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RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – VERSÃO ESTENDIDA TEMA: SADDAM HUSSEIN E O PARTIDO BAATH NA TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO IRAQUIANO (1968-1991) Orientando: Sérgio Roberto Guedes Reis Orientador: Prof. Dr. Peter Robert Demant 1

Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

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Iniciação científica desenvolvida entre os anos 2005 e 2006 sob orientação do Prof. Dr. Peter Demant, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. A pesquisa foi desenvolvida com financiamento da FAPESP e trata da história recente do Iraque, com foco no estudo do regime do Partido Baath – mais especificamente do governo de Saddam Hussein – durante o período 1968-1991. O trabalho busca abordar a questão sob quatro perspectivas: política, econômica e social, cultural/ideológica e internacional, levando-se em consideração eventos de relevância interna e externa, como as guerras Irã-Iraque (1980-1988) e do Golfo (1991).

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RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – VERSÃO ESTENDIDA

TEMA: SADDAM HUSSEIN E O PARTIDO BAATH NA TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO IRAQUIANO (1968-1991)

Orientando: Sérgio Roberto Guedes ReisOrientador: Prof. Dr. Peter Robert Demant

Dez. 2006

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Índice

Apresentação.........................................................................................................................6

CAPÍTULO 1 – O Iraque Antes de 1958..........................................................................101. Mesopotâmia Antiga...............................................................................................102. A Civilização Árabe-Islâmica................................................................................113. O Império Turco-Otomano....................................................................................144. A Primeira Guerra Mundial e o Mandato Britânico no Iraque (1920-1932)....205. O Período 1932-1946...............................................................................................276. Os Últimos Anos da Monarquia (1946-1958).......................................................36

CAPÍTULO 2 – O Período 1958-1968...............................................................................461. O Surgimento do Partido Baath............................................................................46

a) Ideologia...............................................................................................................48b) Saddam Hussein, Infância e Juventude............................................................52

2.) O Período 1958-1968: Desdobramentos Históricos............................................54a) O Governo de Abd al-Qarim Qasim (1958-63)................................................54

i. Política Doméstica............................................................................................55ii. Economia e Sociedade....................................................................................57iii. Relação com os curdos...................................................................................59iv. Política Externa..............................................................................................60v. O Baath no Período 1958-63..........................................................................62

b) O Baath no Poder (02.63-11.63)........................................................................63c) O Governo de Salam Arif (1964-1966)..............................................................65d) O Governo de Abd al-Rahman Arif (1966-1968).............................................66e) O Baath no Período 1964-68..............................................................................67

CAPÍTULO 3 – O Período 1968-1979...............................................................................691. Aspectos Políticos....................................................................................................70

a) A Consolidação do Poder...................................................................................70i. Os Julgamentos de 1969..................................................................................70ii. A Neutralização dos Baathistas Civis e Militares........................................71iii. A Tentativa de Golpe de Nadhim Kazzar em 06.73...................................72iv. O Sistema de Segurança do governo Baath.................................................73v. O Controle do Exército...................................................................................74vi. A Expansão do Partido e da Burocracia Estatal.........................................75vii. A Rede de Clãs, o Clientelismo e a Patronagem........................................75

b) A Relação com as Oposições..............................................................................76i. Os Comunistas..................................................................................................77ii. Os Curdos........................................................................................................78iii. Os Xiitas..........................................................................................................80

c) O Aumento da Influência de Saddam Hussein.................................................822.) A Ideologia..............................................................................................................84

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a) O Autoritarismo do Regime...............................................................................85b) O Nacionalismo Mesopotâmico.........................................................................86

3.) Economia e Sociedade...........................................................................................87a) Economia e Ideologia..........................................................................................88b) A Nacionalização do Petróleo............................................................................89c) A Reforma Agrária.............................................................................................90d) O Desenvolvimento Econômico.........................................................................92e) Reformas Legislativas, a Educação e a Condição da Mulher.........................94

4. A Política Externa...................................................................................................96a) O Pan-Arabismo Radical (1968-1974)..............................................................96b) A Política Externa Pragmática (1975-79).........................................................98c) A Revisão do Conceito de Pan-Arabismo.......................................................101

CAPÍTULO 4 – O Período 1980-1988.............................................................................1031. A Guerra Irã-Iraque.............................................................................................103

a) O Contexto Regional e as Relações Bilaterais................................................104b) Razões, Objetivos e Motivações para a Realização da Guerra....................106c) A Estratégia do Exército Iraquiano................................................................108d) A Primeira Fase (1980-1981): Ofensiva Iraquiana........................................108

i. Os Erros e os Problemas na Estratégia de Saddam Hussein.....................109e) A Segunda Fase: Ofensiva Iraniana (1982)....................................................110f) O Impasse (1983-1986)......................................................................................111g) A Internacionalização da Guerra e a Vitória Iraquiana (1986-1988)..........112

2. A Política Externa.................................................................................................113a) A Relação com os Países Árabes......................................................................114b) Relação com a Europa e a União Soviética....................................................115c) Relações com os Estados Unidos......................................................................116

3. Política Doméstica.................................................................................................117a) A Assembléia Nacional.....................................................................................118b) A Centralização do Regime.............................................................................120c) A Relação com os Militares..............................................................................122d) Relação com os Xiitas.......................................................................................123

i. O SAIRI..........................................................................................................124ii. Razões para o Fracasso da Oposição Xiita.................................................124

e) Relação com os Curdos.....................................................................................126i. A Operação al-Anfal......................................................................................127

4. Ideologia.................................................................................................................128a) O Culto de Personalidade................................................................................129b) O Nacionalismo Mesopotâmico.......................................................................130c) Nova Revisão do Pan-Arabismo......................................................................132

5. Economia e Sociedade...........................................................................................132a) A Continuidade dos Programas de Desenvolvimento...................................133b) O Início da Liberalização Econômica.............................................................133c) Dívida Externa..................................................................................................134d) Impacto da Guerra na Infra-Estrutura e os Custos Humanos....................134e) Transformações na Estrutura Social do Iraque.............................................135

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CAPÍTULO 5 – O Período 1989-1991.............................................................................137I) O Período Pré-Invasão..............................................................................................138

1. A Economia Iraquiana: 1989-90..........................................................................138a) O Ressurgimento da Política “Canhões e Manteiga”....................................139b) A Continuidade da Liberalização Econômica...............................................139c) Efeitos da Política Econômica..........................................................................140d) Outros Problemas: o Shatt, a Queda do Preço do Petróleo e a Dívida Externa...................................................................................................................141e) Razões do Insucesso e Eventuais Políticas Alternativas................................142

2. Política Doméstica.................................................................................................144a) Promessas de Liberalização.............................................................................145b) Centralização do Poder, Escândalos Familiares e o Neopatrimonialismo. .146c) Relações do Regime com Xiitas, Curdos e Militares.....................................147

3. Política Externa.....................................................................................................148a) A Diplomacia Moderada..................................................................................149b) A Diplomacia Agressiva e o Contexto da Ofensiva Iraquiana no Kuwait. .151

i. Relações com os Estados Unidos e o Ocidente.............................................152ii. A Alteração da Política Externa dos EUA perante o Iraque....................153iii. O Caso Bazoft e a Operação Argus............................................................153iv. A Reunião com April Glaspie.....................................................................154v. Relações com o Mundo Muçulmano e o Aumento das Pressões contra o Kuwait................................................................................................................155vi. Razões para a Não Negociação do Kuwait................................................156vii. A Decisão pela Invasão, as Razões e os Objetivos Imediatos..................158

II) A Invasão ao Kuwait, a Coalizão Anti-Iraque e a Guerra do Golfo...................1591. A Ocupação do Kuwait, Estratégias, Pretextos e Erros de Cálculo.................159

a) Repercussão Internacional...............................................................................160b) A Anexação do Kuwait e os Acordos com o Irã.............................................161c) Tentativas e Estratégias de Negociação..........................................................162

i. O Encontro Aziz-Baker em Genebra...........................................................163ii. A Retirada do Kuwait em Troca da Saída Israelense...............................164iii. A Crise dos Reféns e os Saques ao Kuwait................................................164

d) A Formação da Coalizão e a Opção pela Guerra..........................................165e) Inevitabilidade da Guerra?..............................................................................167

2. A Guerra do Golfo de 1991..................................................................................169a) Estratégias Iraquianas......................................................................................169

i. Ataques a Israel..............................................................................................170ii. Ataque às Bases da Coalizão na Arábia Saudita.......................................171iii. Busca de Apoio da URSS pelo Iraque, o Conflito por Terra e o Cessar-Fogo....................................................................................................................172

3. A Destruição Econômica e Humana Causada pela Guerra – a Resolução 687 das Nações Unidas.....................................................................................................1754. Repercussões da Guerra na Opinião Pública Internacional.............................1775. Desenvolvimentos Políticos Domésticos..............................................................178

a) A Intifada: Motivações e Desenvolvimentos...................................................178i. Razões de seu Fracasso..................................................................................180

III) Aspectos Ideológicos..............................................................................................183

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1. Pré-Guerra: Confluência entre o Nacionalismo Árabe e o Islamismo.............1832. Pós-Guerra: Islamismo e a Ascensão do Tribalismo.........................................185

Epílogo (1991-2003)...........................................................................................................1871. Economia: Efeitos das Sanções das Nações Unidas sobre a População...........1882. Política Doméstica: A Manutenção e o Fortalecimento do Regime..................191

a) As Oposições Internas e os Grupos Exilados.................................................193i. As Fraquezas da Oposição............................................................................197

3. Política Externa: a UNSCOM, a Perda de Soberania e a Invasão dos EUA (2003)..........................................................................................................................199

Apêndice.............................................................................................................................205Mapa 1. Localização do Iraque no Oriente Médio (1993).........................................205Mapa 2. Iraque (Político) 2004.....................................................................................206Mapa 3. Composição Étnica do Iraque (1978)...........................................................207Mapa 4. Distribuição da Atividade Econômica Industrial no Iraque (1993)..........208Mapa 5. Uso da Terra no Iraque (2003)......................................................................209

Bibliografia........................................................................................................................210

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Apresentação

Esta iniciação científica tem como propósito a análise do Iraque moderno – mais

especificamente, o regime do Baath (1968-2003), em especial no período em que se deram,

de maneira mais efetiva, as transformações mais significativas para a sociedade iraquiana

(de 1968 até a Guerra do Golfo de 1991). Para efeito de maior didatismo e capacidade

analítica, dividiu-se o estudo realizado em seis capítulos:

No primeiro capítulo, tratou-se de se compreender, em linhas bastante gerais, as

formações históricas, sociais e econômicas da sociedade iraquiana. Partindo-se da

Mesopotâmia Antiga, passando-se pela Civilização Árabe-Islâmica e chegando-se até o

Império Turco-Otomano, buscamos observar a composição étnica e sectária da população

iraquiana, além do legado de suas produções culturais e das distintas maneiras em que se

organizou a sua sociedade. Destacamos o peculiar aspecto geográfico e geopolítico da

região mesopotâmica, alvo de constantes disputas, e a importância do Islã, não só como

religião, mas como formador de consciência política e de diferenciação social e que

permitiu a elaboração de uma cosmovisão própria por parte dos habitantes daquela

localidade. A seguir, investigamos o nascimento do Estado moderno iraquiano (1920),

graças à intervenção ocidental no derrotado e fraturado Império Turco-Otomano. Em

termos gerais, investigamos a formação das instituições no novo país (Exército,

Parlamento, Burocracia, entre outros), a descoberta de petróleo ao norte do país (1925), a

relação desse evento com os curdos, a histórica participação de potências estrangeiras

(notadamente a Grã-Bretanha) na delimitação da soberania do país, além do surgimento de

ideologias, como o pan-arabismo e o reformismo social, que dominariam as disputas

políticas dentre os iraquianos. A análise, neste primeiro momento, se encerra em 1958, ano

de grande relevância na história do país, na medida em que representa, com expressiva

participação militar(influenciada pelo nasserismo, no Egito), a transição do regime

monárquico para o republicano o fim do regime monárquico e, com expressiva participação

militar, a sua substituição pela república.

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No segundo capítulo, que trata do período 1958-1968, buscou-se compreender,

primeiramente, a formação e a ideologia do partido Baath, sua consolidação no Iraque e sua

participação nos eventos políticos de fins da década de 50/início da década de 60. Também

tratou-se de descrever, sucintamente, a biografia do jovem Saddam Hussein, identificando

suas origens e sua formação política. Em seguida, tratamos de descrever os

desenvolvimentos históricos dessa turbulenta década, identificando os diferentes governos

formados, a relevância do exército como ator político, os diversos pontos de tensão que se

consolidaram na heterogênea sociedade iraquiana, entre outros aspectos, até o golpe que

resultou na subida ao poder do Baath, em Julho de 1968.

No terceiro capítulo, tratamos, de maneira mais aprofundada, de acompanhar os

onze primeiros anos do novo regime e as suas medidas políticas, econômicas, sociais e

culturais, acompanhando as suas repercussões dentre os iraquianos. Procurou dar-se ênfase

às distintas interpretações sobre razões e motivações para processos relevantes, como a

nacionalização do petróleo, a reforma agrária, para as mudanças na política externa, além

das distintas descrições sobre o caráter da relação do regime com os grupos políticos mais

destacados (como curdos, xiitas e comunistas), bem como caracterizar a elaboração do

autoritarismo do regime, baseado em rígidos sistemas de segurança e na penetração do

Baath em todas as estruturas da sociedade. Também tratamos das distintas ideologias

empregadas pelo regime e do papel de Saddam Hussein no governo até sua subida ao

poder, em 1979.

No quarto capítulo, que compreende historicamente o período 1980-1988, tentamos

entender as diferenças entre o governo de Saddam Hussein, o novo presidente, e Hasan al-

Bakr, seu tio e predecessor. Para tanto, identificamos as continuidades e descontinuidades

existentes na condução da política externa, da política doméstica, da economia e da

ideologia. Evidentemente, a longa guerra contra o Irã, que delimita a extensão deste

capítulo, é o mais importante evento a ser tratado, e que influencia diretamente em todas as

demais políticas governamentais e as percepções da população iraquiana sobre o regime.

Nesse sentido, objetivamos trazer para a discussão do contexto e das razões, motivações e

objetivos de Saddam ao iniciar a guerra e as diferentes perspectivas de análise adotadas

pelos autores estudados. A mesma metodologia é empregada para investigar as eventuais

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guinadas ocorridas nas distintas (mas altamente inter-influenciáveis) estruturas de análise

(como a política, a economia e a sociedade).

No quinto capítulo, em que é abordado o período 1989-1991, realizou-se o estudo

das conseqüências da guerra Irã-Iraque para os iraquianos, para o país e para o regime,

além de se abordar as linhas de política externa e as políticas econômicas adotadas e, ainda,

o comportamento da oposição perante as práticas do regime. Nesse contexto, trazemos as

distintas interpretações para a invasão do Kuwait pelo Iraque e as suas repercussões para o

país analisado e para a comunidade internacional. Posteriormente, investigamos as aspectos

concernentes à Guerra do Golfo de 1991: suas motivações, o papel da comunidade

internacional, os desenvolvimentos do conflito e as conseqüências para o regime iraquiano

(com destaque para a intifada, a revolta popular ocorrida no imediato pós-guerra).

Metodologicamente, para fins de maior clareza de compreensão dos eventos e perspectivas

estudados, dividiu-se este capítulo em três grandes seções: 1. O Período Pré-Invasão, 2. A

Invasão ao Kuwait, a Coalizão Anti-Iraque e a Guerra do Golfo, 3. Aspectos Ideológicos –

neste último segmento, são abordados os distintos empregos ideológicos adotados por

Saddam Hussein no decorrer da crise que levaria à invasão e à guerra e logo após seu

imediato término.

No Epílogo, tratamos de descrever, em linhas gerais, os desenvolvimentos dos doze

últimos anos do Baath e de Saddam Hussein no poder (1991-2003), até a invasão dos

Estados Unidos (Março/Abril de 2003) que pôs fim àquele regime. Foram elencados temas

de alta importância nesse momento histórico, como a substancial perda de soberania por

parte do Estado iraquiano, as repercussões do regime de sanções econômicas para a

população iraquiana (introduzidas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas logo

após a invasão do Kuwait pelo Iraque, em Agosto de 1990), a conquista de autonomia pelos

curdos e as intensas disputas políticas internas subseqüentes, as estratégias de manutenção

do controle e do domínio do país por Saddam Hussein, além do estudo sobre a oposição

iraquiana exilada, seu papel com relação ao frágil governo de Saddam e eventuais razões

para o seu fracasso em fazer emergir um novo governo no país. Finalmente, descrevemos as

conflituosas relações internacionais do Iraque após o término da Guerra do Golfo de 1991,

passando pelo aprofundamento da crise com os Estados Unidos a partir da eleição de uma

nova administração nesse país em 2000, que culminou na ulterior invasão ao Iraque, em

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Março de 2003, por uma nova coalizão pró-ocidente, que destituiu o repressivo regime de

Saddam Hussein do poder, mas que ainda não eliminou o clima de guerra civil existente no

território iraquiano desde então.

Metodologicamente, a pesquisa, que empregou majoritariamente o uso de fontes em

língua inglesa (dada a notória escassez de textos em português sobre a maioria dos temas

estudados e a falta de domínio da língua árabe por parte do orientando), objetivou, no

centro de sua análise (1968-1991), descrever não somente os eventos históricos, políticos e

econômicos mais proeminentes, mas principalmente dispor as diferentes correntes de

interpretação sobre as causas e as conseqüências elaboradas pelos acadêmicos acerca

daqueles processos e as suas relações entre si, a fim de se construir um relato mais

aprofundado sobre aquele momento histórico estudado. Foram utilizados artigos de

importantes periódicos e revistas especializadas sobre o Oriente Médio, além de várias das

obras centrais já publicadas em língua inglesa sobre o Iraque e, ainda, algumas biografias

sobre Saddam Hussein. Dados os distintos vieses dentre os autores, possibilitou-se discutir

vários dos temas sob óticas altamente contrastantes, o que permitiu abordar alguns dos

processos considerados mais importantes com satisfatória profundidade e, em última

instância, atendeu, de certa maneira, ao propósito de se apreender as relações (para dentro

da realidade iraquiana) entre o autoritarismo presente no governo baathista e sua políticas,

por vezes tidas como progressistas – e, subseqüentemente, entre estas esferas e a

configuração altamente heterogênea, multifacetada e, portanto, complexa, da sociedade

iraquiana que se formou sob o regime Baath (e que, contemporaneamente, convive sob uma

nova realidade ainda que, até o presente momento, se revele não muito mais promissora do

que a anterior).

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CAPÍTULO 1 – O Iraque Antes de 1958

1. Mesopotâmia Antiga

A Mesopotâmia, região que hoje abriga o estado iraquiano, foi um dos grandes

berços da civilização humana. Na Antiguidade, viveram civilizações tão distintas como os

Sumérios, os Acádios, os Babilônios, os Hititas, os Hurrianos, os Kassitas, os Elamitas, os

Assírios, os Yazidis, entre outros, que surgiam e desapareciam violentamente. Aquela

localidade, denominada “terra entre rios”, possuía grande capacidade agrícola (elemento

distintivo para com os terrenos áridos que a rodeavam), e sua localização intermediária

entre a Europa e a Ásia era um ingrediente essencial em termos de importância estratégica,

sendo alvo, assim, de constantes e turbulentas disputas1. Os Sumérios e os Babilônios, em

especial, foram considerados uma das civilizações mais criativas daquele período histórico,

graças a contribuições como o desenvolvimento da escrita, da literatura, da poesia, da

matemática, da astronomia, da ciência e, inclusive, do Direito, graças à codificação de leis

efetuada por Hamurábi. O conhecimento desses povos foi negligenciado até pelo menos o

século XIX, mas durante o regime de Saddam Hussein, como se verá adiante, passou a ser

parte intrínseca da formação da tradição e da consciência iraquianas2.

Os Sumérios também foram particularmente importantes, já que desenvolveram as

primeiras cidades entre os rios Tigre e Eufrates. Foram também responsáveis pela criação

do calendário e pelo desenvolvimento de uma burocracia administrativa3. Os Assírios, por

sua vez, desenvolveram a primeira cultura militarista do mundo. Figuras como

Shalmanezer III (858-824 a.C.), Tiglathpileser III (744-727 a.C.) e Sargon II (722-705

a.C.), exerceram guerras expansionistas, reprimiam desordens com vigor e eram vistos, ao

mesmo tempo, como guerreiros destemidos e burocratas capacitados, capazes de evocar na

população sentimentos nacionalistas4. Os Babilônios e os Sumérios dominaram a região.

Contudo, ambos os reinos caíram nas mãos dos Persas, por meio de Ciro, por volta de 500

1 ABURISH, Said K. Saddam Hussein: The Politics of Revenge. Londres: Bloomsbury, 2000, pp. 1-2.2 MARR, Phebe. The Modern History of Iraq. Boulder, Colorado: The Westview Press, 2003, pp. 4.3 MILLER, Judith; MYLROIE, Laurie. Sadam Hussein e a Crise do Golfo. Trad. Vera Maluf. São Paulo: Scritta, 3ª. Ed., 1991. 4 KARSH, Efraim; RAUTSI, Inari. Saddam Hussein: A Political Biography. Nova Iorque: Grove Press, 2003 pp. 120.

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a.C. A seguir, seria conquistada por Alexandre, o Grande, e a partir de então, se tornou uma

região bastante instável, com seguidas conquistas de diversas populações, até a chegada dos

árabes muçulmanos, no século VII d.C.

2. A Civilização Árabe-Islâmica

É imprescindível, para o entendimento desse período histórico e para a compreensão

de suas conseqüências na vida moderna iraquiana, que se observe o nascimento do Islã e a

sua relação com a política. Após a morte de Maomé (que havia recebido a revelação divina

em 614 d.C. na cidade de Meca), originou-se a oposição entre as duas tendências islâmicas

(xiitas e sunitas), baseada na escolha do sucessor do profeta. Enquanto um grupo defendia

que Ali ibn Abi Talib, genro de Maomé, deveria fazê-lo, o outro entendia que qualquer fiel

escolhido consensualmente pela comunidade poderia suceder o profeta. Companheiro de

Maomé, Abu Bakr foi o escolhido, e cumpriu a missão de desenvolver o poder muçulmano

entre os árabes. Umar ibn al-Khattab, seu sucessor, foi responsável pela conquista de várias

regiões fora da península (inclusive a Mesopotâmia, à época sob domínio dos decadentes

Persas, que foram derrotados na batalha de Qadisiyya em 637). A expansão se deu num

grau bastante acentuado, e a concentração de renda nas mãos de alguns clãs árabes (que

coordenavam as conquistas territoriais), acabou por dividir ainda mais os grupos. Ali

assume a comunidade, mas uma guerra civil se segue e ele é morto. Muawiyya assume seu

posto e funda a dinastia califal dos Omíadas, estabelecendo Damasco como capital do

império. A pacificação, a princípio, foi aceita, mas os seguidores de Ali, insatisfeitos com o

governo de Muawiyya, fundaram um partido, a xia, disseminando a crença ma legalidade

da sucessão hereditária regional. Yazid, filho de Muawiyya, o sucede, consagrando o

princípio da hereditariedade e a dinastia omíada. Os xiitas se rebelam e Hussein, herdeiro

de Ali, é decapitado em Karbala, tornando-se um mártir e fazendo com que aquela cidade

se tornasse sagrada para os xiitas, assim como Najaf, Kazimiyya e Nassíria, locais em que

morreram outros xiitas que contestavam a dominação sunita da política. Apesar das

derrotas, não desapareceram; em vez disso, consolidaram-se como uma ideologia não-

secular que pregava valores de justiça social e de martírio5.

5 DEMANT, Peter R. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004, pp. 38-41.

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Em décadas, o califado omíada dominaria regiões tão longínquas como a Espanha e

o rio Indo (região em hoje se localiza o Paquistão e a Índia). No início, não havia coação às

populações locais (majoritariamente cristãs e zoroastras – religião pagã persa) a se

converter ao Islã. Posteriormente, praticou-se uma espécie de tolerância religiosa para com

povos como os judeus, os cristãos e mesmo os hindus. Eles recebiam o status de dhimma

(comunidade protegida), submetendo-se a aceitação de símbolos, como o vestuário, que

representavam sua condição de inferioridade, e pagando impostos como maneira de

reconhecer a superioridade do Islã e sendo impedidos de ingressar nos exércitos (primazia

que era reservada aos muçulmanos), em troca da participação na sociedade e da permissão

para a prática de seus respectivos cultos. Contudo, paulatinamente, boa parte destes

acabaram por migrar para o Islã, em busca do acesso ao poder político (o que só se efetivou

na dinastia Abássida) e de uma maior integração ao império. Com isso, os cristãos se

tornaram minoria, enquanto que os convertidos passaram a participar do exército e a

contribuir no projeto expansionista muçulmano. Os zoroastras também acompanharam o

processo de conversão, contribuindo, mais tarde, para uma miscigenação cultural com os

árabes6.

Os mawali (novos muçulmanos), em 740, conseguem derrotar os omíadas, e com

isso estabelecem o império Abássida, e logo promovem a equivalência de direitos entre

todos os muçulmanos, pondo fim à supremacia árabe, base de constituição da civilização

árabe-islâmica em seus primórdios7. Símbolo da força dos não-árabes foi a mudança da

capital para Bagdá (que havia sido fundada em 762 pelo califa Mansur). Nos dois séculos

seguintes, erigiu-se um império próspero e em expansão que, por meio das influências

gregas e persas, consolidou uma brilhante civilização, que destacou tanto pela vigorosa vida

científica e intelectual, em que tinham a primazia da tradução dos trabalhos gregos e da

realização de experimentos científicos, como pelo comércio altamente profícuo, que se

estendia do mar Báltico até a China. Além disso, a agricultura também atingiu seu auge,

graças à extensão dos canais de irrigação8.

Contudo, ainda que os dois séculos de ouro da civilização muçulmana tenham sido

marcados pela estabilidade, os governos tornaram-se notórios pela pacificação pela força,

6 Idem, pp. 42.7 Idem, pp. 43.8 MARR, pp. 5.

12

Page 13: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

constituindo um regime absolutista e que, pela influência persa, colocava os califas como

seres especiais, dotados de oratória quase divina (o que se contrapunha à visão árabe e

islâmica de considerar tal autoridade como alguém do povo). Isso irritou profundamente as

autoridades religiosas e aos radicais, notadamente o setor xiita9.

Nesse período próspero, a classe mercantil se tornara a classe dominante do império

(fazendo com que a economia gradualmente se tornasse mais relevante do que a fé e o

expansionismo) e base da ortodoxia religiosa. A arabização e a islamização dos territórios

conquistados têm seu ritmo intensificado (embora povos como os maronitas, os curdos, os

armenos e os turcos não tenham se submetido totalmente à essa conversão). A maioria da

população do império se torna muçulmana, enquanto que o assentamento de soldados

árabes e a expansão da religião viabilizaram a expansão da língua10.

Contudo, a fragmentação política ocorrida no século X (causada pelo enorme

tamanho do Império e a precariedade dos sistemas de comunicação e de transporte, que

resultavam na ineficiência na cobrança de impostos), a dinastia Abássida começa a

declinar. O vácuo político oriundo de atravessadores que tomavam para si os tributos que

eram enviados do interior para a capital propiciou o ingresso cada vez maior de turcos no

Oriente Médio. Antes utilizados como mercenários pelos califas, passaram a dominar a

corte, reduzindo o califa a um cargo formal. Durante esse processo de dominação, as

divisões ideológicas dentro do Islã se intensificaram, e a vitória da visão conservadora da

filosofia (a xaria, que rejeitava em princípios quaisquer dimensões não controladas pela

religião), acabou por alienar o império cultural e politicamente, fazendo com que, aos

poucos, se tornasse defasado perante o desenvolvimento europeu e asiático. A partir de

então, tribos nômades continuamente passaram a invadir, saquear e devastar comunidades

sedentárias11.

A região mesopotâmica gradualmente se isolou dos demais estados árabes, e passou

a sofrer cada vez mais com a desintegração social, a depressão econômica e o caos político,

sofrendo ataques constantes de exércitos estrangeiros. O maior deles ocorreu em 1258,

quando Hulagu, neto de Gênghis Khan, e sucessor de seu projeto de dominação global,

invadiu Bagdá, executou o último califa, destruiu os sistemas de irrigação e causou a morte

9 MILLER, pp. 63.10 DEMANT, pp. 44-46.11 Idem, pp. 48 e 53.

13

Page 14: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

de mais de cem mil moradores, o que foi um golpe fatal no combalido império Abássida.

Anos mais tarde, seriam derrotados pelos mamelucos (dinastia de sultões-escravos) na

Palestina. Em 1401, Tamerlão, outro líder mongol, invadiu mais uma vez a região

mesopotâmica, e condenou-a e à boa parte do Oriente Médio um século turbulento, com

guerras civis e crise no comércio. Seriam os turcos, em meados do século XV, que

passariam a reverter esse quadro12.

3. O Império Turco-Otomano

Após a conquista de diversos territórios durante o século XV (entre eles o Império

Bizantino, possessões no Mar Negro e no Mediterrâneo e praticamente todo o Oriente

Médio), o eficiente exército otomano, composto pelos janízaros (jovens cristãos que, a

título de tributo, eram recebido das comunidades dhimmi para serem islamizados e

tornados soldados), se colide com os Safávidas, xiitas que controlavam a região da Pérsia.

Entre 1514 e 1555, conquistam toda a região mesopotâmica, e nesse momento atingem o

auge de sua expansão (freada somente em Viena). O governo assentado no território

iraquiano era estável e uniforme a essa altura. Sua origem sunita não o impediu de ter,

inicialmente, tolerância para com os xiitas, mas as constantes rusgas fronteiriças com os

Safávidas e a sua influência sobre as cidades sagradas ao sul de Bagdá fizeram com que,

progressivamente, se concedessem privilégios aos sunitas urbanos. Esta foi a origem da

dominação sunita no Iraque13. Nesse período tenso, Bagdá foi tomada algumas vezes pelos

persas, que dominaram a região entre 1623 e 1639, até que os otomanos conquistassem

novamente aquela localidade14. Cada vez que a região era controlada por um lado, a

população de origem similar a do inimigo era hostilizada. As rivalidades entre sunitas e

xiitas foram crescendo a tal ponto que, conforme os anos iam passando, desenvolvia-se

uma clivagem sócio-econômica, especialmente porque a preponderância turca no Iraque

durou muito mais do que a persa, dando aos sunitas vantagens substanciais em termos de

condições educacionais e de saúde claramente observáveis no início do século XX15.

12 DEMANT, pp. 54-55.13 MARR, pp. 5.14 FAROUK-SLUGLETT, Marion; SLUGLETT, Peter. Iraq Since 1958: From Revolution to Dictatorship. Londres e Nova Iorque: I.B. Tauris, 3a. ed., 2003, pp. 1. 15 ABURISH, pp. 3.

14

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Com o desenvolvimento europeu que, por meio das grandes navegações retirou dos

muçulmanos a primazia do comércio com a Ásia (sua principal fonte de arrecadação, seja

pela venda das especiarias, seja pelo controle da Rota da Seda), o Império Otomano

começou a declinar em meados do século XVII. A estagnação militar e social já era visível,

e aos poucos o gigante império começa a encolher. A religião não evoluiu mais, e a falta de

dinamismo e de mudanças estruturais acelerou esse processo de decaimento16. Em 1704, os

otomanos perdem o controle direto de praticamente todo o Iraque para dinastias

mamelucas17.

Os mamelucos controlavam a região por meio de um sistema tributário, que

consistia na manutenção de si mesmo e de seus aliados de tal maneira que pudessem extrair

receitas, que os permitiriam defender o sistema contra todos os desafiantes internos e

externos. Confederações de tribos árabes controlavam vastas regiões do centro e do sul do

território, e constantemente alianças eram realizadas com ou contra elas, dependendo da

ocasião. Como o alcance do governo era bastante restrito (dadas as péssimas condições de

comunicação e inacessibilidade de boa parte do território), as taxas eram extraídas de

comunidades rurais próximas, e eram complementadas pelos impostos oriundos do

comércio que se fazia por toda a Mesopotâmia18. Esse contexto de relativa autonomia

administrativa, econômica e fiscal fazia com que poucos habitantes das províncias de

Basra, Bagdá e Mosul tivessem a sensação de que faziam parte de um grande império. Não

havia uma coesão geopolítica entre essas três províncias. Enquanto Basra se voltava para o

Golfo e para a Índia, Bagdá era um ponto de escala na rota entre a Síria e o Irã, e Mosul se

ligava mais fortemente com a Anatólia do que com Bagdá19.

As comunidades dessas províncias eram similares a de qualquer outra do império.

Na região curda de Mosul, ao norte, fortes ligações tribais e locais criaram comunidades

distintas, com práticas e identidades particulares, graças às identidades dinásticas,

paroquiais e tribais. Um exemplo disso era que o contato dessas comunidades com o

Império só se faziam pela família líder20. Nessa localidade se encontravam os Yazidis

(agrupamento étnica e lingüisticamente curdo, que resistiu constantemente às tentativas de

16 DEMANT, pp. 59.17 FAROUK-SLUGLETT, pp. 1.18 TRIPP, Charles. A History of Iraq. Cambridge: Cambridge University Press, 2a. ed., 2002, pp. 9. 19 FAROUK-SLUGLETT, pp. 2.20 TRIPP, pp. 10.

15

Page 16: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

integração com a sociedade, crentes numa religião sincretista, baseada no Zoroastrismo), os

Cristãos (também conhecidos como Caldeus, são falantes do árabe e filiados a uma igreja

que se fundiu à Católica Romana no século XVI), os xiitas Turcomanos (agrupamento

oriundo dos turcos Seljúcidas, falantes do curdo e que, mais tarde, viriam a se integrar bem

à sociedade, especialmente dentro da burocracia criada no século XX) e Curdos (de origem

incerta, provavelmente descendentes dos Medos; foram quase que completamente

convertidos para o Islã, transformando-se em sunitas devido à influência do Império

Otomano)21. O restante de Mosul era muito mais integrado ao sistema otomano, devido

principalmente à sua população majoritariamente árabe sunita e ao seu comércio com a

capital.

Bagdá era parecida com outras cidades otomanas. Tinha os mamelucos georgianos

como elite militar, e como características peculiares a grande população xiita e a presença

dos judeus (presentes desde o cativeiro babilônico do século VI a.C., sendo

majoritariamente urbanos e se constituíam como comerciantes prósperos e influentes), que

compunham quase 20 por cento da população local. Assim como em Mosul, os governantes

de Bagdá governavam apenas nominalmente o resto da província, que ficava imune às

tributações e sofriam a influência do tribalismo e dos costumes locais. As quatro cidades

sagradas xiitas que a avizinhavam (Najaf, Karbala, Kazimiyya e Samarra) eram alvo de

constante preocupação. Cada vez mais os ulama (sábios em Direito e religião) xiitas eram

bem sucedidos em converter tribos nômades para o xiismo, enquanto que tribos persas, que

visitavam constantemente aquela região, chamavam a atenção dos Safávidas, o que criava

um clima tenso entre aqueles e os governantes locais22.

Em Basra, dadas as enormes diferenças doutrinárias e tribais entre a comunidade

local e o estado otomano, somada à força de algumas tribos, a extensão do governo

mameluco era bem restrita. A maioria da população era árabe e xiita, enquanto a elite

mameluca era sunita. A economia local se baseava na agricultura intensiva e nos postos de

comércio com o Golfo e o Oceano Índico23.

21 MARR, pp. 15-17.22 TRIPP, pp. 11-12.23 TRIPP, pp. 12.

16

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Num contexto cada vez mais desfavorável para os otomanos (no qual a Europa

ampliava sua influência sobre o Oriente Médio, ao mesmo tempo em que os nacionalismos

começavam a surgir nos Bálcãs e o governador egípcio acumulava um poder considerável),

a elite política de Istambul decide tentar reverter o processo de encolhimento do território

sob seu controle. Em 1831, como parte desse projeto centralizante, um exército é enviado

para Bagdá, e consegue expulsar do poder o seu governador mameluco, encerrando o seu

domínio na região, tendo por conseqüência o restabelecimento das três províncias sob a

égide dos otomanos. Por algum tempo, as normas e os métodos de administração dos

mamelucos persistiu, e a retomada do controle otomano sobre as cidades não significou um

maior controle das fortes confederações de tribos do interior. Contudo, uma série de

reformas com moldes europeus viria a tentar mudar esse quadro nas décadas seguintes24.

As tanzimat, como ficaram conhecidas tais reformas, iniciaram-se na região

mesopotâmica ainda na década de 40, mas só se desenvolveram de maneira mais apropriada

sob o governo de Midhat Pasha em Bagdá (1869-1872). Por meio da Lei Otomana de

Terras, de 1858, tentou-se aumentar os poderes do Estado como coletor de impostos, mas

não houve sucesso. As razões para esse fracasso foram de origem cultural e sócio-

econômica: não haviam condições para o investimento financeiro nas propriedades privadas

que foram criadas, e tampouco as tribos (acostumadas em ter a posse coletiva da terra

fundada na habilidade em mantê-la perante os inimigos) interessaram-se em adquirir títulos

de propriedade. Comerciantes urbanos, fazendeiros e xeiques (líderes das tribos), foram

aqueles que perceberam as vantagens de se possuir aqueles documentos, e com isso ficaram

com grandes porções de terra. Contudo, a falta de uma estrutura burocrática capaz de cobrar

os impostos, o governo não conseguiu fazer os novos proprietários pagarem pela posse das

terras, e assim o intento reformista falhou em encerrar, num primeiro momento, o forte

componente tribalista do país25.

Entretanto, os xeiques, que em geral acabaram se tornando os proprietários das

terras, aliaram-se ao estado com o objetivo de obter auxílio na cobrança de impostos dos

inquilinos de suas propriedades (justamente os membros de sua tribo), o que acabou

significando uma ruptura importante do ponto de vista da estrutura social26.

24 Idem, pp. 14-15.25 FAROUK-SLUGLETT, pp. 4.26 TRIPP, pp. 16-17.

17

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Contemporaneamente às reformas políticas do período, eventos como a abertura do

canal de Suez e a introdução da navegação a vapor nos rios Tigre e Eufrates deram um

incremento considerável na vida econômica da região, já que a mesopotâmia se tornou um

exportador de grãos e frutas, principalmente para o Golfo e para a Índia27. Além disso,

desenvolvia-se a imprensa escrita, que resultou na publicação dos primeiros jornais e, com

isso, no surgimento de uma incipiente sociedade civil.

A reforma mais importante, especialmente do ponto de vista da formação do estado

iraquiano, foi a educacional. Foram fundadas escolas técnicas, médias e duas secundárias

(para o serviço militar e civil). De caráter secular, permitiu aos jovens o conhecimento de

línguas ocidentais, matemática e ciências. Boa parte dos sunitas de classes médias e

inferiores optava por ir para as academias militares, local notório de ascensão social. O

Otomanismo, doutrina que pregava a igualdade jurídica entre as minorias e a população

sunita, foi largamente aplicada no período. O conjunto de reformas contribuiu, aos poucos,

para o assentamento e modernização da população28. A premente expansão ocidental e

incapacidade por parte do Estado em defender sua população fizeram com que sua

legitimidade fosse afetada, e um golpe altamente conservador acabou por cessar as tanzimat

e a influência européia na vida otomana29.

Hamid II (1876-1909), com idéias pan-islamistas, governou o império no mesmo

momento em que emergia a noção dentre os intelectuais árabes de que seu grupo de origem

formava uma entidade etno-linguística distinta e que eles tinham alguma forma de

autonomia dentro do estado otomano. Ao mesmo tempo, ficava claro que o autoritarismo

de Hamid era incapaz de fazer com que seu país se mantivesse intacto às incursões

européias. Logo, oposições internas começaram a se articular. Os “Jovens Turcos”, após

liderarem alguns protestos em Istambul, se tornaram o mais importante deles. Expressão da

nova realidade otomana, em que transformações sociais permitiam que estudantes de cada

província se encontrassem em Istambul para realizarem seus cursos de ensino superior, os

Jovens Turcos conseguiram promover uma revolução em 1908, e tiveram como uma das

primeiras deliberações a concessão do direito de expressão a grupos políticos suprimidos

em diversas províncias, inclusive na Mesopotâmia, o que resultou na disseminação de

27 FAROUK-SLUGLETT, pp. 3.28 MARR, pp. 7.29 DEMANT, pp. 79.

18

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clubes, grupos, sociedades e jornais. Debates se davam em torno do constitucionalismo, do

liberalismo, da descentralização e do secularismo30. Contudo, as fortes políticas

centralizantes do Comitê da União e do Progresso (CUP – grupo que passou a liderar o

movimento revolucionário) logo tornaram claro que seu objetivo era o de simplesmente

promover a posição do elemento turco dentro do Império, o que fez ascender o

nacionalismo árabe31.

Diversas sociedades secretas árabes foram criadas. Em Basra, onde o contato com

principados árabes semi-independentes, como o Kuwait, e a interação com o Egito, que já

dotava de uma imprensa mais livre, proporcionaram a emergência de uma sociedade mais

cosmopolita, Said Talib al-Naqib tentou obter a independência da região (e mesmo do

Iraque, entendido como sendo a soma daquela província com Bagdá), fracassando após a

chegada dos britânicos. Em Bagdá, o movimento oposicionista não era tão forte, mas

partidos de oposição surgiram para contestar o excesso de centralização do novo governo

otomano. Após o golpe de estado promovido pelo CUP, porém, o receio de que a cultura

árabe fosse atingida, além da possibilidade da perda da autonomia existente levou à

emergência de mais sociedades secretas, dentre elas a al’-Ahd, que havia sido originada em

Istambul por oficiais iraquianos (dentre eles Nuri al-Saïd, que se tornaria figura célebre por

toda a monarquia), e tinha filiais em Bagdá e Mosul. A força cada vez maior do

nacionalismo turco fez emergir, pela primeira vez, a possibilidade de independência das

províncias árabes32.

A descoberta do petróleo e larga escala no Oriente Médio chamou a atenção da

Inglaterra e da Alemanha, que logo se apressaram em fazer propostas por concessões,

inclusive no território mesopotâmico. A Convenção da Ferrovia de Bagdá, assinada em

1903 entre o governo otomano e o alemão, previa a construção de uma ferrovia entre

Berlim e Bagdá, e permitia aos alemães a exploração de vasto terreno iraquiano. Logo os

britânicos reagiriam e, por meio de um grande conglomerado de empresas multinacionais,

fundou a Companhia Turca de Petróleo (CTP). Às vésperas da guerra, parecia claro que o

Império Otomano se aliaria às potências centrais, o que fez com que os ingleses se

preparassem para resguardar seus interesses no Golfo33.

30 TRIPP, pp. 21-23.31 FAROUK-SLUGLETT, pp. 6.32 TRIPP, pp. 24-28.33 FAROUK-SLUGLETT, pp. 8.

19

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4. A Primeira Guerra Mundial e o Mandato Britânico no Iraque (1920-1932)

Em Novembro de 1914, um mês após a entrada do Império Otomano na guerra a

favor das potências centrais, a Inglaterra ocupa Basra, enviando forças expedicionárias

indianas. A princípio, não tinham o objetivo de conquistar a Mesopotâmica, mas a falta de

uma oposição turca fez com que até 1917, mesmo com um efetivo militar reduzido,

conquistassem toda aquela região. Paralelamente, em 1916, assinam o Acordo de Sykes-

Picot com a França, que consolida a divisão dos espólios otomanos entre as partes

(referendado em 1920, pela concessão de mandatos pela Liga das Nações do Iraque, da

Palestina e da Transjordânia para a Inglaterra e a Síria e o Líbano para a Inglaterra)34.

Com a proteção de seus campos de petróleo, a Inglaterra decide implantar uma

administração, baseada essencialmente na encontrada na Índia (expressão da predileção dos

ingleses por um governo direto, dada a sua crença na incapacidade dos árabes em se

administrarem). Logo, procuraram desmontar a administração otomana, criando legislações

civis e criminais nos moldes anglo-indianos, introduzindo a rúpia indiana como meio de

pagamento e dividindo a Mesopotâmia em distritos políticos, cada um sob o controle de um

oficial britânico. Efetivaram uma política tribal que primou pela aliança com os xeiques,

ligando-os aos administradores britânicos e fazendo-os coletarem a receita de suas tribos35.

Da perspectiva de Istambul, as três províncias mesopotâmicas não formavam um

todo coeso que as diferenciasse das demais localidades do império. Dentre a população, a

noção de um estado iraquiano era ainda incipiente, mas aos poucos começou a se tornar

mais relevante para os grupos que saíam de suas respectivas comunidades e iam estudar na

capital otomana, onde passavam a compartilhar experiências parecidas. Conforme essas

interações foram aumentando, Bagdá, como local dos quartéis das corporações otomanas da

região, fez uma atração gravitacional sobre as outras duas províncias. A intervenção

britânica foi o primeiro momento em que foi possível às sociedade políticas locais se

aproximarem de maneira mais clara36.

34 Idem, pp. 9-10.35 MARR, pp. 22.36 TRIPP, pp. 29.

20

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Logo, a administração indiana deixaria insatisfeita a população local,

principalmente devido ao seu excessivo rigor e intromissão na vida tribal. O armistício de

Mudros, solicitado pelo governo otomano no final de 1918, era sinal claro de sua derrota.

Em Basra, as figuras locais rapidamente se acomodaram às autoridades inglesas, já que o

contato entre as partes devido ao comércio se desenvolvia há décadas. A grande maioria

xiita local não seguiu a declaração otomana de uma jihad contra os britânicos, mas o apoio

a estes jamais foi dado; em vez disso, requereu-se maior autonomia às cidades sagradas.

Em Najaf, foi fundada a Sociedade para o Reavivamento do Islã, com o objetivo de

defender a religião contra os infiéis ingleses. No Curdistão, inicialmente as forças britânicas

foram bem vindas. Shaikh Mahmud, líder local, foi escolhido para governar parte da região,

como parte de um projeto que daria o seu controle indireto aos ingleses. Contudo, seu

governo desagradou os ingleses, que logo o expeliram do poder. Em Bagdá, a reação à

presença inglesa foi cautelosa, principalmente devido à Declaração Anglo-Francesa de

1918, que prometia o autogoverno àquelas províncias. Enquanto isso, o grupo al-‘Ahd se

deslocava para Damasco, em suporte ao novo rei sírio, Faisal37.

No início de 1920, por meio da Conferência de San Remo, ficou estabelecido que o

Iraque se tornaria um protetorado britânico, onde seria eleito um governo civil resguardado

por um corpo de conselheiros britânicos, que controlaria as relações internacionais do país e

teria poder de veto em questões militares e financeiras. A população local, especialmente a

xiita, imediatamente reagiu, influenciada por vozes nacionalistas em Bagdá, por líderes

xiitas das cidades sagradas e por líderes tribais da região do Eufrates. Houve, aí, uma

cooperação sem precedentes entre as duas facções muçulmanas em nome da independência

do país, inaugurando uma série de protestos que ficaram conhecidos como as revoltas de

192038. A reação britânica aos protestos foi firme. Ainda sim, as tribos da região do meio-

Eufrates, insatisfeitas com a intrusão do governo britânico em sua realidade (principalmente

por meio da cobrança de impostos), dominaram a região, enquanto que os curdos, numa

atitude oportunista (já que não patrocinavam a causa), tomaram algumas cidades ao norte.

Todavia, o movimento era desorganizado, e sucumbiu em menos de três meses. Para os

iraquianos, esse evento fez parte do mito da fundação de seu nacionalismo39.

37 Idem, pp. 32-36.38 MARR, pp. 23.39 TRIPP, pp. 43-44.

21

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Apesar do fracasso em conseguir a independência do país, a revolta foi pródiga em

fazer aumentar a participação dos iraquianos no primeiro governo nacional. Na Conferência

de Cairo, de 1921, os três pilares do estado Iraquiano foram concebidos: a monarquia, na

pessoa de Faisal, descendente direto do profeta; o tratado, que confirmaria a base legal para

o controle britânico; e a constituição, que buscaria integrar os elementos da população

numa fórmula democrática. Nesse momento, a dominação da minoria sunita passaria a ser

consolidada. Além da escolha de Faisal, um sunita, que elegeu para os altos cargos os seus

correligionários nacionalistas (alguns eram membros do al-‘Ahd), fora formado um

exército iraquiano, com preponderância de altos funcionários otomanos (sunitas), e sua

quase totalidade composta por árabes (excluindo diversas minorias, e integrando

minimamente os curdos). A outra deliberação da conferência, o tratado com os ingleses,

confirmou o seu governo indireto sobre o país (com todas as atribuições mencionadas na

Conferência de San Remo), de maneira a neutralizar a oposição local, e obrigou o governo

iraquiano a pagar metade dos custos pela instalação dos britânicos em seu território, em

troca da concessão de diversas ajudas ao Iraque (como auxílio militar e o ingresso do país

na Liga das Nações o quanto antes). A duração do tratado foi estabelecida em 20 anos40.

O governo civil foi formado, com massiva predominância dos árabes sunitas (sob a

justificativa do temor de um governo xiita radical, dada a liderança desse grupo nas revoltas

ocorridas meses antes, e do receio da inexperiência desse grupo em cargos administrativos

– já que haviam sido historicamente negligenciados do poder durante todo o governo

otomano). Um pequeno número de xiitas, cristãos e judeus ocupou algumas vagas no

conselho de ministros41.

Faisal, o escolhido para ser o rei do Iraque, era bem quisto tanto pela população

urbana como pelas tribos, sendo respeitado pelos xiitas por sua descendência direta de

Maomé. Suas experiências políticas na Síria (entre 1918 e 1920, até ser expulso do poder

pelos franceses), lhe deram um senso de realismo e objetividade para lidar num contexto

tão peculiar como o Iraque. A sua postura pela população em geral era, entretanto, fraca,

principalmente por ser um soberano num país sem soberania. A arabização da

40 MARR, pp. 24 e 27.41 TRIPP, pp. 45.

22

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administração iraquiana (em oposição ao domínio turco de longa data), uma de suas

primeiras medidas, foi importante para a conquista de algum apoio da população42.

Duas questões que marcariam a década e seriam essenciais para a delimitação do

território iraquiano e para a receita do país para as próximas décadas eram os movimentos

independentistas curdos e a concessão do petróleo. A Turquia, que havia ganhado sua

guerra contra a Grécia, reclamou a província de Mosul para si. A região, altamente instável,

sofreu a penetração de forças turcas, e diversas tribos curdas, crentes na menor hostilidade

dos turcos para com sua população, acabaram se opondo aos ingleses, buscando afastar o

Curdistão do território iraquiano. Fora assinado um acordo que dava autonomia para a

região, mas uma série de divergências entre os líderes internos fez com que o documento

fosse cancelado. Enquanto isso, a Inglaterra, objetivando manter seus domínios petrolíferos

naquela região, assinou um acordo de paz com os turcos. Para os sunitas, que tinham

grande temor da saída dos curdos (o que aumentaria ainda mais a predominância dos xiitas

dentre as população), foi uma decisão importante43. Previamente, os políticos europeus

acreditavam que a população curda conseguiria sua autonomia ou independência ao final da

Primeira Guerra, mas todos os desentendimentos que surgiram e um contexto em que

parecia mais claro para os ingleses manter o Curdistão dentro do Iraque (o que lhes

possibilitaria um controle maior sobre os campos de exploração de petróleo) fizeram com

que, em 1925, a Comissão Arbitrária da Liga das Nações decidisse por incluir Mosul dentro

do território iraquiano, na condição de que o regime mandatário governasse por mais 25

anos (ou até que o Iraque se tornasse membro da Liga)44.

Meses antes, o parlamento iraquiano ratificara o acordo de concessão de petróleo

entre o governo e a Companhia Turca de Petróleo (que se tornaria da Companhia Iraquiana

de Petróleo em 1929), após manifestação claramente a favor do mesmo por parte dos

britânicos (que detinham o controle da empresa). Foi acertado que o governo não teria

qualquer participação nos lucros sobre o petróleo (ao contrário do que havia sido prometido

pelos britânicos no momento em que o mandato havia sido criado), e da exclusividade da

exploração em praticamente todo o país (à exceção de Basra) para a CTP. Em troca, o

governo receberia royalties pela descoberta de novos campos e ganharia a construção de

42 MARR, pp. 24-25.43 TRIPP, pp. 54-55.44 FAROUK-SLUGLETT, pp. 13.

23

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uma refinaria e de um duto. Com isso, o gabinete concluía um documento altamente

contrário aos interesses iraquianos, em troca da demonstração, perante os britânicos, da

desejo de manter Mosul sob os seus domínios. Outro acordo, que estabelecia as condições

de ingresso de Mosul dentro do território iraquiano e renovava por mais 25 anos o mandato

britânico, passou sem problemas pelo parlamento em 1926, principalmente porque a elite

local acreditava que os britânicos concederiam em breve a independência do Iraque por

meio de seu ingresso na Liga das Nações45.

A constituição iraquiana e a Lei Eleitoral foram documentos essenciais para decidir

a alocação formal de poder e afetar as forças relativas entre aqueles que repousavam seu

domínio em apoio social e aqueles que se sustentavam às expensas do estado. À época, o

patrimonialismo, sistema em que o Estado formava uma aliança com os líderes tribais por

meio da concessão de porções de terra a eles em troca da manutenção do status quo, foi a

tônica da realidade iraquiana. O não pagamento de impostos por parte dos xeiques foi um

dos fatores para a grave crise econômica que se estendeu sobre o país no período. Num

cenário de crise mundial que afetou o comércio, além da necessidade contínua de

pagamento de indenizações aos ingleses, a economia do país vivia em penúria. Faltavam

fundos para o desenvolvimento, e com isso o país passou por uma período de grande

estagnação, em que grande parte da população permanecia analfabeta. O interior do país,

onde morava boa parte da população, mal havia tido contato com a modernização, e a

industrialização, por meio de indústrias têxteis e de construção civil, havia acabado de

começar. Contudo, como dependiam do Estado para se desenvolverem, acabaram por

sucumbir brevemente diante do cenário caótico46.

Nas cidades, uma pequena classe média de comerciantes e profissionais liberais

começou a emergir, mas a imensa maioria da população ainda estava no nível da pobreza.

A migração de campesinos para as zonas urbanas (devido às péssimas condições da

agricultura) e a falta de oportunidades levou à construção de enormes favelas47. Em meio a

esse quadro desolador, especialistas estrangeiros foram chamados para analisar o porque da

crise econômica e fiscal. Como a solução sugerida contrariou os interesses da elite política,

45 TRIPP, pp. 59-60.46 MARR, pp. 30.47 MARR, pp. 31.

24

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medidas paliativas foram adotadas, como a transferência da cobrança dos impostos para os

trabalhadores rurais (que não tinham condições de arcar com tais despesas)48.

Alguns partidos políticos oposicionistas começaram a se organizar, compostos

principalmente por xiitas. Estes foram os únicos a pegar em armas contra o governo, mas

suas claras derrotas fizeram-nos perceber que nada conseguiriam enquanto os britânicos

permanecessem no território iraquiano. Alguns passaram a acreditar que o serviço militar

universal poderia erodir as lealdades entre a elite política local os líderes tribais e os

ingleses, já que o exército poderia se fazer com que um senso coletivo e de aproximação

com o estado fosse formado. Para boa parte dos xiitas e curdos, entretanto, o alistamento

era visto de maneira repugnante; pra os xeiques, era uma tentativa de centralizar a

administração e reduzir a autonomia das tribos 49.

Diante dessa realidade, parecia claro que, endogenamente, o país não dispunha de

condições de obter sua independência. As idéias inseridas no âmbito educacional por Sati’-

al-Husri, embora importantes nas décadas seguintes por fazer emergir um nacionalismo

árabe que seria vital nas disputas políticas que viriam, acabaram por fazer com que o

patriotismo iraquiano jamais surgisse naquele momento. A falta de um olhar mais para

dentro de si impediu o governo (artífice dessas ideologias) de observar mais atentamente os

enormes problemas internos e, com isso, buscar construir uma identidade iraquiana que

trouxesse um senso de unidade entre xiitas, curdos e sunitas50.

As disputas políticas internas eram marcadas por um personalismo atroz, que não

levava em conta projetos de país, mas somente interesses pessoais. Na Inglaterra, a

imprensa pressionava cada vez mais por sua saída do Iraque, e a subida ao poder do partido

trabalhista, em 1929, foi o evento que possibilitou a criação das condições para a

independência iraquiana. O novo governo escolheu Nuri al-Saïd para o cargo de primeiro-

ministro, o único que parecia, à época, controlar os distúrbios internos resultantes da

própria permanência da Inglaterra no território iraquiano. Em 1930, o Acordo Anglo-

Iraquiano foi assinado, e por meio dele o Iraque se tornaria independente em 1932, por

meio do seu ingresso na Liga das Nações (se tornando o primeiro país que sofria mandato

estrangeiro a fazê-lo). Contudo, a influência inglesa ia se perpetuar, graças à manutenção

48 TRIPP, pp. 70.49 Idem, pp. 63.50 MARR, pp. 26.

25

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do direito de ingresso em todas as facilidades iraquianas, além do controle de duas bases e

manutenção de conselheiros e especialistas, em troca da assistência e treinamento do

exército iraquiano. O enorme sentimento antiimperialista de parte da população fez com

que os protestos não cessassem (pelo menos até 1958), e inclusive Curdos e cristãos

Assírios também se opuseram ao tratado, mas por razões opostas à dos árabes. Para eles, a

saída da Inglaterra poderia significar a sua própria desproteção51. Uma eleição geral

articulada por Nuri fez com que os apoiadores do tratado tivessem uma esmagadora vitória,

o que permitiu a sua ratificação logo depois. Numa tentativa de apaziguar os ânimos

curdos, leis foram introduzidas reconhecendo alguns de seus interesses e seu caráter

distinto. O país preparou, em atendimento à Liga, um documento que assegurava os direitos

dos estrangeiros e das minorias, além de garantir a elas liberdade de pensamento e de

religião. Essa garantia permitiu ao país livrar-se do mandato em Outubro de 1932 e, com

isso, tornar-se nominalmente independente52.

Nesse período, entretanto, falhas importantes criaram condições para a instabilidade

da monarquia por toda a sua existência, conforme será visto a seguir. Uma das marcas mais

substanciais foi a descrença de grande parte dos iraquianos nas instituições democráticas, o

que era fruto tanto do forte sentimento antiimperialista, que via todas as produções

ocidentais como atentatórias à soberania, como a fraqueza da própria constituição, que foi

incapaz de dar um rumo para o país. O governo, ao privilegiar um modelo político auto-

interessado, alienou camadas importantes da população, que em algum momento voltar-se-

iam contra ele e gerariam bastante turbulência.

5. O Período 1932-1946

No momento da independência do país, era clara a influência do tribalismo. Além

de controlar o sistema de comunicações do país e boa parte da terra (que era símbolo do

poder e da diferenciação), influenciavam ideologicamente boa parte da população

iraquiana, graças a valores defendidos e solidamente cultuados como a lealdade à família e

à tribo na vida social e política no Iraque, que reverberavam em imensa preocupação com a

família, com o clã, com a tribo, a devoção à honra pessoal, o faccionalismo. Todas essas

51 MARR, pp. 34-35.52 TRIPP, pp. 67 e 75.

26

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características eram incompatíveis com a sociedade civil moderna que surgia em outros

locais do mundo e que se tentava implantar, exogenamente, no Iraque53. Essa realidade era

incompatível, na verdade, com a criação de um Estado moderno, principalmente se nele

carecessem estruturas materiais e ideológicas fortes o suficiente para transcender o apego

tribalista pelo local em vez do nacional. Num país frágil como o Iraque, o quadro de

incipiência de um processo transformação social nas cidades contribuiu para a criação de

uma dicotomia cidade-tribo, o que só seria de alguma forma apaziguado décadas mais

tarde, especialmente durante o início do regime Baath. Ainda sim, alguns eventos nesse

período histórico a ser analisado contribuiriam para a modernização da sociedade.

Em 1933, ainda como reflexo da independência iraquiana, teve início a crise assíria,

na qual a comunidade reclamava sua autonomia baseada em seu status prévio de

comunidade religiosa separada, atribuição concedida ainda na época dos otomanos54.

Apesar de seu tamanho diminuto, a comunidade era considerada um problema de segurança

nacional por parte dos iraquianos, e o fato de que este grupo fora assentado no Iraque pela

forças britânicas logo após a Primeira Guerra Mundial fazia com que tanto árabes como

curdos fossem hostis a eles; alguns chegavam a relacionar a sua permanência no território

iraquiano como um plano sinistro por parte das forças inglesas em recuperar para si o norte

no Iraque, onde se localizavam55.

Após uma tentativa fracassada de migrarem para a Síria, foram abordados por forças

iraquianas em seu retorno. O exército dos Levies, força britânica convocada pelos Assírios

para a sua defesa, foi utilizada. Entretanto, a concentração das forças do general iraquiano

Bakr Sidqi acabou no massacre de metade de toda a população assíria. Cerca de quinhentos

conseguiram fugir para a Síria, mas os demais sobreviventes dos ataques foram mortos,

inclusive por forças curdas que, contaminadas por um forte sentimento antiassírio,

invadiram vilarejos e os destruíram totalmente. Internacionalmente, o país foi severamente

criticado, e sua capacidade de lidar com minorias e mesmo para se autogovernar56.

Internamente, contudo, Bakr Sidqi passou a ser visto como um herói nacional, e a vitória

sobre os assírios significou o triunfo do novo estado perante aqueles que queriam evitar a

53 MARR, pp. 18.54 Idem, pp. 38.55 TRIPP, pp. 80.56 MARR, pp. 39.

27

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união nacional e pretendiam se aliar aos britânicos57. O mais importante desse evento,

contudo, foi o surgimento do exército com proeminência nacional pela primeira vez. Sua

glorificação perante a opinião pública fez com que grupos tribais e curdos, desejosos em se

integrar à realidade iraquiana, buscassem ingressar no exército, o que resultou na aprovação

na cláusula que criaria a declaração de alistamento e, conseqüentemente, fortaleceria os

militares e nacionalistas58.

Do ponto de vista ideológico, o nascimento e desenvolvimento de duas correntes de

pensamento dentre a população iraquiana seria um dos eventos principais do período. Por

um lado, estavam os árabes nacionalistas, interessados nas instituições de estado e na

expansão da influência iraquiana no mundo árabe. Em outro lado, estavam os reformistas

sociais, movidos pelo constante reconhecimento do descontentamento social e das

discrepâncias na riqueza e nas oportunidades. Empiricamente, duas escolas influenciavam o

pensamento político iraquiano. Uma era claramente influenciada pelos modelos ditatoriais

europeus, especialmente o alemão e o italiano, em cujos países podia-se observar um

grande e rápido desenvolvimento econômico, aliado a uma grande mobilização social. Para

os iraquianos que estudaram naquelas localidades, esse modelo de governo parecer ser o

mais efetivo para unir países fragmentados, como o próprio Iraque. A Turquia de Mustafá

Kamal foi um dos países que aderiu a esse modelo, tendo o estado sido um ator

extremamente relevante no desenvolvimento de sua indústria, da agricultura e da educação.

Logo os jovens que haviam se identificado com essas idéias se aliariam aos nacionalistas

árabes que existiam desde a época do mandato, mas até então jamais haviam conseguido se

articular para formar um grupo político sólido. A outra escola, de cunho socialista

democrático, era oriunda muito mais do movimento trabalhista britânico do que a União

Soviética. A geração mais nova dos iraquianos, a primeira a receber uma educação

plenamente ocidentalizada, apreciava a economia como a base do poder, e via a

necessidade da criação de uma reforma social que questionasse a oligarquia dos políticos e

proprietários que governavam o país. Enfatizando concepções como a justiça social, a

distribuição mais justa de poder e riqueza e uma reforma econômica genuína, os jovens

57 TRIPP, pp. 80.58 MARR, pp. 39.

28

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reformistas criaram uma pequena organização denominada Ahali, que se tornou bastante

popular dentre os xiitas e as minorias59.

Ainda em 1933, falece subitamente o rei Faisal, e em seu lugar assume Ghazi, seu

filho de 21 anos de idade. Embora não tivesse a mesma afinidade do pai para lidar com a

política, sua educação no colégio militar fê-lo identificar-se com os jovens oficiais do

exército, compartilhando com eles o senso pan-arabista60. Seu sentimento antibritânico fez

com que as relações com os britânicos esfriassem e, com isso, as classes populares que

emergiam passaram a admirá-lo. Nesse contexto em que se expandia uma classe urbana, no

interior iniciava-se a transição de uma sociedade baseada na organização tribal para outra,

baseada na agricultura. O aumento da força do Estado rumo ao interior, graças à sua

gradativa burocratização, e a implantação da lei de alistamento fizeram com que os shaiks

cada vez mais perdessem sua importância administrativa. Aos poucos, parecia que o

patrimonialismo cederia a um novo conceito de uso da terra, baseado na produção e no

investimento. Contudo, o não fornecimento das condições adequadas para o assentamento

das tribos fez com que houvesse o aumento da insatisfação dos xiitas61.

Simultaneamente a esse quadro hostil no interior, ocorriam seguidas manifestações

xiitas nas zonas urbanas, clamando por maior representatividade no parlamento e nos

cargos públicos, além de uma melhor divisão dos recursos. Os xiitas mais conservadores se

recusavam a ingressar num governo que consideravam ilegítimo (já que era sunita, secular

e dominado por forças estrangeiras), enquanto que os de mesma etnia que já haviam se

adaptado melhor à configuração política do país recém formado acabaram por aderir às

disputas políticas institucionais62.

Em 1935, o Partido da Irmandade Nacional, ao perceber que o caminho para a

conquista do poder pelo caminho constitucional era inviável, organizou uma conspiração

com o objetivo de remover do poder o gabinete, promovendo uma insurgência tribal. Em

resposta a esse ato, o rei decidiu alocar a oposição num novo ministério. Entretanto, na

formação desse novo governo, parte substancial dos apoiadores dos protestos foram

excluídos, e então estes passaram a se rebelar no sul do país. Grupos que estavam

ressentidos com o enfraquecimento tribal, outros que almejavam apossar terras e facções

59 MARR, pp. 37 e 45; TRIPP, pp. 85.60 TRIPP, pp. 81.61 MARR, pp. 41. 62 Idem, pp. 42.

29

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que se moviam por sentimentos religiosos contribuíram para a geração de um caos

generalizado na região do meio-Eufrates63.

O governo agiu com extremo vigor para controlar as desestabilizações. O exército,

controlado por Bakr Sidqi, controlou os primeiros focos; a continuidade das revoltas,

porém, fez com que o uso dos meios de violência se intensificasse a níveis similares ao do

massacre acometido contra os assírios, três anos antes. Os Yazidis, ao norte, também se

rebelaram, mas contra o alistamento obrigatório; logo também foram massacrados pelas

forças do exército. Ainda assim, seus remanescentes negaram-se a participar da

conscrição64. Paralelamente a essas ações, o parlamento liderado por Yasin al-Hashimi

tratou de fortificar e expandir o exército e a burocracia, além de patrocinar campanhas

nacionalistas árabes na imprensa. Claramente via-se que o governo caminhava para uma

ditadura. Logo, Yasim, o “Bismack dos Árabes”, como ficou conhecido, dissolveria o seu

próprio partido e a oposição, e demandaria um governo de dez anos para realizar seu

projeto de país65. Tal movimento acionou um movimento conspiratório, essencial na

história do país, tanto por representar o ingresso quase definitivo do exército na vida

política do país, como por criar uma aliança entre esse grupo e os esquerdistas, rompendo o

status quo estabelecido desde 1920.

Desde o início dos anos 30, Bakr Sidqi introduzia no exército idéias que faziam

alusão a um Estado forte e com forças armadas modernas e que governassem o país. Com o

governo de Yasin, ficou claro para ele que esse objetivo não seria alcançado. Enquanto

isso, Hikmat Sulaiman, um dos apoiadores do novo gabinete que havia sido excluído do

processo político, tinha o objetivo de acelerar o desenvolvimento econômico do país com

justiça social (o que remetia a um Fabianismo socialista). Ao aderir ao Ahali, contribuiu

para que o grupo saísse do campo das idéias de fosse disputar o poder. Sua proposta de

golpe pareceu, de início, radical, mas logo os integrantes da facção entenderam que aquele

momento era uma oportunidade única de pôr em prática seus ideais transformadores66.

Em Outubro de 1936, enquanto aviões despejavam folhetos sobre Bagdá, Sidqi

liderava uma marcha do exército sobre Bagdá. De início, o rei ficara apreensivo sobre o

caráter do golpe, mas ao perceber que a monarquia não seria abalada, aquiesceu ao

63 MARR, pp. 42.64 TRIPP, pp. 87.65 MARR, pp. 43.66 MARR, pp. 44 e 46.

30

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movimento. Yasim resignou-se do cargo de primeiro-ministro e, juntamente com ele, vários

políticos (entre eles, Nuri al-Said) exilaram-se. Sulaiman foi indicado como primeiro

ministro, consolidando um golpe histórico para o país, já que retirou do poder a elite

política que se mantinha no alto escalão do governo desde a fundação do estado, o que

significou a possibilidade de direcionar as ações domésticas de uma outra maneira.

Vários dos componentes do grupo Ahali ocuparam cargos em ministérios cujo

escopo fosse social ou econômico. Pela primeira vez, estavam no poder reformistas liberais

e esquerdistas. A base de apoio migrou da aliança entre políticos sunitas e proprietários de

terras rurais para uma ampla constituição entre as classes médias e inferiores. Não havia, no

novo governo, qualquer defensor do pan-arabismo, e o número de sunitas com cargos

relevantes era pequeno67.

Na política externa, viu-se uma alteração significativa: o país realizou acordos com

o Irã (como o que estabeleceu novas fronteiras entre as partes, baseada no aumento da

jurisdição iraniana dos limites do Shatt-al-Arab, ao sul), Turquia e Afeganistão (compondo

um bloco de países que, juntamente com o próprio Irã, buscou frear a influência soviética

na região). Contudo, a opinião pública veria de maneira negativa essa ampliação de

parceiros nas relações internacionais. A elite sunita árabe entendia que os laços com o

mundo árabes estavam sendo preteridos; os acordos com o Irã significariam a traição dos

árabes do Khuzistão (província iraniana de maioria árabe). O governo, por sua vez,

assinalava que essa reorientação de política externa era a expressão da política “Iraque em

Primeiro Lugar”, o que significava que a ênfase dos governantes se daria no sentido de

viabilizar uma identidade nacional livre da hegemonia nacionalista árabe sunita. No campo

doméstico, reformas no sistema educacional, a distribuição de terras do Estado, a anulação

de leis contra os camponeses, o encorajamento de uniões comerciais e o desenvolvimento

da cultura entre as massas pareceu indicar, a princípio, a força dos reformistas, que

pareciam vitoriosos em atacar o vigente sistema de privilégios das elites68.

Entretanto, cada vez era mais evidente que a única similaridade entre Sidqi e os

reformistas era o desejo de destronar o governo anterior. Como chefe das forças armadas,

passou a exigir cada vez mais por investimentos no exército, e o não atendimento de suas

demandas passou a incomodá-lo. Enquanto isso, as ações reformistas também acabavam

67 Idem, pp. 47.68 MARR, pp. 47-48; TRIPP, pp. 89-92.

31

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por irritar as tribos, que perdiam o seu predomínio regional. O estopim para o fracasso do

reformismo veio quando tribos que apoiavam o antigo regime se rebelaram, e Sidqi e

Sulaiman optaram por contê-los pela força, sem consultar o parlamento, o que causou a

demissão dos ministros reformistas. Sulaiman dissolveu o parlamento, disposto a promover

a subida de elementos mais conservadores ao alto escalão. Este fato acabou por afastar

definitivamente a esquerda do poder até a década de 50; ainda sim, o regime não foi salvo,

graças à influência de membros do antigo regime sobre o exército e a falta de carisma de

Sidqi, que foi emboscado e morto, forçando a renúncia de Sulaiman69.

A partir de então, o poder passou a gravitar nas mãos dos conservadores e dos

nacionalistas. Entre 1937 e 1941, sete parlamentos foram colocados no poder, em geral

devido às ações do exército, que se tornou o principal elemento dentro do Iraque70. Nesse

momento, três conjunturas permearam a política iraquiana: um foi o restabelecimento dos

políticos do establishment, que continuaram com suas lutas pelo poder e a negar as pressões

sociais e a ameaçadora situação internacional que se espreitava; outro foi a re-emergência

da questão palestina, que fez ressurgir e se intensificar os sentimentos antibritânicos e pan-

arabistas, principalmente entre a intelectualidade, os oficiais e os estudantes. A terceira foi

a contínua erosão do sistema constitucional, causada principalmente pela constante

intervenção do exército na vida política do país71. Símbolo desse período foi também a

militarização do sistema educacional, graças à introdução, por parte dos políticos, de

noções como disciplina e obediência, com o objetivo de criar uma sociedade submissa em

nome de um certo nacionalismo árabe. Contudo, a contradição desse sistema de ensino com

a realidade (assentada nos privilégios econômicos, nas hierarquias e nas diversas formas de

discriminação) fariam com que o projeto conservador não vingasse completamente72.

Os eventos políticos do período supracitado também se dariam em termos das

articulações de Nuri al-Said, que buscava se aproximar dos britânicos e punir os

revolucionários depostos. A morte do rei Ghazi em um acidente de carro foi um alívio tanto

para Nuri como para os britânicos. As declarações do monarca advogando a absorção do

Kuwait pelo Iraque, condenando o aumento da influência britânica no Golfo e o sionismo

na Palestina haviam estremecido as relações com a Inglaterra. Nuri, que sempre defendera a

69 MARR, pp. 48.70 FAROUK-SLUGLETT, pp. 20.71 MARR, pp. 49.72 TRIPP, pp. 95.

32

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aliança com os britânicos, procuraria uma nova reaproximação. O filho de Ghazi, de apenas

quatro anos, foi tutelado por um regente, Abd-al-Ilah, primo de Ghazi e notoriamente pró-

britânico, o que satisfez Nuri.

Todavia, a crise na Palestina, em que a população local se revoltara contra o

domínio inglês, tornou a posição de al-Said insustentável. Os jovens oficiais, que haviam

conquistado posições políticas relevantes graças ao primeiro-ministro, recearam que a sua

saída significasse a perda de seus próprios privilégios, e então o impediram de resignar-se.

A emergência da guerra e a intensificação dos sentimentos altamente hostis à Inglaterra,

especialmente por parte dos oficiais, criou uma conjuntura altamente polarizada. De um

lado, ficara Nuri, agora como ministro das relações exteriores, e o regente, ambos crentes

na vitória dos aliados, fazendo-os sugerir o apoio iraquiano aos britânicos. De outro lado,

Rashid Ali, o primeiro-ministro, e os oficiais, que entendiam que o país deveria ficar neutro

barganhar politicamente com a Inglaterra. A conjuntura interna propiciou a vitória do

segundo grupo, mas as negociações com a Alemanha foram decepcionantes. Os britânicos

irritaram-se, e exigiram o apoio iraquiano aos aliados, o que desencadeou uma série de

eventos, que culminaram no golpe de Rashid Ali, amparado pelos oficiais73.

O novo governo era composto inteiramente pelo partido nacionalista, e o regente foi

oficialmente deposto, tendo sido colocado em seu lugar um parente distante. Em Abril de

1941, logo após o golpe, entretanto, os britânicos demandaram, baseados no acordo de

1930, que suas tropas se instalassem no país. O nacionalismo árabe extremado dos oficiais

fez com que exigissem que os ingleses retirassem imediatamente suas forças do território

iraquiano, o que foi entendido como um ato de guerra, e resultou no ataque britânico ao

exército iraquiano. Logo, estes sucumbiram, e o governo não foi capaz de se preparar para

situações de emergência, já que a Alemanha de Hitler preparava um ataque à União

Soviética e não dispunha de efetivo para ajudar os iraquianos. Com isso, os ingleses

dominaram o território e um governo emergencial foi formado para assinar um armistício.

Nesse momento, setores da população, numa exemplificação do sentimento altamente anti-

sionista, atacaram os Judeus e seus negócios em Bagdá, num evento que resultou na morte

de mais de 200 pessoas e fez com que a relação entre essa etnia e os iraquianos em geral,

antes minimamente amistosa, fosse a partir de então tensa74. Em Junho, os políticos do

73 MARR, pp. 52-54.74 TRIPP, pp. 106.

33

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antigo establishment retornaram e formaram um governo composto inteiramente por

membros pró-britânicos. Mais uma vez, uma revolta com o objetivo de encerrar a

influência britânica no país (ainda que desta vez com a presença peculiar de outro elemento

ocidental, a barganha com o nazismo, para fazer frente àquela potência estrangeira) acabou

com a vitória dos ingleses75.

No lado positivo, a vitória significou alguns anos de alguma estabilidade para o

regime, o que, com relativa intensidade, propiciou o estabelecimento de fundações mais

sólidas para o país. O sistema constitucional foi restabelecido, assim como as relações com

as potências européias. Negativamente, o elemento autoritário, assim como em todo o resto

da história iraquiana, também se faria presente nesse momento, desta vez por meio das

condenações à morte daqueles que lideraram a resistência iraquiana de 1941. Além disso, a

segunda ocupação britânica revelou a fraqueza da monarquia, que provavelmente teria

caído caso os eventos se desenrolassem sem interferência exógena, dada a preponderância

dos oficiais dentro da realidade iraquiana naquele momento e seu intento de livrarem o país

de tudo o que fizesse lembrar a influência estrangeira76.

Com o restabelecimento das elites dirigentes, Nuri formou o novo gabinete. Cada

vez mais ficava evidente a dependência do regime para com os britânicos, assim como era

clara a alienação da classe média do processo político. O núcleo de poder parecia mais

restrito do que antes. Nuri, que se tornaria uma figura central dentro do país até 1958,

procurou, primeiramente, reduzir o tamanho e a influência do exército. Procurou-se excluir

os oficiais que tivessem sido treinados aos moldes otomanos, substituindo-os

temporariamente por britânicos. Na educação, foi entendido que o sentimento pró-nazista

que havia se estabelecido no país era fruto do nacionalismo extremo que era ministrado nas

escolas (tanto civis como militares), e um novo currículo foi preparado. Houve um processo

de centralização no governo, traduzida por meio da emenda constitucional que permitia ao

rei demitir o primeiro-ministro caso julgasse necessário77.

Todas essas medidas enfraqueceram os nacionalistas árabes e, com isso, elementos

liberais, que haviam apoiado o grupo Ahali, começaram a penetrar no governo. Nesse

período de estabilidade, vários esquerdistas (inclusive marxistas) passaram a ocupar altos

75 MARR, pp. 54-55.76 Idem, pp. 56.77 MARR, pp. 58.

34

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cargos na educação. Jornais comunistas passaram a ser distribuídos livremente, o que deu a

oportunidade para o partido e outros movimentos de esquerda, então totalmente alijados do

contato social e do poder (desde 1937), chegassem às escolas e aos trabalhadores, que

passaram a serem cada vez mais relevantes socialmente, conforme a sociedade e a

economia se modernizavam. Logo, a intelligentsia adotaria os ideais comunistas, apesar das

perseguições que se avizinharia78. Digno de nota nesse período foi a crescente oposição

entre Nuri al-Said e Abd-al-Ilah, o regente, que passaram a disputar a capacidade de decidir

pelo país num conflito cada vez mais pessoal e menos político, e que duraria mesmo após a

maioridade de Faisal II, o futuro rei do Iraque79.

Na economia, os cinco últimos anos desse período, por influência da guerra e das

péssimas condições internas, o quadro foi cada vez pior. O ingresso de forças britânicas no

país (com poder de compra substancialmente maior do que a população iraquiana),

associada a falta de produtos em geral fez com que o preço das mercadorias aumentassem

drasticamente. Esse aumento substancial dos preços num período tão curto fez com que a

distância entre ricos e pobres aumentasse enormemente. Como conseqüência, laços antigos

entre famílias e comunidades foram quebrados. As conexões entre o poder político e a

riqueza, que propiciavam a exploração do resto da população e o aumento dos lucros, fez

com que a legitimidade do regime fosse questionada. A classe média de funcionários civis,

membros do exército e professores, que ganhava salários fixos, viu sua condição piorar

substantivamente. Os mais pobres atingiam níveis de penúria poucas vezes observados na

história do país, o que levou a uma série de greves e manifestações no final do período de

guerra80. No próximo período, emergiriam uma série de partidos políticos que

conseguiriam, cada vez mais, mobilizar a população, e fazer com que, paulatinamente, o

regime se tornasse mais frágil. Mais do que nunca, eventos e ideologias externas iriam

marcar a realidade doméstica, enquanto que o petróleo possibilitaria alguns surtos de

desenvolvimento. Contudo, o isolamento do país acabou por viabilizar o projeto

revolucionário dos oficiais e dos esquerdistas, como será visto a seguir,

6. Os Últimos Anos da Monarquia (1946-1958)

78 Idem, ibidem.79 TRIPP, pp. 111-112.80 FAROUK-SLUGLETT, pp. 38; MARR, pp. 59; TRIPP, pp. 111-112.

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Os políticos do establishment, apoiados pelos xeiques, pelos novos ricos das zonas

urbanas e pelas camadas superiores do exército, pareciam sólidos no poder. A pobreza

generalizada e a emergência de novos grupos sociais, como os trabalhadores e os partidos

políticos, trouxeram uma crescente e fundamentada oposição ao regime, que demandava, de

um lado, uma rápida mudança social, uma sociedade mais igualitária e maiores liberdades

individuais, e de outro, um movimento mais rápido em nome da unidade árabe e uma maior

independência perante o oeste. Apesar de o sentimento antibritânico ser o único traço em

comum entre essas correntes, pouco fez o velho regime para contra-atacar essas idéias.

Seus programas de desenvolvimento, em vez de resolver os problemas, só os visava evitá-

los81.

Os novos partidos políticos, atores fundamentais desse novo momento histórico

iraquiano, passaram a politizar os novos grupos sócio-econômicos, como a classe média

educada e a nova classe trabalhadora, utilizando-se da imprensa, do rádio e do sistema

educacional, estruturas que se disseminavam e, aos poucos, estavam ao alcance de boa

parte da população82.

Um dos grupos que surgiu nesse período foi o Partido Socialista Árabe Baath,

originalmente formado na Síria logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Em 1949,

foi introduzido no Iraque por jovens sírios que estudavam em Bagdá. Seu programa

combinava linhas de pensamento político que dominaram a intelligentsia desde os anos 30:

o pan-arabismo e a mudança social radical. Desde o início, adotara a tática comunista de se

organizarem em células, o que logo fez com que se tornasse um dos partidos mais bem

organizados e disciplinados do Oriente Médio. Liderado, no início dos anos 50, por Fuad-

al-Rikabi, um xiita do sul, o Baath, nesse período, era um partido não sectário, que tinha

apelo tanto para os árabes xiitas como os sunitas. Paulatinamente, começou a penetrar em

escolas e faculdades, de onde extraiu muito de sua liderança e apoio. Vários dos jovens que

ingressavam no grupo eram xiitas do sul, atraídos justamente pelo caráter aberto e

modernizante do partido, que favorecia as idéias mais radicais e socialistas do período.

Como se verá posteriormente, a adesão após 1958 aumentará bastante, e contatos com

oficiais do exército começariam a ser feitos. Estes eram sunitas de cidades provinciais do

81 MARR, pp. 61.82 Idem, pp 62.

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norte e oeste de Bagdá, e seus interesses eram pragmáticos, por vezes auto-contemplatórios.

Logo tentativas de golpe seriam executadas, e as conseqüências seriam bastante

controversas83.

Para ganhar o apoio da população, o regente viabilizou uma fórmula que consistia

no aumento da liberdade de expressão e na modificação do tratado com a Inglaterra. Em

fins de 1945, concedeu permissão para os partidos políticos, uma nova lei eleitoral, medidas

para melhorar a seguridade social e o desemprego e alguma distribuição de renda. Cinco

partidos surgiram, e dois deles, o Istiqlal (Independência) e o Partido Democrático

Nacional, moldaram a mentalidade da classe média, capturando a atenção dos jovens

iraquianos e tendo um papel relevante até o período pós-58. Nesse momento, ampliavam-se

as tensões entre Nuri al-Said e Abd-al-Ilah, o regente84. Cada um procurava direcionar as

decisões políticas de acordo com a sua própria concepção, e rápidas inflexões

programáticas davam a noção de que o país não tinha um rumo definido.

O Istiqlal era antibritânico e pan-arabista. Reclamava a independência de

Muhammara (hoje Khuzistão) e a causa palestina. Era contrário ao desenvolvimento de

uma identidade iraquiana em separado. Tinha como fraqueza a falta de um programa social.

Ganhou o apoio da população árabe sunita, embora seu líder fosse xiita. Não havia curdos

no partido. O Partido Democrático Nacional era um desenvolvimento do antigo movimento

Ahali, enfraquecido desde os eventos de 1937. Basicamente, retomavam o discurso de

outrora, em que predominava um apelo pelas liberdades políticas, por uma reforma agrária,

pela abolição dos monopólios e por uma distribuição mais igualitária de renda por meio de

impostos progressivos, atualizando-o à conjuntura iraquiana daquele momento. O novo

partido dava, assim, grande ênfase na política doméstica. Sua falta de interesse no pan-

arabismo, ideologia tão ligada aos sunitas, atraiu as minorias, assim como aos xiitas e aos

elementos liberais e de esquerda em geral da classe média educada85.

Ambos os partidos eram contrários à aliança com o ocidente. Enquanto atingiam

totalmente a classe média, seu impacto nas camadas populares era mínimo. Nenhum era

disseminado ou organizado de maneira coesa. Apesar de seus defeitos, dominava a

83 MARR, pp. 77 e 115.84 Idem, pp 62.85 MARR, pp. 63.

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oposição política, e contribuíram para criar um crescente clima de hostilidade ao governo e

ao seu laço externo.

O Partido Comunista, embora não constasse dentre os partidos licenciados, era

certamente o mais bem organizado em 1946. Originado na década de 30, era composto por

jornalistas, professores e advogados. Quase metade dos seus membros era de judeus,

cristãos ou xiitas, o que indicava a sua aceitação perante minorias e grupos despojados do

poder. A base do apoio do partido se dava, em parte, pela intelligentsia (estudantes,

burocratas, professores) da classe média-baixa, além de trabalhadores, especialmente os dos

setores petrolífero, portuário e ferroviário. Suas fraquezas principais em termos de apelo

social eram a pouca influência entre os camponeses e a ausência de preocupação com o

nacionalismo árabe, incluindo a causa palestina86.

Logo a contraditoriedade do regime no início do pós-guerra ficaria expressa. O

aumento da influência dos comunistas, especialmente sobre os trabalhadores da Companhia

de Petróleo Iraquiana em Kirkuk, fez com que estes demandassem um sindicato para

representar os seus interesses. A negação por parte da empresa levou a seguidas

manifestações e protestos nas ruas. O governo, até então com um razoável componente

liberal e tolerante, massacrou os trabalhadores, causando nove mortes. O gabinete seria

desmantelado, e uma gama de políticos mais conservadores e do meio rural passou a ocupar

os ministérios. Salih Jabr, o primeiro-ministro eleito, foi o primeiro xiita a chegar a tal

cargo na história do país, o que representou um passo adiante na integração dessa etnia no

cenário político do país. Contudo, revelou-se ainda menos liberal do que seus predecessores

ao banir os dois partidos de esquerda de então87.

O próximo evento que marcaria a vida iraquiana seria a renovação do acordo feito

com a Inglaterra em 1930. Historicamente, uma das maiores demandas de boa parte da

opinião pública era o cancelamento do tratado e o fim da dependência do Iraque aos

britânicos. O regente passou a concentrar-se em renegociar o tratado de maneira a silenciar

a oposição, mas o fato é que, para esta, não havia nada a ser negociado. Em 1947,

iniciaram-se as discussões em Bagdá, sem a participação da oposição, que passou a

protestar veementemente por sua participação e pela criação de um debate público sobre o

tema, objetivando criar um clima que inviabilizasse sua assinatura. Contudo, a delegação

86 TRIPP, pp. 91; MARR, pp. 63.87 FAROUK-SLUGLETT, pp. 39; MARR, pp. 64.

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iraquiana ignorou essas exigências, e partiu para a Inglaterra para continuar as negociações,

que se encerraram no início de 1948 por meio do tratado de Portsmouth. Ele foi uma

melhoria perante o que havia sido acordado 18 anos antes, já que agora havia ficado

acertado que as tropas inglesas sairiam do território iraquiano, a soberania iraquiana sobre

as bases seria efetivada, mas ainda sim o país estava atado aos britânicos em termos de

suprimentos e treinamento militar, e a concessão de bases aos britânicos em caso de guerra

impedia qualquer possibilidade de neutralidade. O tratado teria sua duração estendida até

197388.

Contudo, a recepção da população ao tratado foi a mais hostil possível. A crise,

conhecida como Wathba (rebelião), integraria praticamente todos os elementos articulados

do país, como estudantes, professores, o parlamento e as camadas inferiores, que se

voltaram contrariamente ao documento, e propiciaram uma atmosfera de guerra civil em

Bagdá. O que era novo nisso era o tamanho, a extensão e o descontentamento expressos nas

manifestações, demonstrado o papel cada vez maior das ruas na dinâmica política, e o

quanto a oposição estava conquistando a população urbana. Ao final daquele mês, um

confronto sem precedentes na história recente do país entre os manifestantes e a polícia

resultou em pelo menos 77 mortes, o que estarreceu o regente, e fê-lo proclamar que o

acordo não atendia às aspirações do país. Após a chegada do primeiro-ministro, outra

gigantesca manifestação ocorreu, forçando-o a renunciar. Com isso, a oposição havia

alcançado seu objetivo de cancelar o tratado e causar a derrocada do gabinete89.

A wathba demonstrou o ressentimento da direita e da esquerda perante o regime e

sua ligação com o estrangeiro. Embora tenha silenciosamente chocado os britânicos, do

ponto de vista jurídico, o cancelamento do tratado pouco fez diferença para eles, já que

passou a prevalecer, então, o documento assinado em 1930. A revolta deu à oposição

argumentos para desafiar o establishment de maneira mais agressiva, e outras revoltas,

ainda que com menor repercussão, sacudiram as ruas da capital iraquiana. A “grande

marcha”, passeata de trabalhadores em meados de 1948 que demandavam aumento de

salários e melhores condições de trabalho, seria o exemplo mais claro de como a monarquia

e o regime como um todo cada vez mais se tornavam insustentáveis. A prática política da

época se tornara tão ambígua quanto ineficaz: as crises faziam com que Nuri e seus colegas

88 MARR, pp. 64-65.89 FAROUK-SLUGLETT, pp. 40; MARR, pp. 64-65.

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(os únicos fortes o bastante para proteger o trono) fossem chamados. Com isso, a oposição

entrava em erupção, o que fazia com que o regente nomeasse alguém mais moderado para o

cargo de primeiro ministro, com o propósito de apaziguar a oposição. Isso dava a

oportunidade a ela de demandar mudanças mais drásticas na política doméstica e externa, o

que resultava na deterioração da situação, levando à re-convocação de Nuri, num círculo

vicioso que gerava manifestações cada vez maiores nas ruas e repressões cada vez mais

brutais por parte da polícia90.

Esse maneira de lidar com os momentos de instabilidade seria posta em prática,

mais uma vez, devido a mais uma crise externa: a guerra na Palestina. A independência de

Israel, referendada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947, levou a uma

abrupta guerra com os árabes palestinos. O evento logo atraiu a atenção dos iraquianos, e o

latente sentimento anti-sionista dentre a população fez com que quase toda a sua totalidade,

incluindo xiitas e sunitas, ricos e pobres, religiosos e seculares, se unissem para manifestar

o apoio à insurgência árabe. Tropas iraquianas foram enviadas, e passaram a lutar

conjuntamente com as legiões da Jordânia. Uma vitória rápida era esperada, mas a falta de

comunicação entre as tropas impediu o seu avanço, e um cessar-fogo imposto pelas Nações

Unidas deu vantagem para as forças israelenses. No recomeço dos conflitos, os israelenses

foram mais bem sucedidos, e conquistaram a vitória. Inicialmente, os Estados Unidos e os

ingleses foram escolhidos como os culpados pela derrota, mas em seguida a tese dominante

entre a população foi a de que as condições tenebrosas do ponto de vista econômico, social

e político do Iraque é que causaram a derrota. Tal consideração, que levou à conclusão de

que uma maior unidade árabe poderia significar a redenção iraquiana, criou o momentum

para o aumento da força do pan-arabismo na cena política91.

O resultado da vitória israelense na Palestina repercutiu, no domínio doméstico

iraquiano, em hostilidades sem precedentes para com os judeus. A partir de um certo

momento, em que as agressões passaram a significar dezenas de mortes e a destruição dos

negócios judeus em Bagdá, o governo autorizou a saída daqueles que assim o desejassem.

Para a sua surpresa, praticamente a totalidade da comunidade judia (cerca de 100 mil

pessoas) abandonou o país, em 1951, o que deixou um vácuo na esfera comercial iraquiana.

Isso abriu a oportunidade para xiitas e cristãos, que usaram esse novo espaço como um

90 Idem, pp. 40-41; ibidem, pp. 66.91 MARR, pp. 66-67.

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canal de mobilidade. A nova geração dos xiitas engajou-se na medicina, no direito e nas

finanças, e alguns daqueles que descendiam de tribos proprietárias de terras utilizaram o

capital adquirido para se tornarem empresários, fazendo emergir uma nova classe média

xiita92.

Na esfera econômica e social, a década de 50 foi um período de consideráveis

mudanças. O aumento das receitas petrolíferas, dada a descoberta de campos de exploração

enormes, como o de Zubair e Rumaila, fizeram com que, pela primeira vez, o país

alcançasse superávits comerciais. Logo, o Iraque se tornou um país rentista, que dependia

cada vez mais dos royalties obtidos da exploração do petróleo, e não exatamente de uma

produção industrial que significasse o motor do desenvolvimento. Contudo, a importância

crescente desse novo elemento deu a Nuri a oportunidade de implantar um programa de

desenvolvimento de longo prazo que, embora não tenha atendido a maioria de seus

objetivos (tanto pela falta de investimentos em questões estruturais, como educação e

ensino, como pela derrocada do regime no final da década e a conseqüente alteração na

destinação dos recursos), foi importante para dar início a algumas transformações que

atingiriam seu auge no regime do partido Baath, a partir de 196893.

A primeira prioridade foi a agricultura, com projetos que visavam controlar as

enchentes do rio Eufrates e diques em seus afluentes em todas as regiões do país. A

segunda se deu em termos de investimentos estruturais no setor das comunicações e do

transporte. Estradas, ferrovias, portos, aeroportos, usinas de força, refinarias e pequenas

indústrias foram construídos. A grande destinação de recursos para essas áreas impediu,

naquele momento, investimentos em setores mais sociais, como saúde e educação94.

Os resultados do programa foram positivos, já que a área de cultivo e a produção

aumentaram consideravelmente. Contudo, a maior parte do crescimento de seu no setor

privado, devido a investimentos individuais em estruturas de produção, e não exatamente

devido ao programa. Além disso, pouco foi feito para modernizar as práticas de agricultura

existentes, que eram extremamente rudimentares e resultavam em baixíssima

produtividade. Apesar dos problemas, Nuri havia conseguido um trunfo provisório; cada

vez mais o seu poder pessoal fazia a diferença (dentre os 20 gabinetes que seriam formados

92 Idem, pp. 67; TRIPP, pp. 123-126.93 MARR, pp. 67-68.94 MARR, pp. 69.

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naquela década, ele estaria presente em pelo menos 14). Contudo, a fraqueza do regime,

que titubeava de lado a lado, mas não expandia sua base de apoio, faria com que a queda

seria vertiginosa a partir de meados dos anos 5095.

Havia pouco desenvolvimento industrial para empregar a população rural que

migrava para as cidades. Praticamente todos os trabalhadores que exerciam sua profissão

em indústrias que não a de petróleo faziam-na em estruturas primárias e de pequeno porte, e

por meio de serviços manuais. Quase nada foi feito em termos de projetos de curto prazo

que elevariam o padrão de vida, em especial das novas camadas urbanas, que observavam o

avanço cada vez mais pujante da indústria do petróleo, bem como seus lucros exultantes.

Cerca de 90 por cento da população era analfabeta, enquanto que o número de graduados

no ensino superior era pouco superior a mil por ano. Apesar de alguns avanços nos serviços

de saúde, as epidemias ainda eram disseminadas. A maioria das cidades não tinha

eletricidade, e nenhuma contava com serviço de saneamento básico. Essa conjuntura de

altos lucros para uma fatia diminuta da população e a penúria para a restante seria a

conjuntura marcante dos últimos anos da monarquia, apesar de suas tímidas tentativas de

mudar a situação96.

A subida de Musaddiq no Irã e a conseqüente nacionalização do petróleo em 1951

inspirou demandas dos partidos de esquerda, especialmente o comunista, para que o mesmo

fosse feito em território iraquiano. Em 1952, um grupo de jovens oficiais conseguiu

derrubar a monarquia egípcia, o que acendeu a chama antiocidental no Iraque (dados os

duros discursos de Nasser) e fez crer na população a possibilidade de que seria possível

acabar com o regime altamente dependente da Inglaterra. Uma greve de estivadores foi

seguida de uma greve estudantil, e várias manifestações e insurgências passaram a ocorrer

freqüentemente em outras cidades iraquianas. A escolha de um governo militar pela

monarquia resultou no banimento de todos os partidos políticos, da declaração de um toque

de recolher e na prisão de agitadores e políticos. Cada vez mais, o elemento autoritário era

o único componente capaz de manter a ordem no país. Com isso, os jovens (dentre eles,

Saddam Hussein), passaram a crer que só atividades clandestinas mais rudes poderiam

fazer com que a monarquia caísse97.

95 FAROUK-SLUGLETT, pp. 42.96 MARR, pp. 70.97 MARR, pp. 71.

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Em 1953, Faisal II atinge a maioridade e se torna rei do Iraque. Sua educação

ocidentalizada e suas idéias democráticas poderiam fazê-lo identificar as novas classes

ocidentalizadas que emergiam nas cidades. Contudo, sua falta de experiência e sua

distância para com a opinião pública impediram que a monarquia desse uma guinada

substancial para atender as demandas populares e, assim, se manter. Além disso, o regente

Abd al-Ilah, que controlava Faisal II com força, não parecia disposto a delegar os poderes

reais ao rei. Pelo contrário, ele pretendia isolar Nuri e continuar com suas próprias políticas,

dissolvendo o parlamento e convocando uma nova eleição98.

As eleições de 1954 foram as mais livres da história do país, produzindo o

parlamento mais representativo já eleito até então. A princípio, tinha-se a noção de que

reformas ocorreriam; entretanto, o tratado Anglo-Iraquiano de 1930 voltou a ser o tema da

vez. Como o tratado expiraria em 1957, precisaria ser renegociado. Para que não

houvessem grandes manifestações e o acordo pudesse ser revisto com calma, os políticos

entenderam, mais uma vez, que somente Nuri era capaz de governar o país. Ele, contudo,

exigiu a dissolução do parlamento, a pretexto de criar condições de governabilidade, o que

demoliu as chances de um reformismo99. Em seguida, Nuri suprimiu todas as atividades

políticas, especialmente as esquerdistas, numa prática que denominou como uma luta

contra o comunismo (numa aparente tentativa de ganhar um apoio britânico que

viabilizasse um acordo favorável aos iraquianos). Além disso, cortou relações diplomáticas

com a União Soviética. Nos próximos quatro anos, a atividade política fora totalmente

suprimida, e o governo passou a se assentar totalmente no exército e na polícia. Na mesma

medida, forças clandestinas surgiriam para combater, de maneira definitiva, o regime

monarquista100.

O tratado com a Inglaterra começou a ser renegociado. A fraqueza do regime

internacionalmente fez com que os políticos optassem pela realização de acordos bilaterais

com países como Turquia, Irã e Paquistão, numa tentativa de armar uma defesa coletiva

contra os britânicos. Enquanto isso, o Egito de Nasser buscava afastar-se dos ocidentais,

propagando discursos altamente pan-arabistas. Contudo, Nuri acabou realizando a primeira

opção, que teve a contrapartida da mediação norte-americana. Isso irritou profundamente

98 TRIPP, pp. 133.99 Idem, pp. 134.100 FAROUK-SLUGLETT, pp. 44; MARR, pp. 73; TRIPP, pp. 137.

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Nasser, que queria formar uma confederação árabe, e as relações com os egípcios ficaram

estremecidas. O tratado, que ficou conhecido como Pacto de Bagdá, foi efetivado em 1955,

e teve como pressuposto o controle iraquiano de duas bases que antes pertenciam aos

ingleses, em troca do direito britânico de passagem aérea no território iraquiano. Em caso

de ataque ao Iraque, forças do Reino Unido lhe forneceriam auxílio. Positivamente, esse

pacto fortaleceu a defesa interna do país e contribuiu para o desenvolvimento de sua infra-

estrutura. Além disso, o acordo com países como Turquia e Irã foi positivo no sentido de

apaziguar os ânimos de curdos e xiitas. Contudo, acabou por dividir o mundo árabe,

levando o Iraque a um contínuo isolamento perante seus vizinhos101.

Em 1956, Nasser nacionaliza o canal de Suez, e um contra-ataque conjunto de

França, Inglaterra e Israel criam um clima de caos no Iraque, com manifestações superiores

ao Wathba, em 1948. Oleodutos e outras facilidades foram destruídos, e ficou clara a

incompetência do governo em controlar a situação de maneira pacífica. A formação da

República Árabe Unida entre a Síria e o Egito (com o objetivo de evitar uma maior

penetração do comunismo no país) foi outro evento de relações internacionais que fez

piorar a situação iraquiana. O Iraque, ao aceitar a proposta de rei Hussein da Jordânia em

formar uma federação foi um dos últimos eventos governamentais controlados pela

monarquia102.

A oposição, desde 1953 (mesmo na ilegalidade), estava se organizando. O Istiqlal

passou a cooperar com o Partido Democrático Nacional. Em 1957 o Partido Comunista e o

Baath (renascimento) foram incluídos no que foi denominado Frente de União Nacional. Os

problemas com o exército eram um problema ainda pior para o regime. Em 1956, o

entrevero se iniciou após a descoberta de um plano para derrubar o regime. Apesar de os

líderes terem sido controlados, fontes da inteligência revelaram que novas conspirações

estavam sendo armadas em 1958. Novamente, devido a suas medidas repressivas, Nuri foi

acometido por um falso senso de segurança. Em maio de 1958 a guerra civil eclodiu no

Líbano. Com medo de que esse movimento se disseminasse, o rei da Jordânia solicitou

auxílio às tropas iraquianas, requisitando que fossem para as fronteiras entre os países. Esse

evento selou o destino da monarquia no Iraque, já que em vez de se dirigirem para a

101 MARR, pp. 74-75.102 MARR, pp. 76.

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Jordânia, as tropas marcharam para Bagdá, executando um golpe rápido que acabou com a

dinastia hashemita e o regime de Nuri em 14 de Julho de 1958103.

O golpe levou ao fim um período de 48 anos, marcado pela presença da Grã-

Bretanha, dos Hashemitas, de ex-oficiais otomanos, além de proprietários de terra e shaiks

que haviam abraçado o status quo. O período seguinte seria de esperança por um

reformismo social e econômico rápido e eficiente. Contudo, como será visto

posteriormente, essas expectativas seriam frustradas, mais uma vez, por um excesso de

autoritarismo e por brigas ferrenhas pelo poder entre esquerdistas e pan-arabistas. O Baath,

partido que conseguiu amalgamar essas duas correntes ideológicas, sairia vitorioso, dez

anos depois, ainda que com muita violência. Ainda sim, as esperanças de transformação

seriam renovadas.

103 Idem, pp. 77-78.

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CAPÍTULO 2 – O Período 1958-1968

Neste capítulo, buscaremos tratar, primeiramente, da formação ideológica do

partido Baath e de Saddam Hussein até 1958, identificando principais linhas ideológicas

defendidas até então. Em seguida, trataremos do período entre 1958 a 1968, década

marcada por grande instabilidade política. O objetivo será analisar, sucintamente, os

desenvolvimentos históricos do governo de Abd al-Karim Qasim (1958-1963), do curto

regime do Baath (02.63 a 11.63) e, finalmente, as presidências de Abd al-Salam Arif (1963-

1966) e de seu irmão, Abd al-Rahman Arif (1966-1968), que governa até o derradeiro golpe

do Baath e de setores militares em Julho de 1968.

1. O Surgimento do Partido Baath

O Partido Socialista Árabe Baath (“Renascimento”, em árabe), fundado nos anos

40, é produto da fusão, em momentos diferentes, de três grupos: os árabes (de segmento

Alawi, com interpretação radical do xiismo) de Alexandretta (hoje Iskenderun, distrito sírio

entregue para a Turquia com consentimento da França em 19391); jovens estudantes sírios,

notadamente Michel Aflaq e Salah al-Bitar, e o grupo tribal de Akran Hurani, estabelecido

em Hama, cidade Síria.

O Partido Nacionalista Árabe é fundado em 1940 pelos Alawis, inicialmente como

maneira de resistência contra a entrega daquele território para os turcos como parte de um

acordo para que estes se juntassem aos aliados no início da II Guerra Mundial2; décadas

mais tarde, o grupo dos oficiais Alawi dominaria o Baath sírio, resultando em fratura

definitiva com o Baath iraquiano. Aflaq e Bitar,que se aliaram aos Alawis em 1944, se

tornariam, paulatinamente, as figuras mais importantes do partido, especialmente nas

décadas de 40 e 50, tornando-se responsáveis pelo embasamento ideológico do mesmo. A

dupla estudara na Sorbonne em meados da década de 30, sendo influenciados por

pensadores e ideologias distintas, como Nietzche, Marx, Lênin, Hegel, o socialismo e o

fascismo. O grupo de Hurani, por sua vez, seria responsável por ampliar a penetração do

1 BATATU, Hanna. Old Social Classes and the Revolutionary Movements in Iraq, pp. 722.2 al-KHALIL, Samir (Kanan Makiya). Republic of Fear, pp. 186.

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partido em setores tribais e do exército, o que seria de grande relevância para o Baath,

concentrado até o início dos anos 50 na classe média instruída e com pouca visibilidade

para a maioria da população.

Em 1947, partido organiza primeiro congresso e constituição, fortemente baseada

nos escritos de Aflaq, é aprovada. O partido adota o lema “Unidade, Liberdade e

Socialismo”. No final da década, com a crise na Palestina devido à criação do estado de

Israel, desenvolvem-se filiais do Baath sírio na Jordânia (1947), no Líbano (1949) e no

Iraque. No Iraque, grupo surge na Universidade de Bagdá em 1949, e é reconhecido

oficialmente como sendo parte do Baath em 19523. O grupo tem boa aceitação dentre o

grupo estudantil e durante a década as filiais se expandem, levando à formação do primeiro

Congresso Nacional do Baath em 1954; aí são estabelecidas regras organizacionais que se

tornariam, mais tarde, uma das marcas da penetração do regime baathista na vida de todos

os cidadãos a partir de 1968.

Reconhecendo a superioridade tática dos comunistas, baathistas adotam divisão

hierárquica do escopo de atuação de seus membros4, desde o nível mais baixo, a célula

(bairros), composta de três a sete pessoas; duas ou mais células formavam a seção

(cidades), e duas ou mais seções formavam uma sucursal (província); duas ou mais

sucursais formavam uma região (país), e acima desta estava a nação árabe (âmbito

nacional). Criavam-se, então, o Comando Regional e o Comando Nacional, que

deliberavam, respectivamente, sobre assuntos do partido no âmbito dos países e de toda a

região árabe. Outra divisão era significativa, a diferenciação em termos da filiação ao

partido: apoiador organizado, partidário de segundo grau, partidário de primeiro grau,

candidato, membro em treinamento (que passava por um período de seis meses para ser

admitido) e, finalmente, membro ativo, que possuía eleger líderes e ter responsabilidades

dentro do grupo5.

O partido sofria forte concorrência por parte de outras agremiações, principalmente

os comunistas, que eram bastante populares dentre a população no final da década de 50,

como veremos mais adiante. Sua ideologia complexa, conforme será brevemente

apresentado a seguir, também afastava boa parte dos iraquianos. Em 1955, por exemplo, o

3 BATATU, pp. 743.4 Idem, pp. 744-745.5 Makiya, pp. 224.

47

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número de membros ativos não chegava a 300, conforme aponta Batatu6, embora

crescimento de partidários fosse notável naquele momento.

a) Ideologia

O contexto do surgimento do Baath é marcado, no âmbito iraquiano, pela

decadência momentânea do pan-arabismo como ideologia predominante, em especial

devido à queda do regime de Rashid Ali al-Gailani em 1941 após intervenção e ocupação

britânica, resultado em intensa perseguição de elementos nacionalistas naquela década, o

que permite que as alas mais reformistas e, inclusive, o comunismo, ascendam como forças

políticas mais preponderantes no Iraque naquela década. Contudo, no mundo árabe, a crise

da Palestina e a subida ao poder de Nasser no Egito em 1952 e seu subseqüente ideário pan-

arabista e reformador dão novo vigor a essa ideologia. Aliado a isso estão ainda, conforme

mencionado, as experiências intelectuais de Michel Aflaq e Salah al-Bitar na Europa dos

anos 30.

Buscando realizar síntese que congregue o pan-arabismo e o reformismo social,

com foco político mais voltado para dentro de cada país – conceitos até então fortemente

opostos no Iraque e no mundo árabe dos anos 30 –, o Baath, em sua constituição de 1947,

adota a união dialética entre “unidade, liberdade e socialismo” como expressão de sua

práxis revolucionária e seu ideal de construção de “um novo homem e uma nova sociedade

iraquianos”, conforme veremos a seguir.

A liberdade, para o Baath, significa liberdade perante o imperialismo e o sionismo,

contra forças externas que prejudiquem a soberania nacional7. Trata-se, então, da liberdade

da nação em controlar seus próprios assuntos. Mas enquanto Batatu afirma que há

preocupação teórica com liberdade em termos do indivíduo, com sua valorização dentro do

grupo e de seus direitos pessoais8, al-Khalil afirma que a soberania pessoal é vista como

egoísmo e como parte do sistema capitalista, e então a liberdade defendida pelo partido não

seria garantia para o indivíduo de que estaria salvo de imposições em seus pensamentos e

ações originados no Estado ou na sociedade9. Contudo, há de se salientar, como diversos

6 BATATU, pp. 743.7 Makiya, pp. 253.8 BATATU, pp. 734-735.9 MAKIYA, pp. 139; 253.

48

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autores o fazem, de que os primeiros textos de fundamentação teórica do partido, em geral

escritos por Aflaq, são confusos, contraditórios e não sistematizados, enquanto o Baath dos

anos 50, especialmente o sírio, sofre influências do marxismo, enquanto declinava

influência de Aflaq, graças à grande penetração de novos elementos ao partido naquela

década10. De qualquer forma, Makiya afirma que, no Iraque, o Baathismo ortodoxo e Aflaq

mantiveram-se dominantes nesse período e depois, apesar da participação crescente do

método leninista de organização partidária, admirado pelo próprio ideólogo11.

A ligação da liberdade com o socialismo se dá em termos da rejeição da democracia

burguesa e da afirmação da democracia socialista, com o povo como fundamentação do

regime. O comunismo tem forte influência na conceituação da visão baathista do

socialismo, mas o partido procura atrelá-lo às especificidades da condição árabe, sendo

então a ignorância, a pobreza e a pobreza como empecilhos para a realização do fim

socialista.12 O Baath realiza forte crítica aos grupos dominantes, e propõe combate radical

contra eles, por crer que ideário nacionalista não mudará seu caráter opressor13. Mais

especificamente, acreditam no papel do Estado como o provedor de um mínimo para os

cidadãos; ficam explícitas determinações como a nacionalização dos recursos, serviços e

utilidades públicas, além da planificação econômica, controle estatal do comércio interno e

exterior, garantia da seguridade social, gratuidade dos serviços médicos e educacionais14. O

programa econômico, nesse sentido, se aproxima bastante daquele moldado pelo Partido

Comunista Iraquiano (PCI), mas ao contrário destes, o Baath valoriza a propriedade e a

herança como direitos naturais, dentro dos limites do interesse nacional (árabe), e então os

comunistas realizam contínuas críticas ao socialismo baathista como burguês. Isso geraria

tensões que se reproduziriam nas décadas de 50, 60 e 70, até a formação da coalizão entre

os grupos e posterior desmonte do PCI pelo Baath, como será visto mais adiante.

A união é expressa no pan-arabismo, com o fim dos regionalismos, vistos como

criação artificial, oriunda do imperialismo. A união entre os povos é inevitável, já que estes

possuem língua, história, identidade da experiência atual (i.e. sofrimento perante o

imperialismo), interdependência entre seus interesses de defesa e suas economias agrárias e

10 BATATU, pp. 730.11 MAKIYA, pp. 226-227.12 Idem, pp. 254.13 BATATU, pp. 737.14 Idem, pp. 738.

49

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habitáts geográficos comuns15. Esse formato de pan-arabismo contrastava com a visão

comunista, que imaginava a união somente em termos federativos, o que geraria críticas do

Baath nos anos 50 e 60; gradualmente, porém, os baathistas adotariam essa perspectiva de

agregação entre os países, principalmente após a conquista definitiva do poder. A liberdade

se realiza nessa união, assim, quando todas as formas de identidade que não o nacionalismo

árabe forem repelidas, para que a massa se torne cada vez mais homogênea; nesse sentido,

interpreta Makiya que o momento de êxtase da liberdade é alcançado quando a mente for

completamente dissolvida no outro, criando, então, a massa humana perfeita, o auge da

auto-realização, ao mesmo tempo em que é símbolo do socialismo em termos da destruição

da separação entre os povos e as pessoas16.

Unidade, liberdade e socialismo são conceitos que se realizam, assim, somente

quando cada um está implicitamente presente no outro. Mas o partido evoca outros

princípios que também aparecem nessas conceituações e que marcam fortemente os seus

princípios, como um marcante grau de romantismo e, inclusive, de messianismo.

Continuamente, o partido fez esforços no sentido de extirpar excesso de

racionalidade na compreensão teórica de sua ideologia. Em termos da construção da

identidade árabe, o partido define que a qualidade do ser árabe não de dá em termos

étnicos, mas sim na crença da mensagem arabista17. Isso explicaria, então, o pouco esforço

em tratar especificamente das minorias, como os curdos (o que contribui, juntamente com a

mensagem pan-arabista, para o seu afastamento dos quadros do Baath). Mais tarde, aponta

Makiya, isso seria importante para compreender a maneira diferenciada com que o partido

trataria criminosos comuns de criminosos políticos18. A ditadura do proletariado e a

ditadura baathista se diferenciariam, dessa forma, no sentido de que, enquanto o primeiro

inclui inimigos do partido, o segundo os exclui, inclusive em termos de cidadania. O

socialismo não seria explicado unicamente em termos científicos, mas sim espirituais (o

que também geraria tensões com os comunistas); a nação possui alma ou espírito, que está

intimamente ligado com o Islã; então o nacionalismo é uma não-idéia e uma não-teoria,

existindo como amor antes de tudo; a nação é, primeiramente, extensão da família (o que

resgata o nacionalismo europeu do século XIX); então, conforme mencionado, não tem

15 BATATU, pp. 732.16 Makiya, pp. 256-257.17 MAKIYA, pp. 134.18 Idem, pp. 135.

50

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base em raça ou sangue, mas no espírito. É impassível de escolha pelo árabe, ao mesmo

tempo em que se constitui como tendência humanitária e, assim, como vértice para a

liberdade19.

O meio de conquista dos objetivos do Baath, o golpe de estado (inqilab), ou

revolução, também é fenômeno espiritual, baseado na transformação dos valores árabes e

da maneira de pensar, que alteram todos os sentidos da vida. É aí em que partido exorta

uma série de valores e códigos morais para a formação de uma nova sociedade iraquiana,

como a coragem, o sacrifício, o heroísmo, o entusiasmo, a fé, a militância e o altruísmo; a

espontaneidade, o idealismo e o desapego como bens da nação20. O Baathismo se constitui,

então, como um constante sonho por mudanças, ao mesmo tempo em que crê que atitudes

erradas e elementos hostis surgem sempre de fora, ou quando pessoas se afastam de suas

comunidades.

O Baath se coloca como o único capaz de realizar a missão de concretizar a nação

árabe; o passado mesopotâmico, de grandes impérios (como os Acádios, os Babilônicos e

os Sumérios), é resgatado para mostrar tendência irresistível de grandeza do mundo árabe e

sua missão eterna de união; mais do que tudo, o Baath se coloca como um meio de vida,

que se estende a todos os aspectos daquela. Para isso, e entendendo que o partido é aquele

responsável pela direção dos interesses da massa, desenvolve-se organizacionalmente aos

moldes leninistas em que, conforme já visto, é criada rígida estrutura vertical e

diferenciação entre membros e apoiadores; nesse sentido, incorpora o centralismo

democrático como método de decisão e o princípio da vanguarda, formada por aqueles

capazes de se dedicarem inteiramente à causa revolucionária21. Ainda dentro do forte

caráter messiânico, o partido acredita que sua existência é indicativo da revolução em

andamento; a distância do Baath implica na distância da nação, e o caminho do Baath é o

caminho da nação – com isso, nenhum outro partido pode tomar seu lugar22. O Estado

Baathista é um meio, um instrumento para a chegada da nova sociedade e do novo

indivíduo iraquiano, ambos imbuídos de valores, conceitos e condutas revolucionários23,

19 BATATU, pp. 733-734.20 Idem, pp. 738-741.21 Ibidem, pp. 739.22 Ibidem, pp. 740.23 MAKIYA, pp. 137-145. O autor ainda comenta, em razão do forte apelo do partido à crença como definidor da identidade árabe e, portanto, da participação na sociedade e no partido, que há grande similitude de raciocínio com o nazismo; contudo, este buscaria raça pura, e não a crença.

51

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enquanto o partido é o educador e o mobilizador das massas para o aproveitamento das

estruturas do Estado para o fim determinado.

Alguns dos temas principais, como o formato do socialismo e o sistema político

ideal, com somente um partido no poder, só seriam oficialmente integrados à doutrina do

partido no Sexto Congresso Pan-Arabista, de 1963 (mesmo ano em que tanto o Baath sírio

como o iraquiano chegam ao poder)24, mas mesmo na década de 50 estavam na pauta das

discussões dos congressos regionais do partido. Dentro das lutas partidárias que se

seguiriam, houve esforço contínuo de diferenciação perante os comunistas, e o pan-

arabismo extremado, em oposição à tese federalista do PCI, é um dos trunfos ideológicos

mais significativos. O anti-sionismo, também ausente nas formulações dos comunistas, e

visto pelo Baath como extensão mais significativa do imperialismo ocidental no Oriente

Médio, é outra das características que eram continuamente reforçadas não só para explicar a

rejeição às fronteiras iraquianas, mas também para distanciar o Baath do PCI,

razoavelmente próximos no debate econômico do país nos anos 50.

No fim daquela década, participaria de manifestos anti-monarquia, e ganharia

alguma popularidade após a crise de Suez, em 1956. A maioria de seus componentes era

ainda de jovens universitários, e a liderança contava com vários xiitas. A ideologia do

partido não havia afastado a parcela dos xiitas que migrava em números cada vez maiores

para as grandes cidades em razão da crescente diferença de desenvolvimento entre os

setores rural e urbano, e que se tornavam cada vez mais secularizados. Para os xiitas mais

conservadores, a clara divisão entre religião e política feita pelo Baath e a noção implícita

de que o Islã era um impedimento à política causavam repulsão, mas o “ateísmo” dos

comunistas era um problema muito maior naquele momento.

b) Saddam Hussein, Infância e Juventude

Uma breve descrição desse período da vida de Saddam Hussein, que se tornaria a

figura central do Baath a partir de meados dos anos 70 e um dos personagens de maior

influência no Oriente Médio último quartel do século XX é relevante tanto para a

24 BARAM, Amatzia. Culture, History and Ideology in the Formation of Ba’thist Iraq (1968-89), pp. 10.

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observação da sociedade iraquiana dos anos 40 e 50 como para compreender algumas de

suas atitudes quando no poder.

Saddam Hussein nasceu no vilarejo de Al Awja, próximo de Tikrit, cidade

historicamente conhecida por ser a de origem de Saladin e bastante empobrecida nos anos

40; o solo da região era pouco produtivo, então pouco atraente para empreendedores

privados. A data de nascimento é controversa: oficialmente nascera em 28 de Abril de 1937

(mais tarde, transformaria-a em feriado nacional, como parte do projeto de culto de sua

personalidade), mas há informações sobre nascimento em 1939. A possível alteração teria

ocorrido tanto para que ganhasse mais respeito frente aos Baathistas nos anos 60 como para

que tivesse mesma idade da prima, com quem se casaria em 1962 (casamentos com

mulheres mais velhas são feito incomum na sociedade iraquiana, fortemente marcada pelo

tradicionalismo25).

Descendente da tribo Albu Nasser e do clã Majid (sunita), mantém sobrenome

Tikriti como sinal de status (já que era costume entre os iraquianos os nomes que

evocassem suas regiões de origem); isso se tornaria relevante conforme regime baathista se

tornasse cada vez mais concentrado em parentes mais próximos de Saddam, o que levaria,

em razão de desconforto social com tal preponderância, a criação de leis eliminando esse

costume social. Seu pai biológico morre antes de nascer, e então Subha Talfah, sua mãe,

casa-se com Hassan Ibrahim; ambos, como maioria da população, são analfabetos. As

condições de sobrevivência são muito ruins: casas eram de barro, sem banheiros, água

corrente, eletricidade e cozinha; não havia condições mínimas de higiene, nem sistemas de

saúde, e então cidade era infestada por doenças como tênia e malária. Pela falta de espaço

nas casas, crianças tendiam a ficar fora das casas o dia todo; o padrasto o molestava, e era

compelido, como a maioria das crianças da região, a roubar ovos e galinhas para alimentar

família. Era comum a formação de gangues infantis para roubo de fazendeiros; por tudo

isso, maioria das crianças não ia à escola.

Saddam se identifica com tio, Khairallah Talfah, ex-tenente que participou do

regime nacionalista de Rashid Ali, mas que após intervenção britânica fora expulso do

exército e então tornara-se professor (após subida do Baath ao poder, tornaria-se prefeito de

Bagdá, e nos anos 80 tornaria-se conhecido pelos casos de corrupção); ainda sim, tinha vida

25 ABURISH, Said K. Saddam Hussein, The Politics of Revenge, pp. 11.

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muito mais próspera do que a família de Hussein. Decide fugir de casa para morar com ele

aos 10 anos e ter oportunidade de estudo. Sofre traumas por ser bem mais velho do que

crianças da escola e por ser órfão, característica que culturalmente implica em hostilidades

na sociedade iraquiana26. Conhece primo, Adnan Khairallah, que mais tarde seria nomeado

para Ministério da Defesa em seu governo. Vai morar em Bagdá com o tio no início dos

anos 50, e participa, fortemente influenciado pelo tio, das manifestações anti-monarquia

que ocorriam; tem primeiro contato com xiitas nos subúrbios da capital, e como vários

deles, vai trabalhar como cobrador de ônibus, vendedor de cigarros e atendente em cafés.

Então tenta ingressar em escola militar, aos 18 anos, para seguir carreira do tio e de vários

conterrâneos de Tikrit (que formavam base do exército juntamente com a maioria dos

xiitas), mas falha. Tio se aproxima de Ahmad Hasan al-Bakr, também parente da família,

mas de boa colocação social, sendo membro do alto escalão do exército (filiaria-se ao

Baath em 1959 e tornaria-se o presidente do Iraque com golpe baathista de 1968).

Saddam forma consciência política em meio à polarização da sociedade iraquiana,

em que há forte alienação de xiitas, curdos e sunitas pobres frente classe dirigente sunita.

Hussein freqüenta escola secundária, mas atua maior parte do tempo coordenando gangue

de pequenos ladrões nos subúrbios da capital. Com influência do tio, aproxima-se do Baath,

tornando-se apoiador do partido. Com isso, usa seu grupo para aumentar corpo das

manifestações contra o regime e realizar, ao mesmo tempo oposição armada aos

comunistas. Mas ainda em 58, ano da revolução que derruba monarquia, não tem

proeminência política dentro do Baath, não chegando ainda a ser membro efetivo.

2.) O Período 1958-1968: Desdobramentos Históricos

a) O Governo de Abd al-Qarim Qasim (1958-63)

O golpe que derrubou a monarquia em Julho de 1958 foi montado primordialmente

por um grupo de militares descontentes com o regime, os Oficiais Livres, que começaram a

se organizar secretamente desde o início da década de 50, inspirados pelos

desenvolvimentos revolucionários e as reformas sociais subseqüentes ocorridos no Egito de

26 ABURISH, pp. 16. KARSH, Efraim; RAUTSI, Inari. Saddam Hussein: A Political Biography, pp 9.

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Nasser27. Conforme o clima tenso dentro do país aumentava, o grupo clandestino ganhava

mais apoio dentro da própria corporação. Partidos políticos como o Baath, o Partido

Democrático Nacional e o Partido Comunista Iraquiano foram alertados para a iminência da

revolução, e então mobilizam a população para ida às ruas após consecução do golpe. Este

fora coordenado por Abd al-Qarim Qasim, de tendências mais reformistas, e Abd-al Salam

Arif, pró-nacionalismo árabe.

Apesar de uma participação muito mais simbólica por parte da população28, as

intensas celebrações nas ruas indicaram os sentimentos negativos da população perante a

monarquia e envolvimento histórico desta com a Grã-Bretanha e, com isso, expressavam

um forte desejo de mudanças na política iraquiana. Vários esforços foram objetivados nesse

sentido, mas em geral fracassaram, levando à queda do governo em 63, para que então o

Iraque passasse por diversos golpes e um crescente domínio do setor militar sobre a

política.

i. Política Doméstica

O regime de Qasim, que se iniciara num clima de aparente grande coesão popular

em razão da derrubada da monarquia, foi marcado pela forte divisão interna entre pan-

arabistas e reformistas, que se espelhava na própria briga entre ele e Arif. Desde o início,

ficava claro que a união entre os Oficiais Livres só se dava em termos da derrota de um

inimigo comum, traduzido no que era visto como a simbiose entre a monarquia e o

imperialismo (representado pela Grã-Bretanha e seus interesses petrolíferos). O grupo tinha

diversas divisões internas sobre como conduzir o país, e então o uso da força, representada

pelo exército, era maneira de dirimir tensões. Mas o afastamento crescente do governo

perante a população, e o não afastamento do exército da política seriam fatores importantes

para a queda do regime em 63 e para o aumento da instabilidade no país nos cinco anos

seguintes.

Num contexto de frustração histórica com as relações com o Ocidente e as

implicações daquela no solo iraquiano, a rejeição às instituições liberais era um dos poucos

aspectos em que havia quase unanimidade por entre a população. Um dos únicos grupos

27 MARR, Modern History of Iraq, pp. 83. 28 TRIPP, Charles. A History of Iraq, pp. 150.

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que defendia a criação de instituições representativas, nos moldes da democracia européia,

era o Partido Democrático Nacional (PDN), descendente político do grupo reformista

Ahali, que conseguira chegar ao poder em 1936-37 e sofrera influência do trabalhismo

inglês. Dessa maneira, um dos primeiros atos do novo governo foi a abolição do

parlamentarismo. Uma constituição temporária seria formulada, em que afirmaria o caráter

republicano do novo regime, o Iraque como parte da união árabe e o Islã como religião de

Estado. Não haveria distinções entre os poderes legislativo e executivo, e tampouco se

buscava delimitar o papel do exército perante a política. Um ministério, altamente

heterogêneo, seria formado, buscando compreender boa parte dos segmentos populacionais

e das ideologias (excetuando-se os comunistas e o PDN).

As desavenças entre Qasim, primeiro-ministro, e Arif, seu imediato subordinado,

em pouco tempo se tornariam incontornáveis. Após discordâncias sobre a união do país à

federação formada por Egito e Síria, Qasim exonera Arif de seu cargo (apenas cinco dias

após formação do gabinete) e o envia para a embaixada da Alemanha Ocidental. Tal ato

significou um forte desequilíbrio político do país, que favoreceu principalmente os

comunistas, que emergiam como grupo mais organizado, e que se aproxima cada vez mais

de Qasim. Com o enfraquecimento relativo dos nacionalistas, o PCI busca ampliar sua

penetração nos meios de comunicação e organizações profissionais, ao mesmo tempo em

que pressiona Qasim pelo licenciamento dos partidos políticos.

Em 1959, o partido intensificaria seus atos, aumentando a polarização não somente

entre eles e os nacionalistas, mas mesmo entre os diversos segmentos populacionais do

país. Em dois desses eventos em que buscaria demonstrar sua força – a inauguração da

organização dos Partidários da Liberdade em Mosul, em 03.59, e demonstrações em Kirkuk

em 07.59 – a oposição gerada levaria a confrontos que se aproximariam de uma guerra

civil, com centenas de mortos.

Num cenário de grande polarização social, Qasim tentaria se distanciar dos

comunistas, condenando a realização das manifestações e suas repercussões. Os

nacionalistas, alienados dos processos políticos, passam a ver golpes como saída para

reversão do quadro. Além da primeira tentativa, ainda no início de 1959, por Rashid Ali

(que havia comandado o país em 1941) e que, supostamente, contara com Arif (que vai

preso), haveria outra, executada pelo partido Baath, em 10.59, e que teria apoio de vários

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dos Oficiais Livres, que almejavam participar do governo após revolução, mas que, desde

então, haviam sido colocados em posições subalternas. Ambos falham. Qasim decide,

então, licenciar os partidos políticos; em outra tentativa de se afastar dos comunistas,

legaliza outra organização, extremamente frágil, que havia se colocado como representante

dos comunistas, deixando o PCI numa situação bastante difícil. Além disso, organizações

chefiadas pelos comunistas, como a Liga dos Jovens Iraquianos e os Partidários da Paz

foram fechados. O governo concedeu licenças para alguns partidos, inclusive o Partido

Democrático Curdo e o Partido Islâmico, representante dos xiitas, mas excluiu todos os

nacionalistas. Menos de um ano após a legalização, contudo, a maioria dos grupos seria

cassada, e seus líderes perseguidos.

A partir de 1961, nenhum civil passa a compor o ministério. Qasim depende cada

vez mais do exército e da burocracia que instalara. O governo se torna mais autoritário, e

Qasim, isolado, tenta se utilizar de seu carisma perante a população e suas tentativas de

reformas econômicas para manter ordem e poder. Enquanto isso, partidos na

clandestinidade, principalmente o Baath, se articulam com o exército para a execução de

um golpe. A oposição, em geral, também está enfraquecida, necessitando de um agente

externo ou o braço das forças armadas para reverter situação. Dada a penetração histórica

do pan-arabismo nos quadros do exército, são os nacionalistas que conseguirão impor golpe

em 1963.

ii. Economia e Sociedade

O regime de Qasim foi o primeiro, na história moderna do país, a ter orientação

prioritária para o país (Iraq First). Dada a notória instabilidade política e social do período,

as reformas, embora com conteúdo bastante progressista, tiveram, em geral, pouca

aplicabilidade, e ocorriam de maneira bastante lenta. A falta de uma burocracia

especializada também contribuiu para a relativa ineficácia do governo no setor econômico.

Finalmente, boa parte das reformas acabaram por se concentrar mais na destruição das

estruturas do antigo regime do que a proposição de novos processos de desenvolvimento,

embora tivesse sido esse o comprometimento de Qasim e a centralização do poder tivesse

viabilizado a implantação de alguns projetos.

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A economia seguiu o método planificado de direcionamento de recursos, com quase

total participação do Estado nos investimentos, priorizando gastos em infra-estrutura, como

habitação, saúde e educação (notável em termos da expansão do acesso à população, às

expensas de uma qualidade inadequada), e revertendo tendência monárquica de

preponderância de gastos na agricultura para a expansão industrial. Mas pouco foi

realmente aplicado antes da queda do governo.

A política com relação ao petróleo é um dos aspectos centrais do regime de Qasim.

Com o objetivo de ampliar o controle do país sobre essa riqueza, negocia com Companhia

Iraquiana de Petróleo (CIP) para equalizar participação do governo na empresa e pressionar

pelo aumento do preço do petróleo29, o que ampliaria receitas do país. Sem sucesso, baixa a

Lei Pública 80 em 12.61, que retirava da companhia 99.5 por cento de sua área de

concessão, ao mesmo tempo em que promovia a criação da Companhia Nacional Iraquiana

de Petróleo (CNIP). A CIP não aceita a resolução, e reduz a produção do petróleo em

retaliação ao governo; além disso, as empresas estrangeiras não se disponibilizaram a

participar da concessão de petróleo nas áreas tomadas pelo governo, inviabilizando a

competição entre as empresas e gerando crise econômica. Ainda sim, devido à forte

associação da CIP com a Grã-Bretanha, a medida de Qasim teve grande repercussão

popular.

A reforma agrária também foi paradigmática em termos normativos, e mesmo em

termos práticos, já que desmantelou várias oligarquias rurais que dominavam parte do

país30. A medida buscava instaurar sociedades cooperativas, redistribuição em larga escala

de terras e atribuição de teto nos valores dos aluguéis. A lei teve impacto positivo para

maioria da população, mas a lentidão do processo levou ao descontentamento dos

camponeses. Alguns passaram a realizar invasões e, com a participação dos comunistas,

que buscavam insuflar movimento, os proprietários passaram a se recusar a colaborar com

o governo; vários formam grupos de pressão e boicotes conjuntos de produção, forçando

Qasim a realizar uma série de concessões. Mais uma vez, não havia um maquinário estatal

grande o suficiente para que expropriação das terras ocorresse em ritmo razoável; tendo em

vista que vários dos proprietários das terras eram líderes tribais e que o estado

simplesmente não conseguia fazer autoridade frente a eles, a estrutura agrária não mudou

29 TRIPP, pp. 167.30 SLUGLETT, pp. 218.

58

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substancialmente. A não adaptação de parte dos camponeses ao novo sistema, baseado em

pequenas propriedades privadas, fez declinar enormemente a produção, levando a um

empobrecimento do setor rural, forçando novas ondas de imigrações, similares às que

ocorriam desde a década de 40 no país.

Em termos sociais, destacam-se a reformulação da Lei de Status Pessoal, que

conferiu às mulheres novos direitos, como igualdade no recebimento da herança perante os

homens e o controle da poligamia, e a unificação dos códigos e dos tribunais de julgamento

de sunitas e xiitas e cidadãos do campo e da cidade. A secularização das leis e o

crescimento do comunismo fizeram emergir o descontentamento xiita, que fora apaziguado

com o aumento da representação política de seus membros e a repercussão positiva de

algumas das reformas econômicas no sul do país.

iii. Relação com os curdos

Crendo que um novo regime seria mais favorável às causas curdas do que a

monarquia, o Partido Democrático Curdo apóia abertamente a revolução, embora não

participe diretamente da mesma. De fato, Qasim atende várias das reivindicações históricas

dos curdos, como a liberdade de imprensa, e retorno de exilados (como Mustapha Barzani)

e, notadamente, a igualdade jurídica com os árabes, presente na constituição provisória de

1960. Além disso, o partido, com uma forte retórica antiimperialista, conseguiu autorização

para se licenciar, e então conseguiu erigir estrutura para se tornar, apesar das diversas

disputas regionais, o principal representante dos interesses curdos. De fato, um novo

entendimento entre governo central e Curdistão parecia estar em curso. Contudo, temendo

pela fragmentação do país, Qasim não cedia em nome do aumento da autonomia da região,

o que fora sempre a maior demanda curda, o que levaria a um crescimento das tensões ao

ponto de se iniciar uma guerra entre as tribos locais, os peshmerga, e as tropas do governo.

O PDC tinha duas bases de apoio: uma mais urbana, intelectualizada, formada por

Ibrahim Ahmad e seu filho, Jalal Talabani; outra, mais tribal, ligada a proprietários de terra

das zonas mais montanhosas, era chefiada por Mustapha Barzani e seu clã, que cuidava da

face militar do partido. Barzani era uma das figuras históricas mais proeminentes do

movimento curdo, tendo participado da fracassada tentativa de instauração de uma

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república curda no Irã em 1946 (o que o levou a exilar-se na União Soviética, que havia

patrocinado o experimento). A relação entre os movimentos era tensa e frágil, mas os

objetivos em comum em alcançar a autonomia curda os mantêm unidos até 1975.

Tendo contatos com a URSS, Barzani viaja para Moscou no início de 1961,

buscando acionar governo soviético contra governo de Qasim; mas esse intento é

infrutífero, e ainda resulta em hostilidades por parte do primeiro-ministro iraquiano, que

estimula tribos rivais curdas a enfrentar os peshmerga. Barzani vence inimigos locais, e

aumenta pressão contra o governo central, que responde enviando exército. Logo um

conflito em larga escala eclode, e as derrotas do exército perante as táticas de guerrilha dos

curdos, que se beneficiavam da topografia de difícil acesso da região, desmoralizam o

governo.

Gradualmente, há relativa recomposição de setores da oposição; Qasim tenta utilizar

nacionalistas como aliados contra os curdos, mas ao invés isso são estabelecidos contatos

entre alguns partidos, principalmente o Baath, e o PDC, em que se acorda pelo apoio a um

golpe em troca da autonomia dos curdos. Com o direcionamento de parte dos gastos

destinados para promover desenvolvimento do país para o enfrentamento dos curdos,

regime também perde parte de sua popularidade, e fica no auge de seu isolamento político

no início de 1963.

iv. Política Externa

Os Estados Unidos e Grã-Bretanha foram pegos de surpresa pela revolução. A

Guerra Fria entre EUA e URSS tinha marcantes repercussões no Oriente Médio, num

histórico recente de confrontação em razão da emergência de Nasser no Egito, a crise de

Suez e a formação da União das Repúblicas Árabes em 1958. Por um lado, os EUA temiam

o surgimento de regimes comunistas, enquanto que a Grã-Bretanha estava apreensiva pelo

aumento do nacionalismo árabe na região, o que afetaria diretamente seus interesses geo-

estratégicos. Aburish relata um encontro entre Qasim e enviados especiais ingleses, em que

o líder iraquiano teria assegurado o caráter endógeno da revolução e, com isso, a

viabilização de uma política externa independente. Com isso, a Inglaterra via no Iraque um

60

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freio ao nacionalismo egípcio, e então não havia necessidade de intervenções diretas. Os

EUA, sem contatos dentro do Iraque, também não procura reverter o quadro.

Qasim buscava-se distanciar do ocidente, e o primeiro ato se deu com o

cancelamento com o Pacto de Bagdá; subseqüentemente, aproxima-se da União Soviética, e

consegue importante apoio financeiro e técnico, no início de uma relação que se estenderia

por décadas. Esses eventos esfriam relações com a Turquia e o Irã, o que chega a causar

algumas escaramuças nas fronteiras entre esses países.

A adesão ou não à União das Repúblicas Árabes foi o tema que resultou na primeira

grande polarização política do regime e levaria à saída de Arif do posto de vice primeiro-

ministro, após demandar abertamente pela união do país com Egito e Síria. A orientação do

regime de Qasim era a de sempre refutar esquemas pan-arabistas, mantendo-se coerente

com seu projeto de priorizar políticas domésticas. Mas, com isso, Qasim pagaria pelo

aumento da alienação do Iraque perante alguns de seus vizinhos, empolgados com a

possibilidade de união árabe, e então o país vê-se cada vez mais distante de relações

bilaterais proveitosas.

A questão do Kuwait foi o último aspecto que contribuiu para um total isolamento

do regime. Com a independência do país, em 1961, o Kuwait se tornara um semi-

protetorado inglês, de maneira similar ao que ocorrera com o Iraque nos anos 20. Mas

embora a maioria dos países felicitava o surgimento do novo país, Qasim revivia demandas

históricas sobre aquele território, sob a afirmação de que o Kuwait fazia parte da província

de Basra durante o Império Otomano. Embora não tivesse condições de impor seu desejo

de anexação pela força (já que maioria do exército estava concentrado ao norte,

combatendo os curdos), e tampouco não tenha feito declarações ameaçadoras nesse

sentido31, o Kuwait solicita intervenção britânica, e a chegada de tropas inglesas no Oriente

Médio aumenta significativamente a rejeição de Qasim no mundo árabe, com deterioração

expressiva das relações com o Egito. A Liga Árabe admite o Kuwait como um novo

membro, e se compromete a substituir os britânicos em sua proteção, enquanto que o Iraque

retirava seu corpo diplomático daquela representação e cortava relações com diversos

países que reconheceram a independência dos kuwaitianos. Com isso, o único parceiro

substancial do país em 1962-63 era a URSS, embora a relação estivesse ainda em estágio

31 TRIPP, pp. 166.

61

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inicial de desenvolvimento e os soviéticos estivessem mais preocupados, àquela altura, em

melhorar suas relações com o Egito.

v. O Baath no Período 1958-63

Após ter apoiado a revolução por meio de mobilizações populares, o Baath recebe

um dos ministérios do novo governo para governar, e aproveitam a oportunidade para

expandir suas estruturas e bases de apoio. Contudo, com a saída de Arif do governo e o

aumento da preponderância dos comunistas, adversários históricos do partido, o baath

pouco a pouco se convence de que não haveriam maneiras de interferir nos processos de

tomada de decisão de Qasim e a cúpula do regime, de tal forma que um golpe surge como o

mecanismo de ação mais viável.

Em decorrência dos graves tumultos ocorridos em Mosul e Kirkuk, em que, além

dos conflitos étnicos e sócio-econômicos desastrosos houve embates sangrentos entre

milícias do Baath e do PCI, o partido é forçado a atuar na clandestinidade, e vários de seus

membros são presos. Ahmad Hasan al-Bakr, coronel do exército, aproxima-se do Baath,

especialmente após reaproximação com seu primo, Khairallah, e então desponta como uma

liderança do setor militar do partido.

O Baath organiza uma tentativa de assassinato contra Qasim, efetuada em 10.59 por

alguns de seus membros mais jovens, dentre eles Saddam Hussein. O atentado é ineficiente,

e então seus autores fogem para a Síria, mas logo o governo descobre quem foram os

organizadores. Saddam Hussein também acompanha o grupo, e então entra em contato pela

primeira vez com Michel Aflaq, que lhe concede o título de “membro ativo”. Vai, então,

estudar no Egito, e rapidamente se torna líder de uma sucursal do partido na Universidade

do Cairo. Aburish aponta que tanto Saddam como representantes do Baath na Síria

começam a estabelecer contatos com a CIA, para que então fosse articulado um golpe

definitivo contra o regime de Qasim; de acordo com essa fonte, o governo norte-americano

asseguraria o reconhecimento do novo regime logo que revolução se iniciasse, e que então

novas relações entre os dois países fossem firmadas32.

32 ABURISH, Said. Saddam Hussein, The Politics of Revenge, pp. 54-59.

62

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Enquanto isso, os remanescentes do partido no Iraque eram julgados em cortes

sumárias, e a maneira impassível com que confirmavam seus planos conspiratórios e seus

objetivos pan-arabistas acaba por projetar o Baath nacionalmente pela primeira vez. O

partido passa por dificuldades no período 1959-61, mas então começa a se reestruturar,

ampliando contatos com o exército, especialmente alguns dos oficiais livres, que estavam

bastante descontentes com a não participação no governo.

Embora o partido tivesse crescido substancialmente no período, à época do golpe

possuía ainda cerca de apenas 850 membros ativos e alguns milhares de simpatizantes33.

Apesar da repressão do regime de Qasim, o estabelecimento dos contatos entre as alas civil

e militar do partido (além de elementos nacionalistas não-Baathistas) era relativamente

fácil. Contudo, o planejamento do golpe não havia sido bem feito, e forças do governo

chegaram a prender alguns dos conspiradores dias antes do ato. Ainda sim, foi executado

em 02.63, e colocou o Baath no poder pela primeira vez. Quase simultaneamente, outro

golpe colocaria o Baath sírio no poder.

b) O Baath no Poder (02.63-11.63)

Dentre aqueles que apoiaram e atuaram diretamente no sangrento golpe

empreendido pelo partido estava Salam Arif, que fora então colocado como presidente, a

princípio para conferir legitimidade ao novo regime e para que fosse apenas uma figura no

poder, mas tendo no partido o controle real das funções executivas e legislativas. O partido,

contudo, estava desde o início bastante dividido, com diversas clivagens internas: os

jovens, da parte civil da organização e com tendências mais esquerdistas, em oposição aos

mais experientes, em geral do setor militar; no centro, um setor mais conciliador (mas

também mais conservador), formado por Bakr e Saddam, que retornara do Egito para

ocupar postos secundários no novo governo. Essas divisões implicavam em problemas

essenciais de governabilidade, que opunham intentos de se formarem coalizões com outros

partidos com o desejo de aplicação imediata dos programas do partido. Rapidamente esses

conflitos se escalonariam e tornariam inviável a permanência do Baath no poder.

33 SLUGLETT, pp. 83.

63

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A perseguição ostensiva aos comunistas e demais opositores se tornou uma das

marcas mais efetivas do breve governo, que deixou impressões bastante negativas para a

população civil. Houve muito poucas realizações domésticas no curto governo, e as

executadas tinham em geral um caráter conservador (como o cancelamento da Lei de Status

Pessoal), indicando preponderância no controle do poder por parte dos militares.

As relações com os curdos também foram tensas, já que, após o apoio inicial do

PDC em troca da promessa de autonomia ao Curdistão, o Baath ignorou maioria das

demandas de Barzani. Aproximação do Iraque com Egito e prenúncio de união árabe

fizeram aumentar as declarações hostis dos curdos, e então, novamente, o conflito entre o

exército e as milícias peshmerga se reiniciou. Da mesma forma que antes, curdos obtiveram

seguidas vitórias, e desmoralização do exército repercutiu no aumento da insatisfação de

diversos segmentos da corporação, aumentando caos de um governo já marcado pela

instabilidade.

O governo se preocupou primordialmente com a política externa. As relações com

os EUA foram melhoradas e, apesar de intensas disputas internas, deliberou-se pela

assinatura de um tratado de reconhecimento da independência do Kuwait, recebendo-se em

troca vultuosas somas de dinheiro. Negocia-se, desde o princípio, a união com Nasser, mas

claras discordâncias ideológicas esfriaram o projeto; após uma tentativa de golpe feita por

nasseristas em Bagdá, o Baath rompe com o Egito, e então as filiais iraquiana e síria

priorizam suas relações em busca de uma união. Entretanto, o nível de faccionalismo se

torna ainda maior e, após vitória de idéias pró-marxistas do grupo civil na conferência do

partido, o setor militar intervêm e consegue afastar esse setor do comando da política

nacional. Comando Nacional do Partido, majoritariamente Síria, intervém e expulsa setor

mais conservador, e então partido fica totalmente desestruturado. A população não vê com

bons olhos a intervenção Síria, e então Arif e seus apoiadores dão um golpe, removendo

Baath do poder e desmontando sua milícia, que se tornara extremamente impopular devido

ao seu caráter repressor.

c) O Governo de Salam Arif (1964-1966)

64

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O governo de Abd al-Salam Arif contou com a participação dos nasseristas, tanto

militares como civis, mas era dividido entre aqueles que almejavam mais unidade e

controle da economia pelo estado e os mais pragmáticos, que tinham a prioridade de

estabilizar o país. Arif optou, internamente, pela planificação econômica, mas sem

abandonar o incentivo aos investimentos privados, e por uma reforma agrária mais

eqüitativa, que avançava lentamente.

A ala mais radical pressionava por uma maior integração com o Egito, e então

reuniões entre Arif e Nasser foram feitas, e houve concordância no sentido de ajustar os

sistemas político e econômico de cada país antes de uma possível reunião. Seria criada uma

União Socialista Árabe entre os países, viabilizando um comando militar conjunto.

No plano doméstico, o aumento do nasserismo repercutiu, primeiramente, na

elaboração de uma constituição provisória, baseada no modelo egípcio, em que estabelecia

que o país seria democrático, socialista, árabe e islâmico. Contudo, dadas as peculiaridades

da formação da população iraquiana, grande ênfase seria dada para o Islã. O segundo

evento em que se tornou clara a preponderância nasserista foram as leis de nacionalização,

que transferiram para o governo o controle de companhias de seguro, bancos e empresas

estratégicas, como as de cigarro, construção civil e indústrias têxteis. Além disso, a

importação e distribuição de diversos produtos, como alimentos, remédios e carros passou a

ser monopólio governamental.

Todavia, os efeitos imediatos dessas mudanças estruturais não foram claramente

positivos, e então Arif buscou reduzir a influência dos nasseristas, principalmente o setor

militar, apontando civis para cargos estratégicos e empreendendo políticas clientelistas com

tribos para promover a estabilidade do país.

Para os curdos, o momento foi inicialmente favorável, já que Arif assinara um

cessar-fogo e reconhecera diversos direitos da etnia, embora sem conceder autonomia. A

aceitação desses termos por Barzani, contudo, irritou a ala civil do partido, dividindo

internamente o PDC. Embora o grupo político tivesse ficado enfraquecido no período 64-

65, o seu controle pelas forças militarizadas de Barzani rearticulou as demandas curdas, e

então as pressões pela autonomia se reiniciaram. Mais uma vez, um governo iraquiano

responde por meio da força, e novamente é derrotado em seguidas batalhas. Um novo

acordo, em 06.66, seria concluído. Este seria o entendimento mais progressista entre as

65

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partes na história moderna do país até então: o curdo seria reconhecido como uma língua

oficial, haveria permissão par a composição de uma administração descentralizada na

região, a nacionalidade curda seria reconhecida e os curdos teriam representação

proporcional nas instituições do Estado. Entretanto, a repentina morte de Arif num acidente

de helicóptero e os desenvolvimentos futuros fizeram com que esse acordo jamais fosse

implementado.

d) O Governo de Abd al-Rahman Arif (1966-1968)

Rahman Arif, irmão mais velho de Salam Arif, assume o governo após pressão dos

militares. O governo, extremamente frágil, foi incapaz de realizar articulações políticas

capazes de manter um mínimo de estabilidade, não cumpriu as determinações dos acordos

com os curdos, e a falta de um programa político coeso levou à ascensão do faccionalismo

dentre os militares, com seguidas tentativas de golpe, até o derradeiro, promovido pelo

Baath, em 07.68. Finalmente, os acontecimentos internacionais também foram um fator de

desestabilização, graças ao fracasso da coalizão árabe em enfrentar Israel na Guerra dos

Seis Dias.

Com a rejeição dos termos do acordo com os curdos, o conflito armado foi

reiniciado, e o exército continuou a sofrer pesadas derrotas no Curdistão, terreno de difícil

acesso para as tropas. Mas a questão principal do regime seria o petróleo, que afetaria o

país em termos domésticos e internacionais.

Inicialmente, em razão da preponderância dos interesses mais conservadores no

governo, foi criada uma parceria entre a CIP e a CNIP, estatal criada ainda no período

Qasim. Com isso, a empresa estrangeira teria acesso a todos os campos de petróleo que

haviam lhes sido retirados da concessão por meio da Lei Pública 80, inclusive o campo de

Rumaila (que, embora descoberto, ainda não havia sido explorado). O acordo seria positivo

no sentido de propiciar receitas imediatas, mas em razão da rejeição histórica da população

à CIP, a realização da parceria repercutiu muito mal. A desestabilização criada forçou a

troca de primeiros-ministros, até o ponto em que os nasseristas voltaram a ter o predomínio

sobre as tomadas de decisão. Com isso, foi baixada a Lei Pública 97, restabelecendo o

domínio da CNIP sobre a maioria do território iraquiano. Dada a falta de estrutura e de

66

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capital de investimento, a empresa seria forçada a explorar os campos com ajuda

estrangeira. Então o país assinaria um acordo de intenções com a URSS, aprofundando as

relações entre os países, e com a ERAP, estatal francesa. Seguindo determinações similares

às de outros momentos, a CIP não reconhece a nova legislação, e continua a boicotar o

governo, gerando a continuidade das crises econômicas.

Apesar do relativo ganho de popularidade com essas medidas, predominava no país

o sentimento hostil da população em relação à derrota dos árabes na Guerra dos Seis Dias,

em parte pela própria incapacidade iraquiana de enviar soldados para o front, já que estes

estavam excessivamente concentrados no combate aos curdos. Nesse contexto de forte

oposição aos desenvolvimentos nacionais, dada a continuidade do boicote da CIP, e

internacionais, o sentimento anti-ocidental no país atinge seu auge, e uma série de

manifestações ocorreriam em Bagdá em 68, várias delas lideradas pelo Baath. O partido

emergiria novamente como o mais articulado para o golpe, e em aliança com membros

descontentes do setor militar do núcleo duro do grupo de Arif (como Abd al-Nayif, diretor

da inteligência militar, e Ibrahim al-Daud, chefe da guarda republicana), efetuariam o bem

sucedido golpe que removeria Arif do poder.

e) O Baath no Período 1964-68

Após a queda do instável governo de nove meses, o Baath passa a operar na

clandestinidade, mas passa a ser perseguido pelo novo governo. Internamente, também

ocorrem expurgos, que acabam por eliminar boa parte do setor militar e os xiitas; o grupo

de Bakr e Saddam sai fortalecido, e então Michel Aflaq o recomenda para o Comando

Regional do partido, onde então começa a rearticular o grupo. Consegue expandir filiais

pelo país, e por meio de Bakr o Baath volta a se aproximar dos militares. Em 1964, Saddam

articula golpe contra Arif, mas o plano é mal sucedido, e então acaba sendo preso.

Na Síria, a ala militar do partido assume o controle, e dá um golpe interno, que

retira do comando do partido Aflaq e Bitar. Em razão da rejeição do grupo iraquiano a um

domínio militar do partido, as relações entre as filiais iraquiana e Síria estremecem. O

segmento sírio amplia o controle sobre o Comando Nacional, e então expulsa Saddam e

Bakr do Comando Regional Iraquiano. Com a ajuda de Aflaq, Baath de Saddam e Bakr cria

67

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novo Comando Nacional, e assim rompem-se relações, de maneira quase definitiva, com o

Baath sírio. Desde então, passaram a competir pela legitimidade do Baath e do pan-

arabismo no Oriente Médio.

A partir de então, Saddam e Bakr reformulam estruturas do partido, formulando um

aparato de segurança e a Milícia Popular, organizações criadas para proteger o partido no

poder em caso de tentativa de golpe das forças armadas, e expandir sua penetração nos

círculos sociais. Saddam consegue fugir da prisão e então tem oportunidade de expandir

movimentos conspiratórios; partido se aproxima de oficiais do exército insatisfeitos com

governo de Rahman Arif, que organizam secretamente o Movimento Revolucionário

Árabe. Estes não tinham nem credibilidade popular, nem estrutura organizacional para

empreenderem um golpe, por isso também se aproximaram do Baath que, apesar da

repressão governamental, se tornara novamente grupo razoavelmente organizado.

A ala civil do partido, por sua vez, penetrava nas organizações de massa e liderava

greves sindicais e estudantis, além de manifestações contra o regime de Rahman Arif,

contribuindo para a desestabilização do regime.

Daud e Nayif, líderes da oposição secreta do exército, impõem condição de

ocuparem cargos mais relevantes no novo governo, às vésperas do golpe. O Baath, sem

muitas alternativas, é forçado a aceitar, e então tomada de poder é realizada em 17 de Julho

de 1968, sem resistência e, assim, sem violência. A população reage com pouco entusiasmo

com as declarações dos novos governantes, já que o golpe parecia ser somente mais um na

já consolidada história de conspirações e contra-conspirações dentro do estado iraquiano34.

Diferentemente de 1958, não havia grande expectativa popular quanto a significativas

mudanças de orientação política: o Baath tinha deixado uma péssima lembrança com o

governo de 1963, e a participação preponderante do exército na execução do golpe não foi

nada diferente dos diversos movimentos que ocorreram durante a década de 58-68.

34 BATATU, pp. 1075.

68

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CAPÍTULO 3 – O Período 1968-1979

Com o súbito golpe de estado em aliança com o exército, o Baath novamente se via

com a oportunidade de ocupar o poder e materializar seu projeto de modernização do país

até então cunhado em discursos que amalgamavam um forte senso pan-arabista com a

necessidade de uma transformação socialista do país.

O partido, mais maduro e pragmático do que aquele que governou o Iraque em 1963

buscaria, internamente, consolidar sua hegemonia interna, perseguindo todos aqueles que,

de acordo com sua perspectiva, eram contrários à “Revolução”. Paralelamente, o regime

viabilizaria uma das transformações sócio-econômicas mais significativas ocorridas no

então denominado “terceiro mundo”, graças ao controle e exploração de seus recursos

naturais. Por meio de um sistema econômico rentista, que pouco taxava a sociedade, o país

atingiu altas taxas de crescimento do PIB nessa década, o que viabilizou tanto uma

economia de bem-estar social como ambiciosos projetos de industrialização e, em

atendimento ao intento histórico de hegemonia regional, a militarização e o surgimento de

infra-estruturas capazes de gerar a criação de armamentos, inclusive os de tipo não

convencional.

Na política externa, a busca de proeminência implicou, num primeiro momento, em

forte radicalização da retórica pan-arabista, que só isolou o país. Com a nacionalização do

petróleo, porém, o país adotou postura mais moderada, aproximando-se das monarquias

mais conservadoras do Golfo e mesmo de diversos países do ocidente, ao mesmo tempo em

que buscava se desvencilhar da dependência soviética.

No fim da década, Saddam Hussein emergiria como a figura mais preponderante do

partido, virtualmente controlando a maioria das estruturas do governo. Apesar da

demolição de boa parte da oposição, o regime tornava-se cada vez mais autoritário,

penetrando em todos os setores da vida iraquiana. Ideologicamente, emergia o início do

culto de personalidade a Saddam e grandes esforços no sentido de se constituir uma

identidade puramente iraquiana, remontando-se a tradições mesopotâmicas, que buscavam

atenuar as diferenças étnicas, religiosas, sociais e sectárias dos diversos grupos do país.

69

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Em 1979, por meio de um golpe não-tradicional na história iraquiana (conforme

veremos a seguir), Saddam Hussein se torna o presidente do país. O nosso objetivo, a partir

de agora, será o de investigar os principais eventos e temas do período e, quando possível,

realizar uma comparação bibliográfica entre os autores, a fim de se estabelecer as diferentes

interpretações sobre essa década.

1. Aspectos Políticos

a) A Consolidação do Poder

As divergências entre o Baath e Daud e Nayif (os líderes da facção do exército que

realizou o golpe) repercutiu, ainda antes do golpe, em dificuldades sobre a divisão dos

cargos e, após 17 de Julho, na total inoperância do gabinete, totalmente dividido em termos

de propostas de governo. Temendo que o partido, como em 1963, fosse removido pelos

militares, Saddam e al-Bakr articulam um novo golpe, que se sucede em 30 de Julho,

removendo os oficiais não-baathistas do novo regime. Bakr se proclama presidente e

Saddam Hussein é escolhido como vice. É criado o Conselho do Comando Revolucionário

(CCR), autoridade designada com atribuições executivas e legislativas, e ocupada por civis

e militares do partido.

i. Os Julgamentos de 1969

Os julgamentos daqueles considerados traidores da revolução expressam o primeiro

grande esforço no sentido de mostrar à população a força do novo governo. Seguindo uma

vigorosa retórica antiimperialista e anti-sionista, as forças de segurança passaram a

perseguir judeus, comunistas, nasseristas, baathistas pró-Síria, ex-ministros, ex-oficiais,

empresários, iraquianos representantes de firmas ocidentais e civis de maneira aleatória1,

acusando-os de espionagem para os Estados Unidos, Israel e Irã e de traição à revolução. O

governo conclamava a população por meio de todos os meios de comunicação disponíveis

1 SLUGLETT, pp. 118.

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para que esta fosse assistir aos julgamentos, que em geral resultavam na morte dos

“conspiradores”2. Para Karsh, o reino de terror imposto serviu para ganhar legitimidade

perante a população e para educá-la à maneira baathista de governo, baseado no medo e no

respeito3. Makiya vê os julgamentos de forma similar, e os entende como uma espécie de

ritual imposto pelo governo para conectá-lo com a massa, além de servir como precursor

para os assassinatos políticos mais relevantes que viriam mais tarde e, finalmente, para que

fosse criado senso popular que ligasse instantaneamente aquilo que fosse de fora do Iraque

com a idéia de conspiração4. Marr vê esses julgamentos, que duraram cerca de um ano,

como o mecanismo mais importante para a consolidação do regime, graças à enorme

mobilização conseguida pelo governo durante os tribunais ocorridos no centro de Bagdá

(cerca de 500 mil iraquianos)5. Aburish ressalta que a reputação do regime foi seriamente

abalada no âmbito internacional, mas as potências ocidentais pouco teriam feito para

contestar a rudeza do novo regime6.

ii. A Neutralização dos Baathistas Civis e Militares

Bakr e Saddam buscariam, a seguir, reduzir a influência do exército no comando do

governo, expresso no domínio do Conselho do Comando Revolucionário e nos ministérios;

Hardan al-Tikriti e e Salih Ammash, oficiais baathistas que tinham maiores aspirações de

poder, são afastados, e o CCR é ampliado, a fim de abrigar mais civis. Contudo, uma

tentativa de golpe de Nayif, supostamente com a ajuda do Irã7. Karsh, porém, insere

alegação do golpe em si como falso. A descoberta dos conspiradores e seu posterior

assassinato, como o de dezenas de outros oficiais no período, fazia parte de um contexto

maior de invenção de golpes e espiões, como parte do projeto do partido em reprimir

mesmo a idéia de subversão enquanto penetrava cada vez mais, por meio de suas

estruturas8.

2 ABURISH, pp. 823 KARSH, pp. 39.4 MAKIYA, pp. 55-58.5 MARR, pp. 141.6 ABURISH, pp. 89.7 Idem, pp. 91.8 KARSH, pp. 40-45.

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A dupla Saddam-Bakr começava a ampliar preponderância sobre as demais facções

do partido. Antecipando-se às conseqüências do descontentamento causado àqueles grupos,

destituem os civis mais antigos de cargos relevantes, como cadeiras no Comando Regional

do Baath, colocando em seu lugar aliados mais próximos. Tanto para Marr9 como para

Sluglett10, as perseguições e expurgos, mesmo no caso de Wafiq Sammarra’i (principal

teórico esquerdista do partido, entusiasta de reformas sociais radicais), se davam em termos

pessoais, e não ideológicos, dado o caráter altamente personalizado da política iraquiana.

iii. A Tentativa de Golpe de Nadhim Kazzar em 06.73

Kazzar, um dos vários xiitas que se juntou ao Baath nos anos 50 e um dos poucos

que remanesceu após o fracasso do governo de 1963, havia se tornado um dos homens de

confiança mais relevantes para Saddam, e por isso era o chefe do setor de segurança, um

dos mais estratégicos para o regime. Contudo, apesar da proximidade com Saddam,

empreendeu uma tentativa de golpe que se revelou fracassada. O plano, de derrubar o avião

de Bakr quando este retornasse de uma viagem internacional, acaba falhando com o atraso

do vôo e a suspeita de que os líderes do governo haviam descoberto a subversão. Kazzar

decide seqüestrar os ministros do interior e da defesa (Sadun Ghaidan e Hamid Shehab)

para negociar anistia com Bakr, mas forças de segurança do governo o interceptam e o

matam. Para Aburish e Batatu, essa foi a tentativa mais séria de derrubar o governo em todo

o período11. A maioria dos autores considera que a tentativa de golpe teria sido motivada

pelo crescente ressentimento de Nadhim com o aumento da dominação sunita e, mais

especificamente, dos clãs de Tikrit, sobre o regime, além do receio de ser eliminado pela

liderança do partido quando ficasse mais claro conflito entre seus interesses e os de Bakr-

Saddam.

Inicialmente, as repercussões para Saddam foram altamente negativas, já que se

chegou a suspeitar de sua participação no golpe12. Posteriormente, todavia, o evento foi

importante para sedimentar de maneira ainda mais clara o domínio do grupo liderado por

ele e por Bakr, graças ao uso do golpe para o aumento da perseguição aos elementos civis

9 MARR, pp. 143.10 SLUGLETT, pp. 134.11 ABURISH, pp. 103; BATATU, pp. 1094.12 MAKIYA, pp. 13.

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do partido, para o aprofundamento da baathização do exército13, ou seja, a penetração de

membros do partido na estrutura das forças armadas, inclusive na alta hierarquia, de modo a

torná-lo um mero apêndice da organização. Ao final de 1973, desta forma, Saddam e Bakr

haviam conseguido controlar praticamente todo o partido, dirimindo as disputas e

possibilitando um foco maior nas relações com a população e os grupos da oposição.

iv. O Sistema de Segurança do governo Baath

Um dos mecanismos mais relevantes para a consolidação e a manutenção do poder

do Baath neste período e depois foi aquele montado a partir de estruturas de segurança em

geral oriundas do próprio partido que, paulatinamente, foram incorporadas ao estado. Isso

fez parte do que se denominou a “baathização do regime”, sedimentada na penetração de

quadros do partido e do Estado em praticamente todas as estruturas da sociedade, até o

ponto em que a maioria dos cidadãos acaba, de alguma maneira, ficando comprometida e

dependente do regime, resultando, como afirma Makiya, na incorporação da sociedade civil

pelo Estado.14

O aparato de segurança, de início utilizado contra aqueles que eram denominados os

“inimigos da revolução”, foi sendo expandido e organizado por Saddam Hussein, conforme

o Baath consolidava seu poder interno. A partir de 1973, as agências seriam reordenadas. O

Diretório de Segurança Pública era a organização oficial do governo para as investigações

criminais, sendo ligada ao Ministério do Interior15. O Serviço de Inteligência Geral era

designada para vigiar as atividades de outras redes de segurança e de instituições como

departamentos governamentais e organizações de massa, além dos iraquianos que viviam

fora do país. Dentro dessa estrutura, fica compreendida a Milícia Popular, pertencente ao

partido, e responsável principalmente por realizar contrapeso ao exército16 e também para

ser presença quase onipresente nas ruas, além de criar imagem de apoio popular ao

regime17, dada seu constante crescimento na década de 70. A Inteligência Militar também

atuava na espionagem estrangeira, e buscava fiscalizar as atividades do exército, o ator

13 KARSH, pp. 54.14 MAKIYA, pp. 44.15 MARR, pp. 150.16 MAKIYA, pp. 30-32.17 TRIPP, pp. 196.

73

Page 74: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

político mais relevante da década anterior. O Escritório Militar, originalmente uma

organização intra-partidária, se tornaria mais relevante que a própria Inteligência Militar no

final da década18. Outras instituições, como a Guarda Republicana (responsável pela

proteção exclusiva do Presidente), os Guardas de Fronteira, a Força Policial Móvel de

Ataque e o Departamento Geral de Nacionalidade também contribuiriam no esforço de

fiscalização da atuação de virtualmente todos os cidadãos iraquianos. Cada uma delas se

reportava individualmente para o CCR, de tal forma que eventuais traições de um ou outro

grupo ficariam mais fáceis de serem descobertas.

Embora os dados disponíveis sejam ainda contraditórios, os dados apresentados por

Makiya indicam que cerca de vinte por cento da população economicamente ativa do

Iraque (670 mil de 3.4 milhões) estava institucionalmente comprometida, em 198019, com

um desses setores mencionados acima. Dessa forma, a participação da população nessas

estruturas funcionou como uma das maneiras para que o regime ampliasse sua penetração

sobre distintas esferas da sociedade e, com isso, fortalecesse seu poder internamente.

v. O Controle do Exército

O exército, considerado por diferentes autores como o ator político mais relevante

da década 58-68, gradualmente teve seu papel diminuído no governo Baath. Em paralelo

com a neutralização da cúpula militar do partido, realizava-se a “baathização” do exército,

por meio da infiltração de civis na estrutura de comando e em escalões intermediários. O

Baath cria uma instrução que quebra a hierarquia da corporação; nela, estabelece que os

soldados não devem carregar consigo nenhuma ordem sem antes consultar o partido20. Com

isso, o exército teve sua coesão enfraquecida, e passou a ser mais um apêndice da estrutura

de segurança do partido; contudo, se as forças armadas perderam sua relevância como

atores políticos, ganharam preponderância com os grandes gastos armamentistas do

governo, conforme será visto mais adiante.

vi. A Expansão do Partido e da Burocracia Estatal

18 MARR, pp. 150.19 MAKIYA, pp. 3820 BATATU, pp. 1094-1095.

74

Page 75: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

Outro mecanismo de fortalecimento do poder baathista foi o grande aumento no

número de seus membros e apoiadores quando em comparação com o momento da tomada

de poder, além do crescimento da burocracia civil do governo. Apesar dos dados

controversos, diversos autores21 apontam para o número de dez mil membros ativos e 500

mil apoiadores (de acordo com o ranking de filiação descrito no capítulo anterior). Esses

membros e apoiadores do Baath cada vez mais criavam e controlavam organizações de

massa, especialmente ligadas aos jovens (a Tali’a, responsável pela doutrinação de crianças

do ensino fundamental; a Futuwwa, para os jovens adolescentes, e a Shabab, que atingia os

jovens universitários)22, e a imprensa e os meios de comunicação em geral, de onde

emanavam discursos defendendo a ideologia do partido.

A expansão da burocracia estatal não era marcada somente por integrantes das

forças de seguranças, mas também por indivíduos que trabalhavam em empresas

gerenciadas pelo estado, além dos baixos escalões ministeriais e instituições financeiras.

Somando-se o exército, a burocracia civil e o setor de segurança, cerca de 1.5 milhão de

iraquianos estavam empregados no Estado23, o que compreendia quase cinqüenta por cento

da população economicamente ativa do país no final da década de 70. Com isso, a

dependência econômica de boa parte da população perante o governo ficava estabelecida e,

desta forma, também se assentava a continuidade da dominação política do regime no

período.

vii. A Rede de Clãs, o Clientelismo e a Patronagem

Representando tanto em parte a sedimentação do poder do regime como, mais

especificamente, o aumento da influência de Saddam Hussein no regime, o instrumento da

rede de clãs passou a ser empregado na cúpula do partido, mais especificamente no

Comando Regional do Baath, além do CCR e do exército. Gradualmente, Saddam Hussein

e Hasan al-Bakr substituíam figuras mais distantes de seus centros de poder por outras; a

preferência inicial era por sunitas, mas com o passar do tempo o grau de especificidade de

21 MAKIYA, pp. 39; MARR, pp. 149; SLUGLETT, pp. 136.22 MARR, pp. 150.23 MAKIYA, pp. 33; 38; 41.

75

Page 76: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

tornava maior, levando à escolha de Tikritis, membros da tribo Albu Nasser e do clã Majid

(exatamente as origens de ambos), numa busca crescente por figuras confiáveis e leais não

à ideologia do partido, mas pessoalmente a Bakr e, primordialmente, a Saddam.

O clientelismo que, como visto no estudo do período 1920-58, fundamentou boa

parte das relações entre o governo e as lideranças locais (notadamente os proprietários de

terras, chefes das tribos) e que tentou ser dirimido no período 58-68, retornou no governo

Baath, mas com peculiaridades. A patronagem seletiva foi, como aponta Tripp24, um

princípio relacional utilizado com toda a população, mas especialmente com grupos

oposicionistas mais relevantes, como xiitas e curdos. Por meio de uma política de

cooptação e repressão (conforme será visto mais adiante), o governo financiava e

patrocinava grupos, atrelando, em tese, sua sobrevivência ao próprio estado que pretendiam

combater. Por vezes, porém, as oposições realizavam demandas que superavam a

disposição do governo em cumpri-las, e então a tensão desembocava em duros conflitos.

b) A Relação com as Oposições

Os comunistas, os curdos e os xiitas foram, para os autores estudados, os principais

desafios internos para o regime. Marr acrescenta a oposição liberal em seu estudo, embora

enfatize sua organização pouco coesa e a facilidade com que o regime conseguira controlá-

la. Os liberais, críticos do desenvolvimento econômico do país e do seu modelo socialista,

estavam concentrados principalmente nas universidades e nas classes profissionais25. Por

meio do controle dos cursos ministrados nas universidades, da constante troca de

professores e da participação ativa de seus membros em sindicatos, o Baath conseguiu

neutralizar quaisquer atividades políticas desse segmento, concentrando sua atenção, então,

nos comunistas, nos curdos e nos xiitas.

i. Os Comunistas

No momento do golpe de 68, os comunistas eram um dos grupos mais fortes do

país, embora internamente estivessem divididos. Inicialmente, Bakr oferece alguns cargos

24 TRIPP, pp. 20525 MARR, pp. 170-171.

76

Page 77: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

no ministério para o Partido Comunista Iraquiano, mas este rejeita, sob a consideração de

que a mera participação no regime baathista não resultaria no emprego das teses do

partido26. O Comando Central, uma das facções do grupo, parte para a guerrilha no sul do

país, e é duramente combatido pelas forças de segurança do regime; mesmo assim, realizam

atos terroristas contra representantes do governo. Apesar das contínuas perseguições, Bakr

faz esforço contínuo para que comunistas integrem o que denomina por Frente Patriótica

Nacional, uma coalizão de grupos progressistas, liderados pelo Baath, capaz de unir

politicamente o país contra “inimigos da revolução”. Os comunistas aderem em 1973, e

então têm sua atuação legalizada e permissão para desenvolverem suas atividades, mas em

menos de dois anos voltam a ser hostilizados e, no final da década, o partido praticamente

deixa de existir, já que a maioria de seus líderes havia se exilado.

Tripp acredita que a aproximação entre o Baath e os comunistas em razão da

necessidade do regime em obter mais apoio por parte da União Soviética, que já havia se

tornado o principal parceiro do país naquele momento; Bakr e Saddam buscam, também,

descobrir o tamanho da força do partido legalizando-o, a fim de que este pudesse

desenvolver suas atividades e, assim, tornar-se mais vulnerável às investigações das forças

de segurança do Estado, de tal forma que o PCI pudesse, então, ser eliminado27. Para

Aburish, a assinatura da Carta de Ação Nacional, que viabilizou a formação da parceria

entre os partidos, foi importante para que o Iraque adquirisse uma imagem democrática, o

que fortaleceria suas relações com grupos oposicionistas, e teve implicações positivas para

o governo, como a pressão soviética para que os curdos reduzissem a oposição ao regime28.

Para Sluglett, a pressão baathista para a conclusão de um acordo com os comunistas se

insere na questão curda, já que a crise com Barzani requeria o fortalecimento da liderança

do país, e os comunistas, com relações históricas com os curdos, seriam o parceiro ideal

para aquele fim29. Karsh entende que aproximação com PCI é puramente pragmática, já que

a penetração dos comunistas nos setores sociais mais pobres era vista como perigosa; não

havia, para ele, competição doutrinária entre os partidos30.

26 BATATU, pp. 1098.27 TRIPP, pp. 196.28 ABURISH, pp. 102.29 SLUGLETT, pp. 150.30 KARSH, pp. 45-47.

77

Page 78: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

Hanna Batatu considera que o fim das opressões contra os próprios comunistas e

demais opositores foi a motivação para a assinatura do acordo, além do próprio contexto da

nacionalização do petróleo, vista pelo partido como grande salto progressista31. Makiya vê a

melhoria das relações entre Iraque e URSS, especialmente o Tratado de Amizade de 72

como incentivo para a formação da Frente32, assim como Aburish33. O afastamento entre os

partidos era dado, segundo Sluglett, tanto em razão do descontentamento de parte

considerável da classe média, que rechaçava o aumento da retórica socialista do regime

como pela repercussão excessivamente negativa das monarquias conservadoras do Golfo e

o Ocidente, em meio a um contexto de guinada da política externa isolacionista do país a

partir de meados da década34. Para Aburish, o afastamento e a conseqüente perseguição

implacável dos comunistas se deu tanto em razão das diferenças ideológicas entre os

partidos como na não mais necessidade por parte do governo em ter o apoio do grupo

esquerdista, já que a oposição curda havia sido controlada em 197535. Phebe Marr destaca

que a deterioração das relações entre o Iraque e os soviéticos e o subseqüente receio dos

baathistas em sofrerem um golpe levaram aos expurgos comunistas36.

ii. Os Curdos

Assim como perante os comunistas, a relação com os curdos, no âmbito

institucional era pautada pela busca de cooperação. Com o objetivo de alcançarem a

autonomia, os curdos apoiaram o golpe baathista; o novo regime, então, promete viabilizar

os acordos de 1966. Em razão de um forte faccionalismo curdo entre os grupos de Barzani

e Talabani, as negociações não avançam, e logo o clima de tensão se transforma em

conflito armado. Saddam Hussein desloca o apoio do governo de Talabani para Barzani, e

posteriormente consegue aprovar o Manifesto de Março de 1970, documento que estabelece

os mais amplos direitos curdos reconhecidos até então. Dentre os 15 pontos acordados,

havia o reconhecimento da autonomia curda nas províncias em que a etnia fosse maioria, a

garantia de representação proporcional dos curdos num futuro corpo legislativo, a eleição 31 BATATU, pp. 1106-1108.32 MAKIYA, pp. 231.33 ABURISH, pp. 102.34 SLUGLETT, pp. 150-151.35 ABURISH, pp. 123.36 MARR, pp. 171.

78

Page 79: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

de um vice-presidente curdo, o reconhecimento da língua curda como oficial e a garantia do

direcionamento de lucros provenientes do petróleo no desenvolvimento regional; as

medidas teriam um prazo de quatro anos para serem cumpridas.37 Contudo, o Baath buscou

arabizar regiões curdas por meio do deslocamento populacional de xiitas do sul, e não

cumpriu o acordo. Hostilidades mútuas levaram à eclosão de uma guerra em larga escala a

partir de 1974, com muitas perdas para o exército iraquiano, principalmente devido à ajuda

iraniana aos revoltosos38. Em 06.75, Iraque e Irã assinam o Acordo de Algiers, que termina

com a ajuda iraniana aos curdos em troca de uma demarcação favorável ao Shah no Shatt

al-Arab, fronteira entre os países no sul. Com isso, o exército rapidamente acaba com a

resistência e, assim, com a guerra. No final da década, o regime implantaria sua versão da

autonomia concedida, e ainda realizaria uma grande alteração na composição social do

Curdistão, graças à deportação de centenas de milhares para outras regiões do país,

notadamente o sul, na busca de desmantelar definitivamente a oposição curda.39

Em geral, os autores convergem sobre as razões para que o governo tenha optado,

primeiramente, por uma resolução pacífica com os curdos (por meio do Manifesto). As

teses de Marr, sobre o receio de Saddam, que negociara o acordo, em fazer aumentar o

poder do exército que combatia no Curdistão (como acontecera em 1963, no primeiro

governo do Baath), além de seu desejo em acabar com o conflito devido ao receio de perder

aquela região para o Irã, já que este país continuamente apoiava os curdos40, são

amplamente aceitas. Sluglett tem a mesma concepção, embasando seu argumento no

entendimento de que o regime ainda era muito instável naquele momento, e que então o

acordo com os curdos seria mal menor41. Karsh enfatiza os cálculos pessoais de Saddam

dentro daquela conjuntura; uma vitória esmagadora dos militares diminuiria seu papel

dentro do governo; um impasse no conflito seria importante para descreditar Hardan al-

Tikriti, ministro da defesa à época. Contudo, isso poria em risco todo o regime, e então tais

considerações fariam com que optasse pelo acordo42. Aburish acredita que a falta de apoio

da União Soviética em patrocinar uma ofensiva definitiva do exército iraquiano contra os

curdos (em parte pelos contatos de Barzani com lideranças moscovitas) foi um fator 37 Idem, pp. 154-155.38 SLUGLETT, pp. 169-170.39 MARR, pp. 158.40 Idem, pp. 154.41 SLUGLETT, pp. 130-131.42 KARSH, pp. 71.

79

Page 80: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

considerado por Saddam para buscar a paz43. Batatu vê os curdos como principal ameaça à

estabilidade do regime, o que teria levado a um acordo que, em sua visão, teria sido

amplamente desfavorável ao Baath44.

Sobre as razões para a assinatura do Acordo de Algiers, Marr45 aponta para três

fatores: 1. nem Irã, nem Iraque tinham o objetivo de aumentar conflito a ponto de causar

guerra aberta entre os países; 2. havia pressões por parte dos países árabes para uma maior

dedicação do Iraque ao combate a Israel, e a guerra com os curdos simplesmente impedia

esse auxílio; 3. o Shah iraniano temia que a rebelião aumentasse de tamanho e reverberasse

do lado iraniano, o que levaria a uma grande guerra civil interna. Karsh lista como

motivações preponderantes o receio de insurgência xiita, já que a base do exército era

formada por esse segmento e já havia morrido cerca de 60 mil soldados; havia ainda falta

de armamentos para o combate, o que simplesmente inviabilizava a continuação da guerra;

subseqüentemente, a guerra causava enormes gastos econômicos, que geravam receio de

crise46.

iii. Os Xiitas

A atividade política xiita ganhou vigor a partir da década de 50, principalmente

como sinal de rechaço ao grande aumento da penetração a ideologia comunista sobre os

xiitas47, especialmente aqueles que migraram para Bagdá nos anos 40-50 e haviam se

tornado o estrato social mais pobre do país. A organização mais forte que emergira foi a

Da’wa (“O Chamado Islâmico”), liderada por Muhammad Baqir al-Sadr, jovem clérigo que

se tornaria referência no mundo muçulmano por seus notáveis escritos filosóficos e

econômicos, em que critica o pensamento marxista sob a ótica islâmica48. Diferentemente

dos xiitas iranianos, porém, os iraquianos seguidores desse segmento tinham uma linha

mais quietista e apolítica49, e então os clérigos locais tendiam a criticar o ativismo político

43 ABURISH, pp. 86.44 BATATU, pp. 1094.45 MARR, pp. 156.46 KARSH, pp. 81.47 SOETERIK, Robert. The Islamic Movement of Iraq (1958-1980), pp. 6-8.48 SLUGLETT, pp. 196-197.49 DEMANT, pp. 243.

80

Page 81: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

de Sadr. Contudo, o Da’wa ganha proeminência, e se torna a liderança da contestação

política ao secularismo do Baath nos anos 70.

As relações com o governo baathista são, desde o início, bastante tensas, já que s

xiitas foram um dos principais grupos perseguidos pelo regime durante os primeiros anos

do novo governo. Dentre as medidas utilizadas pelo governo para ampliar o controle sobre

a comunidade, as mais notáveis foram a intimidação dos peregrinos, a não mais isenção de

estudantes e funcionários religiosos da conscripção militar, o confisco da propriedade de

instituições religiosas, a deportação de iraquianos com suposta origem persa, além da

seguida prisão das famílias xiitas mais influentes, como a Hakim e a Yasin.50 Ainda sim, os

conflitos entre os xiitas e as forças governamentais ainda são de baixa magnitude.

A partir de 1974, porém, os xiitas passam a se tornar maior ameaça para estabilidade

do regime; o governo gradativamente restringe direitos das comunidades, inclusive as

habituais celebrações religiosas, o que leva, em 1977, a grandes conflitos entre população e

a polícia. Nesse ínterim, o regime baixa decretos que retiram a posse das terras dos ulemás,

aumentando sua dependência perante o Estado. Com a revolução iraniana em 02.79, a

insurgência xiita alcançaria níveis bastante superiores aos anteriores, abalando as estruturas

do regime, até então seguro pelo esmagamento das demais oposições (curdos e comunistas)

e pelo controle dos xiitas, especialmente por meio de grandes melhorias econômicas na

região, graças às enormes receitas do petróleo, e por algumas concessões políticas, como a

eleição de xiitas para o CCR em 1977.

Motivado pelo sucesso da revolução e pela ascensão de Ayatollah Khomeini no Irã,

Sadr, responsável pela composição da constituição do regime teocrático iraniano, realiza

campanhas massivas de exortação popular contra o regime, entendendo que haviam

condições objetivas de causar golpe similar ao ocorrido em Teerã, mas em solo iraquiano.

Até o momento da subida de Saddam Hussein ao poder, em 07.79, centenas de xiitas são

presos e mortos; Sadr e outros clérigos são seguidamente detidos e, devido ao clamor

popular, acabam liberados. Como será visto no próximo capítulo, somente em 1980 as

tensões seriam debeladas, mas com a contrapartida do conflito com o Irã.

Contudo, apesar da tese preponderante sobre a relação entre o governo e os xiitas

indicar, por parte do primeiro, um crescente sectarismo perante o segundo51, Peter e

50 SOETERIK, pp. 15-18.51 DEMANT, pp. 243.

81

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Marion-Farouk Sluglett52 contestam essa afirmação. Para eles, não haveria nenhum

indicativo cabal de que o governo “sunita” dos anos 70 teria tentado privilegiar a

perspectiva sunita do Islã. Dessa maneira, a divisão fundamental no Iraque não se daria

entre xiitas e sunitas, mas sim entre pobres e ricos. Os autores atribuem a pobreza da

maioria dos xiitas aos mais ricos do próprio segmento, os líderes tribais que teriam

expropriado os demais a partir do momento em que a propriedade privada na região havia

sido instituída, ainda no final do século XIX, e também pelo distanciamento histórico entre

os xiitas e as instituições de Estado, em boa parte, de acordo com essa argumentação, com a

aversão religiosa àquela organização, intimamente relacionada ao secularismo nessa

perspectiva. Hipoteticamente, poder-se-ia entender, dessa forma, que o aumento sucessivo

de membros sunitas de Tikrit se daria não convicções ideológicas, mas sim por afinidades

pessoais, calcadas num senso tribal de lealdade e proximidade com os líderes do Baath.

c) O Aumento da Influência de Saddam Hussein

Paralelamente ao que costumou denominar a “baathização” do regime, seguia em

curso, principalmente após a segunda metade da década de 70, o que se chamou de

“saddamização” do partido Baath, levando, subseqüentemente, ao controle de Saddam e de

seus aliados das esferas de poder mais relevantes do país, até o momento da conquista de

poder em 07.79 após um golpe que preveniu o tio, mas atingiu centenas de membros do

Baath em todos os escalões.

A maioria dos estudiosos afirma que a relação entre Saddam e Bakr fora amistosa, e

que havia uma espécie de divisão de tarefas entre ambos: enquanto Saddam definia as

políticas e confrontava os adversários da dupla dentro da cúpula de poder, Bakr sancionava

as decisões e ganhava popularidade53. Mas, ao mesmo tempo, Saddam ampliava sua rede de

contatos e acesso a áreas estratégicas às quais não tinha acesso, principalmente o exército.

Também assume controle cada vez maior sobre o aparato de segurança e a cúpula do

partido. Aprofundando os ditames da lógica tribalista de controle do Estado (conforme

52 SLUGLETT, pp. 190-195.53 MARR, pp. 144-146.

82

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visto na seção “A Rede de Clãs, o Clientelismo e a Patronagem”), coloca parentes próximos

em cargos relevantes desses setores estratégicos54.

Em seguida, amplia controle sobre o Comando Regional do Baath, indicando a

maioria de seus membros. Como será analisado mais tarde, isso teria fortes implicações

ideológicas no funcionamento do partido. Possivelmente, o golpe mais significativo se deu

com a determinação, em 1977, de que todos os membros do Comando Regional passariam

a fazer parte do CCR, o que significou, em resumo, a fusão entre partido e Estado e o fim

do Baath como um corpo independente55. Com a significativa ampliação de seu poder,

Saddam deixa de se conceder papel secundário no regime, e empreende uma intensa

campanha de culto de personalidade, preparando-se para assumir o poder com legitimidade

popular.

A tomada de poder viria em 16 de Julho de 1979, com a anunciação da resignação

de Bakr, alegando “problemas de saúde”. Logo a seguir, anunciaria a descoberta de uma

tentativa de golpe sírio, que utilizaria como pretexto para perseguir membros do partido, do

exército, da milícia popular, dos sindicatos, das associações estudantis e outros

departamentos56. Com isso, Saddam emergia como líder maior e, graças às perseguições,

sem oposições aparentes, tendo então liberdade cada vez maior para implantar sua visão

sobre o Estado iraquiano e todas as demais esferas, conforme centralizava o poder em si

durante os anos 80.

Para Karsh57, Saddam não ocupara o cargo de presidente desde 1974 por não sentir-

se preparado nem possuir a respeitabilidade pública e o prestígio de Bakr; dessa maneira,

seu tio era indispensável para que pudesse implementar sua estratégia de longo prazo

mantendo-se, em tese, impune perante os descontentes. Aburish considera que, até 1976,

Bakr poderia ter evitado que Saddam tomasse o seu lugar; contudo, as contínuas delegações

das funções mais importantes do país para o vice-presidente tornaram Bakr uma figura

meramente alegórica, responsável somente pela assinatura de documentos preparados por

Hussein58. Marr afirma que a transição de poder entre Bakr e Saddam resultou num

afastamento do último com relação aos instrumentos de deliberação do estado, como o

54 ABURISH, pp. 124-125.55 SLUGLETT, pp. 208.56 ABURISH, pp. 170.57 KARSH, pp. 85-89.58 ABURISH, pp. 125.

83

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CCR, o Comando Regional do partido e o gabinete; o vice-presidente, ao colocar seus

aliados mais próximos nessas burocracias, também se inseriu acima delas, o que fez com

que elas se tornassem, assim como seu tio, apenas figuras decorativas, sem capacidade de

deliberação. Em contrapartida, Saddam passou a se aproximar da população, enquanto

iniciava uma intensa campanha de culto à sua personalidade.59

Existem diferentes interpretações sobre as motivações e razões do golpe de Saddam

em 1979. Conforme será visto na seção sobre política externa, Aburish60 considera o golpe

intimamente relacionado com a tentativa de unificação entre o Iraque e a Síria, entre 1978-

79, que lhe retiraria boa parte dos poderes. O autor também vê uma grande oposição de

elementos intra-partidários à ascensão de Saddam, o que então explicaria as grandes

perseguições do novo presidente a políticos de todos os níveis do governo e mesmo

indivíduos de fora dessa estrutura que, minimamente, contestassem sua figura. Uma das

razões para essa tensão se daria pela visão de alguns líderes do partido de que Saddam era

individualista e distante das ideologias do partido. Karsh também referenda a noção de

pouco comprometimento ideológico de Saddam com a doutrina baathista61, e explica a

subida de Hussein ao poder por este achar que Bakr não tinha os requisitos necessários para

conter o avanço do Irã revolucionário (e as repercussões internas, como as insurgências

xiitas) sobre o regime62.

2.) A Ideologia

Levando-se em conta o enorme problema histórico do Iraque moderno em adquirir

para si uma identidade nacional que apazigúe a persistência da forte tensão entre os

diversos grupos, temos como objetivo nesta seção identificar algumas das distintas linhas

ideológicas adotadas pelo regime e por Saddam Hussein que não tratem especificamente da

política externa e da economia (tratadas a seguir), e que tenham servido, de alguma

maneira, para se tentar criar uma coesão interna. Dentre os tópicos relevantes analisados

pelos especialistas, destacam-se as implicações da baathização-saddamização, a saber, a

centralização do regime e o culto de personalidade a Hussein (ainda antes de chegar ao

59MARR, pp. 151-152.60 ABURISH, pp. 168-174.61 KARSH, pp. 92.62 Idem, pp. 109-110.

84

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poder – analisado no próximo capítulo), e o nacionalismo mesopotâmico, amplamente

tratado por Amatzia Baram63, e brevemente discutido nesta pesquisa.

a) O Autoritarismo do Regime

O aumento da violência praticada pelo regime, especialmente a partir da segunda

metade da década de 70, parece estar relacionado ao aumento da penetração das instituições

estatais e partidárias em todas as esferas da sociedade e no estímulo governamental para

que os cidadãos espiassem uns aos outros, a fim de continuar a “estabilidade da revolução”.

Sluglett aponta que o grande crescimento do Baath tornou cada vez mais difícil para que

indivíduos criticassem o governo e mesmo se envolvessem na política, o que fazia com que

muitas pessoas confinassem suas atividades somente a um círculo restrito de parentes e

amigos, dado o receio de perseguição por parte das onipresentes forças de segurança.64

Makiya também aponta para o desaparecimento do diálogo político no país, que levou, em

última instância, a penetração do Baath em todos os aspectos da vida teria levado à

destruição da personalidade pessoal dos iraquianos, apesar da dificuldade do partido em

penetrar nas redes de famílias, clãs e tribos, vistas como “autodefesa”.65

Aburish66 indica a eficiência dos sistemas de segurança, por meio dos contínuos

seqüestros de famílias na composição de grandes fissuras étnicas, religiosas e políticas,

presumivelmente pela consideração de que a ação intermitente da inteligência acabava por

rejeitar a formação de um senso de comunidade mínimo entre as pessoas, já que estas se

identificavam, subjetivamente, como espiãs. O autor interpreta que essas ações repressivas

eram vistas por Saddam como algo necessário para a modernização do país e sua liderança

regional, nos moldes em que pretendia Napoleão e, principalmente, Stalin.

Makiya, que enfatiza a enorme relevância dada pelo Baath na doutrinação dos

jovens, vistos como o “futuro da revolução”,67 desenvolve a tese de que o medo se

63 BARAM, Amatzia. Culture, History and Ideology on the Formation of Ba’thist Iraq; BARAM, Amatzia. “Re-inventing Nationalism in Ba’thi Iraq 1968-1994: Supra-Territorial and Territorial Identities and What Lies Below”.64 SLUGLETT, pp. 185.65 MAKIYA, 60-62; 104-106.66 ABURISH, pp. 125-128.67 MAKIYA, pp. 76-82

85

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constituiu como o cimento social do regime68, já que todas as instituições, que contavam

com grande participação popular, realizavam a sua mediação com a sociedade por meio da

violência. Ao mesmo tempo, a fusão entre o partido e o Estado, que extinguia a sociedade

civil, concedia toda a legitimidade as ações do regime.

b) O Nacionalismo Mesopotâmico

Um aspecto ideológico bastante significativo, e visto como contraditório à noção

clássica do partido Baath sobre o pan-arabismo, foi a campanha sem precedentes que

buscou enfatizar a peculiaridade dos iraquianos perante os demais povos, inclusive os

árabes. Aburish destaca a esse esforço como parte da tentativa do regime em moldar uma

nova identidade social, especialmente para enfrentar o Irã69. Para Baram, a opção por essa

ideologia teria se dado, em parte, em razão do retumbante fracasso do primeiro regime

baathista (1963) em mobilizar a população, inclusive os xiitas, por meio de um radical pan-

arabismo e, por outro lado, na tentativa de criar um sistema de idéias que desse aos xiitas

um maior senso de igualdade para com os sunitas e de pertencimento à comunidade política

iraquiana, além de dar indicativo a estes e aos curdos de que seu futuro estava seguro, e que

o país não se dissolveria numa união árabe70.

A mobilização da população por meio de um pujante nacionalismo se dava por meio

de diversas esferas71: incentivo à arqueologia, a busca em indicar a relevância da história

antiga do país (incluindo era pré-islâmica), introdução de nomes, cerimônias e símbolos de

todas as épocas na vida política, administrativa e cultural do país, incentivo ao folclore, à

arte em geral, à arquitetura e mesmo aos currículos escolares. Todos esses elementos

traziam à tona um novo elemento, de caráter mesopotâmico, que amalgamava os feitos das

culturas antepassadas que habitaram o território iraquiano, e tinham o propósito de indicar

os iraquianos contemporâneos como herdeiros e prosseguidores desse enorme legado, e

como uma “raça” peculiar, distinta simplesmente dos árabes, ou do mesmo do segmento

muçulmano.

68 Idem, pp. 60.69 ABURISH, pp. 127.70 BARAM, pp. 7; 19-20; 24.71 Idem, pp. 25-26.

86

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Com o folclore, buscava-se mostrar ao público, por meio de festivais anuais, a

imensa variedade de etnias que formam o corpo político iraquiano e uma única tradição

iraquiana, que precisava ser resgatada e preservada para demonstrar a peculiaridade do país

perante o mundo.72 Em cada região do país, os festivais realizados buscavam aproximar os

grupos locais da nova identidade que se pretendia criar; nesse sentido, o regime buscou dar

grande atenção às tradições curdas, incorporando-as às demais e exibindo-as em outras

províncias.73 Os artistas que buscavam emular obras das culturas antepassadas tinham

grandes vantagens financeiras e prestígio; as peças de teatro e as novelas da televisão eram

altamente politizadas.

A polêmica criada pela incorporação de culturas que não continham a priori o

elemento árabe, como os Babilônios ou os Assírios resultou, por um lado, em teses que

indicavam o componente étnico único dos iraquianos, que os distinguia dos sírios e dos

libaneses, e num posicionamento menos radical, que enfatizava somente a continuidade

cultural do país; dessa maneira, os árabes não eram vistos como uma etnia, mas sim como

uma cultura, somente a “última reencarnação” do legado iraquiano-mesopotâmico.74

Enquanto isso, o partido colocava-se a si mesmo como o líder dessa revolução cultural e

como aquele capaz de despertar a consciência popular sobre sua verdadeira história. A

partir da década de 80, essa ideologia guinaria para uma associação mais personalizada,

atrelando Saddam Hussein aos grandes líderes das culturas antepassadas; com isso,

conforme será visto mais adiante, realizava-se a amalgamação entre o culto de

personalidade e o nacionalismo mesopotâmico, o que teria efeitos diversos sobre a

população.

3.) Economia e Sociedade

O desenvolvimento econômico foi, possivelmente, um dos aspectos mais relevantes

em termos da transformação societal promovida pelo Baath. Medidas como a reforma

agrária e a nacionalização do petróleo tiveram, em geral, grande aceitação popular e

repercutiram em grandes modificações na estrutura social do Iraque. Com uma nova

72 Ibidem, pp. 33-34.73 Ibidem, pp. 54.74 Ibidem, pp. 97-99.

87

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legislação trabalhista e social, que dava um novo tratamento às mulheres e dava prioridade

à educação, o regime pôde sobreviver politicamente e, especialmente após a ascendência de

Saddam Hussein ao poder, viabilizou um ambicioso programa militar, que teria

reverberações até a contemporaneidade. Nesta seção, buscaremos tratar das interpretações

essenciais sobre os tópicos mais relevantes mencionados.

a) Economia e Ideologia

Um dos temas de maior debate entre os estudiosos dentro do estudo sobre a

economia iraquiana se dá sobre a fórmula econômica adotada pelo regime. Peter Gran

entende que o governo Baath buscou, gradativamente, afastar-se do corporativismo dos

governos anteriores rumo a um neoliberalismo, passando por um período intermediário de

“liberalismo dirigido”, até o início da segunda metade da década de 7075. Karsh76 enxerga as

políticas econômicas adotadas pelo governo, principalmente a partir do momento em que

Hussein passa a ter maior controle sobre as instituições, como sendo uma das maneiras

mais eficazes de garantia a sobrevivência do Estado; nesse sentido, o estado continuamente

teria adaptado suas políticas às necessidades do momento para satisfazer as demandas

populares de bem estar e assim, para que seus governantes continuassem no poder. Com

isso, Saddam fazia uma interpretação populista do socialismo baathista, em que

paulatinamente liberalizava o setor econômico não só para, em tese, torná-lo mais eficiente,

mas principalmente para que fosse criada uma nova classe social, uma “burguesia

nacional”, cujos interesses econômicos transcenderiam linhas sectárias e que deveriam sua

ascensão ao próprio líder iraquiano.77

Phebe Marr, em contrapartida, entende que, de fato, o regime buscou atingir o

socialismo (ou ao menos um dirigismo estatal progressista), já que a participação do estado

na economia teria crescido de 31 para 80 por cento de 1968 a 1977; além disso, o Baath

dedicou especial atenção (conforme será visto a seguir) na reforma agrária por meio da

coletivização agrícola, e num controle planificado da economia, o que era visto por ela

como parte de uma agenda socialista.78 Tripp, contudo, vê as práticas baathistas como

75 GRAN, Peter. Beyond Eurocentrism, pp. 71-73.76 KARSH, pp. 89-94.77 Idem, pp. 92.78 MARR, pp. 162-163.

88

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essencialmente populistas, e como parte do sistema patrimonialista implantado pelo

governo, em que se buscava cada vez mais tornar dependentes os setores sociais mais

estratégicos, como a classe média ascendente e os líderes tribais do interior e, ao mesmo

tempo, prejudicar os que eram vistos como inimigos do regime, como alguns grupos xiitas

e os estrangeiros, por meio do seqüestro dos bens.79 Sluglett80 entende que o partido não

estava comprometido em construir uma ordem socialista ou transformar as relações de

produção, mas sim desenvolver o sistema capitalista dentro do Iraque. O progressismo do

regime estava representado na tentativa de promover os princípios da igualdade jurídica e

da distribuição de renda; numa sociedade multifacetada, a aplicação destes projetos, sob a

rubrica do “socialismo árabe”, era uma das maneiras mais convincentes de atingir o apoio

popular da “vontade geral” da nação, o que permitia ao regime se manter no poder,

expandir suas estruturas e desenvolver seu plano de governo sem pressões oposicionistas.

b) A Nacionalização do Petróleo

Apesar da fundação da Companhia Nacional Iraquiana de Petróleo (CNIP) e da

formação de uma parceria com a URSS para a exploração dos campos do sul de Rumaila, o

país ainda estava extremamente dependente das receitas oriundas da exploração de petróleo

da estrangeira CIP (que representavam cerca de 80 % da receita total arrecadada pelo

governo entre 1959 e 1970)81. Por ter o petróleo como único grande produto para

exportação, a dependência do conglomerado multinacional continuava, e as pressões

governamentais no sentido de ampliar a produção daquele bem não repercutiam. O Iraque

continuava a ser bastante pobre, com uma renda per capita inferior a 120 dólares82. Sem

conseguir avançar nas negociações com a CIP em 1971, o governo iraquiano busca apoio

soviético para inaugurar a produção petrolífera em Rumaila, o que ocorrem em 04.1972.

Com isso, a CIP realiza um boicote de cinqüenta por cento da produção em Kirkuk, o que

leva o governo a nacionalizar a produção de petróleo em 1º de Junho do mesmo ano,

79 TRIPP, pp. 205-206.80 SLUGLETT, pp. 228.81 Idem, pp. 145.82 Idem, ibidem.

89

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compensando a empresa estrangeira e removendo o último elemento de controle externo da

vida nacional do país.83

Dentre as razões que determinaram o sucesso de longo prazo da nacionalização,

Aburish destaca tanto o comprometimento da União Soviética em realizar grandes compras

de petróleo antes que a nacionalização fosse feita, como os acordos feitos por Saddam com

diversos países (como Itália e Brasil) no mesmo sentido, além da busca por uma relação

positiva com alguns dos países que faziam parte do consórcio estrangeiro, principalmente a

França.84 Tripp adiciona que as fortes medidas austeras do governo (como corte de

salários), também contribuíram para que a redução temporária das receitas obtidas não

atrapalhasse o plano; além disso, enfatiza o enorme poder de patronagem (graças ao

controle da estatal que passou a explorar o recurso natural) de que passaram a deter os

membros dos círculos de poder, o que ajudou a manter a estabilidade do país.85 Como os

demais autores, Sluglett menciona a nacionalização do petróleo como um dos atos mais

importantes da história moderna do Iraque, o que permitiu ao governo capitalizar

politicamente tal intervenção por muitos anos86. Finalmente, Marr destaca o contexto

externo altamente favorável, em razão do choque do petróleo de 1973, que quadruplicou o

preço do produto e permitiu um rápido acúmulo de capital por parte do governo87.

c) A Reforma Agrária

Desde a década de 1950, diversas reformas agrárias foram tentadas, tanto com o

objetivo de ampliar a produtividade e, com isso, melhorar as condições do campo como

para tentar romper com o poder político e social dos latifundiários que, em geral, também

eram líderes tribais. Quando o Baath assume o poder em 1968, as condições no campo

refletiam um imenso atraso88, o que contribuía para um contínuo processo de migração e

inchaço das cidades. Um dos problemas históricos identificados pela liderança era a

necessidade de pagamento das expropriações das terras, o que acarretava em enormes

gastos para o governo. Outro era a própria condição da terra, que se tornava cada vez mais 83 TRIPP, pp. 208.84 ABURISH, pp. 99-102.85 TRIPP, pp. 208.86 SLUGLETT, pp. 147.87 MARR, pp. 161.88 SLUGLETT, pp. 138.

90

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improdutiva em razão da salinidade dos rios Tigre e Eufrates. Em 05.1969, o governo

decide acabar com as compensações aos proprietários pelo seqüestro das terras e, ainda, os

camponeses não mais precisariam pagar pela terra concedida pelo governo. No ano

seguinte, promulga uma vasta reforma agrária, estabelecendo o tamanho máximo das

propriedades de acordo com suas condições e sua produtividade, além de um sistema de

coletivização agrícola baseado em cooperativas e financiado com grande ajuda

governamental (especialmente por meio do barateamento dos insumos essenciais). Após

1975, o programa de distribuição de terras seria aprofundado, especialmente no norte, após

o término da guerra com os curdos89. Contudo, conforme será apresentado no próximo

capítulo, o regime passaria a adotar o sistema de pequenas propriedades individuais a partir

do início da década de 80.

Dentre as conseqüências dessa reforma, Sluglett aponta para a melhoria das

condições de vida dos camponeses, mas ainda com forte predomínio dos médios e grandes

proprietários; além disso, houve grande aumento do número de serviços públicos, como

saúde e educação – o que resultou, também, em grande penetração do estado no interior e a

subseqüente introjeção da doutrina baathista90. Tripp91 considera que a política adotada

tinha um caráter muito mais simbólico do que real, já que havia, em sua opinião, pouco

empenho do governo; também afirma que a produtividade agrícola continuou a cair,

forçando inclusive a importação de alimentos. Mais uma vez, a concessão de terras fora

usada como um importante trunfo político de relacionamento entre as elites, permitindo um

grande controle social do interior. Aburish considera que o que levou a mudança de um

sistema de propriedades para outro fora a não adaptação popular ao modelo mais próximo

do soviético.92 Karsh afirma que a gerência ineficaz dos recursos e a corrupção, presente

em todas as áreas do governo, afetaram o insucesso relativo da reforma agrária,

repercutindo no aumento da desigualdade social entre as áreas urbana e rural93. Batatu

entende que a reforma agrária foi um instrumento eficaz tanto na aproximação entre o

partido e as massas (gerando grande popularidade do Baath no campo) como em

modernizar e secularizar o estado, apesar dos contratempos ocorridos, inclusive o controle

89 MARR, pp. 163-164.90 SLUGLETT, pp. 138-139.91 TRIPP, pp. 205-207.92 ABURISH, pp. 113.93 KARSH, pp. 91.

91

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do fluxo do rio Eufrates pela Síria nos anos de 1975-76 (num aparente ato de hostilidade ao

regime), que contribuiu para a redução da fertilidade do solo iraquiano, especialmente no

sul.94

d) O Desenvolvimento Econômico

O controle da produção e exportação do petróleo e os expressivos aumentos do

preço do petróleo em 1973 e 1979 permitiram a implantação de um programa de

desenvolvimento econômico sem precedentes na história moderna do Iraque, e um dos

maiores já implementados por um país do “terceiro mundo”95. As receitas foram

amplamente utilizadas para promover o surgimento de indústrias pesadas (como ferro, aço

e petroquímicas), o desenvolvimento de infra-estrutura (estradas, ferrovias, portos e

aeroportos), além de serviços públicos, como escolas, hospitais, eletricidade e telefonia. O

Produto Interno Bruto cresceu cerca de dez vezes no período 1968-79, e a Renda per Capita

elevou-se aproximadamente em 400 %.96 Mais especificamente no setor militar, o país

começou a desenvolver seu programa de desenvolvimento de armas não-convencionais, em

geral por meio de parcerias com empresas ocidentais, notadamente de países como Estados

Unidos, Alemanha e França.97

Os investimentos e a eliminação de impostos (além da gratuidade de todos os

serviços públicos98) repercutiram em notável transformação social, gerando grande

mobilidade entre as classes. Formou-se uma nova estrutura de classe99, com um estrato de

novos ricos (composto por locatários, empreendedores e outros intermediários), que se

beneficiou dos esforços do governo em incentivar o desenvolvimento do setor privado.

Houve crescimento da classe média, e a formação de grupos endógenos relacionados ao

processo de modernização do Estado (como profissionais liberais, acadêmicos,

engenheiros, médicos, funcionários públicos de alto escalão); também cresceu a classe

média trabalhadora, inclusive formada pela imigração crescente de trabalhadores

94 BATATU, pp. 1095-1096.95 ABURISH, pp. 107.96 SLUGLETT, pp. 232.97 ABURISH, pp. 106-108.98 MARR, pp. 164.99 Idem, pp. 167-168.

92

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estrangeiros, principalmente egípcios100. Pela primeira vez, o setor urbano se tornava mais

preponderando do que o rural na composição demográfica do país. Porém, o programa de

desenvolvimento teve diversos revezes, e os estudiosos sobre o tema realizaram diversas

interpretações dessas falhas.

Efraim Karsh101 considera que a ineficiência, o gasto público mal empregado e a

corrupção fizeram com que as desigualdades sociais fossem pouco alteradas; de acordo

com seus dados, os cinco por cento mais pobres do país possuíam somente 0.6 por cento da

renda nacional, enquanto que os cinco por cento mais ricos ficavam com 22.9 por cento

daquele valor. Quatro milhões de pessoas ainda moravam em casas feitas com barro, e a

enorme migração para Bagdá tinha gerado favelas com quase dois milhões de habitantes.

Marr102 menciona que a era de prosperidade criou uma sociedade de consumo altamente

dependente dos empregos governamentais, já que o Estado se tornou o motor de

desenvolvimento nacional. De acordo com seus números, a porcentagem de funcionários

públicos nas cidades era equivalente a um terço de sua população total. Esse grande

aumento do setor de serviços teria negligenciado outras áreas importantes, como a indústria

de manufatura e a agricultura. Uma parcela excessiva da receita (30 por cento) teria sido

empregada em gastos militares. Finalmente, o governo falhou em diversificar a economia;

pelo contrário, o Iraque se tornou cada vez mais dependente do petróleo, apesar dos

esforços em se criar um setor industrial de grande porte. Sluglett critica a enorme

especulação imobiliária, que gerou um aumento substancial dos preços dos aluguéis das

casas; argumenta que a exploração do petróleo, totalmente monopolizada pelo Estado,

permitiu o enriquecimento de muitos dos parentes de Saddam e dos baathistas mais

poderosos, além do crescimento da força do próprio Estado, que se tornou capaz de

arregimentar forças de coerção e vigilância de enorme proporção (conforme visto na seção

“O Sistema de Segurança do Governo Baath”). Sobre a diversificação econômica, entende

que o abandono gradual dos investimentos no setor agrário foi um forte indicativo de que o

país não se encaminhava para um desenvolvimento sustentado, dada a própria

imprevisibilidade do mercado petrolífero.103

100 ABURISH, pp. 117.101 KARSH, pp. 91.102 MARR, pp. 164-166.103 SLUGLETT, pp. 227-254.

93

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e) Reformas Legislativas, a Educação e a Condição da Mulher

O período 1968-79 também foi marcado por alterações significativas em aspectos

relevantes da cultura e sociedade iraquianas. A partir de 1973, passou a ser implementado

um programa educacional que visava erradicar o analfabetismo no país; a empreitada foi

acelerada em 1977 com a Campanha Nacional pela Educação Compulsória, que convocava

todos os homens e mulheres com idade entre 15 e 45 anos a aprenderem a ler e escrever; a

ausência aos desobedientes, porém, era a prisão.104 O programa contou com a participação

de cerca de dois milhões de pessoas num período de cinco anos, e seu sucesso implicou na

premiação pela UNESCO, que o colocou como modelo para outros países seguirem105. Boa

parte da burocracia governamental e dos meios de comunicação foi mobilizada para

viabilizar o ambicioso projeto, que contava ainda com o uso de diversos prédios públicos, a

construção de milhares de centros de alfabetização e a elaboração de escolas itinerantes.106

Atrelada à educação estava a condição da mulher, já que estas compunham boa

parte dos analfabetos do país. Com emendas na Lei de Status Pessoal, em 1978, colocava-

se fim aos casamentos forçados, retiravam-se o direitos dos homens dos clãs e das tribos

sobre as mulheres do grupo; foi permitido o ingresso das mulheres nas forças armadas, e

havia incentivos para que elas ingressassem no mercado de trabalho, principalmente no

setor produtivo.

Novas leis foram criadas, entre 1969 e 1971, regulando as condições de trabalho, a

criação de sindicatos, pensões e seguridade social. Foram estabelecidos salários mínimos, a

duração da jornada de trabalho, a proibição do trabalho infantil e da demissão sem justa

causa. Outras leis, em 1977, procuraram ajustar a cidadania iraquiana. Contrariamente aos

pressupostos clássicos de Estado-Nação, não havia definições sobre o povo em termos

étnicos, religiosos ou sectários. A cidadania se dava de acordo com a crença na revolução e

na mensagem baathista107. As deportações de xiitas de origem persa (ocorridas em 1979 e

1980), desta maneira, poderiam ser explicadas, de acordo com a doutrina do partido, não

por um senso sectário do regime, mas simplesmente por entender que haveria uma conexão

104 ABURISH, pp. 114.105 Idem, ibidem.106 MAKIYA, pp. 87.107 MAKIYA, pp. 132-135.

94

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irresistível entre aquele grupo e os iranianos revolucionários, que eram, portanto, contrários

aos valores baathistas.

Para Makiya108, os esforços do governo em acabar com o analfabetismo só podem

ser entendidos diante do intento baathista em se formular uma nova sociedade, baseada

num modelo de identidade que evocasse um comportamento social leal e comprometido

com os valores do Baath; tratava-se, assim, de uma doutrinação ideológica de cunho

totalitário. Marr entende que os esforços na área da educação faziam parte da tendência

igualitária do regime109, assim como Karsh110, que vê nesses projetos e na tentativa de

emancipação da mulher atos decididamente progressistas, embora considere que a mudança

na Lei de Status Social tenha sido produto muito mais de um intento do Baath em substituir

o patriarcalismo como cultura social do que uma preocupação sincera com a histórica

submissão da mulher no mundo árabe. Nesse sentido, Kanan Makiya vê o esforço do

partido em colocar em prática sua própria versão do Islã e da modernidade, mas sem

romper definitivamente com o tradicionalismo existente, já que, em outras estruturas da

sociedade (principalmente as mais poderosas, como a chefia de empresas, o CCR e o

exército), o domínio masculino continuou a prevalecer111. Entretanto, Aburish112 crê que as

medidas do regime com relação ao gênero feminino foram significativas, principalmente se

comparadas com o conservadorismo no trato da questão por países como a Arábia Saudita;

todavia, considera também que o excesso de demanda por trabalho devido ao grande

desenvolvimento econômico também motivou esse rompimento com as leis islâmicas.

4. A Política Externa

A política externa iraquiana do período 1968-79 passou da defesa de um pan-

arabismo radical – que isolou o país nos seis primeiros anos do regime e o tornou altamente

dependente da União Soviética – para uma fase mais pragmática, conciliando-se com as

monarquias mais conservadoras e, por um breve momento, com a Síria. Secretamente, o

país realizava acordos comerciais com países europeus, que lhe forneciam a tecnologia

108 Idem, pp. 87-88.109 MARR, pp. 164.110 KARSH, pp. 90-94.111 MAKIya, pp. 91-93.112 ABURISH, pp. 115.

95

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necessária para o desenvolvimento de seu programa nuclear em troca do acesso do mercado

iraquiano para as multinacionais estrangeiras. No final da década, o regime começaria a

enfrentar mais presentemente o desafio iraniano, que tentaria ser eliminado (conforme será

visto no próximo capítulo) militarmente. Nesta seção, buscaremos analisar as interpretações

principais sobre os eventos mais importantes e sobre as opções do país pelas linhas de

conduta externa adotadas.

a) O Pan-Arabismo Radical (1968-1974)

Dentro de um contexto internacional negativo para o mundo árabe (já que Israel

havia vencido, em 1967, a Guerra dos Seis Dias), o Iraque adotou uma retórica altamente

agressiva, de cunho antiimperialista e anti-sionista. Com a saída britânica do Golfo, em

1969, formaram-se pequenos e frágeis estados; os Estados Unidos inauguraram a Doutrina

Nixon, que favorecia apoio financeiro e militar a todos os países dispostos a defenderem a

segurança de sua região. Irã, Arábia Saudita, Omã e Bahrein aceitaram o auxílio. O Iraque,

que havia rompido suas relações com os EUA ainda em 1967, sentiu-se cercado, embora

tivesse mantido relações diplomáticas com aquelas monarquias. Para Phebe Marr, a adoção

de uma retórica hostil se ligava com a fragilidade do regime em duas maneiras: a busca pela

capitalização política do sentimento popular anti-EUA e anti-Israel, para que se criasse

minimamente uma coesão interna e para que a população desviasse sua atenção das

medidas repressoras aplicadas pelo governo; a percepção de que o país estava isolado

internacionalmente, e que então era necessário um distanciamento a tempo de fortalecer o

governo baathista.113

Nos anos de 1969-70, fracassou a tentativa de união do país com o Egito. Numa das

marcas da agressividade da política externa do período, o Iraque rejeitou a Resolução 242

da ONU (assinada pelo Egito), que clamava por uma resolução pacífica no trato da causa

Palestina. Aburish considera que não fora esse evento que distanciara os dois países, mas

sim a própria falta de vontade de dividir a soberania do país com os egípcios.114 Embora o

país buscasse se mostrar como o “campeão” da causa Palestina, o evento conhecido como

Setembro Negro – no qual o exército da Jordânia confrontou-se com os palestinos por estes

113 MARR, pp. 147.114 ABURISH, pp. 89.

96

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utilizarem o território daquele país para atacarem Israel, o que era visto como uma ameaça

à estabilidade do estado jordaniano pelo Rei Hussein – foi indicativo, para a maioria dos

estudiosos, da predominância do caráter retórico do pan-arabismo advogado pelo Baath, já

que cerca de vinte mil soldados iraquianos estavam presentes na região do combate e

ficaram inertes ao combate, que resultou em milhares de palestinos mortos.115 Karsh

justifica a inação do exército do ponto de vista militar, já que o exército jordaniano seria, à

época, muito mais poderoso. A repercussão da inércia iraquiana gerou críticas sírias, já que

o país de Hafiz Asad tentou intervir a favor dos palestinos, o que, apesar da derrota, deu-lhe

uma vitória moral sobre o Iraque.116 Aburish afirma que os baathistas temiam por uma

retaliação ocidental no próprio território iraquiano, e que havia grande prioridade do regime

em se consolidar internamente antes de qualquer aventura estrangeira.117

Um dos maiores indicativos do isolamento internacional do regime se deu na Guerra

de Yom Kippur, em 1973. Egito e Síria, que planejaram o ataque a Israel, fizeram pouco

para incluir o Iraque na coalizão; durante a guerra, a situação não se alterou: informações

sobre a estratégia de combate não chegavam ao comando iraquiano, que fora rapidamente

derrotado; as negociações para o cessar-fogo não contaram com representantes iraquianos.

Contudo, a retórica anti-ocidental de Saddam Hussein, que clamou por um boicote total do

petróleo contra o ocidente; com a recusa dos países árabes, adotou uma política externa

independente com relação à exportação do produto, o que permitiu ao país acumular

grandes ganhos no período, enquanto continuava a criticar os acordos de paz feitos por

Egito e Síria.118

A União Soviética era vista pelo Iraque como o grande contrapeso ao ocidente nos

termos de uma parceria estratégica. A cooperação, iniciada ainda antes do governo Baath,

ampliou-se consideravelmente, primeiro com os acordos de exploração de campos de

petróleo em 1969, e depois com o Tratado de Cooperação e Amizade assinado em 04.1972,

que estabelecia parcerias em termos políticos, econômicos, técnicos e culturais; com isso, o

país pôde dar início ao desenvolvimento de seu programa bélico, que ganharia bastante

força a partir da segunda metade da década de 70. Karsh afirma que a relação não tinha

nenhuma veia ideológica, mas que serviu, no âmbito externo, para controlar as ações do Irã,

115 KARSH, pp. 58.116 Idem, pp. 59.117 ABURISH, pp. 90.118 ABURISH, pp. 105-106.

97

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que temia a formação de um bloco socialista, e no âmbito interno, para melhorar as relações

com os comunistas e com os curdos.119

A relação com os demais países árabes, principalmente as monarquias mais

conservadoras, eram tensas. A Arábia Saudita rejeitava o apoio iraquiano ao Iêmen do Sul e

ao Iêmen do Norte, de caráter esquerdista, assim como o financiamento da Frente Popular

para a Liberação do Golfo Árabe Ocupado, uma organização marxista destinada a derrubar

regimes conservadores na região. 120 Com o Kuwait, a relação também foi conflituosa, em

parte por um esforço do regime em capitalizar internamente um eventual sentimento

nacionalista como também em razão das ameaças de ocupação iraquianas por interesses

econômicos e geo-estratégicos121 (principalmente em razão da reivindicação histórica de

soberania sobre as ilhas de Warba e Bubiyan, que ampliariam o acesso iraquiano ao Golfo

Pérsico).

b) A Política Externa Pragmática (1975-79)

A partir de 1975, o Iraque teve o curso de sua política externa bastante alterado.

Com o Acordo de Algiers (06.1975), melhorou as relações com o Irã; logo concluiria uma

série de acordos bilaterais com a Arábia Saudita, incluindo demarcações de fronteira, que

foram historicamente pontos de discórdia. Relações também melhoraram com algumas das

monarquias do Golfo, incluindo o Kuwait. Enquanto isso, o país buscava se afastar da

União Soviética (até o ponto de quase rompimento, em 1979, após o patrocínio da potência

socialista a um golpe esquerdista no Afeganistão e do apoio militar soviético à Etiópia

contra a Somália)122 e expandia seus parceiros comerciais, chegando à Europa e aos EUA

(apesar da continuação do rompimento diplomático). Com os acordos de Camp David, em

09.1978 (em que Israel e Egito cooperavam para um processo de paz, contra a vontade de

vários países árabes), o Iraque busca organizar um encontro em oposição àquela parceria;

simultaneamente, as relações com a Síria, um dos principais inimigos regionais, melhora

bastante, a ponto de se propor uma união entre os países. Todavia, não há grande progresso,

119 KARSH, pp. 75-76.120 MARR, pp. 147.121 KARSH, pp. 65-66.122 MARR, pp. 168.

98

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e com o anúncio baathista da descoberta de um suposto golpe interno pró-sírio, as

divergências retornam.

Dentre as motivações para a guinada, Marr123 enfatiza o novo status econômico do

Iraque, graças às suas monumentais receitas oriundas do petróleo, que teriam levado o país

a diminuir o tom de seu discurso e a procurar fontes para suas necessidades, principalmente

em termos de serviços e tecnologias; daí a virada para o ocidente. Aburish124 entende que,

até 1974, o foco do regime fora exclusivamente o de consolidar-se internamente, buscando

afastar-se de comprometimentos externos. Após estabilizar minimamente a situação política

e econômica, o país buscou ampliar sua participação nas relações internacionais. Karsh

considera que a mudança ocorrida foi fruto da ascensão de Saddam Hussein a uma posição

de mais destaque no regime, o que teria lhe permitido formatar a política externa iraquiana

de maneira a dar proeminência regional a ele e ao país.125 Sluglett afirma que o contexto

internacional após 1973 produziu uma atmosfera de crescente pressão sobre o Iraque, de tal

forma que era necessário diminuir a retórica “extremista” de maneira a evitar rompimentos

externos ainda mais sérios.126 Baram relata que a mudança de política externa se deu em

razão do crescimento interno no Baath do grupo pragmático, liderado por Saddam, em

detrimento dos mais esquerdistas da ala civil e dos militares que, gradualmente, conseguiu

reduzir as oscilações e inconsistências do discurso de tal forma a direcionar as ações

externas a objetivos mais definidos, principalmente a liderança regional.127

O afastamento da União Soviética também é explicado sob diversas perspectivas.

Além da já mencionada128, explicada em termos do receio de um golpe pró-soviético em

território iraquiano, Sluglett129 vê o distanciamento em razão do objetivo iraquiano em

desenvolver seu programa de desenvolvimento o mais rápido possível, o que não seria

viável mantendo-se excessivamente atrelado à URSS, já que esta não possuía a tecnologia

sofisticada e a expertise necessária para empreender tal aceleração. Além disso, a

subseqüente procura pelo ocidente se dava pelo desejo iraquiano em diversificar sua fonte

de obtenção de armamentos, o que não teria sido possível até 1975, já que o exército

123 MARR, pp. 168.124 ABURISH, pp. 115.125 KARSH, pp. 100-101.126 SLUGLETT, pp. 201.127 BARAM, pp. 24-25.128 cf. nota 122. 129 SLUGLETT, pp. 180-181.

99

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nacional estava comprometido em combater os curdos e simplesmente era inviável realizar

tal mudança. Tripp vê a mudança como uma necessidade natural do regime iraquiano, em

razão da capitalização de sua economia, que necessitava de bens cada vez mais variados, e

do próprio contexto de paz entre Irã e Iraque após a assinatura do Acordo de Algiers, que

diminuiu muito a relevância da União Soviética como um parceiro estratégico contra o

então inimigo persa.130 Aburish comenta que a aproximação com o ocidente só teria sido

possível com a percepção daqueles de que Hussein buscava realizar uma política de

priorização ao próprio Iraque, e não tentativas mais ousadas de pan-arabismo; além disso, a

visão do Iraque como um país radical e socialista por parte de europeus e norte-americanos

teria sido desconstruída com o desenvolvimento no Iraque de uma economia de mercado e

da diminuição das coletivizações agrícolas.131

A tentativa de união com a Síria é um dos tópicos controversos dentro do debate

acadêmico. Para Phebe Marr, a aproximação fazia parte do esforço feito por alguns países

do Oriente Médio em conter a détente, o que faria com que o apaziguamento das

hostilidades entre os países fosse um fenômeno temporário.132 Karsh entende que a

aproximação entre os países fazia parte do plano de Saddam em colocar-se como o líder

regional do mundo árabe (já que a repercussão da política externa do Egito fora negativa) e

do intento de, finalmente, fazer com que a Síria, receando uma ofensiva israelense, desse

mostras de sua submissão por meio de uma união com o Iraque.133 Além do colocado por

Karsh, Tripp comenta que a união com a Síria daria ao Iraque um papel central no trato da

crise árabe-israelense, o que significaria, definitivamente, a ascensão de Saddam como líder

do mundo árabe, muito embora o autor afirme a idéia de união jamais fora levada a sério

pelos países, tendo servido como um instrumento retórico durante aquele momento

histórico.134 Aburish, porém, fornece uma explicação absolutamente diferente: a idéia de

união com a Síria fora a última tentativa de Bakr em impedir a ascensão do sobrinho ao

poder. Isso porque a união daria a ele, Hasan, a presidência, e a Assad, o segundo posto;

Saddam, nesse contexto, perderia boa parte do controle que tinha sobre o país naquele

momento. Segundo o próprio autor, Assad não teria aceitado o plano por imaginar que

130 TRIPP, pp. 215.131 ABURISH, pp. 163-164.132 MARR, pp. 169.133 KARSH, pp. 103.134 TRIPP, pp. 219-220.

100

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Saddam poderia dar um golpe em Bakr antes da união de fato, o que poria em risco o

próprio controle dos recursos sírios.135

Nesse contexto de insucesso do plano, conforme visto, Saddam utilizaria uma

suposta tentativa de golpe sírio para viabilizar uma substantiva perseguição aos elementos

do partido e do governo que tivesse qualquer entusiasmo com a união, ou que mesmo

discordassem de sua subida ao poder ou de suas opções políticas. No final da década,

Saddam Hussein emergiria, assim, como presidente do Iraque, e dispondo de recursos e de

capacidade de influência em todos os setores e esferas do país que lhes permitiriam um

controle cada vez maior do país e a possibilidade de seguir, inclusive por via militar, um

projeto de desenvolvimento nacional capaz de colocar o país como um dos mais relevantes

no âmbito regional e, inclusive, dentre todos aqueles que recebiam o título de “terceiro-

mundistas”.

c) A Revisão do Conceito de Pan-Arabismo136

No decorrer da década, o partido não só alterou a perspectiva de sua política

externa, mas também a sua própria visão sobre o que significaria uma união árabe. No final

da década, a relação entre uma ideologia interna marcada pela busca de uma identidade

iraquiana e uma retórica externa pan-arabista não se tornou mais tão descolada. Conforme

aponta Baram, a perspectiva original apontava para um futuro estado árabe em que se

fundiam as regionalidades, formando então uma nova sociedade; contudo, a discussão

específica sobre o formato exato dessa união não fora discutido. Uma das tendências, a de

preservar os regionalismos, era vista como um vestígio burguês; reconhecia-se, contudo, a

necessidade da aplicação da descentralização, para que a democracia socialista fosse viável.

Outra visão já destacava a necessidade de federação, sem divisão geográfica, mas sim

econômica, para fortalecer regiões com problemas específicos. Com o desenvolvimento

econômico do país e a ascensão de Saddam Hussein ao poder, porém, passou-se a irradiar o

entendimento de que a situação local e suas peculiaridades não são fraquezas de uma nação;

pelo contrário, são atributos importantes, que uma amalgamação poderia por em risco.

Cada vez mais transparecia nos discursos a idéia de uma federação árabe, composta por

135 ABURISH, pp. 164-166.136 BARAM, pp. 117-121.

101

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partes que, gradativamente, cooperariam sob o formato pan-arabista. Contudo, essa união

teria uma liderança, expressa exatamente pelo Iraque de Saddam137, que começava a

conquistar um status de “herói das massas árabes”.138 Na próxima década, o discurso se

tornaria ainda mais voltado para dentro, num crescente abandono do ideário pan-arabista,

apesar de uma certa manutenção de sua retórica.

137 MARR, pp. 170.138 ABURISH, pp. 117.

102

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CAPÍTULO 4 – O Período 1980-1988

O novo regime, que emergiria a partir do final de 1979, controlaria um país que

havia crescido enormemente durante a década, com a contrapartida de um sistema de

repressão que desmobilizou quase toda a oposição. A estabilidade interna e a proeminência

do país nas relações internacionais seriam abaladas pela emergência do Irã, que se tornou,

então, o maior desafio para o regime Baath até então.

Saddam Hussein, que esperava derrotar o inimigo em três semanas, teve de esperar

oito anos até fazê-lo, com custos enormes. As perdas de centenas de milhares de soldados

representaram a perda de uma geração inteira de iraquianos; os contínuos gastos

econômicos encerraram a grande onda de prosperidade econômica, forçando uma grande

austeridade e o emprego de políticas neoliberais. A instabilidade política gerada pela guerra

forçou um aumento ainda maior da centralização política em elementos cada vez mais

próximos de Saddam e distantes da população; apesar dos grandes gastos governamentais

para a promoção do culto de personalidade ao presidente, sua imagem sofreria revezes ao

final do conflito. O contexto da guerra permitira uma aproximação ainda maior com o

Ocidente, viabilizando a continuação do programa de desenvolvimento de tecnologia

nuclear e de armas não convencionais, mas o regime voltaria a encontrar-se isolado ao final

de 1988.

Neste capítulo, buscaremos analisar os desenvolvimentos gerais da guerra: suas

motivações, seus efeitos sobre a população iraquiana, sobre o regime, as implicações

econômicas, as repercussões para as minorias, as linhas de política econômica adotadas, o

foco ideológico-cultural do regime e as linhas de política externa adotadas. O objetivo do

texto será o de realizar uma análise comparativa das diferentes interpretações dos

acadêmicos sobre os temas abordados, a fim de se compreender a complexidade dos

eventos em estudo.

1. A Guerra Irã-Iraque

103

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O estudo do conflito é geralmente dividido em quatro fases: a ofensiva iraquiana

(1980-1982), que permitiu o país avançar algumas dezenas de quilômetros dentro do

território persa; a ofensiva iraniana (1982), que expulsou o exército iraquiano de seu

território e começou a avançar para o lado ocidental do Shatt al-Arab, região fluvial que

separa ambos os países ao sul; o impasse (1983-1986), em que cada país alcançou vitórias

nas batalhas, mas não o suficiente para que os rumos da guerra fossem alterados; a

internacionalização da guerra e a preponderância iraquiana (1986-1988), em que, com o

aumento e, por vezes, com o envolvimento de potências ocidentais, o Iraque conseguiu

vitórias sucessivas até a saída do exército iraniano e a declaração do cessar-fogo. Nesta

seção, procuraremos investigar o contexto e as motivações para o conflito, além dos

desenvolvimentos históricos de cada sub-período mencionado.

a) O Contexto Regional e as Relações Bilaterais

Historicamente, as relações entre Irã e Iraque em geral sempre foram tensas1; ainda

antes da formação dos dois estados, o Império Otomano e os Safávidas disputavam zonas

territoriais na região do Shatt al-Arab e na zona central mesopotâmica. Com a descoberta

de petróleo na região, inicia-se a interferência por parte das potências estrangeiras. Acordos

fronteiriços, como o Protocolo de Constantinopla, de 1913, e o Tratado de Saadabad, de

1937, privilegiam interesses externos, como a abertura do Shatt para a navegação de todos

os países. Após a tentativa frustrada iraniana, no governo Mossadegh (1951-53) de seguir

uma política externa mais independente, o Shah Reza Pahlevi, pró-EUA, ocupa o poder e,

gradualmente, busca tornar o país uma potência regional. Dentro desse projeto, abroga o

tratado de 1937 em 04.1969, e apóia a insurgência curda no Iraque. A continuidade da crise

interna leva à aprovação do Acordo de Algiers, em que o governo iraquiano concede uma

zona territorial no sul do país aos iranianos. A tensão diminui temporariamente, mas a

Revolução Iraniana de 1979 e a subida ao poder de Ayatollah Khomeini (que passara

exilado treze anos em Najaf, no sul do Iraque) desequilibram novamente a détente entre os

países fronteiriços.

1 HIRO, Dilip. The Longest War: The Iran-Iraq Military Conflict, pp. 8-18.

104

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Apesar dos esforços de Bakr e Saddam em travarem uma relação amistosa com o

novo regime, desde o início Khomeini se mostra hostil perante o governo iraquiano. O líder

iraniano, defensor de um regime formado por juristas teólogos, tinha total aversão ao

regime secular do Baath, considerado herético2. Os revolucionários de Teerã, após a

consecução do golpe interno, pretendiam em sua visão, libertar as populações reprimidas

em estados considerados corruptos (as monarquias) e ateus (seculares). O Iraque era visto

como primeiro alvo não só pelo caráter pouco islâmico de seu regime, mas também pela

opressão sofrida pela maioria xiita do país, a existência de seis santuários xiitas no país 3, e

mesmo a consideração de que o regime de Saddam era o maior opositor geopolítico à

ascensão iraniana4. O aspecto mais significativo da relação entre os países e o contexto

regional era o de que, até então, a monarquia conservadora iraniana era vista, especialmente

pelo ocidente, como a responsável pela estabilidade da região, enquanto que o Iraque

baathista, com sua retórica socialista e sua aproximação com a União Soviética e os países

do leste europeu era, até então, a maior ameaça à harmonia do Oriente Médio5. Contudo, a

revolução iraniana desequilibrou e inverteu permanentemente esse quadro, de tal forma que

a segurança das monarquias da região (pró-Estados Unidos), passou a estar em risco, e a

guerra o mecanismo viável de defesa.

Conforme será visto mais especificamente na seção sobre os xiitas, o Irã

revolucionário manterá firmes contatos com a Da’wa de Sadr, que promoverá seguidas

insurgências xiitas entre 1979 e 1980, e buscará reavivar a oposição curda. Saddam

Hussein, por seu turno, receberá ajuda de membros do antigo regime iraniano, que lhe

fornecerá informações sobre a situação de Teerã; o governo iraquiano também patrocinaria

uma tentativa de golpe militar em 07.80, mas não obtém sucesso. Nesse contexto, em que

as tensões se convertem em escaramuças diárias entre os países na fronteira, Hussein opta

pela guerra como maneira de resolver a crise, denunciando o Acordo de Algiers de 1975 e

atacando veementemente aviões iranianos em 22 de Setembro de 1980, dando início à

guerra.

b) Razões, Objetivos e Motivações para a Realização da Guerra

2 ABURISH, pp. 191.3 HIRO, pp. 28.4 KARSH, pp. 138.5 HIRO, pp. 28.

105

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O estudo das razões e motivações para a escolha da guerra por Saddam Hussein

como maneira de enfrentar o Irã é um dos temas mais abordados pelos especialistas em

Oriente Médio. Oposições históricas em termos culturais e políticos foram, em geral,

levantados como motivações clássicas para o conflito, mas a maioria dos autores se

reportou a analisar as condições materiais do conflito.

Marr afirma que a opção iraquiana pela guerra foi um ato de oportunismo, já que os

contatos iranianos anti-Khomeini informavam que o novo regime estava fraturado, sem

apoio do exército e isolado internacionalmente (em especial devido ao seqüestro da

embaixada norte-americana em Teerã, ainda em 1979). Saddam teria objetivado, então,

recuperar os territórios perdidos em 1975 e, eventualmente, derrubar o regime iraniano,

além de “liberar” o Khuzistão, região com considerável minoria árabe no Irã.6 Sluglett

aponta, além das considerações mencionadas, o desejo de Saddam em se colocar como o

líder regional mais importante do mundo árabe; o autor também acredita que a guerra era

do interesse dos Estados Unidos e das monarquias do Golfo, de tal forma que, com uma

eventual vitória, o Iraque conseguiria manter relações privilegiadas com esses países.7

Charles Tripp enxerga a situação iraniana similar à do Iraque nos primeiros anos do

segundo governo Baath, nos quais o regime ainda consolidava seu poder e fora forçado a

realizar concessões ao Irã para manter-se no poder. Para o autor, Saddam não objetivava

somente revisar somente os acordos feitos com o Irã: ele buscava manter a aliança com boa

parte dos setores sunitas de sua população, cujo apoio permitia a manutenção das redes de

clientelismo que sustentavam o regime; a guerra com o Irã também era uma maneira de

mostrar comprometimento com a causa árabe sem se enredar com a Síria; finalmente, por

colocar-se como o “protetor do Golfo”, o Iraque poderia conseguir concessões históricas do

Kuwait (principalmente no aspecto territorial), que lhe permitiriam desenvolver seus portos

na região.8

Aburish vê a querela sob uma perspectiva diferente: para ele, em termos

intelectuais, tratava-se de uma guerra pautada sob a dicotomia Estado (Iraque) versus

Religião (Irã)9. Dessa maneira, o choque representava o embate entre uma visão sobre a

6 MARR, pp. 182-183.7 SLUGLETT, pp. 257.8 TRIPP, pp. 231-232.9 ABURISH, pp. 192.

106

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modernidade e outra sobre a tradição. Karsh, sob outra perspectiva, entende que Saddam

não tinha aspirações que não a contenção da ameaça iraniana à sua própria sobrevivência

política. Assim, a decisão de ir à guerra não buscaria um “grande desígnio” como a

liderança árabe, mas sim a manutenção de seu regime e mesmo da integridade do país, dado

o risco de desintegração xiita e curda.10 Hiro atesta, da mesma forma que Karsh, que a

liderança iraquiana temia por uma guerra civil interna, mas também que o país tinha

aspirações à liderança do mundo árabe. A escolha daquela data para o ataque se dava pelo

entendimento de que, ainda antes das eleições, os EUA poderiam resolver a crise com o Irã,

e então regime revolucionário já não seria mais tão vulnerável.11

Makiya desconsidera todas as explicações clássicas para a guerra, inclusive as

baseadas na busca de expansão territorial e as motivadas pelo receio de guerra civil. Para

ele, a insurgência xiita interna não fora um produto da revolução iraniana, mas sim do

acúmulo de tensões entre xiitas e sunitas, graças ao sectarismo produzido pelo Baath; além

disso, as organizações políticas xiitas, como o Da’wa, haviam sido destruídas antes do

início da guerra. A disputa territorial não teria sido causa da guerra, em sua opinião, porque

aquele não seria o atributo fundamental da relação entre os países, como ocorreria, de

acordo com ele, entre israelenses e palestinos. Para o autor, não seria possível

“racionalizar” sobre as motivações da guerra, já que a decisão por realizá-la havia sido

fruto unicamente das percepções “megalomaníacas” de Saddam; contudo, logo em seguida

aponta o desejo de Saddam de se tornar o maior líder da história do mundo árabe como

eventual razão para suas opções políticas, incluindo-se, aí, a guerra.12 Demant afirma que as

elites árabes temiam mais o islamismo do Irã do que o imperialismo pan-arabista advogado

pelo Iraque, o que teria repercutido no apoio das monarquias da região a Saddam Hussein;

também entende que nenhum esforço diplomático foi feito para diminuir as tensões entre os

países.13 Finalmente, Peter Gran concebe a guerra como um esforço contínuo do regime de

Saddam em controlar as classes média e baixa para manter um controle social capaz de

prolongar o liberalismo econômico do regime.14

10 KARSH, pp. 147-148.11 HIRO, pp. 37-38.12 MAKIYA, pp. 262-273.13 DEMANT, pp. 119.14 GRAN, pp. 73.

107

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c) A Estratégia do Exército Iraquiano

A análise da estratégia empregada pelo exército iraquiano no início da guerra contra

o Irã também pode ser um indicativo dos objetivos de Saddam Hussein. Charles Tripp

afirma que a liderança militar buscava empreender uma guerra limitada, que funcionaria

como uma demonstração de força capaz de forçar o governo iraniano a negociar

rapidamente pelo fim das hostilidades, de forma a reconhecer a superioridade do Iraque no

equilíbrio de poder regional.15 Aburish menciona que os ataques funcionariam como uma

emulação do blitzkrieg israelense de 1967, para causar a rendição de Khomeini em poucos

dias.16 Karsh considera que a limitação dos objetivos e dos alvos do exército fora um

indicativo da relutância com que Saddam teria optado pela guerra.17

d) A Primeira Fase (1980-1981): Ofensiva Iraquiana

De fato, o exército iraquiano concentrou suas forças no sul da fronteira entre os

países, buscando primeiramente destruir os aviões iranianos para em seguida avançar com o

exército, especialmente por meio do Khuzistão, aonde Saddam considerava mais fácil

atravessar, dada a suposta aprovação pela população árabe que vivia naquela região. O

Iraque consegue vitórias sucessivas na primeira semana do conflito, mas logo pára ao se

aproximar de cidades mais relevantes daquela província iraniana. Saddam menciona

vontade de cessar-fogo, o que é rechaçado pelo Irã. Dentre as razões para a tentativa de

encerrar o conflito, estava não somente o propósito de forçar o Irã a realizar concessões,

mas também o receio de causar excessivas perdas militares, que certamente repercutiriam

negativamente na zona xiita, e a própria capacidade do exército em manter longas linhas de

comunicação dentro do território iraniano.18

Os avanços iraquianos eram cada vez mais lentos, apesar da superioridade de suas

forças armadas. Com um mês, os iranianos começaram a reverter a desvantagem, e durante

o ano de 1981 o exército do Iraque gradualmente foi forçado a recuar, ainda dentro do

15 TRIPP, pp. 232-233.16 ABURISH, pp. 195.17 KARSH, pp. 148.18 MARR, pp. 185.

108

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território iraniano. Em 05.1982, porém, o Irã conseguiu recuperar praticamente todo o seu

território, forçando o retorno iraquiano para dentro de sua fronteira.

i. Os Erros e os Problemas na Estratégia de Saddam Hussein

Vários erros estratégicos repercutiram no insucesso do exército iraquiano em atingir

os objetivos políticos que o regime almejara para iniciar a guerra. Além das peculiaridades

geográficas (com um território três vezes maior do que o Iraque) e demográficas (com uma

população quatro vezes maior do que a iraniana) do Irã, as informações dadas pelos

opositores antes do início da guerra mostraram-se infundadas, já que o exército iraniano se

mostrou mais forte, mais unido e mais bem equipado do que se previra19; o exército

iraquiano era bem menos competente do que se calculara20; o comportamento dos xiitas

dentro do território iraquiano (melhor discutido na seção sobre os xiitas) demonstrou que

Saddam teria reagido de maneira exagerada ao iniciar guerra caso realmente a tivesse

concebido para evitar guerra civil interna21; a própria tática de contenção do exército

enquanto se realizavam vitórias sucessivas também permitiu a reorganização das forças

iranianas e o início da contra-ofensiva22; isso incluía mesmo a desorganização na escolha

dos alvos durante as batalhas e na coordenação das operações terra-ar, além da excessiva

centralização das decisões, inclusive as operacionais, nas mãos de Saddam, o que repercutia

em ineficiência nos conflitos23. Makiya, porém, contesta a tese de que Saddam teria

buscado poupar o exército para diminuir perdas que poderiam gerar críticas xiitas ou

porque Iraque possuía população bastante inferior à iraniana. Em sua opinião. a

consideração de que o país era formatado pelo medo fazia com que, num confronto direto

entre soldados iraquianos e iranianos, os primeiros desertariam rapidamente, já que o

cimento social iraquiano seria, em realidade, muito frágil, repercutindo na alta

vulnerabilidade das tropas.24 Gradualmente, o exército iraquiano, com o aumento das

derrotas, teve sua moral diminuída, e então o Irã, apesar das perdas humanas superiores,

conseguiu expelir o rival de seu território, dando início à segunda fase da guerra.19 ABURISH, pp. 196.20 TRIPP, pp. 233.21 SLUGLETT, pp. 257.22 KARSH, pp. 148.23 HIRO, pp. 47.24 MAKIYA, pp. 277-278.

109

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e) A Segunda Fase: Ofensiva Iraniana (1982)

Apesar dos esforços de Saddam Hussein em causar um cessar-fogo (inclusive com o

patrocínio de um ato terrorista, em 06.1982, contra o embaixador israelense na Inglaterra,

com o objetivo de, com a esperada retaliação de Israel contra os palestinos no Líbano, parar

a guerra para o combate aos “sionistas”25), o Irã mantém sua ofensiva mesmo após a

retirada do exército iraquiano para dentro de seu próprio território. Apesar de esforços de

mediação de grupos externos, como o Conselho de Cooperação do Golfo, Khomeini afirma

que a guerra somente cessaria após o pagamento de indenizações pelo Iraque no valor de

150 bilhões de dólares26, o que é rejeitado por Saddam Hussein. A partir da segunda metade

de 1982, o exército iraniano avançaria para dentro do território iraquiano; a tática iraniana

de atacar as forças iraquianas com ondas humanas continua. O objetivo estratégico era o de

cortar a linha de comunicações entre Basra e Bagdá, para então avançar até a capital

iraquiana e derrubar o presidente iraquiano.27 A decisão iraniana de continuar a guerra

representou uma vitória da linha-dura interna, que acreditava poder usar os campos

iraquianos da região fronteiriça como fonte de barganha28. A razão principal vista pelos

autores para a continuidade da guerra era, no entanto, o receio de que o fim da mesma

repercutiria na perda da coesão interna, o que poderia levar a uma guerra civil e mesmo ao

fim do regime revolucionário29. Desde o início da guerra, Khomeini havia conseguido

mobilizar parcelas cada vez maiores da sociedade, enquanto eliminava seus oponentes

internos e diminuía as lutas de poder palacianas. Com a continuidade do conflito, poderia

manter o controle sobre a população, enquanto desestabilizava o inimigo.

f) O Impasse (1983-1986)

Apesar das vitórias iniciais iranianas, logo a defesa montada pelo exército iraquiano

se mostrou um adversário difícil de ser superado. O quadro se tornou semelhante ao que

25 ABURISH, pp. 211.26 KARSH, pp. 157.27 TRIPP, pp. 236.28 HIRO, pp. 86.29 KARSH, pp. 149.

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ocorrera ainda no Irã entre 1981-1982, com conquistas incapazes de alterar dramaticamente

o curso da disputa. Saddam Hussein buscava mobilizar cada vez mais apoio externo e

empréstimos para alimentar a máquina de guerra; o Irã conseguia se manter sem,

praticamente, nenhum apoio estrangeiro, por meio de grande austeridade econômica e

manutenção das exportações, já que o Iraque havia sido pouco eficiente em destruir os

campos de petróleo iranianos. Os esforços de paz por parte de países da região, como a

Arábia Saudita (que propõe um plano de indenização ao Irã na ordem de 70 bilhões de

dólares, mas aquele o rejeita)30, e por organizações internacionais, como as Nações Unidas,

são rechaçados pelos iranianos, apesar da continuidade do impasse.

Um aspecto importante do conflito nesse momento é o de que os soldados

iraquianos, quando passaram a lutar dentro de seu próprio território, ganharam moral

elevada31. O início do uso de armas químicas pelo exército iraquiano, a partir de 1984,32

também foi um dos responsáveis pela contenção das tropas iranianas, que passaram a lutar

de maneira mais cautelosa. Para Aburish, a falta de um apoio decisivo externo a um dos

lados (apesar da tácita preferência da maioria dos países por uma vitória iraquiana,

conforme será mais bem analisado na seção de política externa) foi um dos principais

motivos para o impasse do período, apesar da superioridade do exército iraquiano e das

táticas de Saddam em cooptar elementos anti-Khomeini, especialmente dentro das forças

armadas iranianas.33 Makiya vê o impasse como conjuntural àquela guerra: a falta de

estratégia teria sido o padrão da disputa entre ambos os países, com nenhum lado sendo

capaz de precisar as fraquezas e forças do adversário, afora a inabilidade das tropas em

lidar com os equipamentos utilizados.34 Sluglett vê a pacificação dos mercados de petróleo

mundiais durante a guerra (após a extremamente tensa década de 70, com aumentos

contínuos dos preços daquele produto) como uma motivação para que não houvesse

grandes pressões para o fim do conflito e, portanto, a ajuda dos países ocidentais e árabes

não se tornara decisiva até a segunda metade da década.35

g) A Internacionalização da Guerra e a Vitória Iraquiana (1986-1988)30 HIRO, pp. 91.31 MARR, pp. 186.32 Idem, ibidem.33 ABURISH, pp. 227-231.34 MAKIYA, pp. 280-281.35 SLUGLETT, pp. 265-266.

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Desde 1984, Saddam Hussein busca mudar a tática de combate, de forma a trazer

para a arena de disputa países do Ocidente e da região que apoiavam marginalmente o

Iraque. Com esse propósito e o de afetar mais decisivamente as exportações de petróleo

iranianas36 que a força aérea iraquiana passa a atacar os navios petroleiros iranianos no

Golfo, dando início ao que ficaria conhecido como “Guerra dos Petroleiros”. Como o

Iraque exportava seu petróleo por meio da Turquia, o Irã retaliou por meio de ataques a

navios de aliados, notadamente o Kuwait, que então pediu proteção aos EUA e URSS.37

Uma bem sucedida ofensiva iraniana, em 02.1986, consegue conquistar Fao, imprimindo

aos iraquianos a maior derrota da guerra. Contudo, com o crescente apoio dos Estados

Unidos, o exército de Saddam consegue retomar o controle da cidade em 04.1988. 38 Outra

tática empregada pela liderança militar foi o que se denominou “Guerra das Cidades”, na

qual o Iraque atacava cidades importantes do Irã (inclusive sua capital) com mísseis

balísticos, com o propósito de causar uma comoção dentro do território persa capaz de

forçar Khomeini a um cessar fogo39. Com o aumento da repercussão internacional sobre o

uso iraquiano de armas químicas (especialmente no combate às tropas inimigas no

Curdistão, conforme será visto na seção sobre os curdos), a reação cada vez mais

atemorizada da população civil iraniana foi, de fato, um forte componente para o

enfraquecimento do exército e de Khomeini40. O exército iraquiano passou a colecionar

vitórias, penetrando inclusive no território iraniano. O Irã, com muitos problemas para

convocar voluntários para o front41, com inferioridade cada vez mais acentuada com relação

ao equipamento militar iraquiano (já que este contava com envio de armas de 29 países,

embora a maioria declarasse neutralidade)42, e com uma população civil cada vez mais

descontente com a guerra (dado o grande número de mortos e a crise econômica)43, passou

a considerar um cessar-fogo, que viria em 17 de Julho de 1988, mas sem a conclusão de um

processo de paz que reajustasse as fronteiras entre os países. Apesar dessa indefinição, que

36 Idem, pp. 266.37 ABURISH, pp. 245.38 Idem, pp. 248.39 KARSH, pp. 174.40 MARR, pp. 191.41 HIRO, pp. 244.42 ABURISH, pp. 230.43 KARSH, pp. 175.

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manteve o Shatt al-Arab fechado para a navegação, Saddam Hussein, pelo contexto da

aceitação de paz por Khomeini, declarou-se vencedor da guerra, e buscou, então capitalizar

ao máximo tal conquista com a população iraquiana.

2. A Política Externa

O Iraque, que em fins da década de 70 e início da década de 80 almejava uma

política externa cada vez mais independente, capaz de influenciar as políticas tanto da

União Soviética como dos Estados Unidos44, torna-se cada vez mais dependente das

grandes potências ocidentais e dos países árabes conforme a guerra avança sem vencedores.

Com o prolongamento da disputa do Irã e a continuidade dos ataques dentro do território

iraquiano, Saddam Hussein deixa escapar um dos maiores objetivos nas relações

internacionais: a liderança do Movimento dos Não-Alinhados. Em 1979, o país participa

pela primeira vez do encontro45, e neste havia sido decidido que Bagdá seria a cidade que

abrigaria a sétima edição da reunião do grupo de quase cem países. Contudo, a conferência,

que seria realizada em 1982 (e permitiria a Saddam liderar e representar o movimento por

três anos), acabou sendo transferida para a Índia, e então o país viu diminuir sua influência

de maneira definitiva nos rumos dos Não-Alinhados. No final da década, apesar de, com a

ajuda das duas superpotências, ter vencido a guerra (além de ter conseguido expandir a sua

exportação de petróleo e adquirir equipamentos militares avançados), havia contraído

empréstimos bilionários com vários países, o que criou uma série de restrições à soberania

do país.

a) A Relação com os Países Árabes

Antes do início da guerra, o país gozava de relações promissoras com a maioria dos

países árabes da região. Logo em 02.1980, Saddam Hussein promove a assinatura – em

parceria com os países árabes que participaram das conferências que promovera em 1978-9

para repudiar a adesão egípcia aos acordos com Israel – de uma Carta Árabe, um manifesto

rejeitando a presença de bases soviéticas e norte-americanas na região, rechaçando conflitos

44 ABURISH, pp. 119.45 KARSH, pp. 130.

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entre países árabes e promovendo a solidariedade árabe em caso de guerras com países não-

árabes.46 O documento era o símbolo mais evidente da tentativa iraquiana de se colocar

como líder do mundo árabe47, idéia que, em geral, não mudaria com o decorrer do embate

com o Irã.

Jordânia e, principalmente, Arábia Saudita e Kuwait foram os principais

colaboradores ao regime iraquiano em termos de empréstimos financeiros durante a guerra,

além de serviços de inteligência e armamentos. Ao final da guerra, as transferências árabes

ultrapassariam 50 bilhões de dólares, além da produção de petróleo na zona neutra entre os

países (ao norte do Kuwait), com o envio das receitas obtidas para o Iraque. 48 Karsh

considera que o apoio dado por esses países é explicado tanto pelos crescentes distúrbios

internos causados pelas minorias xiitas, que atendiam aos apelos subversivos de Khomeini,

como pela própria possibilidade de, com a guerra, os dois países mais poderosos da região

enfraquecerem e, dessa forma, permitirem, políticas externas mais autônomas pelos países

da região.49

De fato, em 05.1981, os países do Golfo Pérsico (excetuando-se os dois

beligerantes) formaram o Conselho de Cooperação do Golfo, com o propósito declarado de

coordenar a segurança interna e as economias dos estados, mas com os objetivos tácitos de

demonstrar neutralidade no conflito para tentar apaziguar as críticas iranianas50 e de

desfrutar de relações privilegiadas com o ocidente51. Conseqüentemente, o espaço de

manobra iraquiano se tornava menor, forçando-o a procurar mais parcerias para financiar e

alimentar sua máquina de guerra.52

O Egito surge como uma dessas alternativas, apesar de sua expulsão da Liga Árabe

ainda em 1978. Com o afastamento da URSS no princípio da guerra, o Iraque se viu

forçado a comercializar com países que dispusessem de material de reposição de origem

soviética, a fim de substituir os equipamentos perdidos no front.53 Em troca, Saddam

negociaria a reentrada do Egito na Liga Árabe, o que ocorreria em Novembro de 1987. 54 As

46 MARR, pp. 169.47 TRIPP, pp. 230-231.48 KARSH, pp. 158.49 KARSH, pp. 158.50 HIRO, pp. 78.51 ABURISH, pp. 206.52 MARR, pp. 194.53 SLUGLETT, pp. 261.54 KARSH, pp. 162.

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relações com a Turquia melhorariam, graças ao receio turco de insurgências

fundamentalistas e curdas, que levariam a operações conjuntas de ataques a curdos

instalados na fronteira entre os países.55 Em oposição a isso, a relação com a Síria, que

apoiara o Irã, estava em seu nível mais hostil em anos, o que repercutiria no fechamento da

fronteira entre os países e na obstrução síria dos oleodutos iraquianos que passavam pela

região, reduzindo temporariamente as receitas iraquianas pela metade.56

b) Relação com a Europa e a União Soviética

A participação de vários dos países europeus no conflito se deu especialmente por

meio do comércio ilegal de armas (inclusive químicas e biológicas)57 para ambos os lados

da guerra, apesar das declarações de repúdio à guerra (o que gerou seguidos escândalos).58

O principal objetivo iraquiano era o de reduzir a dependência bélica com relação aos

soviéticos59 e aumentar a tecnologia de seu equipamento militar. A França fora seu

principal parceiro durante a guerra; não só fornecera reatores nucleares para o Iraque

(destruídos por Israel em 1981), mas também aviões de última geração60 e empréstimos

financeiros, que tornariam o regime iraquiano ao mesmo tempo fortalecido militarmente e

dependente economicamente dos europeus.

A relação com a União Soviética, por sua vez, passaria por um revés inicial, devido

à declaração de guerra por parte do Iraque sem nenhuma menção prévia a Moscou, o que

significaria o desrespeito ao acordo de amizade e cooperação assinado ainda em 1972. Nos

dois primeiros anos da guerra, os soviéticos buscariam manter a neutralidade, recusando-se

a comercializar armas com os iraquianos. Entretanto, após as ofensivas iranianas que

expulsaram as tropas de Saddam Hussein do Khuzistão e penetraram no território

iraquiano, o Kremlin decidiu voltar atrás e respeitar o acordo, além de promover outros,

ampliando o envio de material bélico para o Iraque.61 Há se de ressaltar, porém, que a

55 SLUGLETT, pp. 263.56 MARR, pp. 194-195.57 TRIPP, pp. 238. Para maior detalhamento sobre o funcionamento das redes de busca por armamentos não-convencionais pela inteligência iraquiana na Europa e nos Estados Unidos, cf. Aburish, pp. 240-244.58 HIRO, pp. 1-2.59 MARR, pp. 196.60 ABURISH, pp. 204; 230.61 HIRO, pp. 121-122.

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URSS, por meio de contatos com a Coréia do Norte, também enviou armas ao Irã,62

realizando o mesmo jogo duplo promovido por diversos países, dentre eles os Estados

Unidos. Até o final da guerra, a União Soviética continuaria a armar o exército iraquiano,

além de procurar manter-se no Golfo para realizar um contra-peso aos EUA.

c) Relações com os Estados Unidos

Embora o Iraque continuasse na lista de países terroristas da inteligência norte-

americana até 02.198263, as relações comerciais entre os países já haviam avançado

bastante durante a década de 70, levando à criação de uma seção encarregada de cuidar dos

interesses dos EUA na embaixada da Bélgica em Bagdá. Aburish64 afirma que a cooperação

diplomática entre os países teria começado ainda antes da guerra, contemporaneamente às

críticas de Saddam à URSS, à aproximação cada vez maior do Iraque com as monarquias

conservadoras do Golfo e à crise dos reféns da embaixada norte-americana em Bagdá.

Marr65 aponta o início das dificuldades na guerra com Irã como o fator principal para que,

logo em 1981, Saddam realizasse esforços maiores para melhorar as relações com os EUA.

Paralelamente, o discurso anti-Israel, fortemente presente mesmo durante a mudança

pragmática da política externa iraquiana a partir da segunda metade da década de 70,

passou a ser cada vez menos utilizado66, mesmo após o ataque israelense aos reatores

nucleares iraquianos em 1981. Com isso, o apoio do governo e dos meios de comunicação

estadunidenses ao Iraque se tornou cada vez mais pronunciado. Os EUA passaram a enviar

créditos alimentícios, aviões e, com as derrotas iraquianas em 1982, os norte-americanos

passaram a ajudar ostensivamente a liderança militar iraquiana com informações de

inteligência sobre a estratégia dos combatentes iranianos.67 Em 1983, lançaram a “Operação

Estanque”, destinada a evitar o envio de armas por países aliados (principalmente Israel) ao

Irã68, o que contribuiria para isolar internacionalmente ainda mais o país persa.

62 Idem, pp. 123.63 KARSH, pp. 159.64 ABURISH, pp. 187-188.65 MARR, pp. 195.66 SLUGLETT, pp. 261-262.67 ABURISH, pp. 210.68 MARR, pp. 188.

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Embora o país, a partir de 1984, passasse a enviar armas ao Iraque69, a relação com

os iraquianos ainda era muito frágil. Os EUA mantinham sua declaração de neutralidade na

guerra70, sem contribuir decisivamente para a resolução do conflito; a relação deteriorou-se

bastante com a descoberta, em 1986, do envio secreto de armas pelos norte-americanos ao

Irã em troca da soltura de reféns norte-americanos capturados por xiitas pró-Khomeini em

Beirute, no que ficou conhecido como o caso Irã-Contras.71 A repercussão do caso foi

altamente negativa para o governo Reagan e para a visão da comunidade internacional

sobre os Estados Unidos72.

Com a “Guerra dos Petroleiros”, os Estados Unidos se envolveram definitivamente

na guerra, com o argumento de que o Irã estava pondo em risco a integridade de seus

aliados principais na região, o Kuwait e a Arábia Saudita. Os ataques da frota norte-

americana destruíram um terço da marinha iraniana73; o apoio militar e logístico continuou,

e por meio deles o Iraque conseguiu promover as ofensivas que, em 1988, levaram ao final

da guerra.74

3. Política Doméstica

A subida de Saddam Hussein ao poder e os desenvolvimentos da guerra tiveram

importantes implicações na configuração da política doméstica. Alguns esforços, ainda que

retóricos, foram feitos para tentar liberalizar a política. Contudo, os seguidos insucessos na

guerra levaram até mesmo a uma crise de legitimidade por parte de Saddam no poder,

criando pressões internas que teriam como conseqüência o aumento da centralização do

poder e da dependência de redes de clientes cada vez mais próximos da liderança política,

ao passo em que as tomadas de decisões ficaram cada vez mais nas mãos de Hussein. Os

militares, que ganhariam bastante relevância no período, questionariam a excessiva

concentração de poder nas mãos do presidente, e obteriam ganhos de autonomia para a

condução das estratégias de guerra. As oposições curda e xiita, enfraquecidas pela política

repressora do governo na década de 70, tentariam, cada uma à sua maneira, se reorganizar. 69 Idem, ibidem70 ABURISH, pp. 225.71 ABURISH, pp. 247.72 HIRO, pp. 219.73 ABURISH, pp. 248.74 TRIPP, pp. 240.

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Entretanto, a violência, especialmente perante os curdos, seria a maneira de se relacionar

travada pelo Estado, repercutindo em grandes perdas humanas.

a) A Assembléia Nacional75

Desde 1958, em que, com o fim da monarquia extinguiu-se o parlamento, o Iraque

havia ficado sem um organismo de representação política. Na constituição provisória

promovida pelo Baath em 1970 havia sido anunciada a previsão de criação de uma

Assembléia Nacional. Contudo, somente após a subida ao poder de Saddam Hussein é que

ela viria a existir, em meio a um clima interno instável devido às perseguições aos xiitas.

Em Junho de 1980, ocorreriam as primeiras eleições, que elegeriam 250 candidatos para

um mandato de quatro anos. Todos os iraquianos com mais de dezoito anos poderiam

votar76, mas nem todos, apesar das anistias concedidas pelo novo governo, poderiam

concorrer e, principalmente, se eleger. Isso porque um comitê eleitoral analisava a

candidatura dos concorrentes, e utilizavam três critérios para a aprovação da participação

na eleição77: a crença na revolução baathista, a não participação em classes vistas como

apoiadoras do “imperialismo” (como feudalistas, financistas e capitalistas em geral), e a

cidadania “completa” (estipulada em termos da nacionalidade iraquiana, com pai iraquiano

e sem envolvimento conjugal com estrangeiros, principalmente persas). Outras medidas

tacitamente visavam evitar a participação de militares; era permitida a participação de

candidatos “independentes” (mesmo curdos e comunistas), com o objetivo de demonstrar a

aceitação do Baath em todos os círculos sociais.78

Os candidatos tinham todas as origens sociais, étnicas e sectárias; o perfil dos

eleitos, contudo, era similar: membros do partido, jovens, com curso superior, em geral

com poucas posses e com grande ativismo em sindicatos, corporações e organizações de

moradia; vários eram professores (principal classe afiliada ao Baath).79 A assembléia,

embora dotada de várias competências (como redação e proposição de leis, aprovação de

75 Para uma análise minuciosa sobre o funcionamento e os resultados das eleições para a Assembléia Nacional de 1980, cf. BARAM, Amatzia. The June 1980 Elections to the National Assembly in Iraq: An Experiment in Controlled Democracy, pp. 391-412.76 MARR, pp. 180.77 BARAM, The June 1980 Elections, pp. 395-397.78 Idem, ibidem.79 Idem, pp.404-408; 410-411.

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orçamentos e planos de desenvolvimento, aprovação de acordos internacionais e debates

sobre atuações de ministros), tinha suas decisões somente com força de consulta. O

Conselho do Comando Revolucionário ficava, na prática acima dele e, com alterações na

legislação feitas pelo próprio Saddam, a presidência também ficaria imune às deliberações

do CCR.80

Para Marr, a assembléia funcionou como uma válvula de escape e uma maneira de

distração para os setores descontentes da população iraquiana, enquanto o regime se

tornava cada vez mais personalizado.81 Tripp considera que a assembléia fora criada com o

propósito de passar aos cidadãos a ilusória idéia de que supervisionavam o governo, além

de servir como um símbolo de união nacional e como parte do projeto de culto de

personalidade a Saddam Hussein; na prática, essa e outras instituições atuavam como um

importante mecanismo de patronagem, dada a eleição de representantes de todos os lugares

do país e, com isso, do aumento do controle estatal sobre tais regiões.82 Karsh, além de

destacar a grande repercussão internacional das eleições (com reportagens de vários meios

de comunicação ocidentais), enfatiza a relevância da assembléia como parte do plano de

disseminação do culto de personalidade à figura do líder, numa tentativa de alterar a relação

dele com a população de medo para adoração.83 Sluglett aponta que o único papel efetivo

da assembléia era o de investigar a atuação dos ministros, e a sua continuidade no decorrer

da década como um indicativo de abertura política que viabilizasse a fracassada tentativa de

liberalização econômica84 (discutida mais adiante). Baram insere a criação daquele

organismo no contexto da crise interna ocorrida no país em razão dos expurgos partidários

promovidos por Saddam, que teria forçado a criação de mecanismos que ampliassem a

aceitação do novo presidente perante a população e vê a instituição como uma maneira de

controlar os novos escalões superiores do Baath e de premiar, por meio das eleições,

correligionários mais próximos.85 Finalmente, Aburish considera a criação da Assembléia

Nacional como o primeiro esforço sério rumo à democracia desde a democracia,

principalmente por assegurar a proporção de cerca de 40 por cento das cadeiras para os

xiitas; todavia, critica a pouca profundidade do compromisso de Saddam com a 80 Idem, pp. 397-398.81 MARR, pp. 181.82 TRIPP, pp. 226.83 KARSH, pp. 120-121.84 SLUGLETT, pp. 276-277.85 BARAM, pp. 393; 398; 412.

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liberalização, conforme outros anúncios (como a legalização dos partidos), não eram

cumpridos.86

b) A Centralização do Regime

A chegada de Saddam Hussein ao poder transformou mais profundamente a

dinâmica política do regime, privilegiando cada vez mais familiares no topo da cadeia de

comando e colocando-se como o único tomador de decisões legítimas, ao mesmo tempo em

que ampliava os setores de segurança e a estrutura do partido. Mas este tinha sua relevância

cada vez mais reduzida, tanto como fonte ideológica como em termos da formulação de

decisões políticas minimamente relevantes.

Com as seguidas derrotas iraquianas em 1982, sua legitimidade foi posta em

cheque; o Irã pressionava para que em caso de negociações, Saddam Hussein estivesse fora

da presidência. É convocada uma reunião especial com as Forças Armadas, o Comando

Regional do Baath e o CCR, sem a presença de Saddam; o grupo oferece um cessar-fogo ao

Irã, que rejeita a proposta. Para Karsh, essa foi uma tentativa de Saddam em implicar a

cúpula do poder iraquiano com a sua política, com o tácito entendimento de que, caso o Irã

ganhasse a guerra, todo o governo, e não só o líder, seria removido.87 Após o incidente,

Saddam aceleraria o seu fortalecimento no poder, com a remoção de oito ministros e oito

membros do CCR.88

A “Saddamização” do regime implicaria na formação de círculos de poder formados

pelos associados mais próximos do líder, que se associavam por meio de parentesco, uma

história de confiança pessoal e um mesmo local de origem, Tikrit. Formava-se um Estado

cada vez mais patriarcal e personalizado, com redes de alianças e privilégios, altamente

impermeável ao mundo externo.89 Do ponto de vista demográfico, os escalões

intermediários do partido e do Estado eram representados por membros de todo o país,

tendo funções específicas: a elite do norte do país governa e gerencia, integrando-se

completamente no cenário político de Bagdá e formando a segurança interna, a burocracia

do partido e compondo os ministérios e os setores econômicos; a elite do sul media as

86 ABURISH, pp. 182-183; 202.87 KARSH, pp. 165.88 Idem, pp. 166.89 TRIPP, pp. 224-225.

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relações do governo central com as populações locais, estando atrelada ao CCR e às

organizações populares.90 O aumento da participação de sua família nos altos escalões do

poder resultou no aumento substancial da corrupção, que não era controlada, de acordo com

Aburish, por aquela ter se configurado como a grande base de poder do regime.91 Tripp92

enfatiza a ambivalência desse formato de estado: por um lado, se desenvolvia uma

complexa burocracia, que tornava aos indivíduos a idéia de se compreender a estrutura do

país como sendo uma tarefa complicada, ao mesmo tempo em que se tornavam altamente

vulneráveis por serem peças facilmente identificáveis dentro desse sistema organizado e

disciplinado; por outro lado, o círculo de poder efetivo ao redor de Saddam era

extremamente restrito, e marcado pelo descolamento perante a outra realidade.

O partido, por sua vez, se expandira enormemente no período, abandonando de

maneira definitiva a sua concepção emprestada do leninismo, calcada em grande coesão

ideológica e no centralismo democrático da vanguarda revolucionária. Ao se tornar um

partido de massas, ampliou ainda mais sua penetração na população, alcançando um

número de apoiadores próximo de dois milhões em meados da década de 80, o que

significava que um em cada sete iraquianos participava, de alguma maneira, das atividades

do partido, o que tornava o Iraque um “Estado de informantes”93. Contudo, o aumento do

tamanho do Baath não representou o ganho de sua relevância dentro dos círculos mais

poderosos; embora a filiação ao Baath passasse a significar cada vez mais uma

possibilidade de ascensão social e profissional94, o seu significado verdadeiramente político

foi paulatinamente sendo esquecido pela liderança do estado. As formulações, mesmo as de

cunho ideológico, passaram a ser controladas quase que exclusivamente por Saddam

Hussein, que passou a empreender um substantivo culto à sua personalidade (conforme será

visto mais adiante).

Assim, a base de poder do regime passou a ser (além das redes de clientela e de clãs

familiares), mais do que nunca, as forças de segurança, que continuaram a se expandir

vigorosamente. Quatro organizações passaram a cuidar da segurança pessoal de Saddam;

mais de quinze por cento de todos os funcionários públicos se responsabilizavam pelo setor

90 BARAM, The June 1980 Elections, pp. 408-410.91 ABURISH, pp. 252.92 TRIPP, pp. 224.93 KARSH, pp. 178.94 MARR, pp. 210.

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de segurança.95 Como aponta Sluglett, o Estado continuou a basear sua intermediação com

a população por meio dos vários instrumentos de coerção96, perpetuando a banalização da

violência no cotidiano iraquiano.

c) A Relação com os Militares

Com a guerra, os militares voltaram a ter, como na década de 60, um grande papel

político no Estado iraquiano, seja pela própria militarização da política, seja pelos gastos

crescentes do governo nesse setor.97 Para evitar que esse aumento de relevância repercutisse

na ameaça à sua continuidade no poder, Hussein empreendeu diversas táticas. Como parte

do processo de centralização das funções do Estado, a definição das estratégias militares no

front necessariamente passava por Saddam Hussein, que a comunicava para membros do

exército que fossem do partido, para que então a mensagem fosse encaminhada para as

tropas.98 Mesmo em ações militares simples, a rotina era seguida; diversos autores

consideram que a burocratização das decisões do exército foi uma das maiores responsáveis

pelo fracasso das tropas iraquianas no início da guerra, além dos equívocos na própria

escolha das estratégias por Saddam.99 Críticas à condução da guerra por Saddam levavam à

execução de centenas de oficiais; em contrapartida, conferia honrarias a soldados que

praticassem atos de heroísmo para evitar a desmoralização das tropas tanto pelas derrotas

como pelos seus atos repressivos.100

Todavia, a derrota iraquiana em Fao no início de 1986 levou a uma crise mais grave

com os militares, que passaram a exigir mais firmemente a autonomia de suas ações no

front para garantir o sucesso nas batalhas, o que se tornara inviável com a continuidade da

centralização do controle das estratégias por Saddam. O presidente, notando a solidariedade

a esta posição em diversos setores das forças armadas101, cedeu, permitindo a

profissionalização do exército. Para Karsh, este evento foi um dos responsáveis pela virada

95 ABURISH, pp. 208.96 SLUGLETT, pp. 276.97 Idem, ibidem.98 ABURISH, pp. 234.99 MAKIYA, pp. 276-278.100 KARSH, pp. 191.101 TRIPP, pp. 241.

122

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na guerra a partir de 1986102, que permitiu ao comando militar conquistar vitórias

importantes, inclusive a reconquista de Fao, tendo como última conseqüência a aceitação

do cessar-fogo pelo Irã. Entretanto, Saddam ainda faria esforços para prevenir que generais

que conquistassem grandes vitórias aparecessem como heróis; constantemente rotacionava

líderes de pelotões, também para evitar a formação de ligações entre os membros de patente

superior e inferior.103 Com tudo isso, mantinha o controle sobre o exército, que não se

configurou como um potencial opositor ao regime.

d) Relação com os Xiitas

Antes do início do conflito com o Irã, a relação entre o governo e os xiitas

permaneceu tensa. Saddam Hussein, logo após assumir o poder, buscou aproximar-se

daquele segmento por meio de práticas populistas104, como a distribuição de dinheiro e

eletrodomésticos durante visitas aos vilarejos no sul do país. As insurgências promovidas

pela Da’wa e os discursos de Sadr, entretanto, aumentaram de tom, e então o governo

voltou a se utilizar de meios repressivos para lidar com a oposição. Após uma tentativa

malsucedida em assassinar o vice-primeiro ministro Tariq Aziz, Saddam publicou uma lei

punindo com a morte a filiação à Da’wa.105 Os ataques terroristas, contudo, continuaram, e

então o presidente, que até então havia evitado criar um mártir, acaba por ordenar a prisão e

a execução de Sadr e sua irmã, além de dezenas de outros correligionários. Em seguida, o

regime deportaria muitos iraquianos de “origem persa” (o número chegou a 200 mil ao final

da guerra)106, desmobilizando boa parte da oposição xiita ao regime, que passou a ser

organizar no exterior, principalmente no próprio Irã.

i. O SAIRI

A Assembléia Suprema para a Revolução Islâmica no Iraque (SAIRI, em inglês), foi

o principal grupo oposicionista xiita montado contra o governo de Saddam Hussein. O

102 KARSH, pp. 192.103 SLUGLETT, pp. 273.104 KARSH, pp. 144.105 ABURISH, pp. 185.106 MARR, pp. 198.

123

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grupo era formado por diferentes grupos, como o Da’wa, a Organização para a Ação

Islâmica e a família Hakim, uma das mais importantes do Iraque xiita, e que tinha o

controle efetivo da organização, e direcionava os seus esforços rumo à criação de um

governo de “juristas teólogos”, num molde similar ao do regime iraniano.107 Entretanto, o

grupo foi incapaz de mobilizar um grande levante popular ou qualquer ato que pusesse em

risco o domínio de Saddam.

Enquanto isso, o presidente iraquiano alternava discursos em que buscava afirmar

seu compromisso e sua crença para com o Islã com outros que buscavam enfatizar o caráter

árabe do xiismo iraquiano, buscando criar uma fissura entre os soldados xiitas iraquianos e

seus opositores iranianos.108 Ao mesmo tempo, ampliava a vigilância sobre as atividades

dos clérigos nas cidades sagradas e tentava torná-los cada vez mais dependentes do estado,

enquanto perseguia xiitas de grupos oposicionistas importantes.

ii. Razões para o Fracasso da Oposição Xiita

O insucesso dos xiitas (principalmente seu setor mais organizado, o SAIRI) em

mobilizar seus correligionários durante a guerra – mesmo com o substancial patrocínio do

Irã – é um dos temas mais analisados pelos estudiosos do período. Aburish considera que os

grupos em geral não tinham apoio popular, além de concordarem somente em termos da

oposição à guerra; além disso, falharam primordialmente em estabelecer conexões com

setores do exército, o grupo político mais forte naquele momento.109 Sluglett aponta que,

embora o regime iraquiano fosse odiado pela maioria dos xiitas, o Irã não conseguiu criar

grandes tensões dentro do Iraque e falhou mesmo em gerar um grande número de deserções

por parte dos soldados xiitas pela consideração de que a idéia um eventual regime

teocrático nos moldes iranianos seria ainda pior do que o Estado autocrático baathista de

acordo com a perspectiva populacional.110 Karsh aponta que a subversividade em si dos

xiitas em geral era menor do que Saddam calculara antes da guerra e as organizações

clandestinas gostariam; isso fez com que a população mantivesse seus laços em termos da

etnia árabe; além disso, o presidente iraquiano teria dedicado boa parte de seus gastos

107 Idem, ibidem.108 TRIPP, pp. 234.109 ABURISH, pp. 198-199; 239.110 SLUGLETT, pp. 258.

124

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orçamentários para a zona xiita, o que ajudou a apaziguar os descontentamentos e a noção

de sectarismo sunita.111 Makiya entende a continuidade da participação dos iraquianos na

guerra como uma exemplificação de como o medo, que seria o grande aglutinador social do

Iraque, faz a população perder o sentido de si mesma e de suas identidades; a guerra seria,

nesse sentido, uma espécie de canalização da violência que molda internamente o país.112

Tripp faz colocações similares às de alguns dos autores anteriores: é difícil crer que as

identidades promovidas pelo regime tenham sido as responsáveis pelo comportamento da

população perante o Irã; o mais provável é que, para a participação na guerra ou a não

mobilização contra o regime tenham entrado cálculos de pragmatismo, como a pura

necessidade de defesa contra um inimigo externo ou o receio de que a inação repercutisse

em hostilidades por parte do Estado.113 Por fim, Dilip Hiro considera que três fatores,

relativamente conectados entre si, fizeram com que os xiitas permanecessem leais a

Saddam Hussein: a divisão em termos de clãs e tribos, que impediu o desenvolvimento de

uma identidade sectária; a precedência do sentimento nacionalista sobre o sectarismo

conforme o Irã avançava sobre o território iraquiano; e o sentimento comum entre xiitas e

sunitas de que uma vitória iraniana implicaria na interrupção violenta de suas vidas em caso

de uma vitória de Khomeini.114

e) Relação com os Curdos

Com a revolução iraniana, a família Barzani, que se encontrava exilada no território

persa, foi permitida a retornar para o Curdistão, violando o Acordo de Algiers. Desde então,

o novo regime de Teerã buscou alimentar o Partido Democrático Curdo (PDC) em troca de

apoio ao esmagamento do partido homônimo no Irã115, o que preocupava Jalal Talabani, da

União Patriótica do Curdistão (UPC)116. Enquanto isso, o regime continuava a reprimir

controlar e reprimir fortemente a região, impedindo o fortalecimento de uma articulação

capaz de por em risco a integridade do regime baathista durante a guerra. Para Karsh, a

fragmentação tribal e lingüística da comunidade curda e a inimizade entre os dois maiores 111 KARSH, pp. 167-168.112 MAKIYA, pp. 274-276.113 TRIPP, 247.114 HIRO, pp. 257.115 MARR, pp. 199.116 SLUGLETT, pp. 263.

125

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grupos oposicionistas locais impediram que a ameaça curda se tornasse atentatória ao

governo.117 Com a transformação do apoio financeiro iraniano com o PDC em aliança

militar (levando a conquistas de algumas cidades na região em 1983 e, com isso, criando

um segundo front contra o exército iraquiano)118, Saddam buscou, primeiramente,

aproximar-se informalmente com os turcos, que ganharam, então, legitimidade para

realizarem incursões no norte do país para combater os curdos119; com o aumento das

tensões, o presidente iraquiano resolveu se envolver mais diretamente na dinâmica da

região, mantendo contatos com Talabani (que se rejeitava a combater os curdos iranianos

para ganhar apoio de Teerã) e ampliando o clientelismo do governo da região, buscando

envolver o setor urbano curdo na burocracia do estado e, com isso, aumentando as

clivagens entre os grupos da região, inclusive comunistas, que buscavam rearticular sua

oposição por meio da guerrilha.120

Saddam Hussein prometera a Talabani eleições livres e democráticas na região, o

que tornaria o Curdistão uma região autônoma. Em troca, a UPC formaria um exército de

40 mil homens para combater o Irã.121 Entretanto, após dois anos, nada havia sido feito, e

então Talabani resolve aliar-se aos Barzanis e promover um conflito de larga escala contra

o regime. O governo forma milícias curdas para tentar combater os insurgentes, mas não

obtém sucesso. Em 1987, a coalizão curda envolvia não somente os dois maiores partidos,

mas também os socialistas, os comunistas e o Movimento Democrático Assírio, além do

apoio iraniano, o que permitia o controle de quase toda a fronteira iraquiana ao norte do

país.122

i. A Operação al-Anfal

Em meio a essa crise, o líder iraquiano nomeia seu primo Ali al-Majid (conhecido

posteriormente como Ali Químico) para o comando das forças na região, dando-lhe poder

absoluto para controlar as insurgências.123 A intenção de Majid era a de despopular a área,

117 KARSH, pp. 168.118 MARR, pp. 199.119 ABURISH, pp. 239.120 TRIPP, pp. 229; 234.121 KARSH, pp. 168.122 MARR, pp. 200.123 ABURISH, pp. 248.

126

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especialmente as fronteiras, de modo a evitar que os habitantes da região apoiassem os

guerrilheiros124, além de destruir as estruturas de defesa da região, principalmente os

vilarejos.125 Tripp insere a decisão de Saddam em combater os curdos com o máximo de

força no contexto do enfraquecimento de seu poder em 1986 (após os entreveros com os

militares).126 Tanto iraquianos como iranianos usaram armas químicas na região, mas os

últimos o faziam em escala muito menor; apesar disso, continuaram a vencer as batalhas

em 1987.127 Isso levou a um aumento do nível dos ataques iraquianos, que passou a não

poupar mais crianças e mulheres. Cerca de quinhentos mil curdos foram movidos para

campos de concentração; 1.5 milhão haviam fugido para o sul ou para a Turquia; quatro mil

vilarejos foram destruídos.128 O nível de atrocidades ficou conhecido após a divulgação,

pela imprensa iraniana, dos ataques iraquianos a Halabja (03.1988), que resultaram na

morte de cerca de cinco mil civis com armas químicas. Para Tripp, a devastação causada

pelo regime, que resultou em grande número de mortos, era uma demonstração de força, ao

final da guerra, a todos aqueles que desviassem dos padrões de conduta estabelecidos por

Saddam Hussein.129

Karsh afirma que Hussein tinha muito mais cuidado em usar armas químicas contra

o Irã do que contra sua própria população, sob o argumento de que o advento de tais

instrumentos contra Teerã poderia desagradar os apoiadores árabes de Saddam e a União

Soviética, além do próprio receio de que o Irã contra-atacasse da mesma maneira.130 Marr

argumenta que o uso de armas químicas foi indiscriminado, tanto contra a população civil,

como contra as tropas iranianas, e que, embora o Ocidente tivesse tomado conhecimento

das operações durante todo o tempo, não houve protestos à época.131 Sluglett entende que o

quietismo ocidental se dava pelo receio de que as condenações aos ataques seriam

negativas para os negócios.132 Aburish, corroborando a tese anterior, afirma que, no

momento da repercussão dos casos de genocídio, os Estados Unidos culparam os iranianos

pelos crimes, enquanto se verificava nos locais onde os ataques haviam ocorrido que

124 SLUGLETT, pp. 270.125 MARR, pp. 200.126 TRIPP, pp. 243.127 ABURISH, pp. 248.128 Idem, pp. 248-249.129 TRIPP, pp. 246.130 KARSH, pp. 169-170.131 MARR, pp. 186-187.132 SLUGLETT, pp. 270.

127

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somente as máscaras de gás que os EUA forneceram aos iraquianos poderiam protegê-los

dos efeitos dos gases nocivos, o que indicava o conhecimento prévio do país sobre a

estratégia iraquiana e, tacitamente, o seu apoio.133

4. Ideologia

A década de 80 viu emergir no Iraque uma campanha de culto de personalidade sem

precedentes na história moderna do país. Mesclada a esse novo paradigma ideológico,

estava o nacionalismo mesopotâmico dos anos 70, que buscava aliar a figura de Saddam

aos grandes líderes das civilizações mesopotâmicas do passado, como Hamurábi e

Nabucodonosor. Aliado a isso e às circunstâncias da guerra, o presidente iraquiano buscaria

tornar o elemento islâmico como algo mais predominante dentro da ideologia que pregava,

reduzindo cada vez mais a “pureza” do Baathismo; além disso, a revisão acerca do pan-

arabismo árabe chegaria ao seu auge, conforme será visto nas seções a seguir.

a) O Culto de Personalidade

“[...]. A large painted cutout figure of Saddam Husain towers over the

entrance of every Iraq village; often at night it emits a lurid fluorescent glow. A

thirty-foot high version can be seen near Baghdad city center. Photographs

adorn every shop, school, police station, army barracks, and public building,

and can be seen in people’s offices and living rooms and overhanging the

streets from the parapets of houses. No official will appear before a camera

without a picture of the president in the background, and his name is evoked in

every public address.”

“On radio, in a typical political broadcast, his name is mentioned thirty to

fifty times an hour, along with reams of titles suited to the occasion. News

broadcasts shower him with congratulatory telegrams and groveling speeches.

The streets of Baghdad grind to a halt whenever he leaves the presidential

palace; sirens go off, soldiers line the route, and busy people rush to the public

squares to see him pass. School children memorize verses in his honour,

praising his qualities. Slogans attributed to him are visible everywhere. School 133 ABURISH, pp. 249-250.

128

Page 129: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

notebooks carry his portrait on the front and his latest sayings on the back.

Iraqi teenagers wear Saddam Husain T-shirts, and the real enthusiast can buy a

gold wristwatch with Saddam Husain peering through the dials.”134

Embora o início do culto de personalidade de Saddam tenha se iniciado ainda antes

de sua chegada ao poder, é somente a partir de 1980 que ele assume proporções

impressionantes. Além do nível de penetração de sua imagem em todas as localidades e

esferas sociais, como apontado na citação de Makiya, Saddam buscava se colocar como o

representante de todos os povos iraquianos, tanto em suas identidades particulares como em

sua condição comum de sujeitos do governo iraquiano.135 O líder iraquiano aparecia como

camponês, oficial, guerreiro ou mesmo como um penitente religioso136 – não faltariam,

inclusive, representações do líder como um pai caridoso, um grande estadista, um eficiente

burocrata, um profundo filósofo e como um revolucionário radical137. Sua imagem

transcendia o território iraquiano, e cada vez mais ele se convertia no “herói das massas

árabes”, graças à sua retórica de liderança de um grande conflito árabe-persa.138

b) O Nacionalismo Mesopotâmico

A irradiação da ideologia que relacionava o regime baathista como a continuidade

de cinco mil anos de glória mesopotâmica continuou durante a guerra, embora os gastos

com construções e festivais tenham diminuído no decorrer do conflito, e se tornasse cada

vez mais predominante o amálgama desse ideário com a figura de Saddam Hussein. A

guerra contra o Irã foi denominada a “Qadisiyya de Saddam”, em referência ao conflito

ocorrido ainda no século VII em que os árabes muçulmanos derrotaram os persas

“pagãos”.139 O presidente “lutador” se colocava ainda como a última personificação de

Hamurábi, Sargão e Nabucodonosor140, enquanto dedicava parte dos gastos governamentais

134 MAKIYA, pp. 110-111.135 TRIPP, pp. 226.136 MARR, pp. 210137 KARSH, pp. 151.138 ABURISH, pp. 203.139 MARR, pp. 211.140 KARSH, pp. 152.

129

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à construção de esculturas para celebrar o heroísmo dos soldados, que os comparavam às

tropas babilônicas que liberaram a Palestina no século VI a.C.141

Mas um elemento ideológico que ganharia bastante ascendência durante a década de

80 seria o comprometimento com o Islã, existente desde o início das tensões com o Irã, mas

institucionalizado com o domínio do Oitavo Congresso Regional do Baath, em 1982, por

Saddam Hussein, que marcou a diminuição da relevância do pan-arabismo e do socialismo

e a proeminência do nacionalismo iraquiano, do significado da religião e da importância da

criação de riquezas e da empresa privada142. O exemplo mais notório da união imagética

entre Saddam e aquela religião, apesar do forte secularismo do regime, seria a sua suposta

descendência de Maomé e do Imã Ali, o que significava uma concentração especial no

ganho de apoio dos xiitas.143 O presidente iraquiano buscaria, ainda, fazer freqüentes visitas

aos santuários das cidades sagradas; no final da década, o componente árabe-islâmico se

tornaria mais predominante do que o nacionalismo mesopotâmico.144 Para Adeed Dawisha,

o elemento árabe seria, na realidade, o principal utilizado por Saddam durante a guerra, já

que tanto no islamismo como no nacionalismo mesopotâmico o elemento comum era o

arabismo, visto como peça fundamental de união do país contra os “persas iranianos”.145

Mas isso não implicava num comprometimento maior com o pan-arabismo; pelo contrário,

como será visto a seguir, o nacionalismo árabe clássico seria definitivamente rejeitado por

Saddam.

Para Aburish, a propaganda de Saddam, embora superficial, deu certo, já que,

graças à sua penetração pelas estruturas partidárias e estatais, os apelos religiosos de

Khomeini se tornaram cada vez mais vazios e pouco efetivos durante a guerra.146 Makiya

entende que o massivo culto de personalidade de Saddam tinha um fim específico: o poder

de gerar medo na população, que se sentia vigiada o tempo todo pelo presidente iraquiano,

e temia que a não incorporação de seus símbolos resultaria em duras retaliações das forças

de segurança.147 Marr acredita que as ideologias não foram empregadas somente para gerar

uma identidade maior com o Estado, mas também para justificar a legitimidade do regime

141 BARAM, Culture, History and Ideology, pp. 78.142 TRIPP, pp. 236.143 MARR, pp. 211.144 BARAM, pp. 116.145 DAWISHA, Adeed. “Identity” and Political Survival in Saddam’s Iraq, pp. 13-14.146 ABURISH, pp. 202.147 MAKIYA, pp. 111.

130

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personalizado em Saddam; embora o líder tenha conseguido centralizar ainda mais o

governo, a eficácia dos ideários utilizados é dúbia, principalmente se se notar a

continuidade da insatisfação das oposições.148 Sluglett, porém, entende que o hábil uso da

propaganda, em associação com o receio populacional de que fosse implantado um regime

iraniano e a própria rudeza da forças de segurança iraquianas foram os três caracteres que

permitiram a sobrevivência do regime na década de 80.149 Baram150 acredita que as

ideologias empregadas nas décadas de 70 e 80 tiveram sucesso limitado, e lista diversos

motivos para o relativo fracasso: a dificuldade de se disseminar um conceito novo numa

sociedade com tradicionais bases islâmicas e pan-arabistas (embora estas se opusessem

entre si); o abandono da tentativa de integração dos curdos à ideologia no final da década

de 70 inviabilizou sua “arabização”, levando o seu apoio aos iranianos. Ainda sim, foi

razoavelmente eficaz na assimilação dos xiitas, já que o discurso de dissolução do país

numa união islâmica perdeu força. Todavia, a aceitação de Saddam como o continuador do

legado mesopotâmico foi aceito mais como resultado do medo e da indiferença. O aspecto

principal a ser considerado sobre o sistema de idéias implantado é o de que, embora tenha

contribuído para a formação de uma certa coesão nacional, não serviu como substituto para

a real participação política, o que repercutiu na erosão das estruturas sociais tradicionais,

como a tribo, a família e a religião.

c) Nova Revisão do Pan-Arabismo

Apesar intenso uso discursivo do arabismo na política externa como maneira de

ganhar apoio dos países vizinhos, Saddam Hussein radicalizaria sua visão (e, por extensão,

a do Baath) cautelosa sobre essa doutrina. Em entrevistas concedidas entre 1988 e 1989151,

o presidente iraquiano deixaria claro que o máximo de cooperação possível entre os estados

árabes já havia sido alcançado, e que então o caminho a ser trilhado seria o de procurar

continuamente melhorar as relações entre os países árabes, mas sem abandonar a

independência entre eles. Assim, a união, tanto federativa como unitária, poderiam jamais

ocorrer. Contudo, como se tornaria cada vez mais claro (como na invasão do Kuwait, em

148 MARR, pp. 210-212.149 SLUGLETT, pp. 262.150 BARAM, pp. 112; 138-140.151 Idem, pp. 121-122.

131

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1990, vista no próximo capítulo), a maleabilidade dos discursos de Saddam era um

indicativo evidente de seu pragmatismo e de seu descomprometimento cada vez maior com

convicções ideológicas, senão aquelas que lhe permitiriam manter-se no poder.

5. Economia e Sociedade

O longo conflito com o Irã resultou em danos à economia do país que não foram

recuperados até os dias de hoje. Muito do vertiginoso crescimento econômico da década de

70 seria perdido, e então o regime iraquiano, nos anos finais da guerra, buscaria mudar a

política econômica. Conforme será visto no próximo capítulo, muitas das medidas (que,

inclusive, foram aprofundadas) se revelaram ineficazes, e com isso o país não conseguiu

voltar a crescer. Nesta seção, buscaremos analisar a política do governo para a economia

nos primeiros anos da guerra, além de ver as implicações desta para a população iraquiana.

a) A Continuidade dos Programas de Desenvolvimento

Até 1983, Saddam Hussein buscou manter os investimentos estatais no país como se

o país não estivesse em guerra. As destruições causadas pela guerra, especialmente no sul, e

o fechamento do oleoduto que passava pela Síria (1982) reduziram substantivamente a

exportação de petróleo iraquiano. Em 1979, o país havia conseguido exportar 26 bilhões de

dólares; quatro anos depois, o valor havia sido reduzido para apenas 10 bilhões de dólares

(também em parte pela queda dos preços do petróleo).152 Apesar disso, os investimentos

para a modernização de Bagdá (na fracassada tentativa de hospedar o encontro do

Movimento dos Não-Alinhados em 1982) continuaram, assim como a importação em larga

escala de alimentos e equipamentos militares e a manutenção da construção de indústrias

estratégicas e do programa de armas não convencionais (nucleares, químicas e biológicas),

que foi, inclusive, acelerado.153 Em suma, o gasto público aumentou de 21 bilhões de

dólares em 1980 para 29.5 bilhões em 1982.154 Com isso, conforme apontam diversos

152 MARR, pp. 203.153 TRIPP, pp. 238.154 KARSH, pp. 153.

132

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especialistas, Saddam conseguiu isolar a população, principalmente do centro do país, dos

efeitos da guerra155.

b) O Início da Liberalização Econômica

Apesar dos esforços do governo, já em 1982 a renda per capita do país começou a

regredir, e em 1983 o país se encontrava numa profunda crise econômica.156 Com a enorme

contração das reservas internacionais (de 30 para 3 bilhões de dólares)157 e os seguidos

empréstimos junto a diversos países (detalhados na seção “Dívida Externa”), o presidente

iraquiano decide encorajar o setor privado da economia, enquanto buscava frear os gastos

do governo. Saddam corta os gastos com o projeto de desenvolvimento em um terço, reduz

as importações em quase três quartos e o salário dos servidores públicos civis em um

quinto.158 Pôs-se um fim à coletivização agrícola, buscando-se aumentar sua produtividade

por meio da concessão de créditos ao setor privado; as privatizações também ocorreriam na

indústria e no setor comercial, com a venda de supermercados, postos de gasolina e

pequenas fábricas a empreendedores.159 Para Aburish, a abertura econômica consoante ao

distanciamento da URSS (vista como a confirmação das inclinações capitalistas de

Saddam) foi um fator importante para que os Estados Unidos se aproximassem ainda mais

do Iraque no início dos anos 80.160

c) Dívida Externa

Com os custos da guerra sendo superiores a 15 bilhões de dólares por ano161 e com o

esgotamento das reservas internacionais em meio a um impasse no front de batalha com o

Irã, Saddam Hussein buscou aproximar-se, primeiramente, das monarquias do Golfo e,

posteriormente, do Ocidente e da União Soviética, não somente para a aquisição de

equipamentos militares, mas também para a concessão de empréstimos. Acordos bilionários

155 SLUGLETT, pp. 264.156 HIRO, pp. 109.157 SLUGLETT, pp. 264.158 HIRO, pp. 109.159 MARR, pp. 204.160 ABURISH, pp. 217.161 TRIPP, pp. 238.

133

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foram concedidos e, conforme o país se aproximava da derrota (como em 1986), o

financiamento se tornava ainda maior, já que os credores receavam uma moratória caso o

Iraque perdesse a guerra. Ao final da guerra, o país contraíra uma dívida de quase 90

bilhões de dólares (empréstimos de 8 bilhões da União Soviética; 27 bilhões do Ocidente e

da Ásia, principalmente Alemanha, França, EUA e Japão; 10 bilhões de países como Brasil,

Turquia e Coréia do Sul e entre 40 e 50 bilhões dos países árabes; no caso destes,

notadamente Arábia Saudita e Kuwait, havia ainda de 30 a 40 bilhões conseguidos por

meio da venda de petróleo em nome dos iraquianos em campos de petróleo fronteiriços)162.

d) Impacto da Guerra na Infra-Estrutura e os Custos Humanos

Como visto, a guerra se concentrou majoritariamente no sul, o que repercutiu num

grande grau de destruição, em especial de cidades importantes, como Basra (um dos

principais alvos dos iranianos). Com os ataques naquela região, muitas das facilidades

petrolíferas e dos complexos industriais (como grandes fábricas de aço e ferro) foram

perdidos. Tanto no sul, como no norte, o setor agrícola foi severamente afetado; o centro do

país, porém, manteve-se praticamente intacto, e desenvolveu-se bastante no período, com

grandes pólos petroquímicos e refinarias, além de novos hospitais e milhares de moradias,

especialmente na região de Tikrit163, o local de origem de boa parte da elite política do país.

Os custos humanos, porém, foram altíssimos. Fontes164 colocam o número de mortos

iraquianos nas batalhas entre 125 mil e 300 mil, além cerca de 50-100 mil mortos na

campanha de Anfal e dos 250 mil feridos. Contudo, mais do que os números, a guerra

representou a perda de uma geração inteira de jovens e trabalhadores165, o que repercutiu,

juntamente com as transformações econômicas sofridas, numa nova configuração da

estrutura social iraquiana.

e) Transformações na Estrutura Social do Iraque

162 MARR, pp. 205.163 Idem, pp. 206-207. 164 MAKIYA, pp. 259-260; MARR, pp. 207-208; TRIPP, pp. 248.165 MARR, pp. 208.

134

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O primeiro aspecto relevante sobre o tema é que a mobilização de quase dois

milhões de soldados repercutiu em grande falta de mão-de-obra, e requereu, para isso, tanto

um ingresso massivo de mulheres no mercado de trabalho como a vinda de trabalhadores

estrangeiros, como indianos, filipinos, coreanos, egípcios, iemenitas e jordanianos,

totalizando cerca de 1.5 a 2 milhões de imigrantes, ou quase 40 por cento da força de

trabalho do país.166 Vários deles chegaram a compor as forças armadas, e a abertura do país

para a chegada de árabes de países em geral mais pobres repercutiu em grande aumento de

popularidade de Saddam no mundo muçulmano.167

A guinada da política econômica resultou em drásticas alterações na composição

das classes sociais, o que mudaria mesmo a base de apoio central do regime. O

neoliberalismo afetou a mobilidade social, um dos grandes trunfos do governo baathista168.

A queda dos salários dos servidores públicos e a venda de algumas das empresas estatais

para a iniciativa privada (e o início da desregulamentação das leis trabalhistas e do

enfraquecimento dos sindicatos)169 irritaram bastante a classe média tradicional,

enfraquecendo o apoio desse grupo ao regime. Com as privatizações, emergiu uma sólida

classe de nouveaux riches, formada por membros de todos os grupos e etnias170, e que se

aliaria fortemente ao Estado durante a guerra (o que era positivo para o regime, na medida

em que parecia indicar o seu não sectarismo, além de viabilizar o aumento do controle

social em todas as regiões do país). Logo, a desigualdade social voltaria a ser um problema

alarmante, já que a posição privilegiada de alguns grupos de locatários e empreendedores –

que atuariam como intermediários entre as firmas estrangeiras e os construtores locais e

controlariam várias empresas e propriedades agrícolas – resultaria em grandes lucros e,

dessa forma, em rápido enriquecimento171.

166 HIRO, pp. 4.167 ABURISH, pp. 200-201.168 MARR, pp. 208.169 SLUGLETT, pp. 275.170 MARR, pp. 208.171 SLUGLETT, pp. 274.

135

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136

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CAPÍTULO 5 – O Período 1989-1991

O Iraque emerge vencedor após o término da maior guerra convencional do século

XX1 mas, apesar das grandes celebrações, não havia nada palpável em termos de conquistas

a serem exibidas aos iraquianos. Pelo contrário, além de o cessar-fogo com o Irã não ter

sido sucedido por um imediato acordo de delimitação de fronteiras, trocas de prisioneiros

de guerra e, eventualmente, indenizações, o país mesopotâmico encontrava-se altamente

endividado e com diversos problemas para gerar receitas, em meio à lenta recuperação na

produção do petróleo (praticamente seu único bem exportável), à queda ainda maior de seu

preço e a problemas logísticos para seu envio para outros países. Ao mesmo tempo, a

população iraquiana aguardava por ansiedade para um comportamento da economia similar

ao pré-guerra, levando a liderança a prometer novos planos de desenvolvimento de larga

escala.

Na política externa, o regime de Saddam Hussein buscaria, de início, travar boas

relações, principalmente com os vizinhos, esperando pela continuidade do apoio

econômico, o que não ocorre. O presidente iraquiano passa, então, a pressionar pelo

aumento do preço do petróleo para que, assim, pudesse ampliar a entrada de recursos que

pudesse alimentar o setor produtivo como outrora; o aumento do tom da retórica,

especialmente contra o Kuwait, não repercute em ganhos. Paralelamente, o novo governo

dos Estados Unidos, presidido por George H. W. Bush, após inicialmente mostrar-se a

favor do governo iraquiano, muda de estratégia, condenando-o pelas infrações aos direitos

humanos. Isolado internacionalmente e com um país ainda sem recuperação econômica,

Saddam decide invadir o Kuwait em Agosto de 1991.

Embora a invasão fosse um sucesso, sua repercussão é altamente negativa,

principalmente no bloco ocidental, que imediatamente, por meio das Nações Unidas, reage

por meio de agressivas sanções econômicas ao Iraque. Após três meses de tentativas de

negociação dos dois lados, é aprovado documento autorizando a remoção à força das tropas

de Saddam do Kuwait, o que acontece após cerca de seis semanas de combate. Logo em

1 HIRO, pp. 1.

137

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seguida, os Baathistas enfrentariam ainda a maior intifada da história moderna do país, só

controlada após um mês de conflitos e com a conivência dos Estados Unidos e demais

aliados. Contudo, uma nova intervenção ocidental, desta vez com alegado caráter

humanitário, protege os curdos das tropas iraquianas, viabilizando, no longo prazo, um

verdadeiro governo autônomo no Curdistão. Assim, no final de 1991 a liderança de Saddam

Hussein passa por seu momento mais frágil até então, tendo a crise econômica interna ainda

mais agravada com as sanções da ONU e, com isso, distancia-se ainda mais de suas bases

de poder e da população em geral.

Neste capítulo, buscaremos discutir os tópicos principais tratados pelos especialistas

neste período estudado, como as políticas econômicas adotadas, as linhas da política

externa, as razões, objetivos e os desenvolvimentos históricos, políticos, econômicos e

ideológicos da invasão do Kuwait e da subseqüente Guerra do Golfo de 1991, além da

relação do regime com as opções e o estudo mais acurado sobre as razões do fracasso da

intifada de 03.91, considerada um momento de grande relevância na história recente do

país. Para efeitos de didatismo e organização o estudo dos macro-temas mencionados se

dividirá em dois momentos: antes da invasão do Kuwait e da Guerra do Golfo e durante os

mesmos para que, no Epílogo, sejam vistos os doze últimos anos do regime (1991-2003).

Os aspectos ideológicos empregados pela liderança iraquiana serão estudados numa seção à

parte, no final deste capítulo.

I) O Período Pré-Invasão

1. A Economia Iraquiana: 1989-90

Ao término da guerra, como visto anteriormente, o país se encontrava numa

situação econômica adversa, dados os altos custos humanos e econômicos, a dívida externa

e a necessidade de se fortalecer o próprio regime perante a opinião pública, que esperava

pela retomada do ritmo de crescimento obtido durante a década de 70 e ainda nos primeiros

anos da guerra. A política econômica adotada, por um lado, reforçou seu caráter neoliberal

(que começara a se tornar cada vez mais relevante ainda durante o embate com o Irã); por

outro, retornou com gigantescos projetos (de infra-estrutura e de celebração pela “vitória”

138

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do país na guerra) com forte preponderância do Estado. As práticas e os efeitos de tais

escolhas serão debatidos nas seções seguintes.

a) O Ressurgimento da Política “Canhões e Manteiga”

A euforia popular existente logo após o final da guerra com o Irã foi alimentada por

promessas do governo em fazer o país voltar a manter altas taxas de crescimento

econômico. Como mostra desse empenho, Saddam Hussein anunciou uma série de obras de

infra-estrutura pelo país: a criação de um sistema de metrô em Bagdá, um aeroporto em

Mosul, mais de três mil quilômetros de ferrovias, seis auto-estradas conectando o país à

Turquia e à Jordânia, duas grandes represas e fábricas de produtos químicos.2 O governo

ainda investiu quatro bilhões de dólares na reconstrução de Basra e Fao, além da expansão

do porto de Umm Qasr e do complexo industrial3, ambos na região sul do Iraque. O regime

também concentrou grandes esforços na construção de estátuas, obras e monumentos de

grande proporção para celebrar a vitória do país, ao mesmo tempo em que a conectava à

figura de Saddam Hussein.4 Finalmente, os gastos com armamentos militares (inclusive

não-convencionais) aumentavam continuamente; o número de pessoas trabalhando no setor

da industrialização militar chegava a cem mil, e o valor total gasto nesses programas

bélicos chegava a 88 por cento de todas as exportações petrolíferas.5

b) A Continuidade da Liberalização Econômica

Os onerosos gastos estatais em setores de grande visibilidade popular (e em áreas

estratégicas), que atuaram como uma maneira efetiva de mobilização a favor do regime

logo ao término da guerra, não atenuaram a crise econômica.6 Os custos de reconstrução

eram calculados em 230 bilhões de dólares, o que significaria que, mesmo que o país

investisse todo o dinheiro obtido por meio das exportações do petróleo para aqueles

esforços, a reparação só seria completada após duas décadas; no imediato pós-guerra, as 2 CLAWSON, Patrick. “Iraq’s Economy and International Sanctions”, in Amatzia Baram e Barry Rubin (eds.), Iraq’s Road to War (Londres: Macmillan, 1993), pp. 72.3 MARR, pp. 213.4 KARSH, pp. 195-196.5 ABURISH, pp. 261.6 MARR, pp. 219.

139

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receitas anuais vindas das exportações (13 bilhões de dólares) mal cobriam as importações

civis (12 bilhões), e eram insuficientes para os gastos militares, e o pagamento das dívidas

(5 bilhões)7. O aprofundamento das privatizações e da liberalização econômica foram as

medidas tomadas pelo governo à época. O governo removeu o controle de preços sobre os

produtos, vendeu ativos do Estado e incentivou uma maior participação do setor privado

nas importações8, além da própria redução nas taxações sobre a compra de produtos

estrangeiros. Cada vez mais multinacionais foram trazidas para viabilizarem projetos de

capital intensivo; subsídios agrícolas foram cortados. O governo encorajou a formação de

empresas de capital misto, buscando atrair principalmente os recursos de empresas árabes.

Uma medida significativa desse processo de liberalização foi o que se denominou a

“revolução administrativa” em que, visando reduzir o poder da burocracia (e, por

conseguinte, do próprio partido), o regime diminuiu o tamanho do setor público por meio

da privatização de 47 empresas estatais, responsáveis pela produção de alimentos, têxteis,

construção civil, plásticos e alumínio; agricultores tiveram permissão para vender

diretamente para os comerciantes; paralelamente, direitos trabalhistas continuavam a ser

reduzidos.9 Apesar de não implementadas, idéias tidas como radicais para a alteração da

estrutura do país, como a formação de uma bolsa de valores e a privatização de todo o setor

bancário, foram circuladas, o fazia com que observadores internacionais vissem todas essas

medidas com maior seriedade do que as anteriores.10

c) Efeitos da Política Econômica

Apesar das transformações promovidas e do eventual ganho de eficiência, a crise

econômica no país continuou a vigorar. A inflação continuava a subir, chegando a cerca de

45 por cento em 1990, o que atingia principalmente os funcionários públicos, que recebiam

salários fixos; com isso, o governo foi forçado a retornar o controle de preços em algumas

áreas. Os cortes feitos na burocracia levaram a um nível alto de desemprego; nesse

contexto, a desmobilização de cerca de um milhão de soldados era inviável, já que a

presença das mulheres e de trabalhadores estrangeiros no mercado de trabalho durante a

7 KARSH, pp. 201-202.8 TRIPP, pp. 251.9 SLUGLETT, pp. 274-276.10 KARSH, pp. 197.

140

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guerra não poderia ser simplesmente negligenciada11. A população, em especial a classe

média, passou a ficar cada vez mais descontente, sentindo-se deslocada e insegura. Em

resposta às pressões, Saddam afirmava que o aumento do preço do petróleo seria a solução

para o retorno ao desenvolvimento econômico, o que indica, para Marr, que o regime

demonstrava cada vez mais o seu despreparo para lidar com a situação.12

d) Outros Problemas: o Shatt, a Queda do Preço do Petróleo e a Dívida

Externa

O Shatt-al-Arab continuava fechado após a guerra, tanto pela grande concentração

de detritos e pela contaminação da água com armas químicas, como pelo não ajustamento

das fronteiras entre Iraque e Irã. Com isso, Saddam fora forçado a deslocar suas

exportações para o porto de Umm Qasr, na fronteira com o Kuwait; além disso, a

exploração dos campos de petróleo de Majnun (um dos mais prósperos do país), na zona

fronteiriça com o Irã, também foi inviabilizada, dado o receio de retaliações iranianas

(levando-se em conta o frágil cessar-fogo assinado entre os países no final da guerra).13

Uma questão bastante relevante para a continuidade da crise econômica no país fora

a queda no preço do petróleo. De acordo com Marr14, o produto estava cotado em 21

dólares em Janeiro de 1990; três meses depois, o valor caíra para menos de 18 dólares; às

vésperas da invasão ao Kuwait, uma nova queda, para cerca de 11 dólares; com esse valor,

segundo ela, o país só não faliria se realizasse uma moratória. De fato, segundo ela, a

Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) produzia, no início de 1990, 24

milhões de barris de petróleo por dia, dois milhões a mais do que o estipulado, sendo que

Kuwait e os Emirados Árabes Unidos eram responsáveis por 75 por cento desse excesso,

que se iniciara ainda durante a guerra Irã versus Iraque como maneira de repor a

diminuição da produção iraquiana nesses anos e que, após o fim do conflito, se recusaram a

baixar sua produção. Patrick Clawson, no entanto, entende que não havia superprodução

por parte do Kuwait, considerando que as determinações da OPEP eram obrigações

11 SLUGLETT, pp. 278.12 MARR, pp. 220.13 MARR, pp. 206-207; 219-220.14 Idem, pp. 221.

141

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invioláveis para aquele país.15 Aburish, por sua vez, afirma que as monarquias mencionadas

aumentaram substancialmente sua produção de petróleo no dia seguinte ao cessar-fogo

entre Irã e Iraque, o que, desde o início, teria colocado o segundo pai sob uma pressão

econômica ainda maior.16

A dívida externa também se constituiu como uma grave dificuldade para o país,

muito embora os autores tendam a considerar a maneira como o regime lidou como o

problema como uma das razões para seu agravamento. De acordo com Karsh17, Saddam

Hussein se utilizava de várias táticas para lidar com os credores: lidando com cada um

separadamente, jogava uns contra os outros e se assegurava de que eles não consolidariam

seus interesses; Saddam ainda prometia àqueles que concedessem mais créditos seriam

favorecidos na oferta de contratos pelo governo. Marr afirma que o presidente iraquiano se

recusava a pagar as dívidas, preferindo rolá-las em troca de novos empréstimos, levando a

um substancial aumento do débito externo.18 Contudo, Clawson não entende a dívida como

um grande problema para o regime (e que, portanto, não seria, em última instância, um

fator para a invasão do Kuwait), já que outros países do chamado terceiro mundo tinham

dívidas proporcionalmente muito maiores e, ainda sim, não se utilizaram de meios militares

para resolvê-la.19

e) Razões do Insucesso e Eventuais Políticas Alternativas

Os autores, em geral, tendem a culpar primordialmente o próprio governo pelo

fracasso das políticas econômicas adotadas. Sluglett entende que, embora os investimentos

na reconstrução das cidades, da infra-estrutura e das indústrias fossem necessários, os

exorbitantes gastos em armamentos e na construção de monumentos consagrando Saddam

Hussein e a vitória iraquiana na guerra eram ambas altamente dispensáveis; além disso, o

caráter das reformas implementadas fez com que, ao invés de os empresários investirem na

busca do capital produtivo, buscaram simplesmente especular, alcançando ganhos rápidos e

15 CLAWSON, pp. 71.16 ABURISH, pp. 260.17 KARSH, pp. 202.18 MARR, pp. 220.19 CLAWSON, pp. 72.

142

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fáceis e, com isso, aumentando o fosso social entre ricos e pobres.20 Karsh21 argumenta que

as privatizações jamais dariam certo enquanto o setor petrolífero, responsável pela

esmagadora maioria das receitas do país, ficasse nas mãos do Estado; ele justifica o

comportamento dos capitalistas em razão do caráter repressivo do regime e das periódicas

convulsões sociais, que tornariam o Iraque um país constantemente instável e, desta forma,

o investimento em capital produtivo seria demasiado arriscado. É possível dizer que, nesse

sentido, o autor se aproxima de Sluglett22, que entende a liberalização econômica como

viável somente em paralelo com a liberalização política e com o Estado de Direito.

CLawson afirma que faltou ao governo definir prioridades (já que seria inviável

desenvolver todos os problemas mencionados simultaneamente); além dos investimentos

inapropriados, o governo teria ainda colocado excessivas regulações sobre o setor privado,

o que teria levado a uma sub-otimização das capacidades produtivas do país; nesse sentido,

a liberalização econômica do país teria sido muito pequena, incapaz de diminuir o tamanho

do Estado na economia. Pior, faltaria um verdadeiro projeto de desenvolvimento para o

país, que teria sido colocado de lado para manter um controle estrito sobre a sociedade.23

Aburish24, contudo, afirma que Saddam tinha um plano de desenvolvimento de longo prazo,

mas o contexto internacional de indisposição dos até então parceiros na guerra contra o Irã

em ajudar a reconstruir o país a partir do fim do conflito inviabilizou suas políticas. Ele

também acredita, no entanto, que a recusa em seguir um programa econômico

verdadeiramente austero e a continuação em tentar manter a população “bem alimentada”

fizeram com que as práticas adotadas fossem um fracasso. Marr crê que as opções de

investimento bélico e de grandes esforços de reconstrução foram equivocadas, além da

maneira com que o regime buscou negociar sua dívida externa (que repercutiu na fuga de

capitais estrangeiros que ajudariam bastante na revitalização da economia iraquiana).25

Dentre as alternativas apontadas para a solução de curto prazo da crise, Sluglett

aponta para um direcionamento prudente e seletivo dos recursos do país, além de um

controle rígido das importações e do próprio gasto público.26 Marr afirma que um re-

20 SLUGLETT, pp. 277-278.21 KARSH, pp. 202-203.22 SLUGLETT, pp. 277.23 CLAWSON, pp. 70-72.24 ABURISH, pp. 259-262.25 MARR, pp. 22026 SLUGLETT, pp. 277.

143

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escalonamento da dívida externa – vista por ela como o maior problema para o regime –

para prazos mais longos aumentaria a confiança internacional e viabilizaria a vinda de

créditos de curto-prazo necessários para o equilíbrio do setor econômico do Estado.27

Clawson indica que, em vez de dedicar grandes somas de dinheiro na elaboração de

projetos sofisticados, o regime poderia dedicar seus recursos para investimentos de pequeno

porte, que seriam segundo ele, muito mais efetivos no crescimento de um país; nesse

sistema, empreendedores internacionais poderiam viabilizar o capital necessário para que,

por exemplo, o setor agrário fosse reavivado e, com isso, o país não tivesse que importar

tantos alimentos.28 Aburish, todavia, afirma que, no curto prazo, as saídas mais eficientes

para o país eram o aumento do preço do petróleo e de sua produção e/ou o empréstimo de

mais dinheiro.29

Um sub-tema importante desta discussão é o debate sobre as reais condições da

economia iraquiana, visto que, conforme será visto mais adiante, a economia era vista como

uma das razões para a invasão do Kuwait. Por um lado, Karsh e Marr entendem que, no

período 1988-90, a economia iraquiana esteve cada vez mais próxima do colapso, tendo já

saído do conflito com o Irã em péssimas condições (também pelos altíssimos custos

humanos).30 Por outro lado, Clawson e Sluglett defendem que a situação do Iraque não era

tão desesperadora, buscando comprovar suas teses tanto pelo indicativo de que a situação

econômica do país em 1990 era melhor do que em 1988 (graças ao aumento das

importações e das exportações e do seu contínuo pagamento das dívidas)31, como pela

consideração de que o país possuía extensivas reservas petrolíferas, e que não teria havido

uma redução significativa do preço do petróleo no período; assim, a desesperação das

posições financeiras do país (como a manutenção do poder e a liderança do mundo árabe)

seria fruto muito mais das prioridades de Saddam Hussein do que um fato objetivo.32

2. Política Doméstica

27 MARR, pp. 220.28 CLAWSON, pp. 72.29 ABURISH, pp. 259-260.30 KARSH, pp. 201; MARR, pp. 220.31 CLAWSON, pp. 71.32 SLUGLETT, pp. 277-279.

144

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Ao fim de um longo conflito – iniciado, em parte, pelo receio de subversão interna

por parte dos xiitas e culminado com uma repressão sem precedentes sobre a minoria curda

–, o regime de Saddam Hussein dava mostras de que, mesmo com o rígido controle do país

e com uma intensa campanha de culto à sua personalidade, a coesão nacional, um dos

grande problemas históricos do Iraque, ainda não havia sido plenamente assentada, muito

embora pudesse ser considerada uma vitória a integridade do país após todos os

desenvolvimentos da década de 80. No intervalo entre as duas guerras, o presidente

iraquiano buscaria voltar a ganhar apoio popular enquanto tentava retomar o domínio das

esferas estratégicas do Estado, não sem sofrer crises internas.

a) Promessas de Liberalização

Ainda dentro da forte campanha promovida pelo governo para celebrar a vitória

iraquiana, Saddam Hussein realizou uma série de promessas públicas em que, juntamente

com a abertura econômica, promoveria uma notável ampliação de direitos políticos. Dentre

as medidas anunciadas, estavam uma anistia geral aos prisioneiros políticos do país; a idéia

do estabelecimento de um sistema multipartidário no país; uma nova constituição, que

asseguraria a realização de eleições diretas para presidente; a formação de partidos de

oposição e de uma imprensa livre e o desmantelamento do Conselho do Comando

Revolucionário. Num demonstrativo da aparente seriedade de seu esforço, convocaria

reuniões entre o CCR e o Comando Regional do Baath para discutir suas propostas e

elaborar um comitê para formular uma versão prévia da constituição.33 O líder iraquiano

convocava a população para a crítica aos ministros do governo e à burocracia do estado;

porém, as manifestações adversas eram, de fato, somente permitidas a alguns setores,

notadamente aqueles de perfil mais técnico e que, no momento crítico que o país vivia,

eram colocados como culpados pelo próprio círculo de poder de Saddam (eximindo-se de

quaisquer culpas), como os economistas e os tecnocratas ligados a esse setor.34 Indivíduos

que não pertencessem ao Baath poderiam concorrer às cadeiras da Assembléia Nacional

(que continuava a ser mera porta-voz do regime)35, mas vários continuaram a ser vetados

33 KARSH, pp. 197.34 TRIPP, pp. 250.35 SLUGLETT, pp. 276-277.

145

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pela comissão eleitoral. Para Karsh, a “democratização” da política iraquiana não era

realizada unicamente por pressões domésticas, ou mesmo como uma maneira de viabilizar

uma infra-estrutura para as privatizações na economia; os esforços se direcionavam

também (e, possivelmente, com maior intensidade), para melhorar a imagem iraquiana no

Ocidente, que se abalava cada vez mais com as denúncias de infração aos direitos

humanos.36

b) Centralização do Poder, Escândalos Familiares e o Neopatrimonialismo

Na prática, o que ganhava força no pós-guerra, era uma tentativa de centralização

ainda maior do poder por parte de Saddam Hussein. Apesar do fato de o CCR e os

comandos nacional e regional do partido continuarem a realizar suas reuniões regularmente

e, em tese, discutirem os problemas do país eles, mais do que nunca, passaram a cumprir

função meramente cerimonial dentro do funcionamento do estado iraquiano. Saddam

Hussein havia substituído todas as estruturas políticas do país como idealizador e tomador

de decisões37, tornando mesmo seus círculos mais próximos inefetivos que, então, se

tornaram meros coadjuvantes, aceitando todas as deliberações do presidente iraquiano

mesmo que pudessem vir a ser contraditórias entre si. Em última instância, tal

comportamento cada vez mais afetaria a capacidade de Hussein em julgar o mundo real,

conforme aponta Karsh38. Tal raciocínio é referendado por Aburish, ao enumerar os

monumentos feitos por Saddam para homenagear a si mesmo, além de outras

extravagâncias que o pretendiam colocar como “um novo conquistador árabe” perante

todos, inclusive a ele mesmo.39

Paralelamente a essa acumulação de funções por Saddam Hussein e um número

extremamente restrito de pessoas, aprofundavam-se inúmeros casos de corrupção e outros

escândalos familiares. Embora alguns fossem relacionados com disputas políticas, como a

substituição de parentes na área de segurança oriundos do clã Nida para o al-Majid40 (ao

qual pertencia o próprio presidente), outros se referiam a disputas puramente pessoais;

36 KARSH, pp. 198. Aburish (pp. 260-261) apresenta argumentação similar.37 ABURISH, pp. 264-265.38 KARSH, pp. 188-189.39 ABURISH, pp. 265-266.40 TRIPP, pp. 250.

146

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ainda sim, repercutiam em instabilidades e subseqüentes mudanças na distribuição de poder

dentro dos níveis superiores do governo. Por vezes, as contínuas substituições levavam

mesmo à perda de eficiência do Estado, como a colocação de parentes inexperientes, pouco

comprometidos e sem conhecimento algum sobre as áreas que passaram a gerenciar.41

A crise econômica e a subseqüente liberalização, entretanto, alteraria a estrutura de

clientela que também ajudava a sustentar o regime. Por um lado, a falta de recursos para

manter o sistema de patronagem42; por outro lado, o favorecimento de setores ligados ao

capital privado retirava o apoio de boa parte da população que, por ter estado

historicamente envolvida pelo poder público, havia se acostumado à estabilidade do

emprego e o subsídio estatal dos produtos para o consumo.43 A imagem pública de Saddam

Hussein, graças a essa conjuntura, passou a deteriorar-se cada vez mais no plano

doméstico; a piora das condições econômicas do país contribuiu enormemente para isso.

c) Relações do Regime com Xiitas, Curdos e Militares

Com a enorme repressão feita pelo regime contra as organizações oposicionistas das

comunidades xiita e, em especial, curda durante o conflito contra o Irã, o período 1988-90

foi marcado por pouca atividade coordenada desses grupos, que passaram, em geral, a

adotar uma política de conciliação: vários dos xiitas que realizaram oposição ativa durante

a guerra exilaram-se em outros países, enquanto os partidos curdos buscavam, por meio da

aproximação com o governo, a conservação do pouco que restara dos vilarejos do

Curdistão.44 A coesão nacional certamente havia se tornado mais precária após o fim da

guerra, e vastos segmentos populacionais continuavam a estar alienados do regime.45

Contudo, nem o governo, nem as instituições que representavam os iraquianos eram

capazes, à época, em identificar com maior precisão o aumento do descontentamento

popular contra o governo de Saddam (pois não contava com pesquisas elaboradas sobre as

condições sócio-econômicas dos iraquianos), já que o seu motivo, a crise econômica,

transcendia sectarismos e classes sociais46.41 ABURISH, pp. 266.42 TRIPP, pp. 250-251.43 SLUGLETT, pp. 278.44 al-JABBAR, Faleh Abd. Why the Uprisings Failed, pp. 4. 45 MARR, pp. 217.46 al-JABBAR, pp. 5.

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A maior ameaça naquele período parecia vir do setor militar, que emergira bastante

popular no imediato pós-guerra47, apesar dos esforços de Saddam em evitar ao máximo a

exposição pública de figuras tidas como “heróis” da guerra. Devido ao fato de que a

corporação militar havia crescido substancialmente durante a década de 80, ela havia se

tornado bastante heterogênea, o que inviabilizava a formação de um senso forte de

identidade entre seus membros. Isso permitiu ao presidente iraquiano utilizar as táticas de

discriminação e prisão de oficiais que se tornaram figuras notórias e a promoção de oficiais

menos reconhecidos (especialmente aqueles que eram de Tikrit), tornando-os, por esse

favorecimento, mais dependentes de Hussein.48 Além disso, Hussein continuava a promover

expurgos de centenas de oficiais, justificando-os por meio do anúncio de denúncias de

tentativas de golpes militares nos anos de 1989 e 199049.

3. Política Externa

A vitória conquistada sobre o Irã (entendida em termos da conquista da manutenção

do regime e do refreamento da exportação da revolução islâmica) não significou, no plano

internacional, o aumento da capacidade iraquiana em influenciar seus vizinhos ou,

eventualmente, o ocidente. As relações internacionais passavam por um ajuste importante,

marcado pelo enfraquecimento da União Soviética, aliado histórico do Iraque e

contraposição ao predomínio norte-americano no Oriente Médio durante a Guerra Fria. Ao

mesmo tempo, a crise econômica enfrentada pelo regime de Saddam Hussein, que

ameaçava a continuidade de seu governo, fora entendida como conseqüência da situação

internacional, notadamente a questão do petróleo e a busca por apoio financeiro.

Inicialmente, Saddam adotaria uma postura mais moderada, buscando-se, pela diplomacia,

garantir vantagens comerciais relevantes para o Iraque. A partir de meados de 1990, sem

obter respostas que considerasse positivas, o presidente iraquiano aumentaria cada vez mais

sua retórica agressiva, até o ponto da invasão ao Kuwait, em Agosto. Nesta seção,

buscaremos analisar as relações iraquianas com os países vizinhos e com os Estados

Unidos, identificando continuidades e descontinuidades na postura dessas interações;

47 Idem, ibidem.48 TRIPP, pp. 249.49 BARAM, Amatzia. “The Iraqi Invasion of Kuwait: Decision-Making in Baghdad”; in BARAM, Amazia e RUBIN, BARRY, Iraq’s Road to War, pp. 8.

148

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finalmente, faremos uma investigação, também sob moldes bibliográficos, sobre os

objetivos, razões e motivações para a invasão do Kuwait.

a) A Diplomacia Moderada

Com o fim da ameaça iraniana, o apoio externo ao Iraque não era mais tão

significativo quanto antes.50 Com os problemas econômicos que o país possuía, Aburish51

afirma que Saddam Hussein possuía duas alternativas de política externa para voltar a

influenciar os países da região, e que só seriam eficientes sem interferência externa: 1.

continuar o programa de armas não convencionais, de forma a tornar o Iraque uma potência

regional forte e ameaçadora o bastante para assumir uma posição de liderança dentre os

países do Golfo; 2. assumir a posição de liderança árabe se colocando como o campeão da

causa palestina e confrontando Israel. Ambas, em tese, permitiriam ao país forçar o apoio

dos países árabes e, inclusive o Ocidente, que poderia conceder créditos para barrar os

distúrbios iraquianos que pudessem afetar o equilíbrio regional entre árabes e israelenses;

para o autor, Saddam optara por uma combinação entre as duas possibilidades

mencionadas. A agenda iraquiana era, segundo Baram52, bastante extensa: a disputa

territorial com o Kuwait; a questão palestina; a presença norte-americana no Golfo e o

declínio da URSS nessa região; disputas sobre os preços do petróleo e sobre quotas de

produção; demandas iraquianas pelo cancelamento das dívidas e por ajuda financeira dos

países árabes do Golfo.

Nesse primeiro momento, a moderação iraquiana se deu em diversas arenas. No

final de 1988, apoiou o histórico reconhecimento de Israel pela Organização para a

Libertação da Palestina. Em Fevereiro de 1989, juntamente com o Egito, o Iêmen do Norte

e a Jordânia, o Iraque fundou o Conselho de Cooperação Árabe (CCA), grupo criado com o

objetivo de promover s causa palestina, resistir à hegemonia iraniana e pressionar a Síria.53

Em seguida, assinaria um pacto de não-agressão com a Arábia Saudita, e buscaria uma

aproximação ainda maior com o Egito. Mais especificamente com o Kuwait, Saddam 50 ABURISH, pp. 253.51 Idem, pp. 254.52 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 9.53 KARSH, pp. 200. Marr (pp. 213) afirma que os objetivos da organização não eram claros; Aburish (pp. 257) concorda com essa afirmação, entendendo que se sua elaboração era mais um esforço iraquiano de liderança regional.

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buscou pressionar, ainda por via diplomática, a cessão das ilhas de Bubiyan e Warba no sul

(que permitiriam ao país não só um grande aumento nas capacidades do porto de Umm

Qasr, mas também a efetivação de uma marinha iraquiana, até então virtualmente

inexistente)54 e o cancelamento da dívida; a visão por parte dos kuwaitianos de que sua

ajuda durante a guerra anterior contra o Irã55 e a sua contrapartida de demarcação em partes

não-definidas da sua fronteira com o Iraque56 (o que não foi aceito por Saddam)

inviabilizaram os avanços diplomáticos. A aproximação com esses países, em geral

considerados moderados, tiveram repercussão positiva no Ocidente.57

Contudo, a repercussão internacional do uso iraquiano de armas químicas contra a

população curda no final da guerra foi tremendamente negativa, o que começou a afetar a

relação do Iraque com os Estados Unidos. Durante o ano de 1989, no entanto, apesar dos

relatórios da inteligência norte-americana indicando a continuidade do programa bélico

iraquiano, a pressão do Congresso por sanções econômicas contra o regime de Saddam e o

aumento das reportagens críticas por parte dos meios de comunicação, o executivo,

influenciado pelo exponencial aumento no comércio bilateral com o Iraque58 (em especial

no setor de armamentos, com a venda de motores para helicópteros, bombas à vácuo para

usinas nucleares, equipamentos de comunicação, amostras de bactérias e toneladas de gás

Sarin)59, manteve relações razoavelmente cordiais com Hussein. Para Khadduri, os Estados

Unidos não entendiam o Iraque como um aliado, mas acreditavam que o país poderia atuar

como uma força a favor da moderação e da paz no Oriente Médio.60

b) A Diplomacia Agressiva e o Contexto da Ofensiva Iraquiana no Kuwait

Embora a maioria dos especialistas tenda a considerar isoladamente um ou outro

fator como preponderante para o reajuste da política externa iraquiana a partir do início de

54 MARR, pp. 218-219.55 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 10.56 KOSTINER, Joseph. “Kuwait: Confusing Friend and Foe”; in Iraq’s Road to War, pp. 111.57 KARSH, pp. 200.58 Idem, pp. 199. De acordo com o autor, o crescimento comercial também era lucrativo para a Grã-Bretanha. Aburish (pp. 267-268) também argumenta sobre o descolamento entre o comportamento do poder executivo e da inteligência no período.59 ABURISH, pp. 269.60 KHADDURI, Majid; GHAREEB, Edmund. War in the Gulf, 1990-91, pp. 96-97.

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199061, a junção de diferentes eventos parece ganhar uma maior capacidade explicativa para

compreender as ações iraquianas que, em última instância, levaram à invasão do Kuwait em

Agosto daquele ano.

Tripp considera que a continuidade da crise econômica dentro do país, auxiliada

pelo insucesso das reformas econômicas implementadas por Saddam e pela continuidade do

declínio do preço do petróleo levaram o regime iraquiano a buscar persuadir a OPEP a

diminuir as quotas de produção e a cobrar mais empenho à Arábia Saudita e ao Kuwait a

ajudar o Iraque.62 Clawson concorda com a ênfase econômica dada por Tripp na explicação

para a alteração da postura de Saddam, mas salienta que a atitude do líder iraquiano era

baseada na sua indisposição em abandonar suas políticas tidas como populistas, somente

viáveis pelo contínuo aumento do preço do petróleo.63 Aburish responsabiliza

principalmente a continuidade das seguidas críticas do Congresso norte-americano ao seu

regime, o que, pelas reverberações negativas (como o aumento das pressões por sanções

econômicas, cessação do envio de créditos alimentícios e corte de envios de equipamentos

para uso militar), punha em risco a capacidade iraquiana tanto de proporcionar bem-estar à

população como de manter seu programa de desenvolvimento bélico, que mantinha as

aspirações iraquianas de liderança regional; além disso, o aumento da produção de petróleo

por Kuwait e os Emirados Árabes Unidos, em desacordo com as quotas estabelecidas pela

OPEP, teriam colocado o país num apuro ainda maior.64 Karsh insere a mudança de

orientação da política externa iraquiana no contexto das várias quedas de regimes, a seu

ver, similares ao iraquiano na Europa Oriental, que significariam o aumento da

predominância dos Estados Unidos na arena internacional e, com isso, cresceriam as

chances de uma conspiração para a derrubada de seu governo.65 Khadduri66 considera como

61 Autores como Fred Halliday (cf. Islam and the Mith of Confrontation, pp. 84) entendem que a reorientação da política externa iraquiana tenha ocorrido ainda em 1989, mas só se tornado aparente a partir de 1990. De acordo com ele, Saddam Hussein esperava que, com a morte de Khomeini, o Iraque pudesse negociar um acordo com o Irã que lhe fosse favorável, supondo que este estivesse enfraquecido após a morte de seu líder. No entanto, ao contrário de sua previsão, o novo governo iraniano se estabeleceu com bastante solidez; sem conseguir extrair vantagens do vizinho maior, teria resolvido tentar suas chances contra o menor e mais frágil, Kuwait.

62 TRIPP, pp. 251-252.63 CLAWSON, pp. 72. Conforme visto (cf. nota 31), o autor discorda sobre os efeitos do declínio do petróleo na economia iraquiana já que, em números absolutos, as exportações continuavam a aumentar no período.64 ABURISH, pp. 258-260.65 KARSH, pp. 208.66 KHADDURI, pp. 95-100.

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pano de fundo para o aumento da agressividade iraquiana três fatores: a instabilidade no

Oriente Médio após o término da guerra com o Irã, já que o cessar-fogo com o vizinho era

extremamente frágil, e requeria, em sua consideração, a continuidade do rearmamento

iraquiano para manter a estabilidade na região; tal aumento da capacidade militar teria

aumentado as preocupações dos Estados Unidos e de seu aliado regional, Israel, de que o

equilíbrio de poder regional fosse alterado, levando a relações cada vez mais duras entre

eles e o Iraque; o aumento das tensões estremeceu as relações iraquianas com os norte-

americanos, levando a uma contínua desconfiança mútua que resultou em escaladas

retóricas cada vez mais agressivas. Baram67 acredita que os vários eventos mencionados,

incluindo o fechamento do rio Eufrates pela Turquia em 01.1990 para encher uma represa

local (e que gerou grandes protestos nas comunidades xiitas do sul) criaram um grande

senso de vulnerabilidade por parte do governo iraquiano, que passou a defender-se com

críticas cada vez mais duras ao ocidente e seus aliados na região. Em outras palavras, teria

havido, no seio da liderança iraquiana, a convergência de sentimentos de insegurança

internos (motivados principalmente por fatores econômicos) com um grande senso de

insegurança externa, dada a configuração diferenciada que tomada a ordem mundial e a

impossibilidade gradativa de se implantar os planos de liderança regional dentro desse novo

contexto.

i. Relações com os Estados Unidos e o Ocidente

A partir do início de 1990, o relacionamento iraquiano com o Ocidente

(principalmente os Estados Unidos) se deteriorou rapidamente. De forças essenciais para a

vitória iraquiana apenas dois anos antes, transformaram-se, cada vez mais, em opositores

claros às demandas iraquianas, muito embora alguns esforços de mediação, ainda que

falhos, foram realizados. Nesta seção, investigaremos as eventuais motivações para a

mudança de postura ocidental e as repercussões de eventos importantes do período, como a

condenação à morte sob acusação de espionagem de um repórter anglo-persa e o encontro

de Saddam Hussein com a embaixadora norte-americana em Bagdá, às vésperas da invasão.

67 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 10.

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ii. A Alteração da Política Externa dos EUA perante o Iraque

Majid Khadduri68 defende a tese de que, dentro dos círculos de poder norte-

americanos, a corrente que defendia a cooperação com o Iraque, aceita pelo Departamento

de Defesa, prevaleceu de 1986 (após o caso Irã-Contras) até o início de 1990, quando a

linha mais dura, advogada pelo Congresso, pela Inteligência e pela imprensa passou a

delimitar as ações norte-americanas. A distinção comportamental entre os discursos de

Bush e as denúncias dos meios de comunicação não era bem compreendida e aceita pela

cúpula iraquiana. Eventos concomitantes, que continuaram a expressar esse indevido

entendimento da dinâmica política norte-americana, e a repercussão pública da apreensão

de material nuclear iraquiano deram força para a segunda corrente, cada vez mais

preponderante conforme Saddam aumentava o tom de suas críticas aos Estados Unidos e a

seus aliados. Aburish69 afirma que a descoberta da opinião pública norte-americana sobre a

participação de diversas corporações norte-americanas no rearmamento iraquiano, mesmo

com as críticas feitas pela imprensa, resultaram em grande pressão para o governo Bush,

que então passou a apoiar Saddam mais cautelosamente. Com a denúncia pública de

representantes norte-americanos sobre os direitos humanos existentes no Iraque e,

paralelamente, com as várias tentativas de assassinato ao presidente iraquiano, Saddam

passou a se convencer cada vez mais de que sofreria uma conspiração, e então passou a

criticar abertamente os EUA.

iii. O Caso Bazoft e a Operação Argus

Ainda em Março de 1990, Farzad Bazoft, jornalista anglo-iraniano, seria morto sob

acusações de espionagem. O caso repercutiu em todo o hemisfério ocidental de maneira

bastante negativa, resultando num isolamento definitivo do Iraque perante a maioria dos

países daquela região, o que seria particularmente importante para a formação da coalizão

anti-Iraque que removeria, um ano mais tarde, as tropas de Saddam do Kuwait. Para

Karsh70, a execução do jornalista ocorrera pela percepção de Hussein de que Bazoft seria

68 KHADDURI, pp. 96-99.69 ABURISH, pp. 271-272.70 KARSH, pp. 208.

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um conspirador da aliança Irã-Inglaterra, e que sua morte, então, seria um recado claro de

força contra os potenciais golpistas ao regime iraquiano. Baram71 acredita que a pena tenha

sido aplicada para mostras de impassibilidade às potências ocidentais e, com isso,

minimizar as chances de apoio destas ao Kuwait; além disso, Saddam teria calculado que a

perda no comércio bilateral com a Inglaterra, da ordem de 400 milhões de dólares, não

seriam relevantes em relação ao que conquistaria adiante, já que as corporações inglesas

continuariam a vender armas para o Iraque (o que, por algum tempo, acabou ocorrendo).

Ainda em 1988, por meio da denominada Operação Argus, a inteligência norte-

americana passou a investigar o desenvolvimento iraquiano de armas não convencionais,

principalmente as nucleares. As contínuas apurações resultaram na interceptação, em

Março/Abril de 1990, de diversos componentes utilizados para a construção de bombas

atômicas; os estudos feitos pela CIA indicavam que o país estava a apenas alguns anos de

conseguir viabilizar aquele artefato bélico72. A resposta iraquiana, por meio de ameaças a

Israel, recebida com entusiasmo no mundo árabe, foi bastante criticada no ocidente,

contribuindo para deteriorar as relações do Iraque com aqueles países.73

iv. A Reunião com April Glaspie

A uma semana da invasão iraquiana, Saddam Hussein convidou a embaixadora

norte-americana em Bagdá, April Glaspie, para uma reunião, em que foram discutidas as

relações entre os países, as críticas iraquianas ao Kuwait e a percepção dos EUA sobre o

tema; dentre as afirmações da embaixadora, duas são especialmente relevantes: o

entendimento da crise como um assunto unicamente árabe, sem pretensão de envolvimento

dos Estados Unidos, e a confirmação da não assinatura de um pacto de defesa norte-

americano com os países do Golfo.74 As razões (afora a importância do encontro, discutida

mais adiante) para as declarações dadas pela representante estadunidense e para a própria

existência da reunião foram alvo de diversas interpretações. Para Baram75, tratou-se da

tentativa iraquiana de testar verdadeiramente a posição norte-americana sobre a querela do 71 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 11.72 RUBIN, Barry. “The United States and Iraq: From Appeasement to War”; in BARAM, Amatzia, e RUBIN, Barry. Iraq’s Road to War, pp. 262.73 KHADDURI, pp. 100.74 ABURISH, pp. 281-282.75 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait!, pp. 19-21. Karsh (pp. 215-216) possui posição similar.

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Iraque com o país vizinho, de tal forma a verificar seu comportamento no caso de uma

invasão; para ele, os Estados Unidos promoveram o encontro para melhorar as relações

bilaterais com o Iraque, e não para pressionar o regime. Khadduri também vê a reunião

como uma maneira de Saddam buscar analisar o real posicionamento dos EUA após as

tensas relações que haviam sido estabelecidas entre os países nos meses anteriores; afirma

também que o posicionamento de Hussein não foi conciliatório, o que indicava que o

regime estava disposto a ir para a guerra.76 Marr77 apresenta duas outras explicações: o

encontro como marca do receio iraquiano de interferência norte-americana, servindo,

assim, como um aviso claro para mantê-lo fora da crise; outra, afirmava que o debate com a

embaixadora fazia parte de uma estratégia para enganar os Estados Unidos e, assim,

conseguir mais tempo para atacar o Kuwait sem sofrer retaliações prévias.

v. Relações com o Mundo Muçulmano e o Aumento das Pressões contra o

Kuwait

A partir do início de 1990, o aumento das críticas iraquianas em reuniões da OPEP e

da liga árabe se tornou cada vez mais evidente. Saddam Hussein requisitaria enfaticamente

para que os países árabes, em especial o Kuwait e os Emirados Árabes Unidos, passassem a

respeitar suas quotas de produção de petróleo. Representantes do governo iraquiano

realizavam, continuamente, rodadas de viagens pelos países do Golfo solicitando um

comprometimento maior destes com as demandas iraquianas.78 Mais especificamente,

Saddam aumentava suas críticas para com o Kuwait. Contudo, pouco era alcançado em

termos de concessões até alguns meses antes da invasão, a não ser a disposição da Arábia

Saudita em cancelar a sua parte da dívida iraquiana.79 Com o fim dos empréstimos norte-

americanos em Maio e informes sobre visitas de representantes da CIA ao Kuwait

(seguidas por novos aumentos na produção de petróleo kuwaitiano), o presidente iraquiano,

que se dedicava a lançar discursos anti-sionistas, passou a focar suas atenções no pequeno

país árabe.80 Em reunião extraordinária da Liga Árabe no final daquele mês, ataques mais

76 KHADDURI, pp. 113-114.77 MARR, pp. 227.78 KHADDURI, pp. 105-108.79 MARR, pp. 220.80 ABURISH, pp. 276-277.

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duros à política do país vizinho se tornaram mais claras, como a declaração de Hussein de

que, de fato, a continuidade da recusa do Emir do Kuwait em atender as suas exigências era

“uma declaração de guerra contra o Iraque”81, além de demandar aos países árabes por uma

espécie de Plano Marshall, com investimentos de cerca de 30 bilhões de dólares para a

recuperação da economia iraquiana.82 Até o início de Julho, Saddam não havia recebido

nenhuma resposta clara do Kuwait, até que, num encontro de ministros do Iraque, Arábia

Saudita, Kuwait e Emirados Árabes Unidos fora estabelecido, finalmente, o cumprimento

das quotas de produção de petróleo estabelecidas pela OPEP. No entanto, no dia seguinte,

representantes do Kuwait declararam que o respeito ao promulgado na reunião seria revisto

dali em três meses, com possibilidade de cancelamento, o que fez as negociações recuarem

naquele momento.83 As tensões escalaram enormemente até o final do mês; o presidente

Mubarak, do Egito, tentara realizar a mediação entre Saddam e o Emir; conseguira um

encontro de representantes no final do mês, e acreditava que, com isso, a crise se

resolveria.84 Contudo, o encontro em Jidda, a 31 de Julho, foi um fracasso e, logo em

seguida, as tropas iraquianas (que já se movimentavam para a região fronteiriça entre os

países desde o início daquele mês)85 invadiram e conquistaram o Kuwait.

vi. Razões para a Não Negociação do Kuwait

O comportamento do Kuwait, visto como quase inercial (e, por vezes, impassível)

pela maioria dos autores86 e sua relação com a subseqüente invasão iraquiana são

justificados por diversos autores. Para Karsh87, os kuwaitianos simplesmente não

acreditaram na seriedade dos discursos de Saddam, e que quaisquer concessões feitas ao

Iraque seriam um sinal de fraqueza, que levaria a infinitas demandas no futuro pelo

presidente iraquiano. Para Kostiner88, o Kuwait acreditava que a estratégia de

81 MARR, pp. 221.82 KARSH, pp. 211-212.83 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 16-17.84 KHADDURI, pp. 110.85 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 17.86 A exceção mais clara para esse entendimento parece estar em Kostiner (“Kuwait: Confusing Friend and Foe”, pp. 113), que argumenta que o Kuwait fora flexível nas negociações em Jidda, mas que os representantes iraquianos rejeitaram suas propostas. 87 KARSH, pp. 212.88 KOSTINER, pp. 112-114.

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prolongamento das negociações (“a maneira beduína”), baseada em mediações por

diferentes fóruns internacionais, poderia resultar num melhor ajustamento para o caso; na

realidade, o encontro de Jidda seria somente o primeiro de uma série de outros em que o

assunto seria tratado mais seriamente, o que indica que o ataque iraquiano fora uma

surpresa para as lideranças políticas locais. Aburish89, no entanto, vê de outra maneira. Para

ele, a posição altamente desafiadora do Kuwait só poderia ser entendida por meio das

profundas relações do país com países como Estados Unidos e Inglaterra; juntamente com a

Arábia Saudita, o Kuwait era o principal enclave pró-ocidental da região do Golfo.

Recebendo apoio da inteligência norte-americana, o governo do Kuwait não só teria se

recusado a negociar de maneira mais cuidadosa, mas também teria se responsabilizado em

suprir a demanda ocidental durante a guerra Irã-Iraque, preenchendo a lacuna iraquiana.

Exemplo desse comprometimento seria a própria fuga da família real kuwaitiana, que teria

sido orquestrada com a CIA meses antes da invasão iraquiana.90 Khadduri é favorável a

essa interpretação, indicando a indisposição do Kuwait em negociar mesmo no encontro de

Jidda, tendo sido seus representantes aconselhados pelo Emir:

“Whatever you may hear from the Saudis or the Iraqis about brotherhod

and Arab solidarity, forget it. Every one of us has his own interests. The Saudis

want to weaken us … so that they can press us in the future to give them

concessions in the neutral zones. The Iraqis want to compensate for their losses

in the war at our expense. Neither of these should happen. That is the view of our

friends in Egypt, Washington, and London. We are more powerful than they

imagine. With all my wishes for your success, Jabir.”91

vii. A Decisão pela Invasão, as Razões e os Objetivos Imediatos

O momento da decisão pelo uso da força é tema controverso dentre os autores

estudados. Para Amatzia Baram92, embora a cúpula iraquiana já cultivava a idéia de invadir

o Kuwait desde 1988, a opção pela resolução da crise por meios militares teria sido tomada

89 ABURISH, pp. 260; 276-280.90 Idem, pp. 283.91 KHADDURI, pp. 114-115. O trecho destacado faz parte das anotações feitas pelo Rei Fahd, da Arábia Saudita, antes do início da reunião entre as partes.92 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 14-15.

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em Abril de 1990, já que, nesse momento, Saddam se aproximava de Rafsanjani, o líder

iraniano, de forma a buscar um tratado com o vizinho de forma a conseguir uma garantia de

paz, o que lhe permitiria focar-se no Kuwait. Marr considera que a preparação das tropas

militares teria sido iniciada pelo menos em Maio (dado o aumento do tom das declarações

de Saddam) e que, conforme o Kuwait continuava a recusar-se a ceder, mais apoio interno

o líder iraquiano obtinha para a invasão.93 Karsh, no entanto, acredita que a opção pelo uso

da força teria vindo somente em Julho, após a rejeição kuwaitiana, pela última vez, em

cumprir com as determinações de produção da OPEP.94

Com relação às motivações para a invasão ao Kuwait, Sluglett95 enxerga três

origens: a ambição quase patológica de Saddam Hussein e seu desejo de conquistar um

grande papel de liderança no mundo árabe; o fato de possuir uma imensa máquina militar,

que não podia ser simplesmente posta de lado; as mudanças na conjuntura internacional,

como o enfraquecimento da União Soviética, requeriam um posicionamento agressivo por

parte dessa liderança do mundo árabe. Karsh96, mais objetivamente, vê na “combinação

dialética entre onipotência e impotência” por parte do Iraque, a grande crise econômica no

país, o receio de ataques de Israel e um senso de humilhação à imagem de Saddam Hussein,

causado pelas recusas de concessão por parte do Kuwait como as circunstâncias que

sedimentaram a idéia de uma invasão iraquiana.

Para Tripp, o Kuwait seria utilizado como uma espécie de produto de barganha, que

poderia ser concedido em troca de concessões e recursos que aliviariam a posição

iraquiana, aumentariam a autoridade de Hussein e colocaria o Iraque como líder do mundo

árabe e como controlador do mercado de petróleo.97 Rubin98 vê a ofensiva iraquiana como

parte de um projeto maior, que permitiria ao Iraque produzir mais armas não

convencionais, que o tornariam capaz de invadir outros países e intimidar qualquer

oposição. Nesse contexto, responsabiliza os Estados Unidos e seus aliados regionais por

não terem se colocado em posição de neutralidade, o que colocava Saddam com excessiva

liberdade de ação.

93 MARR, pp. 225. 94 KARSH, pp. 213.95 SLUGLETT, pp. 284.96 KARSH, pp. 211.97 TRIPP, pp. 252.98 RUBIN, Barry. “The United States and Iraq”, pp. 263. Halliday (pp. 84-85) possui opinião similar sobre o comportamento do ocidente.

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II) A Invasão ao Kuwait, a Coalizão Anti-Iraque e a Guerra do Golfo

1. A Ocupação do Kuwait, Estratégias, Pretextos e Erros de Cálculo

De acordo com Baram99, havia dois planos formulados para a invasão do Kuwait.

No primeiro, as tropas ocupariam somente as ilhas que o Iraque reclamava para si e os

campos de petróleo próximos da fronteira entre os países; no segundo, o exército ocuparia

todo o país. Para o autor, a ocupação apenas de parte do Kuwait não resolveria a crise

financeira do Iraque, e poderia repercutir na superprodução de petróleo por outros países

árabes como retaliação. A conquista de todo o Kuwait, no entanto, permitia a Saddam não

só capturar os ativos do pequeno país, avaliados em 220 bilhões de dólares, como ainda

colocar todo o Golfo de maneira submissa a ele e tornar-se um herói para os árabes.

A decisão de Saddam pela segunda estratégia foi tomada de última hora, apesar da

aparente oposição de membros do CCR100; além disso, os militares, ainda que de forma

velada, teriam criticado o timing da invasão, sob a argumentação de que um ataque no

verão permitiria o avanço rápido das forças ocidentais para a retaliação, enquanto que

outros, dentro da corporação, entendiam que qualquer ataque enfraqueceria o país, dadas as

tensas relações travadas no Oriente Médio naquele momento; com isso, o Iraque corria o

risco de ser atacado pela Turquia, ao norte, pelo Israel, ou mesmo pelo Irã, ao sul.101 Marr

salienta que, possivelmente, a tomada de decisão tenha sido fruto de pouquíssimas pessoas,

geralmente familiares próximos de Saddam; mesmo aliados de Tikrit, como ministros e

chefes de setores estratégicos do governo seriam somente informados da invasão.102

A conquista de todo o Kuwait relacionava-se com outro aspecto importante: a

remoção da família real kuwaitiana. Caso ela fosse removida e substituída por uma elite

política amigável ao Iraque, forças estrangeiras não conseguiriam penetrar na região, seja

devido ao grande predomínio iraquiano, seja pela conseqüente repercussão negativa no

mundo árabe caso algum país permitisse o uso de suas bases para a chegada de tropas

99 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 23-25.100 ABURISH, pp. 297.101 al-JABBAR, pp. 6.102 MARR, pp. 226.

159

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ocidentais.103 Com isso, sedimentou-se a retórica de que o país havia sido chamado pela

população kuwaitiana para ser “liberada”. Contudo, a fuga do Emir e a recusa dos

principais candidatos eleitos por Saddam para sua sucessão (já que não foram sequer

previamente consultados)104 inviabilizaram o projeto. Um jovem oficial do exército do

Kuwait, que liderava um grupo de nômades que não tinham a cidadania kuwaitiana

reconhecida, acabou aceitando chefiar o governo-fantoche.

Diversos autores105 atestam o quanto a centralização do regime na figura de Saddam

Hussein e, em razão disso, o comportamento passivo dos membros mais próximos da

cúpula de poder (além da crescente campanha de culto de personalidade), fizeram com que

a visão de mundo do líder iraquiano se tornava bastante restrita: para ele, os líderes árabes

veriam a invasão como uma jogada legítima, enquanto que a comunidade internacional,

incluindo-se aí os Estados Unidos, reconheceria sua liderança regional e, com isso,

negociaria a saída iraquiana em termos favoráveis a Hussein o que, como será visto a

seguir, jamais ficou perto de ocorrer.106

a) Repercussão Internacional

A posição da maioria dos países foi marcadamente contrária ao ato iraquiano. À

exceção da Jordânia, Iêmen do Norte e a Organização para a Libertação da Palestina, todos

os demais países árabes condenaram a invasão do Kuwait.107 No Ocidente, imediatamente

após o anúncio da ocupação, os Estados Unidos congelaram os ativos do Kuwait e do

Iraque em seu país, e promoveram sanções econômicas contra o país de Saddam Hussein. A

mesma opção foi seguida pela Comunidade Européia e pelo Japão, enquanto a URSS (que

havia assinado uma declaração conjunta com os EUA condenando a invasão) e a China

interromperam o seu comércio de armas para o Iraque108. Logo em seguida, as Resoluções

660 e 661 seriam aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, nas quais era exigida a

retirada incondicional do Iraque e se implantava um regime de sanções econômicas que,

103 KHADDURI, pp. 122.104 ABURISH, pp. 284-285. Mesmo a liderança baathista do Kuwait rejeitou a proposta de dirigir o país, sob a argumentação de que a união árabe não poderia ser construída por meio de ocupações militares.105 SLUGLETT, pp. 284; MARR, pp. 228; ABURISH, pp. 264-266; BARAM, pp. 28.106 TRIPP, pp. 252.107 SLUGLETT, pp. 281.108 KARSH, pp. 218.

160

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por permitir somente o envio de alimentos e remédios, fora considerada a mais dura da

história das Nações Unidas.109 Para Khadduri, a segunda resolução fora aprovada após

grande pressão dos Estados Unidos; os únicos que votariam contra seriam o Iêmen e

Cuba.110

Apesar da manifestada oposição por parte da maioria dos países árabes, num

encontro extraordinário da Liga Árabe feito no Cairo deliberara que por uma resolução da

crise que fosse tratada somente por membros árabes. Contudo, com pressões de Mubarak,

presidente do Egito, e a divulgação de mapas pela inteligência norte-americana que

revelavam o risco de ataque iraquiano à Arábia Saudita (que se revelariam inexistentes)111,

o rei Fahd solicitou ajuda norte-americana, e então os Estados Unidos estacionaram suas

tropas na região.

b) A Anexação do Kuwait e os Acordos com o Irã

Saddam Hussein respondera às críticas internacionais de maneira agressiva,

promulgando oficialmente a anexação do Kuwait ao território iraquiano e colocando-o

como a 19ª província do país. Para Karsh, a partir da forte reação internacional, não se

tornava mais possível para as tropas iraquianas sair imediatamente do Kuwait, já que se

tornaria inviável a criação de um regime que fosse conveniente para o país e que fosse visto

como legítimo pelo Ocidente.112 Em seguida, Hussein assinaria um tratado com o Irã; ficara

acertado, no final das negociações, o respeito aos acordos de 1975, o que virtualmente

indicava, afinal, que a longa guerra ocorrida entre os dois países não tinha alterado em nada

as suas fronteiras territoriais. Entretanto, o ajuste de contas permitiria a Saddam deslocar

suas tropas do Shatt al-Arab e concentrá-las no Kuwait; ainda sim, a postura do líder

iraquiano repercutiria em perda de confiança por parte do setor militar.113

c) Tentativas e Estratégias de Negociação

109 MARR, pp. 231.110 KHADDURI, pp. 136-139.111 ABURISH, pp. 288-289.112 KARSH, pp. 221.113 MARR, pp. 232.

161

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Até Janeiro de 1991, diversas tentativas de negociação foram realizadas por diversos

países e órgãos internacionais, paralelamente à aprovação de resoluções da ONU que, em

última instância, autorizariam o uso da força para a retirada iraquiana do Kuwait num prazo

de 45, caso aquela não fosse concluída de maneira pacífica. Contudo, os autores divergem

claramente sobre a postura dos atores e sobre as conseqüências de seus atos para a crise.

Para Phebe Marr, no período entre Setembro de 1990 a Janeiro de 1991, o Iraque

permanecera intransigente, enquanto que a coalizão insistia em sua saída do Kuwait sem

contrapartidas e por meio da ameaça de uso militar. As táticas de Saddam eram claras:

absorver o Kuwait, tentar enfraquecer o grupo liderado pelos Estados Unidos e criar

erupções populares dentro dos países árabes que se aliassem à coalizão.114 Halliday afirma

que os esforços possíveis de negociação foram feitos, mas que Saddam Hussein

simplesmente os rechaçou, por não acreditar que, de fato, os aliados não atacariam o

Iraque; com a falha da diplomacia, não haveria outra saída que não a guerra.115 Aburish116,

no entanto, acredita que a liderança iraquiana fez diversos esforços para buscar uma

negociação que trouxesse alguma vantagem para o país. Desde o início da crise, os Estados

Unidos teriam se preparado para a guerra e planejavam, se possível, a remoção de Hussein

do poder. As tentativas de mediação teriam sido, em sua maioria, fruto dos esforços

iraquianos e, por vezes, desconsiderados a priori pelo Departamento de Estado norte-

americano; a não compreensão da lógica de funcionamento do mundo ocidental por

Saddam se tornaria mais um obstáculo para a resolução pacífica do entrevero, o que o

isolaria internacionalmente cada vez mais. Majid Khadduri117 critica o papel das Nações

Unidas na resolução da crise, ao afirmar a categórica diferença de seu comportamento neste

caso quando comparado com a longa guerra entre Iraque e Irã (em que, de acordo com o

autor, nenhuma atitude mais séria fora tomada pelo Conselho de Segurança); além disso, a

rapidez na aprovação de resoluções condenando a atitude iraquiana também é alvo de

ressalva, bem como o tratamento diferenciado do organismo perante o Iraque quando

comparado à complacência com que Síria e Israel foram recebidos após as suas ações no

Líbano.

114 Idem, pp. 233.115 HALLIDAY, pp. 85-86.116 ABURISH, pp. 293; 296; 299-300.117 KHADDURI, pp. 158-161.

162

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i. O Encontro Aziz-Baker em Genebra

O exemplo mais claro em que se podem observar as diferentes interpretações sobre

os reais esforços de mediação de cada parte na crise é a análise do encontro, às vésperas do

início da guerra, entre o ministro das relações exteriores do Iraque, Tariq Aziz, e o

secretário de estado dos Estados Unidos, James Baker. Enquanto Barry Rubin118 argumenta

que a reunião fora feita como um último esforço dos Estados Unidos para evitar o conflito

armado, Aburish119 afirma que Baker, ainda antes do início da negociação, já havia redigido

um documento rejeitando todas as propostas iraquianas. Khadduri120, por sua vez, entende

que nem Aziz, nem Baker estavam dispostos a negociar, já que enquanto os norte-

americanos demandavam a saída imediata do Kuwait pelas tropas iraquianas para o início

de alguma concessão ocidental, os iraquianos mantinham-se em sua convicção de retirada

somente após o atendimento de algumas de suas requisições. Em outras palavras, a

intransigência e os erros de cálculo de ambas as partes inviabilizaram as barganhas que, em

última instância, evitariam a guerra.

ii. A Retirada do Kuwait em Troca da Saída Israelense

Em razão tanto da forte rejeição do mundo ocidental à invasão do Kuwait e da

relação próxima daquele com vários dos países árabes do Oriente Médio (iniciando

entendimentos que resultariam na formação de uma coalizão anti-Iraque)121, como também,

em parte, motivado por um desejo de se tornar o campeão do pan-arabismo e de fazer com

que o tema do Kuwait fosse deixado de lado temporariamente na agenda internacional122,

Saddam Hussein condicionou a resolução da crise no Golfo à retirada de Israel de

territórios ocupados na Palestina, na Síria e no Líbano. De fato, o ato de Saddam repercutiu

tanto num distanciamento entre os líderes árabes e sua população (já que foram realizadas,

a partir de então, grandes manifestações anti-guerra)123, como em esforços por parte de 118 RUBIN, pp. 269.119 ABURISH, pp. 300.120 KHADDURI, pp. 156.121 ABURISH, pp. 290-291.122 KARSH, pp. 226-231.123 ABURISH, pp. 291.

163

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vários países (notadamente a França e a União Soviética)124 em discutir a realização de

conferências de paz que buscassem resolver os impasses na Palestina. Contudo, as ruas do

mundo árabe se insularam menos contra seus governos do que Saddam pretendia (apesar da

firme negação por parte dos governos árabes em aceitar tal proposta de Saddam)125 e, na

opinião de Marr126, podem ter sido responsáveis, em alguma medida, no aumento das

pressões internacionais para a opção pela guerra contra o Iraque.

iii. A Crise dos Reféns e os Saques ao Kuwait

Logo após a invasão do Kuwait, as tropas iraquianas mantiveram boa parte dos

estrangeiros (principalmente ocidentais) que estavam no pequeno país ocupado sob seu

domínio; também foram notórios os saques promovidos pelas tropas iraquianas, até a

destruição de vários campos de petróleo kuwaitianos após o início da guerra com a coalizão

ocidental. A cada visita de representantes de países membros da coalizão, Saddam permitia

a liberação de seus nacionais, até a decisão de soltura de todos os estrangeiros presentes no

território invadido. Para Karsh127, Saddam pretendia, com o seqüestro então em curso,

impedir quaisquer chances de ataque militar por parte da coalizão; usando os reféns como

barganha, buscava tanto conseguir vantagens materiais, como o fim de sanções bilaterais

aplicadas por diversos estados, como mesmo o enfraquecimento da coalizão, especialmente

pela soltura de cidadãos de alguns países, mas não de outros; a liberação de todos os

estrangeiros teria sido um dos últimos intentos para alterar o curso das relações com o

ocidente, que já estabelecia a guerra como maneira de resolver a crise. Contudo, a opinião

pública ocidental reagiu com indignação ao seqüestro dos estrangeiros, o que acabou por

dificultar ainda mais os esforços diplomáticos. Aburish128, no entanto, destaca o papel da

imprensa ocidental, que teria tornado o evento muito mais grave do que o teria sido de fato,

e compreende tal atitude como parte do esforço de setores governamentais dos Estados

Unidos, notadamente o Pentágono, em controlar os meios de comunicação de forma a

disseminarem uma imagem de Saddam Hussein como um criminoso, dotado de distúrbios

124 KARSH, pp. 230.125 ABURISH, pp. 291.126 MARR, pp. 233.127 KARSH, pp. 231-239.128 ABURISH, pp. 294-295.

164

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psicológicos, que o inviabilizariam como negociador e deixariam a guerra como a única

saída para a paz. Halliday129 condena o tratamento iraquiano dado aos cidadãos do Kuwait e

aos estrangeiros, além da destruição de parte da infra-estrutura do país; contudo, destaca

que, ao contrário do considerado pela imprensa e por representantes dos Estados Unidos, o

comportamento das tropas iraquianas não possuía nada de peculiar, e tampouco os atos das

forças do Iraque poderia ser comparado com o tratamento feito pelos próprios norte-

americanos aos prisioneiros de guerra vietnamitas durante a guerra ocorrida entre 1965-

1975.

d) A Formação da Coalizão e a Opção pela Guerra

Embora a formação da coalizão anti-Iraque e a decisão institucional pela guerra –

referendada pela aprovação da resolução 678 do Conselho de Segurança da ONU, que

permitia o uso da força para a expulsão do Iraque do território kuwaitiano num prazo de 45

dias caso aquele não saísse voluntariamente – como maneira mais eficiente de enfrentar o

inimigo seja vista pelos analistas, em geral, como decorrências do rompimento da ordem

internacional por Saddam Hussein (ou mesmo por um senso ético universal despertado

perante os abusos cometidos pelas tropas iraquianas à população e à economia do Kuwait),

autores como Fred Halliday e Saïd Aburish consideram a atuação persuasiva dos Estados

Unidos como a razão central para a aglutinação de forças tão díspares lado a lado (como a

Síria e os próprios EUA) e para o não veto de outros países, como a China, à resolução

mencionada130. Aburish131 afirma que a criação da coalizão foi marcada “pelo maior

suborno já documentado na história”. De acordo com ele, os Estados Unidos, a Arábia

Saudita e o Kuwait formaram, inicialmente, um banco de fundos que passou a ser

disponibilizado para diversos países, em troca, aparentemente, do ressarcimento dos custos

de guerra; a seguir, outras instituições participariam do processo. Os Estados Unidos teriam

129 HALLIDAY, pp. 99-100.130 HALLIDAY, pp. 91-92. De acordo com o autor, a abstenção da China no Conselho de Segurança da ONU teria se dado em razão da anistia dos Estados Unidos ao governo chinês com relação ao massacre ocorrido na Praça da Paz Celestial, em 1989. Aburish (pp. 294) referenda essa observação. Mais especificamente sobre as implicações da abstenção chinesa de voto na discussão sobre a resolução 678 nas Nações Unidas, Khadduri discute a validade e a força do documento aprovado, haja vista que, em sua interpretação sobre os dispositivos da Carta das Nações Unidas, entende que o uso da força só poderia ser referendado em caso de aprovação por todos os membros do Conselho de Segurança; para mais informações, cf. KHADDURI, pp. 150-153.131 ABURISH, pp. 293-294.

165

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pagado ao Egito cerca de 7.1 bilhões de dólares; à Turquia teria sido prometido 2.5 bilhões

de dólares e 8 bilhões em equipamentos militares; alem de pacotes de ajuda econômica, a

URSS receberia 6 bilhões de dólares do Kuwait e da Arábia Saudita; o Clube de Paris

eliminaria a dívida egípcia, calculada em 10 bilhões, enquanto o Conselho de Cooperação

do Golfo forneceria ao país de Hosni Mubarak e à Síria a quantia de 5 bilhões de dólares. O

autor ainda afirma que o Iêmen teria sido punido o seu veto no Conselho de Segurança à

resolução pró-uso de força militar por meio da expulsão, pela Arábia Saudita, de cerca de

800 mil trabalhadores iemenitas de seu país. Em contrapartida, Karsh132 afirma que o Iraque

teria buscado comprar o apoio de diversos países com exportações de petróleo livres de

cobranças, especialmente aqueles do chamado terceiro mundo (mas também a URSS e a

China), com o propósito de mantê-los fora da coalizão.

Com relação à opção pela força pelos Estados Unidos e pela coalizão para a

expulsão do Iraque do território kuwaitiano, Marr argumenta que o receio da manutenção

da coalizão unida por muitos meses, a continuidade da intransigência por parte do Iraque e

as atrocidades cometidas por suas tropas foram motivações para tal decisão.133 Halliday134

elenca diversas razões – apontadas tanto por apoiadores da guerra como por seus críticos,

considerando todas plausíveis – para a ida à guerra: a proteção à soberania do Kuwait, a

restauração da dinastia kuwaitiana ao poder, a garantia de oferta de petróleo, a proteção aos

países do Oriente Médio e, por outro lado, a defesa de interesses monopolistas por parte de

empresas de petróleo monopolistas do Ocidente, a proteção de oligarquias tribais, o desejo

de subordinar os rivais comerciais da Europa e do Japão, o desejo de intimidar o terceiro

mundo por meio de uma ação exemplar, a necessidade de distrair a opinião pública norte-

americana dos problemas domésticos e os subseqüentes esforços de Bush para ser reeleito.

Rubin135, por sua vez, argumenta que, dentro do contexto de uma nova ordem mundial,

pautada pela liderança dos Estados Unidos, o conflito com o Iraque era uma oportunidade

de reduzir os conflitos internacionais; a falha em condenar veementemente os atos de

Saddam Hussein poderia repercutir numa série de depredações e crises em diferentes

pontos do mundo. Aburish considera que, para além de algumas das motivações apontadas 132 KARSH, pp. 231.133 MARR, pp. 234.134 HALLIDAY, pp. 98-99. O autor aprofunda a discussão, dentro da Teoria da Guerra Justa, abordando o conceito de intenção justa (i.e. o limite da extensão dos objetivos numa guerra) para identificar as efetivas conseqüências da Guerra do Golfo para os Estados Unidos.135 RUBIN, pp. 263.

166

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por alguns autores, a ofensiva norte-americana estava ligada, num contexto maior, a uma

tentativa da liderança em restaurar o orgulho dos estadunidenses por meio da “exorcização

dos fantasmas do Vietnã”136.

e) Inevitabilidade da Guerra?

A temática da possibilidade de se ter resolvido o impasse no Golfo de maneira

diplomática é alvo de estudo de diversos especialistas, e se torna importante, na medida em

que, com sua observância, também se permite observar os limites das ações dos atores que

interagiram naquela situação, bem como seus interesses e a implicação de seus atos para a

vida iraquiana.

Khadduri137, autor que busca trazer uma perspectiva árabe de análise, entende que a

guerra não era inevitável; para ele, caso houvesse um esforço maior por parte dos países

árabes – primeiramente no encontro de Jidda, às vésperas da invasão e, posteriormente, nos

primeiros dias da ocupação iraquiana – em mediar a crise, apresentar propostas mais sólidas

ao Iraque e refutar condenações públicas à ofensiva das tropas de Saddam Hussein,

possivelmente o líder iraquiano poderia, finalmente, sentir que seus apelos fossem

compreendidos e, então, evitasse a ocupação ou então a encurtasse até o completamento das

negociações. Não tendo isto ocorrido, as potências ocidentais se aproveitaram da hesitação

e tomaram o controle do direcionamento do impasse, o que levou, então, ao atendimento

prioritário de seus interesses. Nesse sentido, a responsabilidade pela guerra seria dividida

tanto pelos árabes como pelo mundo ocidental. Rubin138 também acredita que a guerra

poderia ter sido evitada, mas a iniciativa visando tal fim seria do Iraque. Para ele, algumas

concessões iraquianas, especialmente um recuo estratégico para uma porção territorial

menor do Kuwait, poderia ser uma demonstração de vontade mais clara de resolução

pacífica, que faria a opinião pública ocidental a pressionar seus governos a avançarem as

negociações e mesmo criar tensões dentro da coalizão, ao menos retardando o início da

guerra. Baram139 crê que, de fato, a paz poderia ter sido alcançada no Golfo, mas entende

que impeditivos relevante seriam as posições ambíguas de países como França e URSS e as

136 ABURISH, pp. 306.137 KHADDURI, pp. 255-260.138 RUBIN, pp. 268-269.139 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 28.

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manifestações anti-guerra no Ocidente que, aliadas a uma visão peculiar do mundo por

parte de Hussein, o fizeram acreditar que a ofensiva da coalizão seria um mero blefe, e que

então poderia continuar com seu comportamento intransigente. Karsh140, no entanto,

considera que uma mudança no comportamento iraquiano seria inconcebível, já que a

guerra seria, na realidade, a única possibilidade da sobrevivência política de Saddam

Hussein e de florescimento econômico do Iraque; recuar sem nenhuma conquista efetiva

seria uma derrota grande demais para o líder iraquiano, enquanto que mesmo uma derrota

poderia significar a sua consagração como “o herói das massas árabes que enfrentou o

imperialismo ocidental e sobreviveu”. Aburish141 veria como eventual saída para o

entrevero a negociação entre o Iraque e a URSS (considerada pelo autor como o único país

efetivamente capaz de alterar a situação da crise); contudo, também acredita que os erros de

cálculo de Saddam – representados nas declarações de que os Estados Unidos sofreriam os

mesmos problemas enfrentados no Vietnã caso atacassem Bagdá – sejam um forte

indicativo de que uma mudança de postura seria improvável por parte do líder iraquiano

naquele momento, graças também à assessoria equivocada e contemplatória de seus

aliados.

2. A Guerra do Golfo de 1991

Após o fim do período de 45 dias dado pelas Nações Unidas para a saída

incondicional do território kuwaitiano pelo Iraque, a coalizão, formada por 32 países e

liderada pelos Estados Unidos, iniciou (em 16.01.1991) a guerra, adotando a seguinte

tática142: realização de ataques aéreos, primeiro atingindo alvos estratégicos – como centros

de comunicação, comando e controle, e fábricas de armas –, depois visando destruir

reservas importantes e a destruição de canais de comunicação entre as tropas iraquianas no

front, para que então se preparasse taticamente uma invasão por terra, que levaria, enfim, à

expulsão dos iraquianos do Kuwait. O exército iraquiano adotou diversas medidas para

conter as ofensivas da coalizão e para envolver outros atores no conflito, como o

lançamento de mísseis contra Israel e ataques a bases localizadas na Arábia Saudita, mas

140 KARSH, pp. 241-243. 141 ABURISH, pp. 301.142 KHADDURI, pp. 175. Aburish (pp. 301) afirma que a coalizão também decidiu incluir, de última hora, alvos não militares, como monumentos, supermercados e fábricas.

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não obteve sucesso. Após 38 dias, as tropas norte-americanas passaram a se envolver em

conflitos no chão, enfrentando tropas altamente combalidas pelos seguidos ataques aéreos.

Em quatro dias, e com grande facilidade, haviam conseguido expulsar os iraquianos do

Kuwait, e ainda penetrar no território mesopotâmico. Em 3 de Março, o Iraque, finalmente,

aceitou todas as resoluções aprovadas pelas Nações Unidas, conseguindo obter um cessar-

fogo.

a) Estratégias Iraquianas

A discussão sobre as táticas empregadas por Saddam Hussein no conflito leva a

diferentes percepções sobre os atos das tropas iraquianas (melhor analisadas nas seções

seguintes). Em linhas gerais, existem duas correntes de interpretação: Marr e Karsh143

argumentam que o líder iraquiano, tendo consciência da fraqueza de suas forças armadas

perante as forças da coalizão, buscaria o quanto antes forçar um confronto aberto por terra,

de forma a causar o máximo de vítimas dentre os soldados inimigos, pressionando a

opinião pública a negociar em termos favoráveis ao Iraque e levando a guerra, assim, ao

seu término o mais cedo possível. Aburish144, por outro lado, entende que Saddam,

inicialmente, optara pelo uso de sua força aérea e de seu sistema de defesa terra-ar, que

falharam completamente em razão da grande superioridade tecnológica do equipamento

militar dos adversários. Em seguida, buscaria, também como mencionado pelos demais

estudiosos, o fim antecipado do conflito; mas, ao contrário daqueles, tentava evitar ao

máximo um conflito por terra, que levaria a muitas mortes entre suas tropas e a uma

conseqüente insatisfação popular. Tripp145 afirma que, em razão da rapidez e do nível das

ofensivas aliadas, torna-se difícil afirmar o quão sério Hussein realmente pretendia

defender o Kuwait, sendo possível que tivesse tomado a decisão de abandonar o país, no

final de Fevereiro, deixando as tropas iraquianas à sua própria sorte, o que indicaria o

despreparo estratégico da liderança iraquiana em enfrentar a guerra e suas implicações.

Jabbar146 afirma, pelo contrário, que Saddam, possivelmente ainda com uma percepção

equivocada sobre a vitória contra o Irã, de fato acreditava ser capaz de derrotar as forças

143 KARSH, pp. 244-248; MARR, pp. 236.144 ABURISH, pp. 301-303.145 TRIPP, pp. 254-255.146 al-JABBAR, pp. 6-8.

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aliadas, especialmente por meio de um conflito por terra, no qual esperava causar pelo

menos 30 mil mortes dentre os inimigos. Contudo, como afirma o autor, o exército

iraquiano não teria lutado mesmo se tivesse recebido ordens contínuas de estimular ataques

no solo, dada a devastação causada pos bombardeios da coalizão e a total falta de

alimentação no front (dados os efeitos das sanções econômicas), que desmoralizava

completamente os soldados iraquianos.

i. Ataques a Israel

Logo após o início da guerra, Saddam Hussein atacou, por meio do lançamento de

dezenas de mísseis Scud, as cidades de Haifa e Tel Aviv, matando cerca de dezenas de

israelenses147, no que ficou conhecido como a primeira ofensiva militar de um estado árabe

contra centros populacionais israelenses desde a fundação desse país, em 1948.148 Diversos

especialistas, especialmente Karsh149, consideram o evento como a tentativa mais evidente

da liderança iraquiana em trazer Israel para a coalizão, forçando uma retaliação que, muito

provavelmente, enfraqueceria o grupo aliado, dadas as históricas relações hostis entre

aquele e os países árabes. O clima de tensão gerado também repercutiria, segundo o autor,

na mudança da estratégia das forças multinacionais para um confronto por terra (já que

receavam pelo fim da coesão do grupo), o que seria, em tese, favorável ao Iraque.

Khadduri150 também vê no ataque iraquiano o propósito de retaliação israelense, e enfatiza a

sua ineficácia, já que o governo de Tel Aviv fora persuadido pelos Estados Unidos a não

retaliarem em troca do envio de grande quantidade de equipamento militar ao país e de

doações dos próprios EUA (cerca de um bilhão de dólares), da União Européia e de

Alemanha, o que simbolizaria uma forte aproximação do bloco ocidental a Israel nesse

momento de crise. Marr151 destaca a importância da ofensiva iraquiana para o arsenal de

propagandas de Hussein, que passava a proclamar a vulnerabilidade de Israel, conclamando

ataques similares por países árabes da região – que não responderam.

147 KHADDURI, pp. 171.148 KARSH, pp. 248.149 Idem, pp. 248-250.150 KHADDURI, pp. 171-172.151 MARR, pp. 236.

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ii. Ataque às Bases da Coalizão na Arábia Saudita

Com cerca de duas semanas de conflito, as tropas iraquianas empreenderam a

primeira grande medida ofensiva contra os aliados. Por meio de um ataque surpresa a

posições da coalizão na Arábia Saudita, conseguiram conquistar a cidade de Khafji e

mantiveram o seu controle sobre a mesma por dois dias, até serem derrotados por massivos

ataques aéreos, não sem antes infligirem as primeiras perdas às forças multinacionais no

solo. Para Aburish152, a medida era uma missão suicida do exército iraquiano, já que as

unidades estavam sem alimentação por dias e sofriam com os intensos bombardeios aéreos

da força aérea da coalizão; para ele, era um indício de que o Iraque estava perto de entrar

em colapso, mas que tal consideração não alterou o planejamento militar dos aliados (que

continuaram a atacar a infra-estrutura civil e militar de Bagdá). Marr153 afirma que, com as

derrotas iraquianas, a solução negociada começou, pela primeira vez, a ser contemplada por

Saddam. Karsh154 argumenta que o ataque iraquiano se inseria dentro da estratégia de

causar, o quanto antes, um conflito por terra, e que a ofensiva seria vista com empolgação

pelo mundo árabe, além de aumentar a moral dos soldados. Ambos os lados declararam

vitória, mas a continuidade dos seguidos ataques aéreos dos aliados continuou a minar a

resistência das tropas iraquianas, que contavam com pouco auxílio de sua força aérea.

iii. Busca de Apoio da URSS pelo Iraque, o Conflito por Terra e o Cessar-Fogo

A partir da segunda semana de Fevereiro, Saddam Hussein passa a se mostrar cada

vez mais disposto a negociar a saída do Kuwait. Por meio de negociações com a União

Soviética, passa a apresentar propostas para a retirada das tropas iraquianas do território

kuwaitiano. Inicialmente, o líder iraquiano associava a saída do Kuwait ao cancelamento de

todas as resoluções da ONU e, ainda, à saída de Israel dos territórios ocupados, além da

definição do futuro do Kuwait sem interferência ocidental.155 Com as seguidas recusas dos

Estados Unidos, que afirmavam que seriam eles quem deveriam propor condições para que

152 ABURISH, pp. 302.153 MARR, pp. 236-237.154 KARSH, pp. 255-256.155 KHADDURI, pp. 176.

171

Page 172: Saddam Hussein e o Partido Baath no Processo de Transformação do Estado Iraquiano (1968-1991)

fosse evitada uma guerra por terra156, o Iraque passou a diminuir suas demandas, e aceitou

um plano de paz proposto por Mikhail Gorbachov, presidente da União Soviética, que

referendava o cumprimento da resolução 660 das Nações Unidas (que requeria a saída

incondicional do território do Kuwait pelo Iraque) num prazo de 21 dias, a soltura de todos

os prisioneiros de guerra e o gerenciamento do cessar-fogo por tropas da ONU em troca do

cancelamento das resoluções punitivas do Conselho de Segurança.157 No entanto, os

Estados Unidos rejeitaram a proposta; Bush dera o ultimato para a saída de todo o efetivo

iraquiano em dois dias (entre 21 e 23 de Fevereiro), a restauração e o reconhecimento do

governo do Kuwait, o pagamento de reparações aos kuwaitianos e a continuidade das

sanções econômicas contra o Iraque.158 Novas tentativas de negociação foram rechaçadas

por Washington, e então o conflito por terra se iniciou.

Para Phebe Marr159, a negociação de última hora de Saddam com os soviéticos

indicava que, a essa altura, o objetivo de manter o controle do Kuwait já haviam sido

deixados de lado, o que seria comprovado pela tentativa de destruição, às vésperas da

invasão por terra dos norte-americanos, das instalações petrolíferas kuwaitianas (o que não

cessou a ofensiva aliada). Karsh160 afirma que o Pentágono compreendera a tentativa de

Saddam em negociar como um ato de desespero, o que justificou o grande aumento dos

ataques aéreos dos aliados nos últimos dias antes da ofensiva por terra; além disso,

qualquer adiamento do plano da coalizão reverberaria em ganhos para Saddam Hussein, e

então, devido a isso, manteve-se a data-limite para a retirada, considerando-se que as

concessões do Iraque teriam vindo “tarde demais”. Aburish161, contudo, é bastante crítico

ao posicionamento dos norte-americanos nas negociações; para ele, uma saída unilateral

das tropas iraquianas poderia resultar em grande pressão popular para o fim dos

bombardeios (e, com isso, a administração Bush, sem ter tomado o controle e a iniciativa da

expulsão das tropas iraquianas, poderia ser vista como frágil e impopular). Por isso, os

EUA ordenaram a saída de centenas de milhares de soldados iraquianos em pouco tempo,

fato visto pelo autor como sendo uma “impossibilidade física”.

156 Idem, ibidem.157 ABURISH, pp. 303-304.158 KHADDURI, pp. 176.159 MARR, pp. 237.160 KARSH, pp. 259-262.161 ABURISH, pp. 303-304.

172

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O conflito por terra teve duração extremamente curta (cerca de 100 horas), e foi

marcado por grande superioridade das forças da coalizão. A facilidade com que os aliados

expulsaram as tropas iraquianas do Kuwait também foi marcada por suas estratégias de

combate em diferentes fronts, que surpreenderam os militares iraquianos,162 e pela grande

força empregada pelas tropas e pelos aviões da coalizão multinacional, que resultaram na

fuga em massa de centenas de milhares de soldados163, enquanto que cerca de 90 mil se

renderiam aos militares aliados.164 Com dois dias de conflito, os aliados já haviam

conseguido atingir o seu objetivo de guerra (i.e. o fim do controle kuwaitiano pelo Iraque),

mas ainda assim os aviões do grupo continuaram a atacar Bagdá. Para Karsh165, os Estados

Unidos queriam o reconhecimento oficial de Saddam Hussein da derrota iraquiana, que

viriam por meio da aceitação de todas as resoluções da ONU – o que seria um incentivo a

mais para a queda de seu regime. Paralelamente, Tariq Aziz buscava negociar um cessar-

fogo; todas as suas propostas que rechaçavam pelo menos uma das resoluções da ONU que

pregavam sanções ao Iraque foram rapidamente rejeitadas pelo Conselho de Segurança;

com a continuidade da incursão das tropas da coalizão para dentro do Iraque, Saddam

finalmente aceitou todas as condições impostas pelos Estados Unidos. Com isso,

finalmente, o cessar-fogo fora obtido.

Apesar da fulgurante vitória das tropas aliadas, um evento em especial gerou

controvérsias dentre os analistas: o ataque ao exército e a civis iraquianos que se retiravam

do Kuwait ainda antes início do conflito por terra inaugurado pelo grupo liderado pelos

EUA. As forças da coalizão, por meio de aviões, lançaram bombas e mísseis sofisticados

que atingiram o início e o final do comboio iraquiano, imobilizando-o e criando uma cilada.

Presos, os iraquianos, sem possibilidade de defesa, foram bombardeados; um número não

calculado de pessoas – possivelmente superior a dezenas de milhares – foram abatidas.166

Karsh167 reproduz discurso do presidente Bush, em que é afirmado que não se poderia

diminuir a intensidade dos ataques aliados, já que “Saddam Hussein não estaria interessado

na paz, mas sim em reagrupar suas forças para voltar a lutar e a tentar controlar o Oriente

Médio”. Khadduri, por seu turno, subscreve a afirmação de jornalistas ingleses, que 162 KHADDURI, pp. 178.163 TRIPP, pp. 255.164 MARR, pp. 239.165 KARSH, pp. 263.166 KHADDURI, pp. 178-179.167 KARSH, pp. 264.

173

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consideraram o ato “um dos maiores massacres sobre um exército em retirada da história

das guerras”, e entende que, aparentemente, a coalizão não queria, de fato, encarar uma

retirada dos iraquianos, já que a fuga deles, tornada pública, destoava do discurso norte-

americano de insensibilidade de Saddam Hussein às demandas dos Estados Unidos; o autor,

ancorado em opiniões de conselheiros norte-americanos, também cogita a tese de que

aquele país tinha o objetivo de realizar, com os ataques por terra, uma demonstração de seu

poderio no imediato fim da Guerra Fria.168 Halliday169, por outro lado, entende que a

ofensiva ocidental estava totalmente dentro do uso legítimo da força definido no Direito

Internacional, já que soldados em recuo que não se renderam, em sua consideração, não

estão isentos de ataques; além disso, aqueles seriam usados por Saddam para,

posteriormente, confrontar a própria população, o que, então, validaria os atos da coalizão.

Aburish170 rejeita veementemente a interpretação de Halliday, afirmando que não haveria

lógica militar alguma no ataque (que fora suspenso somente 40 horas após o seu início,

quando fora aceito o cessar-fogo por Bush), e que o ato, essencialmente norte-americano,

ferira todas as convenções internacionais, especialmente aquelas relacionadas aos direitos

humanos e, mais especificamente, a de Genebra (1949), que protege os civis afetados pela

guerra. Para o autor, a tônica central da relação entre os Estados Unidos e o Iraque na crise

de 1990-91 fora a confusão feita entre a pessoa de Saddam Hussein (pela qual o governo

estadunidense, certamente de maneira não equivocada, nutria péssimas percepções) e a

população iraquiana; ao punirem vigorosamente os cidadãos iraquianos, pretendiam atingir

o presidente iraquiano. Contudo, essa fusão entre os iraquianos e seu líder, em última

instância, continuaria após a guerra e fortaleceria Hussein, que se utilizaria de um forte

senso anti-americano para permanecer no poder, apesar da grande fraqueza do regime.

3. A Destruição Econômica e Humana Causada pela Guerra – a Resolução 687

das Nações Unidas

A quantidade de bombas lançadas pela coalizão fora superior ao infligido durante a

Segunda Guerra Mundial, e destruiu boa parte da infra-estrutura civil e militar do Iraque,

168 KHADDURI, pp. 178-179; 286.169 HALLIDAY, pp. 101.170 ABURISH, pp. 304-306.

174

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como dezenas de usinas de energia, estações de irrigação, escolas, hospitais171, praticamente

todas as fábricas de armas químicas e biológicas conhecidas à época, além de refinarias e

outras instalações petrolíferas.172 As perdas militares também eram enormes: somente dez

por cento da artilharia iraquiana havia restado.173 No total, as perdas iraquianas foram

estimadas em 170-200 bilhões de dólares.174 Conforme aponta Hiro, os bombardeios e as

sanções econômicas reduziram o Iraque a um estágio pré-industrial.175 Mais

especificamente, as sanções econômicas, em vigor desde Agosto de 1990, afetaram

intensamente o Iraque, já que a impossibilidade de exportação de petróleo impedia

investimentos para recuperar a infra-estrutura durante a guerra: não havia eletricidade, nem

água potável na maioria das cidades iraquianas; havia risco de cólera e outras epidemias, e

o racionamento de combustível levou ao colapso do sistema de transportes do país176. Além

disso, a inflação retornava a níveis ainda maiores do que antes da guerra, e a

impossibilidade de comércio levava a uma escassez crônica de alimentos. Como assinala

Marr, os problemas enfrentados após a Guerra Irã-Iraque pareceriam contornáveis se

comparados ao pós-Guerra do Golfo.177

Os custos humanos foram igualmente impressionantes. Há grande discordância

entre os analistas quanto ao número de iraquianos mortos. Estatísticas mais conservadoras,

como a de Marr, Karsh e Hiro, revelam entre 30-80 mil mortos.178 Outros, no entanto, por

considerarem como inverídicas as afirmações da coalizão sobre o uso de armas com

tecnologia de ponta e grande precisão179, colocam o número de vítimas num nível mais

elevado. Sluglett180 aponta para cerca de 100 mil mortos e 300 mil feridos, enquanto

Khadduri181 sugere que até 200 mil pessoas tenham perdido a vida durante a Guerra do

Golfo. Contudo, como será visto a seguir e no Epílogo, essas estatísticas (assim como

aquelas que tentaram representar a profundidade da Guerra Irã-Iraque) também pouco

171 Idem, pp. 302. O autor denuncia, ainda, o uso de bombas Napalm e nucleares de baixa intensidade pela coalizão.172 KHADDURI, pp. 173.173 MARR, pp. 239.174 SLUGLETT, pp. 288.175 HIRO, Dilip. Iraq: In the Eye of the Storm, pp. 39.176 KARSH, pp. 258177 MARR, pp. 240-241.178 HIRO, In the Eye of the Storm, pp. 39; KARSH, pp. 258; MARR, pp. 239.179 HALLIDAY (pp. 87) afirma que, ao contrário do propalado pela propaganda ocidental, o equipamento militar empregado pelos aliados havia sido elaborado há pelo menos vinte anos.180 SLUGLETT, pp. 288.181 KHADDURI, pp. 179.

175

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representam os efeitos do conflito, principalmente se comparadas com a grande insatisfação

popular – que repercutiu na intifada – e com os efeitos das sanções econômicas que

continuaram a vigorar no país até 2003.

A resolução 687 do Conselho de Segurança, considerada a mais completa e exigente

da história das Nações Unidas182, foi o documento que estabeleceu o controle internacional

sobre os setores militar e econômico do regime iraquiano. Para que as sanções econômicas

fossem retiradas, o Iraque deveria destruir todas as suas armas de destruição em massa,

além de mísseis convencionais (para tanto, era necessária a presença de equipes de inspeção

chefiados pela ONU) ; teria que aceitar a presença de uma força de paz em sua fronteira,

realizar reparações ao Kuwait e reconhecer a existência do estado kuwaitiano. Enquanto

isso, ao governo de Saddam Hussein era permitido somente importar remédios, alimentos e

outras necessidades vitais e, inicialmente fora proibida a circulação de aviões iraquianos.

4. Repercussões da Guerra na Opinião Pública Internacional

Com a invasão iraquiana do Kuwait, a negação de retirada das tropas desse país e a

subseqüente Guerra do Golfo, o Iraque emergiria absolutamente isolado internacionalmente

no imediato pós-guerra. Todos os países que participaram da coalizão haviam cortado

relações com o país de Saddam Hussein, e participavam do sistema de sanções aprovado

pelas Nações Unidas.183 Com isso, a possibilidade de ajuda internacional e de realização de

comércio exterior que pudesse levantar fundos para a recuperação do país não eram viáveis

naquele momento e, como será visto no epílogo, mesmo vários anos após o término da

guerra.

O comportamento da coalizão durante a guerra também foi alvo de críticas por parte

da comunidade internacional. A intensidade dos bombardeios repercutira em manifestações

populares anti-guerra em diversas regiões do mundo, como em dezenas de países ocidentais

(incluindo Grã-Bretanha, Estados Unidos, França e Alemanha) e árabes, que questionavam

a participação de seus governos na guerra.184 Após a negativa repercussão dos ataques por

182 MARR, pp. 239-240.183 Idem, pp. 241.184 Karsh (pp. 257) assinala que a convocação de Saddam Hussein para a presença da imprensa ocidental em território iraquiano fazia parte de seu esforço de propaganda para mobilizar grupos pró-paz na Europa e nos EUA a pressionarem pelo fim do conflito.

176

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terra (Operação Sabre do Deserto), os Estados Unidos sofreram duras críticas, tanto por

parte da imprensa nacional como internacional, incluindo-se aí representantes da União

Soviética, França e Itália (forçando a resignação de membros do gabinete dos dois últimos

países); houve, ainda, diversos casos de deserções de membros das forças multinacionais no

front185. Contudo, o grupo manteve-se unido até o final da guerra, e os países, em geral,

permaneceram hostis ao Iraque.

5. Desenvolvimentos Políticos Domésticos

Conforme afirma Jabbar, 186 “a população não queria outra guerra”. Os iraquianos,

em geral, aceitaram a ofensiva de Saddam, mas tinham a esperança de que a derrota no

conflito implicasse na queda de seu regime. A oposição exilada (que recebia ajuda

financeira de diversos países com interesses específicos), era extremamente dividida em

termos ideológicos e pessoais, era incapaz de construir uma agenda conjunta que superasse

o patamar mínimo de rejeição ao Baath iraquiano e à Saddam Hussein.187 A oposição

interna, embora houvesse rejeitado a invasão e a anexação do Kuwait, demandaram pela

retirada iraquiana. Contudo, receavam que poderiam perder seu direito moral de opor ao

regime caso não se alinhassem ao Iraque contra o “Ocidente”. Com isso, membros do

SAIRI se alinharam a setores do exército para combater a coalizão; a Frente do Curdistão

decidiu evitar atacar o exército iraquiano no norte do país; os comunistas denunciaram o

que entenderam como a “agressão dos Estados Unidos”.188 Alguns grupos dentre os

militares, tanto de baixo como de alto escalão, acreditavam que a derrota iraquiana na

guerra era clara; parte dos soldados, que já atuara na guerra contra o Irã, estava exausta.

Para combater as deserções, o governo decidiu deter parentes daqueles que já haviam

fugido do exército.189

a) A Intifada: Motivações e Desenvolvimentos

185 ABURISH, pp. 302; 304-306.186 al-Jabbar, pp. 5-7.187 BENGIO, Ofra. “Iraq’s Shi’a and Kurdish Communities: From Resentment to Revolt” in BARAM, Amatzia, e RUBIN, Barry, Iraq’s Road to War, pp. 56-57.188 al-Jabbar, pp. 7.189 Idem, pp. 7-8.

177

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A insurgência que tomou conta do sul e do norte do Iraque em Março de 1991

significou, possivelmente, a maior manifestação popular da história moderna do país190.

Embora tenha fracassado, contribuiu fortemente para a delimitação da dinâmica política

que marcou os doze últimos anos do regime. Dentre as razões e motivações apontadas pelos

autores para o surgimento dos conflitos, que se aproximaram, em intensidade, de uma

guerra civil, destacam-se o apoio retórico da coalizão, a destruição em grande escala das

forças armadas e das zonas civis191 e a sensação popular de fraqueza do regime após a

derrota, aliada a um grande senso de descontentamento em razão da grande crise econômica

que assolava o país e, ainda, pelo sofrimento com a continuidade da repressão

governamental.192

A intifada iniciou-se como um movimento marcadamente espontâneo, tendo seu

primeiro ato na revolta de alguns soldados que, considerando que o regime os havia

abandonado à própria sorte em condições adversas de sobrevivência (dados os pesados

bombardeios aliados), atacaram símbolos de Saddam Hussein em cidades ao sul do Iraque,

conforme fugiam do Kuwait.193 Rapidamente, a revolta se disseminou por todo o país,

contando com a participação de parte considerável da população, especialmente jovens das

zonas urbanas.194 No Curdistão, apesar do despreparo inicial das lideranças locais, a melhor

organização permitiu a concentração em alvos mais específicos, como a conquista de

Kirkuk. Um aspecto simbólico relevante, tratado por diversos autores,195 é o fato de que o

foco central dos ataques da população eram as estruturas do Baath (físicas e humanas,

como membros da inteligência e da Milícia Popular) e os monumentos de Saddam Hussein.

Apesar da pouca organização do movimento (principalmente no sul, que não

contava com milícias paramilitares e organizações partidárias, a não ser a participação de

membros do SAIRI196), os insurgentes chegaram a conquistar mais de 60 por cento do

país197. Em tese, somente as províncias do centro do país (incluindo Bagdá), mantiveram-se

sob controle estatal. Contudo, a falta de apoio desse setor seria um fator importante para a

190 ABURISH, pp. 310.191 KHADDURI, pp. 189.192 MARR, pp. 242.193 al-Jabbar, pp. 8-9.194 MARR, pp. 243.195 BENGIO, pp. 61; al-JABBAR, pp. 8;13; KHADDURI, pp. 203; MARR, pp. 249-250.196 MARR, pp. 243.197 ABURISH, pp. 308.

178

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derrota do movimento. Partes remanescentes do exército que se mantiveram leais ao regime

e a Guarda Republicana (que se mantivera, em boa parte, em Bagdá), começaram a ser

organizados por Saddam, que passou a incluir membros mais próximos da sua família na

liderança das tropas para abater os movimentos198. Apesar da grande derrota na guerra,

ainda possuíam equipamentos bélicos bastante superiores aos da população civil (muitos

cidadãos confrontavam os tanques possuindo somente paus e pedras)199 e, com a permissão

dada pelos Estados Unidos tanto para o uso de helicópteros pelo governo como para a

passagem de membros da Guarda Republicana por entre as tropas da coalizão 200, as forças

do regime, utilizando-se de extrema brutalidade, conseguiram derrotar os insurgentes no

sul, para então concentrarem-se no abatimento dos curdos, o que veio no final do mês. O

receio da população local de que o exército voltasse a usar armas químicas gerou um êxodo

populacional sem precedentes, da ordem de dois milhões de pessoas.201 Em mais um evento

marcado pela extrema violência (de ambos os lados), as estatísticas de vítimas superam a

barreira das dezenas de milhares.202

i. Razões de seu Fracasso

Os diversos autores estudados apontam diversas causas para o insucesso da intifada

em derrubar o regime, apesar de, por um lado, ter controlado parte do país e, por outro,

enfrentar o governo iraquiano no auge de sua fraqueza.

Um aspecto considerado relevante por vários dos especialistas é a falta de apoio dos

Estados Unidos e da coalizão aos insurgentes (e mesmo o seu apoio logístico ao regime,

incluindo-se aí não somente a permissão para o uso de helicópteros por parte dos iraquianos

e para a circulação da Guarda Republicana mas, supostamente, a interceptação dos

rebeldes, impedindo-os de alcançar depósitos de armas, a construção de trincheiras para

dificultar a sua movimentação e o envio de informações sobre locais de esconderijos dos

amotinados às tropas iraquianas203), apesar de seus seguidos pedidos de auxílio àqueles. O

argumento utilizado pelos norte-americanos fora o de que seu governo não havia feito 198 BENGIO, pp. 60.199 ABURISH, pp. 310.200 MARR, pp. 247.201 BENGIO, pp. 62.202 MARR (pp. 251) coloca o número de mortos superior a 30 mil; SLUGLETT (pp. 290) e ABURISH (pp. 312) cogitam até 300 mil vítimas fatais.

179

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promessas de ajuda nem aos xiitas, nem aos curdos, e que a população estadunidense não

estaria disposta a ver seus soldados no meio de uma guerra civil.204 Tripp interpreta que a

coalizão já havia conseguido atingir seu objetivo com a expulsão das tropas iraquianas do

Kuwait, e então não possuiria nem um mandato, nem estava disposta a penetrar para dentro

do território iraquiano; além disso, temiam que a crise no país acentuasse o grau de guerra

civil existente e levasse à fragmentação do Iraque.205 Algumas motivações paralelas, como

a de que a coalizão poderia ser desfeita caso fosse decidido o auxílio aos insurgentes (dado

o receio da Arábia Saudita de que tal apoio beneficiaria os xiitas206 e a oposição da Turquia

a um suporte aos curdos, já que uma eventual independência curda lançaria a semente para

a criação de um grande país curdo, que eventualmente capturaria parte de seu território 207)

também parecem ter influenciado a atitude dos EUA. Contudo, a análise dos objetivos

desse país para com o Iraque pode indicar de maneira mais apropriada o porquê de sua

inércia. Autores como Aburish, Bengio, Hiro, Khadduri e Sluglett208 concordam que, na

pior das hipóteses, os Estados Unidos desejariam um golpe militar dentro do regime, mas

sem alterar a sua estrutura autoritária, e que pudesse manter a integridade do país e,

eventualmente, que se tornasse um aliado próximo de Washington. A recusa em apoiar a

intifada teria se dado, então, pelo temor de que a derrubada do regime pudesse implicar na

formação de um governo xiita ligado ao Irã, formando uma vigorosa aliança anti-EUA no

extremo Oriente Médio.

O tema da eventual participação do Irã nas insurgências (o que, em última instância,

preveniu o apoio da coalizão aos iraquianos rebeldes) é alvo de controvérsia dentre os

acadêmicos, embora a participação da milícia do SAIRI seja evidente. Hiro209 afirma que

houve participação da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, o que é corroborado por

Bengio, que assinala que o Irã forneceu não só combatentes, mas apoio logístico e

político210. Aburish211, por outro lado, entende que o apoio iraniano fora residual, e

203 ABURISH, pp. 308. O autor cita membros do alto escalão do exército iraquiano que aderiram aos rebeldes e membros da oposição exilada como fontes para tais afirmações.204 HIRO, In the Eye of the Storm, pp. 44-45.205 TRIPP, pp. 255; 258.206 SLUGLETT, pp. 289-290.207 HIRO, In the Eye of the Storm, pp. 44.208 ABURISH, pp. 309; BENGIO, pp. 60; HIRO, pp. 42-45; KHADDURI, pp. 205; SLUGLETT, pp. 289-290.209 HIRO, In the ..., pp. 41.210 BENGIO, pp. 58-59.211 ABURISH, pp. 310.

180

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justamente isso também impedira o sucesso da intifada. Marr212 também entende que o Irã

fizera muito pouco para alterar minimamente os rumos da disputa, o que teria irritado

membros da oposição iraquiana exilada.

Entretanto, a retórica pró-islâmica que fora ecoada por alguns dos insurgentes –

afora a distribuição de cartazes de Khomeini e Mohammad al-Sadr, o líder da oposição

xiita nos anos 70 – principalmente nas cidades sagradas, teve efeito negativo para o

movimento. O discurso tinha pouco apelo nacional se comparado ao enunciado por sunitas

militares, ex-baathistas, esquerdistas, entre outros213, e permitia ao regime utilizar o

sectarismo alheio como propaganda contra a rebelião.214 A violência e a destruição

praticados pelos rebeldes foi outro fator considerado para a falência da intifada. Por um

lado, a brutalidade no trato aos baathistas uniu a maioria do partido em torno de Saddam

Hussein215; por outro, os militares, que atuavam a favor da rebelião como indivíduos (sem

contar, contanto, com a estrutura da corporação), também, em parte, foram hostilizados, o

que resultou na aglutinação de alguns setores desses grupos a favor do regime.216 A

violência também estava associada com a desorganização dos grupos que, à exceção dos

curdos, não possuíam lideranças (já que o Ayatollah al-Khu’i, principal figura xiita do

Iraque, possuía divergências com as linhas teológicas khomeinistas, e então buscara adotar

uma posição política mais quietista)217, refletindo a grande fraqueza e desunião, tanto da

oposição interna como dentre a que se encontrava exilada. Esse contexto de instabilidade

afastou a classe média-alta das cidades218 e mesmo boa parte da zona rural e das tribos –

boa parte delas atuou ao lado da Guarda Republicana.219

Os curdos, embora melhor organizados e dispondo de milícias a seu favor

(incluindo cerca de 60 mil membros guerrilheiros jash e Fursan, que até então atuavam a

favor do regime220, além de militares que desertaram no início da intifada), tiveram que

lidar com a Guarda Republicana que, àquela altura, já havia controlado as rebeliões no sul e

212 MARR, pp. 246.213 al-JABBAR, pp. 10.214 MARR, pp. 243.215 al-JABBAR, pp. 13.216 ABURISH, pp. 310-311.217 KHADDURI, pp. 193.218 MARR, pp. 243. A zona central do país, em especial, funcionara como uma espécie de “tampão” entre o norte e o sul, impedindo a comunicação entre os insurgentes e carecendo de estruturas organizacionais capazes de ativar um movimento revolucionário local (cf. al-JABBAR, pp. 12).219 TRIPP, pp. 256.220 BENGIO, pp. 59.

181

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dispunha de um melhor preparo, o que lhes possibilitou, com grande violência, retomar o

controle do Curdistão em cerca de dez dias. Com isso, o regime de Saddam Hussein que,

com seus erros de cálculo, havia despertado uma grande insatisfação popular, conseguira

manter-se no poder, ainda que – no longo prazo – as restrições impostas pelo insucesso da

guerra tornassem-no extremamente frágil.

III) Aspectos Ideológicos

No período em análise, Saddam Hussein empregou diversas ideologias para

cimentar a legitimidade social para seu regime e para suas ações. Para além da continuidade

(e da ampliação) do culto de sua personalidade221, simbolizado pela construção de mais

monumentos em sua homenagem, o líder iraquiano empreendeu, convenientemente, tanto o

pan-arabismo como o islamismo como doutrinas para justificar suas demandas, intenções e

feitos. O nacionalismo mesopotâmico – altamente vigente nas duas décadas anteriores –

fora gradualmente abandonado, conforme a grandeza do país não mais se relacionava com

o forte declínio da economia a partir da segunda metade da década de 1980. Com o fim da

Guerra do Golfo de 1991 e o fracasso iraquiano, viria à tona, aos poucos, a evocação do

tribalismo que, ancorado em versões peculiares do islamismo, se tornaria a ideologia

dominante nos últimos anos do regime. Conforme será identificado no epílogo, a retórica

seria acompanhada de um forte privilegiamento das tribos mais leais ao regime. O que

ficava cada vez mais evidente conforme Saddam ampliava seu controle sobre as estruturas

políticas do país era o distanciamento de seus discursos dos princípios elencados

historicamente pelo Baath.

1. Pré-Guerra: Confluência entre o Nacionalismo Árabe e o Islamismo

Com o fim da guerra contra o Irã, as referências de Saddam Hussein ao Islã não

cessaram. Símbolo dessa continuidade estava a elaboração de uma nova legislação

islâmica, a shari’a, que dava poderes para os homens de uma família a tirarem a vida das

221 Cf. Karsh, pp. 194-196.

182

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mulheres do grupo em caso de adultério ou outros crimes passionais.222 Paralelamente, o

regime mantinha uma postura nacionalista, embasada no apoio à causa palestina, e tanto

com o objetivo de recolocar o Iraque como o líder do mundo árabe223 como para angariar

apoio das “ruas árabes” contra os Estados Unidos, conforme este se posicionava

contrariamente às suas políticas.224 Dentro desse contexto, e também com a meta de desviar

a atenção da população iraquiana da grave crise econômica que assolava o país naquele

momento,225 Saddam Hussein passou a ampliar suas críticas contra Israel, chegando a

ameaçá-lo com um ataque nuclear. A reação dentre a população árabe foi amplamente

positiva, o que o levou a ampliar a dosagem de suas mensagens pan-arabistas, consagrando-

o como um herói para as massas árabes.226 O presidente iraquiano também buscava utilizar

o discurso nacionalista para obter apoio econômico dos vizinhos árabes; contudo, como

visto, obtivera pouco sucesso227, já que o descolamento entre o posicionamento dos líderes

árabes e as populações nacionais não foi capaz de desestabilizar a região e, com isso,

implicar numa mudança séria de atitude de figuras centrais, como Fahd, da Arábia Saudita,

e Mubarak, do Egito.

O uso dessa retórica contra o Kuwait também foi empregado, muito embora as

declarações sobre aquele território como pertencendo historicamente ao Iraque (tal qual

fizera Qasim, em 1961) não fossem feitas até a data da invasão228. Após a ocupação, no

entanto, se tornava evidente nas declarações de Hussein o resgate do ideário classicamente

encampado pelos nacionalistas iraquianos, isto é, a injustiça cometida pelos “imperialistas”

britânicos em separar, artificialmente, o Kuwait do Iraque. Com isso, Saddam intentava

mobilizar um senso de orgulho nacional com o que classificava como o “alcance dos

objetivos nacionais do Iraque”.229

Com a resposta negativa por parte dos líderes árabes à invasão e, principalmente,

com a instalação de tropas ocidentais (majoritariamente norte-americanas) na Arábia

Saudita, o lar das cidades e santuários sagrados, Hussein aumentou o tom da oratória

222 BARAM, Amatzia. “Re-Inventing Nationalism in Ba’thi Iraq 1968-1994: Supra Territorial and Territorial Identities and What Lies Below”, in Journal of Middle Eastern Studies, nº 51, 1996, pp. 39.223 ABURISH, pp. 254-256.224 DAWISHA, pp. 559.225 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 11-14.226 MARR, pp. 222-223.227 KARSH, pp. 210.228 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 17-18.229 TRIPP, pp. 253.

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islamista, tornando-a predominante em seus discursos a partir de então.230 De acordo com

Dawisha, a adesão de Saddam ao islamismo (com intensidade muito superior ao ocorrido

durante a guerra com o Irã) teve resposta bastante positiva de grupos radicais islâmicos, que

se surpreenderam com a guinada de um regime até então marcado pelo secularismo.231 Um

dos símbolos dessa conversão é apontado por Baram: às vésperas da guerra com a coalizão,

o presidente iraquiano ordenara a colocação da frase “Alah é grande” na bandeira de seu

país.232 Nem com a adoção do islamismo, nem com a evocação do pan-arabismo (que

também chegou a ser empregado inclusive com o propósito de atrair a esquerda do mundo

árabe, que receava o domínio total do Oriente Médio pelo Ocidente após a queda da

URSS)233 tiveram quaisquer efeitos na atenuação da situação iraquiana na crise.

2. Pós-Guerra: Islamismo e a Ascensão do Tribalismo

Com a incontestável derrota iraquiana na guerra, o nacionalismo árabe foi

solenemente rejeitado dos discursos de Saddam Hussein, que então buscava colocar o

Iraque como vítima de uma conspiração imperialista-sionista e com a ajuda de seus aliados

regionais.234 A discussão entre os autores se dá em termos da permanência do islamismo

como componente ideológico do regime. Enquanto Baram afirma que, logo após o final da

guerra, Saddam iniciou um processo de islamização nas esferas jurídica, educacional e

institucional, ainda que de maneira peculiar235, Dawisha236 entende que as medidas que

buscavam trazer à tona o elemento religioso eram apenas um suporte e uma maneira de

identificação para com o tribalismo, que teria se tornado, de fato, a ideologia predominante

nos últimos anos do regime. Nos discursos do presidente iraquiano, se tornava cada vez

mais evidente a valorização de termos como coragem, sacrifício, e solidariedade social,

enquanto participava da celebração de festas tribais e afirmava que o partido Baath era a

230 DAWISHA, pp. 559-561.231 DAWISHA, pp. 561.232 BARAM, “Re-Inventing Nationalism ...”, pp. 40.233 SLUGLETT, pp. 286.234 MARR, pp. 265.235 BARAM, “Re-Inventing Nationalism ...”, pp. 40-42. A peculiaridade do islamismo adotado estava, principalmente, na conexão mais rígida das punições a infrações econômicas.236 DAWISHA, pp. 562-563.

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“tribo que abrangia todas as tribos”.237 Baram238 considera que o tribalismo, em associação

com o islamismo, se tornara o ideário mais efetivo em manter a coesão social iraquiana, já

que as tribos ainda eram a principal maneira de organização social do país e havia a

necessidade de se obter o mínimo de consentimento da comunidade xiita, principalmente

após a falha de sua insurgência contra o regime. Ambos os autores estudados239 destacam a

contraditoriedade entre os princípios históricos do Baath, pautados sob o secularismo e o

modernismo (condenando a evocação de símbolos tribais como “atrasados” e

contraproducentes à causa árabe), e o posicionamento adotado por Saddam Hussein após a

Guerra do Golfo de 1991.

237 Idem, pp. 563-567.238 BARAM, “Re-Inventing Nationalism ...”, pp. 43-45.239 BARAM, “Re-Inventing Nationalism ...”, pp. 46-47; DAWISHA, pp. 566-567.

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Epílogo (1991-2003)

A derrota na Guerra do Golfo de 1991, a continuidade do rigoroso regime de

sanções econômicas implantado pelas Nações Unidas e a conflituosa relação com as

oposições foram fatores que marcaram a dinâmica do frágil governo de Saddam Hussein

até a sua queda, em 2003. Com uma base de poder ainda mais estreita, o presidente

iraquiano aumentaria o autoritarismo de seu regime e basearia parte de seu sistema de

aliança nas tribos. Na política externa, o Iraque emergiria do conflito absolutamente

isolado, e procuraria, nestes doze últimos anos, revisar as restrições de soberania impostas

pela comunidade internacional, como a proibição das exportações livres de petróleo, a

criação das zonas de exclusão aérea ao norte e, posteriormente, ao sul do país, e as

inspeções de equipes da ONU em território iraquiano em busca de armas de destruição em

massa. Os curdos obteriam uma autonomia de facto ao norte, mas diversas disputas internas

e o subseqüente clima de guerra civil tornariam o auto-governo quase inviável. Com a

continuação das sanções econômicas, o Iraque se tornaria um dos países mais pobres do

mundo; milhões de crianças e adultos morreriam de fome. Outros milhões sairiam do país,

e a parte substancial da classe média seria forçada a vender seus bens e ir para as ruas em

busca de auxílio. Contudo, um pequeno setor da sociedade, ligado ao líder iraquiano,

continuaria a desfrutar de boas condições de vida, graças ao benefício do controle dos

poucos recursos que entravam no país.

A oposição exilada (que contava, em geral, com ajuda estrangeira) tentaria se

organizar, mas sem obter sucesso em efetivar a derrocada do regime baathista, mesmo em

seu momento mais frágil desde a subida ao poder. Com isso, apesar das péssimas condições

enfrentadas pelo país, Saddam ainda contava, às vésperas da crise que levaria à invasão

norte-americana, com uma capacidade bastante razoável de governo. Todavia, apesar da

continuidade do duro regime de sanções econômicas (que se suavizariam em algum grau

dadas as péssimas repercussões no mundo ocidental após seguidas exibições de imagens

degradantes mostrando a profundidade da crise humanitária iraquiana), o novo governo

norte-americano de George W. Bush pressionaria pelo retorno das inspeções de equipes da

ONU nas cidades iraquianas em busca de equipamento bélico. O atendimento parcial por

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parte do governo iraquiano (após anos de obstruções e impedimentos) não fora suficiente

para diminuir as tensões, que culminariam na ofensiva (desta vez sem o aval do Conselho

de Segurança das Nações Unidas) dos Estados Unidos e da Inglaterra de uma pequena

coalizão de outros países, pondo fim ao longo regime do Baath.

Neste breve epílogo, trataremos, em termos gerais, dos aspectos e temas mais

relevantes que marcaram os doze últimos anos do governo de Saddam Hussein, tanto na

política (doméstica e internacional) como na economia e sociedade iraquianas.

1. Economia: Efeitos das Sanções das Nações Unidas sobre a População

O regime de sanções econômicas imposto pela ONU continuou a vigorar no Iraque

durante os doze últimos anos do governo de Saddam Hussein. Para que as limitações à

exportação de petróleo fossem retiradas, o país deveria atender a quatro pré-requisitos: a

eliminação das armas de destruição em massa (contando-se aí com equipes de inspeção da

ONU); a soltura de todos os kuwaitianos e outros estrangeiros mantidos no Iraque; o

reconhecimento da soberania do Kuwait e o pagamento de todos os danos causados a esse

país (por meio de vendas em petróleo). Contudo, até a queda de Saddam em 2003, somente

havia ocorrido o reconhecimento das fronteiras do Kuwait (em Novembro de 1994).1

Contudo, com a grande piora das condições econômicas dentro do país,

gradualmente a severidade das sanções econômicas foi atenuada. Primeiramente, em Abril

de 1991, fora permitida a importação de alimentos e artefatos essenciais para as

necessidades civis; em Agosto do mesmo ano, por meio da Resolução 706, a ONU permitiu

a venda semestral (renovável) de 1.6 bilhões de dólares em petróleo para importações

essenciais. Com o agravamento da crise humanitária e os grandes constrangimentos

sofridos pela coalizão, fora aprovada, em 1995, a resolução 986, que ficaria conhecida

como o programa “Petróleo por Comida”. Esse projeto, que posteriormente fora ampliado,

viabilizava o aumento das exportações brutas para 5.26 bilhões de dólares; um terço desse

valor seria enviado para o pagamento das reparações ao Kuwait.2 Em troca, aumentariam as

inspeções de equipes da ONU em busca de instalações e depósitos de armas de destruição

em massa. Saddam Hussein, que rejeitou a ajuda internacional por diversas vezes, entendia

1 SLUGLETT, pp. 291.2 Idem, ibidem.

188

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que o programa da ONU implicava num aumento ainda maior da perda de soberania do

país e que o auxílio humanitário gradual seria pouco efetivo no longo prazo; sua crença nos

movimento progressivos da ONU em atenuar a força do sistema de sanções fazia-no

acreditar que, em breve, elas seriam suspensas sem contrapartida, o que acabou não

ocorrendo.3 Entretanto, após bastante relutância, acabou por aceitar, em Dezembro de 1996,

a implementação do programa. Em contrapartida, a enorme burocracia criada para a

aprovação das importações de cada produto requerido pelo Iraque e a indisposição de

países como Estado Unidos e Inglaterra em aceitar cada um dos pedidos tornou a ajuda da

comunidade internacional pouco eficiente naquele momento.4 Em 1999, o limite para a as

exportações seria aumentado para 8.2 bilhões de dólares, já que a situação humanitária do

Iraque era muito mais grave do que se calculava inicialmente. Dez anos após o início das

sanções, a ONU permitiria a livre exportação de petróleo, mas ainda controlava as

importações, embora permitisse a vinda de equipamentos que visassem recuperar a

indústria petrolífera. Nos últimos anos do regime, o Iraque passou a exportar cerca de 25-30

bilhões de dólares em petróleo por ano5, quantia similar ao que era enviado ao exterior

quando o país estava no auge de seu desenvolvimento econômico, em 1980.

Para a população iraquiana, o regime de sanções foi o mais deletério possível. Já em

1991, com a grande destruição da infra-estrutura do país pelas forças da coalizão e com o

embargo econômico, os níveis de mortalidade infantil haviam se elevado para padrões não

existentes no Iraque em 40 anos6. A renda per capita do país, que alcançara quatro mil

dólares logo antes do início da guerra contra o Irã7 e estava em pouco mais de dois mil

dólares antes do início da Guerra do Golfo havia caído, já em 1992, para 609 dólares8. A

atenuação da força do regime de sanções, excessivamente lenta, não melhorou esse quadro

até o final da década, onde já se supunha que a renda per capita já havia caído para cerca de

200 dólares9. Cerca de dois milhões dos iraquianos que tinham condições de sair do país o

3 MARR, pp. 270; 281-2824 ABURISH, pp. 343.5 Idem, pp. 282-283.6 TRIPP, pp. 261.7 ABURISH, pp. 344.8 MARR, pp. 268.9 al-SAADI, Sabri Zire. Oil Wealth And Poverty In Iraq: Statistical Adjustment Of The Government GDP Estimates (1980-2002), in Middle East Economic Survey, vol. XLVIII, nº 16, 18 de Abril de 2005.

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fizeram; a maioria da comunidade exilada era formada pelo pessoal mais qualificado

daquela sociedade (como médicos, engenheiros e administradores), o que dificultava

substancialmente a recuperação do país10. Com a hiperinflação, que desvalorizou a moeda

iraquiana de 0.3 dólares/dinar para 2600 dólares/dinar, a classe média empobreceu

significativamente.11 Com a crônica desnutrição (os iraquianos recebiam somente um terço

das calorias necessárias para a sobrevivência), um número extremamente elevado de

iraquianos havia morrido já em meados da década, tendo aumentado desde então.12 Diante

desse quadro, o Iraque havia se tornado um dos países mais pobres do mundo, e símbolo de

uma das crises humanitárias mais significativas da última década do século XX.

Com a abertura proposta pelo programa “Petróleo por Comida”, a situação iraquiana

melhorou, embora ainda se mantivesse distante da vivida mesmo durante a crise econômica

após a guerra contra o Irã. Com os esforços do regime em atrair capital estrangeiro, muitas

multinacionais de dezenas de países passaram a ingressar no mercado iraquiano; a

diversificação e o aumento da quantidade e da qualidade dos alimentos, a população dos

maiores centros puderam desfrutar de melhores condições de vida.13 Houve um controle

maior da inflação, um tímido processo de reindustrialização e algumas melhorias no

sistema de saúde, mas se tornava notória a péssima qualidade do sistema educacional (que

10 ABURISH, pp. 330.11 MARR, pp. 268.12 ABURISH (2000: 344), citando estudos do British Journa lof Independent Studies de Março de 1997, estima o número de mortos em 1.5 milhão. No entanto, o tema é um dos mais controversos debates sobre o Iraque contemporâneo, primeiramente após os estudos da UNICEF, divulgados em 1999 (disponíveis em http://www.unicef.org/newsline/99pr29.htm) – em que foi afirmado que, caso a diminuição dos níveis de mortalidade no Iraque dentre os anos de 1991 e 1998 ocorresse ao mesmo nível dos anos 80, teriam morrido, em tese, 500 mil crianças a menos –, e que criaram ondas de novos estudos, por parte dos que se consideravam a favor e contra o regime de sanções, que visavam, respectivamente, diminuir e referendar (ou mesmo aumentar) esses números; secundariamente, após as declarações de Osama bin Laden, que em parte culpava os atentados de 11 de Setembro de 2001 no regime de sanções imposto pelas Nações Unidas, que “teria matado mais de 1.5 milhão de crianças”. Os estudos com números mais conservadores, como o de Richard Garfield, da Universidade de Columbia (realizado em 1999, revisado em 2001, e disponível em http://www.columbia.edu/cu/news/media/00/richardGarfield/index.html), apontam para cerca de 350 mil crianças mortas – o autor destaca que nem todas as crianças teriam morrido unicamente pelo regime de sanções, destacando outras hipóteses, principalmente os efeitos militares da Guerra do Golfo de 1991, que destruiram boa parte da infra-estrutura iraquiana. De qualquer forma, é necessário ressaltar, em primeiro lugar, a dificuldade de se realizar pesquisas acuradas diante da própria situação em que se encontrava o Iraque, econômica e politicamente, naquele período; em segundo lugar, independentemente do eventual número exato que se possa apresentar, é certo que o regime de sanções, tanto pela intransigência internacional, como pelo descaso e corrupção do governo ditatorial de Hussein se constituiu como uma grande tragédia humanitária, que terá, assim como o regime baathista em si e a atual ocupação norte-americana, graves conseqüências para as próximas gerações iraquianas. 13 TRIPP, pp. 278-279.

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havia permitido a queda das taxas de alfabetização de 67 por cento para 57 por cento em

uma década) e a continuidade dos altos índices de desnutrição.14

2. Política Doméstica: A Manutenção e o Fortalecimento do Regime

A coalizão esperava que o regime de sanções resultasse, em última instância, na

queda do regime, mas o que se viu foi o seu exato contrário.15 Logo após o controle da

intifada, Saddam Hussein buscou reestruturar o sistema de segurança do Estado e o setor

militar. Ao mesmo tempo em que expulsava milhares de “traidores” das corporações e das

organizações do partido e do Estado, promovia, ainda mais do que antes, o seu clã e sua

família para postos estratégicos; paralelamente, a Guarda Republicana, até então

responsável pela guarda da integridade do presidente, fora ampliada, substituindo o exército

como força de segurança predominante no país.16

A estrutura do estado iraquiano no período 1991-2003 evidenciou o caráter do

regime de Saddam Hussein, que privilegiava, com os recursos do petróleo17, cerca de 500

mil iraquianos com alguns benefícios para manter o governo funcionando, deixando o

restante da população à própria sorte. Formando um regime semi-dinástico, favorecia,

incluía e excluía setores da população conforme visse que pudesse maximizar as suas

possibilidades de permanência no poder. Dentro de seu círculo de poder mais próximo,

repetia aquela prática. Ali, dividiam-se os interesses familiares em três segmentos: seus

meio-irmãos; o clã al-Majid, de seu pai; e seus dois filhos, Uddayy e Qusayy.18 Um aspecto

bastante significativo da configuração do sistema político iraquiano nesse momento

histórico fora a grande ênfase dada pelo regime nas alianças com as tribos, revivendo o

tribalismo como prática política (embora o Baath, historicamente, condenasse a

organização tribal como atrasada). Shaiks eram rearmados para manter a ordem no interior

14 MARR, pp. 282-283; 294-297.15 Idem, pp. 269.16 MARR, pp. 264.17 Autores como ABURISH (pp. 315) e TRIPP (pp. 269) consideram que, nos doze últimos anos do governo de Saddam Hussein no Iraque a população local tenha sofrido com suas sanções: a externa, imposta pelas Nações Unidas e perpetuada pela coalizão pró-ocidente, e a interna, obra da intensificação das redes de patronagem de Saddam, que excluíam a maioria dos iraquianos.18 TRIPP, pp. 264-266. Aburish (pp. 326) compara a família de Saddam Hussein a uma máfia, já que vários de seus membros passaram a realizar contatos com russos e colombianos para o tráfico de drogas e com jordanianos para a venda de comida e remédios conseguidos por meio da ajuda humanitária.

191

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do país, e recebiam grandes somas de dinheiro para uso pessoal.19 Saddam ainda reeditava

leis que permitiam o retorno dos costumes tribais dentre a sociedade (como o registro de

terras coletivas em seus nomes, a permissão do uso de nomes tribais, o trato de membros da

tribo por superiores sem garantias trabalho com condições estabelecidas por lei e o trato

hierárquico dos homens perante as mulheres), enquanto revertia parte do programa de

reforma agrária que o havia consagrado nos anos 70.20

Por outro lado, a dependência dos clientes para com o regime se tornava cada vez

mais evidente. A maioria daqueles que se colocavam como leais a Saddam tinham

consciência de que, caso este fosse deposto, eles perderiam seus privilégios.21 Essa

simbiose dificultava consideravelmente a subversão interna, embora ela houvesse ocorrido

por diversas vezes nesses doze últimos anos do Baath no poder.

Entre 1991 e 1995, dezenas de tentativas de conspiração em setores militares, tribais

(inclusive dentre aquelas localizadas em Tikrit) e da Guarda Republicana foram

descobertas. Disputas por notoriedade e poder dentro da família de Hussein repercutiram

em deserções que abalaram o regime e causaram constrangimento internacional para

Saddam, já que, no caso de seus genros, Saddam e Hussein Kamel (que se exilaram na

Jordânia com as filhas do presidente após ameaças de morte por Uddayy22), as delações ao

Ocidente sobre a existência de mais locais dentro do território iraquiano onde havia

facilidades para a elaboração de armas de destruição em massa resultaram em grande

pressão para a intensificação dos trabalhos de inspeção por parte da ONU.

No final da década de 1990, Saddam Hussein, aparentemente influenciado pelos

diversos casos de golpe e deserção ocorridos dentro de seu grupo de poder e pelo

descontentamento populacional com os casos de corrupção notórios em sua família, decidiu

resgatar o papel ideológico do Baath, especialmente por meio da promoção de membros

antigos do partido e não tão próximos do presidente iraquiano a cargos importantes.23

Contudo, se tornava evidente àquela altura que o Baath tinha perdido completamente o seu

apelo para a nova geração de iraquianos e, mais ainda, para a população em geral, que via

no partido uma mera estrutura de avanço profissional.24

19 MARR, pp. 262.20 ABURISH, pp. 324-225.21 SLUGLETT, pp. 309; TRIPP, pp. 264; 267; 291.22 ABURISH, pp. 337.23 SLUGLETT, pp. 307-308.24 MARR, pp. 293.

192

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Em resposta às diminuições de sua base de poder, Saddam ampliou o autoritarismo

de seu governo. Leis foram criadas para punir com mutilações os desertores e ladrões, e

mais dezenas de milhares de pessoas continuaram a desaparecer subitamente.25 Os xiitas,

principalmente os árabes pantaneiros (grupo localizado no sudeste do país que realizou

diversos protestos contra as medidas de Saddam, principalmente a drenagem dos pântanos

para que, em tese os rios Tigre e Eufrates se tornassem menos salinos26), foram fortemente

perseguidos, seja com execuções sumárias e expulsões, seja com a destruição de boa parte

dos pântanos da região, que levaram a milhares de mortes e ao esvaziamento das atividades

daquele grupo. Com o aumento da possibilidade de intervenção norte-americana em 2002,

Saddam buscou preparar-se para a contenção de golpes por meio da perseguição de

membros do alto escalão do exército e dos serviços de segurança, além de renovar o

clientelismo na capital do país.27

a) As Oposições Internas e os Grupos Exilados

A supressão da intifada repercutiu de maneiras diferentes dentre os principais

grupos de oposição dentro do Iraque. Para os xiitas, a derrota do movimento implicou numa

grande alienação de seu segmento perante o regime (possivelmente num grau nunca visto

na história moderna do país), no sofrimento peculiarmente maior diante da grande

destruição material e humana (principalmente dentre os jovens) e, notadamente, num

considerável aumento do sentimento anti-americano (e, em menor grau, anti-iraniano),

graças ao pouco (ou nenhum) auxílio dado por estes países para que a intifada fosse eficaz

em derrubar o presidente iraquiano, apesar das retóricas de apoio.28 No norte do país, a

evasão de milhões de curdos e a igualmente devastadora destruição material causada pelo

exército iraquiano acabaram por repercutir enormemente na imprensa ocidental

(diferentemente da questão xiita), o que gerou grandes pressões por apoio àquela

comunidade. A interferência especial da Turquia, que não estava disposta a receber os

25 SLUGLETT, pp. 301-303.26 ABURISH, pp. 321-323. Diferentemente dos demais autores, Aburish argumenta que, embora o projeto tenha sido imposto com extrema brutalidade, ele acabou por significar um grande aumento de fertilidade nas margens dos rios, e que as críticas ocidentais a ele seriam infundadas, já que a drenagem daquela região fora elaborada originalmente por empresas inglesas nas décadas de 1940 e 1970. 27 TRIPP, pp. 289.28 MARR, pp. 252.

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milhares de curdos fugitivos29, foi decisiva para a implantação por parte da coalizão (sem o

aval inicial das Nações Unidas) da “Operação Provide Comfort”, que deu aos curdos uma

zona de segurança e uma zona de exclusão aérea para acima do 36º paralelo, protegendo a

população local de eventuais ataques de helicópteros iraquianos.30 Com o objetivo de

ampliar a área sob o controle curdo, Barzani e Talabani, os líderes daquela região,

encontraram-se com Saddam durante o ano de 1991.31 Contudo, com a recusa do governo,

novos conflitos por terra eclodiram, levando ao envio de forças de paz da ONU para o

Curdistão. Com a continuidade dessa intervenção internacional, os curdos haviam

conseguido, de fato, a tão reivindicada autonomia, apesar do bloqueio econômico imposto

pelo governo central.32

Todavia, a situação no Curdistão diante dessa nova realidade não melhorou

substancialmente. As eleições para o primeiro Governo Regional do Curdistão, em 1992,

terminaram virtualmente empatadas entre o Partido Democrático Curdo (PDC), de Barzani,

e a União Patriótica do Curdistão (UPC), de Talabani,33 e, desde então, disputas pela

jurisdição de determinadas áreas e competências tornaram o clima extremamente tenso no

norte do Iraque. Enquanto o apoio ao PDC se concentrava em tribos localizadas no noroeste

do país, nas proximidades da fronteira com a Turquia, o suporte à UPC vinha do nordeste e

sudeste, nos setores mais urbanos e nas proximidades da fronteira com o Irã.34 Ambos os

partidos possuíam suas próprias milícias; com o acirramento das desconfianças e das

disputas, elas seriam utilizadas, dando início a um conflito aberto no final de 1993.

O que se tornou muito patente desde esse momento até o final da década fora o

envolvimento de outros países no conflito e, inclusive, do exército iraquiano (já que

Barzani solicitara ajuda governamental para expulsar tropas iranianas que ajudavam o

PDC35). Por meio da formação de diversas alianças e do patrocínio de pequenos partidos do

Curdistão, países como Irã, Síria e Turquia36 – que possuem em seus territórios grande parte

da população curda – envolveram-se substancialmente naquela região, o que repercutiu no

29 Idem, pp. 253-254.30 ABURISH, pp. 312-313.31 SLUGLETT, pp. 295-296.32 MARR, pp. 279.33 TRIPP, pp. 271-272.34 SLUGLETT, pp. 296-297.35 MARR, pp. 285-286.36 ABURISH, pp. 340; MARR, pp. 285-286; SLUGLETT, pp. 297-298; TRIPP, pp. 272.

194

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prolongamento da guerra entre as facções, no aumento do número de vítimas e no

enfraquecimento da entidade autônoma criada.

A participação das forças iraquianas dentro do Curdistão repercutiu em grande

condenação por parte dos Estados Unidos, que retaliou por meio do lançamento de mísseis

contra alvos iraquianos no sul37 e, mais tarde, por meio da intermediação de acordos de paz

entre as lideranças curdas.38 Entretanto, as tensões, ainda que em menor grau, continuaram

a vigorar no norte do país. Por outro lado, a autonomia permitiu, em alguma medida, o

reavivamento da cultura curda e da formação educacional que colocavam o Curdistão em

grande relevância, ainda que não como uma entidade separada do Iraque.39

A oposição xiita, frágil e ainda distante de sua população e adotando um discurso

cada vez mais pró-democracia,40 continuou a ser duramente perseguida pelo regime, o que

era evidenciado pela morte de vários clérigos e de outros líderes religiosos que não se

submetiam ao clientelismo imposto pelo regime, especialmente durante o final da década

de 90.41 Os conflitos entre dissidentes e o governo continuaram até a sua derrocada, muito

embora as ofensivas dos primeiros tinham objetivos pouco amplos (como ataques a

indivíduos que participavam das forças de segurança), pois o regime ainda conseguia ter o

domínio da maioria das estruturas sociais. Numa tentativa de evitar o aumento da

participação das forças armadas no sul, a coalizão também impôs uma zona de exclusão

aérea no sul, primeiramente iniciada a partir do 32º paralelo, posteriormente adiantado até o

33º. Com isso, a soberania iraquiana sobre o seu espaço aéreo, até o final do regime Baath,

seria reduzida a um terço do tamanho original.42

Os grupos exilados, por sua vez, se não foram eficazes em contribuir para a

derrubada do regime, ao menos receberam grande atenção por parte da comunidade

internacional. Para além da maioria dos membros dos maiores grupos (espalhados pela

Síria, Jordânia, países do Golfo, Irã, Inglaterra e Estados Unidos), como o SAIRI, o Da’wa,

o Partido Democrático Curdo, a União Patriótica do Curdistão, e mesmo o Partido

Comunista Iraquiano43, havia nacionalistas árabes, como o Acordo Nacional do Iraque,

37 MARR, pp. 288.38 SLUGLETT, pp. 299.39 MARR, pp. 299.40 SLUGLETT, pp. 300-301.41 TRIPP, pp. 270-271.42 MARR, pp. 281.43 Idem, pp. 273-274.

195

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formado por dissidentes do Baath e por grupos sociais que até então eram favorecidos pelo

regime. Esse grupo buscava organizar conspirações dentro dos grupos de confiança de

Saddam Hussein, mas não obteve nenhum sucesso.44

Para superar as divisões entre os grupos de oposição iraquianos, formou-se, em

1992, o Congresso Nacional Iraquiano (CNI). Logo se tornaria evidente o ativo patrocínio

dos Estados Unidos, o que acabou por afastar, em pouco tempo, diversos segmentos

daquela organização.45 No entanto, os seguidos contatos da CIA norte-americana com

membros próximos da família de Saddam e comprometidos com a lógica autoritária do

governo baathista pareceram indicar que a estratégia estadunidense era mais pragmática,

preferindo a substituição de Hussein por alguém politicamente alinhado a ele próprio, mas

mais voltado a cooperar pelo ocidente, à viabilizar a emergência, no longo prazo, de

movimentos democráticos, baseados em organizações populares.46 Contudo, nenhuma

conspiração organizada pela CIA, seja envolvendo a oposição iraquiana com Washington,

seja buscando coordenar esforços conjuntos com governos árabes ou ainda por meio da

cooptação de elementos do núcleo duro do regime obteve resultados.47 Nesse sentido, o Ato

de Liberação Iraquiana (transferência, em 1998, de 100 milhões de dólares a grupos

oposicionistas iraquianos devido a pressões do partido Republicano para que Bill Clinton, o

então presidente dos EUA, radicalizasse sua política perante Saddam Hussein), teve, para

diversos autores, um significado muito mais simbólico do que estratégico48, já que havia

pouco controle sobre o uso do dinheiro por parte dos grupos exilados nem a formatação de

esquemas de conluio com alguma viabilidade.

O CNI buscaria, então, criar bases dentro do território iraquiano e, com o apoio

internacional, conseguiria criar rádios clandestinas e passaria a distribuir panfletos e

jornais. Os integrantes com maior peso dentro do grupo seriam, certamente, o PDC e a

UPC; entretanto, o aumento das tensões entre esses grupos retiraria parte da capacidade do

CNI em elaborar alternativas para a situação iraquiana. Com o agravamento das tensões no

Curdistão, que geraram uma complexa rede de apoios estrangeiros a diferentes grupos

instalados dentro do Iraque, o CNI decidiu rechaçar a presença do exército na região,

44 TRIPP, pp. 277.45 MARR, pp. 274.46 ABURISH, pp. 320.47 Idem, pp. 356.48 ABURISH, pp. 350; TRIPP, pp. 281-282.

196

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contando com o apoio da UPC. A não participação do PDC na coalizão anti-regime em

meio ao grande aumento de popularidade do grupo de Talabani fez com que houvesse uma

grande derrota para o Congresso Nacional Iraquiano, que tivera seus quartéis no Curdistão

destruído por forças governamentais, e fora, assim, expulso do Iraque. Com isso, o CNI se

tornaria somente mais um grupo oposicionista a Saddam, sendo incapaz de agregar os

iraquianos descontentes com o regime em busca de um projeto comum.49

i. As Fraquezas da Oposição

Apesar do apoio de vários países e da existência de vários grupos oposicionistas

organizados, não foi possível realizar nenhum movimento conspiratório verdadeiramente

efetivo nestes doze últimos anos do regime baathista, muito embora Saddam Hussein

tivesse alegado algumas tentativas de golpe (vários atentados ocorreram, mas não se pôs

seriamente em risco a permanência de seu governo). Várias justificativas foram elencadas

pelos especialistas, pela própria oposição e por seus financiadores. Desde a morte do líder

do movimento xiita, Muhammad Hakim Baqir al-Sadr, em Abril de 1980, não emergiu no

Iraque (ou mesmo no exílio) nenhuma outra figura carismática capaz de atrair o apoio da

população iraquiana e se converter num contraponto a Saddam Hussein.50 O sistema criado

pelo líder iraquiano, por sua vez, se mostrou extremamente eficiente, desde a década de

1970, em desmobilizar quaisquer organizações populares não baathistas (como a destruição

do Partido Comunista Iraquiano a partir da segunda metade da década de 1970) com aguda

brutalidade. O Baath e a engenhosa rede de segurança elaborada (e a subseqüente relação

travada com a população baseada na violência) acabavam por penetrar em todas as esferas

sociais, deixando pouco (ou nenhum) espaço para o desenvolvimento interno de

agrupamentos e organizações descentralizadas e que visem instaurar no país uma ordem

democrática e pluralista.51 Mesmo conspirações de caráter mais autoritário (eventualmente

formada por membros do alto escalão do exército e dos sistemas de segurança, que foram,

em geral, financiados pela CIA) falharam em derrubar Saddam, tanto pela rigidez do

regime implantado por Hussein (que virtualmente impede reuniões que contem com mais

49 TRIPP, pp. 276.50 MARR, pp. 304-305.51 TRIPP, pp. 276.

197

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de três pessoas), como pelo próprio senso nacionalista que acaba sendo criado diante da

continuidade dos ataques da coalizão (que ocorreram por quase todo o tempo).52

Um aspecto central para a falha das oposições em viabilizar uma alternativa ao

autoritário regime iraquiano é, sem dúvida, a falta de coesão dentre os grupos, estejam eles

dentro ou fora do país. Há relatos sobre a existência de 60, 70 e, mais precisamente, 82

partidos de oposição existentes fora do Iraque53. Há notória falta de coesão entre a maioria

dos grupos54: para além de divergências políticas, ideológicas e pragmáticas entre os grupos

de maior peso, alguns exageram sobre os seus feitos alcançados, outros anunciam

programas que parecem refletir somente o auto-interesse de seus líderes; há aqueles que

objetam à cooperação com a CIA ou com o Pentágono; outros rejeitam a colaboração com

o SAIRI e a subseqüente interferência do Irã; alguns grupos se tornaram excessivamente

dependentes dos países árabes que, por sua vez, careceram em apresentar programas de

governo viáveis (preferindo exercer uma espécie de competição regional para ver quem

apoiaria mais determinado segmento); há ainda agrupamentos que se consolidaram como

meras oposições profissionais, recebendo grandes quantias de dinheiro para dar declarações

contra Saddam Hussein. A dependência mencionada também se estende a países como

Israel e, principalmente, os Estados Unidos, de quem se esperaria um papel mais

pragmático na mudança de regime por meio do financiamento de oposições. No entanto, a

transição freqüente de ajuda de um grupo a outro (sem justificações claras) se mostrou cada

vez mais contraproducente.55 Esse auxílio sem um único foco viabilizou, em última

instância, a multiplicação de grupelhos (incluindo-se aí oficiais desertores do exército) que

se colocavam uns como mais legítimos do que os outros56. A participação externa, tida

como essencial para a derrocada do regime, falhou redundantemente em tornar possível um

programa de governo alternativo e viável ao Baath, ou mesmo em efetivar um golpe de

estado, ainda que montado por elementos mais autoritários dentro do cenário iraquiano.

Relacionado aos problemas mencionados está a própria incapacidade em se manter

contatos entre as oposições localizadas dentro do Iraque. Não só os curdos tiveram grandes

problemas dentre seus partidos, mas também, por sua grande relevância dentro do contexto

52 ABURISH, pp. 325.53 ABURISH, pp. 329.54 Idem, pp. 329-330.55 Idem, pp. 353; 357-358.56 TRIPP, pp. 287-288.

198

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iraquiano, pouco contribuíram na promoção de alianças internas com outros grupos,

notadamente os xiitas, em parte por terem conquistado a tão almejada autonomia e, com

isso, passaram a recear que suas atitudes pudessem colocar em risco tal feito.57 O Da’wa e o

SAIRI, as duas maiores agremiações xiitas, além de manterem um distanciamento físico

perante o seu segmento e falharem, em alguns momentos, em apresentarem propostas que

abranjam uma parcela maior da heterogênea população iraquiana58, também,

historicamente, foram grupos que receberam muito pouco apoio de atores relevantes para a

crise iraquiana, como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, o Kuwait e a Arábia Saudita,

dado o receio destes de que, eventualmente, um governo xiita iria contra os seus interesses

regionais (muito embora, conforme já mencionado59, vários dos agrupamentos xiitas

tenham se mostrado cada vez mais favoráveis à democracia, inclusive pela percepção de

que este sistema seria favorável dentro da realidade iraquiana, já que contam com uma

substantiva maioria dentro do país).

Diante de todos esses constrangimentos, a oposição iraquiana e as potências

ocidentais (e seus aliados regionais) tiveram pouco sucesso em alterar dramaticamente a

realidade iraquiana; pelo contrário, essas falhas, por vezes, contribuíram até mesmo para o

fortalecimento da figura de Saddam Hussein, na medida em que se tornava claro para o

líder iraquiano que a “inércia política” existente dentro do Iraque seria mudada

primordialmente por meio de uma intervenção externa direta, como acabou ocorrendo no

início de 2003.

3. Política Externa: a UNSCOM, a Perda de Soberania e a Invasão dos EUA

(2003)

O isolamento internacional do Iraque após o término da Guerra do Golfo de 1991

foi acompanhado de medidas bastante intrusivas, que reduziram substantivamente a

soberania do regime de Saddam Hussein, ainda que fosse possível para o líder iraquiano

manter, por meio dos instrumentos de violência, o controle sobre o país e ainda

proporcionar para seus aliados as condições econômicas de outrora. Durante os doze

57 ABURISH, pp. 324; 358.58 MARR, pp. 276-277.59 Cf. nota 40 do Epílogo.

199

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últimos anos do regime, a liderança iraquiana buscaria reverter o quadro de pesadas sanções

econômicas, restrição do uso do espaço aéreo e as freqüentes inspeções por equipes da

ONU em busca de armas de destruição em massa.

Com o objetivo de localizar e destruir as armas de destruição em massa localizadas

em território iraquiano, foi formada, em Maio de 1991, a Comissão Especial das Nações

Unidas (UNSCOM na sigla em inglês), composta por químicos, biólogos, especialistas em

armas e diplomatas de cerca de vinte países60. Apesar da evidente rejeição por Saddam

Hussein à intrusão das equipes de inspeção treinadas pela ONU, as ameaças de retaliação

militar pelos Estados Unidos caso não aceitasse a presença daqueles forçou-o a permitir a

visita dos inspetores a centenas de depósitos e facilidades, aonde foi possível verificar o

desenvolvimento relativamente avançado de tecnologia nuclear e de armas químicas e

biológicas.61 Por outro lado, Saddam buscava manter intacta parte do seu programa bélico

(enquanto realizava ameaças de retaliação armada sempre que pressionado a ceder mais às

equipes de inspeção), enquanto alegava destruir os seus armamentos.62 Por diversas vezes, a

negação de Hussein em aceitar a investigação de membros da ONU resultava em conflitos

militares abertos entre suas forças e equipes da coalizão, enquanto a força aérea dos

Estados Unidos atacavam supostas instalações iraquianas.

Para buscar apoio internacional, Saddam Hussein buscava erodir a coesão da

coalizão por meio de benefícios na comercialização do petróleo, mas sem obter sucesso.63

Além disso, tentou tornar mais positivas as relações com países do Golfo, principalmente

Oman, Qatar e os Emirados Árabes Unidos, que passaram, então, a pedir pelo fim do

embargo ao Iraque.64 A continuidade das sanções econômicas e o sofrimento do povo

iraquiano também foram largamente utilizados para comover a opinião pública

internacional; a Grã-Bretanha e, principalmente, os Estados Unidos, no entanto,

radicalizaram a retórica agressiva contra o regime caso este não cumprisse as

determinações da ONU, e responsabilizando a continuidade das sanções nos abusos de

direitos humanos cometidos pelo regime baathista.65 A materialização da oposição ocidental

em ataques maciços a Bagdá repercutiu num ganho de popularidade de Saddam dentre a 60 ABURISH, pp. 316.61 TRIPP, pp. 260-261.62 MARR, pp. 267.63 Idem, pp. 265.64 TRIPP, pp. 262.65 Idem, pp. 263.

200

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população do mundo árabe.66 Por outro lado, e especialmente motivados por razões

oportunistas, países como França, China e Rússia também passaram a denunciar o regime

de sanções.67

Apesar das barreiras colocadas por Saddam Hussein aos trabalhos das equipes de

inspeção, a UNSCOM, num período de cinco anos, foi bastante efetiva em desmontar o

arsenal bélico iraquiano. Foram encontrados e destruídos 150 mísseis Scud, 691 armas

químicas, 28 mil munições químicas, 19 mil litros de toxinas causadoras de botulismo, 8

mil litros de antraz e 32 estabelecimentos envolvidos na elaboração e fabricação de armas

químicas, agentes biológicos e urânio enriquecido.68 Outras dezenas de toneladas de gases e

líquidos altamente venenosos foram descobertos, e já em 1994 a Agência Internacional de

Energia Atômica (AIEA) declarara que o programa nuclear iraquiano já havia sido

completamente terminado.69 No final de 1998, Fred Halliday70 calculara que cerca de 95 %

de todo o programa de armas do Iraque já havia sido destruído.

No entanto, a defecção de vários dos integrantes da cúpula de poder de Saddam

(especialmente entre 1994 e 1996, no auge da crise econômica do país) e as suas posteriores

declarações indicaram que o Iraque continuava a produzir armas de destruição em massa,

levando à intensificação das inspeções da UNSCOM e à descoberta de novas facilidades e

depósitos de mísseis. A extensão das novas investigações passou a atingir, inclusive, os

palácios presidenciais, o que despertou grande insatisfação de Hussein.71 A crise entre a

comissão e o governo iraquiano, em alta desde 1997, atingiu o ápice com a revelação de

que vários membros da UNSCOM realizavam serviços de espionagem para Israel e para o

governo norte-americano.72 Com isso, Saddam Hussein passou a rejeitar, ao final de 1998, a

participação de equipes da ONU no Iraque. A maioria da Comunidade Internacional, que já

rejeitava a continuidade das sanções (entendendo-as como contraproducentes, na medida

em que atingiam primordialmente a população iraquiana, e não ao presidente iraquiano),

tentou mediar a nova crise por meio da diplomacia. Entretanto, os Estados Unidos e a Grã-

Bretanha preferiram retaliar militarmente o Iraque, por meio da operação “Raposa do

66 ABURISH, pp. 332-333.67 SLUGLETT, pp. 291.68 ABURISH, pp. 360.69 MARR, pp. 267.70 Citado por ABURISH, pp. 360.71 SLUGLETT, pp. 292-293.72 MARR, pp. 289.

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Deserto”, que atingiu não somente os palácios presidenciais, mas também instalações

petrolíferas e supostos alvos estratégicos, resultando na morte de dezenas de iraquianos.73 A

escolha anglo-saxã demonstrou ser bastante contraproducente: não só o rechaço de vários

países do Oriente Médio e da Europa repercutiu no fim da UNSCOM,74 como permitiu a

Saddam fortalecer-se ainda mais e a adotar um discurso fortemente anti-americano,

possivelmente o único recurso ideológico com penetração na maior parte da sociedade

iraquiana naquele momento.

Gradualmente, o isolamento internacional do Iraque foi atenuado. Após o

reconhecimento da soberania e das fronteiras do Kuwait (revistas em termos favoráveis ao

Emir)75 e da aproximação com alguns dos países do Golfo, Saddam Hussein,

surpreendentemente, voltou-se para a Síria, conseguindo, em 2000, a reabertura do

oleoduto que passava por esse país, fechado desde 1982, e para a Turquia, viabilizando

acordos para envios de alimentos e outros produtos essenciais.76 Com o aumento da

agressividade da retórica dos Estados Unidos, especialmente sob a nova administração, de

George W. Bush, o Iraque voltou a aproximar-se da Liga Árabe, conseguindo avançar

negociações para a reintegração naquela comunidade em 2002.77 Com a diminuição da

rigidez das sanções, o Iraque voltou a integrar-se na economia global, seja pelas

exportações de petróleo, seja pelas facilidades oferecidas para a participação de

multinacionais no país.78 Além disso, Saddam Hussein passou a desafiar algumas das

determinações da ONU, notadamente a proibição de vôos comerciais. Isso permitiu,

inclusive, a realização de vôos regulares entre Damasco e Bagdá. A não-resposta das

Nações Unidas e o apoio de vários países à eliminação total das zonas de exclusão aérea

não foram suficientes, no entanto, para mudar a atitude dos Estados Unidos perante o

Iraque.79

Pelo contrário, o posicionamento de Washington, considerado rígido ainda sob a

administração Clinton, tornar-se-ia muito mais radical sob George W. Bush. Os

Republicanos, que viam as decisões do executivo chefiado pelos Democratas como sendo

73 ABURISH, pp. 351.74 MARR, pp. 289-280.75 Idem, pp. 266.76 SLUGLETT, pp. 305.77 MARR, pp. 291.78 TRIPP, pp. 278-279.79 MARR, pp. 291.

202

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frágeis e vergonhosas, pressionavam por uma intervenção mais efetiva no Iraque.80 Com

isso, ainda antes de subirem ao poder, defenderam o paradigma da “mudança de regime”

como maneira de relacionamento perante o Iraque, apoiando a criação de outro grupo

responsável pela verificação da existência de armas de destruição em massa em território

iraquiano, a Comissão de Monitoração, Verificação e Inspeção das Nações Unidas

(UNMOVIC na sigla em inglês). Saddam Hussein, no entanto, esperava que os passos da

ONU em relação às sanções eram demonstrações da vontade da comunidade internacional

em acabar com as restrições à soberania iraquiana, e então rejeitou veementemente a

entrada das novas equipes de inspeção.81

Com a vitória republicana nas urnas, a retórica acentuada se transformou em ações,

como o lançamento de mísseis contra alvos militares iraquianos e pressões para a revisão

do sistema de sanções, o que foi rejeitado por vários países da comunidade internacional,

incluindo-se aí a Síria, a Turquia e a Jordânia, receosos de perderem o lucrativo comércio

de fronteira que passaram a nutrir com o Iraque desde o final da década anterior.82 Os

atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 (Saddam Hussein foi o único líder árabe a

não condenar publicamente os ataques)83 serviram como pretexto para uma política

internacional intervencionista, a “Guerra contra o Terror”, que incluiu no “Eixo do Mal”

países como a Síria, o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte. O presidente dos Estados Unidos,

para justificar uma eventual intervenção no Iraque, passou a apresentar diversos

argumentos: a suposta ligação entre Osama bin Laden, o chefe da organização terrorista Al-

Qaeda (A Base) – responsável pelos ataques de 11 de Setembro – e Saddam Hussein; a

continuidade da posse de armas de destruição em massa pelo Iraque; a necessidade da

exportação da democracia para aquele país em razão do recorde altamente negativo do

regime em termos do respeito aos direitos humanos.84

Após muita pressão dos Estados Unidos, o Iraque aceitou colaborar com a

UNMOVIC em Novembro de 2002. As inspeções diárias dos responsáveis pela comissão

não revelaram nenhuma nova descoberta de armas ou instalações bélicas. Porção

significativa da comunidade internacional (principalmente Rússia, China e Alemanha)

80 TRIPP, pp. 281.81 Idem pp. 280.82 Idem, pp. 282.83 Idem, pp. 284.84 MARR, pp. 304.

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colocou-se contrariamente a uma intervenção militar. Sem obter apoio das Nações Unidas,

Bush lançou um ultimato para a saída de Saddam Hussein do Iraque, que não foi atendido.

Com isso, em 20 de Março de 2003, forças de uma pequena coalizão, chefiada pelos

Estados Unidos e pela Inglaterra (e adicionada por aliados regionais na Europa e por

protetorados norte-americanos no Pacífico) invadiu o Iraque e, sem muita resistência,

venceu a guerra em cerca de três semanas, pondo fim ao longo regime baathista e ocupando

o território iraquiano, dando início a uma nova narrativa na história iraquiana – que, até o

presente momento, em razão do clima de guerra civil e do alto número de vítimas, se revela

como incerta e, infelizmente, não muito mais promissora do que a vivenciada pela

população iraquiana durante o autoritário período dominado pelo Baath e por Saddam

Hussein.

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Apêndice1

Mapa 1. Localização do Iraque no Oriente Médio (1993)

1 Os mapas foram produzidos pela Central Intelligence Agency (CIA) e extraídos da Biblioteca de Mapas Perry-Castañeda, em http://www.lib.utexas.edu/maps/iraq.html (Universidade do Texas, Estados Unidos).

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Mapa 2. Iraque (Político) 2004

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Mapa 3. Composição Étnica do Iraque (1978)

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Mapa 4. Distribuição da Atividade Econômica Industrial no Iraque (1993)

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Mapa 5. Uso da Terra no Iraque (2003)

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