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SABERES DO CORPO E A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES E NAS PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA AS DIVERSIDADES A partir de pesquisas desenvolvidas em campos distintos a Pedagogia, a Educação Física e a Saúde Mental , e articulando-se em torno de uma prática cultural comum, as Danças Circulares Sagradas, os autores reunidos no painel proposto tematizam a formação de professores e outros educadores na perspectiva da educação intercultural, tendo o corpo como locus de aprendizagem e análise. No contexto da educação que passa pelo corpo, a dança em roda (referida à ancestralidade das tradicionais danças dos povos), como uma expressão de identidade e cultura, é compreendida como prática social que expressa diferentes histórias e marcas de relações interétnicas. Desta forma, podem ser compartilhadas, vivenciadas e potencializadas em propostas de educação para as diversidades. Justamente porque carregam as marcas de diferentes tradições e culturas, as Danças Circulares Sagradas apresentam-se como um campo aberto para se tecer e vivenciar relações interculturais positivas, seja na escola, seja em outros espaços sociais e educativos. A prática simbólica suscitada e os conteúdos veiculados por essa modalidade de dança provocam-nos a questionar pressupostos da educação escolar, da formação de professores e da formação de equipes multidisciplinares que atuam no campo da saúde mental, propondo práticas plurais, abertas, mais inclusivas. Compreendendo a interculturalidade e a centralidade do corpo na educação da pessoa como pressupostos para uma educação voltada ao reconhecimento de si na relação com o Outro, em espaços educacionais formais e não formais, reafirma-se a importância de promover práticas que provoquem aquele em formação, ou atuação profissional, à reflexão, à compreensão e ao respeito aos modos específicos e diferenciados de ser e viver, de cada grupo e povo. Palavras-Chave: Saberes Tradicionais, Educação Intercultural, Danças Circulares Sagradas. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 12118 ISSN 2177-336X

SABERES DO CORPO E A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NA … · Ao deslocarmos o ponto de vista do hegemônico para o "outro", descentralizamos o olhar, ampliamos nossa visão de mundo, alargamos

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SABERES DO CORPO E A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NA FORMAÇÃO

DE PROFESSORES E NAS PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA AS

DIVERSIDADES

A partir de pesquisas desenvolvidas em campos distintos – a Pedagogia, a Educação

Física e a Saúde Mental –, e articulando-se em torno de uma prática cultural comum, as

Danças Circulares Sagradas, os autores reunidos no painel proposto tematizam a

formação de professores e outros educadores na perspectiva da educação intercultural,

tendo o corpo como locus de aprendizagem e análise. No contexto da educação que

passa pelo corpo, a dança em roda (referida à ancestralidade das tradicionais danças dos

povos), como uma expressão de identidade e cultura, é compreendida como prática

social que expressa diferentes histórias e marcas de relações interétnicas. Desta forma,

podem ser compartilhadas, vivenciadas e potencializadas em propostas de educação

para as diversidades. Justamente porque carregam as marcas de diferentes tradições e

culturas, as Danças Circulares Sagradas apresentam-se como um campo aberto para se

tecer e vivenciar relações interculturais positivas, seja na escola, seja em outros espaços

sociais e educativos. A prática simbólica suscitada e os conteúdos veiculados por essa

modalidade de dança provocam-nos a questionar pressupostos da educação escolar, da

formação de professores e da formação de equipes multidisciplinares que atuam no

campo da saúde mental, propondo práticas plurais, abertas, mais inclusivas.

Compreendendo a interculturalidade e a centralidade do corpo na educação da pessoa

como pressupostos para uma educação voltada ao reconhecimento de si na relação com

o Outro, em espaços educacionais formais e não formais, reafirma-se a importância de

promover práticas que provoquem aquele em formação, ou atuação profissional, à

reflexão, à compreensão e ao respeito aos modos específicos e diferenciados de ser e

viver, de cada grupo e povo.

Palavras-Chave: Saberes Tradicionais, Educação Intercultural, Danças Circulares

Sagradas.

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SABERES E PRÁTICAS INTERCULTURAIS: DANÇAS CIRCULARES,

CORPO E EDUCAÇÃO DAS DIVERSIDADES

Marina Luar Duvidovich - UFF

Luciana Esmeralda Ostetto - UFF

Resumo

Em diálogo com a produção acadêmica recente sobre a temática, o trabalho aqui

apresentado busca traçar reflexões que articulem aspectos da educação estética e

intercultural que emergem da prática das Danças Circulares Sagradas (DCS).

Consideradas uma expressão ancestral importantíssima na constituição das diversas

culturas humanas e manifestação primordial da coletividade, as danças circulares e seu

caráter ritualístico permitem o acesso ao que existe de mais antigo em muitas culturas e

tradições. Na experiência de dançar em roda, vivenciamos de "corpo inteiro" histórias,

mitos e símbolos próprios de culturas que, por conta de complexas relações de poder,

hoje se encontram ignoradas e marginalizadas em nossa sociedade. Partindo do conceito

de interculturalidade salientamos as DCS como ação pedagógica significativa,

enfocando suas potencialidades para a educação escolar e a formação de professores.

Nas DCS não são necessários conhecimentos prévios de dança ou da coreografia, nem

são requisitadas habilidades técnicas específicas: apenas se espera do participante que

esteja presente e aberto a entregar-se ao fluxo da dança. Libera-se aí uma passagem para

vivenciar o novo, o diferente, o inusitado. No movimento de seguir os passos de danças

indígenas, afro-brasileiras, judaicas ou ciganas, experimentamos a interculturalidade em

sua dimensão fundamental. Ao deslocarmos o ponto de vista do hegemônico para o

"outro", descentralizamos o olhar, ampliamos nossa visão de mundo, alargamos nossa

compreensão da vida e da realidade – não apenas pelo inteligível, mas especialmente

pelo sensível. Questionando pressupostos do modelo educacional vigente, o texto busca

visibilizar as faces estética, afetiva e sensível da pedagogia a fim de trazê-las para a

centralidade das discussões sobre Educação e formação de professores.

Palavras-chave: Interculturalidade; prática pedagógica; danças circulares.

Introdução: pelos fios da cultura e da educação

A partir do conceito de interculturalidade, o texto propõe um diálogo com uma

específica forma de dança: a dança circular dos povos e suas potencialidades para a

educação das diversidades. Justamente porque carregam as marcas de diferentes

tradições e culturas, as chamadas Danças Circulares Sagradas (DCS) apresentam-se

como um campo aberto para se tecer e vivenciar relações interculturais, seja na escola,

seja em outros espaços sociais e educativos. A prática simbólica suscitada e os

conteúdos veiculados por esse tipo de dança provocam-nos a questionar pressupostos da

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educação escolar (pouco inclusiva) e também da formação de professores (para que

contemple práticas mais inclusivas).

Visando ampliar conhecimentos sobre as DCS e discutir sua contribuição para a

área da Educação, o estudo que dá base ao texto consistiu em levantamento e análise das

produções sobre o tema nos últimos dez anos, tendo como guia a questão: que

contribuições as DCS podem trazer à área educacional, sobretudo a formação de

professores? Debruçando-nos especificamente sobre produções acadêmicas,

encontramos na base de dados da CAPES: 15 (quinze) trabalhos, sendo 10 (dez)

dissertações de mestrado e 05 (cinco) teses de doutorado. A primeira pesquisa

localizada sobre o tema é de 2001 (dissertação de mestrado) e a última (tese de

doutorado) é do ano de 2014. Além disso, foram identificados outros materiais

bibliográficos existentes sobre o tema, sejam artigos publicados em periódicos, sejam

trabalhos acadêmicos do tipo Monografia de Especialização.

Para o presente artigo, focalizamos quatro pesquisas realizadas (duas teses de

doutorado, uma dissertação de mestrado e uma monografia de curso de especialização),

considerando que nos quatro trabalhos tomados para análise as autoras apontaram

possibilidades e contribuições que estas práticas corporais trazem ao campo da

Educação, afirmando sua importância (OSTETTO, 2006; COUTO, 2008; PREISS,

2011; e BARCELLOS, 2012). Nossa discussão teórico-analítica, tomando por base o

material bibliográfico selecionado, buscou circular a potencialidade das DCS enquanto

prática educadora intercultural.

Ainda que a produção sobre o tema tenha crescido na última década, como atesta

o levantamento realizado no banco de teses e dissertações da CAPES, pode-se dizer que

é uma temática pouco conhecida do público em geral, por isso faz-se necessário

introduzir e explanar brevemente sobre tais danças, a fim de situar leitores e leitoras – a

isso se destina a primeira parte do trabalho aqui apresentado.

Evidentemente, a compreensão do que são as Danças Circulares Sagradas não se

dará apenas através de uma descrição escrita; como expressão corporal que é, seu

entendimento passa por dimensões que estão além da palavra. Nesse sentido, busca-se

apresentar as DCS, suas características e sua história como movimento cultural, sem

pretensões de definir ou determinar, mas convidar a imaginar a experiência de dançar

numa roda. A partir daí, serão traçadas reflexões voltadas ao campo de estudos da

educação, tangendo relações que atravessam a instituição escolar e seus sujeitos.

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Por sua vez, diversidade cultural e multiculturalismo são termos que vem

tomando cada vez mais espaço nas produções acadêmicas e nos debates sobre educação.

Colocado em pauta inicialmente pelas lutas dos movimentos sociais, sua proposição

está diretamente ligada as militâncias políticas por visibilidade e promoção de direitos

aos grupos identitários socialmente marginalizados. A crescente pluralização de

abordagens sobre o tema, tanto nos espaços de militância quanto na academia, resultam

num fenômeno de multiplicação constante das terminologias utilizadas, tais como

multicultural, transcultural, intercultural, que combinadas a diferentes adjetivações

ampliam o leque de conceitos que permeiam o debate (CANDAU, 2008).

Aqui utilizaremos o conceito de interculturalidade para dialogar com as

potencialidades das Danças Circulares Sagradas, questionando pressupostos da

educação escolar e da formação de professores. Assim será a segunda parte do texto,

costurando elementos abordados pelas pesquisas estudadas com aspectos voltados ao

debate da educação para a diversidade cultural.

Danças circulares sagradas: uma breve apresentação

Num primeiro olhar, as Danças Circulares Sagradas são práticas de dança

desenvolvidas em círculo, como a própria denominação sugere. Não são necessários

conhecimentos prévios de dança ou da coreografia, nem são requisitadas habilidades

técnicas específicas: apenas se espera do participante que esteja presente e aberto a

entregar-se ao fluxo da dança. A atividade é aberta para quem queira partilhar da

experiência do dançar coletivo, sem finalidade de apresentar-se a um espectador, mas

simplesmente como vivência pessoal e coletiva da atividade de dançar.

As DCS configuraram-se como um movimento cultural que hoje conta com um

repertório específico de músicas e danças de todo o mundo, com os mais variados

ritmos e movimentos. Ao participar da atividade, podemos dançar inúmeras

coreografias, sejam elas tradicionais de povos e culturas ancestrais, ou contemporâneas,

elaboradas por coreógrafos com múltiplas inspirações. Estas ligam-se pela

intencionalidade de serem dançadas em comunhão com o outro, fazendo reverberar

simbologias e significados próprios do círculo de dança (WOSIEN, 2000).

É fundamental aqui pontuar que o dançar em círculo é uma prática humana

ancestral. Há centenas e mesmo milhares de anos as danças circulares são parte da

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expressão cultural de diversos povos tradicionais por todas as partes do mundo.

Segundo Couto (2008, p.67), ―as danças circulares são primordiais, poderosas e

universais‖. Manifestação ritualística coletiva, estas danças surgem tradicionalmente

como expressão da conexão dos seres humanos com a natureza e sua dimensão sagrada,

não como espetáculo. Foram as raízes das tradicionais rodas de dança de culturas

populares que inspiraram o início desse movimento conhecido como Dança Circular

Sagrada.

Sobre as origens das DCS como se conhece hoje, existe um consenso na

bibliografia consultada. Elas estão diretamente ligadas ao nome de Bernhard Wosien

(1908-1986), considerado o pai do movimento das Danças Circulares Sagradas. Nascido

na Prússia em pleno começo do século XX, filho de uma família de religiosos

protestantes, Wosien iniciou seus estudos universitários em Teologia, porém

abandonou-os antes mesmo de concluí-los. Em seu livro ―Dança: um caminho para a

totalidade‖, publicado no Brasil em 2000, o bailarino e coreógrafo narra seu percurso

pessoal e sua história com a dança. Nele, descreve o quanto sua trajetória na arte esteve

sempre marcada pela espiritualidade, cultivada desde a infância (WOSIEN, 2000).

Dedicou-se também à pedagogia e atuava como docente da Escola Técnica para

Estudos Sociais em Munique quando, em meados dos anos 1960, formou um grupo na

Escola Popular Superior com o qual viajou pela Europa pesquisando as velhas danças

de roda (comumente chamadas de danças folclóricas). Ao tomar contato com as danças

tradicionais, encantou-se pela cultura popular e por sua forte conexão ritualística com as

raízes da fé dos povos. A dimensão sagrada das danças folclóricas de roda marcou

Bernhard Wosien em sua trajetória com a dança dali em diante. Nessa época, ao

descobrir o enorme potencial de cura holística presente nestas danças de roda, passou a

desenvolver seu trabalho de ensino das danças como procedimento terapêutico.

A arte popular nasceu da comunidade social, autóctone. Ela surge na

região, nas casas e nos campos das famílias, fora, nos lugares comuns

a toda a comunidade. Esta arte é introvertida. As pessoas se encontram

num círculo, se olham. Eles não precisam e expectadores nem tão

pouco contam com eles. Logo reconheci o fundo religioso e ritual

dessas danças e essa compreensão foi ficando cada vez mais forte

(WOSIEN, 2000, p.109).

Por volta da década de 1970, visitando Findhorn, comunidade localizada no

norte da Escócia, conhecida como modelo de ecovila, baseada em princípios de

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sustentabilidade, de respeito e de comunhão com a natureza, (FINDHORN

FOUNDATION, 2014), levou seu trabalho com as danças que posteriormente foram

intituladas Sacred Dance .

Desde então, as Danças Circulares Sagradas se espalharam por todo o mundo

ocidental, chegando ao Brasil por volta dos anos 1990. De acordo com Couto (2008),

tais danças foram inicialmente trazidas para a comunidade de Nazaré Paulista, no

interior do estado de São Paulo, que muito inspira-se em Findhorn. Por sua vez, a

comunidade de Nazaré foi fundada em 1982 como um local de estudos e práticas de

autoconhecimento e da ―arte de viver em grupo‖.

No decorrer dos anos 1990 aos anos 2000 houve um processo de expansão do

movimento dentro do Brasil. Passaram a ser organizadas excursões à Findhorn e cada

vez mais pessoas tiveram acesso às Danças Circulares Sagradas. A partir de então, as

danças se espalharam por todas as regiões do país e foram se popularizando ao longo

dos tempos. Grupos de dança se formaram em variadas cidades de diferentes estados

brasileiros, que promovem encontros reunindo pessoas e grupos de diferentes áreas para

dialogar sobre seus trabalhos com as danças e, invariavelmente, dançar em grandes

rodas.

Ultimamente, além das danças tradicionais do mundo, estão sendo incorporadas

ao movimento matrizes de danças populares brasileiras, como o samba, o xote, o samba

de coco, a ciranda, o maracatu, o cacuriá, dentre outros ritmos, as quais também

passaram a integrar as rodas. Além disso, novas coreografias também são criadas, o que

amplia cada vez mais o repertório das DCS. A variedade de músicas dançadas é parte

importante da enorme diversidade que caracteriza o movimento: em uma mesma roda

pode-se dançar os passos dos povos de diversas regiões do globo, transitando entre

tradições celtas, judaicas, afro-brasileiras, zulus ou xavantes. É justamente por isso que

apontamos essa prática como possibilidade da educação para a interculturalidade.

Interculturalidade, educação estética: ressonâncias do círculo de dança na educação

Através da investigação realizada sobre a bibliografia produzida na área em

questão, identificamos que a dança é apresentada como possibilidade de uma ação

educativa significativa, sendo vista como expressão ancestral importantíssima na

constituição das diversas culturas humanas. Manifestação primordial da coletividade, as

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danças circulares e seu caráter ritualístico permitem o acesso ao que existe de mais

antigo em muitas culturas e tradições que hoje, por conta de complexos processos

históricos e políticos, são por vezes ignoradas e marginalizadas.

O movimento atual de aprendizagem das danças tradicionais de roda age

―contribuindo para a pluralidade cultural e tudo o que ela requer, possibilitando a

convivência de diferenças, permitindo que todos sejam iguais, não em sua

individualidade, mas em oportunidade e experiência‖ (PREISS, 2011, p.15). Isso

significa ampliar olhares, expandindo as possibilidades de ver o mundo e as coisas sob

diferentes perspectivas, resistindo à tendência monocultural que assola a

contemporaneidade, em especial a escola.

A perspectiva intercultural tal como apresentada por Candau (2008), visa

promover uma educação para o reconhecimento do ―outro‖, para o diálogo entre os

diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação que ―enfrenta os conflitos

provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas

sociedades‖ (Candau, 2008, p.52). De acordo com a autora, a educação em uma

perspectiva intercultural está orientada à construção de uma sociedade democrática,

plural, humana, que articule os ideais de igualdade garantindo a noção de identidade.

Por sua vez, Petronilha Gonçalves e Silva (2007), ao escrever sobre a necessidade de

diversificarmos o currículo escolar, aponta que

o desconhecimento das experiências de ser, viver, pensar e realizar de

índios, de descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, faz

com que ensinemos como se vivêssemos numa sociedade

monocultural. Isto nos torna incapazes de corrigir a ilusão da

democracia racial, de vencer determinações de sistema mundo

centrado em cosmovisão representativa de uma única raiz étnico-

racial. Impede-nos de ter acesso a conhecimentos de diferentes origens

étnico-raciais, e ficamos ensinando um elenco de conteúdos tido como

o mais perfeito e completo que a humanidade já teria produzido

(SILVA, 2007, p. 501).

A autora afirma, ainda, que se voltarmos nossa atenção às experiências

educativas entre povos indígenas, quilombolas e habitantes de outros territórios negros,

veremos que não é somente com a inteligência que se pode acessar conhecimentos, mas

com a inteireza do ser, do corpo. Em suas palavras:

[...] é com o corpo inteiro – o físico, a inteligência, os sentimentos, as

emoções, a espiritualidade – que ensinamos e aprendemos, que

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descobrimos o mundo. Corpos negros, brancos, indígenas, mestiços,

doentes, sadios, gordos, magros, com deficiências, produzem

conhecimentos distintos, todos igualmente humanos e, por isso, ricos

em significados (SILVA, 2007, p. 501).

A reflexão sobre a concepção fragmentária de corpo que paira na cultura

moderna ocidental é fundamental no estudo das DCS. Os trabalhos de Ostetto (2006),

Couto (2008), Preiss (2011) e Barcellos (2012) denunciam o movimento de cisão

colocado pela Modernidade e criticam a herança do pensamento cartesiano que sustenta

os dualismos nos seres humanos, a nefasta divisão entre corpo e mente, corpo e alma,

corpo e espírito, ignorando a percepção de si enquanto totalidade. Barcellos (2012)

aponta que estudos recentes sobre a corporeidade humana buscam superar e refletir

sobre a indissociabilidade entre as dimensões constituintes da unidade do ser humano.

Segundo a autora, as Danças Circulares Sagradas se constituem como ―uma prática

corporal possível e diferenciada, capaz de trazer a discussão da corporeidade e do corpo

para o terreno do sensível e do encontro com o outro‖ (BARCELLOS, 2012, p.52).

Além de considerar a indissociabilidade das dimensões que constituem todos os

seres humanos, as autoras com as quais dialogamos por meio de suas pesquisas, também

consideram a pluralidade de corpos que é a humanidade. Ambas as considerações são de

suma importância para pensarmos a escola e a educação escolar, que mais têm estado a

serviço da padronização e da homogeneização de corpos e mentes do que da fertilização

da diversidade. O corpo é alvo do processo de pasteurização imposto na instituição

escolar. A docilização de corpos, já denunciada por Foucault (2002), age na negação da

expressividade pessoal e singular de cada indivíduo em sua diferença. O corpo que se

apresenta e/ou se movimenta diferente de um padrão pré-estabelecido como ―certo‖

sofre com os diversos mecanismos de retaliação de sua especificidade, dentre eles a

condenação ao castigo e à punição àqueles que são/estão errados. Nas Danças

Circulares Sagradas experimenta-se algo diferente: o acerto ou o erro não são

preocupações presentes. Saber os passos e reproduzi-los não é mais importante do que

sentir-se à vontade e entregar-se ao fluxo da roda. A atmosfera de acolhimento e

cooperação que se cria numa roda de dança contribui para desfazer a postura de rigidez

e autocobrança que nos aprisiona e impede de experimentar o novo. Ao dançarmos,

acessamos conhecimentos ancestrais de diferentes povos tradicionais que nos

atravessam não só pela mente, mas também pelo corpo e alma. É a possibilidade de

experimentarmos esses saberes com a inteireza de nosso ser.

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Em síntese, ao analisarmos a bibliografia em questão, identificamos uma

concepção que perpassa todos os trabalhos: o corpo como esfera integrante de nossa

humanidade, em seu aspecto simbólico e expressivo, é colocado em um lugar de

extrema importância na prática das DCS. A centralidade que o gesto e o movimento

ocupam para a realização do potencial pleno nas DCS está em muito relacionada com o

caráter simbólico destes. Ao dançar, o corpo em movimento conta histórias, simboliza

sentimentos, expressa tradições (COUTO, 2008). Voltando nossa atenção para o fluxo

de intenções que passa pelo corpo, silenciamos a mente e alcançamos outro estado de

consciência, expandindo nossa percepção sobre o mundo e a realidade (OSTETTO,

2006).

No âmbito da formação de professores, pesquisas têm sido feitas a fim de

identificar as influências que o ato de dançar têm sobre professoras e professores que o

experimentam. Exemplo disso é a tese de doutorado desenvolvida por Ostetto (2006).

Questionando os paradigmas racionalistas que engendram os cursos de formação inicial

e continuada, a autora se propõe a discutir outras dimensões dos cursos de formação: as

dimensões sensíveis, estéticas, poéticas. As Danças Circulares Sagradas se apresentam

como caminho, como possibilidade de acesso a outra educação, que será tomada como

matéria central do estudo. Os questionamentos e indagações que constituem os fios

condutores da pesquisa são propostos da seguinte forma:

Que tipo de formação temos feito no Curso de Pedagogia, que separa

arte e vida, corpo e mente (e não se fala em alma)? Se a arte não está

presente na educação, na formação de professores, pode a Dança

Circular ser um canal para reaproximar a educação da arte? Seria

possível, dançando na roda, provocar travessias no Curso de

Pedagogia, reafirmando a alma como lugar da poesia, do pulso, da

criação? Pode a Dança Circular ter lugar na universidade, fazer parte

de um programa de formação? (OSTETTO, 2006, p.153).

A autora nos conduz por percepções e críticas sobre a formação acadêmica e as

instituições de ensino, colocando em evidência o pensamento moderno racionalista que

predomina em nossa sociedade e represa toda a educação escolar. Aspectos latentes do

ser humano, como o criativo, o intuitivo, o sensível, o espiritual, acabam por ficar

esquecidos ou negligenciados nestes modelos de educação institucionalizada.

A circularidade das rodas dos povos fez-me pensar também na

formatação da educação institucional, seja educação infantil, ensino

fundamental, médio ou universitário – em que o quadrado ainda

impera, desenho rígido, ângulos retos, linhas estáticas. O quadrado

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pode ser estrutura que organiza, oferece base, mas também pode ser

grade que aprisiona e estanca o fluxo do movimento. Através das

Danças Circulares, vi a educação na fôrma, quadrada e imaginei: se as

práticas educativas fossem arredondadas, tudo poderia fluir melhor.

Não poderia? (OSTETTO, 2006, p.155).

Desta forma, propõe que é essencial provocar as múltiplas linguagens do adulto

educador, descentralizar a docência do território da razão. Para tal, o círculo de dança se

apresenta como caminho, um convite à experimentação do corpo de uma forma

inusitada, que sai do padrão cotidiano e normativo. É situação de deslocamento, em que

o ―eu‖ se transfere a outras identidades, construindo outras relações consigo e com o

meio, com a cultura e com o outro, com o diferente.

Dançar a cultura de outros povos permite que a interculturalidade seja praticada

na sua forma fundamental, sendo uma maneira radical de se experienciar o

multiculturalismo. O dançar em círculo pode inclusive ser um ato de resistência à lógica

homogeneizante e sua prática pode significar uma atitude contra-hegemônica de

expressão individual e coletiva.

É nesse sentido que explicitamos a importância de investigarmos caminhos para

uma pedagogia que nos leve a descobrir formas renovadas de sentir e perceber a

realidade, do deslocar do pensamento, da expansão da consciência, da existência, da

vida. Para tal, apontamos para uma necessária educação da sensibilidade, que busca

alcançar a potência latente de ser humano inteiro, em todas as nossas faculdades.

―Educação estética‖, ―educação do sensível‖, ―educação poética‖ são termos que vêm

surgindo em produções acadêmicas recentes, chamando atenção para a centralidade do

corpo e de outras funções da consciência, além do pensamento e da cognição.

Hoy sabemos que hay una nueva modalidade de la experiência

educativa que intenta poner el acento en el cuerpo y, en sus

variaciones sensibles, rescata la imaginación, la contemplación, la

atención, el sentimiento, la percepción, el asombro; así como los

princípios de introspección, delicadeza, inexactitud, fineza y

variabilidad (GALLO 2014, p. 199).

A referida autora indica que a aprendizagem deve passar pelo afeto, pelo gosto,

pelo coração, pelo corpo. Pois quando ensinamos com gosto, fazemos ressoar as

palavras que nos tocam, nos conectam com a vida e produzem vitalidade, reverberando

naqueles que escutam a aprendizagem do que ―existe nas palavras‖, em vez do

prescritivo ―o que é a palavra‖. ―Si el maestro no propone modelos porque no le interesa

moldear al otro, su posibilidad es emitir signos, signos que den qué pensar y sentir‖

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(GALLO, 2014, p.200). A educação da sensibilidade não pode, de forma alguma, estar

calcada na reprodução de modelos. Podemos dizer que a educação sensível se apresenta

como concepção fundada sobre o heterogêneo, a pluralidade, acolhendo a diversidade e

sendo, sobretudo, um ato de criação, um modo de conhecer. A arte e as práticas

corporais estão no âmago desta pedagogia, pois estas expressões ―muestran que las

cosas pueden ser de otras maneras, le apuestan a la diferencia, a las utopias, rompen las

formas periódicas‖ (GALLO, 2014, p.203).

Chegando às considerações (por ora) finais

É através da Arte e suas múltiplas linguagens que sugere-se para o campo da

educação ―uma abordagem integradora do ser humano, denominada educação da

sensibilidade estética‖ (COUTO, 2010, p.177). Diretamente ligada à vivência do lúdico

e do belo por meio das mais variadas expressões artísticas, tal educação inscreve-se

pelas manifestações como o desenho, pintura, escultura, dramaturgia, dança,

coreografia, música, audiovisual, cinema, poesia, literatura, assim como o jogo e a

brincadeira, dentre tantos outros que compõem este universo expressivo. Podemos

captar nas seguintes palavras da educadora e artista plástica Marly Meira a ideia que

paira em relação ao ―para quê educar‖ contido na proposta de uma educação sensível:

Para recuperar essa harmonia fundamental que não destrói, que não

explora, que não abusa, que não nos faz ignorantes de nossos poderes

mais importantes, que não nos torna tolos, perversos nem feios pela

falta de amor. Para que isso aconteça é preciso aprender a olhar e a

escutar sem medo de deixar de ser, sem medo de deixar o outro ser em

harmonia, sem submissão (MEIRA, 2003, p. 108).

As Danças Circulares Sagradas, conforme apresentado e discutido neste

trabalho, se apresentam como possibilidade de acionar outras formas e dimensões do

conhecer, e têm em sua essencialidade ―sinalizar e abrir passagem para acessar

conteúdos negados, reprimidos ou desqualificados no mundo da racionalidade

científica‖ (OSTETTO, 2010, p.52). Como já dito, tal mundo a que se refere a autora

vem se construindo sobre relações de poder que centralizam modelos étnicos, raciais, de

gênero, sexualidade, etc. No entanto, na roda de dança notadamente acessamos saberes

e afetos que descentralizam, experimentando conhecimentos de grupos considerados

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periféricos na sociedade em que estamos. Isso é o que torna essa prática tão

especialmente intercultural.

Enfim, pode-se afirmar que as contribuições que as Danças Circulares Sagradas

trazem à Educação multiplicam-se e reverberam como ondas na água. Dançando de

mãos dadas, voltados ao centro comum, o grupo dança para si mesmo, partilhando da

vivência de venerar os ciclos da vida e da natureza através dos símbolos que emergem

dos gestos. O próprio círculo, como princípio fluído do movimento da roda de dança, é

forma que abole as assimetrias, as divisões e hierarquias, dinamizando, acolhendo e

integrando; símbolo sagrado para diferentes culturas, representa o espiritual, o celeste, o

transcendente (OSTETTO, 2009). Por caminhos circulares, revelando e acolhendo o

outro, podemos tecer propostas e vivenciar práticas de relações interculturais carregadas

de sentido, respeito, gentileza, beleza, humanidade – seja na escola, seja em outros

espaços sociais e educativos.

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14

AS DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS: POTENCIALIDADES

INTERCULTURAIS NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES

Solange Mara Moreschi Silva - UFMT

Beleni Saléte Grando - UFMT

Resumo:

O artigo apresenta dados da pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Mato

Grosso, a qual objetiva compreender a potencialidade das Danças Circulares Sagradas

para a formação de educadores na perspectiva da educação intercultural, tendo o corpo

como lócus de aprendizagem e análise. A interculturalidade adota uma postura

pragmática das relações, estuda a comunicação entre diferentes culturas e pessoas, para

entender como as pessoas criam sentidos, gestos, ações, palavras para outras formas

sutis de comunicação e como usam isso para conviver. Em nossos estudos com povos

autóctones do Brasil, compreendemos a interculturalidade e a centralidade do corpo na

educação da pessoa, sobretudo para uma educação voltada ao reconhecimento de si na

relação com o Outro. A dança que educa e comunica as formas de ser específicas e

diferenciadas de cada grupo e povo, é o recurso didático de investigação na ação

formativa de educadores. A pesquisa tem como colaboradores um grupo de 20

professores de uma Escola Estadual localizada em uma cidade pantaneira de Mato

Grosso. Os recursos utilizados para a coleta foram: registros em audiovisual de oficinas

de danças circulares sagradas realizadas com os participantes, questionário

semiestruturado e roda de conversas. A análise dos dados, orientada pela triangulação

de métodos, nos leva a problematizar a formação de educadores e a relevância da

educação do corpo para a educação intercultural na escola, para que, a partir dessa

relação vivenciada pelos educadores, os mesmos possam ampliar a compreensão das

identidades e culturas em relação na escola. No contexto da educação que passa pelo

corpo, a dança como uma expressão de identidade e cultura é compreendida como

prática social, que expressa marcas dos tempos (história) das relações interétnicas e que

continua a dar sentido e significados específicos em diferentes espaços (territorialidade).

Palavras-chave: Corpo. Dança Circular Sagrada. Interculturalidade.

Introdução

Compreender a potencialidade das Danças Circulares Sagradas (DCS) para a

formação de educadores na perspectiva da educação intercultural e ter o corpo como

lócus de aprendizagem e análise foi o objetivo para este estudo. Nossa perspectiva é a

de ver o corpo como lugar de afetar e ser afetado pelas experiências que nos pautam,

para validar outros modos de conhecer, de qualificar a sensibilidade, o sentimento e

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12131ISSN 2177-336X

15

reconhecimento de outros modos de ser e de viver, investindo nos desafios da

diversidade cultural e do diálogo intercultural.

Os estudos sobre as danças dos povos tradicionais e autóctones suscitam cada

vez mais diálogos, necessários para aprofundar o entendimento sobre as diferentes

formas de interação com a cultura do Outro. O encontro com o Outro é um dos

princípios que orientam os estudos e as práticas pedagógicas voltadas para a inclusão

social e a diversidade como um bem a ser partilhado na educação escolar e por isso

mesmo, deve permear a formação de educadoras e educadores em todo o país.

Na atualidade, as Danças Circulares Sagradas tem seguido esse caminho,

propondo um movimento que traz inúmeras contribuições para o âmbito educacional,

uma vez que busca, através da prática corporal e simbólica, ressignificar os contextos

históricos e culturais dos povos. Por meio do ritmo, da musicalidade e dos passos

milenares, a dança propicia o encontro dos praticantes com a diversidade, abrindo um

caminho de autoconhecimento e de reconhecimento de cada raiz cultural vivenciada.

O bailarino polonês/alemão Bernhard Wosien (também coreógrafo, filósofo e

pedagogo), considerado o precursor das Danças Circulares Sagradas, na década de 1970

reconheceu as marcas de identidades dos povos de culturas tradicionais da velha

Europa, que conheceu e difundiu pela dança. Como um movimento que pressupõe o

encontro com o outro, a DCS conheceu uma rápida expansão e chegou ao Brasil em

meados dos anos 1980. Hoje sua prática é conhecida e vivenciada em todos os estados

brasileiros (RAMOS, 1998; BERNI, 2002; OSTETTO, 2006).

Neste trabalho, buscamos evidenciar a grande contribuição que as danças podem

trazer para o sistema educacional, uma vez que vivemos consideravelmente angustiados

por uma separação interior, da perda da unidade entre espírito-corpo e alma. É urgente a

necessidade de ―delinear uma Pedagogia que abranja o inconsciente, pois, no sentido de

uma ação, a dança é menos pedagogia (como disciplina científica), mas, sobremaneira,

formação humana.‖ (WOSIEN, 2000, p.65).

Nosso eixo de estudo articula o movimento da Dança Circular Sagrada com a

demanda da formação de educadores. A dança que educa e comunica as formas de ser

específicas e diferenciadas de cada grupo e povo, é o recurso didático de investigação e

na ação formativa de educadores. A pesquisa tem como colaboradores um grupo de

professoras e um professor, de um município localizado no Pantanal Mato-Grossense,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12132ISSN 2177-336X

16

cuja identidade cultural é fortemente marcada por danças tradicionais ritualizadas nas

festas religiosas locais.

Os recursos utilizados para a coleta foram: registros em audiovisual de oficinas

de danças circulares sagradas realizadas com os participantes (no contexto de um curso

de formação continuada voltado à inclusão dos estudos da história e cultura indígena, no

caso, a do Povo Bororo, realizado em 2015, em Cuiabá-MT), questionário

semiestruturado e roda de conversas. A análise dos dados nos leva a problematizar a

formação de educadores e a relevância da educação do corpo para a educação

intercultural na escola, sobretudo na relação vivenciada entre os pares na ampliação e na

compreensão das identidades e culturas em relação na escola. As rodas foram

sistematizadas em oficinas semanais, ao todo 48 horas presenciais, a fim de garantir a

participação e a escuta qualificadas do grupo num tempo necessário à acomodação da

formação no corpo.

Os fundamentos teóricos da pesquisa são respaldados nos estudos de Berni

(2002) e Bonetti (2002), referências das Danças Circulares no Brasil; Wosien (2002),

para compreender o Sagrado da dança; Ostetto (2006), que além de estudiosa dessa

dança discute suas contribuições para os processos formativos de educadores e Grando

(2004; 2014); que traz a compreensão da dança como prática corporal e os processos de

educação como expressão de identidade e cultura, e outros com os quais nos

referenciamos na pesquisa.

O compreender e o fazer tornam-se mais amplos quando experimentados no

corpo. Também pelas sensações e saberes que não estão escritos nos livros, mas que

através das imagens, das músicas, das danças, e das experiências vivenciadas no corpo,

sinalizam a construção de estratégias necessárias para currículos mais interculturais,

com possibilidades de aprofundar estudos, problematizar as diferenças culturais, enfim,

educar o olhar para o diferente.

Assim, ao trazemos a proposição da formação na perspectiva da Educação

Intercultural, implica necessariamente nos relacionarmos, ir em busca do Outro que é

diferente.

A interpretação cultural compreende todo o processo de dominação

cultural que envolve a globalização, em seu afã por impor uma cultura

hegemônica. Essa perspectiva também recorda a necessidade de

respeitar a diversidade cultural, que compreende as diversas visões de

mundo e os diferentes sistemas e concepções religiosas, fundamentais

para preservar a pluralidade e para assegurar as condições vitais para a

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12133ISSN 2177-336X

17

convivência democrática e intercultural na sociedade humana

(MARIM, 2009, p.133).

Na busca por conhecer como a dança pode ser essa prática social significativa,

capaz de expressar identidades coletivas a partir dela, mobilizamos os corpos para a

Educação Intercultural, nos colocamos dentro do movimento da Dança Circular Sagrada

e passamos a dialogar com histórias e culturas diferentes provocando na prática

investigativa com os professores, nossa questão orientadora: como se dá o processo de

educação intercultural pela educação do corpo? Como as danças circulares contribuem

para a educação do corpo e para as aprendizagens interculturais?

Nesta direção, o grande desafio para a formação de professores, nos diz Fleuri

(2003), é repensar e ressignificar a própria concepção de educador. O que nos faz

acreditar que a relevância da pesquisa em questão é justamente a evolução da cultura

humana construída em situações sociais de aprendizagem, tendo a educação do corpo

como um mecanismo para a compreensão das diferenças culturais que estão também no

corpo do outro.

Nosso pressuposto é o de que ao recriar as técnicas e danças em diferentes

contextos é possível perceber que, quem dança, recria a dança a partir da sua

corporeidade, sua história, sua cultura e sua experiência corpórea e nela se educa numa

dimensão para além da centralidade do eu.

No diálogo com as referências bibliográficas e com os dados produzidos na

investigação, a primeira fase da pesquisa já nos mostra que a prática pedagógica pautada

nas Danças Circulares Sagradas tem grande potencial de educação do corpo e de

mobilização para a aprendizagem que supera a revisão de conteúdos ou os limites das

formações iniciais pautadas na fragmentação disciplinar.

A Dança Circular Sagrada e a Educação Intercultural do Corpo

Desejamos alcançar o Outro no universo da cultura por meio da centralidade que

reconhecemos no corpo para apropriação do mundo e a consciência de si mesmo. É no

corpo que expandimos nossa vivência para além dos limites estabelecidos por nossa

individualidade, acrescentando a ela a visão e experiência do coletivo, de um ponto de

vista novo.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12134ISSN 2177-336X

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A Dança Circular Sagrada é uma proposta que convida o ser humano a vivenciar

sua totalidade, integrando corpo, emoção, mente e espiritualidade. Conforme Dubner

(2015, p.16), ―[...] em roda de mãos dadas, visitando danças coletivamente em diversos

ritmos, gestualidades e melodias, ampliamos nossa consciência corporal‖. Podemos

compreender ainda, na perspectiva da concepção Walloniana, que a consciência do

corpo é a consciência de si e do mundo (GRANDO, 2014).

Pelas danças na roda resgatadas de velhos povos da Europa, é reintroduzida na

contemporaneidade a possibilidade de uma dança coletiva e simbólica onde o homem

resgata seu sentimento de pertencimento comunitário, redescobre novas possibilidades

de conectar a si mesmo e ao outro, distancia-se de padrões tipicamente mecanicistas,

mercantilistas, racionais e individualistas (WOSIEN, 2000).

Ao analisar os elementos presentes na cultura de um determinado povo, sua

prática corporal e forma de vida, buscamos estabelecer um diálogo intercultural

produzindo saberes com tempos e espaços diferenciados, evidenciados nas danças que

implicam em ressignificação das práticas educacionais cotidianas.

Se a ciência visa uma constatação, conforme nos diz o Bernhard Wosien (2000,

p. 65), ―a dança é uma oferta dessa ordem. Onde pessoas dançam umas com as outras,

elas se educam e se formam a si mesmas‖.

Para compreender o corpo como centralidade da pessoa, como nos ensinam as

sociedades tradicionais, e compreender suas histórias e culturas, acredita-se que este

corpo deve passar por aprendizagens e por experiências que levem o reconhecimento

dessa cultura. Os estudos têm mostrado que é pelo corpo que cada grupo étnico se

constitui como coletivo. Os povos indígenas tradicionais, por exemplo, tem no corpo a

centralidade da construção de suas identidades, resultante de um processo de tecedura

coletiva e sociocultural. Manifestas em rituais e até mesmo na história de conflitos

interétnicos, as transformações das culturas são também expressas e podem ser

reconhecidas no corpo (GRANDO, 2004).

Em relação aos processos que nas tramas da cultura tecem corpos específicos,

Grando (2009) a partir do conceito de técnicas corporais de Mauss (1979), afirma que as

práticas corporais são produções sociais que dão sentidos e significados próprios, em

cada grupo social e cultura, às educações do corpo. Essas práticas educativas, que são

práticas corporais específicas, como as danças, os jogos, as formas de cuidar e exercitar

o corpo se estabelecem no cotidiano e nos momentos ritualizados como uma aula, por

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12135ISSN 2177-336X

19

exemplo. E assim, marcam-se formas de ser e viver nas quais a pessoa individualmente

se identifica e é identificada, ao mesmo tempo em que a prática a integra a um

determinado grupo como possibilidade de reconhecimento de si e do outro.

Se, como afirma Grando (2004, p.42), ―[...] cada povo tem sua cultura expressa

nas maneiras de pensar, de sentir e de agir, guiados por normas, valores e símbolos‖,

reconhecer essa dimensão do corpo como centralidade para compreender a história e a

cultura a qual o outro é pertencente, é elemento chave na formação de pessoas que

consigam ter a sensibilidade de não ver nas coisas dos povos tradicionais como ―coisas

menores‖.

Tendo isso posto, nos remetemos às Danças Circulares Sagradas ou às danças

de rodas, conforme nos diz Ramos (1998 p.179) compreendendo que essas ―[...]

englobam em seu movimento as chamadas Danças Étnicas, que significa peculiar a uma

raça ou nação. Portanto, remontam à cultura de um determinado povo, simbolizando sua

expressão musical e corporal‖.

As Danças Circulares Sagradas são compostas de danças tradicionais e

contemporâneas, inspiradas no folclore de diferentes culturas do mundo; a dança, como

prática milenar sempre presente nas pequenas comunidades nativas em todos os

continentes, foram pesquisadas em suas particularidades, histórias e ritmos, e adaptadas

para potencializar a educação, a cultura e a saúde. As Danças Étnicas ocupam um lugar

importante neste momento da evolução da humanidade, pois, tanto pela sua forma

circular e pelas figuras geométricas que se formam quanto pela evocação das músicas e

melodias de povos e tradições antigas, dão aos participantes oportunidades de recriarem

movimentos livres e harmoniosos (WOSIEN, 2000).

No processo formativo de educadores, a Dança Circular pode então, reunir

componentes que foram transmitidos pelas músicas e pelos costumes da comunidade,

em manifestações que foram além de informar fatos mitológicos e épicos, pautado no

pensamento mítico religioso, também retrataram a vida simples dos camponeses de

diversos países em suas atividades diárias de pesca, plantio ou colheita. Por conter

vários recursos educacionais, a dança em roda tem alto valor construtivo no

desenvolvimento da sociabilidade.

O repertório das danças é composto por músicas dos povos do mundo todo:

hebraicas, gregas, ciganas, africanas, indígenas, israelitas, russas, tibetanas, húngaras,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12136ISSN 2177-336X

20

indianas, africanas, japonesas e entre tantas outras, proporcionam um pequeno mergulho

nas culturas regionais brasileiras.

No caso das oficinas de formação realizadas no processo da pesquisa, notamos

que as canções estudadas e vivenciadas possibilitaram discutir questões e valores éticos,

morais, culturais e sociais necessário à sensibilização do indivíduo em sua totalidade.

Aquele que dança, busca através de seu corpo em movimento, dizer o

que sente e o que não consegue expressar em palavras. Ele revisita a

sabedoria dos povos percorrendo seu caminhar e compreendendo suas

crenças e símbolos em movimento. Recria pela arte corporal os

significados em sua vida. Realizando passos inspirados em

determinado povo, recria sua cultura, crenças e símbolos. Pelo gesto

simbólico, constrói sua jornada na dança, podendo levá-la para a vida,

para seu modo de ser e agir no mundo (GOMES, 2015, p.134).

O que caracteriza essas danças é o espírito comunitário que elas promovem e

este é um dos motivos pelo qual ela é tão interessante para a educação. Conhecer os

hábitos e costumes dos povos formadores da cultura de base é começar a entender

também um pouco melhor a cultura popular, conhecimento este de importância

fundamental no conteúdo curricular das escolas:

Participar de danças de diferentes "etnias" é um modo de conhecer e

reviver o sentimento do povo ao qual pertence a dança. É uma forma

de afirmar a identidade de um povo, difundindo sua cultura de uma

forma pacífica e solidária. Quando se dança a dança de todos os

povos, cria-se uma nova identidade cultural universal, onde se

vivencia a ideia da Unidade do mundo, e se trabalha de forma

incessante pela Paz (RODRIGUES, 1998, p.45).

Cada dança, dentro das suas características culturais, atua na transformação de

estados emocionais e físicos. A força da dança em Círculo é conhecida há séculos, e é

um poderoso símbolo de unidade e totalidade. No Círculo não existe hierarquia e as

atitudes de competição são substituídas por atitudes cooperativas, onde os participantes

do grupo podem ajudar a superar os erros uns dos outros, manifestando o melhor de

cada um. A Dança Sagrada traz a esperança do crescimento e da transformação

conscientes em comunhão com outras pessoas.

Muitos são os relatos sobre o potencial das danças circulares que conduzem à

sensibilização do corpo e, portanto, reúnem elementos que servem de base para que a

aprendizagem seja intercultural. Para Valéria Pinto (2015, p.176), ―[...] as danças

circulares nos possibilitam estarmos presentes interna e externamente, em contato com o

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12137ISSN 2177-336X

21

outro, olho a olho, mão a mão e, simultaneamente, amplia a percepção de si mesmo ao

desenvolver a sensibilidade e o fortalecimento da imagem própria‖.

Bennett (2013) defende a configuração do pensamento intelectual da sociedade a

respeito de concepção de bem viver, de preservação, de valorização e de manutenção

das diferentes culturas se estabelece com a formação intercultural, e esta aprendizagem

é essencial para que todos convivam em paz no mundo. Segundo ele, devido nossas

diferenças, nós ―[...] tentamos converter a pessoa diferente para que seja igual a nós.

Infelizmente, porém, se essa conversão falha, a história mostra que o ser humano parte

para a saída mais simples, que é eliminar o povo culturalmente diferente‖ (BENNETT,

2013, p.17).

Nessa direção, Bernhard Wosien (2002) afirma que a dança educa o homem

como um todo, enriquecendo e expandindo o espaço de vida; complementa a ideia da

Dança como despertar da consciência coletiva e nos leva a reconhecer as diversas

culturas, pois:

Quando se dança a dança de todos os povos, cria-se uma nova

identidade cultural universal, onde se vivencia a ideia de unidade na

diversidade do mundo, e se trabalha de forma incessante pela paz. [...]

A dança é um dos meios mais destacados da pedagogia Criativa. Em

nossa sociedade industrial e de desempenho, a educação é hoje, cada

vez mais, um condicionamento de comportamento, que só permite o

desenvolvimento e a realização pessoal de forma insatisfatória.

(WOSIEN, 2002, p.63).

Na aprendizagem intercultural – aprender a (re)conhecer criticamente as

diferenças culturais e a relacionar-se com elas de forma positiva e construtiva é hoje um

vetor central na educação de pessoas que procuram mecanismos para inferir sobre o

fenômeno educativo. Pensar numa educação para o plural implica reestruturar o sistema

de atitudes em cada um de nós através das representações que temos dos outros, pois a

interculturalidade

[...] implica as noções de reciprocidade e troca na aprendizagem, na

comunicação e nas relações humanas. [...] Por isso é preciso

professores interculturais, que possam contribuir para a construção

também de crianças interculturais, que possam comunicar-se e

respeitar-se. Professores que sejam capazes de pôr em prática

pedagogias da divergência e não apenas de convergência (VIEIRA,

1999, p. 68).

Na perspectiva intercultural, as reflexões foram provocadas nos processos

epistemológicos éticos e políticos, a partir das relações hierarquizadas de saberes

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12138ISSN 2177-336X

22

fragmentados, substituindo para o contexto histórico de relações que se entrelaçam, se

entrecruzam e recriam novas formas de ver e agir sobre o mundo.

O reconhecimento do ―outro‖ como possuidor de conhecimentos, segundo

Marím (2009, p.132) significa: ―[...] admitir o valor e a pertinência de suas culturas

como premissas para construir o diálogo intercultural, como fundamento democrático

da educação‖. Este autor da interculturalidade tem nos subsidiado como pesquisadoras

para compreender as ações pedagógicas e as perspectivas das práticas corporais para a

promoção da Educação Intercultural na formação de professores em Mato Grosso.

Fleuri (2003), no campo da intercultura, suscita: ―[...] diferentes iniciativas e

movimentos vêm desenvolvendo proposta de educação para a paz, para os direitos

humanos, para a ecologia, para os valores‖. Sua proposição amplia-se ao afirmar que:

O Brasil se constitui historicamente como uma sociedade multiétnica

tomando-se por base uma imensa diversidade de culturas. Reconhecer

nossa diversidade étnica implica ter clareza de que os fatores

constitutivos de nossas identidades sociais não se caracterizam por

uma estabilidade e fixidez naturais. As identidades culturais - aqueles

aspectos de nossas identidades que surgem de nosso pertencimento a

culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas, nacionais - sofrem

contínuos deslocamentos ou descontinuidade (FLEURI, 2012, p.223).

A resposta à educação intercultural não deve ser subalterna, por isso, estar

presente na roda da dança requer revisão de valores e de posturas. Dificilmente

encontraremos nas escolas e/ou nas academias um recurso com valor inestimável para

dar conta das diversidades. A dança não é uma mera didática e sim, uma pedagogia

profunda na qual cabe o ser humano por inteiro.

Assim, ao estudarmos o contexto da educação que passa pelo corpo,

compreendemos a dança como uma expressão de identidade e cultura, como prática

social, que expressa as marcas do tempo e das relações interétnicas que continua a dar

sentido e significados específicos em diferentes territórios (espaços). Como produção

cultural, a dança tem uma dimensão simbólica que é complexa, que extrapola os

tempos-espaços do ritual e comunica as identidades e os movimentos do que se vive

como grupo, para o outro (GRANDO, 2004).

Em um país multicultural como o Brasil, a educação para a diversidade é

responsabilidade de todos os sujeitos educacionais, daí a relevância de, na formação,

ampliarmos práticas educativas que contribuam para a formação de educadoras e

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

12139ISSN 2177-336X

23

educadores que buscam pautar suas práticas pedagógicas na construção da cidadania, a

nosso ver, um marco histórico que busca refletir sobre a transversalidade das relações

multiculturais.

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DANÇAS CIRCULARES SAGRADAS E SAÚDE MENTAL: NOVOS OLHARES

NA FORMAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Maria Cristina de Freitas Bonetti - UEG

Tadeu João Ribeiro Baptista - UFG

Resumo:

Os serviços de saúde mental no Brasil vêm desde a Reforma Psiquiátrica de 1990,

possibilitando a inserção na sociedade de pessoas com transtorno mental moderados a

graves, e de usuários de álcool e outras drogas (CAPSad), de acordo com a faixa etária,

adulto ou infanto-juvenil. A proposta central está em tratar as pessoas não por seu

diagnóstico ou limites apresentados pelos diferentes transtornos, mas trazendo

possibilidades de situar a pessoa nas relações que ela estabelece com ela mesma, com a

família, a comunidade ao seu redor e a sociedade em geral. A mudança no foco de

atenção integral se propõe a partir dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),

divididos de acordo com o local de inserção e a região atendida em CAPS I, II e III, a

fim de atender as demandas da Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde

(BRASIL, 2004). Uma das características dos CAPS é o trabalho em equipes

multidisciplinares compostas por médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais,

professores de educação física, arte terapeutas, músico terapeutas, entre outros

profissionais. Para desenvolver o trabalho se realizam oficinas e atividades com

diferentes profissionais, como ocorre em Goiânia, onde as Danças Circulares Sagradas

se constituem como uma prática social e corporal relevante. Nesse texto refletimos

sobre as possibilidades terapêuticas das Danças Circulares Sagradas no processo de

tratamento da Saúde Mental em CAPS. A partir dos registros feitos em nossa

experiência e considerando este espaço-tempo como relevante para problematização o

uso destas práticas corporais, visa: a) refletir sobre como as Danças Circulares Sagradas

podem contribuir para que a partir do corpo, as pessoas consigam aprimorar o processo

saúde-doença no contexto mental; b) analisar a relação destas práticas com o processo

de formação do professor de educação física que atua no CAPS.

Palavras-Chave: Danças Circulares, Corpo, Saúde Mental.

Introdução

A saúde mental é uma das áreas presentes na Saúde Pública que tem demandado

maior atenção nos últimos anos. A mudança no modelo de atenção ao processo saúde-

doença tem sido revisitado, procurando não apenas prevenir e controlar as enfermidades

que acometem o ser humano neste campo, mas entende-lo pela lógica da integralidade e

do cuidado. Desse modo, o foco desse texto é pensar o uso das Danças Circulares

Sagradas (DCS) como uma forma de contribuir para a vida das pessoas, bem como,

refletir sobre a sua contribuição na formação de professores que atuam com este grupo.

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12142ISSN 2177-336X

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Assim, este texto será dividido em três partes, a primeira, apresenta rapidamente o

contexto da saúde mental na atualidade, em segundo apresentaremos o contexto das

DCS e, finalmente, refletiremos sobre o uso das DCS com as pessoas com transtorno

mental e a contribuição na formação de professores que atuam com estes grupos.

Introduzindo a ideia da Saúde Mental

Os serviços de saúde mental no Brasil durante muito tempo foi uma história de

descaso, humilhação, mortes e tratamento desumano (ARBEX, 2013). Como forma de

se contrapor a este modelo, seguindo de certa forma os movimentos sociais que

contribuíram para o desenvolvimento da Reforma Sanitária Brasileira, os pacientes,

familiares e profissionais que atuavam na área dos transtornos mentais, se articularam e

começaram um movimento pelos direitos dos pacientes no final dos anos 1970 e que

ainda está em curso, denominado de Reforma Psiquiátrica (WACHS, 2008).

O foco central deste movimento passava pela mudança do modelo manicomial,

procurando trazer para o usuário um contexto maior de liberdade, a partir de mudanças

nas políticas públicas de saúde mental, as quais culminaram, entre outras coisas na

criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Estas unidades de saúde mental

desenvolvem várias atividades com o objetivo de acolher, tratar e reinserir do ponto de

vista psicossocial, pessoas que possuem algum tipo de sofrimento mental ou são

usuários de álcool e outras drogas (SOUZA et al, 2010).

Desde o início da Reforma Psiquiátrica, o foco tem sido atuar junto às pessoas

com sofrimento mental, ou que não conseguiam se organizar do ponto de vista da saúde

mental. De acordo com a OMS (2005), a saúde mental tem três elementos centrais:

conseguir lidar com o estresse normal do cotidiano, trabalhar de forma produtiva e

contribuir com a comunidade. O transtorno mental na sua forma moderada e grave

interfere nestes processos, de forma que as pessoas não conseguem lidar com o estresse

normal da vida, não conseguem desenvolver as atividades laborativas e não contribuem

com a comunidade com os seus grupos de referência.

Nos modelos tradicionais da psiquiatria, as pessoas com estas características

ficavam trancadas e isoladas do mundo, excluídas, para não atrapalhar o restante da

sociedade. Na perspectiva da Reforma Psiquiátrica, ainda que o modelo tradicional

coexista, procura desenvolver atividades que contribuam para a reinserção psicossocial

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destas pessoas, procurando garantir que as mesmas se mantenham próximas das

atividades cotidianas, das relações familiares, do trabalho e da participação na

comunidade.

Uma das formas de garantir este processo é a organização dos CAPS (BRASIL,

2004). Uma das características dos CAPS é o trabalho em equipes multidisciplinares,

compostas por médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, professores de

educação física, arte-terapeutas, músico-terapeutas, entre outros profissionais. Para

desenvolver o trabalho se realizam oficinas e atividades com diferentes profissionais.

Estas oficinas podem desenvolver vários tipos de atividades que vão das terapias em

grupo até as atividades artesanais, da consulta médica até o desenvolvimento de práticas

corporais alternativas.

Luz (2003) traz como referência a ideia de que as práticas corporais alternativas

são atividades realizadas com o corpo e que fogem da racionalidade biomédica. Têm

como foco o desenvolvimento de atividades que para além do contexto da ação

muscular e do gasto energético, trazem outras contribuições do ponto de vista dos

sentidos e significados culturais, além de serem pensadas a partir de uma compreensão

mais holística. A partir dessa compreensão, as Danças Circulares Sagradas se

constituem como uma prática social e corporal relevante, e apresentam algumas

possibilidades terapêuticas, considerando a possibilidade de constituir uma via de cura e

encontro do ser com ele mesmo. Ela pode ser uma boa forma de se recuperar a saúde

entendida aqui a partir da perspectiva apresentada por Canguilhem (1995), de que a

saúde é a capacidade de o ser humano lidar com as infidelidades do meio. Para esta

condição, o bem-estar mental se apresenta a partir da capacidade do ser humano lidar

com os seus contextos cotidianos e a saúde, por isso, é vista em um continuum entre os

extremos saúde e doença.

Danças Circulares Sagradas: fundamentos de cura e formação profissional

A Dança Circular Sagrada resgata uma simbologia ancestral. Retrata um

potencial de unificação, um valor arquetípico para ser compreendido sobre o que é

manifestado por meio da sua simbologia. Dançar em círculo é uma possibilidade de

cultivar a individualidade, ao mesmo tempo em que o coletivo se mantém.

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Cada um de nós, quando no círculo, está a uma mesma distância do centro, do

foco principal. Dessa forma, são abertas as portas para a reflexão mediante as

composições da geometria sagrada que no desenvolver da dança se estabelecem. De

acordo com Durand (2012, p. 323): ―O círculo, onde quer que ele apareça, será sempre

símbolo da totalidade temporal e do recomeço‖. Dançar em círculo é uma inspiração

enfatizada por uma atitude simbólica ante a vida e o viver e a crescente hibridação entre

espaço-tempo manifestado por meio do coletivo, enquanto o indivíduo experimenta o

seu próprio ‗eu‘; é abraçar e aceitar a vida que surge no limiar da consciência, e

vivenciá-la em plenitude.

A dança é uma arte silenciosa e também tem uma gramática; a

gramática do movimento. Quando nós escolhemos o primeiro e mais

simples caminho de estarmos juntos, unimo-nos num círculo.

Podemos então ver quantos há de nós, alguém está do outro lado,

alguém mais está à minha direita e à minha esquerda; esse é o começo

de se ter uma consciência um do outro [...]. E ao dançar essas formas

antigas, é como se estivéssemos entrando num outro tempo e

conduzindo esse antigo conhecimento para o movimento presente

(WOSIEN, 1983).

Dançar em círculo é garantia de unidade e igualdade, cria imagens que

estimulam o imaginário e a criatividade, permitindo uma maior capacidade de captar os

paradoxos da vida. A força do círculo em uníssono revela o mesmo passo e o mesmo

ritmo repetidas vezes, transcende o racional e permite um mergulho no misterioso

campo do imaginário e da memória coletiva.

O círculo sustenta o conflito e as mudanças, uma vez que os símbolos expressos

na roda de dança evocam o ciclo natural do viver, do morrer e do renascer, e estes

atuam de forma transformadora. O símbolo do círculo traz uma amplificação que

abrange e reúne imagens que ultrapassam as palavras e o intelecto; portanto, o círculo

reaviva temas universais e atemporais adormecidos no inconsciente coletivo e remete a

um pano de fundo no qual é possível reler a própria história individual.

Neste ponto, é importante apresentar as relações das DCS e a escola do andar. A

escola do andar é composta por movimentos simples e contam a história com os pés.

Nesta escola, depara-se com o caminho, que assim é visto por Bernhard Wosien (1983):

Este não é um caminho novo: as pessoas têm seguido este caminho

desde os tempos antigos — seres humanos buscando o sentido da

vida. Este caminho nunca será antiquado, ultrapassado, entretanto se

dedicação completa é exigida por aquele que busca, porque a resposta

à pergunta sobre o significado da vida é também a resposta à pergunta

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sobre as leis do mundo que em todos os níveis gira em círculos [...]. A

crise de nossa existência se assenta numa forma de pensar, numa

atitude mental, que tenta salvar a humanidade com a ajuda do

conhecimento unilateral rodeado pela funcionalidade de ações

perfeitas.

Ao caminhar nos passos da dança, o homem construiu um sentido simbólico

para a sua arte e a diversificou com características e movimentos distintos,

desdobrando-se em signos que se redobram em outras margens de pensamento. Parte-se

da premissa de que a dança não representa um fato isolado, mas a confluência de

sentimentos, pensamentos e visões de mundo de um determinado povo, cultura ou etnia.

O caminhar é, a meu ver, muito importante, porque se dá passo a

passo. O passo é um salto à frente, numa sincronicidade com o meu

movimento de corpo e com aquilo que acontece em mim. Ao percorrer

a região, a sincronicidade registra-se em mim, como uma experiência

[...]. Dessa forma, a experiência que acontece externamente, reflete-se

internamente. É esta a melhor maneira de se compreender o mundo

através de uma marcha viva. Bernhard Wosien (2000, p.103).

A experiência da comunicação com o sagrado que o homo religiosus vivenciou,

mediante suas diferentes linguagens e expressões artísticas, possibilitou uma

comunicação estética com o que compreendia como sagrado, tempo e espaço,

expressando esta comunicação mediante uma linguagem simbólica. Portanto, devido ao

fato de esta linguagem possuir elementos que podem ser comuns a várias culturas e

exprimir diferentes significados em cada uma delas, eles também contêm expressões

singulares de determinadas culturas, podendo estar inseridos nas mais distintas

circunstâncias, entre elas a própria ideia de reorganização do pensamento e dos

sentimentos a partir do movimento corporal, ou seja, da corporalidade.

Sob este prisma, M-G. Wosien (2002, p. 15) afirma que: ―Variantes dos signos

para a união do céu e da terra, que foram separados no mito da criação e se repetem

anualmente como metáfora cósmica, são também os motivos básicos da dança de roda e

das formas de seus movimentos e de seus passos‖.Todavia, é oportuno realizar uma

análise relativa aos padrões coreográficos encontrados nessas danças para averiguar os

motivos básicos, a forma de seus movimentos e os passos que foram consagrados pela

sociedade como tradicional, isto é, de forma universal. Estas encontram ressonância no

que foi materializado como dança étnica, tradicional ou folclórica, portanto, que se

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encaixam na lógica das práticas corporais alternativas propostas por Luz (2003), haja

vista fugirem da lógica da racionalidade biomédica ocidental.

Para compreender este processo evolucionário nas danças tradicionais, busca-se

recurso no processo histórico da construção de diferentes culturas e sociedades, seus

mitos, símbolos e rituais. Nas DCS encontram-se símbolos arquetípicos que caminham

deixando seus sinais no percurso simbólico das danças tradicionais e esses sinais

encontram-se projetados nas coreografias contemporâneas. Por meio da consonância do

som e dos movimentos, a dança busca articular uma linguagem que origina movimentos

geradores de profundas e inquietantes probabilidades do repertório corporal,

transmitindo uma ideia ou sentimento, expandindo os horizontes do sensível e do

raciocínio lógico, em seu contexto e plenitude, cooperando para a ampliação de sua

consciência como ser conectado ao universo.

A relação lógica do conteúdo da dança tem uma história com objetos, ações e

figuras do imaginário e do simbólico, bem como a lógica com que é tecida a sua

coreografia respondendo às mudanças no espaço cênico. Os contextos em que se

inserem as imagens representadas exprimem sentidos subjetivos transformados em

novas mensagens que podem atingir diferentes percepções e suscetibilidades, em

especial as relações por meio da dramaturgia corporal expressa nos passos da dança, as

quais podem contribuir para pessoas com transtorno mental reorganizarem-se

internamente.

O enfoque principal da pedagogia das Danças Circulares Sagradas, na visão de

seus idealizadores, Bernhard e Maria-Gabriele Wosien, é preservar a função

significativa da dança como arte que atua no coletivo, mantendo a linguagem simbólica,

num importante sistema de comunicação com os mitos e com as histórias que ficaram

gravadas nas tradições de alguns poucos guardiões dessa arte dançada.

Conforme relatado na introdução, no que se refere à coleta de dados para esse

trabalho, os registros aqui disponibilizados fazem parte de anotações, mediante partilha

nas rodas de dança, na qual era mantido o formato circular do grupo e, nesta forma de

círculo, todos podiam se olhar e se ver. Neste sentido, observou-se que havia garantia de

espaço para cada um expressar-se verbalmente, além de não haver críticas ou

preconceitos quanto ao olhar de cada um sobre o tema proposto. Portanto, constata-se

que, dentre muitas informações relatadas, algumas provêm das sensações que não

alcançam a consciência racional e utiliza-se de critérios próprios.

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12147ISSN 2177-336X

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Refletindo sobre o imaginário relativo à simbologia e significado de vários mitos

na dança em consonância com a diversidade de passos, gestualidade e movimentos

realizados com músicas originárias de várias culturas, pondera-se que as expressões

geradas pelo movimento arquetípico, sem intencionalidade consciente, provêm de

dimensões externas à consciência e absorvidas através do sistema de percepção, situadas

nas regiões que dispõem de vasto acervo e que processam informações seguindo leis

adequadas de coesão interna.

Foram construídas algumas vivências representadas por variados movimentos e

gestualidades corporais, além de músicas e ritmos variados, estudados e recriados para

esta proposta. Nas vivências que foram compostas por manifestas presenças femininas,

sempre houve um equilíbrio com a presença significativa de alguns homens e estes

propiciaram o estabelecimento de vínculos arquetípicos, além da condução de

determinadas danças.

Nesse processo de aprendizagem, encontra-se o focalizador que faz a conexão

das energias sutis e vibrações inerentes ao círculo de dança, para mantê-lo harmônico,

viabilizando, assim, um processo de ressonância e de interação. Ao ensinar as danças

sagradas, encontram-se sentimentos e sensações que envolvem questões mais densas, e

estas estão atreladas à disponibilidade de mudança, uma aventura do devir humano na

qual estão envolvidos o corpo, a mente, a espiritualidade e os sentimentos mais sutis.Por

sua vez, os conteúdos da espiritualidade caminham em uníssono com toda a vivência na

roda, uma vez que o simbolismo arquetípico das danças sagradas está em contato com

ensinamentos de tradições ancestrais.

Nas danças em roda, como modelos tradicionais do universo, a

transformação é baseada nas possibilidades infinitas de cada posição

em um círculo ser um ponto de viragem. Em relação a esses modelos

que deram estrutura à experiência humana através dos anos, com

atenção concentrada no silêncio, nossas identidades biográficas e

históricas restritas são experimentadas como relativas somente dentro

de uma maior armação simbólica. [...] Aprender a ouvir o silêncio, e

dar atenção ao "espaço entre" nós é o melhor professor de movimento

(WOSIEN, 2010).

Dessa forma, compreende-se que o aprendiz só aprende o que deve aprender em

determinada situação, se ele não estiver preparado para receber informações mais

aprofundadas, não adianta impelir. Tampouco existe uma única forma de aprender, e

esta não acontece apenas pela razão, ou simplesmente pela emoção. Na roda existem

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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alguns participantes mais auditivos, outros mais visuais ou então se encontram os

cinestésicos. Portanto, a Dança Sagrada, no seu processo de aprendizado, pode ser

expressa a todos, não existindo limitação; no entanto, deve ser respeitada a condição de

apreensão do aprendiz.

Ao explorar os saberes experienciais em vivência ritualizada de Danças

Circulares Sagradas, observa-se o focalizador como um ator encenando discursos

didáticos integrados à sua linguagem corporal e gestual, além do aspecto da voz e do

ritmo ao passar o conteúdo. Todos esses elementos são essenciais e influenciam o

resultado de uma vivência, na qual o jogo do aprender e o ensinar dialogam mediante o

repertório de conteúdo elencado para a realização da proposta.

Este é um processo educativo que se move em um universo de enigmas, e não

existem regras para esta pedagogia ser aplicada de maneira diferenciada, uma vez que

cada um assimila conforme a sua bagagem e a sua proposta com a dança sagrada. O

aprendiz precisa estar disposto para acolher a transformação, atingindo outra

compreensão da dança e do sagrado. Por sua vez, existem diferentes etapas de

aprendizado, algumas se encontram no campo racional, outras serão emocionais, outras,

ainda, mobilizam o campo do simbolismo, amoldável à consciência de quem o

decodifica.

Esta proposta se utiliza do círculo que é um ponto que se expande, assim, o

ponto simboliza a origem, o centro, o princípio da emanação e designa a força criativa e

o remate de todas as ocorrências. A meditação se origina no ponto, sendo ele o tema do

advento da integração espiritual. Assim, a dança contribui para um processo de

reorganização pessoal, o qual pode contribuir de modo significativo na vida das pessoas

com transtorno mental.

A preparação, nos seus pressupostos gerais, foi pautada como etapa simbólica do

caminho, obedecendo a critérios que foram preconizados por Bernhard Wosien, assim

como as formas e conteúdos das danças, que constituíram as discussões com o grupo

permanente de Danças Sagradas, composto por mulheres e homens, no qual houve

espaço para insights pessoais de um caminhar criativo.

Sendo assim, esta proposta teve por base a experiência criativa, incorporada aos

princípios da espiritualidade, respeitando todas as crenças. A oficina, dividida em três

caminhos, foi elaborada para ser utilizada e reconstruída a cada vivência, após ser

refletida em cada etapa da sua construção. A cada resultado obtido mediante partilha,

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12149ISSN 2177-336X

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observou-se a importância de dar espaço para que cada pessoa se expressasse quanto ao

significado individual da etapa/dança vivenciada, uma vez que ao ser colocado na roda

algo emergia no coletivo. Outro fator significativo foi a percepção de que um ciclo se

completava e se reconstruía alicerçado mediante novos desafios, e que esta forma

metodológica permitia dar continuidade à jornada terrena da aventura humana e de sua

investigação para expandir a consciência divina que reside em todo ser.

No primeiro caminho, considerado como uma preparação para a jornada,

buscou-se conhecer o espaço e cada um pôde refletir sobre a sua busca pessoal, bem

como o que despertou e o que motivou para realizar essa jornada. A primeira volta do

caminho da espiral evolutiva é a sensorial e pré-pessoal (BASSO; PUSTILNIK, 2001),

não se sabe por que acontecem as coisas, é fantasmagórico, são memórias caladas do

feminino arquetípico. É primordial recuperar a memória do processo evolutivo. Ao

desenvolver então as etapas desse primeiro caminho, os participantes são convidados a

reconstruir um retorno à confiança, à inocência, sendo um reencontro com a fé. É um

reconhecimento das percepções sensoriais e possibilidade de encarar a sombra, pois, o

caminhar para a luz, que reverbera esperança. Sombra e luz são percepções de energia

com um sentido mais aguçado; é a descida e subida na Terra em sincronia com uma

vida de magia e fluidez.

No segundo caminho, depara-se com o conhecimento de si mesmo, é a

oportunidade de poder sair da influência dos campos mórficos sociais, nos quais se

encontra a cultura para controlar. Por sua vez, utiliza-se a mente reflexiva e

representativa do padrão masculino, sendo a lei que se internaliza. Nesse caminho é

necessário o amadurecimento mental para germiná-lo de uma mente dialética e

integradora para ter insights metafísicos. Após a iniciação no primeiro caminho, na qual

foram enfrentados desafios profundos ao encarar a própria sombra e libertar-se com

confronto e correção, desembaraçar-se e germinar; no segundo caminho, as percepções

são liberadas, as metas estabelecidas e a energia em movimento interagem com o todo.

Ao concluir esse caminho, a sabedoria interior é honrada e inicia-se a entrada na terceira

volta da espiral, ou o terceiro caminho, que é a possibilidade de transformação.

O terceiro caminho está ligado às responsabilidades dos seres que são

conscientes e estão além das sensações corporais. É não abrir-se às qualidades menos

desprovidas do sensível. Este é o local onde se pergunta qual a frequência que está

alimentando o corpo físico. É uma qualidade mais densa ou mais sutil? Questiona-se,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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ainda, com qual frequência caminho no cotidiano, qual é a frequência que circulo no

meu devir. Esse é um caminho que desperta para a responsabilidade de retransmitir

frequências positivas e luminosidade ao campo mórfico social. Para que o ser humano

passe a perceber o seu campo morfogenético, potencializando o Ser que é, necessita

estar com a medula alinhada, possibilitando um sagrado espaço de silêncio.

Ao estudar os campos morfogenéticos da Dinâmica Energética do Psiquismo

(DEP), pode-se observar que o que se produz em nível de campo energético é o que é

vivido, os eventos que são vivenciados são consequências da organização desses

campos. Dentro dessa Dinâmica, somos um campo que tem portais e a consciência

navega por esses campos. Existem energias em todos os níveis, mas criamos entraves

para que ela se manifeste. Somos seres tridimensionais e vivenciamos múltiplas

experiências; o processo se repete e a cura é mudar o padrão vibratório. Nos caminhos

da dança, a pessoa percebe o que a fez travar, desbloqueando para que a energia se

manifeste. Quando o campo é coligado, ele se manifesta, o importante é fazer

movimento. A partir desse contexto pretendemos refletir como as DCS podem

contribuir no contexto da saúde mental.

Danças Circulares Sagradas, Saúde Mental e formação em Educação Física

A formação em Educação Física, sobretudo, no curso de Bacharelado em

Educação Física da UFG, tem se preocupado em formar discentes que tenham como

foco a atuação na saúde pública, a partir de um olhar diferenciado, tendo como

referência os princípios do SUS. Tem como o campo de estágio no 5º e 6º períodos (3º

ano do curso) o estágio nos CAPS. Ao mesmo tempo tem como um de seus conteúdos a

disciplina de Práticas Holísticas, a qual procura desenvolver conteúdos que se

aproximam da proposta de Luz (2003).

Assim, no contexto do curso procura-se trabalhar a partir de uma perspectiva

ampliada de saúde, com a lógica de que o bem-estar do usuário e a maneira como ele

lida com as suas relações é fundamental para o seu tratamento. Por isso,

compreendemos que o uso das Danças Circulares Sagradas é uma tecnologia leve-dura

importante (MEHRY; FRANCO, 2003) de intervenção do professor de Educação Física

na saúde pública, sobremodo, nos CAPS, uma vez que, os caminhos percorridos pelos

usuários com ajuda das DCS podem contribuir de maneira significativa.

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A proposta do curso (MARTINEZ et al, 2013) tem como foco formar um

profissional que tenha capacidade de intervenção na saúde pública com competência

técnica e compromisso político. Dessa forma, compreendemos o fato de que o processo

de tratamento deve ser desenvolvido a partir de um projeto terapêutico singular (PTS),

do qual pode fazer parte as danças circulares sagradas. A interação do usuário com ele

mesmo, com o outro que está ao seu lado ou à sua frente, é fundamental para que cada

pessoa possa se organizar dentro do seu contexto.

Para contribuir com o usuário, o profissional que está sendo formado, precisa ter

acesso aos conhecimentos, estratégias, símbolos, sentidos e significados apresentados

por estas danças. O professor tem que pensar para além dos conceitos religiosos, étnicos

e ter como foco as contribuições de cada prática para a pessoa que está sendo tratada.

Esta prática corporal não é uma mera atividade recreativa, é um trabalho de

desenvolvimento da própria consciência do usuário. Destarte, compreendemos que as

DCS são conteúdos fundamentais na formação de alunos de Educação Física.

Compreendemos, pois, que as Danças Circulares Sagradas são, não apenas uma

importante prática corporal no contexto do campo da Educação Física, mas acima de

tudo, um conteúdo fundamental para o desenvolvimento no contexto da formação

profissional, porquanto estas práticas corporais contribuem para a ampliação dos

conhecimentos dos futuros profissionais da Educação Física, mas, acima de tudo, uma

importante tecnologia leve-dura para ser usada pelos profissionais no contexto da saúde

mental.

Ao apresentar, ainda que de maneira rápida o processo de utilização das Danças

Circulares Sagradas para o CAPS, não estamos olhando apenas para o processo de

intervenção com usuários da saúde mental, mas, acima de tudo, pensar que tanto para o

professor de educação física como para o usuário, o acesso a este conhecimento se

constitui em um processo de formação humana, fundamental para o acesso à autonomia

e à emancipação humanas.

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