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Cultura popular: narrativas e bordados tecem história, memória e arte no sertão do Ceará Cláudia Matos PEREIRA Doutoranda em Imagem e Cultura na Escola de Belas Artes - EBA-UFRJ Programa de Pós Graduação em Artes Visuais - PPGAV Universidade Federal do Rio de Janeiro - Brasil [email protected] Resumo Este estudo tem como objetivo refletir o entrelaçamento entre história, memória, narrativas e arte em um cenário brasileiro sertão do Cariri, Juazeiro do Norte, Ceará e como a tradição popular contribui para a construção e fortalecimento da identidade e da cidadania. Diante da globalização, percebe-se o deslocamento da visão macro para a visão local, regional. Há ênfase para a valorização do que é diferente, do tradicional e do que mantém um continuum cultural marcado por encontros e coexistências presentes nas diversas realidades brasileiras. Histórias narradas em bordados trazem lembranças de outros tempos, resgatam histórias das famílias e das comunidades, por meio do Griô. Desenhos e narrativas da própria família, em meio ao imaginário e a recriações sobrepostas às narrativas de outras pessoas, fazem com que o bordado transforme-se em arte nas mãos das crianças da comunidade. Este é um celeiro onde as interações verbais podem ser consideradas um produto social contemporâneo. Assim, as verdadeiras imagens do passado perpassam o presente, mesclam-se ao cotidiano como possibilidade de transformação social. Palavras-chave: Cultura popular, Griô, Memória, História, Narrativas. Abstract This his study has as objective to reflect the linking among story, memory, narration and art into a Brazilian scenery - interior of Cariri, Juazeiro do Norte, Ceará - as well as to reflect how the popular tradition can contribute to the construction and solidification of identity and citizenship. With the globalization it can be perceived the dislocation from the macro vision to the local one - the regional vision. There is some emphasis in valorizing different and tradicional aspects and also in valorizing those aspects that maintain a cultural continuum marked by meetings and coexistences which have been present in several Brazilian realities. Stories reported in embroideries bring remembrances of other times, ransom stories of families and communities through the Griô. Drawings and narrations of the own family, joined with the imaginary and reinventions superimposed to the narrations of another people, transform the embroidery in art at the children's hands of the community. This is a cellar where the verbal interactions can be considered a contemporary social product. So that the true images of the past pass by the present, mix with the quotidian as a possibility of social transformation. Keywords: Popular culture, Griô, Memory, Story, Narration.

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Resumo Keywords: Popular culture, Griô, Memory, Story, Narration. Abstract Palavras-chave: Cultura popular, Griô, Memória, História, Narrativas.

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Cultura popular: narrativas e bordados tecem história, memória e arte no sertão do Ceará

Cláudia Matos PEREIRA Doutoranda em Imagem e Cultura na Escola de Belas Artes - EBA-UFRJ

Programa de Pós Graduação em Artes Visuais - PPGAV Universidade Federal do Rio de Janeiro - Brasil

[email protected]

Resumo Este estudo tem como objetivo refletir o entrelaçamento entre história, memória, narrativas e arte em um cenário brasileiro – sertão do Cariri, Juazeiro do Norte, Ceará – e como a tradição popular contribui para a construção e fortalecimento da identidade e da cidadania. Diante da globalização, percebe-se o deslocamento da visão macro para a visão local, regional. Há ênfase para a valorização do que é diferente, do tradicional e do que mantém um continuum cultural marcado por encontros e coexistências presentes nas diversas realidades brasileiras. Histórias narradas em bordados trazem lembranças de outros tempos, resgatam histórias das famílias e das comunidades, por meio do Griô. Desenhos e narrativas da própria família, em meio ao imaginário e a recriações sobrepostas às narrativas de outras pessoas, fazem com que o bordado transforme-se em arte nas mãos das crianças da comunidade. Este é um celeiro onde as interações verbais podem ser consideradas um produto social contemporâneo. Assim, as verdadeiras imagens do passado perpassam o presente, mesclam-se ao cotidiano como possibilidade de transformação social. Palavras-chave: Cultura popular, Griô, Memória, História, Narrativas. Abstract This his study has as objective to reflect the linking among story, memory, narration and art into a Brazilian scenery - interior of Cariri, Juazeiro do Norte, Ceará - as well as to reflect how the popular tradition can contribute to the construction and solidification of identity and citizenship. With the globalization it can be perceived the dislocation from the macro vision to the local one - the regional vision. There is some emphasis in valorizing different and tradicional aspects and also in valorizing those aspects that maintain a cultural continuum marked by meetings and coexistences which have been present in several Brazilian realities. Stories reported in embroideries bring remembrances of other times, ransom stories of families and communities through the Griô. Drawings and narrations of the own family, joined with the imaginary and reinventions superimposed to the narrations of another people, transform the embroidery in art at the children's hands of the community. This is a cellar where the verbal interactions can be considered a contemporary social product. So that the true images of the past pass by the present, mix with the quotidian as a possibility of social transformation. Keywords: Popular culture, Griô, Memory, Story, Narration.

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1. Introdução

arte manifesta afloramentos de indícios sociais - modos de vida plurais característicos de uma cultura. A realidade social é repleta de falas, silêncios e invisibilidades que se expressam na cultura local. A arte popular pode ser o eco de

transmissão destes valores regionais em consonância com a multiplicidade visível e extensa presente no Brasil. A arte popular pode ser um meio de recriar e transformar realidades? A Escola de Ensino Fundamental Dom Vicente de Paula Araújo Matos conquistou reconhecimento a nível nacional com o Projeto Griô Cultura Viva, mediante a valorização dos mestres da comunidade, ao contar a história de Juazeiro, por meio de bordados e xilogravura, com alunos do 5º ao 9º ano no processo do Panô. O termo Griô – adaptação ao português da palavra original francesa griot – refere-se aos contadores de histórias, comunicadores, poetas populares – bibliotecas vivas da tradição dos povos do noroeste africano, colonizados pela França. A ação Griô estimula a tradição oral nas comunidades realizada por mestres ou contadores - sujeitos que repassam conhecimentos de antepassados. Esta prática e as manifestações da cultura tradicional reforçam a vocação artística do Nordeste de forma expressiva no sertão do Cariri. Parcerias foram estabelecidas entre comunidade escolar, Secretaria Municipal de Educação, Ministério de Educação e Cultura e ONG Juriti1. Conforme afirma a coordenadora geral Cristina Diôgo:

O Instituto de Ecocidadania Juriti é uma Organização Não Governamental criada em 1998 que desenvolve projetos políticos educativos no campo social, cultural, ambiental e econômico, efetivando o sonho de cidadania para crianças, adolescentes e suas famílias, promovendo a construção de uma nova cultura de garantia de direitos, articulando diversos mundos e horizontes com o compromisso efetivo da construção de resultados duradouros, consolidando uma tecnologia social eficaz baseada na experiência prática, na reflexão e no aprimoramento técnico.

Pesquisas e publicações trazem a temática Griô sob perspectivas pedagógicas. O objeto de análise deste estudo caminha para outro viés de abordagem, decorrente de um olhar investigativo e multicultural que busca não somente a relação entre ensino/aprendizagem, mas principalmente entre arte popular/narrativas na construção de imaginários, história e memórias em um espaço de convergência. Pretende-se abordar o papel da arte popular como ponte para percepção de ações interculturais em que as diversidades tornam-se recurso e força na criação da identidade e conscientização da cidadania. Assinala-se uma reflexão e um novo prisma sobre a possibilidade desta manifestação da arte popular encontrar-se em consonância com dimensões contemporâneas da arte. 2. Juazeiro do Norte Juazeiro – palavra híbrida, tupi-portuguesa: juá ou iu-á (fruto de espinho) + o sufixo eiro. O nome refere-se a uma árvore nordestina (cientificamente denominada de Ziziphus juazeiro),

1 Material da ONG cedido pela coordenadora geral Ana Cristina Diôgo Gomes de Melo. Contato:

<[email protected]>. Maiores informações, disponíveis em: <http://www.bloguinhojuriti.blogspot.com/>. [03 jan 2011]

A

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resistente às secas mais impiedosas, mantendo-se sempre viçosa. Segundo dados da Prefeitura, (Walker, 2011) a cidade está localizada no extremo sul do Estado do Ceará, distante cerca de 560 km de sua capital, Fortaleza, pela BR 116, no chamado Vale do Cariri. Maior cidade do interior cearense, a área do Município é de 249 km2. Altitude de 377m em relação ao nível do mar, seu ponto mais elevado é a Serra do Horto. As temperaturas do clima tropical quente, semi-árido e semi-árido brando ficam entre 22-38 graus, média de 22-26 graus centígrados. A população é de aproximadamente 250 mil habitantes concentrados na zona urbana. Pessoas de todos os Estados nordestinos e muitos romeiros são atraídos pela fama do Padre Cícero, fundador da cidade, considerado Santo milagreiro. Pólo de ensino superior, a cidade oferece mais de 40 cursos universitários em funcionamento e possui grandes centros culturais como o Centro Cultural Mestre Noza, Centro Cultural Banco do Nordeste com atividades artísticas variadas, Museu Memorial Padre Cícero, Museu Vivo do Padre Cícero e o Museu Padre Cícero - casa onde o sacerdote viveu. O artesanato é um dos mais ricos e variados do Brasil. No Estado do Ceará, é considerada a maior cidade em população envolvida nas atividades ligadas à cultura. Esta efervescência demonstra-se em registros junto a Secretaria de Cultura do Estado, com cerca 72 grupos de cultura popular. As principais datas comemorativas são: Festa de Nossa Senhora das Candeias (romaria) em 02 de Fevereiro; Aniversário de Padre Cícero em 24 de Março; Aniversário do Município em 22 de Julho; Festa da Padroeira (romaria) em 15 de Setembro; Dia do Romeiro em 1º de Novembro; Romaria de Padre Cícero em 02 de Novembro e no mês de Junho acontece o evento Juaforró.

Figura 1. Visão geral da localização da cidade no país

Cidade de Juazeiro do Norte

Brasil

Estado do Ceará

Ceará

Fonte: Montagem com imagens de mapas do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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3. Motivação para este estudo - griôs Diante da diversidade multifacetária dos elementos constitutivos e enraizados na cultura popular de Juazeiro do Norte, o suporte teórico fundamenta-se no diálogo em que diferentes conceitos e idéias estabeleçam possíveis confrontos, similaridades e complementações de arcabouços teóricos entre alguns autores das áreas de conhecimento histórico, antropológico, sociológico, filosófico e artístico, em consonância com a análise documental, conhecimento dos trabalhos artísticos, fotos fornecidas pela Mestra Griô D. Fanca, suas narrativas em entrevistas; por materiais e entrevistas cedidas pela coordenadora geral da ONG Juriti para divulgação; por textos e fotos oferecidas pela mestranda e pesquisadora Inambê Sales Fontenele2, da Universidade Federal do Ceará - UFC. O documentário - Projetos Griôs reforçam vocação artística no Nordeste - apresentado pela Rede Globo de Televisão (Programa Ação, por Sérgio Groisman no dia 12/06/2010) foi o elemento motivador e desencadeador do interesse por este trabalho, pela busca de contatos e pelo encontro com estas pessoas envolvidas no projeto da referida ONG. Há um grupo, de aproximadamente quarenta e cinco crianças, que desenvolveu a pesquisa histórica e encontrou sua identidade, a identidade do bairro e a da cidade. É perceptível o estímulo de preservação da força da cultura nesta da região do Cariri. Todas as manifestações originadas nos terreiros e quintais das casas são valorizadas e buscam aproximar gerações. Mesmo diante das dificuldades de diálogo entre a sociedade civil e a escola, há uma quebra de paradigma no momento em que o projeto Griô é levado para os estabelecimentos de ensino, como ação complementar. “Os processos são os devires, e estes não se julgam pelo resultado que os findaria, mas pela qualidade de seus cursos e pela potência de sua continuação *...+” (Deleuze, 1992). Este poder e força da continuidade, que perpassa o tempo, de forma quase imperceptível a um olhar desatento, abre possibilidades de imersão neste espaço e lugar de memória, propulsor de ampliação dos horizontes culturais e sociais de jovens cujos caminhos, atividades inovadoras borbulham, durante este período de atuação da ONG Juriti na cidade. Esta organização é mola propulsora da arte e da cultura e pode ser considerada um notório determinante da influência histórico-dialógica, provocadora de mediações, intervenções e de partilhas que marcam esta região. Ela é um agente de mudança nas perspectivas de vida de participantes e de freqüentadores deste espaço. O termo Griô – adaptação ao português da palavra original francesa griot – refere-se aos contadores de histórias, comunicadores, poetas populares – bibliotecas vivas da tradição dos povos do noroeste africano, colonizados pela França. A ação Griô estimula a tradição oral nas comunidades realizada por mestres ou contadores - sujeitos que repassam conhecimentos de antepassados. Esta prática e as manifestações da cultura tradicional reforçam a vocação artística do Nordeste de forma expressiva no sertão.3 Assim, os jovens aprendem fatos que desconheciam como a história de Juazeiro. Além da exaltação de Padre

2 Fontenele, Sales Inambê (2010) Griô: uma identidade construída e reconhecida nos saber /fazer da pedagogia

griô. In: IV Congresso Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica, USP, Brasil. 3 Cultura Viva. Disponível em:< http://www.cultura.gov.br/cultura_viva/?page_id=25>. [13 jun 2010].

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Cícero religioso, divulga-se nas comunidades o Padre Cícero empreendedor e amante da cultura popular. O “estar com” pessoas e mentores, nas vivências, nas entrevistas e nos silêncios partilhados é o momento em que o entendimento mais profundo acontece, de maneira mais verticalizada, mediante o entrelaçamento de contextos e pontes construídas pelo conjunto de pessoas. A mediação das culturas, (Darras, 2009), “ganha existência no cruzamento de quatro entidades: o objeto cultural mediado; as representações, crenças e conhecimentos do destinatário da mediação; as representações, crenças, conhecimentos e expertises do mediador e o mundo cultural de referência”. Para tal, estes são processos de “acompanhamento semiótico” que podem ocorrer como intervenções no fluxo de disseminação e de propagação de objetos culturais. Conforme o autor, o que geralmente ocorre na prática, é a mediação tornar-se mais um acompanhamento cultural do que um momento para se elaborar reflexões críticas acerca das diversas modalidades de concretizações dos fenômenos culturais. Para Darras, em termos de domínio cultural e artístico, distinguem-se duas abordagens de mediação: “A primeira é diretiva e, em sua forma mais pobre, fornece só um sistema interpretativo, impondo um único tipo de compreensão do objeto cultural. Em sua forma mais rica, produz sistemas interpretativos que tentam se articular, ou não, e trabalhar conjuntamente”. Os panôs realizados pelas crianças na prática griô, com a Mestra D. Fanca, são objetos artísticos culturais que apresentam a forma mais rica de construção conjunta, sob esta perspectiva. Este processo criativo envolve a concretização das mediações, do entrelaçamento do universo imaginário de crenças, vivências, recordações e histórias de um grupo capaz de fornecer a diversidade de interpretações semióticas através dos bordados e retalhos. 4. Imaginário, história e memórias Juazeiro: cidade em que a fé e o sofrimento permanecem na memória coletiva de nordestinos fortalecidos pela aridez regional, transborda em riqueza nas dimensões da arte popular ao disseminar cores e imagens contrastantes com as realidades vividas por este povo. A criatividade opõe-se à rudeza existencial, como força. O tempo não surge como divisor de águas entre décadas, mas como um sábio observador dos fluxos entre os rios imaginários do passado, presente e futuro, que se mesclam intermitentes em direção ao mar formador desta cultura. O tempo é elemento fundamental para a análise de uma cultura (Laraia, 2001). O autor afirma que “em cada momento as sociedades humanas são palco do embate entre as tendências conservadoras e as inovadoras. As primeiras pretendem manter os hábitos inalterados, muitas vezes atribuindo aos mesmos uma legitimidade de ordem sobrenatural. As segundas contestam a sua permanência e pretendem substituí-los por novos procedimentos”. Tempo e imaginário percorrem trilhas inexauríveis. As cidades fixas ou fluídas em suas representações caracterizam dimensões simultaneamente sociais e semióticas (Amaral, 2008). A autora cita Irwin, que propõe a

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seguinte questão: “De que outro modo pode um ‘passado’, por definição constituído de eventos, processos, estruturas, etc, não mais perceptíveis, ser representado em qualquer consciência ou discurso, a não ser de modo ‘imaginário’?” Este questionamento motiva a análise do imaginário expresso na criação artística mediante a ação do griô. “O Imaginário, portanto, é muito mais que o imaginário” (Duvignaud, 1970). Uma sociologia da arte dinâmica possibilita a reconstituição e tentativa de um olhar de autenticidade sociológica do imaginário. A trama de significantes que compõem o enraizamento do coletivo, ao abarcar a existência das pessoas imersas neste espaço refletor, tanto de exaltação do sagrado como articulador de memórias e histórias permeadas pelas teias da contemporaneidade, origina significações inesgotáveis. Segundo o autor, o artista intervém aos códigos que lhe são impostos, alterando esta “natureza”, sendo capaz de uma “transposição que prolonga e modifica” a que a sociedade impõe. Sob essa perspectiva poderemos refletir sobre a influência da Mestra Griô D. Fanca nessa transposição. “De qualquer forma, examinar o tema por meio de um único método empobrece a história cultural” (Burke, 2005). Assim, quatro teóricos de relevância assinalados pelo autor como praticantes da NHC (Nova História Cultural): Bakhtin, Norbert Elias, Foucault e Bordieu trazem uma grande virada no âmbito da história cultural, cujos paradigmas vão se rompendo e abrindo espaço para a preocupação com as representações e as práticas, juntamente com Roger Chartier que aparece como líder nesse processo. A história da memória eleva-se como um feixe de luz norteadora direcionada um foco de amplitude de pesquisa, deixado anteriormente a encargo da cultura material e econômica, retomado sob um novo espectro: “a referência aos espaços”, aos aposentos particulares, aos espaços públicos, às cidades, praças, mercados, os quais permitem novas abordagens de pesquisa, e que anteriormente seria considerado um paradoxo inserir o espaço na “cultura material”. Desta forma, Burke afirma:

Mais que os livros, filmes e programas de televisão mostram, há um forte interesse popular pelas memórias históricas. Esse interesse cada vez maior provavelmente é uma reação à aceleração das mudanças sociais e culturais que ameaçam as identidades, ao separar o que somos daquilo que fomos. [...] Uma outra forma de NHC que atualmente passa por um surto de expansão é a história da memória, algumas vezes descrita como “memória social “ ou “memória cultural”.

O referido autor enfatiza não somente a memória, mas a sua relação com espaço como forma de conhecimento, revelando a importância de se observar os aposentos particulares das casas, seus espaços interiores, as distinções entre espaços públicos e privados e ressalta que “os historiadores culturais, como os da arquitetura e os geógrafos historiadores antes deles, chegam a ler o ‘texto’ de uma cidade ou de uma casa nas entrelinhas *...+ assim como a história das casas seria incompleta sem os estudos do uso de seus espaços interiores”. Esta dimensão de pensamento vem de encontro com uma frase de Padre Cícero, popularmente conhecida em Juazeiro: “em cada sala, um altar, e em cada quintal, uma oficina” (Araujo, 2005). Uma simples frase geradora de todo um contexto social, onde a religiosidade presente nas residências caminha em conjunto com a força das mãos criativas de artesãos e artistas: indivíduos que em seus cotidianos são sujeitos históricos construtores desta realidade peculiar regional.

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Rousso (2002) revela que a “história da memória tem sido quase sempre uma história das feridas abertas pela memória”, o que traz à reflexão, a união de forças na formação de um ideário de expressão artística, de apoio à arte e à cultura sem preconceitos e sem qualquer tipo de exclusão das diversas formas de linguagem cultural. Este espaço-tempo existente na fala e na memória das pessoas envolvidas permitem relacionar Juazeiro do Norte como um dos “lugares de memória” (Seixas, 2004) que merece ser pesquisado como centro difusor de cultura, em um continuum que move artistas até hoje na cidade. Para Benjamin, (1994) “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras”. Como lugares e agoras se expressam na comunidade? Lugares, diversidades e identidades: como percebê-los? “A percepção do lugar não depende na forma da cidade, mas do olhar do leitor capaz de superar o hábito e perceber as diferenças: um olhar que se debruça sobre a cidade”, sugere que o sujeito deve estar atento (Amaral, 2009). A autora complementa idéias de Lucrecia Ferrara (2003), que este “debruçar-se sobre a cidade” como objeto de conhecimento é que possibilitará a visibilidade da cidade pelo lugar para “produzi-la cognitivamente, produzir-se e perceber-se como leitor, criador e cidadão”. A memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva. (Halbwacks, 2004) Pode-se considerar que reminiscências partilhadas ocorrem no cerne de um grupo e que este, é fonte inspiradora tanto para a constituição de um ideário quanto para disseminação de questionamentos, influências, conhecimentos, hábitos e emoções. Para tal, ele desenvolve a perspectiva de que a memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Deve-se analisar, com o olhar atento, o espaço de atuação exercido pelo sujeito no convívio com este grupo, suas relações interpessoais neste cenário e suas especificidades, bem como as relações deste sujeito com outros meios. “Uma imagem engajada em outra imagem”, conforme aborda o autor supracitado, se traduz na formação para além de uma memória única, abarcando o entrelaçamento entre as memórias individuais, memórias de outros sujeitos, vivências do grupo, na imaginação de acontecimentos periféricos e nos diversos níveis de internalização das possíveis representações da memória histórica. Desta forma, para ele, não existe uma memória isolada. Estas recordações podem ser tanto reconstruídas como simuladas pelo grupo, o que abre possibilidades de uma ampliação da visão voltada ao passado, como também reconstrutora de um ideário futuro. Para Halbwacks, “a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada”. De que forma estas imagens engajadas, as identidades e memórias históricas convivem com a globalização? Há a possibilidade de que “a globalização possa levar a um fortalecimento de identidades locais ou à produção de novas identidades” (Hall, 2006). Segundo o autor, seria uma visão muito “simplista, exagerada e unilateral”, pensar que a globalização viesse a homogeneizar identidades culturais. Ele comenta a observação de Kevin Robins:

Ao lado da tendência em direção à homogeneização global, há também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da “alteridade”. Há, juntamente com o impacto do global, um novo interesse pelo “local”. A globalização (na forma da especialização

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flexível e da estratégia de criação de “nichos” de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de pensar no global como “substituindo” o local seria mais acurado pensar numa nova articulação entre “o global” e “o local”.

Hall prossegue afirmando que este “local” não deve se confundido com identidades antigas, limitadas e delimitadas profundamente fixadas ao solo da tradição. Para ele, “é mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações ‘globais’ e novas identificações ‘locais’. *...+ A globalização é um processo desigual e tem sua própria ‘geometria de poder’”. Segundo o autor, todas as identidades localizam-se no tempo e espaço simbólicos e concorda com Edward Said na denominação de “geografias imaginárias”, ao citar (Said, 1990):

“Paisagens” características, seu senso de “lugar”, de “casa/lar”, ou heimat, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais, mais amplos, mais importantes.

Sob este prisma das geografias imaginárias, das identidades, de tempo e espaço simbólicos simultâneos será pertinente analisar as narrativas que envolvem as dinâmicas do griô e das costuras destas diversidades identitárias. 5. Narrativas “O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais” (Benjamin, 1994). De grande riqueza é a escuta de narrativas individuais acerca de membros constituintes de um mesmo grupo. Este escutar não vem à procura de se promover um historicismo destas lembranças, mas sim de fazer emergir à superfície memórias que ainda prosseguem e encontram-se ainda supostamente em estado de “subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível” (Pollack, 1989).

O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que o detalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto o outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida. (Halbwachs, 2004).

Os detalhes são fundamentais, não somente como pesquisa como forma de revelar este espaço cultural simbólico da região. Em “O Narrador”, Benjamin afirma que contar histórias é a arte de recontá-las – arte que foi perdida – porque “ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história”. Se possível fosse, ele se alegraria ao perceber que esta arte de contar e narrar histórias não se extinguiu na contemporaneidade e que, de forma verossímil, ocorre nos bordados de retalhos do griô, no sertão brasileiro. Ele assinala:

Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. [...] Quando o ritmo de trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que

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adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo (Benjamin, 1994).

A Mestra Griô D. Fanca, em uma entrevista, relata que “o conteúdo que é ensinado na escola, muitas vezes se perde e a criança esquece após algum tempo, mas que a história narrada durante a elaboração dos bordados fica gravada para sempre na mente dos jovens e que eles sabem contá-las novamente”. Sua fala vem de encontro ao pensamento do referido autor, sob este aspecto, como também a postura de narradora e seu dom nato para a oralidade refletem sua vida tal qual menciona Benjamin: “A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesanal – no campo, no mar e na cidade-, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. [...] Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”. Desta forma, esta mestra exprime com grande simplicidade um dom não somente para narrar, mas principalmente exerce um papel significativo de inspirar e caminhar conjuntamente com pessoas da comunidade na recriação de realidades, mediante este mergulho vivo de sua alma e transposição criativa para a arte. 5.1. A Mestra Griô D. Fanca e os panôs: imagens que narram Francisca Mendes Marcelina nasceu em 29 de Novembro de 1949. Conhecida por todos na cidade como D. Fanca, desde a infância valorizou e internalizou em sua existência histórias da família, procurando preservá-las e eternizá-las, seja em forma de livros ou bordados.

O processo de autoformação da identidade dessa Griô teve o seu inicio no Censo 2007, realizado no Conjunto Almino Loiola do Bairro Leandro Bezerra na cidade de Juazeiro do Norte – CE, pela Organização Não Governamental Instituto de Ecocidadania Juriti – IEJ. O objetivo era identificar, por meio da compreensão da própria comunidade, as pessoas que detinham um saber característico do senso comum, e que representasse assim a história cultural e ancestral da própria comunidade. Francisca Mendes Marcelino – Dona Fanca, foi o nome de maior representação, reconhecida como uma pessoa que sabia das histórias do bairro e também como educadora e artista popular – uma artesã (Fontenele, 2010).

Já fazia parte de sua postura de vida a preocupação com a memória e história. Seu reconhecimento como artesã oficialmente, ocorre em 2007. Em 2008, ela descobre ser uma Mestra Griô - fato desencadeador de processos de trabalho voluntário na ONG. Assim ela relata em um depoimento: “...em Brasília, quando fui com Cristina da ONG Juriti, para participar do encontro do Ministério da Cultura. Lá eu escutei que eu era uma Mestra Griô e conheci outros mestres e mestras griôs, estavam todos do Brasil” (Fontenele, 2009). D. Fanca conscientizou-se de algo que já fazia parte de sua trajetória pessoal. A arte sempre fez parte de seu olhar para a vida. Em contatos e entrevistas4 realizadas com ela, a Mestra Griô relatou a história de seu bisavô Hipólito Ferreira da Silva, conhecido como Popô – assim chamado por Padre Cícero. Seu bisavô – nordestino alagoano de caráter ímpar, não poderia ficar sem ter sua história relatada. Redigiu há muitos anos atrás, o livro: “A História de um bravo romeiro”, mediante processos gráficos e Xerox, fez uma publicação artesanal na Gráfica Casa das Cópias de Juazeiro. Sua irmã Maria Goreth Neves Marcelino Criou um livro

4 Entrevista realizada dia 12 de março de 2011. Arquivo pessoal da autora deste artigo.

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de tecido, todo bordado, que relata a história de sua mãe. Todos os parágrafos iniciam-se com a letra E. Ambos os livros são preciosidades que guardam como ícones da família, conforme figura abaixo.

Figura 1. D. Fanca e sua irmã Goreth

Fonte: As fotos foram fornecidas por D. Fanca

Neste depoimento dado à Inambê Fontenele, observa-se que no desejo de narrar a veracidade dos fatos e a história, existe a abertura e consciência para a atualização do que é ultrapassado, ao possibilitar a recriação ou reconstrução da realidade:

Meu avô era artífices, acho que eu e minhas irmãs nós todas temos esse dom de artes que puxou para ele... Artífice era tratada como a arte manual [...] sei dizer que minha descendência é essa, de fé, de arte e de muita oração [...] Um Griô é aquele que conta a realidade, a verdade e a coisa que aconteceu realmente. O Griô ele não mente, nem inventa. Ele vai a fundo naquele ponto, e traz pra realidade, pra certeza e pra luz. Mestre griô é justamente o que eu sou, eu era e sou sem saber, contadora de histórias, é o que eu sou, o que eu fui a minha vida toda sem saber, por que em toda a minha vida eu contei histórias, histórias para as minhas alunas da escola, da crisma, e sempre resgatando no meio dessas histórias um ídolo, seja de um homem forte, valente, ou um Deus, uma mãe. Então, o griô eu me sinto assim, aquela que descobre uma cultura que está em sua vida ultrapassada e trás à tona e deixa atual (Fontenele, 2009).

É questionável a idéia de que a temática da memória é algo do passado. “A memória, condição básica de nossa humanidade, tornou-se uma das grandes molduras da produção artística contemporânea, sobretudo a partir dos anos de 1990”. (Kanton, 2009). Em “Tempo e Memória”, a autora coloca que na dimensão da arte, evocar as memórias pessoais promove a “construção de um lugar de resiliência”, demarcações de territorialidades individuais e impressões como uma forma de resistência em contraste ao excesso de informações e estímulos visuais característicos da sociedade tecnológica atual. Assim, ela complementa: “É também o território de recriação e de reordenamento da existência – um testemunho de riquezas afetivas que o artista oferece ou insinua ao espectador, com a cumplicidade e a intimidade de quem abre um diário.” Pode-se refletir sobre a experiência conjunta desta mestra com as crianças como espaço contemporâneo de reconstrução e de formação das identidades na transitoriedade dos diálogos, nas trocas de experiências, contatos, afetividade e sensibilidade.

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Quando D. Fanca diz: “Mestre griô é justamente o que eu sou, eu era e sou sem saber, contadora de histórias, é o que eu sou, o que eu fui a minha vida toda sem saber *...+” possibilita a conjugação com o seu saber artístico, com seu potencial, criatividade e imaginação. Será que ela já questionou que poderá ser uma artista e ainda não sabe se é? Segundo Ostrower:

A arte diz coisas que muitas vezes as pessoas não sabem que já as sabem [...] A intuição jamais dispensa a razão. Apenas não existe isolada, como que num compartimento estanque. Mobilizando a uma só vez todo o manacial de inteligência e sensibilidade das pessoas, seu potencial de associações e imaginação e suas necessidades interiores, os processos intuitivos informam o próprio modo de conhecer, pois interligam a experiência afetiva do indivíduo às suas indagações intelectuais (Ostrower, 1991).

Em outra entrevista5 ela relata: “a arte pintada, escrita, bordada, a arte grande, são para durar para sempre. E eu considero os panôs uma arte grande, feita para durar”. Os panôs são repletos de cores, imagens e tecidos, texturas diversas, frases e palavras, mas as imagens são mais presentes que as palavras. Pode-se dizer que sua vida traduz-se em imagens.

A imagem é sempre uma forma estruturada. Nela condensa toda uma gama de pensamentos, emoções e valores e pensamentos raramente ocorrem verbalizados, isto é, o artista [...] pensa diretamente nos termos da linguagem visual [...] Lá em regiões não verbais, se fundem num sentimento de vida. E de lá o artista retira livremente, espontaneamente, portanto intuitivamente, aquilo de que necessita para seu trabalho (Ostrower, 1991).

As imagens se formam, as escolhas dos retalhos, cores das linhas, temáticas, todo o contexto se mescla na intuição criativa da Mestra, na percepção e expressão da sensibilidade das crianças – de todos do grupo. Helosiane Rodrigues, de 10 anos, aluna da Mestra D. Fanca diz: “eu escuto a história que a mestra ensina pra gente e através desta história a gente pega cada palavra e bota no pano, tá? Pra bordar...”. Luana dos Santos, de 10 anos, aluna, comenta: “Aqui é o panô. A gente transmite a história que a Mestra conta, ao pano” 6. O que mais surpreende em termos de arte e de experimentação, não é propriamente o panô em si, mas as narrativas e diálogos que compõe toda a conjugação, interação entre as pessoas neste espaço-tempo, que transborda em significação simbólica, o próprio produto criado. Cada encontro para a elaboração dos panôs é alimentado por narrativas do dia a dia entre cada aluno no momento de criação, no momento do fazer artístico. Em “Concepções Contemporâneas da Arte”, sobre o lugar da imagem, Patrícia Franca afirma:

Quando falamos, para um interlocutor, do sentimento que experimentamos diante de uma cor, nem sempre queremos lhe comunicar uma informação. Vamos até ele, procuramos uma ou muitas expressões que podemos selecionar entre várias e fazemos então um enunciado que implica um duplo recurso: a linguagem concebida como um conjunto de sinais e a palavras assimiladas como exercício de tudo isso. Mas... a cor sempre transborda a palavra, o que nos faz pensar que há algo na cor que está além do enunciado. Queremos dizer que em artes plásticas em se tratando de criação, a imagem transborda a palavra (Franca, 2006).

5 Entrevista realizada dia 19 de março de 2011. Arquivo pessoal da autora deste artigo.

6 Entrevistas da Rede Globo de Televisão. [Documentário] [12 jun 2010].

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Assim como as imagens transcendem ao objetivo inicial/intencional dos panôs, as interpretações dos espectadores não são meramente passivas, preenchem-se de sentido. “A criança redige dentro da imagem. Por isso, ela não se limita a descrever as imagens: ela as escreve, no sentido mais literal” (Benjamin, 1994). As descrever as imagens intencionais a criança revela seu universo íntimo e o recria na escuta e no convívio com as demais que formam o grupo. 5.2. Processo dos panôs O Projeto Histórias em Retalhos teve início em Juazeiro do Norte no dia doze de março de dois mil e nove, das oito horas da manhã as onze. No Colégio Dom Vicente, na Rua Rui Barbosa s/n, sempre as quintas feiras de cada semana do mês. No primeiro momento: Apresentação das crianças dos Griôs, aprendiz dos griôs e Mestras, feito pela coordenadora geral do Instituto de Ecocidadania, idealizadora do projeto, Cristina Diôgo. Passo a passo do processo de criação dos panôs7:

Primeiro passo – Roda de conversa sobre o tema e sobre o que é Griô; Segundo passo – Pesquisa da história do tema abordado e visitas programadas; Terceiro passo – Construção dos textos; Quarto passo – Produção dos desenhos baseado nos textos selecionados; Quinto passo – Aprender a bordar (exercícios de bordados com tecidos, agulhas e linhas); Sexto passo – Corte dos retalhos e aplicação dos desenhos construídos pelos educandos nos pedaços de tecido; Sétimo passo – Oficina de Patchwork (aplicação de retalhos no tecido); Oitavo passo – Oficina de brincadeiras e cantigas de rodas antigas; Nono passo – Construção dos Panôs; a) Apreciação de todos os trabalhos desenvolvidos pelos/as educandos/as e seleção dos que mais se assemelham ao tema; b) Aplicação dos quadros de tecido no Pano utilizando máquina de costura (essa montagem é feita pela Mestra Fanca) Décimo passo – Apresentação dos panos na roda de conversa; Décimo primeiro passo – Monitoramento, avaliação, sistematização e disseminação da experiência; Décimo segundo passo – Construção de alternativas de sustentabilidade da experiência.

7 Material cedido por Cristina Diôgo – ONG Ecocidadania Juriti.

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Figura 2. D. Fanca a narrar uma história e a ensinar o bordado

Fonte: Fotos cedidas por Cristina Diôgo e por Inambê Sales Fontenele

Figura 3. Crianças no início do bordado do panô

Fonte: As fotos foram cedidas por Inambê Sales Fontenele

Figura 4. Panôs: O Horto e Romeiros

Fonte: As fotos foram cedidas por D. Fanca.

Breves relatos orais de D. Fanca, em entrevista8, referem-se aos panôs acima - Panô do Horto: “É uma serra que não tinha nada, Serra do Catolé (planta muito grande da caatinga,

8 Entrevista com D. Fanca dia 12 de março de 2011. Arquivo pessoal da autora deste artigo.

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que dá um coquinho saboroso). Um dia Padre Cícero teve um sonho e depois foi visitar a serra do Catolé e lá marcou o lugar, *...+ assim surgiu o Horto” - Panô dos Romeiros: “Foram festas religiosas criadas por Padre Cícero”.

Figura 5. Apresentação dos panôs nas rodas de conversa

Fonte: Fotos cedidas por Cristina Diôgo e por Inambê Sales Fontenele

Ao verificar a atuação desta Mestra Griô é possível estabelecer uma relação com o pensamento de Barthes em “Aula”. Ele sugere: “... a escritura se encontra em toda parte onde as palavras tem sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia). Curnonski dizia que, na culinária é preciso que as coisas tenham o gosto do que são [...] é necessário este ingrediente, o sal das palavras”(Barthes, 1980). D. Fanca encontrou o sal de sua vida, o ingrediente essencial da arte e das palavras. 6. Conclusões e principais contribuições “A alma jamais pensa sem imagem” (Aristóteles, 2006). Esta nordestina determinada em seus propósitos, iluminada em Sapientia, é uma mulher que, na simplicidade de ser e de viver, é veículo vivo de imagens que se constroem em conjunto com as pessoas de sua comunidade. As imagens criadas em seus panôs abrem espaço para narrativas antes de sua elaboração, durante todo o processo e permitem, mesmo dentro do direcionamento específico de uma história mencionada, que esta seja narrada por cada criança ou adulto, expressando seu universo interior, como “produção de formas simbólicas de contextos sociais”, conforme aborda Thompson. Encontram-se os aspectos: intencional, no planejar e fazer o panô; o aspecto convencional, no emprego das formas simbólicas, e as interpretações dos sujeitos durante o processo; o aspecto estrutural, em que os panôs exibem uma estrutura articulada; o aspecto referencial, em que estas formas simbólicas referem-se a algum tema; e principalmente o quinto aspecto – o contextual – em que as formas simbólicas inserem-se em “contextos sócio-históricos dentro dos quais e por meio dos quais elas são produzidas, transmitidas e recebidas” (Thompson, 2009). Há uma dinâmica em que o espectador não é mero assimilador de uma imagem, mas a reconstrói, reinterpreta e traz novas configurações para seu interior. Portanto, este estudo procura abrir uma nova perspectiva para um olhar diferenciado ao Griô e à arte popular, muitas vezes considerada alheia à contemporaneidade. Em um mundo inseguro, vulnerável, onde a confiança é perdida e a existência é invadida pelo bombardeio de imagens, contar histórias, “se aproximar do outro, gerar sentido em si e nesse outro” é uma estratégia contemporânea, comparável ao storytelling (ato de contar histórias) em espaços alternativos, como ocorreu em Nova York a partir dos anos de 1990 (Kanton, 2009). Investir em uma forma de arte fundada em práticas coletivas é uma discussão da interterritorialidade na busca de espaços físicos, simbólicos e identitários, tão comuns em

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nosso tempo. Segundo D. Fanca, ao término da construção dos panôs os jovens facilmente irão interpretar melhor um texto, fazer descrições orais e textuais de qualquer desenho. Além da socialização e compreensão de costumes antigos e suas readaptações atuais, representam criativamente idéias compartilhadas pelo grupo. Eles desenvolvem neste espaço-tempo artístico e afetivo, o amor e o respeito aos mais velhos, mediante diálogos que sempre surgem entre colegas, mas principalmente com pais, avós e bisavós. Ao partilhar deste mesmo propósito, Cristina Diôgo enfatiza o papel da ONG Ecocidadania Juriti na melhoria de vida e de perspectivas de futuro destes jovens que, ao participar dos projetos oferecidos à comunidade, terão maior consciência de cidadania e poderão direcionar suas vidas com as próprias mãos. Cabe ressaltar que, ao trabalhar história e memória através dos Griôs, obviamente será perceptível uma linearidade da história na concretização dos panôs. O que há de elemento mais inovador nesta atuação é que o convívio e os diálogos podem ser comparados às “narrativas enviesadas” que quebram a “sequência cronológica de passado-presente-futuro e deslocam estruturas de temporalidade para novos estatutos”, como assinala Kanton. Assim, entrelaçam-se recortes e remendos, às justaposições de narrativas cotidianas e sobreposições do que é imaginário e corriqueiro, como produção contemporânea criadora de sentidos para a existência. A arte popular pode ser considerada um meio de recriar e transformar realidades. Referências Amaral, Lilian e Barbosa, Ana Mae (2008) Interterritorialidade: mídias, contextos e educação (orgs), Editora SENAC, São Paulo, Brasil. Amaral, Lilian (2009) Entre Visualidades e visibilidades. Tecendo redes e miradas de afetos: dos fragmentos às constelações, V. 8 nº1. Programa de Pós-Graduação em Arte. IDA, UnB, Brasil. Araujo, Maria de Lourdes de (2005) A Cidade do Padre Cícero: trabalho e fé, Rio de Janeiro, UFRJ, Disponível em: <http://teses.ufrj.br/IPPUR_D/MariaDeLourdesDeAraujo.pdf>. [11 mar 2011] Aristóteles (2006) De anima, Ed.34, São Paulo, Brasil, Livro III, 424b22 – 435b19, p. 103-131. Barthes, Roland (1980) Aula. Cultrix, São Paulo, Brasil, p. 7- 47. Benjamin, Walter (1994) Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, Brasiliense, São Paulo, Brasil. Burke, Peter (2005) O que é História Cultural? Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, Brasil. Darras, Bernard (2009) As várias Concepções da cultura e seus efeitos sobre os processos de mediação cultural. In: Barbosa, Ana Mae e Coutinho, Rejane Galvão (orgs) Arte/educação como mediação cultural e social, Editora UNESP, São Paulo, Brasil..

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Deleuze, Gilles (1992) Conversações, Editora 34, Rio de Janeiro, Brasil. Duvignaud, Jean (1970) Sociologia da Arte, Forense, Rio de Janeiro, Brasil. Franca, Patrícia e Nazario, Luiz (2006) Concepções Contemporâneas da Arte, UFMG, Belo Horizonte, Brasil. Fontenele, Sales Inambê (2010) Griô: uma identidade construída e reconhecida nos saber /fazer da pedagogia griô. In: IV Congresso Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica, USP, Brasil. Halbwachs, Maurice (2004) A Memória Coletiva, Ed. Centauro, São Paulo, Brasil. Hall, Stuart (2003) A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, DP&A Editora, Rio de Janeiro, Brasil. Kanton, Catia (2009) Coleção Temas da Arte Contemporânea, Ed. Martins Fontes, São Paulo, Brasil. Laraia, Roque de Barros (2001). Cultura. Um conceito Antropológico, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, Brasil. ONG Ecocidadania Juriti. Disponível em: <http://www.bloguinhojuriti.blogspot.com/>. [03 jan 2011] Ostrower, Fayga Perla (1991) Universos da Arte, Campus, Rio de Janeiro, Brasil. Pollack, Michael (1989) Memória, Esquecimento, Silêncio, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Brasil, vol.2, nº 3. Rede Globo de Televisão. Projetos Griôs reforçam vocação artística no Nordeste. [Documentário]. Programa Ação, Disponível em: <http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1281266-7823-PROJETO+GRIOS+REFORCAM+VOCACAO+ARTISTICA+NO+NORDESTE,00.html> [12 jun 2010]. Rousso, Henry (2004) A memória não é mais o que era, In: Brescini, Stella; Naxara, Márcia (orgs) Memória e (Res) Sentimento: Indagações sobre uma questão sensível, Unicamp, Campinas, Brasil. Thompson, John B (2001) O Conceito de Cultura; Para Uma Teoria Social da Comunicação de Massa. In: Ideologia e Cultura Moderna, Vozes, Petrópolis, Brasil. Walker, Daniel. Juazeiro do Norte – Conheça melhor a cidade. Disponível em: <http://www.juazeiro.ce.gov.br/index.php?Pasta=paginas_site&Pagina=pag_cidade&MenuDireito=1> [09 fev 2011].