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Sebenta Português e Hypno&spaço Liliana Vieira Conde 1 Luís de Sttau Monteiro – Felizmente há Luar! a evocação das situações e personagens do passado é o pretexto (ou a máscara imposta pela Censura) para falar do presente, não porque a História se repita, mas para dela tirar exemplo 1 HISTÓRIA DO TEATRO Parece que a sua origem remonta às sociedades primitivas, pensando-se que as danças imitativas concediam poderes sobrenaturais que exorcizavam maus espíritos e controlavam factos essenciais à sobrevivência, tais como a fertilidade da terra, da casa e do sucesso nas batalhas. Com o evoluir dos tempos, vai assumindo um factor mais educacional, tornando-se lugar de representação de lendas relacionadas com deuses e heróis. Na Grécia Antiga, os festivais anuais em honra ao deus Dionísio (Baco, para os latinos) compreendiam, entre os seus eventos, a representação de tragédias e comédias, sobretudo, sobre a forma de ditirambos ou canções dionisíacas. Todos os papéis eram representados por homens. O teatro romano era praticamente uma imitação do grego, mas existia apenas um actor que representava todos os papéis, escondendo-se por detrás de uma máscara. Com o advento do Cristianismo, e sem patrocinadores, por ser considerado pagão, o teatro morreu e só encontrou um novo fôlego com o Renascimento, época que representou a história da ressurreição de Cristo. Os membros da Igreja foram os actores. As representações teatrais entram novamente em declínio com o século XVI. Ainda durante o século XV começam a organizar-se trupes teatrais agregadas ao domínio de senhores nobres e reis. O teatro era um emprego, assim como o foi para Shakespeare, o qual foi empregado de Lorde Chamberlain e, posteriormente, pelo próprio rei. 1 Cf. Luiz Francisco Rebello, Dicionário de Literatura Portuguesa.

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Sebenta Português e Hypno&spaço

Liliana Vieira Conde 1

Luís de Sttau Monteiro – Felizmente há Luar!

a evocação das situações e personagens do

passado é o pretexto (ou a máscara imposta

pela Censura) para falar do presente, não

porque a História se repita, mas para dela

tirar exemplo1

HISTÓRIA DO TEATRO

Parece que a sua origem remonta às sociedades primitivas, pensando-se que as danças

imitativas concediam poderes sobrenaturais que exorcizavam maus espíritos e

controlavam factos essenciais à sobrevivência, tais como a fertilidade da terra, da casa e

do sucesso nas batalhas.

Com o evoluir dos tempos, vai assumindo um factor mais

educacional, tornando-se lugar de representação de lendas

relacionadas com deuses e heróis.

Na Grécia Antiga, os festivais anuais em honra ao deus Dionísio

(Baco, para os latinos) compreendiam, entre os seus eventos, a

representação de tragédias e comédias, sobretudo, sobre a forma

de ditirambos ou canções dionisíacas. Todos os papéis eram representados por

homens.

O teatro romano era praticamente uma imitação do grego, mas

existia apenas um actor que representava todos os papéis,

escondendo-se por detrás de uma máscara.

Com o advento do Cristianismo, e sem patrocinadores, por ser

considerado pagão, o teatro morreu e só encontrou um novo fôlego com o

Renascimento, época que representou a história da ressurreição de Cristo. Os membros

da Igreja foram os actores. As representações teatrais entram novamente em declínio

com o século XVI.

Ainda durante o século XV começam a organizar-se trupes

teatrais agregadas ao domínio de senhores nobres e reis. O teatro

era um emprego, assim como o foi para Shakespeare, o qual foi

empregado de Lorde Chamberlain e, posteriormente, pelo

próprio rei.

1 Cf. Luiz Francisco Rebello, Dicionário de Literatura Portuguesa.

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Na Itália, o teatro renascentista rompeu com as tradições do teatro medieval. Embora

tenham sido originariamente amadores, o certo é que

houve um intenso processo de profissionalização dos

actores, agora já com a presença de mulheres. No século

XVII o teatro italiano experimentou as grandes evoluções

cénicas, muitas das quais utilizadas actualmente. Já nos

séculos XIX e XX as representações teatrais são vistas

como reflexos da vida real. No teatro moderno, as situações dramáticas procuram

envolver o espectador na acção representada, denunciado problemas do nosso

quotidiano.

A influência do teatro de Brecht em Felizmente há Luar!

A peça Felizmente há luar é uma peça épica, inspirada na teoria marxista, que apela à

reflexão, não só no quadro da representação, como também na sociedade em que se

insere. O teatro de Brecht pretende representar o mundo e o homem em constante

evolução de acordo com as relações sociais. Estas características afastam-se da

concepção do teatro aristotélico que pretendia despertar emoções, levando o

espectador a identificar-se com o herói. O teatro moderno tem como preocupação

fundamental levar os espectadores a pensar, a reflectir sobre os acontecimentos

passados e a tomar posição na sociedade em que se insere.

Brecht foi um dramaturgo alemão, nascido em 1898 e foi responsável pela teoria de

teatro «épico». A sua obra domina a evolução do teatro contemporâneo e defende a

distanciação. A identificação com o herói desperta as emoções, transporta o espectador

para o universo fictício do palco, mas prejudica a visão crítica do público tornando-o

incapaz de uma análise objectiva de acção. Deve contar-se o final da peça para evitar

que a emoção perturbe a capacidade de análise dos espectadores. A distanciação leva o

espectador a pensar e a desenvolver o espírito crítico.

Na esteira de Brecht, a intencionalidade da peça Felizmente há Luar! é levar o

leitor/espectador a estabelecer um paralelismo histórico-metafórico entre o tempo

representado (1817, em que o povo português, pobre e amedrontado, é dominado por

um poder absoluto, sustentado pelo estrangeiro, pela Igreja e por cidadãos corruptos e

oportunistas) e o tempo de escrita (1961, em que o mesmo povo, com péssimas

condições de vida, é dominado pela ditadura salazarista, aliada a monopólios

estrangeiros e à Igreja e sustentada pela PIDE que, muitas vezes, se confundia com o

cidadão anónimo, o chamado «bufo» que denunciava o povo, colaborando com a

manutenção do regime).

A denúncia das injustiças e da violência, da pobreza e do analfabetismo, da

corrupção e da arrogância levam, obviamente, o espectador a tomar consciência de

que muita coisa tem de mudar. E esse era o principal objectivo de Brecht.

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Vejamos a comparação entre as duas épocas:

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Luís de Sttau Monteiro

Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro nasceu no dia 03/04/1926 em Lisboa e faleceu

no dia 23/07/1993 na mesma cidade. Partiu para Londres com dez anos de idade,

acompanhando o pai que exercia as funções de

embaixador de Portugal. Regressa a Portugal em

1943, no momento em que o pai é demitido do cargo

por Salazar. Licenciou-se em Direito, que exerceu

por um curto período de tempo. Parte novamente

para Londres, tornando-se condutor de Fórmula 2.

Regressa a Portugal e colabora em várias

publicações, destacando-se a revista Almanaque e o suplemento "A Mosca" do Diário de

Lisboa, e cria a

secção Guidinha

no mesmo jornal.

A sua estadia em

Inglaterra,

durante a

juventude, pô-lo

em contacto com

alguns

movimentos de

vanguarda da

literatura anglo-

saxónica. Na sua

obra narrativa

retrata

ironicamente

certos estratos da

burguesia

lisboeta e

aspectos da

sociedade

portuguesa sua

contemporânea.

O seu inconformismo perante a ausência de liberdade que se viveu perante o período

salazarista, o seu espírito lutador e insatisfeito e a sua atitude crítica perante o regime

foram factores que lhe valeram a cadeia de Aljubre. Em 1961 foi preso pela PIDE,

acusado de ter participado no golpe militar de Beja, tentativa de revolta fracassada que

terá sido apoiada pelo General Humberto Delgado.

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Estreou-se, em 1960, com Um Homem não Chora, a que se seguiu Angústia Para o Jantar

(1961), obra que revela alguma influência de escritores ingleses da geração dos angry

young men, que o consagrou, e E Se For Rapariga Chama-se Custódia (1966).

Destacou-se, sobretudo, como dramaturgo, nomeadamente com Felizmente há Luar!

(1961), peça que, sob influência do teatro de Brecht e recuperando acontecimentos da

anterior história portuguesa, procurava fazer uma denúncia da situação sua

contemporânea. Foi preso em 1967 pela Pide após a publicação das peças de teatro A

Guerra Santa e A Estátua, sátiras que criticavam a ditadura e a guerra colonial. Em 1971,

com Artur Ramos, adaptou ao teatro o romance de Eça de Queirós A Relíquia,

representada no Teatro Maria Matos. Escreveu o romance inédito Agarra o Verão, Guida,

Agarra o Verão, adaptada como novela televisiva em 1982 com o título Chuva na Areia

A peça em dois actos Felizmente Há Luar! foi publicada em 1961 e distinguida, logo no

ano seguinte, com o Grande Prémio de Teatro da Sociedade de Escritores e

Compositores Portugueses. Foi

representada pela primeira vez em

Paris, em Março de 1969, porque,

em Portugal, vigorava então a

Censura, que a impediu de subir à

cena, dado que o seu conteúdo

desagradava ao regime salazarista

que vigorava até 1974. Só em 1978

será representada no Teatro de D.

Maria II, numa encenação do

próprio Sttau Monteiro. Foram

vendidos 160 mil exemplares da

peça, resultando num êxito estrondoso.

Apoteose trágica – expressão conferida pelo autor, pois a obra tem um desfecho trágico

e homenageia-se a figura heróica do General Gomes Freire de Andrade, o qual morre

em contexto também ele apoteótico.

A acção desta peça, a que o próprio autor chamou um “grito de liberdade”, decorre em

1817. Centra-se na figura do General Gomes Freire de Andrade – “que está sempre

presente embora nunca apareça”. É um militar prestigiado que é executado em S.

Julião da Barra, acusado de liderar uma conspiração contra a junta governativa que

representava o rei de Portugal (D. João VI), refugiado no Brasil. A Junta é constituída

por D. Miguel Pereira Forjaz, representante da nobreza, por Principal Sousa,

representante do Clero, e por William Carr Beresford, o todo poderoso chefe militar

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nomeado por Sua Majestade Britânica e que “governa Lisboa para ganhar dinheiro”.

Este último, ao recear perder os seus privilégios, vai manipular os outros dois no

sentido de acreditarem nas falsas informações de delatores sem escrúpulos que

envolvem o General na Conspiração de 1817 para derrubar o regime absolutista e

instaurar o Liberalismo em Portugal. O chefe da revolta é preso e executado numa

noite de lua cheia.

É essencial, nesta peça, reconstituição histórica do que se passou em 1817. Esses

acontecimentos instituem-se como metáfora do que acontece em Portugal no

momento da escrita, porque nestes dois tempos há uma relação de analogia: o

regime autoritário, a ignorância e a miséria do povo, a delação, a hipocrisia do

clero, as prisões arbitrárias, os julgamentos sumários, as execuções imediatas, o

assassínio de políticos incómodos.

Situação Social e Política de Portugal

Obra:

1. Nesta época Portugal estava em crise a vários níveis e vivia as vésperas da

Revolução Liberal. As crises política (ausência do rei D. João VI e da corte no

Brasil), económico-social (pobreza causada pela ruína agrícola, comercial e

industrial do país que não acompanhara a Revolução Industrial Inglesa e pela

dependência económica do Brasil) e Ideológica (difusão progressiva de ideias

revolucionárias, nomeadamente a contestação da monarquia, por influência da

Revolução Francesa) dominavam o país. A presença militar inglesa tornou-se

opressora.

2. Após 1815 a principal preocupação dos regentes do reino era de alertar o

regente que viria posteriormente a ser tornado rei, D. João VI, para a

necessidade de serem tomadas medidas que pudessem tirar da pobreza, da

miséria, da ruína agrícola, comercial e industrial Portugal. Solicita-se o retorno

do rei, o qual não consegue por em marcha as reformas, devido à sua

distância.

3. Acrescente-se, ainda, a dificuldade de relacionamento com o chefe militar

inglês, o general William Carr Beresford, que em 1815 planeava já um novo

regulamento para o exército português, acarretando uma enorme despesa

económica. Daí este se tornar uma figura incómoda para os outros dois

governadores (D. Miguel Forjaz e Principal Sousa).

4. Note-se, porém, que os governadores, ao mesmo tempo que apadrinharam as

críticas às ideias de mudança, exerceram, por outro lado, uma eficaz acção de

repressão sobre as tentativas de transformação política. Inicialmente, esta

repressão traduziu-se na campanha de perseguições, prisões e exílios;

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posteriormente, na proibição de jornais portugueses publicados em Inglaterra e

na proibição das sociedades secretas.

5. O movimento conspirativo ganha novos contornos em 1817 / 1818 devido ao

aumento de medidas de repressão.

6. A Revolução de 1820 veio inaugurar o liberalismo político no nosso país; em

1822 elaborou-se a primeira Constituição Portuguesa. Considerada como tendo

um cariz demasiado avançado perante a sociedade da época, e com a morte de

D. João VI, ensaiou-se em 1826 uma nova experiência liberal, mais moderada.

Este documento pretendia conciliar a inovação com a tradição, os interesses das

camadas senhoriais e os das burguesas. Porém, a sociedade portuguesa não

tinha sofrido as alterações de fundo necessárias para poder aceitar as

instituições liberais.

E assim, só uma guerra civil prolongada (1829-1834) – em cujo decurso a

regência liberal promulgou uma importante legislação de reforma económica,

administrativa e judicial, atribuída a Mouzinho da Silveira – permitiu a

institucionalização duradoura do liberalismo.

7. Esta época serve de pretexto ao autor para, evocando esta época histórica e

situando a acção dramática nesse tempo histórico, falar do seu próprio tempo

(1961), alertando consciências, denunciando situações de repressão

comparáveis a outros tempos de noites sombrias.

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Síntese de acontecimentos político-militares e sócio-económicos:

➢ 1792 – início da regência de D. João VI

➢ 1806 – Napoleão decreta bloqueio continental; ocorre a 1ª invasão

francesa; a corte desloca-se para o Brasil; Governo de Junot; decadência

do comércio externo português; Tratado Comercial entre Portugal e a

Inglaterra.

➢ 1808 – pedido de auxílio à Inglaterra; as tropas inglesas comandadas por

Artur Wellesley desembarcam em Portugal;

➢ 1810 – 1812 – 2ª e 3ª invasões francesas. Retirada final dos franceses.

➢ 1816 – Morte de D. Maria: início do reinado de D. João VI, ainda no Rio

de Janeiro. Beresford assume preponderância em Lisboa.

➢ 1817 – Conspiração libertária. O general Gomes Freire de Andrade

morre.

➢ 1819-1820 – Fundação do Sinédrio, no Porto, associação secreta que irá

preparar a Revolução de 1820. Revolução. Primeira tentativa de

introdução da máquina a vapor em Portugal.

➢ 1821 – primeiras eleições em Portugal. D. João VI regressa a Portugal.

Decreto que estabelece, em Portugal, a abolição da censura prévia e

regula o exercício da liberdade de imprensa. Extinção do Tribunal do

Santo Ofício. Fundação do 1º Banco, em Lisboa. A máquina a vapor

começa a ser utilizada na navegação do Tejo.

Época de elaboração da obra:

1. Em Felizmente há Luar! o passado é um pretexto para se falar do presente.

2. A sociedade do início dos anos 30 estava dependente da agricultura, cujas

classes dominantes eram largamente marcadas pela importância económica e

política dos sectores agrários e do comércio internacional / colonial e com uma

burguesia industrial em emergência, mas ainda débil.

3. O 28 de Maio iniciou o longo e complexo processo de superação do Estado

liberal pelas resistências “externas” à ditadura por parte das forças

republicanistas e democráticas. Porém, o salazarismo acaba por se impor.

4. O teatro parece surgir como a manifestação artística que mais perseguição

sofreu durante este período, tendo sido, inclusive, fundada a Comissão de

Censura Teatral, que analisava as obras a fim de lhe suprimir passagens que

fossem consideradas “perigosas” ou mesmo proibir a sua representação. É fácil

descobrir a razão desta perseguição se pensarmos na acção perturbadora que o

teatro pode assumir junto do público, pela sua proximidade à vida. Daí a peça

de Luís de Sttau Monteiro ser perigosa, na opinião da censura.

5. Salazar e Estado Novo: no início dos anos 30 Portugal era primordialmente

agrário e as classes predominantes estavam largamente marcadas pelo poder

económico e político dos sectores agrários / rentistas e do comércio

internacional / colonial e com uma burguesia industrial em emergência, mas

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ainda débil. Os efeitos quase sucessivos das crises de 1921, da valorização do

escudo, em 1924, e da Grande Depressão de 1929 tinham afectado gravemente a

economia, os negócios e as finanças públicas. O velho estado republicano-

liberal tornava-se sinónimo de demagogia e desordem, de instabilidade política

e social, de escândalos, de incapacidade geral de fazer face à crise. O 28 de Maio

vinha iniciar um longo processo de superação do Estado Liberal. Com a crise,

começa a proliferar a ideia de que era necessária a ordem

6. As principais e mais duradouras características do modelo económico do

Estado Novo foram construídas durante a Ditadura Militar, entre as quais:

- Politica de fomento das obras públicas;

- Política colonial;

- Acto colonial;

- Política de autarcia;

- Constituição política;

- Estatuto do Trabalho Nacional;

- Política conjuntural anti-depressão.

7. A nível político-constitucional, o regime emerge como uma ditadura de “chefe

de Governo”, com o progressivo esvaziamento dos poderes do Presidente da

República e da Assembleia Nacional e a anulação efectiva das concessões do

Liberalismo resultantes do “compromisso constitucional” de 1933.

8. Domínio do exército e da Igreja Católica. Criação das milícias: Mocidade

Portuguesa e Legião Portuguesa

9. O Estado Novo podia deter quem entendesse, sem culpa formada e sem

mandato ou fiscalização judicial, por períodos que foram sendo alargados, até

chegar aos seis meses. Durante esse tempo os detidos podiam ser conservados

incomunicáveis, sem visitas nem assistência dos seus advogados.

Autarcia é uma sociedade que se basta a si

própria em termos económicos. Tem implícita a ideia de que um país deve produzir tudo

aquilo de que necessita para consumir, não

ficando dependente das importações.

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10. Carta de Matilde de Melo a António de Sousa Falcão

Ambiguidade do título

O título da peça é ambíguo, conforme o ponto de vista das personagens que proferem a

célebre frase (D. Miguel Forjaz – indica o medo e o fim da rebelião – e Matilde Melo –

esperança no começo de uma nova era, em que o povo se revoltará contra o poder dos

dirigentes; há uma profetização da Revolução de 1820), mas também pela dupla

simbologia do fogo: remete simultaneamente para a destruição e para a purificação. O

luar liga-se à morte, mas também à vida.

A expressão «Felizmente Há Luar» foi utilizada por Raul Brandão, em Vida e Morte de

Gomes Freire, o que nos mostra claramente que Sttau Monteiro recorreu a esta narrativa

histórica, onde pôde confirmar factos relacionados com a condenação do herói da

conspiração de 1817.

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O advérbio felizmente é bastante pertinente, traduzindo ideias diferentes por parte de

cada uma das personagens, pois a noção de prosperidade e de felicidade é,

obviamente, diferente para D. Miguel e para Matilde.

Signos não Linguísticos

No discurso teatral existem signos linguísticos – presentes no discurso das personagens

– e nos signos não-linguísticos emitidos pela situação e adereços de cena. Daí a

importância do texto principal, mas também das didascálias (indicações cénicas). Em

Felizmente há Luar!, as indicações cénicas fornecem indicações sobre vários signos não

linguísticos: o tom de voz, os gestos e a movimentação dos actores, a iluminação, a

indumentária e o som.

É a metáfora que nos permite transpor a trindade da Regência

Para o tempo da ditadura salazarista que sobreviveu com a ajuda

Os signos permitem-nos compreender a miséria, a opressão e a consequente revolta do

povo.

D. Miguel

Beresford

Principal Sousa

PIDE

Igreja

NATO

O tom de voz

Auxilia a interpretar as falas das personagens e revela sentimentos ou relações afectivas

entre as personagens. Exemplos:

1. Manuel – é «o mais consciente dos populares», utiliza nos monólogos o seu tom

de voz habitual (pp. 16, 79), mas adopta um tom sarcástico (p.16), «duro e

ríspido» (p. 78) quando pretende imitar os poderosos (p.16), pede esmola «num

tom de voz humilde e trémulo» (p. 78), torna-se irónico quando critica a situação

política do país, fala com ternura (p.105), tristeza (p. 109) ou em tom de

acusação com Matilde Melo (pp. 105-106). As suas reflexões são entrecortadas

por pausas que sugerem o fluir do pensamento, mas também a sua própria

impotência para mudar a situação política do país.

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A linguagem gestual e a movimentação das personagens

O conceito de linguagem gestual é abrangente já que se refere a gestos, jogos

fisionómicos, posição e postura das personagens. A movimentação pelo espaço cénico

engloba entrada e saída dos actores nesta obra está intimamente ligada à iluminação. Por

exemplo:

1. Matilde exprime, pelos seus gestos e movimentos, a dor e a revolta. Logo após a

prisão do marido, aparece sozinha procurando consolo nas recordações e nos

objectos pessoais do general. A didascália dá conta do aumento gradual do seu

sofrimento. «Levanta-te […] Encaminha-se para uma cómoda velha […] Abre

uma gaveta da cómoda e tira dela um uniforme velho do Gomes Freire […]

Coloca o uniforme de Gomes Freire sobre a cadeira […] Acaricia o uniforme

[…] Passa a mão pelo uniforme com ternura […] Faz o gesto que fecha uma

janela […] Começa a chorar […] Endireita-se. Parece crescer no palco […] Cai

de joelhos, com os braços em torno da cadeira e, soluçando, enterra a cabeça no

uniforme de Gomes Freire» (pp. 83-86)

Cenário, iluminação, trajes, adereços de cena

Os diferentes quadros são desvendados pelo jogo de luzes: oposição entre escuridão e

luminosidade. No início de cada um dos actos «a cena está às escuras», incidindo a luz

sobre Manuel que aparece sozinho. Só depois se ilumina o fundo do palco e surgem as

outras figuras populares. Após a chegada da polícia que dispersa o grupo de populares, a

«luz do fundo vai diminuindo de intensidade até desaparecer completamente».

Os trajes das personagens e os objectos funcionam como adereços de cena que

permitem localizar a acção dramática. As figuras populares ilustram um cenário de

miséria contrastando com a opulência e poder da classe dirigente. Os objectos pessoais

das personagens constituem também adereços de cena: «cestos, mantas esfarrapadas,

uma abóbora, etc.» (p. 18), «o sapato estragado de Vicente», «uma boneca esfarrapada»

(p. 25). O cenário de miséria é completado pelas próprias personagens: «uma velha,

sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga nova» (p. 16).

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Elementos simbólicos

➢ A cor verde da saia de Matilde – a viúva de Gomes Freire, vestida de verde num

claro sinal de substituição do luto pela esperança e tranquilidade. É também

associada à renovação da natureza, à longevidade e à imortalidade, remetendo

também para o encontro de ambos num outro mundo. No final do espectáculo será

a voz de Matilde que ecoará n os ouvidos dos espectadores, transfigurando o

significado das palavras de D. Miguel que ditaram o título da obra. «Entre o azul e

o amarelo, o verde resulta das interferências cromáticas. Mas entra com o vermelho

no jogo simbólico de alternâncias. A rosa floresce entre folhas verdes. Equidistante

do azul-celeste e do vermelho infernal, ambos absolutos e inacessíveis, o verde,

valor médio, mediador entre o quente e o frio, o alto e o baixo, é uma cor

tranquilizadora, refrescante, humana.»2 O frio, a solidão e o gelo da prisão e da

morte são substituídos pela confiança de Matilde, para quem a condenação injusta

do marido significa a honra e o ensinamento que permitirá a mudança.

➢ O fogo – «O fogo purificador que se ergue sobre o altar dos holocaustos,

acompanhou sempre as coroações e os ordálios. […] Mas o fogo também pode

descer e transformar-se em castigo, como testemunha Lúcifer, anjo portador de luz

que se tornou príncipe do fogo subterrâneo.»3

➢ A noite – é o momento temporal em que domina a obra. Gomes Freire é preso de

madrugada por soldados; a sua execução em lugar à noite, que, simbolicamente, se

associa ao sofrimento e à morte. A noite é, também, sinónimo do poder maldito e

das injustiças dos governadores. A noite é o tempo das germinações e das

2 Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, Teorema, Lisboa, 1982. 3 Luc Benoist, Signos, Símbolos e Mitos, Perspectivas do Homem / Edições 70, Lisboa, 1999, pp. 58-59.

Som

Os sons adensam a expressividade dramática da peça.

Os sons dos tambores sugerem a repressão militar e policial; o som dos sinos mostra o

envolvimento da Igreja na repressão que se abate sobre o povo; a mistura destes dois

sons denuncia o seu envolvimento.

Os sons da fanfarra que se ouve no final da peça «num crescendo de intensidade até cair

o pano» é ambíguo; se por um lado resulta do som opressivo dos tambores, é também o

som da festa da liberdade profetizada por Matilde.

Os silêncios também são significativos. Marcados pelas pausas no discurso, podem

sugerir o estado emotivo das personagens, o fluir dos seus pensamentos ou sublinharem

um momento de grande tensão emocional como é o caso do silêncio «pesado» que se

segue à primeira conversa dos populares sobre o General Gomes Freire de Andrade (p.

21) ou dos instantes que precedem a execução dos conspiradores, em que «o palco fica

às escuras e em silêncio» (p.135)

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conspirações. Segundo Luc Benoist, «O simbolismo terrestre oscila assim entre a

luz e a sombra (sentido etimológico do yang e do yin), entre o lado iluminado e o

obscuro, como nas arenas espanholas, alternância que impunha e ainda impõe à

construção dos edifícios e à agricultura uma orientação que outrora era fixada

pelos ritos da geomância.» 4

➢ O luar – permite presenciar a tortura dos conspiradores e concede a visão de um

momento esclarecedor que poderá engendrar a regeneração social. A lua, tal como

o fogo, é marcada por uma dupla simbologia: ela prefigura a morte na Terra, mas,

pelas suas diferentes fases, associa-se a rituais de renovação e de mudança da

natureza. Segundo Luc Benoist a Lua associa-se à «água como o Sol ao fogo.

Irradiando uma luz indirecta, é símbolo de dependência e, pelo seu

reaparecimento periódico de renovação. Mede o tempo, o das semanas e dos

meses, segundo o seu próprio ciclo e unifica os ritmos heterogéneos, cuja analogia

os aproxima do seu. Controla os fenómenos da fertilidade e da vegetação.» 5

➢ A moeda – é entendida como uma medalha

➢ Os tambores e a fanfarra – são sinónimos de repressão e de autoridade.

O espaço e o tempo

São o espaço e o tempo que organizam o microcosmos da acção; estão presentes nos

cenários e nas didascálias. A mudança de espaços é sugerida pelos efeitos de luz e

pelos adereços.

O espaço físico – primeiro acto: ruas da cidade de Lisboa, no espaço em que D. Miguel

recebe Vicente, no palácio dos governadores do Reino, no Rossio onde entrevistam o

delatores e preparam o seu plano, casa de Gomes Freire, alusão a espaços frequentados

pelos revolucionários, tais como o botequim do Marrare e uma loja maçónica, sedeada

na Rua de São Bento.

O espaço físico –segundo acto: ruas de Lisboa, casa da Matilde de Melo, gabinete onde

Beresford dialoga com Matilde, a entrada da casa de D. Miguel Forjaz e o local onde a

mulher do general conversa com o principal Sousa, o alto da serra, de onde se

vislumbram as fogueiras, e há ainda referência ao forte de S. Julião da Barra, o campo

de Sant’Ana, onde serão executados os presos, e o Rato, por onde andam as patrulhas

da polícia. Matilde evoca ainda a aldeia onde nasceu e cresceu, Paris e os campos da

batalha da Europa por onde acompanhou o marido.

O espaço social– este é mais explorado pelo autor. Os inúmeros elementos que

dispomos fazem-nos pensar que Sttau Monteiro pretende reforçar as profundas

diferenças que marcam a sociedade oitocentista. Assim, o povo é caracterizado por um

vestuário reduzido e por um cenário de doença, pobreza e miséria. Os poderosos, por

sua vez, aparecem caracterizados por um guarda-roupa cuidado e rodeados por um

cenário de riqueza. Temos ainda referências constantes ao clima de medo, de repressão

4 Luc Benoist, ibidem, p. 80. 5 Luc Benoist, ibidem, pp. 60-61.

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Sebenta Português e Hypno&spaço

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e de perseguição, ao ambiente de conspiração, fruto de acontecimentos como à

presença de estrangeirados no país.

O tempo é abstracto. No primeiro acto o tempo da acção é muito mais rápido do que

no segundo. Os acontecimentos precipitam-se até chegar à prisão de Gomes Freire.

Este ritmo temporal comprova a celeridade da condenação e da execução dos

revolucionários para que não tivessem qualquer hipótese de defesa, como pretendia D.

Miguel: «o julgamento será secreto, e para evitar o perdão de el-rei, a execução seguir-

se-á imediatamente à sentença» (p.65). O arrastamento e o fluir do segundo acto

intensifica o drama: acompanhamos o sofrimento de Matilde ao longo daqueles 150

dias em que Gomes Freire esteve na prisão. Logo no início do acto, Manuel diz-nos que

prenderam o general «nessa madrugada» (p.79); mais adiante, Sousa Falcão informa

Matilde de que «só ao fim de seis dias» (p.111) o general teve dinheiro para comer.

Depois da entrevista com o principal Sousa, Matilde lamenta-se: «Há quatro dias que

não me deito e que não sinto, na minha, qualquer mão amiga» (p. 130). A praga que

roga ao prelado coincide com o dia de execução de Gomes Freire: «hoje, 18 de Outubro

de 1817» (p. 129).

a) tempo histórico: século XIX

b) tempo da escrita: 1961, época dos conflitos entre a oposição e o regime salazarista

c) tempo da representação: 1h30m/2h

d) tempo da acção dramática: a acção está concentrada em 2 dias

e) tempo da narração: informações respeitantes a eventos não dramatizados, ocorridos

no passado, mas importantes para o desenrolar da acção

Não nos esqueçamos do tempo em que esta peça remonta de uma forma metafórica:

Estado Novo.

LINGUAGEM E ESTILO

Linguagem

- natural, viva e maleável, utilizada como marca caracterizadora e individualizadora de

algumas das personagens

- uso de frases em latim com conotação irónica, por aparecerem no momento da

condenação e da execução

- frases incompletas por hesitação ou interrupção

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- marcas características do discurso oral

- recurso frequente à ironia e sarcasmo

Recursos estilísticos: enorme variedade (tomar especial atenção à ironia)

Funções da linguagem: apelativa (frase imperativa); informativa (frase declarativa);

emotiva [frase exclamativa, reticências, anacoluto (frases interrompidas)];

metalinguística

Marcas da linguagem e estilo: provérbios, expressões populares, frases sentenciosas

Personagens

GOMES FREIRE: protagonista, embora nunca

apareça é evocado através da esperança do povo, das

perseguições dos governadores e da revolta da sua

mulher e amigos. É acusado de ser o grão-mestre da

maçonaria, estrangeirado, soldado brilhante,

idolatrado pelo povo. Acredita na justiça e luta pela

liberdade. É apresentado como o defensor do povo

oprimido; o herói (no entanto, ele acaba como o anti-

herói, o herói falhado); símbolo de esperança de

liberdade

D. MIGUEL FORJAZ: primo de Gomes Freire, assustado com as

transformações que não deseja, corrompido pelo poder, vingativo, frio e

calculista. prepotente; autoritário; servil (porque se rebaixa aos outros);

PRINCIPAL SOUSA: defende o obscurantismo, é deformado pelo

fanatismo religioso; desonesto, corrompido pelo poder eclesiástico, odeia

os franceses

BERESFORD: cinismo em relação aos portugueses, a Portugal

e à sua situação; oportunista; autoritário; mas é bom militar;

preocupa-se somente com a sua carreira e com dinheiro; ainda

consegue ser minimamente franco e honesto, pois tem a

coragem de dizer o que realmente quer, ao contrário dos dois

governadores portugueses. É poderoso, interesseiro, calculista,

trocista, sarcástico

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Sebenta Português e Hypno&spaço

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VICENTE: sarcástico, demagogo, falso humanista, movido pelo interesse da

recompensa material, hipócrita, despreza a sua origem e o seu passado; traidor;

desleal; acaba por ser um delator que age dessa maneira porque está revoltado com a

sua condição social (só desse modo pode ascender socialmente).

MANUEL: denuncia a opressão a que o povo está sujeito. É o mais consciente dos

populares; é corajoso.

MATILDE DE MELO: corajosa, exprime romanticamente o seu amor,

reage violentamente perante o ódio e as injustiças, sincera, ora desanima,

ora se enfurece, ora se revolta, mas luta sempre. Representa uma denúncia

da hipocrisia do mundo e dos interesses que se instalam em volta do

poder (faceta/discurso social); por outro lado, apresenta-se como mulher

dedicada de Gomes Freire, que, numa situação crítica como esta, tem

discursos tanto marcados pelo amor, como pelo ódio.

SOUSA FALCÃO: inseparável amigo, sofre junto de Matilde,

assume as mesmas ideias que Gomes Freire, mas não teve a

coragem do general. Representa a amizade e a fidelidade; é o

único amigo de Gomes Freire de Andrade que aparece na peça; ele

representa os poucos amigos que são capazes de lutar por uma

causa e por um amigo nos momentos difíceis.

Frei Diogo: homem sério; representante do clero; honesto – é o contraposto do

Principal Sousa.

Delatores: mesquinhos; oportunistas; hipócritas.

MIGUEL FORJAZ, BERESFORD e PRINCIPAL SOUSA perseguem, prendem e

mandam executar o General e restantes conspiradores na fogueira. Para eles, a

execução à noite, constituía uma forma de avisar e dissuadir os outros revoltosos, mas

para MATILDE era uma luz a seguir na luta pela liberdade.