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Risco à mesa: alimentos transgênicos, no meu prato não? Renata Menasche 1 No Brasil, ao menos desde 1999 os meios de comunicação têm veiculado notícias que atestam a presença, nas gôndolas de supermercados, de alimentos em cuja composição tomam parte organismos geneticamente modificados. Em 2000, denúncias da presença de transgênicos em alimentos industrializados em território nacional conformariam o eixo da campanha de opinião pública conduzida pela organização ambientalista Greenpeace, “Alimentos transgênicos: no meu prato não!”, que inspira o título deste artigo. É, então, no contexto em que a presença de organismos geneticamente modificados na alimentação dos moradores de Porto Alegre entrevistados 2 era já uma possibilidade que se desenha este artigo. Tomando por abordagem as perspectivas de análise propostas pela antropologia da alimentação, o objetivo deste trabalho consiste em, a partir do estudo das visões e comportamentos dos informantes em relação à alimentação, buscar apreender suas percepções sobre os alimentos geneticamente modificados. SOMOS O QUE COMEMOS: A CULTURA NA ALIMENTAÇÃO É sabido que a satisfação das necessidades nutricionais é condição indispensável para a sobrevivência dos seres humanos. Mas, ao mesmo tempo, que os significados da alimentação não podem ser apreendidos apenas a partir de indicadores nutricionais. Como dito por Fischler (1979:1), o homem é um onívoro que se alimenta de carne, de vegetais e de imaginário. Assim, o ato alimentar implica também em valoração simbólica. Dessa forma é 1 Doutora em Antropologia Social. Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) e pesquisadora da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro). E-mail: [email protected] 2 Este trabalho é resultado de pesquisa mais ampla, realizada no período compreendido entre 2000 e 2002, que buscou, a partir de dados obtidos através de pesquisa etnográfica desenvolvida junto a agricultores de duas distintas regiões rurais do Rio Grande do Sul e de entrevistas em profundidade realizadas junto a vinte e cinco moradores de Porto Alegre, analisar as representações sociais de consumidores e agricultores gaúchos a respeito de alimentos e cultivos geneticamente modificados (M ENASCHE, 2003a). Vale mencionar que, com o objetivo de preservar o anonimato dos informantes, os nomes utilizados neste artigo são fictícios.

Risco à mesa: alimentos transgênicos, no meu prato não?

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Autor: Renata Menasche

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  • Risco mesa: alimentos transgnicos, no meu prato no?Renata Menasche1

    No Brasil, ao menos desde 1999 os meios de comunicao tm veiculadonotcias que atestam a presena, nas gndolas de supermercados, de alimentos emcuja composio tomam parte organismos geneticamente modificados. Em 2000,denncias da presena de transgnicos em alimentos industrializados em territrionacional conformariam o eixo da campanha de opinio pblica conduzida pelaorganizao ambientalista Greenpeace, Alimentos transgnicos: no meu prato no!,que inspira o ttulo deste artigo.

    , ento, no contexto em que a presena de organismos geneticamentemodificados na alimentao dos moradores de Porto Alegre entrevistados2 era j umapossibilidade que se desenha este artigo. Tomando por abordagem as perspectivasde anlise propostas pela antropologia da alimentao, o objetivo deste trabalhoconsiste em, a partir do estudo das vises e comportamentos dos informantes emrelao alimentao, buscar apreender suas percepes sobre os alimentosgeneticamente modificados.

    SOMOS O QUE COMEMOS: A CULTURA NA ALIMENTAO

    sabido que a satisfao das necessidades nutricionais condioindispensvel para a sobrevivncia dos seres humanos. Mas, ao mesmo tempo, queos significados da alimentao no podem ser apreendidos apenas a partir deindicadores nutricionais. Como dito por Fischler (1979:1), o homem um onvoro quese alimenta de carne, de vegetais e de imaginrio.

    Assim, o ato alimentar implica tambm em valorao simblica. Dessa forma

    1 Doutora em Antropologia Social. Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) epesquisadora da Fundao Estadual de Pesquisa Agropecuria (Fepagro). E-mail:[email protected]

    2 Este trabalho resultado de pesquisa mais ampla, realizada no perodo compreendido entre 2000 e2002, que buscou, a partir de dados obtidos atravs de pesquisa etnogrfica desenvolvida junto aagricultores de duas distintas regies rurais do Rio Grande do Sul e de entrevistas em profundidaderealizadas junto a vinte e cinco moradores de Porto Alegre, analisar as representaes sociais deconsumidores e agricultores gachos a respeito de alimentos e cultivos geneticamente modificados(MENASCHE, 2003a). Vale mencionar que, com o objetivo de preservar o anonimato dos informantes, osnomes utilizados neste artigo so fictcios.

  • que podemos entender que o que considerado comestvel em uma sociedade ouem um grupo social no o em outra.

    Qual a boa comida? O que se come em dias comuns, finais de semana, diasde festa? Que alimentos so considerados perigosos? Quais os alimentos tidos porsaudveis? E quais os proibidos? Homens, mulheres, idosos(as), jovens e crianas:quem come o qu?

    A fome e a sede, necessidades vitais, so formuladas e satisfeitas em termosculturais, sociais e histricos. Da a diferenciao, estabelecida por DaMatta (1987:22)ao analisar o caso brasileiro, entre alimento e comida: toda substncia nutritiva alimento, mas... nem todo alimento comida.

    Assim, o qu se come, com quem se come, quando, como e onde se come, asescolhas alimentares, enfim, so definidas pela cultura: o homem se alimenta deacordo com a sociedade a que pertence (GARINE, 1987:4).

    Dize-me o que comes, e eu te direi quem s. O adgio de Brillat-Savarin(1995), datado do incio do sculo XIX que, segundo Aymard et al. (1993:16), teriaorigem em um antigo ditado alemo, Der Mensch ist was er isst, cuja traduo seria ohomem aquilo que come , indica que, perpassada por valores simblicos, asescolhas dos alimentos podem indicar o status de um indivduo em uma sociedade,assim como a cozinha de um grupo social, agindo na conformao da relao depertencimento de seus membros, expressa sua identidade.

    Mas se as classificaes, prticas e representaes que caracterizam umsistema culinrio agem na incorporao do indivduo a um grupo social, tambm possvel afirmar que, ao se alimentar, o indivduo incorpora as propriedades doalimento. Temos a o princpio da incorporao, como proposto por Fischler (1993).Para esse autor, a incorporao

    o movimento atravs do qual fazemos o alimento transpor a fronteira entre omundo e nosso corpo... incorporar um alimento , em um plano real, como emum plano imaginrio, incorporar todas ou parte de suas propriedades:tornamo-nos o que comemos. [...] certo que a vida e a sade da pessoa quese alimenta esto em questo cada vez que a deciso de incorporao tomada. Mas tambm est em questo seu lugar no universo, sua essncia esua natureza, em uma palavra, sua prpria identidade: o objeto incorporadointempestivamente pode lhe contaminar, lhe transformar... (FISCHLER, 1993:66;69)

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  • Dessa forma, sugere Fischler (1993), se o alimento constri a pessoa que oingere, compreensvel que esta busque se construir no ato alimentar. Da o autordeduz a necessidade vital de identificao dos alimentos, fonte principal da atualansiedade em relao alimentao, indagando:

    Se no sabemos o que comemos, no se tornaria difcil saber no somente oque nos tornaremos, mas tambm o que somos? (FISCHLER, 1993:70)

    a partir desse quadro interpretativo, refletindo sobre a comida industrializadadas sociedades contemporneas, que Fischler (1993:218) cunha a expresso ObjetoComestvel No Identificado (OCNI), uma transposio jocosa, para o tema alimentao,do termo utilizado em referncia a discos voadores, artefatos produzidos por seres deoutros planetas, Objetos Voadores No Identificados (OVNI).

    E ser atravs da anlise de alguns exemplos que evidenciam a ansiedade dosmoradores de Porto Alegre entrevistados ante a presena de elementosdesconhecidos nos alimentos a eles disponibilizados, ou, mais precisamente, atravsde associaes construdas a partir desses exemplos, que buscar-se- analisar suaspercepes referentes aos alimentos transgnicos.

    O PARADOXO DO ONVORO E O DESCONHECIDO NA COMIDA

    A ansiedade humana em relao alimentao teria origem, segundo Fischler(1993), no paradoxo do onvoro, manifestando-se atravs da ambivalncia entreneofilia e neofobia. Ou seja, o ser humano, para satisfazer suas necessidadesnutricionais, precisa introduzir alimentos variados em sua dieta. Mas, ao mesmotempo, depara-se com os perigos oferecidos por novos alimentos. Inovao eprudncia seriam, desse modo, caractersticas contraditrias do onvoro em suasescolhas alimentares.

    Cabe aqui uma preciso, explicitada por Ferrires (2002:13), em seu estudosobre a histria dos medos alimentares a partir da Idade Mdia. Enquanto o medoseria referente a um objeto conhecido e claramente identificado, a angstia, aansiedade, mais difusas e difceis de suportar, seriam suscitadas pelo desconhecido.

    A inquietao diante dos alimentos modernos, gerada por acrscimos em suacomposio conservantes, corantes, agrotxicos, aditivos etc ou por novos

  • processos de transformao, atestada pela multiplicao, nas ltimas dcadas, derumores alimentares (FISCHLER, 1993:218). Vejamos como essa ansiedade se expressaentre alguns dos moradores de Porto Alegre entrevistados.

    Os enlatados, eu compro, mas morro de medo! [...] Parece assim que eupenso ah, aquela coisa ficou ali dentro tanto tempo!. Que nem o milhoverde, que eu adoro, pr por numa salada. s vezes eu abro, e d vontade...[gesto significando ato de jogar fora]. (Clara)

    At que chega no supermercado, at que o cara compra, o produto passa pormuitas coisas, e o cara no sabe por onde ele passou [...] Muitas coisas elesbotam ali no produto [inscries nos rtulos], porque a lei exige, mas quemme garante aquilo l? Eu no tenho condies de analisar. Eu sou um caramuito desconfiado. (lvaro)

    Eu no sei quem produziu aquele leo, no sei quem produziu aquele iogurte, tudo marca [nome do supermercado]... as marcas esto sumindo atrs deum rtulo, ento eu no sei quem produziu aquilo. Eu no compro, eu vouatrs da marca. No vou no [nome do supermercado] porque eu no gosto decomprar o que eu no sei o que estou comprando. (Luisa)

    A composio dos alimentos, seu processamento e procedncia, bem como atrajetria que percorrem at serem colocados disposio dos consumidores, ou,mais precisamente, o fato de serem obscuros, seriam, assim, como apontado pelosinformantes, fonte de desconfiana.

    Nas sociedades urbanizadas, em que ocorre o aprofundamento da separaoentre produtor e consumidor, o processo de produo , cada vez mais, distante doconsumidor puro (CAZES-VALETTE, 1997:212).

    Aqui cabe uma observao. Referente no a qualquer morador de Porto Alegreentrevistado, mas a uma das famlias de agricultores e, assim, no consumidorespuros com quem conviveria durante a pesquisa de campo na regio norte doEstado, a famlia de Neusa.

    Demonstrando como se faz a polenta, e lembrando como era feita na poca desua infncia, Neusa contaria que sua filha no suporta o prato. De modo perspicaz, aagricultora relacionaria a recusa da moa ao alimento sua rejeio vida rural.

    Em um meio em que, como escutei contar, uma moa amaldioa outra dizendotu h de casar com colono, pode-se perceber, na gerao que pretende deixar ocampo, a rejeio no aos alimentos industrializados, mas sim queles que, como a

  • polenta, condensariam a identidade colona.

    Do mesmo modo, Dona Lcia, a agricultora que me hospedou em sua casadurante a pesquisa realizada na regio centro-sul do Estado, ao preparar para a jantaa sopa de legumes, acrescentaria aos vegetais, colhidos na horta, um resto de sopade pacote, comentando a respeito: a gente no sabe o que eles pem dentro, masso boas essas sopas!.

    A meno, aqui, rejeio da filha de Neusa polenta, bem como aoentusiasmo de Dona Lcia em relao mistura pronta para sopa, tem por objetivoindicar a diferenciao entre as percepes de agricultores e citadinos essesconsumidores puros diante dos alimentos industrializados.

    Voltando ao processo urbano de constituio do consumidor puro, temosque ocorre ao mesmo tempo em que, ao longo do sculo XX, intensifica-se atransformao industrial dos produtos agropecurios e a indstria agroalimentar torna-se capaz de, atravs de tcnicas e mtodos desenvolvidos, criar novos produtos,cuja forma fsica e aparncia disfaram suas origens industriais e os pem emcompetio direta com produtos de safras prontamente identificveis e alimentos innatura. Esse processo que tem na margarina um caso exemplar foi denominado,por Goodman et al. (1990:77), de substitucionismo.

    Temos, ainda, a considerar a crescente expanso, a partir dos anos 1960, davariedade de produtos alimentcios disponibilizados ao consumo (WARDE, 1997:178-179). E, tambm, como sinalizado por Rial (1996), referindo-se s populaesurbanas dos pases desenvolvidos, as significativas alteraes ocorridas no modoalimentar.

    No passado, a alimentao era fortemente determinada geograficamente (porexemplo, produtos regionais dificilmente encontrveis em outros lugares),temporalmente (produtos de estaes do ano) e simbolicamente (imperativosreligiosos que determinavam tabus alimentares). As ocorrncias alimentaresserviam para pontuar a jornada, interrompendo o trabalho e instaurando umaatmosfera de sociabilidade, freqentemente familiar. [...] Estamos longe dosimperativos sazonais e religiosos que limitavam o leque de opes e amultiplicao dos contatos alimentares se fez acompanhar das opescolocadas a nossa disposio. Assistimos a uma ampliao da variedade deprodutos e da possibilidade de encontr-los em lugares muito distantes de suaorigem e em qualquer perodo do ano. Por outro lado, a dualidade simplestrabalho-repouso parece ultrapassada no mundo moderno. [...] O nmero devezes em que se absorve alimentos ultrapassa de longe o nmero de refeiesde outrora. (RIAL, 1996:95)

  • Dessa forma, a partir da multiplicao das opes alimentares e alteraesocorridas no modo alimentar, da constituio do consumidor puro, bem como doprocesso de substitucionismo, ou melhor, da atualizao que acarretam ao dilema doonvoro, podemos apreender a ansiedade urbana contempornea diante daalimentao moderna.

    O que misturado ao p, que se transforma em sopa? O que acrescentadoaos gros de milho verde, para que se conservem por tanto tempo na lata? Ou aoleite de caixinha, para que demore tanto a estragar? Com o qu alimentada agalinha, cujos pedaos congelados so oferecidos ao consumo, acondicionados embandejas, envoltas por filme plstico?

    Fontes de desconfiana e ansiedade, os Objetos Comestveis NoIdentificados seriam, freqentemente, apontados pelos moradores de Porto Alegreentrevistados como causa de doenas. E entre os produtos alimentcios geradores dedesconfiana, a galinha parece ser um dos principais objetos de preocupao.

    A ansiedade em relao s galinhas modernas teria como componente adesconfiana ante a presena do desconhecido enquanto ingrediente de suaalimentao, ou melhor, o temor decorrente dos supostos efeitos advindos de suaincorporao ao organismo humano.

    assim que Helena, moradora de Porto Alegre, creditaria o fim precoce dainfncia da filha ao consumo de carnes contendo hormnios, alertando para os riscosda alimentao moderna.

    Os hormnios que do prs galinhas, uma coisa que me preocupa muito.Acho que por isso que eu tenho tanto nojo de galinha. Sabe, a Flvia [umadas filhas da informante] est com nove anos, e est aparecendo seio naFlvia, est com plo, est com tudo, e muito cedo. Ento eu no sei se essaalimentao que a gente est dando no tem a ver com isso. Todos esseshormnios que as galinhas... [...] Eu noto que as crianas de hoje, elas estocom os hormnios... a adolescncia delas est sendo muito precoce. (Helena)

    Se, como visto at aqui, a presena de elementos desconhecidos na comidamoderna gera, entre os moradores de Porto Alegre entrevistados, desconfiana eansiedade, no de surpreender que encontremos o mesmo tipo de reao diantedos alimentos transgnicos, resultantes, atravs de modificaes genticas, daintroduo de genes estranhos aos vegetais habitualmente consumidos.

  • SUJO E LIMPO: REPRESENTAES SOBRE A COMIDA INDUSTRIALIZADA

    s vezes tu nem sabe o que est comprando. No sabe de onde vem, se temagrotxico, no sabe o que eles colocam pr produzir. No sabe se limpo,no sabe se sujo. (Cleusa)

    Como na fala de Cleusa, moradora de Porto Alegre, temos que presena dodesconhecido no alimento associada a idia de sujeira, associao que buscaremosaqui evidenciar e analisar.

    Para tanto, iniciaremos o percurso retomando o tema das galinhas. Mas, agora,galinhas criadas soltas, mais especificamente as que habitam o ptio de Dona Lcia,a agricultora que foi minha anfitri durante a pesquisa etnogrfica realizada junto aagricultores da regio centro-sul do Rio Grande do Sul.

    O almoo de domingo seria especial, pois contaria com a presena dos filhosdo casal e suas famlias, que, residindo na regio metropolitana de Porto Alegre,viriam comemorar com Dona Lcia e Seu Adriano seu aniversrio de casamento. Porisso, ela pedira ao marido que carneasse trs galinhas.

    Tendo em mos as aves abatidas e depenadas, enquanto, na cozinha,desempenhava com habilidade as tarefas de limpeza e preparao das aves, DonaLcia conversava comigo. Foi ento que, pela primeira vez, escutaria ser necessriolimpar a galinha antes de seu abate.

    Diante de minha surpresa perante tal afirmao, Dona Lcia explicaria que,como a galinha, solta no ptio, come tudo que porcaria, deve-se prend-la, nomnimo um dia antes de sua morte, alimentando-a, ento, com milho e restos decomida da casa.

    Ela contaria que sua me costumava prender a galinha por trs dias, ou poruma semana, antes que fosse abatida. E que, presa, alimentada com milho e restosde comida ao invs de com o que conseguisse ciscar no terreiro , a ave ganhavapeso.

    Indagada se essa seria uma prtica usual nas redondezas, Dona Lcia, comexpresso de nojo, responderia que no, argumentando que, por isso, evita comergalinha em casa alheia: tem gente que pega a galinha no ptio e mata, o que umaporcaria. O gosto, afirmaria, se sente na carne.

  • Presa alguns dias antes de seu abate, tendo sua alimentao controlada, a avedeixaria de ingerir tudo que porcaria que poderia encontrar no ptio caso estivessesolta. E, comendo apenas o fornecido e, por conseqncia, conhecido e, assim,dentro da ordem , a galinha tornar-se-ia limpa e, ainda, mais saborosa.

    Assim, para Dona Lcia, agricultora, a presena do desconhecido naalimentao das galinhas seria associada sujeira.

    Do mesmo modo que, para Cleusa, moradora de Porto Alegre cujo trecho dedepoimento reproduzido no incio deste item , podem ser sujas, impuras, as frutase verduras que adquire no supermercado, cuja procedncia e mtodos empregadosem sua produo desconhece.

    No entanto, como evidenciado anteriormente, quando comentada a forma comque Dona Lcia se refere sopa de pacote a gente no sabe o que eles pemdentro, mas so boas essas sopas , para a agricultora essa associao entredesconhecido e sujeira no seria transposta para os produtos industrializados.

    J entre os moradores de Porto Alegre entrevistados, muitos seriam os quemanifestariam considerar sujos os produtos trazidos do supermercado.

    Chego em casa, tiro, lavo... Bah, no consigo nem ver! Nem um frango e nemoutra carne sem lavar! Meto na pia, corto tudo, tiro, limpo, lavo direitinho eseparo. [...] Eu tenho uma mania, eu passo um paninho umidozinho em tudo oque saquinho, tudo o que latinha, tudo que coisa que eu trago [dosupermercado]. Mas isso a vai bem rapidinho, ainda. O que demora mais ficar cortando as carnes, lavando, separando. (Margarida)

    No que se refere, particularmente, s frutas e verduras, inmeros seriam osinformantes que apontariam o descascamento e/ou lavagem como medidasprofilticas para evitar eventuais efeitos nocivos causados pela presena deimpurezas especialmente resduos de agrotxicos nos alimentos.

    Meu pai no come, se ele v tu comer um tomate com casca! Meu pai cuidamuito isso a, pr gente tirar, porque a concentrao [dos agrotxicos] estna casca. [...] Do tomate, eu tiro a casca, porque acho que fica meioindigesto. [mesmo pr salada?] Se eu fizer pr casa, eu tiro, se eu tiver visita,a eu deixo... fica feio. No bem rigoroso o que eu controlo, mas se eupuder, eu dou uma controladinha. Isso a eu aprendi com meu pai. Ento eulembro dele e fao. (Rosane)

    As verduras, deixo de molho um pouco, pr sair o veneno. Eu ponho umpouquinho de vinagre, s vezes deixo s na gua, porque a gua elimina o

  • veneno, n? A deixo de molho. (Marta)

    As frutas que a gente compra no super, eu lavo tudo com sabo de glicerina.Pssego, uva, essas coisas que a gente come assim. Banana eu no lavo, maso resto, eu lavo tudo com sabo de glicerina. (Dirce)

    Descascando e lavando, os informantes considerariam ter, assim, expurgadas fsica, mas tambm simbolicamente as impurezas das frutas e verduras queconsomem.

    A fora dessa noo pode ser percebida no depoimento de Rosane, que,creditando ingesto de alimentos contaminados por agrotxicos o fracasso de umagravidez, atribui o xito da gravidez que se sucederia aos cuidados ento adotados,que consistiriam basicamente na eliminao das cascas dos alimentos.

    Tiveram que me tirar o nen, tinha ms-formaes, mais de uma, umasndrome. [...] Ento, geneticamente, eles [os mdicos] no acharamexplicao, na medicina no acharam. A a nica coisa que me disseram que estava acontecendo muita coisa por motivo da alimentao, que eles nosabiam explicar, que deveria ser. [...] Na poca, eles acharam que era pelouso de agrotxicos que estava nascendo crianas sem crebro. [...] A quandoeu tive a Jeanine [a filha caula, com 14 anos poca da entrevista], eu comiatudo sem casca! Pr no ter agrotxicos. [o mdico mandou?] Mandou. Tudo,tudo sem casca. A da Jeanine eu tive esse cuidado, de tirar a casca de todosos alimentos, e cuidar bastante o que eu comia. Procurava comer tudo maissaudvel. (Rosane)

    Em seu depoimento, Rosane explicita que, ao descascar as frutas e verduras,eliminando assim suas impurezas, estaria tornando os alimentos saudveis.

    Inmeros so os estudos particularmente os que tomam por objeto aalimentao nos pases desenvolvidos que vm apontando a crescentepreocupao com a sade nas escolhas dos alimentos, mas tambm com a boaforma, ou a adeso a novas morais alimentares3.

    Mas o que aqui importa remarcar que, como no depoimento de Rosane, odesconhecido, impuro, sujo, seria identificado pelos informantes tambm como no-saudvel. Da mesma forma, podemos sugerir, que na interpretao construda porDouglas (1976) das prescries alimentares contidas no texto bblico.

    No mesmo sentido, Cleomar, adepta do Adventismo do Stimo Dia, citaria o

    3 Ver, entre outros: Piault (1989), Fischler (1993), DeFrance (1994, 1996), Nemeroff et al. (1996),Caplan (1997), Ossipow (1997), Cohen (1998) e Oudraogo (1998).

  • Levtico4 para explicar as restries que sua religio estabelece em relao aoconsumo de carnes. Separando animais limpos de animais imundos, a informanteassociaria a pureza do alimento decorrente da ausncia de produtos qumicos sade.

    Deus, desde o incio, quando criou o mundo, se preocupou que as pessoasvivessem bem, e vivessem felizes, e com sade. Que no adianta tu viver, massem sade. A no teria alegria nenhuma. [...] Eu tenho como pr mim, que euaprendi, o que eu acho que errado em termos alimentares, o que eu achoque certo. Acho assim que qualquer pessoa entende que os produtosqumicos no fazem bem pr sade. [...] Os produtos qumicos, nossa! super prejudicial, causa cncer, doenas as mais variadas, eu acho.(Cleomar)

    Essa viso pode ser melhor entendida se levarmos em conta que, comoevidenciado por Pacheco (2001) no trabalho em que analisa, em duas diferentescomunidades da capital baiana adeptas do Adventismo do Stimo Dia, as relaesentre prtica religiosa e hbitos alimentares , na cosmologia adventista o alimento

    um meio para a conquista/manipulao da sade do corpo tomado comotemplo do Esprito Santo, instrumento fsico a servio de Deus. Estamquina precisa ser cuidada para funcionar bem, cumprir sua meta. Aalimentao deve ser pautada pela necessidade e no pelo desejo, devendo ocontrole racional do comer subjugar os elementos emocionais. Assim, osprincpios de alimentao fazem parte de um projeto mais amplo deracionalizao da conduta com vistas a transformar o homem em instrumentode Deus e prova de sua glria. (Pacheco, 2001:158)

    assim que, tendo por norma que quilo que se come cabe garantir a sadedo corpo, Cleomar afirmaria que a presena de produtos qumicos nos alimentos assim como a modificao gentica comprometeria sua funo, tornando-ospossveis causadores de doenas.

    Para melhor apreender a associao entre pureza do alimento e sade, serinteressante, ainda, analisarmos o caso relatado por Luisa e Paulo a respeito do leitelonga vida.

    A grande maioria dos moradores de Porto Alegre entrevistados declararia suaadeso ao leite longa vida, vrios deles citando como vantagens a possibilidade deestocagem do produto que permite que a aquisio do leite seja includa no rancho,a compra semanal ou mensal, realizada em supermercado e, uma vez aberta a

    4 O Levtico o terceiro entre os cinco primeiros livros do Velho Testamento que compem a Tora ,atribudos a Moiss: o Gnese, o xodo, o Levtico, o Nmeros e o Deuteronmio.

  • embalagem, sua maior durabilidade.

    Entretanto, para alguns informantes, o leite de saquinho, especialmente a partirda ausncia presumida de aditivos suspeitos e nisso diferenciado do leite decaixinha , seria afirmado como sendo mais puro, saudvel e natural.

    Vejamos o caso narrado por Luisa e Paulo, cabendo mencionar que ambosdefinem-se como espiritualistas. Ele kardecista, enquanto ela umbandista,mdium.

    Segundo seu relato, toda a famlia, mas especialmente Paulo e uma das filhasdo casal, manifestavam um problema de pele, de causa desconhecida.

    Buscando diagnstico para o problema, Luisa realizaria uma consulta espiritual.

    Eu perguntei... foi pr Me Oxum, uma entidade da umbanda. A eu pergunteipr ela, falei de umas coceiras, umas alergias, falei no sei se vem doscachorros, ou de alguma coisa que ns estamos comendo. Eu at no estavasentindo coceira nenhuma, eu procurava pulga e no via, no via nada, mascomo era muito seco, podia ser uma poeira, um cimento, ns estvamosmexendo com cimento. A ela disse que era do leite, que tinha um conservanteque estava fazendo mal. O leite de caixinha, ele tem uns conservantes, umascoisas a mais ali, n? Ento eles [o marido e a filha] observaram. Eu troqueide marca, mas no adiantou. A ele [o marido] comprovou, passou a tomarleite em p, a Julia tambm (Luisa)

    No diagnstico espiritual, a doena de pele teria sua causa, ento, em algo queteria sido acrescido ao leite longa vida, para garantir sua conservao.

    Conforme narrado pelo casal, seguindo a recomendao de Me Oxum, o leitede caixinha seria eliminado da dieta de Paulo e Julia, que, assim, ver-se-iam curadosdo problema de pele.

    Temos, desse modo, que no apenas os informantes identificariam noelemento adicionado ao leite a causa da doena, como o fariam a partir do parecer daentidade espiritual, o que indicaria, interessante notar, que tambm a partir do planoespiritual, simblico, a comida moderna seria identificada como contendo substnciasestranhas, sendo, ento, percebida como potencialmente malfica.

    Assim, tendo anteriormente evidenciado que a presena de elementosdesconhecidos nos alimentos industrializados gera, entre os moradores de PortoAlegre entrevistados, desconfiana e ansiedade, pode-se agora precisar que essa

  • ansiedade substanciada a partir da associao entre desconhecido e sujeira ouimpureza, desordem , por sua vez percebida como no-saudvel, fonte de doenas.

    Do mesmo modo e, podemos sugerir, no campo do imaginrio, a partir damesma construo , a maior parte desses informantes referir-se-ia aos alimentosgeneticamente modificados como potencialmente prejudiciais sade.

    O NATURAL E AS REPRESENTAES DO RURAL

    O molho, eu gosto de fazer, que da faz do gosto. O molho pronto, geralmentetem uns gostos meio estranhos, eu no gosto. Gosto de pegar o tomate,cortar, fazer. [...] No gosto muito de enlatados. [Por que?] No sei, acho queo gosto no to bom. Acho que s vezes o gosto no bom. No que temgosto ruim, mas a gente nota que no um gosto natural, altera o gosto doproduto, isso eu no gosto. Gosto de sentir o gosto natural dos alimentos.(Gilberto)

    Como no depoimento de Gilberto bem como nos de muitos outros moradoresde Porto Alegre entrevistados, cujos trechos vm sendo reproduzidos ao longo doartigo , a valorizao do natural seria construda como reflexo da crtica ao artificial,qualificativo atribudo aos alimentos industrializados.

    Ou, como sugerido por La Soudire (1995:158-160), temos que, como reflexoda desconfiana ante o moderno, o natural e o rural seriam identificados comoautnticos. As possibilidades de anlise oferecidas por essa contraposio sero aquiexploradas.

    Entre os moradores de Porto Alegre entrevistados, as verduras adquiridas emsupermercados seriam percebidas como muito grandes, sem gosto. A galinhacongelada, parece palha, fica desidratada. Do leite, tiram todos os nutrientes. Osovos, seriam considerados cpia dos de galinha mesmo.

    Talvez algumas das declaraes que afirmam a superioridade do sabor dosalimentos no-industrializados se constituam em reao ao que poderia sercaracterizado como gosto mdio, excludente de sabores fortes, proposto comosugere Eizner (1995:14) pela indstria agroalimentar.

    Ou, como evidenciado por lvarez e Pinotti (2000), em seu estudo sobre asmudanas e permanncias nos hbitos alimentares dos argentinos,

    a insipidez dos alimentos oferecidos pela indstria alimentcia e a sensao de

  • insegurana provocada pela perda de controle sobre a cadeia de operaes deproduo e elaborao da comida, provocam o resgate de variedades vegetais,animais locais ou regionais e produtos artesanais... (LVAREZ; PINOTTI, 2000:272)

    Assim que molhos e temperos prontos, pratos congelados, bolos e sopaspr-preparados, pes e massas industrializados, alimentos enlatados e refrigerantes,seriam juntamente com outros itens, anteriormente mencionados reiteradamentecondenados.

    Em detrimento desses, as preferncias declaradas indicariam os molhos,iogurtes, doces, bolos, pes e massas caseiros; galinhas e ovos caipiras; gua esucos; milho em espiga, vegetais e temperos frescos; verduras orgnicas.

    O natural, fresco, caseiro, prximo, tradicional seria, dessa forma, afirmado emoposio ao artificial, processado, distante, industrializado, moderno.

    Os alimentos industrializados seriam percebidos como excessivamentemanuseados, e, ainda, provenientes de lugares distantes em alguns depoimentosseria manifestada a preferncia por produtos locais, gachos , de origem noconhecida.

    Como no trabalho de Cazes-Valette (1997:224), seria valorizada a identificaoda origem do produto, que, muitas vezes, passa por um ser humano, algumconhecido no caso estudado pela autora, que analisa o consumo de carne bovinana Frana ps-crise da vaca louca, o criador ou o aougueiro.

    O alimento natural no seria apenas considerado o de melhor gosto. Emoposio ao alimento industrializado, seria apontado como puro e, dessa forma,saudvel.

    Os adjetivos relacionados ao natural seriam atribudos aos alimentos frescos,ou aos provenientes da feira, ou aos orgnicos, ou aos trazidos de fora.

    Como lembra Maciel (2001:51),

    a comida envolve emoo, trabalha com a memria e com sentimentos. Asexpresses comida da me, ou comida caseira ilustram bem este caso,evocando infncia, aconchego, segurana, ausncia de sofisticao ouexotismo. Ambas remetem ao familiar, ao prximo, ao frugal. O toque dame uma assinatura, e implica tanto no que feito, como na forma pelaqual feito, que marca a comida com lembranas pessoais.

  • assim que, especialmente nos casos em que os moradores de Porto Alegreentrevistados tm origem no meio rural, mas, como se pode observar no depoimentode Karen, a seguir, no somente entre esses, os adjetivos relacionados ao naturalseriam tambm atribudos aos alimentos que remetem memria da infncia, dacomida da me, ou da av.

    A minha av materna, que era italiana, a famlia quando veio da Europa seestabeleceu na zona rural, na colnia, eram colonos. E a minha av, que estviva at hoje... ela uma pessoa muito ligada terra, sempre foi. E mesmodepois de vir morar na cidade, depois de uma certa idade ela veio morar commeus pais... ela manteve aquela profunda ligao com a terra. [...] Eu lembroda minha av italiana, fazia uma polenta! A polenta, eu j adorava. Masdepois, no dia seguinte, ela cortava a polenta em fatias, quando ela estava jseca, e fazia em cima de uma chapa. E eu comia aquilo com mel! Como erabom! Ai, como era maravilhoso! Polenta brustolada, como ela diz. Com mel.Que o mel, isso uma coisa gozada, porque minha av italiana, meu av alemo, e alemo mistura muito doce com salgado, os italianos j no... Eume lembro dos pes que a minha av fazia, tambm. Eu ajudava ela, que euaprendi a fazer po com ela. E fao po, e gosto, adoro fazer po. Me lembrodo perfume dos pes, do cheiro da massa crua. (Karen)

    interessante remarcar que todos os informantes urbanos, inclusos osnascidos em Porto Alegre, expressariam, de algum modo, uma memria culinriarural, vivida ou herdada, isto , experienciada diretamente ou a partir do vivenciadopor seus antepassados.

    A ruralidade, mais que qualquer outro atributo, parece condensar todas asvantagens que distinguem o alimento desejvel do alimento industrializado.

    De fora so os alimentos que vm do interior, do meio rural, cuja origem associada diretamente ao produtor. De fora, podem ser os alimentos trazidos peloinformante, ou por algum de sua famlia, quando em visita regio natal, ou poralgum conhecido ou parente que de l vem. Podem, tambm, ser os alimentosproduzidos em chcara de algum conhecido, perto da cidade. Ou os adquiridos emalguma viagem, de produtores que os ofertam, beira da estrada. Ou oscomercializados em feiras de produtos orgnicos ou no , supostamente pelosprprios produtores. Ou, ainda, aqueles que, de algum modo como os ovos, trazidosde fora pelo pessoal do estacionamento, para vender , vindos do campo, chegam cidade por canais outros que os formalmente constitudos.

    Os alimentos que vm de fora so considerados os melhores. Das verduras,

  • dito que at a folha mais macia. A galinha, a carne e o leite, no tmcomparao, outro gosto, as do supermercado no chegam nem a seus ps. Osovos daquelas galinhas criadas com milho, a gema super-vermelha, bem diferente.

    Podemos, assim, supor que, em relao aos alimentos, ocorra ocorrespondente ao indicado por Mathieu e Jollivet (1989:11-12), que, na Frana,debruando-se sobre o tema representaes da natureza, evidenciam que o sensocomum urbano tende a associar ao campo, ao rural, os valores atribudos naturezae ao natural.

    Ou, ainda, processos semelhantes aos apontados por autores que, na Europa,vm se dedicando ao estudo da comida enquanto patrimnio e a o caso dosprodutos de terroir franceses so particularmente significativos , mostrando comoprodutos alimentcios e pratos, associados a uma regio, e referidos a uma naturezae a um campo, a uma identidade, tornam-se, a partir das representaes do mundorural, bens de consumo especiais (BONNAIN, 1991; BRARD, 1999; DELBOS, 2000; RAUTENBERGet al., 2000).

    Temos, assim, que o rural tende a ser qualificado como natural, mesmoquando, dadas as caractersticas intensivas da produo agropecuria que inclui autilizao de agroqumicos dos mais diversos tipos , no o seria.

    Do mesmo modo que indicado por Eizner (1995:14) para o caso francs, talvezpossamos identificar, nessa valorizao do natural e do rural, mitos do natural e doartesanal, algo como a busca do consumo de imagens dos sabores perdidos.

    A idealizao do rural, transposta aos alimentos de fora, torna-se evidente emalguns dos depoimentos dos moradores de Porto Alegre entrevistados nascidos nomeio rural. Os mesmos informantes que, em outros momentos, destacariam asdelcias da comida do campo, ao descrever a composio das refeies de suainfncia mencionariam a pouca variedade de alimentos disponveis, ou mesmo apobreza mesa.

    Chegando ao final do artigo, merece ser destacado que, no que se refere aoshbitos alimentares, a imagem de uma ruralidade idealizada no seria a nicadisjuno perceptvel entre as vises expressas pelos moradores de Porto Alegreentrevistados e suas prticas.

  • Embora cada um desses informantes declarasse, em algum momento, comovisto, algum grau de desconfiana e ansiedade em relao comida moderna, asdescries de seus cardpios cotidianos evidenciaria no apenas a inexistncia, entreeles, de adeptos de dietas como o vegetarianismo e a macrobitica, ou regidas peloconsumo de vegetais exclusivamente orgnicos dietas que, como indicado porOudraogo (1998:18-19), em seu estudo das vises e prticas de consumidoresparisienses adeptos da alimentao orgnica, seriam parte integrante de um estilo devida, regido por uma tica que valoriza extremamente a vida simples, a natureza e onatural, o artesanal e o rstico... associados sade, ecologia, pureza, solidariedade , mas, e nem se poderia esperar que fosse de outro modo, o amploconsumo de alimentos industrializados.

    Cabe aqui uma observao. Como indicado por Darmon (1993:77) no estudoem que mostra que, h mais de um sculo, a crescente incidncia de cncer vemsendo percebida, na Europa, como decorrente de hbitos, a inclusos os alimentares,advindos com a civilizao , comum, nas representaes que as sociedadesconstroem sobre seu progresso, que os aspectos positivos do mundo moderno sejamomitidos.

    Assim que talvez possamos compreender que, embora o consumo dealimentos industrializados em geral, e pr-preparados em particular, seja bastantedifundido, muito poucos seriam os informantes que remarcariam a praticidade,facilidade ou economia de tempo decorrentes de sua utilizao, a maioria preferindoater-se a comentar, como visto, o que percebem como seus efeitos negativos.

    Observando as descries de refeies e de listas de compras, relatadas pelosinformantes, pode-se notar algumas combinaes interessantes.

    Gilberto cujo trecho de depoimento reproduzido na abertura deste item ,por exemplo, que prefere preparar seu prprio molho de tomates, evitando o produtoindustrializado, artificial, consome diariamente, no almoo, uma coca-cola light.

    J na geladeira de Carla, em que s entram vegetais orgnicos, adquiridos nafeira especial, freqentada semanalmente, a coca-cola, presena obrigatria, no alight.

    A preocupao com a dieta faria com que Lourdes fosse menos rgida emrelao ao refresco que coloca mesa do que com os ingredientes que utiliza na

  • preparao das refeies.

    Extrato de tomate, eu no compro. Eu vou na polpa de tomate, se eu queroengrossar meu molho... porque tem muito aquelas porcarias. Quer ver? J tedigo, olha aqui [a informante mostra a embalagem, que buscara no armrio,embaixo da pia].. Eu compro a polpa de tomate. [...] Aqui no diz acomposio? Vamos ver: tomate, acar e sal! Mas se tu pegar um extrato detomate no supermercado, tu olha o qu que tem! Um monte de coisa:conservantes, acidulantes, expectorantes [sic], no sei mais o qu. (Lourdes)

    Agora eu comprei o suco, aquele [nome do produto], com aspartame, euacho. Ento, como ele no engorda, eu gosto de tomar um suquinho assim, eufao. esse aqui , esse aqui Tea de Limo. Bah! [olhando o rtulo] Temquantidade de coisa aqui! Tudo artificial! Acidulante... edulcorante... lll...um monte de porcaria. Mas no tem acar! Ento, isso aqui liberado.Criana gosta, n? Essas porcariazinhas, a gente est tendo que ter.(Lourdes)

    Inmeros seriam os exemplos equivalentes, referentes no apenas s bebidas,mas aos mais diversos produtos. assim que Dirce, a mesma que prefere asverduras orgnicas, lava com sabo de glicerina as frutas, e declarara no consumirgalinhas de supermercado, manifestaria entusiasmo diante das misturas pr-preparadas para sopas: Eu adoro sopa de pacotinho, aquele sopo. Ah, eu amo!.

    Do mesmo modo, teramos pessoas que, preferindo fazer seus prprios doces,consomem freqentemente macarro instantneo; recusando alimentos congeladosou embutidos, tm por costume utilizar bolos de caixinha; alimentando-sepreferencialmente de vegetais orgnicos, consomem chocolates cotidianamente;negando-se a incluir enlatados em seus pratos, servem, em refeies familiares,pratos pr-elaborados. Ou, ainda, que acrescentam cebolas e tomates ao molhocomprado pronto; ou utilizam as misturas pr-preparadas para sopa paraincrementar seus prprios caldos.

    Retomemos aqui a questo que se colocara como ponto de partida para opercurso deste artigo: o que as vises e prticas dos informantes em relao alimentao nos sugeririam a respeito de suas percepes sobre os alimentostransgnicos?

    possvel afirmar que, entre as famlias agricultoras observadas durante apesquisa etnogrfica, ao mesmo tempo em que grande parte dos itens servidos nasrefeies tinham origem na prpria unidade de produo, esses dividiriam a mesacom inmeros produtos industrializados, sem que a presena destes diferentemente

  • do que, como vimos, ocorreria entre os moradores de Porto Alegre entrevistados seconstitusse em objeto de crtica.

    Da mesma forma que observaramos, junto ao fogo a lenha, o fogo a gs, etambm a cafeteira eltrica, de usos complementares, veramos mesa, lado-a-lado,o po artesanal e a schmier industrializada; o salame feito em casa e o macarrocomprado pronto; o queijo colonial e a mistura pr-preparada para sopa; a polenta e amortadela; a salada colhida na horta e a sardinha retirada da lata.

    O cozimento no fogo a lenha, a utilizao de banha de porco na preparaodos pratos, assim como a polenta respectivamente, modo de preparo, ingrediente eprato , seriam alguns dos itens que poderiam, na alimentao, ser referenciadoscomo emblemticos de uma identidade colona. Entretanto, essa afirmao pareceno se constituir preponderantemente em oposio aos alimentos industrializados,mas sim a partir do vnculo com um tempo e temporalidade passados.

    Assim, entre esses agricultores, no se pode notar, por reflexo afirmao desua identidade ou, mais especificamente, dos alimentos a ela relacionados, aexistncia de desconfiana em relao aos alimentos provenientes da indstriaagroalimentar. Ao contrrio, o que se percebe no s, mas predominantemente a valorizao, entre agricultores, dos alimentos industrializados, possivelmentecorrespondente a um processo de depreciao, material e simblica, do rural.

    Se, para esses agricultores, os alimentos industrializados no parecem serfonte de ansiedade, no h porque supor que o seriam os alimentos transgnicos. Noentanto, tampouco se pode afirmar o contrrio.

    J no que se refere aos informantes de Porto Alegre, possvel concluir quese, por um lado, os elementos que, compondo sua ansiedade urbana diante dacomida moderna, desqualificam os produtos industrializados, tornando preferveis ospercebidos como naturais, conformariam uma disposio rejeio aos alimentosgeneticamente modificados; por outro lado, podemos supor que, da mesma formacomo ocorre em relao aos alimentos ofertados pela indstria agroalimentar, arejeio aos alimentos transgnicos no conduziria, linearmente, a umcomportamento de recusa a seu consumo.

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