Santos 2011

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECNCAVO DA BAHIA CENTRO DE ARTES, HUMANIDADES E LETRAS

    JOO CARLOS DE JESUS SANTOS

    TRABALHO DE DOCUMENTAO MUSEOLGICA NO TERREIRO DE CANDOMBL IL AX OGUNJ (SO FLIX)

    Cachoeira 2011

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    JOO CARLOS DE JESUS SANTOS

    TRABALHO DE DOCUMENTAO MUSEOLGICA NO TERREIRO DE CANDOMBL IL AX OGUNJ (SO FLIX)

    Monografia apresentada ao Colegiado do Curso de Museologia da Universidade Federal do Recncavo da Bahia, como requisito parcial para obteno do Grau de Bacharel em Museologia.

    Orientadora: Prof. Ms. Suzane Tavares de Pinho Ppe

    Cachoeira 2011

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    AGRADECIMENTOS

    A minha famlia, especialmente, a minha me, praticante da religio afro-brasileira, que neste contexto me inseriu,

    Ao Babalorix Idelson Sales,

    Aos meus amigos e colegas,

    Ao Prof. Luydy Abraham Fernandes, que iniciou a orientao deste trabalho

    A Prof Suzane Pinho Ppe, que deu continuidade orientao e

    A todos os professores do Centro de Artes, Humanidades e Letras,

    que incentivaram e contriburam para a minha trajetria acadmica.

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    Ag Exu

    Ag os Eguns

    Ag Ogum, Orix dono da cabea do Babalorix e patrono do terreiro de candombl que este lidera.

    Ag Obaluai, Orix dono da cabea de me biolgica, cultuado em nossa casa muitos antes de minha existncia,

    atravs do culto aos caboclos.

    Ag Oxagui, Orix indicado pelos bzios como dono da minha cabea. Ag todos os Orixs que compem o panteo dos deuses de origem africana

    cultuados no Brasil e na me frica. Pedimos licena e permisso s entidades

    a partir das quais se estruturaram as religies afro-brasileiras para iniciarmos o nosso trabalho no terreiro de candombl Il Ax Ogunj.

    Joo Carlos Santos

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    RESUMO

    Este trabalho monogrfico de concluso do Curso de Graduao em Museologia consiste em um estudo de caso e visa documentao de manifestaes da cultura afro-brasileira na cidade de So Flix, mais particularmente do terreiro de candombl Il Ax Ogunj, da nao Keto. Pretende-se com esta monografia contribuir para a valorizao da cultura afro-brasileira em So Flix e de seus agentes produtores a partir de um embasamento terico sobre o contexto histrico, socioeconmico e religioso. Fez-se uso dos mtodos bibliogrfico e etnogrfico. Como instrumentos de pesquisa foram utilizados observaes, entrevistas e documentao fotogrfica, fundamentais para reunio dos dados da pesquisa, que servem para formulao de um dossi sobre o patrimnio em questo, onde so trabalhados aspectos fsicos, materiais e as festas de Oxossi e Ogum.

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    LISTA DE ILUSTRAO

    Mapa - So Flix e Cachoeira.......................................................................................... 31

    Figura 1 - Assentamento de Ogum terreiro Il Ax Ogunj............................................. 33

    Tabela - Assentamento de Ogum terreiro Il Ax Ogunj.............................................. 33

    Figura 2 - Entrada principal do terreiro Il Ax Ogunj.................................................. 34

    Figura 3 Despacho de Exu................................................................................................ 41

    Figura 4 Festa de Oxossi do terreiro Il Ax Ogunj....................................................... 46

    Figura 5 Festa de Ogum.................................................................................................... 49

    Figura 6 Ogan Fbio espalhando sobre o piso folhas de arrueira-aquisavas.................... 50

    Figura 7 Sada dos orixs para apresentarem-se na festa de Ogum.................................. 52

    Registro fotogrfico da festa de Ogun..................................................................................... 54 Registro fotogrfico da festa de Oxossi................................................................................... 55

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    SUMRIO

    1 INTRODUO...............................................................................................................

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    2 METODOLOGIA DA PESQUISA, PATRIMNIO CULTURAL E DOCUMENTAO

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    2.1 A METODOLOGIA DO PROJETO.........................................................................

    12

    2.1 A METODOLOGIA DO PROJETO.........................................................................

    12

    2.2 PATRIMNIO E DOCUMENTAO MUSEOLGICA....................................... 17 3. ESTUDOS DA RELIGIO AFRO-BRASILEIRA NA BAHIA 21

    4. SO FLIX, ASPECTOS SOCIOECONMICOS, CULTURAIS E RELIGIOSOS

    24

    5. O TERREIRO DE CANDOMBL IL AX OGUNJ: Documentao aplicada ao objeto em estudo

    32

    5.1 MAPA DE CACHOEIRA E SO FLIX............................................................... 32 5.2 FICHA DE IDENTIFICAO DO TERREIRO....................................................... 32 5.3 ORIGEM E ARQUITETURA DO TERREIRO................................................... 34 5.4 ARROLAMENTO DOS OBJETOS DE CULTO.... 37 5.5 UM RITUAL DE MATANA NAS FESTIVIDADES DEDICADAS A OXOSSI.....................................................................................................................

    41

    5.6 FESTA DE OXOSSI............................................................................................... 48 5.7 FESTA DE OGUM................................................................................................. 51 5.8 DOCUMENTAO FOTOGRFICA 54

    6 CONSIDERAES FINAIS..........................................................................................

    55

    REFERNCIAS..................................................................................................................

    56

    APNDICE .........................................................................................................................

    60

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    1 INTRODUO

    Este trabalho monogrfico de concluso do curso de museologia da Universidade Federal do Recncavo da Bahia, o resultado de um projeto elaborado na disciplina Projeto Monogrfico ministrada pelo Professor Carlos Costa, desenvolvido sob a orientao inicial do

    Professor Luydy Abraham Fernandes, continuada e finalizada pela Professora Suzane Pinho Ppe. O mesmo est voltado para a Documentao do Patrimnio Cultural Imaterial, a partir

    de em um estudo de caso sobre o terreiro de candombl Il Ax Ogunj, situado na cidade de So Flix (Bahia), praticante dos ritos da nao Keto da religio afro-brasileira.

    Buscamos, a partir da produo de conhecimento sobre a origem e dinmica do terreiro de Candombl Il Ax Ogunj, a fundamentao para o seu reconhecimento, como patrimnio cultural imaterial, de um grupo social que preserva o aspecto religioso da cultura afro-brasileira na cidade de So Flix aspecto de comprovada relevncia para a formao

    histrica e do desenvolvimento socioeconmico e cultural local. Pretendemos com este contribuir para o reconhecimento dos terreiros de candombls

    da Cidade de So Flix como patrimnio imaterial da cultura afro-brasileira, evidenciando, neste processo, a importncia dos seus agentes produtores na preservao dos ritos e mitos dessa manifestao, atravs da reunio de dados sobre sua origem e desenvolvimento, e de registros etnogrficos, que se constituram na documentao museolgica do Terreiro Il Ax

    Ogunj tratada no segundo capitulo deste trabalho. Para alm da produo de conhecimento, este trabalho visa elevao da auto-estima

    e promoo da cidadania do povo de santo da cidade de So Flix, mais precisamente do Il Ax Ogunj, que contribuiu para que fosse realizado o registro.

    A nfase aqui dada ao reconhecimento dos terreiros de candombls como patrimnio imaterial da cultura afro-brasileira em So Flix, justifica-se na histria desses nos processos scio, poltico, econmico e cultural desta localidade, e no fato de acreditarmos na valorizao da cultura como meio de promover o desenvolvimento sustentvel de cidades que,

    a exemplo de So Flix, viveram no passado um desenvolvimento econmico que impulsionava e dinamizava os demais aspectos culturais, mas que em funo do surgimento de novos centros tiveram seu desenvolvimento estagnados, restando apenas na memria a lembrana despertada pela arquitetura de uma cidade prosperou no passado. Justifica-se

    tambm na crena de que os terreiros de candombls sejam espaos nos quais o contexto preservacionista da cultura afro-brasileira e vivenciado em seus aspectos lingsticos,

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    religiosos, esttico, artstico e culinrio, tornando-se um espao que garante a continuidade das religies de raiz africana, a difuso e o dinamismo da cultura afro-brasileira. Esperamos que outras produes que documentem os terreiros de candombl de So Flix somem-se a esta, permitindo assim, um conhecimento mais amplo dessa manifestao como referencial da

    cultura afro-brasileira nesta localidade. A cidade de So Flix antes da colonizao tinha o seu espao fsico ocupada por uma

    tribo de ndios Tupinambs, descoberta pelos portugueses em 1534. Situada no Recncavo baiano, margem esquerda do rio Paraguau, vizinha cidade da Cachoeira a qual esteve ligada administrativamente at o ano de l890, ocasio em que foi elevada condio de cidade, tendo como primeiro prefeito ou intendente o Sr. Geraldo Dannemman, empresrio

    alemo fundador da fbrica de charutos Dannemman, um dos articuladores do processo de emancipao da cidade. (VOTORANTIN, 2004).

    Ao iniciarmos nossas atividades de pesquisa, encontramos certas dificuldades motivadas pela falta de uma bibliografia especfica referente cidade de So Flix, a sua histria e formao da religio afro-brasileira. No sentido de superar as referidas dificuldades concentramos nossa pesquisa em leituras de obras que focassem o Recncavo da Bahia, a exemplo da obra, Domingos Sodr um sacerdote africano (2008), da autoria de Joo Jos Reis, na qual encontramos uma narrativa que tem como referncia o Recncavo baiano, porm a sua trama desenrola-se na cidade do Salvador, distanciando-se do nosso propsito de enfocar nossa abordagem no desenvolvimento e formao da cultura afro-brasileira em So Flix. Avanando na pesquisa bibliogrfica ao ter acesso s obras do Professor Walter Fraga

    Filho, Encruzilhadas da Liberdade (2006) e um texto indito intitulado A Terra Sagrada: histria e memria a do terreiro do Capivari (s.d.)1, nas quais encontramos uma narrativa focada nas vivncias dos negros nos Engenhos do Recncavo, no final do sculo XIX, entre os perodos pr, e ps- abolio.

    Outras referncias indispensveis nossa pesquisa so Terra de Macumbeiros: redes de sociabilidades africanas na formao do candombl jeje-nag em Cachoeira e So Felix Bahia, de Luiz Cludio do Nascimento, dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao Multidisciplinar em Estudos tnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, e o trabalho de Edmar Ferreira, O poder dos candombls perseguies e resistncia no Recncavo da Bahia (2009). Essas obras trouxeram informaes mais especficas sobre a origem e desenvolvimento da cultura afro-brasileira local.

    1 Este texto nos foi gentilmente cedido pelo autor.

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    Encontramos referncias ao Recncavo baiano e informaes mais especfica sobre a histria da cidade de So Flix em panfletos e catlogos comemorativos de produo independente, exemplo de uma publicao comemorativa por ocasio da do centenrio da cidade, com texto da Professora Adalblia Dourado, e outra, recentemente produzida pela

    empresa Votoratin.

    Em funo do desejo do Babalorix Idelson Sales e da comunidade, e das possibilidades oferecidas pelo espao do seu terreiro, de musealizao, uma tendncia comprovada pelas experincias recentes de alguns terreiros de candombl da capital em transformar-se em museus, a exemplo do Il Ax Op Afonj, preocupamo-nos em compreender como a documentao museolgica poderia contribuir nesse sentido, porm foi

    na noo de patrimnio que encontramos as bases fundamentais para a aplicao do processo de documentao.

    Existe, de nossa parte, uma inteno na elaborao de um dossi que venha atender aos propsitos de criao de um museu no espao do terreiro Il Ax Ogunj, que possa promover a cidadania e o desenvolvimento da comunidade do terreiro e do seu entorno. tambm nossa inteno, com esse dossi, o registro do candombl como referencial da cultura afro-brasileira na cidade de So Flix.

    Seguimos em nosso trabalho a noo de patrimnio imaterial2 definida, recomendada e

    determinada pelo Decreto-Lei N.o 3551, do ano de 2000. Segundo orientao e deliberao dada nos projetos desenvolvidos pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN), para a elaborao de dossis de registro e inventrio de referncias culturais, que situa ser de fundamental importncia a documentao por meio de mapeamentos e inventrios culturais, de registros etnogrficos e audiovisuais, de divulgao e da valorizao dos saberes

    e produtos das manifestaes culturais. Essas orientaes e as que dizem respeito ao registro de objetos materiais, no contexto da documentao museolgica, nortearam o estudo do Il Ax Ogunj, permitindo-nos o acesso ao conhecimento sobre esse terreiro de candombl, o que foi, do que e quem faz acontecer essa manifestao, ressaltando sua importncia na formao e preservao da cultura afro-brasileira em So Flix.

    Estruturamos o presente trabalho em seis captulos. Esta Introduo seguida dos captulos: 2. Metodologia da Pesquisa, Patrimnio Cultural e Documentao Museolgica, onde tratamos sobre a metodologia empregada na pesquisa e aportes tericos, correlacionando

    patrimnio cultural com documentao museolgica; 3. Estudos da Religio Afro-brasileira

    2 Patrimnio Imaterial uma fonte de identidade que carrega a sua prpria histria nas linguagens, tradies

    orais e diversas manifestaes culturais, a exemplo do samba de roda do Recncavo.

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    na Bahia, no qual focamos nossa abordagem no histrico dos estudos das religies afro-brasileira na Bahia; 4. So Flix, Aspectos socioeconmicos, culturais e religiosos, aqui sentimos a necessidade de expor aspectos socioeconmicos e culturais referentes ao Recncavo baiano, que nos auxiliaram a melhor compreender nosso objeto de estudo e contextualizar as circunstncias histricas que proporcionaram a existncia de terreiros de candombl na regio. Mesmo que os terreiros s tenham surgido a partir do sculo XVIII ou

    XIX, interessou-nos conhecer a histria de So Flix a partir da chegada dos primeiros colonizadores e escravos africanos, assim como as vivncias do negro nos engenhos do Recncavo baiano, em especial no Engenho da Natividade, onde foi fundado o terreiro de candombl do p da caj pelo Babalorix Anacleto da Natividade, no sculo XIX. No captulo 5. O Terreiro de Candombl Il Ax Ogunj: Documentao aplicada ao objeto em de estudo, nossa narrativa se concentra na descrio do terreiro e dos rituais de matana, festa de Oxossi e Ogum, acrescido de documentao com ficha de identificao do terreiro, arrolamento do assentamento de Ogum e registro fotogrficos; e no capitulo 6. Consideraes Finais, e Apndices.

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    2 METODOLOGIA DA PESQUISA, PATRIMNIO CULTURAL E DOCUMENTAO.

    2.1 A METODOLOGIA DO PROJETO

    Em funo da natureza imaterial do objeto em estudo e da responsabilidade atribuda documentao no processo de salvaguarda dos bens imateriais, optamos por utilizar neste trabalho, o mtodo de pesquisa etnogrfico acreditando na sua eficcia e validade na produo do conhecimento necessrio para documentao do terreiro de candombl Il Ax Ogunj, assim como estudaremos registros fotogrficas dessas manifestaes.

    A etnografia o estudo da cultura ou segmento social com base em trabalho e campo; este envolve a observao e outras tcnicas exigidas pela pesquisa. A crescente utilizao da

    etnografia d-se porque a interao direta com pessoas na sua vida cotidiana pode auxiliar a compreender melhor suas concepes, prticas, motivaes, comportamentos e

    procedimentos, e os significados que atribuem a essas prticas. (CHIZOTTI, 2008, p. 65). Ao abordar sobre gneros narrativos etnogrficos, Lisa Eart, citando James Clifford,

    diz que a etnografia nasceu numa sociedade ex-escravocrata, caracterizada pelo olhar europeu sobre o Outro extico. Nesse contexto, a produo acadmica sobre o candombl baseava-se

    numa observao de fora para dentro, e estava voltada para leitores tambm acadmicos. Mas hoje, no contexto contemporneo, tem sido grande o nmero de pesquisadores que aderem metodologia da pesquisa participante, criando vnculos com o objeto de estudo, numa perspectiva de observao que, segundo Juana Elbein, corresponde desde dentro para fora. (CASTILHO, 2008. p. 148-9).

    A relao entre museologia, etnografia, e colecionismo no Brasil remonta ao sculo

    XIX, quando sob a gide de uma antropologia evolucionista devotada construo da alteridade com base na fisiologia, surgiram os primeiros museus etnogrficos: Museu

    Nacional (1818), Museu Paraense Emlio Goeldi (1866) e o Museu Paulista (1894), voltados para a pesquisa enciclopdica orientada pelas cincias naturais. Nesse perodo os antroplogos a utilizavam como ferramenta para a pesquisa de campo o colecionismo.

    Numa discusso sobre colecionismo na sociedade ocidental moderna, James Clifford (Apud ABREU, 2005) assinala que, no sculo XVII, surgiu um ideal possuidor voltado para a propriedade e a acumulao de bens, ideal esse que se aplica s coletividades no processo de

    construo e desconstruo de seus eus culturais. Ao referir-se sobre patrimnio num estudo

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    de caso no Canad, Richard Handler (Apud ABREU, 2005) chama ateno para a relevncia da noo ocidental de como adquirir um patrimnio ou de objetivar uma cultura, e afirma que os ocidentais so regidos por uma sociedade de colecionamento voltada para acumulao de bens que devem ser expostos.

    Para a compreenso das diferentes maneiras de apropriao e leitura das culturas, segundo James Cliford (Apud ABREU, 2005) necessrio que passemos a ver a etnografia como forma de colecionar cultura, enfatizando como os fatos e as experincias foram selecionados.

    Segundo Mariza Peirano (Apud ABREU, 2005), o processo de conhecimento antropolgico desenvolvido no Brasil trilhou rumos diferentes de outros pases, a exemplo da

    Frana e dos Estados Unidos. De modo peculiar, nossos antroplogos lanaram-se na busca do objeto aqui mesmo em nosso territrio, dedicando-se ao estudo das culturas eles produziram uma antropologia do Brasil.

    A antropologia de um modo geral at os anos 50 do sculo XX tendeu busca de uma alteridade radical caracterizada pela curiosidade em relao ao exotismo, e partiu da para os chamados estudos de frico intertnica caracterizados pelo contato entre alteridades, destacando-se nestes os temas que abordavam o indigenismo e o campesinato, seguido dos estudos de alteridade prxima caracterizados pelo desafio de compreender os diferentes ethos nacionais. E por fim, desde os anos 80, a antropologia voltou-se para os estudos de si mesma e sua histria. (ABREU, 2005) Nesse processo de construo de alteridades, os museus etnogrficos desenvolveram um papel importante na produo do conhecimento sobre as

    culturas.

    Segundo Laplantine:

    Explicar , sobretudo explicar o objeto apreendido em sua autonomia em relao ao pesquisador, compreender, inclusivamente compreender o sujeito que explica o objeto em sua totalidade, compreender em sua totalidade o sujeito e o objeto de forma que se possa apreender o processo que se realiza durante a viso e a enunciao. (LAPLATINE, 2004. p. 94).

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    Em funo de explicar o objeto de estudo deste trabalho, buscamos na definio de alguns autores de cultura e religio as bases de compreenso necessria para a abordagem do tema.

    Ao questionar, num estudo epistemolgico, a aplicao do modelo das cincias da

    natureza nas cincias humanas. Dilthey (apud LAPLATINE, 2004) diz que a racionalidade compreensiva ou hermenutica mostra que a relao com o real principalmente uma relao

    de significao e de interpretao. Segundo ele, no podemos compreender o que descrevemos seno pelo processo de rehistorizao, assim como no podemos estudar objetos particulares como sociedade e cultura, sem envolver uma tripla questo: a da histria, do sentido e da linguagem.

    A pesquisa um procedimento de busca, indagao, investigao, e inquirio da realidade, viabilizando o seu conhecimento cientfico, por meio de sua compreenso e

    transformao. Na pesquisa, a epistemologia, o mtodo e os procedimentos tcnicos esto presentes em todo processo de investigao. Porm este um processo histrico de produo de conhecimento, e por isso, repleto de contradies e diferentes concepes de cincias, em virtude de que, distingue-se o mtodo de conhecimento cientfico com base nas histricas correntes ideolgicas e em suas concepes de mundo e do homem, a exemplo do mtodo dialtico, positivista, estruturalista, funcionalista, entre outros.

    Com o desenvolvimento da pesquisa na rea das cincias humanas o mtodo qualitativo vem se firmando como mtodo capaz de uma anlise voltada para o significado dos fenmenos e processos sociais, com base nas motivaes, crenas, valores e redes que

    permeiam as relaes sociais. Apesar do preconceito que se tem gerado em torno das anlises quantitativas elas no devem ser desprezadas pelo pesquisador, uma vez que, em muitos

    casos, se faz necessria a sua utilizao, sozinha ou separada; com o qualitativo. (PDUA, 2000).

    A cincia uma das maneiras de ler e interpretar o mundo fsico e social. Usa, para tanto, vocabulrio particular muito especfico, essencial preciso, clareza e objetividade. ainda um conjunto de regras quanto maneira correta de colher, organizar, quantificar, trabalhar as informaes e compartilhar-las com uma comunidade cientfica internacional; um processo de referncia lgica que guia a tomada de decises. (GRESSLER, 2004 apud UNGLAUB, 2010 p.14).

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    Este trabalho foi desenvolvido com base numa observao participativa, onde o autor tendo nascido de me praticante da religio afro-brasileira e conhecido o terreiro de candombl muito antes de ingressar na academia, coloca-se numa perspectiva de dentro para

    fora em relao ao objeto, e de fora para dentro, com diferentes pontos de vista sobre o mesmo objeto, uma vez que este trabalho foi orientado pela academia e pela pesquisa bibliogrfica referente ao tema, por ela indicada e trabalhada durante a graduao. Isso contribuiu para que pudssemos constituir material para um dossi do terreiro de candombl Ogunj, utilizando um discurso narrativo e descritivo, misto entre a subjetividade do pesquisador acadmico e do participante, com a vantagem de, nesse processo, apreender em

    tempo real a ao e a sua enunciao enquanto acontece, pelo envolvimento prvio com o objeto e o sujeito que lhe explica.

    A pesquisa bibliogrfica sobre o tema, a teoria museolgica, os processos histricos, documentais e cientficos, nos quais est inserido o objeto de pesquisa foram os passos seguintes para a elaborao do projeto monogrfico, ocasio em que a partir do tema buscamos, na produo de alguns autores o conhecimento necessrio para abordagem, contextualizao, anlise e mensurao dos resultados, constituindo-se numa ferramenta fundamental no desenvolvimento desse trabalho pesquisa. A pesquisa bibliogrfica tem como fontes: livros de leitura corrente, livros de referncia, artigos em peridicos e impressos diversos. (UNGLAUB, 2010, p.46).

    A pesquisa descritiva se desenvolve principalmente, nas Cincias Humanas,

    abordando aqueles dados e problemas que merecem ser estudados e cujo registro no consta de documentos (CERVO, 1991 apud UNGLAUB, 2010, p. 46). Considerando as possibilidades de estudo oferecidas pela pesquisa descritiva, e de sua proposta de descobrir, com base no que descreve, analisa, observa, relaciona e registra fatos, como o fenmeno acontece e quais as suas ligaes com os demais, resolvemos aplic-la neste trabalho, aps um processo de reflexo sobre a sua validade e aplicao na proposta de documentao

    museolgica do terreiro Il Ax Ogunj. A apresentao e aprovao do projeto de documentao museolgica do terreiro

    Ogunj, ao seu lder o Babalorix Idelson Sales da Conceio, filho de Ogun, aconteceu num encontro no terreiro entre o graduando e o babalorix (ambos j se conheciam), momento em que foi feito esclarecimento sobre do que tratava o trabalho, a sua importncia para o terreiro, para comunidade, e para a academia. Seguido ao momento de avaliao dos esclarecimentos,

    veio o da aprovao, a partir da qual, j contando com a colaborao do lder do terreiro, foi

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    elaborado um cronograma de entrevistas e de participao em rituais e festas, assim como, acertados sobre o que poderia ou no, ser registrado por relatos ou fotografias, ou de forma alguma. De posse da aprovao do projeto e de informaes preliminares para o desenvolvimento do mesmo, partimos para elaborao de roteiro de pesquisa e entrevista,

    fichas de identificao do terreiro e dos seus integrantes, e para aquisio de instrumentos auxiliares no processo como: trena, cmera fotogrfica, computador e gravador.

    A pesquisa de campo compreendeu a observao participativa do ritual de matana, da festa de Oxossi, da festa de Ogum e da festa dos Caboclos, durante os quais foram feitos registros fotogrficos da manifestao e entrevistas com alguns integrantes e visitantes. Os registros fotogrficos produzidos durante esses eventos foram apresentadas ao pai de santo

    Idelson, durante as entrevista que se seguiram, como forma de induzi-lo a falar sobre se e o retratado, com a sabedoria e autoridade de lder do terreiro de candombl.

    Instrudos pela pesquisa bibliogrfica e de posse dos dados da pesquisa de campo, chegou o momento de correlacion-las em funo de uma interpretao e uma narrativa, que atendesse aos propsitos acadmicos, de documentao do terreiro de candombl Il Ax Ogunj como referencial da cultura afro-brasileira na Cidade de So Flix.

    Elaboramos documentao com base em registros escritos, fotogrficos, fonogrficos e audiovisuais, com base nos quais elaboramos: planta baixa de localizao do terreiro, planta baixa do espao fsico do terreiro, ficha de identificao do terreiro com identificao do lder e das pessoas com cargos hierrquicos ligados diretamente a realizao da manifestao e organizao do terreiro, calendrio de festas, arrolamento dos objetos que compe o assentamento de Ogum, arrolamento dos objetos de culto ritual; classificando-os genericamente como objeto de culto, subdividido em tpicos: instrumentos musicais, indumentria de Ogum, instrumentos de rituais especficos a exemplo da matana. No arrolamento dos objetos de culto foram registradas especificidade as tcnicas de produo, materiais constituintes e uso ritual dos mesmos.

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    2.2 PATRIMNIO CULTURAL E DOCUMENTAO MUSEOLGICA

    O bem cultural, seja material ou imaterial, est relacionado com a experincia humana, atravs de uma aquisio crtica e reflexiva, no sendo somente um armazenamento

    na memria de informaes resgatadas, no incorporado ao ser total do homem enquanto fazedor de histria, como tambm, sua relao com a natureza e o mundo vivido.

    (NASCIMENTO, 1994, p.41). O patrimnio cultural de uma nao, de uma regio ou de uma comunidade

    composto de todas as expresses materiais e espirituais que lhe constituem, incluindo o meio ambiente natural. (Declarao de Caracas, 1992).

    Clifford Geertz, adotando um conceito de cultura essencialmente semitico, acredita, como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados que ele

    teceu. Assume a cultura como sendo essas teias e a sua anlise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura do significado. (GEERTZ, 2008, p. 4).

    A cultura simblica e todo smbolo cultural e social por natureza, ele um

    fenmeno fsico que tem um significado transmitido por aquele que o utiliza. cultural, pois supe uma ordenao racional de todo o mundo visvel. Ordenao ou sistematizao que permite a classificao das coisas, dos animais e dos homens. E se configura no significado

    dado ao conjunto que forma o mundo visvel. (MELLO, 1987. p.48). Segundo Rousseau (1762 apud ENCICLOPDIA EINAUDI, 1985, p.301), a imaginao a faculdade especfica em cujo contexto os sentimentos se escondem, sendo a ela, precisamente, que se dirige a linguagem efetiva dos smbolos e dos emblemas.

    No Brasil, o Decreto-Lei N.o 3551, do ano de 2000, orienta e delibera sobre o patrimnio da cultura imaterial. O Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (IPHAN) recebeu a incumbncia de inventariar os bens culturais intangveis atravs do Inventrio Nacional de Bens Culturais. Por outro lado, o Decreto-Lei n 25, de 30/11/1937 j recomendava a salvaguarda do patrimnio material.

    Essa poltica de preservao resulta de um debate sobre as expresses populares e sua

    contribuio na formao de uma identidade cultural brasileira que comeou na dcada de 1930, a partir da criao IPHAN e do incentivo dado por Mrio de Andrade, com a elaborao do seu anteprojeto que previa o registro das manifestaes culturais. Esse debate avanou na Assemblia Constituinte de 1988, na qual aparece o conceito de patrimnio imaterial em

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    Atualmente, reconhecida a relao entre materialidade e imaterialidade das manifestaes e, mesmo que o enfoque se d sobre uma dessas dimenses, a outra no pode ser totalmente excluda.

    O patrimnio imaterial ou patrimnio intangvel abrange os processos de produo

    cultural, as performances, os saberes e os modos de transmiti-los, e para a reflexo a respeito de onde devem atuar os muselogos e cientistas sociais com novos processos metodolgicos.

    Uma vez ampliada a noo de patrimnio cultural, os estudos deixam de focar apenas os produtos e aspectos materiais, abarcando tambm os aspectos imateriais voltados para os agentes produtores, e para a valorizao e garantia das condies necessrias realizao e produo cultural. (VIANNA; TEIXEIRA, s.d.).

    Ainda no Decreto-lei N.o 3551, a formulao da idia de patrimnio imaterial busca incluir e transformar segmentos sociais, atravs de polticas pblicas que visam a explicitar, valorizar e identificar a diversidade cultural brasileira a partir dos seres humanos, agentes objetivos dessa produo. Com o decreto foi institudo o Programa Nacional de Patrimnio Imaterial (PNPI), e o registro de bens imateriais em suas quatro dimenses e livros distintos: o Livro dos Saberes, destinado ao registro dos conhecimentos e modos de fazer enraizados nas

    comunidades, o Livro das Celebraes, no qual so registrados festas, rituais e folguedos que expressam vivncias coletivas, religiosidade, entretenimento e cotidiano social; o Livro das Formas de Expresso, destinado ao registro de manifestaes literrias, musicais, plsticas,

    cnicas e ldicas; e o Livro dos Lugares para o registro e a inscrio dos espaos, onde se reproduzem prticas culturais coletivas, a exemplo de feiras e mercados. (FALCO, 2005).

    Com a instituio da vertente imaterial do patrimnio cultural brasileiro criou-se um campo de atuao para as cincias sociais, com novos e vrios conceitos, orientaes e

    procedimentos. Consideramos que a museologia deva aprimorar mtodos de pesquisa que atendam ao estudo do patrimnio imaterial, buscando elos com o patrimnio material, para os

    quais os processos de documentao esto mais sedimentados devido aos estudos da iconografia desenvolvidos no sculo XX, a partir Erwin Panofsky (1892-1968).

    A imagem fotogrfica funciona sempre como documento iconogrfico acerca de uma realidade, ela um dispositivo que aciona nossa imaginao para dentro do mundo representado, tangvel ou intangvel, estabelecendo em nossa memria um arquivo visual de referncia insubstituvel para o seu conhecimento. Uma vez assimiladas em nossas mentes

    elas deixam de ser estticas tornando-se dinmicas e fludas. (KOSSOY, p 45, 2002). O tombamento, instrumento de salvaguarda aplicado aos bens materiais culturais

    tornou-se inaplicvel aos bens imaterial do patrimnio cultural, para este foi criado o registro,

  • 19

    pressupondo dinmica e variedade de formas e significado. A pesquisa voltada para a poltica de salvaguarda do patrimnio imaterial privilegia os agentes, os modos de fazer, de transmitir, e os meios de produo cultural, ao invs do produto final materializado. Ao lado, da pesquisa, em funo da salvaguarda para possvel reconstruo futura da expresso, focada

    nas condies de realizao dos processos culturais, est a pesquisa acadmica e documental. (VIANNA; TEIXEIRA, s.d.).

    Ao falar sobre a busca da documentao museolgica para a comunicao, Rosana Nascimento diz ser necessrio optar por um mtodo que explicite as teias de relaes em que o objeto est imerso, ir alm dos seus aspectos fsicos, at mesmo porque a historicidade, enquanto mtodo, no permite a apresentao de objetos esvaziados de contedos. Como mtodo a historicidade aplicada a qualquer ao museolgica, principalmente na ao documental, entendida como um processo para a compreenso do objeto museal, na sua relao com o homem. (NASCIMENTO, 1994, p.41).

    Cabe aqui definir alguns conceitos de documentao museolgica a fim de mostrar que os mesmos j abarcam, de forma implcita, registros das produes imateriais hoje reconhecidas como patrimnio histrico, apresentadas sob a forma de fotografias e materiais audiovisuais em espaos museolgicos.

    Documento todo e qualquer suporte da informao: livros, folhetos, revistas, relatrios, fita magnticas, CDs, micro-filmes, fotografias, materiais escritos e sonoros, com compreenso estendida para alm do documento convencional, para os monumentos, stios paisagstico e arqueolgico. (CASTRO; GASPARIAN, 1982).

    Documentao museolgica, segundo Fernanda Camargo-Moro (1986), o conjunto ou cada um dos processos de elaborao e produo, coleo e classificao, difuso e

    utilizao da informao contida em documentos de naturezas diversas utilizados nos museus, e tem como principal funo a preservao das informaes relativas a seus acervos em favor da preservao da memria.

    A documentao dos acervos museolgicos, conforme Helena Dodd Ferrez (1994) o conjunto de informaes sobre cada um dos seus itens do acervo, por conseguinte, a representao destes por meio da palavra e da imagem fotogrfica. Ao mesmo tempo, um

    sistema de recuperao da informao capaz de transformar as colees dos museus fontes de informaes em fontes de pesquisa cientfica ou em instrumentos de transmisso de conhecimento.

    Segundo Maria Inez Cndido (2006) os processos museolgicos na contemporaneidade vm passando por transformaes. Se antes a museologia era conhecida e

  • 20

    considerada como tcnica, ela vem buscando seu reconhecimento como disciplina cientfica. Neste sentido, a produo de uma teoria atribuda aos profissionais da rea, partiu do consenso de que compilaes, tipologias, levantamentos de dados em fichrio j no atendiam demanda do carter cientfico conquistado pela museologia, e sim a busca de conhecimento

    num processo em que o pesquisador, aquele que fala, que interroga o documento compromete-se em explicar os procedimentos utilizados na construo do seu discurso em

    funo de sua legitimao. Para isso, cita Mrio Chagas, ao dizer que necessrio apontar uma unidade conceitual possvel, definida pela relao homem/bem cultural/espao, e de articul-la com os conceitos de patrimnio, memria, preservao, comunicao e investigao, tudo isso tendo como pano de fundo o tempo em permanente fluir. Para atender

    demanda contempornea de cientificidade nos processos museolgicos, necessrio que a produo do conhecimento nessa rea demande uma rotina de pesquisa interdisciplinar,

    associada a discusses tericas, alm de uma constante interlocuo com outras reas que de algum modo, opere com a questo do documento. (CHAGAS Apud CNDIDO, 2006, p.37)

    Maria Clia Santos, ao falar sobre museus comunitrios, diz que o museu um espao privilegiado, onde possvel concretizar propostas de intercmbio com as diversas reas e, ao mesmo tempo, produzir conhecimento a partir de temas e problemas que so potencializados no desenvolvimento das aes de pesquisa, preservao e comunicao, aplicadas em interao com as comunidades locais, reconhecendo no patrimnio cultural um instrumento de educao e desenvolvimento social. (SANTOS, 2000, p.12).

    Com as transformaes sofridas a partir da Nova Museologia ou Museologia Social,

    que se aproxima das comunidades e dos produtores da cultura e de seus saberes, tem havido uma abertura da museologia com relao comunidade. Percebe-se com mais clareza o

    intrincamento entre patrimnio material e imaterial, assim como a necessidade de registros que reflitam esta relao.

  • 21

    3 ESTUDOS DA RELIGIO AFRO-BRASILEIRA NA BAHIA

    Neste captulo tratamos de alguns aspectos referentes aos estudos da religio afro-

    brasileira na Bahia. Os primeiros estudos sobre o negro no Brasil foram desenvolvidos pelo maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), um dos fundadores da medicina legal e da psiquiatria na Bahia. De sua obra emerge a temtica racial, centrada no negro e no mestio, pensados sob a perspectiva evolucionista. Surpreendentemente, ele no era contrrio s prticas religiosas afro-brasileiras, que, na sua poca, estavam muito presentes na Bahia. Sobre religio, destaca-se seu livro O animismo fetichista dos negros baianos, no qual Nina abordou a persistncia do fetichismo africano como expresso do sentimento religioso de negros e mestios da Bahia, remontando aos tempos coloniais; escreveu sobre estados de

    possesso, orculos fetichistas, cerimnias e sincretismo religioso. Tambm a obra Africanos no Brasil (1977), de Nina Rodrigues, publicada pela primeira vez em 1933, abriga captulos importantes para a compreenso do candombl, os quais ressaltam o fetichismo na religio e na arte.

    Na dcada de 1930, Arthur Ramos (1903-1949) e Edison Carneiro (1912-1972) foram os mais produtivos pesquisadores do candombl, convivendo com uma realidade diversa da de Nina Rodrigues. Nessa poca, havia um maior nmero de terreiros dentro do permetro urbano.

    O alagoano Arthur Ramos fixou-se na Bahia, onde estudou medicina e trabalhou como

    mdico legista, psiquiatra e psicanalista. Transferiu-se em 1933 para o Rio de Janeiro; entre 1937 e 1949, dedicou-se exclusivamente ao estudo do negro. Em Loucura e crime: questes de psiquiatria, medicina forense e psicologia social (1937), Ramos apresentou o artigo O problema psicolgico do curandeirismo, no qual distinguiu o charlato do curandeiro, discordando dos tratadistas da medicina legal, por considerar que esta questo no era tratada de forma conveniente. Escreveu A possesso fetichista na Bahia (1932) e O negro brasileiro (1934), sendo a ltima, dirigida ao estudo das religies, uma das mais importantes obras desse autor. Nesta, ele fez uso do mtodo histrico-cultural para tratar de temas como

    religio jeje-nag, cultos mals, cultos de origem banto, prticas mgicas, a dana e a msica nos candombls, os fenmenos de possesso3. Arthur Ramos demonstrou estar consciente de

    3 RAMOS, Arthur. O negro brasileiro: etnografia religiosa. 3. ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional,

    1940 [1934].

  • 22

    que os mtodos que adotou no seriam definitivos, assim como suas teorias no seriam infalveis, mas reflexos do esprito cientfico da poca que vivia4.

    Em O folclore negro no Brasil: demopsicologia e psicanlise (1935), republicado em 2007, Ramos dissertou sobre as relaes entre as manifestaes culturais brasileiras e as

    religies afro-brasileiras, destacando sobrevivncias totmicas e mgicas. Edison de Souza Carneiro, advogado e escritor baiano, formado em Cincias Jurdicas

    e Sociais, dedicou-se aos estudos afro-brasileiros. Em 1961, fez uma viagem frica para desenvolver pesquisas sobre o povo ioruba, da Nigria e do Daom (atual Benim), e sua aculturao sociedade brasileira. Publicou Candombls da Bahia (1948), obra cuja linguagem clara e objetiva, reeditada em 1969. A introduo desse livro contribuiu para o entendimento das variaes que assumem no Brasil as prticas religiosas de matriz africana, decorrentes da presena do negro na Amrica, em consequncia do trfico de escravos sados,

    inicialmente, da Guin; de Angola, desde o sculo XVII; e da Costa da Mina, nos sculos XVIII e XIX. Sobre o candombl, Carneiro afirmou que, a partir da organizao do culto, houve uma aceitao do modelo de culto nag em toda parte. Para ele, os nags da Bahia logo se constituram numa espcie de elite e no tiveram dificuldade de impor massa sua religio5.

    Ainda em Candombls da Bahia, Carneiro apresentou as formas e as designaes de prticas religiosas afro-brasileiras existentes nas diversas partes do Brasil: Tambor, no Maranho; Macumba, no Rio de Janeiro; Xang, no Nordeste; Batuque, na Amaznia e no Rio Grande do Sul; Babau, na Amaznia e no Rio Grande do Sul6. O segundo volume do

    livro de Bastide As religies africanas no Brasil ofereceria um estudo comparativo detalhado dessas formas religiosas.

    Na poca de Arthur Ramos e Edison Carneiro, florescia a antropologia cultural americana, que atribua importncia aos traos culturais e aos fenmenos de transmisso da cultura. Outra porta de entrada da escola americana no Brasil foi a obra de Gilberto Freyre (1900-1987), autor emblemtico desse momento histrico. Realizou estudos de carter nacional, sob uma tica macroscpica, procurando interpretar o carter nacional com base no vis histrico-cultural7. Suas posies refletiram as ideias de Franz Boas (1858-1942), antroplogo americano culturalista que, segundo o prprio Freyre, lhe ensinou a separar raa

    4 Ibidem, p. 26.

    5 CARNEIRO, Edison. Candombls da Bahia. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1969, p. 17.

    6 Ibidem, p. 19-21.

    7 MELLO, Luiz Gonzaga. Antropologia cultural: iniciao, teoria e temas. 13. ed. Petrpolis: Vozes, 2007, p.

    288.

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    de cultura, relaes genticas de influncias sociais, a herana cultural do meio. Em Casa-grande & senzala (1933), segundo Freyre, houve no Brasil a degradao das raas atrasadas pelo domnio da adiantada. Esta desde o princpio reduziu os indgenas ao cativeiro e prostituio. Entre brancos e mulheres de cor estabeleceram-se relaes de vencedores com

    vencidos [...] 8. Na dcada de 1930, difundiu-se o mito da democracia racial no Brasil, tido como uma

    espcie de laboratrio racial, capaz de dar lies ao mundo que pregava a superioridade de uma raa em relao s demais. Gilberto Freyre, Edison Carneiro, Souza Carneiro (pai de Edison Carneiro) e Arthur Ramos foram fundamentais para a reorientao das vises locais acerca do papel civilizatrio da presena africana no Brasil, que deixaram de ser calcadas na

    raa e passaram a basear-se na cultura. Surgia, nos anos 1950, uma outra linha de pesquisa sobre as relaes raciais no Brasil,

    mais voltada para a anlise da relao entre as condies socioeconmicas e o fator racial, em lugar do interesse pelo estudo do fator cultural9. Essa tendncia est presente nos livros A integrao do negro nas sociedades (1964) e O negro no mundo dos brancos (1972), da autoria de Florestan Fernandes, assim como em O negro no Rio de Janeiro (1953), de Luiz A. Costa Pinto, que enfocaram a subalternizao imposta pelo avano da sociedade de classes no pas.

    Como observou Barbosa, ocorreu uma reviravolta na academia nacional entre os anos 1960 e 1970, com o redirecionamento terico-metodolgico das pesquisas, que voltaram a buscar um vnculo orgnico entre a questo tnica do negro brasileiro e valores africanos10.

    Os autores responsveis por essa nova orientao foram Roger Bastide e Pierre Verger (1902-1996), ambos de origem francesa. O segundo, que viveu no Brasil desde 1946, era fotgrafo, etngrafo e autor de diversos ensaios, tendo contribudo para documentar costumes sociais e aspectos das religies afro-brasileiras11.

    8 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 34. ed. Rio de Janeiro, Record, 1998, p. 426.

    9 GUIMARES, 1999 apud BARBOSA, Muryatan Santana. Os estudos sobre os africanos no Brasil. Biblioteca

    Entre Livros, v. 6, 2007, p. 6. 10

    GUIMARES, 1999 apud BARBOSA, Muryatan Santana, 2007, loc. cit. 11

    As pesquisas de Pierre Verger, financiadas pelo Instituto Francs da frica Negra (Ifan), na dcada de 1950, serviram de base para diversos textos sobre as representaes da religiosidade africana e afro-brasileira. Pierre Verger publicou Notes sur le culte des Oris et Vodun Bahia, la Baie de Tous Saints, au Brsil et lancinne Cote ds Esclaves em Afrique (1957) e Flux et reflux de la traite des ngres entre le Golfe de Benin et Bahia de Todos os Santos du dix-septime au dixneuvime sicle (1968).

  • 24

    4. SO FLIX ASPECTOS SCIO, ECONMICOS, CULTURAIS E RELIGIOSOS

    A cultura que se formou na regio do Recncavo da Bahia fortemente marcada participao do trabalho de africanos escravizados e descendentes oriundos de diferentes

    partes da frica Ocidental, Equatorial e Oriental. Ocupando grandes e pequenas cidades, plantaes e setores da minerao, imprimiram aqui seus costumes, sua religio e tradies. (SANTOS, 2008. p.26).

    O desenvolvimento cultural da regio do Recncavo baiano juntamente com o de Salvador, foi marcado por ter sido bero das manifestaes religiosas de matriz africana, como batuques, calundus e, mais tarde, o candombl, o que atestado pela arqueologia,

    histria e antropologia. Em pesquisa realizada na Universidade Federal do Recncavo da Bahia pelo Professor

    Luydy Abrahm Fernandes com um grupo de estudantes, identificou o stio arqueolgico do Engenho da Natividade, prximo ao rio Capivari. Segundo o Professor Walter Fraga Filho, nesse engenho foi fundado em 1855 o terreiro de candombl do p da caj, por Anacleto da Natividade, ento escravo do engenho. Tais evidncias somadas aos dados coletados em nossa pesquisa levam-nos a refletir sobre a formao da cultura afro-brasileira em So Flix a partir da chegada, permanncia e vivncias sociais do negro na regio do Recncavo baiano, mas tambm sobre o fato de que se tratam de sobrevivncias que perduram e, obviamente, como

    elemento cultural, tambm sofre modificaes em ritos e mitos. Alm de devermos nos lembrar que existe uma verdadeira genealogia ialorixs e babalorixs, que depois de formao

    especfica fundam suas casas de santo. O contexto socioeconmico que propiciou a escravido de negros africanos na regio,

    trabalhando tanto em latifndios e em tarefas domsticas, remonta a prpria histria. Quanto data de chegada dos primeiros escravos, no se sabe ao certo, o que se tem conhecimento

    que no incio do sculo XVI j era grande o nmero deles, atuando nas lavouras de cana de acar da regio do Recncavo baiano. Paralelo ao cultivo da cana de acar no incio do

    sculo XVII, surgiu o cultivo do tabaco na regio do Recncavo, principalmente na Vila de Cachoeira. A partir da segunda metade do sculo XIX, no Brasil comeou-se a estabelecer restries internas ao trfico de escravos,

    Nos engenhos do Recncavo baiano, segundo Walter Fraga Filho, estabeleceram-se diversas formas de relaes sociais: familiares, de compadrio e solidariedade, dentro de um

  • 25

    sistema escravista. Em Encruzilhada da Liberdade, ele narra, com base numa pesquisa documental e num recorte temporal compreendido entre 1870 e 1910, como se processaram essas relaes, evidenciando aspectos referentes ao comportamento dos negros e dos seus senhores nos movimentos abolicionistas desenvolvidos no perodo estudado, assim como,

    aspectos fsicos, ambientais, sociais, econmicos, poltico, culturais desse contexto. (FRAGA, 2006).

    Ao analisar o quadro de composio da mo de obra escrava nos engenhos do Recncavo da Bahia, diz Fraga que a lavoura de cana de acar, na dcada de 1870, mergulhou numa crise financeira promovida pela queda do preo e pelo aumento da concorrncia no mercado internacional, agravando-se a partir de 1850 com o fim do trfico e com as leis emancipalistas promulgadas entre 1870 e 1889. Porm, nos ltimos anos do sculo XIX, o Recncavo era a regio mais populosa da provncia. Segundo dados de sua

    pesquisa, a populao da regio do Recncavo em 1872 correspondia a 35,7% do total da populao da provncia. Nessa ocasio a Bahia possua 165.403 escravos correspondendo a 12,8% da populao geral, mas o nmero de escravos sofreu uma queda acentuada entre 1884 e 1887, quando a provncia passou a ter um total de 76.838 escravos.

    Com a extino do comrcio de escravos, as comunidades negras dos engenhos sofreram mudanas substanciais na sua composio tnica apresentando um quadro da mo de obra escrava de 10,2% de africanos e 65,2% de crioulos. De acordo com os dados de sua pesquisa, o nmero de trabalhadores nascidos no Brasil, juntando crioulos e mestios alcanou a marca de 90% do total da mo de obra nos engenhos. (FRAGA FILHO, 2006). A comunidade negra dos engenhos do Recncavo tinha conscincia poltica construda a partir de sua condio de escravo, alimentada pelo intercmbio de informaes sobre as

    idias abolicionistas que circulavam entre os engenhos da regio e a capital, voltada para a conquista da liberdade, do direito a terra, do fim do castigo e trabalho forado, do reconhecimento da sua fora de trabalho e do direito de utiliz-la livremente. Porm o movimento abolicionista desenvolveu-se sob conflitos e tenses entre as partes, o que se

    estendeu aps a abolio, produzindo um cenrio em que a elite e o grande produtor aucareiro se uniram em favor da manuteno da ordem, do velho sistema escravocrata, de

    privilgios antigos, e de um desenvolvimento nacional focado na civilidade europia. Enquanto que a comunidade negra defendia o fim da escravido, o reconhecimento de sua cidadania, e dos direitos conquistados enquanto escravo, e o respeito sua liberdade recm conquistada. (FRAGA FILHO, 2006).

  • 26

    A deciso de alguns libertos em retornarem ou permanecerem nos engenhos, onde viveram na condio de escravo aps a abolio teve vrios motivos. Segundo Fraga, alm dos ligados s questes de subsistncia, estavam os vinculados aos laos familiares, s atividades religiosas, ao cultivo de roas, entre outros direitos conquistados e relaes

    desenvolvidas ainda quando cativos. (FRAGA, 2006). Referindo-se cidade de So Flix, diz Fraga que no Engenho Nossa Senhora da Natividade, prximo ao rio Capivari fluente do rio

    Paraguau, pertencente famlia Tosta, o escravo Anacleto Urbano da Natividade, mediante sua atuao como curandeiro, na cura de pessoas da famlia do seu senhor e de outras de localidades prximas, vitimados pela epidemia de clera que assolara a regio em 1855, recebera de seu senhor a permisso de cultuar de forma discreta seu orix Obaluai, que deu

    origem, tempos depois da abolio, ao terreiro de candombl conhecido como o do p da caj, rvore plantada no centro do terreiro (FRAGA, 2006), consagrada no candombl, segundo nosso informante Babalorix Idelson Sales (2010) ao orix Obaluai, a quem atribudo o domnio da peste. Segundo Lus Cludio do Nascimento, em sua dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao Multidisciplinar em Estudos tnicos da Universidade Federal da Bahia, o candombl fundado por Anacleto influenciou na formao dos terreiros de candombl jeje-nag em So Flix e Cachoeira, a partir do qual se originaram vrios terreiros extintos e em funcionamento at os dias de hoje, a exemplo do terreiro fundado em Outeiro Redondo, distrito da cidade de So Flix. A Ialorix Lurdes da Conceio Souza, conhecida como D. China, bisneta de Anacleto, iniciada pelo Babalorix Nezinho do Porto, assumiu o

    terreiro fundado por Anacleto, e com a sua morte, o Babalorix Nezinho, responsvel por sua iniciao e considerado como de sua famlia, transferiu o ot (pedra de assentamento do Orix Iroco) existente no terreiro em So Flix para o seu terreiro no Porto (NASCIMENTO, 2007. p.118).

    Ao reproduzir o relato da impresso que teve da cidade So Flix o cronista viajante Moreira Pinto (apud SANTOS, 2009. p. 37-38), por ocasio de sua viagem no incio do sculo XX cidade da Cachoeira, amplia a nossa possibilidade de refletir sobre a cidade de So Flix como local para o desenvolvimento de uma cultura afro-brasileira. Diz o cronista

    que esta apesar, de suas ruas mal limpas e estreitas, apresentava um cenrio com muitos prdios novos imponentes, cinco fbricas de charutos, entre elas, destacava-se a Dannemann, com seus 400 operrios distribudos entre homens, mulheres e crianas. Nesta ocasio, as demais fbricas aqui instaladas: Costa & Penna e a B. Rodemburg empregavam a primeira

    300 e a segunda 150 pessoas. Entre esses empregados estavam: sambadores, mes e pais,

  • 27

    ogans, equdes, filhas e filhos de santo, um contingente atrado pelo trabalho e oportunidade de sobrevivncia e ascenso oferecida pela cidade. (SANTOS, 2009. p. 37-8). Um contingente que, se pensado com base na pesquisa de Fraga a qual indica 90% de ocupao da mo de obra dos engenhos, durante as trs ltimas dcadas do sculo XIX, era composta por afro-

    descendentes, distribudos entre crioulos e mestios. (FRAGA, 2006). A imprensa, no processo abolicionista, esteve do lado das elites locais e da poltica de

    progresso nacional com base na cincia e na civilidade europia, em funo de que reprimiam as manifestaes de raiz africana com publicaes que combatiam o movimento abolicionista e pregavam a anti-africanizao da sociedade. (SANTOS, 2009. p.39). Na virada do sculo XIX para o XX a Igreja Catlica, recm destituda pelas leis republicanas do monoplio religioso no Brasil, junta-se s elites e imprensa para clamar pela represso policial aos candombls e a todas manifestaes de origem africana, em nome da manuteno da ordem e

    sade pblica, e hegemonia da Igreja. Expressando esta preocupao da Igreja, o padre missionrio Pedro Rocha em visita cidade de So Flix, em sua pregao dominical, investe contra o candombl, caracterizando-o como antro de misria e torpezas inominveis com suas negras e funestas feitiarias. Nessa disputa a Igreja Catlica oferecia a vida aps a morte, enquanto o candombl proporcionava uma dinmica de vida que entrelaa os diversos nveis de existncia: humanos, ancestrais e divindades, compartilhando nveis diferentes de uma mesma experincia. Este o momento em que a imprensa fundamenta-se nos sentimentos racistas defendidos pelas elites socioeconmica da Bahia e comea a difundir ideais de desqualificao do negro afro-descendente, como meio de manter o poder e o

    domnio de antes sobre este, e de burlar a lei que os igualavam aos brancos (SANTOS, 2009, p. 38-40). Para Raul Lody, o Atlntico uniu e ampliou a frica ao contexto mundial. Em especial ao Brasil onde povos e culturas desse continente colonizaram e imprimiram formas e estilos de ser e de interpretar o mundo, dando origem cultura afro-brasileira. (LODY, 2006. p 17). Na Bahia para onde foi levado um grande nmero de escravos, em especial para a regio do Recncavo para atuar nos engenhos de cana de acar, entre os sculos XVI e XIX, desenvolveu-se aspectos relevantes desta cultura atravs da gastronomia, da religiosidade, do

    modo de vestir e de falar. Em So Flix, onde segundo a obra do professor Paulo Fraga, foi fundado o terreiro de candombl do p da caj, no Engenho da Natividade, como retribuio a atuao do escravo Anacleto no combate a epidemia de clera que assolara a regio, a partir do qual nos baseamos para pensar na origem do candombl nessa localidade, essa prtica se

    mantm atravs de outros terreiros que ao longo do tempo foram surgindo, a exemplo do

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    terreiro do Il Ax Ogunj, estudado nesse trabalho, e de outros que tivemos conhecimento da existncia e da extino no desenvolvimento da pesquisa, refletindo a resistncia e o dinamismo da cultura afro-brasileira. Hoje passados mais de cinco sculos da chegada dos portugueses regio do Recncavo baiano, a cidade de So Flix reflete uma histria de progresso estagnada pela integrao rodoviria e pela origem de novos centros urbanos e comerciais. Os sobrados bem

    cuidados e as fbricas de charutos em pleno funcionamento entre final do sculo XIX e incio do XX, palco de vivncias culturais, observados pelo viajante Moreira Pinto, foram extintas, os prdios que os abrigavam foram desgastados pelo tempo e pelas cheias do Rio Paraguau, restando apenas, entre as runas, o prdio onde funcionava a fbrica de charutos Dannemman,

    onde hoje abriga um centro cultural mantido pela fundao com o mesmo nome. Centro no qual mantida uma pequena produo de charutos, e realizada a cada dois anos a bienal de

    artes do Recncavo. O local onde funcionava a Fbrica de Charutos Costa & Penna, observada tambm

    pelo viajante acima citado, abriga hoje o terminal rodovirio da cidade e uma praa de alimentao envolta da qual comerciante negociam seus produtos nos dias de feira.

    A cidade de So Flix tem uma populao, segundo os dados do senso realizado em 2010 divulgados pelo IBGE, de 14.099 habitantes. Infelizmente at o momento de nossa pesquisa no foram divulgados resultados da aferio tnico-cultural indicando percentual de afro-descendentes do total dessa populao, o que certamente possibilitaria uma anlise mais precisa da proporo do desenvolvimento, e at mesmo, da predominncia da cultura afro-

    brasileira Sobre a cosmoviso dos terreiros no Recncavo da Bahia, assinalamos que

    o sistema religioso formado por um conjunto de smbolos sagrados, tecidos numa espcie de todo ordenado. Para os envolvidos nesse sistema, ele parece mediar um conhecimento especfico das condies essenciais para a vida. No entanto, o estilo de vida e a realidade fundamental que os smbolos sagrados formulam variam de cultura para cultura. No atual

    contexto, os aspectos morais e estticos de uma cultura, os elementos valorativos, foram designados na expresso ethos, enquanto que os aspectos cognitivos e existenciais foram

    expressos pelo termo viso de mundo. O ethos de um de um povo o tom, o carter, a qualidade de sua vida, seu estilo moral e esttico. A viso de mundo de um povo o quadro que ele elabora das coisas como elas fossem uma simples realidade, seu conceito da natureza de si mesmo, da sociedade, quadro no qual esto contidas suas idias mais abrangentes sobre

    a ordem. (GEERTZ, 2008. p.93-5).

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    Religio um padro universal, uma vez que no se tem conhecimento de uma sociedade que no tenha suas crenas e realize rituais, de grande variedade de comportamento, variedade essa que no est associada amplitude das instituies religiosas, mas cosmoviso adotada pelo povo; variedade de doutrinas, de mitos e de rituais. um sistema de smbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes, duradouras disposies e motivaes nos homens atravs da formulao de conceitos de uma ordem de existncia

    geral, vestindo essas concepes com tal aura de fatualidade que as disposies e motivaes parecem singularmente reais (GEERTZ. 2008. p. 67). Em parte a religio uma tentativa implcita e diretamente sentida de conservar a proviso de significados gerais em torno dos quais, cada indivduo interpreta sua experincia e organiza sua conduta. (GEERTZ, 2008. p. 93). Durkhein, ao estudar cientificamente o fenmeno religioso, diz ser este um fato social caracterizado pela doutrina, ritos e pela classificao das coisas entre sagrado e profano,

    despertando o observador atravs das crenas e dos ritos. As crenas e os ritos so categorias fundamentais para o fenmeno religioso e so entendidos como estados de opinies que requerem representaes, e os ritos, como tipos determinados de ao. Entre esses elementos classificatrios encontra-se a diferena que separa o pensamento do movimento. Da classificao entre sagrado e profano, o sagrado no se entende apenas pelos deuses ou espritos, mas tambm por uma rvore, uma pedra, uma fonte ou qualquer coisa que dentro de uma cultura simbolize a personificao de uma divindade. E o profano por excluso, tudo que no est dentro do contexto do sagrado. O carter distintivo do pensamento religioso no d conta da complexidade deste fenmeno, uma vez que a magia constitui-se tambm de

    crenas e de ritos. Neste sentido, a religio caracteriza-se pelo seu aspecto associativo, enquanto a magia caracteriza-se pelo individualismo. (MELLO, l987, p.392-93-94). A histria da religio afro-brasileira, como sugere Reginaldo Prandi, divide-se em trs fases: a primeira corresponde sincretizao de manifestaes de raiz africana com o catolicismo, a exemplo do candombl; a segunda, a do branqueamento, com o surgimento da umbanda; e a terceira, a da adoo do candombl, antes inserido no contexto das religies

    tnicas voltadas para a preservao do patrimnio cultural dos ex-escravos, por indivduos de diversas origens tnico-raciais. (PRANDI, 1997, p. 93). No Brasil as manifestaes religiosas de origem africana se afirmaram sob diferentes denominaes em diferentes localidades: na Bahia, candombl, em Alagoas e Pernambuco, xang, no Maranho e Par, tambor de mina, no Rio Grande do Sul, batuque, e macumba no Rio de Janeiro. Na Bahia, constituram-se tambm os candombls de Caboclo e de Egum.

    Essas manifestaes se formaram parcialmente em solo brasileiro, uma vez que muitos dos

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    seus aspectos e elementos de origem africana se perderam com a escravido. Sua formao em solo brasileiro possibilitou aos negros reproduzir aqui, mesmo que simbolicamente, rituais que reproduziam a famlia, a tribo, o meio ambiente, dando origem ao que conhecemos como terreiros de candombl e famlias de santo. (PRANDI, 1997, p. 96-7). Segundo Juana Elbein, o terreiro compreende um espao onde se praticam os cultos da religio tradicional africana, com diversas casas-templos (Il-Orix), onde so assentados os Orixs. Cada casa contm um assento consagrado a um Orix com objetos e elementos que expressam sua natureza simblica. Em cada assento encontra-se uma quartinha (vaso de cermica), e um assento de Exu, orix que acompanha todas as entidades sobrenaturais (SANTOS, 2008, p.34-5).

    Do culto s divindades realizado na frica pouco foi reproduzido no Brasil. No candombl da Bahia, os antepassados familiares cultuados em suas aldeias de origem

    africana foram substitudos pelos orixs, divindades ligadas s foras da natureza, manipulao mgica do mundo e identidade pessoal. (PRANDI, 1997, p. 96). As aldeias foram reconstrudas com base no territrio nacional, lingstico e de diversas tradies africanas, dando origem s conhecidas naes de candombl: Angola e Congo, Jeje ligada tradio Ew, e nao Queto (conhecida pelos franceses como nao Nag) e Ijex ligado tradio iorubana. Essas naes, por sua vez, distinguem-se tanto pela lngua quanto pelos cnticos, modos de tocar, instrumentos e indumentrias litrgicas, pelas caractersticas rituais e, s vezes, pelos nomes das divindades. Segundo Bastide (2001, p.29), os iorubanos dominaram a influncia sobre os bantos e daomeanos, atravs de seus deuses, da estrutura

    cerimonial e de sua metafsica (BASTIDE, 2001, p. 29). Na Bahia a nao que mais se expandiu e se desenvolveu dentro dos terreiros de

    candombl da capital foi a nao Queto, dentre esses se encontram o terreiro da Casa Branca, do Alaketu, do Ax Apo Afonj, e o terreiro do Gantois. Eles ganharam notoriedade e se tornaram mais conhecidos a partir da produo literria voltada para os estudos das religies de raiz africana que se desenvolveram desde o incio do sculo XX a partir de Nina Rodrigues

    e se estendem at hoje com os contemporneos pesquisadores, e da adeso de artistas famosos que o utilizaram como tema de msicas, e assumiram publicamente as suas prticas religiosas

    de raiz africanas. A nao Queto influenciou tambm outras naes que surgiram e adotou o modelo

    ritual ioruba, a exemplo da nao de Angola de origem banto, nao na qual fundamental o culto aos caboclos. Os Caboclos, que so entidades brasileiras ganharam lugar no panteo dos

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    orixs africanos, constituindo-se num modelo original de construo afro-brasileira (LODY, 2006, p. 62). Ao referir-se sobre a questo das naes de origem africana atribudas aos negros aqui no Brasil, Nicolau Pars chama ateno para o fato de que os navios traziam indivduos de

    diversas regies da frica e ao serem especificados nos recibos e documentos de compra prevalecia s informaes registradas pelos dominantes no processo escravista, e que, muitas

    vezes, ao ser lotado numa nao diferente, o negro acabava por suprimir seus aspectos culturais em funo da imposio da maioria dos indivduos lotados em determinada nao. (ver referncia bibliogrfica). O candombl, segundo Roger Bastide (2001), constitui-se em um sistema harmonioso e coerente de representaes coletivas e de gestos rituais, com uma filosofia prpria de viso cosmolgica e psicolgica, que demonstra o aspecto culto do pensamento africano. Embora

    de raiz africana, o candombl uma religio aberta para qualquer indivduo, de qualquer origem tnica. O seu ingresso se d mediante o chamado dos deuses, seguido de um paulatino aprendizado dos mistrios da religio por meio de uma srie de rituais e cerimnias especializadas para o processo: jogo de bzios, lavagem da cabea, lavagem das contas, recolhimento, raspagem, catulagem e sada. No processo de conduo do conhecimento do candombl preponderante e determinante a noo de valor do tempo empreendida principalmente pelos sacerdotes. Estes sacerdotes, de acordo com Bastide, eram queles que conquistaram atravs do tempo o aprendizado e domnio do saber de determinado culto ou ritual do candombl: babalojs, sacerdote que preside o culto aos eguns; babalossain, sacerdote que domina o saber das folhas; babalas, sacerdote que domina o conhecimento do If e do jogo de bzios, e os babalorixs ou ialorixs (pais ou mes de santo) sacerdotes responsveis em iniciar, formar e guiar dentro dos preceitos do candombl os seus filhos e filhas de santo, viabilizando a socializao da pessoa e do seu orix no grupo. (BASTIDE, 2001, p.24-5).

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    5. O TERREIRO DE CANDOMBL IL AX OGUNJ: Documentao Aplicada ao Objeto de Estudo

    5.1 MAPA DA CIDADE DE SO FLIX

    Mapa de Cachoeira e So Flix. Fonte: Governo do Estado da Bahia, Inventrio de Proteo do Acervo Cultural da Bahia, 2. ed. v.1, pl. III, Salvador, 1997.

    5.2 FICHA DE IDENTIFICAO DO TERREIRO

    a) Nome do Terreiro: Il Ax Ogunj b) Nao: Queto c) Ano de fundao: 1986. d) Primeira sede: Rua do Tero,s/n - Cidade: Cachoeira Estado: Bahia

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    e) Sede desde 1990: Rua Jonival Lucas, s/n Bairro: Cento e Trinta e Cinco Cidade: So Flix Estado: Bahia CEP: 44.360-000 Tel. 075 3438-3378 Fundadores: Babalorix Sr Antonio Carlos (falecido) e Sr. Idelson Sales (atual lder do terreiro) (1965) f) Babalorix de 1990 - atual: Sr. Idelson Sales. g) Corpo Hierrquico do Terreiro > D. Olga, Ialax (me do ax), principal equde do terreiro, envolve-se em rituais especficos para o cargo que ocupa: na formao das iniciantes ao cargo, na organizao e realizao das festas, conduzindo durante estas o principal orix cultuado no terreiro, Ogum. Na ordem de realizao do xir esta se coloca logo aps o babalorix, sua

    indumentria um vestido de gala, geralmente longo, destaca-se das dos demais integrantes que tradicionalmente usam trajes de baianas. > D. Elcilma, Iakeker (me pequena), equde que se coloca hierarquicamente logo abaixo da Ialax, com funo de auxiliar o orix na ausncia da Ialax, assim como, no ritual de despacho de Exu. > D. Raquel, Iaefun, filha de santo do terreiro, responsvel pela pintura dos corpos nos rituais de catulagem, fora do contexto deste cargo, ela que na companhia do babalorix idealiza e confecciona as indumentrias de uso dos orixs no terreiro. > Sr. George, Alab (ogan responsvel pelos instrumentos e execuo dos toques). >Sr. Arley, Alab, ogan tambm responsvel pelos instrumentos e execuo dos toques >Sr. Anderson, Pejigan (ogan responsvel pelo zelo do peji (local destinado ao jogo dos bzios, decorado com insgnias e smbolos dos orixs). > Sr. Fbio, Axogun (ogan responsvel pelo abate dos animais no ritual de matana).

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    5.3 ORIGEM E ARQUITETURA DO TERREIRO

    Figura 2 - Entrada do terreiro il Ax Ogunj. Fonte: Autor

    O Terreiro de Candombl Il Ax Ogunj, da nao Queto, tem como lder o Babalorix Idelson da Conceio Sales e ocupa um espao na cidade de So Flix na rua Jonival Lucas s/n, que fica num bairro conhecido como Cento e Trinta e Cinco, s margens da

    via que contorna o Rio Paraguau, entre as pontes D. Pedro II e Pedra do Cavalo, na BR 101. Foi nesse espao que a quarenta e seis anos atrs a Ialorix Maria Lameu fundou o terreiro de Candombl Iemanj DAcossid Iaqueci, da nao Queto, a permanecendo at o ano de 1989, quando se mudou para a cidade de Cruz das Almas, e vendeu o referido espao para o Babalorix Idelson.

    A rea construda do terreiro corresponde 135m, com 9m de frente e 15m de comprimento, e a frente direcionada para o leito do Rio Paraguau e para o nascer do sol. A casa que abriga o candombl (Figura 1) tem telhado com duas cadas de escoamento de gua, direcionadas para os lados, com beiras apoiadas sobre os pontos mais baixos das paredes, e ao centro cumeeira elevada e uma fachada simples acompanhando esse traado. Com paredes

    pintadas na cor branca, a casa possui dois acessos s suas dependncias: um diretamente ao barraco atravs de uma porta com bandeira em forma de arco, confeccionada em madeira pintada com tinta a leo na cor azul, decorada com quadrados vazados preenchidos com vidros

    transparentes, posicionada no centro das dimenses do mesmo, ladeada por duas janelas do

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    mesmo estilo, e outro acesso por um porto de ferro fixado numa rea de circulao, utilizada rotineiramente como meio de acesso aos demais cmodos da casa, entre o barraco e o assento dos demais orixs, j que o de Exu encontra-se do lado de fora direita da porta de entrada para o barraco.

    De acordo com as informaes prestadas pelo Babalorix Idelson Sales, o seu terreiro

    de candombl foi fundado na rua do Tero, n.o 2, no bairro do Caquende na cidade de Cachoeira, pelo Sr. Antonio Carlos (falecido), no ano de l980, ali permanecendo at 1989, quando uma grande enchente do Rio Paraguau destruiu a casa, fazendo com que, a partir de ento, comeasse a pensar na possibilidade de mudar-se para a cidade de So Flix. Nessa

    ocasio, estando presente a uma festa no terreiro de D. Maria, tomou conhecimento do seu desejo de vender o espao, passando desde ento a entrar no processo de negociao que se concretizou no ano de 1991 quando este assentou o ax do seu candombl, instalando-se definitivamente no atual local.

    Aps fechado o acordo de compra do imvel, segundo relatado por nosso informante, passou para a fase de desenterramento dos antigos para enterramento nos novos locais do ax, processo desenvolvido individualmente por cada um dos respectivos pai e me de santo, o Sr. Idelson Sales e D. Maria Lameu, cada um respeitando seus preceitos. Segundo o pai de santo

    Idelson, no seu caso, depois de jogados os bzios para saber o que esses falavam sobre a proposta de compra do espao para a instalao do seu terreiro e da consulta sobre localizao

    dos assentos e das rvores a serem plantadas nele, foi feita uma limpeza na casa num ritual de despacho de Eguns e Exu que envolveu folhas e animais, visando preparar o espao para a implantao do ax trazido do antigo terreiro destrudo pela enchente.

    O ax a fora que assegura a existncia dinmica, que permite o acontecer e o devir,

    o princpio que viabiliza o processo vital, transmissvel e conduzido por meios materiais, simblicos e acumulveis. Adquirido pela introjeo e pelo contato, o ax pode ser transmitido a objetos e seres humanos, no terreiro entende-se que todos os objetos e as pessoas iniciadas devam receb-lo, acumul-lo, mant-lo, desenvolv-lo e renov-lo, mediante rituais especficos, a exemplo do sacrifcio de animais, ou matana, atravs dos quais pode diminuir ou aumentar. O ax plantado no terreiro e transmitido a todos os

    elementos que o compe. (SANTOS, 2008, p. 39-40). O Babalorix Idelson Sales, ao falar sobre o processo de compra do espao nas mos

    da Ialorix Maria Lameu, ressalta a satisfao de ambos no empreendimento que fizeram: a dele, em adquirir um espao, onde j se cultuava Iemanj, a quem no candombl atribuda maternidade de Ogum, orix para o qual passou o domnio do espao, das mos de algum de

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    sua estima e considerao, e em possibilitar neste processo o prosseguimento da prtica da religio afro-brasileira neste local. Enquanto que para Dona Maria Lameu, relata o babalorix, a satisfao expressada estava na oportunidade que surgira de realizar um velho desejo de morar numa roa e l instalar seu terreiro de candombl, o que s seria possvel com venda do

    espao em So Flix, assim como, em estar passando o espao onde construiu sua histria religiosa para algum do mesmo credo, o que assegurava sua continuidade naquele local.

    Adquirido o espao, este passou por trs reformas em funo da sua ampliao e melhores condies de atendimentos para atingir o propsito de seu lder de manter liderando uma comunidade religiosa afro-brasileira. A primeira reforma consistiu na construo dos novos assentos dos orixs, a serem ali cultuados, e da plantao de algumas plantas

    relacionadas a eles; a segunda, a ampliao e transferncia do barraco para uma extenso mais frente, e a terceira, e a grande reforma, ainda em andamento no momento desta

    pesquisa, que prev a ampliao do barraco, desta vez, para uma extenso do terreno ao lado, com porta de acesso direto da rua para o barraco.

    O barraco, no seu interior, tem formato retangular com o teto decorado com fitas brancas pendentes, paredes brancas e um pilar no centro onde est enterrado o ax do candombl. As cadeiras de assento para visitantes, apreciadores e adeptos, esto distribudas entre as laterais separadas um lado para os homens e o outro para as mulheres. Encostado parede de frente, entrada encontra-se o trono do babalorix e o assento dos atabaques, nas paredes esto expostas algumas telas figurando alguns orixs e um quadro com uma foto da falecida me de santo do Babalorix Idelson, D. Perina.

    A paisagem do entorno do terreiro de uma beleza impressionante, logo em frente avistam-se as correntezas do Rio Paraguau, entrecortando as rochas em direo ao mar,

    seguidas de grandes montanhas encobertas pelo verde da vegetao numa extenso da Cidade da Cachoeira. De um dos lados, a poucos metros de distncia, avista-se a monumental ponte e barragem de Pedra do Cavalo, do outro, o prolongamento do rio e uma parte da cidade de So Flix. Ao fundo avistam-se montanhas rochosas e na floresta predominam plantas de

    juremeiras que brotam do solo e cingem de branco o verde no perodo de florao. A comunidade do entorno do terreiro, de acordo com o nosso informante e o que

    observamos na ocasio de nossa pesquisa, aparenta situar-se na classe baixa, com a maioria das casas modestas, sem garagem, com uma porta e duas janelas. Adolescentes circulam pelas ruas com fardas de escolas pblicas e das pessoas com as quais cruzamos aparentando serem humildes sem ostentao nem demonstrao aparente que conote o contrario.

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    5.4 ARROLAMENTO DOS OBJETOS DE CULTO

    - OBJETOS DO ASSENTAMENTO DE OGUM (Figura 1) Ferramentas e outros objetos de ferro confeccionados pela tcnica de fundio

    representam o orix Ogum, constituindo-se num conjunto de 82 objetos, adquiridos no comrcio local, preparados previamente por rituais especficos e assentados em nome do

    Orix Ogum, em suporte de cimento e concreto erguido do lado de fora na entrada do barraco, em forma de meio crculo, com altura de 1,0m. Dentre os objetos assentados, destaca-se pelas dimenses e trato artstico, uma escultura em ferro fundido representando Ogum, adquirida na Feira de So Joaquim (Salvador). sua volta encontra-se uma variedade de instrumentos e ferramentas utilizados em diversos ofcios, a exemplo entre outros: da carpintaria, da agricultura, da medicina e do artesanato.

    Figura 1 - Assentamento de Ogum terreiro Il Ax Ogunj. Fonte: Autor

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    Tabela: Arrolamento do assentamento de Ogum Item Quantidade Descrio do Item

    01 01 Escultura em ferro representando Ogum / altura 85cm.

    02 03 Lminas de serrote

    03 03 Enxada/ ferramenta utilizada na agricultura/ tamanho natural

    04 05 Lamina de faca/ tamanho variados

    05 07 Lmina de faco

    06 07 Dogues/ talhadeira/tamanho variados

    07 05 Lmina de foice/ tamanho natural

    08 02 Correntes/ dimenso 65 cm

    09 05 Alicates de uso odontolgico / tamanho natural

    10 03 Martelos com cabo em madeira/tamanho 30 cm

    11 02 Martelos de ferro/tamanho 15 cm

    12 02 Formas em ferro p/sapateiro

    13 02 Chaves inglesa/tamanho natural

    14 03 Laminas de navalha de barbeiro

    15 01 Torno de ferro p/chaveiro

    16 03 Lamina de bisturi

    17 02 Picaretas c/ cabo de madeira p/escavao

    18 03 Lmina de machado

    19 02 Lminas de serrote

    20 03 Ps para escavao

    21 03 Pontas de lana

    22 02 Alicates p/ eletricista

    23 02 Brocas p/ furadeira

    24 01 Pedao de trilho de linha de trem

    25 02 Chaves de fenda tamanhos variados

    26 02 Pesos para balana

    27 02 Molas de amortecedor

    28 01 Chave de roda de carro

    29 02 Chaves p/ fechadura de portas tamanhos variados

    30 02 Barras de ferro retangular

    31 02 Pedaos de ferros s/forma definida

    O Sr. Idelson da Conceio Sales nasceu na cidade da Cachoeira e desde pequeno convive com o candombl praticado em sua famlia por sua av D. Joana, feita no terreiro do

    finado Otlio, no Rio Cachoeirinha na cidade de Muritiba. Filho de Ogum, Idelson diz ser bisneto no ax do Sr. Z do Vapor (assim conhecido por ter sido por muitos anos tripulante do

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    vapor que fazia a linha Cachoeira/Salvador) e ser iniciado quando tinha 8 anos, raspado e catulado no terreiro Ilgi na Boa Vista distrito de Cachoeira. Aos 18 anos recebeu o dec, espcie de ttulo concedido aps tempo determinado de aprendizado no candombl ao filho ou filha de santo que ascende categoria pai ou me de santo, o que permite a fundao de um

    terreiro. Assim, Idelson fundou seu terreiro na companhia do Sr. Antonio Carlos, tambm babalorix.

    O Babalorix Idelson recebe ou incorpora por meio dos ritos, alm de Ogum, orix dono de sua cabea, Oxossi, seu junt, orix rei da nao africana Queto, cultuado obrigatoriamente nos terreiros desta nao como forma de reverenciar o rei desta nao na qual fundamentam-se os rituais do terreiro do referido babalorix. Recebe tambm os Ers

    orixs meninos, e o caboclo Tupinamb como forma de reverenciar essa entidade da cultura indgena brasileira que se misturou ao panteo dos deuses africanos. Conforme nosso

    informante, nos casos em que o candombl da nao de Queto cultua tambm os caboclos, trata-se de uma nao keto no pura, ou seja, o fato de cultuar os caboclos faz com que a nao perca a pureza ligada ao culto exclusivo dos deuses de origem africana. Completando a informao sobre a diferena entre o keto puro e o que envolve os caboclos brasileiros, diz nosso informante que a diferena bsica est na ritualizao dos caboclos por parte dos no puros, e a realizao do pad de Exu por parte dos puros, ou seja, o considerado puro realiza o pad de Exu e no cultua os caboclos, enquanto que o no puro cultua os caboclos e despacha Exu num ritual mais simples que o pad.

    O orix que nomina o terreiro confirmado como de frente da cabea do babalorix, e

    neste caso Ogum, considerado um orix guerreiro e trabalhador do campo, tem como odes ou smbolos representantes desse seu carter: a espada, a foice, a enxada, o faco, o machado,

    entre outros objetos utilizados no trabalho do campo somando um total de vinte e uma. O elemento da natureza que lhe atribudo como smbolo o ferro. Sua indumentria composta por um vesturio: bombacha na cor azul e dois ojs tiras de panos brancos passados pelo tronco em forma de X, preso por um outro na cor azul envolto pela caixa torcica

    finalizando com um lao nas costas, mais um pano na cor azul utilizado como turbante, e como acessrios coroa e espada em flandres. Os passos de sua dana reproduzem gestos de

    batalhas e da lida com a terra. Dentre os animais sacrificados em seu nome esto o bode e o galo, seu assentamento no terreiro est localizado na parte externa do lado esquerdo da porta de entrada para o barraco, num suporte de cimento e areia com meio metro de altura, em formato de meio crculo com raio de meio metro preso parede. Sobre ele esto expostas as

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    vinte e uma ferramentas de Ogum, em tamanho natural, confeccionadas em ferro fundido, afixadas sobre o cimento fresco.

    D. Perina, segundo nos informou o Sr. Idelson, era ialorix do terreiro Ilgi, na Boa Vista, distrito de Cachoeira, e integrante da Irmandade da Boa Morte. Proprietria de uma

    barraca na feira da cidade, mantinha relaes sociais com grande parte da populao cachoeirana e adjacncias, atravs do comrcio de carnes salgadas num momento em que predominava a venda desses produtos nas feiras e no nos modernos supermercados. Mulher de estatura de mdia a alta, cor negra, voz encorpada e rouca, expressava sabedoria, disciplina e determinao em sua conduta religiosa, como me de santo, orientadora e formadora de filhos e filhas de santo, cobrava desses disciplina e respeito para com o compromisso

    assumido por eles de desenvolvimento dentro do seu candombl. O universo religioso da comunidade diversificado entre os adeptos do catolicismo,

    os evanglicos e os praticantes da religio afro-brasileira, o candombl. Na ocasio de nossa pesquisa de campo, observamos, na extenso entre a Parquia Matriz de Deus Menino em frente Ponte D. Pedro II e o terreiro de candombl Il Ax Ogunj, um total de cinco terreiros de candombl e sete igrejas evanglicas, inclusive uma fundada no local onde antes existia o antigo e famoso terreiro de candombl da finada Ialorix Vanju.

    Segundo nosso informante, o candombl passa por uma crise no sentido de sua expanso e preservao cultural, que se agrava com o fato de muitos pais no valorizarem a religio que eles herdaram dos seus ancestrais e praticam, mas incentivam seus filhos a no darem seguimento a essas prticas, como se essas fossem empecilho para o sucesso de suas

    vidas. Ao falar sobre a casa onde antes funcionava o candombl da Ialorix Vanj, falecida no incio desta dcada. Ele diz que naquele caso foi diferente, D. Vanj treinou a sua filha biolgica como equde para dar continuidade ao seu trabalho com o candombl aps sua morte e a filha se envolveu com um homem evanglico, transformando a casa em templo cristo.

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    5.5 UM RITUAL DE MATANA NAS FESTIVIDADES DEDICADAS A OXOSSI

    Trs so os perodos festivos do terreiro Il Ax Ogunj durante o ano: o primeiro, em janeiro dedicado a Ogum; o segundo, em agosto, dedicado a Obaluai; e o terceiro, a Oxossi. Tivemos a permisso do babalorix para participarmos como observadores da cerimnias deste ltimo, a qual descrevemos a seguir.

    Em 28 de outubro de 2010, participamos do ritual denominado de matana, que marca o incio das festividades do terreiro dedicadas a Oxossi, ocasio em que so sacrificados os animais que vo alimentar os orixs em seus assentos, e a comunidade que participar da festa de Oxossi a realizar-se no dia 31 de outubro, trs dias aps a matana. Nessa ocasio

    realizada tambm a obrigao do santo do Ogan Fabio, Oxum-mar, e a confirmao do Ogan Paulo, ambos recolhidos no dia da matana e apresentados no dia da festa de Oxossi.

    No dia da realizao do ritual de matana, chegamos ao terreiro s 19 horas, quando fomos recebidos pelo Babalorix Idelson responsvel pelo terreiro, que nos encaminhou para uma sala prxima cozinha na parte do terreiro referente a sua residncia, a partir de onde comeamos a fazer nossas observaes e permanecemos at sermos chamados para o barraco no momento do incio do ritual. O terreiro estava tranqilo, com pouca movimentao, nele encontramos um pequeno nmero de filhos, filhas, ogans e equdes, envolvidos no referido ritual, todos vestidos de branco e ocupados com tarefas domsticas, como varrer e preparar o terreiro para a realizao da matana. Entre essas pessoas so distribudas as tarefas do ritual, de acordo com a posio hierrquica de cada um no terreiro de candombl: os ogans mais

    novos seguram os animais, enquanto que os mais velhos se encarregam em mat-los com instrumentos de corte, como facas (ob), faces e machados, especficos e previamente consagrados para esse fim. Dentre esses ogans h aqueles encarregados em tocar os atabaques durante o ritual.

    As equees, iabasss, filhos e filhas de santo se encarregam em limpar, cozinhar e lavar, tarefas que auxiliam na realizao do ritual. Na cozinha as encontramos ocupadas com a

    preparao da janta oferecida no intervalo do ritual, e com o aquecimento de gua para a depenao de aves e outros animais sacrificados: D. Lindaura (a mais velha de todas), filha de santo da casa confirmada ao orix Oxum, moradora na cidade da Cachoeira; D. Jaciara tambm filha de santo da casa, confirmada a Nan, moradora na cidade de So Flix; Gessira, filha de santo da casa confirmada a Oxum, moradora na cidade de So Flix; e Solange, tambm filha de santo da casa confirmada a Oxum e moradora em So Flix.

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    O ritual no aberto ao pblico, no se trata de uma festa; dele participa um pequeno nmero de pessoas ligadas e com funo definida no terreiro de candombl, e alguns convidados como ns, que mediante as relaes de amizade e da freqncia ocasional ao terreiro, recebemos a permisso de observ-lo em funo do nosso trabalho acadmico.

    Segundo Roger Bastide, o sacrifcio, que aqui costumamos chamar de matana, um ritual realizado perante um pequeno nmero de pessoas, pelo axogum, ou pelo babalorix ou a

    ialorix, consistindo no sacrifcio de um animal que varia em relao divindade a ser ofertado, entre o nmero de patas, o sexo e entre animais de pena e de couro. Variando tambm com relao ao modo de ser sacrificado, entre golpes na nuca, cortes de cabeas e membros, e sangramento da cartida, e com relao aos instrumentos para isso utilizados

    entre facas, machados, pedaos de paus. (BASTIDE, 2001, p. 32). Voltando ao relato do observado, com o passar do tempo outras pessoas foram

    chegando ao terreiro para participarem do ritual e, na medida do possvel, fomos abordando-as para obter informao sobre sua participao no terreiro. Dentre essas pessoas constatamos: Marcos, filho de santo confirmado ao orix Oxaguian; Josenildo filho de santo confirmado Oxum; Andr Luis, oito anos de idade, residente ao lado do terreiro, suspenso como ogan da casa; Rmulo, ogan da casa h dez anos, confirmado como ogan de Iemanj e Xang; Raquel, freqentadora da casa h 20 anos por intermdio de sua me biolgica filha de Obaluai, feita h 14 anos como filha de Iemanj. Raquel encontra-se apta, pelo tempo de feita no santo, a receber o dec, ttulo que lhe eleva ao status de Ialorix, o que segundo ela ainda no ocorreu por no se achar preparada para assumir tamanha responsabilidade de iniciar e formar seus

    prprios filhos e, consequentemente, fundar o seu terreiro de candombl. Alm desses, Valnei, ogan de Ogum do terreiro Labanecum Filho, da Ialorix Zuleide,

    em Cachoeira, diz ser amigo do Babalorix Idelson, freqentador h muito tempo das festas e obrigao do seu terreiro. Arlei, residente no entorno ou na vizinhana do terreiro, 24 anos de idade, h 18 anos suspenso como ogan do terreiro para Iemanj e Oxossi. Pelo tempo que tem de suspenso ascendeu ao cargo de axogan na hierarquia do candombl, uma espcie de lder,

    orientador, disciplinador dos ogans, presente nos principais rituais do terreiro, desempenhando, no momento de nossa abordagem, a funo de preparar os atabaques para o

    ritual conhecido como matana a ser desenvolvido a seguir no terreiro. Eliomar Ferreira, h 36 anos, morador na cidade da Cachoeira, filho de santo do terreiro confirmado ao orix Oxossi, filho biolgico da Sr. Vera Lucia Ferreira, tambm moradora da cidade de Cachoeira, equde do terreiro confirmada ao orix Ogum. Alm de sua me biolgica, sua irm Edilene

    Ferreira tambm integrante do terreiro como filha de santo confirmada Ew.