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Ricardo Jorge Professor

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Ricardo JorgeProfessor

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Revist~ntrevista

Entrevista com Ricardo Jorge, dia 27 de setembro de 2016.

Maurício - Ricardo, no nosso processode produção, fazendo pré-entrevista comocê, nós tivemos a impressão de que você

estava meio receoso de fazer esta entrevistara revista. Procede?

Ricardo - De certo modo, sim. (risos)ão, é porque é meio estranho você ... Sei

a, passa 20 anos da sua vida falando pros3 unos como é a prática jornalística, falando

uestões ligadas à entrevista, como você secomportar diante das fontes, e, de repen-te, você se vê do outro lado. É meio ...

ão é usual, não é comum. A gente fica umouco temerário, né? Não dá pra pensar em

:> mos de: "Ah, é só um exercício da cadei-a do Ronaldinho" (refere-se ao professor=onaldo Salgado); não é, é uma atividade

e tem uma história dentro da cidade, den-do curso, é muita responsabilidade, nãoEntão, todas as bobagens que eu disser

_ .li vão ser repercutidas, comparadas comas pessoas que falaram outras bes-

':= 'as, ou não tão besteiras, né? E tem umeso considerável.

Ingrid - Você nasceu em São Paulo, e:= o pra cá na adolescência ...

Ricardo - Me vieram (risos)Ingrid - É (risos). Qual é a sua primeirabrança de São Paulo?

Ricardo - Primeira lembrança de São=::. o, você quer dizer a mais antiga?

ngrid - A mais antiga.Ricardo - Era a casa em que eu morava

::em algum canto entre a Mooca, Vila Pru-'" te (bairros da zona Leste e Sul da cidade

São Paulo, respectivamente), que erame as casas à moda antiga, né? Garagem,

:asa no fundo, corredor do lado, área de:= iço, quintal lá atrás ... Lembro de muito- na minha casa, que o meu pai (Valdo-~ Lucas da Silva) sempre comprou muito

• então sempre teve estantes acompa--;;: do, e... Era uma rua pacata, tranquila ...

=:;: embrança mais antiga que tenho. Não.=- a partir de que idade, enfim, essas coi-as a gente não tem como recordar. Mas é a:: antiga, eu acho. Não sei.

afael - Você tinha liberdade de brincara... Como era a questão da violênciaoca?

'cardo - Cara, quando você nasce e- e em São Paulo, parece que já vem

- o de um pacote, um kit, o discurso da

violência. Cresci ouvindo casos, do cara damala preta (refere-se a um crime praticadocontra a esposa por um imigrante italianoem 7928), outros maníacos e coisas do gê-nero. Depois eu morei num prédio na VilaMariana (bairro da zona Sul de São Paulo),mudei pra lá em 1975, a rua só tinha doisquarteirões, passava eventualmente umônibus, uma linha de ônibus, e tinha umdescampado enorme do outro lado. Eu nãoparava em casa, descia todo dia com osamigos, quando fazia ou não a lição de casa,ia brincar, garagem, tocar a campainha dosvizinhos, essas coisas bem básicas, e muitagente ia pra esse descampado da rua, e vivialargado de certo modo, mesmo sendo emSão Paulo, mesmo já tendo essa ideia, essediscurso de "A cidade é perigosa", não-sei-quê ... Lógico que já faz 30, 40 anos, muitacoisa muda, né? Quando eu passei na rua,há uns dois, três anos, indo pra São Paulo,não tinha mais descampado, era um montede prédios, tinha uma outra estação do me-trô bem perto, tinha engarrafamento na rua,coisa assim ...

Alana - Ricardo, a gente leu no materialde produção que você estudou no ColégioRoldão (Escola Estadual Professor RoldãoLopes de Barros). E você fez uma brincadei-ra dizendo que o ditado do colégio era "En-tra burro e sai ladrão". E eu quero saber seisso era só uma brincadeira que faziam ouse realmente havia casos de alunos que en-traram pra criminalidade, e se você chegoua presenciar isso.

Ricardo - Eu só descobri isso depois,quando entrei no Orkut, alguns anos atrás,procurando, comunidades: "Será que euencontro alguém dos meus tempos de colé-gio?" No Orkut tinha a página dos ex-alunosda Escola Estadual Professor Roldão Lopesde Barros, os famosos alunos da escola "En-tra burro e sai ladrão". Na verdade, comoera uma escola do Estado, você tinha umadiversidade de pessoas muito grande. Vocêtinha o filho do cara que trabalhava em no-vela do SBT, tinha o filho do cara que eracomentarista de futebol na Rádio Globo, ti-nha o filho da empregada doméstica, vocêtinha uma heterogeneidade de personagensbastante considerável dentro da escola, nãoé como hoje. A gente vê as escolas privadasonde as minhas filhas estudam, onde é todo

R CARDO JO GE 9

Durante o processode escolha dos entrevis-tados, o nome do profes-sor Ricardo Jorge foi oprimeiro a completar oscinco votos necessáriospara ser escolhido.

O nome de RicardoJorge foi sugerido por umdos membros da equipede produção, Ingrid Pe-drosa. Esta foi a única suogestão dela.

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Ingrid sugeriu o nomede Ricardo em parte porquerer contar a históriada Oficina de Quadrinhosdepois da aposentadoriado professor Geraldo Je-suíno.

Como Ingrid sugeriuo nome de Ricardo, foiescolha clara para seruma das produtoras. Osegundo produtor, Mau-rício Xavier, também foifácil de decidir.

mundo branco, lindo, vai de carro à escola,volta de carro pra casa ... Então, a escola pú-blica na época era realmente uma espéciede microcosmos da sociedade. Você con-vivia com o cara que tinha tênis da últimamoda - "Ah, papai trouxe da Galeria Pajéda 25 de Março, ou lá da ponte na fronteiracom o Paraguai, em Foz do Iguaçu" - e tinhao cara filho de empregada que usava o ve-lho Conga, o velho Bamba, nunca ia sabero que que era um Adidas. E você convivianormalmente, dentro daqueles padrões doque que é um relacionamento com crian-ça... Bullying ainda não existia como con-ceito mas existia como prática, obviamente,né? Não me lembro de casos assim ... Lógi-co que por ser uma escola estadual, tinhatodo tipo de gente, né? Não vou apontarninguém e dizer: "Olha, alguém saiu daquiladrão efetivamente, ou continuou só burromesmo", tá? (risos)

Karine - Além dessa diferença comporta-mental, quando você saiu do colégio Roldãopra cá (em Fortaleza), pro colégio Santo Iná-cio, o ensino mesmo tinha muita diferença?

Ricardo - Não. Quando eu cheguei aqui,muita gente dizia: "Ai, tadinho, veio de es-cola pública, vai sofrer, não sei que, o co-légio Santo Inácio ..." Na época o SantoInácio era como é mais ou menos hoje oSanta Cecília (colégio de classe média-alta,localizado no bairro Aldeota, pertencente àcongregação belga Instituto das Damas daInstrução Cristã), de certo modo. Tinha umpadrão considerado dentro da cidade, né?Não vi grandes diferenças. Nos anos 70 e80, o ensino, pelo menos lá em São Paulo,eu não senti grandes diferenças em relaçãoao Santo Inácio aqui. Não sei em relaçãoao ensino público aqui de Fortaleza. O meuchoque maior com o Santo Inácio não foi doponto de vista de conteúdo de matérias, de

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disciplinas, foi comportamental mesmo, né?Lá na escola em São Paulo eu convivia comvárias tribos, inclusive algumas pessoasadeptas do movimento punk. Lá pra 81, 82,começou a ficar legal em São Paulo riscar acalça, botar nome de banda, rasgar, dese-nhar caveira, fazer qualquer coisa, e aí eu:"Legal". Legal que você lavava a calça, saíatoda a tinta e depois começava a desenharde novo na calça. Você reciclava a calça efazia com ela várias estampas diferentes.Quando eu cheguei aqui, que tentei fazer amesma coisa no Santo Inácio, me senti umET: "0 que esse cara tá fazendo aqui comessas calças rasgadas?" Então, eu sei quehouve um estranhamento duplo, as pessoasnão entendiam aquele cara com um sotaquemeio estranho, com aquela calça meio es-tranha, e eu também não entendia por queas pessoas olhavam pra mim, né? Porqueera tudo muito novo pros dois lados. Masdepois as coisas foram se aquietando, volteia usar calças não rasgadas e não riscadas,pro bem de todo mundo.

Amanda - A gente leu no material de pro-dução que, quando entrou no Santo Ináciovocê não era católico praticante, não ia pramissa, não sabia nem rezar direito ...

Ricardo - Sempre rezei de carona. Aspessoas rezam e eu vou de carona. (risos)

Amanda - Com esse pouco contato coma Igreja Católica, como foi estudar num colé-gio que é todo voltado pro catolicismo?

Ricardo - Tinha uma coisa legal no San-to Inácio que era a vibe jesuíta. O pensar omundo do ponto de vista jesuíta é um poucomais interessante do que as escolas de freirae coisa do gênero, né? Mas eu sempre tive,desde São Paulo, um bode muito grandecom a coisa da religião, acho que eu fui malorientado, não sei. Minha família nunca foide frequentar a igreja, pra começo de con-versa. Minha mãe é católica não praticante,e quando eu tava tentando fazer primeiracomunhão em São Paulo, lá pros lados doCambuci, Jardim da Glória (bairros do Cen-tro de São Paulo), lá na igreja, eu vi alguémfalando em, sei lá, carneiros voando, acheimuito psicodélico aquilo ali. "Mãe, me tira,pelo amor de Deus, tem um homem malucofalando ali que carneiros voam". Não sei seeu era muito tonto, não entendi a metáfo-ra. E ela: "Não, se você não quer ir, não vá,tudo bem".

Então, eu cheguei ao Santo Inácio semter feito primeira comunhão, sem saber re-zar, sem ser católico praticante, ficava aque-la coisa meio estranha. Em 1983, o PapaJoão Paulo 11 estava muito doente, e o co-ordenador da sala: "Olha, vamos rezar aquipela saúde do papa. Vamos começar com

esse rapazinho aqui que chegou agora, va-mos rezar". Eu: "Olha ... Eu não sei rezar"."Ô, coitado, não teve oportunidade, né? De-pois a gente resolve isso" Como depois agente resolve isso? Eu fiquei meio assusta-do. A escola arranjou um padre lá pra con-versar comigo, passou dois anos tentandome convencer como era bom fazer a primei-ra comunhão, seguir os preceitos, não seiquê. "Não, mas não rola ... Quando eu quisereu vou, mas não agora". Assim, conversa-va na sala dele, ficava de boa, era até bomporque não estava assistindo aula, estavaconversando com ele, gastando o tempo deum modo diferente, era até interessante, agente discutia, filosofava, mas ele não con-seguiu me convencer. Não sei se ele ficouchateado ou não.

Então, o catolicismo nunca foi algo quedeterminou minhas ações, meus pensamen-tos, minhas noções sobre o mundo, nada,sabe? O que não quer dizer também queeu seja um ateu fervoroso, porque tambémnão me considero ateu. Eu não tenho essetipo de visão de ... Ser tão materialista as-sim. Talvez o mais correto seria dizer assim:eu tenho muitos motivos pra não crer, mastambém não tenho motivos muitos pra crer.Então, na dúvida, deixa ir levando, vamosver o que acontece. Ainda que eu ache quea religião seja algo fundamental na vida daspessoas, tá? E respeito quem tem seus cre-dos, desde que as pessoas também respei-tem o meu credo, minha falta de credo, ouo meu meio-credo, ou o que quer que sejaefetivamente. Mas não, o Santo Inácio nãodeixou ... Se deixou alguma marca, foi prame ressaltar a convicção de que eu não es-tava preparado pra uma vida religiosa, nemsei se eu estou efetivamente. Apesar de terduas filhas estudando no Santa Cecília.

Mauricio - Ricardo, você fez um semes-tre de Letras, acabou entrando no Jornalis-mo no meio do ano. Como foi esse proces-so de decisão pelo curso de Jornalismo? Oque o motivou a fazê-Io?

Ricardo - Foi o mais troncho possí-vel, né? Ainda que eu me lembre que ain-da em São Paulo, na época do Roldão, eutive minha primeira iniciação jornalística,por assim dizer. Lá por 1977, 78, não sei,o professor pediu pra gente entrevistar:"Entreviste alguém que você queira entre-vistar, famoso". Entrevistar alguém famosoem São Paulo não é, relativamente, tão difí-cil. No supermercado que tinha lá perto decasa, a Gretchen (cantora brasileira) ia lá fa-zer compras, no Barateiro. "Ai, a Gretchen".Quando a bunda tava durinha ainda, né? Eeu já era corintiano: "Ah, eu vou entrevistaralguém lá no Corinthians. Mãe! Eu vou lá no

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Ingrid e Maurício sãonamorados desde o pri-meiro semestre do curso,e fazem juntos quase to-dos os trabalhos que po-dem ser feitos juntos.

Os pais de Maurício,Ana Maria e José Mau-rício, se conheceram nomesmo curso de Jornalis-mo, e fizeram, junto coma turma deles, a RevistaEntrevista nº4.

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A mãe de Maurícioera colega de escola deRicardo no Colégio SantoInácio, mas eles não an-davam com as mesmaspessoas e não têm muitaslembranças um do outro.

Apenas dois dos dezentrevistadores eramnascidos quando a Revis-ta Entrevista foi iniciada.Rafael Queiroz, nascidoem 1991, e Ruth Lene,nascida em 1992.

"Todas as bobagens que eu disser aqui vão serrepercutidas, comparadas com outras pessoas

que falaram outras besteiras, ou não tãobesteiras, né 7"

chato, você ensinar matemática pra quemnão tem nenhum jeito pra matemática émuito chato, cansa, não entra. E, no tercei-ro ano, numa dessas aulas de Redação, oprofessor Edson, que era uma pessoa muitoponderada, muito nobre, por assim dizer,pegou uma redação minha - eu estava qua-se crente que eu ia fazer vestibular pra Ma-temática - disse: "Olha, meu querido, vocêescreve tão bem. Você não acha que de-via fazer Comunicação?" "O senhor acha?""Acho." "Então tá." E fui fazer vestibular praComunicação.

Gostava muito de rádio também ... Crescinão só ouvindo o que era na época a gran-de trinca dos locutores esportivos de rádio,Fiori Gigliotti, Osmar Santos e José Silvério.Nos jogos de botão imaginários você ficavajogando sozinho e ficava imitando cada umdeles, "Ah, você é o Fiori Gigliotti, você é oOsmar Santos, vai lá, garotinho ..." (imitandoOsmar Santos), enfim. E gostava muito deFM também, ouvia muito Rádio Cidade, Jo-vem Pan, na época em que tocavam coisasbem legais, bem mais legais do que o quese toca hoje, bem mais alternativas, de certomodo. E o rádio sempre me fascinou. Tinhauma coisa que eu gostava também era derádio de pilha, dormir com o rádio do ladodo travesseiro, dormir com o rádio ligado ...Ainda quando eu era muito moleque euachava estranho: "Como é que as pessoascabem dentro do rádio?" Não tinha ideia do

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Corinthians!" "Tá, meu filho. Sabe como éque chega?" "Sei". Apesar de a cidade serperigosíssima, fui no ônibus lá pra Penhasozinho, sem ninguém, com o gravador namão. Cheguei ao Parque São Jorge (sededo Sport Clube Corinthians Paulista), "Olha,sou do Colégio Roldão", não sei que lá, eentrevistei na época o Wladimir (WladimirRodrigues dos Santos, lateral esquerdo doCorinthians entre 1972 e 1985). Três, qua-tro perguntas tronchas, sei que eu poderiater entrevistado muito mais, mas, enfim. Elechegou na grade ali no campo, respondeu,foi legal. Entrevistei um ator que morava noprédio que eu morava, o qual trabalhava noSBT. Enfim, e foi uma das minhas únicasexperiências como "jornalista", por assimdizer, quando eu era moleque. Mas eu gos-tava muito de matemática e tinha uma facili-dade pra matemática. Um dos meus primei-ros ganha-pão foi como professor particularde matemática ...

Ingrid - Isso ainda na adolescência?Ricardo - É, no Santo Inácio, ali com 15,

16 anos. Ah, você dava meia hora, uma horade aula estudando sistema de equação, ine-quação, coisas que são bestas na matemáti-ca, mas sempre tem um tonto que não sabe,e as pessoas pagavam pra dizer o que vocêjá sabia pra quem não sabia. Mas a própriaescola em algum momento (propôs:) "Olha,você não quer, temos um aluno aqui comproblema, a gente lhe paga". Mas é muito

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som se propagando, nada dessas coisas. Asrianças geralmente queriam saber como é

que as pessoas estavam dentro da TV, euqueria saber como é que as pessoas esta-am dentro do rádio. Como é que cantava,

como é que, enfim, pensava que tinha for-miguinhas, homúnculos, enfim.

Karine - Ricardo, no próprio material deprodução você falou muito dessa importân-cia do rádio, que você gostava muito de ou-vir. Você tem uma mania de imitação muitogrande. Isso é do rádio, é desse hábito deouvir rádio?

Ricardo - De certo modo, sim. Nos anos70, a Jovem Pan tinha aquele esquema de:"Ah, vamos transmitir futebol na FM en-quanto passa a Voz do Brasil, o programado MOBRAL" (Movimento Brasileiro de Al-fabetização), que tinha, então de sete às20h30min porque era determinação do go-verno, e a AM tinha de passar o programado MOBRAL, que era um programa de al-fabetização, de escolarização pras pessoas- você não consegue imaginar como é queera, já tinha esquecido disso também. E aFM, como era a rádio cool, com um públi-co elevado, de posses, de bom gosto, nãoprecisava transmitir o MOBRAL. A AM erapra pobre, a FM era pra rico. E a Jovem Pancomeçava a transmitir o futebol na FM, de-pois ia pra AM, depois do futebol tinha umprograma de humorismo, os humoristasSangirardi (Estevam Sangirardi, radialista)e outros faziam imitações de personagens,né? Imitavam o são-paulino, o santista, o co-rintiano, o palmeirense. E tinha aquela coisado corintiano "Ôrra, meu! Vou ver jogo doCuríntia lá, meu. Vamo arrebentá!" Tinha osão-paulino, que era uma coisa meio: "Ah,vou ver um jogo do meu São Paulo, só voude carro, sou uma pessoa muito refinada,muito fina", e eu achava legal essa coisas.Faziam radionovela, com os personagens denovela, com o Tarcísio Meira (ator), com ospolíticos, "É, Paulo Maluf, realmente" (imitaa voz de Paulo Maluf, político paulista). Euachava legal: "Cara, isso é muito bacana".Porque o rádio só tem uma matéria-prima

"Você não escolhe oobjeto, o objeto queescolhe você. (li') Dealgum modo aquilo

ali lhe convida, e vocêaceita o convite."

RICARDO JORGE I 13

Nenhum dos produ-tores fez a cadeira de Ri-cardo do sexto semestre,Técnicas de InvestigaçãoJornalística. Os dois fize-ram a cadeira da profes-sora Júlia Miranda (en-trevistada pela revista naedição nº 31). Pesquisaem Comunicação.

Com o nome decidi-do, restava contatar Ri-cardo. Maurício tinha otelefone de Neila Fonte-nele, esposa de Ricardo,de um trabalho antigo,e fez o contato por meiodela.

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Ricardo ficou bemsurpreso ao saber quetinha sido escolhido paraa revista, e disse, sem sa-ber quem tinha sugeridoo nome dele, que "deveser uma pessoa insana".

A produção pensouem falar com as filhas deRicardo, mas achou quepoderia ser uma situaçãodesconfortável para elase não havia tempo sufi-ciente.

pra trabalhar, que é o som, né? E a ideia,depois de descobrir que muitas vezes eramduas ou três pessoas só que faziam váriasvozes, vários personagens, isso é muito le-gaL .. Tanto que eu digo e digo que, se eunão fosse professor, jornalista, eu ia que-rer ser dublador de desenho animado, deanimação. Que eu acho fantástico, quandoa pessoa usa a voz pra criar outro tipo depersonagem. Mas eu não sou ator, não fiztablado na minha adolescência, então nãoposso ser dublador, né? A legislação nãopermite.

Alana - Você falando de som me fez lem-brar que a gente sabe que você tinha umabanda, chamada Inimigos da Vizinhança.

Ricardo - Era pertinente o nome.Alana - E eu quero saber como foi que

essa banda surgiu, a relação que tinha comesse seu gosto pelo som e pelo rádio.

Ricardo - Ela surgiu quando eu entreiaqui em Letras ainda, não foi nem no Jorna-lismo, na Comunicação. Eu cheguei à salade aula, as aulas do (antigo ciclo) básico,algumas delas eram no que hoje é o prédioda Sociologia, o prédio antigamente serviapra algumas disciplinas do básico, a discipli-na de Sociologia inclusive ... Eu olhando as-sim: "Festa estranha, gente esquisita". Todomundo novo, ninguém conhecia ninguém,aquela coisa bem primeiro dia de aula na fa-culdade. Eu peguei um giz e botei lá no can-to da lousa, escrevi o nome do U2 (bandairlandesa de rock). Pouca gente sabia quemera o U2 na época. Um colega meu, que hojeé professor lá da UFRJ (Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro), o Paulo César Castro(disse:) "Cara, você gosta de U2?" "Gosto.""Legal, né?" "LegaL" Depois de um tempo,vai e vem discussão sobre música, vinil vai,vinil vem: "Ricardo, vamos formar uma ban-da?" "Vamos!" "Eu conheço um guitarrista""E eu conheço um baterista". Ele conheciaum guitarrista e eu conhecia um baterista."Ah, vamos juntar e ver o que acontece". Ea gente começou a fazer barulho, pra incô-modo e desespero das vizinhanças.

Alana - A gente tem uma imagem suamuito de transgressor, de subversivo, eupelo menos tenho. Eu quero saber se naépoca da graduação você se envolveu comalgum movimento estudantil.

Ricardo - Não. Não, porque acho que eu,de algum modo, imaginava, mas não sabiaexatamente muito bem, que eu talvez ti-vesse certa simpatia pelo anarquismo, umacoisa meio anárquica. Eu sempre fui meiodescrente dessa coisa de um tipo de orga-nização social ou seja estruturada em parti-dos políticos, ou em grêmios ou chapas praconcorrer ao CA ou ao DA (Centro Acadê-

mico ou Diretório Acadêmico) na faculdade.Tanto que o pessoal sempre chegava: "Oh,colabora com a nossa chapa aqui do DA, doCA, não sei quê, vem cá". E eu: "Não, cara,não rola". Isso numa época em que o cur-so chegou a ter quatro chapas disputando apresidência do DA. Do DA, do CA, sempreconfundo. Então, havia uma efervescênciapolítica nos anos 80 aqui dentro do cursomuito forte. Você tinha realmente aquelacoisa de pessoas que representavam par-tidos políticos, um pessoal mais ligado aoPCB (Partido Comunista Brasileiro), um pes-soal mais ligado ao PT (Partido dos Traba-lhadores), ligado a não sei mais lá o que, umpessoal mais de direita. O curso realmenteera um microcosmo dessas relações políti-co-partidárias da cidade dentro do espaçouniversitário, e isso se repetia nas disputasinclusive no DA e no CA. Mas eu, como sem-pre fui, assim, não sabia, acho que fui des-cobrir depois que era meio anarquista, eusempre fiquei meio à margem e tal. Talvezfosse um modo de ser subversivo, né? "Ah,mas como é que você não entra ..." "Não,cara, não tenho saco pra isso, pelo amor deDeus. Participar de reunião, estatuto, enfim,assembleia, tô fora." Ainda que eu achassebacana a ideia dessa efervescência políticaque se perdeu muito nos últimos anos den-tro da universidade.

Amanda - E o que é que mais te interes-sava dentro do curso?

Ricardo - Nada. Nada, assim, realmen-te. Eu entrei no curso, nunca pensei em serjornalista, pensava em trabalhar com rádio,como eu falei, achava fascinante o mundodo rádio, seja da AM ou da FM. Chegueiem alguns momentos aqui a acompanhar oprograma das Garras da Patrulha, no rádio,quando era na (Rádio) Verdes Mares, quetinha estúdio, as pessoas podiam assistir àgravação, seu Nezinho do Jegue (persona-gem interpretado pelo ator Wilson Aguiar,já falecido, na novela O Bem Amado, da TVGlobo): "Só o burro não toma Castaniodo"(Xarope da empresa Ravick), o (humorista)Tom Cavalcante, enfim, sempre achei fasci-nante. E, de repente, você está num curso,a maior parte dos professores eram jornalis-tas, alguns poucos teóricos, e de jornalismoaprendi lide, sublide, McLuhan (Marshal/McLuhan, pesquisador canadense), Escolade Frankfurt (corrente teórica dos estudosde comunicação de massa), quando eu olha-va assim: "Cara, pra que serve isso mesmo,pelo amor de Deus?" Então, muito poucacoisa me seduzia no curso nos primeirosdois anos. Eu estava fazendo porque, enfim,tinha a cobrança de casa, "Você tem de fa-zer faculdade, você tem de trabalhar, você

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em de não sei quê". Então: "Tá, bora nes-sa . Não sei se eu era muito novo ainda, ou- eu tava no curso errado. O meu interesse

o curso veio ser ressaltado mais a partira metade do curso, da segunda metade do

_ rso. Mas no começo eu era aquele caraa galera mesmo, do fundão, fazia os tra-alhos porque tinha de fazer, não tinha ne-

uma preocupação, nem pensava em serornalista, apesar de estar fazendo o cursoe Jornalismo.

Ingrid - Quando foi que despertou essaontade de ser jornalista e continuar traba-ando nisso?Ricardo - Bom, tem dois momentos que

eu acho que são marcantes dentro da minharajetória no curso. Uma foi dentro de uma

disciplina com o Luis Sérgio (Luis SérgioSantos, professor do curso de Jornalismo daUFC), o Luis Sérgio era professor de teoriano curso, e ele pediu pra gente fazer artigos.Eu não sabia nem o que era artigo, efetiva-mente ... Quer dizer, sabia porque tinha fei-to a cadeira de Pesquisa Bibliográfica coma (professora do curso de Biblioteconomia)Fátima Portei Ia, vamos dar crédito a ela. Eeu tive a chance de fazer sobre imprensaanarquista. E eu fiz esse trabalho com essemeu colega, o Paulo César, e um outro cha-mado Clebernardo, que trabalhava no Bancodo Brasil, na época. A gente acabou fazen-do uma espécie de outro núcleo de amizadeque não era de banda, mas era de trabalho,de bico - vocês devem perguntar isso daquia pouco, provavelmente -, e a gente fez umtrabalho sobre imprensa anarquista do Bra-sil. Eu comecei a achar legal: "Cara, existeo anarquismo, isso aqui se aplica à impren-sa". Você começa a estudar, ver a questãode como os socialistas, os comunistas italia-nos, os franceses, os espanhóis, como elestrazem determinadas matrizes, olhares, evisões de mundo pro Brasil, principalmentepro Sul/Sudeste, e criam as condições nãosó pra ter uma imprensa com viés comu-nista, socialista, mas também anarquista.Fui começar a ler Proudhon (Pierre-JosephProudhon, filósofo anarquista francês), fuiler uns autores anarquistas, fui começandoa achar interessante essa ideia - que eu nãotinha noção muito exata, mas sabia que eracoisa da pesquisa - de: "Cara, um livro puxaum outro, um texto puxa um outro, um ar-tigo puxa um outro, e você começa ...n E foiuma coisa mais ou menos natural, ninguémchegou pra mim e disse: "Olha, cara, vá fa-zer isso aqui", aconteceu, simplesmente.

E achei legal! Depois o Luis Sérgio che-gou pra mim: "Ah, cara, vamos publicaresse seu texto". Eu (disse): "Como publi-car?" "Nós temos uma revista aqui", Revista

do Departamento de Comunicação Sociale Biblioteconomia. "Quero publicar seu ar-tigo". Eu (disse): "Tá, publica". Sempre as-sim muito "Tá", entreguei pra ele o materialdatilografado, depois de algum tempo rece-bi o livro, com o texto lá. "Cara, isso aquié bacana, coisa e tal". Foi aí que, de certomodo, me despertou um pouco a coisa dapesquisa, efetivamente. Porque boa partedo curso, não sei se não incentivou a pes-quisa ou se eu que não encontrei um temaque me (mostrasse:) "Cara, isso aqui é queé o chama", apesar de a música ter feitoisso no começo do curso, mas o curso nãoera de música, era de jornalismo. Com rela-ção ao jornalismo mesmo, é quando vocêvai chegando do sétimo pro oitavo semes-tre, seus pais olham, seus colegas olham,seus professores olham: "Cara, você nãovai trabalhar, não?" Como eu não tinha ne-cessidade de trabalhar, morava na Aldeota(bairro de classes mais abastadas), pessoalachava que era rico, que era o rico da fa-culdade, porque tinha gente que morava noMonte Castelo, no Montese, na Bezerra deMenezes, na Barra do Ceará (bairros maispopulares), não sei o que, eu morava na AI-deota, pensavam "Ah, você é riquinho, né?Não precisa trabalhar, não". Eu, "Cara, nãosei". mas todo mundo começou a pedir pratrabalhar e, bom, aí você começa. Tem decomeçar de algum modo.

E aí eu comecei trabalhando com a Ro-seli Pereira (empresária pernambucana re-sidente em Fortaleza), Jornal da Praia, queera uma ... Não sei, até hoje não sei se elaera empresária, madame, dondoca, mas elamantinha um jornal voltado para o públicojovem, e aí alguém indicou meu nome, tam-bém não lembro mais quem foi que indicoumeu nome, que eu sou péssimo de memória."Ah, faça alguns textos aqui sobre música,não sei o quê". "Tá", Fui fazendo, fazendo, edali a pouco me chamaram: "Olha, você nãoquer trabalhar com o Ivonilo Praciano (jor-nalista), lá no jornal O Povo?" "Tá". "Só queo caderno é feminino, é um caderno voltadopra mulher, os problemas da mulher, vocêvai falar sobre doenças femininas, mens-truação, não sei quê". Eu "Tá." Assim, eu jávenho de um universo fortemente feminino,sei quando as mulheres vão menstruar pelocheiro, então não tem problema. Comeceia trabalhar e passei pela imprensa femini-na, de algum modo, trabalhei em cadernofeminino. E fazendo matéria por ali, para oJosé Paulo de Araújo (jornalista), que faziaO Povo Jovem ...

Karine - Isso no curso ainda?Ricardo - É, 89. Eu comecei a achar le-

gal essa coisa: "Cara, redação é bacana,

RICARDO JORGE I 15

A pré-entrevista comRicardo foi realizada numasegunda-feira, dia 12 desetembro, com os doisprodutores com leves in-toxicações alimentares.Ainda assim, os dois con-seguiram realizar a pré-entrevista.

O local da pré-entre-vista foi na sala que Ricar-do divide com o profes-sor Ronaldo e o professorRiverson no primeiro an-dar do bloco da Comuni-cação.

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Isso infelizmente acar-retou no esquecimentode algumas perguntas bá-sicas como data de nasci-mento e nome dos pais.As perguntas restantesforam enviadas por emailno dia seguinte.

Ricardo é o filho maisvelho de Valdemiro Lucasda Silva (engenheiro) eCristina de Lucena Barros(dona de casa). Tem duasirmãs mais novas, MeizeRegina de Lucena Lucas eMônica Cristina de Luce-na Lucas.

110 rádio sempre mefascinou (...) ainda

quando eu era muitomoleque eu achavaestranho: "Corno é

que as pessoas cabemdentro do rádio 7"

redação é interessante". Porque é muito di-ferente a visão de jornalismo quando vocêtá dentro da faculdade e quando você tá naredação. E é natural que sejam diferentes,porque são espaços diferentes com propos-tas diferentes. E a ideia de você ir pra re-dação, eu chegava lá sete da manhã, tinhatodos os jornais principais do Brasil lá no - opessoal chamava o "pau" da redação - umcavalete que tinha umas madeiras com osjornais, JB (Jornal do Brasin, Globo, Estado,Folha. Eu achava bacana aquilo ali: "Cara,eu posso ler todos os jornais principais doBrasil antes de sair pra fazer uma pauta?"Então ficava lá lendo ... Não tinha internet,vale sempre lembrar, né? E depois recebiaa pauta, ia conversar com as pessoas, ir,voltar, falar, escrever - nunca tive grandesdificuldades pra escrever, graças ao profes-sor Edson, de redação - e comecei a achar

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eressante a profissão, de algum modo.= i tomando tenência I vergonha na cara e== trando nos eixos, como deveria ser.

Amanda - Sobre esse final de curso e co-...•..ecinho na redação, a gente viu no material

e produção que você trabalhou um perío-o em sindicatos e também escreveu colu-a social. Eu quero saber como era traba-ar com universos tão diferentes, ou pelo

menos aparentemente tão diferentes.Ricardo - Era bom porque eu recebia

dinheiro pra isso, né? Pra começo de con-ersa. Dava pra comprar mais discos, com-

prar mais roupas, enfim. Mas foi interessan-te mesmo até pra pensar em termos - atéhoje eu tenho um pouco disso - de o que éque nós queremos dizer pros nossos alunosquando dizemos que ensinamos jornalis-mo? E o que é que nós consideramos comojornalismo? Quando eu estava na faculdade,88, 89, 90, eu e esses meus amigos que eucitei, Paulo e Clebernardo, o Clebernardochegou pra mim: "Cara, vamos trabalharnuma assessoria, o pessoal do Sindicatodos Comerciários tá precisando de uma as-sessoria, cara, bora lá!" Eu: "Bote. cara. Agente junta aqui, bora! Isso aqui é uma pa-tota, né?" E fomos fazer jornal pro Sindicatodos Comerciários, depois pro Sindicato dosVigilantes ... Eu e o Paulo não éramos liga-dos ao movimento sindical, o Clebernardoera, era ligado ao PC (Ricardo não lembrase era o PCB, Partido Comunista Brasileiro,ou o PCdoB, Partido Comunista do Bresiõ,"Cara, vamos escrever nossa primeira ma-téria, que bom. Como é que é o lead mes-mo? Quem, o que, onde, quando ... Ah, 'Osprofissionais da categoria tal reunidos, nãosei mais lá o que ... r Vamos pensar no título,como é que é o título? Sujeito, verbo, predi-cado, não sei quê". Aí fizemos, entregamosmuito bonitinho pro pessoal, entreguei proClebernardo: "Cara, isso aqui não é jorna-lismo. Tem de ser é cacete nos patrões!" Aíeu: "Cara, mas isso é jornalismo?" "Cara, ésindicalismo!" "Tá, é sindicalismo." E às ve-zes ia trabalhar lá com o José Rangel, quetinha coluna social no jornal O Povo, preci-sava de redatores ... "Ah, preciso de alguém,meu querido, pra ajudar a falar com as pes-soas, com os empresários, economistas", oJosé Rangel é uma pessoa muito fina, muitoeducada ... Ah, era de boa. Assinava a car-

teira, por que é que eu ia dizer não? "Vouassinar a carteira, vou recolher FGTS (Fun-do de Garantia por Tempo de Serviço), voureceber salário".

Então, minha entrada no universo dojornalismo não foi pela grande imprensa.Foi fazendo Jornal da Praia, jornal do sin-dicato, coluna social, são universos muitoestranhos, muito diferentes, que foram medando a noção, essa ideia do público alvo, aideia de que você tem de adaptar seu textoa determinados tipos de público. E no cur-so, a gente tinha aquela visão muito: "Va-mos fazer jornalismo dentro dos padrõesda imprensa tradicional". Não que o cursonão tivesse disciplina de jornalismo sindi-cal, outras do gênero, porque tinha. Maseram como opcionais, e eu mesmo nuncafiz disciplina de jornalismo sindical. Deve tersido ministrada, muito provavelmente, masera uma coisa pontual. Então, uma coisa eraaquilo que a gente aprendia dentro da uni-versidade ... Visando ao trabalho da grandeimprensa, e as bordoadas e lenhadas quevocê leva quando chega na realidade deespaços sociais muito distintos do pontode vista jornalístico ... Por exemplo, na co-luna social você faz aquela notinha muitobreve, no jornalismo sindical você faz umtexto carregado com tintas, mais emocio-nal, mais cheio de bravatas, efetivamente,e isso é bom porque vai destravando vocêem termos estilísticos e textuais. "Ah, se euconsigo escrever pra cá, e eu consigo escre-ver pra cá, e eu consigo escrever pra cá ...nVocê vai, com o tempo, vai começando aescrever pra qualquer outro canto que peçaum estilo que é pertinente praquela área epraquele campo, né? Então, desse ponto devista as experiências, por mais que fossemestranhas, de você compatibilizá-Ias den-tro da sua cabeça, dentro da sua formaçãocomo profissional, elas foram bacanas, elasforam bastante interessantes.

Maurício - Por volta do final dos anos 90,97 se não me engano, você acaba saindodo jornalismo de redação, de certo modo,e ingressa na UFC como professor. Querosaber como é que foi, o que motivou essatransição, se você já pensava em ser profes-sor anteriormente. Como foi?

Ricardo - Eu sou uma ameba, né? Por-que eu também nunca pensei em ser pro-

"Acho que fui descobrir depois que era meioanarquista, eu sempre fiquei meio à margem.Talvez fosse um modo de ser subversivo, né?"

RICARDO JORGE I 17

Mônica Cristina traba-lha como jornalista, assimcomo o irmão, e MeizeRegina é professora deHistória da UniversidadeFederal do Ceará, traba-lhando no mesmo quar-teirão que Ricardo.

A pré-entrevista coma esposa de Ricardo, Nei-Ia Fontenele, aconteceuna sexta-feira da mesmasemana, dia 16 de setem-bro, na sede do jornal OPovo, às três horas datarde.

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Durante a visita ao OPovo, Maurício e Ingridencontraram um cole-ga de semestre, Paulo, eMaurício reencontrou al-guns colegas de redaçãodos pais, colegas que selembravam dele aindacriança.

Uma das jornalistaspresentes na sala ondefoi realizada a pré-entre-vista, Juliana Matos (queparticipou da edição nQ

10 da revista), disse quea entrevista teria de citara coleção de camisas doCorinthians que Ricardopossui.

,/JE muito diferente avisão de jornalismo

quando você tádentro da faculdadee quando você tána redação. E é

natural que sejamdiferentes, porque-sao espaços

diferentes."

fessor. Nunca, nunca, nunca! O fato de te'dado aula particular de matemática eracomo dizia o Frank Zappa (músico amer-cano de rock), on/y for the money, estamosnessa pela grana. Eu tenho de lembrar queeu levei duas demissões do jornal O Povouma em 24 de dezembro de 89, véspera deNatal, ainda era aluno de faculdade aqui, nosétimo semestre, o que pelo menos foi umgrande aprendizado, né? "Não devo ter ilu-sões com a profissão", efetivamente. Semprecisar ter lido Balzac (Honoré de Ba/zac,escritor francês) e as suas Ilusões Perdidas.E a segunda foi em 93, eu era editor do Vidae Arte (caderno de cultura e variedades doPovo), o Vida e Arte tinha uma coisa meioesquizofrênica, porque tinha o Vida e Artesemanal e o Vida e Arte de domingo. Eratão meio esquizofrênico que tinha uma edi-

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• ria que fazia o Vida e Arte de segunda aabade e outra editoria que fazia o Vida e-ne no dia de domingo, que era o pessoal

e a gente chamava o pessoal da WOW,-O-W, que era uma turma de enfants terri-es e pessoinhas chiques que tinham saído

aqui da faculdade, Norton Lima Jr., Jacksonraújo, Cláudia Albuquerque, Kiko Bloc-Bo-

r s Uornalistas), que tinham feito uma revis-ta, uma revista de comportamento, uma coi-sa mais pop, por assim dizer, nos anos 1990aqui na cidade, e depois foram chamadosora trabalhar e ser responsáveis pelo Vidae Arte de domingo. E tinha um pessoal daredação que fazia um Vida e Arte "Semana".ocê tinha dois universos diferentes, WOW

-iuma redação e a gente noutra, e eu fiqueium bom tempo, depois de repórter, comoeditor do Vida e Arte semanal.

Depois de algum tempo, o pessoal daWOW meio que se separou, foram apare-cendo outras coisas pra eles, e eu acabei fi-cando como editor do Vida e Arte domingo.Também já estava de saco cheio, porquenão tinha equipe, já era um momento deeconomia (refere-se à contenção de gastosna empresa): "Não tenho grana pra manterequipe, pede ajuda pra alguém da editoriatal". E eu já tava de saco cheio, fechando aspáginas de qualquer jeito ... "E essa capa?""Bota essa merda de qualquer jeito!" "Maspode dar merda" "Deixa dar merda, tô láme lascando ..." Lógico, logo depois veioa demissão, obviamente. Fui beber com odiagramador pra comemorar minha demis-são, com o Zé Moraes. "Rica-ca-ce-cardo,vai querer beber?" "Bote, cara, bora beberque eu tô contente demais! Tô levando péna bunda pela segunda vez!"

E nessa época eu fazia especialização emTeorias da Comunicação e da Imagem, queera um convênio que o curso tinha feito, oprofessor Souto Paulino, que era o chefe dedepartamento na época, com a Escola deComunicação da UFRJ, com a ECO. Então,foi feita uma especialização conveniada, in-terinstitucional, em que vinham os profes-sores da UFRJ dar aula pra gente. O MunizSodré, o Fausto Neto, o André Parente, oMilton José Pinto, depois veio a Kátia Ma-ciel. .. E eu tentava compatibilizar a minhavida como editor do Vida e Arte com a dealuno da especialização, até que eu levei umpé na bunda ... estava forçando, né? O Pau-lo Henrique (Paulo Henrique Raulino, antigochefe de redação do Jornal O Povo): "Meuquerido, eu sei que você tá fazendo sua es-pecialização, vá lá terminar sua especializa-ção, quando você terminar você procura agente." E aí tava desempregado, né? E vi-nha pra cá todo dia, pra assistir aula. No dia

seguinte à demissão, tinha um cartazinho:"Precisa-se professor substituto de Produ-ção Gráfica." "Cara, eu tô sem grana. Tõ de-sempregado, não moro com os meus pais ...Vamos ver o que acontece." Já tinha feitotrês ou quatro seleções pra substituto, tinhalevado pau em todas elas, já tinha zerado,entregue prova em branco, enfim ... "Já ten-tei quatro, cinco vezes, tento mais uma". Sótinha eu concorrendo, estudei minimamen-te, e meu debut na universidade foi dandoaula pro Wilton Júnior e pro Luiz HenriqueCampos, o Lucã Uornalistas formados pelocurso). Pra dois alunos do currículo antigo,dando aula de Produção Gráfica, sendo queos dois nunca vinham pra mesma aula. Eudava aula particular de novo, pra um, oupra outro, ou pra ninguém, mas nunca prosdois, nunca os dois vieram na sala. Comoera pra preparar só uma disciplina pra doisalunos, eu fiquei tranquilo: "Ah, cara, issoaqui é moleza, preparar aula ...n Nunca tinhatrabalhado com produção gráfica, aindaque eu tivesse feito os jornais do sindicato,já tinha noção de como diagramar, pediampra diagramar, diagramava, assim foram osanos 90, com uma régua de Python, umacoisa que vocês não devem conhecer, queé meio jurássica. E ia pras gráficas, acom-panhava a entrega do material, acompanha-va a impressão, então tinha uma noção decomo o esquema gráfico funcionava ... "Ah,vamos ver como é que rola".

Deu certo. Saí pra fazer o mestra do noRio, voltei trabalhando no Diário do Nordes-te, e apareceram outros concursos pra pro-fessor substituto, o professor Souto Paulino,que era uma pessoa muito bacana ... "Meumenino, você não quer. .." "Tá, professor.Vamos ver." Fiz a seleção, passei mais doisanos aqui como substituto até chegar a efe-tividade, que já é outra história.

Ingrid - Ricardo, você falou do gostopelo rádio, mas dentro da carreira jornalísti-ca você nunca trabalhou com rádio.

Ricardo - Não.Maurício - Desencantou-se?Ricardo - Não, não, não me desencan-

tei. Talvez eu tivesse medo, no fundo, demisturar instâncias. Uma coisa que eu gos-tava muito, eu tinha medo de transformarnuma obrigação, e a obrigação tirar o prazerdaquilo. Quando eu estava no Vida e Arte,depois no Caderno 3 (caderno de culturae variedades do Díario do Nordeste), vocêentra num esquema meio estranho de:"Ah, eu vou assistir a um determinado fil-me, ver uma peça, vou assistir a um show".Mas você não vai como mero espectador.Eu ia com um bloquinho, caneta para ano-tar determinadas coisas pra fazer a matéria

RICARDO JORGE I 21

Neila se arrependeuda pré-entrevista não tersido em casa, para podermostrar fotos de famíliae poder contar com maisdetalhes o que foi conver-sado na pré-entrevista.

A equipe de produçãoainda tinha planos de en-trevistar pelo menos umadas irmãs de Ricardo,Meize ou Mônica. Infeliz-mente, o tempo entre aescolha dos entrevista-dos e a reunião de pautada primeira entrevista éreduzido.

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A reunião de pauta foirealizada em uma quinta-feira e a entrevista emuma terça-feira, ao con-trário do que geralmenteacontece. Isso aconteceudevido a um compromis-so do professor Ronaldono INSS.

As ideias de Ingride Maurício sobre o queabordar na entrevista fo-ram aceitas prontamentepela turma, mas foi bemdifícil decidir como seria aestrutura mais adequada.

depois, a resenha, o que quer que seja. Evocê vai automatizando, meio, o teu olhar,e você vai perdendo o prazer de estar lá, sólá, o Information Society (banda americanade synthpop) "I wanna know!", tá todo mun-do cantando "I wanna know what's on yourmind" e você lá anotando! Ou o A-Ha (bandanorueguesa de synthpop), enfim ... O caraperde o tesão, de certo modo, então talvezeu tenha sempre evitado propositalmente- nunca parei pra pensar nisso, vocês queestão me provocando agora, que eu nuncatinha pensado nisso, realmente - "Deixa orádio como um hobby, como um espaço ba-cana", o que não me impediu de passar dezanos na Rádio Universitária fazendo progra-ma de f/ashback, né? O que acabei fazendo.Mas como jornalista, não, mesmo.

Sarah - Ricardo, agora no outro lado damoeda, você na área da docência, você dis-se que era uma longa história: em 1997, agente tem o material de produção aqui e viuque você assumiu como efetivo aqui na UFC.Como foi esse início e essa efetivação?

Ricardo - Foi complicada. Eu trabalheicomo (professor) substituto dois anos ain-da e veio a efetivação, fiz concurso público.Quase que eu não passo, era o único candi-dato e ainda cheguei atrasado pra prova es-crita. Lembro do Jesuíno (Geraldo Jesuínoda Costa, professor aposentado do curso deJornalismo e fundador da Oficina de Qua-drinhos): "Folgado, como é que chega atra-sado?" "Olha se quiser eu não faço a prova,vou embora". "Não! Senta e faz". "Entãotudo bem". E me lembro com muito carinhodo Agostinho Gósson Uornalista e professordo curso de Jornalismo, falecido em 2015),ele trabalhou junto em alguns projetos dedisciplinas aqui, de Laboratório de Jornalis-mo Impresso. Éramos algumas vezes eu, elecomo professor de parte de impresso e ouo Silas, ou o Jarbas Oliveira como professorde fotografia. E como eu estava saindo domestrado, eu estava muito se achando: "Tôvindo de um mestrado na UFRJ", todo in-chado, aí você vem bem inchadão. A UFRJna época era a referência nacional nos estu-dos de comunicação, de mestrado, o pes-soal lá do Rio dizia. Tinha aquelas capas dasVejas Rio: "ECO - O grande point intelectualda cidade". "Onde se estuda da importânciado berimbau na cultura baiana à aceleraçãode partículas atômicas". Então tinha uma es-tampa e eu cheguei meio inchado de certomodo.

E nessa disciplina eu lembro que a genteestava fazendo o lançamento de um dessesjornais, conversando com os alunos ali nobar da ADUFC (Sindicato dos Docentes dasUniversidades Federais do Estado do Ceará).

E o Agostinho me puxou num canto do ladode fora do poleiro e (disse): "Cara, você temque ser mais relaxado", passou um sermãobem educado para os padrões de AgostinhoGósson. E foi quando eu (penseI}: "Eu tenhode curtir mais a docência", a docência não éaquela coisa "Eu sei mais do que você, seimais do que o aluno", é uma coisa pra vocêcurtir, deixar rolar e ver o que acontece, in-teragir com os alunos efetivamente. E foimuito bacana essa troca com o Agostinho, .porque a partir dali eu disse: "A docênciaé uma coisa que leva para um outro modode perceber a realidade e a relação com osalunos."

Teve uma época em que a gente nãotinha, como tem hoje na UFC de uns anospra cá, esse projeto CASa (Comunidade deCooperação e Aprendizagem Significativada UFC), de formação do professor, como éque é a questão didática, pedagógica. Vocêchega, passou no concurso, "Oh, te vira, vaidar aula", e ninguém avalia efetivamentese você sabe dar aula, se você tem meto-dologia de ensino, se o material que vocêprepara é adequado, a bibliografia que vocêlevanta. Enfim, você chega lá e dá aula combase na sua experiência, no que você sabe.

Então, o Agostinho e depois os alunosme ensinaram a ser professor, de algummodo. Como eu nunca tinha sido professorantes, como substituto o que eu fazia? "Bom,vou imitar os professores que eu admiravamais", que eram o professor Fausto Neto,que é cearense e dá aula na Unisinos (Uni-versidade de Vale dos Sinos, no Rio Grandedo Sun e o professor Milton Zé Pinto, queera lá da UFRJ, ele já faleceu. Porque o Faus-to Neto viajava muito, ficava costurando au-tores, teorias, ficava maquiando e o Miltonera aquele cara do esqueminha, chegava nalousa, botava todo o esquema na lousa, de-pois sentava e começava a falar. Eu não seidar aula sentado, eu sou meio peru na riscade giz, tem de ficar doido rodando, não seificar parado. E fiquei: "Bom, se dar aula éisso vou imitar o Fausto, o Milton e ver oque acontece em sala de aula". Mas o nívelintelectual do Milton e do Fausto era muitoacima da média, eles tinham estudado naFrança, tinham estudado com Eliseo Verón(semioticista e filósofo argentino) e bá bábá. O Agostinho que (disse): "Menos". E adocência começou a ser algo mais bacanade ser, e tinha de ser que agora eu era efe-tivo, então não queria perder o emprego.Comecei a curtir a coisa da docência, masno começo era uma coisa meio ... Tanto éque - eu não vou dizer o nome do aluno -mas em uma dessas disciplinas que seriamequivalentes a Pesquisa em Comunicação

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m aluno levantou o braço e (perguntou):Comunicação é ciência ou não é ciência?".Era a) primeira turma efetivamente, em 95,

:azendo o mestrado ainda, trabalhando no:Jiário do Nordeste, eu respirei fundo, euÇalet): "Cara, gente muito melhor do que euão soube responder isso até hoje, entãoão espere isso de mim agora, tá? Vamos

continuar com a aula". À luz de hoje eu vejoque ele estava me provocando pra, sei lá,você é tão inchadão, vamos ver se você énchado o bastante pra acatar minha pro-ocação, tá?" E aos poucos as coisas vão

se ajeitando. Eu tenho esse débito com oAgostinho, que Deus o tenha onde quer queele esteja.

Amanda - Quais são as principais dife-renças que você observa entre a maneiraem que a Comunicação era ensinada quan-do você ainda era estudante e como é ensi-nada hoje em dia?

Ricardo - É uma pergunta tão capciosaessa, né? (risos) Porque uma coisa é vocêpensar no ensino de comunicação, de jor-nalismo, naquela época, na condição dealuno; é outra eu avaliar hoje, num contex-to completamente diferente, na condiçãode professor. Uma coisa que é efetiva, decerto modo, é que a maior parte do corpodocente era formada, geralmente, de ex-profissionais. Não que isso seja um proble-ma, mas num curso que depois ia exigir afeitura de uma monografia ao final, e soli-citava de você um determinado percursoteórico, acadêmico, como pesquisar, comofichar, como escrever, como preparar umartigo acadêmico ... E estamos falando deuma época em que você não tinha essacoisa que vocês alunos vivenciam hoje, doIntercom (Congresso Brasileiro de Ciênciasda Comunicação) ... "Ah, vou fazer um artigonuma disciplina, do que quer que seja, man-do pro Intercom, apresento o trabalho", issoera uma realidade muito distante do cursode Jornalismo. No máximo, a gente tinhaalguns alunos que conseguiam ser moni-tores de alguns professores. Eu nunca tivebolsa nem nada, nem sabia que podia ga-nhar dinheiro como aluno na universidade,pra você ver como eu era tonto na época dafaculdade.

O curso sempre teve uma coisa meioesquizofrênica, no sentido de "estamosformando um profissional para o mercadode jornalismo e pedimos dele uma mono-grafia". Também tinha a opção de fazer umtrabalho prático, mas os trabalhos práticosnão me seduziam ... Fazer vídeo, programade rádio não me seduziram. E hoje, a situ-ação é muito diferente, ela é tão diferenteque o jornalismo em alguns momentos -

/IA docência não éaquela coisa: "Eu seimais do que você, seimais do que o aluno",, . ,..e uma coisa pra voce

curtir, deixar rolar e vero que acontece."

dependendo do curso, da estrutura curricu-lar dele, o projeto pedagógico - fica meio,ou ficava meio, que em segundo plano atéa nova aprovação das Diretrizes dos Cursosde Jornalismo, mas hoje você tem a pos-sibilidade de pensar não só o jornalismocomo uma prática profissional, mas comoum objeto de pesquisa. Então, o pessoalque trabalhou aqui com o Jamil (FranciscoPaulo Jamil Almeida Marques, professor daUniversidade Federal do Paraná), trabalhaagora com o Diogénes (Diógenes Lycarião,professor do curso de Jornalismo da UFC),com outros professores como o Rafael (Ra-fael Rodrigues da Costa, professor do cur-so de Jornalismo da UFC) podem trabalharo jornalismo também como um objeto depesquisa, o que pra mim não é incompatívelcom a prática jornalística.

Talvez tivessem que achar um meio ter-mo dentro do curso que pudesse permitirque nem o aluno esqueça que ele está nauniversidade - e a universidade é um espa-ço que pede alguns ritos específicos, algunstextos específicos: artigos, papers, o quequer que seja - nem deixe o aluno esque-cer que ele é, ou a gente quer que ele setorne um profissional da comunicação e dojornalismo e a gente consiga fazer com queo aluno tenha as duas formações pari passu(expressão em latim que significa "ao mes-mo tempo'}, sem que fique uma coisa meioesquizofrênica, do tipo: "Cara, eu sou pes-quisador ou jornalista?" Tanto que na cadei-ra de Metodologia do Trabalho Científico,que eu estou pegando agora com o pessoaldo primeiro semestre, eu tento sempre quepossível mostrar para eles as semelhançase diferenças entre jornalismo e a pesquisa,para que eles comecem a ver isso como algonatural, que tem pontos de contato, tempontos de apoio, que as coisas não neces-sariamente se excluem, mas o jornalismo éuma forma de pesquisa que tem normas umpouco mais específicas que a pesquisa aca-dêmica, tem uma temporal idade mais curta,

RICARDO JORGE I 23

Nem toda a turmapôde comparecer à reu-nião de pauta, mas osprodutores conseguiramcontatar os ausentes logodepois da reunião para ex-plicar o que foi decidido.

A entrevista aconte-ceu no Laboratório deFotografia do prédio docurso de Jornalismo daUFC, no terceiro andar, àsduas e meia da tarde.

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Os produtores e ofotógrafo responsável,Marcelo Monteiro, foramalgumas horas antes daentrevista para preparar ocenário e a iluminação.

Marcelo Monteiro en-trou no curso de Jornalis-mo na turma de 2013.2,um semestre antes damaioria da turma destaRevista Entrevista nQ 37.Ingrid sugeriu chamá-Iopara fotografar.

IISe houvesse uma ideia de produtivismo menorna universidade, provavelmente as pesquisasseriam muito mais interessantes, teriam muito

mais impacto."

mais específica, tem um modo específicode redigir. Mas o pesquisador e o jornalistatêm a mesma preocupação de certo modo,que é tentar compreender os fenômenosda realidade, porém dentro de categoriasde apreensão da realidade diferentes. Se agente consegue fazer com que o aluno per-ceba isso como algo natural, sem grandesproblemas, ele vai chegar ao curso, ao finaldele, sem grandes problemas.

Ingrid - Você acha que a pesquisa hojeem dia, dentro da universidade, ela é maisrica, avançou de alguma forma?

Rose - Deixa eu só complementar a per-gunta dela. Como é lidar com um aluno quetá ali escrevendo monografia?

Ricardo - Tá, vamos por partes. Sobre aquestão da pesquisa, se melhorou ou nãona universidade, eu diria: "Sim e não". Sim,porque você tem realmente cada vez maisgente produzindo pesquisa, e não, porquedentro dessa lógica produtivista que a gentetem na universidade hoje em dia, você se vêobrigado a pesquisar se você quiser estaratrelado a um programa de pós-graduação.Eu sei que pode parecer meio estranho es-tar falando isso, mas a partir do momento

em que a pesquisa deixa de ser a consequ-ência do seu trabalho como pesquisador epassa a ser o ponto de partida ... Trabalharcom pesquisa significa o quê? Eu tenho umdeterminado tempo pra maturar minha pes-quisa, a pesquisa não é algo tão cartesiano,no sentido de: "Ah, eu comecei uma pes-quisa, em um ano eu posso produzir doisartigos pra submeter pra revista científica ..."Não é pra funcionar assim. E o que é queacontece? Nós não fazemos pesquisa prapublicar, mas nós tentamos publicar pra verse achamos uma pesquisa que encaixe naspublicações. Então, você tem uma espéciede inversão de valores. Eu vejo por mimmesmo, não tenho nenhuma vergonha dedizer ... "Professor, como é que você produztanto?" "Eu não sei, cara, eu faço resumo,mando, e depois vou atrás de fazer o texto."Parece meio louco, qual é o sentido de vocêfazer o resumo de algo que você não fez ain-da? "Ah, cara, mas eu dou um jeito." Então,quando você chega num nível em que vocêfaz a pesquisa pra depois fazer o artigo, éporque algo vai mal. Mas há uma cobran-ça do pessoal da pós-graduação, da CAPES(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-

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soal de Nível Superior), do coordenador:uOlha, você publicou A 1, A2, 81, 82, 83, 84,ih, mas 84 não pontua quase nada, 85 não,C, C não pontua nada" (A 1 até C são os ní-veis de excelência dos periódicos acadêmi-cos). Se houvesse uma ideia de produtivis-mo menor na universidade, provavelmenteas pesquisas seriam muito mais interessan-tes, teriam muito mais impacto, porque elasteriam muito mais a ver efetivamente com odesejo do pesquisador de colaborar com asociedade e com a ciência de algum modo,e não visando ao resultado, que é publicar,publicar numa revista internacional se forpossível. E com relação à pergunta da Rose,que era ...

Rose - Puxando daí, as pessoas ficammuito angustiadas quando estão no períodode conclusão do curso por causa do TCC ouda monografia. Então, como é acompanharesse processo?

Ricardo - Primeiro você vira cúmplice,inevitavelmente. Não tem como o orienta-dor não ser cúmplice e não, de algum modo,compartilhar as agruras e os sofrimentos doaluno. Orientar uma monografia e um TCCtem uma diferença muito grande. Na mono-

grafia, às vezes você tem orgulho do aluno,você vê que o aluno consegue caminharcom as próprias pernas, ele desenrola queé uma beleza e outros que você olha: "Cara,deixa eu escrever tua monografia pelo amorde Deus, se não esse negócio não sai". 8ateessas angústias, porque você tem um uni-verso muito amplo de possibilidades e vocênão tem como ficar fazendo vestibular aquipra saber se você vai ser ou não meu orien-tando. É por isso que eu digo, se o alunotem a coisa da pesquisa como algo naturalao longo do curso, a monografia vai ser algomais tranquilo. Eu, ultimamente, dentrodessa minha guinada zen, por assim dizer,eu tenho quase achado mais interessanteque o aluno faça realmente um TCC prático.Tenho batido muito nessa tecla com algunsde vocês, inclusive, de que é interessanteque o TCC seja realmente fruto de uma ex-periência sua com a realidade e com as pes-soas que você quer dar visibilidade atravésde um livro-reportagem. Não que você nãopossa fazer isso com a monografia, mas amonografia é feita de mediadores seus emrelação à realidade, que são os livros, os ar-tigos, os papers. Às vezes, o aluno chega e

"Ouando O aluno se envolve com a realidadeque é próxima a ele (...) é a possibilidade não sóde fazer um ajuste de contas com aquele objeto(...), mas um acerto de contas com ele próprio."

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Os refletores de luzdo estúdio estavam que-brados, o que rendeu umtrabalho extra para Mar-celo durante a entrevista,pois ele teve de adaptar ailuminação durante a en-trevista.

A cadeira que Ricardose sentou durante a cap-tação da entrevista tevede ser emprestada da salada UFC TV, pois nenhumadas outras cadeiras dasala era confortável.

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Minutos antes da en-trevista, a blusa de Ingridrasgou na manga esquer-da, o que acarretou numacrise de choro, que feliz-mente cessou antes queRicardo chegasse ao La-boratório de Fotografia.

Foi difícil fotografar aentrevista dado o espaçolimitado que Marcelo dis-punha para fotografar, porisso as fotos focaram maisnos participantes da entre-vista do que no cenário.

a realidade que é próxima a ele, de algummodo, o gás, o pique, o tesão que ele tem émuito diferente. É a possibilidade de o alunonão só fazer um ajuste de contas com aque-le objeto que ele quer analisar, que ele quertrabalhar jornalisticamente, mas de certomodo um acerto de contas com ele próprio.Aí, o trabalho dá uma virada meio freudiana .Se eu escolhi um determinado objeto pratrabalhar, é porque aquele objeto de algummodo me incomoda, me inquieta, me pro-voca, e eu quero compreendê-Io, porque,

diz: "Ah, eu quero fazer um trabalho sobreanálise de discurso gráfico da capa da Folhade São Paulo". E pode fazer? Pode. Mas aFolha de São Paulo tá lá em São Paulo, agente tá aqui, então é uma coisa tão des-

Iconexa da nossa realidade, da realidade doaluno, que ou ele tem uma boa justificativa

. pra fazer aquilo, ou ele tá fazendo porquequer dizer: "Olha, eu posso trabalhar coma Folha de São Paulo como objeto". Tá. Ébacana, é legítimo, não vou ser contra.

Mas, quando o aluno se envolve com

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talvez de algum modo, o compreendendo,eu compreenda a mim mesmo.

Hoje eu tenho um carinho muito maior -eu sei que é covarde eu dizer isso - eu tenhotido um carinho muito maior pelos alunosque estão trabalhando com o TCC, porqueacho que o investimento de energia, de te-são é muito maior do que o da monografia.

ão que o aluno não invista energia na mo-nografia, mas é uma energia diferente. Umacoisa é eu sair lendo Charaudeau (PatrickCharaudeau, pesquisador francês especia-lista em análise do discurso), Mainguene-au (Dominique Maingueneau, pesquisadorfrancês especialista em análise do discur-so), Nilson Lage (professor de comunica-ção aposentado pela Universidade Federalde Santa Catarina), e outra coisa é convivercom pessoas no local em que elas moram,no local em que elas vivem, com as pes-soas com que elas convivem, e tendo con-tato com situações que eu não teria comovivenciar numa outra condição - ou talvezcomo antropólogo, sociólogo, não sei. Voudar o exemplo aqui da Ana Rute (Ana RuteRamires, aluna do curso de Jornalismo), nosemestre passado queria ... "Ah, professor,quero fazer um livro-reportagem, um doeu-mentário sobre os hippies." Eu falei: "Pois,minha filha, combina com esses hippies,pega uma kombi, passa um mês viajandocom esses hippies.daqui até o Sul e volta.""Mas professor!" "É. Se você quer trabalharcom os hippies, vá viver com os hippies. Váser hippie! Passe um mês como eles, e vocêvai ter uma noção muito clara, não do que éfalar sobre os hippies, mas do que é ser hip-pie. Colocar-se no lugar deles para poder, apartir daí, construir um TCC, um documen-tário, um livro-reportagem, o que quer queseja, em que você não esteja falando comoalguém que olha os hippies como era o an-tropólogo que olhava a tribo indígena: "Ah,eles" isso, "eles" aquilo, mas é um "nós fize-mos isso, nós fizemos aquilo".

Karine - No material de produção, mos-tra que você assumiu, digamos assim, oprojeto (A Oficina de Quadrinhos) depois doGeraldo, a partir do momento em que vocêtrouxe alguns bonequinhos pra sala ...

Ricardo - (interrompendo} ... Figuras deação. Action figures.

Karine - Que é uma coisa que você ain-da faz, inclusive, e um aluno perguntou ...Como é que foi esse começo?

Ricardo - Como é que tudo começou? Eudava aula de Pesquisa em Comunicação, eos alunos, pra pensar no tema, pra fazer amonografia, sempre tinha pelo menos me-tade da turma: "Ah, não sei o que escrever,tõ travado, não tenho a menor idéia". Um

dia, não sei porque, eu trouxe uns bonecosde ação na mochila: "Ah, cara, vai mexercom o boneco aqui, vai botar em posiçãode bailarino, de luta, o que quer que seja", eeu vi que o pessoal ia mexendo com, os bo-necos de ação, botando em pose ... E comose o lado inconsciente deles tivesse traba-lhando enquanto eles estavam lá desliga-dos. Alguns neurocientistas trabalham comessa ideia de que, quando você tá com umfoco em um problema e não consegue re-solver, se você desvia sua atenção pra fazeruma outra coisa, uma parte do seu cérebro,sua consciência, fica trabalhando até chegarem alguma solução. E eu vi que o pessoalcomeçava: "Ah, tive uma ideia", achei legal,e fiquei trazendo enquanto era professor dadisciplina. Aí, algum aluno me viu com osbonecos: "Professor, o senhor não quer c~-ordenar a Oficina de Quadrinhos?" Eu: "E,pode ser." Daquele meu jeito, "pode ser." Esempre disse: "Olha, só tem um problema:não sou quadrinista, quadrinhos eu só leio,sou um leitor muito bissexto, não tenho co-leções e coleções de gibi, não sou colecio-nador, não sou nada. Preciso que vocês meajudem a reativar a oficina."

A gente passou um semestre se reunin-do, eu preparando os alunos: "Como é queminimamente se dá uma aula? Dê uma aulaaí". Um deu aula sobre escotismo, outrodeu aula sobre como surfar, como é ser tor-cedor do Grêmio. Enfim, cada um escolheuum tema pra dar aula ... "Bom, se vocês con-seguem dar aula sobre as coisas que vocêsgostam, vocês conseguem dar aula sobrequadrinhos também, né?" Os oficineiros,como tinha batizado o Jesuíno antigamen-te. E, a partir daí, os deixei tocando a Oficinade Quadrinhos. "Ah, mas professor ajuda agente, sei lá, fala sobre serniótica", "Vou fa-lar de semiótica pro pessoal da Oficina deQuadrinhos? É um pessoal que não é uni-versitário ..." E com o passar do tempo eu fuime interessando pelos quadrinhos de modoindireto, porque eu me afastei pro doutora-do para trabalhar com infografia e algumascoisas que dizem respeito à infografia dizemrespeito à questão de quadrinizar ações, de-compor ações para você colocar numa in-fografia do tipo passo-a-passo, passo um,passo dois, passo três, passo quatro. E, aomesmo tempo, dentro da pesquisa da tese,fui começando a procurar umas coisas dequadrinhos, já que tinha lido sobre carto-grafia, sobre estatística, sobre esquemas,diagramas, tinha de ler alguma coisa sobrequadrinhos também pra poder fazer a pes-quisa para tese. E encontrei o livro do ScottMcCloud (quadrinista e teórico dos quadri-nhos americano), Desvendando os Quadri-

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Um outro aspectoque dificultou o trabalhode Marcelo foi o fato deRicardo se mexer muitoenquanto fala, fazendocom que muitas fotos sa-íssem com Ricardo forade foco.

Marcelo tentoufotografar o cadernodo professor Ronaldodurante a entrevista, masRonaldo prontamenteescondeu as anotações,o que fez Marcelo desistirdessa foto.

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Em um momento deimpasse entre os entre-vistadores, Ricardo es-colheu Rose para fazer apergunta pois ela estavacom uma camisa da ban-da Ramones e, segundoRicardo, teria prioridade.

Ricardo tem um re-lógio com os nomes dosintegrantes originais dabanda no mostrador eo ano do primeiro disco(1976) gravado na parteexterna. Ele mostrou aofinal da entrevista.

nhos, que era todo em quadrinhos. "Massa,coisa legal pra caramba, um livro acadêmicoem quadrinhos, não escrito. Cara, isso aquié muito legal". E, bom, depois ele lançoumais outros dois livros sobre quadrinhos,em quadrinhos também. Eu comecei a meinteressar pela bibliografia da área, fui che-gando no Scott McCloud, no Thierry Gro-ensteen (teórico francês dos quadrinhos),e outros pesquisadores que trabalhamcom quadrinhos aqui e fora, o WaldomiroVergueiro (fundador e coordenador do Ob-servatório de Histórias em Quadrinhos), oPaulo Ramos (jornalista e membro do Ob-servatório de Histórias em Quadrinhos), efoi algo natural, aconteceu. Sei que tem umpessoal de metodologia que diz que vocênão escolhe o objeto, o objeto que escolhevocê. Acho que é uma frase bastante perti-nente, a gente entra numa relação de dialé-tica com as coisas, de algum modo aquiloali lhe convida, e você aceita o convite evocê vai. E a partir daí foi uma coisa mais oumenos natural, comecei a comprar livros, li-vros em quadrinhos, quadrinhos, participeide eventos, orientei monografias, e, quandovocê vê, você já está envolvido, já tá toma-do pela pesquisa.

Maurício - Os quadrinhos foram umacoisa que fazia parte da sua vida na infância.Como é que foi se reaproximar deles poresse campo mais teórico, como é que mu-dou a sua relação com esses produtos quejá eram muito seus, de certo modo?

Ricardo - Cara, foi bacana! Primeiro por-que, desde que eu me lembre de ser gen-te ... A minha mãe diz que a foto mais antigaque tem de mim - mais antiga não, porqueela tem de quando eu era recém-nascido -mas a foto que eu me lembro, eu mais oumenos como gente, não mais neném, nãomais bebê, uns três, quatro anos de idadeeu devia ter, porque não usava óculos aindana foto, é de mim com um gibi na mão, acamiseta com o Tio Patinhas em borracha-do. E eu lia muito gibi ... Assim como tinhamuitas enciclopédias e livros na minha casa,meu pai, como estudava inglês - e era obri-gado a estudar inglês, porque trabalhavanuma fábrica onde só tinha ele de brasileiro,o resto era tudo americanos e japoneses -,então ele tinha de ouvir rádios americanas,ler Time, Newsweek (revistas americanas),e comprava muito gibi americano, também,lá no aeroporto de Congonhas ou ali pelaPraça da República, lá em São Paulo. Eu fi-cava fascinado porque, aqui no Brasil, atéhoje o padrão da Abril é aquele formatinhopequenininho, e os comic books america-nos são maiores, a letra era maior, a retículapulava na impressão da página ... Eu olhava:

"Cara, que coisa linda". Não entendia nadaporque não entendia inglês, obviamente,né? A língua oficial estrangeira que você ti-nha de estudar na escola era o francês, nãoera o inglês, era a língua que eu estudava naescola lá no Roldão - a gente podia até sairladrão, mas saía ladrão falando em francês.Então, eu olhava os quadrinhos em inglês ..."Cara, essa história deve ser MUITO bacana,ainda que eu não entenda porra nenhumado que é que eles estão falando", porque ti-nha a questão das linhas cinéticas, de todauma composição de quadro, e aquilo memarcou.

Depois, eu fui atrás de saber se essas his-tórias saíam no Brasil, comecei a comprarHeróis da TV (revista com histórias de su-per-heróis publicada pela Editora Abril entre1979 e 1988), Grandes Aventuras Marvel co-meçaram a sair aqui no Brasil. .. (não pareceter existido uma revista chamada GrandesAventuras Marvel. Grandes Herois Marvelfoi publicada entre 1983 e 2000, enquanto$uperaventuras Marvel foi publicada entre1982 e 1997) Infelizmente, nunca encontreios gibis que eu li na época. Só depois euencontrei pelo menos um. E, com a coisa daoficina, pesquisa, você começa a construiroutro olhar sobre os quadrinhos e permiteaté que você releia alguns quadrinhos quevocê já leu e perceba determinadas solu-ções gráficas, ou estéticas, que você olha:"Caramba, isso aqui é genial."

E é isso um pouco que eu tento trazer praoficina, pra disciplina de quadrinhos, quan-do é possível de ministrar ... Pensar o qua-drinho como uma forma estética e artística,uma forma de expressão que tem um modopróprio de se articular e também permitesoluções particulares, próprias dos quadri-nhos, que não são do cinema, que não sãodo teatro, que não são da música ou da lite-ratura. E acho que consegui fazer isso comum ex-aluno, que acabou nem terminandoa disciplina, ele mandou um emai/: "Cara,quero lhe agradecer" "Por quê?" "Porque eupeguei meus gibis antigos e fui reler ... Acheio maior barato por conta da disciplina". En-tão, fiz a lição de casa direitinho. O puxãode orelha do Agostinho acho que deve tervalido a pena, provavelmente.

Alana - Ricardo, como é que você enxer-ga a produção de quadrinhos aqui no Cearáe como é que a oficina tem contribuído paraessa produção?

Ricardo - Posso ser sincero e dizer quenão acompanho muito a produção local? (ri-sos). Primeiro por absoluta falta de tempo.Quando eu digo falta de tempo, é no sentidoque as pessoas chegam pra mim e pergun-tam: "Você assiste série tal? Você assiste

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novela tal? Você acompanha gibi tal? Vocêleu o livro tal?" Olha, não dá, não dá. A ofer-a é tão grande hoje - como dizia o velho

Raul Seixas (músico brasileiro de rock), "étanta coisa no menu que eu nem sei o quecomer" - que não dá pra acompanhar tudo,é realmente impossível. E como eu tenhoadotado um lema de vida de uns anos pracá de só usar a Internet o mínimo necessá-rio, em doses homeopáticas, com recomen-dação médica, duas, três vezes por semana,mais ou menos, então eu não acompanhomuito. Lógico que, às vezes, algumas coi-sas me chegam à mão, eu acho interessan-te, acho bacana. O que talvez falte seja ummaior - posso estar enganado, também, jáque eu não acompanho muito bem - ummaior senso de organização das pessoas,não em produzir, porque muita gente pro-duz, mas em fazer com que esse materialcircule de modo mais interessante. Por maisque tenha a Internet, e a Internet ajuda muitonisso, de certo modo, são muito pontuais asideias de: "Vamos unir esforços e fazer ummaterial" ... Não que o impresso seja maisimportante que o digital, não exatamenteisso, mas, de algum modo, o impresso so-brevive mais do que o digital.

Na casa de vocês provavelmente vai terlivros do tempo dos seus pais, dos seusavós, mas não tem o disquete que vocêsusavam há dez anos atrás. A minha filhamais nova: "O que é que é isso? Esse ico-nezinho aqui do (Microsoft) Word." "É umdisquete." "O que é um disquete?" "Ah, mi-nha filha, deixa, não precisa mais saber não,

já passou o tempo." Então, de algum modo,falta na produção local um pouco mais dearrojo, de dar a cara a tapa, de arriscar mais.Eu tomo como exemplo um pessoal queeu acompanhei alguma coisa, de Pernam-buco, o pessoal do Domínio Público, que émais ousado, pega Allan Poe (Edgar AllanPoe, autor americano pioneiro do gênero dohorror e da ficção poíicieis, pega Mary Shel-ley (escritora e contista britânica, autora deFrankenstein), pega Lima Barreto (escritor ejornalista brasileiro, autor de Triste Fim DePolicarpo Quaresma), transforma em qua-drinhos, faz uma releitura radical, publica,bota nas livrarias, você chega na Culturaem Recife e tá lá o material deles. Às vezes,a impressão que dá, e alguns colegas co-mentam, é que eles produzem muito pra simesmos, pros próprios egos. "Olha, eu seifazer ... " Tá, cara, mas dá pra forçar mais, dápra estender essa barreira, não pensar tanto

"Ouando a genteficou junto, eu já sabiadas virtudes dela, ela

já sabia dos meusdefeitos, então tava

tudo organizado, tavatudo no lugar."

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Tanto Ricardo quan-to Mauricio pensavamem fazer cursos na áreade exatas até a época dovestibular e acabaram porfazer um curso na área dehumanidades. Nenhumdeles se arrepende.

Ricardo ofereceu es-firra do Habib's, pois se-gundo ele falava demais ea entrevista poderia durarhoras. Felizmente, não foipreciso, embora quasetodos os entrevistadorestenham gostado da ideia.

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Um dos colegas desemestre dos entrevista-dores, Luan Carvalho, foicitado elogiosamente porRicardo. Ao saber dessefato, Luan pediu que esse"momento de glória" delenão fosse editado da en-trevista.

A equipe de produ-ção ofereceu a Ricardouma garrafa de água paraque ele bebesse duran-te a entrevista. Ela só foiaberta depois do final daentrevista.

"Alqurnas pessoas dizem que a gente tem demorrer de medo das pessoas que têm certezadas próprias certezas. Eu não tenho nenhuma

certeza de nada."

em termos de: "Vou satisfazer o meu ego,do pessoal que tá a minha volta, da minhagalera, da minha patota", mas meter mais opé na jaca, de algum modo.

Quando você lê um livro como o da Ali-son 8echdel (cartunista americana), não seise alguém leu aqui, o Você É Minha Mãe ouo Fun Home, em que ela vai explicitar a ho-mossexualidade dela, a relação dela com opai ou com a mãe, os problemas dela emrelacionamentos, e escancara tudo, tá numoutro nível, outro patamar de expressão,realmente fica muito desigual. Tô pegandoa Alison 8echdel como um exemplo, temoutros, mas enfim ... Quadrinho não é só fa-zer quadrinho, quadrinho é uma forma deexpressão que dá um puta trabalho de serfeito - pensar em roteiro, poses, diálogos,planejamento de página - mas é muito po-deroso. Então, a gente tem de ter noção deque nós podemos extrair de paralinguagem,e acho que às vezes, os quadrinistas daqui'- de modo geral, lógico que tem exceções,mas de modo geral - parecem que não per-ceberam ainda que dá pra ir mais além doque eles fazem.

Ingrid - Agora a gente vai entrar na partemais do encerramento da entrevista, e nes-se momento a gente quer falar um poucodo seu relacionamento com a Neila (NeilaFontenele, colunista de Economia no jornalO Povo e esposa de Ricardo). É que vocêsse conhecem há praticamente 30 anos ...

Ricardo - Praticamente não, há 30 anosIngrid - Há 30 anos, perdão. Como foi o

começo do relacionamento de vocês?Ricardo - Eu lembro da Neila quando es-

tava fazendo o básico aqui do Jornalismo -era Comunicação, né? - na cadeira de Psi-cologia, passou, chamou a atenção, lembroda roupa que ela usava até hoje - eu nãovou entrar nesses detalhes que são questõesíntimas - e, ao longo do tempo, nós fomosamigos. Tem essa coisa que escorpiano sedá bem com libriano, não sei se é verdadeou não, e, no sétimo semestre, já no final dafaculdade, rolou. E é o tipo de relacionamen-to que tem certa vantagem, eu costumo dizeraté pros alunos, brincando, porque é um re-lacionamento no qual você já conhece, maisou menos, o outro. Ninguém tem de criar

máscaras, ou botar aquela roupa que nunca.usa, botar o perfume que nunca usa, pra fazerpose, pra fazer charme, pra fazer uma facha-da. Quando a gente ficou junto, eu já sabiadas virtudes dela, ela já sabia dos meus defei-tos, então tava tudo organizado, tava tudo nolugar. É uma relação tranquila no sentido de:"Quando a gente namorava, você era assim.Agora que a gente casou, você é diferente.Antes você ia no cinema comigo, agora vocênão vai mais. Antes você lavava louça, agoravocê não lava mais", essas coisas que acon-tecem com certos casais, que, quando temmuita encenação pré-relacionamento, "ah,eu sou melhor do que eu pareço ser", quan-do você passa pra realidade sob o mesmoteto tudo muda.

Ingrid - Essa sua postura um pouco mais,vamos dizer, "liberal", influencia no jeito emque você educa suas filhas, essa postura depai ou mesmo de marido, de estar numa re-lação com uma pessoa?

Ricardo - Eu acho que tem uma vanta-gem, talvez, que seja eu não me prendermuito a nenhum tipo de convicção. Algu-mas pessoas dizem que a gente tem demorrer de medo das pessoas que têm cer-teza das próprias certezas. Eu não tenho ne-nhuma certeza de nada. Então, talvez isso,de algum modo, facilite. Se eu não tenhonada a me apegar em termos de visão demundo, de ideologia, o que quer que seja,pelo menos eu acho, posso estar enganado,quem está de fora pode perceber de mododiferente ... Mas como eu não tenho nenhu-ma grande queda, uma grande ideologia,nem grande ... "Qual é a sua banda de rockfavorita?" "Ai, cara, não tenho." Não tenhonenhuma banda, nunca cheguei a idolatrarnenhuma banda de rock, nacional ou inter-nacional. "Você vai votar em quem?" "Ah,cara, sei lá. Tudo igual, nenhum deles vaime trazer o conforto que eu queria comoeleitor." Então, como talvez eu não seja mui-to apegado a essas convicções ... Não sei seé um defeito libriano ou é um defeito meu,particularmente. De algum modo, na horaque as opções surgem, elas me fazem pa-rar, pensar minimamente e acatar, se for ocaso. Com relação à vida doméstica, a vidaem casa, eu tento pelo menos ser - pra ser

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om libriano, né? - o mais justo possível.Eu tenho aquela coisa no sentido de: "Seeu fiz comigo, se aconteceu comigo, nada

ais justo que aconteça com a minha es-posa ou com as minhas filhas". É muitoomplicada aquela coisa do "faça o que eu

digo, não faça o que eu faço". Minhas filhassabem que eu matava aula, que eu não eraum grande aluno na faculdade ... "Ai, pai,ocê tem coragem de dizer isso?" "Tenho,

porque, enfim, é verdade. Eu não quero queocês fiquem criando a imagem de 'ah, meu

pai era o fodão, era o rei da cocada preta',não. Eu sou um cara falível, com uma sé-rie de defeitos, como todas as pessoas. Praque vocês mesmas saibam que vocês estãosujeitas a terem defeitos e dificuldades navida." Às vezes os pais, alguns pais, nesseprocesso de querer dourar muito a pílulapra parecerem melhor que são pros filhos,acabam criando outro problema que é: "Eusou tão bom pai, ou tão boa mãe, que euposso proteger você mais do que deveria dacondição de filho." Então, de algum modo,eu só quero que a minha esposa e minhasfilhas vivenciem aquilo que elas devem vi-venciar sem nenhum tipo de imposição daminha parte, no sentido das escolhas. "Pai,o que eu faço pro ENEM (Exame Nacionaldo Ensino Médio)? " "Minha filha, faça o quevocê quiser. Eu acho que você poderia fa-zer isso ou aquilo, mas, enfim, a vida é sua,quem vai cursar o curso é você, se você nãopassar quem vai pagar o cursinho sou eu,enfim, a decisão é sua." E eu não fico estres-sando minha filha, "Olha, vá se matar de es-tudar", ela já tem pressão demais. A gentetem muito mais que ser o conforto dela, emalguns momentos, da minha filha mais ve-lha, do que ficar dando lição de moral, "façaisso, faça aquilo". A mais nova, tem de darlição de moral ainda porque ela só tem 12anos. Tem de ter alguma moral, porque, se-não, se deixar tudo frouxo também nada fazsentido. Mas eu tento manter uma relaçãomais aberta possível dentro de casa. Se euconsigo ou não é outra coisa, você tem deperguntar pra elas depois. Eu só posso daras minhas impressões.

Alana - Ricardo, voltando pro assuntoque a gente interrompeu no começo da en-trevista, que você disse que tem se aproxi-mado da filosofia ... É correto usar esse ter-mo, filosofia zen?

Ricardo - Vamos chamar de prática?Alana - Prática zen. Você tem se aproxi-

mado da prática zen. Como é que você temenxergado o mundo agora?

Ricardo - Agora. Agora. (risos)Maurício - Primeiro, como foi essa apro-

ximação e como é que você entende ...

Ricardo - Tá. Eu não tinha a menor ideiado que era o zen, ou tinha aquela visão meioequivocada de que o zen é a pessoa parar,botar a bunda na praia, na areia, ficar meiocom a mãozinha assim (Ricardo coloca amão na cintura), fazendo nada. Que é aque-la coisa ... "A ideia do zen é a pessoa muitotranquila, muito pacata", e o zen não tem aver com essa ideia de quietude, tem a vercom uma ideia de ação, de aqui e agora.Como é que eu descobri o zen? Já fui pro-fessor de Teoria da Comunicação e lia muitoo pessoal de Paio Alto (Instituto de PesquisaMental de PaIo Alto), pessoal que trabalhacom uma ideia de comunicação que envolveantropologia, psicanálise, envolve um olharinterdisciplinar. E dois autores em particularfalavam muito sobre a coisa do zen, o PaulWatzlawick, que era psicanalista austríaco,e o Gregory Bateson, que era antropólogonorte-americano. Eu lendo um livro sobrePaio Alto, sobre a escola desses autores,desses pesquisadores, falava muito que oGregory Bateson tinha muito contato como Alan Watts, que era um escritor britânicoque tinha tido contato com um mestre zen,que publicou livros aqui no Ocidente, levouuma vida zen, morou numa casa flutuante alina Califórnia, onde morreu, e dava palestrasna casa dele. E como pesquisador da áreade comunicação, "bom, cara, eu tô lendoaqui sobre esses autores, psicanálise, an-tropologia, tenho deler alguma coisa sobreo zen pra ver o que significa". E via aquelaspassagens do Watzlawick, tipo: "O discípulochega pro mestre e pergunta pra ele: 'Mes-tre, quando é que eu vou poder me tornarum mestre?' E o mestre responde: 'Quandoaprenderes que não existem mestres." E euolhava aquilo ali e ficava meio fascinado,"mas o que é que quer dizer isso?" Ou entãoa velha história da vaca, né? "A vaca precisapassar por uma janela. Ela passa o chifre,passa a cabeça, passa as patas, passa o cor-po, mas não passa o rabo. Por que não pas-sa o rabo?" "Porque não passa o rabo, por-que não passa o rabo, sei lá porque que não

"Eu não sei dizer comoé que eu sou. Eu seidizer como é que eu

ajo, (... ) mas como eu,sou, o que eu sou, ealgo um tanto quanto

complicado."

RICARDO JORGE I 31

Ao final da entrevista,Thais conversou por al-guns minutos com Ricar-do sobre o Santo Inácio,onde ambos estudaram.Thals também queria sa-ber se Ricardo havia estu-dado com o pai dela.

Ricardo só perguntouno fim da entrevista se po-dia saber quem o tinha in-dicado ou se era segredo.A produção contou paraele, que disse ter gostadomuito de ter participado.

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Ao escolher as fotosque iriam sair na ediçãoda revista, a produção eo fotógrafo notaram queSarah e Rose saíram sé-rias em quase todas asfotos que aparecem.

Maurício se surpreen-deu com o conhecimentoastrológico de Ricardo ea importância que ele deuao seu signo para a cons-trução da própria perso-nalidade.

passa o rabo." Aparentemente, isso não temnenhum sentido, mas é próprio do zen ten-tar pegar um pouco essa lógica da visão demundo. Perguntaram-me aqui pra explicaro zen, né? Precisaria de uma tarde toda prafazer isso e não chegaria a lugar nenhum,provavelmente.

Mas o que é que o zen propõe, em termosgerais? Que só há uma meta nessa vida, queé o agora. "Agora" não no sentido egoístada palavra, mas agora no sentido de ... Opassado já morreu. O começo dessa entre-vista não existe mais, no máximo o registrodela. O futuro dela também, não sei onde éque tá o fim dela, porque eu não sei o pontode corte dela, onde a gente vai parar. Então,só tenho o agora, pra começo de conversa.Se só tenho o agora, eu tenho de tentar nemcriar expectativas grandes em relação ao fu-turo, porque eu não sei, nem criar amarrasem relação ao passado porque ele não existemais. Isso implica em quê? Se só tem agora,não tem nem passado nem futuro, a únicacoisa que importa num primeiro momentoé você, mas "você", pensando em termosde: "Eu sou, mas eu estou em conexão comoutras pessoas". E estar em conexão comoutras pessoas significa - o zen não diz isso,mas a gente pode deduzir - : "Eu poderiaestar no lugar das outras pessoas". É umaespécie de conexão entre o indivíduo e to-das as coisas que estão no planeta, todos osindivíduos, animais, ar, oxigênio, o que querque seja. Eu não atingi o zen ainda, tá? Tôlonge disso. O zen é uma coisa que algunsdescobrem, em algum momento: "Ah, cara,é isso", e a vida dela muda completamente.A minha não mudou completamente ainda.Ainda tenho contas pra pagar, preciso dedinheiro, preciso criar minhas filhas, todasessas coisas. Mas, de algum modo, a gen-te aprende a enxergar o mundo de outrasmaneiras. Uma coisa que o zen ensina, porexemplo, tá ligada à ideia do jiu-jitsu. Al-guém aqui pratica artes marciais? Jiu-jitsu?

Amanda e Ingrid - Aham.Amanda - Eu faço muay thai.Ricardo - O jiu-jitsu parte de um precei-

to zen que diz que quanto mais força vocêimpõe contra o destino, mais você se que-bra. Ele dá o exemplo da árvore com o ga-lho grosso que vai acumulando neve, e ogalho quebra. E um galho muito fino, quenão faz força, a neve vai e passa, e o ga-lho continua lá, intacto. Que é o princípio dojiu-jitsu, pra quem luta jiu-jitsu: o cara vem,eu vou segurá-Io? Não, eu vou fazer o movi-mento dele continuar pra ele perder o eixode equilíbrio dele e cair no chão. É comotentar meter um soco numa parede de pa-pel. É inútil. Eu vou meter força mais do que

deveria pra cair no chão. Então, o zen passaum pouco por tudo isso, e ele parte de umapremissa muito forte, que é: "Você tem deser quem você é." E pratica outras ideiasdo tipo: "A linguagem não explica o mun-do" - por isso que vai chegar em Paio Alto,na questão da linguagem, da comunicação-, a linguagem ajuda a descrever o mundo,mas a linguagem não é o mundo. Um exem-plo que os mestres zen dão: eu não possodescrever a experiência do pôr do sol pra·um cego de nascença. Como é que eu façoisso? Como é que eu transmito a sabedoriazen pra alguém analfabeto, que nunca es-tudou sociologia, filosofia, Aristóteles, Pla-tão, o que quer que seja? A única coisa queinteressa efetivamente é o indivíduo e se oindivíduo tem de experimentar o máximode coisas possível. Por isso eu falo da coisado TCC, que na minha cabeça o aluno só fazsentido fazer TCC se ele quiser se banhardaquela experiência que vai fazer bem praele de algum modo, na relação com as ou-tras pessoas. E, quando eu falo dessa coisado zen, ele começa a encaixar muitas coisasem termos de lógica, de vida, de percepçãoda realidade ... Coisas que não vão caberaqui nesta entrevista, provavelmente, maspodem ser resumidas no seguinte: "Tire doseu caminho qualquer coisa que atrapalhesua meta". Alguns dizem: "Se o Buda estálhe atrapalhando, tire o Buda, se a igreja tálhe atrapalhando, tire a igreja" ... O zen é le-gal porque ele não é desse ponto de vistadogmático, em termos de uma escritura, deum templo, de um local, não. Você pode serzen em qualquer canto. Mas eu tô num pro-cesso ainda.

Karine - Quando a gente estava falandocom você, tanto os meninos da produçãocomo a gente que faz a cadeira de TCC, agente estava falando sobre esta entrevista,você tinha falado que poderia ser desinte-ressante (os dois riem). Eu quero saber seera um pouco de brincadeira, (até porque)essa experiência, como você disse, vocêpensou agora em algumas coisas que nuncatinha pensado antes, e se isso mudou algu-ma coisa.

Ricardo - Lógico que muda. Porque, dealgum modo, algumas provocações queforam feitas aqui significam, foram percep-ções de vocês que eu não tinha, por qual-quer tipo de motivo, condições de perceber.Incapacidade minha, impossibilidade minha,tontice minha, não sei, né? "Como você é?"É uma pergunta que talvez seja a mais di-fícil de ser respondida. "Como é que vocêmesmo é?" Eu não sei dizer como é que eusou. Eu sei dizer como é que eu ajo, comcircunstâncias devidas ou não devidas. Mas

REVISTA ENTREVISTA I 32

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como eu sou, o que eu sou, é algo um tantoquanto complicado. Falando dessa coisa deimitar vozes, a pessoa mais difícil de vocêimitar é você mesmo. Eu não saberia meimitar. Eu não sei quais são os trejeitos, ascoisas que eu tenho, e se eu conseguiria meimitar. Outras pessoas eu imito brincando,sem nenhum tipo de problema. Então, é amesma lógica. As perguntas, e algumas ou-tras que não foram feitas aqui, que me pro-blematizam determinadas percepções demim que eu tenho preparado com respeito àvida, não são gratuitas. Vocês perceberam,por algum motivo, assim ... "Ele tem umasérie de coisas aqui. Ou ele não sabe ou elenão percebe, faz de conta que não sabe, nãosei", mas isso faz parte do jogo da entrevistajornalística. É você extrair da pessoa mesmoaquilo que ela não sabe, pra um engrandeci-mento dela própria, inclusive, e de quem vailer a entrevista também.

RICARDO JORGE I 33

Uma das dificuldadesque os produtores tiveramdurante a decupagem foia quantidade de citaçõesde conversas passadasque Ricardo fazia durantea entrevista, fazendo comque o uso de aspas fossemuito alto.

Ricardo acabou setornando o orientador damonografia de Maurício.O tema dela - a reporta-gem jornalística em qua-drinhos - fez de Ricardouma escolha óbvia.