179
1 1

rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

1

NOITE

VENTO

E CHUVA

CRÔNICAS DA CIDADE AMADA

Prefácio à primeira edição

1

Page 2: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

2

Prefácio á segunda edição.

A primeira edição deste livro foi dada a público em 1986, com o título de “Noite, Vento e Chuva. O propósito do livro foi homenagear algumas pessoas em Mogi das Cruzes, de uma forma poética e descomprometida, fugindo daqueles chavões da elegia, que sempre nos dão a impressão de servilismo e insinceridade. Mais de trinta anos se passaram desde então. A cidade cresceu, modificou-se, tornou-se um município de porte médio, perdeu aquela característica de urbe interiorana, calma e tranquila, onde nada parece acontecer. No preâmbulo da primeira edição escrevi que “o busto sobrevive a cidade, mas só a cidade justifica a confecção do busto”, com isso querendo dizer que uma cidade é o retrato das pessoas que a constroem. Alguns dos personagens citados neste livro têm hoje seus nomes em nossas praças públicas e ruas. Alguns até ganharam bustos em nossas praças. Todos mereceram. Mogi das Cruzes já fez mais quatrocentos e cinquenta nos e todas as homenagens lhe devem ser prestadas. Esta é a forma que encontrei de fazer a minha, reeditando, com algumas modificações e acréscimos, estes meus contos e crônicas que falam das pessoas com quem convivi na minha infância e juventude.

2

Page 3: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

3

Na verdade, são contos memoriais. A maioria dos personagens aqui citados são pessoas reais, que viveram, e alguns ainda vivem em Mogi das Cruzes. As situações em que elas são citadas também são, em sua maioria, mas foram tratadas com a licença poética necessária para dar formato ao estilo que eu quis utilizar na obra. Assim, em alguns momentos, o leitor terá em mãos um conto fantástico, como a Lenda do Negro Sebastião, em outras oportunidades um conto-fantasia, como o Passeio com o Poeta, ou ainda um conto memorial como os Meninos da Bráz de Pina, o Jovem Trabalhador ou o Diploma. Outros, como Marcelino, Pão e Vinho, E Agora João, são histórias inspiradas em personagens reais, nas quais coloquei um pouco de molho para lhes dar um gosto literário que os tornasse palatável para o gosto do leitor comum.

Alguns destes contos foram escritos em forma de prosa poética para dar a eles um pouco de estilo. Em outros, a realidade foi temperada com um pouco de imaginação para adquirirem um pouco de sabor literário. Mas ainda assim, penso que eles não perdem a característica de memoriais. Assim, presto a minha homenagem á cidade que me viu crescer, tornar-me adulto e amadurecer. E com ela a minha gratidão.

João Anatalino

Em 30 de abril de 2012

3

Page 4: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

4

DESCOBERTA DA ROSA

Para Rosa Lins, in memoriam.

Encontrei em ti o verdadeiro abrigo que eu buscava para as minhas noites de vento e chuva. Agora não preciso mais procurar na noite nem fazer perguntas ao vento. Tu sabes todas as respostas e as dá com um sorriso, um olhar, um movimento de olhos, de forma tal que nem precisa verbalizá-las. Agora posso ficar em casa nas noites de chuva, nos dias cinzentos, ganhando cor no rosto, músculos em volta do esqueleto, conforto na alma e segurança em todo o resto.

Hoje tenho banheiro que não é mais uma privada longe da casa. Ele é conjugado ao quarto de dormir e eu não preciso mais sair de casa para urinar, como fazia quando era menino. Meu quarto, com a tua presença nele, foi devidamente exorcizado dos demônios zombeteiros que costumavam atormentar-me depois das minhas andanças noturnas. Sei que hoje estou a salvo dessa estranha moléstia que costumava me atingir nas noites de vento e chuva. Aprendi a controlar essa doença através de um regime de certeza, conforto e segurança que o ressonar do seu sono tranquilo me traz.

Mas claro que sei que essa moléstia é incurável. Afinal, eu sou poeta. Quanto venta à tardinha e chove no

4

Page 5: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

5

começo da noite, aquela velha nostalgia bate à porta e eu atendo. Então eu vou para aquele nosso quartinho no fundo do quintal, onde a minha velha máquina de escrever está sempre a postos e muitas folhas em branco estão á espera, como se soubessem que mais cedo ou mais tarde serão requisitadas para cumprir o seu

propósito. Sento-me antão no escuro e espero a visita daquele anjo torto que visitou Drummond quando ele nasceu, e lhe disse: “ Vai Carlos, ser gauche na vida”. Eu não sou gauche, eu não canto triste. Meu canto é uma elegia da vida. Mesmo aqueles que parecem tristes, são, na verdade, apenas contemplativos. Recordam os momentos vividos e os sentimentos experimentados naquelas experiências como se elas estivessem acontecendo novamente. Sou sinestésico por completo. Não compreendo a vida sem a experiência dos sentidos.

Fiz o poema do Anjo Torto para dar uma idéia do sentimento que me inundava a alma depois de ter conhecido você e ter deixado aquela vida de vagabundo sentimental que pensava poder viver de poesia. Eu tinha me transformado em um homem sério, que saia de casa de manhã para trabalhar e voltava á noitinha para descansar. Mas em vez de descansar ia para o velho quartinho de despejo e ficava em frente da máquina de escrever. E tu me levavas um café, ás vezes uma cerveja...

5

Page 6: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

6

Um dia desses o anjo torto(Gabriel dos poetas atormentados)Visitou a minha casaE remexeu nos meus papéis.Vinha cheio de oficialidadeComo advogado do diaboLevantar-me o merecimento.Era sóbrio o anjo torto, Não fez perguntas nem falou.Só puxou minhas gavetasE sequestrou os meus papéis.Anotou alguma coisa Na prancheta que traziaNas mãos disformes de duende.No quintal olhou o céu E fez algumas anotações,Respirou fundo o anjo tortoE suspirou desconsolado.Foi ao quartinho de despejoAchou um esboço de poema(Eis a prova definitiva?)Só então olhou pra mimCom um sorriso indecifrável;Pôs a prancheta num dos bolsosE sumiu numa nuvem de fumaça.

Sim, eu sei que não sarei. Tu mesma já percebeste isso. Notas que me levanto à noite quando o vento bate na janela. Que eu não durmo direito quando chove. Que fico, absorto, a ouvir o tamborilar dos pingos no telhado.

6

Page 7: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

7

Não te aborrece o fato de eu ter que levantar-me da cama para atender às exigências do Anjo Torto do Drummond. Nem sentes ciúme da noite do vento e da chuva que amiúde me convidam para reviver aquelas antigas andanças pelas ruas da cidade amada. Até já te propuseste a experimentá-las comigo. Não te incomoda a intimidade que tenho com os espíritos da noite. Não procuras ser possessiva nem te importa que eles concorram contigo pela minha atenção. Sabes que sejam quais forem os apelos que me fizerem e os prazeres que me ofertarem, eu sempre voltarei para o teu lado. Entende que eles me fascinam, mas não têm as respostas que eu preciso, por que estas estão todas contigo, no teu pensamento simples, povo e chão, que aprendeu e sintetizou todas as sabedorias necessárias para uma vida de perfeito equilíbrio. Tens a sabedoria da árvore e a determinação dos regatos. Sabes quando se deve vergar à tempestade e contornar os obstáculos. Em caso nenhum atacas primeiro, porque sabes que a resistência mais eficiente é a tolerância e a compreensão. Enquanto todos lutam e se ferem para galgar a montanha e sobreviver às intempéries, tu atravessas as tormentas sem ao menos despentear os cabelos. Por que o livro em que aprendestes foi o Sermão da Bem aventurança. E é assim que me sinto cada vez mais calmo e mais irmão. É esta comida simples que fazes e o jeito especial de encontrar as coisas que eu nunca lembro onde deixei. Quando me despedes com um beijo trivial pela manhã, sei que voltarei para receber outro beijo trivial à

7

Page 8: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

8

tarde, mas é a justamente a simplicidade desse comportamento que me faz sentir que eu sou o mais amado dos homens. Dizem que não há beleza em nada que não seja completo. Por isso a solidão é feia. E só há felicidade quando na complementaridade que uma alma encontra em outra alma. Eu te encontrei e me senti assim: completo. Registrei isso em um soneto.

Como é bom saber que eu sou amado!Eu sinto isso quando estou chegando,Em nossa casa, à tarde, bem cansado,E encontro teus lábios me esperando.

O cansaço se esfuma nos teus braços,E desaparece como a chuva de verão.Se na rua amargurei alguns fracassos,Junto a ti me recupero e sou campeão.

Meu coração, ao teu agora está ligado,Indistintos, já não somos mais eu e tu,Duas almas se tornaram apenas uma.

Como a flor de Basho no muro rachado: “Yoku mireba, nazuna hana saku, Kakine kana”.1 Minha nazuna¹

1 “Quando olho naturalmente, vejo nascer a flor nazuna na base do muro fendilhado.” Matsuo Bashō (1644 – 1694), poeta japonês, criador da forma poética haikai.

8

Page 9: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

9

Porque o que nos une é justamente o trivial. Fosse novidade, nós teríamos medo de entregar-nos um ao outro com tanta confiança. Não se ama o desconhecido porque ele sempre nos inspira desconfiança e temor. Nos amamos porque nos conhecemos e o verdadeiro amor é o amor do amigo, do cúmplice, daquele que é verdadeiramente próximo e confiável. Ao terminar estas memórias, que escrevi com o objetivo de reunião e acerto entre as minhas partes, descobri-me ainda mais disperso. Mas já não preciso do vento para trazer-me as mensagens que cada uma delas me envia. Recebo-as pelos movimentos dos teus olhos, pelas posturas do teu corpo, pelos toques macios das tuas mãos e pelas poucas, precisas e fundamentais palavras que dizes. E a fazer isso resumes toda a informação necessária para que eu, finalmente, compreenda. Por isso, Rosa, este livro é principalmente teu. Com todo o meu amor.

9

Page 10: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

10

OS MENINOS DA BRÁZ DE PINA

“Nos áureos tempos, a rua era tanta;O lado direito retinha os jardins.”

Carlos Drummond de Andrade.

A rua era a Brás de Pina, também chamada da Lagoa Seca. Larga rua, rua velha, com suas casas ainda mais velhas, rua poeirenta e sem asfalto, calma e sem carros. Naquela rua, nos idos de mil novecentos e cinquenta e

seis, os meninos podiam jogar taco. O jogo de taco é uma é espécie de beisebol caboclo, onde jogam quatro pessoas. São feitas duas pequenas casinhas de gravetos, semelhantes a duas pequeninas pirâmides, colocadas a cerca de vinte ou trinta metros uma da outra. Formam-se duas duplas. Uma delas são os rebatedores, outra os arremessadores. A dupla arremessadora deverá atirar uma bolinha (geralmente uma bolinha de tênis) contra a casinha. A dupla rebatedora deverá defender a casinha rebatendo a bolinha. Quanto mais forte a tacada e mais longe a bolinha for mandada, melhor, pois assim a

10

Page 11: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

11

dupla rebatedora poderá fazer mais pontos por tacada. O ponto consiste numa troca de posição entre um e outro rebatedor.

A rua Brás de Pina era ideal para esse tipo de jogo. Rua larga e pouco frequentada por automóveis, que eram raros naqueles dias. Poucos podiam se dar ao luxo de possuir um. As casas também ficavam longe da rua e raras eram as que tinham muros. Nada de janelas para quebrar nem cercas para pular quando a bolinha caia em algum quintal.

Lá havia espaço e muitos garotos. Havia também vizinhos rabugentos. Nenhum deles gostava quando uma bola caia no seu quintal e atrás dela vinha um menino ranhento, sujo, suado e maltrapilho, batendo palmas no portão, pedindo para pegar a bola. Isso porque, se no quintal houvesse algum pomar em tempos de safra, com a bola sempre vinha alguma fruta...

Era comum brincar na rua naqueles tempos. Raros veículos apareciam por lá para atrapalhar as brincadeiras. O que mais pintava no pedaço eram os velhos caminhões de ambulantes, com seus motoristas anunciando suas mercadorias com um megafone;

― Olha a sardinha vivinha, dona Candinha!―Olha a melancia, dona Maria!―Galinha caipira, dona Mira!─ Linguiça fresquinha, dona Cidinha!

Na rua Brás de Pina era possível até jogar futebol. E a gente jogava. Organizava até torneios. Bola de meia

11

Page 12: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

12

ou de borracha. Vez ou outra aparecia uma bola de capotão, aquela pelota meio ovalada, que mais parecia bola de “rugby”, que tinha uma câmara semelhante a uma bexiga por dentro da cobertura de couro, que a gente amarrava com cadarço. Parecia com aqueles espartilhos que modelavam a cintura das nossas avós.

Os meninos eram tantos que às vezes a gente fazia até campeonato. A taça era uma dúzia de bananas. Formávamos times de 15 contra 15 e ás vezes até mais. O jogo durava a tarde inteira. Quando estávamos cansados e resolvíamos parar o jogo, (quase sempre porque o dono da bola tinha que ir embora porque que a mãe chamou), alguém gritava: ― Quem fizer o último gol ganha!

Então todo mundo corria para marcar o último gol. Mas Quem marcava ganhava, mas nunca levava a “taça”. Fosse por que uma dúzia é menor que quinze, ou por que todos estavam com fome, ou pelo fato de ninguém se conformar em perder, na briga para ficar com as bananas, as pobres frutas eram esmagadas e pouca coisa sobrava delas. Ás vezes era o menino que estava mais próximo do pacote que saia correndo com elas e todo atrás dele.

“ Na velha rua Bráz de Pina, Rua larga, sem o asfalto Que quando chega traz os carros,Os meninos estão brincando.Seu Antônio está olhando.

O Nelsinho bateu com força.A bola caiu no Seu Antônio

12

Page 13: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

13

Aquele que compra sucata.Seu Antônio, furou a bolaE acabou com a mamata.

Domingo é dia de jogar contra.Vale uma dúzia de bananas.Tem que marcar o CanelinhaE pegar firme o Celsinho.Mas se o goleiro deles é Zé MelecaEntão dá para ganhar.Porque a gente tem o NeguitinhaE o Bastiãozão também irá.

Na velha rua Bráz de Pina, Rua Larga, rua calma,Tem poeira levantando, Não são meninos a brigar;

É o velho Ford do Franz Steiner,Que passa tossindo, avisando,Que o progresso está chegandoE a farra está para acabar.

Mas a rua Bráz de Pina não tinha só meninos. Havia meninas e as brincadeiras delas.

“― Ciranda, cirandinha,Vamos todos cirandar,Vamos dar a meia voltaVolta e meia vamos dar...”

13

Page 14: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

14

Menino não brincava com menina. Quando algum garoto mais corajoso entrava na roda das garotas, os outros meninos começavam a cantar:

“― Ciranda, cirandinhaTerezinha, amarelinha,Quem brinca com meninaUm dia vira mariquinha!”

Mas apesar da vergonha que a gente tinha de brincar com meninas, todos os meninos queriam entrar naquela roda para pegar na mão de certa menina. Isso porque todos já tinham as suas namoradas secretas, já tinham, de alguma forma, feito a sua escolha. Só elas é que não sabiam disso.

Um dia uma menina de óculos veio morar naquela rua. Sua família ocupou o único sobrado daquele quarteirão e ela ficava todos os dias na janela espiando a molecada brincar. Jamais se misturou ás outras meninas do bairro e nunca se deu ao luxo de pelo menos, olhar para um dos meninos. Mas ficava horas olhando a gente brincar na rua, e tenho certeza que morria de vontade de entrar na roda. Mas ela era a “menina rica” do bairro.

Nunca se vira uma menina de óculos por aquelas bandas. Logo ganhou o apelido de “a quatro olhos do sobrado”. Tinha uns doze anos talvez. Usava longos cabelos, negros e escorridos. Tinha umas pernas grossas e bem feitas, que sobressaiam da saia curta, engomada. Mantinha um narizinho empinado toda vez que passava em frente aos meninos.

14

Page 15: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

15

Eu nunca descobri o nome dela. Era a “quatro olhos do sobrado” e só. E como ela não nos dava bola, nós zombávamos dela, púnhamos apelidos, falávamos obscenidades, dizíamos gracejos.

Isso quando estávamos juntos. Sozinho, ninguém tinha coragem de mexer com ela. E à noite, quando estávamos na cama, e ninguém via o que fazíamos, e ninguém desconfiava no que estávamos pensando; quando se arrependíamos das coisas que não fizemos durante o dia, quando lamentávamos o soco que não demos no nariz do desgraçado que xingou a nossa mãe; depois de repassar as aventuras do dia, fazendo melhor o que se não se fez direito, adivinhem em quem a gente pensava: na “Quatro Olhos do Sobrado”.

Sim. Eu sei que todo mundo pensava nela. Eu pelo menos confesso que pensava. “Quatro olhos” coisa nenhuma! Ela era tão bonitinha. Tinha o rosto de uma princesa. Em baixo daqueles óculos de lentes grossas e aros esquisitos, eu via o par de olhos azuis mais bonitos do mundo!

E nos meus sonhos eu não era um garoto sujo, feio e maltrapilho, deitado sobre um imundo colchão de capim, (cortiço fedorento onde se hospedavam miríades de pulgas nojentas, cujo único objetivo era chupar-me o sangue ralo e insipiente), manchado com tudo que era secreção humana. Eu me tornava um Lancelot montado sobre um fogoso corcel, lutando pela minha amada princesinha de óculos. E eu sempre vencia. E ela sempre me olhava com aqueles olhos de donzela medieval, ternos, castos, amorosos, olhos de dádiva, olhos de

15

Page 16: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

16

prêmio...― Sou tua, meu príncipe: toma-me porque me ganhastes!

Mas o que se faz com uma menina de doze, quando se tem treze anos? A libido só conhece o caminho da mão. E é por ai que se busca a recompensa. Mas ainda não se tem material suficiente para obter satisfação completa. Então as imagens se fundem numa bola que é atirada numa vidraça. Os vidros se partem em mil cacos, e eles são os óculos da “Quatro Olhos”. Ela joga uma pedra em mim. A pedra bate no meu peito e machuca. Sinto a picada. Dói. Levo a mão onde a pedra bateu e capturo uma pulga gorda; na casa ao lado, paredes meias, feita de barro e taipa, alguém está falando alguma coisa. Presto atenção para ver se não estão falando mal de mim. Escuto a moreninha Olinda, mulatinha de pernas grossas, que mora do outro lado da rua, falando uns troços que eu não consigo entender, mas sei que tem algo a ver comigo, por que nos lábios dela eu vejo aquele sorriso sem vergonha e zombeteiro de quem me pegou fazendo alguma coisa feia...

“ Olinda, Linda, mulatinha,Das pernas grossas e roliçasMelhor amiga da minha irmãJamais vai ler estes versinhosPorque jamais aprendeu a ler.A menina de óculos do sobrado, O primeiro da Bráz de Pina, Talvez leia. Mas se ler não saber,Que foi a grande responsável

16

Page 17: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

17

Pela minha primeira floração.E eu nem soube o nome dela.

E o quarto navega. Não é num mar de água, sal e céu. É um rio de sol, poeira e sangue, que passa por bueiros e depósitos de lixo, cheio de sucatas e ratos do tamanho de uma bola de futebol. Eu chuto um deles e ele cai no rio. Mas não é um rato, é uma bola de futebol. O meu amigo “Vaca-Mão-Nega” pulou no rio para pegá-la, afogou-se morreu. E a bola não é bola, porque se transformou em uma bexiga de mortadela que nós roubamos no Mercado Municipal. Correm atrás de nós. Jogo para ele a bexiga e a bexiga vira uma pipa que sobe. Alguém lhe corta a linha. A pipa, que virou um balãozinho lozango, caiu no quintal do Seu Antônio do Ferro-Velho. Ele, ao ver a pipa caindo, para de tocar a sua tuba e a aponta a boca daquele troço para mim. Da boca da tuba sai uma descarga de sal grosso que acerta na minha perna direita. Ela queima, queima, queima...

Daquele menino que pescavaNa Boca do Cano do Tietê,Hoje ninguém se lembra mais.Exceto talvez os seus parentesQue até hoje não entendem Que o zelo pela lei municipalValesse a vida de alguém.

Do soldado que matou o meninoQue pescava na Boca do Cano

17

Page 18: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

18

Ninguém se lembra mais.Talvez tenha progredido na carreiraE se tornado coronel.

O Tietê também morreu,Mas a lei não castigou o assassinato ecológico.E o menino que pescava na Boca do CanoMorreu porque tirou um peixeDo rio que hoje não tem mais peixe algum. 2

Grito! Acordo segurando uma enorme pulga. Depois de ter convenientemente chupado meu ralo sangue, deixando um pequeno hematoma na minha perna, ela parece aturdida pela enormidade do crime que cometeu. Apavorada pelo castigo que a espera, parece que ela quer pedir perdão. Não amoleço. Esmago-a entre as unhas dos polegares, que ficam rubros com o sangue que espirra. Não sei se a pulga é macho ou fêmea, mas eu a chamo de Nelsinho, e eu te mato, te mato, desgraçado... Com as mãos sangrando, pego a bolinha de camurça e a atiro com fúria contra a casinha de barro e taipa, que cai

2 Em 1956 um menino de doze anos, que pescava na desembocadura do riacho Ipiranga com o rio Tietê foi morto a tiros por um policial da antiga Força Pública. Uma lei municipal proibia a pesca naquele local. A população da cidade provocou um motim, ameaçando inclusive invadir a delegacia local. O tumulto só foi resolvido com a prisão do policial e a sua remoção para outra cidade.

18

Page 19: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

19

com um estrondo. E aí eu pego o taco e coloco entre as pernas e digo: ― Vem.

Ninguém veio, mas a menina de óculos do sobrado está olhando com ar de desdém e a mulatinha Olinda está sorrindo aquele sorriso sem vergonha.

E surge então aquela vontade incontrolada de mijar. A cueca parece uma tenda armada no púbis ainda imberbe. A privada fica no quintal, a uns vinte metros da casa. Está escuro e eu tenho medo dos espíritos da noite. Sempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha e mijo ali mesmo. Ninguém viu. De volta à cama, penso na loura- vampiro que dizem andar por ai.3 Cubro a cabeça para me esconder. Aí alguém que se parece com o Jesus do retrato da parede rola uma bola de capotão para eu chutar. Chuto e a bola cai lá no campo do Sete de Setembro. Hoje é sábado e amanhã é domingo.

“ Hoje tem festival de futebol No campo do Sete de Setembro.(Auto Escola Santa Teresinha).A Vila dos Pobres também fica ali.A Maria Coça-Coça mora lá.Todo dia dá um show para a molecada.Lá também mora o Capeta.

3 A “loira-vampiro” é uma lenda urbana que foi muito divulgada em fins dos anos cinquenta. Diziam tratar-se de uma mulher loira que costumava atacar homens nos banheiros públicos para chupar o sangue deles.

19

Page 20: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

20

E o seu Camilo Machado CabralÉ que comanda tudo aquilo.4

Mas o Neguitinha puxou a saia da Coça-Coça. Ela soltou um palavrão e saiu correndo atrás de mim. Subi num pinheiro que havia em frente á fabrica de móveis Padovani. Maria Coça-Coça se transformou em um urso cinzento, igual ao que eu havia visto numa seção “Pif-Paf” no Cine Odeon. Ela começou a sacudir a árvore. Um monte de peras carnudas caiu no chão. Enchi minha camisa com elas e o urso que era a Maria Coça-Coça continuou a correr atrás de mim, mas já não era um urso, mas sim o “Seu Horácio de Oliveira”, dono daquele quintal ali na Avenida grande, onde havia umas pereiras que todo ano carregavam. Um sujeito passou de bicicleta pela rua e me chamou de predador, porque eu estava cortando um pinheiro para fazer traves para o nosso campinho de futebol.

“ Cortei um dia um pinheiro Para fazer trave para o campinho.Um cara me chamou de predador.

4 Sete de Setembro é o nome de um time de futebol muito conhecido na cidade nos anos cinquenta e sessenta. A “Vila dos Pobres” era o nome popular dado á Liga Humanitária, ONG que dava abrigo aos mendigos da cidade. Camilo Machado Cabral, dono de uma autoescola, era o presidente daquela instituição. “Maria Coça-Coça” e “Capeta” eram dois habitantes da Vila dos Pobres, que por sofrerem problemas mentais eram sempre motivo de brincadeiras por parte da garotada do bairro.

20

Page 21: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

21

Eu pensei que a minha mãe Tinha algo a ver com isso.E comecei a desconfiar do caraPara quem ela lavava roupa.”

E eis-me na rua empurrando um enorme carrinho de roupa lavada, que de repente, não é roupa, mas lata velha, ferro, papel, vidro quebrado, sucata de tudo quanto é tipo, que eu juntei para vender para o “Seu Antônio do Ferro-Velho”. Estou fumando um cigarro.

“Catei bituca, fiz um cigarroEmbrulhado em papel de pão.Naquele dia ninguém me disse Que fumar provocava câncer.Fumei, gostei, fumei muitos anos,Especialmente quando queria ser alguém.Com o primeiro dinheiro que ganheiVendendo ferro velho pro Seu Antônio,Comprei um “Mistura Fina”.Foi assim que eu me descobriComo alguém que descobre as próprias mãos.”

E aquela mão que parecia igual á do “Homem de Borracha” 5fechava o gol, tirava os óculos da menina do sobrado, afagava as coxas grossas da mulatinha Olinda. As minhas mãos eram grandes, o meu taco era enorme. E eu batia na bola com aquele taco e o esfregava e torcia.

5 “Homem de Borracha”, herói das histórias de quadrinhos, muito conhecido nos anos cinquenta.

21

Page 22: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

22

Todos temiam aquele taco, mas também ficavam fascinados por ele, porque ele era batata doce, pinhão assado e cigarro “Continental ou Mistura Fina” e estava ao alcance da mão. E a Faustina, aquela moça que era minha vizinha, olhava e ria.

“Do alto do barrancoA casa velha espia a rua.Dona Maria espia o tempo. O povo espia a filha dela.Faustina casa ou não casa?Já está com outro namorado.Dona Maria espia as outras moçasSó não espia a filha dela.A vizinha espia a Faustina,Eu espio o pinhão assando no fogão de lenha,Dona Maria velha espia a minha mão.Faustina, afinal, se casou com o Frederico.”

Cortaram a minha mão! Não, não foi a dona Maria Velha! Foi a minha mãe!

― Por que, mãe?― Para que não tire mais pinhão do fogo nem fique

pegando nesse taco. O sangue pinga da mão decepada. Os pingos da

chuva sangrenta desenterram meu pai, há pouco deitado em cova rasa no cemitério do hospital Santo Ângelo, em Jundiapéba.

“Meu pai morreu em 1956.

22

Page 23: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

23

Depois dele logo foi o meu avô.Foi como se um tivesse chamado o outro.Não me lembro de ter chorado.Não conheci bem nenhum dos dois.Depois, ninguém chora aos treze anos.Nessa idade a morte é só uma oportunidadePara tomar café com biscoito de sequilhosNas noites de funeral.”Meu pobre pai era um lavrador semianalfabeto que

pegou doença ruim e teve que ser internado no Santo Ângelo. A única lembrança que tenho dele é uma estória que ele me contou um dia, antes de ser internado. Era uma estória sobre um cara que comprou um monte de livros sem ao menos saber ler. Tratava-se de uma coleção de livros chamado o tesouro de Bersa. Comprou porque o vendedor lhe prometera que se ele conseguisse ler todos aqueles livros ele iria adquiri um tesouro incalculável que o deixaria rico para sempre. Então, para justificar o investimento, ele entrou numa escola para aprender a ler. Aprendeu e daí começou a ler os livros que comprou. Mas eram livros que falavam de coisas que ele não conseguia entender. Então, para entender os livros que comprara, ele resolver estudar mais. Fez ginásio, colegial, faculdade, mestrado, doutorado. Tudo para poder entender o que estava escrito naqueles livros. Tornou-se mestre, doutor, conselheiro, intelectual respeitado em todo o país. Ganhou dinheiro, consideração e respeito. Esqueceu-se dos livros e do tesouro prometido pelo vendedor.

Um dia encontrou o vendedor e o reconheceu.

23

Page 24: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

24

― Não que isso me interesse agora, mas estou curioso ― disse ele ao agora velho senhor que lhe vendera os livros. ― Que tesouro era esse que você me prometeu no final desses livros? Eu já os li um monte de vezes e até agora não encontrei coisa nenhuma.

― Há muito tempo o senhor os encontrou ― disse o vendedor. Basta virar o título da coleção de trás para frente o senhor qual foi o tesouro que adquiriu.

Ele o fez e soube que Bersa, na verdade, significava Saber.

24

Page 25: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

25

O DIPLOMA

“ Que saudades da professorinhaQue me ensinou o Be-A-Bá”

Ataufo Alves

PARA CLARA COELHO

Clara Coelho era uma moça bonitaQue usava uma saia de tecido xadrez.Isso é só o que lembro da figura dela.O resto das minhas lembranças São as coisas que ela dizia.

“Ficavas na porta da pequenina salaAté que o último dos alunos entrasse.Aquela profissão de mãe de alheios filhosComo tu ninguém soube assumir melhor.Aquela ternura de ensinar sem obrigação,Mostrando nos mapas os lugares onde estávamosE s letras pelas quais nos conhecemos,Aquele olhar severo que expulsava os demônios

25

Page 26: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

26

(Pensamentos bastardos que queriam seduzir-nos)Trocando-os por Geografia e HistóriaForam informações que ampliaram meu espaçoE injetou em mim as sementes da esperança.

Ah! Dona Clara Coelho!Tudo mudou desde aquele tempo teu.Até o país depois mudou de capital.Mudei de roupa, de tamanho e de desejos, Mas conservei os fundamentos que me destesE que expresso na gratidão desta lembrança.

Passo hoje em frente ao prédio da Senador DantasE cavalgo num torvelinho de saudade.Vejo de novo os olhos marotos, porém ternosA faiscarem como estrelas orgulhosas.No velho muro, entre o musgo, a ternura e o tempo,Há uma frase invisível rabiscada,Que só eu vejo, e os alunos que ensinastes.―Aqui ensinou Clara Coelho. Quem aprendeu ainda sabe.

PARA GERALDINA PORTO WITTER

Sim. Quem aprendeu naqueles dias ainda sabe. Sempre saberá, por que sabedoria, a verdadeira sabedoria não se perde. Ela também está sujeita á lei da conservação das massas. Transforma-se, modifica-se, mas nunca se perde.

26

Page 27: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

27

E Dona Geraldina sabia. E como sabia. Ela sempre soube, por exemplo, que eu era um aluno indisciplinado. Talvez soubesse também quem escrevia aquelas obscenidades nas paredes e nas portas dos banheiros. Sabia também que eu puxava os cabelos da japonesinha Alice ─ um estranho nome para uma japonesa naqueles tempos ─; e que eu vivia falando bobagens para a lourinha Nília, que não deixava a bonitinha Nilse em paz, que trovava sopapos com o Nilton Gordo e com o Nelson da sorveteria. Ah! Talvez soubesse que eu tinha uma paixão incontrolável pela Jacira, aquela menina de dentinhos tão branquinhos que pareciam feitos de leite puro. Não era segredo. Todos os meninos da classe eram apaixonados por ela. Dona Geraldina sabia tudo. Sabia todas as capitais dos estados brasileiros e de todos os países do mundo. Sabia de cor e salteado todos os hinos que homenageiam as nossas honras nacionais. Na entrada da aula cantávamos o Hino Nacional:

”Ouviram do Ipiranga às margens plácidas De um povo heroico o brado retumbante E o sol da liberdade em raios fúlgidos Brilhou no céu da pátria nesse instante....”

E aí ela explicava o que eram “margens plácidas”, “brados retumbantes”, “raios fúlgidos” e outras expressões do hino. (E com nove anos de idade eu já sabia o que queria dizer “Se o penhor dessa igualdade/ Conseguimos conquistar com braço forte.”).

27

Page 28: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

28

Mas não era só isso. Na saída das nossas classes cantávamos o hino da República. Hoje eu só me lembro de cor do refrão: “ Liberdade, Liberdade, Abre as asas sobre nós. Das lutas nas tempestades Daqui ouçamos sua voz..”(Quem é ainda sabe cantar isso hoje?)

E ai de quem não cantasse com as mãos no coração. Ternos castigos. Castigos de mãe que verdadeiramente ama um filho. Um olhar de reprovação. Um gesto de desagrado. Bastava aquele olhar de terna severidade para saber que estávamos fazendo alguma coisa errada. E voltávamos a cantar com gosto. E ela cantava conosco, sua voz cada vez mais alta, destacando-se nos agudos; e nós, pequeninos, olhando e seguindo a voz daquela

“ Figura pequenina que a mesa quase ocultava. Alguns de nós talvez já tivesse a altura dela. Mas no pequeno arbusto que ela era Existia a força e a amplitude de um carvalho.

O amor que ela mostrava ter Pela pátria e pelos alunos dela Era místico e parecia não ter limites. Sua voz era fresca e necessária

28

Page 29: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

29

Jorrando abundante para nossa sede.

Mestra! Encheste meu coração de compromissos, De deveres dos quais nunca me resgatei. Ainda me sirvo daquele cântaro que me ofertastes. E da água cristalina que me destes para beber. Não sei se aprendi o que me ensinastes. Mas meu coração anseia e ainda busca Aquele país que o teu coração me apresentou.

Certamente entre tantos alunos que aprenderam as primeiras letras com Dona Clara e Dona Geraldina não sou eu o único que se recorda e agradece. Reconhecimento e gratidão são os dois primeiros degraus da redenção e naquela escola do Centro Espírita Santo Antônio de Pádua não faltam pessoas a quem eu deva manifestar a minha gratidão. Lembro-me particularmente do Seu Rafael. Ele me deu o primeiro par de calçados que eu usei na vida. Era um par de Alpargatas Roda, calçado feito de lona com sola de corda de sisal, bom para andar em casa e manter o pé bem quente. Seu Rafael, homem bom como poucos que eu conheci, também indicou bons livros para eu ler. Robinson Crusoé, O Pequeno Polegar, A Ilha do Tesouro, Os Três Mosqueteiros. Bom adubo para a minha imaginação.

PARA O SEU RAFAEL

Bendito sejas tu que calçados Destes para proteger-me os pés

29

Page 30: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

30

E livros para adubar-me a imaginação. Um livrou-me dos vermes, O outro da ignorância. Por onde meus pés andarem, Será sempre um caminho que apontastes. Seja o que for que eu pensar, Isso virá das sementes Que plantastes em minha mente. E o diretor da escola era o Senhor Álvaro Campos Carneiro. Homem magro e pálido que todas as quartas-feiras visitava a nossa classe, sempre vestido com o seu inesquecível terno esvoaçante que parecia não ter nada dentro. Tinha um rosto severo, ou pelo menos assim procurava se mostrar. Inspirava temor, não aquele temor que se tem de um homem bravo, mas aquele temor reverencial, inspirado pelo respeito e pelo medo que a gente tem de desagradar alguém a quem se aprendeu a amar. Ele sabia de todas as nossas traquinagens. Uma por uma, apontando cada um de nós, chamando-nos pelo nome, nomeava e dizia as nossas travessuras. Passava sermões e dava conselhos. Depois contava histórias que não entendíamos bem, mas que sabíamos ter muito a ver com a nossa vida. Havia uma cadeia de vibrações que nos ligava àquele homem magro de terno esquisito, que fazia com que o ouvíssemos respeitosos, como se fosse o nosso próprio pai.

30

Page 31: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

31

E depois do sermão aquelas balinhas gostosas, imitando soldadinhos doces, que ele nunca deixava de trazer. PARA ÁLVARO DE CAMPOS CARNEIRO Um homem magro de faces pálidas Guarda todos os caminhos Que os profetas ensinaram. Escolhido para guiar os homens Parte em busca do amanhecer. Seu pensamento está nos olhos Seu coração é o estandarte. O homem magro ataca a fome Sem ajuda oficial.

Entra e sai pisando firme Como quem sabe onde vai. Volta à pequena sala de aula Saquinho de balas nas mãos Pequenos soldadinhos doces Do soldado que luta só, Para suprir ao que ao Estado cabe E cabe aos pais que nos fizeram Sem pensar no quanto custa. Nenhuma queixa, só conselhos,

Que se ouve e não se guarda, Mas que na hora da verdade São repetidos para os filhos.

31

Page 32: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

32

O homem magro, a sopa gorda, de fubá, O Caminho Suave, a cartilha,Os olhos fundos, o homem magro,De faces pálidasFala das coisas que realmente são.

Sento-me à sua frente Com um pensamento de mil anos.Sou um menino diante de um rio, Rio que sai de lugar nenhumE forma um mar futuro Que meu estilingue não alcança.Decididamente um homem Não devia sonhar tão grandeMas o homem que tu és Não se explica num poema.

Á noite o velho salão da Senador DantasÉ um mundo sem fronteiras.Homens e mulheres ligam a terra á outras esferasE se transmitem verdades indiscutíveis.Em meio a tudo brilha um sol,Um sol pequeno, um sol qualquer,Cuja luz vem de nenhures,Cujo brilho alcança tudo.Vem de um átomo, de um sonho,De Deus talvez, envolvendo o ambiente,Os homens e suas almasSepultando toda incompreensão.E tu pequeno, tu crescente,

32

Page 33: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

33

Nas entidades que incorporas,E nas mensagens que divulgas, Que até hoje não compreendi,Mas meu coração sabia certas,Por isso nunca as contestei.O salão passa, as luzes se avolumam,Vozes vem longe,Como murmúrio do ventoNas ramagens de um jardim. E de súbito se compreendeQue tu és um telegramaUma fábrica E uma flor.

Há uma fábrica, uma flor e um telegramaEm cada ato e palavra que enuncias.Dispersos no tempo, os teus produtos,Teu exemplo, tuas mensagens,Formam um enigma que ao decifrar agoraDá-me a exata figura de um pai.

Sei que o discurso que amole os tolos Não te farão envaidecido.Nem é o reconhecimento De um antigo menino de dez anosQue te farão realizado.O homem que persegues é o homem dos Evangelhos, o Ser Total,Que nenhuma biografia será capaz de definir.És como segredo sussurrado ao vento,

33

Page 34: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

34

Ao cair da tarde, para quem quiser ouvir,Sem necessidade de guardar,Mas com a obrigação de espalhar,Que houve um homem como tu.Se houver justiça neste mundo,E Deus, afinal, for bom patrão,Não ficarás somente num poema.

Algures nasce um santo,Quando desaparece um tirano.Acordo feito entre potestadesPara conservar o equilíbrio.Assim te pões entre nós todos Como marca dentro do livro.

PARA ARACY STEINER Fui fazer o quarto ano no Grupo Escolar Dr. Deodato, no antigo Bairro da Vila Industrial, que nós chamávamos de Mineração. Deodato Wertheimer é um nome famoso em Mogi das Cruzes. Foi prefeito da cidade, e segundo dizem, um dos melhores que já tivemos. Há uma rua no centro da cidade e outra em Brás Cubas que levam o nome dele, além da escola acima citada. A Mineração era um bairro diferente. Lá moravam os chamados “bambas” da cidade. Era o território dos malandros, bons de samba, de futebol e de briga. Quem não morasse na Mineração não era bem recebido por aquelas bandas. Foi o ano que eu mais briguei. Também

34

Page 35: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

35

foi o ano que mais apanhei. Mas eram só brigas de rua, que no dia seguinte eram esquecidas, pois lá estávamos de novo, jogando bolinhas de gude com o adversário do dia anterior. No Dr. Deodato eu conheci da Dona Aracy Steiner, que era a nossa professora do quarto ano.

Quero casar com professoraSão bonitas e ganham bem (pensava eu).Casei com uma, (coitadinha).Mas também, no tempo em que o Ciro AlvesEra o Diretor do Dr. Deodato,A revolução com seus generais redentoresAinda não tinha inventado os Maluffes.As professoras não procuravam maridos ricosPorque a riqueza era elas próprias.

Aliás soldados e políticos, só de brincadeiraNo pátio, comendo pão com goiabada.- Soldado – cabo- sargento- -Tenente- capitão – coronelQuem chegar a general é expulso do banquinhoE taca a bunda no cimento.

Os soldados e os políticos Estragaram a brincadeira.Casar com professora Deixou de ser a sorte grande.Mas no tempo de você, Aracy Steiner,Educação era um substantivo bem concreto.

35

Page 36: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

36

Mas um ano passa logo. Já tinha feito os exames e garantido o meu diploma. Chegara a hora do carrancudo diretor me entregar aquele papel que faria de mim o orgulho da família. O primeiro alfabetizado da família. Foi um dia inesquecível.

Naquele dia Quinze de Dezembro De mil novecentos e cinquenta e seisO Grupo Escolar da MineraçãoNão tinha mais lugar no páteo.Nem no coração das quinhentas almasHavia espaço para tanto orgulho. Minha mãe estava lá,Estava lá a minha irmã.Estava bonita a MariquitaNo seu vestido amarelo.Tão bonita ela estavaQue até namorado arranjou.Seu Ciro Alves fez discurso,Dona Aracy me deu um beijo,Camisa branca, calça azul,Fui receber o meu diploma.Eu era agora estudadoE me sentia superior.

Minha mãe era a mais orgulhosa de todas. Vi isso no olhar úmido dela. Era como se eu tivesse acabado de receber um canudo de doutor. Para a minha mãe, que

36

Page 37: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

37

nunca aprendera a ler, ter um filho alfabetizado já era uma conquista maravilhosa.

PARA A MINHA MÃE

Até agora não disse uma palavraA quem permitiu a minha vida;Não importa ela não saber ler.Ela ouve e é bastante.Ela sente e é suficiente.Á minha mãe que naquele diaJá adivinhava este poema.

Porém, voltar para a velha casinha de taipa da Brás de Pina, com um diploma no bolso, era como se eu estivesse cometendo um sacrilégio. Aquele barraco não merecia abrigar uma pessoa estudada como eu. Aliás, a velha casa, pendurada no barranco, já dava mostras da sua obsolescência. O telhado arqueara. O reboco de barro, caído em vários lugares, expunha as ripas que sustentavam a parede. Ela parecia um velho esquálido, com as costelas à mostra. Só então notei que o bairro se modificara desde que eu fora morar ali. Casas bonitas e modernas começavam a ser construídas na nossa rua. O nosso campinho de futebol, em frente á fábrica de Móveis Padovani, alguém cercara com arame farpado.

A fina flor da sociedade mogicruzense descobrira o nosso bairro e começara a se mudar para lá. Os antigos moradores pobres venderam suas velhas casas e se mudaram para bairros mais afastados, onde suas pobrezas

37

Page 38: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

38

não poderiam ser contrastadas com a prosperidade dos novos moradores.

Quanto a mim, desde que o Ford do Franz Steiner apareceu naquela rua para buscar uma empregada doméstica para sua casa, (que por sinal era a minha irmã), eu já tivera a premonição que a velha rua Brás de Pina já não seria a mesma. Mesmo porque a maioria dos antigos garotos já havia se mudado. Os novos moradores eram muito asseadinhos e não gostavam de brincar na rua. Ficavam em casa vendo televisão. Acabou o jogo de taco e as peladinhas de rua. Não tínhamos mais com quem brincar de bandeirinha, garrafão e Vaca-Mão - Negra. Sumiram também as meninas com as suas cirandinhas. Foi então que descobri que nem criança eu era mais.

Foi então que o Dr. Carlos Ferreira AlvesConstruiu uma mansão na Brás de Pina. Depois dele veio o Dr. Dauro Paiva.Depois veio mais gente rica.A velha casa do barrancoSuicidou-se constrangidaNuma noite de temporal.Sai do bairro e fui para a vida.

38

Page 39: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

39

O JOVEM TRABALHADOR

“Então um lavrador disse: fala-nos do trabalho. E ele respondeu dizendo: Vós trabalhais para acompanhar o ritmo da terra e da alma da terra.”

Kalil Gibran Kalil

O trabalho me encontrou aos doze anos de idade, quando a vida ainda era uma brincadeira para mim, e até mesmo a necessidade de ganhar a vida. Mas eu não fui trabalhar por motivos tão poéticos como aqueles sugeridos pelo poema do Gibran, mas sim para atender aos constantes rogos do meu estômago, que não se contentava com as parcas refeições que a magreza do nosso orçamento familiar conseguia comprar. Ainda assim descobri que o trabalho não tinha nada de castigo, como a Bíblia parecia sugerir (ganhareis o pão de cada dia com o suor do vosso rosto – Gênesis,

39

Page 40: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

40

7;23). Vi que o trabalho não trazia nenhum constrangimento, mas sim uma liberdade que eu não conseguia sentir nas ruas. Que havia um respeito e uma dignidade na pessoa que trabalha e ganha o pão com o suor do próprio rosto que não se podia encontrar num homem que vivesse exclusivamente de rendas por ele não produzidas, ainda que elas fossem as mais substanciosas possíveis. Naquele tempo não havia “sociólogos” nem assistentes sociais demonizando os empresários que empregavam adolescentes, nem o Ministério Público do Trabalho os perseguia como se fossem criminosos. Só ficava nas ruas, sujando para-brisas de carros com suas ”flanelinhas”, ou praticando pequenos furtos como trombadinhas quem queria. E eram muitos poucos os que escolhiam essas vidas. Em Mogi essas coisas nem havia. Menino que não conseguia um trabalho regular catava sucata para vender, vendia doces e bugigangas no trem da Central, engraxava sapatos nas praças, trabalhava na feira carregando bolsas para as senhoras, capinavam quintais e outras coisas. E ninguém precisava desconfiar deles porque era só isso mesmo que eles faziam. Ninguém roubava ninguém.

Depois do meu primeiro dia de trabalho e da respiração ampla que isso me produzia deixei de admirar os velhos malandros que eu conhecia, sujeitos capazes de viver numa boa sem precisar fazer nada. Alguns amigos meus os tinham em alta conta. Vestiam-se bem, eram bons de briga, saiam nas escolas

40

Page 41: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

41

de samba e invariavelmente jogavam futebol muito bem. Eu, ao invés, me vi admirando o espírito empreendedor daquele que, munido de um sonho por mapa e uma vontade férrea como motor saia em busca de uma estrela, por mais longe que ela parecesse estar. Meu herói desses dias era o Yancey, caubói do romance Cimarron, livro de Edna Ferber, que representava o protótipo do pioneiro que desbravou o Velho Oeste americano. Havia uma frase que eu lera em algum almanaque, que também me impressionara muito. Ela dizia que a pior coisa que a igreja católica tinha criado era a figura de um anjo com asas, por que não era com asas que se chegava aos céus, mas com as mãos. Quer dizer, com trabalho. E era assim mesmo que eu me sentia ─ um anjo ─ quando passava pela velha rua São Luiz, no bairro do São João, carregando aquele enorme molho de chaves que servia para abrir o escritório onde eu estava trabalhando. As pessoas olhavam para mim, aquele menino tão pequeno ─ tão pequeno e já trabalha ─ diziam elas, e eu me enchia de tanto orgulho que a velha rua parecia estreita demais para conter o meu peito inchado. Eu trabalhava sim.

“Meu primeiro emprego foi de office-boyNa firma de Steiner e Guedes ─ materiais de construção.Entregava recados, limpava salas, atendia telefone.Praça Firmina Santana, em cima do Café Michel.Quatro andares de janelas abertas para a avenida principal.

41

Page 42: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

42

Da sacada do primeiro andar olhava as Lojas RennerDe onde o meu sonho saia de roupa e sapatos novosPara pegar uma matiné no Cine Urupema.A velha rodoviária parecia uma barcaça ancorada.O Jorge Salomão, único espigão da cidade,Parecia um farol com o letreiro do Café Seleto em cima.Na Discolândia, o Agostinho SotoVendia discos de Tonico e Tinoco.Ismael Alves dos Santos ─ ContadorFazia as contas de todos os VIPS da cidade.”

Steiner e Guedes me deram as contas depois de um ano porque eu dormia no serviço. Mas não era verdade. Eu não dormia, só sonhava. Sonhava com os países que eu via no mapa-mundi que eles tinham na parede, sonhava com ganhar dinheiro para comprar a casa do Capitão Manuel Rudge, o seu Manequinho, que eu achava a mais bonita casa da cidade, aquela mansão imponente da rua Santana, onde morava o Gilvan, nosso colega de peladas. Sonhava ficar rico para poder casar com a Samira, filha do seu Waldemar. Ao invés disso fiquei desempregado. Mas então descobri a Central do Brasil. Principalmente descobri que vender canudinhos de coco, quebra-queixo, amendoins, paçoquinhas, jujubas e outras guloseimas naqueles trens que iam de Mogi até o Brás, além de uma boa desculpa para passar o dia inteiro na

42

Page 43: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

43

rua, era um modo bastante divertido de ganhar dinheiro, mais até do que ganhava trabalhando regularmente para Steiner e Guedes. Eu conhecia cada poste, cada casa, cada árvore que existia ao longo daqueles trilhos. Podia contar quantos dormentes havia entre uma estação e outra. Conhecia também, pelos apelidos que lhes punha, todos os usuários daqueles trens. “Zé Maniçoba, Chico Unicórnio, Dito Preto, Maquininha, Chica Tanajura”, todos apelidados segundo uma característica física ou comportamental. Chico Unicórnio tinha um calombo na testa, Zé Maniçoba era magro e espigado como a própria árvore que tem esse nome; Chica Tanajura tinha uma bunda que ocupava dois lugares no trem, Maquininha era um baixinho inquieto que nunca ficava no mesmo lugar. Era uma gente que passava três quartos da vida naqueles trens. Vez ou outra os comandos hidráulicos que ficavam em baixo dos bancos começavam a soltar fumaça. Então nós sabíamos que em seguida uma língua de fogo iria lamber o vagão. Era então a correria e o atropelo. Parecia uma manada de bois em disparada. Homens correndo, mulheres gritando, crianças chorando. E lá iam também os meus pés-de-moleque, meus amendoins, meus canudinhos de coco, levados pela multidão, esmagados pelos pés daquela turba sem controle. Mas era divertido observar o comportamento daquela gente. Havia uns caras que se sentavam sempre no mesmo lugar. Até Poá as coisas eram calmas. De Ferraz de Vasconcelos para frente o trem começava a

43

Page 44: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

44

encher. Aí os caras fingiam que estavam dormindo. E ai vinha uma mulher (sempre a mesma) e se encaixava entre as pernas dele. Á medida que o trem enchia e as pessoas se apertavam mais e mais, ele ia escorregando em direção às pernas dela e ela ia sendo empurrada cada vez mais de encontro a ele. Essa cena se repetia todo dia que até parecia que era tudo combinado. Parecia um “amasso” consentido, obrigado pela força das circunstâncias, mas que trazia prazer para ambos os parceiros daquele conúbio forçado. Pequena compensação para uma rotina tão árdua! Mas também vi muito malandro metido a valente apanhar de mulher por causa disso. E essa era a parte mais divertida. Não se falava de assédio naquele tempo. Mas ele já existia e dava muita confusão. Vi gente morrer por causa disso.

Lá pelas seis horas eu voltava para casa. Eu morava então na rua Ana Elvira, no Alto do São João. Antes uma média com pão e manteiga no bar do Brucutú. Depois passava pela praça Osvaldo Cruz, onde os casais de namorados já começavam a tomar conta. Subia a Dr. Deodato, passando pelo largo do Rosário, onde havia aquela velha igreja que eu nunca vira aberta. Mas era linda a Fonte Luminosa com as suas cascatas coloridas. Quando chegava em casa já era bem umas oito horas. A molecada da rua estava toda reunida na esquina da casa do “João Gorila”. De vez em quando aparecia alguém com um violão. O Betão, irmão do João Gorila tocava clarineta. Então se improvisava uma seresta. Eu

44

Page 45: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

45

queria descansar, mas qual o quê. Corria para lá e só voltava quando todo mundo já havia ido embora.

“ Poema é noite escura de amargura.Poema é luz que brilha lá no céu.Poema é ter saudade de alguémQue a gente quer e que não vem.Poema é o cantar de um passarinhoQue vive ao léu, perdeu seu ninhoE a esperança de o encontrar.Poema é solidão na madrugadaUm ébrio triste na calçadaQuerendo a lua namorar.”

Era a música da moda, grande (e único sucesso) do Renato Guimarães. Alguém cantava e eu declamava imitando o Enzo de Almeida Passos. Dava um prazer quase sexual fazer aquelas serenatas na esquina da Rua Ana Elvira.

“ Não sei quem foi Ana Elvira de Souza Melo.(Também a chamavam de Sinhazinha).Seus parentes me perdoarão pela minha ignorânciaEm relação aos personagens desta terraQue já deu Gustavo Paff e Inocêncio Candelária.Morei na rua que leva o nome dessa senhora,Mas para mim era apenas a Rua Cinco.,A Maria Galdência era a Rua da RessacaE a João Mariano Franco era só a Rua do Meio.Se vocês, parentes dos senhores e senhoras

45

Page 46: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

46

Que foram injustiçados nesta crônica, Quiserem me processar, que o façam, entendereiMas não se esqueçam que eu tinha só quinze anos.Quando muito irei para a FEBEM dos maus poetasE o meu castigo será o inferno dos inéditos.

Naquela rua a praga eram os carrinhos de rolimã.O desespero das velhotas e das criançasQue não podiam atravessar a rua sem cuidados.Os dedos do meu pé não tinham unhasMeus joelhos ficavam todos destampados.Mas do alto daquele morro se avista a cidade toda.E quando as luzes se acendiam, que beleza!A cidade virava um poço de pirilamposA piscar, a convidar os poetas para sonhar,A desafiar a toda a nossa sensibilidade.

A noite esconde as casas velhas, as coisas feias,Como tudo que é feio nas trevas se esconde.Mas eu não pensava em coisas feias então.Fazer seresta na esquina da rua Ana ElviraSão coisas das quais não me envergonho.

Trabalhar de dia, divagar à noite: como conciliar tais coisas levantando ás cinco horas da manhã para vender bugigangas nos subúrbios da Central do Brasil? Resolvi procurar emprego fixo. Afinal eu tinha quinze anos e uma carteira de trabalho. A lei ainda não castrava a dignidade dos adolescentes, nem os empurrava para a criminalidade, com a desculpa de combater o trabalho

46

Page 47: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

47

infantil. Aliás, as pessoas que fazem essas leis nunca perguntam para as pessoas que são atingidas por elas se elas querem isso. Se perguntassem se os negros, os homossexuais, os portadores de necessidades especiais, querem ser tratados como minoria, com a discriminação das quotas, certamente iriam se surpreender com as besteiras que dizem e fazem. Todo mundo quer respeito aos seus direitos, só isso. Mas no bairro do São João tinha a Elgin. Era a fábrica mais popular da cidade. Todos os operários que já passaram dos cinquenta em Mogi das Cruzes já trabalharam na Elgin. O Dr. Bóris Grinberg era o diretor de pessoal daquela empresa. Falei com ele para me dar um emprego lá. Ele olhou para mim e riu. ─ Você não alcança a alavanca da máquina, menino. Como é que vou dar emprego para você? Disse-lhe que se eu não alcançasse usaria um caixote. Usei-o durante os quatro anos que trabalhei lá, operando furadeiras, rosqueadeiras e fresadoras, fabricando peças para máquinas de costura. Trabalhar na Elgin era uma glória para mim. Gostava de ver aquele rio de operários invadindo a rua São João com seus macacões azuis. Durante muito tempo sonhei fazer parte daquela torrente, que cheirava a graxa e pó de ferro. Nada sabia das agruras da vida operária, da labuta incansável que acompanha a saga desses heróis anônimos, que vendem parte de suas vidas e do seu tempo por conta de miseráveis salários que mal dão para sustentar suas famílias.

47

Page 48: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

48

No entanto, me pareciam tão alegres e relaxados, falando sobre mulheres, futebol, amenidades, naqueles sorrisos sem mácula e sem posturas estudadas.... Por isso é que eu estava ali, agora, satisfeito, orgulhoso, vestindo o meu macacão azul, cheirando a graxa e pó de ferro, mas cheio de autoestima.

“ Dignidade de operárioÉ macacão sujo de graxa,O produto que se fezE a certeza do dia dez.

As contas pagas ou não pagasMas o orgulho de dizer Pagarei no mês que vemQuando chegar o dia dez.

E a barriga satisfeita,Mãe, esposa satisfeita.Dá para ir até no cinemaQuando chega o dia dez.

Beber cerveja invés de pinga,Comprar até sapatos novos.As vezes até para ir na ZonaQuando chega o dia dez.

Compro um pouco de liberdade.Compro um pouco de alegria,Suficiente para três dias

48

Page 49: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

49

Com o salário do dia dez.”

Um dia, quando deixava o trabalho, fui abordado por um mulato forte que me chamou de companheiro, muito embora eu não o conhecesse. Mas ele usava um macacão azul e isso nos fazia quase irmãos. Ele me disse algumas coisas que eu não entendi muito bem e pôs nas minhas mãos um panfleto. Entre outras coisas, o panfleto dizia, numa linguagem meio provocante, que era a hora de lutarmos pelo Dissídio Coletivo, pela Semana Inglesa, pelo Décimo Terceiro Salário, etc. Se “eles” não quisessem dar por bem, nós tomaríamos à força. Não entendi o que queria dizer tudo aquilo. Mas eu gostava de poesia, e no fecho do panfleto havia uma poesia assinada por Pablo Neruda. Eu também não sabia quem era Neruda, mas a poesia tinha um tal apelo, um tal sentimento, que eu não pude deixar de ler e me sentir tocado por ela.

“ (...) Soldados de hoje, comunistasCombatentes herdeirosDas grandes torrentes metalúrgicas.Escutai a minha voz Nascida das galeriasErguida á fogueira de cada diaPor simples dever amoroso.Somos a mesma terraO mesmo povo perseguido.A mesma luta cinge

49

Page 50: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

50

A cintura da nossa América(...)”

Em consequência, pus-me a divulgar aquele panfleto naquela noite entre os colegas de trabalho que encontrei; e três dias depois, na da data marcada para a deflagração do movimento que iria resolver todos os nossos problemas, lá estava eu, de madrugada, na rua, empunhando um enorme cartaz, tentando impedir com os meus cinquenta quilos de carne, ossos, sangue e ousadia, a entrada dos meus colegas na fábrica. Alguns ouviram minha arenga e meus apelos. Da maioria só xingamentos e zombaria. Idiota, imbecil, ignorante, foi alguns dos “elogios” que eu ouvi. De um italiano nervoso cheguei a levar um pescoção. O fracasso da greve trouxe-me o constrangimento do desemprego e alcunha de agitador. Estávamos em abril de 1964. No dia primeiro de abril daquele ano, estourou a revolução redentora. Os militares, apoiados por uma plêiade de políticos conservadores apearam o governo liberal e reformista do Jango Goulart e implantaram um simulacro de governo democrático. Com os sindicatos vigiados, os lideres dos trabalhadores presos ou reduzidos ao silêncio, os movimentos operários praticamente desapareceram. Nunca mais vi o mulato do panfleto. Durante três anos não consegui encontrar outro emprego fixo. Eu era “fixado”. Sobrevivi trabalhando como servente de pedreiro, cobrador de ônibus da antiga Mogi Ltda e vendedor de carnês do Baú da Felicidade.

50

Page 51: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

51

“ De porta em porta vendendo carnêsFui o arauto da felicidade perfeita.Contei mentiras, prometi quimeras.As donas de casa que nunca ganharam nadaGeralmente me amaldiçoavamMas não desgrudavam do sorriso deleEm seus domingos de televisão ligada.Mas as empregadas delas, as domésticas,Me ensinaram como é bomSe deitar com uma mulher.”

E como servente de pedreiro na construção da Aços Anhaguera a coisa era braba.

“ Sob a chuva intermitente o servente carregaOs últimos tijolos para a chaminé do fornoQue expelirá a fumaça da combustão promiscua Do capital e do trabalho que resultará no aço finoQue vestirá os automóveis, as máquinas, as casasAs pontes e os navios que levarão para o exteriorO suor dos brasileiros travestidos em produto Made in Brasil.

O forno come carvão e óleo.Eu como feijão, arroz e ovo frito.Ele é quente, faminto e arrogante,Eu estou com frio, fome e sou humilde.O medo de cair do andaime é maior que a fomeQue mutila a sensibilidade e faz brotar a imprecação.─Puta merda, que país é este?

51

Page 52: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

52

Meio dia, soa o apito. Pausa para o almoço.Pega-se a marmita fria, e entre uma garfada e outraObserva-se de longe o mestre de obras matutandoNo que fará quando a obra acabar.( A obra não acaba nunca mestre Alcemiro.Sempre háverá um tijolo a mais para assentar)”.

Finalmente, em 1968, arrumei um emprego com carteira assinada. Foi na NGK, empurrando carrinhos de pastilhas cruas para dentro de um forno. Eu me sentia um demônio trabalhando no inferno. Mas tirei no meu cangote os policiais que sempre me abordavam quando eu me sentava num banco das praças da cidade e eles vinham me pedir documentos. Carteira assinada era como um atestado de honestidade e decência. E eu agora podia mostrar isso.

“ Ao jovem de 1968 chamaram de agitador e comunista.Sem saber o que significava, dizia: ─ sou, e com muito orgulho.Porém, posto que pobre e falador,Era pobre e insignificante. Escapei do DOI-CODI e dos inquéritos, Não fui nem preso nem torturado.Isso me frustrou sobremaneira.Mas a NGK me despediu por agitar. Porém eu só queria fazer charme para as meninas.Eu só queria mesmo é arrumar uma namorada.’

52

Page 53: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

53

Dali fui para Howa, fábrica de máquinas para tecelagem.

“ Alguns anos trabalhei na Howa. Especialmente descobri na Howa,Que ser operário é ter mãos de ferroE coração de moça sonhadora.Moça espera achar marido rico,Se ACHA, descobre que era só uma ilusão.Sobra os filhos para criar E quando muito uma pensão.Operário espera aumento de salário.Quando vem, vem também a contra partida:Mais produção, mais exigências. Mas foi na Howa que descobriQue meus dedos eram fusosE meu coração era um tear.Com eles eu poderia tecer o meu destino.”

SIMPLES DEVER AMOROSO

“ Mas o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo”. Geraldo Vandré

Meu primeiro encontro com a poesia aconteceu numa fria madrugada de junho de 1964. Eu era um jovem com pouco mais de dezenove anos, operário de uma metalúrgica. Estávamos na porta da fábrica onde eu trabalhava, às 5 horas da manhã, em volta de uma fogueira que havíamos acendido para nos esquentarmos.

Estávamos em greve e esperávamos as instruções dos líderes do sindicato para formar os piquetes. Um dos

53

Page 54: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

54

companheiros havia trazido um livro de poesias de Pablo Neruda. Pedi para ver. Li o primeiro poema.

“ Recordarás aquela quebrada silenciosaOnde os aromas palpitantes subiram;De quando em quando um pássaro vestidoCom água e lentidão: traje de inverno.Recordarás os dons da terra, Irascível fragrância, barro de ouro,Ervas do mato, loucas raízesSortílegos espinhos como espadas.Recordarás o ramo que trouxesteRamo de sombra e água e silêncioRamo com uma pedra de espuma.E aquela vez foi como sempre e nunca;Vamos ali onde não se espera nadaE encontra-se tudo que não está se esperando.”

A nossa greve fracassou. Eu esperava tudo daquele movimento e só achei o que não estava esperando. Fiquei desempregado e marcado como agitador. Por mais de três anos não consegui encontrar outro emprego com carteira assinada. Em todo lugar onde eu ia procurar trabalho, alguém apontava para mim e dizia: esse é do sindicato. Eu não era, mas fiquei marcado como agitador e comunista. Aliás, esse termo era sinônimo de poeta naqueles anos de chumbo.

Para sobreviver virei DJ num parque de diversões. O nome não era esse, mas sim locutor de parquinho mesmo. Foi legal, porque pude combinar a música com a

54

Page 55: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

55

poesia. Tocava as canções que rapazes e moças pediam e de quebra enfiava uns versos no meio delas. Virei atração na cidade. Cidade pequena, poucos lugares para as pessoas irem, muita gente vinha ao parquinho só para ouvir as musicas que eu tocava e os poemas que eu recitava. Pediam para eu fazer versos para a pessoa que elas queriam conquistar. Eu fazia, escolhia uma música adequada, recitava os versos e oferecia para a pessoa em questão. “ Esta música Fulano oferece para Fulana, a garota de vestido vermelho que está....” Ainda posso ouvir Dilermando Reis tocando Abismo de Rosas e eu recitando o soneto que havia escrito para aquela menina:

“Eu nem preciso ordenar imagens coerentes Para dar-te versos de fidelidade irretocável, Porque em tudo que de ti me vem à mente, Há instantâneos de uma beleza incomparável.Não sei registros anteriores de outra visão,Que fosse farta para mostrar-te com justeza,E que aos olhos confirmasse esta impressão,Que o paraíso é no teu corpo, com certeza.

Talvez eu tenha me enganado de portão,E ao invés da concretude de um evento,Tenha entrado no abstrato de uma lenda,

Onde Deus, no exercício pleno da profissão,Ou se superou na perfeição do seu talento,Ou fez mais do que pediu a encomenda.”

55

Page 56: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

56

Geralmente dava certo. O garoto que pagava pela música e pela poesia ganhava a garota com os meus versos. Ajudei muitos rapazes e moças a realizar suas conquistas. Formei alguns casais que se transformaram em famílias. Antecipei o estilo que fez o Hélio Ribeiro ficar famoso. Pegava músicas estrangeiras, pedia para uma professora de inglês, amiga minha, traduzir, e transformava as letras em poesias dedicadas á esta ou aquela garota, ou este ou aquele rapaz, tudo a gosto do freguês ou freguesa que me pagava. Foi assim que me apaixonei pela poesia e também arrumei as primeiras namoradas. Mas em 1968 o pau quebrou feio. E eu não sabia ficar quieto. Escrevi alguns artigos para um jornalzinho do sindicato dos metalúrgicos da minha cidade e acabei entrando para o rol dos indesejáveis. Morava em uma cidade pequena. Era fácil localizar alguém lá. Recebi alguns recados preocupantes e resolvi me mudar para São Paulo. Fui estudar na PUC. Cidade grande. É mais fácil se esconder no meio de muita gente. Mas logo vi que isso não adiantava muito. Eu atraia encrenca. Um dia, não sei por que, juntei-me com alguns colegas da PUC e saímos pichando uns muros com frases contra o regime. Logo recebi um recado. “Tome cuidado senão vai amanhecer com a boca cheia de formigas.”

56

Page 57: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

57

Fiquei com medo e resolvi me mandar de São Paulo. Pensei em tornar-me hippie, pois essa era uma gente tolerada pelo regime. Só falavam de paz e amor, não se metiam em política, acreditavam, como dizia o Vandré, que a flor podia vencer o canhão. Com essa ideia na cabeça comprei uma passagem de ônibus para o sul na antiga Rodoviária de São Paulo, que na época ficava ali na Luz. Enquanto aguardava a hora de embarcar entrei numa livraria, comprei o Canto Geral do Neruda. Li o primeiro poema.

“Antes do chinó e do fraqueForam os rios, rios arteriaisForam as cordilheiras em cujas vagas puídasO condor ou a neve pareciam imóveis.Foi a umidade e a mata, o trovãoSem nome ainda, as pampas planetáriasO homem terra foi vasilha, pálpebra

De barro trêmulo, forma de argilaFoi canto caraíba, pedra chibba... (...)”

O ônibus deixou a cidade e o mundo foi girando nos pneus dele como girava nas patas do cavalo do Vandré. Naquela mesma semana ele havia sido preso e torturado por causa da sua ousadia em dizer que “ há soldados armados amados ou não; quase todos perdidos com armas na mão; para viver lhes ensinam antiga lição; de morrer pela pátria e viver sem razão.” Era só poesia, mas os generais do regime temiam mais a poesia do que o fogo dos canhões. Armas podem

57

Page 58: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

58

ser destruídas, palavras só podem ser apagadas ou escondidas. As vezes nem isso. Em nenhum caso, elas podem ser mortas. Ressoam pelos corredores, são levadas pelo vento, espalham-se pelos quartéis, atingem ouvidos perigosos. “Eles não vão me pegar,” eu pensei, enquanto olhava as casas, os edifícios e as fábricas sendo substituídos na tela da minha janela por campos e plantações. “E já que um dia montei, agora sou cavaleiro, laço

firme, braço forte, do reino que não tem rei”, dizia a canção do Vandré. Leio mais uns versos do Canto Geral.

“ Como a taça de argila era A raça mineral, o homemFeito de pedras e atmosferaLimpo como os cântaros, sonoro,

(...) “

Dormi. Sonhei que eu era um cristão fugindo de uma Roma em chamas. Estava andando por uma estrada ladeada por pinheiros altos e sombrios. De repente Neruda, ou Vandré, não sei bem qual deles era, me pergunta em latim: “ Quo Vadis, João?” Eu respondo: “Vou pegar minha viola e tocar noutro lugar”. “Viola e poesia se tocam em casa”, disse a voz. Acordei. O livro tinha caído em baixo do banco. Estava aberto aleatoriamente em uma página qualquer. Li o verso na página aberta, ainda meio sonolento.

58

Page 59: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

59

“Soldados de hoje, comunistas.Combatentes herdeirosDas torrentes metalúrgicasEscutai a minha voz nascidas das galeriasErguida à fogueira de cada diaPor simples dever amoroso.Somos a mesma terraO mesmo povo perseguidoA mesma luta cinge a cintura Da nossa América.”

A nossa América. Ela desfilava na janela do meu ônibus. Pastos com cupins e vacas; postes com fios pendurados; capões de mato aqui e acolá; montanhas altas, colinas baixas, rios arteriais e pequenos regatos que correm como veias da terra; árvores, casas, pessoas, o céu azul no horizonte. A América era a minha casa, a minha mãe com os olhos úmidos passando as minhas camisas e fazendo a minha mala, na noite anterior; eram os meus amigos do último abraço naquele bar lá de Perdizes; eram os olhos da namorada que eu talvez eu não visse mais. Chorei. Quando o ônibus parou na primeira cidade eu resolvi descer. Algumas pessoas subiram nele. Eu fiquei. Duas horas depois estava em outro ônibus de volta para São Paulo. As pessoas estavam partindo, eu estava voltando. Eu não tinha mais medo. Voltei e continuei a minha vida do jeito que eu achava que tinha de ser.

59

Page 60: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

60

Terminei o meu curso, fiz outros, entrei para o serviço público. Continuei no sindicato e nunca parei de escrever o que penso e sinto. Nunca fui preso nem torturado por causa disso. A ditadura acabou e os soldados voltaram para os quartéis, onde sempre foi o lugar deles. Cada um deve fazer o que sabe fazer. Descobri que só nos acontece o mal que a gente teme. E que viola e poesia se tocam em casa mesmo. Por simples dever amoroso.

OS OSSOS DO IMPERADOR

Em meus tempos faculdade conheci um cara que eu vou chamar de Raul. É um nome fictício, mas o personagem é real. Ele era um sujeito danado. Bem apessoado, classe média, tinha um fuscão vermelho bem incrementado e se dava muito bem com as garotas. Aliás, parecia que o seu único interesse eram as garotas. Cada semana estava com uma namorada

60

Page 61: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

61

diferente. Nos dias atuais isso não causaria nenhum espanto, mas nos anos setenta sim. Naquele tempo não tínhamos a inflação de mulheres que  temos hoje. Não sei exatamente se hoje sobra mulher no mercado e falta homem, ou se naquele tempo elas eram mais seletivas, ou então se hoje elas são mais assanhadas, mas o fato é que naqueles anos de chumbo da vida brasileira não era muito fácil ficar trocando de parceira como se troca de camisa, como a garotada faz hoje em dia. Não para o Raul. Ele tinha uma imensa facilidade em descolar namorada. Arrumava garotas para ele e para os outros. Eu mesmo me vali dessa habilidade dele. Algumas das meninas que eu conheci naquela época foram apresentadas por ele. Vinham para o grupo por causa dele, mas como ele era um só, sempre acabava sobrando para os outros. E farra rolava para todos numa boa. Éramos estudantes universitários. Morávamos numa república, uma velha casa que havíamos alugado, onde o Raul colocou na porta uma placa debochada que dizia: “Aqui ensinamos “filhosofia e pisiricologia”. Era a gíria da época. Transa era pisirico, dar um piço. Popozão era buzu.  Vagina era xana. Maconha era chiba. As garotas vinham para saber que disciplinas eram aquelas. Estudavam e gostavam. Tenho certeza que estudavam psiricologia e filosofia com mais motivação do que as congêneres da faculdade.   Era a minha segunda faculdade e nós estávamos no segundo ano do curso de economia. O nosso grupo tinha que fazer um resumo do socialismo utópico para

61

Page 62: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

62

apresentar como trabalho de final de ano. Eu até que gostava do tema. Sempre fui meio romântico e a filosofia dos socialistas utópicos me caia assim como um ideal de sonhadores, que vê no homem uma bondade inata, e na humanidade um destino de colmeia feita para produzir mel, paz e felicidade para todos. Já o Raul odiava os caras. Dizia que eles eram um bando de idiotas sonhadores, que não passavam de poetas sem culhão. Eram um bando de babacas que só criticavam, só sonhavam, mas nunca fizeram porra nenhuma para mudar. Exatamente como os nossos professores. Criticavam veladamente o governo, mas nunca se expunham, nunca faziam nada de concreto para mudar as coisas. E aquele Fourier, com sua idéia de falanstério, onde cada um ganharia a vida exercendo a atividade que lhe agradasse era um idiota, Platão com sua República de eleitos, governada pelos sabichões era um veadão; o tal de Saint Simon com sua idéia de associacionismo, como se os homens tivessem nascido para viver em paz, em comunidades perfeitas, era um bobo alegre e o panaca do Robert Owen com suas comunidades agrícolas utópicas... Eram todos uns panacas que só sabiam enfiar sonhos inúteis na cabeça das pessoas. . Tudo uma bobageira, na opinião dele. O homem nunca seria capaz de criar um mundo ideal a partir do seu interior. Ele era um animal prático. Só fazia o que era bom para ele. O resto que se danasse. Certo estava o Marx. As coisas, se tinham que ser mudadas, era de fora

62

Page 63: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

63

para dentro. Na porrada. Era preciso mudar o ambiente em que se vivia para poder mudar o homem no seu interior. Não é a natureza que corre atrás do homem, mas sim o homem que corre atrás da natureza. O moinho de vento produziu a sociedade com suseranos e vassalos, a máquina a vapor trouxe a sociedade com capitalistas e proletários. Tudo muito dialético. Tudo tão lógico como mulher gostar de homem e homem gostar de mulher. Viadagem era corrupção da mesma forma que proposições tautológicas corrompiam a lógica. Nunca o homem dividirá, de boa mente, as coisas. Ele é egoísta por natureza, dizia o Raul. Só entregará se for obrigado, dizia o Raul, com muita convicção. Então, se quer mudar as coisas, é preciso lutar. Para mim e para a maioria dos meus colegas da faculdade tudo aquilo era só teoria. A gente estudava o pensamento daqueles caras por que éramos obrigados. Fazia parte do currículo do curso. Não víamos nada de prático naquilo. Nem fazia a nossa cabeça. Vivíamos os anos mais duros da ditadura militar que roubou do país vinte anos da sua vida normal. Isso era o que pensávamos na época. Sentíamo-nos como pessoas que haviam sido abduzidas por uma astronave alienígena e levadas para uma dimensão onde o tempo não passava. Era como se estivéssemos vivendo sem viver, porque o tempo nos havia sido roubado. Ditaduras, sejam de que orientação for, são sempre vampiras do sangue de uma nação. Não prestam em lugar algum e nunca fazem nenhum bem, por mais

63

Page 64: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

64

santo que seja o ditador, se é que algum dia houve algum com esse qualificativo. Afinal, Deus não fez um homem melhor que o outro e dessa forma não há nada que justifique um indivíduo, ou um grupo, se arrogar no direito de assumir um poder total e ditar leis e comportamentos para todos os outros como se fossem eles os únicos donos da verdade. Isso era o que eu pensava. Mas também só pensava. Não entrava em meus planos pegar em armas para defender meus valores ideológicos. Eu tinha que ganhar a vida. Trabalhava de dia para poder estudar a noite. Não tinha as facilidades do Raul, que era de classe média, a sua família podia pagar a faculdade e o aluguel da república. Assim, eu deixava os milicos em paz e que eles também não se metessem comigo, era a única coisa que eu queria naqueles tempos perigosos. Afinal, eu já tivera a minha experiência com eles alguns anos antes e ela não fora exatamente agradável. Eu escolhera estudar economia porque era a carreira da moda. Todos os meus colegas de classe também. Os homens mais famosos e poderosos do país, nessa época, militavam nessa área. Delfin Neto, Mário Henrique Simonsen, Shigeaki Ueki, eram alguns deles. Este último, por sinal tinha se formado na mesma faculdade onde nós estudávamos. Fez o discurso de formatura da turma que se formou no ano em que eu entrei. Dizem que se veio à faculdade alguma vez, pouca gente viu. Naquele tempo não havia faculdade virtual, mas o Shigeaki Ueki talvez tenha sido o primeiro aluno  a  receber um diploma sem ter participado de uma única

64

Page 65: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

65

aula presencial. Pelos menos era o que diziam. Eu não afirmo isso por que não fui testemunha desse fato.  A verdade é que ele tornou-se ministro das Minas e Energia e prometeu dançar vestido de barril na Praça dos Três Poderes se o Brasil não se tornasse autossuficiente em petróleo na sua gestão. Ele saiu do governo sem conseguir realizar a façanha prometida e também não cumpriu a promessa de dançar vestido de barril. Ainda bem. Imagino o ridículo que isso ia ser. Aquele japonesinho barrigudo, com olhos puxados, pelado, dançando vestido de barril... Não passou nem perto disso. Nada estranho. Nenhum político cumpre mesmo o que promete. Ninguém nunca cobra, por isso eles prometem impunemente e continuarão prometendo e o povo acreditando. Nunca mais ouvimos falar do japonesinho promessão. Nada estranho também, porquanto isso já faz mais de quarenta anos e até agora a autossuficiência em petróleo ainda não veio, embora os políticos a continuem prometendo. Tudo passa e a gente esquece. Ainda bem. Seria extremamente desconfortável ficar carregando lembranças desagradáveis pela vida inteira. Milan Kundera tem razão. A insustentável leveza do ser é o grande peso que levamos pela vida.   Mas havia coisas que o general Médici, o ditador de plantão, cumpriu á risca. Uma delas foi sumir com a maioria dos opositores do regime, a outra foi recuperar os ossos do Imperador Dom Pedro I e trazê-los para o Brasil. Uma noite, estávamos nós na casa de um dos

65

Page 66: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

66

nossos colegas fazendo o resumo daquele trabalho sobre os socialistas utópicos e de repente, quem aparece na TV? Ele, o sisudo General Médici, com a voz embargada, dizendo que conseguira, afinal, depois de uma longa e penosa negociação com o governo português, liberar os ossos do imperador, o homem que fizera a nossa independência. Era patética e desprezível a figura daquele homem carrancudo simulando uma emoção estudada, dizendo que os ossos do nosso libertador estavam, finalmente, a caminho do Brasil. A maioria dos nossos colegas compartilhava desse sentimento de desprezo pelo regime militar, embora houvesse até quem tivesse demonstrado sentir certo orgulho pelo fato e defendesse o General como se ele estivesse anunciando uma nova tomada de Monte Castelo. O Raul era o mais indignado. “É assim que esses patifes enganam o povo”, disse ele. “Enquanto traz para exposição os ossos do imperador, ele enterra os ossos dos nossos compatriotas em covas sem identificação. E nós ficamos aqui discutindo o pensamento dos  socialistas utópicos.” Terminamos o trabalho, fizemos a apresentação e tiramos até uma boa nota. O Raul não estava no dia da apresentação. Aliás, depois daquela noite em que o general Médici anunciou a vinda dos ossos do imperador, não o vimos mais. Disseram que ele havia abandonado a faculdade e andava “metido em rolo”. Nunca soubemos que “rolo” era esse e que fim levou o Raul. Nós nos formamos e fomos, cada um para

66

Page 67: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

67

o seu canto. A que eu saiba, quase nenhum de nós se tornou economista por profissão. As garotas que gostavam de vir estudar conosco “filhosofia e pisiricologia” sentiram muito a falta do Raul. Nós também. Afinal de contas, a maioria delas vinha à nossa república por causa dele.

Há alguns meses atrás encontrei um colega daqueles tempos da faculdade. Lembramos os velhos tempos e acabamos falando do Raul. Afinal, esse colega  também tinha sido beneficiário do charme do nosso irriquieto amigo. Foi ele que me disse que os legistas tinham finalmente identificado os ossos do Raul numa cova rasa de um cemitério em Perús. A autópsia dizia que ele fora morto cerca de um ano depois daquele dia em que o General Médici recambiou para o Brasil os ossos do Imperador. Segundo dizem, ele foi morto pelas forças da repressão. Não pude deixar de pensar no paradoxo da situação. Naquele tempo havia duas facções em luta. Ambas com uma concepção autoritária de sociedade. Matou-se e morreu-se por causa delas. Ambos queriam mudar as coisas na porrada. Ossos que são desenterrados e ossos que são enterrados. Essa é a vida. O que sobra das lutas, que são as nossas vidas, são sempre os ossos. O general Médici também já morreu e seus ossos descansam em paz em algum lugar. Que todos descansem em paz, como era sonho daqueles filósofos socialistas utópicos que pensaram um mundo ideal onde

67

Page 68: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

68

as pessoas não precisavam se tornar apenas ossos para viver em paz e harmonia. Afinal de contas, mesmo que de boas intenções o inferno esteja cheio, existe um pressuposto que até hoje eu considero difícil de desmentir: É aquele que diz que toda intenção é positiva, por mais diabólico que seja o espírito que a inspira. Com esse pensamento tudo se  ajeita e o universo volta à sua posição de equilíbrio. Até o próximo Médici e o novo Raul.

MARCELINO, PÃO E VINHO

Todo natal eu me lembro do meu amigo “Vaca –Mão- Negra”. Esse era o apelido que os garotos do bairro deram para ele. Vaca-Mão-Negra era uma brincadeira que a garotada do bairro fazia. Quando a gente se encontrava, quem fosse mais lerdo para dizer “Vaca-Mão-Negra” levava uma tapona nas costas. Era uma

68

Page 69: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

69

brincadeira boba e um tanto violenta, mas nós nos divertíamos com isso. Principalmente quando era a gente que ganhava e dava a palmada. Ele ganhou o apelido porque desenvolveu uma rapidez incrível para falar essa senha e ninguém conseguia ganhar dele. O que tudo isso tem a ver com o Natal? Tem que tudo isso era uma tradição da minha infância. A brincadeira, o almoço do Natal, o cinema, o filme Marcelino, Pão e Vinho, e o trágico fim do meu amigo “Vaca-Mão-Negra”. Eu tinha uma pena danada dele. Ele era órfão de pai e mãe. Morava com uma tia que não dava muita ou pouca bola para ele. Por isso ele vivia mais na nossa casa do que na dele. Nossa família era muito pobre. Ninguém ganhava presente de Natal. Só quando algum filantropo (um político geralmente) distribuía brinquedos às crianças pobres da cidade é que a gente ganhava algum. Mas eu era feliz porque tinha uma mãe. E tinha irmãos e irmãs, tios e tios, que se reuniam no Natal para comer, falar do passado, reclamar dos outros, brigar, e no fim da reunião, jogar baralho ou ir ao cinema. O “Vaca-Mão-Negra” não tinha família. Ele, ás vezes, passava o Natal com a gente e no fim do almoço ia para o cinema conosco. Por isso, toda vez que me lembro do Natal, puxo junto a lembrança da história triste desse meu amigo que morreu quando ia fazer onze anos.

Praticamente, todo ano era a mesma coisa nos natais da nossa casa. O almoço com todos os parentes

69

Page 70: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

70

reunidos e a comida de sempre: macarronada, frango assado recheado com farofa, um pernil que a mãe mandava assar na padaria, salada, vez ou outra um peru recheado com ameixas secas e abacaxi, que alguém trazia, o vinho barato de garrafão (Sangue de Boi ou o vinho do Frade), algumas cervejas e a inescapável garrafa de cidra para comemorar. Crianças não podiam tomar aquilo. Brindavam com guaraná ou Tubaína, mas depois que os grandes viravam as costas, lá íamos nós, sorrateiramente, beber as sobras das garrafas da “champanhe” de maçã que ficavam na mesa. Durante o almoço era sempre aquela farra. Saiam sempre aquelas lembranças do passado, rememoravam-se as histórias que um ou outro parente viveram juntos, gozavam-se os “micos”, as “pisadas na bola” que alguém dera, etc.  E no fim a inevitável briga. Invariavelmente ela acontecia ali pelo fim do almoço, depois que a maioria das garrafas estavam secas e a melancia ou o pudim de leite da sobremesa começavam a ser servidos. E eram sempre as mesmas pessoas que brigavam. Geralmente começava com uma nora, ou cunhado, fazendo uma reclamação qualquer do marido ou da mulher, e a sogra saindo em defesa do filho ou da filha. De repente todo mundo estava brigando, se acusando e cobrando os outros por algo que alguém fizera ou deixava de fazer. Mas tudo sempre terminava também do mesmo modo. Feita a purgação, desopilado o fígado, cuspida a bílis, descarregadas as mágoas acumuladas durante o ano, nos encontrávamos novamente todos alimentados e

70

Page 71: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

71

satisfeitos e prontos para um novo começo. Então os adultos limpavam a mesa e logo aparecia um baralho. Jogava-se  bisca ou canastra. Ás vezes arriscava-se um truco, aquele jogo barulhento e teatral. Os jogadores gritavam tanto que parecia que a briga começara outra vez. Mas desta vez eram gritos e desafios que sempre acabavam em sonoras gargalhadas.

Quando a gritaria começava, esse era o sinal que os pequenos esperavam para pedir aos seus pais um dinheirinho para ir à matiné no cinema. Parecia que o cinema também tinha entrado na nossa vida e passara a fazer parte dela como um cunhado, uma nora ou irmão adotivo. Era da família. Pois ele fazia parte da tradição natalina. Terminado o almoço e começado o carteio, lá íamos nós para o cinema. Sempre com uma tia ou uma irmã mais velha acompanhando. E o filme também sempre era o mesmo: Marcelino, Pão e Vinho. Esse era o filme das nossas tardes de natal, assim como o Jesus de Nazaré, filme mexicano com o ator José Cibrian no papel titulo era o filme das sextas- feira santas. Tradição é tradição. Se os filmes não fossem esses a gente chegava na porta do cinema e não entrava. Os donos do cinema até tentaram mudar os filmes. Trocaram uma vez o Marcelino Pão e Vinho por um filme com o John Wayne fazendo o papel de Gengis Khan. Era um belo filme, mas não pegou. No ano seguinte tiveram que voltar com o Marcelino.

71

Page 72: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

72

  Ninguém jamais me explicou, nem eu nunca havia pensado porque aquele filme era tão fascinante para nós, a ponto de todo ano irmos assisti-lo, como se fosse o complemento do almoço de natal. Era, na verdade um filme ingênuo e até muito arrastado. Contava a história de um menino, fruto de um romance proibido, que foi abandonado na porta de um mosteiro onde habitavam doze monges. Não conseguindo encontrar uma família para adotá-lo, os religiosos resolvem criá-lo eles mesmos. Mas o garoto, por falta de companhia da mesma idade e talvez por uma tendência inata que possuia, desenvolve uma grande imaginação. Ele cria amigos e situações imaginárias que vivem colocando seus atrapalhados tutores em palpos de aranha.       E assim o menino vai crescendo, se tornando o xodó dos monges e uma preocupação para os vizinhos, pois além de muito imaginativo, ele era muito arteiro. Um dia o garoto, na sua insaciável curiosidade, entra no velho sótão do mosteiro onde os monges o haviam proibido de ir brincar. E como o proibido sempre aguça mais a curiosidade, ele entra no poeirento sótão, onde encontra um crucifixo em tamanho natural. Sua imaginação logo se põe a trabalhar. Para ele trata-se de um homem de verdade que está pregado naquela cruz. Ele sabe quem é o homem pregado na cruz. Os monges já o haviam apresentado. Marcelino fica com pena dele, das suas feições sofridas, feridas, dilaceradas. O homem crucificado parece estar faminto. O menino começa a conversar com ele. Depois lhe traz pão

72

Page 73: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

73

e vinho. Ganha então o apelido: “Marcelino, Pão e Vinho.” É o apelido que o seu misterioso amigo lhe dá. E toda vez que ele aparece no sótão para conversar com o seu amigo, ele desce da cruz e os dois batem longos papos.  Seu amigo é o chefe lá no céu. O menino pergunta por sua mãe, que os monges diziam ter ido para lá. Pergunta se ela é bonita. O amigo lhe diz que não existem mães feias. Ele expressa o desejo de conhecer sua mãe e ficar com ela. O amigo se compromete a realizar esse desejo. Quando ele conta para os monges sobre o seu misterioso amigo que desce da cruz para conversar e comer com ele, os monges naturalmente tudo colocam na conta da imaginação de uma criança. Mas, para desencargo de consciência resolvem checar a história. Dirigem-se sorrateiramente para a porta do sótão e escutam as vozes do menino e de um homem a conversar. Ficam preocupados. Será um bandido? Ele diz para Marcelino se despedir dos monges porque que ele agora iria se encontrar com sua mãe.    Sentindo que aquela fantasia estava indo longe demais e estava ficando perigosa eles resolvem intervir. Invadem o sótão para ver quem era aquele misterioso personagem. Então vem a surpresa: no velho sótão, onde o menino tinha entrado para falar com o amigo, eles só encontram a cruz, sem o corpo que estava pregado nela. E o menino Marcelino também havia desaparecido.

Hoje eu consigo entender a mensagem que o autor

73

Page 74: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

74

dessa novela religiosa quis passar. Se a curiosidade de Adão e Eva, por um lado fez perder a espécie humana, a inocência de uma criança, por sua vez, pode salvá-la. Para entrar no Reino dos Céus é preciso ter a alma de uma criança, disse Jesus, por sinal o misterioso amigo do menino Marcelino. Precisamos acreditar na bondade humana e no poder de Deus. Acreditar sem precisar de justificativa. E na virtude da família simbolizada pelo amor de mãe. Marcelino Pão e Vinho é um glorioso hino à caridade, á inocência e ao amor.  Virtudes que nenhuma doutrina, nenhuma teologia, por mais elaborada que seja, é capaz de inspirar nem substituir.  

      O meu amigo “Vaca-Mão-Nega” morreu afogado numa lagoa que existia no Rio Tietê, onde nós costumávamos ir nadar depois da escola. Tinha doze anos de idade. Eu não estava com ele nesse dia, mas um dos nossos amigos o ouviu dizer, antes de entrar na água, que estava com uma baita saudade da sua mãe.

E AGORA, JOÃO?

  Sinceramente não faço idéia se o Carlos Drummond de Andrade era admirador de Sartre, Nietzsche ou qualquer outro filósofo adepto da filosofia do nihilismo. Mas que ele experimentou um sentimento de vazio perante a vida, em pelo menos um momento da sua existência, disso não tenho dúvida.

74

Page 75: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

75

Ele também, um dia, já se sentiu um gaijin. Aliás, acho que todos nós já experimentamos algo assim. Um momento em que nenhum dos nossos sonhos, nenhum dos nossos projetos vale a pena as noites de insônia que passamos por eles. Um sentimento de que fomos expulsos do mundo, ou de que simplesmente fomos descarregados numa terra estrangeira onde ninguém sequer se digna a falar conosco. Isso é o que eu chamo do complexo do gaijin. E foi isso (pelo menos é o que eu senti), quando li o seu poema mais famoso: o "E agora José?"                                      Isso já aconteceu comigo. Foi há muito anos atrás. Por acaso, essa história tem muito a ver com o Drummond, por que foi nessa época que eu o conheci como poeta. Era a época que eu estava voltando para a escola. Explico. Deixei de estudar aos doze anos de idade quando terminei o antigo curso primário. Logo fui trabalhar como oficce-boy num escritório. Naquele tempo não precisávamos esperar os dezesseis anos para começar a trabalhar. O Ministério Público do Trabalho não dava em cima dos empresários por causa do trabalho do menor, os sindicalistas ainda não haviam transformado os sindicatos em lucrativas empresas familiares, os defensores dos direitos humanos ainda não confundiam liberdade com liberalidade e o trabalho precoce não era uma atividade perigosa para o desenvolvimento da juventude como se diz que é hoje. Vender drogas ou ficar nas esquinas sujando os para brisas dos automóveis com aquela água podre e aquelas flanelas imundas não é,

75

Page 76: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

76

como também não assaltar turistas e pessoas de idade nas praças e saídas dos bancos pode, mas trabalhar não.

Eu comecei, pois, a trabalhar com doze anos e me orgulho disso. O problema é que, por conta dessa precocidade eu não pude continuar os estudos.

Também não me amarguro por isso, até porque não tinha mesmo condições para continuar. Naquele tempo, para se concluir o ginásio e o colégio, que hoje correspondem ao ensino secundário e médio, o aluno precisava fazer o que hoje nós chamamos de um autêntico vestibular. Primeiro ele tinha que passar um ano em um cursinho de admissão ao ginásio, depois fazer uma prova danada de difícil para conseguir uma vaga nas escolas do governo. Depois que terminava os quatro anos de ginásio era mais uma provação danada para fazer o chamado colégio.

As escolas públicas davam de dez a zero nas privadas. Mas eram somente os alunos bem preparados que entravam. A gente tinha que escolher entre os cursos clássico ou científico. Clássico se pretendesse seguir as carreiras chamadas sociais: (magistério, direito, sociologia, etc.); científico se quisesse seguir uma carreira técnica como engenharia, medicina, odontologia e outras do ramo.

Entrar para uma escola paga nem pensar. A minha família mal conseguia ganhar para comer. Então, o remédio foi ir trabalhar, esperando que um dia talvez...

Esse dia chegou aos vinte e cinco anos, no início dos anos setenta. Depois de chegar à conclusão que ser operário de fábrica a vida inteira ia ser uma existência

76

Page 77: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

77

bastante inglória, resolvi ir fazer um curso de madureza. Era uma coisa bastante puxada, ter que aprender em um ano o que normalmente se aprende em quatro. Mas eu consegui e menos de dois anos depois já estava cursando uma faculdade.

Bom, o que isso tudo tem a ver com o Drummond e o sentimento de ser um gaijin no mundo? Tem que nesse curso de madureza que eu fui fazer havia uma japonesinha muito bonita que ganhou o meu coração desde o primeiro dia em que entrei na sala de aula. Eu já não era um garoto, mas romântico e sonhador lá eu era. E eu tinha dois grandes sonhos nessa época. O primeiro era me formar em medicina. O segundo era me casar com a japinha. Como eu ia me tornar médico eu não sabia. Não tinha ideia de como iria pagar o meu curso, ou se fosse suficientemente inteligente para entrar numa faculdade do governo, como iria me sustentar, eu que, já nessa época, mal ganhava para comer.

Mas eu sonhava com isso, talvez acreditando naquele provérbio popular que diz que quando você tem um bom propósito o universo conspira a seu favor.

Quanto á japonesinha, nós namoramos durante uns três meses. Namoro é um modo de dizer. Devo reconhecer que ele nunca não passou de uns “amassos” atrás do muro da escola, nos quinze ou vinte minutos que antecediam as nossas aulas. Não sei por que (ou melhor, não sabia, mas descobri depois), ela nunca deixou que as coisas passassem disso. Eu não desconfiava de nada, uma vez que naqueles tempos moça direita era assim mesmo.

77

Page 78: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

78

Não deixava nem encostar, por isso eu me fiava na virtude dela e ia me conformando com aquelas migalhas de carinho, pensando no dia em que finalmente iria poder tomá-la nos braços, sem qualquer constrangimento, chutar a porta do quarto e deitá-la, com a mais delicada postura de um cavalheiro, na nossa perfumada cama para consumar um tão grande amor, que finalmente tinha chegado no tão esperado dia.

É. Mas uma noite, quando eu a convidei para irmos para trás do muro ela recusou a minha mão e disse que queria falar sério comigo. Estranhei, porque para mim tudo que a gente tinha falado até aquele momento era sério. A nossa sensibilidade logo percebe quando alguma coisa ruim vai acontecer. Não precisa ninguém falar. Soube imediatamente que o nosso namoro ia acabar. Aliás, tem duas coisas que a gente sabe imediatamente que vai acontecer. Uma é quando o patrão nos chama para conversar no escritório e quando o parceiro nos diz que quer discutir a relação. A gente sabe de cara que vai ser despedido ou que o caso terminou.

Ela me disse que não ia dar para continuarmos namorando porque ia ficar noiva.

─ Como, noiva? O seu namorado não sou eu? Nós não combinamos nada de noivado ainda, a que eu saiba ─ respondi, meio atoleimado.

Não que eu não quisesse, eu até estava disposto a ficar noivo, era só a gente acertar, ela me levar para falar com os pais dela, conhecer a família, coisas assim que eram praxe naquele tempo. 

78

Page 79: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

79

─ Você não entendeu ─ disse ela. ─ O meu namorado de verdade voltou. Ele estava estudando medicina em Vassouras ─, disse ela. ─ Agora ele terminou o curso e está volta. Está fazendo residência na Santa Casa e nós resolvemos ficar noivos. Vamos nos casar assim que ele terminar a residência.

─ Namorado de verdade? Mas então eu sou seu namorado de mentira? Você só estava brincando comigo? ─ disse eu, já com uma raiva danada a avermelhar-me o rosto.

Ela nem fez caso e respondeu candidamente.─ Ah!, Você é muito legal e eu gosto muito de

você. É que o Fuji (olha só o nome do cara) já está fora há mais de sete anos. Ele só vem em casa uma vez por mês. Ás vezes nem vem. A gente namora há mais de dez anos. Desde que eu tinha doze. Você sabe, é uma coisa de família. Ele é meu primo de segundo grau. Família japonesa tem disso. Eu já estava me esquecendo desse compromisso.

─ E você ama esse cara? ─ perguntei, agora já não tão indignado, mas terrivelmente decepcionado.

─ Ah! Não sei ─ ela respondeu. ─ Mas é como disse, uma coisa de família. Eu não posso desfazer assim.

─ E eu, como é que eu fico nisso tudo? ─ perguntei, com aquela cara de cachorro que caiu de uma mudança..

─ Ah! não era para você levar a sério ─disse-me ela. ─ Nunca ia dar certo para nós. Afinal, você é gaijin.      Então o cara já era médico e tinha roubado a minha

79

Page 80: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

80

japinha bonita. Ou melhor, tinha retomado o lugar que era dele por direito. Pior que perder a namorada foi sentir que o meu sonho tinha sido roubado. Ou melhor, que alguém tinha sonhado esse sonho antes de mim e já estava em plena etapa de realização enquanto eu ainda estava apenas sonhando. Aquele japonês desgraçado tinha me passado a perna.

Azar meu. Naquela noite fiquei com dois problemas para resolver. O primeiro era descobrir o que era um gaijin. A maldita palavra ficou ressonando no meu ouvindo como se fosse um pernilongo importuno. Não quis perguntar para ela, por dois motivos. O primeiro era que já estava muito puto da vida, e o segundo é que eu não estava disposto a aguentar mais um desaforo vindo da parte dela. E se gaijin fosse alguma coisa feia como marginal, filho da puta, corno, ou então algo depreciativo como miserável, fracassado, João Ninguém, ou coisa que o valha?

Então preferi levar minha dúvida para casa e procurar no dicionário o significado do tal termo. O outro problema foi o trabalho que a professora de literatura nos deu para fazer naquela noite. Ela tinha mandado a classe ler e comentar o poema “E Agora José?” do Carlos Drummond de Andrade. Naquela noite, fui para casa fulo de raiva.  Estava decepcionado, com o coração dilacerado e ainda por cima tinha que comentar o “E Agora José?”, para levar no dia seguinte.                    

Quando cheguei em casa naquela noite, a primeira coisa que fiz foi consultar o Aurélio; letra G, gaijin. Procurei duas ou três vezes, não achei. Hoje tem, mas

80

Page 81: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

81

naquele tempo acho que essa palavra ainda não tinha sido incluída no dicionário.  Ou então eu estava tão descompensado que não vi. Nesses momentos, em que as emoções ruins tomam conta da nossa neurologia, os escotomas são mais frequentes. As coisas estão na frente dos nossos olhos, mas a gente não vê.

Naqueles tempos não havia Internet, com seus yahoos e googles. Que diabo era um gaijin?  O que não estivesse no Aurélio não estava no mundo. Deixei o incomodo para ser resolvido mais tarde e fui para o “E Agora Josè?”

A resenha que transcrevo abaixo foi baseada no trabalho que fiz naquela noite. Ás vezes, quando não são comprometedores, é bom guardar velhos escritos.

E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou,e agora, José? e agora, você?você que é sem nome,que zomba dos outros, você que faz versos,que ama, protesta,e agora, José?

    Eu não me chamo José, me chamo João, mas que diferença faz? Quem se importa se é João ou José,

81

Page 82: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

82

quando a festa acaba, a luz se apaga, o povo vai embora e só resta o frio da noite nos ossos, o desconsolo na alma e na sua frente uma rua vazia e lugar nenhum onde se queira ir? Pareceu-me que era isso que o poeta estava sentindo.       Os primeiros versos caíram em cheio sobre mim, como se eu tivesse levado um soco no queixo. A impressão foi que o danado tinha escrito aquilo para mim. E os versos seguintes eram mais apropriados ainda. Pois era assim mesmo que eu me sentia. Um cara cuja terra tinha sido tirada de sob seus pés.

Um gaijin. O termo que a japinha tinha usado ficou ali, indo e voltando como se fosse uma mosca varejeira. Será que gaijin queria dizer isso? Um cara sem nome, um ilustre “now where man”, como naquela música dos Beatles, um desconhecido sem lar e sem pátria? Talvez fosse isso. Um sujeito de lugar algum, indo para lugar nenhum, sem eira nem beira, sem pátria, sem língua inteligível.

Está sem mulher,está sem discurso, está sem carinho,já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode,

       Por coincidência eu estava mesmo sem mulher. A minha japonesinha me deixara, depois de confessar, com

82

Page 83: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

83

a maior cara de pau, que eu era apenas uma muleta que substituía a perna ausente dela, que ela chamava de Fuji. (E eu a perdera para um cara com esse nome).

Estava sem carinho também. Na verdade, muito pouco carinho dela eu tivera. Agora entendia porque ela nunca me deixara passar daqueles “amassos”. Bem, eu podia cuspir, mas não fiz. Tinha aprendido que isso é falta de educação. Beber também não podia. Tinha que fazer o maldito trabalho de literatura. Não fosse essa idiota disposição que eu assumira, de levar a sério a minha vida dali em diante, eu teria parado em todos os bares abertos que encontrasse pelo caminho. Chegaria em casa lá pelas três da madruga, bêbado como um peru de reveillon e não sentiria mais nada até o dia seguinte, que até por ser dia seguinte, sempre é outro dia. Mas não foi o que aconteceu. Eu tentei decifrar o maldito poema e quanto mais o lia mais ele parecia ter sido escrito para mim.  A noite esfriou,

o dia não veio,o bonde não veio,o riso não veio,não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? 

     Pois é. Esse foi o sentimento daquela noite. Parecia

83

Page 84: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

84

mesmo que o novo dia não ia chegar nunca. E que eu havia perdido o bonde da vida. Nenhuma vontade de rir, desejo mesmo de chorar, mas e a vergonha? Vontade de se matar, mas e a coragem? A utopia, que era me ver vestido de branco e chegar em casa depois do plantão no hospital, naquela casinha bonitinha que imaginei, pintada de azul, com uma sacadinha em frente à janela, naquela rua do bairro da Boa Vista, em frente daquela praça florida e limpinha, e ela, a minha japinha, me esperando vestida com aquele quimono de seda, toda gueixa, com o suchi e o saximi prontos, o chá fumegando naquela xícara de porcelana pintada com aqueles motivos orientais, tão singelos, não era mais que isso mesmo. Uma utopia.    Ba! O que restou foi aquele gosto amargo de toca de jacaré na boca, e um imenso vazio à minha frente, que eu não sabia agora como iria preencher. Cheiro de mofo nas paredes. Ou esse cheiro vinha de dentro de mim?

E agora, José?Sua doce palavra,seu instante de febre,sua gula e jejum,sua biblioteca,sua lavra de ouro,seu terno de vidro, sua incoerência,seu ódio - e agora?

84

Page 85: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

85

Sim. Era tudo isso mesmo. O bobão que eu era decorara poesias para dizer para ela. Sabia de cor alguns versos do Kalil Gibran. “Quando o amor vos chamar/ segui-o, mesmo que seus caminhos sejam agrestes e escarpados. Quando ele vos chamar ouvi-o/ mesmo que sua voz possa despedaçar-vos o coração. Quando ele vos cobrir com suas asas/ cedei-lhe, mesmo que a espada oculta em sua plumagem possa ferir-vos. Pois da mesma forma que ele vos coroa/ ele vos crucifica, e assim como ele sobe à vossa altura/ para acariciar os vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol/ ele desce ás vossas raízes para sacudi-las no seu apego à terra.”

Os versos que eu dizia para ela eram meus instantes de febre, que ela recompensava com uma terna caricia no meu rosto. Não passava disso. E quando eu tentava beijá-la, ela dizia que ainda era cedo para isso. Na minha gula eu passava o maior jejum. E me comprazia em pensar que era tudo por causa da virtude dela.

E tinha também a minha biblioteca. Todo troquinho que me sobrava das despesas com a vida eu investia em livros. Comprava, não só os livros necessários para estudar as matérias que estava cursando, mas já adquirira essa minha compulsão pela leitura. Comprava livros de poesias, romances e até alguns de medicina. Estava já me preparando para a realização do meu sonho.

Ah! Sim, o terno de vidro também já tinha. Era o meu velho terno preto que eu comprara a prestação para o casamento da minha irmã. Depois de três anos de uso, as múltiplas lavagens, escovações e passadas a ferro o

85

Page 86: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

86

transformaram numa brilhante fatiota onde eu podia ver o reflexo do meu rosto. E quanto ao ódio, sim, isso era tudo que eu sentia naquela noite. ]

Eu agora estava ficando com medo. Será que o Drummond tivera uma premonição? Será que ele me viu com trinta anos de antecedência, com as mãos na cabeça me perguntando "E agora João?" Fiquei em dúvida se devia continuar lendo o poema. E se ele terminasse em uma tragédia?

Com a chave na mãoquer abrir a porta,não existe porta;quer morrer no mar,mas o mar secou;quer ir para Minas,Minas não há mais.José, e agora?

Isso também tinha sentido. Eu estava tão desorientado naquela noite que quando cheguei em casa enfiei a chave na fechadura com tanta raiva que ela quebrou dentro do miolo. Era quase meia noite e minha mãe estava dormindo. Depois de uma meia hora tentando acordá-la, parti para a ignorância. Tentei entrar como se não existisse mesmo porta. Dei de ombro contra ela, como fazem aqueles mocinhos do cinema americano. Mas porta brasileira é macho, e ela me encarou. Ficou ali, incólume e altaneira, imune aos meus problemas

86

Page 87: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

87

existenciais, enquanto eu me estatelava no chão feito um saco de batatas podres.

Só então minha mãe acordou, conseguiu abrir a porta por dentro e eu entrei, entre dolorido e envergonhado, olhando para todos os lados para ver se ninguém  presenciara o vexame que eu dera.

Meio desmaiado, muito envergonhado e bastante dolorido, ela me levou para dentro e passou mertiolate e mercúrio no cotovelo que eu raspara na queda. Depois tomei um banho frio e ela me fez um café  bem forte. Minha mãe era uma santa. Pelo menos eu tinha uma mãe. O Drummond talvez não tivesse quando escreveu aqueles malditos versos mefistofélicos. 

Só uma coisa não deu para encaixar: foi o negócio de querer morrer no mar. Isso eu nunca quis. Morrer afogado deve ser muito dolorido. Quando moleque eu vira um colega meu morrer assim numa lagoa que havia no Tietê. Costumávamos fazer isso às vezes. Cabular a aula para ir nadar na Lagoinha. Parece que todos os moleques da cidade faziam isso. Pelo menos era lá que todos nos encontrávamos. Não, decididamente morrer afogado era uma coisa muito ruim. O cara parecia uma daquelas galinhas que a minha mãe matava destroncando o pescoço.  Morreu sincopizando, tentando chupar um ar que não passava pela garganta.

Pensei que seria melhor prender a respiração até que o pulmão estourasse. Não deu. Quando comecei a ficar vermelho desisti. Cortar os pulsos também era coisa que não prestava. Fazia muita sujeira. Eu via o lençol da minha cama todo ensanguentado e sentia náuseas. Não,

87

Page 88: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

88

decididamente, era preciso achar um meio mais limpo e menos dolorido de morrer. Um tiro na cabeça era impensável. Não tinha nem arma de fogo em casa. Enforcar-me era ideia repugnante. Dizem que o enforcado solta tudo que tem nos intestinos na hora de morrer. Credo. Imaginei o fedor que isso ia exalar e expulsei de pronto o pensamento como se expulsa um pernilongo incômodo.

Não, morrer não dava não. Por outro lado eu não era mineiro como o Drummond, sou caipira de Cunha. Nunca desejei ir para Minas, a não ser para visitar Ouro Preto e as cidades do ciclo do ouro. Sou romântico e tenho atração glandular por essas antiguidades. Uma das minhas fantasias favoritas era imaginar ter participado da Inconfidência Mineira e fazer com que ela tivesse dado certo. Adoraria ter dado uma surra no Joaquim Silvério, amaria ter conhecido o Tomás Antônio Gonzaga e saber se a Maria Domitila (a doce Marília) era mesmo tão bonita como ele a pintou em seus bucólicos poemas arcadianos. Gostaria de ter conhecido o Tiradentes e participar dos saraus literários na casa da Bárbara Heliodora.

A minha doce e não menos bucólica Cunha ainda existe, mas lá não sobrou nada para mim. Por isso não dava para voltar para lá. O pedacinho de terra que o meu falecido pai tinha na Serra da Bocaina, um dos meus tios que ficou lá plantando roças de milho e feijão fez usucapião dela e hoje é o único que tem escritura por aquelas bandas.

88

Page 89: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

89

Se você gritasse,se você gemesse,se você tocasse a valsa vienense,se você dormisse,se você cansasse,se você morresse…Mas você não morre,você é duro, José!

Não, gritar eu não gritei. Achei que seria ridículo se o fizesse. Afinal, que iriam dizer de um cara que fica gritando de madrugada? Pensariam que fiquei louco. Iria parar em Franco da Rocha, atado numa camisa de força. Gemer, eu acho que gemi. Minha mãe disse que sim. Que eu gemi e bufei. Falei um monte de coisas dormindo. Acredito que também babei. O lençol estava emporcalhado pela manhã. Ela achou que eu tinha tomado todas, mas não tinha mesmo bebido nem uma gota. Porre de amor e ressaca de “chega-para-lá” de mulher é pior que uma noitada regada à pinga das mais vagabundas.

Valsa vienense eu nem gostava naquele tempo. Hoje gosto. Também nem tinha para tocar. Só possuía uns velhos long-plays do Altemar Dutra e alguns discos do Miltinho. Mas eram todos de música dor de cotovelo. Além do adiantado da hora, tocar aquelas músicas numa casa de paredes meias não ia prestar. Além do que, falavam dos desgostos dos outros e iriam apenas aumentar o meu.

89

Page 90: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

90

O recurso era mesmo dormir. Dormi, sonhei. Estava voando como um pássaro. Ou melhor, não como um pássaro, mas como um balão de gás. Subia, subia, cada vez mais alto. Olhava para baixo, na terra, e via uma turba furiosa correndo atrás de mim. Sentia-me como uma pipa cuja linha se partiu. O vento me levava cada vez mais alto e para mais longe. A turba continuava lá em baixo, mas eu estava lá em cima. Não podiam me pegar. Se pegassem eu sei que me rasgariam. Isso me apavorava. De repente pareceu que o ar que me enchia começava a escapar. Eu me sentia mais leve e no entanto, parecia que ficava mais pesado. Comecei a cair. A distância que me separava da turba feroz foi diminuindo. Em instantes ela parecia estar roçando nos meus calcanhares. E a turba começou a gritar, pega o gaijin, pega o gaijin.

Acordei suando como um demônio que trabalhasse na alimentação das fornalhas do inferno. Então gaijin é isso? Uma pipa, um balão de gás? Quis a minha ex-japinha dizer que eu era um sujeito vazio, ou então um fanfarrão cheio de gás, que é o mesmo que dizer que eu era apenas alguém que sonhava alto, mas jamais iria a lugar algum? E por isso ela preferia ficar com alguém que estivesse com um pé na terra?

Podia ser. Sempre tive o maior respeito pelos sonhos. Eles são mensagens codificadas. Por isso anotei tudo e voltei a dormir. No dia seguinte poderia tirar tudo a limpo.

Sozinho no escuroqual bicho-do-mato,

90

Page 91: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

91

sem teogonia,sem parede nuapara se encostar,sem cavalo pretoque fuja a galope,você marcha, José!José, pra onde?

Queria o meu sonho dizer exatamente o que o Drummond tinha dito? Que eu era um balão solto no ar, um bicho-do-mato, sem educação, sem eira nem beira, sem futuro? Era isso um gaijin? Um cara que não tem um lugar para cair morto, que é o mesmo que não ter parede nua para se encostar, que é o mesmo que ser um quadro, mesmo bonito, mas que não encontra parede para ser pendurado, ou então alguém mesmo que não tem um lugar para ir?

Eu precisava saber o que era um gaijin. Se não, eu iria ficar com a poesia do Drummond da cabeça e com certeza ia me sentir um José para sempre, coisa que eu não queria mesmo. A japinha era linda, era meiga, era gentil, mas ela não valia tanto. Não tanto a ponto de eu passar o resto da minha vida perguntando "E Agora João?"                                

No dia seguinte a primeira coisa que fiz foi procurar o Sakuma. O Sakuma era um senhor japonês que trabalhava na mesma fábrica que eu. Era um cara meio enfezado, muito mal humorado e de poucas palavras. Mas tinha dons professorais. Gostava de ensinar. Foi ele que me ensinou a operar a máquina

91

Page 92: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

92

furadeira nos meus primeiros dias de fábrica. A gente se dava bem.

Perguntei-lhe o que era um gaijin.  ─ Porque quer saber isso?─ perguntou-me ele,

meio desconfiado. Contei-lhe a história da japonesinha e das minhas

angústias da noite anterior. Ele riu. Foi a primeira vez que o vi rindo. 

─ Gaijin quer dizer estrangeiro, seu bobo. É uma pessoa que não é da mesma raça que você, que fala língua diferente, não tem a mesma cultura. Você é um gaijin para nós, japoneses, e eu sou um gaijin para vocês, brasileiros.       Então entendi. Gaijo, gaijão, os ciganos também chamam os não ciganos assim. Os portugueses também. Quando querem depreciar alguém eles falam: Ora, ora, esse gaijo...

Tudo tinha a ver. Nas relações mais profundas que o meu cérebro estabelecera entre o fora que eu levei da japinha, o poema do Drummond, os meus sonhos, esperanças e temores, havia um ponto de conexão e ele se chamava gaijin. Eu era um estrangeiro no mundo da minha japonesinha, como também um estrangeiro no mundo dos meus próprios sonhos, já que eu não sabia falar a língua deles nem conhecia o caminho para entrar neles de verdade. Eu era um estrangeiro na vida que eu queria de fato entrar. Por isso me sentia como um José de quem tudo fora tirado e não tinha um lugar para onde ir. Essa era a minha conexão com tudo isso, e eu me via agora, não mais como um namorado enjeitado nem um

92

Page 93: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

93

romântico idiota se identificando com um poema. Vi que eu era apenas alguém que precisava aprender os códigos de ingresso nessa vida que eu sonhava viver. Nela encontraria a minha própria japinha, a minha própria língua, o meu povo, a minha cultura, e não seria mais um estrangeiro sonhando em voar alto, mas sem gás para ir a lugar algum.

Foi então que, ao invés de procurar um cavalo preto para fugir a galope, (desejo expresso pelo Drummond no seu poema), eu decidi que não, que eu jamais iria fugir de coisa alguma. Para mais nada nem para ninguém eu iria ser gaijin. Nem nada nem ninguém iria ser gaijin para mim. Eu iria aprender os códigos de inserção que me permitiriam entrar em qualquer mundo, tivesse ele o que tivesse de diferente do meu.

Esses códigos se chamavam educação, trabalho, dedicação, comprometimento, e sobretudo amor e aceitação do mundo alheio. Esses códigos são mais fortes do que sangue, cultura, cor da pele, idioma ou outro qualquer diferencial que  o nosso frágil ego desenvolve para tentar nos proteger daquilo que não se parece conosco. Eles são a linguagem universal e podem ser entendidos em qualquer canto do mundo. Graças a Deus eu não adquirira o Complexo do Drummond, aquela doença que já matou muitos poetas, e que se manifesta por um incurável pessimismo e uma terrível inadequação para lidar com os maus resultados que a vida nos trás.

Ao escrever este texto me deu uma baita saudade da minha querida japonesinha. Estimo que ela seja muito

93

Page 94: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

94

feliz com o Fuji.(O nome já não me parece tão estranho agora. Conheci outros indivíduos com esse nome pela vida afora. Tenho até dois bons amigos que se chamam assim). Quanto ao Drummond, mantenho-o até hoje junto à minha cabeceira. Leio “E Agora José?” e vejo nela uma bela e fundamental experiência poética. Pudesse a vida inteira ser assim: nada mais que uma bela e fundamental experiência poética.

94

Page 95: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

95

CINE PARQUE

  “ E o corvo disse: nunca mais!” Edgar Alan Poe

   Richard Bandler e John Grinder, os festejados criadores da PNL(Programação Neurolinguística), técnica que pretende ensinar as pessoas a lidar com eficiência com os conteúdos inconsciente do seu cérebro, certamente não concordarão, mas quem inventou esse negócio de descobrir os que as pessoas estão pensando através da chamada linguagem não verbal foi o meu bruxo favorito Edgar Alan Poe. Se quisermos, encontraremos toda a base da Programação Neurolingüística nas estórias que ele escreveu, tendo como personagem principal o seu pseudo detetive Auguste Dupin, que era capaz, segundo ele, de perseguir o trem dos pensamentos de uma pessoa através dos movimentos que ela fazia com os olhos, a sua postura corporal, as expressões faciais, a coloração da pele, a respiração, etc. E em dado momento, como se fosse um daqueles cawboys do Velho Oeste pular dentro dele com cavalo e tudo e com perfeito conhecimento do que estava rolando ali dentro.

Poe, poeta louco americano, como diz uma canção do Belchior, era um verdadeiro bruxo. Se quisesse, talvez pudesse bater Aleister Crowley em prestidigitações

95

Page 96: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

96

taumatúrgicas, pois ao contrário do famoso mago dos maçons, ele tinha verdadeiro conteúdo de conhecimento das estruturas mentais do ser humano e sabia do que ela era capaz.

Demonstrou-o em seus contos e poemas fantásticos, baseados nas bizarrices da mente humana. Seus personagens são frutos dessas aberrações que a consciência social, humanística e religiosa da nossa cultura acorrenta nas masmorras mais profundas do nosso inconsciente e só afloram na noite dos nossos delírios, quando toda vigilância dorme. Então elas acordam na forma de inquietudes, neuroses, ambiguidades. Tudo formas de para normalidade, juntando o grotesco e o bizarro, para nos dizer, numa atmosfera de pesadelo e fatalidade, que o mundo é muito mais do que pensamos que ele seja.

Meu primeiro contato com Poe foi há muito tempo quando eu era ainda um garoto. Nossa única fonte de lazer era um velho cinema que havia na cidade. Chamava-se Cine Parque e só passava velhos filmes classes B e C. Era onde a gente podia ir com a grana que tínhamos naquele tempo. Filmes velhos e desbotados, entradas baratas, muitas pulgas. Mas a gente podia levava umas garrafinhas de pinga no bolso. Daí eram muitos os bêbados que gritavam e assobiavam quando aparecia um joelho de mulher.

Assim era o velho cine Parque. E lá fui eu um dia assistir o Corvo, famoso poema de Edgar Alan Poe adaptado para o cinema, estrelado pelos inefáveis

96

Page 97: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

97

Vincent Price e Boris Karloff, mestres dos filmes de horror. O filme não tinha nada de mais. Nem assustava. Era apenas bonito, pois combinava romance e magia, tudo contado numa atmosfera de poesia gótica e bons efeitos especiais, té bem avançados para a época.  O filme, embora baseado no conto título, na verdade mostrava dois magos (Price e Karloff), disputando a preferência (não seria a alma?) da mocinha Lenore através de um duelo de magia e prestidigitação.

Quando cheguei em casa á noite fui ler o poema que inspirou o filme. Fiquei impressionado com a estória do corvo que aparece na lúgubre alcova do poeta repetindo um refrão soturno e sombrio, dizendo que o que foi não mais será e o passado tem um nome que é “nunca mais”.

O Cine Parque foi demolido nos anos oitenta. Morreu por se tornar obsoleto, como morreram os demais cinemas e locais de lazer da minha juventude. Não sou saudosista, mas quando passo em frente ao local onde ele existia (construíram um supermercado lá), tenho a impressão de ver um corvo na cumeeira do telhado me dizendo “nunca mais”.

Mas isso não me traz nostalgia. Sou muito como o Fernando Pessoa que lamentava não poder reparar o que fez de errado no passado, e não o que passou. ‘O irreparável do meu passado − esse que é o cadáver!”, disse ele. “ Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão. Todos os mortos pode ser que estejam vivos noutra parte. Todos os meus próprios momentos pode ser

97

Page 98: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

98

que existam algur. Na ilusão do espaço e do tempo, na falsidade do decorrer.” É isso mesmo. O cosmo é redondo, o mundo é redondo, a terra é redonda, redondos são os átomos que constituem a matéria universal. Tudo gira sobre si mesmo. Tudo o que foi continua sendo e será eternamente. Nietszche é que tinha razão. Nós não nos apercebemos disso porque a nossa mente vive chumbada nessa roda do espaço-tempo, que o Fernando chamou de falsidade do decorrer.

Reconcilio-me com o meu bruxo favorito. Saudade é bom, nostalgia e tristeza pelo que já foi não é. Edgar Alan Poe, para mim, é o verdadeiro descobridor da PNL e pronto. Releio os Crimes da Rua Morgue e os outros contos que ele escreveu tendo como personagem o inefável Auguste Dupin. Aprendo que as pessoas são um complexo que pode ser  decomposto em informação e comportamento. O que elas pensam e sentem são informações. O que elas fazem é comportamento. Somente estes últimos desaparecem na voragem do tempo e na ilusão brumosa do espaço. Os sentimentos, os pensamentos, os momentos vividos, estes não. Tornam-se espíritos e sobrevivem, mesmo na falsidade do decorrer. Para estes nenhum corvo deles pode dizer “nunca mais". A eles sempre os teremos conosco.

98

Page 99: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

99

DIA DA PINDURA

Todo estudante de direito no Brasil já praticou, ou pelo menos ouviu falar sobre o “Dia do Pindura”. È uma velha tradição que vem dos tempos do Império, quando, em 1827, o Imperador  Pedro I autorizou a criação dos primeiros cursos de direito no Brasil.  Essa comemoração é feita no dia 11 de agosto e consiste numa brincadeira que a maioria dos proprietários de restaurantes acha deplorável, mas que os estudantes adoram. Consiste simplesmente em juntar uma turma e ir comer em um restaurante tradicional, e na hora de pagar a conta, mandar pendurar.

Daí a expressão “Dia do Pindura”. A conta fica pendurada até o dia em os acadêmicos, tendo se formado, voltam para pagá-la.

Quer dizer: os honestos voltam. Dizem que esse número não é lá muito grande porque os estudantes de direito, depois que aprendem a usar a lei para livrar os outros suas encrencas, a primeira coisa que fazem é usá-la para beneficiarem a si mesmos. Dai se dizer que advogado honesto é tão raro quanto irlandês que não gosta de beber.

Mas isso tudo é maldade. Meus melhores amigos são profissionais de direito e é entre eles que identifico os

99

Page 100: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

100

maiores modelos de virtude e ética que conheço. A brincadeira do “Pindura” não tem nada a ver com a honestidade da classe e se alguns malandros dela se valem para comer de graça pela simples intenção de levar uma vantagem, isso é defeito de personalidade e não uma característica da classe.     

O “Pindura” virou uma tradição que atravessou os

séculos e ainda hoje se ouve falar de algumas escaramuças entre acadêmicos e proprietários de restaurantes por causa da brincadeira. Embora tenha havido até jurisprudência a respeito, sustentando o direito dos estudantes de praticarem a brincadeira, hoje a tradição está bastante enfraquecida em virtude da resistência dos proprietários dos restaurantes. Entende-se e justificasse-se a bronca deles. Afinal eles não são políticos. Eles trabalham, e o que ganham, ganham com muito esforço.

Eu me formei em direito na década de 1970 e naquela época a tradição ainda era bem forte. A nossa faculdade era nova e tudo que as antigas e nomeadas faculdades da capital faziam, nós queríamos imitar. O “Pindura|” foi uma delas. Havia um restaurante famoso na cidade cujo dono era um irascível espanhol que tinha fama de mão-de-vaca e encrenqueiro e por isso mesmo ele foi o escolhido daquele ano.

No dia 11 de agosto lá estávamos nós, seis rapazes animados, sentados em uma mesa, perto da porta, comendo o que havia de melhor no restaurante. Havíamos sentado em uma mesa próxima à saída de

100

Page 101: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

101

propósito, e também pedimos os pratos mais caros de caso pensado. Tudo estava planejado. Tínhamos ido todos num carro só. Era um Chevrolet Opala que pertencia a um dos colegas. Escolhemos o carro dele porque era grandão e cabia os seis, ainda que meio apertados.

Pedimos os pratos mais sofisticados, bebemos o melhor vinho da carta que o garçom nos apresentou e rimos e conversamos alto o tempo todo, na melhor tradição dos estudantes, num dia 11 de agosto. Lá pelas tantas (era já quase meia-noite e só havia uns três ou quatro casais no restaurante,  o Jairo, que era o dono do carro, saiu de fininho. Disse que ia ao banheiro. Na verdade, ele tinha saído, ido para o carro e ligado o motor. E logo os demais também foram saindo, um a um, de fininho. Eu fui o terceiro. Em pouco menos de cinco minutos todos estávamos no carro, fugindo do estacionamento, queimando pneus feito doidos. Na mesa do restaurante, dentro da caderneta que apresentava a conta, deixamos o bilhete: “ Viva o 11 de agosto. Pendura a conta. Um dia, quando formos famosos e ricos voltaremos para pagá-la.”

Tínhamos saído do restaurante e estávamos subindo a rua que nos levaria até o centro da cidade. Era uma rua íngreme, com uma subida de cerca de uns cem metros em aclive, bastante acentuado. Tínhamos já vencido a metade da subida, quando de súbito, de o motor do Opala começou a engasgar e dar solavancos. Deus três ou quatro engripadas e depois morreu. Saímos todos e começamos o trabalho de tentar reanimar o velho

101

Page 102: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

102

engenho. “Deve ser velas”, disse um dos colegas. “ Vê o cabo do acelerador”, disse outro.” “Será que não é o carburador?”

Via-se que ninguém entendia bulhufas do assunto. Empurrar não dava. A ladeira era muito íngreme. Só se fosse para baixo, mas nessa direção a gente iria parar de novo na porta do restaurante. E era de lá mesmo que nós estávamos fugindo.

Não levou, creio, mais do cinco minutos, enquanto nós estávamos decidindo o que fazer, para uma viatura da polícia parar ao lado do nosso carro. Desceram dois policiais com cara de muitos poucos amigos. Logo em seguida estacionou atrás dela um outro carro. Dele desceram o espanhol e dois dos seus empregados, com umas caras mais invocadas ainda.

Para encurtar a história, o espanhol não gostara da brincadeira e chamara a polícia. Ele já estava desconfiado do negócio e ficara de sobreaviso. Por isso a polícia chegara tão rápido. Nós sabíamos que o homem não tinha esse tipo de humor e por isso mesmo havíamos escolhido seu restaurante. Divertia-nos muito mais a bronca em que ele ia ficar do que a prática da tradição do “Pindura”.

Em suma, fomos convidados a pagar a conta, com um certo acréscimo, senão iriamos todos para a cadeia. Ninguém queria ser preso, fixado e indiciado por estelionato, fraude ou qualquer outro delito ou contravenção. Afinal, éramos todos estudantes de direito. Tínhamos que dar exemplo, disseram os policiais. Aquilo era uma esculhambação. Não adiantou o argumento do 11 de agosto, dia do advogado, tradição, o escambau.

102

Page 103: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

103

O espanhol estava ficando cada vez mais nervoso e os policiais cada vez mais impacientes.

” Pindura o caralho”, disse ele, com aquela cara de quem estava prestes a saltar sobre o pescoço do colega mais perto. Vai pendurar no “ ...da mãe”, dizia ele.

Problema. Ninguém tinha dinheiro. Tínhamos cotizado para por gasolina no Opalão. Todo mundo estava mais duro que casca de coco. Impasse. Várias propostas. Alguém sugeriu que o Jairo ficasse e nós iríamos, cada um para sua casa tentar arrumar dinheiro. O Jairo chiou, o espanhol não gostou, os policiais desconfiaram. Não vingou.

O espanhol queria porque queria o dinheiro ali e agora. Ou então que fôssemos todos para a cadeia. Solução. Depois de quase uma hora de discussão o espanhol concordou em ficar com os quatro pneus do carro em garantia pela dívida. Parecia ser a única coisa de valor naquela charanga velha. Os empregados dele pegaram os pneus (com a nossa ajuda, “aconselhados” gentilmente pelos policiais), puseram-nos no porta malas do carro do espanhol e foram embora.

Os policiais, depois de darem uma bela gozada com a nossa cara, também foram. E nós ficamos lá, os seis espertinhos, com a maior cara de babaca, no meio da rua, já quase de madrugada, meio que chorando (o Jairo) e nós outros rindo daquela situação.

No dia seguinte, cotizados os seis, ajuntamos a grana e fomos buscar os pneus. Pagamos, recebemos de volta os pneus, junto com uma bronca do espanhol e mais uma gozada dos empregados. Saímos do restaurante, os

103

Page 104: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

104

seis idiotas rolando os pneus pela rua, suando que nem demônios para subir a íngreme ladeira, até chegar no lugar onde o velho Opalão estava estacionado. Mais um baita trabalho para colocar os pneus nos aros. Quando o Jairo ligou o motor, nenhum barulho. Só se ouviu o clik da ignição. O carro parecia estar completamente mortinho. “Essa não”, disse o Jairo. “Agora foi a bateria que arriou.” Descemos para ver. Que nada. Dentro do capô quase vazio, só havia um enorme buracão. Alguém havia levado o motor, a bateria e tudo que deu para arrancar do velho Opala. Ele parecia o peito de um cara que tinha sofrido uma autópsia e de onde todos os órgãos haviam sido arrancados. Só restavam veias rompidas e músculos e tendões arrebentados á força.  

Nisso foi o que deu a nossa brincadeira do 11 de agosto, no “Dia do Pindura”. Ficamos o ano inteiro espremendo as nossas magras economias para pagar ao Jairo o prejuízo. Com a nossa ajuda ele comprou um fusca 73 que um ônibus jogou numa ribanceira da Rodovia dos Tamoios alguns meses depois, num dia em que estávamos indo para Caraguatatuba fazer farra. Tínhamos parado no acostamento, próximo de uma bica dágua, e aí veio o buzão, bateu na traseira dele e jogou o bichinho lá nas profundezas do inferno. Ainda bem que nenhum de nós estava dentro dele...

Mas essa é outra história. Malgrado o mico que todos pagamos, restou uma coisa de bom em tudo isso. Nunca um de nós nunca reclamou do outro. Dividimos tudo, até os prejuízos. Se alguém pode falar de lealdade,

104

Page 105: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

105

amizade e ética entre colegas, somos nós. Até hoje, mais de quarenta anos depois, somos todos grandes amigos, apesar de estarmos espalhados pelo país todo. Alguns já deixaram o nosso convívio. Até alguns atrás, pelo menos uma vez por ano, os que ainda estavam vivos se reuniam no dia da nossa formatura para comemorar e lembrar esses nossos alegres e aventurosos dias. E adivinhem do que mais lembrávamos e qual a aventura que mais nos divertia.

105

Page 106: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

106

ORLANDO SILVA E O NEGUINHO ALICATE

Durante a semana inteira a emissora de rádio da cidade anunciou intermitente: “Não esqueça. Neste sábado, às oito horas da noite, na Praça da Matriz, grande show com o cantor Orlando Silva.”

Orlando Silva era o maior nome da música popular brasileira daqueles tempos. Ele era o “Cantor da Multidões.” Suas apresentações públicas costumavam reunir verdadeiras aglomerações que só Roberto Carlos, vinte anos mais tarde, iria igualar.

E não deu outra. Aquele sábado era o aniversário de emancipação do município. No geral, já era dia de festa. Todo ano, depois que ganhara o “status” de município, a Prefeitura promovia um dia inteiro de festas, que sempre terminava com um grande show na Praça da Matriz. Nessas ocasiões, era praxe trazer um artista de nome para dar encerramento ao evento com “chave de ouro”.

Assim, no coreto da praça, em outros anos, já haviam se apresentado grandes nomes da música popular brasileira da época, como Gilberto Alves, Maurici Moura, Ataulfo Alves, Adoniram Barbosa, os Demônios

106

Page 107: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

107

da Garoa, Cascatinha e Inhana, Tonico e Tinoco, Ângela Maria, Cauby Peixoto e muitos outros.

Esse ano estavam anunciando o Orlando Silva. Que maravilha. Quem não queria ver o “Cantor das Multidões” cantando em sua cidade? Houve até quem ensaiasse o coro do “Carinhoso”, que todo mundo sabia ser a canção mais famosa dele, para cantar com ele. Ele sempre a cantava no fim do show, e todo mundo acompanhava: “Vem, vem, vem, Vem sentir o calor, Dos lábios meus, `Á procura dos seus, Vem matar esta paixão, Que me devora o coração, Que só assim então, Serei feliz, bem feliz...”, era o que mais se ouviu naquela semana pelas ruas da cidade.

Poucos serão os não concordem que esses são os versos mais conhecidos e cantados da música popular brasileira. Muita gente não sabe o estribilho do Hino Nacional, mas esse  trecho do Carinhoso duvido que não saibam. Não há quem não os conheça e cante.

Assim, todos naquele sábado, estavam preparados para ouvir e acompanhar o “Cantor das Multidões” nesses e noutros versos famosos que ele popularizou. Todo mundo conhecia, por exemplo, o refrão da “ Última Estrofe”: ”Lua, vinha perto a madrugada, Quando em ânsias minha amada, Nos meus braços desmaiou, E o beijo do pecado, No seu véu estrelejado, A luzir glorificou. Lua, hoje eu vivo tão sozinho, Ao relento, sem carinho, Na esperança mais atroz De que cantando em noite linda, Esta ingrata volte ainda, Escutando a minha voz”.

107

Page 108: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

108

Essas e outras canções ganharam fama na voz inconfundível do Orlando Silva. Quem não conhecia, por exemplo a marchinha “Jardineira”? “ Ó Jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu? Foi a camélia que caiu do galho, deus dois suspiros e depois morreu...” Até hoje é de execução obrigatória em todos os bailes de carnaval.

Por tudo isso, naquele sábado, a praça estava entupida de gente. Dizem que havia mais de dez mil pessoas lá. A cidade tinha uns quarenta mil habitantes se tanto, entre homens, mulheres e crianças.

Vá lá. Sempre se exagera numa coisa dessas. Pode ser que tenha vindo muita gente das cidades vizinhas. O fato é que a praça, que hoje, reconstruída e aumentada pode agasalhar, quando muito, umas duas mil pessoas, estava tão cheia, que quem mudasse o pé perdia o lugar.

Eram exatamente oito horas da noite quando o apresentador anunciou: “ E agora, com vocês, Orlando Silva!” E então entra correndo no palco improvisado do coreto, brilhantemente montado para a ocasião, um crioulinho de cerca de um metro e meio, de pernas tortas, vestido com smoking e tudo, inclusive com cabelos lustrados com Glostora; e começa, com todo o vapor, a cantar um samba do Ataulfo Alves. A plateia, em princípio, entre chocada e envolvida pelo samba que o crioulo mandava, aliás, muito bem, não sabia se aplaudia ou se vaiava.

108

Page 109: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

109

Mas, de repente, alguém, lá no meio da multidão gritou: “ Mas esse aí é o Alicate. Não é o Orlando Silva porra nenhuma!”.

Não é preciso dizer o que aconteceu naquela noite. A polícia da cidade disse que nunca tinha visto uma confusão igual. Lojas foram saqueadas, bancas de jornais foram depredadas, onde houvesse um cartaz anunciando o show daquela noite, um ato de vandalismo foi registrado. Foi a noite do maior quebra-quebra que a cidade já registrou.

O caso foi levado à justiça. O promotor público acusou os organizadores do evento de prática de estelionato e falsidade ideológica. Segundo o ilustre causídico, o povo da cidade havia sido iludido pelos promotores do evento, fazendo um cantor desconhecido se passar pelo famoso “Cantor das Multidões”.

Não haviam cobrado ingresso nem tido qualquer benefício financeiro com isso, mas muita gente na cidade fora prejudicada com isso. E quem havia promovido o evento tinha sido a própria Prefeitura. Assim, quem tinha de pagar todos os estragos feitos pela multidão em fúria era o próprio poder público.

Mas o juiz entendeu diferente. Os organizadores do evento não haviam enganado ninguém. Na verdade, o nome do crioulinho de pernas tortas que havia subido no palco naquela noite se chamava Orlando Silva. Esse era o nome verdadeiro dele. Estava registrado em cartório. E em nenhum lugar, em nenhum cartaz, se dizia que aquele Orlando Silva era o famoso “Cantor das Multidões”.

109

Page 110: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

110

Portanto, o Orlando Silva anunciado era o Orlando Silva apresentado. Não havia que se falar em estelionato. O caso foi arquivado. Tudo fora apenas um problema de má comunicação.

O Alicate era um neguinho bom de samba que costumava animar os barzinhos da cidade. Era pedreiro-azulejista dos bons, e nos fins de semana fazia uns bicos cantando sambas nos bailes para os quais era convidado.

Esse episódio lhe valeu uma aparição em um famoso programa de televisão da época, apresentado pelo polêmico Flávio Cavalcanti. Mais tarde ele foi para Brasília e dizem que fez algum sucesso na Nova Cap como cantor.

Mas ele, coitado, não tirou muito proveito disso. Segundo dizem, morreu uns dois anos depois, baleado por um marido ciumento que cismou que ele andava pegando a mulher dele.

110

Page 111: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

111

SAUDADE E ESPERANÇA

Dez anos atrás eu estava correndo de um lado para outro tentando encontrar um médico, ou um tratamento qualquer que pudesse curar minha mulher de um câncer de intestino. Ela se tratava com o Dr. José Aristodemo Pinotti, mas o tratamento não estava funcionando.

Recomendaram-me que a levasse a um médico em São José dos Campos. Ele fazia um tratamento alternativo, que segundo o informante, era muito eficiente. Levei duas semanas para conseguir uma consulta. O homem tinha uma agenda muito complicada. Atendia pessoas do país inteiro e até do exterior. A consulta custava uma nota preta.

Chegamos lá ás nove da manhã e fomos atendidos ás três da tarde. Havia pelo menos umas cinquenta pessoas na fila de espera para o atendimento. Finalmente chegou a nossa vez e nós entramos na sala do médico. Não havia maca, nem aparelhos médicos de espécie

111

Page 112: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

112

alguma. Ele não usava estetoscópio nem qualquer outro instrumento que nós estamos acostumados a encontrar nos consultórios médicos.

Minha esposa sentou-se na cadeira em frente à mesa dele e esperou. O sujeito não lhe perguntou nada. Olhou detidamente a ficha que a secretária havia passado para ele. Depois puxou de dentro de uma gaveta um pêndulo de cristal e balançou-o repetidamente em frente do rosto dela enquanto ia anotando umas coisas numa folha de papel.

Se falou duas ou três palavras foi muito.No fim da consulta, que durou cerca de dez

minutos, saímos de lá com uma receita e um endereço de farmácia. Fomos lá e compramos todos os medicamentos indicados na receita. Eram umas panaceias preparadas por uma farmácia de manipulação, ali mesmo em São José dos Campos, e custava uma fortuna.

Minha esposa tomou todos os remédios indicados direitinho. Ela era muito meticulosa. Não houve nenhuma melhora. Voltamos lá umas duas ou três vezes e o tratamento prescrito era sempre o mesmo. Uma pá de remédios comprados na mesma farmácia. Nada de melhora. A doença progredia cada vez mais. Depois de um tempo desistimos.

Se a forma como faz não está dando o resultado que você espera, não desista, mude o jeito de fazer. Esse é um preceito que eu sempre levei ao pé da letra. Ouvimos falar de um médico argentino que dava consultas numa clínica no Alto de Pinheiros, em São

112

Page 113: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

113

Paulo. Diziam maravilhas do cara. Tinha um método novo para o tratamento do câncer.

Fomos lá. Era um médico homeopata. Seu consultório era decorado com uma estranha mandala, onde uma gravura do homem vitruviano, aquele desenho de Leonardo da Vinci, enfeitava a parede, combinando com uma gravura com nomes de ervas, fármacos e os signos do Zodíaco. Ele traçava estranhas equações matemáticas e desenhava fórmulas químicas numa folha de papel enquanto conversava com o paciente. Parecia mais um alquimista do que um médico. “Será talvez uma reencarnação de Paracelso?”, pensei?

“Bem, isso é o de menos”, concluí. “Se funcionar, que Deus o abençoe.” Depois da consulta ele me deu uma receita enorme, com cinco ou seis produtos, que eu deveria aviar numa determinada farmácia ali perto. Custou-me cerca de mil e quinhentos reais o resultado daquelas garatujas que ele desenhou na receita. Curioso, fui pesquisar os ingredientes que ele misturara na sua estranha alquimia. Encontrei alguns nomes que eu já vira antes em algum lugar. Bryonnia, Allium Sativum, Beladona, Phosphorus, Aconnitun, Arnica, etc.

“Espertinho”, pensei. Minha mãe já usava esses produtos para me fazer chás quando eu tinha dor de barriga, dor de cabeça, febre, cólicas, etc.

Numa farmácia homeopática comum essa panaceia toda não custaria mais de cinquenta reais. Mas receita de médico precisa ser respeitada e eu comprei tudo que ele mandou. Mais tarde descobri que a farmácia era propriedade dele também.

113

Page 114: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

114

Minha mulher tomou todos os remédios que ele receitou e nada de melhorar. Mude, pensei de novo. Ofereça a si mesmo outras alternativas. Essa sempre foi a minha filosofia. Não insistir com ações que não geram os resultados esperados.

Falaram-me de um sujeito em Perús, que diziam ser capaz de verdadeiros milagres. Quem me contou foi um japonês, amigo meu de longa data. Ele tinha um câncer na garganta e estava se tratando com esse cara há algum tempo. Seu depoimento era de quem tinha muita esperança.

Se até um japonês como o meu amigo (racionalista até o último fio de cabelo), acreditava, por que não? Afirmavam que o tal sujeito era capaz de curar tudo. De sarampo a câncer. Até Aids.

O tratamento que ele utilizava era uma coisa bem bizarra. Colocava as pessoas em baixo de uma pirâmide feita de varetas de alumínio e deixava que elas ficassem ali deitadas por uns trinta, quarenta minutos. Havia gente que até dormia.

― Esta é uma pirâmide orientada rigorosamente para o norte magnético ―, disse o sujeito. ―Ela capta a energia cósmica e a canaliza pelos pontos do organismo onde a doença se manifesta.

Eu já tinha ouvido falar daquele negócio. Energia radiônica, capturada pela pirâmide, devido à sua forma geométrica. Eu até já tivera uma em casa. Nunca funcionou para mim. Talvez eu não estivesse sabendo como utilizá-la, pensei. Aliás, eu nem tinha muita certeza onde era o tal norte magnético.

114

Page 115: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

115

“ Hum, Deus nos ajude que funcione”, concluí, olhando, desconfiado, para aquele negócio.

Mas vinha gente de todo lugar para ficar durante quarenta minutos em baixo da tal pirâmide. “Se tanta gente acredita, deve haver algum mérito nesse negócio”, concluí. Assim, fiz o cheque para o cara e deixei minha esposa deitada embaixo da tal pirâmide e fui para a sala ao lado ler um livro que eu tinha trazido.

Custava oitenta reais para a pessoa ficar durante quarenta minutos em baixo daquela coisa, mas o sujeito dizia que aquele tratamento era gratuito. Os “oitentinha” que ele cobrava seriam destinados para uma instituição de caridade que ele mantinha. Fui ver a tal instituição, que ficava em frente ao consultório dele. O endereço estava escrito em um folheto que ficava em cima de uma mesinha. O folheto pedia contribuições para a tal entidade.

A mulher dele era a presidente e os dois filhos os únicos funcionários. Não consegui descobrir que diabo de serviço a tal instituição prestava.

Mas também, o que importava saber disso? Minha mulher era especialista em câncer. Não como médica, que ela não era, mas como hospedeira do maldito. Teve um no útero aos 39 anos. Tirou, fez quimioterapia e sobreviveu por mais dez anos. Teve outro na mama aos 50. Tirou, tratou e viveu mais nove anos. Finalmente teve outro no intestino. Tirou, mas o danado voltou. Tirou de novo e ele voltou. Morreu com 58 anos.

115

Page 116: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

116

Pouco antes de eu levá-la para o hospital Nove de Julho para mais uma cirurgia, que iria ser feita pela equipe do Dr. Aristodemo Pinotti, ela me disse: “ Se essa cirurgia também não der certo, meu bem, não se aborreça. E não fique bravo com esses caras. Eles não estão enganando ninguém. Todo esse tempo nós temos perseguindo a Esperança. E ela sempre esteve nesses lugares onde fomos porque nós a levávamos conosco. Esperança não é uma coisa que alguém tenha para vender. Nós a temos ou não. O resto é só ritual. Aconteça o que acontecer, nunca deixe que ela se perca.

Hoje, sempre que alguma coisa encrenca eu me lembro das palavras dela. “Pode perder tudo, mas nunca perca a Esperança”. E essas foram as duas coisas mais preciosas que ela nos deixou: Saudade e Esperança.

116

Page 117: rl.art.br · Web viewSempre achei que existia uma assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Com medo, giro a taramela da porta da cozinha

117

117