Oriented Policing and the Military Police of the State of Santa Catarina.............................................................................................................232Igor.Arajo.Barros.de.Morais.e.Thiago.Augusto.Vieira

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    Table of Contents

    Presentation

    Dossier

    Articles

    Technical Note

    Publishing Rules

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    Dossi: Ensaios da mudana em polcias de pases lusfonos

    Cristina Zackseski

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    E ste dossi especial rene uma srie de artigos produ-zidos sobre contextos brasileiros, portugueses e africa-nos. Embora partindo de uma discusso relativa a vrias mo-dalidades e formatos da aprendizagem policial, os autores, no seu conjunto, problematizam propostas de mudana quer na formao, quer na legitimidade e funcionamento em corpos de polcia que tm em comum o fato de falarem em portugus, estabelecendo-se entre elas uma srie de parcerias e redes internacionais nem sempre visveis. Neste dossi, as cincias sociais surgem em dilogo com o que hoje se conhe-ce como campo das cincias policiais e da criminologia.

    Em O inqurito policial e a diviso do trabalho jurdico--penal no Brasil: discursos e prticas, Bruno A. Machado contribui significativamente para nossa compreenso sobre a justia criminal brasileira, analisando, a partir da teoria sis-tmica, os discursos e prticas acerca do inqurito policial. O autor trabalha com material emprico coletado nos anos de 2008 e 2009 em cinco capitais de Estados da Federao do Brasil, revelando vrias dificuldades de comunicao entre as diversas instituies e atores envolvidos na investigao criminal. As falas dos profissionais permitem-nos entender melhor algumas questes polmicas da pauta atual da segu-rana pblica, tais como a funcionalidade do inqurito e a capacidade de investigao dos policiais e do prprio Minis-trio Pblico.

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    Com forte conhecimento sobre diversas constituies de-mocrticas, Manuel G. Valente, em O(s) saber(es) e a for-mao como nmos de afirmao dos modelos constitucio-nais de polcia, provoca em ns uma reflexo sobre o que designa pelo tecido jurdico-constitucional da lusofonia. A Constituio , hoje, o elemento aferidor das polcias demo-crticas, pois esta pode criar diferentes linhas preceptivas ou programticas do saber atuante das polcias. As Constituies dos Estados lusfonos afirmam-se em uma linha democrtica de integrao das polcias e de desenvolvimento ativo de cada instituio policial. As polcias lusfonas procuram assumir--se, cada vez mais, como rosto da sua Constituio e do seu regime poltico democrtico ou democratizante.

    Clio J. dos Santos, em Aspectos sobre os saberes poli-ciais investigativos: a superao de alguns desafios, escreve sobre como se vo legitimando os vrios saberes implicados no quadro de atuao policial no Brasil, desde os saberes policiais investigativos aos desafios emergentes dos milita-res, passando pelo papel transversal da inteligncia policial. O autor apresenta ainda as formas de cooperao existentes entre a Polcia Federal e suas congneres em pases sul ame-ricanos e africanos. Tanto Manuel G. Valente como Clio J. dos Santos so peremptrios na defesa de um caminho civilista para o policiamento, distante de ditames militares. Ambos centram-se na importncia do respeito pelo Esta-do de Direito para a afirmao da democracia nos saberes policiais, em seus processos de trabalho e na garantia da segurana nacional e internacional.

    Um tema importante da segurana pblica no Brasil o Policiamento Comunitrio. No texto Reformar a polcia ou reformar o seu discurso? Uma anlise da chegada da filo-sofia de policiamento comunitrio a uma organizao poli-cial militar brasileira, as pesquisadoras Ludmila Mendona Lopes Ribeiro e Ana Maria A. Montandon descrevem com maestria o processo de chegada deste estilo de policiamento ao Brasil, a sua retomada e seus meandros. O artigo resul-ta de uma pesquisa documental nos arquivos de um cone

    A Constituio , hoje, o elemento aferidor das polcias democrticas, pois esta pode criar diferentes linhas preceptivas ou programticas do saber atuante das polcias.

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    da Polcia Militar brasileira, o Coronel Carlos Magno Na-zareth Cerqueira. Ele trabalhou muito para dar segurana pblica carioca, nos dois governos Brizola, a perspectiva de segurana cidad, investindo, entre outras coisas, na forma-o de policiais para lhes dar capacidade de ao compatvel com o respeito aos Direitos Humanos, especialmente junto s comunidades carentes. Popular hoje em dia, mas ainda com dificuldades enormes de implantao, o Policiamento Comunitrio era apontado j no incio da dcada de 1980 como um caminho para que a polcia do Rio de Janeiro fun-cionasse como prestadora de servios de segurana. Passados todos estes anos sem a presena do Cel. Cerqueira, assassi-nado em 1999, continuamos a aprender com ele acerca das razes pelas quais at hoje se enfrentam enormes dificuldades e resistncias quando se ambiciona provocar mudanas nas polcias de Estado algumas delas por razes poltico-ideo-lgicas, outras por ignorncia e outras ainda por medo do seu potencial transformador.

    De fato, a transformao das culturas policiais no Brasil tem levado muito mais tempo do que os adeptos do policia-mento comunitrio imaginaram. Maria Stela Grossi Porto, com a sua conhecida trajetria de investigao sobre repre-sentaes sociais, d-nos a compreender muito a respeito da natureza das polticas de segurana brasileiras, ao apresentar uma brilhante anlise de material coletado em 2013 sobre o funcionamento do sistema de justia criminal na rea Me-tropolitana de Braslia, focando-se nos crimes de homicdio ocorridos em 2010. No texto Fluxos e dinmicas do sistema de justia criminal nas representaes sociais dos operadores envolvidos, a autora mostra-nos para alm da j conhecida seletividade do sistema, descortinada pelos dados quantitati-vos como as prticas dos atores do sistema e como as repre-sentaes sociais dos peritos, delegados, promotores e juzes perfazem as everyday theories que orientam essa seletividade. Tais prticas e representaes permitem-nos compreender as respostas obtidas no controle formal dos homicdios, que infelizmente tm uma grande incidncia em nossa realidade atual. As respostas observadas a esses crimes, por incipientes,

    At hoje se enfrentam enormes dificuldades e resistncias quando se ambiciona provocar mudanasnas polcias de Estado.

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    acabam fragilizando ainda mais um sistema j descrito nas ltimas dcadas como sendo frouxamente articulado, mas que em tese deveria providenciar uma resposta justa.

    Saindo do cenrio brasileiro, o texto de Cristina U. Ro-drigues, Cooperao internacional e construo de um mo-delo original de polcia em Angola, e o de Susana Duro e Daniel Seabra Lopes, Formao internacional, comuni-dades de saberes e mudana institucional: oficiais de pol-cia africanos em Lisboa, apostam na anlise dos efeitos do programa de formao superior, conduzido pela Polcia de Segurana Pblicas em Portugal (PSP) h mais de vinte e cinco anos, por intermdio do Instituto Superior de Cin-cias Policiais e Segurana Interna (ISCPSI).

    No perodo histrico posterior descolonizao, con-temporneo dos movimentos de redemocratizao e ps--militarismo no cenrio ocidental global, a referida institui-o passa a assumir responsabilidade na formao intensiva de cadetes cooperantes de pases lusfonos africanos e, em menor grau, mas com previsvel intensificao, esta se alar-ga colaborao na formao superior ps-graduada [lato sensu e stricto sensu] de policiais federais, civis e militares brasileiros. Cristina U. Rodrigues observa como o modelo de polcia hbrido angolano, fruto de mltiplas influncias internacionais na sua restruturao dos ltimos trinta anos, abre caminho para a incorporao progressiva de orienta-es democrticas, nas quais a autora cr integrar-se o curso de formao de oficiais de polcia (com grau de mestrado) do ISCPSI. No entanto, todo este processo no se faz sem recuos e crticas, que testam a prpria resistncia dos alunos angolanos. Estes, de alguma forma, vo criando para si um estatuto diferente daqueles que no ousam passar cinco ou mais anos das suas vidas em formao em Lisboa, na antiga metrpole.

    Susana Duro e Daniel Seabra Lopes provocam a litera-tura fatalista de antroplogos ps-coloniais que creem ser incuos os programas de mudana impostos por agncias

    Torna-se imperioso refletirsobre o que significa ter no seio de pases africanos sados deguerras civis e com histrias recentes e crticas de

    reconfiguraodemocrtica dos seus Estados oficiais cada vez

    mais academizados e estrangeirados.

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    internacionais de fomento dos Direitos Humanos em pases africanos. A partir das experincias nas j referidas formas da cooperao para a formao e ensino superior de alunos cooperantes, que abrangem tambm Moambique, So Tom e Prncipe e Cabo Verde, os autores chamam a ateno para o que designam como comunidades de saberes, que se ofere-cem como sinalizaes e apontamentos de mudana. Contu-do, mais do que criticar ou aplaudir transformaes, em um tempo curto que muitas vezes desafia as exigncias da hist-ria, necessrio mergulhar nas experincias de ensino, trans-misso e uso local de saberes policiais acadmicos. Torna-se imperioso refletir sobre o que significa ter no seio de pases africanos sados de guerras civis e com histrias recentes e crticas de reconfigurao democrtica dos seus Estados oficiais cada vez mais academizados e estrangeirados.

    No seu conjunto, os textos contidos neste dossi demons-tram, com recurso a variada empiria, como complexo, lento e crtico qualquer ensaio de mudana que abranja as realida-des do policiamento de Estado.

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    Bruno Amaral MachadoDoutor.em.Sociologia.Jurdico-Penal.pela.Universidade.de.Barcelona..Ps-doutorado.em.Sociologia.pela.Universidade.de.Bra-

    slia.-.UnB..Pesquisador.associado.do.Departamento.de.Sociologia.da.UnB..Professor.dos.programas.de.mestrado.e.doutorado.

    em.Direito.do.Centro.Universitario.de.Braslia.-.UniCEUB..Professor.da.Fundao.Escola.Superior.do.MPDFT.e.do.programa.de.

    doutorado.em.Cincias.Penais.da.Universidade.San.Carlos.(Guatemala)..Promotor.de.Justia.em.Braslia.

    [email protected]

    O inqurito policial e a diviso do trabalho jurdico-penal no Brasil: discursos e prticas1

    ResumoA.partir.de.enfoque.organizacional-sistmico,.o.artigo.analisa.os.discursos.de.membros.de.distintas.organizaes.do.

    subsistema.jurdico-penal.em.relao.ao.inqurito.policial..Para.a.anlise,.utiliza-se.o.material.emprico.produzido.a.partir.

    de.grupos.focais.realizados.no.Distrito.Federal.com.magistrados,.promotores.de.justia,.delegados.de.Polcia.e.agentes.

    de.Polcia.em.pesquisa.sobre.o.inqurito.policial.no.Brasil.

    Palavras-ChaveSistemas..Organizaes..Justia.criminal..Interaes.organizacionais.

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    A diviso do trabalho jurdico-penal no Brasil apenas pode ser compreendida a partir da idealizao do modelo institudo pelo inqurito policial (BEATO FILHO, 1999; BO-NELLI, 2003b; HOLLOWAY, 1997; LIMA, 2003; MACHADO, 2007a, 2007b, 2011; MISSE, 2010; SADEK, 2003; SANCHEZ FI-LHO, 2000; SOUZA, 2003, 2010). Em outras tradies, modelos distintos levaram a novos papis e arranjos organizacionais.

    O modelo de investigao sob presidncia do juiz instrutor propiciou relaes mais pr-ximas entre o Judicirio e a polcia. Na medida em que os modelos so modificados e o promo-tor de justia assume o papel instrutor, emer-gem novas possibilidades de interao, novos papis e conflitos pela distribuio dos saberes/poderes (MACHADO, 2007b, 2011)2.

    O processo de diferenciao interna do sistema jurdico, no Brasil, acentuou a in-terao entre organizaes que tradicio-nalmente estiveram vinculadas ao sistema poltico (polcia, ministrio pblico MP) com organizaes tpicas do sistema jurdi-co (MACHADO, 2011, p. 277-282; LUH-MANN, 2005a, p. 359-367). A clara separa-o entre funes e profissionais incumbidos de investigar e julgar, em 1871, concorre para a construo de um ethos prprio: o

    ethos policial (BONELLI, 2002; COSTA, 2004; HOLLOWAY, 1997; MACHADO, 2011; SOUZA, 2003, 2010).

    Na diviso social do trabalho policial, as hierarquias so construdas a partir de tcnicas saberes-poderes, no sentido foucaultiano, e saberes acumulados e transmitidos no interior do grupo, conformando a expertise policial, di-fundida e reproduzida nas academias de Polcia como teoria e tcnica da investigao (LIMA, 2003, pp. 241-256).

    A criao da figura do delegado de Polcia, profissional da mediao entre o ethos policial e o mundo do direito, consolidou novas prticas e interaes entre distintos atores (BONELLI, 2003b; SADEK, 2003; SOUZA, 2003, 2010)3. Cada ator que participa do processo de produo da verdade policial investe nas funes que desempenha e as valoriza. Como se cada ato formalizado, carimbo, reduo a termo de entrevistas e interrogatrios fossem peas articuladas de uma engrenagem.

    O paradigma sistmico sugere novas pos-sibilidades de pesquisa emprica das organiza-es do subsistema jurdico-penal. O giro mais importante a compreenso das organizaes como sistemas que comunicam por meio de decises. Cada deciso permite a reduo de

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    complexidade e novas decises. As organiza-es tambm esto inseridas nos processos de diferenciao funcional, e tendem a assumir a codificao dos distintos sistemas com os quais revela proximidade (LUHMANN, 1997, 2005 a, 2005b).

    Este parece ser o caso paradigmtico do sis-tema jurdico e sua diferenciao interna em tribunais. No descabido, porm, falar em organizaes polifnicas, na hiptese em que a codificao organizacional orienta-se por mais de um sistema social (ANDERSEN, 2003). De outro ngulo, embora as pessoas (sistemas psquicos) no sejam o foco principal de anli-se, os diversos sistemas de interao que even-tualmente surgem nas organizaes e entre membros de diversas organizaes constituem um objeto que no deve ser desconsiderado, pois as interaes organizacionais podem re-percutir diretamente nas decises das organi-zaes (SEIDL, 2005, p. 145-170). Assim, os sistemas de interao permitem adensar o co-nhecimento de premissas decisrias, tais como a cultura organizacional.

    A partir do enfoque organizacional-sis-tmico, analisam-se as representaes so-ciais de membros de distintas organizaes do subsistema jurdico-penal em relao ao inqurito policial. As representaes sociais podem ser definidas como imagens e sm-bolos construdos socialmente a partir das interaes entre os atores que integram as referidas organizaes do sistema de justia, condicionadas pelas experincias comparti-lhadas e expectativas em relao ao desempe-nho das atividades, pela cultura profissional e pautas organizacionais4.

    Utilizou-se o material emprico produzido a partir dos grupos focais (GF) sistemas de in-terao na abordagem sistmica (LUHMANN, 2007, p. 643-645; LUHMANN, 2010, p. 45) , realizados no Distrito Federal, entre 2008 e 2009, com magistrados, promotores de justia, delegados de polcia e agentes de polcia.

    COMUNICAO, ORGANIZAES E INTERA-

    ES SOCIAIS

    As organizaes como sistemas so-ciais distintos

    O ponto de partida da teoria organizacional sistmica foi a crtica ao modelo weberiano a burocracia como modelo de organizao racio-nal. A teoria organizacional clssica concentrou--se em um aspecto fundamental: a reduo de complexidade. A reduo da incerteza foi cons-truda como aspecto preponderante para a pro-teo da organizao do risco e do excesso de informao (LUHMANN, 2010, p. 29 et seq.).

    Com a definio das organizaes como sis-temas sociais compostos de decises e que pro-duzem as prprias decises entidades auto--referentes , deve-se repensar a concepo da organizao como mero subsistema diferenciado internamente a partir dos diversos sistemas fun-cionais (SEIDL, 2005, p. 39). Mais recente-mente, com a difuso de organizaes formais e maior complexidade social, a ateno dirige-se s relaes entre organizaes e sistemas funcionais, na medida em que as primeiras aparecem como pressuposto para a diferenciao funcional.

    Neste modelo terico, as organizaes so definidas como sistemas sociais autopoiticos que produzem decises por meio de rede de de-

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    cises autoproduzidas mquinas no triviais (LUHMANN, 2005b, p. 105; LUHMANN, 1997, p. 9). Diferentemente da tradio orga-nizacional, que define decises como escolha entre alternativas, a deciso apresenta-se como comunicao, no constituindo exatamen-te produto humano. As decises comunicam que alternativas poderiam ter sido escolhidas (LUHMANN, 2005b, p. 86)5.

    No modelo sistmico, as decises surgem como comunicaes paradoxais: decidir sig-nifica converter incerteza em risco (LUH-MANN, 1997, p. 10). O sentido autorrefe-rente na organizao tem outras consequn-cias, pois a modificao das decises deve ser comunicada como deciso. Do contrrio deixa de ser parte da autopoiese organizacional. A fim de absorver incerteza, as comunicaes de-cisrias devem ser integradas em processo de conexo entre decises (LUHMANN, 1997, p. 14-15; LUHMANN, 2005b, p. 96-97).

    Na medida em que as organizaes atu-am em sistemas funcionais, vinculam-se aos respectivos cdigos. Mas estes no so sufi-cientes para demarcar os limites organizacio-nais. Assim, as premissas decisrias, conjun-to de distines binrias esta competncia e no outra, esta pessoa e no aquela , con-formam o equivalente funcional da codifica-o dos sistemas funcionais (LUHMANN, 2010, p. 279).

    A partir das informaes disponveis, e ape-sar da incerteza ainda existente, possibilita-se a deciso. Na conexo que se estabelece com decises posteriores, a incerteza da primeira deciso absorvida (LUHMANN, 2005b, p.

    99). Em outras palavras, a reduo de incerte-za ocorre quando a deciso usada por outra subsequente como premissa decisria (LUH-MANN, 1997, p. 38)6.

    Entre as premissas decisrias, destacam-se: programas, pessoal e canais de comunicao. Os programas, responsveis pela estruturao da memria do sistema, distinguem-se entre programas condicionais (orientados pelo input) e finalsticos (orientados pelo output) (LUH-MANN, 2010, p. 261 et seq.). O pessoal refere--se necessidade prvia de recrutamento e orga-nizao do pessoal (LUHMANN, 1997, p. 71; LUHMANN, 2010, p. 304-311). Os canais de comunicao constituem a organizao interna, com organograma preestabelecido com com-petncias e vias de comunicao, coordenados por meio de posies referentes execuo de programas especficos (LUHMANN, 2005b, p. 94-95). Luhmann introduz outras premissas em obra pstuma: premissas de deciso que no so passveis de deciso. A cultura organizacional (ou culturas organizacionais) constitui a forma como a organizao lida com os processos deci-srios; as rotinas cognitivas, premissas heteror-referentes, ligam-se a como o entorno definido pela organizao. Por rotinas cognitivas enten-de-se no o que percebem todos os indivduos envolvidos na organizao, mas as identificaes registradas pelo uso reiterado nas comunicaes, e que podem ser recuperadas segundo a necessi-dade (LUHMANN, 2010, p. 219).

    Outro aspecto importante na anlise da autopoiese organizacional so as formas e os mecanismos de fechamento em relao ao entorno. O fechamento organizacional ma-nifesta-se operacionalmente, na medida em

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    que as organizaes se reproduzem por meio de decises (LUHMANN, 2005b, 2010). Contudo, a deciso paradoxal, pois ape-nas as questes a princpio no passveis de deciso podem ser decididas (LUHMANN, 2005b, p. 44). Em suma, em situao real de deciso, as alternativas so equivalentes, ou no haveria alternativas. Para evitar a para-lisao, o paradoxo deve ser desparadoxiza-do, na medida em que sai do campo visual (LUHMANN, 2005b, p. 92). Cada deciso uma distino entre o que um elemento da organizao (espao delimitado) e o que no pertence organizao.

    A abordagem organizacional-sistmica per-mite distintos nveis de anlise. Inicialmente, surge como possibilidade emprica para pesqui-sar os processos de diferenciao interna do sub-sistema jurdico-penal e suas formas de comu-nicao a partir da codificao jurdica. Outra perspectiva, mais especificamente organizacio-nal, focaliza as decises organizacionais da po-lcia, o MP e o Judicirio. Em que medida tais decises reduzem complexidade e permitem su-cessivas decises? Para isso, a pesquisa pode ser reorientada para as interaes organizacionais entre os membros das distintas organizaes. Finalmente, cumpre indagar sobre as premissas decisrias, especialmente a cultura organizacio-nal, razo pela qual revela-se til investigar re-presentaes sociais dos membros das distintas organizaes pesquisadas.

    Sociedade, interaes sociais e intera-es organizacionais

    A anlise sistmica distingue os seguintes tipos de sistemas sociais: sociedade, intera-o e organizaes, que se reproduzem por

    meio de diferentes tipos de comunicao. Nesta anlise, a sociedade, cujas fronteiras so comunicativas, engloba organizaes, interaes e suas respectivas comunicaes (LUHMANN, 1990, 2007)7. Cada sistema comunica a partir de cdigos prprios, cons-tituindo-se como entorno para o demais, embora todos estejam acoplados estrutural-mente uns aos outros (LUHMANN, 2007, p. 66-89).

    As interaes constituem sistemas que se reproduzem por meio da comunicao e pela presena fsica dos participantes. Em outras palavras, presena e ausncia correspondem a cdigos, que por sua vez dependem das estruturas de comunicao (LUHMANN, 2007, p. 643).

    De fato, no modelo sistmico, dedicou-se pouca ateno s relaes entre os sistemas, especialmente aquelas entre organizaes e in-teraes (SEIDL, 2005, p. 145). Embora Luh-mann no tenha abordado as decises tomadas por interaes, parece razovel, a partir dos conceitos de reentrada e de interpenetrao, falar em interaes organizacionais. Se, por um lado, as organizaes se reproduzem uni-camente por meio de decises, por outro lado, as interaes se reproduzem pela comunicao entre pessoas. Exatamente por isso, a comuni-cao funda-se na presena fsica dos partici-pantes. A comunicao , assim, estabelecida por meio do cdigo presena/ ausncia (en-torno) (SEIDL, 2005, p. 147; LUHMANN, 2007, p. 643 et seq.).

    No sistema interao a pessoa assume papel fundamental. Enquanto nas organizaes as

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    decises so justificadas com base em premis-sas decisrias decises so apresentadas como consequncias de decises anteriores , na inte-rao as comunicaes so atribudas s pessoas (LUHMANN, 2007; SEIDL, 2005, p. 148).

    As interaes podem produzir decises para as organizaes, pois assumem papel rele-vante na reproduo organizacional. Aceita-se, assim, a seguinte distino: se possvel falar em comunicao decisria e em comunicao interativa, no descabida a possibilidade de comunicaes interativas decisrias (SEIDL, 2005, p. 148).

    Nesse sentido, torna-se til e esclarecedo-ra a seguinte tipologia: interaes decisrias; interaes preparatrias; interaes informais com alguma relevncia para a tomada de de-cises; interaes sem qualquer relao com o processo decisrio (SEIDL, 2005, p. 148-150). As trs primeiras formas de interao so organizacionais, pois orientadas por estruturas no apenas interativas mas tambm organiza-cionais (entorno das interaes). A interao observa sua comunicao de acordo com o sig-nificado para a interao e para a organizao (reentrada). Reconstri-se a distino pelos pa-pis assumidos na organizao e na interao8.

    A reentrada da organizao na interao acompanhada pela referncia s pessoas que participam da organizao na sua tri-pla dimenso: dimenso social experincia pessoal dos participantes como membros da organizao; ftica a interao estrutura a comunicao segundo temas organizacionais; temporal comunicao interativa pode coincidir com eventos organizacionais9. As

    interaes surgem como respostas para a du-pla contingncia e podem contribuir para a reproduo organizacional.

    O logro organizacional depende, contudo, de processos de interpenetrao, quando os sistemas sociais disponibilizam mutuamente sua complexidade para a construo de outros sistemas. Assim, quando a interao apresenta sua comunicao como processo decisrio, ela reproduzida de forma distinta. A interao estiliza sua comunicao como deciso a fim de integr-la no processo de deciso organiza-cional (SEIDL, 2005, p. 159-160).

    O FLUXO DO INQURITO POLICIAL NO DIS-

    TRITO FEDERAL: REGULARIDADES, DIVER-

    GNCIAS E CONSTRUO JURDICA

    Entre 2008 e 2009, a convite da Federa-o Nacional de Policiais Federais, foi realizada pesquisa emprica sobre o inqurito policial no Brasil, selecionando-se unidades de investigao em cinco capitais brasileiras: Belo Horizonte, Braslia, Recife, Porto Alegre e Rio de Janeiro. A pesquisa utilizou metodologias quantitativas e qualitativas e contou com coordenadores vin-culados a distintas universidades, em cada local selecionado para a investigao: Michel Misse no Rio de Janeiro; Arthur Costa em Braslia; Jo-ana Domingues Vargas em Belo Horizonte; Jos Luiz Ratton em Recife; Rodrigo G. de Azevedo em Porto Alegre (MISSE, 2010, p. 15-16).

    Entre os achados das pesquisas realizadas nas referidas capitais brasileiras, destacam-se: o descompasso entre as rotinas de policiamento preventivo das Polcias Militares e a investigao realizada pelas Polcias Civis; o conflito constan-te entre o saber dos tiras ou saber policial in-

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    vestigador e o saber dos delegados de polcia. Em alguns estados, foram reiteradas as crticas rotatividade de policiais e delegados e s interfe-rncias polticas. Alm disso, h baixa capacidade de elucidao de crimes graves, o que contrasta com o excessivo zelo em relao s exigncias car-torrias e formalizao dos procedimentos de investigao (MISSE, 2010, p. 16-18).

    No Distrito Federal, a pesquisa compreen-deu diferentes metodologias e etapas. Inicial-mente, foram realizadas etnografias em uma delegacia de polcia. Em seguida, analisou-se o fluxo do inqurito policial em homicdios. Finalmente, foram realizados grupos focais com agentes da Polcia Civil, delegados da Po-lcia Civil, promotores de justia e magistra-dos (COSTA, 2010, p. 210-236). Os grupos focais com cada categoria profissional foram assim distribudos: 9 promotores de justia; 7 juzes de direito; 6 delegados de polcia; 6 agentes de polcia.

    Na pesquisa coordenada por Costa, a partir de anlise longitudinal do fluxo dos inquritos policiais relacionados prtica de homicdios dolosos, constatou-se que foram registrados 556 homicdios no DF em 2004, e 311 origi-naram procedimentos judiciais, de modo que 87 constam dos arquivos do Tribunal de Justi-a do Distrito Federal TJDF.

    Do total identificado nos arquivos do TJDF, 64 originaram inquritos policiais por portarias e 23 por auto de priso em flagran-te. Desse total, 68 foram denunciados pelo MP, o que levou a 49 sentenas de pronncia e encaminhados ao tribunal do jri. Entre os pronunciados, 22 receberam sentena con-

    denatria final (COSTA, 2010, p. 221-230). Costa analisa que apenas 25,3% dos inquritos concludos pela polcia resultaram em conde-nao, o que sugere reflexes sobre as intera-es da polcia com outros atores do sistema penal, especialmente o promotor de justia e o juiz (COSTA, 2010, p. 223).

    A anlise quantitativa evidencia mais que decises comunicadas por organizaes dis-tintas. Sugere processos interpretativos na construo jurdica dos fatos, o que justifica aprofundar o conhecimento da cultura or-ganizacional das instituies do subsistema jurdico-penal.

    Na pesquisa realizada no DF, identificou--se pouco contato entre policiais e magistra-dos. Entre estes, a reclamao generalizada re-fere-se falta de comprometimento daqueles com os processos iniciados pelas investigaes policiais. Os contatos entre promotores e de-legados seriam distantes e formais. Apenas nas delegacias e promotorias especializadas os contatos seriam mais frequentes. Nestas, os casos seriam resolvidos com padres proba-trios que atenderiam s demandas (COSTA, 2010, p. 231).

    Neste artigo analisam-se os discursos dos atores das organizaes selecionadas na pes-quisa1. Se a pesquisa quantitativa sugere diver-gncia na construo jurdica dos fatos, argu-menta-se que isso se deve a distintos fatores, organizacionais e profissionais. Certamente, as trajetrias das organizaes analisadas e a cul-tura profissional favorecem o seu insulamento do sistema poltico (Bonneli, 2002, 2003a; Machado, 2007a, 2007b, 2011).

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    INQURITO POLICIAL: IMAGENS, PRTICAS

    E INTERAES ORGANIZACIONAIS

    O poder de papel e os papis do poder: imagens sobre o relatrio final11

    Se as organizaes comunicam por meio de decises, estas, em regra, se concretizam em documentos e relatrios. A produo do inqurito policial sugere a comunicao por meio de decises de diferentes organi-zaes do sistema de justia criminal. Os relatrios produzidos pelos membros da organizao policial consubstanciam deci-ses organizacionais. Por meio de decises a complexidade se reduz, o que possibilita decises subsequentes.

    O relatrio preliminar das Sees de Inves-tigao Preliminar, elaborados pelos agentes de polcia, parte importante na construo da verdade policial. O relatrio final, sob res-ponsabilidade do delegado de polcia, encerra a formalizao dos atos cartorrios que buscam verossimilhana com a prtica judicial. Simbo-licamente, representaria o momento em que o saber jurdico encamparia o saber policial; a verdade policial ganharia contornos jurdicos. A autoridade e o poder de definio jurdica do fato aproximam-se do que Bourdieu suge-re como poder de nomeao no campo jur-dico-penal (BOURDIEU, 2001). Nas falas de agentes de polcia, delegados de polcia e promotores de justia, algumas destas questes aparecem repetidamente.

    O relatrio final aparece na imagem descri-ta pelos delegados de polcia como espelho da denncia. Sob um enfoque sistmico, o rela-trio cristaliza deciso organizacional que bus-

    ca traduzir a investigao policial codificao jurdica (LUHMANN, 2005a, 2005b). A sim-bologia do espelho tem uma dimenso impor-tante para os delegados de polcia. O relatrio constitui a materializao da deciso final em relao investigao. Comunica a verdade policial. Alm disso, tem outra dimenso re-levante sob o enfoque comunicativo, uma vez que a verdade policial seria reconstruda sob o prisma do direito como meio de comunicao simbolicamente generalizado:

    Delegado 5: O que faz um relatrio de dele-

    gado bom? Disso porque o que... o que faz o

    relatrio de um agente indicar quem foi, e

    como que ele chegou ali, porque que ele... o

    que faz um bom relatrio de delegado ele

    conseguir transformar o mundo dos fatos

    numa linguagem jurdica. Ento, nesse sen-

    tido, o delegado tem o papel, eu diria, tem,

    ele tem um papel transcendental. Um bom

    relatrio consegue fazer a costura entre o que

    foi apurado e o que necessrio pra funda-

    mentar uma boa denncia, ou seja... na ver-

    dade, um bom relatrio o espelho de uma

    boa denncia. [...]

    Delegado 2: Voc pode ter uma situao em

    que o relatrio aponta autoria, d as razes pe-

    las quais o investigador t convicto de que o

    autor foi aquele, e o trabalho do inqurito e do

    delegado transformar aquela verdade em algo

    juridicamente verdadeiro. Ento muitas vezes

    o agente no consegue fazer essa transposio.

    Esta viso contrasta com a avaliao dos promotores de justia. O relatrio policial se-ria uma formalidade que muitas vezes preju-dicaria a proposio da ao penal. Antecipa-ria concluso jurdica muitas vezes descabida, atrapalhando o trabalho do promotor de justi-

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    a na fase judicial. Nos relatos dos promotores de justia, aparece tambm a construo sub-jetiva das hierarquias entre as organizaes do subsistema jurdico-penal. O inqurito teria um papel auxiliar, funcional para a ao penal, e deveria ser estritamente informativo. A defi-nio jurdica seria atribuio do MP:

    Promotor 1: Relatrio de inqurito pra gente

    algo praticamente intil. Concordam com

    a afirmao que eu t fazendo? O que a gente

    precisa, como promotor de justia no inqu-

    rito, no de uma sntese daquilo que acon-

    teceu. A gente precisa de informao. Ento:

    a testemunha viu ou no viu? Voc tava l? Eu

    tenho arma apreendida? [...]

    Promotor 3: E como o delegado o homem

    mau do sistema, se ele j foi gentil, imagina o

    que posso ver no papel...

    Na avaliao sobre os papis desempenha-dos por diferentes membros da organizao policial, a funo do agente de polcia tambm surge nos discursos documentados nos dife-rentes sistemas de interao deflagrados pelos grupos focais. Nos relatos possvel identifi-car o significado dos atos cartorrios para os distintos sujeitos da pesquisa. As relaes es-tabelecidas entre os atores que se encontram durante a investigao policial, seja cara a cara seja pela produo de atos e formalizao de documentos (comunicaes por meio de deci-ses), evidenciam os limites entre o saber dos tiras e o saber jurdico.

    A atividade desempenhada pelo agente de polcia aparece na fala dos promotores como til para a busca da verdade real. Sob o en-foque organizacional, as decises policiais (comunicao) so avaliadas por membros

    de outra organizao (MP) como relevantes para a teleologia do processo penal. Em tr-minos sistmicos, reduzem a complexidade e permitem outras decises. Os agentes de pol-cia, adicionalmente, sentem-se valorizados ao identificarem que o mundo do direito aceitou a verdade policial, ainda que de forma provi-sria. A comunicao da organizao MP por meio de uma deciso concreta, o oferecimento da denncia, depende, em regra, de decises anteriores de outras organizaes.

    A diviso do trabalho entre os membros da organizao policial sugere, assim, significados distintos para os agentes de polcia:

    Agente 4: Tanto que, quando ele pega o in-

    qurito, ele pega o processo, ele chega l no

    relatrio, v quem produziu, eu vejo quem

    essa pessoa, coloco uma testemunha. Eu lem-

    bro de uma priso, que a gente foi chamado,

    eu e meu parceiro, quando chegamos na au-

    dincia e o promotor leu a denuncia, todas as

    linhas da denncia era o relatrio que a gente

    fez. Eram 11 pessoas denunciadas. A denn-

    cia dele era o relatrio que a gente fez.

    Entre o mundo policial e o mundo do direito: o delegado de polcia e o promo-tor de justia

    A experincia brasileira mostra que o papel do delegado de polcia no inqurito policial decorre de peculiaridades histricas. Parte da literatura refere-se advogadizao da pro-fisso delegado de polcia (BEATO FILHO, 1999; SOUZA, 2003, 2010). O rtulo remete a um profissional da rea jurdica que assume a direo da investigao policial. O que se ex-plica no apenas pelo modelo anterior, em que a presidncia cabia a um funcionrio que acu-

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    mulava funes policiais e jurisdicionais, mas tambm pelo peculiar papel que lhe atribudo (HOLLOWAY, 1997; SOUZA, 2003, 2010). Sob a tica sistmica, trata-se da traduo do sa-ber policial aos cdigos do subsistema jurdico--penal. Entre os profissionais das organizaes pesquisadas, o papel e a importncia deste fun-cionrio no constituem unanimidade.

    No sistema de interao com os delegados de polcia, a relevncia do papel do delegado como membro da organizao policial aparece nas representaes do profissional como res-ponsvel pela conexo entre o saber dos tiras e o saber jurdico. Os delegados valorizam a sua importncia como gestor da investigao e como profissional que domina a tcnica ju-rdica, ao mesmo tempo em que est prximo do dia a dia da delegacia, do saber dos tiras e da investigao:

    Delegado 3: A diferena seria que o delegado,

    ele uma expresso muito usada na doutri-

    na de Portugal o motor de arranque do

    processo. [...] Mas ele trabalha a investigao

    inquirindo, indagando, pra descobrir o que,

    como, quando, onde, trazer esses elementos.

    O Ministrio Pblico no. A funo dele

    deflagrar a ao penal, a partir dessas infor-

    maes. [...] Ento o modelo brasileiro foi

    criado com essa funo, dois bacharis em

    direito. [...]

    Delegado 5: Na prtica, eu vejo a persecuo

    criminal como uma corrida de basto. No

    vou discutir a importncia de um ou de ou-

    tro. O fato que voc pode mudar o nome de

    inqurito pra qualquer outra coisa, voc pode

    mudar o nome do delegado, mudar os atores,

    mas no tem, independente dos atores que

    esto em questo, ou da nomenclatura que se

    utiliza, no tem como comear um processo

    criminal em juzo sem uma instruo prvia,

    uma investigao preliminar. Ento eu acho

    que muitas vezes a gente perde muito tempo

    com discusses estreis, por que? [...]

    Delegado 3: [...] como os dois so juristas,

    eu entendo o seguinte, o delegado de po-

    lcia t mais prximo dos fatos, mais pr-

    ximo da equipe policial, ele sabe mais da

    realidade ftica da situao. O delegado de

    polcia acompanhou mais de perto a inves-

    tigao, fez um papel fiscalizador dentro

    daquela investigao, de tal forma que ele

    acha que ela j tem subsdios para uma de-

    nncia. E dentro do aspecto especializado,

    muitas vezes o promotor no tem aquele

    conhecimento que o delegado de polcia

    tem por ter capacitao tcnica e especfica

    para aquela investigao.

    No sistema de interao com os magistra-dos, aparecem distintas imagens sobre o papel do delegado de polcia. Entre os magistrados, o papel do delegado evidencia divergncia sobre as funes que este servidor pblico deve de-sempenhar. O papel de presidncia do inqu-rito policial no associado exclusivamente ao delegado. Em outras palavras, a traduo do saber dos tiras aos cdigos do sistema jurdi-co poderia ser feita pelo promotor de justia. H quem entenda que o promotor de justia deveria assumir a funo do delegado, outros divergem e afirmam que o promotor no es-taria preparado para isso. As funes seriam diferentes, a capacitao requereria tcnicas de que ele no disporia:

    Juiz 1: [...] Eu acho que ns precisamos mudar

    vrias coisas no sistema penal em geral, desde

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    a investigao at o processo, at a rea peni-

    tenciria mesmo, depois, de execuo da pena.

    Mas eu acho que tem muitos, muitos agentes

    nessa histria. Eu acho que a figura do delega-

    do de polcia, numa reforma, [pode] ser con-

    densada na figura do promotor. Os delegados

    no gostam quando ouvem isso, os promoto-

    res odeiam quando ouvem isso, mas o ponto

    que ns estamos caminhando, a figura do de-

    legado t ficando absolutamente desnecessria.

    Juiz 4: De jeito nenhum, no...

    Juiz 1: O meu pai delegado de polcia apo-

    sentado... outra coisa, duas polcias no d cer-

    to. Tem que unificar essas polcias e ver o que

    h de melhor numa e outra, e aproveitar. Mas

    no d pra ter duas polcias, no d pra ter...

    Juiz 2: Eu acho que o MP no t preparado

    pra assumir. Eu acho que isso vai acabar des-

    virtuando a prpria distino do MP.

    Entre os promotores de justia predomina a viso de que o delegado estaria sobrando, pois o promotor de justia deveria assumir a direo da investigao. A polcia no estaria prepara-da para a investigao de determinados crimes, tais como os praticados contra a administrao pblica. Os relatos sugerem corporativismo da polcia, e ressentem que no haveria qualquer indiciamento pela prtica de tortura no Distri-to Federal. Porm, as falas revelam autocrticas. O promotor de justia no estaria cumprindo a funo fiscalizadora do inqurito policial.

    Promotor 5: Existe uma superposio de

    atribuies.

    Promotor 3: De fato h uma superposio.

    Eu diria [que] hoje o Brasil o nico pas que

    tem essa figura esdrxula que a do delega-

    do. No existe nenhum outro pas no mundo

    que tem uma figura como a do delegado

    brasileiro. [...]

    Promotor 2: A pergunta qual a diferena

    do promotor para o delegado. Eu penso que

    o cerne est na diferena das instituies em

    que eles so formados. A instituio MP, ela

    permite ao promotor de justia uma maior

    viso da autonomia na sua prtica. O promo-

    tor e o delegado so produtos dessas institui-

    es, ento a diferena do ponto de vista

    institucional. [...]

    Promotor 6: Ai da sociedade se tudo que vem

    da polcia fosse oficializado. Ai da sociedade,

    ai dos direitos humanos, ai do Estado demo-

    crtico de direito se as garantias constitucio-

    nais no fossem do MP. O grande filtro hoje

    o MP.

    Promotor 5: A sobreposio a que eu me refe-

    ri foi a seguinte: qual a funo do delegado

    dentro do inqurito policial? coordenar o

    rumo dado investigao. [...] O que o pro-

    motor deveria fazer na hora que ele recebe o

    inqurito? Ele analisa, ele v: as informaes

    que tem j so suficientes? No, no so. En-

    to ele requisita o retorno dos autos delega-

    cia de polcia, eu requisito que se faa isso,

    que se faa isso, que se faa isso. Isso o que

    o promotor deveria estar fazendo.

    Saber policial, saber jurdico e os pa-pis organizacionais da Polcia Civil, do Ministrio Pblico e do Judicirio

    Os relatos dos promotores de justia contras-tam com a fala de delegados e de agentes de po-lcia. Os delegados se ressentem das investidas do MP em um campo em que os promotores no estariam treinados. A trajetria da polcia con-frontada com a do MP. A polcia sofreria do mal da subservincia, em aluso s constantes inter-ferncias polticas na instituio. J o MP teria in-

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    vestido no que avaliado como estratgia equivo-cada: recrutamento de jovens recm-egressos das universidades, sem suficiente amadurecimento para compreender a investigao e as dificuldades enfrentadas pela polcia (MISSE, 2010).

    Na fala de um dos delegados de polcia, o controle da investigao teria objetivo no ex-plicitado, porm evidente o inqurito poli-cial seria fonte de poder:

    Delegado 2: Mas eu vou dar um choque de

    realidade pra vocs dois que to comeando,

    mas ns trs aqui pensamos mais ou menos

    igual, depois de 10 anos e muita coisa que a

    gente viu... [...] Mas existe uma guerra mais

    ou menos aberta, por poder, no por interes-

    se da sociedade, envolvendo internamente na

    polcia agentes e outras classes, e delegados.

    Dentro do segmento policial, polcia civil,

    polcia militar. Num plano mais amplo, po-

    lcia civil, PM, Ministrio Pblico. Na ver-

    dade, nenhum desses segmentos t querendo

    nada alm de dinheiro. A gente fala poder

    mas dinheiro, com todas as letras. Porque

    o MP quer fechar a investigao porque in-

    vestigar bom, porque voc pode chantagear

    o governador, o vice-governador, a, b, c, d

    [...] dizendo no plano terico garantir que

    a sua instituio no vai ser atacada... ento

    se os agentes dominam a investigao, se eles

    engolem os delegados, fazem o delegado su-

    mir, que o plano deles, no sei se t certo ou

    se t errado, [discordncias] a quanto mais

    poder voc tiver, mais dinheiro, mais salrio

    voc vai poder ter. Ento todo mundo quer

    isso, mas efetivamente ningum, ou quase nin-

    gum, pouqussima gente quer trabalhar. [...]

    Nos relatos dos magistrados a investigao

    aparece como tema alheio atividade judicial. Como j mencionado, o modelo do juiz que conduz a investigao (juiz instrutor) foi adota-do na Frana, expandindo-se para outros pases. Atualmente questionado e reformado (MA-CHADO; GOMES JNIOR, 2011a, 2011b). No Brasil, durante um longo perodo no sculo XIX, as funes de investigao foram exercidas por um magistrado (juzes de paz) (HOLLO-WAY, 1997; SOUZA, 2003, 2010). Nas falas, aparece de forma recorrente no apenas o dis-tanciamento da investigao, mas tambm as razes jurdicas que o justificam:

    Juiz 2: Na verdade, na verdade assim. A gen-

    te no s no tem, como no deve ter. Essa

    a tendncia inclusive da nossa legislao. O

    projeto que encaminharam l pro Congresso

    sobre cdigo penal [processo penal] j acolhe

    no Brasil aquela teoria de que o juiz apenas

    de garantia da fase do inqurito policial.

    pra cada vez mais o juiz se distanciar da fase

    de investigao porque ela regida ao Minis-

    trio Pblico como lembrou ela aqui. [...]

    Juiz 3: O cartrio j manda direto pro MP. Eu

    no tomo conhecimento do que inqurito.

    Juiz 2: Eu costumo dizer que o juiz s vai

    olhar se for curioso, se tiver curiosidade em

    relao quele inqurito porque [...] no d

    tempo de abrir um inqurito policial.

    Interaes organizacionais e sistema jurdico: proximidades e conflitos

    Nas interaes entre os distintos atores, os relatos dos magistrados sugerem proximidade com os promotores de justia. As narrativas surgem marcadas pela identidade construda desde os bancos das universidades. A opo por uma ou outra carreira parece fruto do acaso, o que acaba, tambm, revelando a construo

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    subjetiva das hierarquias entre organizaes do subsistema jurdico-penal (BONELLI, 2003b). Em outra ocasio foi descrita a estratgia insti-tucional do movimento das associaes do MP para se aproximar do MP como estratgia de conquista de poder no campo jurdico-penal (MACHADO, 2007a, 2007b, 2011). Pesquisas sobre as profisses jurdicas apontam e marcam diferenas entre promotores de justia, magis-trados e delegados de polcia. A formao uni-versitria conforma capital simblico relevante para a compreenso das interaes, na medida em que estabeleceria os profissionais com di-ferentes nveis de formao acadmica (BO-NELLI, 2003b). A proximidade originada nos bancos universitrios aparece nos relatos:

    Moderador 1: E no caso de cada um de vocs

    no mbito de trabalho de vocs, como que

    acontece esse contato juiz e promotor [...]

    Juiz 2: dirio.

    Juiz 1: Vai vendo a tica do profissional, ve-

    rificando se ele correto...

    Juiz 1: Ns tiramos a burocracia excessiva

    do inqurito com uma simples medida.

    Moderador 1: quase que um distancia-

    mento mesmo n, do juiz...

    Juiz 3: Porque no cabe, no compete ao

    juiz fazer inqurito. Isso funo do MP.

    Juiz 4: [...] Mas quem viveu a vida intei-

    ra em Braslia, e mora aqui, estudou, fez

    faculdade aqui, estudou pra concurso... a

    gente acaba conhecendo os promotores que

    trabalham com a gente h muitos anos,

    muitas vezes de poca de faculdade, amiza-

    de de, pra concurso, a acabou de um passar

    pra promotor, o outro pra juiz, e trabalhan-

    do juntos hoje. Ento tem isso tambm.

    Braslia tem essa caracterstica.

    A sintonia entre magistrados e promotores no aparece com os delegados de polcia. Ao contrrio, nos relatos do trabalho de campo, o magistrado, no raramente, apoia-se no crit-rio do promotor de justia para avaliar as me-didas cautelares. H uma certa desconfiana no trabalho da polcia. O promotor de justia atuaria como mediador principal. As represen-taes sociais sugerem o papel relevante das interaes organizacionais para a comunica-o das distintas organizaes do subsistema jurdico-penal:

    Juiz 1: [...] Quando eles tm uma investiga-

    o grande, que o inqurito t tramitando l

    e eles vo deflagrar depois de escuta telefni-

    ca, vo deflagrar uma operao grande, eles

    vm ao meu gabinete, junto com o promo-

    tor. O promotor normalmente fala olha, eu

    conheo o delegado, pode confiar, e a so

    feitas vrias operaes nesse sentido, priso,

    busca e apreenso...

    A organizao burocrtica e a profissiona-lizao das carreiras jurdicas configuram pro-cessos funcionais para a autopoiese do sistema jurdico (LUHMANN, 2005a, p. 359 et seq.). No Brasil, as pesquisas com profisses jurdicas sugerem tendncia de insulamento em relao ao mundo da poltica. O ethos profissional re-mete a dinmicas prprias nas organizaes (BONELLI, 2002, 2003a, 2003b; MACHA-DO, 2011).

    A ausncia de garantias para a atuao da polcia um dos aspectos do modelo critica-do por promotores, juzes e at mesmo pelos delegados de polcia (MACHADO, 2007a; SADEK, 2003). Nos relatos de magistrados e promotores de justia, o MP, exatamente por

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    dispor das mesmas garantias constitucionais do magistrado, teria, supostamente, mais con-dies para dirigir a investigao.

    As interferncias polticas surgem como dficits de insulamento organizacional e pro-fissional. Se a Polcia Civil uma organizao que deveria atuar funcionalmente a partir da codificao jurdica, as irritaes muitas vezes bloqueiam o fechamento operacional, poten-cializando a abertura cognitiva. Em contrapar-tida, a polcia parece representar caso proto-tpico de organizao polifnica, programada pela codificao jurdica e poltica. Por um lado, integra as polticas de segurana pblica do Estado; por outro, a investigao conduzida est a servio de outras organizaes do sub-sistema jurdico-penal (ANDERSEN, 2003).

    Evidncias sugerem que essa interpretao vivel, e reiterada nas representaes sociais:

    Juiz 1: [...] O delegado de polcia srio, ele

    perseguido. Eu j vi muito delegado de po-

    lcia fazendo investiga... ele no tem inamo-

    vibilidade. Se ele t incomodando o poder

    poltico ali...

    Juiz 4: Tiram ele dali, manda ele l...

    Juiz 1: Ligam pro governador, e transferem

    ele pra grande So Paulo... quem tem a ga-

    rantia como o juiz? O promotor. Por isso

    que eu acho que a figura do delegado tem

    que desaparecer! E deixar na mo do Minis-

    trio Pblico.

    Juiz 3: Eu acho que a segunda opo sua

    melhor que a primeira. [...]

    Juiz 1: isso que me incomoda... os dele-

    gados ficam como figuras que sobram nisso

    tudo, porque o importante o promotor e

    o chefe de investigao. O delegado, um ou

    outro que realmente atua, e voc quando

    ouve eles, em juzo, voc percebe que ele no

    t por dentro daquilo.

    As representaes sociais sugerem intera-es que se aproximam da tipologia proposta por Seidl (2005, p. 148-150). Por um lado, as relaes entre agentes de polcia e delegados configuram interaes decisrias. Por outro lado, as interaes entre agentes/delegados e promotores/magistrados so preparatrias para as decises organizacionais. Em algumas situaes, os relatos sugerem que as intera-es informais entre os membros das distintas organizaes envolvidas no inqurito poli-cial so relevantes para a tomada de decises (SEIDL, 2005, p. 148-150).

    A diviso do trabalho policial civil: imagens e construes internas

    Nos relatos dos agentes de polcia, o papel do delegado no modelo brasileiro vincula-se s finalidades do inqurito policial, teleologia da investigao: a produo da verdade, a ver-dade policial, na anlise de Lima (2003). Nas imagens sugeridas nas representaes sociais encontram-se pistas sobre as interaes organi-zacionais e premissas decisrias da organizao policial. Os relatos sugerem a existncia de de-legados operacionais e cartorrios.

    O delegado operacional representado como figura proativa, comprometida com os saberes policiais e a racionalidade instrumen-tal do inqurito policial: a investigao. J o delegado cartorrio descrito na tipologia dos agentes como burocrata, muitas vezes perdi-do na teia construda de atos oficiais, forma-lizao de termos e procedimentos, com a

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    pretenso de conferir carter para-judicial ao inqurito policial. Atua como um resqucio formalista que remete ao modelo anterior, em que a investigao era conduzida por um ma-gistrado, que acumulava funes que apenas ao longo da histria foram repartidas a distin-tos funcionrios do Estado.

    Na avaliao dos agentes, o delegado, ges-tor da Delegacia de Polcia, deveria providen-ciar as condies materiais e humanas para que o agente investigador, o profissional da inves-tigao na fala dos agentes, pudesse de fato de-sempenhar a sua funo, a verdadeira razo de ser do inqurito policial.

    A leitura sobre o papel do delegado de pol-cia surge nos relatos sobre a atividade diria na delegacia. A formao jurdica no desprezada. Ao contrrio, teria funo importante: atender demandas da investigao segundo a lgica do Estado de Direito. Os agentes relatam a relevn-cia da interao com membros de outras organi-zaes. Durante a investigao, muitas vezes, h necessidade de medidas cautelares que depen-dem de autorizao judicial, o que demanda in-terveno do delegado de polcia, circunstncia que valorizaria a formao jurdica desse profis-sional. No raramente faz-se necessria a intera-o com promotores e magistrados, papel que os agentes assumiriam nas rotinas da delegacia:

    Agente 2: , eu acho que o delegado ele exer-

    ce um papel fundamental na delegacia, ele,

    assim, n, minha opinio, o delegado tem

    que atuar junto com as sesses... [...]

    Agente 2: Eu conheo delegados que atu-

    am realmente junto com as sesses. [...]

    Agente 1: Que a gente chama delegados

    operacionais.

    Agente 2: Ento, por exemplo, o chefe de

    sesso, ele vai l, conversa, o delegado, dou-

    tor , olha, to precisando que o senhor faa

    uma requisio a de uma escuta telefnica,

    o caso esse, o delegado t ali, interagindo,

    sabe o caso, ento voc tem, vamos dizer as-

    sim, uma equipe coesa, n, onde agentes e

    delegados trabalham, o delegado trabalha na

    investigao, ele no s disfara, n [...]

    Agente 4 : [...] Quem faz investigao a

    gente [...], eu no t dizendo que o delegado

    no possa participar, o MP tem at brigado

    pra poder ter esse direito tambm, creia-se

    at que vai conseguir [...]. Se o agente in-

    vestigador precisa duma viatura, o chefe tem

    que correr atrs, tem que tentar conseguir.

    Os agentes de polcia se ressentem do dis-tanciamento com os delegados. A hierarquia no discutida, inclusive ressaltada como importante para a corporao; mas tambm revela certo distanciamento. As barreiras simblicas construdas pela distribuio de cargos segundo a aproximao com o mun-do do direito marcariam a diferena para o ethos policial.

    Agente 2: Ento a gente v, s vezes, v um

    agente que tem, , vou at usar a palavra

    medo, mas, , receio de chegar no delega-

    do, pedir isso e achar que ele vai interpretar

    de uma outra maneira que no...

    Agente 1: Tem delegado tambm que j

    chega e fala no quero agente na minha

    sala. [...]

    Agente 1: Oh, na verdade, o delegado, ele

    se sente o rei.

    Entre os agentes de polcia predomina a viso que valoriza a figura descrita (conceito

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    nativo) como delegado operacional. A defini-o associa-se sintonia com os objetivos da investigao, com a atividade-fim, a razo de ser do inqurito policial. O delegado cartor-rio aparece muitas vezes, na fala dos agentes, como um antagonista, no um parceiro.

    Agente 1: Na minha opinio, eu acho que to-

    dos os delegados, eu, na minha opinio, acho

    que todos os delegados deveriam ser opera-

    cional sim, entendeu? Porque, porque tem

    situaes que agente t na rua e fica em d-

    vida, vamo entrar, vamo num vamo, quando

    o delegado operacional ele t ele fala assim,

    vamos e seja o que Deus quiser, eu arco com

    a consequncia, voc entendeu? [...]

    Os delegados operacionais seriam raros, na viso dos agentes de polcia. A formao profissional focaria trabalhos burocrticos do inqurito, fazendo com que ele tivesse pouco domnio das tcnicas de investigao, do know how acumulado na rua, o saber dos tiras.

    Agente 2: Dentre os delegados, voc con-

    ta poucos operacionais, poucos delegados

    operacionais.

    Agente 3: So raros, mas justificado porque

    o trabalho dele despachar inqurito, ficar

    impondo inqurito, ele no tem uma expe-

    rincia de rua, de investigao. Ele precisa

    de inqurito, de presidir um inqurito. Ele

    quando vai pra rua, ele exercendo sua auto-

    ridade, quer planejar uma coisa que ele des-

    conhece, a ele fica [...], e ele nem planeja e

    atrapalha todo o servio.

    A formao jurdica do delegado de polcia no , contudo, objeto de crticas unnimes entre os agentes. Aquele aparece como primei-ro filtro (ou primeiro filtro jurdico). Nas per-

    cepes dos agentes de polcia, a proximidade excessiva contaminaria, de alguma forma, o filtro jurdico da investigao. O envolvimen-to no seria totalmente salutar e impediria a correo de eventuais equvocos. O saber dos tiras, materializado no inqurito policial deve ser traduzida codificao jurdica para que o trabalho possa ter um prosseguimento (met-fora do basto).

    Agente 1: Mas eu acho que o delegado que fica

    na delegacia ele t se tornando um defensor

    pblico, entendeu? Por exemplo, voc chega

    com um flagrante e o delegado chega e ele t

    to processual que ele fica assim: Ah a juris-

    prudncia tal, a jurisprudncia tal, no, ento

    isso no flagrante! Ento leva embora que

    isso no flagrante. Ento, ou seja, a funo

    de delegacia prender... ele, num t, t indo na

    funo de defensor pblico. Ele no t mais

    prendendo, entendeu? Esses delegados que to

    s em gabinete. Ele coloca tanto empecilho no

    flagrante que ele comea nessa jurisprudn-

    cia tal, nessa jurisprudncia tal, a a gente fala

    doutor, a gente num tem tempo pra jurispru-

    dncia no. Ento, isso que a gente fala pro

    doutor, entendeu. A gente fala doutor, a gente

    num tem que ficar discutindo jurisprudncia

    no, sua funo prender, a gente tem que

    prender. Quem vai soltar juiz se ele quiser l

    na frente. Vamos prender, vamos fazer o fla-

    grante, ento o operacional diferente.

    Entre os agentes de polcia, se o magistrado preside a audincia (o processo penal), o pro-motor presidiria a denncia, o delegado dirigi-ria o inqurito policial e o agente seria o verda-deiro chefe da investigao. A participao efe-tiva do delegado, rotulado como operacional, daria mais credibilidade investigao, relata

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    um dos entrevistados. Porm, a proximidade retiraria a capacidade de anlise do delegado, pois este estaria tambm envolvido em eventu-ais equvocos. Porm, defende-se tambm que o envolvimento do promotor de justia ajuda-ria para que este compreendesse mais da din-mica da investigao. Alm disso, daria mais respaldo s aes da polcia.

    Os agentes de polcia se ressentem com o fato de que a direo da carreira e o pla-nejamento das investigaes estejam sob o comando de profissionais sem formao na rua, na investigao direta dos fatos. Alguns dos relatos surgem marcados por relativo de-snimo com a carreira. Cada vez mais jovens entrariam para a polcia sem um compromis-so de longo prazo. O objetivo seria buscar ou-tro concurso pblico. A unificao da carreira de agentes e de delegados parece uma opo que poderia ajudar para o aprimoramento das investigaes no Brasil. A polcia norte--americana corresponderia a um modelo a ser pensado para o Brasil, por contemplar a evo-luo na carreira, e todos teriam esta experi-ncia com o que definido como razo de ser da investigao policial. A unificao, por sua vez, estimularia o perfil operacional, descrito e idealizado como delegado comprometido com a investigao policial. Um dos relatos recorda o projeto de mbito federal que colo-ca o assunto em discusso.

    Agente 2: Pode ter havido a carreira nica por-

    que hoje quem est, quem est dirigindo a po-

    lcia e planejando as operaes so pessoas que

    no passaram pela rua, como que voc passa,

    no passa pela rua, voc no investiga, voc

    no faz flagrante, voc vai dirigir, operaciona-

    lizar, eu acho um erro que, que essa estrutura

    um erro. Essa estrutura um erro, agora pode-

    ramos citar alguns exemplos, por exemplo, a

    polcia americana acho que seria um exemplo,

    a pessoa comea na rua, e como que ela ai ter

    autoridade pra falar... vai l e prende essa pessoa

    que ela t em flagrante, como que ele vai ter

    essa autoridade de experincia se ela num pas-

    sou por isso? Eu acho que a polcia americana

    seria um exemplo.

    Os relatos dos agentes de polcia sugerem que o MP deveria investigar. Aparecem as expe-rincias em que o MP teria construdo relaes com a Polcia Militar para cumprir diligncias, as quais seriam atribuio da Polcia Civil. Ou-tro relato, em sintonia com as percepes dos delegados, indica que o MP no quer investigar. O desejo apenas por holofotes, em aluso exposio na mdia de alguns poucos casos.

    CONCLUSES

    Neste artigo, privilegiou-se a anlise das representaes sociais produzidas por meio de sistemas de interao (Grupos Focais). Na medida em que conformam a cultura organi-zacional, os discursos analisados so relevantes para a compreenso das premissas decisrias e forma de comunicao das organizaes.

    Entre os magistrados, predomina viso crti-ca sobre a atuao da polcia. Embora no haja voz unnime, chega-se a propor a abolio da figura do delegado de polcia, papel que deveria ser ocupado pelo promotor de justia. A pro-va tcnica valorizada como elemento de pro-va fundamental. O magistrado deve-se manter afastado do contedo do inqurito policial, pa-dro de comportamento que descrito como tendncia contempornea das reformas pro-

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    cessuais penais. Valoriza-se a anlise inicial do promotor de justia em relao ao resultado do inqurito policial. Em regra, no h divergn-cia quanto aos arquivamentos requeridos pelos promotores. Analisando sob o enfoque sistmi-co, a deciso do MP reduz complexidade para decises de outra organizao.

    Entre os promotores de justia, predo-mina o ceticismo em relao ao papel cum-prido pelo delegado de polcia. O relatrio final, pea em que culmina a investigao, descrito como documento que no ajuda e muitas vezes atrapalha o promotor. A an-lise jurdica e o enquadramento do suposto tipo penal gerariam dificuldades dificilmen-te contornveis durante a instruo. Os pro-motores de justia reivindicam atuao mais relevante na fase do inqurito e defendem que apenas assim os delitos no tradicionais, como os crimes de colarinho branco pode-riam ser devidamente investigados.

    Em um ponto, a fala dos promotores encon-tra eco no discurso dos juzes: a falta de autono-mia da polcia impediria investigaes sensveis para o poder local. As interferncias polticas enfraqueceriam a atuao isenta da polcia.

    O discurso dos delegados de polcia valori-za o papel de um profissional da rea jurdica que conduz o inqurito policial. A referida ad-vogadizao construda internamente como elemento peculiar do modelo brasileiro que no deveria ser modificado. Ao contrrio, seria

    a tradio da investigao no Brasil. As crticas so dirigidas fundamentalmente aos promoto-res de justia, que pouco ou nada compreende-riam das investigaes. O saber especializado do delegados de polcia estaria exatamente na conexo entre a expertise policial e a formao tcnica do jurista. A profisso constituiria, assim, uma forma de acoplamento estrutural entre o mundo policial e o mundo do direito.

    Entre os agentes de polcia predomina o discurso de autovalorizao do trabalho poli-cial. A funo precpua do inqurito, a investi-gao, configuraria um campo complexo para quem domina o saber dos tiras. O trabalho do agente apareceria na denncia do promo-tor, na imagem retrica do espelho da denn-cia. Os relatrios detalhados dos agentes de Polcia forneceriam os subsdios fundamentais para a ao penal. Alm disso, na prtica, os agentes cumpririam o papel de convencimento do promotor e juiz da linha da investigao, bem como da necessidade de medidas cautela-res. A imagem dos delegados de polcia aparece associada razo de existir do inqurito: in-vestigao. O delegado operacional descrito como profissional dedicado investigao. An-tes de jurista, fala como policial, que apoia ma-terial e juridicamente a apurao dos fatos. O delegado cartorial aparece como profissional que se perderia nos meandros da burocracia, orientado pela codificao jurdica. No af de conferir juridicidade aos atos de investigao, perderia o foco principal da atividade da Pol-cia Judiciria12.

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    1. .Este.artigo.constitui.parte.da.pesquisa.desenvolvida.como.visiting.scholar.nas.universidades.Fordham.e.John.Jay.of.Criminal.Justice.

    (Nova.Iorque).em.maio.e.junho.de.2011,.bem.como.integra.pesquisa.ps-doutoral.em.Sociologia.pela.Universidade.de.Braslia..

    Agradeo.os.comentrios.dos.pesquisadores.e.estudantes.do.Grupo.de.Pesquisa.Poltica.Criminal.(Uniceub),.com.os.quais.tive.a.

    oportunidade.de.debater.uma.verso.parcial.deste.texto..Insere-se.na.linha.de.pesquisa.A.diferenciao.do.subsistema.jurdico-

    penal..Uma.verso.parcial.deste.artigo.foi.publicada.pela.Revista.Brasileira.de.Cincias.Criminais.e.pela.Editora.Marcial.Pons.

    (MACHADO,.2014).

    2. Entre.2010.e.2011,.tive.a.oportunidade.de.participar.da.organizao.dos.nmeros.1.e.2.da.Revista.do.Conselho.Nacional.do.

    Ministrio.Pblico,.material.que.analisa.em.profundidade.os.temas.referidos..O.primeiro.nmero.foi.dedicado.aos.modelos.de.MP,.

    com.experincias.na.Europa.e.Amrica.Latina..O.segundo.nmero.focalizou.as.relaes.entre.o.MP.e.as.polcias.na.Europa.e.nos.

    Estados.Unidos.(MACHADO;.GOMES.JNIOR,.2011a;.MACHADO;.GOMES.JNIOR,.2011b)...

    3.. .A.anlise.da.histria.do.MP.brasileiro.sinaliza.tambm.aproximao.do.Judicirio.(MACHADO,.2007a,.2007b)..Para.uma.reviso,.ver.

    Santos.(2008).

    4.. .Certamente,..vasta.a.literatura.sobre.o.tema..De.forma.mais.ampla,.as.representaes..podem.ser.consideradas.imagens,.

    smbolos.e.expresses.decorrentes.das.interaes.que.ocorrem.entre.o.indivduo.e.a.sociedade,.com.capacidade.criadora.de.uma.

    dada.realidade,.dirigindo.prticas.sociais.para.uma.correspondente.realidade.(JOVCHELOVITCH,.2004).

    5.. .Luhmann.critica.a.viso.predominante.sobre.a.organizao.e.decises.na.dcada.de.1970..No.modelo.criticado,.as.decises.

    surgem.como.escolha.entre.alternativas..Critica-se.tambm.o.objeto.de.pesquisa,.centrado.na.disjuno.entre.o.modelo.formal.e.o.

    modelo.informal.(patologias.da.organizao).(LUHMANN,.1997,.p..3-4).

    6.. .A.concepo.clssica.de.complexidade.equivalia.a.dificuldade.para.decidir..Para.Luhmann,.a.complexidade.nos.sistemas.

    organizacionais.surge.como.relao.entre.decises..Estas.funcionam.como.premissas.decisrias.para.outras.decises.(LUHMANN,.

    1997,.p..21).

    7.. .Distinguem-se.quatro.formas.de.diferenciao:.segmentao,.centro/periferia,.estratificao.e.diferenciao.funcional.(sculo.XVIII).

    (LUHMANN,.1990,.2007).

    8.. .Interao.usa.a.distino.interao/entorno.na.forma.de.papis,.como.programas.(SEIDL,.2005,.p..151).

    9.. .Organizao.fornece.moldura.para.interao..Normalmente.os.participantes.da.interao.s.se.reconhecem.como.membros.da.

    organizao.(SEIDL,.2005).

    10.. .O.pesquisador.acompanhou.alguns.dos.grupos.focais.

    11.. Alude-se.aqui..interessante.anlise.elaborada.em.etnografia.sobre.a.polcia.mexicana.(AZAOLA.GARRIDO;.RUIZ.TORRES,.2009).

    12.. .Agradecimentos.a.Arthur.Costa.pelo.acesso..ntegra.do.material.da.pesquisa,.especialmente.a.documentao.referente.aos.

    grupos.focais.

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