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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO ROBERSON HENRIQUE POZZOBON UMA TRAVESSIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOB AS LENTES DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: DA AUTO-CONTENÇÃO AO ATIVISMO CURITIBA 2010

ROBERSON_POZZOBON

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARAN CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    ROBERSON HENRIQUE POZZOBON

    UMA TRAVESSIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOB AS LENTES DA JUDICIALIZAO DA POLTICA: DA AUTO-CONTENO AO ATIVISMO

    CURITIBA 2010

  • ROBERSON HENRIQUE POZZOBON

    UMA TRAVESSIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOB AS LENTES DA JUDICIALIZAO DA POLTICA: DA AUTO-CONTENO AO ATIVISMO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito Mestrado em Direito Econmico e Socioambiental, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre.

    Orientadora: Profa. Dra. Claudia Maria Barbosa

    CURITIBA 2010

  • ROBERSON HENRIQUE POZZOBON

    UMA TRAVESSIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOB AS LENTES DA JUDICIALIZAO DA POLTICA: DA AUTO-CONTENO AO ATIVISMO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito Mestrado em Direito Econmico e Socioambiental, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre.

    Orientadora: Profa. Dra. Claudia Maria Barbosa

    COMISSO EXAMINADORA

    ______________________________________________

    Professora Doutora Claudia Maria Barbosa Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    ______________________________________________

    Professora Doutor Vladimir Passos de Freitas Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    ______________________________________________

    Professora Claudia Rosana Roesler Universidade de Braslia

    Curitiba, 29 de Maro de 2010.

  • Este trabalho dedicado aos meus avs Ana e Silvino, Dora e Ilson, com os quais tenho a

    imensa honra de apreender valiosas lies de vida que no so ensinadas em livros ou

    salas de aula.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo em primeiro lugar, e sobre todas as coisas, Deus a quem eu rogo com toda a devoo para que contine a me acompanhar por toda a minha vida, imbuindo-me, tal como o fez no perodo em que estive dedicado ao presente estudo, das foras necessrias para superar os desafios de cada.

    professora Claudia Maria Barbosa, meus sinceros votos de agradecimento pela oportunidade de trabalho em conjunto e pela compreenso das dificuldades pelas quais passei na conciliao entre a vida acadmica e os afazeres profissionais de uma nova carreira.

    Ao professor Vladimir Passos de Freitas, agradeo imensamente pelas constantes palavras de incentivo que me direcionaram ao longo de toda esta jornada, dos tempos da graduao fase de concluso do presente trabalho.

    Aos professores Alexandre Ditzel Faraco, Carlos Frederico Mars de Souza Filho, Flavia Cristina Piovesan, Francisco Carlos Duarte, Katya Kozicki, Luiz Edson Fachin, pelas inmeras lies dentro e fora das salas de aula.

    Eva e Izabel, solcitas funcionrias do Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, agradeo pela ajuda durante o todo curso.

    Aos amigos do mestrado, especialmente Dennis Otte, Ellen Mosquetti, Fabiano Baracat, Jos Guido Teixeira, Sergio Fernando, Tallita Toledo, agradeo pelo companheirismo durante todo este percuso em busca do conhecimento.

    Aos meus queridos pais, pelo apoio constante e inmeras palavras de incentivo, por inexistirem palavras que expressem o imenso amor e gratido que sinto por vocs, deixo no presente momento registrada uma singela frase com amplo significado: eu amo vocs!

  • s minhas irms, agradeo pelo carinho e compreenso constantes e espero que esta etapa de aprimoramento intelectual e profissional de seu irmo sirva de estmulo para as jornadas acadmicas que esto iniciando em suas vidas.

    Amanda Benvenutti, grande amor que tive a feliz oportunidade de conhecer enquanto desenvolvia o presente trabalho, agradeo por sua reconfortante companhia e imensa ateno neste atribulado perodo de nossas vidas, momento no qual at mesmo o tempo em que passavamos juntos declarou em silncio o nosso imenso amor.

    Daniel Jimenez Ormianin, irmo e companheiro em todas as horas, agradeo por estar sempre presente e tornar este caminhar mais leve.

    Ricardo Massuchin e Deltan Martinazzo Dallagnol, pela grande amizade e conselhos sempre essenciais.

  • RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo estudar a nova postura assumida pelo Supremo Tribunal Federal no contexto da judicializao da poltica. Para tanto sero inicialmente traados comentrios acerca da transio de um paradigma centrado no legalismo jurdico para um novo modelo de interpretao e aplicao do direito no qual a Constituio deslocada para o centro do ordenamento jurdico. Ao longo do estudo sero abordadas algumas das causas da expanso do poder judicial, dentre as quais a constitucionalizao do Direito, a ampliao da discricionariedade judicial decorrente da insero de normas abertas na Constituio e o surgimento das Cortes Constitucionais. Em seguida sero delineadas as dimenses da judicializao da poltica e do ativismo judicial, para ento ser traado um paralelo entre tais fenmenos. Ser comentada a forma como a judicializao da poltica se desenvolveu no contexto brasileiro, especialmente aps as mudanas realizadas pela Constituio de 1988. Aps a fixao destas premissas terico-abstratas sero analisados alguns dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal que nortearam a alterao do entendimento desta Corte sobre temas como: mandado de injuno, priso civil do depositrio infiel e infidelidade partidria. A anlise destes casos tem por finalidade evidenciar uma travessia da Corte Suprema de um perodo de auto-conteno para um perodo de ativismo. Logo aps sero comentadas algumas das possveis repercusses deste novo posicionamento da Suprema Corte. Verificar-se- se tal modificao se mostra oportuna para a concretizao de direitos e garantias fundamentais, e, nesta medida, de acordo com o novo paradigma socioambiental demandado pela Constituio da Repblica.

    PALAVRAS-CHAVE: Supremo Tribunal Federal. Constitucionalizao do Direito. Judicializao da Poltica. Ativismo Judicial.

  • ABSTRACT

    This work aims to study the new stance taken by the brazilian Supreme Court in the context of judicialization of politics. To this aim will be initially drawn comments about the transition from a paradigm based in legalism for a new model of interpretation and application of law, where the Constitution is shifted to the center of the legal system. Throughout the study will be commented some of the causes of the expansion of judicial power, including: the constitutionalization of the law, the expansion of judicial discretion by the integration of open standards in the Constitution and the emergence of the Constitutional Courts. Then it will be outlined the dimensions of the judicialization of politics and judicial activism, to then be drawn a parallel between both. Will be discussed how the legalization of politics has developed in the brazilian context, especially after the changes promoted by the Constitution of 1988. After setting these abstract theoretical assumptions will be analyzed some of the judgments of the Supreme Court that guided the change of your understanding such as: writ of injunction, civil prison of the unfaithful trustee and party loyalty. The analysis of these cases aims to show a crossing of the Supreme Court from a period of self-restraint to a period of judicial activism. Then will be commented some of the possible repercussions of this new positioning of the Supreme Court. It will be checked, in this manner, if such a change would seem appropriate for the realization of fundamental rights, and therefore, to the new environmental paradigm demanded by the Constitution.

    KEYWORDS: Supreme Court. Constitutionalization of the law. Judicialization of Politics. Judicial Activism.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ADI - Ao Direta de Inconstitucionalidade ADPF - Ao de Descumprimento de Preceito Fundamental CF - Constituio Federal DL - Decreto-Lei EC - Emenda Constitucional HC - Habeas Corpus MI - Mandado de Injuno Min. - Ministro MS - Mandado de Segurana RE - Recurso Extraordinrio RTJ - Revista Trimestral de Jurisprudncia STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justia TSE - Tribunal Superior Eleitoral TST - Tribunal Superior do Trabalho v.g. - verbi gratia

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ___________________________________________________11 2 O PERCURSO ENTRE O LEGALISMO JURDICO E A NOVA HERMENUTICA CONSTITUCIONAL _________________________________________________14

    2.1 PODER JUDICIRIO: DO LEGALISMO CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO ________________________________________________________14

    2.2 DISPOSITIVOS NORMATIVOS ABERTOS E DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL _______________________________________________________22

    2.3 DOS PRESSUPOSTOS PARA A JUDICIALIZAO DA POLTICA EM UM CONTEXTO DE ABERTURA DO TEXTO CONSTITUCIONAL E AMPLA LIBERDADE DE SEUS INTRPRETES________________________________29

    3 DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL, JUDICIALIZAO DA POLTICA E ATIVISMO JUDICIRIO _____________________________________________32

    3.1 DIMENSES DA JUDICIALIZAO DA POLTICA____________________32 3.2 DIMENSES DO ATIVISMO JUDICIAL_____________________________37 3.3 ATIVISMO JUDICIAL X JUDICIALIZAO DA POLTICA_______________41

    4 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO CONTEXTO DE JUDICIALIZAO DA POLTICA NACIONAL: ATIVISMO OU AUTO-CONTENO ________________45

    4.1 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E JUDICIALIZAO DA POLTICA ___________________________________45 4.2 ANLISE DE CASOS ___________________________________________52

    4.2.1 Mandado de injuno___________________________________________52 4.2.1.1 Traos gerais___________________________________________52 4.2.1.2 Julgamentos importantes__________________________________55

    4.2.1.2.1 MI 107/DF __________________________________________55 4.2.1.2.2. MI 721 ____________________________________________59 4.2.1.2.3 MI 670/DF, MI 708/DF e MI 712/PA ______________________63

    4.2.1.3 Comentrios ___________________________________________65 4.2.2 Priso civil do depositrio infiel__________________________________68

    4.2.2.1 Traos Gerais __________________________________________68

  • 4.2.2.2 Precedentes____________________________________________70 4.2.2.2.1 HC 72.131/RJ _______________________________________70 4.2.2.2.2 RE 206.482/SP ______________________________________79 4.2.2.2.3 RE 466.343/SP e RE 349.703___________________________80

    4.2.2.3 Comentrios ___________________________________________86 4.2.3 Fidelidade partidria___________________________________________ 89

    4.2.3.1 Traos gerais___________________________________________89 4.2.3.2 Do julgamento __________________________________________91 4.2.3.3 Comentrios __________________________________________101

    4.3 REPERCUSSES DA NOVA POSTURA ASSUMIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ____________________________________________106

    5 CONCLUSO ___________________________________________________117 REFERNCIAS ___________________________________________________121

  • 11

    1 INTRODUO

    Hodiernamente, mostra-se de difcil cogitao alguma questo poltica, moral, ambiental ou socialmente relevante que, analisada sob o prisma do Direito Constitucional, no possa ser submetida apreciao do Supremo Tribunal Federal.

    A guisa de exemplificao podem ser mencionados recentes julgamentos da Suprema Corte sobre: a viabilidade das pesquisas com clulas-tronco embrionrias (ADI 3.510/DF); a viabilidade de restrio legal de compra e venda de armas de fogo por meio do Estatuto do Desarmamento (ADI 3112/DF); a possibilidade de priso civil do depositrio infiel (HC 87.585/TO, HC 92.566/SP, RE 349.703/RS e RE 466.343/SP); a demarcao de terras indgenas na regio conhecida como Raposa do Sol (PET 3388/RR); a possibilidade de restrio do uso de algemas (HC 91.952/SP); a liberdade de informao jornalstica (ADPF 130/DF); a perda do mandato parlamentar decorrente da infidelidade partidria (MS 26602/DF, 26603/DF, MS 26604/DF e ADI 3999/DF).

    Verifica-se, destarte, a progressiva judicializao no s da poltica nacional, como da prpria vida pblica brasileira. Questes polticas que antes eram deliberadas e decididas exclusivamente no mbito dos poderes Legislativo e Executivo passam hoje a ser amplamente influenciadas por decises judiciais.

    Mais do que a submisso de matrias relevantes como estas apreciao do Supremo Tribunal Federal, fato este que, por si s, j serve para ilustrar o processo de judicializao da poltica no pas, muitas das decises que tm sido recentemente exaradas por esta Corte tm revelado uma postura ativista por parte dos ministros que a compem.

    Neste novo cenrio jurdico-poltico o Poder Judicirio, e especialmente o Supremo Tribunal Federal, que por muitos anos buscou se posicionar de forma neutra perante a sociedade brasileira, mantendo-se, na medida do possvel, distante ou alheio aos anseios sociais, passou a se apresentar como uma instituio central para o regime democrtico nacional.

    O novo padro decisrio verificado nestas recentes decises da Suprema Corte evidencia o seu protagonismo poltico na conjuntura nacional. Neste contexto que se situa o principal objeto de estudo do presente trabalho, qual seja, a anlise do papel do Supremo Tribunal Federal neste cenrio de crescente judicializao da

  • 12

    poltica brasileira. Vale ressaltar que para tal desiderato, buscar-se-, preliminarmente,

    evidenciar a transio entre dois paradigmas jurdicos, especialmente no que tange as diferentes formas de interpretao e aplicao do Direito que lhes caracterizam.

    Inicialmente sero delineados comentrios acerca do primeiro destes paradigmas: o legalismo jurdico. Ele se assentava sobre a pretenso de construir um sistema jurdico fechado e completo, e para concretizar tal desiderato impunha que a interpretao jurdica se limitasse a realizao de um simples raciocnio lgico-silogstico.

    Comentar-se-, em seguida, de que modo este modelo legalista de interpretao cedeu lugar a uma hermenutica mais aberta e atenta para realidade social, principalmente em decorrncia da catastrfica repercusso dos regimes totalitaristas que tomaram conta do continente europeu na primeira metade do sculo XX; regimes estes que estiveram assentados, conforme a histria mundial pde comprovar, no estrito cumprimento de leis injustas.

    Neste momento que a Constituio deixou de ser vista como simples referencial poltico desprovido de normatividade e paulatinamente passou a assumir uma posio central no ordenamento jurdico. Neste diapaso, sero traados breves comentrios acerca do desenvolvimento do Direito Constitucional, dos mecanismos de controle de constitucionalidade e da prpria Jurisdio Constitucional.

    Ato contnuo comentar-se- a insero de dispositivos normativos abertos, ou normas gerais, nos textos constitucionais e demais diplomas normativos infraconstitucionais, fato este que impulsionou a criatividade judicial e motivou os juzes a se preocuparem de modo mais incisivo com a realidade social onde esto inseridos.

    Sero delineadas, em seguida, as principais diferenas entre a interpretao de dispositivos normativos fechados e abertos, evidenciando-se uma nova postura, mais ativa e criativa, que passa a ser exigida dos intrpretes e operadores do direito.

    Em seguida, sero traados comentrios acerca das peculiaridades do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, das competncias da Suprema Corte brasileira e da forma como ela tem exercido a sua misso no contexto de judicializao da poltica brasileira.

    Aps, de modo a ilustrar os estudos j feitos sob o prisma abstrato-terico,

  • 13

    sero analisados julgamentos do Supremo Tribunal Federal sobre assuntos de ampla repercusso no cenrio jurdico-poltico brasileiro, quais sejam: a possibilidade de priso civil do depositrio infiel, a perda do mandato do parlamentar em decorrncia da infidelidade partidria e a atribuio de efeitos concretos as decises dos Mandados de Injuno.

    A anlise destes julgados, e especialmente dos argumentos utilizados pelos magistrados para embasar seus votos, servir de base para verificar se o Supremo Tribunal Federal efetivamente efetuou uma travessia da auto-conteno para o ativismo, modificando a forma como tradicionalmente vinha funcionando no jogo democrtico brasileiro e ampliando seu espao de atuao frente aos demais Poderes.

    A exposio da argumentao deduzida em tais julgamentos tambm ser fundamental para averiguar as causas da reviso ou alterao de entendimentos antigos do Supremo Tribunal.

    Interessante destacar, neste ponto, que no ser somente abordada a forma como o Supremo Tribunal atualmente tem decidido as questes com repercusses polticas que lhe so submetidas, mas tambm o modo como as decidia antes, quando ainda revelava certa timidez, ou auto-conteno, no exerccio de suas prerrogativas.

    Buscar-se-, desta forma, traar um comparativo entre a argumentao que vinha sendo deduzida pelos ministros do pretrio excelso em uma fase de auto-conteno e o embasamento decisrio que vem sendo por eles apresentado hodiernamente, em uma fase ana qual esta Corte se torna importante arena de deliberao poltica na democracia constitucional brasileira.

    Finalmente sero comentadas algumas das principais repercusses desta nova postura assumida pelo Supremo Tribunal no Estado Democrtico de Direito brasileiro.

    Ressalte-se, finalmente, que em ltima anlise este trabalho foi desenvolvido com a finalidade de verificar se este novo atuar do Judicirio e principalmente do Supremo Tribunal Federal est direcionado promoo da dignidade da pessoa humana, concretizao dos direitos constitucionais e obteno do bem-estar social por meio da construo de uma sociedade brasileira mais digna, justa e solidria.

  • 14

    2 O PERCURSO ENTRE O LEGALISMO JURDICO E A NOVA HERMENUTICA CONSTITUCIONAL

    2.1 PODER JUDICIRIO: DO LEGALISMO CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO

    A funo de julgar to antiga quanto prpria sociedade, mas por um longo perodo foi exercida juntamente com a funo executiva, sendo relativamente recente o seu exerccio por um rgo independente.

    A constituio do Judicirio como um Poder estatal ocorreu no perodo moderno, especialmente a partir do sculo XIX, e se baseou na teoria de tripartio dos poderes, atribuda a Montesquieu, mas previamente concebida pelo terico ingls John Locke1. Tais autores foram os responsveis, portanto, por conceber a teoria da tripartio dos poderes como princpio de organizao do Estado Constitucional.

    John Locke (1632-1704) foi o terico que delineou os traos basais desta Teoria tripartite. Ele props a diviso do poder estatal em trs ramos: Legislativo, Executivo e Federativo. Enquanto o Legislativo ficaria incumbido da edio e aprovao da legislao estatal, o Executivo e o Federativo seriam os responsveis pela execuo destas leis no plano prtico, o primeiro circunscrito execuo de tal tarefa no prisma interno e o segundo frente aos Estados estrangeiros.

    Alguns anos depois, em 1748, o magistrado e filsofo francs Charles de Secondat, tambm conhecido como Baro de Montesquieu, aperfeioou a teoria de Locke, imprimindo-lhe uma configurao que muito se aproxima da atual.

    Montesquieu, observando a realidade constitucional inglesa, teorizou que o Estado deveria separar o exerccio de suas funes em trs diferentes ramos independentes: Executivo, Legislativo e Judicirio. Segundo ele tais poderes deveriam estar separados entre si e controlados uns pelos outros, de acordo com a idia de que o poder detm o poder2.

    _______________

    1 BARBOSA, Claudia Maria. Crise de funo e legitimidade do poder judicirio brasileiro. Tese

    (professor titular) Pontifcia Universidade Catlica do Paran, Curitiba, 2004. p. 3. 2 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. So Paulo: Malheiros, 2007. p.

    45.

  • 15

    A idia central de Montesquieu, portanto, a de que o homem tende a abusar do poder que detm, motivo pelo qual necessrio impor limites a uma atuao abusiva. Prope ento tal terico que a sociedade seja organizada de tal modo que o poder poltico seja exercido por rgos diferentes que se limitem mutuamente.

    O que h de mais importante na Teoria de Montesquieu, conforme ressaltado por Bonavides, que nela a diviso dos poderes no apresenta carter meramente terico, como em Locke, mas corresponde a uma distribuio efetiva e prtica do poder entre titulares que no se confundem3.

    A partir da Teoria de Montesquieu, portanto, passou-se a efetivamente vislumbrar a funo judicial como uma atividade independente, exercida por rgos diversos daqueles cuja funo primordial a executiva ou a legislativa.

    A teoria da tripartio dos poderes alcanou grande repercusso nos estados europeus no incio do sc. XVII em virtude da conjuntura social da poca, marcada pelo surgimento da burguesia, nova classe social que emergiu rapidamente nos Estados capitalistas em desenvolvimento e espargia com vigor seus anseios por maior segurana e previsibilidade nos negcios jurdicos.

    O modelo jurdico que se construa, neste contexto, visava formao de um cenrio propcio ao desenvolvimento burgus e se assentava fundamentalmente em trs pilares: liberdade (para negociar), igualdade (perante a lei) e segurana (previsibilidade). Enquanto a garantia dos dois primeiros direitos permitiria aos burgueses negociar livremente e enriquecer, o ltimo evitaria que sofressem indesejveis surpresas em seus empreendimentos.

    Verifica-se, desta feita, que a inaugurao desse paradigma jurdico legalista no ocorreu por acaso, mas foi fruto de uma srie de acontecimentos polticos e sociais que tornaram insustentvel a manuteno do ciclo medievo.

    Com efeito, salientamos causas e fatos objetivos determinantes do fim desse perodo. Elencados, sem a pretenso de sermos taxativos, os seguintes fatos: a inveno da imprensa que proporcionou o espraiar das novas idias; os descobrimentos, que colocaram o homem em contato com outros povos; e o natural desenvolvimento comercial4.

    _______________

    3 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. So Paulo: Malheiros, 2007. p.

    49. 4 MELGAR, Plnio. A jus-humanizao das relaes privadas: para alm da

    constitucionalizao do direito privado. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2007. p. 34.

  • 16

    O homem passava, neste perodo, a ser o senhor do seu destino. A moral, a poltica e o Direito afastavam-se da idia de Deus e se aproximavam do intelecto humano.

    O sc. XVIII torna-se, ento, palco de um momento histrico de valorizao da ordem legal-racional, perfeitamente amoldada teoria de tripartio dos poderes.

    Ao Judicirio era atribudo, dentro desta teoria, um papel neutro e praticamente invisvel, perfeitamente sintetizado na clebre frase de Montesquieu segundo a qual o juiz no deveria ser mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei.

    A interpretao uniforme e previsvel da lei mostrava-se fundamental para a garantia de segurana, pois a partir dela minimizavam-se as surpresas indesejadas no mbito dos negcios privados. Afastava-se de plano, nesta conjectura, a faculdade de os magistrados realizarem juzos de valor no exerccio da interpretao dos textos legais; os pronunciamentos judiciais deveriam ser fixos e previsveis, jamais indo alm do que a lei previa expressamente.

    Realizavam-se as recomendaes de Montesquieu, o qual argumentava que:

    [...] se os Tribunais no devem ser fixos, os julgamentos devem s-lo, a tal ponto que nunca sejam mais do que um texto exato da lei. Se fossem uma opinio particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela so assinados5.

    Com feies estritamente legalistas o Direito no representava, para essa escola jurdica, mais do que uma ordem expressa do Poder Legislativo6. Buscava-se com veemncia extirpar dos cdigos quaisquer dispositivos que dependessem da criatividade judicial para serem aplicados.

    Tal escola hermenutica expressava, em sntese, a soluo encontrada poca pelo capitalismo para sedimentar a derrocada do modelo medieval absolutista que por um longo tempo lhe havia sufocado.

    Uma vez fixada a inteno de se construir um sistema jurdico racional e _______________

    5 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Coleo Os Pensadores, v. XXI, So Paulo: Abril, 1973. p.

    158. 6 MATTIUZO JR, Alcides; GAGLIARDI, Maria Aparecida. A constitucionalizao do direito civil e

    a nova teoria contratual. Anais do XIV encontro preparatrio para o XIV congresso nacional do CONPEDI. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2005. p. 791.

  • 17

    logicamente coerente, entendeu-se que a melhor forma para faz-lo seria lanando mo ao raciocnio lgico utilizado pelas cincias naturais em cadeiras meramente dedutivas.

    Em decorrncia desta necessidade o Direito passou a utilizar, mesmo que de modo foroso, um mtodo que muito se assemelhava aquele utilizado pelas cincias naturais.

    Quase como um clculo ou uma pesagem buscava-se a partir desta metodologia uma tranqilizadora exatido que afastasse os cidados dos abusos cometidos pela justia corrompida do antigo regime7.

    Plnio Margar destaca, acerca dessa tendncia, que:

    a cincia jurdica integrou-se ao universo das matrias alheias experincia, vinculando-se quelas dependentes de definies. O direito no dependeria dos fatos, mas de provas e demonstraes racionais. Acreditava-se que, permeado por postulados ltimos da razo, fosse possvel edificar sistemas prontos, acabados, para qualquer campo do saber humano [...] Exsurge um sistema jurdico marcadamente axiomtico, racional, pleno. E o modo invocado pelo pensar estrutura-se em um silogismo formal, onde a lei passa a ser a premissa maior, o fato a premissa menor, alcanando-se, dedutivamente, a sentena. o processo de aplicao subsuntiva da lei a imperar e coordenar o raciocnio jurdico, acarretando um racionalismo divorciado completamente das questes prticas. Criava-se, prvia e especulativamente, um sistema para, em um segundo momento, ser aplicado na resoluo dos concretos casos que emergiam da vida quotidiana8.

    As leis deveriam ser claras, seguras e sistematicamente dispostas em cdigos, e que, por conseqncia, permitia que os juristas lanassem mo a uma interpretao estritamente esttica, linear e previsvel, to segura como as demais regras do jogo.

    Em busca de segurana jurdica e previsibilidade, buscava-se erigir um sistema jurdico fechado e pretensamente completo, simplesmente alheio s ingerncias de valores externos.

    Karl Engish assevera, nesse sentido, que:

    houve um tempo em que tranquilamente se assentou na idia de que deveria ser possvel estabelecer uma clareza e segurana jurdicas

    _______________

    7 PERELMAN, Cham. Lgica jurdica: nova retrica. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 33.

    8 MELGAR, Plnio. A jus-humanizao das relaes privadas: para alm da

    constitucionalizao do direito privado. Disponvel em: . Acesso em: 08 jun. 2007. p 39.

  • 18

    absolutas atravs de normas rigorosamente elaboradas, e especialmente garantir uma absoluta univocidade a todas as decises judiciais e a todos os actos administrativos. Esse tempo foi o Iluminismo9.

    A lei, alm de formalmente aprovada pelo Poder Legislativo, deveria ser suficientemente clara, completa e abstrata, de forma a no exigir do juiz mais do que um mero raciocnio silogstico. Desta feita, em prol de uma propagada segurana jurdica extirpava-se do mundo jurdico toda a sua dimenso criadora.

    Cham Perelman ressalta, inclusive, que nesse perodo os integrantes da Corte de Cassao desempenhavam o papel de verdadeiros inspetores da justia. O tribunal era responsvel por fiscalizar as decises dos juzes, certificar que eles no deturpariam a vontade da Lei10.

    O princpio da separao dos poderes vigorava neste contexto em sua forma clssica, revelando um contexto no qual o papel do judicirio limitava-se a estritamente aplicar o direito, jamais participando do processo de sua elaborao. Tal Poder deveria, em suma, se limitar ao estabelecimento dos fatos e sua subsuno sob os termos da lei11.

    No obstante tenha sido a busca por segurana e previsibilidade o mote para a instaurao do modelo jurdico legalista, foi justamente a insegurana gerada pela aplicao irrestrita deste modelo que ocasionou, dcadas mais tarde, a sua derrocada.

    Conforme ressaltado por Celso Fernandes Campilongo:

    na geometria da tripartio dos poderes, o juiz submete-se ao imprio da lei. A submisso compensada pela independncia do magistrado perante os outros fatores do processo decisrio. Isso caracteriza a atuao do Judicirio no estado de direito. A simplicidade harmnica do modelo esbarra numa nica dificuldade: o mundo real. A avaliao feita pelo magistrado no momento de aplicar a lei no est submetida apenas observncia estrita da letra da norma jurdica. A tarefa do julgador no meramente tcnica. Ao contrrio, social e politicamente determinada12.

    _______________

    9 ENGISH, Karl. Introduo ao pensamento jurdico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,

    1996. p. 206. 10

    PERELMAN, Cham. Lgica jurdica: nova retrica. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 53. 11

    PERELMAN, Cham. Lgica jurdica: nova retrica. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 35.

    12 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Judicirio e a democracia no Brasil. Revista USP, n. 21, So

    Paulo: 1994. p. 118.

  • 19

    Esta descoberta fez com que a rgida interpretao da teoria de tripartio dos poderes se enfraquecesse. Contatou-se que a funo jurisdicional no poderia ser restringida a simples atividade mecnica, carente de adaptaes e evolues. Abandonou-se tambm a idia de que a lei apresentava um significado unvoco e apenas uma interpretao aceitvel. Percebeu-se que, em virtude da grande complexidade inerente aplicao do direito, diversas so as possibilidades interpretativas que se abrem ao magistrado em um mesmo caso concreto, motivo pelo qual a criatividade inarredvel de seu labor.

    A crise do modelo legalista se concretizou logo aps o final da Segunda Guerra Mundial, em decorrncia das trgicas experincias dos governos tirnicos e totalitrios que dominaram o continente europeu no incio do sculo XX. Tais regimes se desenvolveram assentados na aplicao plena e irrestrita de suas leis internas, as quais, contudo, no obstante formalmente aprovadas pelo Poder Legislativo, apresentavam contedo que flagrantemente ofendia os direitos humanos e fundamentais.

    Redescobriu-se, nesse perodo, a noo de Constituio e a necessidade de proteg-la, mormente contra a ao dos poderes polticos, passando-se a serem criados mecanismos de defesa da Constituio e serem desenvolvidos sistemas de controle de constitucionalidade13.

    Conforme apontado por Ren David, o desenvolvimento de mecanismos para a proteo e valorizao da Constituio foi a alternativa encontrada neste contexto de superao dos regimes jurdicos legalistas para a persecuo dos direitos humanos e do regime democrtico. O autor ressalta, inclusive, que os maiores avanos nesse sentido foram percebidos na Alemanha Federal e na Itlia, pases nos quais a necessidade de restabelecimento dos princpios da democracia e dos direitos humanos se mostrava uma prioridade absoluta14.

    Desta feita, possvel apontar a desastrosa repercusso dos regimes totalitaristas, em meados do sculo XX, como o estopim para o desenvolvimento da Justia Constitucional e substituio do modelo de Estado Liberal, no qual a lei simplesmente servia de parmetro para a resoluo de conflitos intersubjetivos, pelo _______________

    13 VELLOSO, Carlos Mrio. O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional: uma proposta que

    visa a tornar efetiva a sua misso precpua de guarda da constituio. Revista de informao legislativa, v.30, n 120, out./dez., 1993. p. 7.

    14 DAVID, Ren. Os grandes sistemas do direito contemporneo. So Paulo: Martins Fontes,

    1998. p. 54.

  • 20

    Estado Social, no qual a lei tambm passa a assumir o papel de instrumento poltico de governo.

    Por um longo perodo as Constituies no representaram mais do que um estado ideal, um referencial meramente formal desprovido de normatividade acerca das caractersticas e direitos fundamentais de uma determinada sociedade. Luis Roberto Barroso afirma, inclusive, que a tradio europia da primeira metade do sc. XX via a Lei Fundamental como mera ordenao de programas de ao, convocaes ao legislador ordinrio e aos poderes pblicos em geral15.

    Verifica-se, destarte, que o desenvolvimento desta nova hermenutica constitucional a partir da qual a Constituio vem a ocupar um lugar central no Ordenamento Jurdico e os seus princpios, regras e valores passam a ser aplicados diretamente aos casos concretos um fenmeno relativamente recente no mundo e, principalmente, no Brasil.

    Com a exceo dos Estados Unidos da Amrica, que desde 1803 por ocasio da clebre deciso do caso Marbury x Madison j reconhecia a possibilidade de controle de constitucionalidade pelo Judicirio, os demais pases s vieram a afirmar o poder normativo de suas Constituies em meados do sc. XX.

    No caso brasileiro este novo paradigma hermenutico s encontrou respaldo normativo para ser efetivado aps a promulgao da Constituio de 1988. Nesse sentido verberou Lus Roberto Barroso que:

    a experincia poltica e constitucional do Brasil, da independncia at 1988, a melanclica histria do desencontro de um pas com sua gente e com seu destino. Quase dois sculos de ilegitimidade renitente do poder, de falta de efetividade das mltiplas Constituies e de uma infindvel sucesso de violaes da legalidade constitucional. Um acmulo de geraes perdidas. A ilegitimidade ancestral materializou-se na dominao de uma elite de viso estreita, patrimonialista, que jamais teve um projeto de pas para toda a gente. Viciada pelos privilgios e pela apropriao privada do espao pblico, produziu uma sociedade com deficit de educao, de sade, de saneamento, de habitao, de oportunidades de vida digna. Uma legio imensa de pessoas sem acesso alimentao adequada, ao consumo e civilizao, em um pas rico, uma das maiores economias do mundo16.

    _______________

    15 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. O comeo da histria. A nova interpretao

    constitucional e o papel dos princpios no direito brasileiro. Revista de Direito da Cmara Municipal do Rio de Janeiro. Disponvel em . Acesso em: 11 ago. 2007. p. 2.

    16 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. O comeo da histria. A nova interpretao

    constitucional e o papel dos princpios no direito brasileiro. Revista de Direito da Cmara Municipal do Rio de Janeiro. Disponvel em

  • 21

    At ento, conforme j mencionado, a ordem jurdica estava pautava sobre um modelo legalista, no qual eram as leis, ao invs da Constituio, que serviam de principal ponto de referncia para a interpretao do ordenamento e atividade dos operadores do direito.

    Nesse contexto, raras eram as situaes em que os aplicadores do direito lanavam mo a dispositivos constitucionais para disciplinar as relaes privadas ou nortear a interpretao e aplicao dos dispositivos normativos infraconstitucionais. Faltava, nessa poca, vontade poltica para dar ao texto constitucional aplicabilidade direta e imediata.

    A partir de 1988, contudo, uma vasta gama de princpios fundamentais passa a ser elevada ao plano constitucional, os quais, tendo sua normatividade reconhecida no texto constitucional, passam a condicionar a aplicao da legislao infraconstitucional por meio de mecanismos formais de controle de constitucionalidade.

    Como afirma Luis Roberto Barroso:

    constitucionalizar uma matria significa transformar Poltica em Direito. Na medida em que uma questo seja um direito individual, uma prestao estatal ou um fim pblico disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretenso jurdica, que pode ser formulada sob a forma de ao judicial. Por exemplo: se a Constituio assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, possvel judicializar a exigncia desses dois direitos, levando ao Judicirio o debate sobre aes concretas ou polticas pblicas praticadas nessas duas reas17.

    A constitucionalizao do direito responsvel por tornar a Constituio um verdadeiro instrumento jurdico-poltico de atuao material da sociedade e referencial de todo o ordenamento jurdico18. _______________

    . Acesso em: 11 ago. 2007. p. 1 e 2.

    17 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. O comeo da histria. A nova interpretao

    constitucional e o papel dos princpios no direito brasileiro. Revista de Direito da Cmara Municipal do Rio de Janeiro. Disponvel em . Acesso em: 11 ago. 2007. p. 4.

    18 RODRIGUES, Nina T. Disconzi. O controle de constitucionalidade no direito brasileira e as Leis

    9.868/99 e 9882/99. Revista de Informao Legislativa, v.38, n 149, p. 111-124, jan./mar. de 2001. p. 112.

  • 22

    Interessante notar, neste ponto, que o reconhecimento da normatividade das normas constitucionais, que ensejou uma reviravolta na forma de interpretao da Constituio, evidenciou a constatao de que as normas jurdicas no trazem sempre em si um sentido nico, objetivo, vlido para todas as situaes sobre as quais incidem, cabendo ao intrprete, mais do que uma mera revelao do contedo nela pr-existente, desempenhar um papel criativo para a sua concretizao19.

    2.2 DISPOSITIVOS NORMATIVOS ABERTOS E DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

    A possibilidade de comunicao de padres gerais de condutas um pressuposto para a existncia do Direito e para o desenvolvimento da sociedade civilizada. a partir da difuso de padres gerais de comportamento que as pessoas tomam conscincia do que podem, do que no podem e do que devem fazer.

    Assim, a categorizao de atos como permitidos, proibidos ou obrigatrios fundamental para que as relaes sociais no se tornem, ao longo do tempo, palco de infindveis sries de conflitos.

    No sistema jurdico brasileiro h o primado da lei escrita, de modo que a comunicao de padres gerais de conduta ocorre, via de regra, por meio da positivao de frmulas lingsticas20. Desta feita, por intermdio da interpretao destes conjuntos de palavras que se definem as condutas a serem exigidas dos jurisdicionados.

    Dentro desta sistemtica, para que o legislador seja ele constituinte ou ordinrio atinja os fins a que se prope importante que, ao redigir as normas, opte pela melhor tcnica e pela linguagem mais adequada. Ele deve pensar nos comportamentos que pretende obter dos destinatrios da norma. Somente mediante a plena conscincia de onde quer chegar que ele pode corretamente escolher de onde deve partir.

    _______________

    19 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. O comeo da histria. A nova interpretao

    constitucional e o papel dos princpios no direito brasileiro. Revista de Direito da Cmara Municipal do Rio de Janeiro. Disponvel em . Acesso em: 11 ago. 2007. p. 5.

    20 HART, Hebert Lionel Adolphus. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

    p. 138.

  • 23

    Quando procura regulamentar de forma clara e antecipada um determinado fato social, o legislador fatalmente se depara com algumas dificuldades, as quais, em ltima anlise, refletem as prprias limitaes da natureza humana em antever o futuro.

    Conforme mencionado por Herbert Hart:

    se o mundo em que vivemos fosse caracterizado s por um nmero finito de aspectos e estes, conjuntamente com todos os modos por que se podiam combinar, fossem por ns conhecidos, ento poderia estatuir-se antecipadamente para cada possibilidade. Poderamos fazer regras cuja aplicao a casos concretos nunca implicasse uma outra escolha. Tudo poderia ser conhecido e, uma vez que poderia ser conhecido, poder-se-ia, relativamente a tudo, fazer algo e especific-lo antecipadamente atravs de uma regra21.

    Um cenrio como este descrito por Hart, contudo, em que tudo se pode antever e antecipar, est muito distante das limitadas capacidades humanas. Por mais competente que o legislador seja, jamais ser capaz de prever todas as inmeras combinaes de fatores que o futuro abriga.

    Deste modo, em face das inarredveis incertezas que o futuro apresenta, surgem ao legislador duas possibilidades, pode:

    a) ignorar ou subestimar as incertezas e resolver criar uma norma que seja direcionada disciplina somente da realidade que pode prever;

    b) reconhecer sua incapacidade de prever todas as nuances que um determinado assunto apresentar no futuro e, a partir de ento, elaborar uma norma cuja tessitura seja de tal modo aberta que possa eventualmente se amoldar s surpresas que surgiro aps a sua positivao.

    A primeira postura foi amplamente utilizada pelos sistemas jurdicos formalistas no despertar da modernidade. Em tais sistemas entendia-se, conforme anteriormente comentado, que a melhor alternativa para proporcionar segurana jurdica aos jurisdicionados seria minimizar, tanto quanto possvel, a margem de atuao judicial por meio da elaborao de normas cujas hipteses de incidncia tambm fossem to fechadas quanto possvel.

    Para que se evitassem futuras complementaes judiciais ao sentido da _______________

    21 HART, Hebert Lionel Adolphus. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

    p. 141.

  • 24

    norma, partia-se do pressuposto de que a compreenso do caso simples (modelo cogitado pelo legislador) seria suficiente para orientar a disciplina de todos os casos futuros, inclusive os casos complexos e fronteirios.

    A adoo de tal postura, contudo, implicou em pura e simples desconsiderao das particularidades inerentes aos casos complexos e fronteirios. Supervalorizava-se a segurana jurdica em detrimento da efetividade e atualidade da norma jurdica ao longo do tempo.

    Fazer isto, conforme destacado por Hebert Hart:

    conseguir uma medida de certeza ou previsibilidade custa de considerar, de forma cega e preconceituada, o que deve-se fazer-se numa srie de casos futuros, sobre cuja composio nos encontramos em estado de ignorncia. Assim, conseguiremos na verdade resolver antecipadamente, mas tambm sem uma viso clara, questes que s podem ser razoavelmente resolvidas quando surjam e sejam identificadas22.

    A tendncia contempornea no cenrio jurdico-normativo brasileiro, contudo, j superou este posicionamento formalista. Com vistas evoluo contnua do ordenamento jurdico ptrio, o qual deve estar sempre apto para acompanhar a sociedade (ora contendo os seus impulsos, ora alavancando-os), optou-se pela fixao de hipteses legais abertas na Constituio e nas leis ordinrias.

    Luis Roberto Barroso destaca, nesse sentido, que:

    [...] as clusulas constitucionais, por seu contedo aberto, principiolgico e extremamente dependente da realidade subjacente, no se prestam ao sentido unvoco e objetivo que uma certa tradio exegtica lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. vista dos elementos do caso concreto, dos princpios a serem preservados e dos fins a serem realizados que ser determinado o sentido da norma, com vistas produo da soluo constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido23.

    A presena de tais normas abertas permite ao Direito acompanhar a evoluo da sociedade. Isto porque os significantes destas normas so de tal modo vagos e _______________

    22 HART, Hebert Lionel Adolphus. O conceito de direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

    p. 141 e 142. 23

    BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula. O comeo da histria. A nova interpretao constitucional e o papel dos princpios no direito brasileiro. Revista de Direito da Cmara Municipal do Rio de Janeiro. Disponvel em . Acesso em: 11 ago. 2007. p. 5.

  • 25

    abrangentes que os seus significados podem ser facilmente alterados ao longo do tempo, evitando-se, assim, que elas se tornem anacrnicas e precisem ser reformadas.

    O ordenamento jurdico brasileiro contemporaneamente tem sido delineado, desta feita, de modo a ensejar a formao de um sistema jurdico aberto. Neste sistema tanto os casos simples quanto os casos complexos e fronteirios podem ser resolvidos sem que suas particularidades tenham que ser desconsideradas ou subestimadas pelo aplicador da norma.

    A Constituio de 1988 ilustra esta nova realidade; ao mesmo tempo em que composta por normas densas tambm integrada por normas abertas como os princpios jurdicos. Enquanto as normas abertas impelem os magistrados ao desempenho de uma atividade criativa, as normas mais densas outorgam ao sistema jurdico a segurana de que carece.

    Gisele Cittadino menciona, neste sentido, que:

    no se pode negar que as Constituies das democracias contemporneas exigem uma interpretao construtiva das normas e dos princpios que as integram, e, neste sentido, as decises dos tribunais especialmente em face de conflitos entre direitos fundamentais Tm necessariamente o carter de "decises de princpio". No entanto, a despeito do fato da dimenso inevitavelmente "criativa" da interpretao constitucional dimenso presente em qualquer processo hermenutico, o que, por isso mesmo, no coloca em risco, a lgica da separao dos poderes -, os tribunais constitucionais, ainda que recorram a argumentos que ultrapassem o direito escrito, devem proferir "decises corretas" e no se envolver na tarefa de "criao do direito", a partir de valores preferencialmente aceitos24.

    Merecem ser reproduzidas, neste ponto, as observaes feitas pelo ministro Carlos Britto, em voto proferido no julgamento dos Mandados de Segurana de nmeros 26602, 26603 e 26604, no dia 04 de outubro de 2007:

    nesse modelo de cincia jurdica ou cincia do Direito, que o ps-positivismo, os princpio so normas. () O ps-positivismo, mais do que afirmar o carter normativo dos princpios, atesta que eles so supernormas, as normas mais importantes do direito positivo, notadamente da Constituio, de modo que os princpios, hoje, enquanto normas de proa, de primeira grandeza, ocupam uma posio de centralidade, a partir da Constituio, vale dizer, os princpios que, na nossa Constituio, se dotam dessas virtudes da onivalncia, da auto-referncia e da auto-aplicabilidade

    _______________

    24 CITTADINO, Gisele. Poder Judicirio, Ativismo Judicirio e Democracia. Alceu, v.05, n.09, p.105-

    113, dez. 2004. p. 108.

  • 26

    em muitas situaes, so aptos a resolver casos concretos. possvel extrair deles as normas de que os operadores do Direito precisam para solucionar as controvrsias. () Alm do mais, os princpios so os que mais conferem unidade material Constituio, congruncia Constituio, que no faria do Direito um sistema, um ordenamento se ela prpria, Constituio, no fosse um sistema, um ordenamento, alm de os princpios dotares a Constituio de uma espcie de jogo de cintura, de uma versatilidade para acompanhar as mutaes do cotidiano impedindo, muitas vezes, pela sua aplicabilidade, que se precise do recurso a uma reforma oficial, a uma emenda constituciona25 (grifo do autor).

    A insero destas normas jurdica abertas no sistema jurdico possibilita que os juzes se atentem mais para o presente e futuro do que para o passado. Eles deixam de estar cingidos a realidade do momento em que a lei foi editada para poderem, tambm, dentro de uma nova dimenso normativa, realizarem conexes com o momento histrico e a realidade poltica e social em que esto inseridos.

    Nelson Nery Jr. comenta, nesse sentido, que:

    em pleno sculo XXI no seria mais admissvel legislar-se por normas que definissem precisamente certos pressupostos e indicassem, tambm de forma precisa, suas conseqncias, formando uma espcie de sistema fechado. A tcnica legislativa moderna se faz por meio de conceitos legais indeterminados e clusulas gerais, que do mobilidade ao sistema, flexibilizando a rigidez dos institutos jurdicos e dos regramentos do direito positivo26.

    Uma das principais caractersticas destas normas abertas ou gerais reside, portanto, na generalidade de seus enunciados normativos. As hipteses legais dessas normas so formuladas de modo a poderem abarcar temas de grande generalidade, e, por conseqncia, regulamentar um amplo domnio de casos.

    Elas se diferenciam amplamente, portanto, das normas legisladas mediante a tcnica casustica, tpicas do perodo dogmtico legalista, as quais se limitavam regulamentar um delimitado e particular grupo de casos

    Outra caracterstica fundamental das normas abertas reside na prvia e proposital indeterminao de seus significados. Elas no pretendem prever, de

    _______________

    25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 26602/DF. Relator: Min. Eros Grau. Julgamento em:

    04/10/2007, publicado no DJe em 16/10/2008. Ement. 2337-2. Disponvel em: . Acesso em: 24 fev. 2010. p. 00294 e 00295.

    26 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Cdigo Civil Comentado e Legislao

    Extravagante. 3. ed., rev., atual. e ampl. da 2. ed. do Cdigo Civil Anotado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 156.

  • 27

    antemo, todas as particularidades dos casos que sero por elas disciplinados ou mesmo a forma pela qual sero eles disciplinados.

    O que se busca por meio da positivao de normas gerais, ao contrrio, justamente viabilizar que as respostas a tais perguntas sejam progressivamente construdas ao longo do tempo, por meio de um exerccio atual de interpretao e aplicao do Direito.

    Por serem compostas com hipteses legais de significao vaga e fluda, estas normas abertas oportunizam ao juiz, diante da realidade cambiante da vida social, a criao, complementao e/ou desenvolvimento de solues inovadoras por ocasio da prestao jurisdicional.

    As expresses lingsticas que as compem, cujos significados so fluidos, vagos, a serem definidos, d-se o nome de conceitos indeterminados ou conceitos vagos. Por meio deles se torna possvel que as normas abertas regulem coerentemente situaes extemporneas ao momento em que foram editadas.

    Desta feita, pode-se dizer que as normas abertas visam no s a permitir que a realidade social seja compreendida ao seu tempo, como tambm, e, sobretudo, a possibilitar que o Direito acompanhe, seja influenciado e influencie as transformaes sociais que se mostram latentes no seio da sociedade.

    Em suma, as normas gerais impedem o engessamento do sistema jurdico e possibilitam a modificao do mundo dos fatos a partir de um processo constante de readaptao do mundo do direito.

    Luiz Edson Fachin afirma, nesse sentido, que:

    integra a porosidade do jurdico a reconstruo contnua de conceitos e definies. A prpria noo de sistema aplicada ao Direito Civil no gera, por si s, compreenso semntica que afaste a dvida, cuja presena pode enriquecer o debate27.

    A indeterminao dos termos que compem os enunciados normativos destas normas gerais no deve ser entendida, desta feita, como uma falha, mas como uma opo legislativa.

    Tereza Arruda Alvim Wambier destaca, neste sentido, que:

    _______________

    27 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crtica do direito civil: luz do novo cdigo civil brasileiro. 2. ed.

    Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 177.

  • 28

    a 'vaguedad ou a indeterminao de um conceito costuma erradamente ser apontada como uma imperfeio das lnguas. Entretanto, s vezes se atinge maior perfeio e requinte com conceitos vagos do que com conceitos precisos. A indeterminao dos conceitos no , pois, um defeito da linguagem, mas uma caracterstica que tem funes positivas nitidamente ligadas s necessidades das sociedades dos nossos dias28.

    A evoluo do sentido das normas, que outrora esteve limitada paulatina interveno legislativa, ao mesmo tempo pontual e provisria, passa a ser obtida por intermdio da insero de normas abertas ou gerais nos corpos legislativos da contemporaneidade.

    Gustavo Tepedino alerta, inclusive, que:

    nos dias de hoje, a necessidade de se dar efetividade plena s clusulas gerais faz-se tanto mais urgente na medida em que se afigura praticamente impossvel ao direito regular o conjunto de situaes negociais que floresce na vida contempornea cujos avanos tecnolgicos surpreendem at mesmo o legislador mais frentico e obcecado pela atualidade. [...] Dito diversamente, incapaz de disciplinar todas as inmeras situaes jurdicas que florescem na esteira dos avanos tecnolgicos, o legislador vale-se da tcnica das clusulas gerais29.

    De um lado se tem, portanto, hipteses legais cunhadas segundo a tcnica casustica de legislar, as quais so compostas por antecedentes e conseqentes meticulosamente pormenorizados e pretendem que o intrprete faa, por ocasio da aplicao da norma, uma estrita correlao entre o mundo dos fatos e a descrio legal nelas prevista (subsuno).

    Do outro lado se tem a hiptese legal de uma norma geral que, intencionalmente composta por termos cujos significados so imprecisos e maleveis (conceitos jurdicos indeterminados), impele o intrprete a ultrapassar o mero raciocnio silogstico e a criar a soluo mais adequada para o caso que lhe foi imposto30.

    Verifica-se, desta feita, que por serem compostas por uma srie de dispositivos abertos, cujas estruturas normativas apresentam amplo grau de _______________

    28 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexo sobre as clusulas gerais do cdigo civil de

    2002: a funo social do contrato. So Paulo: Revista dos Tribunais, v. 831, jan. 2005. p. 61. 29

    TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodolgicas para a constitucionalizao do direito civil. In Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 206 e 207.

    30 MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um sistema em construo: as clusulas

    gerais no projeto do cdigo civil brasileiro. Braslia: Revista de Informao Legislativa, a. 35, n. 139, jul./set. de 1998, p. 7.

  • 29

    generalidade e abstrao, as Constituies outorgam aos juzes um elevado grau de discricionariedade por ocasio de sua aplicao, principalmente por ocasio do exerccio da Jurisdio Constitucional.

    Conforme mencionado por Joo Maurcio Adeodato:

    Pela funo que exerce no sistema democrtico, servindo de base argumentativa para uma imensa gama de casos, o texto constitucional quase sempre aparece mais geral e da mais vago e ambguo do que outros textos jurdicos, ainda que todos, em alguma medida, guardem essas caractersticas. Observa-se nas Constituies escritas contemporneas, a freqente ocorrncia das chamadas normas (mais precisamente so textos) programticas, aquelas que fixam metas e norteiam os princpios ticos e polticos do sistema, ao lado de normas que dependem de outras para produzirem efeitos, como as de princpio institutivo, alm daquelas que, sobretudo nos pases subdesenvolvidos, tm a funo simblica e estratgica de fazer os destinatrios acreditarem que esto efetivamente positivadas31.

    2.3 DOS PRESSUPOSTOS PARA A JUDICIALIZAO DA POLTICA EM UM CONTEXTO DE ABERTURA DO TEXTO CONSTITUCIONAL E AMPLA LIBERDADE DE SEUS INTRPRETES

    Conforme mencionado anteriormente, pretendia-se, no cenrio positivista-legalista, que o juiz se restringisse a revelar normas jurdicas pr-existentes editadas formalmente pelo Poder Legislativo. No se admitia que o juiz atuasse de modo criativo por ocasio da interpretao dos enunciados legais, pois estes eram considerados de plano perfeitos, prontos e acabados. A aplicao do direito deveria ser feita nica e exclusivamente a partir do desenvolvimento de processos silogsticos formais por parte dos magistrados.

    A criatividade judicial era rechaada veementemente, vigorando uma verdadeira superioridade da legislao ante a jurisdio. Em conseqncia disto o Judicirio possua um limitado mbito de atuao, na maioria das vezes circunscrito a resoluo de conflitos privados.

    Com o passar dos anos, contudo, ocorreu a superao deste paradigma mediante o reconhecimento de que a criatividade judicial indissocivel da

    _______________

    31 ADEODATO, Joo Maurcio. Jurisdio constitucional brasileira: situaes e limites. In: Direito

    constitucional em evoluo: perspectivas, Paulo Gomes Pimentel Jnior (Coord.). Curitiba: Juru, 2007. p. 110.

  • 30

    interpretao dos preceitos normativos. Percebeu-se que o texto legal diferente da norma, ou seja, que seus

    enunciados servem unicamente de base para a interpretao jurdica e muitas vezes admitem, inclusive, mais de uma possibilidade semntica.

    Diferenciou-se, ento, enunciado e norma; o primeiro como sendo o texto legal escrito e a segunda como o dispositivo elaborado pelo operador do direito a partir da interpretao de um ou vrios enunciados.

    Verificou-se, desta feita, que, apesar de no caber ao Judicirio a construo de enunciados tarefa, esta, tpica do Legislativo fatalmente constri, no exerccio de suas prerrogativas, normas jurdicas.

    Andr Ramos Tavares afirma, nesse sentido, que:

    regra geral, os enunciados constituem verdadeiras barreiras interpretativas para o operador do Direito e, em particular, para o Tribunal Constitucional, em sua atividade de elucidao da norma vigente. Assim, devem ser analisados () como limites interpretao da Constituio32

    Constatou-se, em suma, que h, tambm, participao do juiz no processo de construo da norma, a qual no pode ser simplesmente extrada do texto legal como uma obra pronta e finalizada. O enunciado normativo, o texto previamente elaborado pelo legislador (ordinrio ou constituinte), apenas fornece um ponto de partida para a construo da norma no caso concreto.

    Tal processo de reconhecimento da criatividade judicial foi altamente influenciado, conforme mencionado acima, pela insero de normas gerais ou abertas nas Constituies e demais diplomas normativos.

    Afirma-se, nesta medida, que:

    a consagrao de normas constitucionais de carter aberto (princpios) limita a atuao da lei e demanda um processo de preenchimento, a ser implementado pelo rgo incumbido de zelar pela guarda da Constituio33.

    Eis que se avoluma a importncia dos membros do Poder Judicirio na definio ou padronizao da interpretao das normas constitucionais, _______________

    32 TAVARES, Andr Ramos. Justia Constitucional e suas fundamentais funes. In: Revista de

    Informao Legislativa, v.43, n. 171, p. 19-47, jul./set. 2006. p. 29. 33

    TAVARES, Andr Ramos. Justia Constitucional e suas fundamentais funes. Revista de Informao Legislativa, v.43, n. 171, p. 19-47, jul./set. 2006. p. 29.

  • 31

    especialmente daqueles que ocupam cadeiras junto ao Supremo Tribunal Federal: Conforme destacado por Joo Maurcio Adeodato:

    o ltimo plano para fixar o contedo da especfico do texto constitucional e, por extenso, de qualquer texto normativo, transformando-os em norma jurdica, do tribunal, dos juzes, pois so eles que eliminam a discutibilidade do conflito ao fazerem a coisa julgada34.

    Nesse cenrio, o Judicirio, que por muitos anos se viu compelido a se posicionar de forma neutra perante a sociedade, mantendo-se, na medida do possvel, distante ou alheio aos anseios sociais, passa a se apresentar como uma instituio central nas democracias contemporneas.

    Conforme mencionado por Cappelletti, a necessidade de outorgar maior liberdade aos juzes, em decorrncia da mutao do papel do Estado no sc. XX com o advento do Estado do Bem-Estar, ou Welfare State, fez com que o Judicirio assumisse uma postura ativa frente sociedade, muito diferente daquela que at ento vinha apresentando no paradigma jurdico legalista35.

    As questes polticas, que at ento eram deliberadas e decididas exclusivamente no mbito dos poderes Legislativo e Executivo comeam a ser amplamente influenciadas por decises judiciais, e so aladas esfera do poder Judicirio.

    A ampliao da discricionariedade judicial por ocasio da interpretao dos textos legais, especialmente por ocasio da prestao da jurisdio constitucional, acabou por transformar o processo judicial em uma importante arena de deliberao poltica.

    A evoluo desta nova forma de aplicar o Direito culminou, no final do sc. XX, no surgimento de um cenrio ideal para a manifestao de um fenmeno que mais tarde passou a ser chamado de judicializao da poltica, o qual ser estudado no captulo vindouro.

    _______________

    34 ADEODATO, Joo Maurcio. Jurisdio constitucional brasileira: situaes e limites. In: Direito

    constitucional em evoluo: perspectivas, Paulo Gomes Pimentel Jnior (Coord.). Curitiba: Juru, 2007. p. 110.

    35 CAPPELLETTI, Mauro. Juzes legisladores?. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1993. p. 34.

  • 32

    3 DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL, JUDICIALIZAO DA POLTICA E ATIVISMO JUDICIRIO

    3.1 DIMENSES DA JUDICIALIZAO DA POLTICA

    A expresso judicializao da poltica foi inserida no debate jurdico e poltico na dcada de 90, a partir da obra de Neal Tate e Torbjrn Vallinder, intitulada The Global Expansion of Judicial Power. Tais autores observaram, ao longo dos anos que antecederam o novo milnio, que a recorrncia de escndalos envolvendo os representantes dos poderes Executivo e Legislativo afetou consideravelmente a confiana da populao em seus membros.

    De acordo com Tate e Vallinder, a populao passou a identificar o Judicirio como um poder que, se no integralmente probo, ao menos mais confivel que os demais poderes. Em ntida remisso obra de George Orwel eles mencionaram: all the three branches may be regarded as corrupt, but some are more corrupt than others36.

    Na medida em que o Judicirio recebeu a confiana da populao, tornou-se, um porto seguro para os cidados contra os abusos praticados nas tradicionais arenas de deliberao poltica.

    Os anseios da populao passaram, assim, a serem depositados sobre o Judicirio em um contexto no qual o Executivo mostrava-se impotente para gerir com um mnimo de eficcia toda a sua burocracia e o Legislativo passou a ser acusado de ser fisiolgico e demagogo37.

    Seja pela maior crena nos integrantes do Poder Judicirio ou na forma segundo a qual ele opera, em tese orientada segundo a lgica da melhor argumentao e no de acordo com os jogos de interesses e barganhas polticas, o fato que se verificou a expanso do Judicirio e de seu modo de decidir sobre a esfera de atuao dos demais poderes, fenmeno este que passou a ser designado como judicializao da poltica.

    _______________

    36 TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn. The global expansion of judicial power. New York: New

    York University Press, 1995. p. 3. 37

    CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Judicirio e a democracia no Brasil. Revista USP, n. 21, So Paulo: 1994. p. 120.

  • 33

    Pioneiros no estudo deste fenmeno, Tate e Vallinder, apontam a sua materializao sobre duas diferentes frentes:

    a) por meio de uma submisso mais recorrente de questes polticas apreciao do Judicirio, fato este que acaba por torn-lo um participante ativo do jogo poltico estatal;

    b) atravs da adoo de procedimentos judiciais de deciso nas arenas polticas tradicionais, ou seja, do Legislativo e Executivo

    Nesse sentido oportuno trazer a baila os comentrios de tais autores:

    thus the judicialization of politics should normally mean either: (1) the expansion of the province of the courts ou the judges at the expense of the politicians and/or the administrators, that is, the transfer or decision making rights from the legislature, the cabinet, or the civil service to the courts or, at lest, (2) the spread of judicial decision-making methods outside the judicial province proper. In summing up we might say that judicialization essentially involves turning something into a form of judicial process38.

    O fenmeno da judicializao da poltica apresenta, desta feita, dois contextos. O primeiro diz respeito expanso das reas de atuao dos tribunais por intermdio da reviso judicial de aes legislativas e executivas, o segundo, mais difuso, diz respeito introduo ou expanso dos procedimentos judiciais junto aos demais poderes: Executivo e Legislativo39.

    No presente estudo focalizar-se- a anlise do primeiro contexto, referente ao processo de transferncia para o Judicirio de atribuies tradicionalmente afeitas aos Poderes Executivo e Legislativo, fato este que implica, em ltima anlise, em uma reviso do jogo democrtico.

    Luis Roberto Barroso afirma, nesta toada, que:

    judicializao significa que algumas questes de larga repercusso poltica ou social esto sendo decididas por rgos do Poder Judicirio, e no pelas instncias polticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo em cujo mbito se encontram o Presidente da Repblica, seus ministrios e a administrao pblica em geral. Como intuitivo, a judicializao envolve uma transferncia de poder para juzes e tribunais, com alteraes significativas na linguagem, na argumentao e no modo de participao da

    _______________

    38 TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn. The global expansion of judicial power. New York: New

    York University Press, 1995. p. 13. 39

    MACIEL, Dbora Alves; KOERNER, Andrei. Sentidos da judicializao da poltica: duas anlises. Lua Nova, So Paulo, n. 57, 2002. p. 114.

  • 34

    sociedade40.

    Ernani Carvalho verbera que so mltiplas as causas e condies para o desencadeamento do processo de judicializao da poltica, sendo que as primeiras, segundo ele, demandam uma anlise contextualizada.

    Carvalho menciona, nesse sentido, que para os pases desenvolvidos a judicializao da poltica foi causada pela queda do comunismo e o fim da Unio Sovitica fatores que implicaram na hegemonia do capitalismo e na difuso do modelo norte-americano de Judicirio forte e do surgimento dos tribunais constitucionais. Nos pases subdesenvolvidos, ao seu turno, Ernani menciona que a principal causa foi a busca de um judicirio forte e independente para assegurar o respeito s regras do jogo Capitalista atendendo aos interesses econmicos globais. Finalmente, no que diz respeito realidade europia, afirma o autor que as principais causas teriam sido a crise do positivismo jurdico, o aperfeioamento das instituies judicirias e a constitucionalizao dos direitos fundamentais41.

    No que se refere ao contexto brasileiro, verifica-se que dentre os fatores que ensejaram a expanso do Poder Judicirio e, nesta toada, impulsionaram a Judicializao da Poltica, podem ser citados a redemocratizao do pas e a promulgao da Constituio de 1988, farta na previso de direitos e garantias fundamentais.

    Tais fatores, somados a tomada de conscincia por parte da populao em geral com relao aos seus direitos que, no obstante prometidos pelo Estado Social brasileiro no foram implementados por intermdio de polticas pblicas estatais, implicaram no acrscimo da demanda judicial, tendo em vista que os cidados passaram a buscar no Judicirio a obteno dos direitos proclamados pela Constituio.

    Conforme mencionado por Amandino Teixeira Nunes Machado, o fenmeno da judicializao da justia revela que:

    os cidados buscam limitar a atuao dos governantes, valendo-se dos instrumentos constitucionais postos sua disposio e socorrendo-se do

    _______________

    40 BARROSO, Luis Roberto. Judicializao, ativismo judicial e legitimidade democrtica.

    Disponvel em: . Acesso em: 03 nov. 2009. p. 3.

    41 CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicializao da poltica no Brasil: apontamentos

    para uma nova abordagem. Revista de Sociologia Poltica, n. 23, Curitiba, 2004. p. 116 e 117.

  • 35

    Poder Judicirio, dentro do quadro poltico-institucional das democracias contemporneas. A ampliao do nmero de aes judiciais contra os atos do Poder Pblico integra o jogo democrtico das sociedades atuais42.

    Verifica-se, nesta toada, que a nova leitura dada as Constituies e as novas feies por elas assumidas ao longo do sc. XX foram essenciais para que o Judicirio se libertasse das amarras do modelo legalista de Direito e assumisse uma postura mais ativa frente interpretao do Direito, desencadeando o fenmeno da judicializao da poltica.

    O reconhecimento da normatividade dos princpios, direitos e garantias previstos e inseridos nos textos constitucionais mostrou-se fundamental para esta mudana estrutural da cincia jurdica contempornea.

    Conforme ressaltado por Amandino Teixeira Nunes Junior, a expanso do controle judicial sobre os demais poderes reflete, em grande parte, o fato de que as tcnicas de controle de constitucionalidade desenvolvidas pelos tribunais nas democracias contemporneas tm ampliado seu domnio sobre os resultados dos processos legislativos e das polticas pblicas43.

    Por ser composta por diversos dispositivos abertos, cujas estruturas normativas apresentam amplo grau de generalidade e abstrao, a Constituio outorga aos juzes um elevado grau de discricionariedade por ocasio de sua aplicao.

    A consagrao de normas constitucionais de carter aberto (princpios) limita a atuao da lei e demanda um processo de preenchimento, a ser implementado pelo rgo incumbido de zelar pela guarda da Constituio44.

    No que concerne realidade nacional de se ver que a Constituio da Repblica de 1988, tambm chamada de Constituio Cidad, representou um importante marco para que o Poder Judicirio assumisse um novo e importante papel na democracia brasileira, pois previu uma srie de novos direitos e garantias fundamentais em seu texto e, ainda, trouxe diversas inovaes na seara do controle

    _______________

    42 NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. A constituio de 1988 e a judicializao da poltica no

    Brasil. Revista de informao legislativa, v. 45, n. 178, abr./jun. 2008. p. 178. 43

    NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. A constituio de 1988 e a judicializao da poltica no Brasil. Revista de informao legislativa, v. 45, n. 178, abr./jun. 2008. p. 160.

    44 TAVARES, Andr Ramos. Justia Constitucional e suas fundamentais funes. Revista de

    Informao Legislativa, v.43, n. 171, p. 19-47, jul./set. 2006. p. 29.

  • 36

    judicial de constitucionalidade. Dentre as inovaes da Carta Magna de 1988 possvel citar a criao da

    ao direita de inconstitucionalidade por omisso, a ampliao do rol de legitimados a proposio da ao direta de inconstitucionalidade, a criao do mandado de injuno para viabilizar o exerccio de direitos em face da ausncia de norma regulamentadora e a criao da ao declaratria de constitucionalidade.

    Todas estas alteraes do novo texto constitucional impulsionaram o Judicirio a atuar como um poder poltico junto sociedade brasileira. Questes polticas, que at ento eram deliberadas e decididas exclusivamente no mbito dos poderes Legislativo e Executivo passaram, dentro desta nova conjuntura, a tambm sofrer ingerncias do Poder Judicirio.

    Gisele Cittadino bem observa, nesse sentido, que:

    a ampliao do controle normativo do Poder Judicirio no mbito das democracias contemporneas tema central de muitas das discusses que hoje se processam na cincia poltica, na sociologia jurdica e na filosofia do direito. O protagonismo recente dos tribunais constitucionais e cortes supremas no apenas transforma em questes problemticas os princpios da separao dos poderes e da neutralidade poltica do Poder Judicirio, como inaugura um tipo indito de espao pblico, desvinculado das clssicas instituies poltico-representativas45.

    De acordo com Ernani Rodrigues de Carvalho a Constituio de 1988 foi fundamental para o desencadeamento do fenmeno de judicializao da poltica no pas. Isto porque, segundo ele, a partir dela que se passou a verificar a redemocratizao do pas, uma efetiva separao entre os poderes e o reconhecimento formal e material dos direitos polticos pela Constituio46.

    Alm disso a Carta de 1988 foi responsvel por criar novos direitos, prever novas garantias fundamentais e instituir instrumentos inditos para garantir que tais direitos pudessem ser exercidos na prtica. A partir dela tambm foram alados ao mbito constitucional uma srie de assuntos que antes estavam sendo disciplinados exclusivamente no mbito infraconstitucional.

    A par disso, tambm se verifica uma tendncia contempornea de utilizao _______________

    45 CITTADINO, Gisele. Judicializao da Poltica, Constitucionalismo Democrtico e Separao de

    Poderes. In A Democracia e os Trs Poderes no Brasil. LUIZ WERNECK VIANNA, Organizador. Belo Horizonte, Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002. p. 17.

    46 CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicializao da poltica no Brasil: apontamentos

    para uma nova abordagem. Revista de Sociologia Poltica, n. 23, Curitiba, 2004. p. 117-120.

  • 37

    dos tribunais por grupos de interesse ou partidos de oposio. Estes passaram a enxergar o Judicirio como um atalho ou uma instncia recursal para a consecuo de objetivos seus que tradicionalmente vinham sendo deliberados nas instncias polticas tradicionais.

    Mencione-se, nesse sentido, a partir da Constituio de 1988 ocorreu a ampliao do rol de legitimados a propor aes diretas de controle de constitucionalidade categoria na qual foram inseridos os partidos com representao no Congresso Nacional.

    Indubitavelmente a incluso de partidos polticos dentre o rol de legitimados a propor a ao direta de inconstitucionalidade, se mostra de grande valia na medida em que proporciona as minorias parlamentares, a efetiva possibilidade oposio aos grupos partidrios hegemnicos no Congresso Nacional. Conforme destacado por Clmerson Merlin Clve:

    [...] a legitimidade ativa dos partidos vem contribuir para o aprimoramento do Estado Democrtico de Direito, uma vez que fortalece o direito de oposio. Ora, a maioria no todo o Parlamento. H as minorias ali representadas que, devidamente articuladas, formam o bloco de oposio. Cabe a esta, a oposio, propor modelos polticos alternativos e, mais do que isso, provocar a ao fiscalizadora do Parlamento. Sabe-se dos efeitos que essas atuaes produzem, mormente no contexto de uma sociedade plural que admite, sem maiores restries, a liberdade de imprensa. A Constituio de 1988 preocupou-se com o direito de oposio, a comear quando inscreve entre os fundamentos da repblica o pluralismo poltico (art. 1 da CF)47.

    de se ver, contudo, que tal faculdade acaba sendo por vezes utilizada abusivamente pelos partidos polticos de oposio, os quais, ao invs de utilizarem tais faculdades para a consecuo de seus programas e metas acabam lanando mo ao ajuizamento de aes diretas de constitucionalidade para tentar atravancar os programas de governo de seus adversrios polticos.

    3.2 DIMENSES DO ATIVISMO JUDICIAL

    _______________

    47 CLVE, Cleverson Merlin. A Fiscalizao Abstrata da Constitucionalidade no Direito

    Brasileiro. 2 ed. So Paulo: RT, 2000. p. 171-172.

  • 38

    O ativismo poltico o segundo fenmeno que merece ser analisado para que o protagonismo do Supremo Tribunal Federal possa ser compreendido de modo integral. O ativismo judicial, da mesma forma que a Judicializao da Poltica, tambm um fenmeno complexo e multifacetado.

    Assim como a judicializao da poltica, a expresso ativismo judicial tambm apresenta diferentes significaes. Do ponto de vista tradicional ativismo poltico pode ser considerado como um compromisso assumido pelos juzes e tribunais no sentido de atuarem de forma pr-ativa no exerccio da Jurisdio, reconhecendo, protegendo e concretizando direitos fundamentais.

    Ativismo tambm pode, por outro lado, ser empregado de modo pejorativo, fazendo meno a um aspecto comportamental dos magistrados no sentido de dar prevalncia as suas vises pessoais por ocasio da interpretao das normas jurdicas.

    Independentemente da conotao empregada verifica-se que, em regra, o ativismo judicial est relacionado com prticas como as de:

    a) desafiar os atos dos demais poderes que sejam de constitucionalidade defensvel;

    b) resolver legislar no exerccio de suas funes jurisdicionais; c) julgar com a finalidade de alcanar um resultado pr-determinado;

    Luis Roberto Barroso cita, no mesmo sentido, trs exemplos de condutas reveladoras do ativismo judicial:

    (i) a aplicao direta da Constituio a situaes no expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestao do legislador ordinrio; (ii) a declarao de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critrios menos rgidos que os de patente e ostensiva violao da Constituio; (iii) a imposio de condutas ou de abstenes ao Poder Pblico, notadamente em matria de polticas pblicas48.

    Uma das principais frentes a partir da qual o ativismo judicial se revela decorre da ampla e varivel significao que pode ser atribuda aos dispositivos normativos abertos que esto inseridos no texto constitucional.

    Explica-se: ao resolver regulamentar um dispositivo constitucional aberto _______________

    48 BARROSO, Luis Roberto. Judicializao, ativismo judicial e legitimidade democrtica.

    Disponvel em: . Acesso em: 03 nov. 2009. p. 6.

  • 39

    como este, o Legislador se v compelido a realizar uma opo poltica por um dos diferentes significados que lhe poderiam ser atribudos.

    Feita esta opo poltica pelo legislador, o Judicirio poder ser instado a sobre ela se manifestar, ocasio na qual poder assumir duas posturas diametralmente opostas.

    De um lado poder adotar uma postura de auto-limitao, respeitando a deciso efetuada pelo Legislador, que simplesmente optou por uma das diferentes interpretaes possveis a partir do dispositivo aberto. De outro, contudo, poder optar por invalidar a escolha poltica do legislador, atribuindo outra interpretao plausvel ao dispositivo aberto.

    Caso opte pela segunda via, declarando a inconstitucionalidade de leis de constitucionalidade defensvel ou plausvel, estar revelando, em suma, pouca deferncia s atividades desempenhadas pelos demais Poderes, fato este que poder ensejar, inclusive, uma ofensa ao princpio da separao dos poderes.

    O ativismo judicial tambm se mostra presente quando os juzes, ao invs de se restringirem a revelar o sentido implcito do texto normativo, buscam lhe dar conotao diversa da pretendida. Consubstancia-se, neste caso, o desrespeito aos limites impostos pelo texto normativo, seja pela deturpao de seu significado ou pela imposio de limites que nele no implcitos.

    Verifica-se, neste sentido, que tanto considerado ativista o magistrado ou tribunal que freqentemente invalida as aes normativas dos demais Poderes estatais, quando aquele que se pe a suprir as omisses destes Poderes por intermdio do exerccio da Jurisdio.

    Sob prisma jurisdicional o ativismo se revela, portanto, atravs da ampliao da competncia do Judicirio por meio de suas prprias decises. Nesse sentido que se proclama o ativismo do Supremo Tribunal, o qual est, principalmente aps a Constituio de 1988, redefinindo os limites de sua prpria competncia.

    importante mencionar, entretanto, que a expanso da atuao do Judicirio no um fato novo no contexto mundial. Conforme destacado por Oscar Vilhena Vieira:

    a expanso da autoridade judicial comeou a ser detectada, j no incio do sculo passado, pelos realistas nos Estados Unidos, a partir de uma srie de decises liberais da Suprema Corte, no que se convencionou chamar de era Lochner. Nesse perodo, a Corte passou a tomar decises que

  • 40

    substituam a vontade do legislador, por intermdio da doutrina do devido processo legal substantivo. Por essa doutrina, a Corte no apenas se limita a verificar a constitucionalidade formal de um ato normativo, mas tambm a sua razoabilidade face aos princpios da constituio. No caso Lochner, a Corte invalida legislao de cunho social, produzida pelo Estado de Nova York, em face de princpios implcitos pretensamente na Constituio49.

    Destaque-se, alm disso, que a expanso da atuao judicial nos pases adotantes da common law apresenta causas diferentes da expanso verificada nos pases seguidores da civil law.

    Nos pases adotantes da civil law o direito identificado com a lei, ao passo que nos adotantes da commom law a lei considerada como uma mera fonte subsidiria frente ao direito criado pelos prprios juzes.

    Enquanto na commom law, portanto, os magistrados so impulsionados a esclarecer, orientar e modernizar o direito a partir de suas decises, as quais vinculam os demais juzes em face do princpio do stare decisis, nos pases adotantes da civil law, a criao judicial viabilizada a partir da incorporao de normas abertas nos textos constitucionais e pelas subseqentes interpretaes construtivistas que sobre elas so feitas.

    Gisele Cittadino menciona, nesse sentido, que:

    expanso da ao judicial marca fundamental das sociedades democrticas contemporneas. O protagonismo do Poder Judicirio pode ser observado tanto nos Estados Unidos como na Europa, ainda que nos pases da common law esse ativismo judicial seja mais favorecido pelo processo de criao jurisprudencial do direito. De qualquer forma, mesmo nos pases de sistema continental, os textos constitucionais, ao incorporar princpios, viabilizam o espao necessrio para interpretaes construtivistas, especialmente por parte da jurisdio constitucional, j sendo at mesmo possvel falar em um direito judicial50.

    Oportuno mencionar, neste ponto, conforme explicitado por Cappelletti, que, em virtude da inevitvel intensificao da criatividade da funo judiciria em nossa poca, est ocorrendo uma aproximao entre as duas grandes famlias jurdicas:

    _______________

    49 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV. So Paulo, jul./dez. de 2008.

    Disponvel em: . Acesso em: 03 de setembro de 2009. p.443

    50 CITTADINO, Gisele. Poder Judicirio, Ativismo Judicirio e Democracia. Alceu, v.05, n.09, p.105-

    113, dez. 2004. p. 105.

  • 41

    civil law e commom law51. Por implicarem em uma maior discricionariedade dos juzes por ocasio da

    prestao da atividade jurisdicional, a insero de normas gerais nos diplomas normativos contemporneos est amplamente relacionada com o seu eventual ativismo.

    3.3 ATIVISMO JUDICIAL X JUDICIALIZAO DA POLTICA

    Importante destacar, neste ponto, que no obstante muito semelhantes, ativismo judicial e judicializao da poltica so fenmenos diversos. Em que pese possam caminhar lado a lado possuem causas e, sobretudo, implicaes muito diferentes.

    A judicializao da poltica decorre de uma estruturao poltica, jurdica e institucional que implica na transferncia de competncias do mbito de atuao dos Poderes Legislativo e Executivo para o Judicirio.

    O Ativismo judicial, por sua vez, decorre do comportamento dos juzes e tribunais que resolvem se imiscuir na esfera de competncia dos demais Poderes.

    Com isso no quer afirmar que a judicializao e ativismo sejam fenmenos contrapostos. O oposto do ativismo judicial, em verdade, a auto-conteno judicial. A auto-conteno mostra-se presente quando os juzes e tribunais restringem algumas potencialidades hermenuticas constitucionais em respeito esfera de atuao das instncias polticas tradicionais. J o ativismo, do outro lado, implica no aproveitamento das diferentes possibilidades de interpretao da norma sem que se passe a percorrer o caminho da livre criao do Direito52.

    A insero do magistrado em um contexto de judicializao da poltica no implica na necessidade de ele atuar de forma ativista. Judicilizao e ativismo apresentam caractersticas semelhantes mas diferentes causas e implicaes.

    Luis Roberto Barroso afirma, nesse sentido, que:

    _______________

    51 CAPPELLETTI, Mauro. Juzes legisladores?. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1993. p. 116.

    52 BARROSO, Luis Roberto. Judicializao, ativismo judicial e legitimidade democrtica.

    Disponvel em: . Acesso em: 03 nov. 2009. p. 7.

  • 42

    a judicializao e o ativismo judicial so primos. Vm, portanto, da mesma famlia, freqentam os mesmos lugares, mas no tm as mesmas origens. No so gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicializao, no contexto brasileiro, um fato, uma circunstncia que decorre do modelo constitucional que se adotou, e no um exerccio deliberado de vontade poltica. [...] Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretenso, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matria. J o ativismo judicial uma atitude, a escolha de um modo especfico e proativo de interpretar a Constituio, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situaes de retrao do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe poltica e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva53.

    O mesmo autor faz a ressalva, contudo, de que, no contexto brasileiro, a judicializao no uma opo ideolgica do Poder Judicirio, mas uma decorrncia lgica dos preceitos da prpria Constituio. A Carta Poltica de 1988 composta por inmeros preceitos normativos abertos e por conceitos jurdicos indeterminados, os quais, em ltima anlise, possuem diversas interpretaes possveis. Deste modo, em sendo o Judicirio e especificamente no caso da Constituio o Supremo Tribunal Federal, o responsvel pela escolha de uma destas interpretaes admissveis, impossvel que tal funo seja desempenhada de forma minimalista.

    No mesmo sentido se manifestou Maria Celina B. Moraes, para a qual:

    no Estado Democrtico de Direito, delineado pela Constituio de 1988, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo pblico-privado perdeu definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais de construo de uma sociedade livre, justa e solidria e de erradicao da pobreza colocaram a pessoa humana isto , os valores existenciais no vrtice do ordenamento jurdico brasileiro, de modo que tal o valor que conforma todos os ramos do Direito54.

    A constituio da Repblica manifesta em sua inteno de promover a concretizao da dignidade da pessoa humana, elencando-a, inclusive, em seu Art. 1, III, como um dos fundamentos do Estado Brasileiro. No mesmo sentido a Carta Magna incisiva ao proclamar a necessidade de construo de uma sociedade

    _______________

    53 BARROSO, Luis Roberto. Judicializao, ativismo judicial e legitimidade democrtica.

    Disponvel em: . Acesso em: 03 nov. 2009. p. 6.

    54 TEPEDINO, Maria Celina B. Moraes. A Caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista

    Estado, Direito e Sociedade. Disponvel em: . Acesso em 12/08/2007. p. 6.

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    digna, justa e solidria, visto que tal estado ideal considerado em seu art. 3, I como sendo um dos objetivos fundamentais da Repblica. Ressalte-se, ainda, que em seus artigos 170 e 193 a Constituio tambm previu, respectivamente, que a ordem econmica deve estar configurada de modo a assegurar existncia digna para todos e que o bem-estar e a justia social so objetivos da ordem social55.

    A promoo da dignidade humana deve ser vista, neste diapaso, mais do que um objetivo, um verdadeiro pressuposto para a atuao dos Poderes estatais. Ao Judicirio, portanto, e especificamente ao STF ao qual foi incumbida a misso de precipuamente guardar a Constituio , no existe a faculdade de no concretiz-la.

    Tal como evidenciado por Claudia Maria Barbosa:

    o desenvolvimento em sua acepo mais ampla e a dignidade humana so objetivos prioritrios da sociedade brasileira, e nesta condio devem ser perseguidos pelas aes governamentais, pela sociedade civil, e tambm pelo Poder Judicirio, a quem cabe zelar pelo respeito e, por conseqncia, pela observncia das normas constitucionais. Lutar por eles no , ou no deveria ser, uma opo poltica, mas uma obrigao constitucional. nesse contexto que o papel do sistema de justia, e do Poder Judicirio especificamente, torna-se essencial na realizao do chamado Estado Democrtico de Direito56.

    Em decorrncia da assuno desta nova perspectiva promocional, orientada para a concretizao e efetiva fruio de direitos, a linha de atuao do Judicirio brasileiro, que at o advento da Constituio de 1988 era inequivocamente no sentido da auto-conteno, passou, a partir de ento, a exibir um vis claramente ativista.

    O prximo captulo ser dedicado a ilustrao e anlise desta modificao paradigmtica verificada no Judicirio brasileiro. Para tal desiderato optou-se por eleger alguns casos de ampla repercusso junto ao rgo de cpula do Judicirio nacional e principal responsvel pelo exerccio do controle de constitucionalidade: o Supremo Tribunal Federal.

    Importante mencionar, neste ponto, que a opo pela anlise de julgamentos deste Tribunal se deu pelo fato de que a judicializao da poltica e o ativismo _______________