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1 A questão do ocaso das vanguardas é inseparável do tema do fim da arte, recorrente na prática artística e na produção teórica do século passado. Consideraremos as vanguardas artísticas extensivamente, como o período que se estende do fim do século XIX - com o dito impressionismo francês - aos anos 1960 e 1970 do século XX, com o minimalismo, o conceitualismo ou o hiper- realismo, de acordo com as convenções da historiografia da arte. Nesse sentido, identificaremos o ciclo das van- guardas ao período da modernidade artística, embora sai- bamos evidentemente que apenas alguns artistas brada- ram a plenos pulmões, e com pincéis em punho, palavras de ordem, anunciando como haveria de ser não apenas a arte do futuro, senão o próprio futuro. Essa periodização se justifica, haja vista que o objetivo desse texto é tão- somente estabelecer a relação entre o imaginário da modernidade artística, que pode ser caracterizado pela cren- ça que os artistas de vanguarda depositaram nos poderes transformadores da arte, e o imaginário contemporâneo, ou pós-vanguardista. O FIM DAS VANGUARDAS Ricardo Nascimento Fabbrini* * Ricardo Nascimento Fabbrini é doutor em filosofia pela USP (A arte depois das vanguardas) e professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP. É autor dos livros O Espaço de Lygia Clark, São Paulo, Atlas, 1994 e A arte depois das vanguardas, Campinas, Ed. da Unicamp, 2002 e dos capítulos “A Apropriação da Tradição Moderna”, in J. Guinsburg e Ana Mae Barbosa (orgs.), O Pós-Modernismo. São Paulo, Perspectiva, 2005, e “A crítica de arte depois das vanguardas”, in: B. Brites e E. Tessler. (orgs.), O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas, Porto Alegre, Ed. da UFRGS, 2002;

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A questão do ocaso das vanguardas é inseparável dotema do fim da arte, recorrente na prática artística e naprodução teórica do século passado. Consideraremos asvanguardas artísticas extensivamente, como o período quese estende do fim do século XIX - com o ditoimpressionismo francês - aos anos 1960 e 1970 do séculoXX, com o minimalismo, o conceitualismo ou o hiper-realismo, de acordo com as convenções da historiografiada arte. Nesse sentido, identificaremos o ciclo das van-guardas ao período da modernidade artística, embora sai-bamos evidentemente que apenas alguns artistas brada-ram a plenos pulmões, e com pincéis em punho, palavrasde ordem, anunciando como haveria de ser não apenas aarte do futuro, senão o próprio futuro. Essa periodizaçãose justifica, haja vista que o objetivo desse texto é tão-somente estabelecer a relação entre o imaginário damodernidade artística, que pode ser caracterizado pela cren-ça que os artistas de vanguarda depositaram nos poderestransformadores da arte, e o imaginário contemporâneo,ou pós-vanguardista.

O FIM DAS VANGUARDAS

Ricardo Nascimento Fabbrini*

* Ricardo Nascimento Fabbrini é doutor em filosofia pela USP (A arte depois dasvanguardas) e professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP. É autor dos livros OEspaço de Lygia Clark, São Paulo, Atlas, 1994 e A arte depois das vanguardas, Campinas, Ed. daUnicamp, 2002 e dos capítulos “A Apropriação da Tradição Moderna”, in J. Guinsburg eAna Mae Barbosa (orgs.), O Pós-Modernismo. São Paulo, Perspectiva, 2005, e “A crítica de artedepois das vanguardas”, in: B. Brites e E. Tessler. (orgs.), O meio como ponto zero: metodologia dapesquisa em artes plásticas, Porto Alegre, Ed. da UFRGS, 2002;

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Essa generalização, contudo, não deve sacrificar adialética interna à modernidade que se manifesta no cará-ter afirmativo de certas vanguardas, e negativo, em outras.De modo que se constituíram, ao longo do século XX,duas linhagens, ainda nos termos da historiografia. A pri-meira é a das vanguardas construtivas, positivas, afirmati-vas, compromissadas com o capitalismo industrial, comoo futurismo, e a escola da Bauhaus - ou, no caso da Rússia,dependentes do desenvolvimento das forças produtivas,que levariam o país, na fé dos construtivistas, do czarismoao socialismo. A segunda linhagem é a das vanguardaslíricas, ou pulsionais, como no caso do sortilégio anarco-dadaísta, que, desde o início do século, fez a crítica dessecompromisso com a racionalidade técnica ou instrumen-tal.

Essas vanguardas, de sinais contrários, compartilha-ram, todavia, o mesmo objetivo de embaralhar arte e vida,no sentido da “estetização do real”, ainda que assumindoestratégias diversas. As vanguardas positivas, com sua féna máquina, visavam dissiminar a arte no cotidiano pelaestandardização dos protótipos formais criados pelos ar-tistas. Pela via do design se desenharia, segundo os artistasconstrutivos, a vida do dia-a-dia, vertendo-a, assim, emobra de arte. Por outro lado, as vanguardas negativas, queapostavam no enguiçamento da máquina, buscavam esseembaralhamento na poetização do gesto. Para esses, dandysou dadás, tratava-se de reagir ao sex-apeal do inorgânico,fazendo com que irrompesse subitamente em meio aoramerrão da vida diária - como um estrondo - a poesia.

São diferentes desenhos de utopia que revelam, con-tudo, a mesma confiança dos artistas de vanguarda do iní-cio do século no poder da arte de transformar a realidade,de contribuir para a mudança da consciência e impulso

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dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo.Apesar da crise dessa crença as vanguardas não se viramde imediato neutralizadas, pois mesmo dissociadas dasidéias de revolução e utopia continuaram a revolucionaros códigos artísticos (como nas vanguardas norte-ameri-canas ou tardo-modernas dos anos 1970: o expressionismoabstrato, os field-colors, os happenings, as performances ouos conceitualismos de raiz neodadá). Para as vanguardasconstrutivas a estetização da vida adviria da democratiza-ção do acesso à produção em larga escala de mercadorias,enquanto que para as vanguardas “destrutivas”, resultariada crítica à mercadoria, feita fetiche. Essas duas divisasimplicaram, além disso, conseqüências comuns, como adesmitificação da função do artista, a “desauratização” daobra de arte, e a dessacralização dos materiais.

É preciso, ainda, no intento de caracterizar amodernidade artística (assumindo também essa generali-zação) dividi-la em duas fases: o período da modernidadehistórica ou das vanguardas heróicas da primeira metadedo século; e o período das vanguardas tardias, posterioresà Segunda Guerra Mundial. A passagem de uma fase aoutra pode ser localizada na mudança do pólo difusor daarte e da cultura, da Europa Ocidental para os EstadosUnidos, que, diga-se de passagem, acolheram inúmerosartistas, arquitetos e colecionadores europeus de braços ecapital abertos. Pensar esse deslocamento é perceber queao longo do tempo o intento vanguardista de romper coma Tradição Artística acarretou o surgimento de uma novatradição - a “tradição do novo”, na expressão de HaroldRosemberg; ou a “tradição da ruptura”, nos termos deOctavio Paz. Essa passagem de Paris a Nova Iorque, queveio a atender ao intento americano - que remonta à ex-posição Armory Show que, em 1913, difundiu nos Estados

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Unidos a “arte de vanguarda européia” - de possuir umaarte moderna autóctone, que colocasse o país na linha defrente da cultura internacional.

Com o expressionismo abstrato de Jackson Pollock aarte norte-americana teria se tornado moderna, ao menossegundo o crítico Clement Greemberg, ou, ainda, segun-do o Departamento de Estado Americano, o qual, lastreadopor esse crítico, teria convertido - segundo certos histori-adores - esse “estilo” baseado no “gesto livre”, em cartãode visitas de uma pátria supostamente livre. De todo modo,o importante é assinalar, aqui, que as vanguardas tardias,principalmente americanas, constituem um capítulo damodernidade artística na medida em que seus artistas ain-da se orientavam pela experimentação formal, sintetizadano mote “make it new” do poeta Ezra Pound, embora seafastassem da perspectiva utópico-revolucionária do iní-cio do século.

Essa aclimatação das vanguardas nos Estados Uni-dos é inseparável de um processo de institucionalizaçãoda arte moderna - que já foi caracterizado como o “para-doxo do Marinetti acadêmico” - em curso desde o fim daSegunda Guerra Mundial. Para essa interpretação, as van-guardas tardias seriam elos de uma lógica imanente da for-ma artística que remonta ao início do século - no sentido,por exemplo, de que o expressionismo abstrato teriaradicalizado a técnica do automatismo-psíquico dosurrealismo francês dos anos 1920; ou de que ominimalismo americano teria levado ao extremo a abstra-ção geométrica de Piet Mondrian ou Kasimir Malévitchque, por sua vez, teria radicalizado o cubismo de GeorgesBraque e Pablo Picasso, que, por seu turno, teria explicitadoa geometria apenas indiciada na pintura de Paul Cézanne.

Na década de 1970, tivemos, assim, uma arte de van-

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guarda pós-utópica, ou seja, destituída de qualquer funçãoprospectiva, uma vez que a arte desse período não se vol-tava mais para o futuro, região do inesperado e da espe-rança - o que não significa, evidentemente, como vere-mos, que à arte caberia tão-somente, a partir de então, aafirmação cega da realidade existente. No início da déca-da de 1980, por fim, críticos e artistas, de diferentes paísesdiagnosticaram o fim da própria idéia de vanguarda, umavez que não identificavam no cenário cultural um novomovimento artístico internacional ou estilo moderno.

Essa questão do fim das vanguardas é inseparável dotema do fim da arte, pois, à medida que as vanguardasforam se exaurindo, ou seja, perdendo o seu ímpeto trans-formador, elas foram - segundo Fredric Jameson - “setransformando em farsa”.1 As obras das vanguardas seconverteram, nas décadas de 1960 e 1970, para o crítico,em jogos aleatórios de signos, em formas artísticas lúdicas,vazias, auto-referentes - como o conceitualismo ouminimalismo -; e, conseqüentemente, em formas destitu-ídas de todo poder de negatividade. Fredric Jameson ca-racteriza a obra de arte na pós-modernidade - o períodoposterior às vanguardas artísticas internacionais - como“materialidades significantes pairando livremente, cujossignificados estão em vias de se evaporarem”.2 Em outrostermos: a obra, enclausurada nas relações internas entresignificante e significado teria perdido, desde então, o po-der de nomear a realidade; ou seja, de apontar para o refe-rente, entendido como “o mundo histórico”.3

Do ocaso das vanguardas teria resultado, assim, o

1 JAMESON, Fredric, “Periodizando os anos 70”. In DE HOLLANDA, Heloisa Buarque(org.), Pós-modernismo e política, Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 93.2 JAMESON, Fredric, “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, Novos Estudos CEBRAP,São Paulo, no. 12, jun. 1985, p. 24.3 JAMESON, Fredric, “Periodizando os anos 70”, op. cit., p. 124.

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apagamento de qualquer exterioridade à forma artística.O referente, uma vez expulso do coração da obra, se limi-taria a rondá-la, hamletianamente, como um “pós-efeitoresidual fantasmagórico”.4 Flutuando livremente no vá-cuo porque só dobra de uma lógica imanente à formaartística, o referente operaria, apenas, como um “lembre-te espectral” de seu lado de fora; o que era a “autonomiada obra”, condição necessária de sua negatividade, teria seconvertido na clausura de um jogo anônimo e esotérico.A morte da arte seria para o crítico o resultado, em pou-cas palavras, de uma prática homicida por parte do artista- “o assassinato do mundo”.5

O fim das vanguardas não significou, contudo, comotemia Fredric Jameson, a morte da arte e sequer o fim daprópria arte moderna, uma vez que esta está presente,enquanto signo (ou linguagem artística) na arte do pre-sente; mas esse declínio assinala o fim de um dado imagi-nário: o ideário vanguardista indissociável de uma deter-minada concepção de temporalidade. No imaginário dosartistas de vanguarda - indiciado no frenesi dos ismos quevisavam produzir cismos na história da arte - prevalece aidéia da aceleração do tempo histórico - e portanto dacisão entre o presente, o passado e o futuro; predomina aconcepção de um tempo dividido num presente fugaz semum passado regulador que se projeta num futuro sempreinatingível. Esses artistas partilharam da crença nas idéiasde evolução, de progresso - do latim pro-gredior: “ando gra-dualmente para frente” - de aperfeiçoamento, de mo-vimento, de tempo sucessivo, linear, homogêneo, cumula-tivo e vazio, a ser ocupado, fundado.

Nos termos de Jürgen Habermas, houve no curso da4 Idem, p. 109.5 JAMESON, Fredric, A Cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, Petrópolis: EditoraVozes, 2001, p. 129.

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“modernidade” uma “desdiferenciação” das esferas devalor: ciência, moral e arte. O campo da “autenticidade oudo belo” (ou “estético-expressivo”) foi colonizado pelocampo da “técnica e da ciência” (o “saber cognitivo-ins-trumental”), de tal modo que passou a ser regido pela con-cepção de progresso, conceito interno à história das ciên-cias, numa perspectiva positivista.6 Na tentativa de resol-ver os problemas advindos da própria lógica imanente daforma, a “autonomia” da obra de arte teria se convertidoem “hermetismo” - no termo comum a Jameson eHabermas - o que significa dizer que a arte de vanguardateria se distanciado de tal modo da “práxis”, que seus efei-tos não seriam mais aproveitados para o “mundo da vida”- no sentido de uma “reconfiguração da existência” (ou,ainda, da estetização do real).

Essa constatação de que a arte não liberava para “omundo histórico” potenciais cognitivos ou emancipatórios,no sentido dos “ambiciosos programas de superação” quemarcaram o “projeto moderno” - nas expressões deHabermas - levou inúmeros críticos a associarem o “fimdas vanguardas” à “morte da arte”. Contudo, o que teriaem comum essa concepção com a versão originária da“morte da arte” em Friedrich Hegel? Lembrando: o fimda arte seria o resultado, em Hegel, do movimento doEspírito Objetivo em direção ao Espírito Absoluto. Pormeio de progressões triádicas ele atravessaria os estágiosda religião, da arte e da filosofia em direção “aautoconsciência histórica de um presente absoluto”.7 Noestágio da arte, por sua vez, teríamos a passagem da artesimbólica à arte clássica - e dessa à arte romântica -, sendo

6 HABERMAS, Jürgen, “Modernidade - um projeto inacabado”. In ARANTES, Otília BeatrizFiori e Paulo Eduardo (orgs.), Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas: arquitetura edimensão estética depois das vanguardas, São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 110.7 JAMESON, Fredric, A Cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, op. cit, p. 76.

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que em cada um desses estilos também localizamos ummovimento ascensional nas diferentes linguagens, das lin-guagens mais materiais às mais espirituais; ou seja, da ar-quitetura à escultura, dessa à pintura, dessa à música, atése chegar à poesia; movimentos, todos eles, em direção daauto-transcendência da estética - ou seja, do fim da arte -ou ainda de sua superação na religião e na filosofia.

A arte seria, para Hegel, a primeira forma de auto-satisfação imediata do espírito absoluto. Ela apresentariapara a consciência a “verdade” no modo da “configura-ção sensível”. É através do “meio sensível” que a arte tor-naria “apreensível o conceito enquanto tal em sua univer-salidade”.8 Sua tarefa seria assim expor a “Idéia” para a“intuição imediata” numa forma sensível, e não na “for-ma do pensamento e da pura espiritualidade em geral”.9

Tendo, contudo, o “conteúdo completo” se apresentadoem configurações artísticas, o espírito que “continua olhan-do para frente volta-se desta objetividade e afasta a arte desi”. “Tal época é a nossa”, sentencia Hegel.10 Nessa época- a do “Romantismo” do século XIX -, a “Forma” (doAbsoluto) deixou de ser, para Hegel, a mais alta necessi-dade do espírito. O próximo âmbito que ultrapassa o “rei-no da arte” é, segundo ele, a religião: “Se a obra de arte, asaber, apresenta a Verdade e o espírito enquanto objetode modo sensível, e toma essa Forma do Absoluto comoadequada, a religião acrescenta a devoção do interior quese refere ao objeto absoluto” (e “que não pertence à arteenquanto tal”).11 Todavia, a interioridade da devoção “nãoé ainda a Forma suprema da interioridade”. Essa - a ter-ceira forma do espírito absoluto - é a filosofia: o “livre

8 NUNES, Benedito, Introdução à filosofia da arte, São Paulo: Buriti, 1966, p. 116.9 Idem, p. 88.10 JAMESON, Fredric, A Cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, op. cit, p. 85.11 HEGEL, G. W. F, Cursos de Estética I, São Paulo: EDUSP, 1999, p. 11.

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pensar”. Pois é o “pensamento sistemático” que apreendeo que antes só é conteúdo da sensação (na etapa da arte),ou da representação subjetiva (na etapa da religião). Dessemodo, o “depois da arte”, em Hegel, consiste no fato de“no espírito habitar a necessidade de apenas se satisfazerem seu próprio interior”, enquanto “verdadeira Forma paraa verdade” - sem qualquer referência, portanto, ao “ele-mento sensível”.12

A morte da arte anunciada por Hegel era uma “certe-za histórica”.13 É verdade que essa superação da arte nareligião advinha da impossibilidade da poesia ou do liris-mo romântico como sua última encarnação - o apogeu deum sistema evolutivo de expressão artística que tinha nasdemais linguagens, como vimos, suas etapas anteriores -continuar seu movimento em direção ao “Ideal”, nummundo tão prosaico. É nesse contexto da sociedade bur-guesa, da falta de conexão entre sujeito e objeto, comodepois mostraria Marx e o marxismo, que “o estado geraldo mundo” - como Hegel denominou o “conjunto dasrelações humanas” - deslocaria o “interesse do espírito”,da arte para o “pensamento reflexivo em geral”.14 A pro-dução artística evidentemente não cessaria, mas ela se li-mitaria, a partir de então, a ser uma expressão do passadoe é apenas nesse sentido - de testemunha das etapas davida anterior do Espírito - que ela ainda interessaria.

A morte da arte foi decretada por Hegel no momen-to do “romantismo artístico e literário”: “um dos maisincríveis processos - arrisca Fredric Jameson sem meias-tintas - de florescimento artístico da humanidade”.15 Sen-do assim, se projetarmos no plano da produção artística

12 Idem, p. 115.13 NUNES, Benedito, Introdução à filosofia da arte, op. cit, p. 146.14 Idem, p. 153.15 JAMESON, Fredric, A Cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, op. cit, p. 81.

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sua Filosofia da História - ou seja, se identificarmos osplanos da filosofia idealista e da produção material e con-creta de obras de arte - constataremos que “Hegel nãopoderia ter escolhido um momento histórico pior paraesse pronunciamento”, pois “o fim da arte não estava naagenda (de críticos e artistas) de seu tempo”.16

Por outro lado, é interessante observar que amodernidade nas artes que se engendrava em meados doséculo XIX, assumia uma função análoga, senãosubstitutiva, a da filosofia, uma vez que a forma artísticaarrogava agora para si a função de “apreender e represen-tar o Absoluto”. Hegel nessa direção diagnosticava - aoreferir-se ao “fim da arte” - a algo efetivamente em cursono período: “Dessa perspectiva Hegel estava absolutamen-te correto”, conclui Jameson: um evento ocorreu - aqueleevento que ele planejara chamar de “depois da arte”; pois“um dos traços constitutivos desse evento foi a morte deuma certa arte, e o advento de outra - a arte moderna”.17

É essa nova arte que, tomando o lugar da filosofia - enão o contrário, no sentido do movimento ascensional deHegel -, visaria ao Absoluto, na medida em que ela seriaagora - ao menos no intento dos artistas vanguardistas -“o modo mais elevado através do qual surgiria a Verda-

16 Idem, p. 86. Embora Hegel se equivocasse, nos termos que vimos, ao prognosticar em seutempo a morte da arte, ele antecipou o caráter problemático que a arte assumiria no séculoXX, como no xeque-mate de Marcel Duchamp. A arte, em certa medida, tornou-se com osready-mades de Duchamp, dos anos 1910, o suporte sensível de uma idéia, não da “Idéia” nosentido hegeliano, mas da idéia enquanto efetuação do pensamento, que coloca em questãoa significação dos objetos numa sociedade regida pela lógica da mercadoria. O artista, alémdisso, enquanto “tipo reflexivo”, como antecipava Hegel, “interrogou-se a si mesmo, sobreo sentido e o destino de suas próprias criações”, (NUNES, Benedito, Introdução à filosofia daarte, op. cit, p. 147). A arte não será mais, a partir de então, uma “certeza inquestionável”, ouum “objeto conquistado e possuído”, o que não significa, como já assinalamos, que ela nãoindiciasse, ainda por décadas, “projetos” – uma espécie de transcendência ou esperança:“Em cada obra de arte que se produz está em jogo – desde o fim das vanguardas, como diziaBenedito Nunes – o destino, ou o sentido da arte; em cada uma delas, o artista arrisca-se amatá-la ou a fazê-la existir, transfigurada” (Idem, p. 148).17 JAMESON, Fredric, A Cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, op. cit, p. 83.

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de”.18 É por isso que alguns autores associaram a artemoderna ao sentimento do sublime de Immanuel Kant; ea arte anterior à modernidade ao sentimento do belo, umavez que essa última, por manter o “ânimo do observadorem serena contemplação”, não pressuporia uma relaçãocom o Absoluto. É nesse sentido que autores tão diferen-tes como Fredric Jameson e Jean-Francois Lyotard recor-reram, cada qual ao seu modo, à “Crítica do Juízo” deKant na tentativa de caracterizar o imaginário damodernidade artística a partir da vocação à transcendênciado “romantismo” que, segundo eles, colonizou o “pro-grama vanguardista”.19

A obra de arte de vanguarda visaria produzir no ob-servador, a julgar por essa interpretação, uma experiênciaanáloga ao do “sentimento de sublime”: uma experiêncasingular, sui generis, porque sem correspondência na vidacotidiana. A fruição estética corresponderia, aqui, à expe-riência da desmesura, do “absolutamente grande” - comodizia Kant - “daquilo, enfim, que está acima de toda com-paração” (o que, há pouco, denominávamos de Absolu-to). O suprematismo de Malévitch, o neoplasticismo deMondrian, o espiritualismo de Kandinsky, por exemplo,produziriam no observador uma “faculdade de ânimo queultrapassando todo padrão de medida dos sentidos”, em-bora veiculada pelos próprios sentidos, teria o poder detransformá-lo.20 O caráter de negatividade, constitutivo daarte de vanguarda, resultaria desse “sentimento deinadequação da faculdade de imaginação” do observadorface “tal grandeza”.21 E na apreensão dessa distância resi-

18 Idem, p. 84.19 LYOTARD, Jean François, O Inumano, Lisboa: Editorial Estampa, 1997, pp. 95-111.20 KANT, Immanuel, Crítica da faculdade do juízo, Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1993,p. 98.

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diria, a seguir ainda essa análise, o potencial revolucioná-rio da arte de vanguarda. E é justamente esse sentimentode impotência frente ao ilimitado que permitiria ao obser-vador viver, ainda que por instantes, a distância entre afelicidade entrevista na fruição artística - inseparável, emKant, do medo e da dor - e a dita realidade existente queinterdita essa felicidade.

O ocaso das vanguardas nas décadas de 1960 e 1970,é conseqüentemente indissociável, segundo alguns críti-cos, do “fim do sentimento do sublime”. É nesse sentidoque é possível argumentar, com Ferreira Gullar, contra amorte da arte, constatando que a arte não morreu; pois oque morreu foi tão-só - o que para alguns é uma perdairreparável - “a idéia de certa arte”, “a idéia de arte moder-na”: a concepção, enfim, de que há uma vocação na artede vanguarda de atingir o Absoluto (ou a Utopia), com asimplicações políticas ou revolucionárias decorrentes des-se “ideário”.22 Não se trata, assim, do fim da arte moder-na, mas da morte de seu ideário, pois as efetuações artísti-cas do período das vanguardas, bem como as possibilida-des lingüísticas nelas entrevistas, estão presentes na arteatual, como destacávamos, de modo que é inadequadotambém por essa razão o uso do prefixo “pós” na expres-são “pós-modernidade”, uma vez que ele implica, mais doque um afastamento da modernidade, seu descarte.

É preciso também examinar na caracterização doimaginário contemporâneo as conseqüências do fim dasvanguardas no plano do pensamento, em particular na fi-losofia. Para alguns autores, o legítimo herdeiro do espíri-to das vanguardas não foi a própria arte, mas a filosofia. A“função do sublime” teria migrado do campo da produ-

21 KANT, Immanuel, op. cit. p. 93.22 GULLAR, Ferreira, Argumentação contra a morte da arte, Rio de Janeiro: Revan, 1993, p. 101.

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ção artística para o campo da filosofia, convertendo-a em“teoria”, ou apenas, em “ideologia”. De modo que, ao fimdo ideário moderno, teria se seguido um “hedonismo es-tético extravagante” (ou generalização do estético):indiciado não somente no retorno ao “belo” - associadopor Jameson ou Habermas, ao “decorativo” - mas tam-bém na “estetização do pensamento”. Dito de modobrutalista: a partir dos anos 1970 foi na “filosofia france-sa”, denominada nos departamentos de letras nas univer-sidades norte-americanas de “pós-estruturalista”, que en-contraríamos - segundo esses autores - uma experimenta-ção formal correspondente à das vanguardas artísticas in-ternacionais: a “busca do novo” que pouco a pouco seconvertera em rotina seria perceptível, agora, na “escritu-ra francesa”, de Roland Barthes ou Gilles Deleuze.

A dissolução das fronteiras entre filosofia e literatura- marca dessa “escritura”, na leitura crítica de JürgenHabermas - resultaria, assim, da colonização do discursofilosófico pelo ideário da modernidade artística. Comba-tendo a dissolução da diferença dos gêneros entre filoso-fia e literatura, Habermas alertou contra o risco da substi-tuição da “consistência lógica” pelo “logro retórico”: “Seo pensamento filosófico se exime (...) do dever de soluci-onar problemas e se assimila suas funções às da críticaliterária, não somente perde sua seriedade, mas tambémsua produtividade e seu alcance (...). Quem traslada a críti-ca da razão ao âmbito da retórica, para assim neutralizar oparadoxo de sua autoreferencialidade, não faz outra coisaque embotar o fio da própria crítica da razão”.23

Ná “desconstrução francesa”, para Habermas, tería-mos uma estilização do pensamento, uma espécie de neo-

23 HABERMAS, Jürgen, Discurso Filosófico de la Modernidad, Madrid: Taurus, 1989, pp. 225-254.

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sofística pós-moderna. Efetuações discursivas como aconversão do autor em sujeito de enunciação, a ênfase naautoreferencialidade dos textos, ou ainda, a substituiçãodos conceitos pelos tropos, teriam embaralhado filosofiae literatura a ponto de as tornarem indistintas. Daí o ar-de-família, segundo Habermas, entre a “filosofia” deJacques Derrida ou Jean-Francois Lyotard e a "literatura"de Ítalo Calvino ou Jorge Luis Borges. Enfim, com a con-quista da América pela “Ideologia Francesa”, desde o fimdos anos 1970 - ou seja, com o fim das vanguardas, se-gundo nossa convenção - disseminou-se uma nova façonde parler, ou melhor, uma nova kind of writing, agora nacaracterização de Paulo Arantes, muito distante da “filo-sofia sistemática” de Wittgenstein, ou mesmo de Sartre: o“último filósofo francês”.24

Esse deslocamento do “ethos vanguardista” para os“excitados maîtres-à-penser” seria reconhecível, por exem-plo, na ênfase dada por Gilles Deleuze & Felix Guattari à“invenção de conceitos” e à criação de um “campo deimanência” entre eles - o que remete à questão do ideoletoda obra de arte, entendido como a constituição intra-esté-tica de cada forma artística singular.25 É perceptível quepara esses críticos esse deslocamento da estética indicianão apenas a esterilidade das vanguardas que, destituídasdesde o pós-guerra de seu ideário, renunciavam agoraàquilo que ainda as legitimava, - a pesquisa de novas for-mas artísticas, uma vez que a “busca do novo”, motor dasvanguardas, se mostrava, cada vez mais, velha veleidade. Ea sobrevida da experimentação formal no campo da filo-sofia, enquanto “temporada desconstrucionista”, ou seja,

24 ARANTES, Paulo Eduardo, “Tentativa de identificação da ideologia francesa”, NovosEstudos CEBRAP, São Paulo, no. 28, out., 1990, p. 79.25 Idem, p. 75.

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como literatura ou crítica literária, não passaria, a julgarpor esse juízo, de uma “mise-en-scène de transgressão”.26

Nessa sobrevida do choc nas letras, o que teríamos,segundo Habermas, é uma “abstenção de inequívoca ín-dole estetizante”: a autonomia da obra teria se convertidona desconstrução francesa, em “nova intransparência”.27

E o intento de, pelo choc, abrir mundo - o que pressupõe opáthos da distância entre obra e público - teria sido subs-tituído por um efeito de fechamento: pelo êxtase diantedo “estranhamento absoluto” do texto. Êxtase não signi-fica, aqui, vislumbrar outra sociabilidade no sentido, porexemplo da vertigem surrealista, mas um prazer ou grati-ficação superficiais. Esse esteticismo do pensamento se-ria, segundo esses autores - vale reafirmar -, o resultado deuma exportação indiscriminada de procedimentos consa-grados pela tradição das vanguardas artísticas para os maisdiversos domínios do pensamento, como a filosofia. Osfilósofos franceses teriam se voltado para os procedimen-tos vanguardistas quando o horizonte das vanguardas jáse fechara - daí o efeito “ritualístico”, de transgressão “àfroid”, de “vanguarda branca” que remanesceria em seustextos.28

Esses críticos caracterizam, cada qual a sua maneira,a produção cultural - artística (ou pós-vanguardista) e filo-sófica (ou pós-estruturalista) - pela “absorção de todas asformas de arte, alta e baixa, pelo processo de produção deimagens” (ou de simulacros, como dizia Jean Baudrillard).29

Subsumindo a obra de arte à “imagem”, Jameson consta-ta, por exemplo, a impossibilidade de se esperar da obra anegação da lógica da produção de mercadorias. A obra de

26 Ibidem, p.9 3.27 HABERMAS, Jürgen, “Modernidade - um projeto inacabado”, op. cit., p. 122.28 ARANTES, Paulo Eduardo, “Tentativa de identificação da ideologia francesa”, op. cit, p. 93.29 JAMESON, Fredric, A Cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, op. cit., p. 142.

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arte teria soçobrado no “pseudo-esteticismo contempo-râneo”, uma vez que toda beleza tornou-se “meretrícia” -cumprindo-se assim, no crepúsculo das vanguardas, o te-mor enunciado por Charles Baudelaire, em sua aurora.30

Para sair desse “hedonismo estético extravagante” - per-cebe Jameson - é preciso produzir “uma relação com omoderno que sem recair num apelo nostálgico nos ajude arecuperar ‘algum senso’ de futuro, ou mudança genuína”.31

Preocupado em seus ensaios, todavia, em configurar a ló-gica cultural dominante no estágio atual do capitalismoavançado, ou globalizado, não mostra em que manifesta-ções culturais essa relação - que configuraria uma formade resistência à lógica da imagem (a forma-mercadoria porexcelência no mundo contemporâneo, como já mostraraGuy Debord) - se manifesta; de modo que lhe resta, muitavez, reafirmar seu diagnóstico.

Essa decretação da morte das vanguardas à FredricJameson, com a substituição da “obra de arte autêntica”pela “mercadoria cultural, foi considerada por JürgenHabermas “um gesto de despedida apressada”. Amodernidade artística que se insere, segundo Habermas,numa história de longa duração, a qual remonta ao séculoXVIII, não apenas não se esgotou como ainda pode pro-duzir “efeitos emancipatórios”. Seu intento, ao salvaguar-dar a arquitetura moderna de Mies van der Rohe, WalterGropius, ou Le Corbusier, não decorre, assim, de umapreferência meramente estilística, mas de uma tentativade preservar o “projeto iluminista”.32 Seu receio é que ao

30 Esse diagnóstico implica dois equívocos: o primeiro é tomar a “teoria à francesa” comosucessora do “sublime moderno”, atribuindo-lhe uma função que sequer a “artecontemporânea” intenta, sob o risco da nostalgia: a da crítica revolucionária; o outro equívocoseria não redimensionar as possibilidades da crítica na atualidade, ou seja, não atribui qualquerpoder de negatividade seja ao pensamento dito pós-estruturalista, seja à produção artísticadita pós-vanguardista.31 JAMESON, Fredric, A Cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, op. cit., p. 91.

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considerarmos a modernidade concluída estejamos reca-indo numa espécie de conservadorismo, ou niilismo con-temporâneos.

Para Habermas, nas diferentes vertentes da “arquite-tura pós-moderna” - no “historicismo neo-eclético” queextrai “efeitos pictóricos da mescla agressiva de estilos”,como em Hans Hollein ou Robert Venuri; no“desconstrucionismo” de Peter Eisenman ou de MichaelGrave que desconstróem o signo-sistema das vanguardasconstrutivas: o quadrado (numa efetuação análoga a dafilosofia da “desconstrução” de Jacques Derrida); ou, porfim, na arquitetura naïve, ecológica ou “vitalista” que rene-ga o “potencial racional” da arquitetura, ao fazer o elogioda construção anônima - temos um mesmoconservadorismo político: uma mesma “reação evasiva”,indistinguível da “tendência afirmativa”, segundo a qual“tudo deve permanecer como está”.33 Crítica queHabermas estendeu, de modo análogo, como vimos, aos“pensadores franceses”, denominando-os “jovens conser-vadores”.34 Não devemos, portanto, de modo irrefletidoproclamar uma “era pós-moderna”, porque isso implica-ria - segundo ele - a renúncia ao intento da modernidadeartística de impregnar por meio da arquitetura, a práxiscotidiana. Seu intento de continuar, ainda que “critica-mente”, “o projeto incompleto de uma modernidade quederrapa”, tem por finalidade, portanto, preservar as “en-tusiásticas esperanças de uma reconciliação entr”o movi-mento moderno”.35

Essa “derrapagem” resultaria do fato, para Habermas,

32 HABERMAS, Jürgen. “Arquitetura moderna e pós-moderna’, Novos estudos CEBRAP, SãoPaulo, nº. 18, set. 1987, p. 118.33 Idem, p. 115.34 HABERMAS, Jürgen, “Modernidade - um projeto inacabado”, op. cit., p. 121.35 HABERMAS, Jürgen, “Arquitetura moderna e pós-moderna”, op. cit., p. 116.

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de que a arquitetura moderna - o lócus da síntese das artesno programa das vanguardas - se deixou “voluntariamen-te sobrecarregar-se”, porque assumiu de “maneira ingê-nua e irrefletida” o objetivo de mudar o mundo - que ex-cedia evidentemente sua capacidade de realização. De talmaneira que se a “arte moderna” não honrou seu com-promisso de responder com viés estético aos fins práticos(vinculando numa mesma forma, beleza e utilidade: ouseja, produzindo uma nova unidade entre arte e técnica),isso não resultou, segundo o autor, de uma crise da artemoderna ou de algum vício de origem do ideário moder-no, mas de um fator exterior a esse programa, a saber: os“imperativos de sistemas econômicos e administrativosautonomizados” que interferiram no “mundo da vida”, aponto de consumirem sua “substância”.36

O “funcionalismo estrito” (o que é funcional do pontode vista do “mundo da vida” (Lebenswelt), no sentido daarquitetura funcionalista) foi substituído, na língua deHabermas, pelo “funcionalismo sistêmico” (o que é fun-cional do ponto de vista da economia e da administraçãosegundo a lógica do capital). Em resumo: A “realidadehistórica” teria refutado o “sonho modernista” daGesamtkunstwerk, - da vida como obra-de-arte-total, nosentido romântico; ou dos programas fundados nesse so-nho, de um Mondrian ou Theo Van Doesburg, segundoos quais a materialização da “forma pura na realidade tan-gível de nosso ambiente, substituiria a obra de arte”37; oque significa, nos termos de Habermas, que não houveuma liberação dos “potenciais cognitivos” acumulados nas“elevadas esferas esotéricas” (da moral e do direito, das

36 Idem, p. 118.37 Ibidem, p. 119.

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ciências, e da arte autônoma) para o mundo da vida, nãopor contradições internas ao projeto moderno, mas porfatores que esse projeto não poderia antecipar.38

Por isso, Jürgen Habermas afirma, na tentativa dereativar o ideário do projeto moderno, que “num momentofeliz, a arquitetura moderna permitiu que se unissem livre-mente o viés estético do construtivismo e a vinculação afinalidades do funcionalismo estrito”.39 Deixando de ladose efetivamente esse “momento feliz” ocorreu, ou se ele éantes o resultado de uma idealização do autor, do projetomoderno, o que se evidencia é que para ele não há a pos-sibilidade de se pensar efetuações artísticas“emancipatórias”, senão recorrendo ao ideário moderno:ou seja, ao projeto das vanguardas artísticas de colonizarpela arte a “totalidade das exteriorizações da vida soci-al”.40 Portanto, com o fim da arte de vanguarda teríamos,para Habermas, a morte da arte, uma vez que ele a tomacomo indissociável das idéias de revolução e utopia.Dissociá-la desse espírito significaria neutralizar a própriaarte, reduzindo-a, como Fredric Jameson, ao belo e aodecorativo no sentido do hedonismo contemporâneo.

Não podemos, contudo associar, sem mais, a “artepós-vanguardista” a um “neoconservadorismo”, no sen-tido de Jameson e Habermas. Evitando essa generaliza-ção é preciso investigar em que medida obras “singulares”

38 HABERMAS, Jürgen, “Modernidade - um projeto inacabado’, op. cit, p. 112. Nofuncionalismo arquitetônico - que tomamos aqui como uma das manifestações da arte devanguarda - haveria a convergência, segundo Habermas, dessas três “esferas de valor” na“vida do dia-a-dia” (que denominávamos “estetização da vida”). Nessa arquitetura teríamosa confluência entre a ciência (os novos materiais e as novas técnicas de construção); a moral(o intento de construir uma Cidade Radiosa); e a arte (pois o funcionalismo se funda, emHabermas, na arte construtiva: no purismo de Le Corbusier; no neoplasticismo de Mondrian;e no suprematismo de Malévitch).39 HABERMAS, Jürgen, “Arquitetura moderna e pós-moderna”, op. cit, p. 121.40 Idem, p. 122.

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revelam, desde o fim das vanguardas, um “potencial críti-co e de oposição”.41 É preciso inventariar “as práticas eestratégias culturais de ‘contestação possíveis’ na condiçãohistórica do presente”, nas palavras de Andréas Huyssen.42

É necessário, em outros termos, liberar a arte pós-vanguardista da sobrecarga de responsabilidades assumidaspelas vanguardas heróicas. Essa análise das efetuações ar-tísticas pressupõe, contudo, o abandono dos parti-prisprogramáticos da modernidade heróica - ou seja “das am-bições políticas do modernismo”: a responsabilidade de“mudar a vida; mudar a sociedade, mudar o mundo”; aosquais se apegam nosso coração.43 Dito de outra maneira: Aarte depois das vanguardas não compartilha mais do “ethosde progresso cultural e vanguardista”.44 “O sentimento deque não estamos destinados a completar o projeto damodernidade, e de que nem por isso necessitamos cair nairracionalidade ou no frenesi apocalíptico”, a ponto de afir-marmos a morte da arte, tem aberto, como mostra AndreasHuyssen, um leque de possibilidades para os esforços cria-tivos atuais”.45 Essa percepção de que a arte “não persegueexclusivamente um télos”, ou seja, de que ela não resulta deum desdobramento lógico-formal em direção a um objeti-vo imaginário (seja ele “o sublime”; o “absoluto” ou a “uto-

41 HUYSSEN, Andreas, “Mapeando o pós-moderno”. In DE HOLANDA, Heloisa Buarque(org.), op. cit., p. 49.42 Idem, p. 6343 Ibidem, p. 75. Nesse aspecto, Andreas Huyssen aproxima-se de Jürgen Habermas, emboraesse último tenha dissociado de forma indevida a “nova Construção” do pós-guerra damodernidade arquitetônica dos grandes mestres do início do século, na tentativa de encobrir“a face autoritária” intrínseca ao “projeto Moderno”. Cf. ARANTES, Otília Beatriz Fiori,Urbanismo em fim de linha e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica, São Paulo:EDUSP, 1998, pp. 58-76.44 HUYSSEN, Andreas, “Mapeando o pós-moderno”, op. cit. p. 74.45 Idem, p. 75.

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pia”), permite aos artistas contemporâneos “operarem numcam” 46

Numa reação à concepção de uma história linear quemarcou o imaginário das vanguardas, como vimos, diver-sos artistas, ditos pós-vanguardistas, realizaram um traba-lho de “reparação”, inclusive historiográfica, na medidaem que se apropriaram de signos (imagens ou modusoperandi) da Tradição. Não se trata mais de encadear obrasnuma mesma narrativa (a dos movimentos artísticos defi-nidos pela busca incessante do choc, da ruptura e da expe-rimentação formal). O novo, como se sabe, foi arquivadocomo um “fetiche conceitual”, historicamente motivado.E, por conseguinte, a lógica do desenvolvimento retilíneoe coerente das vanguardas - que apesar de tão diferentesentre si compartilharam um mesmo imaginário e estraté-gia - teria sido seguida pelas táticas plurais dos artistasatuais - táticas, é claro que devem ser entendidas no interi-or de um processo histórico unitário de globalização.

É preciso não tomar, em primeiro lugar, a arte dopresente por uma pura heterogeneidade (de códigos, lin-guagens ou meios), por uma diferença aleatória cujaefetividade seria impossível aferir. Ao contrário, é precisoaguçar nossa sensibilidade para as diferenças e reforçarnossa capacidade de suportar a pletora das particularida-des, para configurar uma paisagem, em grande medida,ainda desconhecida. Dessa produção descentralizada, pul-verizada, de ativação das diferenças - uma forma de rea-ção ao viés universalista e uniformizador das vanguardasartísticas - destaquemos três linguagens: a pintura, a artetecnológica e os coletivos, enquanto sintomas do imagi-nário artístico pós-vanguardista.

Consideramos três exemplos significativos da pintu-

46 Ibidem, p. 79. Parênteses nossos.

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ra dos anos 1980, em que não há a marcação de um estiloou a extensão do espírito de ruptura das vanguardas, masuma invocação do passado ou efetuações de continuidadeartística que mesclam signos ou neles efetuam diferenças.O artista italiano Mimmo Paladino não visa restabelecer adefinição tradicional de cultura, mas com suas figurasempaladas, cegas, supostamente perdidas, cria umaambiência cultural, a suspeita de um tráfico de imagens, e,portanto de algo que as antecedendo pode vir a abrigá-lasno tempo. Embora não possamos falar de uma perspecti-va histórica definida dada a diversidade dos elementosapropriados (sobretudo da escultura primitiva, como aitálica, micênica ou mediterrânica), que não recriam a sig-nificação simbólica das culturas de origem - revelandoantes o desencontro entre os signos e seus contextos - éinegável que Paladino, refletindo sobre as possibilidadesatuais de relacionamento com o passado (mesmo queficcional ou caricato) encontra novas formas de figuraçãoartística. Em Paladino “o moderno se vincula, não decer-to, com o futuro, mas com o antigo, um ao outro se cons-tituindo”.47

A obra do alemão Anselm Kiefer recolocou em cir-culação a questão da germanidade, como um dos fantas-mas da terra natal. Em suas telas tudo o que foi tido porestereotipia, como autenticamente teuto, foi por ele pin-tado: daí suas múltiplas referências aos mitos alemães, aosjogos de arquétipos, às paisagens abismais e às arquitetu-ras teatralizadas. Daí também a ambivalência de seus cam-pos estiolados: são cemitérios terrestres (de um passadosepultado), mas também sua exacerbação nostálgica - queindicia o inegável sentimento de dor pela perda. Essas te-

47 KOSSOVITCH, Leon, “Rancère e a Labor”. Mimeo, 2005, p. 12; a ser publicado no site<www.sesc.org.br> do SESC-SP.

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las, contudo, não devem ser interpretadas como um sim-ples resgate do passado (como o expressionismo históri-co dos anos 1910 a 1930) que promoveria o narcisismocoletivo e a autoidolatria do povo alemão, mas como umafiguração crítica que apresenta o passado nacional comoum problema.

A obra do americano Jean-Michel Basquiat, por fim,não deve ser pensada, tão somente, como o efeito de umaestratégia mercadológica de alguns críticos do East Villagesintonizados com o pensamento politicamente correto deatmosfera campi dos anos 1980; uma vez que de seus gra-fites (que indiciam tanto o expressionismo abstrato comoa pop art) de imagens brutalmente esquemáticas de cavei-ras, carros e pessoas mutiladas mescladas a fonemas ras-cunhados, palavras enigmáticas e períodos entrecortados,ressoa uma crítica à sociedade de consumo, sem aambivalência dos artistas pops dos anos 1960. E essesexemplos poderiam ser multiplicados. Não podemos, por-tanto, afirmar que as obras pós-vanguardistas tomadas in-distintamente sejam orientadas tão somente pela novida-de que seria o sucedâneo do novo num mundo em que aestética da ruptura teria cedido à moda e ao mercado. Asefetuações artísticas desde o fim das vanguardas, indiciadasnessas pinturas, não se limitam ao efeito fátuo de umrevivalismo fútil que, falseando ou fossilizando o passado,fabricaria, monitorado pela mídias de massa, a amnésia,como foi interpretado por alguns o neo-expressionismoalemão, a transvanguarda italiana e o graffiti painting dosanos 1980, nas rubricas da crítica.48

Na década de 1990 os “artistas tecnológicos”, queinvestiram na pesquisa intensiva dos novos meios técni-

48 Cf. nosso A arte depois das vanguardas, Campinas: Editora da Unicamp/FAPESP, 2002, pp.29-63.

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cos, não tornaram a arte uma experiência fundadora desentido, no sentido das vanguardas artísticas. Essa arte,afinal, tem pouco do tom provocatório (às vezes insultante)que caracterizou, por exemplo, o momento futurista deFilippo Marinetti e Vladimir Maiakóvski, de UmbertoBoccioni e Giacomo Balla do início do século. Afinal, atu-almente, um público desdenhoso mas aglomerado em fi-las assimila, sem a experiência do choc as inovações muitasvezes diluídas pelo entertainement de um “futurismo cool”(ou de um “vanguardismo faisandé”) sem poder de punch,nas expressões de Marjorie Perloff.49 É uma reação, muitavez, blasé ao up-to-date. Alguns críticos, entretanto, têmresssaltado o poder de resistência das artes da luz àtrivialização da imagem veiculada pela mass cult. As ima-gens da arte da luz, opondo-se ao cliché que nada escon-de, revelam, na expressão de Philippe Dubois, “o rostoafastado da ausência” (...): o espaço off que se apresentacomo excluído”.50 A arte tecnológica, produzindo umefeito análogo à da relação de contigüidade na fotografiaentre o espaço inscrito no quadro e seu contra-campo (suapresença invisível), devolve, segundo ele, à imagem con-temporânea, paralisada no lugar-comum e no revival, asua abertura. Promovendo uma arqueologia do olhar, aimagem recua - prossegue Dubois - ao momento de suaprópria constituição (de uma nova imagem numa novamídia). Recua às origens da visão, à noite que antecede osurgimento das formas. Pois as trevas, uma “pré-ima-gem” indispensável na “ordem das coisas visíveis”, na vi-são do fotógrafo cego Evgen Bavcar, não podem ser ex-cluídas do processo de criação de uma imagem.51 A escu-

49 PERLOFF, Marjorie, O Momento Futurista: Avant-garde, Avant-guerre, e a Linguagem da Ruptura,São Paulo: EDUSP, 1993, p. 250.50 DUBOIS, Philippe, O ato fotográfico e outros ensaios, Campinas: Papirus, 1994, p. 179.

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ridão, aludida por Bavcar, que atribuiu um sentido à luzdistinta da midiática, se opõe à hipervisão da sociedade deconsumo. Ela se apresenta como a negatividade que ante-cipa a imagem. É no espaço penumbroso de umaholografia ou de uma videoinstalação, que reluz, segundoDubois e Bavchar, uma imagem ainda não corroída pelaexposição exagerada.

Isso ocorre não porque as linguagens se multiplica-ram muito mais velozmente do que se pode suportar, mas,ao contrário, porque há uma readequação espontânea, sematrito, das novas gerações às mudanças tecnológicas. Taisinovações não cavam um perigo desconhecido, pois nãoprometem alguma alteridade utópica, no qual cada pes-soa, numa conversão vertiginosa, seria impelida ao movi-mento. A crítica converte a luz em signo da presença nopresente da experimentação formal, mesmo reconhecen-do o fim dos movimentos coletivos de vanguarda. Comoestamos vendo, entretanto, a luz não produziu choc, nemgerou novas convenções artísticas, no sentido modernis-ta, de códigos que, rompendo com o passado artístico,ampliam o campo da percepção sensorial do observador.Este, familiarizado com as novas tecnologias em seu coti-diano, assimilou gradativamente e sem resistência, os efei-tos artísticos, ainda pontuais, das novas mídias, o que nãosignifica que eles acabem reduzidos ao entertainement.

Destaquemos, por fim, os “coletivos” dos anos 2000.Tomemos como exemplo a “mostra” Insite 05, que se rea-lizou na fronteira entre San Diego, na Califórnia, e Tiijuanano México. Na seção “Intervenções” dessa edição de 2005,o venezuelano Javier Téllez coordenou um “processo compacientes de um centro de saúde mental mexicano, quecolaboraram com o artista na organização de

51 BAVCAR, Evgen, Le Voyeur Absolu, Paris: Seuil, 1992, p. 30.

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performances”: “Os pacientes - descreve o crítico - nãosó confeccionaram as bandeiras penduradas na cerca, comotambém realizaram encenações sobre fronteiras espaciaise ‘mentais’” - tema do artista venezuelano”.52 Esse artista,portanto, não mostra sua obra, mas cria condições para a“exibição” de uma realidade política, econômica e culturalda região. Sua intervenção consiste em fazer com que“moradores da região” atuem tornando “pública” sua re-alidade - uma vez que essa intervenção é repercutida pelacrítica de arte internacional.

A dimensão política dos coletivos, segundo JacquesRancière, consistiria em evidenciar “simples práticas” -“modos de discursos”, “formas de vida” que operariamcomo forma de resistência à sociedade do espetáculo.53

Ao “artista relacional” caberia apenas criar as condiçõesde possibilidade para que “experiências comunitárias” seexteriorizassem. Esse artista “desenharia esteticamente”as “figuras de comunidade”, ou antes, favoreceria suaevidenciação (ou “valor de exibição”), recompondo destemodo a “paisagem do visível”: a relação entre o “fazer”,“ser”, “ver”, “dizer”.54 E nessa “mostração de signos” (deum “lugar”, de um “grupo”) teríamos, ainda segundoRancière, não a simples “ficcionalização do real”, mas,como em certas obras literárias, um embaralhamento dosmodos de enunciação. Os coletivos seriam “práticas artís-tico-sociais” que encontrariam seu “conteúdo de verda-de”, - na mescla entre a “razão dos fatos” e a “razão daficção”.55 Nessas práticas artístico-sociais, Rancière vê, por-

52 CYPRIANO, Fabio, “Mostra binacional discute conceito de fronteira”, Folha de São Paulo,31 de agosto de 2005, p. E-10.53 RANCIÈRE, Jacques, Malaise dans l’esthétique, Paris: Galilée, 2004, p. 170.54 RANCIÈRE, Jacques, A partilha do sensível: estética e política, São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 52.

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tanto, uma tentativa de reconstituir o sentido perdido deum mundo comum, reparando as falhas dos vínculossocietários.

Essas ações realizadas em espaços públicos com acolaboração de “agentes sociais” podem, contudo, serconfundidas com iniciativas de ordem social, o que impli-ca pensar, também aqui, a questão da generalização doestético. É verdade que o próprio Jacques Rancière temconsciência, na caracterização dos coletivos, de que essa“ética soft do consenso” é uma forma de acomodaçãoinevitável da radicalidade estética e política da modernidade.É preciso espantar, contudo - segundo o autor - os “fan-tasmas da pureza modernista”, ou seja, da autonomia daarte moderna, que “desejando purificar o potencialemancipatório da arte de todo compromisso com o mer-cado cultural acabou reduzindo-a a um testemunho éticosobre a catástrofe irrepresentável”.56 No coletivo, enquantouma “operação positiva que exerce a função de arquiva-mento e testemunho de um mundo comum”, a arte, se-gundo Jacques Rancière, teria, em direção contrária, seaproximado do dito “mundo da vida”.

É possível, contudo, argumentar que os coletivos efe-tuariam antes, uma reparação de um Estado degradado.57

É uma “racionalização”, uma “atividade compensatória”,uma “ideologia da reparação” que prospera sobre “umfundo de sentimento de culpa” - inseparável do luto, ain-da em curso, da modernidade - que evidentemente “nãoataca - do ponto de vista político - as causas verdadei-

55 Idem, p. 54.56 RANCIÈRE, Jacques, Malaise dans l’esthétique, op. cit., p.172.57 GALARD, Jean. “Estetización de la vida: abolición o generalización del arte?”. In DALLAL,Alberto (org.), La abolición de la arte, México: UNAM, 1998, pp. 639-651.

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ras”.58 A constituição tópica de um “mundo sensível co-mum”, em Jacques Rancière, seria, aqui, na interpretaçãode Jean Galard, um “arremedo de reconciliação social,como se o estado do mundo precisasse apenas ser retifi-cado com um pouco de boa vontade e alguns louváveisexemplos”.59 Radicalizando essa crítica podemos indagarse o voluntarismo das vanguardas, fundado no “artista-inventor”, herdeiro do “gênio romântico” - segundo o ima-ginário da modernidade artística - não foi substituído, aqui,pelo “voluntariado” do artista-manager, enquanto “excep-cional organizador”. Pois “a habilidade para a gestão pas-sa a ser, agora - continua Galard -, a primeira qualidade doartista relacional, gerente de eventos conviviais, atilado eautoritário empresário de operações simbólicas”; eventosque só produzirão efeitos, ou seja, só se transformarãoem efetuações artísticas, se forem veiculados pela mídia -“transformados em elementos de espetáculo para grandenúmero de pessoas e em produtos de consumo cultural”.60

Fica, decerto, o problema em aberto, porque recente, seem intervenções, como a do artista venezuelano, há defato uma “transfiguração do banal” - ou seja, “se a afir-mação do trivial e de sua estetização no regime atual daarte questiona a glamorização” - ou “abuso estético”, en-tendido como espetacularização da cultura.61

É preciso ressaltar que a generalização do estético nacontemporaneidade, tal como a entendemos aqui, é dis-tinta da estetização da vida, visada pelo projeto moderno.Na generalização estética, a “forma artística” renuncia à

58 Idem, p. 19.59 GALARD, Jean, Palestra “Arte, transfiguração e encontro no mundo contemporâneo:metáforas pétreas”, proferida em 25 de marco de 2005 no colóquio Gemas da terra: imaginaçãoestética e hospitalidade, organizado pelo SESC-SP. Mimeo. p. 12.60 Idem, p. 15.61 Ibidem, p. 16.

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autonomia tornando-se, por isso, aderente à dita realida-de existente. Se o projeto moderno cumprisse o seu in-tento de estetizar a vida, isso acarretaria, segundo o pró-prio ideário vanguardista, a morte da arte. Recordemosoutra vez que Mondrian, nos anos 1920, vaticinava que seo programa neoplástico se cumprisse, "já não teríamosnecessidade de pintura e de escultura porque viveríamos, apartir de então, na arte realizada”.62 Nesse estado de sínte-se das artes - ou no “estado da arte sem arte”, como diziaLygia Clark nos anos 1960, no contexto das vanguardasconstrutivas brasileiras - “não haveria mais diferenças in-trínsecas entre ser e criar, existir e produzir”.63 Os objetosseriam, agora, ao mesmo tempo, belos e úteis. No ho-mem vigoraria, por sua vez, a plena harmonia entre a sen-sibilidade e o entendimento, ou entre pensamento e senti-mento, no sentido de Friedrich Schiller. Em outras pala-vras: o programa vanguardista se “constituiria em umanova espécie de ser” - ao entregar à “existência humana”,sua “liberdade essencial”.64

Esse estado de estetização do real, da arte realizadana vida, ou da vida feita arte, teria se cumprido - segundoalguns críticos - depois das vanguardas, porém de modoparadoxal, pois enquanto generalização do estético. Porum lado, as vanguardas venceram, constatam os críticos;mas o preço de seu triunfo teria sido a renúncia ao princí-pio da autonomia da arte: à idéia, enfim, de que a formaartística intenta, pela reconstrução da realidade empíricasegundo sua própria lei interna, a “modificação do mun-do”. Estamos entendendo por generalização do estético,

62 MONDRIAN, Piet, Realidad natural y realidad Abstracta, Barcelona: Barral, 1973, p. 56.63 HUYSSEN, Andreas, “Mapeando o pós-moderno”, op. cit., p. 67.64 SCHILLER, Friedrich, Cartas sobre a educação estética da humanidade, São Paulo: Iluminuras,1990, p. 83.

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ao contrário, aquilo que, vale precisar, também já foi de-nominado de disseminação do cultural: ou “abuso estéti-co”, na expressão de Jean Galard. Na disseminação, a arterenuncia às suas leis internas, no sentido da autonomia daobra de arte, historicamente conquistada no período dasvanguardas. A obra passa a ser fruída, ou melhor,consumida - sem mediações - como dado natural. Noabuso estético a efetuação artística é substituída peloefeitismo - “na vontade de produzir um efeito de arte,com uma intenção sedutora, complacente, por isso con-servadora”; o que Jean Baudrillard, por sua vez, denomi-nou “prosopopéia estética” - que acarretaria, em seus ter-mos, um “desafetamento lento do social”: da “violênciadeterminada, analítica, libertadora”, marca da arte de van-guarda.65

É uma “ofensa à audácia essencial” das efetuaçõesartísticas quando elas são reduzidas ao cultural. Os artis-tas não desejam - diz Jean Galard - que suas obras sejamobjeto de um interesse superficial, epidérmico, equiparávelao divertissement. A ambição do artista, afinal de contas, é“geralmente acerba, ardente, mais provocativa, e, sobre-tudo mais singular”, do que a visada pelos fait-divers do“mundo cultural”. Se quisermos caracterizar as efetuaçõesdo entertainement como estéticas, é necessário pensá-las nachave do agradável, do ornamental, ainda que seus “even-tos” busquem, muita vez, “o escândalo”.66 Essa amplia-ção da “curiosidade estética” a partir dos anos 1970 - mui-to distinta da curiosité valeryana ou curiosity poundiana acar-retou, como mostra Galard “uma diminuição de sua in-tensidade”: “O ‘interessante’ faz ainda parte do reino ar-

65 BAUDRILLARD, Jean, “O Efeito Beaubourg”, A arte da desaparição, Rio de Janeiro: EditoraUFRJ, p.165 e 173.Coletânea de textos organizada por Kátia Maciel.66 GALARD, Jean, La Beauté a outrance: ré flexions sur l’abus esthétique, Paris: Actes Sud, 2004, p.162..

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tístico, mas ele o representa num grau extenuado. “Próxi-mo do curioso e do acicate o interessante atrai, mas nãocativa: ele aferroa mas não consegue nem ferir nem inci-tar”.67 Essa generalização da experiência estética - nítidapor exemplo na proliferação dos “novos museus”, doBeaubourg de Paris, de 1977, ao Guggenheim de Bilbao, de1997, ou ainda, no apagamento das fronteiras entre o cir-cuito de arte e o mundo fashion nos anos 2000, - seria adecorrência, a julgar por essa interpretação, do desvaneci-mento da arte no sentido das vanguardas. “Tal é o triunfoda estética” - visível na publicidade, no show-business, nadisseminação do design, na redução da arquitetura à ce-nografia etc -; que alguns denominam “morte da arte”.68

É o triunfo em realidade de uma certa estética difusa,apaziguada, conciliatória, que alguns autores, como vimos,denominam hedonismo: o outro nome da “felicidade con-temporânea”, distinta evidentemente do bonheurstendhaliano, entendido como a experiência da infinitude,decorrente da exaltação romântica da faculdade da imagi-nação, que orientou as vanguardas artísticas. Resta saberse “a beleza intensa ou inquietante, ou vertiginosa” é irre-mediavelmente de uma outra época - como o período dasvanguardas heróicas; ou, em termos próximos: se “umaarte que visa outra coisa” do que o “interessante” ou doque “embelezar a vida cotidiana” tornou-se, ou não, in-concebível.69 Foi com o “abuso estético”, afinal, que per-cebemos, como mostrou Jean Galard, que a “beleza difí-cil” - que por um lado se opõe à sociedade na sua autono-mia, e por outro lado é ela mesma social - “era tão mor-tal”.70

67 Idem, p. 7568 Ibidem, p. 88.69 Ibidem, p. 161.70 Ibidem, p.162.

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Não se trata, contudo, de constatar que com o fimdas vanguardas recaímos em um estado de luto pelo fimda arte, mas de examinar em que medida, “pós-tudo”, nasociedade da hiper-visibilidade, da pletora sem fim de sig-nos, é possível produzir ainda uma “imagem” que dete-nha algum enigma, que indicie algum segredo, mistério -ou recuo. Essa luta pela obra de arte, enquanto imagem-enigma, travada por diversos artistas contemporâneos têmsido figurada, como dizíamos, na prática fotográfica dofilósofo cego Evgen Bavcar. Sua prática indicia o esforçodesses artistas em recuperar o poder da visão, reagindoassim à saturação de “imagens”. Suas fotos mostram - nadialética entre luz e sombra - a “necessidade, em suas pró-prias palavras, da passagem pela cegueira para que possa-mos, então, aceder a uma nova visão”.71

Não é possível restituir à imagem o seu poder de choc,explorando sua tatilidade, no sentido da modernidade ar-tística. Seria nostalgia investir novamente no velho choc donovo - no sentido das collages dadaístas, cubistas, futuris-tas, que teriam, segundo Walter Benjamin, “pressentido”o “efeito traumatizante” que o cinema de invenção explo-raria.72 Para Walter Benjamin, como se sabe, esse “efeitode choque físico” - “análogo ao choque sofrido pelo pri-meiro transeunte numa rua da grande cidade - poderiaacarretar um “aprofundamento da percepção” com con-seqüências emancipatórias: “De espetáculo atraente parao olhar e sedutor para o ouvido (o que denominávamos,acima, belo ou decorativo) a obra de arte - na modernidadeheróica - convertia-se num tiro”; ela “atingia, pela agres-

71 BAVCAR, Evgen, op. cit, p. 141. Cf. também, do mesmo autor, Memórias do Brasil, SãoPaulo: Cosac & Naify, 2003.72 BENJAMIN, Walter, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.Obras escolhidas: volume 1, São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 22 e 25.

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são, o espectador”.73 A pluralidade de estímulos que gol-peiam o olho do espectador interromperiam suas associa-ções de idéias, despertando-lhe uma “atenção ainda maisaguda”.74 Essa “dominante tátil” poderia, assim, pelo efei-to de choc provocar a reestruturação do sistema perceptivo,condição indispensável para a transformação da consci-ência que poderia transformar-se em modificação da rea-lidade, no sentido da Revolução ou da comunidade dehomens livres de Schiller.

No correr do tempo, contudo, esse efeito de chocrotinizou-se, perdendo assim todo efeito emancipatório -ou seja, “não liberou os potencias cognitivos supostamenteaprisionados nos domínios confinados da cultura afirma-tiva”.75 A “estética do choque”, em síntese, não configu-rou - como mostrou Otília Arantes - “o embrião materia-lista de um novo iluminismo” visado pelas vanguardas ar-tísticas internacionais, “que finalmente desaguaria na con-formação de uma ordem social superior”, a Utopia. Essa“estética” não apenas não estava “a altura da tarefa dereconstrução histórica” a que se propunha - e que se acre-ditava despontar no horizonte -, como se revelou no cur-so do tempo, impotente, com uma face conservadora.76

O que seria “a atenção suprema da consciência estética”revelou-se com a expansão do culturel que “fundiu publici-dade e animação cultural” a partir dos anos 1970 - aindasegundo Otília Arantes - entorpecimento ou neutralizaçãoda percepção.

É inegável, de todo modo, que a dicotomia entre o

73 BENJAMIN, Walter, “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, TextosEscolhidos (Os Pensadores), São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.191. Parênteses nossos.74 Idem, p. 192.75 ARANTES, Otília Beatriz Fiori, O lugar da arquitetura depois dos modernos, São Paulo: StudioNobel-EDUSP, 1993, p. 236.76 Idem, p. 240.

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“novo” e o “velho”, no sentido das vanguardas artísticas,envelheceu. Contudo, o abandono dessa polaridade, nãosignifica - que se ressalve de imediato - que o imagináriopós-vanguardista possa ser caracterizado, tão-somente pelosentimento de déjà vu; mas que esse “espaço contemporâ-neo” mostra-se, nos termos de Andréas Huyssen, “muitomenos maleável à simplificação, pois rejeita os esquemasformais e os conteúdos privilegiados” do “espaço moder-no” (tais como as oposições entre vanguardas construti-vas e vanguardas líricas; figurativismo e abstracionismo;abstração geométrica e abstração informal; ou arte retinianae arte conceitual). Não se trata, porém, de decretar, semmais, “a morte do novo”, mas de redefinir o sentido do“novo”. O crítico Ronaldo Brito utilizou-se, por exemplo,da expressão “o outro novo” para caracterizar aespecificidade das efetuações artísticas contemporâneas77;“outro” em relação ao velho novo vanguardista, significaque se “tudo está dito”, se “tudo está visto” - no sentidodo imaginário das vanguardas artísticas - como diziaAugusto de Campos em poema de 1974, “nada, porém, éperdido”, e “eis aí o imprevisto”.78 O “outro novo” con-sistiria, assim, na singularidade com que os artistas pós-vanguardistas se relacionam com a tradição das vanguar-das.

A “beleza difícil” não resultaria, portanto, em tem-pos pós-vanguardistas, do choc, como mostram, por exem-plo, os estudos sobre estética na fotografia de Jean Galard

77 BRITO, Ronaldo, “O moderno e o contemporâneo: o novo e o outro novo”, Coletâneade artigos organizada por Sueli Lima. Experiência Crítica, São Paulo: Cosac & Naify, 2005, pp.74-88.78 CAMPOS, Augusto, VIVAVAIA: Poesia 1949-1979, São Paulo: Livraria Duas Cidades,1979. p. 247. SONTAG, Susan, Sobre fotografia, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.167.Sobre a “arte contemporânea” como “um campo de efetuações aberto às singularidades”,cf. FAVARETTO, Celso, “Impasses da arte contemporânea”. In AJZENBERG, Elza (org.),Comunicações e artes em tempo de mudança (1966-1991), São Paulo: SESC/ECA-USP, 1992, p.113-115.

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ou Susan Sontag: não seria na beleza imperativa, mas alu-siva, a que oculta algo, que atrai não pelo que mostra, maspelo que só indicia que residiria o poder redibitório daimagem: o de devolver ao olho a possibilidade de ver. Éassim, na “imagem escrupulosa” que pode “suscitar umolhar apreensivo, com um pouco de ansiedade, ou mes-mo de temor”, que teríamos uma reação à “beleza exage-rada” da estética generalizada, segundo Galard.79 É a “ima-gem” (seja pintura, vídeo ou instalação) que seria “capazde nos desorganizar” - de produzir páthos em oposiçãoàs imagens “comodamente edulcoradas” que apenas re-forçam o “imaginário do bom gosto”.80 Na imagem es-crupulosa haveria, nesse sentido, a evidência de uma“ocultação” - a “realidade de uma ausência”.81 Ela se in-surge, naquilo que subtrai à imoderação da “beleza”, aoexcesso próprio da generalização do estético. No abuso oque se ostenta é o valor de exibição da imagem - “aquiloque é feito na intenção de produzi-la”; já, em sentido in-verso, a imagem escrupulosa, que reage às “intervençõesmeramente decorativas”, é incompatível com o projetode sua exibição.82

De modo semelhante, autores como Philippe Duboisou Raymond Bellour, quando investigam a questão dodestino da imagem na contemporaneidade vêem numasuposta “estética da imperfeição” uma forma de resistên-cia à sua neutralização no presente. Em reação à imagempregnante, marca das vanguardas artísticas, construtivasou informais, e também do mundo das imagens mass-mediáticas por elas colonizado - se bem que, aqui, dife-

79 GALARD, Jean, La Beauté à outrance: réflexions sur l’abus esthétique, op. cit., p. 161.80 Idem, p.167.81 Ibidem, p.170.82 Ibidem, p.171.

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rentemente de lá, o que temos são Gestalt sem Geist, oudesign sem Dasein - esses autores encontram na imagemfloue; de cores esmaecidas; de contornos esbatidos;gauches; dubitativas; amadorísticas; desglamorizadas;apressadas; produzidas quase por acaso; a possibilidadede se devolver à imagem o seu enigma, e ao observador, oimprevisto.

Na produção artística depois das vanguardas há obras,evidentemente, que agenciam com maior ou menor eficá-cia formas de resistência a fetichização da imagem. Nãose pode sentenciar, portanto, que a eficácia da arte esteja,desde então, suspensa: que a imagem, forma, nome, tudo,ainda que provisoriamente, seja máquina emperrada, ca-dáver ou coisa inerte: ciranda aleatória de signos espectrais,no sentido de Fredric Jameson. Nessas obras pós-vanguardistas, não se têm nem a reafirmação irrestrita doque se condiciona às demandas do capital - no sentido dofetichismo - nem a postulação de uma alteridade radical -no sentido da modernidade artística; - mas uma espéciede “resistência integrada”, que opera por deslocamentosde signos.83 Não podemos, portanto, afirmar que as obraspós-vanguardistas tomadas indistintamente sejam orien-tadas tão somente pela novidade, que seria o sucedâneodo novo num mundo em que a estética da ruptura teriacedido à moda e ao mercado. Não encontramos, assim,no presente, obras aurorais, alardeando pelo choc a recusado passado artístico, mas obras que se apropriam, demúltiplos modos de signos ou de modus operandi que asprecederam, combinando-os ou neles produzindo dife-renças. São trabalhos - como as pinturas que menciona-mos - que não possuem a contundência modernista resul-

83 ENZENSBERGER, Hans Magnus, Com raiva e paciência: ensaios sobre literatura, política ecolonialismo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, pp. 51-75.

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tante de um novo código, mas que podem surpreenderpela diferença, como efetuação desses códigos modernos,ou como intriga de signos do passado. Encontramos tam-bém, em certa “arte tecnológica”, a tentativa de se devol-ver à imagem sua distância: a “distância aurática (,,,) comocapacidade de nos atingir, de nos tocar”, produzindo uma“inquietante estranheza”.84 Produzir uma imagem em quehá ainda “inacessibilidade”, e que “este há”, como dizGeorges Didi-Huberman, “está aí”, nela, como uma pre-sença diante do observador, “perto dele” e mesmo, emcerto sentido, “nele”: “uma imagem flutuante, adiada”, uma“presença muda”, um “tumulto silencioso” que “impreg-na” o imaginário do observador.85 Por fim, constatamosque nos coletivos, demitidas as exigências de projetos, uto-pias e programas, há uma tentativa de diminuir a distânciaentre a arte e público, aproximando-a das “práticas soci-ais”. Os coletivos têm enfrentado os problemas coloca-dos pelas demandas de comunicação: liberadas do impe-rativo das vanguardas de tornarem-se esferas autônomascomo o minimalismo e o conceitualismo dos anos 1970,essas intervenções, que têm por finalidade evidenciar “vín-culos societários”, visam satisfazer tal demanda, mesmoarriscando-se a sucumbir às exigências de comunicaçãoimpostas pelo mercado.

Finda a etapa vanguardista, artistas e certa crítica dearte, inclusive brasileira, constataram, como dissemos, quea arte não evolui ou retrocede, muda; que não há evoluçãoestética, mas desdobramento de linguagens. E que, por-tanto, o suposto declínio da arte é antes o resultado dacrise das vanguardas. Não é o fim da arte, como dizíamos;

84 DIDI-HUBERMAN, Georges, O que vemos, o que nos olha, São Paulo: Ed. 34, 1998, pp.129e 196.85 DUBOIS, Philippe, op. cit, pp.191 e 325.

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é o fim da idéia da arte moderna (ou seja, o fim da estéticafundada no culto ao choc, ao novo, e à ruptura) ou do granderelato das vanguardas (na expressão de Jean-FrançoisLyotard). Dessa falência das vanguardas como projeto deemancipação, não resultou, entretanto, a negação dos po-deres de negação da arte, mas a necessidade de pensá-losde outro modo: a arte depois das vanguardas não é nemum índice de possibilidades de alternativas ao real, no sen-tido da figuração de uma alteridade radical (inseparável doprojeto vanguardista de estetização da vida); nem a sim-ples reafirmação da realidade existente no sentido da ge-neralização do estético.

No contexto atual de mercantilização e catalogaçãode signos, ameaçados pelo feitiço, os artistas mais signifi-cativos procuram diferir os signos, visando a uma efetuaçãode sentido. Não se trata, portanto, de uma aceitaçãoindiscriminada de todas as obras, desde que possam sercomercializadas, como defenderia o pluralismo liberal, masda aceitação das obras que, na comercialização, condiçãode sua existência, indiciem sentidos que de algum modologrem essa mesma lógica - a da generalização do estético.O outro caminho - além, é claro, da liquidação da arte,aqui afastada, - seria restaurar o imaginário vanguardista: aidéia de arte moderna como forças de emancipação. Mastais forças, como acentuamos, são inseparáveis das utopi-as modernas, sem lugar no imaginário contemporâneo.“A política é efetuada, desde o fim das vanguardas, poruma estética não programática do artista”.86 É na arte comoefetuações singulares, que visam à simbolização do pre-sente, e não como programa - o que não implica a renún-cia, vale reafirmar, aos poderes de negação da arte atual -

86 KOSSOVITCH, Leon, op. cit, p. 14.

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que vários artistas, como os aqui exemplificados, buscamsaídas para a arte atual. E é preciso alertar, com Jean Galard,que “o contemporâneo pode durar muito tempo”.87

87 GALARD, Jean, Jean. La Beauté à outrance: réflexions sur l’abus esthétique, p. 161.