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PROFISSÃO MESTRE ® junho 2010 CAPA Yannik D’Elboux Sala de aula pode ser usada tanto para o debate quanto para a doutrinação 14 PROFISSÃO MESTRE ® junho 2010

Sala de aula pode ser usada tanto para o debate quanto para …quase um século o sociológo alemão Max Weber já tratava da questãono texto A Ciência como Vocação. Weber via

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CAPA Yannik D’Elboux

Sala de aula pode ser usada tanto para o debate quanto para a doutrinação

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Onazismo seria pos-sível nos dias de ho-je?Apartirdestaper-

gunta, o professor Ron Jonesresolveu fazer uma experiên-ciapráticacomseusalunos.

Paramostrar como é terque seguir regras deumlíder, instituiu a discipli-na em sala de aula fazen-

do os alunosmarcharem e sen-tarememsuascarteirasemposiçãoereta. Em poucos dias, o grupo jáhavia criado umnome, uniforme esaudação.Logoomovimentoextra-polouasaladeaulaeenvolveumaisde200estudantesparasurpresadoprópriodocenteque ficouempolga-do com tamanho poder de persua-são.Tãorapidamentecomoseespa-lhou, a iniciativa começou a gerarconsequências nefastas próprias aoregime fascista, comoo sentimentodesuperioridadeeaintolerânciaen-tre osmembros e os jovens fora domovimento. Percebendo a dimen-são de sua ação, o professor colo-cou um ponto final na experiêncialembrandoAdolfHitler e os efeitosnegativos da restrição da liberda-de. Esta história real aconteceu em1967 em uma escola na Califórnia,nosEstadosUnidos, da qual o pro-fessor Ron Jones foi demitido doisanosapósoocorrido,efoiretratadanofilmeA Onda.Também usando o Holocausto

comopontodepartida,porémapar-tirdeumângulooposto,aprofesso-ra Erin Gruwell conseguiumotivarseus alunos, considerados indisci-plinadose irrecuperáveispelaesco-la.AleituradolivroO Diário de Anne Frank gerou uma identificação en-treosestudantes,vítimasdaviolên-cia (neste caso urbana e familiar),e inspirou a educadora a estimularos alunos apassaremsuasprópriashistórias para o papel. Esta catar-secoletivaajudouareduziraagres-sividade em salade aula e permituaos jovensencontraremumsignifi-cadoparasuasvidas.Aexperiênciapositiva da escola americana con-tinua até hoje com o trabalho deumafundaçãoquelevaomesmono-

medogrupodeestudantesedofil-mequeretratouahistórianastelas:Escritores da Liberdade.Estes dois casos ilustram como de

maneiras inversas, com boas ou másconsequências, o educador pode in-fluenciar a vida e o desenvolvimentodasideiasdosalunos.Afinal,quemnãoselembradealgumprofessormarcantequetenhadirecionadoalgunsdospon-tosdevistaquehojevocêdefendecomosendoseus?Atéondeainfluênciaine-vitáveldaideologiadoeducadorpodeirsemsetransformareminstrumentodedoutrinação?Seráqueépossívelserim-parcialemsaladeaula?Vocêensinaou“fazacabeça”doseualuno?

UmapesquisadaCNT/Sensusmos-trouque,para78%dosprofessoresen-trevistados, o papel mais importantedaescolaé“formarcidadãos”.Apenas8%responderamqueamissãoprinci-paldaescolaé“ensinarasmatérias”.Ametadedestesmesmoseducadoresres-pondeuqueodiscursodosprofessoresem sala de aula é “politicamente en-gajado”,30%disseramqueé“àsvezesengajado” e somente 20%dosprofes-soresescolheramaresposta“neutro”.Foramouvidasparaesteestudo3milpessoas,entrepais,alunoseprofesso-res de escolas públicas e particularesde 24 Estados brasileiros em 2008.Seestapesquisaéumbomreflexodarealidadenaeducaçãobrasileira,mui-tos professores podem estar fazendomuitomaisdoqueensinarcriançaseadolescentes.Oproblemaésabersees-tainfluênciateráimpactopositivoounegativonaformaçãodestesjovens.

É inegávelo fortepapelde refe-rência que o professor, assim comoafamília,exercenavidadascrian-ças. Para os jovens, isso geralmen-teaconteceemmaioroumenorgrauconformeaidentificaçãocomoedu-cador. A psicóloga e professora daPontifícia Universidade Católicade Campinas Carmem Silvia CerriVentura, que também atua na áreade formação de professores, acredi-ta que a influência do educador sedá na medida de seu engajamen-to emquestões políticas e sociais edesuavisãodemundoexpressanamaneira de trabalhar os conteúdosdasdiferentesdisciplinasdaescola.Carmempensaquenaeducaçãona-daéneutro.“Achodifícilqueopro-fessor seja imparcial, mas ele devesercuidadosonomododesemani-festar,respeitandoocontextofami-liardoaluno.Seoprofessorésério,comprometidocomseutrabalho,seele “enxergar” seu aluno, dificil-mentesua influênciaseránegativa,porque certamente suas colocaçõesterãoembasamentoteóricoecientí-ficoadequados”,afirmaapsicóloga.A questão da imparcialidade em

sala de aula é um debate antigo.O advogado e fundador do proje-toEscolasemPartido,quemantémo site www.escolasempartido.org eluta contra a doutrinação na edu-cação, Miguel Nagib, defende quemuitas vezes a afirmação de quenão existe imparcialidade é usadacomo justificativaparaadoutrina-ção.Nagibadmitequetodoconhe-cimento é vulnerável à ideologia eque neste caso os educadores de-veriamadotarasprecauçõesmeto-dológicas necessárias para reduzirqualquer distorção. “Ser imparcialpodeser impossível,masperseguiroidealdaimparcialidadeedaobje-tividadecientíficanãosóéperfeita-mentepossível,comoémoralmenteobrigatórioparaumprofessor”,en-fatiza.OEscola semPartidoexistedesde 2004 e surgiu, na definiçãode seu fundador, como “reação aofenômeno da instrumentalizaçãodoensinoparafinspolítico-ideoló-gicos,partidárioseeleitorais.”

CAPA

Para 78% dos professores entrevistados em pesquisa da CNT/

Sensus é mais importante “formar cidadãos” do que

“ensinar as matérias”

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deveres do professor contra a doutrinação* 1. O professor não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aque-la corrente político-ideológica, nem adotará livros didáticos que tenham esse objetivo.2. O professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, religiosas ou da falta delas. 3. O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem in-citará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.4. Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concor-rentes a respeito. 5. O professor não criará em sala de aula uma atmosfera de intimidação, os-tensiva ou sutil, capaz de desencorajar a manifestação de pontos de vista dis-cordantes dos seus, nem permitirá que tal atmosfera seja criada pela ação de alunos sectários ou de outros professores.* Elaborado pelo Escola sem Partido

contestamos a liberdadedo professor de expres-sarsuasopiniõesemsalade aula. Esta liberdade,contudo, não é absoluta.Oprofessornãopodeusá-lapara ‘fazer a cabeça’ dosalunos.Aliberdadedeensinardoprofessorterminaondecome-çaa liberdadedeaprenderdoes-tudante”,explicaMiguelNagib.Odilemaéseodocente,ao

expor suas opiniões, às ve-zesatésemteressaintenção,manipula os alunos a pen-sarem como ele pela in-fluência que sua figuraexerce sobre os jovens.Ocaminhoparaevitarestaarmadilhaé con-tribuirparaaformaçãodoespíritocríticonoses-tudantes,éfazercomqueospen-samentos deles tenham vida pró-pria.OprofessorJosuéCândidodaSilva, da Universidade EstadualSanta Cruz, na Bahia, dou-tor em Filosofia e mestre emSociologia,comênfaseemÉtica,ressaltaaimportânciadeoeducadorajudar os jovens a desenvolverem aautonomia intelectual, apresentan-dosemprediferentespontosdevistasobreummesmotema.“Alémdisso,devemostrarquaisoscritériosdeob-jetividadeerigorcientífico,paraquepossamdiscerniroqueéumateoriaeoqueéummeroachismo”,acres-centa.AprofessoraCarmemVenturare-

força a importância do incentivo aodebate, ao contato com opiniões eposturas diferentes, fundamentadasno estudo e na análise da realida-de, para que o jovem tenhamelho-rescondiçõesdefazersuasescolhas.“A ‘doutrinação’ sópodeserevitadase houver uma visão crítica dos fa-tos, em que simplesmente o alunonão‘engula’oquelhedizemsemserestimuladoparaoquestionamento”,resume.Apesardepossuircertaliberdade

deexpressão,oeducadortambémnãodeveesquecerdopapelmodelarquerepresenta perante os alunos, tanto

O professor de História RicardoBarros Sayeg, também diretor daEscolaEstadual LeonorQuadros, daDiretoriadeEnsinoSul1,nobairrodoJardimMiriam,nacapitalpaulis-ta,acreditaqueoprofessordeveex-pressarsuasopiniõesemsaladeaulasem que isso interfira no conheci-mento que está sendo abordado. “Éimportantequeeleexpressesuaopi-nião sobre um determinado tema

para os alunos,mas deixe claroque aquela é ape-nas uma visão demundo dentre di-versas outras pos-síveis.Nessesenti-do, é interessantequando o profes-sor trabalha comdiscursos de di-ferentes filiaçõesideológicas naanálisedeumde-terminado tema”,afirmaSayeg,queaindaémestreemEducação e autordelivrosdidáticos.Atémesmooidea-

lizadordoEscolasemPartidoadmitequeoprofessorreveleseuspontosdevista,porémcom ressalvas: “Jamais

expor ou não as opiniões?Seaimparcialidadeéimpossíveleadoutrinaçãocondenável,comoopro-fessordeveagiremsaladeaula?HáquaseumséculoosociológoalemãoMaxWeber játratavadaquestãonotexto A Ciência como Vocação. Weberviaasaladeaulacomoumlugaremque os estudantes estão emdesvan-tagem, condenados ao silêncio, sempossibilidade de crítica perante aomestre. “É imper-doável a um profes-sorvaler-sedessasi-tuação para buscarincutir emseusdis-cípulos as suas pró-priasconcepçõespo-líticas, em vez delhes ser útil, comoédeseudever,atra-vés da transmis-são de conhecimen-to e de experiênciacientífica.” Weberafirmava que aque-les professores quese sentissem impe-lidos a transmitirsuas ideologias aosjovens deveriam fa-zê-loforadaescola,emumlocalon-deosestudantesestivessemempédeigualdade.

“Acho difícil que o professor seja imparcial, mas

ele deve ser cuidadoso no modo de se manifestar,

respeitando o contexto familiar

do aluno”Carmem Silvia Cerri Ventura, psicóloga e

professora da PUC-Campinas

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pormeiodesuafalaquantopelosseusatos.Dentrodasaladeaula,oprofessoréorepresentantedasnormasque regema socieda-deenãopode,porexemplo,emitir uma opinião que vácontra os direitos humanos.“Mesmoqueoprofessorpen-se que as mulheres são na-turalmente inferiores aoshomens, ele nunca po-derádizê-loemsaladeaula,pois,nasalaestácumprindoumafunção

educativae,comotal,deveencarnaros valores universais. Muitos pen-sam que isso é restringir a liberda-dedoprofessor,masnossaprofissãoassimoexige.Casoqueiraexpressarlivremente suas opiniões, então es-colha um púlpito ou um palanque,masnãoasaladeaula”,exemplificaJosuédaSilva.

FilosofandoNaturalmente as disciplinas maissubjetivas, como História, estãomais associadas à transmissão deideologias, porém nenhuma áreadoconhecimentopodeserconside-radaneutra.Ainterpretaçãoéumaconstante inegável da elaboraçãodomaterial didático ao ensino doconteúdo.Mas existe umadistân-cia entre a hermenêutica do tex-tocombasenorigorcientíficoeamanipulaçãodoconhecimentopa-raadisseminaçãodedeterminadoposicionamento. “Evidentemente,quando o professor usa o conhe-cimento histórico com o objetivode divulgar certas ideologias, cer-tasposiçõespolíticas, elenãoestáfazendoseupapeladequadamente.Eleestáutilizandooconhecimen-

to histórico numa atitude panfle-tária”,afirmaRicardoSayeg.Depois de 40 anos, as discipli-

nasdeFilosofiaeSociologiavolta-ramaserincorporadasaocurrículodoensinomédio.Paramuitosopo-sitores da medida, estas duas áre-asdoconhecimentosãoocaminhoperfeitoparaamanipulaçãoideoló-gica,sobretudoporquemuitospro-fessores, na tentativa de despertara consciência crítica e a cidadanianosalunosapartirdestasdiscipli-nas, acabam incutindo suas pró-prias concepçõesnacabeçadoses-tudantes. Mas para o professor daBahia,oriscodedoutrinaçãosem-pre existe, independentemente dadisciplina.“Umprofessordemate-máticapodedisseminarpreconcei-tosatravésdepiadassexistasouho-mofóbicas,semsequersedarcontadequeestádoutrinandoosalunos”,afirma.Tambémexisteoestereótipode

que amaioria dos docentes dessasáreas sãode“esquerda”equecoma obrigatoriedade das disciplinas sur-geumaoportunidadeparaosdoutrina-doresdisseminaremsuasideias “mar-x istas”. O professor de HistóriaRicardoSayeg confirmaque existeumainfluênciadavisãode“esquer-da”, porém defende que o própriomarxismo abriu diálogo com ou-trasescolasdopensamentoeincor-porounovasvisões.“Éimportantesalientar também que as ciênciascitadas são sociais. E a preocupa-ção com as desigualdades sociaisnoBrasilfoitradicionalmenteumabandeira da esquerda e não da di-reitaemnossopaís”.Para evitar os riscos de doutri-

nação, Josué da Silva acredita quea melhor saída é a boa formaçãodo docente e a clareza dos objeti-vos pedagógicos de cada disciplina.“Professoresque tiverammá forma-ção universitária estãomais predis-postos aquerer incutir suas crençasnosalunos.Nessecaso,oquetemosvistoémuitomaisatentativadein-cutir crenças religiosas e doutriná-riasdoquepolíticas,emenosaindadeesquerda.”

CAPA

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A Onda (The Wave)Ano de Produção: 2008 Ano de Lançamento no Brasil: 2009Diretor: Dennis GanselPaís de origem: AlemanhaLegenda: PortuguêsDuração: 107 minutosDistribuidor: ParamountDisponível em DVD nas lo-cadoras

Escritores da liberdade (Freedom Writers)Ano de Produção: 2007Ano de Lançamento no Brasil: 2007Diretor: Richard LaGravenesePaís de origem: Estados UnidosLegenda: Português

Duração: 122 minutosDistribuidor: ParamountDisponível em DVD nas locadoras e para compra. Preço: aprox. R$ 25.

Em DVD+

Miguel nagib, advogado e fundador do Escola sem Partido, acredita que o profes-sor deve buscar o ideal da imparcialidade

Josué cândido da silva, doutor em Filosofia: “professores que tiveram má formação univer-sitária estão mais predispostos a querer incutir suas crenças nos alunos”

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