Sangela Tese Doutorado Maio 2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA

MARIA SANGELA DE SOUSA SANTOS SILVA

A JUSTIA DO TRABALHO E OS TRABALHADORES EM FORTALEZA (1946-1964)

Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obteno do ttulo de Doutor em Histria, na rea de Concentrao Histria Social.

Orientador: FERNANDO TEIXEIRA DA SILVA

CAMPINAS/SP 2012i

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Dedico Ana Clara, nossa luz e alegria, fruto do amor.

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AGRADECIMENTOS

Sou grata a muitas pessoas que fizeram parte dessa luta para cursar o doutorado, cuja realizao foi um desafio e um sonho alimentado pelos que participaram direta e indiretamente desta conquista. Agradeo minha famlia, especialmente aos genitores Macrio e Railda, que sempre confiaram nas minhas escolhas e me ensinaram a lutar pelo justo, pelo melhor e por uma vida mais digna. Estendo minha gratido famlia Neli Fama, que por muitas vezes me acolheu em seu seio maternal, em momentos de sade e de doena, de dificuldade e de superao, com apoio incondicional. Agradeo Secretaria de Educao Bsica do Estado do Cear pelo incentivo profissional e liberao para os estudos do doutoramento. Agradeo Universidade Estadual de Campinas, pela acolhida e formao acadmica. Agradeo Fundao Cearense de Amparo ao Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico, pela bolsa de estudos que subsidiou parte do referido estudo. Agradeo ao Tribunal Regional do Trabalho da 7. Regio, Fortaleza, especialmente ao pessoal do setor do Memorial, Arquivo e Biblioteca, que abriram o acervo da Justia do Trabalho no Cear, viabilizando minha pesquisa. Agradeo Biblioteca Pblica Menezes Pimentel, especialmente ao Setor de Microfilmagem, nas pessoas do Elmadan e Gertrudes, pelo esforo de oferecer um bom servio, que me viabilizou a leitura de processos trabalhistas e do Jornal da poca. Agradeo Universidade Federal do Cear, ao Ncleo de Documentao, pelo acervo de entrevistas disponveis consulta. Minha gratido ao orientador Fernando Teixeira da Silva pela pacincia e perspiccia com que me fez compreender os caminhos do estudo da Justia do Trabalho, e por ter ampliado a concepo sobre o universo da pesquisa sobre o mundo do trabalho. Obrigado aos trabalhadores que se dispuseram a narrar suas memrias sobre o movimento operrio e sindical: Jos Maria Tabosa, Francisco Nunes de Moura (Chico Caboclo), Luiz Gonzaga dos Santos, Francisco Baltazar Filho e Miguel Fernandes de

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Lima; igualmente agradeo ao advogado trabalhista Tarcsio Leito, cuja militncia profissional e poltica uma marca de sua trajetria pessoal. Minha gratido ao meu companheiro Tom e Silva que abdicou de um projeto pessoal e mergulhou comigo no novo mundo campinense, de cultura e costumes diferentes, de clima e temperatura to diversos do j vivido. Minha gratido minha filhinha Ana Clara, primeiro diploma do doutorado, que desde beb teve que conviver com a minha ausncia, por ter que pesquisar distante dela. Agradeo, enfim, ao Senhor Deus da Vida, pela fora, determinao e perseverana em cruzar os caminhos esburacados e tortuosos, mas com passos firmes, que me possibilitou chegar ao final desta caminhada.

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OS TRABALHADORES Rogaciano Leite Uma lngua de fumo, enorme e bamboleante, Vai lambendo o infinito, espessa e fatigada... a fumaa que sai da chamin bronzeada E se condensa em nuvens, pelo espao adiante. Dir-se-ia uma serpente de inflamada fronte Que assomando ao covil, ameaadora e turva. E subindo e subindo, assim de curva em curva, fosse enrolar a cauda ao dorso do horizonte. Mas no: a chamin da fbrica de oiteiro - Esse enorme charuto que a amplido bafora Que vai gerando monstros pelo cu afora, Cobrindo de fumaa aquele bairro inteiro. Ouve-se da bigorna o eco da oficina, O soluo da safra e o grito do martelo; Como tigres travando ameaador duelo As mquinas estrugem no poro da usina. o antro onde do ferro o rebotalho impuro faz-se estrela brilhante, luz de ureo polvilho; o ventre do trabalho onde se gera o filho, que estende a fronte loura aos braos do futuro. Um dia, de uma idia uma semente verte, resvala fecundante e se agregando ao solo, Levanta-se, floresce, e ei-la a suster no colo os frutos que no tinha enquanto estava inerte. Foi o germe da luz, a flor do pensamento multiplicando a ao da fora pequenina: De um retalho de bronze, ergueu uma oficina, ix

De uma esteira de cal gerou um monumento. Trabalhar! Que o trabalho o sacrifcio santo, Sob a poeira exaustiva e o calor fatigante; Estaleiro do amor que as almas purifica; Onde o plen fecunda, o po se multiplica E em flores se transforma a lgrima do pranto. Mas no vale o trabalho andar a passo largo, Quando a estrada forrada de injustia e crimes; Porque em vez de dar frutos dlcidos, sublimes, Gera bagos mortais e de sabor amargo. Ide ver quanto heri, quanto guindaste humano Os msculos de ferro, o porte do gigante Misturando em suor o seu po cotidiano! Sua fora o milagre, a redeno bendita; O seu rgido brao a energia alavanca. O escpro milagroso, a chave que destranca O reino do progresso, onde a grandeza habita. Sem os ps desse heri a evoluo no anda, Sem as mos desse bravo uma nao no cresce; A indstria no produz, o campo no floresce, O comrcio definha, a exportao debanda. No entanto, vede bem: esses heris sem nome, Malditos animais que ainda escraviza o ouro, Arrastam que injustia! o carro do Tesouro, Atrelados dor, enfermidade e fome.

Quanto prdio imponente e de valor sunturio Erguido para o cu, firmado no infinito, Indiferente mgoa, indiferente ao grito De desgraa que invade a choa do operrio! De dia no trabalho, exposto ao sol e chuva; De noite, na infeco de uma choupana escura Onde breve uma filha h de tornar-se impura uma mulher faminta h de ficar viva. Nem mesmo o sono acolhe as plpebras cansadas! O leito a umidez dos ftidos mocambos. O po escasso e duro, as roupas so molambos E o calado o paul das ruas descaladas! Ali, da Medicina estranho um s prodgio... Nunca um livro se abrira em risos de esperana. Para encher de fulgor os olhos da criana, Apontando-lhe o cu, mostrando-lhe um vestgio. Tudo treva e descrena! O prprio Deus triste Ouvindo esse ofegar de coraes humanos... E a lei mulher feliz que dorme h tantos anos No acorda pra ver quanta injustia existe! Onde est esse amor que os sacerdotes pregam? Onde esto essas leis que o Parlamento imprime? O Cdigo no pode abrir o seio ao crime. Infamando o pudor que os Tribunais segregam. Vde bem da fornalha a rubra labareda! Olha das chamins o fumo que desliza! x

Pois o sangue, o suor do pobre que agoniza, Enquanto as leis cochilam nos divs de seda. Que feito desse heri? Ningum lhe sabe a origem. O poder nunca entrou nas palhas do seu teto. Somente a esposa enferma, o filho analfabeto. E l nos cabars a filha que era virgem. desgraa demais que num pas to nobre Que teve um Bonifcio, um Rui, um Tiradentes, Exista uma legio de mrtires descrentes Em cada fim de rua, em cada bairro pobre! Ser preciso o sangue gotejar da lana E o cadver do povo apodrecer nas ruas? Tu no vestes, lei, as prprias filhas nuas? Morre, pois, me cruel, debaixo da vingana! Mas eu vejo que breve h de chegar a hora Em que a voz do infeliz livre na garganta; Por que eu sei que esse Deus que nos palcios canta, o mesmo grande Deus que l nos bairros chora. Quanto riso aqui dentro, e l por fora, os brados! Quantos leitos de seda, e quantos ps descalos! Mas se os homens legislam com decretos falsos, Rasga, Cristo, o teu manto! e abriga os desgraados.

RESUMO

A presente pesquisa analisa a Justia do Trabalho na cidade de Fortaleza, nos anos de 1946 a 1964, cuja arena jurdica permeada de conflitos, tenses e negociaes entre trabalhadores e patres. Esse instrumento de luta da classe trabalhadora sofreu influncias do contexto externo poltico, movimentos sindical e operrio que exerceram presso sobre seu fazer, enquanto conciliadora de interesses entre os envolvidos. Como os trabalhadores utilizaram desse instrumento Justia do Trabalho para defender seus direitos? Como a Justia do Trabalho lidou com situaes conflituosas do mundo do trabalho e como aplicou a lei? A partir de dissdios coletivos e individuais, entrevistas com trabalhadores, um advogado, juzes, funcionrios do Tribunal Regional do Trabalho e de um lder sindical, alm das matrias do Jornal O Povo, busco responder a essas questes luz das fontes judiciais e bibliogrficas, contribuindo para o estudo da histria dos trabalhadores e da Justia do Trabalho.

Palavras chaves: Mundo do Trabalho, Justia, Leis, Direito, Trabalhadores.

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ABSTRACT

This research analyses the justice of the work in the city of Fortaleza, in the years from 1946 to 1964, whose juridical arena is permeated of conflicts, tensions and negotiations between workers and bosses. This instrument of fight of the worker class suffered influences of the external context political, syndical and worker movements that exerted pression about its do it, whereas conciliater of interests among the people envolved. How did workers utilize of this instrument justice of the work to defend their rights? How did the justice of the work deal with conflict situations of the world of the work and how did apply the law? From collective and individuals dissidious, interviews with workers, lawyers, judges, workers of tribunal regional of work, and of a syndical leader, beyond of material of the magazine O Povo, I search answer to these questions in front of the judicial and bibliographical sources, contributing to the study of the history of the workers and the justice of the work. Key words: World of the work, Justice, Laws, Rights, Workers.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AL - Assembleia Legislativa AMATRA - Associao dos Magistrados do Trabalho AOEC - Aliana Operria Estudantil Camponesa AIB - Ao Integralista Brasileira BB - Banco do Brasil BL - Banco da Lavoura BLB - Banco Lar Brasileiro BNB - Banco do Nordeste do Brasil CEF - Caixa Econmica Federal CLT - Consolidao das Leis do Trabalho CM - Cmara Municipal CMC - Comisses Mistas de Conciliao CNB - Confederao Nacional dos Bancrios CNT - Conselho Nacional do Trabalho CNTI - Confederao Nacional dos Trabalhadores na Indstria COC - Crculos Operrios Catlicos CRT - Conselhos Regionais do Trabalho CP - Carteira Profissional DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda DRT - Delegacia Regional do Trabalho DO - Dirio Oficial DOPS - Departamento da Ordem Poltica e Social ETR - Estatuto do Trabalhador Rural FAR - Fundo de Assistncia Rural FNE - Federao Nacional dos Estivadores FTI - Federao dos Trabalhadores nas Indstrias FTEB - Federao dos Trabalhadores em Estabelecimentos Bancrios GC - Guarda Civil IAPI - Instituto de Aposentadoria e Penso dos Industriais JCJ - Juntas de Conciliao e Julgamento xiii

JT - Justia do Trabalho JCJF - Junta de Conciliao e Julgamento de Fortaleza LCT - Legio Cearense do Trabalho LSN - Lei de Segurana Nacional MSC - Movimento Sindical Cearense MTIC - Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio NUDOC - Ncleo de Documentao PC - Polcia Civil PCB - Partido Comunista Brasileiro PCdoB - Partido Comunista do Brasil PDC - Partido Democrata Cristo PM - Polcia Militar PMF - Prefeitura Municipal de Fortaleza PUA - Pacto de Unidade e Ao PUI - Pacto de Unidade Intersindical PUS - Pacto da Unidade Sindical PSD - Partido Social Democrata PSP - Partido Social Progressista PTB - Partido Trabalhista Brasileiro RFF - Rede Ferroviria Federal RVC - Rede de Viao Cearense SC - Sindicato dos Comercirios SCVRAF - Sindicato dos Condutores de Veculos Rodovirios e anexos de Fortaleza SEEB Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancrios SEPT - Servio de Estatstica da Previdncia e Trabalho SF - Sindicato dos Ferrovirios SL - Sindicato dos Lojistas SM - Sindicato dos Martimos SUDENE - Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste STIFT - Sindicato dos Trabalhadores na Indstria de Fiao e Tecelagem

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STECPM - Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Comerciais de Petrleo e de Minrios TRT - Tribunal Regional do Trabalho TST - Tribunal Superior do Trabalho UDN - Unio Democrtica Nacional UFC - Universidade Federal do Cear

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LISTA DE GRFICOS

GRFICO I: NMERO DE ASSOCIADOS DOS SINDICATOS, CEAR (19531965) ................................................................................................................. 41 GRFICO II: IDENTIFICAO PROFISSIONAL, NMERO DE CARTEIRAS PROFISSIONAIS EXPEDIDAS NO ESTADO DO CEAR (1945-1964)............ 42 GRFICO III: NMERO DE PROCESSOS NA JUNTA DE CONCILIAO E JULGAMENTO DE FORTALEZA, CEAR, 1944-1964. ............................... 111 GRFICO IV: DISSDIOS COLETIVOS INSTAURADOS E SOLUCIONADOS PELO TRT 7 REGIO, FORTALEZA, CEAR, E SOLUCIONADOS PELO TST ....................................................................................................................... 120 GRFICO V: NMERO DE DISSDIOS COLETIVOS DA JT, TRT 7 REGIO, FORTALEZA-CE (1942-1964) ........................................................................ 161 GRFICO VI: PERODO DE JULGAMENTO DOS DISSDIOS COLETIVOS DA JT, TRT 7 REGIO, FORTALEZA-CE (1942-1964) ...................................... 162 GRFICO VI: RESULTADOS DOS DISSDIOS COLETIVOS DA JT, TRT 7 REGIO, FORTALEZA-CE (1946-1964) ........................................................ 165 GRFICO VIII: PERODO DE JULGAMENTO DAS RECLAMAES NA JT, JCJF, FORTALEZA-CE 1946-1964) ............................................................... 171 GRFICO IX: CONTEDO DAS MOTIVAES DAS RECLAMAES NA JT, JCJF, FORTALEZA-CE (1946-1964) ............................................................. 172 GRFICO X: CONTEDO DAS DEMANDAS DAS RECLAMAES NA JT, JCJF, FORTALEZA-CE (1946-1964) .............................................................. 173 GRFICO XI: RESULTADO DAS RECLAMAES POR INSTNCIAS NA JT, JCJF, FORTALEZA-CE (1946-1964) .............................................................. 174 GRFICO XII: RESULTADO DAS RECLAMAES NA JT, JCJF, FORTALEZACE (1946-1964) ............................................................................................... 221

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LISTA DE TABELAS

TABELA I: ORGANIZAO SINDICAL DO ESTADO DO CEAR - NMERO DE FEDERAES E SINDICATOS (1950-1964) .............................................. 38 TABELA II: DISCRIMINAO DOS PROCESSOS DA JUNTA DE CONCILIAO E JULGAMENTO, FORTALEZA CEAR (1946-1964) NMEROS ABSOLUTOS .............................................................................. 113 TABELA III: DISCRIMINAO DOS PROCESSOS DA JUNTA DE CONCILIAO E JULGAMENTO, FORTALEZA CEAR (1946-1964) PERCENTUAIS .............................................................................................. 114 TABELA IV: CONTEDO DAS DEMANDAS E PROPORO DOS DEFERIMENTOS E INDEFERIMENTOS DOS DISSDIOS COLETIVOS DA JT, TRT 7A REGIO, FORTALEZA-CE (1942-1964) ........................................... 163

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LISTA DE FIGURAS FIGURA I GREVE DOS TRABALHADORES TXTEIS............................... 49 FIGURA II SINDICATO DOS TXTEIS FECHADO PELA POLCIA .......... 52 FIGURA III GREVE DOS BANCRIOS ....................................................... 67 FIGURA IV PIQUETE DOS BANCRIOS .................................................... 68 FIGURA VI ASSEMBLEIA DOS BANCRIOS ............................................. 71 FIGURA VII GREVE DOS BANCRIOS DO BNB........................................ 73 FIGURA VIII COMEMORAO DO 1. DE MAIO DE 1962 ........................ 74 FIGURA IX OPERAO CADEADO: BANCRIOS E COMERCIRIOS FECHAM OS PORTES DOS ESTABELECIMENTOS DURANTE A GREVE GERAL ............................................................................................................ 75 FIGURA X GREVE GERAL DOS TRABALHADORES ................................ 76 FIGURA XI GREVE DOS MOTORISTAS..................................................... 82 FIGURA XII REPRESSO POLICIAL NA GREVE DOS MOTORISTAS .... 83 FIGURA XIII POLICIAMENTO PREVENTIVO ....................................... 84 FIGURA XIV GREVE DOS FERROVIRIOS .............................................. 86 FIGURA XV FERROVIRIOS DESTROEM TRILHOS ............................... 87 FIGURA XVI ASSEMBLEIA DOS COMERCIRIOS................................... 93 FIGURA XVII ASSEMBLEIA GERAL DOS COMERCIRIOS.................... 95 FIGURA XVIII OS TRABALHADORES ..................................................... 107 FIGURA XIX - COMCIO DE 1. DE MAIO NA PRAA JOS DE ALENCAR118 FIGURA XX MARCHA DOS TRABALHADORES ..................................... 137 xxi

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SUMRIO INTRODUO ................................................................................................ 25 I ORGANIZAO SINDICAL, MOVIMENTO OPERRIO E JUSTIA DO TRABALHO ..................................................................................................... 331.1 ANOS DE AGITAO E GREVES: 1961, 1962 e 1963 ................................................................. 44 1.1.1 Txteis .......................................................................................................................................... 46 1.1.2 Bancrios firmes: ou tudo ou nada! .............................................................................................. 65 1.1.3 Motoristas: no h para quem apelar. O nosso caso tem que ser resolvido na Justia. ............. 77 1.1.4 Ferrovirios: greve rpida, mas destrutiva .................................................................................... 85 1.1.5 Paralisado o Porto do Mucuripe: trabalhadores cruzaram os braos! ........................................... 88 1.1.6 Sem transporte e energia: greve dos trabalhadores das companhias distribuidoras de petrleo. .. 90 1.2 DIRETO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO ............................................................ 92 1.2.1 Comercirios ................................................................................................................................. 92 1.2.2 Grficos ........................................................................................................................................ 96 1.3 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................. 98

II A JUSTIA DO TRABALHO NA VISO DOS SEUS ATORES ................. 1012.1 DESEMPENHO DA JT NO PERODO DEMOCRTICO NO ESTADO DO CEAR .......... 106 2.2 A VISO DOS TRABALHADORES, ADVOGADOS E SERVIDORES DA JT ...................... 120 2.3 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................... 129

III DISSDIOS COLETIVOS DO TRT 7 REGIO (1946 A 1964) .................. 1313.1 DISSDIOS COLETIVOS: instrumentos de negociao entre sindicatos representativos de patres e trabalhadores ....................................................................................................................................... 131 3.1.1 Greves como instrumento de presso para negociao ............................................................... 137 3.1.2 Estratgias de negociao dos trabalhadores .............................................................................. 142 3.1.3 Estratgias de defesa do patro ................................................................................................... 144 3.1.4 A luta pelo Abono ....................................................................................................................... 151 3.1.5 Conflitos na interpretao da lei ................................................................................................. 155 3.2 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................... 160

IV DISSDIOS INDIVIDUAIS NAS JUNTAS DE CONCILIAO E JULGAMENTO DE FORTALEZA (1946-1964) .............................................. 1674.1 DISPENSA INJUSTA ...................................................................................................................... 175 4.2 RENNCIA DE ESTABILIDADE ................................................................................................. 195 4.3 SUSPENSO .................................................................................................................................... 197

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4.4 ANOTAO NA CARTEIRA PROFISSIONAL ......................................................................... 203 4.5 ESTRATGIAS DO PATRO PARA BURLAR A LEI ............................................................. 206 4.6 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................... 221

V QUESTIONAMENTOS SOBRE O FAZER-SE DA JUSTIA NO TRT 7 REGIO ....................................................................................................................... 2255.1 CONTRA DESCUMPRIMENTO DE ACORDO ......................................................................... 228 5.2 CONTRA ESCOLHA DE JUZES CLASSISTAS........................................................................ 234 5.3 CONTRA MOROSIDADE DO JULGAMENTO ......................................................................... 239 5.4 CONFLITOS DE JURISDIO .................................................................................................... 240 5.5 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................... 241

CONSIDERAES GERAIS ......................................................................... 243 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA................................................................... 247 FONTES PESQUISADAS ............................................................................... 259ENTREVISTA REALIZADAS ............................................................................................................. 259 PESQUISA NOS PROCESSOS DA JCJF E TRT 7 REGIO ......................................................... 262

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INTRODUOAdotando como referncia cronolgica o perodo democrtico de 1946 a 1964, vivido entre as ditaduras de Getlio Vargas e dos militares, foi meu propsito desvendar o mundo do trabalho e dos trabalhadores urbanos na cidade de Fortaleza. Por meio da anlise dos dissdios coletivos e individuais impetrados na Justia do Trabalho, busquei perceber os conflitos, intolerncias e negociaes entre patres, trabalhadores e juzes na Junta de Conciliao e Julgamento da capital cearense a respeito da aplicao (ou no) das leis trabalhistas, assim como os significados da Justia do Trabalho para a sociedade local. O Tribunal Regional do Trabalho denominado stima regio, e respondeu por trs Juntas de Conciliao e Julgamento, localizadas em trs capitais nordestinas, Fortaleza, Estado do Cear, So Luis, Estado do Maranho, e Teresina, Estado do Piau. Inspiro-me aqui em Thompson, que critica a abordagem da justia entendida como mero instrumento repressivo da classe dominante. Ao analisar a lei e a justia no contexto da Inglaterra no sculo XVIII, afirmou:As instituies jurdicas e a lei jogam um papel essencial. A classe dominante encontrava uma legitimao, exercendo um poder constitucional e dominado por intermdio de um processo verdadeiramente como ingleses nascidos livres, tendo um direito igual perante lei (o que no a mesma coisa que o estatuto do cidado). A dialtica represso-protesto-concesso move-se no interior dessa retrica e dessas formas. A lei no um simples instrumento de dominao, mas tambm uma ideologia, a qual legitima a dominao da gentry. A hegemonia da gentry da aristocracia no sculo XVIII no se exprime, primordialmente, nem pela fora militar, nem pelas mistificaes de um clero ou da imprensa, mas no ritual das cortes de justia. 1

Nos ritos da Justia, fomentam-se certas ideias entre os agentes participantes desse espao institucional e poltico. Se, inicialmente, a Justia do Trabalho brasileira organizouse em torno de rituais simples - em que na mesma mesa de discusses se sentavam em condio de igualdade trabalhador, patro e juzes - ao longo do tempo, passou a adotar os protocolos da Justia comum, o que inclui a presena de advogados que dominam a linguagem e os procedimentos jurdicos.

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THOMPSON, E.P. Modos de dominao e revolues na Inglaterra [1976]. SILVA, S., NEGRO, A. L.(org.). As peculiaridades dos ingleses e outros ensaios. Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p. 93-4.

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Nos depoimentos presentes nesta tese, os primeiros funcionrios da 1 Junta de Conciliao e Julgamento de Fortaleza enunciam uma noo de igualdade entre empregador, empregado e juiz que fugia regra da Justia comum. Para o trabalhador que recorria Justia, possvel que a ausncia de smbolos de prestgio e distino o deixasse mais vontade para expor as situaes vivenciadas no cotidiano de trabalho, bem como sua argumentao ao requerer os direitos almejados. Nos fragmentos das trajetrias dos trabalhadores registrados nos processos movidos por aqueles que recorreram Junta de Conciliao e Julgamento na cidade de Fortaleza, notei que, ao buscarem a Justia do Trabalho, procuravam o que acreditavam ser a justia e a legalidade, fazendo uso da lei para ter seus direitos reconhecidos e respeitados, fosse para sanar os conflitos nas relaes de trabalho, na convivncia estabelecida com as demais pessoas fora do mbito de trabalho ou com as testemunhas e os advogados. Nos processos judiciais, o que estava em questo era muitas vezes a prpria dignidade do reclamante, seja pessoal ou profissional, pois muitas vezes eram chamados pelo empregador de ladro, preguiosa, ou acusados de estarem inventando estar doente. O ganho de causa descaracterizava as artimanhas patronais, reafirmando a vitria da Justia e do Direito do Trabalho. A condio de vida miservel e de explorao no local de trabalho era uma das motivaes iniciais que os faziam procurar a JCJF. A solidariedade da classe foi se formando medida que os trabalhadores se mobilizam em passeatas, assembleias, comcios e outras manifestaes nas ruas de Fortaleza, gerando experincias comuns que fortaleciam a luta cotidiana por melhorias das condies de vida e de trabalho. Na obra Formao da classe Operria Inglesa, Thompson ressalta a necessidade de recuperarmos as trocas de experincias entre os trabalhadores, para resgatarmos e entendermos a formao de classe, embora as experincias sejam muitas vezes quase invisveis.

A experincia de classe determinada, em grande medida, pelas relaes de produo em que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente. A conscincia de classe a forma como essas experincias so tratadas em termos culturais: encarnadas em tradies, sistemas de valores, idias e formas institucionais. Se a experincia

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aparece como determinada, o mesmo no ocorre com a conscincia de classe.2

inegvel o valor desta obra cuja estrutura narrativa mostra o processo histrico pelo qual os trabalhadores, apesar de explorados e oprimidos pela economia e poltica que destroem suas vidas e valores, conseguem resistir e construir uma nova cultura, de forma coletiva. Acredito que as experincias dos trabalhadores urbanos de Fortaleza, recuperadas atravs de pesquisa histrica, apresentam elementos significativos que permitem visualizar o seu processo de conscientizao concretizada em sua luta pela conquista de seus direitos trabalhistas frente explorao no trabalho. Sendo assim, o dilogo com as fontes e as evidncias fundamental porque a partir deles possvel desenvolver mecanismos de confirmao ou negao. A caracterizao histrica deve levar em considerao dois elementos levantados por Thompson: as necessrias relaes sociais e as mudanas ao longo do tempo, pois os indivduos so sujeitos imersos em relaes sociais, capazes de ao e reao, sejam militantes ou no, pois, inseridos no mundo do trabalho, no podem ser considerados isoladamente. Como j expus, a fonte principal da minha pesquisa foram os processos trabalhistas impetrados na Justia do Trabalho da cidade de Fortaleza durante os anos de 1946 e 1964. Busquei relacion-los a outras fontes capazes de contribuir para a compreenso do emaranhado mundo do trabalho entre as quais, a imprensa local, a exemplo do jornal O Povo e a histria oral. Relevante instrumento para a discusso da temtica, os depoimentos orais colhidos a partir da memria dos sujeitos histricos podem evidenciar os (re)significados das teias de relaes estabelecidas entre justia, patro e empregado. Da mesma forma, a discusso historiogrfica sobre o tema, contextualiza a histria da Justia do Trabalho, sua implantao e funcionamento e suas relaes com o mercado de trabalho, revelando como os trabalhadores recorrem Justia para assegurar seus direitos. Muitos recorriam diretamente Justia do Trabalho, sem a intermediao do sindicato ou do advogado e at mesmo sem possuir a carteira de trabalho, que alguns autores consideram condio essencial para acessar a Justia. Na obra clssica de Thompson sobre o Direito, Senhores e Caadores3, o historiador apresenta algumas reflexes que ajudam a esclarecer o ponto de partida analtico aqui2

THOMPSON, E.P. A Formao da Classe Operria Inglesa. 3 vols, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, vol. I. p. 10.

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adotado. Critica a postura dos marxistas estruturalistas que vem o Direito como uma parcela da superestrutura, que se adapta por si s necessidades de uma infra-estrutura de foras produtivas e relaes de produo sendo instrumento da classe

dominante.Thompson argumenta em primeiro lugar que no se pode separar a lei do contexto do sculo XVIII e coloc-la numa superestrutura. Considerada uma instituio, a lei assimilada como pertencente classe dominante. Dinmica, a lei se relaciona com as normas sociais. Dotada de regras e procedimentos prprios, reivindicada tanto pelos dominantes (senhores) como pelos dominados (caadores). Segundo, a lei era endossada por normas transmitidas pela comunidade em um espao de conflito, logo, no havia domnio da lei, pois esta tende imparcialidade.4 Ao contrrio, contudo, a lei podia ser vista como mediadora das relaes de classe e expressa por meio das formas cujas caractersticas lhes so prprias.5 H, portanto, dois sentidos: de um lado, as leis funcionavam como mediadoras das relaes de classe protegendo a classe dominante, que as tornou instrumento de imposio de novas definies de propriedade e aumento das terras comunais. De outro lado, as regras sociais dotadas de formas legais limitavam as aes dos setores dominantes, inclusive ocorrendo situaes em que o governo sofria derrotas nos tribunais. Thompson chama ateno tambm para a diferena entre o poder arbitrrio e o domnio da lei ao estabelecer a noo de regulao e reconciliao dos conflitos, bem como regras e procedimentos que podem defender o cidado das arbitrariedades do poder, logo, um bem humano incondicional. Senhores e Caadores revela a importncia e a necessidade de se estudar o Direito como produto histrico, considerado a partir da realidade e do ambiente poltico, econmico e cultural no qual est inserido, pois o direito importa, e por isso que nos incomodamos com toda essa histria.6 As palavras de Thompson conduzem ao caminho do dilogo entre a lei, a justia e o Direito, encarando-os como expresso histrica em um contexto mais amplo da sociedade do qual emergem, ou seja, de acordo com a experincia contempornea dos agentes sociais.

3 4

THOMPSON, E.P. Senhores e Caadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 349. Idem, p.352. 5 Idem, p.353. 6 Idem, p.359.

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A Justia um campo de luta onde dominantes e dominados travam embates, ora perdendo, ora ganhando nos pleitos almejados. Como instituio jurdica, coloca-se como mediadora, intervindo nos conflitos e exercendo poderes sobre os agentes sociais, ou seja, carregada de interesses e intenes que, em certos momentos, so vitoriosos, mas, em outros, exigem recuos em detrimento de interesses de outras foras sociais. Minha pesquisa mais uma contribuio para o estudo da Justia do Trabalho no campo da histria. Organizei a tese em cinco captulos. No primeiro, procurei mostrar a organizao sindical, o movimento operrio e a Justia do trabalho vistos a partir da anlise dos artigos, reportagens e da Coluna Sindical assinada por Misael Queiroz no jornal O Povo, nos anos iniciais da dcada de 1960. A partir da leitura de um jornal de grande circulao na capital cearense, foi possvel recuperar o contexto de agitao e greves dos trabalhadores de vrias categorias profissionais, como os txteis, bancrios, motoristas de transportes coletivos e de taxistas, ferrovirios, trabalhadores do Porto do Mucuripe e das companhias distribuidoras de petrleo. A solidariedade e a organizao dos trabalhadores em sindicatos e destes, no Pacto de Unidade Sindical, conseguiram paralisar a cidade de Fortaleza, nas palavras do advogado trabalhista Tarcsio Leito, atravs da TV buchicho, que rapidamente ditava as palavras de ordem do movimento que pretendia promover greves, ou eleger representantes para a Cmara Municipal ou para o Legislativo, ou ainda para prefeito da capital, embora a tentativa no tenha logrado xito. Algumas categorias, entretanto, recorriam diretamente ao Tribunal Regional do Trabalho, como os comercirios e grficos, que foram bem sucedidos. A pesquisa hemerogrfica foi realizada no setor de microfilmagem da Biblioteca Pblica Estadual Meneses Pimentel, em Fortaleza. No segundo captulo, procurei traar um perfil da Justia do Trabalho em Fortaleza, a partir dos depoimentos e memrias dos atores que a compuseram e dela usufruram, como os funcionrios da 1 JCJF, Olga Nunes da Silva e Raimundo Nonato Ximenes, e do juiz Osmundo Pontes, todos pertencentes ao acervo do Memorial do TRT 7 Regio. Especialmente para esta tese, foram colhidos os depoimentos do advogado trabalhista Tarcsio Leito hoje com 76 anos de idade, do sapateiro Jos Maria Tabosa, que ainda hoje milita na Associao do Bairro Pirambu, onde reside; dos teceles Francisco Nunes de Moura, Luis Gonzaga dos Santos, Francisco Baltazar Filho e Miguel Fernandes de Lima,29

que exerceram liderana sindical e participaram de greves, assembleias e outras manifestaes da categoria. As entrevistas foram realizadas em lugares e datas diferentes ao longo da pesquisa. As memrias do lder sindical e bancrio Jos de Moura Beleza, cuja entrevista encontra-se no acervo do Ncleo de Documentao da Universidade Federal do Cear, tambm esto presentes na tese. As entrevistas foram entrecruzadas com os dados estatsticos da Justia do Trabalho, emitidas pelo Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), e com a discusso historiogrfica sobre o tema. Dediquei o terceiro captulo anlise dos dissdios coletivos de diferentes reas da economia, indstria, servios e comrcio arquivados no TRT 7 Regio, no perodo de 1946 a 1964, que se constituram como instrumentos de negociao entre sindicatos representativos de patres e trabalhadores, a partir das motivaes e caractersticas peculiares que levaram cada uma das partes a recorrerem Justia do Trabalho: as greves como instrumento de presso para o dissdio coletivo, as estratgias de negociao dos trabalhadores e de defesa do patro, os conflitos na interpretao da lei. Percebi como a arena jurdica era um campo de luta tanto de trabalhadores para ter seus direitos reconhecidos, quanto de patres que tentavam dela se esquivar ou protelar o cumprimento de sentenas. Os processos que fundamentaram esta tese pertencem ao acervo do Memorial do TRT 7 Regio de Fortaleza e esto disponveis para consultas. Os dissdios individuais so o tema central do quarto captulo, no qual analiso a utilizao deste recurso jurdico pelos trabalhadores dos ramos da indstria de Fortaleza, no setor txtil, construo civil, usina de leo, calados, dentre outros, todos originados na 1 Junta de Conciliao e Julgamento de Fortaleza, no perodo de 1946 a 1964. As principais motivaes que levaram os trabalhadores a recorreram Justia do Trabalho foram por dispensa injusta, renncia de estabilidade, suspenso, anotao na carteira profissional e as estratgias do patro para burlar a lei. Os processos esto microfilmados e guardados no Arquivo do TRT 7 Regio, Fortaleza. No quinto e ltimo captulo, analiso os processos que questionaram as decises do Tribunal Regional do Trabalho no perodo de 1942 a 1964, quando a 7 Regio ainda respondia por trs capitais: Fortaleza (CE), So Lus (MA) e Teresina (PI). Diferentes situaes foram verificadas na anlise dos processos impetrados contra o descumprimento

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de acordo, contra a escolha de juzes classistas, contra a morosidade do julgamento, alm de conflitos de jurisdio. Ao final da trajetria de pesquisa, foi possvel identificar os diferentes usos da Justia do Trabalho tanto por parte dos trabalhadores como por parte dos patres e observar como as demandas estavam relacionadas ao contexto social e poltico local, regional ou nacional, ora incitando a busca por justia na defesa de seus direitos, ora reivindicando o cumprimento da lei por parte do patro. Contudo, alm da justia, os trabalhadores tambm utilizaram a imprensa como ferramenta de luta quando davam publicidade s situaes de explorao, quando noticiavam a deflagrao de greves, realizao de assembleias, passeatas, causando um frenesi que ajudava a fortificar o movimento operrio e sindical. Nesse contexto pressionavam a prpria Justia do Trabalho, seja questionando a morosidade no julgamento dos processos, ou criticando a existncia de uma nica junta incapaz de atender crescente demanda, ou at mesmo questionando a escolha de um juiz vogal representante da categoria que votava contra os trabalhadores. Da leitura do material de imprensa produzido na poca sobre a qual me debrucei nesta pesquisa, afloraram eficazmente diversas situaes que, na inter-relao com fontes orais e processuais, permitiram conhecer e analisar a Justia do Trabalho no Cear.

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CAPTULO I

I ORGANIZAO SINDICAL, MOVIMENTO OPERRIO E JUSTIA DO TRABALHONa Primeira Repblica o movimento operrio, como esclarece Claudio Batalha, mostrou-se dinmico, com variadas correntes ideolgicas que utilizavam diferentes estratgias sindicais, realizavam greves mobilizando vrias categorias profissionais em diferentes capitais brasileiras.7 Em Fortaleza, por exemplo, a greve dos catraieiros no Porto do Mucuripe elucidativa da mobilidade dos trabalhadores, responsveis pela movimentao da economia da capital cearense em um perodo em que o recurso greve no era legalizado, sendo reprimidas com a fora policial, em um contexto em que as leis trabalhistas no alcanavam os porturios.8 O rosrio de leis que regulamentam o trabalho no Brasil remonta aos finais da Primeira Repblica, como mostra ngela de Castro Gomes. Em 1919, a lei de acidentes de trabalho, por exemplo, embora com conquistas tmidas, abriu caminho para a luta dos trabalhadores por uma nova tica no trabalho e por direitos sociais que regulamentassem o mercado de trabalho. Na dcada seguinte, surgiram novas leis, como a lei de frias, de 1925, e o Cdigo de Menores, de 1926, dentre outras, em que a questo social j no era apenas caso de polcia, mas comeava a ser tratada como questo poltica.9 Na dcada de 1920 os trabalhadores recorriam a diferentes mecanismos para garantir seus direitos previstos na lei. Criado em 1923, o Conselho Nacional do Trabalho (CNT) recebia as reclamaes e lhes dava encaminhamento. Houve casos, segundo pesquisa de Samuel Fernando de Souza, em que a regulamentao das condies de trabalho contemplava pequena parcela de trabalhadores, como os ferrovirios, martimos e funcionrios da Light, cujas aes junto ao CNT ajudaram a configurar a interveno do

7 8

BATALHA, Claudio. O Movimento operrio na Primeira Repblica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2000. MORAIS, Ngila Maia de. Todo cais uma saudade de pedra: represso e morte dos trabalhadores catraieiros (1903-1904). Fortaleza, 2009. 129 p. Dissertao de Mestrado em Histria, Universidade Estadual do Cear. 9 GOMES, ngela Maria de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002, p.20.

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Estado nas relaes de trabalho.10 Contudo, os trabalhadores perceberam na legislao trabalhista, e na instncia jurdica especfica para as relaes de trabalho, o surgimento de uma arena de luta.11 A regulamentao trabalhista ganhou nova dimenso aps 1930, com a criao do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio (MTIC) e um aparato de leis, decretos, departamentos, inspetorias, delegacias, dentre outros. Para assegurar a aplicabilidade das leis, foram criadas, em 1932, as Comisses Mistas de Conciliao (CMC) e as Juntas de Conciliao e Julgamento (JCJ). Alm disso, a Constituio de 1934 criou a Justia do Trabalho, que funcionaria com a presena dos representantes classistas e do poder normativo. Porm, apenas com a Constituio de 1937 passou a vigorar como rgo do Poder Executivo. A organizao da legislao trabalhista se deu a partir da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, da constituio da Justia do Trabalho, da incorporao ao Poder Judicirio, em 1946. Ao promulgar essas leis regulamentadoras do mercado e das relaes de trabalho, as instituies governamentais almejavam tornar-se referncia exclusiva de controle e responsabilidade pela organizao da sociedade.12 A fiscalizao no cumprimento das leis no era tarefa fcil. De acordo com ngela de Castro Gomes, no incio da instaurao das leis trabalhistas, nos anos 1930, os fiscais enfrentavam a resistncia dos patres, pois sua funo dotava-os de poderes para mult-los, caso no estivessem cumprindo as leis, e ainda vistoriavam as condies de trabalho na fbrica. Entretanto, a atividade dos fiscais contava com a aceitao dos trabalhadores que nela viam a possibilidade de denunciar as injustias no trabalho e terem seus direitos reconhecidos pela instncia governamental.13 Samuel Souza mostra que o fiscal poderia tambm enfrentar resistncia por parte do Inspetor do Trabalho, citando exemplos de como ambos entravam em conflito.14

10

SOUZA, Samuel Fernando de. A questo social , principalmente e antes de tudo, uma questo jurdica: o CNT e a judicializao das relaes de trabalho no Brasil (1923-1932). Cadernos AEL: Trabalhadores, leis e direitos. Vol.14, n26, p.219-251, 2009. 11 Idem, p. 250. Cf: SOUZA, Samuel Fernando de. Coagidos ou subordinados: trabalhadores, sindicatos, Estado e leis do trabalho nos anos 1930. Campinas, 2007. 228 p. Tese de Doutorado em Histria Social do Trabalho UNICAMP. 12 VARUSSA, Rinaldo J. Trabalho e Legislao. So Paulo, 2002. 210p. Tese de doutorado em Histria PUC-SP. 13 GOMES, ngela de Castro. A inveno do trabalhismo. Rio de Janeiro: Vrtice/ IUPERJ, 1988, p. 178. 14 SOUZA, Samuel Fernando de. Op Cit.

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A estrutura sindical corporativa j existia no incio dos anos de 1930. Celina DArajo expressa que os trabalhadores e os patres foram incorporados como membros das novas entidades de acordo com os ramos da produo em que atuavam. O objetivo do governo era promover o intercmbio pacfico dos interesses do trabalho e do capital atravs de uma rede organizacional controlada pelo prprio Estado, cuja lgica de conciliao se efetivou na criao da Justia do Trabalho15 embora esse enquadramento tenha ocorrido com resistncia de ambas as partes, que no acataram pacificamente a iniciativa. Os intrpretes da legislao trabalhista tm uma imagem de fraqueza e primitivismo do trabalhador, carentes de tutela do Estado, o qual assumia dois papis complementares: o pedaggico e o tutelar. No primeiro, o governo deveria mostrar ao operrio inculto os meios para alcanar a justia. Ao mesmo tempo em que reconhecia a legitimidade das reivindicaes, propunha um meio de consegui-la: a lei. Deveriam, portanto, aprender a conciliar. No segundo, a Justia do Trabalho, apoiando-se na legislao de assistncia, realizaria para o trabalhador a sua ascenso poltica, fazendo da lei o caminho para a verdadeira igualdade.16 Essa legislao trabalhista foi sistematizada na CLT, com o decreto-lei n 5.452, de 1 de maio de 1943, que englobou a legislao sobre a previdncia social, a Justia do Trabalho, alm de regulamentar a organizao sindical, o enquadramento e a contribuio sindicais.17 O movimento sindical foi marcado pelo aumento do nmero de greves, criao de novos sindicatos, aumento de filiados, bem como visibilidade dos sindicatos pela opinio pblica, participao das entidades sindicais na formulao de pautas polticas para o pas, constituio de organismos intersindicais. Nesse perodo, como assinala Marcelo Badar, houve uma renovao no quadro das lideranas sindicais, que se agruparam em, ao menos, quatro tendncias: catlicos, organizados nos Crculos Operrios Catlicos (COC); renovadores, de esquerda, mas crticos do Partido Comunista Brasileiro (PCB);

15 16

DARAJO, Maria Celina Soares. O Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. Ibidem. 17 VIANA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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nacionalistas, formado pelos comunistas e trabalhistas de esquerda; democrticos, que concordavam que a estrutura sindical fosse controlada pelos rgos de cpula.18 No Estado do Cear possvel notar peculiaridades nas relaes entre sindicatos, trabalhadores e justia, embora o ambiente tambm se apresentasse conturbado e de efervescncia social e poltica. Contrapondo-se ao que apregoa a historiografia tradicional sobre os movimentos operrio e sindical na cidade de Fortaleza, segundo a qual eram amorfos, com operariado aptico e subserviente, as novas pesquisas sobre o mundo do trabalho tm revelado uma agitao e militncia efervescente, principalmente no final dos anos 1950 e incio dos anos 1960, embora nos anos 1930 os movimento operrio e sindical j apresentassem manifestaes marcadas por conflitos e tenses nas relaes de trabalho. Foi o que constatei em minha dissertao de mestrado, na qual analisei as atas do Sindicato dos Trabalhadores na Indstria de Fiao e Tecelagem de Fortaleza e o semanrio O Legionrio. Percebi que os sindicatos de fbricas ressignificaram a funo para a qual foram criados para evitar conflitos com o patro e defender seus interesses, mas demonstraram seu descontentamento a ponto de esvaziar o sindicato de fbrica e passaram a se organizar em sindicatos por categoria, devidamente legalizados pelo MTIC, cuja filiao era condio para o trabalhador apresentar-se diante do delegado regional do trabalho manifestando suas reivindicaes, na tentativa de serem estas encaminhadas e conquistadas. Ante as negativas dos patres, os operrios comearam a formar sua conscincia e a procurar outras maneiras de organizao sindical que lhes dessem a possibilidade de ter seus direitos reconhecidos pelo patro.19 Os Crculos Operrios Catlicos (COC) foram outra forma de organizao dos trabalhadores, de orientao crist, balizados pela Igreja Catlica, que congregou operrios de vrias categorias profissionais. Na dcada de 1950, investiu maciamente na sindicalizao dos trabalhadores urbanos e rurais e, realizando assembleias e congressos com a participao de trabalhadores de todo o Estado do Cear, tornou-se notcia nos jornais de grande circulao, como esclarece Jovelina Santos, e comps sua prpria federao. Contudo, sua maior atuao era o combate aos inimigos vermelhos, ou seja,

18

MATTOS, Marcelo Badar. O sindicalismo brasileiro aps 1930. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 3940. 19 SILVA, Maria Sngela de Sousa Santos. A organizao dos operrios txteis em Fortaleza nos anos 1930. Recife, 2000. 146 p. Dissertao de Mestrado em Histria pela Universidade Federal do Pernambuco.

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aos comunistas,20 que parecem ter influenciado de forma sistemtica e organizada os sindicatos dos trabalhadores urbanos. Os integralistas tambm atuavam na cidade de Fortaleza atrelados aos legionrios, os quais tinham insero no movimento operrio. Contudo, medida que os integralistas aumentavam seu controle sobre o movimento operrio, isolava a influncia da Igreja Catlica e da prpria Legio Cearense do Trabalho (LCT), como esclarecem os estudos de Montenegro e Parente. A divulgao das suas ideias era feita pelo jornal A Razo, cujos redatores, Lauro Maciel Severiano e Ubirajara ndio do Cear, 21 posteriormente passaram a atuar no mbito da Justia do Trabalho: o primeiro como advogado patronal e o segundo como procurador regional. A Ao Integralista Brasileira (AIB) se estendeu aos municpios do interior do estado do Cear, adequou-se poltica local, tornou-se instrumento poltico de grupos conservadores ligados ao coronelismo e, como afirma Rameres Rgis, teve seu prprio ethos integralista [que] se materializou na atividade poltica da maioria dos chefes municipais.22 A pesquisa de Brbara Cacau dos Santos sobre o Pacto da Unidade Sindical (PUS) em Fortaleza ilustrativo, pois aborda a organizao, funcionamento e atuao dos trabalhadores nas ruas lutando por justia social e participao poltica. 23

20

SANTOS, Jovelina Silva. Crculos Operrios no Cear: instruindo, educando, orientando, moralizando (1915-1963). Fortaleza: UFC, 2007. SANTOS, Jovelina. Crculos Operrios no Cear: uma ausncia historiogrfica. Trajetos, Revista de Histria UFC, Fortaleza, CE. Dossi: Trabalho, Trabalhadores. Vol. 2 n4, p.35-46, 2003. Cf: LIMA, Ana Cristina Pereira. Obreiros pacficos: o Crculo de Operrios e trabalhadores catlicos So Jos. Fortaleza (1915-1931). Fortaleza, 2009. 198 p. Dissertao de Mestrado em Histria Social pela Universidade Federal do Cear. AMARAL, Liana Viana do. O Legionrio: dimenses culturais na formao da classe operria. Fortaleza, 1995, 146 p. Dissertao de Mestrado em Sociologia, UFC. CANOCO, Julia Maria de Miranda. Recatolizao ou espao pblico? Discurso e prtica catlicos no Cear do incio dos anos 30. Fortaleza, 1985. Dissertao de Mestrado em Sociologia, UFC. CORDEIRO JR. Raimundo Barroso. A Legio Cearense do Trabalho. In: SOUZA, Simone de. (coord.). Histria do Cear. Fortaleza: Fundao Demcrito Rocha, 1994. PILETTI, Nelson e PRAXEDES, Walter. Dom Helder Cmara: entre o poder e a profecia. So Paulo: tica, 1997. 21 MONTENEGRO, Joo Alfredo de Sousa. O integralismo no Cear: variaes ideolgicas. Fortaleza: Ed. Universidade Federal do Cear, 1986. PARENTE, F. Josnio. Anau: os camisas verdes no poder. Fortaleza: Ed. Universidade Federal do Cear, 1986. 22 REGIS, Joo Rameres. Integralismo e Coronelismo: interfaces da dinmica poltica no interior do Cear (1932-1937). Rio de Janeiro, 2008, 338 p. Tese de Doutorado em Histria Social, Universidade federal do Rio de Janeiro. REGIS, Joo Rameres. Galinhas verdes: memrias e histrias da Ao Integralista Brasileira: Limoeiro, Cear (1934-1937). Fortaleza, 2002. 174 p. Dissertao de Mestrado em Histria Social, Universidade Federal do Cear. 23 SANTOS, Brbara Cacau. Trabalhadores Cearenses, Un-vos: o Pacto da Unidade Sindical em Fortaleza (1957-1960). Fortaleza, 2009. 183 p. Dissertao de Mestrado em Histria Social da Universidade Federal do Cear.

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Uma categoria que promoveu ampla movimentao, causando agitao nas ruas de Fortaleza, foi a dos motoristas de transportes coletivos, e dos proprietrios de empresas de nibus. Ambas articularam movimentos grevistas, cada uma, a seu lado, pleiteando aumento salarial e melhores condies de trabalho, no caso dos trabalhadores em transporte, e aumento no preo das passagens, no caso dos empresrios. Por seu turno, a populao tambm se manifestava e se agitava nos conturbados anos 1950 e 1960, reivindicando aumento nas linhas de nibus, de diversos pontos perifricos at o centro de Fortaleza, onde se concentrava uma massa de operrios de vrios ramos da economia cearense, alm da luta pela meia passagem para estudantes, melhores veculos para a segurana dos passageiros, ruas pavimentadas, locais de fcil acesso para embarque e desembarque, dentre outras questes elencadas na pesquisa de Patrcia Menezes, que retrata o descontrole das frotas e o esforo do governo sobre o controle dos preos das passagens, das linhas de nibus e das condies de circulao da frota.24 O nmero de sindicatos aumentou consideravelmente, na categoria dos trabalhadores, embora os patres tambm tenham criado suas organizaes no mesmo perodo, o que no ocorreu com os profissionais liberais, conforme a tabela I:

TABELA I: Organizao Sindical do Estado do Cear - Nmero de Federaes e Sindicatos (1950-1964)Ano Total Total 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 70 72 76 77 77 78 83 86 88 100 104 109 112 117 122 2 3 3 3 3 3 3 3 3 4 4 4 4 4 4 Trabalhador 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Federao Empregador 2 2 2 2 2 2 2 2 2 3 3 3 3 3 3 Profissional Liberal Total 68 69 73 74 74 75 80 83 85 96 100 105 108 113 118 Sindicatos Trabalhador Empregador 29 30 33 33 33 33 37 38 39 42 44 48 52 56 60 33 34 35 36 36 37 38 40 41 49 51 52 51 51 51 Profissional Liberal 6 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 6 7

Fonte: Servio de Estatstica da Previdncia e Trabalho. Tabela extrada do Anurio Estatstico do Brasil. RJ, IBGE, 1950 a 1964.

24

MENEZES, Patrcia. Fortaleza de nibus: quebra-quebra, lock out e liberao na construo do servio de transporte coletivo de passageiros entre 1945 e 1960. Fortaleza, 2009.244 p. Dissertao de Mestrado em Histria Social - Universidade Federal do Cear.

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O aumento do nmero de sindicatos foi noticiado pela imprensa, quando o jornal O Povo publicou na Coluna Sindical25 dados estatsticos sobre esse crescimento, confirmando as informaes colhidas pelas fontes oficiais. Durante o perodo democrtico, de 1946 a 1964, nas palavras de Luigi Negro, houve progressiva insinuao dos sindicatos nacionalistas e reformistas defronte a governos e patres, apostando na greve como um instrumento de encorajamento. Por sua vez, os sindicatos exerciam influncia nos locais de trabalho, o que demonstra a autonomia dos trabalhadores no enfrentamento das questes referentes aos patres e ao governo.26 Com efeito, o advogado trabalhista Tarcsio Leito relatava entusiasmado: Tinha uma grande classe operria. A maior fbrica do Nordeste era a Fbrica Santa Ceclia, tinha 12.500 trabalhadores, a Fbrica So Jos tinha quatro mil, trs mil, por a. A Fbrica Santa Maria idem. A Fbrica Progresso dos Pompeu tinha menos, uns 2.500. 27 Tal contingente de operrios torna compreensvel o crescente aumento do nmero de sindicatos dos trabalhadores, embora existissem aqueles sem filiao sindical. o caso dos sapateiros, por exemplo. Eram comuns as oficinas artesanais de fabricao de calados, chamadas popularmente de casquetas de cco, localizadas nos quintais ou salas das casas de bairros perifricos, como o Pirambu, de acordo com o relato de Jos Maria Tabosa: Aqui (Fortaleza) tinha na base de 200 a 300 oficinas, na capital, dessas casquetas de coco. Havia umas maiores, tinha a Delta, tinha a Dalrus, que j pegava 50, 100 operrios, tinha o Expedito, tinha umas 50 era considerada firma grande, que tinha 20, 30, 50 operrios.28 Parte desses operrios no era sindicalizada, nem tinha carteira assinada. Por muitos anos, as oficinas funcionaram margem da fiscalizao, e quando eram localizadas e notificadas, logo mudavam de endereo, para no serem localizadas novamente e incorrerem no risco de nova notificao.

25 26

QUEIROZ, Misael. Coluna Sindical. O Povo. Fortaleza, 17 e 18 ago. 1963, p. 5. NEGRO, Antonio Luigi. Ignorantes, sujos e grosseiros: uma reinveno da Histria do Trabalhismo. Trajetos, Revista de Histria UFC, Fortaleza. Dossi: Trabalho, Trabalhadores. Vol.2, n4, p. 9-33, 2003. p. 22. 27 Entrevista realizada dia 1 de agosto de 2011, no seu escritrio, situado Rua Major Facundo, 1229, Centro, Fortaleza, Cear. 28 Idem.

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A fora de mobilizao dos sindicatos foi relatada por Jos de Moura Beleza, em entrevista realizada pelo Ncleo de Documentao (NUDOC) da Universidade Federal do Cear (UFC). Assim esclarece sua anlise:Desses sindicatos todos eram chamados de pessoal de esquerda. No se pode dizer que eram comunistas. (...) A dizia: - Esse sindicato era comunista. Tinham comunistas, claro. Eu sabia quem eram os comunistas. Tinha l os catlicos. Os bispos mandavam gente deles se candidatar. O Quinder, por exemplo, o Patrcio era uma pessoa altamente ligada a [sic] Igreja Catlica. (...) Tinha gente que no tinha nenhuma ideologia que trabalhava em prol do sindicato. Mas, todo mundo era taxado como comunista. Qualquer sindicato atuante, a diretoria era comunista. Se eram ou no, eu sabia que vrios eram. Se todos eram? Eu acredito que no.29

Os sindicatos eram compostos por pessoas pertencentes ao Partido Comunista (PCB), ala progressista da Igreja Catlica, e outros independentes, como o lder Beleza. Todos tinham militncia sindical por ideal de melhoria para a classe. Se a criao de novos sindicatos, tanto de trabalhadores como de empregadores, representava um termmetro da mobilizao dessas classes, o nmero de filiados tambm oscilava, tendo um maior nmero de sindicalizados nos anos finais de 1950 e incio dos anos de 1960, como veremos no grfico I:

29

Jos de Moura Beleza em entrevista realizada pelo NUDOC/UFC, Fortaleza, CE, 18 de janeiro de 1992.

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GRFICO I: Nmero de associados dos sindicatos, Cear (1953-1965)35,000 30,000 N ASSOCIADOS 25,000 20,000 15,000 10,000 5,000 0

ANOEmpregados Empregadores Profissionais Liberais Total

Fonte: Servio de Estatstica da Previdncia e Trabalho. Tabela extrada do Anurio Estatstico do Brasil (1950-1964) RJ. IBGE.

notvel a diminuio de empregados, empregadores e profissionais liberais nos sindicatos a partir da instalao da ditadura militar em 1964, tanto que no h dados referentes quele ano, mas somente do ano seguinte, 1965, que indicam a queda de mais de 50% de filiaes sindicais. A solicitao da carteira profissional era outro recurso usado pelos trabalhadores na luta pelo reconhecimento legal de sua condio de empregado. Alm disso, a apresentao do documento era exigncia para o registro de reclamaes junto Delegacia Regional do Trabalho (DRT). A oscilao da quantidade de carteiras profissionais expedidas entre 1945 e 1964 pode indicar os altos e baixos da organizao dos trabalhadores, ficando visvel que no final dos anos 1950 essa procura cresceu bruscamente, caindo posteriormente, e aumentando em 1964, como mostra abaixo o grfico II:

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GRFICO II: Identificao profissional, nmero de carteiras profissionais expedidas no Estado do Cear (1945-1964).25,000

N CARTEITRAS EXPEDIDAS

20,000

15,000

10,000

5,000

0

ANO

Fonte: Servio de Estatstica da Previdncia e Trabalho. Tabela extrada do Anurio Estatstico do Brasil. RJ, IBGE, 1946 a 1964.

O aumento do nmero de carteiras do trabalho pode significar que os trabalhadores estavam se organizando para pleitear o reconhecimento dos seus direitos trabalhistas, uma vez que tal documento era imprescindvel para a legalidade de sua condio de trabalhador. Contudo, o fato de adquirir a carteira profissional no garantia ao trabalhador o seu registro por parte do patro, que muitas vezes recolhia o documento por meses a fio, sem assinar nem devolver ao titular, impasse que poderia ser levado Justia do Trabalho. Os sindicatos e associaes de trabalhadores costumavam se reunir para discutir questes que os afetavam diretamente, como o aumento do custo de vida, por exemplo. A aglomerao dessas entidades formou o Movimento Sindical Cearense (MSC) que, assim como o PUS, apoiava e se mobilizava em torno de greves e outras reivindicaes de diferentes categorias profissionais. Foi o que ocorreu, por exemplo, durante a greve dos operrios txteis. O apoio do MSC contribuiu para luta pelos direitos dos txteis. Da mesma forma, os pescadores contaram com o empenho desse movimento quando a Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF) os expulsou da praia para construir a Avenida Beira Mar, hoje ponto turstico da capital.42

Com relao situao salarial, os trabalhadores urbanos tiveram, no perodo entre as ditaduras, somente cinco reajustamentos salariais, o que agravava as dificuldades de subsistncia dessa parcela da populao. Na indstria txtil os patres impunham suas prprias regras de trabalho, segundo as quais a maioria dos operrios no recebia salrio mnimo, nem as gratificaes se estendiam a todos. Alm disso, quando pagavam horas extras, o valor no correspondia ao integral, e a carga horria chegava a dez horas dirias, inclusive para menores com at nove anos. O funcionamento geralmente ocorria em dois turnos: o primeiro das 5h s 14h e o segundo das 14h s 22h, com repouso semanal no remunerado. Em 1950, os txteis deflagraram greve reivindicando 100% de aumento salarial. Outra greve ocorreu em 1956 envolvendo mais de cinco mil operrios que marcharam at o Palcio da Luz, sede do governo estadual. Embora resultando em negociao, as clusulas do acordo que ps fim greve no foram cumpridas risca pelos patres, que chegaram a demitir, em decorrncia da participao no movimento grevista, 25 operrios sem lhes pagar indenizao. Outros 54 foram suspensos por 15 dias na Fbrica Santa Ceclia, sob a alegao de insubordinao e indisciplina. J na Fbrica Cear Industrial de Fiao e Tecelagem foram demitidos mais de cem operrios. As demisses tambm aumentavam a cada aumento de salrio mnimo, embora fossem condenadas pelo Tribunal Federal. Apesar da represso, os txteis no se intimidaram e novas greves ocorreriam no decorrer das dcadas de 1950 e 1960. Apesar de recorreram Justia do Trabalho, as estratgias patronais eram evidentes: demisso de operrios e substituio por outros que aceitassem menor remunerao, registro na carteira profissional (CP) de salrio mnimo, embora, na realidade, pagassem menos, alm de transferirem os operrios que j tinham mais de dez anos de servios prestados e, portanto, gozavam de estabilidade no emprego. Na construo civil o cenrio no era muito diferente. Num momento em que o desemprego atingia mais de quatro mil trabalhadores, os patres obrigavam os trabalhadores recm-contratados a assinarem um documento pelo qual renunciavam aos direitos de pagamento de aviso prvio, indenizao, dentre outros, e eram demitidos to logo completassem oito meses de servio. Nesse setor, o pagamento de repouso semanal estava condicionado garantia da assiduidade. Caso o funcionrio deixasse de trabalhar por43

falta de material, o descanso no era pago. Alm disso, a alimentao nos canteiros de obras era de pssima qualidade, chegando a ser oferecido no cardpio do almoo apenas po e banana. No setor comercial, as demisses aumentavam proporcionalmente s elevaes do salrio mnimo, sendo que as mulheres com menos tempo de servio eram o principal alvo dos desligamentos. Enquanto isso, o custo de vida aumentava bruscamente e a inflao acabava com o poder aquisitivo da classe trabalhadora, aumentando o nvel de misria.30 A organizao dos sindicatos em central nica, no caso do PUS, tornou-se forte o suficiente para empreender lutas fora do mbito sindical e alcanar a poltica partidria. Foi o que ocorreu nas eleies de 1962, para prefeito, vereadores, deputados estaduais e federais, governador e senadores. Nesse pleito, os sindicatos formaram junto com partidos a Frente Democrtica, tendo como candidato dos trabalhadores para a Prefeitura de Fortaleza o lder Jos de Moura Beleza. Embora no tenha conseguido eleger o prefeito, a Frente Democrtica conseguiu alcanar outras vitrias. Elegeu seis deputados Assembleia Legislativa, dentre eles o dirigente comunista Anibal Bonavides, alm de deputados federais, como o prprio Adahil Barreto e Moiss Pimentel, dono da rdio Drago do Mar, e mais onze vereadores, do total de vinte e um.31 Essa vitria est na memria do advogado Tarcsio Leito, que, eleito vereador, teve o mandato cassado pela ditadura militar em 1964.

1.1 ANOS DE AGITAO E GREVES: 1961, 1962 e 1963Estamos dispostos a uma luta enrgica para no morrermos de fome. Morrer lutando pelos nossos direitos ainda melhor do que morrer mngua. (Coluna Sindical, O Povo, 22/8/61)

O contexto de mobilizao do movimento sindical e operrio no estado nordestino do Cear apresentado nesta tese foi elaborado a partir de pesquisa hemerogrfica junto ao30

JUC, G. N. M. Verso e reverso do perfil urbano de Fortaleza (1945-1960). So Paulo: Anablume, 2003, p. 62-69. 31 SANTOS, Brbara Cacau. Op.Cit., p. 143.

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jornal O Povo, do qual foram selecionados artigos, reportagens e editoriais que faziam referncia ao tema, com destaque para a Coluna Sindical assinada por Misael Saraiva de Queiroz, representante dos bancrios no Congresso dos Trabalhadores, realizado em 1957, que aborda temas relacionados aos trabalhadores, sindicatos, greves e recursos Justia do Trabalho, tanto nacionais como locais, de forma resumida. Em seus escritos, percebe-se um contentamento em noticiar as lutas cotidianas e conquistas da classe e sua simpatia pelo Pacto Sindical. O uso dos jornais como fonte de pesquisa, ressalta Adelaide Gonalves, possibilita leituras diversas do movimento operrio, pois so carregadas de produo simblica de homens e mulheres no seu tempo, em que possvel perceber mais de um vis de lutas travadas no cotidiano, assim como suas derrotas e resistncias ao mando patronal. 32 Foi com essa perspectiva que folheei e analisei o jornal O Povo que, apesar de no pertencer a lideranas operrias e ser de grande circulao no estado do Cear, permitiu-me uma leitura da mobilizao dos operrios e sua inter-relao com o poder judicirio, governamental e a prpria sociedade. Considerando a viso do movimento sindical em Fortaleza no incio dos anos 1960 exposta pelo jornal O Povo, os sindicatos estavam organizados em correntes diversas, sendo que, em setembro de 1963, o Pacto Sindical, de orientao comunista e de esquerda, congregava 32 entidades sindicais; o Pacto de Unidade e Ao (PUA) congregava ferrovirios, porturios, estivadores, marinheiros e conferentes auto intitulados democrticos; e os Crculos Operrios Catlicos (COC), pertencentes Igreja Catlica, com 110 crculos em todo o estado do Cear, com cerca de cem mil trabalhadores.33 O PUS, na anlise do militante comunista e advogado trabalhista, Tarcsio Leito, representou a unidade da luta dos trabalhadores na cidade de Fortaleza, cujo potencial de organizao e mobilizao fortaleceu o movimento sindical atrelando-o a partidos polticos

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GONALVES, Adelaide. Imprensa dos trabalhadores no Cear: histria e memria. In SOUZA, Simone de (org.). Uma nova histria do Cear. Fortaleza: Ed. Demcrito Rocha, 2000. GONALVES, Adelaide, SILVA, Jorge E. A Bibliografia Libertria: um sculo de anarquismo em Lngua Portuguesa. So Paulo, Ed. Imaginrio, 1999. Coleo Escritos Anarquistas. GONALVES, Adelaide. Demolindo a sociedade burguesa: intelectuais e imprensa libertria no Cear. Trajetos, Revista de Histria UFC, Fortaleza, CE. Dossi: Trabalho, Trabalhadores. Vol.2, n 4, p.77-93, 2003. 33 Dirigentes Sindicais da orla martima denunciam discriminao poltica no cais do porto de Fortaleza. O Povo. Fortaleza, 12 set. 1963, p.7.

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de esquerda, como o PCB, possibilitando, dessa forma, pleitear conquistas fora do mbito sindical, com a eleio para o legislativo municipal e estadual.

1.1.1 Txteis Procurei reconstituir e compreender a histria do movimento dos operrios txteis, do ponto de vista de seu cotidiano no cho da fbrica, considerando as condies de trabalho, insalubridade, precariedade da higiene, luminosidade e ventilao, to comuns no interior das fbricas de tecidos, assim como os salrios recebidos quinzenalmente, incompatveis com a extensa jornada de trabalho. Um olhar diferente deste foi externado por Telma Bessa, sobre a indstria txtil de Sobral, enriquecendo a compreenso sobre contexto fabril.34 Nas fbricas de tecidos, a mo de obra, em sua maioria, contava com a participao feminina principalmente nas funes de fiao, espuladeira e controle de qualidade, observou Vera Pereira em seu estudo sobre os trabalhadores txteis no Rio de Janeiro.35 Todavia, a funo de tecelo era mais valorizada e tambm mais bem remunerada que as demais por requerer grande habilidade corporal em movimentos capazes de gerar a fora motriz do tear com os ps e o desenvolvimento dos fios com as mos, tronco e viso, ressaltou Elizabeth Arago em sua anlise sobre o papel desempenhado pelo tecelo. Outra funo que exigia trabalhadores qualificados era a de urdideira, geralmente realizada por mulheres, que consistia em selecionar o fio por tamanho, atravs de espichamento dos mesmos em ganchos que distam 7 metros um do outro; o trabalho de ir e voltar com o fio chega a perfazer uma mdia de 4 km dirios. como ressaltou Vera Pereira, e o36

A tecelagem era o corao da fbrica,

tecelo ocupava uma posio estratgica no processo

produtivo, por isso era uma das funes de maior valor na fbrica37. Na Fortaleza de meados dos anos 1950, a precariedade das condies de trabalho e salrio mobilizou os trabalhadores txteis a entrarem com dissdio coletivo como forma de

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SALES, Telma Bessa. Trabalhadores da Fbrica de tecidos Sobral muitas histrias e outras memrias. Revista Historiar. vol.4, n4, p.1-15, 2011. 35 PEREIRA, Vera Maria Cndido. O Corao da fbrica: estudo de caso entre operrios txteis. Rio de Janeiro: Campus, 1979, p. 32. 36 ARAGO, Elizabeth Fiza. Relaes de trabalho na indstria de Fortaleza. Fortaleza, 1992. 226 pginas. Dissertao de Mestrado em Sociologia do Desenvolvimento, UFC, p. 72-73. 37 PEREIRA, Vera Maria Candido, op. cit. p. 81-82.

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reivindicao por aumento salarial e melhoria das condies de trabalho. No final da dcada, o Sindicato dos Txteis contabilizava mais de mil processos na Justia do Trabalho, de acordo com as atas do sindicato, analisadas por Brbara Cacau dos Santos. A autora relatou tambm a greve dos txteis realizada em 1956 para a implantao do pagamento do novo salrio mnimo, descumprido pelo patronato, que ainda demitiu os lderes participantes do movimento grevista.38 No incio dos anos 1960, outras greves foram deflagradas atingindo quase todas as fbricas de Fortaleza. Mais uma vez, a Justia do Trabalho foi o campo de luta dos trabalhadores por seus direitos, depois de frustradas tentativas de negociao na DRT e com o governo do Estado. Em 1961, entraram com dissdio plrimo39 mostrando-se insatisfeitos com a forma de pagamento realizada pela empresa Cear Industrial, que comprara a Gasparian, a qual adotava a forma de pagamento semanal, aceita pelos operrios. Contudo, ao ser adquirida pela Cear Industrial, os pagamentos passaram a ser quinzenais e depois, mensais. Ante a negativa da empresa solicitao para o retorno antiga forma de pagamento, os txteis procuraram a Junta de Conciliao e Julgamento de Fortaleza (JCJF), que determinou fossem consignados aos trabalhadores, semanalmente, 90% do salrio, ficando 10% de cada semana a serem pagos no fim do ms.40 Tal determinao no foi cumprida pela empresa, o que levou os operrios a procurarem a imprensa para denunciar o desrespeito dos patres Justia do Trabalho, e para pression-los a cumprir a deciso judicial. Paralelamente a essa situao, o sindicato dos txteis41 iniciou campanha em junho de 1961 pelo aumento salarial de 50%, cuja reunio de negociao na DRT foi intermediada pelo delegado Crisanto Pimentel, com assistncia jurdica de Jeferson Quesado. Os

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SANTOS, Brbara Cacau. Trabalhadores Cearenses, uni-vos: o Pacto de Unidade Sindical em Fortaleza (1957-1964). Fortaleza, 2009. 183 p. Dissertao em Mestrado em Histria Social, Universidade Federal do Cear. 39 Dissdio Plrimo: tipo de processo em que muitos trabalhadores entram individualmente com processo na Junta de Conciliao e Julgamento, reivindicando os mesmos direitos. No Dicionrio Jurdico definido como individual plrimo, e no coletivo, o dissdio em que o sindicato de classe reclama direitos individuais j assegurados em lei para um grupo de empregados seus associados. Jurisprudncia, D.Fed. 1. R. PR. 16047, DJ 20.5.47. GUIMARES, Emlio. Dicionrio Jurdico-Trabalhista: codificao da legislao, doutrina e jurisprudncia aplicveis, correlatos e subsidirios, do direito do trabalho. 1. Ed. Vol. 1 ao 10. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A., 1951. 40 Jornal O Povo, ano XXXIV, Fortaleza, 8 mai. 1961, p. 4. 41 Representados pelo presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indstrias de Fiao e Tecelagem, Raimundo Lopes Gondim, e Raimundo Leite dos Santos, Jos Soares Arajo e Jos Ferreira Lima.

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patres42 pediram tempo para estudar as condies econmicas e financeiras das empresas antes de apresentarem uma contraproposta. Em nova reunio, os empregadores responderam, em ofcio, a negativa do aumento, justificando no terem conhecimento de aumento da categoria na regio sudeste, mas se comprometeram a se informarem sobre a situao, para posterior contraproposta. Como na ltima reunio de negociao, o patronato novamente compareceu reunio de mos abanando, e os txteis, cansados de gastar tempo com conversa fiada, decidiram encampar outras frentes de luta.43 A solidariedade entre os trabalhadores em Fortaleza favorecia o movimento sindical, principalmente em momentos de assembleia geral e grevista. Outros sindicatos e associaes de categorias profissionais usavam discursos para demonstrar apoio formal luta dos txteis e fortificar a campanha salarial. Com a luta unificada atravs o Movimento Sindical Cearense (MSC)44 decidiram os trabalhadores recorrer ao governador do Estado, Parsifal Barroso, para interferncia junto ao patronato, na tentativa de obter o aumento pleiteado. Contudo, no conseguiram sequer ser recebidos pela autoridade maior do Estado, o que causou mal-estar. Porm, no desistiram e marcaram nova audincia realizada em agosto de 1961, quando Parsifal Barroso exps a contraproposta patronal de aumento de 10%, recusada pelos trabalhadores. O jornal O Povo noticiou diariamente a mobilizao dos txteis e a realizao da quinta e ltima reunio de conciliao na DRT, enquanto os operrios deflagraram greve na Fbrica Santa Ceclia, com a adeso de 1.500 operrios, estendida a outras unidades fabris, como a Progresso, Gasparian, Cotonifcio Leite Barbosa45, Baturit46.

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Representados por Mrio Cmara Vieira, presidente do Sindicato da Indstria de Fiao e Tecelagem e vice-presidente da Federao das Indstrias do Estado do Cear. 43 QUEIROZ, Misael, Coluna Sindical. O Povo. Fortaleza, 21 jul. 1961, p.5. 44 O Movimento congrega cerca de 28 sindicatos operrios e dez associaes de classe do Cear. 45 A Cotonifcio Leite Barbosa foi fundada na cidade de Aracati no incio do sculo XX, com a Fbrica Santa Teresa (fornecedora de energia eltrica para a cidade), depois se expandiu para Fortaleza com a criao da Fbrica Santa Ceclia nos anos de 1940, e posteriormente com a Santa Elisa. Produzia sacaria e redes, exportadas para os estados do Nordeste, Rio Grande do Sul e Amazonas. Casas na Vila Operria, segundo o diretor Aldzio Pinheiro, eram oferecidas gratuitamente. No caso da Vila Operria da Fbrica Santa Teresa, em Aracati, eram cobrados aluguis. Havia assistncia mdica e escolas para os filhos dos operrios e adultos. Fonte: Cotonifcio Leite Barbosa. O Povo. Fortaleza, 29 mar. 1962, p.5-6. 46 A Fbrica de Tecidos Baturit, pertencente Cia. Txtil Jos Pinto do Carmo, produzia tecidos grossos e fios para redes, exportados para os estados do Rio Grande do Sul e Amazonas. Suas atividades foram iniciadas em 1928, em Fortaleza, e, em 1963, a fbrica fechou suas portas em decorrncia da crise econmica do Estado. Fonte: Companhia Txtil Jos Pinto do Carmo. O Povo. Fortaleza, 29 mar. 1962, p.3-4.

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Como a negociao na DRT fracassou novamente, pois os operrios no aceitaram a proposta de 10% de aumento salarial, a greve continuou se expandindo em outras fbricas: estamos dispostos a uma luta enrgica para no morrerem [sic] de fome. Morrer lutando pelos nossos direitos ainda melhor do que morrer mngua.47 A figura I mostra os momentos de greve dos trabalhadores txteis. FIGURA I GREVE DOS TRABALHADORES TXTEIS

Fonte: Jornal O Povo, 28/08/1961, p.1.

Diante do agitado movimento grevista, o vice-governador em exerccio, Wilson Gonalves, convidou os operrios txteis para uma reunio no Palcio da Luz, ocasio em que protestaram contra as arbitrariedades policiais greve de carter pacfico. O secretrio de Polcia, entretanto, reafirmou a necessidade da represso, alegando que a greve era ilegal e informou sobre a atuao do servio secreto do Exrcito. Quanto ao vice-governador, comprometeu-se a negociar com os patres melhorias em sua contraproposta. As estratgias de manuteno da greve consistiram em formar grupos de piquetes e adotar medidas de segurana para sustentao da greve. A principal dificuldade era lidar com a violncia policial, pois a viglia era constante nos portes das fbricas, nos piquetes e47

QUEIROZ, Misael, Coluna Sindical. O Povo. Fortaleza, 22 ago. 1961, p.5.

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no sindicato, onde foi desligada a linha telefnica para evitar contato dos grevistas com a imprensa. Quase uma semana aps o incio do movimento grevista, o nmero de operrios que cruzaram os braos aumentou com a adeso de quatrocentos da Siqueira Gurgel48, concentrando-se todos em frente s fbricas Progresso e Santa Elisa para paralisao total. O vice-governador apresentou a contraproposta dos patres, de 15% de aumento, o que nada representou para os grevistas. Por outro lado, indstrias de grande porte como a Santa Ceclia, Gasparian e Santa Maria, demonstraram preocupao com a extenso da greve, que poderia comprometer o cumprimento de seus contratos com compradores e causar-lhes prejuzos financeiros. Os trabalhadores no abriram mo do percentual de aumento de 50% e realizaram passeatas pelas principais ruas da capital cearense, e atravs de discursos eloquentes, tentavam explicar ao povo os motivos de tal movimento. Os que apoiaram a greve, trabalhadores de outras categorias, sindicatos e associaes, e estudantes, pediram ajuda financeira populao, s lojas comerciais e aos estabelecimentos bancrios de Fortaleza para criar um fundo da greve que ajudaria os familiares dos txteis. Foi ento que entrou em cena o ministro do Trabalho, Castro Neves, que telegrafou ao delegado do Trabalho, solicitando medidas imediatas em relao greve. Naquele momento veio tona a viso da imprensa sobre o funcionamento de tal rgo: inoperante e sem fora para levar os patres delegacia. A Federao dos Trabalhadores nas Indstrias (FTI), cujo presidente era juiz classista do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), calou-se diante do movimento grevista, no apoiando os txteis. Em entrevista ao jornal O Povo, o presidente do Sindicato dos Industriais, Mrio Cmara Vieira, justificou as ms condies que impossibilitaram o aumento salarial de 50%, como queriam os operrios da seguinte forma:1. Do nordeste brasileiro somos os primeiros industriais a fazerem proposta de aumento salarial, na presente crise, colocando-nos em posio inferior para concorrncia aos industriais dos demais Estados; 2. Os negcios esto paralisados, justamente quando as praas do Rio, So Paulo e Belo Horizonte mais costumam elevar suas compras. H um retraimento geral no comrcio;48

A Siqueira Gurgel surgiu em 1924, produzindo leo paje, margarina, sabo pavo, sabonete, dentre outros. Oferecia escolas para os filhos dos operrios.

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3. As dificuldades para o desconto de ttulos nos bancos locais tm acarretado problemas financeiros serssimos para os industriais; 4. O redesconto, da mesma maneira, esteve totalmente paralisado no Banco do Brasil e Banco do Nordeste.49

Alm da situao assim exposta, a Cmara explicou que as fbricas dispunham de mercadoria no estoque para atender a demanda, logo, eles no correriam risco de prejuzo nos negcios e ficariam sem ganhar, como consequncia da paralisao do trabalho. Sobre a interferncia do ministro do Trabalho, at aquele momento, no haviam sido comunicados pela DRT. O desfecho do movimento grevista foi influenciado pelo contexto poltico, pois, com a renncia de Jnio Quadros Presidncia da Repblica, o governo temeu o aumento da intensidade do movimento com novas manifestaes sociais que abalassem a sociedade. Em reunio no Palcio da Luz, governador, autoridades das Foras Armadas, empresrios, presidentes da Federao dos Trabalhadores e dos Industriais e seus respectivos sindicatos se pronunciaram sobre a greve, com o objetivo de acabar com a parede, por isso, tudo deve ser feito, com sacrifcio nosso, para assegurar a paz e a tranqilidade que a Ptria necessita para superar esse transe de sua vida,50 foram as palavras de Parsifal Barroso, que prometera o atendimento das reivindicaes pela via legal, atravs da Justia do Trabalho. A repercusso do movimento era tanta que amedrontou autoridades, temerosas em comunicar ao governo federal a situao de adeso de vrias categorias profissionais ao movimento, que se fortificava a cada dia. Raimundo Lopes Gondim, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indstria de Fiao e Tecelagem (STIFT), relatou a situao de misria da categoria e os cinco dias de greve sem comer e dormir. J os empresrios, representados por Thomaz Pompeu de Souza Brasil, proprietrio da Fbrica Progresso, enumeraram as dificuldades geradas pelo aumento da matria-prima. Sua contraproposta, apresentada por Mrio Cmara Vieira, era de 15% com o dissdio coletivo, a majorao salarial, caso ganhassem nessa instncia, e no pagamento dos dias paralisados. Raimundo Lopes Gondim contraprops aumento de 20%, mais o pagamento dos dias de greve e no punio dos grevistas, mas tambm no foi aceito. O governador interferiu novamente, e na tentativa de cooptar o lder sindical, apelou para o sentimento de

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Jornal O Povo, Fortaleza, 25 ago. 1961, p. 6. Jornal O Povo, Fortaleza, 26 ago. 1961, p. 8.

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amor Ptria, pela ordem e segurana do Estado, solicitando-lhe que levasse a proposta patronal aos operrios. Os 3.500 grevistas no acataram a proposta vinda do Palcio, continuando a paralisao, embora a represso j pairasse sobre o movimento sindical, inibindo a realizao de reunies e assembleia em virtude de clima de apreenso e tenso decorrentes da instabilidade poltica do pas. No final de agosto de 1961, a sede do Sindicato dos Trabalhadores Txteis foi fechada, documentos apreendidos, reunies proibidas. A imprensa registrou esse momento de represso, na figura II a seguir: FIGURA II SINDICATO DOS TXTEIS FECHADO PELA POLCIA

Fonte: Jornal O Povo, 28/08/1961, pg. 6.

Contudo, a greve continuou. O delegado do Departamento da Ordem Poltica e Social (DOPS), Major Geraldo Paiva, agiu em atendimento solicitao do delegado da DRT, Braga Filho, o qual, por sua vez, disse estar obedecendo a ordem superior, do Ministrio do Trabalho, para fechar todos os sindicatos e proibir suas reunies. Tal ordem foi dada em tom autoritrio. Logo a imprensa denunciou a priso dos lderes sindicais.

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Em editorial intitulado Mais Compreenso, o jornal O Povo apresentou a situao conflituosa e apelou para que as partes entrassem em entendimento. De acordo com o jornal, por um lado, os industriais foram beneficiados com a greve, pois como tinham estoque suficiente, a mercadoria foi sendo vendida, de modo que no foram prejudicados em seus negcios, embora reconhecessem que precisavam reaparelhar o parque industrial para concorrer com as indstrias de outros estados. Foram ainda beneficiados pela crise poltica, em que as Formas Armadas e o governo reprimiram toda e qualquer manifestao. Por outro lado, segundo o editorial, h que se considerar os trabalhadores que viviam do que ganhavam, e muitos no recebiam nem o salrio mnimo, passando fome e privaes com seus familiares, mas eram fortes o suficiente para suportar o sofrimento vivenciado com os atuais acontecimentos. O jornal encerrou sua avaliao apelando para ambas as partes:

[...] estamos certos de que a indstria poder oferecer mais do que oferece, sem reduzir o nvel de vida de seus titulares e sem ameaa de colapso nas fbricas. Por outro lado, os txteis podem e devem reduzir as suas pretenses, para que um acordo provisrio seja firmado, at que se modifique o panorama.51

Houve nova proposta dos industriais: 15% de aumento imediato e abono de cinco dos dez dias de greve, e os outros 35% de aumento seriam reivindicados em dissdio a ser resolvido em dois meses. O acordo, intermediado pelo procurador da JT, Ubirajara ndio do Cear, foi acatado pela categoria nos seguintes termos:1- aumento de 18% para os que percebem at Cr$ 9.000,00; 2- aumento de 13% para os que percebem acima de Cr$ 9.000,00; 3- para os que percebem por tarefa o aumento tem a base nica de 18%; 4- a greve no constitui motivo de despedida, estando resguardados os direitos dos trabalhadores que participaram do movimento; 5- no haver dissdio coletivo na JT; 6- os industriais faro um adiamento de Cr$ 150,00 por dia, aos operrios que participaram da greve para desconto posterior em dez prestaes semanais.52

Distante do que reivindicavam, os txteis, por presso das autoridades governamentais, do contexto poltico e das condies de sua mobilizao, acabaram51 52

Editorial. Mais Compreenso. O Povo, Fortaleza, 30 ago. 1961, p.3. QUEIROZ, Misael, Coluna Sindical. O Povo. Fortaleza, 31 ago. 1961, p.5.

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aceitando um aumento irrisrio, e ainda acordaram a no instaurao de dissdio coletivo. Se essa clusula ficou assegurada, era porque os patres temiam o uso da Justia do Trabalho, esvaziando assim mais uma frente de luta dos trabalhadores. Talvez o nico ganho tenha sido a no punio aos grevistas. A derrota da greve foi atribuda conivncia do presidente do STIFT, Raimundo Lopes, que se curvou s autoridades governamentais e ainda poupou o presidente da FTI, Antonio Alves Costa que, contrrio ao movimento grevista, no se posicionou sobre o mesmo. A Coluna Sindical, assinada por Misael Queiroz, apresentou sua viso dos fatos: os dois lderes sindicais referidos acima eram pelegos e esse tipo de liderana no conseguia ganhos significativos para a categoria, conquistando um aumento menor do que o reivindicado. Raimundo e Antonio se aliam quando h atendimento de interesses particulares, por exemplo, quando o primeiro era presidente do PUS e esfacelou a entidade, como queria o segundo e, em troca, ganhara um cargo no Instituto de Aposentadoria e Penso dos Industriais (IAPI).53 Porm, um ms depois de finda a greve, em setembro de 1961, o presidente do STIFT denuncia no jornal O Povo a demisso de grevistas. o caso da Fbrica Santa Ceclia, que obrigou os operrios a trabalharem em seis teares, sendo que anteriormente trabalhavam em trs, ganhando Cr$ 31,00 por hora, e embora duplicando o esforo e ateno, passariam a ganhar Cr$ 35,00. Como eles se recusaram, foram demitidos sumariamente, desconsiderando o tempo de servio. Os trabalhadores entraram com processo na DRT e na JCJF. Contudo, a morosidade os prejudicava, como afirma o jornal:Continuam se avolumando os processos trabalhistas nas Juntas de Conciliao e no prprio Tribunal de Justia do Trabalho, ao mesmo que a morosidade prejudica dezenas e centenas de operrios, sujeitos a deciso judicial. O longo tempo permitido pela JT para a soluo daqueles processos somente prejudica os trabalhadores, justamente aqueles que so mais explorados, prejuzo que no sentido pela classe patronal.54

A crtica ao funcionamento moroso da Justia do Trabalho uma forma de tentar agilizar o andamento do processo. A procura em massa pela JCJF ocorreu aps a

5354

QUEIROZ, Misael, Coluna Sindical. O Povo. Fortaleza, 17 nov. 1961, p.5. QUEIROZ, Misael, Coluna Sindical. O Povo. Fortaleza, 30 set. 1961, p. 5.

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finalizao da greve, porque os patres descumpriram as clusulas do acordo firmado entre ambos, a exemplo da perseguio aos grevistas. Em reunio na DRT, os operrios solicitaram a readmisso de dez operrios e o pagamento de 79 centavos por letra para os que trabalhavam nos teares, pois a empresa aumentou abusivamente o nmero de teares, de trs para seis, sobrecarregando os empregados. Aps o movimento grevista, a categoria avaliou os acontecimentos e votou moo de repdio a Antonio Alves Costa, presidente da FTI, e juiz classista do TRT, e a Jos Miranda de Oliveira, presidente do Sindicato da Construo Civil, pois ambos no apoiaram a greve. O instrumento da greve logrou xito por ter pressionado a negociao com a classe patronal. Embora os operrios txteis no tenham conseguido o aumento salarial reivindicado, preciso observar as clusulas do acordo: 15% de aumento salarial, e os 35% seriam negociados diante do TRT, o que no ocorreu, porque os patres conseguiram evitar o recurso ao tribunal, quando acrescentaram outra clusula de no realizar o dissdio coletivo, certamente por temer a Justia do Trabalho, o que pode indicar que a justia era acessvel aos trabalhadores e podia lhes dar ganho de causa. Fazia parte do acordo a no punio aos grevistas, o que ocorreu, embora dissimuladamente, pois o motivo imediato da demisso foi a recusa dos operrios em cumprir a ordem de trabalhar em seis teares, j que trabalhavam em trs teares, e o aumento do esforo do trabalho no foi atrelado ao aumento salarial. O ressentimento da greve por parte dos patres criou situaes demandavam mais esforo fsico e explorao. A resistncia dos operrios a tais condies de explorao levou demisso imediata. Outra questo diz respeito ao contexto externo que influenciou o desfecho da greve: a renncia de Jnio Quadros, o clima de instabilidade poltica, o risco de que se formassem movimentos de insatisfao geral com relao situao do pas, levou as autoridades estaduais, governador, deputados, juzes, procuradores do Trabalho, oficiais do Exrcito, dentre outros, a enveredar esforos para por fim greve, apelando ao amor Ptria. Os operrios cooperaram para estabelecer um clima de paz social finalizando a greve, mas sua organizao e mobilizao continuaram, e no tardaram a se manifestar

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novamente no ano seguinte, o que pode indicar que a ineficincia da greve (ou ameaa da greve)