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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL 1 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 SCINTILLA

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

1Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009

SCINTILLA

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SERVUS GIEBEN

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

3Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009

SCINTILLA REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 1-179.jul./dez. 2009

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSBSociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR2009

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Copyright © 2004 by autoresQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

FAE – Centro UniversitárioIFSB – Instituto de Filosofi a São BoaventuraSBFM – Sociedade Brasileira de Filosofi a MedievalO IFSB é mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected]

Reitor: Nelson José HillesheimPró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendeDiretor geral: Jorge SiarcosPró-reitor administrativo: Regis Ferreira NegrãoDiretor do Instituto de Filosofi a São Boaventura: Vicente KellerEditor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorial)Dr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJDr. Orlando Bernardi, IFANDr. Luiz Alberto de Boni, PUCRSDr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFGDr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSCDr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia)Dr. Ulrich Steiner, FFSBDr. Jaime Spengler, FFSBDr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorialDr. Vagner Sassi, FFSBDr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEGDra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJRDr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PRDr. Joel Alves de Souza, UFPRDr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ

Revisão e editoração: Equipe internaDiagramação: Sheila RoqueCapa: Luzia Sanches

Catalogação na fonteScintilla – revista de fi losofi a e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofi a São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofi a Medieval, Centro Universitário Franciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofi a - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos. CDD (20. ed.) 105 189 189.5

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SUMÁRIO

EDITORIAL ......................................................................... 7Enio Paulo Giachini

ARTIGOS ............................................................................. 9Grosseteste e ciência universal ........................................... 11

Servus Gieben

“A luz deriva do bem e é imagem da bondade”: A metafísica

da luz do Pseudo-Dionísio Areopagita na concepção artística do abade Suger de Saint-Denis............................. 39

Ricardo da Costa

La metafísica de la luz como punto de partida en la fi losofía política de Alberto Magno ................................... 53

Prof. Dr. José Ricardo Pierpauli

As imagens da luz e do fogo nas obras de Meister Eckhart e Mechtild de Magdeburg ................................................... 77

Matteo Raschietti

A causa fi nal do poder do principans no Defensor da paz de Mar-sílio de Pádua ................................................................... 91

José Antônio de C. R. de SOUZA

COMENTÁRIOS .................................................................. 119[Parábolas do saber e da luz] ............................................. 121

Hermógenes Harada

Homenagem e tributo de um leigo a Hermógenes Harada ......................................................... 129

Gilvan Fogel

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Testemunho pessoal sobre Frei Hermógenes Harada, OFM. ................................................................ 141

Dom João Mamede Filho, OFM Conv

TRADUÇÕES .......................................................................... 147Da luz ou do começo das formas ...................................... 149

Roberto Grosseteste

[Gradações da luz] ............................................................ 159Nicolau de Cusa

Ensaio de uma teoria das cores [extratos) .......................... 165J. W. Goethe

RESENHAS ............................................................................. 173Al-Farabi: De scientiis ........................................................175

Prof. Dr. Jakob Hans Josef Schneider

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

7Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009

EDITORIAL

Enio Paulo Giachini

O fenômeno da luz foi um intenso ponto de convergência da pesquisa, do interesse intelectual e de vida medieval. As partições do enfoque sobre esse fenômeno, tais como luz física, espiritual, alegórica etc., devem-se a uma visão fragmentária e setorizada dos fenômenos, própria da era moderna e de nossos tempos. Tampouco nos ajudaria nesse problema afi rmar que os medievais tinham um enfoque unitário do fenômeno. Importa então deter-nos em buscar atravessar, pelo questionamento, o que nós próprios compreendemos por abordagem setorizada e abordagem unitária do fenômeno da luz, limpando nosso lume visivo-intelectivo para que o fenômeno possa brilhar e mostrar-se por si próprio.

É essa proposta de refl exão que seguem os artigos e textos clássicos sobre o assunto, apresentados neste número de Scintilla. A difi culdade do tema não encontrou muitas contribuições, mas a densidade das abordagens compensa um pouco, esperamos, essa carência.

Junto com os artigos que tratam do tema, procuramos também apresentar alguns textos clássicos sobre a temática da luz e da cor. Roberto Grosseteste, Nicolau de Cusa, Goethe. Poderiam ter sido outros também, como Dionísio Areopagita, Agostino, Marcílio Fic-cino e outros ainda, mas essa lacuna se deve mais à contingência de nossa limitação.

Ao lado do clássico texto sobre o tema da luz, De luce, de Roberto Grosseteste, queremos acentuar de modo especial dois extratos de texto de Nicolau de Cusa. O grau de difi culdade para compreender esses

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SERVUS GIEBEN

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009

ENIO PAULO GIACHINI

textos nos faz pressentir, aos poucos, na medida em que nos entrega-mos à sua leitura e que vamos deixando de lado nosso saber prévio, que se trata de um fenômeno absolutamente encarnado em nosso cotidiano vivo, um fenômeno tão próximo e de abrangência tão ampla que se torna condição de possibilidade de sua própria abordagem. Como na era primitiva, o esforço intenso para produzir o fogo, que brotava de repente e iluminava a vida, a esperança, as possibilidades de vida do homem, a abordagem do tema da luz também apresenta uma difi culdade extremada, que, na possibilidade de abrir-se, inunda instantaneamente a totalidade do real.

Os autores dos artigos que tratam do tema são Servus Gieben, Ricardo da Costa, José R. Pierpauli e Matteo Rasquietti. Temos tam-bém um artigo do Prof. José Antônio de C.R. de Souza.

No vagar do avanço da revista, propomo-nos o cultivo da me-mória, re-cordação, de um personagem que mereceu inclusive a ho-menagem de um número especial de Scintilla (volume especial, 6.3), e que nos deixou em 21 de maio do presente ano, Fr. Hermógenes Harada. A ele deve essa revista, e todos nós, re-cordação, inspiração e agradecimento. Na seção de comentários, onde ele sempre escreveu, desde a criação da revista, vamos continuar, na medida do possível, expondo textos, extratos de textos, depoimentos etc. de e sobre o mesmo. Este número traz os depoimentos do Prof. Gilvan L. Fogel e de D. Fr. João Mamede Filho, OFM Conv.

Fica nossa gratidão e o desafi o de seguimento.

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9Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009

ARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOS

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11Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009

GROSSETESTE E CIÊNCIAUNIVERSAL

Servus Gieben*

Na manhã do 7º centenário da morte de Grosseteste, meu profes-sor de filosofia franciscana do Colégio Internacional St. Lawrence deBrindisi em Roma, Hadrijan Borak1 , depois da aula, me falou que otópico da luz em Grosseteste poderia ser tomado como tema de pes-quisa de uma tese doutoral. Mas seguramente eu não podia imaginar,na época, que os ensinamentos desse “escolástico e bispo” medievaliriam fascinar-me por toda a vida. Mas de fato, minha tese doutoralem 1953 foi realmente sobre De metaphysica lucis apud Robertum

Grosseteste.

O que vou expor a vocês nesse escrito é a visão integral da luz emGrosseteste como a chave para resolver e conectar tanto as questõesteológicas, pastorais e filosóficas quanto as científicas. À primeira vis-ta, isso pode parecer um tanto abstruso, sobretudo para aquelas pes-soas que se habituaram a uma especialização cada vez maior e apenasconseguem sobrever o que entra no âmbito de aplicação de sua própriainvestigação. Como foi que Grosseteste chegou a essa visão grandiosa

* Servus Gieben é de origem olandesa, mas por toda sua vida ativa trabalhou na Itália.Desde 1953 é membro do Instituto Histórico dos Capuchinhos em Roma. Sua espe-cialidade é a filosofia medieval, e em particular a filosofia de Roberto Grosseteste. Nosúltimos decênios dirige o museu franciscano, anexo ao predito instituto. Tradução deEnio Paulo Giachini.

1. Ele era um capuchinho croata, professor de filosofia franciscana de 1946-1970;sobre suas vida e obras cf.: TENŠEK, Zdenko Tomislav. Fra Hadrijan Borak (1915-1993), in: Kacic, 25 (1993) 835-845.

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e unitiva do cosmos, seus habitantes e seus problemas? Será que seuexemplo não poderia talvez apontar algum paradigma para nossa era epara nossas mentalidades densintegradoras?

É preciso deixar claro que Roberto Grosseteste não foi o primeironem o último escolástico medieval a tentar fazer uma síntese de todoconhecimento disponível. Os séculos XII e XIII produziram um gran-de número de sumas enciclopédicas, tanto para intelectuais, quantopara o povo simples2 . Evidentemente, havia então muitas pessoas comoCristianus, que se correspondia com o grande enciclopedista alemãoHonorius Augustodunensis. Junto ao seu amigo, ele deplora a situa-ção geral: “Que vergonha viver como animais, ignorando completa-mente as coisas que vemos diariamente, que estão ao nosso redor eforam feitas para nós”3 . Assim como a maioria dos escolásticos de suaépoca, Roberto Grosseteste estava plenamente ciente da necessidadede instruir o povo e fazer com que percebesse e compreendesse o mun-do em que vivia. Seu aprendizado extremamente amplo capacitou-oao aconselhamento metódico sobre problemas relacionados com agri-cultura e pecuária, medicina e física, música e matemática, assim comoquestões filosóficas, teológicas, pastorais e bíblicas. Todavia, o que odistinguia dos outros autores não era seu conhecimento e sua leiturados autores latinos e gregos, dos autores pagãos e religiosos, mas certosinsights, que como fios urdidos na complexa trama de seu tecidodoutrinal, davam uma virtuosidade marcante e um colorido especialao todo.

2. Cf. GRÖBER, G. Übersicht über die lateinische Litteratur von der Mitte des VI.Jahrhunderts bis zur Mitte des XIV. Jahrhunderts. Neue Ausgabe, München, 1963, 247-250 (§ 14-144); VERGER, J. Enzykopädie, Enzyklopädik, II. Lateinisches Mittelalterund Humanismus, in Lexikon des Mittelalters III, München/Zürich, 2032-2034.

3. Epistola Christiani ad Honorium solitarium, in PL 172, 119: “Miserum esse videturres propter nos factas quotidie spectare et cum jumentibus insipientibus, quid sint,penitus ignorare”.

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Filosofia cristã

São esses, antes de qualquer outro, os três elementos básicos de suafilosofia cristã: sabedoria (sapientia), participação (participatio) eexemplarismo (exemplarismus).

Sabedoria (sapientia)

Grosseteste alcançou sua maturidade como cientista na época emque estudou e comentou o Analíticos posteriores de Aristóteles. Na obrade Aristóteles ele encontrou a exposição teorética da função da obser-vação e da fundamentação geral na construção de um corpo do conhe-cimento científico. Ele chega a reconhecer que a razão dorme até serdespertada pelos sentidos4 . Seguindo Aristóteles, ele discute as causasda ignorância e o efeito dos sentidos maltemperados. Todavia, ultra-passando o pensamento de Aristóteles, ele admite uma plena justifica-ção do conhecimento adquirido sem o auxílio dos sentidos, sine sensus

adminiculo. Esse conhecimento não é um privilégio reservado a Deuse aos espíritos celestiais, é uma qualificação da natureza pertencente àinteligência humana, embora ameaçado pelos obstáculos confusos einstáveis que surgem dos sentidos corpóreos e suas fantasias5 . Que esse

4. Commentarius in posteriorum analyticorum libros 1, 14 ed. Pietro Rossi, Firenze,1981, 215-216. “Ratio enim in nobis sopita non agit nisi posquam per sensusoperationem, cui admiscetur, fuerit expergefacta. Causa autem quare obnubilatur visusanime per molem corporis corrupti est quod affectus et aspectus anime non sunt divisi,nec atingit aspectus eius nisi quo atingit affectus sive amor eius. Cum igitur amor etaffectus anime convertitur ad corpus et ad illecebras corporales necessario trahit secumaspectum et avertit eum a sua lumine, quod se habet ad ipsum sicut sol se habet adoculos exteriores”.

5. Commentarius in posteriorum analyticorum libros 1,14, ed. Pietro Rossi, Firenze,1981, 213: “Et similiter si pars suprema anime humane, que vocatur intellectiva et quenon est actus alicuius corporis neque agens in operatione sui propria instrumentocorporeo, non esset mole corporis corrupti obnubilata et aggravata, ipsa per irradiationemacceptam a lumine superiori haberet completam scientiam absque sensus adminiculo,sicut habebit cum anima erit exuta a corpore et sicut forte habent aliqui penitusabsoluti ab amore et phantasmatibus rerum corporalium”.

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conhecimento nu e puro das coisas divinas é realmente possível,Grosseteste prova através do desejo natural que de tal sentimos, namedida em que por natureza não desejamos coisas impossíveis6 . Onome apropriado desse conhecimento que contempla todas as coisasna luz de Deus é sabedoria (sapientia).

Numa afirmação muito esmerada, Tomás de York, um dos me-lhores discípulos de Grosseteste, retoma a questão. Ele escreve em seusSapientiale “você deve saber que aqui há dois modos de alcançar oconhecimento. Um deles parte de baixo, diga-se, a partir da via dossentidos. Parece que o único a sustentar isso teria sido Aristóteles aoafirmar que todo conhecimento provém dos sentidos. Segundo a sa-bedoria dos cristãos e dos filósofos, nós sabemos porém que há umaoutra via, a saber, de cima, e não dos sentidos, pela via do influxo epela recepção do primeiro (motor). O conhecimento adquirido nessecaminho é mais certo do que o outro. Passando de um pensamento aooutro, essa via não se baseia no ensino externo, mas unicamente nailuminação interior”7 . É nesse plano que Grosseteste discorda deAristóteles e outros filósofos, sobretudo em relação a essas questõesimportantes como a eternidade simples unicamente do deus trino, da

6. “Quod autem possibilis sit nuda et pura cognitio divinorum absque phantasmatibusmanifestum est ex hoc quod naturaliterappetimus nudum et purum eorum intellectumet contemplationem. Non enim naturaliter appetimus impossibilia”. Cf. Commentariusin De Divinis Nominibus IV, in Rome, Bibl. Vat., MS Chigi A.V.129, f. 306vb.

7. “Scire debes quod duplex est via cognoscendi, quarum una est ab inferiori, hoc estper viam sensus, cuius solus assertor sicut videtur fuit Aristoteles, cum dicit quodomnis cognitio est a sensu. Nos autem secundum sapientiam christianorum etphilosophorum scimus esse aliam, videlicet a superiori et non a sensu, hoc est per viaminfluentiae et receptionis a Primo. Et haec cognitio est certior alia et haec est via quaecurrit ab idea in ideam, quae non est per doctrinam exteriorem sed tantumilluminationem interiorem”. Cf. Sapientiale, I, 30 in Firenze, Bibl. Naz., MS Conventisopp. A.6.437, f. 36b, quoted by E. Longpré, Fr. Thomas d’York O.F.M., La premièreSomme métaphysique du XIIIe siècle, in Arch. Franc. Hist. 19 (1926) 903.

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não perpetuidade do movimento e do tempo e, consequentemente, anão perpetuidade do mundo, criado em e com a extensão do tempo8 .

Participação (participatio)

De manhã, ao despertar, antes de qualquer outra coisa, o bispo deLincoln costumava dizer em inglês Jesu mercy, Jesu grant mercy. Comessa invocação, ele pedia perdão de seus pecados a Deus, agradecendo-o por ter-lhe preservado a vida durante a noite. Implorando a proteçãodivina, persignava sua fronte, sua boca e seu peito com o sagrado nomedo Senhor sobre cuja presença ele buscava concentrar a si mesmo9 .Esse simpático ritual matinal, recordado pelo cronista medieval, mui-to nos ensina sobre o modo de vida de Grosseteste. A plena consciên-cia de estar nas mãos de Deus não provinha muito das circunstânciasprecárias do viver medieval, mas de sua forte convicção filosófica de

8. “Consimile accidit Aristoteli et aliis, qui per discursum rationis firmiter sciuntaeternitatem simplicem esse et tamen ipsam aeternitatem simplicem perspicue nonintellexerunt, sed sub phantasmate extensionis temporalis quasi a longe speculanteseam viderunt, et sequentes ipsum phantasma extensionis temporalis multainconvenientia affirmaverunt, sicut de perpetuitate motus et temporis et per consequensmundi. Et necesse fuit philosophos in hunc errorem incidere, cum mentis aspectus velintelligentia non possit superius ascendere, quam ascendunt eius affectus, et ita, cumphilosophorum affectus ligati erant plus cum transitoriis quam cum aeternis, ipsorumapprehensiva in phantasmatibus mutabilium detenta simplicitatem aeternitatis attingereon potuit”. Cf. De finitate motus et temporis, 105.

9. “Sanctus Robertus Grosted, archidiaconus Leycestre, consecratus a sancto EdmundoCantuariensi, vir magne sanctitatis et inter doctores anglorum famosior. De isto referturRoberto, quod cum mane fuisset excitatus a sompno, dicebat: “Jesu mercy, Jesu grantmercy”, primo pro peccatorum venia, secundum pro adhibita nocturna custodia, ettunc idem nomen fronti, ori et pectori inscribebat cum pollici, et illum cuius nomensibi imprimebat pro divina tutela ante oculos cordis sui constituebat”. Cf. De civitateet episcopis Lincolnie, in London, British Library, MS Cotton. Titus A 19, f. 4r-6v, eespecialmente a respeito dessa oração matinal de Roberto Grosseteste, cf. GIEBEN, S.“Anecdota Lincolniensia: La preghiera mattutina del vescovo, La debolezza umanadella sorella Ivetta, L’eretica che non voleva bruciare”, in: Negotium fidei. Miscellanea distudi offerti a Mariano D’Alatri in occasione del suo 80° compleanno, a cura di P. Maranesi,Roma 2002, 127-144.

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que Deus é forma e a forma de todas as coisas. Sem muita cerimônia,ele expôs o que isso significava para ele numa longa carta endereçada aAdam de Exeter, um de seus discípulos prediletos10 . Imagine-se o se-guinte caso extraordinário, escreve ele: Um arquiteto deve construiruma casa com material líquido, como por exemplo, água. O arquitetoencarregado da obra é dotado de faculdades extraordinárias. Ele conce-be a forma exata da casa em sua mente, pelo único poder de sua von-tade; ele é capaz de aplicar o material-a-ser-moldado-na-casa na formada casa que ele tem em mente. No poder de sua vontade, a formamental da casa recebe a forma eficiente da casa real. Embora o materialpara a construção seja líquido, ele formará realmente a casa, enquantoesse maravilhoso arquiteto não retirar sua vontade. Nesse mesmo sen-tido, a forma do selo se mantém na água enquanto a matriz de pratapermanece impressa ou aplicada na água. Todavia, no mesmo instanteem que, retirando sua vontade, o maravilhoso arquiteto retira a aplica-ção do material na forma em que tem na mente, a casa-água se desin-tegra; assim como a água perde a forma do selo se a matriz de pratanão mais estiver nela aplicada. O exemplo apresentado por Grossetesteparece ser completamente imaginário e fictício, mas ele explica: “as-sim, no mesmo sentido em que essa forma na mente desse arquitetodeverá ser a forma da casa, a arte da sabedoria ou a palavra do onipo-tente Deus é a forma de todas as criaturas”11 .

10. Cf. De unica forma omnium, in: Die philosophischen Werke des Robert Grosseteste,Bischofs von Lincoln, publicado pela primeira vez numa edição crítica por L. Baur,Münster i.W. 1912, 106-111.

11. “Imaginare itaque in mente artificis artificii fiendi formam, utpote in mentearchitectoris formam et similitudinem domus fabricandae, ad quam formam et exem-plar solummodo respicit, ut ad eius imitationem domum faciat; et imaginare cum hoper impossibile ipsius architectoris volentis domum fabricare voluntatem ita potentem,quod se sola applicet materiam formandam in domum formae in mente architectoris,qua applicatione figuraretur in domum; et imaginare cum his, quod materia domusesset fluida, nec posset permanere in forma recepta in se, si separeretur a forma in mentearchitectoris, sicut aqua figurata sigillo argenteo separato sigillo statim amitteret figu-ram receptam. Imaginare itaque voluntatem artificis applicantem materiam domus ad

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Em diversas obras o bispo retorna a esses conceitos, asseverandoque exatamente como cada criatura vem à existência do nada, assim,largada a si mesma, deverá necessariamente retornar ao nada. E umavez que ela não existe a partir de si mesma (ex se), mas, consideradanela mesma, está sujeita à não-existência (labile in non esse), onde ecomo a criatura pode ter existência, a não ser ligada com aquilo que asustenta, de tal modo a não se degradar e voltar ao nada? É por isso queGrosseteste afirma que parece que para a existência da criatura nadamais há que o ser sustentada pela palavra eterna12 .

Em seu comentário sobre o salmo 72 ele especifica que isso nãosignifica como se Deus fosse, por assim dizer, uma parte continente euma parte essencial de sua criatura, mas que ele daria forma a sua cria-tura, reconvocando-a e aderindo-a a si mesmo, como o vaso conformaa água que, sem o suporte do vaso, não manteria sua própria figura eforma13 .

Depois de empregar a mesma imagem do vaso em seu comentáriosobre De divinis nominibus, ele amplia seu significado: ademais, pela

formam in mente architectoris non solum, ut per hanc applicationem formetur indomum, sed etiam applicantem illam ei, quamdiu domus manet in esse domus, utformata in esse servetur. Eo itaque modo, quo forma huius in mente huiusmodiarchitectoris esset forma domus, est ars, sive sapientia, sive verbum omnipotentis Deiforma omnium creaturarum”. Cf. De unica forma omnium, in Die philosophischen Werkedes Robert Grosseteste, ed. Baur, 109-110.

12. “Similiter omnis creatura ex se, si sibi relinqueretur, sicut est ex nichilo, sic relabereturin nichilum. Cum igitur non ex se sit, sed in se solum consideratum, invenitur labile innon-esse: ubi vel quomodo videbitur quod sit, nisi in coaptatione ad illud quod supportatipsam ne fluat in non-esse et in conspectione, quod hoc supportatur ab illo? Hoc estigitur, ut videtur, alicui creaturae esse, quod ab aeterno Verbo supportari”. Cf. Deveritate, in Die philosophischen Werke des Robert Grosseteste, ed. Baur, 141.

13. “Nec hoc dicitur quasi esset pars continens et pars essentialis creaturae suae, sed sicest creaturam formans, per revocationem et adhaesionem creaturae ad se, sicut vasfigurat aquam, extra quod figuram et formam non retinet”. Cf. Comm. in Psalmos, inBologna, Archiginnasio, MS A. 983, f. 43ra.

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participação no ser-em-si-mesmo e no bem-em-si-mesmo, todas ascoisas existentes têm existência e são boas. Seja como for, não é por seuhábito e por sua qualidade que o ser-em-si-mesmo é participado poreles, mas enquanto aquilo que efetiva neles sua essência natural e suabondade qualitativa e beneficente. Fora da participação no ser-em-si-mesmo e no bem-em-si-mesmo, de modo algum eles existiriam nemseriam bons14 .

Exemplarismo (Exemplarismus)

É essa dependência metafísica do ser eterno que doa um sensogenuíno à metáfora muitas vezes empregada que caracteriza as criatu-ras como “palavras que anunciam os mistérios ocultos de Deus”15 ouque assevera, como no Dictum 48, que “a máquina do mundo deveevidentemente falar da arte eterna na qual este foi criado... é uma espé-cie de palavra visível dessa arte e da palavra invisível”16 .

Na época de Grosseteste, essa afirmação se constituíatranquilamente numa doutrina comum. Todos concordavam que asidéias divinas constituíam a base ontológica das realidades finitas e desua cognoscibilidade. E isso de tal modo que o cronista franciscano

14. “Multo magis, participatione per se entis et per se boni, sunt omnia quae sunt etentia et bona. Non tamen est per se ens et bonum participatum ab eis ut eorum habituset qualitas, sed ut efficiens in ipso essentiam naturalem et bonitatem ipsorum qualitativamet bonificativam, sine cuius per se entis et per se boni participatione nec essent modoaliquo nec bona essent”. Cf. Comm. in De divinis nominibus, IV, in Roma, Bibl. Vat.,MS Chigi A.v.129, f. 329ra.

15. “Ipsae figurae et formae et species rerum sensibilium quasi quaedam litterae suntseu quaedam verba annuntiantia naturas rerum occultas et annuntiantia Dei invisibilia”.Cf. De operationibus solis, in J. McEvoy, Robert Grosseteste, Exegete and Philosopher,Aldershot (Variorum) 1994, I, 72.

16. “Mundi machina manifestissime loquitur aeternam artem per quam facta est… estquoddam illius artis et invisibilis Verbi visibile verbum”. Cf. Dictum 48, in Cambridge,Gonville & Caius College, MS 380*/380, f. 39va.

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Salimbene pôde cunhar esse fato em forma de um chiste. Ele conta quecerta vez teve um superior que podia ser qualquer coisa menos bonito. Porisso, um outro frade disse jocosamente que ele deveria ter tido uma idéiahorrenda em Deus, pois sua cabeça era disforme, parecendo mais comoum capacete dos antigos com muitos cabelos na fronte17 .

Mas o exemplarismo de Grosseteste não reduz em última instân-cia as criaturas a idéias eternas. Ele sabe que, na obra da criação, Deusmanifesta a si mesmo externamente e sabe que ele é triuno. Enquantoobras de suas mãos, as criaturas devem, por isso, de algum modo reve-lar a natureza triuna de seu criador. É isso que ele procura demonstrarem seu Dictum 60: “Omnis creatura speculum est, de quo resultatsimilitudo Creatoris, unitatis scilicet et trinitatis”18 .

Vamos supor, afirma ele, que houvesse apenas duas criaturas: umaracional e outra corpórea. Para essa última, escolhemos uma tão insig-nificante quanto possível: atomus qualis volitat in sole, uma partículade pó revoluteando na luz do sol. Todavia, isso deve ser suficientecomo ponto de partida para argumentar da existência do criador triuno.A existência da partícula de pó pressupõe um criador de poder infini-to, a passagem do nada para o ser, por mais minúsculo que seja, éinfinita e consequentemente requer um poder eficiente infinito. Masuma vez que a partícula de pó é um corpo, a mente tem ciência de queisso é tridimensional. Em cada corpo tridimensional, porém, é possí-vel descrever a esfera e nessa esfera infinitos círculos, e em cada círculo

17. “Habui quemdam ministrum in Ordine fratrum Minorum, qui dictus est fraterAldevrandus, et fuit de oppido Flaniani, quod est in episcopatu Imole, de quo fraterAlbertinus de Verona, cuius est sermonum memoria, ludendo dicebat, quod turpemydeam in Deo habuerat. Habebat enim caput deforme et factum ad modum galeeantiquorum et pilos multos in fronte”. Cf. Salimbene de Parma, Cronica, nuova edizionecritica a cura di G. Scalia, I, Bari 1966, 198s.

18. Cf. GIEBEN, S. “Traces of God in Nature according to Robert Grosseteste. With theText of the Dictum “Omnis creatura speculum est”, in: Franc. Studies 24 (1964) 144-158.

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infinitas figuras. E uma vez que de cada uma dessas infinitas figuras sepode desenvolver uma ciência demonstrativa, na partícula de pó deveestar inscrita uma ciência infinita. Ora, isso só é possível se houver ali umasabedoria infinita. Assim, chegamos à conclusão de que o pó deve ter sidocriado por um infinito poder e por uma infinita sabedoria.

Chegar a esse importante conhecimento deve ter sido seguramen-te uma grande conquista para a mente. Por isso, criando a partícula depó, o criador fez uma coisa muito útil para a mente. E mais, uma vezque a mente, ela própria, não pode dar conta desse bem, o criador deveser um criador bom. Por outro lado, a mesma utilidade que oferece opó a cada mente singular, oferece quantum in se est a um númeroinfinito de mentes, na medida em que foram criadas. Assim, pareceque a utilidade da partícula de pó, considerada em si mesma, é infini-ta, e isso, novamente, supõe que o poder infinito que criou o pó porsua sabedoria infinita é infinitamente bom. Nesse sentido, a partir dapartícula de pó, demonstra-se o poder infinito, a bondade infinita e asabedoria infinita do criador.

Pode-se ver mais claramente a amplitude com que o exemplarismotrinitário pervade a doutrina de Grosseteste a partir do fato de que suametafísica da luz foi moldada no modelo trinitário.

Metafísica da luz

Dentro do arcabouço de sua filosofia cristã geral, Grosseteste in-troduz agora sua teoria da luz, que atravessa todos os níveis do ser.Partindo de Deus, a luz suprema, todas as criaturas participam, emníveis variados e de acordo com suas possibilidades, na alegria e energiadessa qualidade. Tanto para as criaturas espirituais quanto para as cor-póreas, ser luz é a qualidade essencial de sua existência. É comum pen-sar que nos escritos medievais de filosofia e teologia, a luz representeuma mera metáfora comparando e equiparando coisas de diferentes

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níveis. Realmente, muitas vezes isso pode muito bem ser o caso. Toda-via, quando o conceito de luz se torna, enquanto fundamental, umaidéia como essa do ser ele próprio, parece não ser adequado classificá-la sob a linguagem metafórica. Em seu comentário sobre a Física,Grosseteste fez a seguinte sugestão: “Forte omnis entitas lux est” =talvez toda e qualquer entidade seja luz19 . Vamos ver que essa é exata-mente a opinião consolidada, proposta pelo bispo em suas obras tardi-as e chamada globalmente de sua metafísica da luz.

A natureza e as qualidades da luz

Ao discutir a teoria aristotélica sobre a atualidade e a potencialida-de no comentário que fez de sua Física, Grosseteste acrescenta sua marcapessoal, introduzindo um conceito estranho à teoria de Aristóteles: elefala que não pode haver transição da potencialidade para a atualidadesem a replicação da forma atual ou sem a reversão da forma replicadaem uma forma em si menos replicada20 . De outro modo, sem a cria-ção de algo novo ou a não ser que isso já tenha estado presente antes,como pode surgir uma coisa de outra – e em sentido inverso? “Si enimex A, quod est, fieret B, quod non est, sine alicuius novi creatione:quomodo erit hoc nisi quia A, suam formam replicando, gignet B autregredietur in B, quod sui replicatione genuerit A, sicut replicationeunitatis fit omnis numerus, et de minore numero maior numerus, etreplicationis solutione de maiori minor. Sic omnis species corporalisfit formae primae corporalis simplicis maiori vel minori replicatione”21 .

19. Embora essa expressão ocorra em dois dos três manuscritos, a edição de Dalesacabou colocando o texto nas notas de rodapé (Roberti Grosseteste Episcopi LincolniensisCommentarius in VIII Libros Physicorum Aristotelis, Colorado: Boulder, p. 12, nota 41).

20. “Nec potest hec egressio esse de potentia ad actum nisi forme actualis presentisreplicatione aut replicate in se minus replicatam reversione”. Na edição de Dales (p. 16-17) o texto está totalmente corrompido.

21. Cf. Commentarius in VIII Libros Physicorum, ed. Dales, 17, com inúmeras correções.

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Grosseteste conclui que há muitas pessoas que pensam que qualqueroutra espécie de coisas é um número22 .

Não é difícil de traçar nessa doutrina a influência de João EscotoEriúgena e da metafísica do número de Thierry de Chartres. Mas, emminha opinião, foi um dos mais originais insights de Grosseteste paraexplicitar melhor o conceito aristotélico de entelequia, como“replicabilitas”, na transição de potencialidade para atualidade. É sómais tarde que ele irá estabelecer uma distinção entre replicabilidadeativa e passiva, por exemplo, a replicabilidade da forma e da matériacorrespondente.

Agora estamos dando mais um passo, ao descobrir que paraGrosseteste, a própria natureza da luz se constitui exatamente nessa“replicabilitas”. Logo no começo de seu tratado De luce ele constata:“Eu propus que essa é a luz, de sua própria natureza processa a funçãode multiplicar a si mesma e difundir a si mesma instantaneamente emtodas as direções. O que quer que perfaça isso é a própria luz ou estáfazendo essa obra em virtude de sua participação na luz, à qual perten-ce essencialmente essa operação”23 . Partindo de uma análise da luz nomundo físico, Grosseteste tira conclusões com a qualidade de validadeuniversal. Isso pode ser visto com maior propriedade num resumo dadoutrina do bispo, produzido por um aluno do círculo de S.Boaventura, numa obra chamada De symbolica theologia24 . Num es-

22. “Et hoc forte est quod multi putant omnem speciem numerum esse”. Ibid. 17.

23. “Lucem esse proposui cuius per se est haec operatio scilicet se ipsam multiplicare etin omnem partem subito diffundere. Quicquid igitur hoc opus facit, aut est ipsa luxaut est hoc opus faciens in quantum participans ipsam lucem quae hoc facit per se”. Cf.Die philosophische Werke des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln, editadas criticamen-te por vez primeira a cura de L. Baur, Münster i. W. 1912, 51-52.

24. Cf. S. Gieben, Robert Grosseteste and Adam Marsh on Light in a Summaryatributed to St. Bonaventure, in Aspectus et affectus. Essays and Editions in Grossetesteand Medieval Intellectual Life in Honor of Richard C. Dales, edited by G. Freiberg,New York, 1993, 17-35. O texto do resumo está publicado nas p. 28-35.

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quema cuidadosamente estruturado, o autor anônimo expõe quasetodos os mais importantes textos de Grosseteste sobre o assunto. Aluz corpórea, afirma ele, pode ser considerada a partir de quatro pon-tos de vista: sua substância, sua virtude, sua forma, sua operação. Emrelação à sua substância, a luz é de origem nobre, substancial naquididade, sutil na essência. Em relação a sua virtude, é multiplicável,inflexível, incompreensível. No que diz respeito à sua forma, é em simesma absolutamente bela, ela produz a beleza nas coisas belas, nascoisas feias é permanentemente bela. A operação da luz pode ser consi-derada nela e por si mesma, ou em relação com outros seres. Em e porsi mesma, a luz existe e é engendrada de chofre, engendra e se difundede chofre, se difunde e brilha de chofre. Ademais, ela tem a qualidadecaracterística que não se recusa a nada, revela toda e qualquer coisa edistingue todas as coisas singularmente. Em referência a outros seresexistentes, a ação da luz, ou melhor, a luz enquanto operando, podeser considerada em conexão com coisas que existem na mente de Deus,com a morada criada dos bem-aventurados, com a máquina universaldo cosmo. Enquanto máquina do cosmo, a distinção deve ser feitaentre o “minor mundus” – ou seja o homem – e o “maior mundus”,isto é, o todo do mundo material. O homem pode ser relacionadocom a luz como para com sua alma, seu corpo e para com sua conjun-ção (quantum ad animam, quantum ad corpus, quantum adconiunctum), enquanto que a totalidade do mundo material podeestar sujeita à operação da luz como sua região supracelestial, celestial esubcelestial. Para cada uma dessas, mais de vinte modalidades nas quaisa luz está presente e operando, Grosseteste oferece soluções coerentes enão raro originais. Vamos ver algumas delas.

Hipótese big-bang

Todos conhecem a hipótese do big-bang. É a visão cosmológicade que a atual aparente expansão do universo partiu de uma violentaexplosão de um material, na origem, altamente comprimido, homo-

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gêneo e com calor intenso, contendo matéria e energia. Essa hipótesefoi veiculada por vez primeira em 1927 pelo sacerdote George Lemaître,professor da Universidade de Louvain25 . Na época isso foi visto comoum desastre científico, mas em 1950, uma nova estimativa de distânciaentre as galáxias mostrou que, apesar de tudo, isso era plausível. Outraevidência de uma observação de 1960 tende a confirmar a hipótese.

Gostaria de lembrar que, três anos antes de George Lamaître, JohnAlexander Smith do Magdalen College enviou um epílogo emociona-do à British Academy relativo ao mesmo assunto. Ele assevera queGrosseteste estava correto em sua teoria da luz. Ele sempre acreditaraser possível e fecundo do ponto de vista de ciência desenvolver essatese dentro de uma teoria da física capaz de ser expressa matematica-mente. Respondendo uma carta de Andrew George Little, ele justificasua opinião. A carta de Smith foi escrita no Magdalen College, Oxford,em 15 de novembro de 1924. Está preservada até hoje na biblioteca deGreyfriar. Eis uma passagem da mesma:

Por tão longo tempo, nossas mentes foram obscurecidas pelavisão newtoniana que, como eu disse, é difícil para nós retroce-der para antes dele. Mas isso não é impossível, e o que Hegel e,melhor que ele, Goethe disseram sobre a luz e a cor pode servirpara nos fornecer ajuda e uma boa consciência disso. Atualmen-te estou muito interessado na arte, tentando compreender isso,acho útil deter-me nesse assunto já que é uma visão mais enge-nhosa. Acredito que seja possível e cientificamente útil desen-volver essa tese dentro de uma teoria da física passível de serexpressa matematicamente (embora as matemáticas que prevejoque seriam necessárias, estão fora de meu alcance). Nisso inclu-sive Grosseteste conseguiu abrir um determinado caminho, con-cebendo a luz como uma força ou uma forma de energia que agenuma autoexpressão instantânea (ou sem tempo), de chofre,em todas as direções a partir do centro – uma teoria que retor-

25. The Big Bang and Georges Lemaitre: Symposium [Louvain-la-Neuve (Belgium)],October 10-13, 1983, Dordrecht, c1984.

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nou ou está retornando na teoria científica moderna. (É claroque o que se está dizendo não é a “instataneidade” mas “umavelocidade que ultrapassa qualquer outro movimento” ou “umavelocidade maximamente absoluta”). Em assim se expandindo,vem a ocupar lugar, e, enquanto “corpo”, às vezes é definidacomo aquilo que ocupa espaço, parece como se estivéssemoscontando a nós mesmos como se gera corpo.É uma outra questão se, adotando essa física (tão especulativa),se poderá explicitar alguma coisa na natureza da realidadeultrafísica como em pensamento acreditamos nós próprios apre-ender isso. Continuo achando que não: enquanto uma figuraou analogia pode ir de baixo para cima”26 .

Esse texto marcante coloca a teoria de Grosseteste sobre a luz nocentro das disputas modernas a respeito da origem e do começo douniverso. Valeria a pena pesquisar se aqui há alguma conexão entre osacerdote de Louvain e o bispo de Lincoln.

O que diria Grosseteste atualmente em seu tratado sobre a luz? Eleparte da afirmação clara: “Em minha opinião, a primeira forma corpó-rea, que alguns chamam de corporeidade, é a luz. Isso porque, de suanatureza verdadeira, a luz difunde a si mesma em todas as direções, deum modo que um ponto de luz irá produzir instantaneamente umaesfera de luz de qualquer dimensão, a menos que algum objeto opacose lhe interponha27 . Depois, ele argumenta que a multiplicação de umser simples em um número infinito de vezes deverá produzir umaquantidade finita: “Por isso, quando a luz, que nela mesma é simples,é multiplicada uma infinidade de vezes, isso deve estender a matéria,que é igualmente simples, numa dimensão finita”28 . Chegando a esse

26. Essa missiva foi mandada para a biblioteca de Greyfriars junto com os jornais elivros pela viúva de A. G. Little. Seu conteúdo aparece aqui em apêndice.

27. Cotejo o texto da versão inglesa feita por C. C. RIEDL. Robert Grosseteste, On Light(De luce). Milwauke, 1942, 10.

28. Id. Ibid. 11.

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ponto, ele afirma com mais cuidado: “Digo que, por causa da multi-plicação infinita de si mesma, a luz estende equanimemente a matériaem todas as direções, igual em todos os lados na forma de uma esferae, como uma consequência necessária dessa extensão, as partes extre-mas da matéria são mais estendidas e mais rarefeitas do que as queestão mais próximas ao centro. E enquanto as partes extremas são rare-feitas no mais alto grau, as partes internas têm a possibilidade de seremnovamente rarefeitas. Nesse sentido, a luz, estendendo a matéria pri-meira na forma de uma esfera e rarefazendo suas partes mais extremasao mais alto grau possível, nas partes mais extremas atualizam comple-tamente a potencialidade da matéria, deixando essa matéria sem qual-quer potencialidade para uma posterior impressão. E assim o primeirocorpo na parte extrema da esfera, o corpo que é chamado defirmamento, é perfeito, porque nada tem em sua composição a nãoser matéria primeira e forma primeira”29 .

A luz triuna de Deus

É muito comum as pessoas pensarem que os autores medievais,falando em termos de luz sobre Deus e outros seres espirituais, fazemisso de modo hiperbólico. Minha opinião é de que nos equivocamosem relação aos insights de Grosseteste quando forçarmos suas opiniõesexpressas para dentro de um veio de interpretação equivocado; quan-do ele lê no texto grego do Evangelho de S. João o que afirmou oCristo “ego eimi o fos o alethinos”, seguramente, com S. Agostinho,tomou essa palavra ao pé da letra: “non sic dicitur Christus lux sicutlápis, sed illud proprie istud figurative”30 . Ele ancorava essa opiniãonoutros textos escriturísticos e na interpretação dos mesmos feita pe-

29. Id. Ibid. 13.

30. “De dotibus”, ed. por J. GOERING in: Medieval Studies 44 (1982) 105.

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los padres da Igreja, tanto latinos quanto gregos. Deus é luz, o pai dasluzes e, segundo Dionísio Areopagita, “arkhifotos”, origem e princípiode toda luz, seja ela espiritual ou corpórea. Ele é “archetypus lucis velluminis”31 , “lux super omnem lucem”32 ou simplesmente a fonte daluz – enquanto luz original (“archilucus” é a versão que dá Grossetestepara o grego “arkhifotos”), vale dizer, enquanto a luz primordial e trans-cendente (“yperfotos”) – que em si mesmo e de modo supremo congre-ga e precede toda dominação ou primazia do poder iluminador33 . Parasumarizar esses ensinamentos, ele afirma: “Por natureza e na realidade,ou presentemente e antes de tudo, ou seja, primeiramente e em simesmo, Deus é a substância e a essência da luz espiritual e assim nadapode luzir com luz espiritual se não participar da luz que é ele”34 . Éevidente que todas essas afirmações são pura doutrina de Dionísio.Mas isso oferece a Grosseteste a oportunidade de expor uma de suasteses mais ousadas, relativas à natureza triuna de Deus, que vem for-mulada na oitava parte do Hexaëmeron, com as seguintes palavras:“Esse Deus existe em três pessoas, seguindo o fato de que Deus é luz,não corpórea mas luz incorpórea, ou melhor ainda, nem corpórea nemincorpórea, mas superior a ambas”35 . Sua argumentação segue um des-

31. Cf. Comm. In De Divinis Nominibus, IV, in Roma, Bibl. Vat. MS. Chigi A.v. 129,f. 307 vb e 310vb.

32. Cf. Comm. In De Mystica Theologia, ed. U. Gamba, Milano 1942, 24.

33. “Et simpliciter radius fontanus, resume, est comprehendens in seipso ut archilucus,id est principaliter lucens et superlucus, id est superlucens, et superhabens omnemdominationem seu principalitatem illuminativae virtutis”.Cf. Comm. In De DivinisNominibus, IV, in Roma, Bibl. Vat. MS. Chigi A.v. 129, f.312vb.

34. “Deus est naturaliter et vere seu existenter et principaliter, hoc est primo et per se,substantia et essentia luminis spiritualis et ideo non potest aliquid spiritualiter lucerenisi participatione luminis quod ipse est”. Cf. Comm. in De Celesti Hierarchia, XIII, inRoma, Bibl. Vat. MS. Chige A.v. 129, f.250ra.

35. “Quod autem Deus sit in personis trinus, inde sequitur quod Deus est lux, noncorporea sed incorporea; immo magis neque corporea neque incorporea, sed suprautrumque”, in Robert Grosseteste, Hexaëmeron. Ed. por R. C. DALKES e S. GIEBEN,Londres, 1982, 220.

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dobramento original. Parte de seu conceito de luz, o qual, em virtudede sua própria natureza e essência, engendra de si mesmo seu resplen-dor. E mais, a luz geradora e o esplendor gerado abraçam-se mutua-mente e de si mesmos inspiram um fervor mútuo. Mas, entre o quegera (gignens) e o que é gerado (genitus) é possível conceber cinco tiposde relação comparativa. Pode ser relacionada como aliud e alius, oucomo alius e alius, ou como aliud e aliud, ou não como alius ou alius

mas simplesmente como alterum, ou nem como alius nem como aliud

nem como alterum. Dentre esses cinco tipos de relação, quatro nãopodem ser aplicados a Deus, e alguns deles podem ser aplicados a Deuse a qualquer outra coisa. Pois, em parte alguma é possível que quem égerado (genitus) não seja diferente de quem engendra (gignens) enquantoalius ou aliud ou alter. Tampouco, de modo algum, é possível quequem é gerado (genitus) difira de quem engendra (gignens) enquantoaliud mas não enquanto alius. É impossível que em Deus a distinçãoentre quem é gerado (genitus) e quem engendra (gignens) seja concebidacomo alterum, uma vez que o termo alterum denota uma diferença aci-dental. Do mesmo modo é impossível que em Deus a diferença entrequem é gerado (genitus) e quem engendra (gignens) seja definida comoaliud, uma vez que em Deus não há multiplicidade de naturezas. Resta,assim, que em Deus genitus e gignens não são diferentes como aliud mascomo alius. A mesma razão se aplica também tanto para aquele que inspira(spirans) como para aquele que é exalado (qui spiratur). Por isso, em Deushá um, o outro e o terceiro, cada um dos quais sendo uma substânciaindividual da natureza racional, e portanto três pessoas. Ali não podehaver um quarto alius ou ser concebido como existindo. Qual o quar-to elemento poderia ser adicionado à luz geradora, ao esplendor gera-do e ao fervor mútuo que de ambos procede?36

36. “Omnis autem lux hoc habet naturaliter et essentialiter quod de se gignit suumsplendorem. Lux autem gignens et splendor genitus necessario se amplectuntur mutuo,et spirant de se mutuum fervorem. Gignens autem et genitus aut est aliud et alius, autnon aliud sed alius, aut non alius sed aliud, aut nec alius nec aliud sed alterum solum,aut nec alius nec aliud nec alterum. De istis quinque membris huius divisionis quatuor

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Iluminação ordenada hierarquicamente

Na visão de Grosseteste, o mundo dos anjos e das almas bem-aventuradas no paraíso está totalmente dominado pela metafísica daluz. Sendo uma expressão de Deus (imago dei); como todas as criatu-ras, em sua própria natureza os anjos são a manifestação da luz inaces-sível de Deus, comunicada a todos os níveis hierárquicos, em acordocom a capacidade que esses tem de recebê-la. Em seu comentário àHierarquia celeste, ele escreve: Por esse motivo, o raio da luz divina échamado de cabeceira de nascente, na medida em que é princípio eorigem de toda luz e por isso é chamado de superexpansivo, na medi-da em que está presente no todo, ofertando a si mesmo em participa-ção em acordo com a capacidade de cada coisa, enquanto permanecesempre o mesmo, por ser imutável e simples, por ser indivisível em simesmo, e não apenas um mas a unidade primordial. A participaçãodesse raio, nele mesmo totalmente diverso, é cada vez diferente nosparticipantes, por causa da capacidade receptiva desses. Algo parecidoacontece com os raios do sol. O solo e a madeira não são iluminadospor dentro, pois não são capazes de receber sua iluminação. Na mesmalinha, uma vontade obstinada e enrijecida não é suscetível ao raio divi-

impossibile est in Deum cadere, et quedam de hiis in Deum vel in alium. Non enimalicubi possibile est ut genitus a gignente nec alius, nec aliud, nec alter sit. Item nusquampossibile est ut genitus a gignente sit aliud, nec tamen alius. In Deo autem non estpossibile ut genitus a gignente sit alterum, cum alterum dicamus per differentiamaccidentalem. Neque iterum in Deo possibile est ut genitus a gignente sit aliud, cumnon sit in Deo substanciarum multitudo. Relinquitur ergo quod ibi sit genitus agignente non aliud, sed solum alius; et eadem est ratio de spirante et illo qui spiratur.Est igitur apud Deum unus et alius et tertius, quorum quilibet est individua substantiaracionalis nature, et ita tres persone; nec potest ibi quartus alius aut esse aut cogitari.Quis enim quartus potest adici luci gignenti et splendori genito et ex ambobus procedentifervori mutuo?”, in Robert Grosseteste, Hexaëmeron, ed. por R. C. DALES e S. GIEBEN,Londres 1982, 220.

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no”37 . A água é menos aberta à luz do sol do que o ar, e o ar é menos queo éter. Assim também, em acordo com seu grau de pureza, os espíritoscelestes são mais ou menos capazes de receber a iluminação divina.

Essa iluminação se aplica tanto ao conhecimento quanto à afeição,tanto à vida intelectual quanto à volitiva, tanto à verdade quanto àbondade, na medida em que isso concerne à essência de suas raízes.Apelando mais uma vez para a imagem do sol, Grosseteste afirma noDe libero arbitrio: “Pois o esplendor do raio do sol não é o calor, e ocalor não é o esplendor; todavia, calor e esplendor nada mais são queuma única essência do raio, e ambos são um na essência de um raio.Pois bem, aspectus e affectus, ou seja, razão e vontade livre, são umaúnica coisa na essência singular de sua raiz, embora falando de modosimples um não seja o outro”38 .

37. “Radius autem divinae lucis ideo dicitur fontanus, quia principium est et origoomnis luminis, et ideo dicitur superexpansivus, quoniam omnibus est praesens, omnibusse tribuens ad participandum secundum uniuscuiusque susceptibilitatem, sempersimiliter se habens quia immutabilis, simplex quia in se impartibilis et non solum unussed unitas primordialis. Est autem differens huius radii omnino in se differentisparticipatio secundum differentias participantium, quemadmodum est et radii solaris.Sicut enim terra et ligna non illustrantur intrinsecus a radio solari sed inparticipabiliasunt illustrationis illius, sic voluntas obstinata et indurata inparticipabilis est radiidivini; et sicut superiora elementa inparticipabilia sunt illustrationis interioris a radiosolari, aqua tamen minus et obscurius aere, et aer minus et obscurius ethere, sic etdiverse voluntates secundum minores et maiores sui puritatis differenter sunt diviniradii participabiles”. Cf. Comm. in Cel. Hierarchia IX, in Roma, Bibl. Vat. MS ChigiA.v.129, f. 243vb.

38. Sicut itaque splendor radii solis non est calor neque calor et splendor, et tamen caloret splendor non sunt aliud quam una esssentia radii et ambo sunt unum in unius radiiessentia, sic aspectus et affectus, ratio scilicet et voluntas, scilicet simpliciter loquendohaec non sit illa, sunt tamen unum in radicis una essencia”. Cf. De libero arbitrio, c. 17,ed. L. Baur, Münster i. W. 1912, 228.

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Experiência da vida humana

Num comovente sermão feito a ordenandos a respeito do simbo-lismo da “porta do tabernáculo” (Lv 8,33), o bispo recomenda queseus ouvintes imitem os frades menores “qui in vite sancte excellenciaadmiranda de seipsis faciunt miracula”.. a que tipo de milagre maravi-lhoso na vida dos santos frades estará ele aludindo? Considera-os osmelhores seguidores do modelo da vida angelical, dos quais está falan-do no sermão e que devem ser imitados por todos nós39 . Por refrea-rem os prazeres mundanos, os frades eram considerados capazes deobter a pureza de coração necessária, de modo que eles, de mente aber-ta (irreverberato aspectu) e sem serem perturbados pela nuvem dos fan-tasmas (sine nubilo phantasmatum), podem ver a própria luz da ver-dade mais suprema. Todos nós somos convidados a partilhar essa feli-cidade, pois “são bem-aventurados os puros de coração porque elesverão a Deus”; e com o salmista podemos dizer: “Posso ouvir o que oSenhor Deus me diz”. Na realidade, ver e ouvir são aqui a mesmacoisa40 , conclui o bispo.

Na metafísica da luz de Grosseteste, o homem constitui um ele-mento muito importante. Ele é o centro que cria unidade no univer-so. Sua alma racional se comunica com os anjos na natureza da racio-nalidade e da inteligência. Nessa comunicação, eles possuem uma liga-

39. “Harum beatitudinum specialissimam imitationem nunc michi videntur haberefratres minores qui in vite sancte excellencia admiranda de seipsis faciunt mirabilia.Simus igitur et nos eorum imitatores”. Cf. Dictum 52, in Cambridge, Caius MS.380*/380, 48vb.

40. “[Cherubini] ... limpidissime in ipsa veritatis luce universam pulchritudinemcontuentes. De huius itaque pulchritudinis contuitu reportemus et nos oculi interiorismunditiam, qua sine nubilo phantasmatum lucem ipsam summae veritatis irreverberatoaspectu contueamus. Beati enim mundi corde quia ipsi Deum videbunt, et cumpsalmista dicere valeamus ‘audiam quid loquatur in me Dominus Deus’, quia illudidem est videre et audire”. Cf. Dictum 52, in Cambridge, Caius Ms. 380*/380, 48vb.

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ção indissolúvel, uma vinculação conjunta de uma unidade natural(unitas naturalis). Não existe tal comunicação entre a alma racional e ocorpo. Esse, por outro lado, liga-se conjuntamente numa unidade pes-soal (unitas personalis)41 . Todavia, o corpo humano se comunica emnatureza com todas as naturezas corpóreas, desde os corpos celestes atéos quatro elementos dos quais é composto. Isso acontece por causa danatureza da luz, a qual refletindo-se dos corpos celestes vai gradual-mente sendo incorporada no fogo, no ar, na água e na terra. Ademais, aalma racional se comunica com a alma sensitiva dos animais na potencia-lidade sensitiva, e com a alma vegetativa das plantas na potencialidadevegetativa. Em virtude disso, o homem possui uma comunicação natural(communicat in natura) com todas as criaturas42 . Essa centralidade dohomem no universo é para Grosseteste uma das razões da Encarnação dofilho de Deus, supondo-se sempre que não houvesse havido o pecadode Adão. Assim, antecipando a doutrina do bem-aventurado John Duns

41. “Anima autem rationalis et angelus communicant in natura rationalitatis etinteligentie, qua communicatione habent indissolubile vinculum et concatenacionemnaturalis unitatis. Anima autem rationalis non potest communicare cum corpore inspecie et natura. Est tamen anima rationalis apta nata ut sit perfecctio corporis organici,et uniatur ei in unitatem persone; quapropter angelus et anima rationalis concatenatasunt per unitatem naturalem. Anima vero rationalis et corpus humanum conveniuntin unitatem personalem”. Cf. Robert Grosseteste, De cessatione legalium, edited byR.C.Dales e E.B. King, Londres, 1986, 130.

42. “Corpus autem humanum habet communionem in natura cum omnibus naturiscorporalibus, quia corpora celestia communicant cum igne elemento in natura lucis;ignis et aer in natura caloris; aer et aqua in natura humiditatis; aqua et terra in naturafrigiditatis. Corpus autem humanum constat ex quattuor elementis, quaproptercommunicat in natura cum illis, et per consequens cum celestibus corporibus cumquibus communicat ignis in natura lucis. Communicat etiam per consequens cumomnibus naturis elementis communicantibus cum ipsis elementis. Communicat quoqueanima rationalis cum anima sensibili brutorum in potentia sensitiva, et cum animavegetabili plantarum in potentia vegetativa. Quapropter et homo communicat innatura cum omni creatura”. O argumento é usado por Grosseteste no curso de umadiscussão sobre a questão “An Deus esset homo etiam si non esset lapsus homo”, naterceira parte do De cessatione legalium, 130-131.

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Scotus, isso se torna um argumento que afirma Cristo ter a primaziaabsoluta, como o primogênito de toda criatura43 .

É pela luz que a alma humana atua em todos os sentidoscorpóreos44 . Essa opinião de S. Agostinho foi sustentada firmementepor Grosseteste em seu comentário sobre o Hexaëmeron. Sempre re-cordando que o bispo de Hipona considera a luz como uma substância

corpórea, sendo isso numa categoria maximamente sutil. De outro lado,S. João Damasceno defendeu que a luz era uma qualidade do fogo, semqualquer subsistência própria. De acordo com Grosseteste, isso não erauma afirmação contraditória. Em sua opinião, as duas afirmações eramverdadeiras. Ele é totalmente explícito: “Dizemos que a luz deve ser ditanecessariamente nas duas direções, pois configura (designs) uma substân-cia corpórea, da espécie a mais sutil, próxima da imaterialidade que é pornatureza autogenerativa; mas isso significa igualmente a qualidade inci-dental que procede da ação natural generativa da substância da luz.Pois o movimento indeficiente da ação generativa é uma qualidade dasubstância que está indeficientemente gerando a si mesma”45 .

Por causa dessa luz, a alma exerce sua atividade em todos os senti-dos, usando-os como instrumentos46 . Em De iride, ele escreve que

43. Cf. D.J. UNGER, “Robert Grosseteste, Bishop of Lincoln (1235-1253), on theReasons for the Incarnation”, in Franciscan Studies 16 (1956) 1-36.

44. “Luz igitur est per quam anima in omnibus sensibus agit et que instrumentaliter ineisdem agit”. Cf. ROBERT GROSSETESTE, De cessatione legalium, ed. por R.C. Dales e E.B.King, Londres, 1986, 98.

45. “Dicimus quod necesse est lucem dupliciter dici: signat enim substantiamcorpoream subtilissimam et incorporalitati proximam, naturaliter sui ipsius generativam;et significat accidentalem qualitatem, de lucis substancie naturali generativa accioneprocedentem. Ipsa enim generative acctionis indeficiens mocio qualitas est substancieindeficienter sesegenerantis”. Cf. Robert Grosseteste, Hexaëmeron, ed. Por R.C. Dalese S. Gieben, Londres, 1982, 98-99.

46. “Lux igitur est per quam anima in omnibus sensibus agit et que instrumentaliter ineisdem agit”. Ibid. 98.

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não se deve pensar que a emissão dos raios visíveis seria uma posiçãoimaginária divorciada das coisas, como acreditam as pessoas que consi-deram a parte e não o todo. Deve-se ter em conta, ao contrário, queuma espécie visível é uma substância similar à natureza do sol, apare-cendo e irradiando, e a radiação de cada espécie, junto com a radiaçãodo corpo exterior que aparece, é a total responsável pela visão47 . Enoutro contexto, ele comenta: “O raio visual é a luz que sai do espíritovisual luminoso para o obstáculo, uma vez que a visão não se comple-ta apenas na recepção da forma sensível sem matéria, mas é completa-do na recepção recém-mencionada e na radiosidade que sai do olho”48 .O mesmo se aplica também à atividade da alma de ouvir, tocar, degus-tar e cheirar. Todas essas atividades são feitas na alma pela luz.

O mundo físico

Depois dos estudos fundamentais de Ludwig Baur49 , AlistairCrombie50 e outros, não parece muito adequado explicar aqui, emdetalhes de que modo, segundo Grosseteste, a luz está atuando no

47. “Nec putandum quod egressio radiorum visualium sit positio imaginaria solumabsque re, sicut putant illi qui partem considerant et non totum. Sed sciendum quodspecies visibilis est substantia assimilata nature solis lucens et radians, cuius radiatiocoiuncta radiationi corporis lucentis exterius totaliter visum complet”.Cf. De iride, inDie philosophischen Werke des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln, editadas critica-mente por vez primeira a cura de L. BAUR, Münster i. W. 1912, 72.

48. “Radius namque visualis est lumen digrediens a spiritu visibili luminoso usque adobstaculum, quia non perficitur visus in sola receptione forme sensibilis sine materia,sed perficitur in receptione dicta et radiositate egrediente ab oculo”. Cf. Commentariusin posteriorum analyticorum libros II, 4, ed. Pietro Rossi, Firenze, 1981, 386.

49. BAUR, L. “Das Licht in der Naturphilosophie des Robert Grosseteste”, in:Abhandlungen aus dem Gebiete der Philosophie und ihrer Geschichte, eine Festgabe zum70. Geburtstag Georg Freiherrn von Hertling. Freiburg i.B. 1913, 41-55.

50. CROMBIE, A. C. Robert Grosseteste and the Origins of Experimental Science, 1100-1700, Oxford, 1953.

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mundo físico. É sabido universalmente que Grosseteste sustentava queas leis da lux eram a causa geral por trás de muitos fenômenos aparen-temente diferentes. Basta lembrar ocorrências como a origem do som emgeral, de trovões e ecos em particular, a aparição do arcoiris, o refletir-se daluz no espelho, a aproximação de objetos distantes no binóculo. Por meiode aspectos matemáticos da luz, Grosseteste sustentou sempre ser possívelexplicitar diferenças qualitativas na força física como provindas de diferen-ças quantitativas, baseadas na estrutura geométrica. Essa visão das coisaslevou-o a tentar explicar a intensidade do calor e da luz como devidos àconcentração de raios, e o calor ele mesmo como dispersão das partesmoleculares devido ao movimento51 .

Talvez, para concluir, seja válido enfatizar por que Grosseteste con-siderou necessário continuar, inclusive como teólogo, seus estudos so-bre o mundo físico. Numa nota extensa ao capítulo 24 de sua tradu-ção do livro De fide orthodoxa de João Damasceno, ele explica seupensamento. Essa nota é devida ao fato de, no livro legado pela tradi-ção, faltar texto:

Esses dois capítulos, a saber, o vinte e quatro, sobre os mares, eo vinte e cinco, sobre os ventos, são omitidos em diversos ma-nuscritos gregos; talvez porque pareçam não conter uma temáticateológica. Mas segundo o homem verdadeiramente sábio, todanotícia da verdade é fecunda na explicação e compreensão da teo-logia. Assim, uma vez que esses capítulos se encontram no manus-crito grego, não queremos omiti-los, pois temos certeza de que umtão grande autor não os teria escrito nesse livro se não reconhe-cesse neles alguma utilidade para a Sacra Escritura52 .

51. CROMBIE, A.C. Robert Grosseteste, 110-112.

52. Haec duo capitula, scilicet vigesimum quartum de pelagis et vigesimum quintumde ventis omissa sunt in quibusdam exemplaribus graecis; forte qua non multumvidentur esse materiae theologiae, cum tamen secundum vere sapientes omnis veritatisnotitia utilis est ad theologiam exponendam et intelligendam. Ideo nos invenienteshaec in exemplari graeco nolumus ea omittere, tenentes pro certo quod tantus auctor eain hoc libro non scripsisset nisi eorum utilitatem aliquam in sacra scriptura cognovisset”.Cf. Rome, Bibl. Vat. MS Chigi A. VIII, 245, f. 16va.

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Diante de tal parâmetro para julgar a autenticidade de um texto,muitos editores modernos podem seguramente franzir a testa em de-saprovação. Seja como for, nessa nota, Grosseteste manifesta sua con-vicção profunda de que o amor à verdade de modo algum pode servedado. Essa era a busca pela ciência universal, tão universal como aprópria verdade ela mesma. Tão universal como a essência do ser e deseu princípio existencial de atividade: LUZ.

Apêndice

Carta de J. A. Smith para A. G. Little

Magdalen College, Oxford. 15.11.1924.

Meu caro Little,

Tenho sido inquestionavelmente lento em responder sua carta dodia 9, em parte porque não tenho comigo cópia das obras deGrosseteste. Meu epílogo entusiasmado no B.A. foi um tanto impro-visado, citando de memória (pois estava bastante seguro de estar cer-to). Ademais, eu não deveria ir tão longe se desse a impressão de queesse remanescente particular poderia ser datado de 1224.

A citação vem de seu De luce (Ed. de Baur, p. 57, 5ss). Talvez vocêpossa dizer quem são os dicentes ali referidos.

Eu não tenho competência para falar da genealogia dessa física emetafísica da luz, pois suspeito que isso provém em grande parte doséc. X, do escritor árabe Al-hazen. Parece ter sido exposto de modorelativamente extenso nas obras de Witelo por volta de 1270, queconheço apenas de citações. Essa última fonte é seguramente platôni-ca, e seu percurso de lá corre através da névoa do neoplatonismo.

Nossa mente foi de tal modo obscurecida pela visão newtonianada luz que, como eu afirmei, é difícil para nós retornar, e ir além do

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mesmo. Mas não é impossível, e o que disse Hegel e melhor que eleGoethe, sobre luz e cor pode servir-nos de auxílio e de boa consciên-cia. Atualmente estou muito interessado na arte, empenhado emcompreendê-la, e acho que pode ser útil deter-me nesse assunto comose fosse uma visão mais engenhosa. Acredito que isso seja possível, eseja cientificamente útil desenvolver essa tese dentro de uma teoria dafísica passível de ser expressa matematicamente (embora as matemáti-cas que prevejo serem necessárias, estejam fora de meu alcance). Nissoinclusive Grosseteste conseguiu abrir um certo caminho, concebendoa luz como uma força ou uma forma de energia que age numaautoexpressão instantânea (ou sem tempo), de chofre, em todas asdireções a partir do centro – uma teoria que retornou ou está retornan-do na teoria científica moderna. (É claro que o que se está dizendo nãoé a “instataneidade” mas “uma velocidade que ultrapassa qualquer ou-tro movimento” ou “uma velocidade maximamente absoluta”). Emassim se expandindo, vem a ocupar lugar e, enquanto “corpo”, às vezesé definida como aquilo que ocupa espaço, e é como se estivéssemoscontando a nós mesmos como se gera corpo.

É uma outra questão se, adotando essa física (tão especulativa), sepoderá explicitar alguma coisa na natureza da realidade ultrafísica comoem pensamento acreditamos nós próprios apreender isso. Continuoachando que não: tampouco como uma figura ou analogia de baixopode ser aplicada para cima. A intenção de minha leitura foi defenderessa convicção, ou seja, sustentar que Grosseteste tinha razão. Mas oassunto é difícil e é muito fácil ser levado a extravagâncias e paradoxos.

Foi um grande prazer e uma grande honra, para mim, vê-lo noauditório, e de que algo que eu disse tenha despertado seu interesse.

Saudações cordiais,

de seu J. A. Smith.

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“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

“A LUZ DERIVA DO BEM E É IMAGEMDA BONDADE”: A METAFÍSICA DA

LUZ DO PSEUDO-DIONÍSIOAREOPAGITA NA CONCEPÇÃO AR-

TÍSTICA DO ABADE SUGER DESAINT-DENIS

Ricardo da Costa*

O lugar [Saint-Denis] gozava de uma nobreza muito antiga e sedistinguia por sua dignidade régia; costumava ser usado comopalácio real e militar. Sem demora ou fraude era entregue a Césaro que é de César, mas não se tributava a Deus o que é de Deuscom a mesma exatidão e fidelidade. Falo do que ouvi, não doque vi: frequentemente, dizem alguns, o próprio claustro domosteiro se enchia de soldados, urgiam-se negócios e pleitos, eàs vezes era aberto a mulheres. Quem nesse ambiente era capazde pensar no celeste, no espiritual e no divino? Mas agora ali sebusca a Deus, cultiva-se a continência, vive-se a disciplina comvigilância e frequentam-se as leituras santas. O silêncio habituale a ausência perpétua de todo ruído mundano convidam a me-ditar as realidades celestiais. Ademais, a ascese da continência eo rigor da observância se alternam com a doçura dos hinos esalmos (...).Não reproduzi as desventuras passadas para confusão ou opróbriode ninguém, mas para ressaltar com mais graça e formosura o es-plendor da mudança, comparada com a vida anterior. Pois os bensatuais se destacam ainda mais quando cotejados com os males an-teriores. As coisas semelhantes entre si se conhecem por sua analo-gia, mas as que são contrárias agradam ou desgostam mais. Porexemplo, junta o negro com o branco: pelo mútuo contraste co-

* Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Acadêmico correspon-dente n. 99 da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona.

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meçarás a distinguir cada um por sua própria cor. O mesmo ocorrecom a fealdade, que, próxima da beleza, faz com que esta se torneainda mais formosa e a outra mais disforme.

Carta 78 (4, 5) de Bernardo de Claraval a Suger, abade deSaint-Denis.

Em 1127 São Bernardo (1090-1153) se reconciliou com Suger(c. 1085-1151)1 . Em uma carta (n. 78)2 , Bernardo congratulou-seefusivamente com ele por ter reformado sua abadia, mas, sobretudo,por passar a viver uma vida verdadeiramente cristã, modesta, mesmoem meio ao fausto do poder3 .

Essa importante reforma e redecoração levada a cabo por Sugerem Saint-Denis, a mais régia das igrejas (originalmente um mosteiro),deu origem a uma nova arte, o gótico4 , que, em Saint-Denis, foi a maisperfeita expressão concreta da filosofia da metafísica da luz do Pseudo-Dionísio Areopagita (séc. V). No espetáculo poético da esfuziante ir-radiação da luz em Saint-Denis, a transcendência repousou na matéria,a luz na cor, a contemplação na ação.

1. Apesar da abadia de Saint-Denis ser um lugar régio, centro de educação de príncipes,não tinha boa reputação antes da chegada de Suger à abadia. Bernardo falava delacomo a sinagoga de Satanás e Abelardo criticava sua corrupção sob o abaciado de Adão,predecessor de Suger. Além dessa degeneração moral, havia ainda a decadência física. Ainfraestrutura arquitetônica estava quase em ruínas. JAQUES PI, Jéssica. La estética delrománico y el gótico. Madrid: A. Machado Libros, 2003, p. 257.

2. Obras Completas de San Bernardo VII. Cartas. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos(BAC), MCMXC, pp. 286-303.

3. Para a vida do abade Suger, o texto clássico é de PANOFSKY, Erwin. “O abade Sugerde S. Denis”. In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002, pp.149-190. Suger foi conselheiro de Luís VI (1081-1137) e Luís VII (1120-1180), eregente de 1147 a 1149, quando Luís VII se engajou na Segunda Cruzada. É conside-rado um dos maiores patronos da arte em toda a Idade Média. Dicionário Oxford deArte. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 512.

4. WILLIAMSON, Paul. Escultura gótica (1140-1300). São Paulo: Cosac & Naif,1998, p. 11.

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“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

Imagem 1

Rosácea do transepto norte da basílica de Saint-Denis. O tema é a criação, com Deus nocentro, os seis dias da criação no segundo círculo, o Zodíaco no terceiro círculo repre-sentando a harmonia da ordem celeste e, no círculo maior, os trabalhos dos homens querepresentam a ordem da terra. Tudo se expande e difunde a partir da irradiação do bem,exatamente como os escritos do Pseudo-Dionísio.

Feliz com sua obra, Suger descreveu-a em dois tratados, “Das obrasrealizadas durante sua administração” (De rebus in administratione sua

gestis) e o “Segundo livro da consagração da igreja de Saint-Denis”(Libellus alter de consecratione ecclesiae sancti Dionysii)5 . Ele concebeuseu monumento como uma obra teológica, naturalmente alicerçada einfluenciada pelos (supostos) escritos do patrono da abadia, São Di-nis6 . Todos os restos mortais dos reis que ali descansavam estavam nacompanhia de um túmulo sagrado, o do próprio Dionísio7 .

5. Os dois documentos foram publicados em El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos (ed. de Erwin Panofsky). Madrid: Ediciones Cátedra, 2004.Esta será a edição que embasará o nosso artigo.

6. Primeiro bispo de Paris, martirizado em 272. Na Idade Média, acreditava-se que SãoDionísio e Dionísio Areopagita eram a mesma pessoa.

7. DUBY, Georges. O tempo das catedrais. A arte e a sociedade (980-1420). Lisboa:Editorial Estampa, 1979, p. 104.

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Esses textos (Corpus Dionisiacum), os mais importantes da tradi-ção mística medieval, foram oferecidos ao rei Pepino, o Breve (715-768) pelo papa Paulo I (†767). Luís, o Piedoso (778-840) encomen-dou ao abade Hilduíno a tradução do códice grego. O trabalho foiconcluído em 835, mas a tradução foi mal feita, de modo que CarlosII, o Calvo (823-877) pediu uma nova tradução, desta vez ao “pai dafilosofia medieval”, o irlandês João Escoto Eriúgena (c. 815-885), queterminou o trabalho em 8628 .

Assim, no tempo do abade Suger, os escritos do Pseudo-Dionísiocirculavam em todos os ambientes intelectuais da Europa: de Hugo(1096-1141) e Ricardo de São Vítor (†1173) a Pedro Abelardo (1079-1142) e Pedro Lombardo (c. 1110-1164), todos o estudaram e o co-mentaram.

Mas qual a fundamentação filosófica para o esplendor de SaintDenis? Como o Pseudo-Dionísio estrutura a meditação filosófica deSuger exposta em seus tratados? Nosso objetivo nesse opúsculo é esta-belecer essa conexão, apresentar as linhas-mestras dos dois tratados deSuger e confrontá-los com os aspectos mais gerais dos textos doAreopagita, particularmente em seu texto Dos nomes divinos, uma dasobras do Corpus Dionisiacum.

Consonantia et claritas

Em Dos nomes divinos, o Pseudo-Dionísio afirma que as coisasdivinas, inteligíveis, revelam-se e mostram-se a nós de acordo com amedida da inteligência de cada um, embora permaneçam incompre-ensíveis para tudo aquilo que está no âmbito dos sentidos. No entan-to, o bem não permanece totalmente incomunicável, pois, por sua

8. MARTINS-LUNAS, Teodoro H. “Introducción”. In: Obras completas del PseudoDionisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), MCMXCV, p. 20.

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“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

bondade, manifesta seu “raio supersubstancial”, e assim ilumina cadacriatura proporcionalmente à sua inteligência (I, §1, 6 e §2, 10)9 .

Trata-se de uma concepção emanante, baseada no modelo da luz: oser tem a natureza da luz e emana como esta. O bem é belo, e é harmo-nia e luz, proporção e claridade. Esplendor. Luz. O homem deve mirá-la, amá-la e aspirar a ela10 .

Para o Areopagita, deve-se atribuir à Trindade a substância

supersubstancial, a inefabilidade, a “afirmação e negação de toda coisaque está acima de toda afirmação e negação” (II, §4, 42)11 . Emboratentemos sempre definir o uno, ao fim das contas, dele não podemosdizer nada: isso é o que exige o seu programa de teologia negativa –uma reflexão sobre a inadequação existente entre todas as nossas deno-minações, baseadas na pluralidade e na contraposição12 . Nossa lingua-gem, imperfeita, somente expressa os símbolos do inefável (que é averdadeira natureza do mundo), nunca o próprio inefável13 .

O bem, “divindade superdivina”, envia os raios de sua bondadeabsoluta. É como o Sol que, pelo simples fato de existir, ilumina as

9. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos (introd., trad. e notas deBento Silva Santos). São Paulo: Attar Editorial, 2004, p. 59-60.

10. TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la estética. II. La estética medieval. Madrid:Akal Ediciones, 2002, p. 33.

11. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 73.

12. FLASCH, Kurt. El pensament filosòfic a l’Edat Mitjana. D’Agustí a Maquiavel.Santa Coloma de Queralt: Obrador Edèndum, 2006, p. 76.

13. O inefável é aquilo que, por sua beleza indescritível, não se pode nomear oudescrever, e, por isso, tem caráter incomunicável, indizível. Não obstante suainacessibilidade substancial, o prazer que causa ao seu contemplador é inebriante,encantador. Para o Areopagita, o inefável é o próprio bem, que é verdadeiro e real, istoé, Deus. De modo muito inferior, a sensação do inefável está presente em muitassensações humanas (a música, o amor, a liberdade etc.). Esse tema foi abordado pelofilósofo francês (de origem russa) Vladimir Jankélévitch (1903-1985).

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coisas que podem participar de sua luz. Mais: o bem é tão perfeito queseus raios não só O difundem, mas também fazem com que os seresinferiores tendam aos superiores e tornem o desejo do bem algo imu-tável e elevado.

Por exemplo, as luzes das várias lâmpadas de uma casa, mesmoque totalmente imanentes umas das outras, mantêm sua distinção re-cíproca, que subsiste, e estão “unidas na distinção e distintas na união”.Pois todas essas luzes se unem em “uma só luz e fazem brilhar umaúnica luz indivisível” (II, §4, 45)14 .

Tudo isto provém da Bondade, causa universal da união e da reci-procidade existente no “ordenamento supracósmico” (IV, §2, 102-104)15 . Exatamente como o planejamento espacial da rosácea dotransepto norte da basílica de Saint-Denis: o Bem, no centro de tudo,

...é causa também dos movimentos da enorme evolução celeste,que sucede sem rumor, e das ordens, das belezas, das luzes e dasestabilidades das estrelas e dos vários cursos de algumas estrelaserrantes e do retorno periódico aos seus pontos de partida dasduas luminárias que a Sagrada Escritura chama grandes16 , porcujo curso são definidos os dias e as noites, e medidos os mesese os anos, que precisam os movimentos cíclicos do tempo e dascoisas que estão submetidas ao tempo, os enumeram, os orde-nam e os contêm (IV, §4, 112)17 .

14. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 73.

15. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 91.

16. “Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite;que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos; que sejamluzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra’, e assim se fez. Deus fez os doisluzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro para governara noite, e as estrelas. Deus colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, paragovernarem o dia e a noite, para separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom”(Gn 1,14-18); “Ele fez os grandes luminares: porque o seu amor é para sempre! O solpara governar o dia, porque o seu amor é para sempre! A lua e as estrelas para governa-rem a noite, porque o seu amor é para sempre!” (Sl 136 (135) 7-9).

17. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 93.

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Paz. Harmonia. Ordem. Hierarquia. Todos esses conceitos, comple-tamente estranhos ao homem atual, estruturavam a percepção das sensibi-lidades letradas dos séculos XI-XII para as coisas sublimes, para a concór-dia, a adequação, a conformidade18 . Tudo a partir da difusão da luz:

A luz deriva do bem e é imagem da bondade; por essa razão cele-bra-se o bem chamando-o luz como o arquétipo que se manifestana imagem (...) a imagem onde se manifesta a bondade divina, istoé, este grande sol todo luminoso e sempre reluzente segundo atênue ressonância do bem, ilumina todas aquelas coisas que sãocapazes de participar dele e tem uma luz que se difunde sobretodas as coisas e estende sobre a totalidade do mundo visível, atodos os escalões de alto a baixo, os esplendores dos seus raios, e, sealguma coisa não participa nessa irradiação, tal fato não se deveatribuir à sua obscuridade ou à insuficiência da distribuição da sualuz, mas às coisas que não tendem à participação da luz por causade sua inaptidão em recebê-la (IV, §4, 117)19 .

E por não terem princípio nem fim, as inteligências divinas giramde modo helicoidal em torno do belo e do bem e, em relação às coisasinferiores, se movem em linha reta. O mesmo ocorre com a almailuminada, que se move em um movimento helicoidal de atos com-plexos e progressivos (IV, §8-9, 147-148)20 .

18. “Ordem ‘é o que podemos perceber no espetáculo dos planetas onde cada elemen-to ocupa seu lugar e sua ordem sem ser um empecilho para o outro’. Esta sentençaformulada no século XII no círculo da escola de Abelardo, sugerindo a harmoniacomum ao cosmo e à congregação dos homens, situa-se na longínqua herança daconcepção antiga, grega e romana, de ordo rerum. Desde a época dos pais da Igreja, osautores cristãos encontraram nos antigos, estóicos e sobretudo platônicos, um antigoquadro de reflexão sobre o sistema social concebido como uma concórdia de ordensreguladas de acordo com o modelo da harmonia dos planetas.” – IOGNA-PRAT,Dominique. “Ordem(ns)”. In: LE GOFF, Jacques, e SCHMITT, Jean-Claude (coords.).Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP:Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 305.

19. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 94.

20. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 99-100.Platão já afirmara no Timeu (VI, 33b): “Quanto à forma (do universo), concedeu-lhe amais conveniente e natural. Ora, a forma mais conveniente ao animal que deveriaconter em si mesmo todos os seres vivos, só poderia ser a que abrangesse todas as formasexistentes. Por isso, ele torneou o mundo em forma de esfera, por estarem todas as suas

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Em outra obra, Da hierarquia eclesiástica, o Areopagita deixa claraa forma como nós podemos ascender às coisas superiores:

Os seres celestes, devido à sua natureza intelectual, vêem a Deusdiretamente. Nós, pelo contrário, nos elevamos até onde pode-mos na contemplação do divino por meio de imagens sensíveis(I, §2, 373B)21 .

Os homens, particularmente aqueles que pertencem à hierarquia ecle-siástica, necessitam servir-se de signos sensíveis para se elevarem espiritual-mente às realidades do mundo inteligível, em direção ao divino (I, §5,377a; V, §2, 501D)22 . Ao ler o Pseudo-Dionísio, Suger aceitou essa escalade ascensão rumo ao mundo real, e tentou, de todas as maneiras, salvar asua alma, reformando a sua igreja e dando o exemplo para fomentar umzelo constante no cuidado da Igreja de Deus. E isso

...sem nenhum desejo de vanglória e sem exigir nenhuma retri-buição de louvor humano ou recompensa passageira, a não ser

extremidades a igual distância do centro, a mais perfeita das formas e mais semelhantea si mesma, por acreditar que o semelhante é mil vezes mais belo do que o dessemelhante.Ademais, por vários motivos, deixou lisa sua superfície exterior.”; e VI, 34a: “...portodas essas razões, a divindade eterna, tendo em mente a divindade que viria algum diaa existir, deixou-a lisa e uniforme, com todas as partes eqüidistantes do centro, completae perfeita e composta só de corpos perfeitos. No centro colocou a alma, fazendo que sedifundisse por todo o corpo e completasse seu envoltório, depois do que formou o céucircular com movimento também circular, céu único e solitário, porém capaz, emvirtude de sua própria excelência, de fazer companhia a si mesmo, sem necessitar deninguém nem de conhecimentos nem de amigos, mas bastando-se a si mesmo. Comtodas essas qualidades, engendrou uma vida feliz.” – PLATÃO. Diálogos (trad. deCarlos Alberto Nunes). Belém: EDUFPA, 2001, p. 69-70. O tema do círculo comofigura geométrica perfeita remonta, no mínimo, a Santo Agostinho. Em sua obra Sobre apotencialidade da alma (Petrópolis: Vozes, 2005), Agostinho dialoga com Evódio sobreas figuras geométricas, discutindo as propriedades destas, entre elas a igualdade, atéchegarem ao círculo, a figura geométrica mais perfeita. Agostinho diz (cap. 11, p. 58):“Quanto à figura mais excelente, não duvidará que seja aquela cujo perímetro estáeqüidistante do centro de tal maneira que qualquer ponto da superfície dista igualmen-te do centro, sem ângulos que impeçam a igualdade, de cujos centros podemos traçarlinhas iguais para qualquer dos limites da figura”.

21. “La jerarquía eclesiástica”. In: Obras completas del Pseudo Dionisio Areopagita. Madrid:Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), MCMXCV, p. 192.

22. “La jerarquía eclesiástica”, op. cit., p. 195 e 236-237.

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para que a Igreja, depois de nossa morte, não visse diminuídasua fortuna por algum engano ou fraude de alguém... (Suger,Das obras realizadas durante sua administração, I, 156)23 .

Deus é luz

Assim, embasado na metafísica da luz do Pseudo-DionísioAreopagita, Suger pôs mãos à obra. Entre 1137 e 1144, dirigiu pesso-almente a construção de um pórtico e fachada novos, além de umcoro e uma galeria coberta. No portal da igreja, Suger mandou gravarcom letras douradas e de cobre os seguintes versos:

Quem quer que tu sejas,caso queiras exaltar a glória dessas portas,que não te deslumbres com o ouro nem com os gastos,mas com o trabalho da obra.Pois a obra nobre brilha, mas esta obra,que brilha com nobreza,iluminará as mentes para que, sendo luzes verdadeirascheguem à luz verdadeira,onde Cristo é a verdadeira porta.A porta dourada define dessa maneira a luz interior:a mente estúpida se eleva em direção à verdade passando pelomateriale antes, imersa no abismo, ressurge à vista dessa luz.

E no lintel:Acolhe, juiz implacável, as orações de teu filho Suger,Faz com que, por tua clemência, eu esteja entre as tuas ovelhas.

(Suger, Das obras realizadas durante sua administração,XXVII, 12-22)24 .

Esse “poema” define muito bem qual era a função da obra de arteno pensamento de um de seus mecenas mais audaciosos: iluminar a

23. El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos (ed. de ErwinPanofsky). Madrid: Ediciones Cátedra, 2004, p. 57.

24. El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos, op. cit., p. 65.

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alma e ajudá-la a caminhar passo a passo rumo à luz, graças, sobretu-do, à qualidade, perfeição e significado das (novas) formas artísticas.

Parafraseando Boécio (outro autor muito lido na Alta Idade Média)25 ,Suger quis fazer com que as coisas existentes se aproximassem o máximopossível das formas essenciais26 . Em outras palavras, ele tentou estreitar adistância entre a coisa concreta (id quod est) e sua essência (esse), ao colocar omundo material a serviço da elevação espiritual, ao modelar os edifícios eincrementar os tesouros da Igreja, e, sobretudo, ao ajustar a reforma de suaconstrução às “harmonias sublimes do sobrenatural”27 .

Em seu conjunto, o esquema decorativo foi inspirado pelos escri-tos de Hugo de São Vítor (1096-1141)28 , mas todo o alicerce filosó-fico pertence à inspiração de natureza neoplatônica dos escritos doPseudo-Dionísio29 .

Imagem 2

25. Juntamente com Agostinho e o próprio Pseudo Dionísio Areopagita.

26. FLASCH, Kurt. El pensament filosòfic a l’Edat Mitjana, op. cit., p. 89.

27. DUBY, Georges. “Arte e sociedade”. In: DUBY, Georges e LACLOTTE, Michel.História Artística da Europa I. A Idade Média. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997, p. 60.

28. WILLIAMSON, Paul. Escultura gótica (1140-1300), op. cit., p. 12.

29. JAQUES PI, Jéssica. La estética del románico y el gótico, op. cit., p. 257.

Fachada ocidental da igreja

da abadia de Saint-Denis,

consagrada em 1140 (con-

forme gravura de A. e E.

Rouarge, antes da restaura-

ção de 1833-1837).

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Suger quis que todo o interior da igreja fosse invadido pela luz.Sua obra é o apogeu das inovações monásticas do século XI30 . Mas àfilosofia mística Suger legou uma das passagens mais deslumbrantespara a plena compreensão do simbolismo do concreto como suporte àcontemplação das realidades celestes:

Assim, por puro amor à Mãe Igreja, contemplamos esses dife-rentes ornamentos novos e antigos, e vemos a admirável cruz deSanto Elói, jóia incomparável, que o povo chama “Crina”, postaacima do altar de ouro. Então digo, suspirando do mais profun-do do coração: “Toda pedra preciosa é teu ornamento, o sárdonix,o topázio, o jade, o crisólito, o ônix e o berilo, a safira, ocarbúnculo e a esmeralda31 . Para aqueles que reconhecem aspropriedades das pedras preciosas, salta à vista, para grande as-sombro, que, da lista mencionada, só nos falta o carbúnculo,mas as outras abundam copiosamente.Então, quando por causa da dileção ao decoro32 da casa de Deus,o agradável aspecto das pedras preciosas de múltiplas cores medistancia, pelo prazer que produzem, de minhas próprias preo-cupações, e quando a honesta meditação me convida a refletirsobre a diversidade das santas virtudes, trasladando-me das coi-sas materiais para as imateriais, creio residir em uma estranharegião do orbe celeste, que não chega a estar inteiramente nasuperfície da terra nem na pureza do céu, e creio poder, pelagraça de Deus, trasladar-me de um lugar inferior para outro

30. DUBY, Georges. “Arte e sociedade”, op. cit., p. 60.

31. “Assim diz o Senhor Iahweh: Tu eras um modelo de perfeição, cheio de sabedoria,de uma beleza perfeita. Estavas no Éden, jardim de Deus. Engalanavas-te com todasorte de pedras preciosas: rubi, topázio, diamante, crisólito, cornalina, jaspe, lazulita,turquesa, berilo; de ouro eram feitos os teus pingentes e as tuas lantejoulas. Todas essascoisas foram preparadas nos dias em que foste criado” (Ez XXVIII,12-13).

32. No original, decorus (acatamento das normas morais, decência). Segundo Suger, esseconceito, associado ao de convenientia (concórdia), determina a utilização das pedraspreciosas na missa, pois elas fazem com que o espectador concentre seu olhar nelas eassim sua mente seja captada para o centro do sacrifício de Cristo no altar. JAQUES PI,Jéssica. La estética del románico y el gótico, op. cit., p. 269, nota 314.

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superior, de um modo anagógico (Suger, Das obras realizadasdurante sua administração, XXXIII, 26-14)33 .

Com base em Ezequiel, Suger ornamenta a decoração do altar emedita as santas virtudes das pedras preciosas. Na Idade Média, acredi-tava-se que as pedras tinham poderes curativos34 . O tema foi herdadoda Antiguidade: com base na História Natural, de Plínio, o Velho,Isidoro de Sevilha (c. 560-636) descreve, em suas Etimologias, a ori-gem de pedras verdes (doze classes), rosas, púrpuras, brancas, negras,cristalinas, cor de fogo, douradas e de cores variadas, e afirma que aorigem das gemas remonta às montanhas do Cáucaso, quando Pro-meteu colocou um fragmento de pedra em um ferro e o transformouem um anel35 .

Seja como for, Suger descreve um estado quase de transe induzido

ao referir-se ao efeito hipnótico das cores das gemas, que fazem comque seu espírito seja transportado para outra dimensão (como umaexperiência premonitória da vida após a morte, e da beleza do encon-

33. El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos, op. cit., p. 79-81, confrontado com JAQUES PI, Jéssica. La estética del románico y el gótico, op. cit., p.269-270.

34. Por exemplo, Afonso X, o Sábio, entre 1252 e 1284, mandou traduzir um Lapidárioárabe para o castelhano. Nele, “apresentam-se 360 pedras, cujas propriedades estãorelacionadas aos 360 graus do Zodíaco, trinta pedras para cada um dos 12 signos. Cadauma recebe suas propriedades físicas e suas virtudes operativas das estrelas que formamas constelações. A maior parte das descrições das pedras traz a indicação de uso para otratamento de doenças, mas também seu emprego nas mais diversas circunstâncias davida cotidiana. As receitas combinam, freqüentemente, o uso de partes de animais, eum bom número delas emprega também as plantas. Pedras, plantas, animais, seres sutise astros intervêm continuamente na vida humana.” – MATTOS, Carlinda MariaFischer. A classificação dos seres no “Lapidário” de Alfonso X, O Sábio. Tese de doutorado,UFRGS, 2008.

35. SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías II. Madrid: Biblioteca de AutoresCristianos (BAC), MCMXCIV, p. 279. “Nos casos em que se interessavam por expli-cações naturalistas, recorria-se à Naturalis historia de Plínio, o Velho, morto no ano de 79d. C.” – FLASCH, Kurt. El pensament filosòfic a l’Edat Mitjana, op. cit., p. 110.

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tro com a verdadeira Luz). A seguir, opondo-se à tradição cisterciense,ele confessa que lhe compraz que os objetos mais valiosos sirvam, aci-ma de tudo, à administração da Santa Eucaristia. E uma vez mais elerecorre à Bíblia para fundamentar a sua escolha pela suntuosidade:

Cada qual siga sua convicção36 . Confesso que a mim me comprazsobretudo que os objetos de grande valor, os objetos mais luxu-osos, devem servir acima de tudo a administração da Sacrossan-ta Eucaristia. Se os vasos de ouro das libações, os copos de ouroe os pequenos almofarizes serviam, segundo a palavra de Deus ea ordem do Profeta, para recolher o sangue de bodes e novilhosou das vacas vermelhas, quanto mais os cálices de ouro, as pe-dras preciosas e tudo que existe de mais valioso entre todas ascoisas criadas deve ser exposto, com reverência constante e ple-na devoção para receber o sangue de Cristo37 . Certamente nemnós nem nossas possessões são suficientes para esse serviço. (...)Os detratores objetam que uma mente santa, um espírito puroe uma intenção fiel deveriam ser suficientes para a administra-ção da Santa Eucaristia, e nós também afirmamos explícita eexpressamente que essa disposição interior é essencial. Mas re-conhecemos que nos ornamentos externos dos santos cálices nãodeve haver nenhum outro propósito que não seja o serviço dosagrado sacrifício, com toda a pureza interior e toda nobrezaexterior. Pois em todas as coisas devemos servir de uma maneirauniversal e com máxima decência a Nosso Redentor, que emtodas as coisas de uma maneira universal e sem qualquer exce-ção não se negou a nos ajudar; que uniu a sua natureza à nossasob a forma de um único e admirável indivíduo que, colocando-nos à sua direita nos prometeu que, em verdade, possuiríamos oseu reino38 , Nosso Senhor que vive e reina pelos séculos dosséculos39 (Suger, Das obras realizadas durante sua administração,XXXIII, 29-19)40 .

36. Rm 14, 5.

37. Hb 9, 13-14.

38. Mt 25, 33.

39. Tb 9, 2; Ap 1, 18; 5, 14; 11, 15; 15, 7.

40. El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos, op. cit., p. 80-83,confrontado com JAQUES PI, Jéssica. La estética del románico y el gótico, op. cit., p. 270-271.

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Conclusão

A filosofia do Pseudo-Dionísio Areopagita impregnou a medita-ção estética do abade Suger de Saint-Denis, de modo que lhe propi-ciou uma experiência místico-sensorial de profundo e duradouro al-cance para a história da arte no Ocidente Medieval. A busca do luxo eda suntuosidade no cerimonial, e sobretudo a escolha da inundação daluz através dos vitrais fez com que o Suger “arquiteto” agisse como umfilósofo, um neoplatônico do século XII41 .

Assim, propondo-se a “com todo o ânimo e empenho de sua menteacelerar a ampliação daquele lugar”, Suger, o regente do reino e filho decamponeses entusiasmado com a metafísica da luz do Areopagita, sem osaber, sintetizou todas as formas arquitetônicas regionais em um estilonovo, que ele chamava moderno, e que hoje chamamos gótico.

A filosofia nunca mais influenciaria a arquitetura de maneira tãoduradoura.

Esse opúsculo é dedicado à memória de Erwin Panofsky (1892-1968) e Georges Duby (1919-1996), grandes intelectuais que se dedi-caram ao estudo de Suger e da arte medieval.

41. Parafraseio – e assim homenageio – Erwin Panofsky que, em sua magistral obraintitulada Arquitetura gótica e escolástica (Martins Fontes, 2001) assim se referiu aPierre de Montereau: “...parece que em 1267 o próprio arquiteto foi considerado umaespécie de escolástico (p. 17).

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LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMOPUNTO DE PARTIDA EN LA

FILOSOFÍA POLÍTICA DE ALBERTOMAGNO

Prof. Dr. José Ricardo Pierpauli

Investigador Independiente-CONICET

Introducción

Emitte lucem team et veritatem team, ipsa me deduxerunt et

aduxerunt in montem sanctus tuum et tabernacula tua…1 El textobíblico, utilizado por Alberto, bien puede ofrecer una síntesis de latotalidad de su sistema. Si a Tomás de Aquino puede adjudicársele conrazón el haber constituido una síntesis predominantemente metafísica,a su maestro Alberto Magno se le debe reconocer en justicia el méritode haber sido el primero en elaborar una síntesis de carácter teológico2 .Dicha labor de síntesis puede ser entendida en dos sentidos. El primerode ellos es de orden histórico-filosófico y el segundo es sistemático.Desde el primer punto de vista, fue Alberto el primer gran teólogo delsiglo XIII, en conciliar en cuanto era posible, la totalidad de las tesis delos filósofos precedentes, colocándolas al servicio de una mejorcomprensión del texto sagrado. Esa y no otra era su intención. Inclusosu cuidadoso comentario del corpus aristotélico se desarrolló en el marcode una fuerte controversia teológica. El Doctor universalis se entregó ala difícil tarea de estudiar y comentar los textos del Estagirita en laíntima convicción de que, en primer lugar, el mundo árabe había

1. SALMOS, 42-3.

2. Cf. KLUXEN, W. “Albert der Grosse”, en: Staatslexicon, erster Band, Freiburg-Basel-Wien, 1995, p. 90.

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realizado una indebida apropiación de sus tesis y, en segundo lugar,que las tesis del filósofo, mal interpretadas en muchos casos por losárabes, podían ser reexaminadas y puestas al servicio del saber teológico,sin por ello traicionar su lógica interna3 . De este modo Albertocaracterizó aquello que se denominó el aristotelismo cristiano,diferenciándolo definitivamente del averroista4 .

Desde el punto de vista sistemático debe señalarse que fue en elinterior de la sagrada teología donde el Doctor universalis articuló los puntosde partida de las diversas disciplinas a las que se abocó durante su largalabor científica. En efecto, para nuestro caso, dos son las disciplinas que searticulan armónicamente, a fin de explicar el alcance del concepto de lux

en la filosofía práctica de Alberto. Ellos son la psicología racional y lafilosofía política. A su vez, ambas disciplinas se explican desde el interiorde la Suma Teológica de Alberto. El caso del concepto de lux, de su metafísicay de su alcance en orden a la filosofía política, constituye tal vez un buenejemplo de lo dicho. Así pues, el ámbito de la psicología racional, el de lateología y por último, el de la filosofía política constituyen los tres nivelesen los que el presente estudio se desarrolla.

A través del concepto de lux une Alberto la tradición neo-platónicacon la aristotélica. Dicha unión se proyectó hacia el interior de la obrade Tomás de Aquino, mas fue desintegrándose progresivamente, tantoen el caso concreto de los discípulos de aquel como en el círculo de losde éste. La nueva separación del neo-platonismo respecto delaristotelismo no solo marcó el tono característico de las corrientes fi-

3. Cf. MANDONNET, P. OP. Siger de Brabant et L´Averroisme Latin au XIIImeSiècle.Fribourg-Suisse, 1899, p. XLIII y s.

4. Cf. GRABMANN, M. “Der Einfluss Alberts des Grossen auf das mittelalterlicheGeistesleben. Das deutsche Element in der mittelalterlichen Scholastik und Mystik”,en: GRABMANN, M. Mittelalterliches Geistesleben. Abhandlungen zur Geschichteder Scholastik und Mystik, T. II, Hildesheim/Zürich/New York, 1984, p. 325.

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losóficas desde principios del siglo XIV, sino que se proyectó hacia lamodernidad, dando origen a la filosofía racionalista e iluminista5 . Enel interior aun de la Edad Media, el trasfondo neo-platónico con queAlberto recibió y explicó el concepto de lux sirvió como base de lamística alemana6 . También, para el caso concreto de la filosofía políti-ca del Doctor universalis, el concepto de lux ofrece un acabado ejemplono solo de la integración entre el neo-platonismo y el aristotelismo,sino principalmente y a diferencia de su discípulo Tomás de Aquino,del predominio del matiz neo-platónico sobre el aristotélico.

Punto de partida del presente estudio lo constituye un texto, pordemás sugestivo, ubicado en el prólogo de Alberto a su Comentario a

la Política de Aristóteles. Allí dice: omnes philosophi radicem immortalitatis

– animae – vere possuerunt in intellecto adepto. ...Centraré pues mi atenciónen el examen de la filosofía política, vale decir, en el concepto de luz de lainteligencia humana. De particular relevancia es el hecho que tanto Albertocomo posteriormente su discípulo Tomás comenzaran sus respectivoscomentarios a la Política de Aristóteles con una reflexión que, referida alintelecto humano como punto de partida de la filosofía política, vinculandicho intelecto con su fuente primera, esto es, con la inteligencia deDios Creador7 . Esa relación será explicada en lo que sigue y a la mismaaludo mediante la expresión metafísica de la luz.

Así pues, la tesis que será defendida puede expresarse del modosiguiente: La justicia divina se expresa de dos modos en el orden de la

creación. Se expresa en primer lugar, como justicia natural y, en segun-

5. Para un examen de la proyección del movimiento albertista durante los siglos XIV yXV, cf. KALUZA, Z. “Les Débuts de L´Albertisme tardif (Paris et Cologne)”, en:HOENEN /De LIBERA, Albertus Magnus und der Albertismus. Deutsche philosophischeKultur des Mittelalters, Leiden/New York/Köln, 1995, ps. 207-246.

6. Un ejemplo de dicha influencia lo ofrece el Paradisus animae intelligentis de M. Eckhart.Cf. VAN DER BRANDT, R. “Die Eckhart-Predigten der Sammlung Paradisus AnimeIntelligentis näher betrachtet”, en: HOENEN / De LIBERA, op. cit., ps. 181-183.

7. Cf. SANCTI THOMAE DE AQUINO, Sententia libri politicorum, ed. Leon., T.XLVIII, Roma, 1971, p. 69-1/5.

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do lugar, se expresa como esencia, en la íntima constitución de cadaente. Alberto se vale del concepto de lux para explicar la metafísica y elalcance teológico del intelecto humano. Para el caso concreto del hombre,la justicia divina se expresa, en el acto creador, mediante la posesión delintelecto humano: …nos autem dicimus secundum fidem, quod anima

rationalis est essentialiter intellectus…8 A su vez, la justicia política resultade una labor creativa de la razón humana. Para dicha tarea se vale la razónde su luz connatural, que es uno de los modos de participación de la luzdivina en la criatura racional, y de la participación de aquella luz, a travésdel conocimiento de las cosas divinas. La formulación de la justicia políti-ca sobre la base de la justicia natural y sobre la base de la posesión del saberacerca de las cosas divinas caracteriza, a su vez, aquello que Alberto, enseguimiento de la doctrina de Alfarabi, llamó el intelecto adquirido. Elintellectu adeptus, al que debe entenderse como una perfección del intelec-to posible9 , es el punto de partida para la reflexión política y el resultadode la reconstrucción del orden de la creación según la medida de lainteligencia humana. Alberto explica su doctrina del intelecto adquiridoen dos lugares que, a nuestros fines, resultan determinantes. Ellos son, enla Suma Teológica y en su Comentario a la Política de Aristóteles. Sinembargo, importantes elementos pueden recogerse del comentario alos Nombres divinos de Dionisio, obra que, por su cercanía en el tiemporespecto del comentario tanto de la Ética a Nicómaco, como delcomentario de la Política del Filósofo resulta, como la Suma Teológica,de relevante valor hermenéutico10 .

8. ALBERTUS MAGNUS. Super Dionysium De divinis nominibus, ed. Colon., Ope-ra Omnia, Tomus XXXVII, Münster, 1972, p. 134-4.

9. Per hoc intellectui adepto sive possesso inteligibilis efficitur, quod ipsa est lumen agentisintellectus, qui proprius actus est intellectus possibilis… ALBERTUS MAGNUS. De XVproblematibus. ed. Colon., T., XVII, pars. I, Münster, 1975, p. 42-21 y s. Citado en:FRIES, A. Albertus Magnus. Ausgewälte Texte, Darmstadt, 1987, p. 180.

10. Cf. RODOLFI, A. Introduzione, traduzione, note e apparati, en: Alberto MagnoL´Unita dell´Intelletto. Milán, 2007, p. V.

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1 El conocimiento de la realidad como primera perfección dela luz natural de la inteligencia

El hecho de comenzar un estudio como el presente con una brevereconstrucción de la gnoseología realista de Alberto tiene por finalidadponer en evidencia que el Doctor universalis es, en este punto, tanplatónico como aristotélico. En efecto, Alberto se vale de la observaciónempírica a fin de ascender hasta la cúspide de todo conocimiento yhasta la primera causa de todo lo causado. Ya desde el punto de partidase ponen pues en evidencia la armónica combinación entre el realismoaristotélico y la orientación mística de todo el sistema de Alberto.Luego, desde una consideración general del sistema, el Doctor universalis

es más neo-platónico que aristotélico. Sobre el trasfondo de las prece-dentes consideraciones examinaré la psicología racional de Alberto, encuanto la misma se orienta hacia su filosofía política. El programa demi exposición en este punto será pues, el siguiente. Partiendo delpresupuesto que la constitución del objeto de conocimiento se corres-ponde, a los fines del acto de conocer, con la constitución del almahumana, examinaré primeramente la constitución del objeto deconocimiento. En segundo lugar, la organización de la psiquis humanay, en tercer lugar, los rasgos característicos del acto de conocer, queespecifica la relación que une al objeto de conocimiento con el sujetocognoscente.

O el objeto del conocer es forma pura, o bien es un compuesto demateria y forma. Dado que nuestra intencionalidad es principalmentepolítica, me ocuparé tan solo de subrayar la relevancia del ente concre-to y de su orientación teleológica que es el hombre. Desde un puntode vista general, la materialidad del objeto es el primer centro dereferencia de los sentidos. Su forma constitutiva, para el caso, el almahumana, fluye desde el interior del compuesto. Veamos de qué modoestá organizada el alma humana en correspondencia con la estructuraóntica del objeto de conocimiento. Debemos partir de los tres grados

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delineados por Aristóteles para caracterizar el alma en general. Así pues,distinguimos el alma puramente vegetativa, el alma sensitiva y el almaintelectiva, que es la forma superior de organización y el motor delalma misma… anima est instrumentum intelligentiae, secundum quod

lumen animae intellectivae est movens…11 El Doctor universalis iden-tifica aquí, una vez más, la inteligencia con la idea de lux. Sin embar-go, aclara que, en rigor, dicha luz debe identificarse con propiedad alllamado intelecto agente al que debe la alma su propia existencia:…anima non habet esse intellectualis nisi per intellectum agentem…12

El intelecto agente, cuya función es esencialmente activa, ofrece alllamado intelecto posible, el resultado de su actividad. De este modo,a la función activa del intelecto agente, le corresponde la función pasivadel intelecto posible. Es mediante la dinámica de ambas operacionesdel intelecto que puede alcanzarse aquel hábito al que Alberto deno-mina intelecto adquirido. A su vez, desde el punto de vista de lanaturaleza del objeto de conocimiento, debe aclararse que en la mediaen que el objeto es conocido en su dimensión meramente teorética, elintelecto se vale de su función especulativa, mientras que cuando nosorientamos hacia el objeto, en cuanto a los modos posibles de alcanzarsu finalidad propia, nos valemos del intelecto práctico. Dichas funcio-nes, la especulativa y la práctica, caracterizan lo que podríamos llamarla dimensión operativa de la inteligencia, en cuanto que el intelectoposible y el agente caracterizan la dimensión quasi-estática de lainteligencia. Digo quasi estática pues pretendo dejar a salvo la actividaddel intelecto agente. El intelecto posible y el agente despliegan sus fun-ciones, diríase, en el interior de la inteligencia misma, mientras que elpráctico y el especulativo se definen por su radical orientación extra

animae. Por último las cuatro funciones intelectivas, la pasiva, la activa,

11. ALBERTUS MAGNUS. Super Dionysium De divinis nominibus. ed. Colon.,Opera Omnia, Tomus XXXVII, Münster, 1972,p. 121-59.

12. ALBERTUS MAGNUS. op. cit. ps. 134 y 135.

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la especulativa y la práctica, alcanzan su coronación mediante el hábitollamado por Alberto intelecto adquirido. El mismo se caracteriza porla reconstrucción del orden de la creación en la inteligencia humana,según los límites de ésta. De lo dicho se deduce claramente que enverdad la totalidad de la actividad intelectiva encuentra su origen en elintelecto agente y que el intelecto adquirido constituye una perfección,como se dijo, del intelecto posible, en cuya esfera se consolida el actoradical del conocer13 . Con todo, la materialidad del ente concreto,objeto de conocimiento, es el primer dato que se nos ofrece aconsideración. Así pues, a la materialidad del objeto le corresponde elnivel sensible de organización del alma humana y a la forma que fluyedesde el interior del objeto de conocimiento, le corresponde laorganización intelectiva del alma humana.

Veamos a continuación de qué modo es posible el acto de conocer, sinperder de vista que es a partir del acto de conocer que se constituye final-mente la verdadera ciencia, objeto del intelecto adquirido, y la que es ubicadapor Alberto como presupuesto de la política. Ante todo, señala Albertoaquello que es característico del intelecto humano: …inspicere simplicem

quidditatem rei est hominis, sicut in quo terminatur eius cognitio…14

Nuestros sentidos se orientan radicalmente hacia lo tangible. Hay, en esteprimer momento, lo que podría denominarse un contacto meramentematerial entre la capacidad sensitiva y la materialidad del objeto15 . Sinembargo, para Alberto apprehendere est accipere formam16 . El único modoposible de tornar compatible la aprensión intelectiva con un objeto real deconocimiento que es materia y forma y que se nos ofrece primariamentecomo pura materialidad es proceder a la des-materialización de dicho obje-

13. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., ps. 114-65 y s.

14. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., ps. 134-46.

15. Cf. SCHNEIDER, A. Die Psychologie Alberts des Grossen, Nach den Quellen dargstellt.Münster, 1903, ps. 88 y s.

16. ALBERTUS MAGNUS. Summa de creaturis, De homine. ed. A. Borgnet, Volumentrigesimum quintum, París, 1896. Citado en FRIES, A. op. cit., p. 134.

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to, pues, como fue dicho, es desde el interior de la materia desde dondefluye la forma que es el auténtico objeto de aprensión del intelecto huma-no. Dicha des-materialización se produce, según el Doctor universalis, deconformidad con cuatro pasos sucesivos. En el primero de ellos los senti-dos captan una primera expresión de la forma, pero aún unida a la materia.Dicho de otro modo, los sentidos captan un objeto compuesto de materiay forma, aun cuando la forma no hubiera sido enteramente separada de lamateria. Se trata, si se quiere, de la primera visión del objeto, que opera-mos a través de uno de los sentidos exteriores o de la combinación devarios. En el segundo paso corresponde la primacía a la tarea de las potenciasimaginativas, mediante la constitución de la representación del objeto enel interior de la psiquis humana. Aquí no hay en rigor una completa des-materialización, pues el fantasma que representa la cosa real no se nosofrece desprendido de las cualidades materiales tales como color, tamaño,posición etc.

Una vez constituido el fantasma tiene lugar, en un tercer momen-to, la captación de ciertas cualidades propias del objeto que no sonalcanzadas por la pura sensitibilidad. Tal es el caso de cualidades comola afabilidad, la amistad y la delectabilidad. Recién en un cuarto mo-mento procede el intelecto agente a captar la forma pura, desprendidade toda materialidad. De este modo queda constituida, no la formasegún que antes fuera descubierta en la materialidad del objeto, sino almodo de specie o intentio. La specie constituye la representaciónintelectiva de la esencia del objeto de conocimiento, siendo finalmen-te este tipo de aprensión el que da origen al auténtico conocimiento, elcual es propio solo del hombre17 . Es recién en este momento cuandonace lo que llamamos un cierto contacto espiritual entre el objeto deconocimiento y el sujeto cognoscente18 .

17. Cf. SCHNEIDER, A. op. cit., p. 185.

18. Cf. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., citado en FRIES, A. op. cit., ps. 134-136.

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2 Transformación de la gnoseología aristotélica en el interiordel neoplatonismo de Alberto Magno

Ahora bien, conviene recapitular el significado del acto de conocera partir del alcance que Alberto le otorga al concepto de lux. Dos tiposde luces pueden ser diferenciadas en principio19 . Una de ellas es la lux

vera, esto es la luz como fuente de toda luminosidad que solo en Diostiene su lugar. El segundo es la luz participada en el orden de las criatu-ras. A su vez, en el ámbito de dicha participación deben subdistinguirsedos nuevos niveles de significación. En primer lugar, posee el hombrela luz del intelecto básicamente identificado con el intelecto agente20 .En segundo lugar, las cosas nos ofrecen su propia luminosidad en la me-dida en que conocemos sus esencias. Así pues, Dios es la fuente de luztanto del hombre, como de las demás cosas creadas.

Dios-lux vera

Luz participada en las criaturas:

Intelecto agente Esencia del objeto de conocimiento

19. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae sive mirabilis scientia Dei. ed. Colon.,Opera Omnia, Tomus XXIV, pars I, Münster, 1978, ps. 15-41.

20. Et ideo dicitur a quibusdam esse in horizonte aeternitatis ettemporis. Et intellectus etiam,qui fluit ex ipsa, secundum quod ipsa emanat a causaprima et stat per ipsam in esse, propter hocvarius in se et in speculatione, quoniam id quod fluit ab ea, secundum quod ipsa est resolutionaturae intellectualis primae conversa ad primam causam per lucis suae participationem, est inea sicut lux et estintellectus agens… ALBERTUS MAGNUS. De unitate intellectus. Ed.Colon., Opera Omnia, Tomus XVII, pars. I, Münster, 1975, ps. 22-9.

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Veamos de qué modo Alberto prolonga el alcance de la gnoseologíaaristotélica, mediante la utilización de los elementos neo-platónicosrecibidos y reelaborados en el nivel teológico. En efecto, dichagnoseología, básicamente de origen aristotélico, encuentra su necesariocomplemento en el marco de la Suma Teológica del Doctor universalis,proyectándose, no solo al nivel práctico en el que la política y la éticase inscriben, sino aun al conocimiento místico. En efecto, el auténticoconocimiento tiene lugar cuando conocemos la esencia de cada cosa,su relación de participación respecto de la luz divina y, además, el ordentotal de la creación, según su disposición jerárquica, determinada por gra-dos de mayor o menor proximidad, en el orden de la perfección, respectode Dios, suma perfección, desde el que todo fluye y hacia quien todacriatura se orienta como a su última perfección21 . A su vez, el conocimientoracional de las cosas creadas nos permite iniciar un ascenso que, trascendiendolos límites de la razón humana, nos eleva al conocimiento místico: Est

enim impressio quaedam et sigillatio divinae sapientiae in nobis, ut mens

humana dei sapientes sit sigillum, impressa formis et rationibus causae primae

in sapientia sua creationis et reparantis et glorificantis sua causata22 . Unpoco más adelante agrega Alberto: Per talem igitur impressionem factam in

nobis constat, quod fit in nobis, nobis ascendentibus ad deum et ad ipsam,

sicut cera ascendit ad sigillum, et non e converse. Propter quod oratione

et devotione plus acquiritur quam studio23 .

21. Alberto ofrece una interesante clasificación del orden de la creación, desde la quepuede extraerse el siguiente pasaje. El mismo constituye la base teórica necesaria quenos permitió completar la gnoseología aristotélica con el esquema general neo-platónicoque predomina en la obra del Doctor universalis. Dice Alberto: ...Tertius ordo universi estad Deum, sicut dicit Dionysius, quod Deus omnibus aequaliter adest, sed non omnia sibiaequaliter adsunt; eo quod non aequaliter bonitates suas participant seu percipiunt.ALBERTUS MAGNUS. Summa de creaturis, De homine. ed. A. Borgnet, Volumentrigesimum quintum, París, 1896, p. 661.

22. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae.Op. cit.,ps. 1-34 y s.

23. ALBERTUS MAGNUS. op. cit. ps. 1-44 y s.

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El acto del conocimiento intelectual es solamente posible en virtudde la participación de la luz divina en la constitución de la inteligenciahumana y en virtud de la proporcionalidad que media entre laconstitución del intelecto humano y la constitución ontológica de losobjetos de conocimiento. Dicho acto se caracteriza por la aprensión dela quididad de la cosa, a la que aquí hemos puesto en sinonimia con laluz participada por Dios en las cosas. De este modo, conocer bienpuede definirse como la adecuación de la luz propia del objeto deconocimiento con la luz de la inteligencia humana. Luego, el objetode conocimiento es en primer lugar, la esencia del objeto, en segundolugar el orden de la creación en el que dicho objeto se inscribe y porúltimo, en lo que respecta a la orientación práctica de la gnoseologíade Alberto, lo justo natural que se expresa precisamente como ordo

naturae. …deus secundum naturales iustitiam est causa omnis naturales

iustitiae, quae est in rebus, inquantum ipse est causa propriae, idest

essentialis, operationis rerum. Ipse enim per suam iustitiam dat omnibus

ordinem secundum proportionem ad ea quae sunt suae naturae…24 Mas,dado que el concepto central que orienta el presente examen es laconstitución del llamado intelecto adquirido, punto de partida delconocimiento político, debe decirse que el conocimiento de la realidadnatural, alcanzado mediante la luz natural de la inteligencia, no resultaaun suficiente para constituir aquella perfección del intelecto posible.

3 El conocimiento de la sagrada teología como últimaperfección de la luz natural de la inteligencia

Si antes diferencié dos grandes niveles de significado para el con-cepto de lux, siendo el primero y analogante principal el de lux vera,

esto es en Dios mismo, conviene señalar ahora que la ciencia que

24. ALBERTUS MAGNUS. Super Dionysium De divinis nominibus. ed. Colon.,Opera Omnia, Tomus XXXVII, Münster, 1972, ps. 373-38.

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reconoce a Dios como su objeto propio, es decir, la sagrada teología, estambién luz en un sentido análogo al modo metafórico. En efecto,dicho conocimiento científico ofrece una nueva luminosidadsobreañadida a la luz natural de la inteligencia. Dicitur enim scientia

tua, quia ad deum est sicut finem. Hinc est enim, quod psalm dicitur:

Emitte lucem tuam et veritatem tuam; ipsa me deduxerunt et

adduxerunt in montem sanctum tuum et tabernacula tua25 . El texto sevale claramente de la dinámica exitus et reditus aportada por la filosofíaneo-platónica y muestra el reemplazo del bien por Dios como princi-pio y fin de ese movimiento26 . Así pues, la clasificación propuestahasta aquí admite una nueva distinción. En efecto, Dios, luz verdaderay fuente de toda luminosidad, se expresa de tres modos. En primerlugar, como fuente de luz en la propia criatura racional. Aludo aquí ala esencia o quididad de cada ente y a la luz de la inteligencia humana.Se expresa, en segundo lugar como justicia divina, según que el ordende la creación lleva implícito su sello y, en tercer lugar se expresaanalógicamente a través del saber científico que lo reconoce como ob-jeto, esto es la teología sagrada.

Sola autem illa est – vale decir, la teología sagrada – quae corelevat et elevatum purificat et in aeterna fundat immortalitateSap XV-3. Nosse te est consummata iustitia, et scire iustitiamtuam et virtutem tuam radix est immortalitatis. Hinc est, quoddicit Alfarabius in libro De intelletctu et intelligibili, quod omnesphilsophi in intellectu adepto divino radicem posueruntimmortalitatis animae27 .

Dos dificultades deben resolverse aquí. En primer lugar, de quémodo se conectan por un lado el conocimiento de lo real y, por el

25. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae. op. cit., ps. 2-68.

26. Cf. ANZULEWICZ, H. “Pseudo-Dionysius Aeropagita und das Strukturprinzipdes Denkens von Albert dem Grossen”, en: BOIADJIEV; KAPRIEV; SPEER, DieDionysius-Rezeption im Mittelalter. Brepols, 2000, p. 257.

27. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae. op. cit., ps. 1-58 y 2-1.

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otro, el saber teológico? En otras palabras, admite el sistema de Albertouna tajante separación entre el conocimiento de las cosas concretas yaquel que adquirimos mediante el estudio de las Sagradas Escrituras?La segunda dificultad: De qué modo puede resolverse la evidentedesproporción que media entre los límites del intelecto humano y lamagnitud del concepto de Dios como primero y último objeto deconocimiento? Respecto de la primera dificultad. Alberto resuelve lacuestión integrando el realismo aristotélico y la constitución, tambiénaristotélica, de materia-forma, en el interior de su esquema onto-teo-lógico de origen neo-platónico. En efecto, es conociendo la formacomo accedemos a la esencia, mas una indagación ascendente acercadel qué y de los por qué conduce al espíritu humano hacia la preguntapor Dios. En cuanto a la segunda dificultad. Alberto resuelve el pro-blema de modo parcialmente diferente que Aristóteles y que su discí-pulo Tomás de Aquino. El texto que sigue, elocuente por sí mismo,permite alcanzar una mayor claridad a los fines de nuestro asunto:

Et si obicitur, quod dicit Philosophus, quod dispositio nostriintellectus ad manifestissima naturae est sicut dispositiooculorum vespertilionum ad lucem solis, oculus autemvespertilionis nihil videt in lumine solis, sed fugit ipsum, ergoet intellectum noster manifestissima et prima fugit et nonquiescet in eis: dicimus, quod hoc accidit oculis vespertilionis,inquantum sunt vespertilionis, non in quantum sunt oculi.Oculi quippe herodii applicantur lumini solis in rota etquiescunt in ipso. Et sic accidit intellectui, inquantum nosterest, hoc est cum continuo et tempore reverberari a naturaemanifestissimis et primis. Inquantum autem intellectus est etquaedam natura divina, ut dicit Philosophus in X Ethicorum,nihil adeo convenit ei sicut quiescire in primis28 .

La luz de la inteligencia humana encuentra en la luz divina unlugar de reposo, así como las garzas encuentran reposo girando alrededor

28. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae. ps. 3-29 y s. Cf. Ibidem, p. 16-66.

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del sol. Alberto nos sugiere que el intelecto humano encuentra reposoen la reflexión de cada cosa por referencia a Dios. Así por tanto, elconocimiento de la realidad natural alcanza, mediante el conocimientoteológico, su última perfección en cuanto conocimiento29 . La doctrinadel texto se apoya en el carácter participado de la inteligencia humana,pero dicho carácter abre a la vez el paso a una nueva conclusión. Enefecto, según Alberto hay en el hombre algo de divino30 . Mediantedicha idea quiere significar que es precisamente el intelecto humano lodivino que hay en el hombre, siempre claro está, entendido de modoanálogo y participativo.

Nihil enim nisi intellectuale est intellectus divinus, prout ipselux est et causa omnium intellegibilium; et ex illo in nobis estscientia divina. Et hoc est quod dicit Psalmus XXXV-10: Inlumine tuo videmus lumen. Et illud signatum est super noslumine vultus tui, domine, dedisti laetitiam in corde meo31 .

Una observación retrospectiva de los textos comentados permiteahora demostrar que el intelecto adquirido, que es una perfección delintelecto posible, solo puede alcanzarse cuando el conocimiento detodo lo real es coronado mediante el conocimiento de la ciencia sagra-da. De este modo, la luz natural participada por Dios en el hombrealcanza, en la luz divina, su última perfección y es a la misma a la que

9. Intellectus noster diversis perficitur luminibus et elevatur; et ex lumine quidem connaturalinon elevatur ad scientiam trinitatis et incarnationis et resurrectionis, ex lumine autemfluente asuperiori natura ad supermundana elevatur, quaepotentia sola divina et voluntatesunt…Et his lumine desuper influente assentit et certius ea scit quam illa quae ex luminesibi connaturali accipit. ALBERTUS MAGNUS. Summa tehologiae, ps. 2-26.

30. La presencia de Dios en la inteligencia humana, entendida al modo de participaciónde la luz divina en la luz natural del intelecto, constituye, según Alberto, una garantíaa los fines de los conocimientos de rango inferior. Al respecto afirma: Est enim abintellectu divino sicut ab efficiente et ex intellectu divino sicut a primo formali et de ipso,prout est ars plena rationibus omnium quae sunt, et ad ipsum et propter ipsum sicut adfinem. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae, op. cit., ps. 3-11.

31. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., ps. 2-26.

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alude Alberto, tomando la expresión de Alfarabi32 , al referirse a dichointelecto. Conviene por último señalar, a propósito de la clasificaciónesquemática del significado del concepto de lux, que en el mismo con-texto teológico que venimos comentando, Alberto incluye unainteresante aplicación de su doctrina de los universales al problema delestatuto científico de la ciencia sagrada. En efecto, el Doctor universalis

distingue cuatro tipos de universales, en primer lugar, el universalpredicative, en segundo lugar, el universal exemplariter, en tercer lugar,el universal in significando y por último el universal in causando. Alprimer tipo pertenece la luz divina misma en cuanto solo de Dios sepredica, al segundo modo – exemplariter – vale decir toda vez que ununiversal se refiere a muchos entes, corresponde el modo de conocerhumano, según que el hombre se vale de la luz participada para conocer.Al tercer tipo de universal – in significando – corresponde la teologíasagrada en cuanto ciencia y, por último, al cuarto modo – in causando

– pertenece la luz divina que se refleja en la esencia de cada ente creado33 .

Aclarado pues el alcance y el sentido del concepto de intelecto ad-

quirido y su íntima relación con la idea de lux, conviene ahora resolverla siguiente cuestión: Cuando Alberto alude a la posesión del intelectoadquirido, nada menos que en el prólogo de su Comentario a Política

de Aristóteles, quiere darnos a entender que el conocimiento de la sa-grada teología y aun la misma contemplación mística constituyen algoasí como prerrequisitos para alcanzar el conocimiento práctico de laciencia política?

32. Cf. GILSON E. (ed.). “Liber Alpharabii de intellectu et inltellecto”, en: Les sourcesGreco-arabes de l´augustinisme avicennisant, Archives d´Histroire Doctrinale et Lettérairedu Moyen Age. París, 1929,ps. 117-82.

33. Cf. ALBERTUSMAGNUS. Summa theologiae. ps. 7-11 y s.

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4 A modo de conclusión: El conocimiento de la realidad a laluz de la ciencia sagrada como presupuesto de conocimientopráctico-político

Debe aclarase que Alberto34 , como su discípulo Tomás35 lo habíahecho antes, adjudica a la teología, además de su carácter primaria-mente especulativo, el carácter derivado y secundario de ciencia práctica.Si bien es verdad que todo conocimiento, y sin duda también el polí-tico, se perfecciona mediante el conocimiento de la teología y de lacontemplación de Dios, Alberto puntualiza, en su Comentario a laÉtica a Nicómaco – Super ethica – la importancia del ejercicio de lavirtud moral o política, como prerrequisito tanto para el ejercicio de laautoridad política como para el desarrollo de la vida política misma:…non oportet, quod alius intercedat pro disciplinato nisi sua discipli-

na36 . Así pues, si bien el contemplativo alcanza un mayor conocimientode Dios, dicha actitud tiene lugar una vez que el hombre puede librarsede las preocupaciones mundanas, a fin de dedicar su atención tan soloa Dios. El caso del hombre político es diferente según Alberto. Este nopuede soslayar las preocupaciones de la vida mundana, pero si puede yaun debe purificarlas mediante el ejercicio de la virtud política. Dichoejercicio contribuye, en el caso del político, a la preparación del almapara alcanzar su última perfección. No es por tanto requerido elconocimiento teológico al hombre político, sino solamente y nadamenos que la condición de hombre virtuoso.

In duplici ergo facie acceptus intellectus necesse est, quod duosfines habeas: unum scilicet operationum, et alterum

34. …in veritate sacra scriptura practica est et stat in opera virtutis vel tehologicae velcardinalis… ALBERTUS MAGNUS. op. cit.,ps. 13-58.

35. Cf. THOMAE AQUINATIS, Summa theologiae. I Pars, Q. I, art. 4, San Paolo,Torino, 1988, p. 5.

36. Cf. ALBERTUS MAGNUS. Super ethica. ed. Colon., Opera omnia, Tomus XIV,Pars I, Münster, 1968-1972, p. 1-54.

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contemplationum. Cum autem felicitas operative perficienshominem et purgans a passionibus operator ad impassibilitatemintelectus, ne passione alteratus ducatur et abducatur,passionibus autem non subiacens, sed aversus ab eis et depuratuset liber, perfectus sit ad contemplationem: constat, quod felici-tas civilis operative ulterius ordinatur ad felicitatemcontemplativam, quae est ultimum omnium bonorum…Civilisautem moderator, et non abstergit passionis; ergo purgatoriavirtute utitur; Politicus enim abstergere non potest passiones,vivens in domo et civitate, sed excellentias passionum sufficit intalibus moderari37 .

Sin embargo, el ejercicio de la virtud política presupone elconocimiento de las cosas políticas, vale decir, al ejercicio virtuoso dela vida política le antecede un conocimiento orientado primeramentecon finalidad práctica. Conocer la esencia de cada cosa es, según sedijo, conocer su orden constitutivo, y, agregamos ahora, su orientación

teleológica connatural. Así pues, dicho conocimiento nos ofrece unparadigma con finalidad normativa. Descubriendo la orientación na-tural de cada cosa hacia un fin, puede el hombre discernir, según el alcan-ce natural de la luz de su inteligencia, la lux divina al modo de lex naturae.Del encuentro entre la justicia divina, expresada aquí como justo natural,con la inteligencia humana, surge la justicia política. Vale decir, si antessostuve que la relación de proporcionalidad entre la luz de cada cosa, ma-nifestada como quididad o esencia, y la luz del intelecto agente, hacia posibleel acto del puro conocimiento, puedo afirmar ahora que la relación deproporcionalidad que media entre lo justo natural, expresado tanto enla cosa en sí, como en la inteligencia humana38 , torna posible laelaboración racional de la justicia política. Lo dicho aquí me permitereformular el esquema presentado más arriba.

37. ALBERTUS MAGNUS. Ethica. ed. A. Borgnet, T. VII, L. 1, Tr. 1, cap. 1.Citadoen: FRIES, A. op. cit., p. 188.

38. Cf. CUNNINGHAM, S. Reclaiming Moral Agency. The Moral Philosophy of Albertthe Great, Washington D. C., 2008, ps. 216-217 y 236.

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Justicia divina

(lux vera)

Justicia natural

(Como luz participada en las criaturas)

Como ius naturae en la en la orientación

inteligencia humana teleológica de cada cosa

Convendrá ahora volver nuestra atención sobre el texto que, to-mado del prólogo de Alberto a su Comentario a la Política de Aristóteles,dio origen al presente estudio. Allí dice Alberto:

Ptolomeus in Almagesto dicit, quod non est mortuus, quiscientiam vivificavit; nec fuit pauper, qui intellectui dominatusest, sive qui intellectum possedit. Ratio autem dicti est quoddicit Alfarabius in libro de Intellectu et Intelligibili, quodomnes Philosophi radicem immortalitatis – animae – verepossuerunt in intellecto adepto: secundum enim illumintellectum extendit se anima rationalis ad principiaincorruptibilis veritatis: nec potest esse quod mortale sit, quodsubiectum est incorruptibilis veritatis. Quia dicit Aristotelesin VI Ethicorum, quod unumquodque quod in aliquo est, estin eo secundum potestatem eius quod inest: et ideo siincorruptibilis veritas est in intellectu adepto, oportet quod etipse incorruptibilis sit. Haec etiam causa quare talis pauper

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esse non potest: quia cum pauper sit non sibi sufficiens, et talisex possessione et superpositione et pulchrorum et bonorumomnium sibi sufficiat ad utramque felicitatem, politicam scili-cet et contemplativam, pauper esse nunquam potest39 .

Como puede deducirse de lo dicho hasta aquí, Alberto alude, en laprimera parte de su texto, a un tipo de perfección del intelecto posibleque se obtiene mediante un conocimiento integral del orden de lacreación a la luz de la sagrada teología. Si bien Alberto no afirmaexplícitamente que el político deba reunir la condición de teólogo ode místico y, por el contrario, sostiene que le cabe, cuando menos, elejercicio purificador de la virtud política, el texto parece sugerir que elhombre, en su dimensión política, debe poseer ciertamente unconocimiento teológico de carácter orientador, pues la totalidad de suactividad se ordena finalmente hacia Dios como a su objeto. Es aquídonde adquiere la mayor significación el sentido de la dinámica exitus

et reditus que caracteriza la obra de Alberto y a través de la cual seconcreta la influencia neo-platónica antes señalada. En efecto, elconocimiento político parece presuponer una orientación espiritualbásica en orden a la trascendencia. El hombre político en que Albertopiensa es antes racional y más aun religioso. Sin embargo, ello noconlleva la pérdida de autonomía de la ciencia política respecto de laciencia sagrada. Aun cuando la conexión entre el Prólogo al Comentarioa la Política y el contexto teológico en Alberto es muy clara, debeseñalarse que el Doctor universalis orienta su filosofía política hacia lasrelaciones interpersonales como a su objeto material y al orden de lajusticia natural y política como a su objeto formal. Subiectum autem

sive materia est communicatio oeconomica et communicatio civiles

secundum ordinem recti et iusti, in qua ostenditur homo perfectus

secundum virtutem secundum quam naturaliter est homo animal

39. ALBERTUS MAGNUS. In politicorum Lib VIII. ed. A. Borgnet, París, 1891, p. 6.

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conjugale, et secundum quam homo naturaliter est animale civile40 .Alberto diferenció claramente la actitud contemplativa de la práctica.Refiriéndose a esta última afirma: …magis attenditur quam doctrina

quia sicut dicit in Ethicis, ad acquisitionem virtutis tria exiguntur, scilicet,

scire, vele, et perseverare in operibus difficilibus41 .

Por su parte el saber acerca de lo político se adquiere mediante lacombinación del método compositivo y el resolutivo. Si bien es sabi-do que el Doctor universalis se caracterizó por su agudo sentido de laobservación empírica, por lo demás, patente en sus trabajos dedicadosa las ciencias naturales, debe saberse también que dicho método encontrósu correcta aplicación al caso de la ciencia política. Est enim via

communis, ut dicit Aristóteles in III Physicorum, quod compositum non

cognoscimus, nisi cum scimus ex quipus, et quot, et qualibus est42 .Pero,como antes fue puntualizado, el sistema general de Alberto no pierdesu orientación neo-platónica, ni aun a propósito de la lectura que rea-liza de los textos de Aristóteles. La luz natural de la inteligencia continúaen la búsqueda de su última perfección en la lux divina. Un texto,tomado del Comentario a la Política de Aristóteles, muestra de quémodo concibe Alberto la política a la luz de la primera causa y fuentede toda perfección. Sicut dicit Aristóteles in II Physicorum, est natura

praeter rationem faciens impetum; quod esse non potest nisi ex vi

superioribus naturae alicuius, quae dominatur in complexione causarum43 .

De lo dicho puede deducirse, a modo de conclusión, que latendencia natural del hombre hacia el conocimiento de la verdad y de

40. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 6.

41. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 7.

42. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 9. Cf. GRABMANN, M. “Zurphilosophischen und naturwissenschaftlichen Methode in den AristoteleskommentarenAlberts des Grossen”, en: Angelicum, Volumen XXI, Roma, 1944, p. 51.

43. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 13.

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la consecución del bien político es debida a la participación de la lux

divina al modo de inteligencia. He puntualizado que, de un modomás propio, debe identificarse dicha participación con el intelecto agen-te. Ahora bien, el conocimiento político, desde que es útil paraencaminar al hombre hacia un fin eminentemente práctico, se valeesencialmente del conocimiento práctico. La luz del intelecto se mate-rializa, a los fines de la función práctica de la inteligencia, al modo deprima principia. Esto es, cuando el intelecto agente procura abstraer laforma rei, lo hace proyectando los primeros principios ubicados, segúnAlberto, en la synderesis. Dichos primeros principios adquieren el esta-tuto de iuris naturalis. Dice el Doctor universalis:…in veritate synderesis

est vis cum habitu principiorum iuris naturalis…44

Así pues, frente al caso concreto, de qué modo debo obrar paratraducir, según las circunstancias, el imperativo enunciado en el primerprincipio práctico, a saber, bonum faciendum et malum vitandum esse?Alberto explica que, una vez conocido el objeto, y sus leyes constituti-vas, debo preguntarme: De qué modo es posible actuar aquí y ahora? Larespuesta – debo obrar de este modo en concreto – resulta de confrontarlas exigencias de la naturaleza de la cosa junto con su natural orientaciónteleológica, con las variantes posibles que el caso concreto ofrece aconsideración. Es de eso modo, mediante el conocimiento de laorientación teleológica del objeto, que se traducen los llamadosprimeros principios prácticos, pues el restablecimiento del orden decada cosa es principalmente su propio bien. Con todo debemos dar unpaso más. En efecto, cuando alcanzamos la conclusión: aquí y ahora

debo actuar de este modo y no de otro, tiene lugar lo que Alberto llamala constitución de la conciencia moral obligatoria. Mas en su interioractúan, como se dijo, aquellos prima principia ubicados en el interiorde la synderesis. El Doctor universlis parece coronar aquí, en la synderesis

44. ALBERTUS MAGNUS. Summa de creaturis, De homine. op. cit., p. 593.

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y en el acto de configurar nuestras normas del obrar moral y político,la serie análoga de participación de la lux divina. La synderesis es porúltimo, luz participada de la inteligencia divina en la criatura racional:…sed dicitur scintilla conscientiae, eo quod conscientia sequitur ex synderesi

et ratione.El Doctor universalis define la synderesis del modo siguiente:...synderesis est specialis vis animae, in qua secundumAugustinum universalia iuris descripta sunt; sicut enim inspeculativis sunt principia et dignitates, quae non addiscithomo, sed sunt in ipso naturaliter, et iuvatur ipsis adspeculationem veri; ita ex parte operabilium quaedam suntuniversalia dirigentia in opera, per quae intellectus practicusiuvatur ad discretionem turpis et honesti in moribus, quae nondiscit homo, sed secundum Hieronymum est lex naturalis scriptain spiritu humano45 .

El texto reúne los elementos hasta aquí descritos. Así como el in-telecto agente es el motor de la inteligencia, la synderesis constituyeuna capacidad especial del alma humana en la que constan, desde elmismo acto de la creación, los derechos naturales, a través de cuyoscauces adquiere la persona humana, en cuanto animal político, laperfección en el orden de la política. Si la lex naturae es, en ciertomodo, una luz constitutiva en la persona, también lo son sus derechosnaturales. Lex naturae y ius naturae son pues los dos modos en que,por último, se especifica la lux divinae en la criatura racional. Los pri-

ma principia constituyen de este modo cierta presencia, porparticipación, de Dios en la criatura racional y la garantía firme paraformular las normas del obrar político virtuoso. El caso concreto delconcepto de lux nos permitió comprobar el alcance de la dinámicaneo-platónica exitus et reditus que dinamiza el sistema. Si antes sostuveque el orden de la psiquis humana se correspondía con el orden natu-ral, expresado en cada objeto de conocimiento y además aclaré que elconocimiento práctico tiene su origen allí donde conocemos al hombre

45. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 593.

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según su orientación teleológica connatural, subrayo ahora que lametafísica del Doctor universalis está condicionada por su teología yambas, por su mística. Si pues, la filosofía política depende en impor-tante medida de la metafísica de Alberto, también la política está con-dicionada por la mística. En efecto, es en virtud de dicha ordenaciónúltima que podemos afirmar dos cosas. La primera, que el hombrepolítico es también racional y religioso. La segunda, que el bien políti-co abre el cauce hacia la última perfección de la criatura racional. Es endicha perfección donde la inteligencia humana reposa contemplando aDios que es fuente de la luz sobrenatural y espiritual, así como lasgarzas, reposan contemplando el sol que es la fuente de la luz natural.

Neque est possibile nostro animo ad non-materialem illam ascen-dere caelestium hierarchiarum imitationem et contemplationem,nisi ea quae secundum ipsum est, materiali manuductione utatur,visibiles quidem formas invisibilis pulchritudinis imaginationesarbitrans, sensibiles suavitates sive fragantias invisibilis distributionisfiguras, et immaterialis luculentiae imaginem materialia lumina etsecundum intellectum contemplativae pulchritudinis discursas dis-ciplinas46 .

Mediante el recurso al texto de Dionisio el Aeropagita Alberto hatransformado definitivamente la gnoseología realista de Aristóteles. Esa través del conocimiento de las formas visibles que podemos alcanzarlas invisibles. La claridad y la fragancia de las cosas divinas solo puedenalcanzarse mediante la purificación del alma en el ejercicio de la virtudpolítica. Mas la virtud política está finalmente pre-ordenada por elconocimiento de la lex divina. Las formas de ordenación política quela razón práctica postula, iluminada por la luz natural participada en lasindéresis, constituyen modos posibles de perfección del intelecto ad-quirido. A su vez el centro de referencia del intelecto adquirido no esotro que el ejercicio de la virtud política, orientada hacia la últimacontemplación de la fuente de toda luminosidad en Dios.

46. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae, ed. cit., p. 17-22.

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AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO...

AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGONAS OBRAS DE MEISTER ECKHART E

MECHTILD DE MAGDEBURGMatteo Raschietti

Meister Eckhart: herege ilustre ou mestre de espiritualidade?

De acordo com o biógrafo suíço Kurt Ruh, o conceito de “místi-ca”, na história da pesquisa científica, indica um movimento e, maisespecificamente, uma época: a época da mística alemã. A questão, entre-tanto, é controversa em se tratando de Meister Eckhart: é correto afirmarque ele foi, antes de tudo, um místico? A palavra “mística”, de fato, podedar azo a uma espécie de “censura historiográfica”, na medida em que écontraposta à escolástica, considerada por alguns a expressão dominante emais desenvolvida do pensamento medieval. Essa forma de pensar, alémde não fazer jus à complexidade da realidade medieval, contribuiu paraalimentar uma interpretação minimalista de Eckhart como um escolásticomedíocre, ou como expressão de um pensamento nacional alemão cujosurgimento coincidiu com o fim da escolástica.

O juízo de Etienne Gilson a esse respeito contribui notavelmentepara jogar uma luz no túnel dessa controvérsia:

O pensamento de Eckhart não é simples, e é fácil explicar oembaraço de historiadores que querem encerrá-lo numa fórmu-la ou mesmo designá-lo por determinado nome. Alguns vêemnele, antes de mais nada, uma mística, outros uma dialéticaplatônica e plotiniana – e, provavelmente, todos têm razão.Mística e dialética estão longe de se excluírem. Talvez não seestivesse muito distante da verdade, representando Eckhart comouma alma devorada pelo amor a Deus, favorecida talvez por umsentimento intenso da presença divina e pedindo à dialética

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todas as justificações que ela era capaz de lhe dar. É notável emtodo caso que seus sucessores o tenham compreendido assim.Porque Eckhart deixou discípulos e, sem dúvida, não é por aca-so que esses discípulos se encontram ao mesmo tempo entre osmestres da espiritualidade cristã. Se esta não tivesse sido o solonutriz da especulação eckhartiana, as condenações doutrinaisde que foi objeto teriam posto um fim à sua história1 .

No seu pensamento místico, Eckhart não nega o conhecimentode matriz aristotélica, mas contesta sua validade absoluta. Se a verdadedo conhecimento se limita ao objeto conhecido, o turíngio impelecom decisão o conhecimento para o horizonte do não-objeto.E abrir-seao não-objeto significa abrir-se ao nada. Na abertura ao nada como ao serautêntico não se assiste, segundo o dominicano, a um conhecimento doser supremo mas a uma contínua criação de Deus na alma do homem.Nesse horizonte Deus cria o homem e o homem cria Deus. Se, portanto,a propósito de Eckhart se fala de um pensamento místico, há nele tam-bém uma dimensão metafísica, pois nas suas reflexões exegéticas da Sagra-da Escritura ele nunca abandona o plano do intelecto. Aliás, é possívelconstatar que ele procede com uma coerência extremamente racional,inclusive quando focaliza a sua problemática mística. Em Eckhart nãose verifica o divórcio entre mística e teologia.

A mística do Mestre dominicano foi exclusivamente uma místicaem língua vernácula, pois o latim era cada vez mais uma língua exclu-sivamente erudita (ao lado da sua elevada função litúrgica, que conser-vou ainda por séculos). O caso mais interessante é o da linguagem dossermões (junto aos tratados). Sendo que sua língua erudita era o latim,este deveria ter moldado e norteado também a linguagem dos ser-mões, como aconteceu com os humanistas alemães dois séculos de-pois. Mas não é assim. Estrutura e expressão da proposição são total-mente diferentes nas obras em alemão e nas obras em latim.

1. GILSON, E. Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martin Fontes, 1998. Tradução:Eduardo Brandão, p. 870-871.

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Meister Eckhart e os movimentos populares da sua época

Os séculos XII e XIII assistiram a um processo de transformaçãodas bases tradicionais mais estáveis da sociedade medieval, cujas causaspodem ser identificadas no crescimento demográfico, num renovadoimpulso mercantil e na concentração das populações nas cidades, comum consequente rearranjo social. Do ponto de vista cultural, a intro-dução das idéias aristotélicas e sua interpretação arábico-judaica nomundo latino forneceram novos elementos para o nascimento de no-vas correntes de pensamento, nem sempre em consonância com a or-todoxia da Igreja, que na época era a instituição religiosa e políticamais poderosa. De acordo com o juízo de Nachman Falbel,

a religiosidade desta época foge dos padrões oficiais porque tudoleva à busca de novas interpretações. Não foi por acaso que,neste período histórico, surgiram as novas ordens religiosas, compersonalidades como as de são Francisco de Assis e são Domin-gos. Por trás de tudo isso podemos verificar o profundo abismoque começou a se formar, separando a religião oficial, ditada porseus representantes, e a religiosidade popular, emanada de no-vas circunstâncias. A Igreja dessa época foi incapaz de enfrentara crescente onda de anticlericalismo, característica dessa novareligiosidade que parecia ansiar por uma religião mais humana,mais próxima do sentimento popular. Podemos ver um traço dehumanização, inspirado num cristianismo popular, até no re-pentino despertar da adoração pela Virgem dessa época2 .

Segundo esse mesmo autor, os séculos XII e XIII, do ponto devista da história da Igreja ocidental, poderiam ser chamados de séculosheréticos: “a palavra heresia (do grego hairesis, hairein, que significaescolher) acompanhou a vida da Igreja desde seus inícios, e para osescritores eclesiásticos o termo designava uma doutrina contrária aosprincípios da fé oficialmente declarada”3 . A característica principal das

2. FALBEL, N. Heresias medievais. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976, p. 93.

3. Ibidem, p. 13.

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heresias da baixa idade média é seu caráter popular, baseado numa “novavisão da instituição eclesiástica e do cristianismo como religião vigentena sociedade ocidental. [...] Na verdade, podemos ver na crítica heréti-ca, ou melhor dito, em parte desta crítica, uma tentativa de apontar oserros e os desvios da instituição eclesiástica, da sua intervenção no po-der secular à custa de sua missão espiritual; enfim, uma tentativa dealertar a sociedade cristã de que os seus representantes desvirtuaram averdadeira imagem da religião fundada por Cristo”4 . A instituição quemelhor representou a reação eclesiástica frente a esse fenômeno foi aInquisição que, aliada ao braço secular, incorporou a prática de man-dar à fogueira todos os que condenava como heréticos. Em 1229, noConcílio de Toulouse, foi criado oficialmente o Tribunal do SantoOfício, sob o pontificado de Gregório IX, e os Dominicanos “logo sepuseram à disposição da nova instituição, cabendo-lhes a tarefa de le-gislar e condenar os heréticos, entregando-os ao braço secular”5 . Paraexecutar essa prática, inquisidores experientes elaboravam manuais comvistas a orientar os perseguidores das heresias sobre seus fundamentosdoutrinários, assim como sobre os modos de conseguir a confissãodos acusados. Um dos mais famosos foi Bernard Guy que, além deescrever o manual Practica Inquisitionis haereticae praevitates, redigiuuma obra com o nome de Liber Sententiarum Inquisitionis Tolosanae,

“que revela muitos aspectos dos métodos utilizados para obter-se aconfissão do herético e levá-lo a contradizer-se até revelar a sua verda-deira crença”6 . Umberto Eco, no romance Il nome della rosa, apresentaum retrato desse homem pelas palavras de Adso de Melk, o noviçobeneditino protagonista da história:

Era um dominicano de quase setenta anos, franzino mas direitoem sua figura. Me impressionaram seus olhos cinzentos, frios,

4. Ibidem, p. 13-14.

5. Ibidem, p. 17.

6. Ibidem, p. 18.

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capazes de fitar sem expressão, e que muitas vezes teria visto, aoinvés, relampejar de forma equívoca, hábil tanto para esconderpensamentos e paixões, quanto para expressá-los de propósito.[...] Parecia-me que ele pedisse informações sobre as colheitas,sobre a organização do trabalho no monastério. Entretanto,apesar de colocar as questões mais inocentes, fitava seuinterlocutor com olhos penetrantes, depois colocava repentina-mente uma nova pergunta, e aí a vítima empalidecia e balbuci-ava. Dessa forma eu cheguei à conclusão de que, de algum modosingular, ele estava inquirindo, e valia-se de uma arma formidá-vel que todo inquisidor no exercício da sua função possui e ma-nobra: o medo do outro. Porque aquele que é inquirido diz aoinquisidor, pelo temor de ser suspeitado de algo, o que podeservir para tornar suspeito alguém outro7 .

É interessante mencionar, enfim, o desenvolvimento de um pro-cesso por heresia, como é descrito por Nachman Falbel em sua obra:

o processo movido contra o herético muitas vezes era feito de talmodo que o acusado ignorava o nome do próprio acusador, sen-do que mulheres, escravos ou crianças podiam servir de teste-munhas da acusação, mas nunca de defesa. Para obter a confis-são podiam-se utilizar métodos que não deixavam de ser, decerta forma, torturas, como, por exemplo, a fadiga, proposital-mente provocada, ou o enfraquecimento físico do acusado. Umavez apurada a culpa, concedia-se ao réu um prazo para que seapresentasse espontaneamente ao tribunal. Caso isso não ocor-resse, poderia ser denunciado pelo inquisidor e ser preso. Emcaso de confissão da culpa, dava-se ao acusado a oportunidadede retratar-se, sendo que, neste caso, deveria submeter-se a umasérie de penitências, flagelações, peregrinações e, em casos maisgraves, à prisão. Porém, se o acusado persistisse em seu pecado,era julgado e entregue ao braço secular que, por sua vez, o con-duzia à fogueira8 .

Meister Eckhart, forçado no final de sua vida a enfrentar um pro-cesso inquisitorial por heresia, que visava esmagá-lo como intelectual,

7. ECO, U. Il nome della rosa. Milano: Bompiani, 1980, p. 303-305.

8. FALBEL, N. Op. cit., p. 17.

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como religioso e como homem, reagiu – como escreve Loris Sturlesenum artigo publicado em 2001 –

com audácia e habilidade, apelando para seus estimadores, deum lado, e à Sede Apostólica do outro. Fazendo propaganda doseu processo, que de acordo com as prescrições da autoridadeeclesiástica deveria ter acontecido “sem suscitar escândalo”, ouseja, rápida e eficazmente e de forma absolutamente reservada,Eckhart conseguiu provavelmente engatilhar aquelas dinâmicaspolítico-eclesiásticas complexas que causaram a avocação do pro-cedimento de Colônia para Avignon, apesar da oposição ferre-nha dos juízes delegados do Arcebispo, os quais chegaram arecusar uma carta testemunhável9 para Eckhart. Com a avocaçãodo processo para Avignon, e sua transformação de processo porheresia a processo por erro doutrinal, Eckhart conseguiu esca-par do perigo iminente da fogueira. Ele teve salva sua vida, e odesfecho foi uma espécie de acordo. Eckhart retratou, sim, umaseleção das suas teses, e tudo aquilo que pudesse “produzir nasmentes dos fiéis um sentido herético ou errôneo e inimigo daverdadeira fé”, mas (apenas) “quanto ao sentido herético” quepodia ser produzido a partir delas; o papa condenou a seleçãoretratada, declarando salva a alma de Eckhart. [...] Em outraspalavras, Eckhart reivindicou a retidão de sua doutrina e revo-gou suas eventuais interpretações errôneas alheias: zombaria ex-trema dos censores, ou acordo alcançado, a muito custo e cons-cientemente, com a Sede Apostólica?10 .

O pensamento do Mestre dominicano foi associado, na históriada interpretação, ao movimento das beguinas, e suas obras revelam ainfluência de duas figuras de relevo desse movimento: Marguerite Porètee Mechtild de Magdeburg.

9. Recurso judicial que visa a fazer subir ao tribunal competente certos recursos cujainterposição ou seguimento foram denegados pelo juiz inferior.

10. STURLESE, L. Eckhart, l’inquisizione di Colonia e la memoria difensivaconservata nel Codice Soest 33. In: Giornale Critico della Filosofia Italiana, 82, 1(2001), p. 88-89.

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O movimento das beguinas

No século XII, particularmente na França, Alemanha e nos PaísesBaixos, havia um grande número de mulheres sozinhas, pertencentes àclasse social mediobaixa, que não podiam se casar por escassez de ho-mens, dizimados pelas cruzadas ou por guerras locais, e que não eramaceitas pelos poucos conventos femininos existentes na época (maisinteressados em acolher jovens mulheres ricas e nobres). A única alter-nativa para essas mulheres era viver sozinhas nas periferias das cidades,rezando e ocupando-se com trabalhos manuais ou dedicando-se aoensino. A etimologia do nome beguina é obscura: a hipótese mais pro-vável é que tenha origem na palavra flamenga beghen, que significarezar. Segundo o Dicionário Italiano de Mística (1998), “o termo fran-cês begin[e], originalmente utilizado no Brabante Meridional, nos ter-ritórios de Liége e nas regiões renanas, pode ser uma corrupção popu-lar de Alibigenses, ou deriva do verbo anglo-saxônico beggen (pregar,mendigar)ou ainda, mais provavelmente, do antigo francês bege (tipode lã grossa ou não tingida) com o sufixo inus, ou seja beg(u)inus,pessoa que vestia o hábito dos hereges (cátaros ou lulardos)”11 .

O fenômeno das beguinas (mulieres religiosae beginae, begginae)”– escreve Nachman Falbel – “consequência da reforma gregorianae da tendência à vida apostólica, foi promovido pelos pregado-res ortodoxos e hereges. Sob a direção de uma mestra, levavamvida em comum, sem votos propriamente ditos, dentro de “cor-tes de beguinas”, dedicando-se à oração, ao trabalho manual, àassistência aos enfermos, ao cuidado dos cadáveres e à educaçãodas crianças. A corporação teria sido fundada, de acordo comuma lenda do século XV, por Santa Bega (+ 694), filha de Pepi-no, o Velho, ou pelo pregador penitencial Laberto, le bégue (ogago) ou le bèguin, em Liége, em 1177. Outros pensam que onome deriva de al-bigenses, ou talvez do hábito beige ( = bege,lã em seu estado natural) das mulheres12 .

11. BORRIELLO, L.; CARUANA E.; DEL GENIO, M.R.; SUFFI, N. (orgs.).Dizionário di Mística. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1998.

12. FALBEL, N. Op. cit., p. 81.

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Houve também a versão masculina das beguinas, denominada (comuma conotação negativa em sentido herético) begardos:

Os begardos (beguines, begines), associação masculina paralela àdas beguinas, surgiram por volta de 1220 nos Países Baixos.Atuavam na assistência aos enfermos e no sepultamento dosmortos, e difundiram-se tão extensamente quanto as beguinas.Bem cedo se desviaram de suas tendências iniciais e se tornaramsuspeitos de heresia, de modo que desapareceram antes do sé-culo XVI13 .

No século XIII o número dos conventos de beguinas cresceu rapi-damente em toda Europa, principalmente nas áreas urbanas, e aindahoje existem 11 comunidades na Bélgica e 2 na Holanda. Apesar denão apresentarem nenhum sinal de heresia, as beguinas foram conde-nadas pelo IV Concílio de Latrão (1215), mas logo em seguida (1216)o papa Honório III aceitou-as verbalmente, até que o papa GregórioIX (1227-1241) aprovou-as com a bula Gloriam virginalem em 1233.Não obstante a aprovação papal, nos anos sucessivos houve uma sérieininterruptade condenações contra as beguinas: nos sínodos de Fritzlar(1259) e Mainz (1261), no Concílio de Lion (1274), nos sínodos deEichstätt (1282) e Bérziers (1299), e, por fim, no Concílio de Vienne(1311-12), quando foram definitivamente condenadas como hereges.No dia 1º de junho de 1310, na Place de Grève em Paris, foi queima-da na fogueira a beguina Marguerite Porète, junto ao seu livro Le miroirdes simples âmes et anéanties (O espelho das almas simples e aniquila-das), que influenciou decisivamente o pensamento do dominicanoMeister Eckhart.

A vida de Mechtild

Poucos são os dados biográficos disponíveis sobre Mechtild, in-clusive aqueles obtidos diretamente da sua obra ou dos acréscimosfeitos pelo tradutor latino: nascida por volta de 1208 na diocese de

13. Ibidem, p. 82.

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Magdeburg, quando ainda criança teve sua primeira visão mística, con-forme ela mesma escreve:

Indigna pecadora, no meu décimo segundo ano de idade, en-quanto estava sozinha, o Espírito Santo me saudou com umbeatíssimo fluido, de tal forma que nunca mais teria sido possível,para mim, cair em um grande pecado cotidiano (FL IV, 2)14 .

Essa experiência a levou a abandonar a casa paterna para entrar emuma comunidade de beguinas, conduzindo uma vida de oração, peni-tência e encontros místicos com Deus. Por trinta anos guardou segre-do dessas suas visões, até que, em 1250, aconselhada pelo confessordominicano Heinrich von Halle, começou escrever suas Offenbarungen

(revelações) em folhas avulsas. Entretanto, os originais da obra, escri-tos em vernáculo, foram perdidos. Se, por um lado, essa obra desper-tou muita admiração por Mechtild, do outro suscitou inveja, ciúme,calúnias e persecuções, especialmente por parte dos religiosos (homense mulheres), cuja corrupção e malvadez foram denunciadas corajosa-mente pela beguina. Em 1261, uma decisão do sínodo dos Dominica-nos de Magdeburg contra o movimento das mulheres leigas obrigouMechtild a voltar momentaneamente para a família, para depois trans-ferir-se definitivamente para o convento cisterciense de Helfta. Na pazdo claustro, escreveu o sétimo e último livro de suas revelações, muitoembora estivesse internamente dividida:

Suplicava a Deus de indicar-me se era vontade dele que eu dei-xasse de escrever. Por quê? Porque reconheço ser agora mais mi-serável do que fora trinta anos atrás, e mais ainda, quando co-mecei a escrever (FL VII, 36)15 .

Lá viveu provavelmente ainda por doze anos e faleceu por volta de1283. Após a morte, sua obra foi traduzida em latim por dois domi-

14. MECHTILD VON MAGDEBURG. La luce della fluente divinità. Firenze: Giuntied., 1991, p. 148.

15. Ibidem, p. 331.

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nicanos de Halle com o título de Lux divinationis semper fluens in

corde veritatis ou, mais resumidamente, Revelationes mechthildianae.

A única tradução completa em alemão da baixa idade média falado nonorte (mittelhochdeutsch, mhd) é constituída pelo código do conven-to de Einsiedeln (Suíça), um manuscrito do séc. XIV. De acordo como estudo de Nemes16 , que realiza uma análise pormenorizada das ques-tões de crítica textual levantadas pela obra de Poor17 . A opção deMechtild ao lançar mão do vulgar como instrumentum scripturae setorna decisiva para o alcance da obra: entre a língua falada na igreja(latim) e aquela falada na corte (mhd), a beguina escolhe um meio deexpressão para que “todos os aflitos e as pessoas confusas” encontremconsolação, mas que, os que “acolherem outra consolação sejam aindamais confundidos por aquilo que ele fala”18 .

A mística nupcial

A obra de Mechthild se insere naquela corrente de espiritualidademedieval indicada pelo nome de Brautmystic (mística nupcial), cujomodelo literário é o Cântico dos Cânticos. É impressionante a riquezade imagens utilizadas pela beguina, assim como as metáforas que per-tencem ao patrimônio comum da mística medieval: todos os místi-cos, afinal, lançam mão de uma linguagem semelhante constituída defiguras, fórmulas e imagens na tentativa de expressar a deidade que,por si, é indizível. Ao contrário de Eckhart, Mechthild nunca cita suasfontes; mesmo assim, procedendo por analogia e comparação, é possí-vel individuar na Bíblia (Antigo e Novo Testamento), na Patrística e

16. NEMES, B. J. Neues zu den Fragen der Autorschaft und Kanonizität des FließendenLichts der Gottheit Mechthilds von Magdeburg.

17. POOR, S. S. Mechthild of Magdeburg and her book. Gender and the making oftextual authority. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004.

18. MECHTILD VON MAGDEBURG. Op. cit., p. 29. Introdução ao FL.

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no Pseudo-Dionísio Areopagita, a nascente de onde provém sua inspi-ração. Esse último, em particular, utiliza as metáforas da luz e do solcomo símbolos da deidade. Assim também Mechthild fala para Deus:“Tu és uma luz de todas as luzes [...]; Meus olhos estão iluminadospela tua luz de fogo” (FL II, 10.18)19 . Além disso, a luz é uma metá-fora da alma que, nascida da luz eterna, é por sua vez fonte de luz: “Aalma inocente, segundo a sua natureza, emana sempre luz e esplendor,porque ela fora gerada da luz eterna sem pena” (FL III, 21)20 . Realida-de humana e divina ao mesmo tempo, ponto de intersecção de umúnico movimento, lugar de eterna felicidade: “É o amor fluente emmovimento, que de Deus flui secretamente na alma e com a sua forçaescorre novamente em direção dele, de acordo com a potência dela”(FL VI, 22)21 .

Diretamente ligada à metáfora da luz, na obra de Mechtild se en-contra também a imagem do fogo, antiquíssimo símbolo da divinda-de em todas as religiões, que carrega em si um significado ambivalente:por um lado ele é destruidor-purificador, mas por outro é gerador devida. No capítulo 29 do livro VI, a beguina escreve sobre as dez quali-dades do fogo divino que provém da nobreza de Deus: “Uma pessoaindigna refletia com simplicidade sobre a nobreza de Deus. Então Elelhe deu um fogo para conhecer com os sentidos e olhar com os olhosda alma. Ardia sem parar em alto sobre todas as coisas. O fogo ardiasem começo e continuará sempre a arder sem fim. Esse fogo é o Deuseterno, que contém em si a vida eterna e dele todas as coisas emana-ram. [...] Essas coisas saíram do fogo divino e lá retornam fluindo,cada uma segundo o ordenamento divino, com eterno louvor. Quema esse respeito quiser falar mais, se coloque no fogo, e vá e experimen-

19. Ibidem, p. 74 e 76.

20. Ibidem, p. 138.

21. Ibidem, p. 274.

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te, como a deidade eflui e como a humanidade derrama, como o Espí-rito Santo lute e obrigue muitos corações a amar a Deus ébrios deamor” (FL VI, 29)22 .

Mechtild de Magdeburg e Meister Eckhart

Um ensaio de Tobin23 sobre os pontos de contato e de divergênciaentre Mechthild de Magdeburg e Meister Eckhart põe em evidênciacomo este também utiliza as imagens da luz e do calor para descrever aatividade no seio da deidade e os efeitos da sua atividade nas criaturas,mas “é o uso que ele faz da ‘emanação’ que mais particularmente traz àtona o imaginário de Mechthild”24 . Por exemplo, na Pr. 50 (Eratis

enim aliquando tenebrae), o dominicano escreve:Eu falei várias vezes: é da obra em Deus e do nascimento que oPai gera seu Filho unigênito, e desse eflúvio floresce o EspíritoSanto, Espírito que eflui de ambos; nesse eflúvio brota a almacomo fluída, e a imagem da deidade é gravada nela. Nesse fluire no refluir das três pessoas, a alma é influída e in-formada denovo na sua primeira imagem sem imagem. É isso que Pauloentende quando fala: “mas agora uma luz em Deus”. Ele nãodiz: “Vós sois uma luz”, mas: “mas agora uma luz”25 .

22. Ibidem, p. 278.

23. TOBIN, F. Mechthild of Magdeburg and Meister Eckhart. In: McGINN. B.(org.). Meister Eckhart and the Beguine Mystics. Hadewijch of Brabant, Metchthild ofMagdeburg and Marguerite Porete. New York: Continuum, 2001, pp. 44-61.

24. Ibidem, p. 54.

25. “Ich habe es schon öfters gesagt: Von dem Werk in Gott und von der Geburt, inder der Vater seinen eingeborenen Sohn gebiert, und von diesem Ausfluß erblüht derHeilige Geist so, daß der Geist von ihnen beiden<ausfließt>, und in diesem Ausflusseentspringt die Seele <als> ausgeflossen; und das Bild der Gottheit ist in die Seeleeingeprägt, und in dem Ausfließen und im Rückfließen der drei Personen wird dieSeele wieder eingeflößt und wird wieder eingebildet in ihr erstes Bild ohne Bild. Diesmeint Paulus, wenn er spricht: ‘nun aber ein Licht in Gott’. Er sagt nicht: “Ihr seid einLicht”, er sagt: ‘nun aber ein Licht’”. DW II,456,6-457,1. Cf. também SA, p. 280.

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Assim, também, na Pr. 72 (Videns Jesus turbas, ascendit in mon-

tem etc.), o dominicano afirma:Os maiores mestres dizem: as potências da alma e a própriaalma são plenamente um. O fogo e o clarão (do fogo) são um;mas quando ele (o fogo) cai no intelecto, cai em uma naturezadiferente (do clarão). [...] Se se toma Deus onde Ele eflui, aalma não permanece suspensa: ela (a luz acima de toda luz) é(antes disso) elevada totalmente acima; ela se sobressai acima detoda luz e de todo conhecimento26 .

As semelhanças que podem ser evidenciadas nas obras da beguina edo mestre dominicano, assim como suas diferenças, vão muito alémde uma aproximação simbólica. Ainda assim, ou talvez justamentepor isso, mesmo uma análise desse tipo ajuda a endender o Sitz im

Leben no qual Eckhart deu vida à sua teoria da imagem original, inclu-sive fazendo próprios elementos específicos da produção literária degrandes místicas como Mechthild. Longe de diminuir seu valor esensibilidade, isto enobrece mais ainda sua produção teórica.

[email protected]

26. “Die höchsten Meister sagen: Die Kräfte der Seele und die Seele selbst sein völligeins. Feuer und (Feuer-)Schein sind eins; fällt es <= das Feuer> aber in die Vernunft,so fällt es in eine <vom Schein> verschiedene Natur. […] Nimmt man Gott irgendwo,wo er aufließt, da bleibt die Seele nicht hängen: es <= das Licht über allem Lichte> ist<vielmehr> ganz über erhaben; sie entwächst allem Lichte und aller Erkenntnis”. DWIII,253,1-3;6-9.

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A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

A CAUSA FINAL DO PODER DOPRINCIPANS NO DEFENSOR DA PAZ

DE MARSÍLIO DE PÁDUAJosé Antônio de C. R. de Souza*

Resumo: Neste estudo, com base no Defensor da Paz de Marsílio de Pádua,analisamos quais são os principais deveres do governante secular inerentesem seu poder e, consequentemente, qual o melhor regime político, me-diante o qual, mais facilmente, o governante secular poderá de modo me-lhor cumprir com seus deveres. Por último, ainda, consideramos a quemcompete julgá-lo e puni-lo devido aos delitos (graves) que tiver cometido.

Abstract: In this study, based in Marsilius’ of Padua, Defensor Pacis we analyzewhat are the most important duties of the secular ruler inherent in his powerand, consequently, what is the best political government, by means of mostwhat, more easily, the temporal ruler would to accomplish his duties. Finally,we consider who must judge him and punish him on account of the onerous

crimes which he was done.

Alguém que, por acaso folhasse apressadamente os capítulos ini-

ciais do Defensor da Paz (1324-26)1 de Marsílio de Pádua (1280-

* José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza, professor Titular da UniversidadeFederal de Goiás, é doutor em história social [Idade Média] (1980), pela Universidadede São Paulo. É também doutor em história da filosofia e da cultura portuguesa [medi-eval] (2001), pela Universidade Nova de Lisboa.

Este texto é um dos resultados parciais da 2ª etapa do projeto de investigaçãointitulado: Os poderes espiritual e secular na visão de Marsílio de Pádua, apresentadoàFundação para ciência e tecnologia (FCT) do Ministério da Ciência Tecnologia e EnsinoSuperior de Portugal (2007), sob a forma de bolsa de pós-doutoramento, à qual agrade-cemos penhoradamente pelo apoio finaceiro recebido.

1. Tradução do latim e notas por SOUZA, José Antônio de C. R. de, Introdução porSOUZA, José Antônio de C. R. de; BERTELLONI, Francisco; PIAIA, Gregório. In:Coleção Clássicos do pensamento político, vol. 12, Petrópolis: Vozes, 1997, 701 p.

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c.1342/3)2 , leigo, médico e assessor político do imperador Ludovico

IV (1314-47), logo iria se deparar com a indicação dos principais de-

veres da responsabilidade dos que exercem o poder político e,

consequentemente, com as finalidades em razão das quais ele foi insti-

tuído. De fato, afirma o Médico Patavino:... No entanto, para regular os excessos dos atos produzidospela inteligência e vontade, ...os quais designamos por açõestranseuntes, e que podem ser realizadas neste mundo em pro-veito ou em detrimento ou prejuízo de outrem, por quem aspratica, foi imprescindível estabelecer um ofício ou grupo in-cumbido de corrigir e reduzir à equidade ou à devida proporçãotais excessos, pois de outra forma adviriam o conflito e, em se-guida, a divisão entre os cidadãos, e por fim, a destruição dacidade e a ausência da vida suficiente. Aristóteles denominouesse grupo social parte judicial ou governante e deliberativa,nela incluindo todo o aparato que está à sua disposição, cujoofício consiste em regular o que é útil e justo ao bem comum...3

2. Nos últimos trinta anos, a bibliografia sobre o Médico paduano e seu pensamentopolítico aumentou consideravelmente, a par dos estudos clássicos de autoria de GEWIRTH,A. Marsilius of Padua, The Defender of Peace, vol. I, N. York: Columbia University Press,1951; PINCIN, C. Marsílio. Torino, 1967; LAGARDE, G. de; QUILLET, J. Bastemencionar, por exemplo, os volumes V (1979) e VI (1980) de Medio Evo, organizados porPIAIA, Gregorio; DAMIATA, OFM, Marino, Plenitudo potestatis e Universitas civium inMarsilio da Padova. Firenze: ed. Studi Francescani, 1983. DOLCINI, Carlo, Introduzionea Marsilio da Padova. 2a ed., Roma: Laterza, 1999. STREFLING, Sérgio R. Igreja e poder.Plenitude do poder e soberania popular em Marsílio de Pádua, Coleção Filosofia, vol. 146,Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002; CESAR, Floriano Jonas, Papado, império e o pensamentode Marsílio de Pádua. São Paulo: Pós-graduação em Filosofia, USP, tese de doutoramento,mimeo, 2000,AMES, José L. Estado e governo no pensamento de Marsílio de Pádua:Raízes medievais de uma teoria moderna, em: Ética e filosofia política, vol. 6, número 2,2003; STREFLING, Sérgio R. O legislador humano e o governante em Marsílio dePádua (1280-1342) in: Idade Média: Tempo do mundo, tempo dos homens, tempo de Deus(SOUZA, José Antônio de C.R. de, org.) Porto Alegre: EST Edições, 2006: 492-497 e oexcelente estudo de AZNAR, Bernardo Bayona. Religión y poder en Marsílio de Padua: Laprimera teoría laica del Estado?, Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2007. Da página351 à 379, deparamo-nos com rica bibliografia atualizada. LEE, Alexander. Roman Lawand Human Liberty: Marsilius of Padua on Property Rights, Journal of the History of Ideas(JHI), 70 (2009), p. 23– 44.

3. DP I, V, § 7, p. 89-90.

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A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

Embora, à primeira vista, esse passo de Marsílio seja um tantohermético, não é tão difícil inferir dele que os principais deveres doprincipantis, sempre com respaldo nas leis, são fazer justiça a todos oscidadãos, julgando e condenando os comprovadamente criminosos4 ;manter a paz entre eles e defendê-los contra as ameaças externas; buscare promover o bem comum para todos, isto é, o viver bem ou a vita

sufficiens.

Por tais motivos, é também da competência do príncipe estabele-cer o número de pessoas a integrar esta ou aquela pars em que a civitas

está socialmente organizada, de acordo com as exigências e as necessi-dades comuns, por exemplo, determinando o contingente militar ouo número de agricultores etc., de modo que não haja um desequilíbrioquantitativo entre os integrantes dessas partes, o que acabaria por pre-judicar toda a sociedade; protegê-las e fazer com que elas cumprambem suas obrigações5 .

4. Cf. LAGARDE, G. De. La naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen-Âge. vol.III, Le defensor pacis. Louvain-Paris: Ed. Nauwelaerts, 1970, p. 116-117: “ ...En ce quiconcerne la première [l’exécutión de la justice coactive,] nous rappellerons d’abord le point dedépart que nous évoquions plus haut. La “ pars judicialis seu principans et consiliativa”doit “décider du juste et du bien commun” (regulare justa et conferentia communia). C’estdonc tout le domaine des lois et de leur application qui appartient au prince... II n’appartientà personne d’autre, individu ou collectivité, de rendre la justice, d’appliquer une contrainteou d’imposer une peine, en quelque domaine que ce soit...”

5. Idem, ibidem, p. 117-118 : “... Le second point, sur lequel Marsile revient encore avec leplus d’insistance, est que le prince est (sous et par l’autorité du législateur) le créateur, lecontrôleur et le régulateur de toutes les autres parties de la cité. Il est la première de toutes lesparties, et toutes les autres s’ordonnent à lui... Le prince doit protéger les autres parties de lacité, les aider à remplir leur tâche propre et les obligations civiques qui découlent de leurcoopération... Marsile ajoute que le rôle du prínce n’est pas seulement de contrôler et de réglerles fonctions, mais aussi de trancher en maître souverain de l’accès de tel ou tel à une fonction.II a pourtant enseigné d’abord que la nature dotait les hommes des qualités qui les orientaientvers un office ou vers un autre. Mais il précise vite que l’on ne peut s’en remettre au hasard.Ce serait le désordre si on laissait chacun suivre sa voie, sans aucune régulation. Le princedoit fixer des limites numériques pour éviter les engorgements et les pléthores. Il doit contrôlerla qualité des intéressés...”

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Ora bem, se esses deveres/finalidades, apresentados de maneira re-sumida, de um lado mostram a causa material sobre a qual o principans

exerce o seu poder, nomeadamente, os cidadãos, bem como indicam acausa formal, por meio da qual ele deve governar, isto é, as leis6 , toda-via, não ressaltam a importância desse tema, nem apontam sua cone-xão com outros assuntos deveras importantes, para que os referidosdeveres/finalidades possam vir a ser cumpridos/alcançados, a saber:Quais são as virtudes que aquele que exerce o poder político tem de pos-

suir? Dentre os regimes políticos, qual deles é o melhor; e, na hipótese de

o principans transgredir as leis que também regulam a sua conduta, por

quem e de que modo deverá ser ou não corrigido? Esses são os assuntosque iremos abordar neste trabalho.

Primeiramente, no que concerne às qualidades que o governantedeve possuir, haurindo-se apenas na Ética a Nicômaco e na Política deAristóteles e, prescindindo dos ensinamentos das Escrituras e da tradi-ção cristã7 , Marsílio de Pádua começa o capítulo XIV, da Dictio I,dizendo que são duas as principais virtudes ou qualidades morais quese requer do princeps para que governe bem o Estado, a saber, a pru-dência política, a qual irá guiá-lo intelectualmente, quanto a avaliar oque é mais proveitoso ao bem comum, e a justiça, mediante a qual,

6. Cf. DP I, X e XI, p. 115-128, a propósito, ver DUBRA, Julio Castelo. La significacionpolítica del concepto de justicia en Marsilio de Padua, Princípios de filosofia, Natal :Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 11-12 (2002), e principalmente,AZNAR, Bernardo Bayona. Religión y poder Marsílio de Pádua: La primera teoría laicadel Estado?, Segunda Parte, capítulo 2, Teoría de la Ley, Madrid: Ediorial BibliotecaNueva, S.L., 2007, p. 177-165.

7. DAMIATA OFM, Marino. Plenitudo potestatis e universitas civium in Marsílio daPadova, Firenze: ed. Studi Francescani, 1983, p. 188: “... Come si vede, Marsilio nonprende in considerazione virtù teologiche, in conformità alla netta distinzione fra pianopolitico e piano della salvezza eterna, e neppure virtù che si riferiscono alla vita privata delprincipans, ma soltanto disposizioni di animo che si fanno valere nei rapporti pubblici...”

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agirá sempre de acordo com a lei e fará com que ela valha indistinta-mente para todos os cidadãos8 .

Entretanto, há situações imprevisíveis e casos não previstos nas leisque exigem decisões rápidas do principans, de modo que, se ele não possuira mencionada primeira virtude, ao tomá-las, as suas consequências pode-rão ser desastrosas para os cidadãos e para o Estado9 .

Ademais, se o governante não possuir a virtude da justiça, numadada circunstância em que esteja a julgar alguém, se por ventura sedeixar levar somente por suas inclinações sensuais, e não houver leisnas quais ele tenha que pautar sua conduta, haverá o risco de ele come-ter injustiça10 .

8. DP I, XIV, § 2, p. 145-146: “... O futuro governante ideal deve possuir duasqualidades intrínsecas e relacionadas: a prudência e a virtude moral, especialmente ajustiça. A prudência é necessária para guiar sua inteligência na ação de governar. Porisso, estáescrito na Política, livro III, capítulo 2o [4o]: A prudência é a única virtudeespecífica exigida para o governar bem, pois é imprescindível que tanto os súditos como osgovernantes possuam as demais virtudes.

A outra qualidade, a virtude moral, acima de todas, a justiça, é o meio através do qualo sentimento do príncipe se mantém reto, de acordo com as palavras de Aristóteles, naÉtica, livro IV, no Tratado sobre a justiça [capítulo 4o]: O príncipe é o guardião da justiça.

9. DP I, XIV, § 3, p. 146: “... Com efeito, nas ações humanas civis, o ato em si mesmoou suas modalidades nem sempre estão regulamentados pela lei. O governante entãodeve ser guiado pela prudência, não apenas em seu julgamento a respeito das mesmas,bem como ao efetivá-lo. Se ele não possuir a prudência poderácometer enganos em taiscircunstâncias...”

10. DP I, XIV, § 6, p. 148: “... Ademais, a bondade moral, a virtude e especialmente ajustiça são igualmente necessárias ao governante, porque se ele for moralmente corrup-to, a sociedade política sofrerá as conseqüências disso, mesmo que esteja informadapelas leis. Afirmamos efetivamente antes, que não é fácil e muito menos possível,regular tudo mediante as leis, de modo que certos casos devem ser confiados ao arbítriodo juiz, o qual se se deixar levar por um mau sentimento, ao julgá-los, poderá lesar asociedade. Aristóteles também diz a mesma coisa na Política, livro III, capítulo 8o [11o]:Estabelecidos como juízes sobre os assuntos importantes, se forem corruptos, quer dizer depra-vados, eles causarão muitos prejuízos, e de fato jáprejudicaram bastante a cidade doslacedemônios. Uma vez, pois, que os governantes são preservados no seu agir, graças àvirtude moral, especialmente pela justiça, é conveniente, se é que se pode chamar de

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Para mais, o governante ainda deve possuir a virtude da equidade,pois, é ela que o orienta, consoante sua formação moral, ante aquelescasos não contemplados pela legislação do país, a tomar uma decisãobenevolente11 . Enfim, uma outra virtude pessoal imprescindível aogovernante é o devotamento aos cidadãos e ao Estado, os quais irãosempre impeli-lo a buscar e a promover o bem comum12 .

A par dessas qualidades pessoais, continuando a seguir osensinamentos do Estagirita, o Pensador Paduano diz que, ao assumir o

conveniente algo necessário, que nenhum futuro príncipe não a possua, especialmentea justiça...”. A propósito, observa QUILLET, J.: “ ... Être juste et équitable, pour le prince,c’est posséder un jugement droit, non perverti par la passion, à l’image de la loi elle-mêmequi, nous le verrons, est dépourvue de tout sentiment perverti. Le prince est donc l’incarnationsensible et particulière de la loi; lorsqu’il a à exercer son équité, il doit être cette mesuremême...” (La philosophie politique de Marsile de Padoue, Paris: J. Vrin, 1970, p. 118).

11. DP I, XIV, § 7, p. 148: “...É ainda oportuno, que o futuro governante possuaigualmente uma determinada virtude chamada equidade que o conduz principalmen-te conforme o seu sentimento naqueles casos em que a lei é omissa. Por tal motivo, oFilósofo, na Ética, livro IV [V, 10o], tratado “Sobre a justiça”, diz o seguinte: “Anatureza da eqüidade é de tal forma que amplia a lei quando ela é omissa no tocante aum caso particular”.

Pensamos que é dessa maneira que os juristas entendem a equidade. Consiste emfazer uma interpretação com moderação ou benevolente da lei, ante um caso particularqualquer, contemplado por ela em sua amplitude rigorosa, acerca do qual, no entanto,de certo modo é omissa, mas não o exclui, todavia, se aquele caso particular tivesse sidoprevisto pelo legislador, a lei ou o teria excluído da universalidade da regra com mode-ração ou totalmente...”. Marino DAMIATA OFM comenta o assunto, dizendo: “...Occorre tuttavia ripetere un’osservazione già fatta: poiché le leggi non possono prevederetutto né tutte le circostanze in cui gli atti umani si realizzano – circostanze che incidonotanto sulla responsabilità morale quanto sulla loro pericolosità politica – il principans, chedeve dare la sua sentenza con un occhio rivolto alia legge e con l’altro alla realtà, abbisognadi epikeia. Essa se da un lato gli fa luce quando la legge tace, dall’altro lo guida nell’interpretarecon equità e diremmo con umanità il duro dettato della legge...” (op. cit., p. 189).

12. DP I, XIV, § 7, p. 148: “... Além das sobreditas virtudes, o futuro governante devepossuir igualmente um devotamento especial ou amor para com a sociedade civil e oscidadãos, de maneira que a bondade e a solicitude de suas ações promovam o bemcomum e o de cada indivíduo...”

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poder, o governante deve ter ao seu dispor um efetivo considerável desoldados, fixado em lei, a tal ponto numeroso que exceda tanto opoder de cada cidadão, quanto o de cada grupo social, tomado emconjunto, o qual, entretanto, não deverá exceder o poder do Estado, afim de que, de um lado, mediante a coerção armada, ele possa fazercom que as leis sejam cumpridas, que as sentenças que proferir sejamaplicadas, que a ordem pública seja mantida, que a defesa do país estejaassegurada e, de outro, que nunca venha a pensar que, como se foraum déspota, possa desrespeitar as leis ou estar acima das mesmas13 .

Com respeito aos regimes políticos, os principais autoresescolásticos14 que, antes do Paduano, trataram amplamente desse as-sunto, se inspiraram no capítulo VIII da Ética a Nicômaco.

No entanto, Marsílio passa ao largo desse texto, tendo se limitadoa se fundamentar num pequeno trecho do livro III, capítulo V daPolítica de Aristóteles, no qual o Filósofo apenas enumera os diversosregimes, bons e corrompidos. Talvez, pela mesma razão, as reflexões

13. DP I, XIV, § 8, p. 149: “... É necessário ainda que o príncipe... disponha... dumcerto número de soldados, por meio dos quais faça cumprir as suas sentenças civis,empregando assim a força coerciva contra os rebeldes ou desobedientes... Se não fossedessa maneira, as sentenças e as leis civis seriam inócuas, porque não seriam cumpridas.

Mas o legislador deverfixar não apenas o número de soldados à disposição dopríncipe... Esse contingente terá de ser bastante numeroso de modo a exceder tanto opoder individual de cada cidadão, como o de grupos dos mesmos tomados em conjun-to, entretanto, não deveráextrapolar o poder de toda a coletividade ou de sua partepreponderante, a fim de que não aconteça que o governante presuma poder violar asleis, governar à sua margem ou ir contra as mesmas, como se fosse um déspota...”

14. Cf. LAGARDE, G. De. op. cit.,p. 124, nota 52. Aí são mencionados AlbertoMagno, Tomás de Aquino, Pedro de Alvernia, Egídio Romano e seus respectivostratados.QUILLET, J. op. cit., p. 118, nota 2, igualmente os arrola: SAINT THOMAS,in Ethic., 1674-7; De Regno, IV et V [partes essas do tratado escritas por Ptolomeu deLucca OP]; ALBERT LE GRAND, Eth. (540); GILLES DE ROME, De regimineprincipum, lib. III, pars II, ch. 2, 3 e 4; PIERRE D’AUVERGNE, In Pol. lib. III, lect.VIII; lib. IV, lect. I, II, III, IV etc.

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do Médico Paduano acerca desse assunto sejam bastante lacônicas. Comefeito, ele diz que há dois gêneros de regimes políticos: um tempera-do, o outro corrompido. No regime temperado o principans governaem proveito do bem comum dos cidadãos, no corrompido, isso nãoacontece.

Por sua vez, os dois preditos gêneros se dividem, respectivamente, emtrês espécies, a saber, o temperado em monarquia real, aristocracia e repúbli-

ca e o corrompido em monarquia tirânica, oligarquia e democracia15 .

Um pouco mais adiante, com vista a caracterizar pontualmentecada uma dessas espécies, Marsílio as contrapõe entre si:

Assim, a monarquia real é um governo temperado, no qual ogovernante é um só e governa para o bem comum de acordocom a vontade ou o consenso dos súditos.Ao contrário, a tirania é um governo corrompido, cujo governanteé um só, mas exerce o poder em seu próprio benefício, não le-vando em conta a vontade dos súditos.A aristocracia é um governo temperado no qual governam so-mente os notáveis, no entanto, para o bem comum, de acordocom a vontade dos súditos e o consenso dos mesmos.A oligarquia, seu oposto, é um governo corrompido, na qual gover-nam alguns ricos ou poderosos, tendo em conta apenas o seu pró-prio interesse e em desacordo com a vontade dos súditos.A república, embora designe algo de comum a todo gênero ouespécie de governo ou regime, conforme um dos significados dessetermo, significa, noutra acepção dessa palavra, uma espécie de go-verno temperado, na qual todo cidadão pode participar de algummodo das atividades governamentais ou do conselho, conformesua posição, capacidade ou condição. Visa o bem comum e está deacordo com a vontade ou o consenso dos cidadãos.A democracia, seu oposto, ‚ um governo no qual o vulgo oua multidão dos pobres determina o regime e governa sozi-nha, não respeitando a vontade, ou não tendo o consenso

15. DP I, VIII, § 2, p. 104.

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dos outros cidadãos, e desconsiderando o bem comum, nadevida proporção...16

Do que acaba de ser visto, no tocante aos regimes ou às espéciespolíticas temperadas, à parte as suas características específicas, fica umpouco mais evidente a finalidade do poder político: o governante sem-pre o exerce em função do bem comum dos cidadãos e sua legitimida-de se estriba no consenso dos mesmos, concepção essa que entrelaçaintimamente a Ética e a Política, sendo aquela fundamento desta17 .

A propósito do regime República, Lagarde esclarece o pensamentode Marsílio, afirmando que “...La timocratie a été comprise tantôtcomme une ‘république censitaire’, tantôt comme une ‘république·militaire’. Apres d’autres, Marsile préfere parler de ‘politia’. Il la définitcomme le régime “dans lequel chaque citoyen participe en quelquemanière et à tour de rôle au gouvernement ou au conseil selon sa dignité,ses facultés et sa condition, en agissant dans l’intérêt général avec l’accorddes citoyens’”18 .

Em boa parte do capítulo seguinte, o nono, ampliando mais aindasuas reflexões sobre este assunto e, continuando a basear-se na Política

de Aristóteles, o Médico Patavino dedica atenção especial ao regime

monárquico, discorrendo a respeito de suas modalidades ou diferençasespecíficas.

16. DP I, VIII, § 3, p. 105.

17. A propósito, nota J. QUILLET, op. cit., p. 119: “ ... Tout gouvernement est établi enaccord avec les sujets ou contre leur volonté. Le premier est le genre des gouvernements bientempérés, le second celui des gouvernements corrompus. Chaque type de gouvernement va alorsêtre jugé en fonction de cet accord, et de la conformité à une loi faite pour le bien commun dessujets, ce qui revient au même, puisque...les sujets ne peuvent vouloir que leur bien, et une loitendant à ce but.

Par opposition se définit la tyrannie: c’est le gouvernement qui ne tient pas comptede la volonté des sujets, et donc, du bien commun...”

18. Cf. G. de LAGARDE, op. cit., p. 125.

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Há cinco modalidades de monarquia. Na primeira delas, a mo-narquia pode ser temporária ou hereditária e restringir-se apenas aocomando do exército.

Na segunda, existente em certos países asiáticos, o poder político étransmitido hereditariamente de pai para filho e o monarca governa nopróprio interesse, não no dos súditos. Ademais, as leis que são promulga-das têm o mesmo escopo e, por isso, o regime, mais apropriadamentepode ser designado por despótico e tirânico. Dada a índole servil de taispovos e o atraso cultural em que vivem, somados à força do costume queperdura há muito tempo, aceitam essa situação sem questioná-la.

A terceira modalidade difere das anteriores apenas pelo fato de, namorte do monarca reinante, um outro rei ser eleito em seu lugar. Porisso, o Filósofo designa-a por tirania eletiva19 .

19. DP, I, IX, § 4, p. 109-110: “... Segundo Aristóteles, na Política, livro III, capítulo3o [14o], são cinco os meios pelos quais se estabelece a monarquia real. No primeiro,escolhe-se alguém para exercer a função determinada de monarca, todavia, conforme oregime da comunidade, por exemplo, o comando do exército, ou hereditariamente ouapenas durante o tempo em que tal pessoa viver. Foi assim que Agamenão foi estabele-cido como comandante do exército pelos gregos. Nas comunidades modernas estafunção é denominada capitaneato ou comando supremo do exército. Tal pessoa, emtempo de paz, nunca podia se envolver com as questões judiciais. Mas quando oexército estava em campanha, tinha o direito de punir com a morte ou com outrocastigo qualquer dos transgressores da ordem.

O segundo é aquele através do qual governam certos monarcas asiáticos, cujopoder receberam de seus antecessores mediante o direito de sucessão hereditária, deconformidade com a lei daquela região. Entretanto, reinam simplesmente em seu pró-prio interesse não levando em conta o bem da coletividade. Portanto, é uma forma demonarquia quase despótica. Os súditos de tais monarcas suportam esse regime compaciência, devido à sua índole bárbara e servil, assim agindo por força do hábito. Essegoverno régio é herdado do pai, e os súditos se lhe submetem voluntariamente porqueos primeiros habitantes do lugar foram os antepassados do soberano. Mas de certaforma, esse regime é também tirânico porque suas leis visam o interesse do monarca, nãodo bem comum.

Um terceiro modo de governo real é aquele cujo primeiro a reinar foi eleito para ocargo, de modo que ele não o exerce por força do direito de sucessão paterna ou

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A quarta modalidade de monarquia é aquela em que o primeirorei daquela sociedade política foi escolhido mediante uma eleição, mascom o direito de transmitir o seu poder aos descendentes, os quaisgovernam em proveito do bem comum. Segundo o Estagirita, elaexistiu apenas nos tempos heróicos, isto é, numa época em que os ho-mens eram semideuses, tendo realizado façanhas de tal magnitude quesomente pessoas com esses atributos seriam capazes de fazê-las, ouporque, devido às qualidades ou virtudes singulares que possuíam, fi-zeram enormes benefícios aos seus súditos, por exemplo, congregan-do-os e reunindo-os num dado território, o qual foi conquistado erepartido entre eles ou obtido duma outra maneira qualquer20 .

hereditária, mas de acordo com uma lei que não tem em vista o bem comum, antes, pelocontrário, apenas o do monarca. Daí tal lei ser quase tirânica. Por isso é que Aristóteles,no mesmo passo de sua obra acima referida, denominou-a tirania eletiva. Tirania face aocaráter despótico da lei, eletiva porque não era imposta aos súditos contra sua vontade”.

20. DP I, IX, § 4, p. 110-111: “O quarto modo é aquele cujo monarca é instituídoatravés de uma eleição com o direito à sucessão hereditária, e governa de acordo com leisque se destinam integralmente ao bem comum. Este modo era o utilizado nos temposheróicos, segundo afirma Aristóteles no mesmo capítulo acima aludido. Denomina-seaquela época de tempos heróicos, porque os astros produziam determinados homensconsiderados heróis, isto é, seres divinos devido à grandeza de sua virtude ou porquetais homens e não outros eram escolhidos príncipes em razão de suas virtudes e dasformidáveis e excelentes obras que realizaram, por exemplo, tendo conseguido reunirum bom número de pessoas dispersas e congregando-as numa comunidade civil, ouporque libertaram a região, mediante a luta e o emprego das armas ou ainda porquetalvez a tivessem comprado ou a adquirido de uma outra maneira adequada, e poste-riormente a dividiram entre os súditos. Resumindo, eles foram eleitos príncipes comdireito à sucessão hereditária ou porque fizeram muitos benefícios à coletividade ou porcausa da excelência de suas virtudes em proveito da multidão, conforme declara umavez mais Aristóteles na Política, livro V, capítulo 5o. [VIII, 10o].

Talvez o Filósofo tenha incluído nessa espécie de monarquia aquela em que um sóhomem é eleito por toda vida ou apenas por determinado período de tempo. Ele no-latornou compreensível distinguindo entre esta e aquela que chamou de tirania eletiva,pois tal espécie de monarquia é comum a ambas.

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A quinta modalidade é aquela em que o rei governa como senhor detodos os seus súditos, e, inclusive, dos bens deles e, a nosso ver, ela seidentifica bastante com a segunda e terceira modalidades antes referidas21 .

Do que foi exposto, tendo em vista o objeto que estamos a abor-dar, notam-se alguns dados importantes: a) no caso da primeira moda-lidade, as atribuições governamentais atribuídas ao monarca são mui-to restritas e de sua competência ainda estava excluído o poder judici-ário; b) tratando-se das modalidades dois, três e cinco, efetivamente,não passam de variações da tirania ou do despotismo; c) nessas predi-tas modalidades, o monarca não governa em benefício dos cidadãosnem, tampouco, seu poder fundamenta-se no consenso dos mesmos.

Nos parágrafos imediatamente a seguir, até quase o final do capí-tulo em apreço, o Médico Patavino acrescenta e destaca alguns aspec-tos que julga relevantes com respeito à instituição do governante, asaber: 1. a monarquia hereditária ou eletiva é o melhor dentre os regi-mes temperados, desde que o rei tenha o apoio consensual dos cida-dãos; que se legisle em proveito dos mesmos e que se governe segundoo que as leis determinam22 ; 2. nos regimes temperados a eleição é o

21. DP I, IX, § 4, p. 110-111: “O quinto modo é aquele em que o príncipe é estabe-lecido como senhor de todos que integram a comunidade. Ele dispõe dos súditos e deseus bens e ainda dos bens reais a seu bel-prazer, da mesma forma que o pai de famíliausa livremente de tudo que está em sua casa...”

22. DP I, IX, § 5, § 6, p. 111-112: “... Mas um dos tipos de governo temperado, eprovavelmente o mais perfeito, é a monarquia real.... Qualquer um dos casos citadospode ser considerado como verdadeira monarquia real, na medida em que o soberanorespeite e se apoie na vontade consensual dos súditos e sempre exerça o poder de acordocom as leis elaboradas para propiciar o bem comum a todos eles. Ao contrário, se omonarca não agir assim, estará se comportando como um tirano. É por esse motivo quese lê na Política, livro IV, capítulo 8o [VIII, 10o] o seguinte: eram as monarquiassimultaneamente legítimas – porque a realeza aí tinha sido aceita voluntariamente – etirânicas, enquanto o poder aí era exercido despoticamente e conforme o seu arbítrio, querdizer, do soberano. Portanto, essas duas características distinguem o governo tempera-do do corrompido, e segundo inferimos com segurança da opinião de Aristóteles, o

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procedimento mais usual para instituir ou estabelecer os governan-tes23 ; 3. é importante e oportuno indagar, refletir e discutir se, entre asespécies de monarquia eletiva, a melhor de todas é aquela em que: a) àmorte de cada rei, se escolhe ou não um novo monarca; b) à morte decada rei, se escolhe um novo monarca que deverá governar por umprazo determinado ou durante toda sua vida24 ; 4. percorrendo a historia,constata-se que os seres humanos, dotados com inteligência e liberda-de, optaram por esse ou aquele regime político, embora, nem sempreo escolhido fosse o melhor. Por isso, o Estado deve educar o povo,com vistas a esse objetivo. Além disso, o mais razoável é que cadapovo, habitando num dado território com suas características própriase, consoante sua índole, descubra, mediante a experiência, qual é oregime que mais lhe convém25 , a fim de que possa viver bem e queo(s) governante(s) lhe possibilite(m) obter a vida suficiente.

consenso dos súditos é o indicativo melhor que diferencia uma da outra... As monar-quias reais, eletivas ou não, apesar das diferenças entre si, possuem certa semelhançapelo fato de, em ambas, o soberano governar de acordo com a vontade dos súditos.

No entanto, elas diferem porque em muitas das monarquias não eletivas, os sobe-ranos governam súditos menos conscientes de seus direitos, cujas leis e característicaspolíticas, por conseguinte, não visam o bem comum, como é o caso das leis bárbaras àsquais jáaludimos. Ao contrário, nas monarquias eletivas, o monarca governa muito maisde acordo com a vontade dos súditos, promulgando leis mais políticas, conforme jádissemos, que estejam em função do bem comum...”

23. DP I, IX, § 7 e § 8, p. 113: “... Será então oportuno aos mesmos [súditos] recorrerà eleição. Esta nunca deixará de existir tanto quanto os seres humanos. Além disso,obtém-se o melhor governante através dessa forma de escolha, e é oportuno que amelhor pessoa se ocupe dos negócios políticos, pois, ela deve regular as ações civis dosdemais cidadãos. Na verdade, a maneira pela qual se instituem as outras espécies degovernos temperados é, na maior parte dos casos, a eleição, e às vezes, isso acontecia atépor sorteio, não se levando em conta o direito à sucessão hereditária...”

24. DP I, IX, § 9, p. 113.

25. DP I, IX, § 10, p. 113-114.

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O assunto em exame não se esgota com o final desse capítulo.Marsílio retoma-o novamente na mesma Parte I de seu tratado, nocapítulo XVI, o mais longo de todos26 .

À partida, continuando a apoiar-se em vários escritos de Aristóteles,entre os quais a Política e a Retórica, o Filósofo Patavino apresenta umasérie de argumentos que justificam a precedência qualitativa do regimemonárquico hereditário sobre qualquer outro27 .

Lagarde torna a observar que os pensadores que antecederam oMédico Paduano também tinham comentado as páginas do Estagiritaacerca desse tema, dizendo que:

D’une manière générale, la ligne de partage des opinions étaitcelle qui séparait les pays d’empire des territoires relevant desgrandes monarchies : Albert le Grand, Godefroid de Fontaines,Engelbert d’Admont, avec des accents divers, célebrent desavantages de l’élection, S. Thomas ne prend pas nettement par-

26. DP I, p. 162-181.

27. DP I, XVI, § §1-10, p. 162-168. Marino DAMIATA OFM, op. cit.,p. 183–184,resume os mais importantes deles e outros mais alegados em favor dessa tese, dizendo oseguinte: “... un monarca, il quale assume il potere succedendo al padre, mostrerà, se nonaltro per proprio interesse, verso la civitas la stessa oculata premura che di solito si usa versoun patrimonio privato27 sarà meno incline ad abusare dei propri poteri, nell’intento dievitare malcontenti che potrebbero essergli fatali27; troverà facilmente consensi ed obbedienzapresso i sudditi, abituati ormai a rispettare la sua famiglía27; verrà circondato subito dastima e d’altra parte il prestigio che lo circonda nel governare, gli proviene o dal fatto chesuoi predecessori hanno reso qualche straordinario servizio al paese o comunque per la ragioneche essi già emergevano fra i cittadini; non avrà bisogno di accaparrarsi i favori del popolomostrando una pericolosa indulgenza o impegnandosi in azzardate promesse, come non dirado fa un neo-eletto. E ben conosciuto inoltre fiel suo carattere o nel suo tenore di vita siadai cittadini che dai pubblici officiali, mentre non puo dirsi altrettanto di un neo-eletto27;con la sola sua presenza, essendo saldamente impiantato nella carica, stronca nei sudditidesideri rischiosi, mosse temerarie per impadronirsi del potere; diversamente da un neo-eletto– che ha poco tempo a disposizione, non restando a lungo in carica; travagliato da incertezzee preoccupazioni per il suo avvenire politico, ecc. – non inclina a lasciare impuniti i reati,specie se a commetterli sono persone potenti; infine – come si è già ricordato – la formamonarchica sembra un governo naturale, anche per la sua larga diffusione, e come talequindi piu perfetta di ogni altra...”

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ti, Pierre d’Auvergne et Gilles de Rome se font les apologistesconvaincus de la succession héréditaire...28

A seguir, em favor da monarquia eletiva, espécie essa que julga esustenta ser a melhor, apoiando-se em outros passos da Política deAristóteles, o Paduano passa a expor alguns argumentos que validamsua tese, começando pelo principal deles: posto que todos os cidadãosdesejam o bem comum e a vita sufficiens, essa espécie de monarquia éa única que pode lhes possibilitar escolher o melhor governante, oqual irá concretizar esses objetivos. Não se tem a mesma certeza disso,tratando-se da monarquia hereditária e, para comprovar essa asserção,basta verificar a história de uns tantos reinos e ver se, de fato, seus reisforam bons governantes29 .

Em segundo lugar, aqueles que têm o direito/dever de escolher orei, normalmente, consideram se os candidatos ao trono possuem asvirtudes da justiça e da prudência e, outras ainda, as quais farão comque, uma vez eleito, o monarca governe bem. A monarquia hereditá-

28. La naissanece de l’esprit laïque ... p. 127. Nas notas de pé de página, o mencionadoestudioso cita as passagens dos autores citados, relativas a esse assunto.

29. DP I, XVI, § 11, p. 167-168: “... Havíamos dito, portanto, que é muito maisrazoável admitir que, para se alcançar a vida suficiente na cidade ou reino, é bem melhorà mesma instituir cada futuro monarca por meio de uma nova escolha, do que indicá-lo através do direito à sucessão hereditária.

O motivo de professarmos essa opinião é que, salvo raras exceções, pode-se indicaro melhor monarca ou ao menos um satisfatoriamente bom. De fato, é mediante aescolha do príncipe efetuada pelo legislador humano, que se obtém na maioria dasvezes, exceto ocasionalmente, o bem comum almejado pelos cidadãos... pois umgovernante mais capaz é um fator indispensável para se atingir aquele objetivo, deacordo com o que a experiência ensina e chegamos a tal dedução racional no capítuloXIV desta parte da obra.

Por outro lado, a sucessão hereditária, condicionada não só ao nascimento, mas namaior parte dos casos à sorte, não assegura com certeza, a indicação daquela espécie depessoa. Isto é um dado óbvio, se, recorrendo ao método indutivo, examinarmos ahistória individual de cada reino, cujos monarcas foram indicados desta forma...”

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ria não contempla essa possibilidade, posto que a linhagem não trans-mite virtudes morais30 .

Em terceiro, o monarca reinante, ao desempenhar seu ofício dejuiz, o fará com muito mais justiça, desvelo e cuidado, seja porque seupoder é limitado pelas leis, seja porque teme que alguém possa re-presentar contra ele e, até mesmo vir a ser julgado, sentenciado e puni-do em razão das falhas que tiver cometido. Além disso, pensando numapróxima eleição real, esse monarca irá zelar para que seus filhos ve-nham a ser educados no caminho das virtudes e, estes, por razão seme-lhante, não só cumprirão bem com suas obrigações, mas também irãose esmerar na pratica das mesmas, pois, no futuro, poderão vir a cogi-tados como candidatos à realeza. Em geral, na monarquia hereditária,não se verificam essas preocupações e comportamentos31 .

30. DP I, XVI, § 12, p. 168: “Todas as qualidades antes mencionadas como absoluta-mente indispensáveis para um monarca hereditário exercer o poder, quase sempretambém serão consideradas por ocasião de uma nova escolha, mas o fato oposto, nãoacontece na maioria das vezes...”

31. DP I, XVI, § 13, p. 168-169: “... Além disso, o monarca reinante, tendo em vistaa nova escolha do futuro rei, serámuito mais diligente ao proteger as pessoas e os bensda sociedade civil, primeiramente devido à sua virtude, pois devemos supô-lo virtuosopelo fato de ter sido escolhido como tal, em segundo lugar, pelo fato de temer que sefaçam representações contra ele, e em terceiro lugar, por ainda vir a ser merecedor deuma nova indicação na pessoa de seu filho.

Ele igualmente zelará com enorme solicitude pela educação de seus herdeiros, eeles, atentos à nova escolha futura, também se empenharão firmemente não só emadquirir as sobreditas virtudes mas também em cumprir com suas obrigações. Logo,com toda probabilidade, tornar-se-ão idênticos a seu pai na virtude, e tanto por causados seusméritos pessoais como da obediência habitual que lhe devotam, serão condu-zidos ao poder mediante uma nova indicação, nele permanecendo enquanto agiremassim.

O que professamos acerca desse assunto está em perfeito acordo com os ensina-mentos de Aristóteles externados na Política, livro I, capítulo 9o [12o], II, capítulo 2o

[11o] e 9o, VII, capítulo 12o [14o]...”

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A seguir, refutando os argumentos arrolados em favor da monar-quia hereditária, Marsílio aproveita da ocasião para aclarar e funda-mentar ainda mais sua tese favorável à monarquia eletiva32 .

De fato, por ter sido eleito por causa de suas virtudes e qualidadespessoais, esse monarca tem uma preocupação e um zelo muito maiorcom o bem comum e, ainda como rei, quer ser respeitado, obter pres-tígio e honra e, após a sua morte, vir a ser relembrado como um bomgovernante33 . Esse argumento responde à instância apresentada porEgídio Romano, no seu De regimine principum34 , segundo o qual, amonarquia hereditária é preferível à eletiva, porque os herdeiros e su-cessores duma mesma estirpe terão muito mais desvelo para com obem comum, porque consideram o reino como uma propriedade pes-soal que é legada do pai ao primogênito.

Em segundo lugar, assevera Marsílio, com absoluta certeza, nin-guém pode garantir que um monarca hereditário seja menos despota,em razão de a sua linhagem estar acostumada a exercer o poder. Essa éa resposta ao argumento também apresentado por Egídio Romano35 ,

32. A propósito, cf. as observações de DAMIATA OFM, M. op. cit., p. 184-187.

33. DP I, XVI, § 15, p. 169: “... Rebate-se tal tese dizendo que um monarca indicadomediante uma nova escolha terámuito maior preocupação com o bem comum, porquesabe-se através dum raciocínio indutivo que, na maioria das vezes, ele é prudente e bom.

Na verdade, a pessoa virtuosa que dá origem à sucessão pode, na maioria das vezes, serescolhida pela indicação, enquanto o inverso nem sempre acontece. Um tal príncipe,agindo conforme sua virtude pessoal e civil, tendo em vista alcançar o melhor fim possívelde ser obtido neste mundo, quer dizer, atuando graças à virtude, e querendo ser respeitadoe adquirir uma boa reputação e ainda ser lembrado pela posteridade, se preocupará com obem comum ou a coisa pública tanto ou mais do que o monarca hereditário, pois este,sabendo previamente que seus herdeiros o sucederão no governo, se não for uma pessoavirtuosa e se não tiver medo de sofrer alguma representação da parte de alguém, casocometa algum delito, não daránenhuma importância àquele objetivo...”

34. Cf. III, II, 5.

35. De regimine principum, III, II, 5.

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de acordo com o qual, os monarcas eleitos mais facilmente se tornamtiranos, porque nao estão habituados a exercer o poder. Na verdade,um rei torna-se um déspota, ou por imprudência política ou por mal-dade ou, ainda, por ambos os motivos e, especialmente, quando pre-sume poder agir mal, sem que, por esse motivo possa vir a ser punido.Entretanto, um monarca eleito, por ser virtuoso, sempre evitará tor-nar-se um déspota e, se por ventura agir mal, como foi dito, corre orisco de vir a ser julgado, condenado e punido36 .

Para mais, podem ser considerados como argumentos inconsis-tentes as alegações hipotéticas, segundo as quais: a) os súditos não iri-am obedecer cada novo monarca eleito do mesmo. Na verdade, pou-co importa quem seja o monarca, as leis estipulam os deveres que oscidadãos têm de cumprir37 ; b) uma dinastia seria merecedora de legaro poder real a seus descendentes, em razão dos benefícios que propor-cionou aos seus súditos e os reis virtuosos sempre educam seus filhosna prática das virtudes. Essas asserções não são verdades absolutas queocorrem sempre e em toda parte38 ; c) a monarquia hereditária é a

36. DP I, XVI, § 15, p. 170: “... O governante torna-se um déspota ou por imprudên-cia ou malícia ou por ambos motivos, e acrescente-se ainda, principalmente quandoaspira poder agir mal impunemente.

O monarca designado por uma nova escolha é, na maior parte dos casos, maisprudente e melhor do que o rei com direito à sucessão hereditária, porque devido à suavirtude, evitará fazer o mal. Além disso, se o praticar, arrisca-se a não ficar impune e asofrer, com mais freqüência, representações contra sua pessoa. O monarca hereditárionão corre tais riscos porque um descendente o sucederáno poder...”

37. DP I, XVI, § 16, p. 171: “... Ademais, o costume da obediência, analogamenteestá fixado nas leis e pelo governo, e, ao contrário, relativamente à pessoa do príncipe.Por esse motivo, nota-se que todos sempre respeitam em pensamento e nas ações ogoverno e as leis, todavia, muitas vezes em seu íntimo desprezam o governante, face àsua incompetência. Mas, vê-se que o fato oposto não éverídico. Considerando que namaioria das regiões a totalidade dos súditos está habituada a obedecer às leis e aogoverno, uma substituição da dinastia reinante não é mais prejudicial tanto quanto émenos útil a sua capacidade, caso o príncipe seja eleito novamente...”

38. Cf. DP I, XVI, § 17, p. 172-174.

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espécie a mais comum em quase todos os reinos, logo, é a mais perfei-ta. Na verdade, essa asserção é um sofisma, porque, avalia-se a perfei-ção de um ser, não pela quantidade dos mesmos, mas por suas quali-dades e, em comparação com outros seres da própria e de espécie dife-rentes, apesar de essa comparação também ser relativa39 .

De seguida, Marsílio passa a tratar dos principais riscos que pode-riam prejudicar a opção dos cidadãos pela monarquia eletiva. Um de-les, concerne ao candidato ao trono e aos eleitores e se desdobra nosseguintes aspectos: a) pode acontecer que não haja candidatos virtuo-sos. O Paduano refuta dizendo que se trata de algo quase impossívelde acontecer; b) pode faltar consenso entre os eleitores, quanto a esco-lher alguém que possua as sobreditas virtudes, fatos esses que poderão,por exemplo, gerar uma guerra civil ou se deixarem levar por seusmaus sentimentos e acabarem por escolher um mau governante. Taisargumentos se encontram no Comentário à Política de Aristóteles40 dePedro de Alvérnia (falecido em 1304). Essas instâncias se redarguem,diz o Médico Paduano, tendo-se presente que a eleição deverá sempreser efetuada por pessoas virtuosas e prudentes, as quais dificilmenteprocederiam daquele modo e, se por ventura se comportassem daque-le jeito, assim mesmo, ainda vale a pena apostar na monarquia eletiva,pois, como antes já foi dito, essa modalidade é a única que possibilita

39. DP I, XVI § 23, p. 178-179: “... No entanto, qualquer ente não é mais natural eperfeito do que outro que pertença a uma espécie diferente. Se assim não fosse, o artesãoseria mais perfeito do que o metafísico e o artesanato do que a metafísica ou do quequalquer outra ciência especulativa. Aliás, jádissemos anteriormente que isso não é umaverdade necessária.

A monarquia eletiva não é sempre uma privação da hereditária e tampouco reci-procamente. Na verdade, são espécies distintas uma da outra, incompatíveis simultane-amente a uma mesma pessoa à frente de determinada sociedade civil...”

40. P. D’AUVERGNE, op. cit.,” livre III, lect. XIV, p. 176 de l’édition Marietti ”. Éoportuno ressaltar que esse pensador, discípulo do Angélico, deu continuidade àquelecomentário, deixado incompleto por seu mestre na Universidade de Paris.

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escolher o melhor governante, o qual sempre está preocupado com obem comum41 .

Quanto ao argumento em que se afirma que a monarquia heredi-tária tanto impede que os cidadãos venham a exercer o poder, dadoque é algo que lhes é indevido, quanto evita que tenham esse desejo, éuma asserção verdadeira. Todavia, é preciso levar em conta, de umlado, que os cidadãos cientes de que, por exemplo, há muito temposão governados por reis menos virtuosos e menos dignos do que eles e,assim mesmo não têm a chance de ascenderem ao trono, um dia, aca-barão por se rebelar contra a estirpe reinante42 . Por outro, quando

41. DP I, XVI, § 19, p. 174-175: “... Responde-se a tais problemas, dizendo que amodalidade de escolha apresentada por nosso oponente, isto é‚ a escolha dum governantecom direito à sucessão hereditária incorre bem mais no primeiro dos problemas referi-dos, do que o outro procedimento, porque à época do surgimento das sociedades civishavia um número bem reduzido de homens prudentes. Em vista disso, poderia terocorrido uma falha na designação do monarca que viesse a prejudicar muito mais acoletividade durante um espaço de tempo bem maior.

Quanto ao outro problema... acerca da desavença entre os eleitores, se bem quepossa vir a acontecer... no entanto, ele não reforça a tese de que uma nova escolha domonarca futuro seja menos boa do que uma designação única que conduz ao poder umpríncipe com todos os seus descendentes.

Na verdade, a escolha sempre é feita tendo-se em vista o bem comum, o qual namaioria das vezes é frequentemente querido pelo legislador humano... Todavia, consi-derando que [os eleitores são pessoas virtuosas]... absolutamente não é verdade que, namaioria das vezes, elas estejam em desacordo ou se deixem levar por suas más inclina-ções. Esta é a resposta ao terceiro dos problemas correlatos anteriormente apresentados.

42. DP I, XVI, § 21, p. 177: “... A maioria dos cidadãos vendo que freqüentemente égovernada por pessoas menos dignas do que ela quanto à virtude, e apesar disso conti-nua à margem do poder, e que não dispõe de tempo para cultivar as virtudes, medianteas quais se tornaria digna de governar, ou que, embora usufruindo de tempo para fazerisso, continua alijada do governo que muitas vezes lhes compete aspirar, em face de taismotivos justos seguramente fomentará uma revolta. Todavia, com certeza, não fariaisso, se pudesse, numa ocasião adequada, chegar ao poder, mediante uma escolha.

Ora, considerando-se que a maior parte dos cidadãos é prudente e virtuosa, nãotentará insuflar uma revolta, a menos que ocorra uma grave injustiça, pois, como disse-mos anteriormente, um legislador ou um príncipe virtuoso, tal qual é na maioria das

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alguém efetivamente virtuoso quer reinar, essa pessoa não é movidapelo orgulho, pela presunção, pela ambição ou ainda por todos essesdefeitos juntos, mas porque tem consciência de que pode vir a fazerum bom governo em proveito de todos. Ora, só a monarquia eletivapossibilita essa hipótese43 .

Também carece de base o argumento, segundo o qual, receandoque seus filhos venham a sofrer perseguições dos poderosos, de seusaliados e parentes, apesar de estes delinquirem transgredindo as leis, osmonarcas eleitos não têm coragem de julgá-los e de puni-los. Na ver-dade, em razão do dever inerente ao seu ofício, o rei atual ou o próxi-mo, posto que, assim determinam as leis, terá de julgar e condenarqualquer um que venha a transgredi-las44 .

vezes, uma pessoa escolhida por meio duma nova eleição, jamais liderará seus concidadãoscom vista a alcançar aquele propósito. Na verdade, um príncipe virtuoso e um legisla-dor, em quase todas as circunstâncias, tendem a fazer o que é justo, conforme aludimosantes nos capítulos XIII e XIV...”

43. DP I, XVI, § 21, p. 177-178: “... No que tange àquela outra assertiva de nossoopositor, segundo a qual, é uma atitude ambiciosa ou pretensiosa da parte dos cidadãosquerer o poder, redarguimo-la dizendo que ele não estáfalando a verdade, pois quandoisso acontece com uma pessoa virtuosa, não se trata de um gesto ambicioso, temerárioou orgulhoso, porque esse comportamento é antes fruto da aspiração de querer fazeruma obra magnânima plena de virtude social, de modo que por isso mesmo, o méritode tal pessoa em obter o principado é bem maior do que o seu próprio desejo. Daí,Aristóteles declarar na Ética, livro IV, que não é contrário e impróprio à virtude, umapessoa magnânima desejar grandes honrarias...”.

44. Ibidem, § 22, pág. 178: “O que nosso oponente ainda acrescentou após ter apre-sentado esses argumentos, isto é, que o monarca que não lega o poder a seus herdeirosnão ousará denunciar os poderosos à justiça para serem castigados, se por venturativerem cometido delitos, tornando-se merecedores de castigos físicos ou até mesmo dapena capital, porque receia que venham a fazer mal aos seus filhos, rebatemos essaopinião afirmando que tal monarca não terá medo de cumprir com o seu dever porcausa de sua força de espírito.

Os poderosos, uma vez conduzidos à justiça, se tiverem que sofrer uma punição deacordo com a lei, face aos seus deméritos, não sentirão muito ou quase nenhum ódio do

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Enfim, observa Marino Damiata:...similmente si dica riguardo alla convinzione che la monarchiameglio esprimerebbe l’unità della civitas, corrispondendo incerto modo al governo che Dio fa dell’universo: si fonda piùsull’apparenza che sulla realtà, poiché non tanto bisognapreoccuparsi di una somiglianza esteriore, quanto piuttosto diuna corrispondenza che miri in profondo. L’unità di una civitascioè scaturisce dall’adesione dei cittadini alla sua costituzioneed ethos, nonché dai nessi che legano fra sé le varie partes, nondalla riproduzione artificiale di un qualche modello, replicaMarsilio con la saggezza di chi ormai è abituato a guardare inprofondità nella vita politica...45

Como fica evidente do que acabamos de expor, não basta que oscidadãos escolham o governante mais virtuoso, optem pelo melhorregime político possível e sua modalidade mais perfeita, a monarquiaeletiva; que os legisladores façam as melhores leis tanto em proveitodo bem comum, quanto para balizar a conduta governamental doprincipantis. É preciso também não ignorar o fato de que, muitas ve-zes, a condição humana faz com que as melhores pessoas se deixamlevar por suas inclinações sensuais ou paixões. Os governantes não es-tão isentos desta sina e a história, inclusive a de nosso tempo, registra ecomprova sobejamente esse fato.

Por isso, resta verificar o que Marsílio de Pádua diz que os cida-dãos podem e devem fazer, caso o princeps exerça mal o seu poder.

No entanto, convém relembrar que, antes mesmo de a Ética a

Nicômaco e a Política de Aristóteles estarem circulando nos ambientesescolares de época, (c. 1260), outros pensadores já tinham tratado des-

monarca ou de seus filhos nem quererãose vingar, porque sabem perfeitamente que ajustiça deve ser feita por este ou por um outro príncipe qualquer.

Mas se os poderosos vierem a sentir ódio juntamente com um sentimento devingança, ou por causa de sua ignorância ou de sua malícia ou de ambas, não tentarãoperpetrá-las, receando o legislador e o príncipe futuros, por quem ou por seu antecessor,certamente serão ou teriam sido castigados...”.

45. Op. cit., p. 187.

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sa questão, como João de Salisbúria (c. 1115-1180) que, no seuPolycraticus (1159)46 , propôs abertamente o tiranicídio. Igualmente,sem professar o radicalismo do Mestre Inglês, Tomás de Aquino OPem diversos de seus escritos47 também invectivou duramente a tiraniae o tirano. Do mesmo modo, também, se posicionou Egídio Roma-no OSA no seu De regime principum.

Além disso, obviamente, sem querer identificar o rex inutilis como tirano e com o mau governante, embora haja muita coisa em co-mum entre eles, é oportuno recordar que não muito tempo antes deMarsílio, em muitos reinos, senão o povo, ao menos setores represen-tativos da sociedade reclamavam ao papa da confusão em que o seupaís estava mergulhado por causa do mau rei que tinham, como ocor-reu com D. Sancho II (1223-1245) de Portugal, afastado do poderpor Inocêncio IV (1243-54) que também depôs o imperador FredericoII (1215-50) por causa de suas arbitrariedades contra a Igreja e, ainda,com Eduardo II da Inglaterra (1307-27), destituído pelo Parlamento,por considerá-lo incompetente para reinar. Entretanto, na economiado pensamento político do Paduano, segundo a qual todos os eclesiás-ticos têm um único e idêntico sacerdócio e não possuem nenhumaespécie de poder48 , estava fora de cogitação que o Sumo Pontíficepudesse ser uma instância de recurso em tal caso49 .

46. III, 5, PL CXCIX, 512.

47. Cf., por exemplo, In Sent., II, dist. 44, qu. 2, a 2; S. Th., IIa IIae, qu. 42, a. 2; Reg.,I.VI, 7.

48. Cf. DP II, IV-V, p. 201-271.

49. G. de LAGARDE, op. cit., p. 130: “... Marsile se borne à défendre en quelques pagesle droit du peuple de corriger le prince, en l’engageant à en user avec modération, et nepropose aucune institution permettant de concrétiser ce droit éventuel du peuple, qui n’a étécontesté par aucun écrivain politique du moyen âge. Tout le monde proclame ce droit.Personne ne songe à le garantir par une institution précise. Marsile ne fait pas exception àla regle. Plusieurs textes de la deuxième Dictio et du Defensor minor indiquent même àl’évidence, que 1’on ne pose le príncipe de la correction du prince par le peuple, que pourretirer au sacerdoce toute possibilité d’intervenir à cette occasion... ”.

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O Médico Patavino introduz o assunto em apreço, fazendo umabreve comparação muito apropriada entre a ação que o governanteexerce na sociedade e a função que o coração desempenha no corpohumano, a qual ele colhe nos escritos do Estagirita50 . Ambos atuamcomo motores, não como seres movidos e, por isso, respectivamente,não são controlados ou por ninguém ou por nenhum outro órgão51 .

Entretanto, antes dele, outros pensadores, como João deSalisbúria ou o anônimo autor do opúsculo Rex pacificus, escrito àépoca do conflito entre Bonifácio VIII (1294-1303) e Felipe IV daFrança (1285-1314), já tinham feito semelhante comparação, atémesmo mais detalhada52

Todavia, apesar disso e ainda que a(s) pessoa(s) mais virtuosa(s)deva(m) ser escolhida(s) como governante(s), posto que ele é um ho-mem como qualquer outro, isso faz com que, muitas vezes, o principans

também não apenas possa vir a ser enganado e ou se equivoque a res-peito das coisas, mas até mesmo se deixe levar por suas inclinaçõessensuais e, se por ventura tal fato ocorrer, estando ele a exercer o cargoque lhe foi atribuído e vier a desrespeitar aquelas leis que regulam suaconduta como tal, isso poderá causar graves prejuízos às pessoas e àsociedade, de modo que, então, ele se torna passível de ser julgado econdenado. Com efeito, se não fosse desse modo, o princeps se trans-

50. Cf. Marsílio já tinha feito essa analogia em I, XV, § 7, p. 157-158.

51. A propósito, escreve Marino Damiata: “... La sua carica e la sua funzione sono statecreate, perché è scontato che nella vita civile nascano contrasti e liti, che se non fossero sopitie risolti tempestivamente con equità, altrettanto fatalmente in breve tempo porterebbero alnaufragio della civitas. Ecco per qual motivo Marsilio, che vantava conoscenze e praticamedica, scrive che l’attività dei principans è paragonabile a quella del cuore, che nonconosce soste. D’altra parte, se questa persistente operosità non fosse sorretta ed illuminata dalsentimento della giustizia, finirebbe con l’infettare tutto il corpo sociale, per cui sarebbepraticamente inutile, che la sua struttura costituzionale di per sé fosse salda e le sue leggiencomiabili...” (DAMIATA, OFM, M. op. cit., p. 189).

52. Cf. Polycraticus, I, V, PL CXCIX: 540-588.

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A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

formaria num déspota, os cidadãos seriam transformados em escravose não conseguiriam obter a vita sufficiens e o bem comum53 .

Portanto, dado que é o legislador humano que institui o governantee ou atribui essa incumbência a outrem, é igualmente da sua alçada oudaquelas pessoas a quem ele delegar essa competência, julgá-lo, sentenciá-lo e puni-lo, na forma da lei. Antes, porém, tais pessoas deverão afastaro governante do seu cargo e mantê-lo longe do mesmo enquanto du-rar todo o processo, a fim de que, de um lado, possam livremente esem pressão alguma exercer aquela tarefa e, de outro, que os cidadãosnão se revoltem contra aquela situação perniciosa à sociedade civil54 .

Em seguida, Marsílio passa a tratar dos tipos de delitos que o prín-cipe pode vir a cometer, da periodicidade dos mesmos e se estão ounão previstos nas leis.

53. DP I, XVIII, § § 2 e 3, p. 190-191: “... É por esse motivo que ele e seus atos seconstituem na medida reguladora de toda ação civil, pouco importa quem a realize... domesmo modo que um coração normal regula e mensura, por meio de sua influência ouativiade as outras partes do organismo e nunca é controlado pelas mesmas... Masconsiderando-se que o príncipe é um ser humano, dotado de inteligência e vontade, ecomo tal poderá receber outras formas, por exemplo, uma opinião falsa ou sentir umdesejo mau ou até ambos, por meio dos quais pode vir a atuar em desacordo com o quedetermina a lei, torna-se, por conseguinte, passível de vir a ser igualmente julgado econtrolado de acordo com a mesma, por aquela pessoa que dispõe de autoridade parafazer isso. Caso contrário, todo governo se transformaria num despotismo, os cidadãosseriam reduzidos à condição de escravos e não obteriam a vida suficiente...”.

54. DP I, XVIII, § 3, p. 191: “... Portanto, cabe ao legislador ou àquela ou àquelaspessoas indicadas por ele, segundo comprovamos nos capítulos XII e XV desta parte, omister de julgar o príncipe delinqüente, face aos seus deméritos ou à violação da lei, eordenar a execução de qualquer medida punitiva contra ele.

É oportuno ainda que a pessoa ou as pessoas incumbidas de julgar o delito come-tido pelo príncipe, durante o tempo em que for necessário, o afastem de seu cargo, a fimde que, na hipótese de haver muitos governantes, não sobrevenha consecutivamenteuma revolta, um cisma e uma guerra intestina causadora de grandes males à comunida-de. Ademais, o príncipe não estásendo corrigido enquanto tal, mas na condição detransgressor da lei.

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JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

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Assim, se o governante cometer um delito grave, tal como, atentarcontra a estabilidade do regime ou contra a vida de qualquer pessoa, teráde ser julgado, sentenciado e punido consoante o que determinam as leissobre esse assunto, porquanto essas ações têm uma repercussão nociva àsociedade e até poderão levá-la à desestabilização. Caso não estejam previs-tos em lei, deverá sê-lo conforme a sentença do legislador55 .

Embora Marsílio não arrole quais seriam os delitos leves que oprinceps possa ocasionalmente vir a cometer, continuando a seguir aspegadas de Aristóteles acerca desse tema, ele propõe que o principans nãoseja punido, muito menos afastado do poder, tanto porque ele passaria aser menosprezado pelos cidadãos, quanto porque poderia tomar a ameaçade castigo como uma afronta pessoal e, ainda, os cidadãos vendo a autori-dade fragilizada, passariam a desrespeitar as leis, fatos esses tremendamenteprejudiciais à estabilidade social e política56 .

55. DP I, XVIII, § 4, p. 192: “... Por conseguinte, se o governante cometer uma faltagrave, pouco importa se ocasional ou regularmente, por exemplo, atentar contra aestabilidade da república ou contra a vida de uma pessoa importante ou de uma outraqualquer, deverá ser castigado, pois se não o for devidamente, com certeza ocorrerão aomesmo tempo ou em seguida, uma indignação e revolta populares, a perturbação daordem e a destruição da sociedade civil.

Se a falta cometida estiver regulamentada pela lei, o príncipe dever ser corrigido deconformidade com a mesma, mas se não estiver, ele o deverá sermediante a sentença dolegislador, embora seja oportuno que, na medida do possível, os delitos e os castigoscorrespondentes estejam regulamentados pela lei, como já dissemos antes, no capítuloXI desta parte...”

56. DP I, XVIII, § 5, p. 192: “... Por outro lado, o governante poderá cometer umafalta leve, rara ou freqüentemente. Na hipótese de ocasionalmente cometer uma faltaleve, será melhor ignorá-la do que corrigi-lo, pois se o príncipe vier a ser punido nestacircunstância, acabará por ser menosprezado, o que é duplamente um prejuízo nãodesprezível, primeiramente porque os cidadãos passarão a respeitá-lo menos ainda doque normalmente fazem e desejarão violar as leis.

Em segundo lugar, porque o governante não querendo ser castigado por causa dealgo irrelevante, tomaria a punição como um ato de descaso à sua pessoa, nesta situaçãoainda poderia haver um grave escândalo na comunidade. Por tais motivos, não se devecogitar num castigo a ser aplicado ao governante que vier a cometer raramente uma faltaleve, pois dessa punição com certeza não resultará nada de proveitoso a ninguém, antespelo contrário, advirão aqueles mencionados prejuízos...”.

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Tratando-se, porém, de delitos leves, sem, no entanto, especificarquais sejam, cometidos com certa regularidade pelo governante, oMédico Paduano diz que devem estar previstos pela lei e ele tem de serjulgado, sentenciado e punido, pois, com o tempo, eles acabarão porafetar o Estado e a sociedade57

Para além dessas considerações muito gerais, não há nada mais so-bre esse tema no Defensor da paz. A razão do silêncio de Marsílio, noentender de Jeaninne Quillet, com quem concordamos somente emparte, de um lado, está vinculada à lógica de seu sistema político: ogovernante não pode ser nem mau nem ignorante [o grifo é nosso: será?],nem está acima das leis e, ademais, tem por obrigação fazer com queelas sejam cumpridas por todos. Por outro, levando-se em conta que oprinceps foi exclusivamente investido com tamanha autoridade, a ra-zão disso é que ele deve evitar dois perigos muito maiores do que osdecorrentes das eventuais faltas que possa vir a cometer, nomeadamen-te, a dissolução da paz e a destruição da própria cidade/Estado58 .

57. DP I, XVIII, § 7, p. 193: “... Mas se o príncipe cometer uma falta leve com certaregularidade, a mesma dever estar regulamentada pela lei e ele deveser adequadamentepunido, pois mesmo tratando-se de uma falta leve, repetida com freqüência, acabará porcausar transtornos à comunidade, da mesma maneira que, de acordo com o que estáescrito na Política, livro IV, capítulo 4o [VIII, 8o], as despesas irrisórias repetidas comfreqüência consomem as fortunas, quer dizer, as riquezas, porque o conjunto ou o todo não épequeno, embora se constitua de somas pequenas...”

58. Cf. Op. cit., p. 123-124: “... Cette discrétion tient à deux raisons d’égale importance:la première est liée à la logique du systeme de l’organisation politique. Le prince appelé aupouvoir dans les conditions requises, au plan de la perfection, ne peut être ni méchant, niignorant. En théorie, il est la pars executiva ou instrumentalis de la loi; en fait, il finit parl’incarner. Retenons pourtant que, fidèle à la doctrine romaine, Marsile ne dit jamais quel’Empereur est au-dessus des lois. Pourtant, l’affirmation de la supériorité du regne de la loisur celui des hommes ressortit davantage à l’exposé rhétorique qu’à une nécessité objective desa pensée.

La seconde raison est solidaire de la première: si le prince est investi d’une telleautorité, si entière et si exclusive, c’est pour éviter un danger bien plus grand que celuid’éventuels abus du prince, à savoir la destruction de la paix et de la cité elle-même...”

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[METÁFORAS DO SABER E DA LUZ]

[METÁFORAS DO SABER E DA LUZ]

Hermógenes Harada*

... Existe um antigo conto chinês sobre a limitação do nosso saberobjetivo.

“És ou não és?”, a luz perguntou ao nada.

A luz não recebeu resposta e fixou os olhos no nada.

O nada era escuro e vazio. O dia todo a luz experimentou ver. Masnão pôde ver o nada. Auscultou. Mas não o pôde ouvir. Tentou tocá-lo. Mas não o pôde encontrar.

“Oh!”, disse a luz consigo mesma, “isto é pois o máximo! Quempode atingir uma tal altura?! Eu posso saber que não sei o que é o nada.Não posso, porém, não saber que não sei o que é o nada. Se sei quenão sei o que é o nada, resta sempre ainda o saber do meu não saber.Como pode alguém alcançar essa culminância?!” (Tschuangtse, O in-visível, o inaudível e inconcebível).

O que Tschuangtse chama de culminância, isto é, o limite supre-mo do saber nos parece um absurdo.

Como deveria ser essa culminância?

Tschuangtse diz: o não saber o meu não saber!

Mas isso é nada, uma absoluta não-consciência, uma total escuridão!

Exatamente.

* Extratos de textos parcialmente já publicados. O título Metáforas do saber e da luz nãopertence aos textos originais.

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Mas como pode uma tal escuridão ser o máximo saber?

Conta-nos a fábula que o sapo do poço perguntou: “A Terra é tãogrande como o meu poço?”

A Terra não cabe no poço. Pois é o poço que está contido na Terra.

Enquanto o sapo tenta compreender a Terra a partir e dentro dopoço, isto é, na perspectiva, na ótica, no objectivo do poço, a Terrajamais se lhe revelará como Terra. A partir e dentro do seu poço, alinguagem do sapo só pode ser esta: a Terra é maior, menor do que outão grande como o meu poço?!

Maior, menor, tão grande têm o seu ponto de referência no mundodo sapo, a medida do saber do batráquio é o seu poço. O que não cabedentro dessa medida é invisível, inaudível, inconcebível.

Mas digamos que o nosso simpático batráquio é um pensador. Elereflete. Surge-lhe aos poucos uma vaga suspeita de que a Terra, o além-poço é maior do que o seu mundo. A essa altura da sua reflexão eledirá: “Suspeito que a Terra seja muito maior do que a minha casa”.

Logo, porém, se corrige: “Maior, menor, tão grande são termos com-parativos. A comparação só tem sentido dentro de uma medida a partir daqual posso comparar. Essa medida no entanto só diz respeito ao meumundo. Pois ela nasce, vive e opera a partir e dentro do meu mundo”.

Perplexo e humilhado: “A única coisa que posso saber da Terra éque ela é não-poço. O poço é meu mundo. Tudo. Todos os entes reaise possíveis no meu mundo. Ser. Portanto, o não-poço significa: não-tudo, nenhum ente real ou possível no meu mundo, nada”.

Mas de repente lhe estala uma intuição: “Donde vem a suspeita doalém-poço? Como posso falar do nada, do não-tudo, do não-Ser, se o‘outro’ não está de alguma forma já presente ‘em mim’? Se estou real-mente preso irremediavelmente no meu poço, nem sequer poderiasuspeitar do não-poço!”

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O sapo foi atingido, tocado por “algo” que não é ele mesmo. Esseevento no entanto, em vez de lhe facilitar o seu saber, revela-lhe preci-samente agora o seu próprio saber como a questão fundamental da suavida, como o peso que lhe impede o salto para aquilo que vislumbrouno in-stante do toque. Pois, ao tentar ver, auscultar e tocar a presençado outro desvelado na suspeita momentânea, percebe que já o definiucomo não-ser, como não-algo, como nada, como algo sob a medidado seu poço. Assim, surge nitidamente a questão-culminância do seusaber: como não saber o meu não saber?

Continuemos mais um pouco a fábula.

Na terra que cercava, como paredes do poço, o sapo, vivia umaminhoca. Sua morada é Terra. Todo o seu corpo, o seu ser é como quea continuação da Terra. Está envolvida, situada, integrada nela. Comoo peixe vive na água, a minhoca vive, in-siste no húmus, no suco daTerra. Por assim dizer, a minhoca é a carni-ficação da Terra, o lugaronde a Terra se abre e se re-colhe como sensibilidade, ressonância econcentração. A minhoca é a consciência, o tacto, o órgão-sentido, avida da Terra.

Por isso, em todo o seu corpo de Terra, a minhoca registrava todasas vibrações, toda a escala de intensidade do ser-Terra.

Certa vez, a minhoca ouviu o monólogo do sapo que se pergunta-va: “A terra é maior do que o meu poço?” A minhoca falou com seusbotões: “Creio que não há resposta para essa pergunta. Pois como podeo envolvido perguntar pelo envolvente dessa maneira como o sapopergunta? O sapo mora no buraco da Terra. Quem sustenta, cerca oespaço vazio do buraco é Terra. Todas as vibrações da Terra impregname pulsam também em o espaço vazio da Terra. Quem possibilita oespaço livre para o sapo é justamente o vácuo motivado pela ausênciada Terra, vácuo de ausência, mantido e conservado pela Terra comofundo, como paredes, como limites do poço. O espaço da Terra, onde

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habita todo um mundo de espaços variegados e poliformes na suapujança, intensidade, impregnância, liberdade, resistência e abertura,só é possível ser apreendido se me torno permeável, ressonante à pre-sença envolvente da vibração-Terra. O sapo, no entanto, só tem ante-nas para o espaço do vácuo mensurável em trechos objetivos de maiorou menor e tenta a partir dessa medida deficiente abranger a grandeza-Terra. E nem sequer se dá conta de que a própria abertura do poço temo seu espaço de jogo a partir e dentro da Terra que ele quer medir”. ...

* * *

... No livro Diálogos com Ionesco1 , Claude Bonnefoy pergunta aEugène Ionesco sobre a sua peça teatral Tusur Sans Gages que, na inter-pretação do autor, representa a idéia da Cidade radiosa. Fala EngèneIonesco:

A luz é o mundo transfigurado. É, por exemplo, na primavera,a metamorfose gloriosa do caminho lamacento da minha infân-cia. De uma só vez, o mundo adquire uma beleza inexplicável...Lembro-me, que certo dia um pessimista chegou à minha casa.Naquele tempo, eu morava num rés-do-chão, à Rua ClaudeTerrasse. Minha filha era ainda um bebê e não dispúnhamos demuito espaço: havíamos posto sua roupa a secar dentro de casa.Ora bem, este amigo chegou dizendo que aquilo não era vida,que a vida não era bela, que havia a indignidade, a tristeza, quetudo era sórdido, que nossa casa era triste e feia etc... E eu res-pondi: “Mas eu acho que é muito, muito linda; essas roupaspenduradas no cordel ao meio do quarto – é muito bonito isso”.O amigo me olhou, admirado e desdenhoso. “Sim” – insistia eu“basta saber olhar bem, é preciso ver. É admirável. Não importaqual seja a maravilha, tudo é uma epifania gloriosa, o mais pe-queno objeto resplandece”. Porque, repentinamente, eu tivera a

1. Rio de Janeiro: Editora Mundo Musical Ltda., 1970, p. 22-23.

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impressão de que a roupa, sobre o cordel, era duma beleza insó-lita, o mundo virgem, refulgente. Eu conseguira vê-la com olhosde pintor para suas qualidades de luz. A partir disso, tudo pare-cia belo, tudo se transfigurava. Do mesmo modo, veja essa casaem frente à minha. Ela é feia, com suas janelas triangulares. Poisbem, ela resplandece, se eu a olho com amor e boa-vontade;quero dizer, ela se ilumina subitamente, é um fato que se mani-festa. Todo mundo pode ter essas impressões.

Olhar com amor e boa-vontade: manifestação radiosa do coraçãoda realidade: a luz, a luminosidade: a jovialidade de ser.

Mãe de família, lavadeira “ignorante”, sem estudos. Pendura rou-pas lavadas no cordel. Camisas minúsculas, calcinhas de criança. Suspen-sas, desanimadas, sem vida, pingando gotas de água. De repente, soprao vento. As roupas se agitam, dançam, se enchem de vida, saltitam nocordel, quais duendes travessos, na alegria de viver. E a mãe sorri, naacolhida do espírito de vida (cf. G. K. Chesterton, Manalive).

A partir de onde vem essa referência do sopro da vida que alegra ocoração da mãe? Da maravilha do mistério da vida que Ionesco chamade epifania gloriosa da luz: a luminosidade. A maravilha do mistérioda vida e da vida do mistério não é isso ou aquilo. Não é um objetoentre outros objetos. E o medium da jovialidade, da coragem de ser, apartir e dentro do qual, cada coisa é maravilhosa. É, portanto, umatotalidade. Totalidade que possibilita à mãe ver e não ver tudo sob oenfoque do maravilhoso. Na medida em que a mãe é colhida por eacolhe essa totalidade, ela con-cresce para o olhar cordial da realidade.Essa totalidade tem a sua lógica interna, suas leis, seu modo de cresci-mento, seu modo próprio de aparecer: o sentido da vida. A mãe “ig-norante” do saber, que vive na fluência nasciva do mistério da joviali-dade, da vida, não precisa de outros enfoques para ver a maravilha dascoisas. E quem não está ainda desperto para a acolhida dessa fluênciasó pode se abrir a ela, a partir da e-vocação e referência, a partir dalógica, i. é, do recolhimento da própria totalidade do mistério.

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O sentido da vida não é, portanto, um objetivo, para o qual a vidadeve tender. É antes o vigor da jovialidade que nos ad-vém a partir edentro da totalidade chamada mistério da vida. O mistério se enviaem concreções e, como a condição lógica da sua manifestação, exige aacolhida de uma ausculta rigorosa, no próprio viver dessas concreções.Concreções que são os afazeres da nossa existência, sem exceção de issoou aquilo.

Esse modo de ser da acolhida como a ausculta rigorosa do sentidoé próprio do vigor do mistério da vida, é o que os antigos chamavamde espírito. E a cura, i. é, o cultivo cordial do espírito se chama: espiri-

tualidade.

Digamos que o próprio da formação religiosa é a espiritualidade, éo cultivo cordial do espírito. Mas o próprio da cura, do cultivo é dei-xar ser o sentido do mistério, é a ausculta do ad-vento da jovialidadeda Maravilha, é ser todo ouvido à referência da gratuidade do ser. Eisso é tudo. Tudo que articula e mobiliza toda uma existência, exigin-do-lhe a dedicação radical do fazer, sentir e pensar, o engajamento totale totalizante da liberdade. ...

* * *

... Fenômeno

Usualmente, entendemos por fenômeno o que aparece, o que seapresenta, se mostra. E quase sempre de modo incomum, extraordi-nariamente.

A palavra “fenômeno” vem do grego “phainesthai” que quer dizermostrar-se. É interessante observar que os verbos possuem “voz”: ati-va, quando a ação é praticada pelo sujeito; passiva, quando a ação é porele recebida; e reflexa ou média, quando a ação é ao mesmo tempopraticada e recebida pelo sujeito.

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A forma ativa de “phainesthai (phainein)” significa: trazer à luz,colocar na claridade, mostrar, fazer aparecer. “Phainesthai” é voz média,isto é, indica uma ação que não é nem ativa nem passiva. Esta maneira dedizer, “nem ativa nem passiva”, esconde um modo de ser todo próprioda ação medial: a dinâmica de tornar-se e ser “a si mesmo”.

As palavras “fenômeno”, “phainesthai” e “phainein” têm origem de“phos”, que significa luz, claridade. O verbo “phainesthai” significa,portanto: vir à luz, luzir, ser incandescência da claridade. Esse modo deser da claridade se chama “evideri” em latim, de onde vem a palavra“evidência”. É neste sentido de “e-vidência”, de mostrar-se presente, deaparecer que devemos entender a palavra “fenômeno”. Fenômeno é,pois, o que assim se mostra a partir de si a si mesmo.

É nesse sentido de tornar-se presente, de vir à claridade, que dize-mos “A lua cheia apareceu”. É nesse sentido de se apresentar que diz aexpressão popular: “Cresça e apareça!”

Os gregos, no entanto, em vez de “fenômeno”, diziam também“ón”, particípio do verbo “einai” que significa ser. Ón significa, pois,literalmente, em sendo. Em português, dizemos “ente”; substantivado,temos então “o ente”. O ente é o ser.

Os gregos, portanto, consideravam o ente, o ser, a partir da dinâ-mica do vir à luz, do luzir, do aparecer. Assim, fenômeno e ente dizemo mesmo. Com a expressão “o ente” podemos, de alguma forma, in-dicar tudo, todas as “coisas”. Tudo que podemos chamar de “ente”,podemos chamar também de “fenômeno”. Só que, no uso corrente,por “o ente” entendemos o ser como “coisa”, como algo estático; aopasso que por “fenômeno” entendemos o momento dinâmico da açãode aparecer. Daí a conotação de extraordinário, de incomum, na pala-vra “fenômeno” na sua acepção usual.

Aqui, é necessário precaver-se contra a tendência, em uso, de en-tender o fenômeno como “aparência”, no sentido de exterioridade,

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isto é, “fachada externa de algo que está oculto atrás”. Por exemplo: acor amarela dos olhos não é o mostrar-se, o apresentar-se da inflama-ção do fígado ela mesma. Se o fosse, deveríamos ver o próprio fígadoinflamado. Aqui, a inflamação do fígado é a causa que produz o efeito“cor amarela dos olhos”.

O modo de ser da “e-vidência”, do fenômeno, é diferente do daaparência. No fenômeno, é a “coisa ela mesma” que se apresenta, semostra, digamos, “pessoalmente”, vem à claridade no seu ser. Nessesentido, a claridade do luar que se intensifica cada vez mais não é osintoma da lua, mas a lua ela mesma no seu aparecer. A incandescênciado carvão ardente não é fachada, aparência ou sintoma do carvão, atrásdo qual o carvão ele mesmo se oculta, mas é o carvão ele mesmo empessoa que “manda brasa” no seu ser carvão.

Se entendemos assim o fenômeno, no seu sentido originário gre-go, e o ente, no seu sentido originário latino, como incandescência daclaridade no ser, então poderemos dizer que cada ente, cada fenômenotem o seu modo próprio de mostrar-se na verdade do seu ser. Essaobservação nada tem a ver com afirmação do subjetivismo. Pelo con-trário, tem muito a ver com o respeito e com o rigor de uma aborda-gem real e adequada ao ente.

Quando um fenômeno não é respeitado no mostrar-se todo próprioda verdade do seu ser, quando lhe é lançado um horizonte de abordageme compreensão que vem de um outro interesse, de uma posição alheia aopróprio ente, ao próprio fenômeno, o aparecer do fenômeno, a sua“mostração” se torna defasada, desfocada. Em vez de a “coisa ela mesma” seapresentar pessoalmente na sua verdade, em vez de se revelar, é colocadasob mira, sob o enfoque de uma outra causa. Então, o fenômeno como ovir à luz do ente ele mesmo, nele mesmo no seu ser, decai para o estadodeficiente de “aparência” no sentido de “falsificação”, no sentido de um “seraparente”, mas não autêntico e verdadeiro. É nesse sentido que dizemos:“Nem tudo que brilha é ouro!”

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HOMENAGEM E TRIBUTO DE UM LEIGO...

HOMENAGEM E TRIBUTO DE UMLEIGO A HERMÓGENES HARADA

Gilvan Fogel

Conheci Hermógenes Harada mais ou menos em 1972. Eu aca-bara o curso de graduação em filosofia na Universidade Católica dePetrópolis e sabia da existência dele como professor de filosofia dosfranciscanos, no Convento Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis,pois entre meus colegas da universidade havia alguns franciscanos, queeram alunos dele.

No começo de 1972 propus-me fazer o mestrado em filosofia,que ora se iniciava no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) daUFRJ. Para ingressar, eu precisava prestar um exame escrito e um orale, dentre os temas, havia um que eu, então, sequer conseguia articulare pronunciar o nome: fenomenologia. Então, intermediado já não seimais por qual dos amigos franciscanos, corri para o Harada. Ele con-versou um pouco comigo, expôs-me alguma coisa, deu-me algumadica que fosse útil para a premência da hora e, cheio de discrição, quasese desculpando, passou-me um texto seu, intitulado Fenomenologia do

Corpo, no qual eu poderia e deveria aprender algo sobre o métodofenomenológico. Isso foi o começo.

Duas semanas depois, prestei o exame, fui bem sucedido e ingres-sei no curso, começando realmente a estudar a tal fenomenologia – E.Husserl e M. Ponty.

Um ano depois, 1973, fui chamado a dar aulas no próprio Ifcs,substituindo a professora Creusa Capalbo na graduação, pois ela se

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afastara temporariamente, viajando para a Europa. Era tempo, saudá-vel eco de 1968, que os alunos queriam, exigiam, cursos monográficose não mais exposições manualescas. Os cursos deixavam de ser mera-mente informativos e baseados em puros, simples e simplórios manu-ais. Os alunos, do quarto ano (hoje diríamos: do oitavo período),pediam que eu tomasse para leitura e comentário ou Hegel ouNietzsche. Eu nada sabia, quer de um, quer de outro. Mas já ouvira

um pouco mais de Nietzsche e mesmo já me aventurara um poucocom O nascimento da tragédia. Claro, foi por Nietzsche que me deci-di. E, mais uma vez, procurei por Harada, para orientar-me, instruir-me. Falei com ele que pretendia iniciar com a turma uma leitura de Onascimento da tragédia. Ele aprovou, novamente deu-me umas dicas,mas, basicamente, me disse: “Seja lento, vá devagar!” Confesso queisso me ficou para sempre. Até hoje sou lento, devagar.

Este contato foi ocasião e pretexto para que, a meu pedido, inici-ássemos um estudo, uma leitura de Nietzsche, que passou a acontecerregularmente à noite, às 19.00h, das quartas-feiras, de quinze em quinzedias, numa das salas junto à portaria do Convento. Começou-se lendoo Zaratustra. Inicialmente alguns tópicos do prólogo. Em seguida,isto é, uns dois semestres depois!, leu-se o primeiro discurso da pri-meira parte, Das três transformações do espírito. Depois, a meu pedido,passamos para Da redenção, discurso da segunda parte do Zaratustra.Isso estendeu-se pelos anos de 73, 74 e 75. No início de 1976 fui paraa Alemanha e meu doutorado, na Universidade de Heidelberg, foitodo ele formulado e escrito a partir de umas dez ou doze páginasresultantes da leitura de Da redenção. Em alguma hora, Harada, du-rante o seminário de leitura, mandou que eu preparasse por escrito aapresentação da próxima sessão. Nessa ocasião, participava da leituratambém frei Sebastião Kremer, então, tal com eu, um jovem estudan-te e frei Arcângelo Buzzi, tal como Harada, professor no Convento.Sempre um de nós era o responsável por iniciar a sessão, com um

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esboço do que fora a sessão anterior e uma breve antecipação do queseria o tema do dia. Assim fiz e li, quer dizer, apresentei por escrito, nasessão seguinte. Harada gostou, pediu o texto e na sessão seguinte de-volveu-me com alguns comentários no fim. Os comentários eramquestões que eu, como dever de casa, tratei de responder igualmentepor escrito e, na sessão seguinte, passei para ele. Ele, de novo, leu; denovo formulou questões e eu, de novo, respondi. Mais uma vez eleformulou umas questões e, então, já era o finzinho de 1975. Março de76 fui para a Alemanha, levando comigo estas notas, as quais aindaguardo comigo até hoje. As observações/questões do Harada eram fei-tas sempre à mão, no final do meu escrito à máquina.

Um parêntese para uma nota. Uma tarde, creio mais ou menospelo ano de 72, já não sei mais a propósito de quê exatamente, fui aoConvento do Sagrado Coração pegar algum livro com Harada e comele brevemente conversar sobre algum tema, alguma tarefa da hora.Comigo foi um amigo, até hoje grande amigo, Antônio Pedro, pin-tor, e também colega de turma na filosofia da UCP. Em alguma horafomos convidados por Harada para ir até sua cela, justo pegar, esco-lher, talvez o tal livro. Ao chegarmos, nos deparamos, sim, com umacela. Um pequeno cômodo, uns nove metros quadrados, piso de ci-mento liso, boa janela, proporcionando um ambiente ventilado, are-jado e muito bem iluminado; um banco baixinho (um mocho), quaserente ao chão e uma estante com livros, não muitos. O resto vazio.Paredes nuas. Nem mesa, nem cama. Antônio, sempre muito direto,expansivo, meio irreverente, perguntou: “Você dorme aqui?” “Sim”,respondeu Harada. “Mas onde?”, perguntou Antônio, já que não ha-via cama ou algo parecido. “Ali”, disse Harada, apontando para cima,em direção ao meio da estante de livros. “Ali, onde?”, insistiu o Antô-nio, pois de fato não se podia ver onde e nem como. Então, Harada,no meio da estante, ativou uma geringonça que se abriu. Era a “cama”.Na verdade, uma tábua lisa e nada mais que uma outra prateleira da

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estante. Antônio, surpreso, meio estupefato, disse: “Pô, ali, na prate-leira?! Você dorme na prateleira?!” Ele riu, era. O Harada dormia naprateleira, lia, estudava e escrevia sentado ao rés do chão e tinha o pisode cimento liso como mesa.

Pelos começos de 1981 voltei da Alemanha, retomei meu traba-lho no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), da UFRJ, e,morando em Petrópolis, logo reiniciei um estudo periódico comHarada, de novo, de quinze em quinze dias. Reuníamo-nos à tarde elíamos textos escolhidos do livro III da Vontade de Poder, de Nietzsche.Textos que, em geral, versavam sobre crítica ao eu, ao sujeito, à subs-tância, à causalidade. Participavam também, com certa assiduidade,frei Gilberto Garcia, então estudante, frei Arcângelo Buzzi e freiGamaliel, professores. As leituras iam sempre muito lentas, os textos,anotações de Nietzsche, muito curtos. Certa vez, ao retomar a leitura,no início de uma sessão, vimos que não sabíamos mais onde tínhamosparado na vez anterior. Na dúvida, Harada propôs que se começasse denovo. Assim fizemos. E lemos muito menos, isto é, avançamos muitomenos que na vez anterior. Ao final da sessão, quando isso foi verifica-do, Harada comentou: “Estamos melhorando”.

Isso durou pelos anos de 81 e 82. Em 83, creio, Harada deixouPetrópolis, indo para Rondinha, no Paraná. Ali estabelecia-se uma novaescola franciscana à qual ele muito se dedicava, muito se empenhava etrabalhava pela sua fundação. Daí por diante nossos contatos ficarammais raros, ainda que esporadicamente acontecendo. Isso, porém, ja-mais arrefeceu a força e a presença do Harada no meu trabalho, naminha vida de ensino e na minha lida intelectual. Pelo contrário, mui-to pelo contrário.

Em 1986, quando do nascimento de meu primeiro filho Pedro,Harada estava de passagem por Petrópolis, algo num centro, creioCefepal, onde estava hospedado. Fui procurá-lo. Primeiro para revê-lo e, segundo, queria ver se haveria ocasião para ele batizar Pedro. Isso

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não foi possível, pois estava muito em cima da hora e ele já estava devolta marcada, talvez para ao dia seguinte. Mas tive, então, uma tardede longa e agradável conversa com ele. Sempre se falava de algumacoisa de filosofia. Mas, nesse dia, ele contou-me, também entusiasma-do, como iam as coisas no seminário de Rondinha, seus planos detrabalho e de ensino na formação dos jovens. Sobretudo, acentuava,atividades que não eram só de estudo, mas também de trabalho, traba-lho duro, com braços e mãos e tudo isso bem pensado como parte doplanejamento pedagógico, para que não se “debilitassem” só com livros,com coisas livrescas e intelectualescas. Falou-me do projeto, da neces-sidade de restaurar esta força, esta vitalidade simples e de encaminharos estudantes também para estas atividades físicas e das ou com asmãos. E ele saiu-se com esta expressão, com esta formulação: “Gilvan,quero acabar com a viadagem no clero”... A única vez que ouvi da bocado Harada uma palavra que poderia se dizer: um palavrão.

Voltamos a ter encontros, esporádicos, sim, em Rondinha, umasduas vezes, e no Rio, no Convento de Santo Antônio e, uma vez, noIfcs. E sempre, pelo menos para manter a forma, se conversava, sediscutia – e eu ouvia, ouvia e ouvia! – algum tema, algum assunto,alguma coisa de filosofia.

Pelo começo de 2004, escrevi a Harada pedindo-lhe um texto, algoem torno de mito e arte, para publicar na revista Sofia, da UniversidadeFederal do Espírito Santo, por solicitação de meu amigo e editor da revis-ta, prof. Fernando M. Pessoa. Em setembro, Harada enviou-me o texto,acompanhado de um “bilhete”, no qual fazia recomendações a propósitodo escrito: eliminar o que não prestasse (!), cortar o que estivesse muitoextenso; sequer publicar, caso sentisse que estava ruim!! E tudo isso semconsultá-lo, sem comunicá-lo. Então, segue-se este parágrafo: “Aqui esta-mos numa labuta um tanto missão impossível. A gente não é lá muitofilósofo, mas mesmo assim, a gente sente claramente que o clero é umaraça, na qual filosofia não entra mesmo. Se a resistência dentro da cabeça

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do clero viesse da teologia, cujo núcleo fosse mais granítico, a gente estariasalvo. Mas acho que atrás da mitra só há algodão. O pior é que eu tambémsou clérigo. Mas tudo isso não tem, penso eu, nada a ver com cristidade.”E ele conclui este bilhete do seguinte modo: “Ênio me disse que talvez emnovembro (é por ali) vamos nos reunir para o encontro daquela coleçãodos pensadores, ali no Rio de Janeiro; e então vamos matar saudade filosó-fica e tirar a barriga filosófica da miséria, conversando muito. Em todocaso, se um dia vier por essas bandas, é sempre bem vindo. Embora hojenão tenhamos mais tanto torresmo como antigamente lá no convento. Éque a turma está politicamente correta diante do colesterol e da pressãoalta.” É, desconfio que o Harada, talvez, andou abusando um pouco dotorresmo e até do amendoim torrado nestes últimos tempos...

Recentemente, em dezembro de 2008, fui homenageado no Ifcs, poralunos e alguns professores, a propósito de uma data redonda, recémacontecida: meus 60 anos. Houve uma sessão solene, com apresentação deum livro em minha homenagem, O presente do filósofo, no qual muitosescreveram. Tudo me comoveu muito e a todos muito agradeci. Masnada me comoveu tanto quando, ao abrir-se da sessão, recebi de novo um“bilhete” do Harada, referindo-se à ocasião e, ao abrir o livro, constatei queo primeiro texto era, é um escrito do Harada, intitulado Econômico e casei-

ro, o estudo da filosofia? (Uma parábola chamada paciência). À noite, emcasa, sozinho no canto, li com muita atenção e emoção o “bilhete” que mefoi por ele enviado e que começava com um “Estimado Gilvan” e que mecumprimentava e saudava pelo “trabalho de professor universitário”. Elefala da natureza desse trabalho e da nobreza de seu cultivo e, sobretudo,quando ele se faz uma vida e um destino – silencioso, discreto, muito só epróprio. Guardo ciosamente comigo esta página pessoal, gentil, carinho-sa, intensa.

Agora, em janeiro de 2009, mais precisamente, no dia 30, estavaeu em Curitiba por conta de um curso, o qual fui convidado a dar.Sabia que Harada sofrera um infarto e que se encontrava internado, à

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espera da cirurgia a que ia se submeter, dois ou três dias depois. Acerteipreviamente a visita e, pelo final da tarde, lá fui. Ansioso, seja pelo seuestado, principalmente, seja porque, há pelo menos três anos, não nosvíamos. Bati à porta do quarto e fiquei à espera. Para grande surpresa ealegria minha, veio o próprio Harada abrir a porta. Um grande sorrisoirradiou e iluminou, parece que não só seu rosto, mas todo ele. Eleestava muito bem. Vivo, aceso, lépido, sentado a uma mesinha, escre-via num lap-top. Ali falamos, conversamos. Ele sempre muito presen-te, irradiante, lúcido. Não sei como, quando me dei conta, falávamos,ele falava, sobre a importância de se ser burro! Com muita disciplina,muita aplicação, isso pode render espírito...! Eu lembrei, e junto pro-curávamos comentar, Cézanne, que dizia de si: “Sou lento, pesado eburro”. Ele falou-me, parece, de algum franciscano, desses medievaisestranhos, meio loucos, que era tão burro, mas tão burro, que não con-seguia realizar seu grande desejo, seu maior desejo, que era tornar-sepadre, pois não conseguia aprender latim. E isso era condição absolu-ta. Mas então, para satisfazer este desejo maior de sua vida, foi estudarlatim, aplicou-se muito, muito e, de tanto empenhar-se, junto com olatim veio a espantosa aprendizagem de ler almas! Sim, ele aprendeu aler almas – via alma, via e sabia almas...

Ali ficamos, mais ou menos, uma hora e meia em conversa séria ejocosa. Era hora, despedi-me, ele levou-me até à porta e, sempre sorri-dente e irradiante, desejou-me boa sorte e eu a ele, dizendo-lhe quefazia votos de longa e boa vida, apesar de que ele, rindo gostosamente,me dissera que conversara com o médico e este lhe prometera pelomenos mais dez anos. Ele disse: “Ora, pra quê?! Já estou com 80, ecom 90 não se faz mais nada, não se presta pra mais nada! Basta sómais cinco. Só mais cinco de validade e já é demais!”

Para mim, também e sobretudo como ensinamento do mestre,fica sempre a lembrança de seu sorriso limpo, límpido, grande, serenoe suave. Muitas vezes, nas horas grandes sempre, uma fisionomia séria,

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um rosto fechado, duro, recolhido. Mas, de repente, podia abrir-setodo num riso, que não era só sorriso, mas até boa gargalhada, não sóde boca, de olhos, de face, mas, como ele às vezes gostava de dizer, debarriga, do fundo da barriga, e que transbordava pela boca afora...

Nisso tudo, nada falei do ensinamento do Harada. A impressãoque tenho é que com Harada aprendi tudo que podia, tudo que devia

aprender. Tudo que tenho de essencial na filosofia (que presumo ter!) devoa ele. Porque com ele, sobretudo com ele, aprendi a aprender. Este apren-der a aprender fala de um processo, de um modo de ser que se ganha ou seconquista (e ele, Harada, sempre apontou para isso, sempre insinuou isso),no qual, pela via da experiência, se entra ou se é jogado, no qual assimcomeça-se a participar do próprio fazer-se e crescer (aparecer) da própriacoisa. Nisso, nesta participação, dá-se toda uma iluminação, cresce e apare-ce toda uma evidência. Tudo, sim, vai ganhando vida, à medida que vaibrotando, se irradiando, “fazendo-se visível”, para usar uma expressão deKlee. Harada, tal como todo mestre, todo grande mestre, nunca ensinounada, nunca deu coisa nenhuma, quer dizer, nunca transmitiu doutri-na, norma, padrão, clichê ou cacoete de algum autor ou de corrente,de escola. Jamais alguma moda ou refrão.

Este aprender a aprender aconteceu sempre com, a partir da leiturade algum texto – sempre um texto. Isso evita divagação, distração,dispersão. Para mim, sempre foi um grande acontecimento e uma horamaior e de encantamento ler um texto filosófico com Harada. Textosempre curto, breve. Aí, no texto, ele pegava, ele pinçava a passagem, afrase essencial, fundamental – a geratriz e condutora. E nessa frase, otermo, a noção, o conceito central, base. Às vezes, muitas vezes, come-çava pelo título. Isso que acima chamei a frase ou a noção central, naverdade, só se mostra, só se mostrava ser a central depois da leitura, docomentário do Harada. Essa leitura, esse comentário, sempre, foimarcado(a) e caracterizado(a) por insinuação, aceno e, então, de repen-te, tudo começa a se abrir. Na frase, na noção eleita para comentar,

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interpretar, jamais é a erudição o que decide, o que manda e comanda.Com Harada, erudição, enquanto mera informação e, então, saberchocho, balofo (a cultura), jamais foi argumento. Isso não quer dizerque ele não tenha erudição, grande erudição, à medida que a entenda-mos como saber vasto, sim, mas assentado; conhecimento sólido datradição filosófica, lastro, bom lastro. Mas o ponto de partida semprefoi, sempre é o ou um fenômeno, a ou uma experiência. Ele mostra, eleinsiste em apontar e mostrar que no texto filosófico, no autor ou pen-sador, o que realmente está em questão é um fenômeno, uma expe-

riência e não um mero diletantismo intelectual, intelectualismo. Expe-

riência sempre foi, sempre é o acontecimento-chave, o ponto de parti-da (e também de chegada) no ensinamento, na aula, na leitura-comen-tário do Harada. Assim, a partir do fenômeno e de sua descrição-aná-lise genética ou genealógica, a partir da experiência, de repente, tudocomeça a se iluminar. Um texto inteiro, uma concepção inteira, come-ça a ganhar evidência, a partir dessa análise concreta, fenomenal e feno-menológica, que desce às raízes, à gênese do fenômeno, desconstruindo-

o para assim torná-lo visível na sua força realizadora, na sua essência ougênese. Sim, realmente, tudo começa a se revelar, a aparecer ou fazer-sevisível a partir da própria coisa. Genuína fenomenologia. A experiên-cia, no sentido de toque, afeto, pathos (não o mero empírico ou impres-são sensível), se faz evidência, critério e medida de realização de reali-dade, critério e medida de verdade. Mais do que nunca, foi, para mim,a partir do trabalho com Harada que experiência se revelou ser o lugare a hora de evidência. Na verdade, uma única e mesma coisa. Issosempre me encantou e seduziu. Experiência, experiência descrita, ex-posta, comentada-interpretada in statu nascendi – é isso mesmo evi-

dência, iluminação de realidade em sua própria gênese.

Nada abstrato, no sentido do formalista, do intelectualista, do eru-dito confuso e obscuro (profundo!) que, na verdade, usa desta via paraesconder, para escamotear o que não vê, o que não sabe, ou seja, recur-

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so, evasiva para dissimular uma alienação, um desenraizamento, umadesorientação. Com Harada jamais alguém se torna ou vira um erudi-to, um intelectual formalista e abstrato – eunuco. Assim, desde fenô-meno ou experiência, Harada sempre foi agudo, intenso, econômico(principalmente econômico!), punçante nas observações, penetranteno intelecto e no espírito. Sim, por essa via, sobretudo por essa via,aprende-se, eu aprendi, a aprender. Nos seus textos, nos seus escritos,vê-se, lê-se isso e assim.

Com Harada tem-se sempre só o mínimo necessário. Sempre só oque é preciso, o que é suficiente. Jamais esbanjamento, jamais o espar-ramado ou o derramado. Seco. Alma seca. Seu pensamento, seus ensi-namentos, seu modo de ser é arcaico, e l e m e n t a r – no sentido deser o próprio elemento. Quanto a isso, que se leia seu Em comentando

I Fioretti; que se leia Coisas, velhas e novas; que se leia, p. ex., suaapostila Verdade e liberdade, que é um comentário/interpretação deDa essência da verdade, de Martin Heidegger – verdadeira homena-gem à clareza, à lucidez; que se leia sua apostila De Como estudar, umtexto dirigido aos garotos, aos calouros, à meninada noviça; que seleia, enfim, seus textos religiosos – aliás, t o d o s o são, s ó são. Nissotudo, e não só nisso tudo, está todo o Harada. Um espírito grande.Uma alma grande. Simples, grande, intensa – pobre, parca, econômi-ca. E farta, e transbordante, superabundante. Sempre só o suficiente,sempre só o necessário. Tudo no Harada sempre foi claro, simples,lúcido. Sobretudo isso: claro, simples, lúcido – cartesiano. Franco, di-reto e limpo. Harada é um padre limpo. Isso é coisa rara, difícil. Eudisse claro, direto, simples, lúcido, cartesiano – mas não nos engane-mos. Nada de faustiano. Nada de luz derramada, nada de transparên-cias apressadas, de evidências fáceis e falsas, do tipo dialéticas, lógico-

formais. Sempre a clareza do escuro, a lucidez do mistério, a profundezada superfície. Jamais a vontade, o ímpeto de iluminar o escuro. A nãoser que seja iluminá-lo, sim, mas não para extingui-lo, porém para

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torná-lo mais escuro e mais evidente como escuro. Sim, o escuro ficamais escuro e, então, o mistério, o divino, o sagrado, a transcendência

se iluminam com o brilho contido, fosco, “de pérola”, ele disse, umavez. Sempre claro, evidente, até onde pode e deve. Sempre lúcido,porém, até e principalmente no escuro, no não saber e no não poder.No Harada, com Harada, o limite ganha uma extraordinária forçareveladora. É o poder – poder de mostração, de revelação. O poder donão-poder. Genuína pobreza franciscana.

Um franciscano. Um religioso. Um homem que um dia, numdeterminado contexto, me disse: “Só não me matei porque sou cris-tão”. Harada – um padre, um franciscano, um cristão. Um homem defé. De fé e de espírito. Alma grande – grande, aqui, está falando deessencial, de radical. Mais uma vez: elementar. Um franciscano e umsamurai. Sua apostila De Como Estudar, e todo ele e tudo nele, mostrauma alma brônzea e pétrea, alma de um samurai no, do Espírito.Samurai, franciscano, descalço. Sentado, lendo, estudando e escreven-do no chão daquela cela, nua, de cimento liso. Dormindo na pratelei-

ra. “Hermógenes – Hermógenes faz ou tem mudança a fazer?!” Foiisso que exclamou em resposta para mim Frei Godofredo, um velhofranciscano, alemão, na portaria do Convento do Sagrado, emPetrópolis, quando, um dia, perguntei a ele se o Harada já havia feitosua mudança para Rondinha, se já havia levado suas coisas, em 1983.“Hermógenes mudar, fazer mudança?! Levar o quê, carregar o quê?!Ele joga um saco nas costas e tem tudo!” De vez em quando, paradesfazer-se de fardos e pesos, cangalhas, para desentulhar, ele dava oslivros que tinha. Era uma limpeza na mesa, na estante, na cela... naalma. Livros, muitos livros... ?!... Certa vez, há pouco tempo atrás, sobrisco de perder a visão, por um cochilo ao cuidar de uma catarata, elecomentou, meio irônico, meio brincalhão, mas, no fundo, bastantesério: “Sabe, isso, para o pensamento, pode até ser bom! Olho às vezesatrapalha!”

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Harada – para mim sempre “o Harada” e não “Hermógenes” ou“frei Hermógenes” – enfim, Harada, claro, não foi, não é santo. Haradafoi, é samurai. Um samurai franciscano. Um franciscano samurai.Descalço. Alma seca – a maior, a mais nobre, já disseram. “César comalma de Cristo” – também já disseram. Seco, duro – e terno, muitoterno. Meigo. Um nobre – descalço, cheio de, todo misericórdia. Ja-ponês – um coração bambu... Alma autenticamente franciscana. Gran-de, grande alma; mestre, grande mestre. Generoso, magnânimo. Ima-gino, creio, que a Ordem Franciscana não pode, não poderá esquecê-lo. Ela vive, ela precisa viver dessas almas irmãs e consanguíneas de SãoFrancisco de Assis, o mentecapto, o grande e perfeito mentecapto e,por isso, santo. Harada não é, não foi santo. Claro, lúcido; demasiadoclaro, demasiado lúcido para tal. Sempre uma lucidez cortante,punçante, mortal. Simples, muito simples. Algo meridiano. Alciônico.Um fio de navalha. Bonito, muito bonito.

Aí fica, aí vai, pois, minha gratidão, minha homenagem, meu tri-buto. Um óbolo. E, sim, é verdade, lembrando nosso Guimarães Rosa,Harada não morre, fica encantado. E encanta.

Petrópolis, 16 de março de 2009.

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TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREI HERMÓGENES HARADA

TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREIHERMÓGENES HARADA, OFM

Dom João Mamede Filho, OFM Conv.*

Vi pela primeira vez o frei H. Harada em 1974, no Seminário dosFrades Menores Conventuais, no bairro do Rio Comprido, na Cidadedo Rio de Janeiro (RJ). Nessa época, estudava filosofia e teologia naescola do Mosteiro de São Bento. Convidado pelo nosso Mestre, freiH. Harada conversou cerca de uma hora com nossa turminha de setefrades professos simples para estudar a possibilidade de se efetuar umencontro de reflexão mensal. Conversa vai e conversa vem, chegou-seà conclusão de que era melhor, um sábado de manhã, por mês, subir-mos a Petrópolis, na casa onde acontecia o curso do CEFEPAL, paraali, das 9 às 12hs, refletirmos com o frei H. Harada, almoçarmos comos cursistas, e retornarmos para casa.

Daqueles dias mensais de reflexão (não me lembro se isso durou maisque um ano?!) me ficaram a experiência de que o frei Hermógenes Haradabotava cupim na cabeça da gente. Eu não conseguia negar a sua fala mastambém não conseguia aceitá-la toda. Lembro-me que eram conversassobre a Igreja e sua identidade. Autoridade dentro da Igreja. Vida religiosa,vocação, fraternidade etc. Muitas vezes acordava de noite e me pegavapensando no tema de algum encontro com o frei H. Harada.

Depois disso, voltei a encontrar o frei H. Harada em 1983 numencontro de ex-cefepalistas de mês de julho, em Campinas, onde se

* Dom João Mamede Filho é bispo auxiliar de São Paulo na Região Lapa.

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DOM JOÃO MAMEDE FILHO

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estudou a Legenda dos Três Companheiros. Aí foi que me ficou claroque o caminho de São Francisco começou de um encontro real, pesso-al, íntimo com o Senhor e não de uma bolação da cuca, de uma ideo-logia, de uma explicação da vida do mundo. Ele foi tocado, atingido,visitado por algo. O resto da sua vida foi tirar a limpo esse atingimento.E chegou ao Cântico das criaturas. No fundo, ele concluiu que aquiloque o atingiu aquela noite... “podia ser picado em pedacinhos que nãoconseguiria me mexer...” (LTC 3). Está se dando dia e noite. E emcada coisa: no sol, na lua, nas estrelas, na terra, na água, no vento.... naofensa, na dor e na morte, para quem afinar o sensorial, está se dandoo mesmo toque dia e noite. Deus é amor em todos os seus atos e emtodos os seus gestos.

Aí comecei a frequentar os encontros periódicos do mês de julho,primeiro em Campinas, depois, no Embu, em São Paulo.

Em 1986 fui morar em Curitiba, como mestre no seminário CasaSão Francisco (OFM Conv) e frequentei reflexões mensais que o freiH. Harada conduzia, sobre as Admoestações de São Francisco e outrosescritos, na Casa das Irmãs Franciscanas de São José, em Rondinha,Campo Largo (PR).

Penso que este tempo cimentou bem minha compreensão das pers-pectivas e horizontes do frei H. Hermógenes. Cheguei a pedir ao meusuperior provincial para frequentar o então curso de filosofia de trêsanos que os Frades Menores implementavam para os formandos daProvíncia da Imaculada, exatamente na mesma Rondinha. Isso nãome foi concedido. O provincial disse que não tinha gente disponívelpara poder me liberar.

Participei, esporadicamente, de alguns seminários no estudantadode Rondinha mas não pude ir além disso.

Nunca perdia os encontros do mês de julho e sempre que podiaparticipava de retiro e outros encontros conduzidos pelo frei H. Harada

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TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREI HERMÓGENES HARADA

em diversos lugares. Certa vez ele deu um curso para os frades da mi-nha província conventual, em Curitiba. Era um clima tenso. No meiodo percurso os formandos (cerca de 40 jovens junioristas) queriam a“cabeça” do mestre, nada mais e nada menos. Frei H. Harada convoca-va todos a controlar a emoção e permanecer na razão. Ele tentava sal-var o salvável.

A partir de 1989 trabalhei com a revista Mensageiro de Santo An-

tônio, e bem cedo comecei a publicar temas de espiritualidade extraí-dos de apostilas e escritos outros do frei H. Harada. Dois anos depois,ele se propôs a re-escrever a espiritualidade e publicar, em capítulos, naRevista. Trata-se de uma série bastante longa de artigos sempre focandoa espiritualidade. Sobre essa série de artigos, uma superiora geral deum instituto me disse que os têm todos numa pasta e que, quandoestá muita tensa com os problemas e dificuldades do seu instituto, lêum deles, e retoma a calma e a serenidade, enfrentando com maiorsucesso os seus desafios.

Depois passei a participar de outros tipos de encontro: os de carna-val, para formadores em Curitiba. Já depois do ano 2000 começaramos encontros de psicólogos e formadores, dos quais já aconteceramsete, um por ano, cada vez num lugar diferente. Quando o frei Fer-nando Mason, OFM Conv., se tornou bispo, o frei H. Harada suge-riu um encontro anual na sua diocese para estudarmos juntos a Bíblia.E surgiu os “Bíbliapira” de Piracicaba e que aconteceram apenas 2 ve-zes. Quando o frei H.Harada foi hospitalizado, com enfarto, estáva-mos exatamente às vésperas do 3º Bibliapira. Em vez de ir para o en-contro, em Piracicaba, fomos a Curitiba, visitá-lo no hospital.

Testemunho em estrito senso.

Um confrade, que junto comigo participava dos encontros do freiH. Harada, costuma me dizer: “este homem nos fez de novo. Nosrecriou”. E é bem essa a sensação. Andando atrás do frei H. Harada e

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ouvindo suas reflexões, nos tornamos outras pessoas. Chesterton, noseu livro sobre São Francisco de Assis, diz que ninguém que teve al-gum contato com São Francisco foi o mesmo depois disso. Todos quetiveram um contato com ele, depois disso foram outras pessoas. Algosemelhante nos aconteceu, em relação ao Frei H. Harada.

Omito aqui todas as consequências menos louváveis que advieram,dentro dos nossos conventos e províncias religiosas, devido à nossaaproximação ao frei H. Harada.

Muitas vezes, em horas de tensão, premido por desafios e dificul-dades, fiz como aquela irmã, acima referida, que se tranquilizava, len-do alguma reflexão do frei H. Harada.

Um jovem que estava para desistir da vida religiosa, participoude um encontro com o frei H. Harada e comentou depois: “sabeque a vida religiosa voltou a dar-me um calorzinho”. Ele não saiu ese tornou frade.

Não tive o frei H. Harada como confessor. Mas algumas vezes meconfessei com ele. Era suave, claro, direto e firme. Limpava a área.Tenho a mesma experiência que o frei Jaime descreveu no dia do se-pultamento: suas correções eram doídas (de dor), mas não feriam. Se-melhante a certa novela de cangaceiros, em que alguns vigias se distra-em e alguém consegue entrar no acampamento e levar coisas, sem se-rem percebidos. Um dos vigias era dos mais valentes e maior amigo docomandante geral. Este ordena então que os vigias distraídos sejamcastigados com guasca, amarrados nus em árvores. Indicou os que de-veriam executar os castigos, e daquele que era seu maior amigo, quis seocupar ele próprio. Como para dizer: é tão grave a falha. Podíamostodos ter sido mortos. O castigo tem que ser bem dado para nuncamais acontecer a falha. Se tivesse acontecido comigo, quereria o mes-mo castigo. E aquilo não diminuiu em nada a amizade. Era, digamos,questão técnica. Comparo com isso as correções do Frei H. Harada.

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Quanto à filosofia, acho que o frei H. Harada ajudava a gente amanter a cabeça na postura saudável, em que as coisas da fé, os misté-rios da fé, têm chance de se mostrar como realidades vivas e atuantes.Na medida em que fui entendendo as explicações do frei H. Harada,vivenciava mais viva e intensamente os mistérios pascais, as liturgias daSemana Santa e outras. Concluí, na última celebração da Vigília Pascal,por exemplo, que a liturgia é uma massagem. Ela massageia os senso-res da fé. Aguça a sensibilidade para os mistérios celebrados.

Alguém me disse, certa vez, que o frei H. Harada teria dito quesua reflexão era original e originante. Se não disse, eu pessoalmente,acho que são mesmo assim. A compreensão da gente não se fixa. Opermanecer na compreensão já nos expõe e leva a novas compreensões.

Muitas afirmações do frei H. Harada ficavam na minha cabeçapor ano inteiro sem que eu as compreendesse. De repente, um belodia, vinha a compreensão, a evidência, a iluminação. Houve um tem-po em que ele me dava, aos sábados à noite, aulinhas particulares defilosofia. Líamos alguma página de Ser e tempo, de Heidegger, e elecomentava. Quantas vezes ele me disse, por exemplo, “você está vendoaquela árvore lá. Pois é, você pensa que ela está lá, mas ela não está ládo jeito que você pensa”!!! Eu fiquei com isso na cabeça por um anointeiro pelo menos. Certo dia, voltando com ele de Cocalzinho (GO),onde estivemos para um encontro de reflexão, ao meio dia, ao sair dorestaurante e entrar no carro que estava estacionado debaixo de umaárvore, eu entendi aquela afirmação. E assim quantas outras se deramdo mesmo jeito!!

O frei H. Harada faleceu perto das 18h do dia 21/05/09 e eusoube, por telefonema, de frei Antônio Corniatti, às 19:30h. Depoisde um primeiro baque, liguei para o frei Marco Aurélio Fernandes, emBrasília, e fui o primeiro a lhe dar a notícia. Lembro que, naquele diaentão me veio o seguinte pensamento e eu lhe disse: “Minha mãe estávelhinha, bem fraquinha. Qualquer hora vou receber a notícia fatal.

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Mas se chegassem juntas, as duas notícias, minha cabeça e meu coraçãose confundiriam. Eu não saberia distinguir qual a mais dura, qual doíamais?!?”

Acho que o frei H. Harada vivia constantemente na “boa vonta-de”. Ele não andava atrás de realizações subjetivas e gozos. Um dia eleme disse que quando estava naturalmente alegre por dentro, fazia ques-tão de esconder, fazia cara de sério para que ninguém percebesse. Equando estava um pouco triste, aí então contava piada, ficava espalha-fatoso para que ninguém percebesse também.

Terminando o sepultamente do frei H. Harada, naquela tarde se-rena de 22 de maio de 2009, tive, num repente, a impressão de quetodos – éramos cento e tantas pessoas – acordamos de um sonho. Elenão está mais!? Onde estávamos, afinal?!?!?

Parece que um vendaval se abateu sobre a vida do frei e ele foilevado por isso a vida toda. E, por tabela, fomos junto. Agora ces-sou...! Que será de nós?

No impulso do vendaval que o tomou ele nos alienou a todos...alienou-nos da alienação do século atual...

São Paulo, 03 de setembro de 2009.

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TRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕES

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DA LUZ OU DO COMEÇO DAS FORMAS

DA LUZ OU DO COMEÇODAS FORMAS

Roberto Grosseteste*

Julgo que a primeira forma corporal, que alguns chamam decorporeidade, seja luz. Com efeito, por si, a luz difunde a si mesmapor toda parte, de tal modo que de um ponto de luz gera-se de prontouma esfera de luz grande o tanto que for possível, a não ser que sejaimpedida por algo obscuro. Mas a corporeidade é o que segue necessa-riamente a extensão da matéria segundo três dimensões, embora am-bas, a saber a corporeidade e a matéria, sejam em si mesmas substânciasimples, carecendo de qualquer dimensão. Mas à forma, simples em simesma e carente de dimensão, é impossível introduzir dimensão emtoda parte na matéria, igualmente simples e carente de dimensão, anão ser multiplicando a si mesma, difundindo-se de pronto em todaparte e em sua difusão estendendo a matéria, visto que essa mesmaforma não pode abandonar a matéria, porque não é separável, e tam-pouco a própria matéria pode ser esvaziada da forma. E, portanto, eupropus que essa é a luz, cuja operação é por si, a saber, multiplicar a simesma e de pronto difundir-se em toda parte. O que quer que façaessa obra, portanto, ou é a própria luz ou está fazendo essa obra en-quanto participa da própria luz, que faz isso por si. A corporeidadeportanto ou é a própria luz ou se diz estar fazendo essa obra e introdu-zindo as dimensões na matéria enquanto participa da própria luz e age

* Texto extraído de http://www.grosseteste.com, acessado em 10 de setembro de 2009.Tradução de Enio Paulo Giachini.

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em virtude da própria luz. Todavia, é impossível que a primeira formaintroduza as dimensões na matéria em virtude da forma que se segueàquela. A luz porém não é a forma que se segue da corporeidade, masé a própria corporeidade.

Ampliando a explicitação: os sábios julgam que a primeira formacorporal é mais digna e de uma essência mais excelente e mais nobre,mais aparentada com as formas separadas do que todas as outras for-mas subsequentes. Mas a luz é de essência mais digna e mais nobre emais excelente do que todas as coisas corpóreas, e se assemelha às for-mas separadas, que são as inteligências, mais do que todos os corpos. Aluz é portanto a primeira forma corporal.

A luz, portanto, que é a primeira forma criada na primeira maté-ria, multiplicando a si mesma por si mesma onde quer, infinitamente,e vertendo-se equanimemente em toda parte, no princípio do tempoestendeu a matéria, a qual ela não pode abandonar, dis-tendendo-aconsigo em tanta massa quanto é a máquina do mundo. A extensão damatéria tampouco pode devir pela multiplicação finita da luz, porqueo simples replicado finitamente não gera um quantum, como mostraAristóteles no De caelo et mundo1 . Mas (o simples) multiplicado infi-nitamente gera necessariamente o quantum finito, porque o produtoda multiplicação infinita de qualquer coisa excede infinitamente aqui-lo pelo que se produziu a multiplicação. Em todo caso, o simples nãoé excedido infinitamente pelo simples, mas é só o quantum finito,que excede o simples no infinito. Pois o quantum infinito excede osimples infinitamente infinitas vezes. – A luz, que é em si simples,multiplicada infinitamente, deve necessariamente estender a matéria,igualmente simples, em dimensões de magnitude finita.

1. ARISTÓTELES, De caelo et mundo, I, 5-7.

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Todavia, é possível que a agregação infinita de números seja pro-porcional à congregação infinita em todos os numéricos e também emtodos os não numéricos. E há infinitos que são mais múltiplos queoutros infinitos e outros que são menos múltiplos que outros. A somade todos os números tanto pares quanto impares é infinita, e assim émaior que a soma de todos os números pares, mesmo essa sendo infi-nita; ela a excede, com efeito, pela soma de todos os números ímpares.Também a soma dos números a partir da unidade contínua das duplasé infinita; e semelhantemente a soma de todas as subduplas correspon-dentes daquelas duplas é infinita. E a soma dessas subduplas deve ne-cessariamente ser a metade menor do que a soma das suas duplas. Igual-mente, a soma de todos os números a partir da unidade dos subtriplosé três vezes maior que a soma de todos os seus subtriplos em relação aesses triplos. – E o mesmo se mostra de todas as espécies de propor-ções numéricas, visto que de acordo com cada uma delas o finito podeser proporcional ao infinito.

Mas se supormos a soma infinita de todos os duplos continua-mente a partir da unidade e a soma infinita de todos os subduplos,correspondentes a esses duplos, se for tomado da soma dos subduplosa unidade ou qualquer número finito, uma vez tendo sido feita a sub-tração não permanecerá dupla proporção entre a soma da primeira e oresíduo da soma da segunda; mas tampouco [restará] qualquer pro-porção numérica, visto que, se da proporção numérica, pela subtraçãoda menor extremidade, restasse ainda outra proporção numérica, sig-nifica que isso que foi subtraído é alguma parte ou certo número departes daquilo de que é subtraído. Mas o número finito não pode seruma parte ou alguma parte de alguma parte do número infinito. Sub-traído portanto o número da soma subdupla infinita não resta pro-porção numérica entre a soma da dupla infinita e o resíduo da soma dasubdupla infinita.

Uma vez que isso seja assim, é manifesto que a luz, por sua infinitamultiplicação, estende a matéria em dimensões finitas menores e em

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dimensões finitas maiores, de acordo com quais forem as proporçõesque essas têm entre si, a saber, numéricas ou não numéricas. Comefeito, se a luz, por sua multiplicação infinita, estende a matéria emdimensões bicúbicas, a mesma multiplicação infinita duplicada esten-de-a numa dimensão tetracúbica, e a mesma dividida pela metade es-tende-a na dimensão monocúbica; e assim se dá com as outras propor-ções numéricas e não numéricas.

Segundo calculo, essa foi a compreensão dos filósofos que supu-nham que tudo é composto de átomos e afirmavam que os corpos sãocompostos de superfícies e as superfícies de linhas e as linhas de pon-tos. – tampouco contradiz isso a sua sentença que supõe que a magni-tude só se compõe de magnitudes, porque o todo é dito de tantosmodos quanto são ditas as partes. Por um lado, diz-se pois que meiaparte do todo, tomada duas vezes resulta no todo, e por outro o ladoé parte do diâmetro, o qual somado diversas vezes não resulta no diâ-metro, mas somado por diversas vezes é superado pelo diâmetro. Poroutro lado, se diz que o ângulo de contingência é parte do retângulo,no qual há infinitos, e embora subtraindo-se finitamente dele diminuia este; e por outro lado, o ponto é parte da linha, na qual há infinitos,e a subtração finita dela não diminui a esta.

Retornando portanto ao meu tema, digo que a luz, por sua multi-plicação infinita, que se efetua equanimemente em toda parte, estendea matéria por toda parte equitativamente em forma esférica. Segue-senecessariamente dessa extensão que as partes extremas da matéria maisse estendem e mais se rarefazem do que as partes internas, próximas aocentro. E visto que as partes extremas são sumamente rarefeitas, aspartes interiores ainda são suscetíveis a uma maior rarefação.

A luz, portanto, segundo esse modo predito, estendendo a maté-ria primeira em forma esférica, e rarefazendo sumamente as partes ex-tremas, atualiza completamente a possibilidade da matéria na esferaextrema, esgotando sua suscetibilidade de uma impressão ulterior. E

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assim o corpo primeiro na extremidade da esfera, chamado defirmamento, é perfeito, nada tendo em sua composição a não ser ma-téria primeira e forma primeira. E por isso é corpo simplíssimo, noque diz respeito às partes que constituem a essência e a quantidademáxima, não diferindo do gênero de corpo a não ser pelo fato de nelea matéria estar completa apenas pela forma primeira. Mas o gênero decorpo, que é e está nesse e em outros corpos, possuindo em sua essên-cia matéria primeira e forma primeira, abstrai da atualização completada matéria pela forma primeira e abstrai igualmente da diminuição damatéria pela forma primeira.

Assim, pois, completamente atualizado o primeiro corpo, que é ofirmamento, ele expande seu lume a partir de todas as suas partes nocentro do todo. Visto que a luz é a perfeição do primeiro corpo, que semultiplica naturalmente a partir do corpo primeiro, é necessário que aluz se difunda no centro do todo. E visto que é forma totalmenteinseparável da matéria, em sua difusão a partir do corpo primeiro,estende consigo a espiritualidade da matéria do corpo primeiro. E as-sim, do corpo primeiro, provém o lume, que é corpo espiritual, oumelhor dizendo, espírito corpóreo. Em seu trânsito, esse lume nãodivide o corpo pelo qual passa, e é por isso que de pronto, partindo docorpo do primeiro céu atravessa até chegar ao centro. Tampouco seutrânsito é tal como se compreendêssemos que alguma coisa una emseu número atravessasse de pronto do céu ao centro – o que talvez sejaimpossível – mas seu trânsito se dá pela sua multiplicação e pela gera-ção infinita do lume. Esse lume, portanto, que provém do corpo pri-meiro e se expande e se reúne no centro congregou a massa existentesob o corpo primeiro; e visto que o corpo primeiro não pode dimi-nuir, visto ser completamente atualizado e invariável, nem o lugar podetornar-se vazio, foi necessário que na congregação da massa, as partesextremas se estendessem e fossem expandidas. E assim, nas partes inte-riores dessa predita massa provém maior densidade, e nos extremos

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aumenta a raridade; a potência do lume congregante foi tanta e emcongregando segregava, de tal modo que as próprias partes extremasda massa contidas sob o corpo primeiro são sumamente subtilizadas erarefeitas. E assim, nas próprias partes extremas da predita massa, deveioa esfera segunda, completamente atualizada, impossibilitada de rece-ber qualquer impressão ulterior. E assim é a atualização completa e aperfeição da segunda esfera: o lume é gerado da primeira esfera, e a luz,que na primeira esfera é simples, é duplicada na segunda.

Mas como o lume gerado pelo primeiro corpo atualiza completa-mente a segunda esfera, deixando a massa mais densa dentro da segun-da esfera, assim o lume gerado da segunda esfera perfaz também aterceira esfera e abaixo dessa terceira esfera, pela congregação, deixauma massa ainda mais densa. E dentro dessa ordem procede a essacongregação desagregante até completar nove esferas celestes e sob anona, a mais baixa, congrega a massa densificada, que é a matéria dosquatro elementos. Mas a esfera ínfima, que é esfera da lua, que gerapor si também um lume, por seu lume congrega a massa contida sobsi e congregando suas partes mais extremas as torna sutis e desagregadas.Todavia, seu lume não é tão potente a ponto de, congregando, desa-gregar sumamente suas partes extremas. Por isso, em todas as partesdessa massa resta imperfeição e a possibilidade de receber congregaçãoe desagregação. E a parte suprema dessa massa é desagregada, não emsumo grau, e embora por sua desagregação resulte o fogo, resta ainda amatéria dos elementos. E esse elemento gerando de si um lume e con-gregando a massa contida sob si, desagrega suas partes extremas, em-bora sendo uma desagregação menor do que a do próprio fogo; e as-sim produz o ar. – Também o ar, em gerando de si um corpo espiritualou um espírito corporal, e em congregando o que contém sob si, econgregando o que lhe é exterior e desagregando produz água e terra.Mas porque na água resta mais da força congregante do que desagregante,também permaneceu dotada de peso, como a terra.

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Desse modo, portanto, foram produzidas no ser treze esferas dessemundo sensível: a saber, nove celestes, inalteráveis, que não podemaumentar, ingeneráveis e incorruptíveis, visto serem completamenteatualizadas, e quatro que existem de modo contrário, alteráveis, quepodem aumentar, geráveis e corruptíveis, a saber, não completamenteatualizadas. – e é evidente, porque todo corpo superior, segundo olume que gera de si, é a forma (species) e a perfeição do corpo seguinte.

A terra é todos os corpos superiores por agregar em si os lumessuperiores. É por isso que é chamada de Pan pelos poetas, isto é, todo;e é chamada igualmente Cibele, como se fosse cubile, derivado de cubo,isto é, solidez, porque é maximamente compactada de todos os cor-pos, ou seja, Cibele, mãe de todos os deuses, pois visto que nela estãoreunidos os lumes superiores, e embora não sejam originados a partirdela por sua operação, é possível extrair dela a luz de qualquer dasesferas que queiras em ato e operação; e assim, a partir dela, como deuma certa mãe, podes criar qualquer dos deuses. – Ademais, os corposintermediários se atém a duas disposições (habitudines). Em relaçãoaos inferiores, se atém pois como o primeiro céu em relação a todo oresto; e em relação aos superiores, como a terra em relação a todo omais. E assim de algum modo em qualquer deles está todo o resto.

E a forma (specie) e a perfeição de todos os corpos é a luz: doscorpos superiores é mais espiritual e simples, mas dos corpos inferioresé mais corpórea e multiplacada. Tampouco todos os corpos são damesma forma (specie), embora provenientes da luz simples ou multi-plicada, assim como nem todos os números são da mesma forma(specie), embora sua reunião provenha da unidade pela multiplicaçãomaior ou menor.

E nessa fala talvez esteja expressa a intenção dos que afirmam “tudoé um a partir da perfeição da luz una”, e a intenção dos que dizem “ascoisas que são muitas, são muitas pela multiplicação diversificada queparte da mesma luz”.

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E visto que os corpos inferiores participam da forma dos corpossuperiores, pela participação da mesma forma, o corpo inferior, junta-mente com o corpo superior, recebe o movimento da mesma forçamotiva incorporal, por cuja força motiva é movido o corpo superior.Por causa disso, a força incorpórea da inteligência ou da alma, quemove a primeira e suprema esfera por um movimento diurno, movetodas as esferas celestes inferiores com o mesmo movimento diurno.Mas quanto mais inferiores, tanto mais debilmente recebem esse mo-vimento, pois quanto mais inferior a esfera, tanto menos pura e maisdébil é nela a luz corpórea primeira.

Mas, embora os elementos participem da forma do primeiro céu,não são movidos pelo motor celeste de um movimento diurno. Mes-mo que participando dessa luz primeira, não obedecem à força motivaprimeira, visto possuírem essa luz impura, débil, distanciada da purezaque possui no corpo primeiro, e visto terem também densidade damatéria, que é princípio de resistência e inobediência. Alguns porémjulgam que a esfera do fogo circula com um movimento diurno ecomo significação disso colocam a rotação dos cometas, e dizem ade-mais que esse movimento alcança até nas águas dos mares, de tal modoque disso proviria o fluxo dos mares. Todavia, todos os que filosofamretamente dizem que a terra é imune desse movimento.

Do mesmo modo, também as esferas que vêm depois da segundaesfera, que contada de baixo para cima geralmente é chamada de oitava,porque participam de sua forma, se comunicam todas com seu movi-mento, o qual possuem como próprio, além de movimento diurno.

As próprias esferas celestes, porque são completamente atualizadase não podem receber rarefação ou condensação, nelas a luz não inclinaas partes da matéria a partir do centro, a fim de rarefazê-las, ou para ocentro, para condensá-las. E por causa disso, essas mesmas esferas ce-lestes não podem receber movimento para cima ou para baixo, massomente o movimento circular a partir da força motiva intelectiva,

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que reverberando corporeamente em si o aspecto faz com que essasesferas circulem com uma rotação corpórea. Mas os elementos, vistoserem incompletos, passíveis de rarefação e condensação, o lume queestá neles os inclina do centro para que se rarefaçam ou ao centro paraque se condensem. E por causa disso são naturalmente móveis paracima ou para baixo.

Mas no corpo supremo, que é o mais simples dos corpos, podemser encontrados quatro constituintes, a saber, forma, matéria, compo-sição e composto. – A forma, porém, enquanto simplíssima, obtém olugar da unidade. – A matéria, por causa de sua dupla potência, a saber,suscetibilidade a impressões e receptibilidade das mesmas, e tambémpor causa da densidade que é radicalmente própria à matéria, pela qualprovém por primeiro e de princípio a dualidade, libera com razão anatureza da dualidade. – Mas a composição é ternária, visto que nela semostra a matéria formada e a forma materializada e a propriedadedessa composição, que é descoberta em todo e qualquer compostocomo um terceiro diferente da matéria e da forma. E o que é o com-posto como próprio, além desses três, vem compreendido como oquarto número. No primeiro corpo, portanto, no qual estão virtual-mente os outros corpos, estão quatro constituintes, e por isso, radical-mente, o número dos outros corpos não vem encontrado além de dez.com efeito, a unidade da forma, a dualidade da matéria, a trindade dacomposição e a quaternidade do composto, quando agregados for-mam dez. Por isso, o dez é o número dos corpos das esferas do mun-do, porque a esfera dos elementos, embora dividida em quatro, é unapela participação da natureza corruptível da terra.

A partir disso, fica evidente que o dez é o número perfeito douniverso, porque qualquer todo e perfeito possui em si algo de acordocom forma e unidade, e algo de acordo com a matéria da dualidade, ealgo de acordo com a composição e a trindade, e algo de acordo como composto e a quaternidade. Não se consegue adicionar um quinto aesses quatro. Por causa disso, qualquer todo e perfeito é dez.

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Isso porém é manifesto que só as cinco proporções descobertasnesses quatro números, um, dois, três, quatro, são aptas para a com-posição e para a concórdia, que dão estabilidade a qualquer composto.Por causa disso, só essas cinco proporções são harmônicas nas modula-ções, nas gesticulações e nos ritmos temporais da música.

Finda o tratado Da luz, do Linconiense.

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[GRAVAÇÃO DA LUZ]

[GRADAÇÕES DA LUZ]Nicolau de Cusa*

Todavia, voltando-nos de modo mais amplo à segunda parte daquestão, vejamos de que modo podemos ser conduzidos a subir osdegraus da dita teoria, uma vez que não somos movidos a buscar o queé totalmente ignorado. E para indagarmos isso, voltemo-nos nova-mente à visão.

Em primeiro lugar, para que a visão compreenda com discerni-mento o visível, concorrem duas luzes. Isso porque o que impõe o nomeàs cores não é o espírito da visão mas o espírito de seu gerador, que estánela. Mas o espírito que desce do cérebro ao olho pelas veias óticas é pres-sionado pelo impedimento da imagem do objeto e surge uma sensaçãoconfusa. O espírito do vivente animado se admira dessa sensação e esforça-se a fim de poder discernir. Não é o espírito que está no olho que discerne,portanto, mas o que opera o discernimento nele é o espírito mais elevado.Podemos descobrir isso como verdadeiro em nós, pois, pelos experimen-tos cotidianos. Muitas vezes acontece de não apreendermos coisas quepassam diante de nossos olhos, embora suas imagens se multipliquem noolho, uma vez que delas não nos advertimos por estarmos prestandoatenção em outras coisas; e de muitas coisas que nos são ditas só com-preendemos aquilo em que está nossa atenção.

O que nos mostra que isso é verdadeiro, porque a luz mais eleva-da, a saber, a luz da razão, do espírito, que está no sentido, toca a

* Textos extraídos de NICOLAU DE CUSA, De quaerendo Deum. In: Philosophisch-theologische Schriften, vol. II. Ed. por Leo Gabriel. Wien: Herder, 1966, p. 584-590;id. De filiatione dei,p. 666-670. Tradução de Enio Paulo Giachini.

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operação de sua atividade. Quando o olho portanto afirma que isso évermelho, isso é azul, não é o olho que fala mas nele fala o espírito deseu pai, a saber, o espírito animado, de quem é o olho aqui.

Mas mesmo que haja ali a atenção daquele que quer ver, nem porisso a cor ainda é visível. É preciso que o próprio visível se torne visívelatravés de um outro lume do iluminante. Na sombra e nas trevas, ovisível não tem aptidão para ser visto. Sua adaptação é feita pelo lume,que ilumina o mesmo. Assim como o visível não está apto a ser vistoa não ser no lume, uma vez que por si não pode ingerir-se no olho,assim tem necessidade de ser iluminado, uma vez que seu lume é pró-prio da natureza, que por si se ingere no olho. Assim, portanto, ovisível pode ingerir-se no olho quando está no lume, que tem a forçade ingerir-se. Mas, no lume, a cor não está como se estivesse em alheio,mas como em seu princípio, uma vez que a cor nada mais é que adelimitação da luz no diáfano, como vemos no arcoíris. Assim, con-forme o raio do sol é delimitado a cada vez de modo diverso na nu-vem de água, surge cada vez uma cor diferente.

Sendo que é manifesto que a cor é visível em seu princípio, a saber,na luz, visto que a luz extrínseca e o espírito visivo se comunicam naclaridade. Por isso, aquela luz que ilumina o visível se ingere na luzcomparsa e aduz à visão a imagem da cor que lhe vem ao encontro.

Com base nisso, irmão, prepara para ti um caminho de investiga-ção dos modos como o Deus desconhecido está postado previamentedisponibilizando tudo aquilo pelo qual somos movidos na direçãodele. Pois, mesmo que constates claramente que é o espírito animadoque discerne no espírito do olho e que é o lume que torna o visívelapto a ser visto, a visão não compreende o que seja o próprio espíritoou o lume. O lume não pertence à região das cores uma vez que não écolorido. Em toda a região, portanto, em que o olho rege, ele não éencontrado. O lume é pois desconhecido ao olho e mesmo assim édeleitável à visão.

Assim como a ratio, que discerne as coisas visíveis no olho, é poisdiscretiva, assim é o espírito intelectual que intelige na razão, e é o

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espírito divino que ilumina o intelecto. Mas o lume discretivo animalpresente no olho, no ouvido, na língua, no nariz e no nervo ondevigora o tato, é o lume uno recebido de modo variado em vários ór-gãos, a fim de que segundo a variedade dos órgãos discirna variadamenteas coisas do mundo sensível. E esse mesmo lume é o princípio, o meioe o fim dos sentidos, uma vez que a finalidade dos sentidos nada maisé que discernir as coisas sensíveis; nem são os sentidos a partir de outracoisa a não ser a partir daquele espírito e tampouco se movem emoutra coisa. Nele vivem todos os sentidos. A vida da visão é ver, e avida do ouvido é ouvir, e quanto mais perfeita é essa vida tanto maisdiscretiva. A visão que distingue de modo mais perfeito o visível émais perfeita, e assim do ouvido.

A vida, portanto, e a perfeição, a alegria e a quietude e o que querque todo sentido deseje estão no espírito discretivo, e dele têm tudoquanto têm, e mesmo quando os órgãos perdem força e a vida ativaneles diminui, não diminui no espírito discretivo, do qual recebem amesma vida, uma vez tendo sido removida a falta ou a enfermidade.

Concebe do mesmo modo a respeito do intelecto, que é o lumeda razão discretiva, e dele eleva-te para Deus, que é o lume do intelec-to. E quando percorres passando por aquilo que foi descoberto navisão, descobres como nosso Deus, bendito nos séculos, é assim tudoaquilo que é em qualquer coisa, assim como o lume discretivo nossentidos e o intelectual nas coisas da razão, e que ele próprio é aquiloatravés de que a criatura tem o que é, sua vida e seu movimento, e emseu lume está todo nosso conhecimento, de modo que não somos nósque conhecemos mas antes é ele [que conhece] em nós. Assim, domesmo modo que o ser da cor depende da luz corpórea, também oconhecimento da cor depende da mesma luz, como dissemos acima.

É preciso, pois, ficarmos atentos ao fato de que, em suas obras, oDeus admirável criou a luz, que por sua simplicidade ultrapassa emexcelência os demais corpos, de modo a constituir-se num intermédioentre a natureza espiritual e a natureza corpórea, através do qual essemundo corpóreo ascende como que por seu elemento simples para o

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mundo espiritual. Transfere pois as figuras para a visão, de tal modoque a forma do mundo sensível ascenda para a razão e para o intelecto,e pelo intelecto atinja seu fim em deus. Assim, pois, também o pró-prio mundo avança no ser, a fim de que, pela participação da luz, essemundo corpóreo seja o que é; e as coisas corpóreas são consideradastanto mais perfeitas no gênero corpóreo quanto mais participam daluz, como podemos constatar gradativamente nos elementos. Assimpois a criatura que possui o espírito vital tanto mais perfeita é quantomais participa do lume da vida. E assim a criatura de vida intelectual étanto mais perfeita quanto mais participa da vida do lume intelectual.

Mas Deus é imparticipável e luz infinita, luzindo em todos, comoa luz descritiva nos sentidos. Mas conforme a diferente determinaçãoda luz que não pode ser participada nem misturada mostra-se tambéma variação da criatura, como a variação da determinação da luz corpó-rea no diáfano mostra cores diversas, embora a própria luz permaneçanão misturável. ...

* * *

... Resta agora que ponderemos aquele dito apostólico que afirmaque Deus é o pai das luzes. Não diz que ele é luz, mas pai das luzes,nem afirma que ele é trevas, aquele que afirma ser pai das luzes. Ele éporém fonte das luzes. Nós afirmamos existir aquilo de que temosnotícia. Aquilo que de modo algum nos aparece não apreendemoscomo existindo. Todas as coisas, portanto, são aparições ou certos lu-mes. Mas, visto que um é o pai e a fonte das luzes, todas as coisas sãoaparições do Deus uno, que mesmo sendo uno não pode aparecer anão ser em variedade. Como pois pode aparecer a virtude infinita emoutro modo que na variedade?

Quando um intelectual possui um intelecto adquirido, potente eprático não poderá mostrar-se a não ser na variedade de muitas razões.Assim, portanto, diversas luzes racionais, silogísticas de tal intelecto,que é o pai das luzes, descendem para que assim se manifeste. A unida-de, princípio simples do número, é de uma forma máxima e incom-

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preensível, e a manifestação dessa força não se mostra a não ser navariedade dos números que descendem dessa força. A força desse pon-to simplíssimo é incompreensível, e é percebida apenas nas quantida-des que descendem desse ponto simplíssimo como que em luzes di-versas. A presencialidade simplíssima é uma força incompreensível,que só pode ser compreendida na sucessão temporal.

Tudo portanto que é segundo o número é na unidade, tudo que ésegundo a quantidade é no ponto, tudo que é segundo a sucessão tem-poral é no agora da presença, e tudo que é segundo aquelas coisas quesão, eram ou poderão ser é na força infinita da onipotência. NossoDeus é de modo absoluto a força infinita, totalmente em ato; ele querse manifestar a partir da natureza de sua bondade e de si faz descenderdiversas luzes, chamadas de teofanias. Nessas luzes todas torna mani-festas as riquezas da luz de sua glória.

Mas essa geração que ele faz voluntariamente, não tendo nenhumacausa a não ser sua bondade, é feita pelo verbo da verdade. O verbo daverdade é a razão ou a arte absoluta, ou o que se pode chamar de razãode toda razão. Nesse lume, que é também verbo e filho primogênito eaparição suprema do pai, o pai das luzes gera voluntariamente todas asaparições descendentes, a fim de coimplicar todas as luzes aparentadasna força suma e na fortaleza da união das manifestações; como quenuma filiação separada de toda filiação como quer que seja ex-plicada,e na arte universalíssima tudo que pode ser ex-plicado pela arte o tantopossível, e na razão ou discreção absoluta toda luz, como quer que sejadiscernente.

Ele nos gerou portanto naquele verbo de arte e aparição eterna, afim de que, ao recebermos em descenço a luz de sua manifestação, queé o verbo infinito, modo pelo qual pode ser recebida por nós emdescenço, sejamos certo início de sua criatura. A recepção do mostrar-se do pai, portanto, no verbo em descenço, possibilita o início da cri-atura. Através disso, pois, somos certo início de sua criatura, porquerecebemos, ao nosso modo, o verbo da verdade no qual ele nos gerou.

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Acima foi mostrado de maneira satisfatória que a recepção se fazem descenço, a fim de que o lume eterno e universal dê início à criatu-ra particular, para que desse modo surja uma criatura tendo seu inícioprimigênio no verbo da verdade. Nós somos portanto geração de Deus,pois ele nos gerou. Mas nos gerou num filho um, que é o verbo daverdade, ele fez com que tivéssemos certo início de sua criatura.

E assim como no verbo ou na razão ou na arte da humanidade todosos homens foram assim gerados a fim de, pela geração da humanidade,receberem o fato de serem certo início de ser homens particulares, assim nageração da verdade universal, tudo aquilo que é de um modo verdadeiro,é gerado de tal modo a ser certo início da criatura gerante.

Sendo que, todas as coisas que de algum modo são, são enquantosão verdadeiras. Isso porque o falso não é. Motivo por que na geraçãoeterna da verdade, são eternamente geradas e enquanto tais são a pró-pria virtude (virtus força) eterna da verdade. E quando aparecem nasucessão temporal, dela recebem serem certo início da criatura gerantedo pai. Como o ramo da árvore, que vejo agora ter início na árvore,anteriormente foi gerado na semente não como ramo mas como se-mente. A verdade do ramo estava pois na verdade da razão da semente.A verdade da semente é portanto a verdade do ramo. A verdade daforça, portanto, toma certo início de ser, como ramo, por exemplo,que é como que uma criatura da semente, de cuja força brota. A verda-de do ramo, portanto, que na verdade da semente sempre foi geradajunto com a semente, por sua aparição aparece agora mostrando a for-ça da semente de seu pai.

Assim vemos claramente como, no divino, o filho é a mostraçãoverdadeira do pai segundo a onipotência absoluta e a luz infinita. Mastoda criatura é mostração do pai, participando de modo variado econtracto da mostração do filho; e umas criaturas mostram-no de modomais obscuro, outras de modo mais claro, segundo a variedade dasteofanias ou aparições de Deus.

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ENSAIO DE UMA TEORIA DAS CORES

ENSAIO DE UMA TEORIA DAS CORES[EXTRATOS]*

J. W. Goethe

Parte didática

Si vera nostra sunt aut falsa, erunttalia, licet nostra per vitam defendimus.Post fata nostra pueri qui nunc luduntnostri judices erunt.

Introdução

O prazer de saber é provocado no homem primeiramente pelofato de ele dar-se conta de fenômenos significativos que chamam suaatenção. Mas para que esse permaneça de modo duradouro, será preci-so encontrar uma participação mais íntima que nos torne cada vezmais conhecidos com os objetos. Só então percebemos uma grandemultiplicidade que se precipita ao nosso encontro como uma multi-dão. Nos vemos obrigados a discernir, distinguir e recompor, atravésdo que, finalmente, surge uma ordem que mostra ser mais ou menossatisfatória.

Conseguir isso nalgum âmbito, mesmo que apenas em certa me-dida, exige um empenho rigoroso e persistente. É por isso que vemos

* Extrato de textos tirado de J. W. GOETHE, Farbentheorie, em http://www.textlog.de/goethe_farben.html, consultado em 05 de setembro de 2009. Tradução de Enio PauloGiachini.

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que, em geral, as pessoas preferem livrar-se dos fenômenos através deuma visão teórica geral, através de algum modo de esclarecimento, aoinvés de dar-se ao esforço de aprender a conhecer o singular e construiruma totalidade.

A proposição e composição das manifestações das cores só foi pro-posta duas vezes, a primeira vez por Teofrasto e, depois dele, Boyle. Àatual tentativa não se contestará o terceiro intento.

Uma relação mais detalhada nos é narrada pela história. Aqui diga-mos apenas o tanto que no século passado não se pôde pensar em talcomposição, uma vez que Newton impôs como fundamento de suahipótese um intento intrincado e secundário, sobre o qual se referiamartificialmente as demais manifestações advenientes, quando não sepodia emudecê-las e eliminá-las, circundando-as com relações temero-sas, como deveria proceder um astrônomo que por ilusão ou maniaquer colocar a lua no centro de nosso sistema. Seria preciso mover efazer circular a terra, o sol com todos os demais planetas ao redor doscorpos subalternos e através de cálculos artificiais e modos de represen-tação para poder maquiar e embelezar o erro de sua primeira hipótese.

Mas passemos adiante, recordando o que apresentamos acima noprefácio. Ali pressupomos que a luz seria conhecida, aqui fazemos omesmo com o olho. Dissemos: Toda a natureza se revela ao sentido doolho através da cor. Agora, mesmo que pareça um tanto estranho,afirmamos que o olho não vê nenhuma forma, na medida em queapenas o claro, o escuro e a cor juntos perfazem aquilo que distinguepara o olho o objeto do objeto, as partes do objeto entre si. E assim, apartir desses três, construímos o mundo visível e através disso tambémpossibilitamos a pintura, a qual pode trazer à tona no quadro ummundo visível bem mais perfeito do que pode ser o real.

O olho deve sua existência à luz. De órgãos auxiliares neutros, aluz chama ao surgimento um órgão que se torna igual a ela própria; eassim se forma o olho na luz para a luz, a fim de que a luz interior váao encontro da exterior.

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Aqui relembramos a velha escola jônica, que repetia sempre denovo com grande significação: só se conhece o igual pelo igual, assimcomo das palavras de um velho místico, que podemos expressar nasrimas vernáculas do seguinte modo:

Se o olho não fosse aparentado com o sol (sonnenhaft),Como poderíamos a luz olhar?Se a própria força de Deus não habitasse em nósComo o divino poderia nos encantar

Ninguém irá negar aquele imediato parentesco da luz com o olho,mas pensar que os dois são simultaneamente um e o mesmo, issotorna-se mais difícil. Entrementes, torna-se mais compreensível se afir-mamos que no olho habita uma luz em repouso (ruhendes) que já se vêacionada pela mínima motivação interior ou exterior. Na escuridão, acio-nando a imaginação, podemos produzir as mais claras imagens. No so-nho, os objetos se nos aparecem como em pleno dia. Em estados de vigíliatorna-se perceptível para nós o mais tênue influxo de luz exterior, equando o órgão sofre um toque mecânico, brotam luz e cores.

Mas, talvez, aqui, aqueles que costumam proceder de acordo comcerta ordem observem que nem sequer explicitamos decididamente oque seja cor. Novamente fazemos questão de evitar aqui essa pergunta,remetendo-nos à nossa exposição onde mostramospormenorizadamente como ela se mostra. Pois, também aqui nadanos resta a não ser repetir que a cor é a natureza regular em relação como sentido do olho. Também aqui devemos supor que alguém tenhaesse sentido, que alguém conheça o influxo da natureza sobre esse sen-tido: pois não se pode falar de cores com os cegos.

Mas a fim de não evitarmos angustiadamente uma explicação,queremos descrever o que foi dito antes do seguinte modo. A cor seriaum fenômeno elementar da natureza para o sentido do olho, que semanifesta, como todos os demais, através de separação e contraposi-ção, através de mistura e unificação, através de elevação e neutraliza-

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ção, através de comunicação e distribuição e assim por diante, e que omelhor modo em que pode ser visto e concebido é sob essas fórmulasgerais da natureza.

Não podemos impingir a ninguém esse modo de representar ascoisas. Quem as encontra sossegadamente como nós as encontramosirá assumi-las em si com gosto. Tampouco sentimos prazer em defendê-las de ora em diante a ferro e fogo. Isso porque, desde antigamente, háum certo risco em tratar de cores, de tal modo que um de nossospredecessores ocasionalmente ousava expressar: Quando mantemos umpano vermelho em frente a um touro, ele fica furioso, mas se simples-mente falamos de cores a um filósofo ele começa a enfurecer-se.

Todavia, se agora quisermos prestar alguma explicação de nossaexposição, a que nos referimos, devemos antes de mais nada mostrarcomo discernimos os diversos condicionamentos sob os quais a corpode se mostrar. Encontramos três modos de manifestação, três tiposde cores, ou se quisermos, três visões do mesmo, cuja diferença podeser expressa.

Consideramos então, primeiramente, as cores na medida em que per-tencem ao olho e na medida em que repousam numa ação (Wirkung) ereação (Gegenwirkung) do mesmo; depois, chamam nossa atenção namedida em que as divisamos em meios incolores ou através de sua ajuda;mas por fim tornam-se perceptíveis a nós na medida em que podemospensá-las como pertencendo aos objetos. Chamamos às primeiras de fi-siológicas, às segundas chamamos de físicas, e às terceiras, cores químicas.Aquelas são incontidamente fugidias, as segundas são passageiras, mas emtodo caso como que se demorando, morosas (verweilend), e as últimasdevem ser firmadas até sua duração ulterior.

Ora, na medida em que nós as distinguimos e as mantemos omáximo possível separadas umas das outras nessa ordem natural, parafins de uma exposição didática, nos ocorreu ao mesmo tempo a idéia

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de apresentá-las numa série seguida, acoplando as fugidias com asmorosas e essas novamente com as duradouras, suspendendo assim acuidadosa divisão feita em princípio para uma visão mais elevada.

Aqui, numa quarta partição de nosso trabalho – o que até ali foipercebido das cores sob diversas condições específicas – planejamos oesboço de uma futura teoria das cores, expressa em termos gerais eassim de modo próprio. E assim, por ora, adiantamos apenas que parapoder se produzir cor exige-se haver luz e escuridão, claro e escuro, ou,se quisermos nos servir de uma fórmula genérica, luz e não-luz. Ime-diatamente junto à luz surge-nos uma cor que chamamos de amarelo,uma outra imediatamente junto à escuridão, que designamos com apalavra azul. Se misturarmos essas duas, em seu estado o mais puro, detal modo que mantenham plenamente o equilíbrio equitativo, acaba-se gerando uma terceira que chamamos de verde. Mas aquelas duasprimeiras cores podem também gerar, cada uma em si mesma, umanova mostração, na medida em que se adensam ou se escurecem. Ad-quirem um aspecto vermelho, que pode se intensificar num grau tãoelevado a ponto de quase já não mais se poder reconhecer nelas o azule o amarelo originários. No entanto, o vermelho puro e o mais eleva-do pode ser gerado preferentemente em termos físicos pelo fato deunificarmos os dois extremos do amarelo-vermelho e do azul-verme-lho. Essa é a visão viva da mostração e da geração das cores. Mas tam-bém é possível admitir acrescentar ao azul um vermelho feito ou umamarelo feito especificado, e assim retrospectivametne produzir pelamistura o que foi operado antes pela intensificação. A doutrina ele-mentar das cores tem a ver apenas com essas três ou seis cores, quepodem tranquilamente ser inseridas num círculo. Todas as demaismodificações, que podem ser infinitas, pertencem mais ao aparenta-do, pertencem à técnica do pintor, do colorista, e sobremodo à vida.

Mas se tivermos que expressar ainda uma propriedade geral, entãopodemos perfeitamente considerar as cores como meio-luzes, como

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meio-sombras, uma vez que também quando misturadas suspendemmutuamente suas propriedades específicas, gerando um sombreado,um cinzento....

758. ... Influência sensorial-ética da cor

E uma vez que a cor ocupa um posto tão elevado na série dasmanifestações proto-originárias da natureza, preenchendo com umamultiplicidade decisiva o círculo simples a ela destinado, não nos de-vemos admirar se experimentarmos que, por si só, ela produz um efei-to específico sobre o sentido do olho; quando composta produz neleum efeito em parte harmônico, em parte característico, e muitas vezestambém um efeito desarmônico, mas em todo caso sempre um efeitodecisivo e significativo que vem imediatamente ligado com o ético. Acor se adapta primorosamente ao sentido do olho e através dessa me-diação, por suas manifestações elementares mais genéricas, exerce taisefeitos no humor, sem qualquer relação com a compleição ou com aforma de um material no qual nós as percebemos. É por isso, então,que a cor, considerada como um elemento da arte, pode ser usadocomo um elemento que influi nos fins mais elevados da estética.

759. Via de regra, os homens sentem uma grande alegria na cor. Oolho precisa dela como precisa da luz. Basta recordar-nos da sensaçãode leveza que sentimos quando, num dia cinzento, se abre o sol mes-mo que iluminando apenas um determinado espaço e as cores o tor-nam visível. O fato de atribuirmos forças curativas às pedras preciosascoloridas pode provir do sentimento profundo desse gosto agradávelinexprimível.

760. As cores que vemos nos corpos não são, por exemplo, algototalmente estranho ao olho, através de que, só então, ele como queseria cunhado nessa sensação; não. Esse órgão está sempre na disposi-ção de produzir ele próprio cores, e goza de uma sensação agradávelquando algo concorde com sua própria natureza lhe vem ao encontro

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de fora, quando sua determinibilidade é definida, significativamente,segundo um certo aspecto.

761. Da idéia dos contrapostos da manifestação, do conhecimen-to que adquirimos das determinações específicas dos mesmos, pode-mos concluir que as impressões singulares das cores não podem serconfundidas e que atuam de modo específico, devendo provocar esta-dos específicos decisivos no órgão vital.

762. Precisamente assim, também no humor. A experiência nosensina que as cores singulares geram estados de humor específicos.Conta-se de um espirituoso francês: il prétendoit que son ton deconversation avec Madame étoit changé depuis qu’elle avoit changé encramoisi le meuble de son cabinet que étoit bleu.

763. Para sentir perfeitamente esses efeitos significativos singula-res será preciso entornar o olho completamente com uma só cor, porexemplo encontrar-se num quarto pintado onde haja só uma cor, veratravés de um vidro colorido. Então identificamo-nos com essa cor;ela coloca em sintonia uníssona olho e espírito....

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AL-FARABI: DE SCIENTIIS

AL-FARABI: DE SCIENTIIS

Prof. Dr. Jakob Hans Josef Schneider

Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil

Al-Farabi (875-950) De scientiis secundum versionem Dominici Gundisalvi.Über die Wissenschaften. Die Version des Dominicus Gundissalinus, Latei-nisch-Deutsch, übersetzt und eingeleitet v. Jakob Hans Josef Schneider,in: Herders Bibliothek der Philosophie des Mittelalters (HBPhMA), ed.Matthias Lutz-Bachmann/Alexander Fidora/Andreas Niederberger, Vol.9: Al-Farabi, De scientiis. Über die Wissenschaften, Freiburg i. Br./Basel/Wien 2006 (ISBN: 10:3-451-28685-8)

Este livro é a tradução latina do Kitab Ihsa’ al ‘Ulum de Al-Farabi feitapor Dominicus Gundissalinus. Há mais uma tradução latina desse livrofeita por Gerhard de Cremona; mas a tradução de Gundissalinus foi maisinfluente na Idade Média, elaborada no seu De divisione philosophiae, ape-sar da tradução de Gerhard estar muito mais perto do original árabe. Alémdisso, a tradução de Gundissalinus é mais filosófica e por isso muito maisefetiva na Idade Média; ao passo que a de Gerhard é uma tradução escravade palavra por palavra sem o sentido geral do conteúdo do texto. Gerhardnão entende de filosofia quase nada; enquanto Gundissalinus é um filóso-fo e tradutor que entende o sentido, o intuito e os objetivos dos textosfilosóficos árabes que ele traduz.

Al-Farabi é o “primeiro filósofo” do mundo árabe, chamado porseus companheiros o “mestre segundo”, depois Aristóteles: o “mestreprimeiro”. Ele comentou todas as obras de Platão e de Aristóteles,queria reunir as duas filosofias; comparável com A. M. S. Boécio, quetentou fazer a mesma interpretação da harmonização de Platão eAristóteles.

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PROF. DR. JAKOB HANS JOSEF SCHNEIDER

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O livro de Al-Farabi é um livro do futuro medieval abrindo aformação escolar fechada nas septem artes liberales1 . Põe ordem nasdisciplinas filosóficas com base nos princípios das várias ciências: otrivium: gramática, lógica ou dialética e retórica; e o quadrivium: arit-mética, geometria, música e astronomia ou astrologia (como a nossaépoca está falando erradamente por causa da “logia” no termo de astro-logia). Novas ciências acrescentam, por exemplo, a perspectiva2 , a ótica

e a medicina. O ponto de vista da ordem das ciências é o de teórica eprática. Cada ciência tem um aspecto prático e teórico; por exemplo, amúsica, trata das harmonias em si (teórica) e está referida a um instru-mento ou a uma voz (prática). Ou a aritmética, que se ocupa dosnúmeros em si ou dos números em relação à prática, que chama-seeconomia ou contabilidades das feiras. Todas as ciências têm este doisaspectos: teórico e prático! Isso é uma novidade nas divisões das ciên-cias na Idade Media, que tem uma grande tradição. Nós temos umaliteratura ampla das divisões das ciências na Idade Media (cf. MartinGRABMANN3 e Jakob Hans Josef SCHNEIDER4 ), que se pode

1. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef. „artes liberales”, em: Der Neue Pauly. Enzyklopädieder Antike, ed. M. Landfester, Bd. 13: Rezeptions- und Wissenschaftsgeschichte, Stuttgart/Weimar, 1999, pp. 273-278. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef. „Trivium”, em:Historisches Wörterbuch der Philosophie. ed. por. RITTER, Joachim (†); GRÜNDER,Karlfried. Vol. 10, Basel/Darmstadt, 1998, pp. 1517-1520.

2. BAEUMKER, Clemens. Witelo. Ein Philosoph und Naturforscher des XIII. Jahrhunderts(Beiträge zur Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittelalters, 3/2), Münster,1908, 21991.

3. GRABMANN, Martin. Die Geschichte der scholastischen Methode. Nach den gedrucktenund ungedruckten Quellen bearbeitet, 2 Bde., Berlin 1988, p. 28. Cf. PANNENBERG,Wolfgang. Wissenschaftstheorie und Theologie. Frankfurt a. M. 1987.

4. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef.Wissenschaftseinteilung und institutionelle Folgen,Philosophy and Learning. Universities in the Middle Ages, ed. by HOENEN, MaartenJ. F. M.; SCHNEIDER, Jakob Hans Josef; WIELAND, Georg. Leiden/New York/Köln, 1995, 63-121 (Education and Society in the Middle Ages and Renaissance, ed.by MIETHKE, Jürgen; COURTENAY, William J.; CATTO, Jeremy. Bd. 6).

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entender como uma introdução à filosofia e às ciências, inclusivementecom as tarefas do currículo escolar nas novas universidades medievaisnascidas no fim do século XII e difundidas no século XIII na EuropaLatina. A idéia da universidade altera totalmente a formação escolarmedieval nas escolas monásticas, que têm agora só uma importânciapreparatória para a entrada na universidade, representada pela faculda-de de artes, equivalente à filosofia, da faculdade de teologia e da facul-dade de direito e de medicina, sendo que essas últimas duas não exis-tem em todas as universidades: o direito, sobretudo em Bologna (Itá-lia) e a medicina em Palermo (Itália) e Montpelliers (França).

Este desenvolvimento significa uma grande mudança na culturacristã medieval; primeiramente a separação rigorosa da filosofia e dateologia e depois a abertura da intelectualidade cristã para a filosofiapagã. Fé e razão se diferenciam; quer dizer, a razão está se abrindo paratodas as ciências. Igualmente o cientificismo e a profissionalização doentendimento da realidade e do mundo são os caracteres dessa época.Tem a ver com a autonomia da ciência sem relacionamento com areligião. Além disso, temos a grande recepção das ciências do mundoárabe, sobretudo pelas traduções dos textos árabes em Toledo, Espa-nha, de Aristóteles e de Platão e suas escolas: o aristotelismo e oplatonismo Medieval.5

Nesse âmbito o De scientiis de Al-Farabi alcança sua maior impor-tância. Aquele é um verdadeiro filósofo, um “verdadeiro companheiro

SCHNEIDER, Jakob Hans Josef.Al-Farabi e o aristotelismo na Idade Média Latina –O De scientiis de Al-Farabi, em: A cidade de Deus e A cidade dos homens. De Agostinho aVico. Festschrift para Luis Alberto De Boni, Vol. I, ed. por STEIN, Ernildo. PortoAlegre, Brasil, 2004, pp. 391-408.

5. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef. Al-Farabi: De scientiis. On the Division of Sciences.Arabic Philosophy in the Latin Middle Ages, em: DE BONI, Luis Alberto; PICH,Roberto Hofmeister (eds.). A recepção do pensamento greco-romano, árabe e judaico peloOcidente Medieval. Porto Alegre, 2004, pp. 113-138.

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do ser humano” (Platão, Sofistes, 216a–d), que compreende com umconhecimento certo a ciência de todas as coisas. A ciência, quer dizer, afilosofia é – segundo Aristóteles, Metafísica II, 1. 993 b 19-20 e 993 b23-24 – uma pesquisa e investigação dos princípios e das causas detodas as coisas, sejam humanas ou divinas: Marcus Túlio Cícero (De

officiis II, 5), o “studium sapientiae”, o saber, respectivamente a ciência,é a “rerum divinarum et humanarum causarumque […] scientia”.6

Por causa disso, a intenção do De scientiis de Al-Farabi é simplesmentea seguinte: explicar e esclarecer os princípios e os métodos de todas asciências conhecidas para facilitar o estudo delas. Para instruir aquelesque querem se orientar nas ciências antes do estudo delas; para desco-brir as preferências do estudo; quer dizer, para ajudar aqueles que que-rem estudar uma das ciências propostas que deveriam existir na cidade;ou para um convite de uma meio-formação nas ciências, uma forma-ção superficial, para conseguir acompanhar o discurso científico e filo-sófico na cidade. Porque, alguém que está consultando um médicotem que saber algo sobre a medicina para não correr risco quanto àsaúde; ou alguém que está construindo uma casa tem que saber algosobre a geometria e a estática dos muros; ou alguém que está falando ese comunicando com seu próximo tem que saber as regras do idiomafalado; ou alguém que está pesquisando e filosofando tera que saberalgo sobre objeto das questões. O De scientiis de Al-Farabi é uma in-trodução nas ciências, orientada nos princípios e nos métodos das ciên-cias conhecidas e necessárias numa sociedade humana7 .

6. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef. Philosophie II. Christliche Spätantike, Mittelalter,em: Historisches Wörterbuch der Rhetorik, Vol. VI, Tübingen: Max Niemeyer Verlag,2003, pp. 986–1001.

7. MCKEON, Richard. The Organisation of Sciences and the Relations of Cultures inthe Twelfth and Thirteenth Centuries, The Cultural Context of Medieval Learning.Proceedings of the First International Colloquium on Philosophy, Science, and Theologyin the Middle Ages – September 1973 (Boston Studies in the Philosophy of Science, 26),eds. MURDOCH, J. E.; SYLLA, E. D. Dordrecht/Boston, 1975, pp. 151-184.

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AL-FARABI: DE SCIENTIIS

O De scientiis de Al-Farabi tem mais uma novidade: A filosofiapolítica é a primeira filosofia e não a metafísica; quer dizer, como RenéDescartes na sua Les Principes de la Philosophie está falando: a filosofiaprática ou a ética é a finalidade e o fim de todos os esforços espirituaishumanos que quiserem chegar na sabedoria.8 O De scientiis de Al-Farabi está fazendo, aqui, uma realização das palavras de Platão na suaRepública: Os filósofos são os reis; porque eles tem o conhecimentoda idéia do bem. Isso significa para Al-Farabi o seguinte: Na medidaem que o Islamismo é uma religião das leis divinas como também oCristianismo e o Judaísmo, a teologia tem que se subordinar à ciênciapolítica, que se ocupa com as leis da sociedade e da comunidade hu-mana. Quanto a isso, a religião exerce somente uma parte. O governa-dor de uma cidade ou de um estado tem que ser sábio; o filósoforeúne as leis públicas e religiosas em sua única pessoa. O filósofo é overdadeiro companheiro dos homens.

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8. Algumas obras de Al-Farabi, com um título errado, foram publicadas no ano 1638em Paris: Alpharabii Vetustissimi Aristotelis Interpretis, Opera Omnia, ed.CAMERARIUS, Guilielmus. Paris, 1638 (Reinpr. Frankfurt a. M. 1969). Les principesde la philosophie de René Descartes quase 15 anos depois. Em minha opinião Descartesconheceu as obras de Al-Farabi.

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