Salo de Carvalho* - Biblioteca Universitá · PDF filede saúde e educação, ... Cremos, contudo, que a melhor análise produzida sob o fenômeno é de Ralf Dahrendorf, no ensaio

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  • Salo de Carvalho* Resumo: O presente artigo aborda a tenso entre o modelo jurdico (penal) contemporneo, transnacionalizado pelas polticas de globalizao neo-liberal, e o pensamento garantista. Centraliza o debate entre a opo garantista-minimalista (direito penal mnimo, direito social mximo) e a inquisitivo-maximalista (direito penal mximo, direito social mnimo). Abstract: The following article is about the tension between the contemporary juridical modulus (penal), transnacionalized by the neo liberal globalization politics and the guarantist idea. It focuses on the debate between the guarantistminimalist option (minimal penal law, maximal social law) and the inquisitivemaximalist (maximal penal law, minimal social law). O modelo de Estado democrtico de direito e a racionalidade jurdica sofrem atualmente grandes abalos e srias ameaas. Em matria de garantias penais e processuais, ou seja, no que diz respeito aos direitos de primeira gerao, notamos que o processo de avalanche legislativa, instrumentalizado pelo mass media em seu papel de formador do consenso de defesa social, cria uma desregulamentao comparvel somente ao pluralismo de fontes presentes no medievo. Em relao aos direitos sociais, o primado da razo mercadolgica sobre a racionalidade jurdica, imposta pelos programas de globalizao neoliberais deflagrados por Margaret Thatcher na dcada de oitenta, tem produzido o desmonte do Welfare State nos pases de economia avanada e a impossibilidade dos pases de Terceiro Mundo atingirem relativo grau de justia social (distribuio equnime de riqueza, reforma agrria, erradicao da misria, otimizao e acesso das populaes carentes aos servios de sade e educao, melhoria nos sistemas de previdncia social e, principalmente, aes contra as exorbitantes taxas de desemprego e excluso social). A conjuntura estruturada sob a gide da liberdade de mercado tem produzido um modelo neo-absolutista com tentaes autoritrias, nas palavras de Ralf Dahrendorf[1].

  • A idia do carter ilimitado da liberdade de mercado (produtor de uma confuso entre as esferas do pblico e do privado), agregado com as novas tcnicas de produo do consenso produzindo analfabeti lobotomizzati dai mass media[2] e a afirmao do poder absoluto das maiorias, so as principais querelas que ameaam o Estado de direito[3]. O efeito de tal processo, nitidamente totalitrio em suas razes, a descartabilidade do valor pessoa humana e o retorno a um estado de selvageria pr-civilizatrio, brbaro, no qual impera a lei do mais forte. Luigi Ferrajoli percebe que a ausncia de limites ao poder empresarial, determinado pela desregulamentao e selvageria da liberdade econmica, coloca o mercado econmico como nova Grundnorm, acima do direito e da poltica, resultando no desmantelamiento del Estado social y de sus sistemas de lmites, garantas y controles no slo sobre el Estado, sino tambin sobre el mercado[4]. Cremos, contudo, que a melhor anlise produzida sob o fenmeno de Ralf Dahrendorf, no ensaio Economic opportunity, civil society, and political liberty, de 1995. Como contextualiza Jacinto Coutinho, em precioso comentrio sobre a obra supracitada ao qual nos permitimos remeter o leitor[5], Dahrendorf ex-parlamentar e Secretrio de Estado no Ministrio de Assuntos Exteriores da Alemanha, comissrio da Comunidade Europia em Bruxelas, diretor do London School of Economics e do Saint Anthonys College de Oxford o responsvel pela poltica europia na Cmara dos Lordes. Em diagnstico extremamente realista, o autor percebe como dever dos pases centrais, nos prximos dez anos, enquadrar o crculo entre as incompatibilidades de bem-estar econmico, coeso social e liberdade poltica. Adverte, porm, que la quadratura del cerchio impossibile; ma ci si pu forse avvicinare (...)[6]. O custo do enquadramento do crculo medido pelo fato de que alguns pases subdesenvolvidos (como os latinos) no conseguiriam acompanhar o processo e, mesmo assim, dividiriam os nus e as dificuldades dos pases centrais. O primeiro passo para o processo de globalizao econmica dado pela flexibilizao, isto , a desregulamentao e a limitao das interferncias governamentais, principalmente no que diz respeito aos tributos e ao mercado de trabalho Il termine flessibilit ha finito per indicare soprattutto allentamento dei vincoli che gravano sul mercado del lavoro: maggiore facilit nellassumere e nel licenziare, possibilit di aumentare e diminuire i salari, espansione degli impieghi part-time e a termine, cambiamento pi frequente di lavoro, di azienda e di sede (...). Flessibilit significa anche disponibilit di tutti gli operatori ad accetare i cambiamenti tecnologici e a reagirvi prontamente[7]. Dahrendorf percebe o processo como irreversvel e alerta sobre a conseqncia: la globalizzazione economica sembra essere associata a nuovi tipi di esclusione sociale[8]. As renovadas formas de excluso seriam caracterizadas pela perda do status de cidado por algumas pessoas[9], no somente em razo das restries econmicas, mas por qualquer caracterstica que as possa diferenciar (raa, nacionalidade, religio et coetera). Contudo, o

  • autor mais drstico ainda em sua anamnese: certe persone (per terribile che sia anche solo metterlo per iscritto) semplicemente non servono: leconomia pu crescere anche senza loro contributo; da qualunque lato le si consideri, per il resto della societ esse non sono un beneficio, ma un costo[10]. Desumanizando o homem e tornando-o suprfluo, pois muitos representam um verdadeiro custo, o horizonte que se visualiza aquele da guerra de todos contra todos, visto que a competio acaba rompendo quaisquer laos possveis de solidariedade. As perspectivas indicadas na nova ordem internacional parecem-nos aterrorizantes para a tutela dos direitos humanos, fundamentalmente pelo fato de que a quebra dos limites ao poder, j no mais concentrado no Prncipe ou no princpio (Direito) mas no Mercado, no sofre quaisquer resistncias pela sociedade civil. A necessidade desse irreversvel processo consumida, como assinala Jacinto Coutinho[11], com a naturalidade de um objeto que se possa degustar satisfatoriamente. Todavia, mister ressaltar mais e mais, que a perda da centralidade da pessoa implica no somente a desvalorizao do homem, mas tem um reflexo genocida substancial pelo fato de que esto em jogo vidas humanas. A propsito, nada mais caracterstico e configurador de uma estrutura de pensamento totalitria onde o Outro desprezado e consumido pela moral dominante: na atualidade, a mercadolgica. A banalizao desse processo, visivelmente capitaneada pela estrutura social videocratizada, absolutamente contrria aos pressupostos do Estado de direito e da democracia, ou seja, concepo garantista. Os direitos fundamentais, centro agregador das conquistas histricas da humanidade e elevados a critrios (externos e internos) de legitimao do Estado e do direito, desmoronam para dar lugar nova Grundnorm. Assim, se sob a tica garantista projeta-se a necessidade de minimizao do poder policialesco penal e a otimizao do aparato administrativo nas esferas sociais (direito penal mnimo, direito social mximo), na concepo transnacionalizada do projeto neoliberal a mxima invertida, concebendo a restrio ao mximo dos direitos sociais e ampliao penal/carcerria, pois algum lugar dentro da sociedade deve ser reservado aos inconvenientes. Gesta-se, no interior dessa ideologia, uma sada plausvel para aqueles que foram destitudos (ou que nunca chegaram a ter) da cidadania: a marginalizao social potencializada pelo incremento da mquina de controle penal, sobretudo carcerria. Como percebe Eduardo Faria, com o processo de globalizao e a gradual simbiose entre marginalidade social e marginalidade econmica, as instituies jurdicas dos Estados so obrigadas a concentrar sua atuao na preservao da ordem e da segurana, assumindo papis eminentemente punitivo-repressivos. Os no-cidados porm, apesar de destitudos de seus direitos subjetivos pblicos, no so dispensados de suas obrigaes estabelecidas nas leis penais. Dessa forma, o Estado enquanto no mbito dos direitos sociais e econmicos vive hoje um perodo de refluxo, no direito penal a situao oposta. O que a se tem a definio de novos tipos penais, a criminalizao de novas atividades em inmeros setores da vida social, o enfraquecimento dos princpios da legalidade e da tipicidade por meio do recurso a regras sem conceitos precisos, o encurtamento das fases de investigao criminal e instruo processual e a inverso do nus da prova[12].

  • de se notar, ainda, que a proposta garantista da reduo dos servios do Estado em matria penal em nada corresponde, como afirmam alguns afoitos, ao projeto autoritrio exposto acima. Pelo contrrio, o minimalismo penal o contraponto timo do modelo jurdico-poltico que concebe o Estado em funo exclusivamente repressiva[13]. Impe-se, pois, entre os pensadores crticos, a noo de que este sistema de economia global um sistema de violncia internacional organizada, sendo que a nica sada para tal o direito, sobretudo o constitucional, percebido como racionalidade dirigida minimizao do estado de guerra e preservao do homem. No obstante, um fato deve ser ainda comentado, a dizer, o do rompimento da noo liberal clssica de soberania dos Estados e os efeitos sob os sistemas (nacionais e internacionais) de garantia. decorrncia lgica do processo de globalizao econmica o enfraquecimento dos sistemas constitucionais e a ruptura do poder soberano. Cada vez mais o local deliberativo das polticas econmicas, inclusive em relao segurana pblica[14], deslocado aos pases desenvolvidos, conformando cada vez mais um modelo central e inabalvel de poder. A quebra do princpio da soberania pode ser vista, porm, no apenas como resultado catastrfico da total desregulamentao do poder, mas tambm como uma das nicas possibilidades de controle deste modelo de desrespeito absoluto aos direitos fundamentais. Com o advento da ONU, e mais espe