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ARTIGOS SALVADOR : CIDADE DO AXÉ E DO ASSALTO Análise sócio-cultural da criminalidade urbana Luiz Hosannah de Oliveira Pinto * RESUMO O presente artigo analisa criticamente a correlação entre os aspectos sócio-culturais e o comportamento anti-social. Ao longo do texto, são apresentados argumentos que demonstram que o comportamento humano é determinado pelos valores aprendidos no processo de socialização e que se deve utilizar a postura metodológica da relativização para compreender as razões do recrudescimento da criminalidade em Salvador nas últimas décadas, a ponto desta ter se tornado uma das principais mazelas sociais da grande metrópole. Palavras-chave: Comportamento humano – Criminalidade – Ciências sociais – Cultura – Psicologia. Dados recentes do último censo apresentaram uma dura realidade: o grau de miséria a que está sujeita a maioria absoluta da população brasileira.Nas últimas décadas, a concentração de renda, a recessão, o desemprego, a inflação e a queda do poder aquisitivo – dentre outros indicadores sociais – alcançaram índices alarmantes. Estreitamente vinculado a este contexto, tem-se observado um recrudescimento da angústia, da frustação e da revolta na sociedade. A maioria da população não tem acesso à vivência plena da cidadania nem a uma existência digna que implique na observância, por parte do sistema, dos direitos elementares supostos pela constituição federal. As tensões sociais têm aumentado, com a presença de vários “sintomas” capazes de realçar os problemas estruturais do país. Dentre estes indicadores de crise, pode-se destacar um, cujos efeitos são sentidos drasticamente pela sociedade: a criminalidade urbana. Os atos criminosos têm crescido assustadoramente nas últimas duas décadas, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, podendo ser efetuada uma conexão * Psicólogo, Mestre em História e Professor titular da UNIFACS.

SALVADOR : CIDADE DO AXÉ E DO ASSALTO

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analisa criticamente a correlação entre os aspectos sócio-culturaise o comportamento anti-social. Ao longo do texto, são apresentados argumentos quedemonstram que o comportamento humano é determinado pelos valoresaprendidos no processo de socialização e que se deve utilizar a posturametodológica da relativização para compreender as razões do recrudescimento dacriminalidade em Salvador nas últimas décadas, a ponto desta ter se tornado umadas principais mazelas sociais da grande metrópole.

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  • ARTIGOS

    SALVADOR : CIDADE DO AX E DO ASSALTO Anlise scio-cultural da criminalidade urbana

    Luiz Hosannah de Oliveira Pinto*

    RESUMO O presente artigo analisa criticamente a correlao entre os aspectos scio-culturais e o comportamento anti-social. Ao longo do texto, so apresentados argumentos que

    demonstram que o comportamento humano determinado pelos valores

    aprendidos no processo de socializao e que se deve utilizar a postura

    metodolgica da relativizao para compreender as razes do recrudescimento da criminalidade em Salvador nas ltimas dcadas, a ponto desta ter se tornado uma

    das principais mazelas sociais da grande metrpole.

    Palavras-chave: Comportamento humano Criminalidade Cincias sociais Cultura Psicologia.

    Dados recentes do ltimo censo apresentaram uma dura realidade: o grau de misria a que est sujeita a maioria absoluta da populao brasileira.Nas ltimas dcadas, a concentrao de renda, a recesso, o desemprego, a inflao e a queda do poder aquisitivo dentre outros indicadores sociais alcanaram ndices alarmantes. Estreitamente vinculado a este contexto,

    tem-se observado um recrudescimento da angstia, da frustao e da revolta na sociedade. A maioria da populao no tem acesso vivncia plena da cidadania nem a uma existncia digna que implique na observncia, por parte do sistema, dos direitos elementares supostos pela constituio federal. As tenses sociais tm aumentado, com a presena de vrios sintomas capazes de realar os problemas estruturais do pas. Dentre estes indicadores de crise, pode-se destacar um, cujos efeitos so sentidos drasticamente pela sociedade: a criminalidade urbana. Os atos criminosos tm crescido assustadoramente nas ltimas duas dcadas, conforme dados da Secretaria de Segurana Pblica do Estado da Bahia, podendo ser efetuada uma conexo

    * Psiclogo, Mestre em Histria e Professor titular da UNIFACS.

  • entre este incremento e as desigualdades sociais inerentes a uma formao social em permanente contradio. Especificamente em Salvador, pode-se considerar que, a partir dos anos 50, iniciou-se um processo de reaquecimento econmico, sendo possvel a delimitao de trs grandes conjunturas que deram novo impulso economia: Nos anos 50, o efeito Petrobrs, nos anos 60, o efeito CIA Centro Industrial de Aratu e nos anos 70, o efeito COPEC Complexo Petroqumico de Camaar. Em paralelo dinamizao da economia e modernizao da cidade, os problemas sociais no tardaram nem falharam, em decorrncia do carter contraditrio deste processo. Dialeticamente, ao mesmo tempo em que houve um incremento da industrializao, o aquecimento do setor tercirio, a metropolizao da cidade e o aprimoramento dos servios prestados e dos bens oferecidos, a infra-estrutura no acompanhou o crescimento populacional, e a relativa diversificao da estrutura ocupacional e de renda no foi suficiente para absorver a maior parte da populao, multiplicando-se o estrato de baixa renda, incrementada pela migrao e sub-emprego , levando a extrema pobreza, ocupao desordenada do solo urbano e sub-habitaes, denotando a queda desenfreada do nvel da qualidade de vida e do acesso a bens e servios por parte da maioria da populao de Salvador, refletindo, sobremaneira, na distribuio urbana (NENTWIG SILVA, 1991, p.70). O temor de sofrer algum tipo de violncia contra a integridade fsica ou contra o patrimnio tem suscitado mudana de hbitos na populao, objetivando alternativas de defesa. Dentre muitas, destacam-se o uso indiscriminado de armas de fogo, uma escolha criteriosa dos lugares freqentados, a transformao das residncias em fortalezas, a desconfiana e a presena ostensiva de seguranas particulares. Outras estratgias para a sociedade enfrentar a crescente onda de violncia so: a reivindicao, junto aos poderes pblicos, de maior segurana; e o movimento em defesa da implantao da pena de morte. O que tem predominado a difuso de idias que no estimulam uma viso questionadora da globalidade social, centrando a explicao do fenmeno criminoso em argumentos que camuflam as determinantes scio-histricas e concretas.

  • A busca da compreenso do fenmeno criminoso demanda um estudo sistemtico por parte das cincias. Somente o entendimento das determinantes que interagem dinamicamente viabilizar a transformao do quadro atual. Este trabalho pretende correlacionar o fenmeno social da criminalidade urbana com as caractersticas culturais dos agentes criminosos e os cdigos de valores vinculados estrutura social e ao exerccio da cidadania, possibilitando um estudo totalizante e crtico. Partindo-se destas premissas, o primeiro passo definir o objeto de estudo. O crime uma atividade anti-social. Pode ser definido como qualquer ato proibido pela Lei que o Estado e a sociedade pretendem coibir (KOENIG, 1967, p.371). Como tudo na realidade, os conceitos e critrios para delimitao do que crime ou no so fluidos e dinmicos. Segundo Ferreira, que crime e qual o seu verdadeiro conceito no Direito Penal? As definies so vrias... ... variando no seu contedo, bem como no tempo e no espao. Dos crimes punidos pelas leis hebraicas, muitos deixaram de ser crime na sociedade contempornea. O trabalho que, em tempos remotos, era considerado degradante, hoje ganhou este conceito a vadiagem, punida por lei. Chegar, talvez, a ocasio, segundo o renomado Roberto Lyra, em que o crime capital no mundo superlotado, ser o de possuir famlia numerosa, enquanto noutras eras, a vergonha era no ter filhos, e que nenhum de ns poder gabar-se de no ser considerado um criminoso nato, num estado social passado ou futuro... ... Entre ns, at 1888 na fase urea da escravatura punia-se o negro lacaio, a vtima, e no os autnticos criminosos (1986, p.3). A verdade no absoluta, mas relativa e contextualizada. Para os estudiosos dos processos sociais apreenderem a lgica subjacente predominncia das aes criminosas entre os marginalizados sem cair no reducionismo economicista imprescindvel que se ressalte o papel de cultura como intermediadora da interao social e dos comportamentos que so esperados numa comunidade.

    Segundo Velho, a Antropologia, em seu percurso enquanto cincia, salientava em seus estudos as diversidades culturais, mas, sob a mscara de uma igualdade biolgica; caracterizava-as como etapas distintas de um s processo evolutivo social verdadeiro, liderado pela cultura ocidental. A sociedade ocidental passou a ser considerada como um estgio que deveria ser atingido por todos os povos no-civilizados. Partia-se da premissa de verdade

  • absoluta em consonncia com o colonialismo e o incremento capitalista em busca de novos mercados consumidores (VELHO, 1978, p.3). Esta era uma postura etnocntrica, assim definida por Guimares Rocha: Etnocentrismo uma viso do mundo onde o nosso prprio grupo tomado como centro de tudo e todos os outros so pensados e sentidos atravs dos nossos valores, nossos modelos, nossas definies do que a existncia (GUIMARES ROCHA, 1988, p.71). No etnocentrismo h uma hierarquizao e um julgamento do valor da cultura do outro, nos termos da cultura do eu. Os membros da classe mdia no conseguem entender como possvel um assaltante de banco ser capaz de, armado de uma escopeta, fazer o gerente como refm. Ou ainda, como um homem prefere roubar a trabalhar. Como que a sua opo por faturar 250 mil em dois assaltos de vinte minutos cada, a ser assalariado perfazendo um salrio mnimo por jornada de oito horas dirias. A sociedade no compreende quais as determinantes que esto em jogo quando um menino de rua rouba a bolsa de uma senhora aps rend-la com um estilete. A sociedade est mope, s conseguindo apreender um aspecto da realidade, a que se apresenta mais perto dela. Para assimilar a verdade do outro, que est mais distante, s se utilizar um instrumento, o culos, ou seja, uma nova postura metodolgica. Para velho, a nova postura metodolgica advinda com a Antropologia a que ... busca compreender melhor as diferenas culturais em si, o que melhor caracteriza a posio antropolgica o esforo de reconstruir os critrios internos que cada cultura utiliza para sua auto-reflexo (VELHO, 1978, p.4). Geertz cita Clyde Kluckhohn para classificar o conceito de cultura: o modo global de vida de um povo, legado social que o indivduo adquire do seu grupo, uma forma de pensar, sentir e acreditar, uma abstrao do comportamento, celeiro de aprendizagem comum, conjunto de orientaes padronizadas para os problemas recorrentes e comportamento aprendido O

    homem um ser social, e no seu contexto que lhe dado seu sentido, atravs das teias de significados que ele mesmo tece. Essas teias formam a cultura (GEERTZ, 1978, p.14). Para Velho, a pesquisa etnogrfica a maneira para romper com esquemas apriorsticos, universalizantes e normatizantes na interpretao das culturas humanas. fundamental que as diversidades sociais sejam percebidas e correlacionadas com a variao dos valores referenciais simblicos e possibilidades comportamentais a partir da perspectiva das classes e

  • dos grupos com seus cdigos peculiares. Romper com o evolucionismo ingnuo e com a postura destituidora de tudo que no seja igual ao dominante o que se chama de relativizar (VELHO, 1978, p.4). O pesquisador ou o cidado comum, em seu dia-a-dia e em suas interaes sociais est relativizando, quando v que as verdades da vida so menos uma questo de essncia das coisas e mais uma questo de posio ou ngulo de viso. fundamental buscar estabelecer relaes, analisando as estruturas de significao, os cdigos estabelecidos, e determinar sua base social e importncia (GEERTZ, 1978, p.19). Segundo Guimares Rocha, quando o significado de um ato visto no na sua dimenso absoluta mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando compreendemos o outro nos seus valore e no nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar ... ver as coisas do mundo como a relao entre elas. Ver que a verdade est mais no olhar que naquilo que olhado.... no transformar a diferena em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas v-la na sua dimenso de riqueza por ser diferena (1988, p.20). A cultura a instncia humanizadora que estabelece as relaes comportamentais. a tradio viva, elaborada conscientemente e passada pela interao entre os membros do grupo, que permite demarcar determinantes peculiares s comunidades e que asseguram a ao coletiva (DA MATTA, 1981, p.48). O aspecto cultural de uma sociedade consiste naquilo que os membros tm que saber ou acreditar, a fim de agirem de uma forma aceita pelos seus membros. A base do repasse dos valores do grupo a interao social, no processo de socializao. Geertz e Velho concordam que a cultura tem uma natureza simblica e uma estruturao sistmica que viabiliza sua reproduo e manuteno, apresentando-se como um conjunto de regras de interpretao da realidade que permite a existncia de sentido nos atos humanos. um sistema de smbolos, organizados em diversos subsistemas. Tal postura evidencia a

    natureza social do comportamento: os smbolos so decodificados a partir de um cdigo comum ao grupo.

    A cultura organizada como sistemas entrelaados de signos interpretveis, no sendo um poder, um ente que determina causalmente os acontecimentos sociais, comportamentos e processos, mas o contexto no qual estes adquirem sentido e que sempre possui uma coerncia interna organizada de uma forma bastante especfica (GEERTZ, 1978, p.29). Pertencer a um

  • grupo social implica, basicamente em compartilhar um modo especfico de comportar-se em relao aos outros (ARANTES, 1988, p.26). As diferenas, portanto, representam a forma pela qual os sujeitos do solues diversas a limites existenciais comuns, partindo das diferenas no seu contexto scio-poltico-econmico. A diferena concretiza uma alternativa ante os problemas (G. ROCHA, 1988, p.21). Os valores, a ideologia, a viso de mundo, ou seja, o cdigo simblico de interpretao da realidade, varia entre sociedades. Por exemplo, para o adolescente japons, o importante ser o 1 colocado na sua classe escolar e para tanto, capaz de abrir mo de alguns aspectos de gratificao pessoal em funo do investimento no estudo para dar a honra famlia. O adolescente brasileiro possui outros valores preponderantes, e a honra familiar no est nos primeiros lugares do ranking. Portanto, no capaz de cometer suicdio pela falha ao envergonhar os honorveis pais, como seu colega japons. Mas, alm da diversidade cultural inter-sociedades, h especificidades culturais intra-sociedades, atravs do tempo e tambm na mesma poca, dependendo da classe social, do nvel scio-econmico-cultural e de outros recortes da realidade social comum (idade, sexo, religio etc..). Nas sociedades complexas ou heterogneas, possuidoras de uma diviso do trabalho estruturada e de uma significativa complexidade nas foras produtivas, h a diversificao interna considervel, com uma cultura dominante ou hegemnica e uma pluralidade de modos distintos de interpretar o mundo, algumas inclusive antagnicas (VELHO, 1978, p.7). Para Jos Lus dos Santos, uma das caractersticas de muitas das sociedades contemporneas, inclusive a nossa prpria, a grande diversidade interna. A diferenciao bsica decorre do fato de que a populao se posiciona de modos diferentes no processo de produo... quando se fala sobre classe social frequentemente a respeito desta diferenciao que se est fazendo referncia. Estas classes tm formas de viver diferentes, enfrentam problemas diferentes na

    sua vida (1986, p.51). Por exemplo, a criana de rua aprende que a sociedade injusta, que no existe respeito por seus direitos e que a vida no vale nada, j que SUA vida no vale nada para os transeuntes, os motoristas que param carros nas sinaleiras e os escorraam ou os garons dos botequins.

  • Para sobreviver, os grupos de meninos e meninas de rua estruturam seus prprios valores e regras comportamentais, que so capazes de chocar bons cidados pouco familiarizados com a realidade deles. Respeito, amor, tica, realizao, limites, leis... so conceitos que nem sempre esto introjetados no cdigo simblico existencial dos meninos de rua e eles por si mesmos no so capazes de pensar sobre isto. Da o confronto com a ordem instituda. O horizonte temporal deles restrito e bastante concreto, limitando-se ao que vo comer no almoo do dia seguinte. Indo a uma invaso qualquer dentre as centenas que existem em salvador, ver-se- uma rede de significantes que d uma feio particular a estes aglomerados de lares sub-humanos e sem infra-estruturas bsicas. Segundo Nilo Odlio, nos bairros em que abundam os pardieiros e favelas, a violncia no pode ser escorraada e evitada com cercas e muros. Ela uma realidade com a qual se convive, uma realidade cuja proximidade e intimidade auxiliam esquec-la. Ela enfrentada como uma das tantas calamidades que se enfrentam, no cotidiano. Sobreviver a sofrer e produzir violncia. Na favela, no cortio, embaixo das pontes, como o isolamento uma quimera, a nica arma contra a violncia permitir que a promiscuidade e o hbito team uma rede de conformismo que, aqui e acol rompida, no deixa de funcionar como uma falsa proteo. No havendo uma soluo para a violncia da vida cotidiana, o remdio integr-la como um componente normal das relaes entre os homens. (1985, p. 12). A angstia subjetiva da falta est associada frustrao por no possuir o que garantiria uma afirmao social. Rgis de Morais diz que, o consumo faz as cidades e o excesso de consumo as desfaz. Os espaos das metrpoles esto literalmente tomados por uma noo comercial de vida. ali que se fabricam febrilmente as necessidades, ali que os moradores se tm que render ao feitio dos objetos, de possuir objetos. Especialistas afirmam que a objetalidade (consumo desvairado de coisas) excita a ambio e esta instala a frustrao. H os que no podem seguir o ritmo terrvel do consumo, mas ao longo de sua histria de vida, desenvolvem alguma possibilidade de assumir suas impossibilidades. Mas h tambm aqueles que no podendo acompanhar a maratona do possuir, transformam a fragilidade que suas frustraes impem num feroz potencial de agressividade (MORAIS, 1985, p.16). O individualismo implica em igualdade, s que uma igualdade terica, falsa, ideal em termos de oportunidades, direitos e potencial. O indivduo constitui o valor supremo na teoria liberal

  • igualitria, compatvel com a idia de que a liberdade mxima de cada um o limite para o direito do outro. Teoricamente seria uma forma de assegurar a ordem e a satisfao geral mas o que se observa no Brasil a misria das massas e impossibilidade de ascenso social. (DUMONT, 1985, p. 91). A sociedade capitalista individualista, competitiva e contraditria fomentadora de um sistema de excluso, no qual os oprimidos buscam alternativas no bojo da luta pela afirmao que faz parte da rede significante cultural dos diversos grupos sociais, tnicos ou regionais. A sociedade de massas apresenta um novo espao urbano no qual os contatos so annimos com a perda da referncia micro-social . H a busca de novos canais de afirmao e demarcao de identidades. O crime um deles. A sociedade de consumo estimula o ato de consumir como como afirmao , mas os que no integram o circuito , por estarem alijados dos meios de produo e alienados da riqueza produzida socialmente , tm a frustrao aumentada. Para ascender socialmente, s roubando, ganhando na megasena, ou dando o golpe do ba, vis ideolgico repassado incansavelmente nas novelas televisivas.

    A polarizao das zonas de moradia, segundo a qual rico mora na Barra, pobre em Cajazeiras, e miservel em Novos Alagados, quebra o vnculo integrativo inter-classe que exercia um poder de controle das tenses sociais. Alm disto, a massificao quebra os patamares de classe com o achatamento social e nivelamento por baixo. Segundo Velho, movendo-se do trabalho para a famlia, como membro de alguma religio, no seu lazer, participando de alguma associao ou partido poltico, interagindo em geral com diferentes pessoas de sua rede de relaes, o habitante da grande metrpole especialmente se v participando de cdigos e valores que podem guardar pouca coerncia entre si, provocando respostas e decises muitas vezes contraditrias... ou seja, o mapa social est longe de ser claro, e as pessoas so levadas, conscientemente ou inconscientemente a tomar decises que

    vo marcar tipos de trajetrias possveis dentro de uma sociedade. A busca de lgica dessas decises pode ser um dos caminhos para entender a maior ou menor eficcia dos sistemas simblicos envolvidos(VELHO, 1978, p. 10). A viso de mundo e a angstia subjetiva que so construdas na vivncia da marginalizao social retro-alimenta a possibilidade de o marginalizado utilizar-se da via criminosa para construo da sua identidade e consecuo da sua afirmao social. O sentimento de culpa e a

  • moral que, nas classes mais favorecidas, so barreiras ainda que longe de serem intransponveis para a ao criminosa violenta (assaltos, seqestro, furtos, etc...), encontram-se bastante enfraquecidos nas classes menos favorecidas. A baixa auto-estima, o sentimento do nada tenho a perder e o binmio frustrao + revolta, apresentam-se como um terreno mais frtil para o ato delituoso e para o desprezo vida humana. Esta anlise nada tem de preconceituosa ou hierarquizante. A comunidade perifrica e sem direito cidadania no inferior, mas especfica e correlacionada com sua insero no contexto social. O fundamental que se perceba que a raiz do problema encontra-se no todo social, na realidade com todos os seus atores. A sociedade e a cultura esto sempre em transformao pois no so entidades estticas, mas produto e produtoras dos indivduos. Segundo Jos Lus dos Santos, o fato de que as tradies de uma cultura possam ser identificveis, no quer dizer que no tenham sua dinmica. Nada do que cultural pode ser estanque, porque a cultura faz parte da realidade onde a mudana um aspecto fundamental (1986, p. 47). atravs das interaes e da reinveno dos papis sociais que a histria se processa. Em meio a este curso histrico, se d o fenmeno da criminalidade, vinculado estreitamente estrutura scio-poltico-econmico-cultural.

    O crime no um problema exclusivamente antropolgico, biolgico, psicolgico, econmico ou histrico; nenhum determinismo ou reducionismo dar conta da explicao do fenmeno. A criminalidade que assola a sociedade brasileira apresenta-se como uma problemtica multideterminada, num complexo de fatores relacionados entre si sem nenhuma caracterizao de anormalidade intrnseca biolgica, psicolgica ou social. Excetuando-se casos particulares, no produto de problemas orgnicos, doena mental ou patologia social. O delinqente est inserido num contexto cultural cuja interao sujeito x mundo pode favorecer uma resultante comportamental criminosa ou no. A determinao para o crime est

    centrada na interligao entre os aspectos atuantes. Havendo interesse especfico em tornar os fenmenos sociais inteligveis, ser necessrio analisar os objetos sob vrios ngulos, com contribuies das vrias cincias, numa tentativa de evitar o entorpecimento da compreenso da realidade e a obteno de verdades sem embasamento e fidedignidade.

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