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Sem título-1...Os aliados de Atenas pagavam um tributo (phóros) com alíquotas e base de cálculo que variavam na razão da riqueza do sujeito passivo. O resultado era deposi-tado

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Brasília • ano 36 • nº 142abril/junho – 1999

Revista deInformaçãoLegislativa

Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal

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Revista deInformaçãoLegislativaFUNDADORES

Senador Auro Moura AndradePresidente do Senado Federal – 1961-1967Isaac BrownSecretário-Geral da Presidência – 1946-1967Leyla Castello Branco RangelDiretora – 1964-1988

ISSN 0034-835xPublicação trimestral daSubsecretaria de Edições Técnicas

Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três PoderesCEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (061) 311-3575, 311-3576 e 311-3579Fax: (061) 311-4258. E-Mail: [email protected]

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha Neto

REVISÃO DE ORIGINAIS: Angelina Almeida Silva, Bernadete Aparecida de Carvalho, DalcileneRocha da Silva Furtado e Roberta Negromonte Vasconcelos

REVISÃO DE PROVAS: Marcelle Carvalho Dela Bianca, Maria de Jesus Pimentel e TelianaMaria Lopes Bezerra

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: João Emílio Caram Rohlfs, Lizandra Nunes M. da Costa e MariaHelena Neves de Moraes

IMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

CAPA: Paulo Cervinho e Cícero Bezerra

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. - -Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria deEdições Técnicas, 1964– .v.Trimestral.Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº 11-

33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela Subsecretariade Edições Técnicas.

1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretariade Edições Técnicas.

CDD 340.05CDU 34(05)

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte destapublicação será permitida com a prévia permissão escrita do Editor.

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Revista deInformaçãoLegislativaBrasília · ano 36 · nº 142 · abril/junho · 1999

Notas sobre o Direito Tributário na Grécia Clássica 5

A proteção da propriedade intelectual dos programas decomputador 9

Planos e seguros privados de assistência à saúde:inconstitucionalidades da Lei nº 9.656/98 17

Anotações à lei nº 9.800/99 (que permite às partes autilização de sistema de transmissão de dados para aprática de atos processuais) 23

Direito de integração, internacionalização da justiça eduas palavras sobre o Mercosul 27

A problemática da constituição dirigente: algumasconsiderações sobre o caso brasileiro 35

Os direitos do homem e a condição humana no pensa-mento de Hannah Arendt 53

Processo de execução por quantia certa 65

As Instituições Financeiras no Direito pátrio: definiçãoe caracterização de atividade própria ou exclusiva 75

Questões controvertidas: da resistência e da desobedi-ência em face do flagrante delito facultativo e dofavorecimento pessoal na prisão em domicílio 85

Limites ao exercício da advocacia por juízes leigos dosJuizados Especiais – ensaio de uma interpretação doart. 7º, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95 99

Algumas questões objetivas sobre Ação Direta deInconstitucionalidade 111

A pessoa jurídica de direito público e a autoridadecoatora no mandado de segurança 121

Arnaldo Moraes Godoy

Gerson dos Santos Sicca

Frank Larrúbia Shih

Maria da Penha Gomes Fontinele

Carlos Fernando Mathias deSouza

Gilberto Bercovici

Jete Jane Fiorati

Ricardo Perlingeiro Mendes daSilva

Leonardo Henrique M. M.Oliveira

Marisa Helena D’Arbo Alves deFreitas e Carlos Maria Gambaro

Yuri Grossi Magadan e DaniloAlejandro Mognoni Costalunga

Carlos Antonio de Almeida Melo

Marlon Alberto Weichert

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Maria Coeli Simões Pires

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes

Maria Elizabeth GuimarãesTeixeira Rocha

Jairo Gilberto Schäfer

Carlos Eduardo Caputo Bastos eGustavo Henrique Caputo Bastos

José Matias Pereira

Maurinho Luiz dos Santos et ali.

Luiz Olavo Baptista

Anna Candida da Cunha Ferraz

Luiz Fernando de Mello Perezino

Joaquim B. Barbosa Gomes

Mônica Jacqueline Sifuentes

Angela Cristina Pelicioli

Roberto Amaral

Autonomia municipal no Estado brasileiro 143

Os limites do poder fiscalizador do Tribunal de Contasdo Estado 167

Limitação dos mandatos legislativos: uma nova versãodo contrato social 191

As garantias dos direitos fundamentais, inclusive asjudiciais, nos países do Mercosul 207

Os modelos de integração européia e do Mercosul: examedas formas de produção e incorporação normativa 221

Repensando a administração pública: o futuro doEstado de bem-estar 239

Contribuição de melhoria: o desuso de um tributo justopara os municípios 251

Aplicação do direito estrangeiro pelo juiz brasileiro 267

Notas sobre o controle preventivo de constitucionali-dade 279

Crédito extraordinário: discussão sobre tramitação eforma de operacionalização 297

Discriminação racial e princípio constitucional daigualdade 307

O Poder Judiciário no Brasil e em Portugal: reflexões eperspectivas 325

A impossibilidade da terceirização da cobrança dadívida ativa 341

Civilização e barbárie (ou ensaio sobre a nova ordemmundial) 347

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1. Introdução

Os gregos desconheciam categoriascontemporâneas de Direito Tributário, nãoalcançavam as idéias de tributo, de obriga-ção tributária, de crédito tributário, delançamento, de compensação. Conquantogerissem intuitivamente a máquina tributá-ria, não havia distinção precisa entreimposto, taxa, contribuição, não obstantepercebam-se receitas originárias e deriva-das, como veremos.

Tão-somente pode-se imputar aos roma-nos um ensaio de técnica de tributação, apropósito de impostos diretos como acapitatio e a lustralis conlatio e indiretos, essesúltimos inúmeros, incidindo sobre minas,sal, operações aduaneiras, além de bizarrasimposições, sobre janelas e ar (vectigal aerum),portas (ostiarum), colunas (columnarium),telhas, chaminés, fumaças, mictórios,cloacas.

Essa suposta ausência de base teóricados gregos (em matéria tributária) é umpouco paradoxal. Embora tenham os gregoslançado as bases da política, da democracia,da filosofia, do teatro, da retórica, seu gênioabstrato não alcançou formulações tributá-rias mais precisas. Mas as cidades-estadolançaram e cobraram as mais variadas

Notas sobre o Direito Tributário na GréciaClássica

Arnaldo Moraes Godoy

Arnaldo Moraes Godoy é Procurador daFazenda Nacional, especialista em Filosofia pelaUel – Londrina, cursou o Internacional BusinessProgram da Universidade de Miami – FLA –USA e é mestrando em Filosofia do Direito naPontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Sumário1. Introdução. 2. Da necessidade de recur-

sos. 3. Das exações fiscais. 4. A AdministraçãoTributária. 5. Conclusões.

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exações e, tomando-se Atenas como para-digma (dada uma relativa copiosidade defontes indiretas), tem-se um panorama doDireito Tributário da Grécia Clássica. É esseo escopo do presente artigo.

2. Da necessidade de recursosAtenas precisava alocar recursos para

pagar o pessoal civil, as inúmeras obraspúblicas, o Exército, os cultos, as festas, aassistência aos necessitados. Um quasepermanente estado de guerra, sobremodo noperíodo de maior penetração comercial nosmares Jônio e Egeu, exigia grandes somasem face de tantas despesas extraordinárias.

Os cofres públicos estipendiavam osparticipantes das Assembléias, os membrosdos tribunais, os custos do Areópago, doTribunal dos Éfetas, dos Heliastas, esseúltimo mais popular e democrático, commembros sorteados entre os cidadãos. Haviatambém gastos com embaixadores, escribas,policiais, escravos do Estado. Há quem tenhaafirmado que, no tempo de Péricles, haviamais de dez mil funcionários públicos. Odomínio dos mares exigia uma frota perma-nente, além de exército estável, que, portanto,consumia também em tempos de paz. Opatriotismo da vida pública fomentavacultos, procissões, certames, concursos,competições dramáticas, disputas musicais,torneios atléticos. O poder público subven-cionava os necessitados, distribuindoentradas para as peças teatrais, o chamadoingresso teórico . Gastava-se com caridade,os órfãos viviam do Estado. Gastava-se comobras portentosas, a exemplo do Partenon,símbolo mais acabado da superioridadeática. Pagavam-se indenizações: misthoí(prestação única) e katástasis (de tratosucessivo). Pagavam-se também os Epístataitôn demosíon érgon, fiscais que supervisio-navam os trabalhos públicos.

3. Das exações fiscaisAtenas tinha receitas originárias (que

não eram impositivas) na qualidade de sujeito

de direito privado, a propósito das receitasdas minas de prata, a exemplo da mina deLáurion, pródiga nos tempos de Temístocles.

No que tange às receitas derivadas, umaalíquota de 2 % ad valorem incidia sobreimportações e exportações, à guisa dedireitos portuários (elliménion). O desfavore-cimento da exportação aponta para negaçãoempírica da extrafiscalidade. Já não se diz omesmo da parafiscalidade, em virtude devalores arrecadados com custas judiciárias,multas, emolumentos. O confisco de bensera penalidade acessória que oxigenava ascontas públicas.

Os aliados de Atenas pagavam umtributo (phóros) com alíquotas e base decálculo que variavam na razão da riquezado sujeito passivo. O resultado era deposi-tado no templo de Apolo, em Delfos, cujasruínas atestam a opulência do poderioateniense.

Os cidadãos contribuíam para a man-tença do Estado, mediante doações voluntá-rias (epidóseis), cuja natureza não se afinaao conceito de tributo, de nosso sistema,como consignado no artigo 3º do CódigoTributário Nacional.

Havia também as liturgias (leitourgíai)pelas quais o Estado transferia aos parti-culares o ônus da manutenção das cerimô-nias cívicas e religiosas. Assim, temos acorégia (chorégia), a ginasiarquia (gymnasiar-chía), a hestíase (hestíasis) e a trierarquia (tri-erarchía). A primeira custeava os festivaisdramáticos, a segunda, as corridas comtochas dos jogos panatenéios, a terceira, osbanquetes religiosos e a última, a equipagemdas tirremes.

Durante a guerra, um imposto especialincidia sobre o capital (eisphorá), fixadopelos estrategos, que tinham competênciaem assuntos bélicos.

4. A Administração TributáriaOs helenótamos recebiam os tributos dos

aliados, quando pagos atempadamente. Oatraso suscitava a ação dos coletores(eklogéis), que eram acompanhados por

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soldados. Os poletas (poletaí) eram autori-zados a arrendar os bens públicos, adjudi-cando os valores pagos pelos rendeiros (té-lonai).

As multas eram recebidas pelos práctores(práktores). Os apodectas (apódekai) liquida-vam os empenhos, pagando aos credores doEstado.

O tesouro arrecadado era depositado noPartenon. No século IV, os ateniensestinham um supervisor geral de finanças, oho epí tê deoikései.

5. Conclusões

Aparentemente não há racionalidade nomodelo tributário helênico, que não alcan-çou objetivamente patrimônio, renda, servi-ços. Verifica-se uma prática intuitiva. Nãohá gritantes problemas de aceitação (excetonas imposições de guerra, bem entendido),o que indica provável sintonia entrearrecadação e despesa, embora convém quese lembre tratar-se de uma sociedadeescravocrata. Mesmo na época dos tiranos(cujo conceito diverge do sentido modernoda expressão), não há claras referências aresistências a tributação excessiva. Oequilíbrio contábil entre entrada e saídaparece informar à essência do modelotributário ateniense. E, a adotarmos umaposição ciceroniana (historia magistra vitaest), esse equilíbrio faz as vezes de lição dahistória, um exemplo a ser seguido.

Bibliografia

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Referências bibliográficas conforme original.

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1. Os debates doutrinários acerca daproteção jurídica dos softwares

1.1. Introdução

A proteção jurídica do software é temarelativamente recente, demandando, emvista disso, uma grande necessidade deaprofundar sua análise. A importânciaeconômica que o programa de computadoradquiriu mostra a concorrência cada vezmais acirrada em torno da propriedadeintelectual, fonte primordial de poder nostempos atuais. Aliado a esse fato, nota-se atendência à uniformização das legislaçõesreferentes à proteção do software, principal-mente devido à pressão imposta pelos EUA,tendo nítido interesse de proteger o interessede suas indústrias, garantindo a essas 1) ummercado uniformizado, dotado de uma certaprevisibilidade, e 2) a supremacia nocontrole da fabricação de programas emanutenção do privilégio do saber científico.

Como se nota, o tema envolve as pró-prias possibilidades de desenvolvimento

A proteção da propriedade intelectual dosprogramas de computador

Gerson dos Santos Sicca

Gerson dos Santos Sicca é Advogado. Mes-trando em Instituições Jurídico-Políticas pelaUFSC. Professor da Universidade do Vale doItajaí (UNIVALI) e da Universidade do Sul deSanta Catarina (UNISUL). Membro da Comis-são de Direitos Humanos da OAB/SC.

Sumário1. Os debates doutrinários acerca da prote-

ção jurídica dos softwares. 1.1. Introdução. 1.2.Caracterização do software. 1.3. A proteção jurí-dica do programa de computador. 2. A prote-ção jurídica do software no Brasil. 2.1. DireitosAutorais e a Lei nº 7.646/87. 2.2. A Lei nº 9.609 ea nova regulamentação da propriedade intelec-tual dos programas de computador. 3. Consi-derações finais.

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econômico, trazendo à baila problemasrelativos à abertura de mercado propostaatualmente.

1.2. A caracterização do software

Primeiramente, para que se possa confi-gurar a proteção jurídica do programa decomputador, é necessário compreender doque se trata. Para a Organização Mundialde Propriedade Industrial (OMPI), segundoclassificação criada em 1977, o software podeser considerado em três categorias, a saber:

“a) Programa de computador é oconjunto de instruções capaz, quandoincorporado num veículo legível pelamáquina, de fazer com que umamáquina, que disponha de capaci-dade para processar informações,indique, desempenhe ou execute umaparticular função, tarefa ou resultado.

b) Descrição do programa é umaapresentação completa de um pro-cesso, expressa por palavras, esque-mas ou de outro modo, suficiente-mente pormenorizada para determi-nar o conjunto de instruções queconstitui o programa de computadorcorrespondente.

c) Material de apoio é qualquermaterial, para além do programa decomputador e da descrição do pro-grama, preparado para ajudar acompreensão ou a aplicação de umprograma de computador, como, porexemplo, as descrições dos e asinstruções para usuários”1.

Já a Lei nº 7.646, de 18 de dezembro de1987, que trata da proteção da propriedadeintelectual sobre programas de computador,conceitua, no seu art. 1º, parágrafo único, oprograma de computador:

“Programa de computador é aexpressão de um conjunto organizadode instruções em linguagem naturalou codificada, contida em suportefísico de qualquer natureza, deemprego necessário em máquinasautomáticas de tratamento da infor-

mação, dispositivos, instrumentos ouequipamentos periféricos, baseadosem técnica digital, para fazê-losfuncionar de modo e para fins deter-minados”.

A Lei nº 9.609/98, que dá nova regula-mentação à propriedade intelectual dosprogramas de computador, manteve amesma definição dada pela Lei nº 7.646/87.

Analisando as definições de “programade computador” dadas pela OMPI e pelalegislação brasileira, nota-se que, para a suacaracterização, é essencial um corpo deinstruções dado à máquina para que realizedeterminada função e esteja contido em umsuporte físico, seja qual for. De acordo comGilberto Ulhoa Canto2, dois aspectoscaracterizam o software: um material, poisse incorpora em determinados suportes, eoutro imaterial, visto ser o programa umtrabalho de criação.

O programa parte de uma idéia base,denominada algoritmo, expressa pelacombinação dos números 0 e 13, e que por sisó não caracteriza objeto de proteçãojurídica, visto ser essencial para a realizaçãode qualquer software. A proteção, evidente-mente, para que tenha sentido, deve confi-gurar criação nova, original.

Caracteriza-se o software por ser um bemimaterial4, não se caracterizando pelo seusuporte físico, mas pela combinação quegerou a aptidão para realizar determinadatarefa ou função, fruto de uma idéia original.No dizer de Ascensão, “o programa é umacoisa incorpórea enquadrada na categoriados bens intelectuais”. Já para AdrianaCamargo Rodrigues5, o software tem naturezahíbrida devido à exigência de um suportefísico para as instruções dadas à máquina,sendo esse um problema de ordem extrínsecapara o estudo da proteção jurídica dosoftware. Importante ressaltar que, ao ladodessa questão mencionada pela autora, elecoloca como problema de ordem intrínsecaa disparidade econômica entre os produ-tores de software, já que, por exemplo, apirataria pode ser muito mais prejudicial

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para uma pequena empresa do que para umagrande corporação do ramo da informática.

1.3. A proteção jurídica do programa decomputador

A proteção jurídica do software tem sidobuscada de diversas formas, sendo que amais utilizada, como veremos adiante, é ada aplicação das normas atinentes aosdireitos autorais.

Procurou-se garantir a proteção por meioda propriedade de idéias, o que, como afirmaAscensão, não é possível, tendo em vista queas idéias são patrimônio da humanidade ea exclusividade de idéias fere o princípiobásico que estabelece a liberdade dessas.Além do mais, a idéia básica do programa élivre; no dizer do autor citado, “só a suacorporificação num programa mereceriatutela”6.

Outra tentativa de proteção, segundoAscensão7, foi por meio da patente deinvenção. Poderia o software ser enquadradoentre as patentes de processo, cumprindoainda as exigências de originalidade enovidade. Todavia, o programa de compu-tador não cumpriria o requisito da industria-bilidade, isto é, o programa não é o próprioprocesso produtivo, que é realizado pelamáquina e não por aquele.

Entretanto, embora a Convenção deMunique de 1973 tenha vedado o patentea-mento de softwares, e, no caso brasileiro, aLei nº 5.772/71, no seu art. 9º, e a Lei nº9.279/96, no seu art. 10, não admitam aspatentes de programas de computador, ajurisprudência estrangeira tem admitido ahipótese, como nos informa Marcelo Varella8.De acordo com esse autor, várias decisõesdos Tribunais dos EUA reconhecem apatente de programas de computador, o querepresenta uma tentativa daquele país deproteger seus interesses. Além do mais,levanta-se a tese da admissibilidade dapatente do programa contido em um suportefísico, como um chip semicondutor ou umdisquete, protegendo-se não somente oprograma, como bem imaterial, mas este

considerado conjuntamente com seu aspec-to material, evidenciando a hibridez dosprogramas de computador. Segundo Varella9,o que se pretende é contornar as exigênciasdo ordenamento jurídico, “garantindo aosprogramas de computador os abrangentesdireitos da lei de patentes”.

A concorrência desleal também foiinvocada para a proteção do software.Todavia, mostrou-se frágil tendo em vistaque não protege o direito do programador10,mas apenas as práticas ilegítimas praticadaspor seus concorrentes.

O mecanismo do segredo de negócio, quetem por objetivo impedir que a criaçãochegue até a concorrência, também tem sidoinvocado para a proteção da propriedadeintelectual do programador. Entretanto, osegredo de negócio não é o meio mais aptopara a proteção, visto a dificuldade em semanter o segredo sobre a estrutura doprograma. Apesar das dificuldades, essemecanismo é plenamente aceito pelosTribunais americanos11.

Em meio a tantas tentativas de proteçãoda propriedade intelectual do programador,foi o programa de computador consideradocomo objeto próprio do direito autoral. Paratanto, reconhece-se o software como umaobra intelectual de expressão lingüística,devendo manifestar um certo nível decriatividade, um trabalho que, no dizer deOrlando Gomes12, “é atividade criativa dequem o executa e que o seu resultado é umaobra (serviço) original, que exige esforçointelectual típico da personalidade do seucriador”. Nesse sentido, quando a criativi-dade for mínima ou a expressão utilizadaseja a única possível para a manifestaçãoda idéia, não se admite a proteção por meiodos direitos autorais13.

A tese dos direitos autorais tem sidoadmitida em quase todos os países. NaFrança14, o “Tribunal de Grande Instancede Paris”, ao julgar o caso Apple ComputerInc. vs. S.A.R.L. Segimex, aplicou o regime dosdireitos autorais, entendendo que, emboraos programas não sejam perceptíveis ao

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sentido humano, tornam-se acessíveis nomomento em que são transcritos em supor-tes. A questão foi posta fora de discussãoem 1985, quando foi adicionada à lei dosdireitos autorais a expressão software comoobjeto de proteção (Lei nº 8.560, de 3-9-1985)15.

Na Alemanha, Orlando Gomes16 citadecisão do Tribunal de Munique de dezem-bro de 1982, prolatada em ação movida poruma empresa americana contra uma empre-sa alemã que estaria utilizando um de seusprogramas. O Tribunal entendeu que essesprogramas devem ser entendidos comoobras literárias e representações de naturezacientífica ou técnica, estando pois sob oregime dos direitos autorais. Além disso, opróprio Ministério Federal da Justiça adotouesse entendimento em resposta aos disposi-tivos-padrão do Bureau Internacional daOrganização Mundial da PropriedadeIndustrial (WIPO), bem como o TribunalDistrital de Kassel, em sentença de 21 de maiode 1981, e o Tribunal Distrital de Mosbach,em sentença de 13 de julho de 198217.

No caso alemão, entretanto, verificou-sedivergência jurisprudencial, no momentoem que o Tribunal Distrital de Manheim, emsentença de 12 de junho de 1981, decidiuque os programas de computador nãopodem ter a proteção nos termos dos direitosautorais pelo fato de não possuírem subs-tância intelectual-estética18.

Na Inglaterra, foi instituída uma Comis-são por ocasião da reforma do Copyright Actde 1956, que ao final entendeu não sernecessária legislação especial para aproteção dos programas de computador,visto que a expressão “trabalhos literários”seria capaz de abranger aqueles. Mesmoassim, em 22-02-85, a Câmara dos Comunscolocou o software sob a proteção dos direitosautorais19.

Nos Estados Unidos, o Copyright Act de19-10-76 exige, para que um trabalho tenhaa proteção do direito autoral, dois requisitos:1) seja um trabalho original; 2) conste de ummeio de expressão tangível20. Essa legislaçãogarante ao titular do direito a exclusividade

na reprodução e distribuição, podendoainda dispor do mesmo. Contudo, essalegislação não solucionou diversos proble-mas decorrentes dos avanços tecnológicos,o que levou o Congresso a criar uma Comis-são de Novas Utilizações Tecnológicas deObras Protegidas pelo Direito Autoral(CONTU). Essa Comissão sugeriu que a leifosse alterada a fim de tornar explícito queos programas de computador estão sob aproteção do direito autoral, o que ocorreucom a Lei Pública nº 96-517, datada de 12de dezembro de 198021, em que se limitou osdireitos de exclusividade do titular a fim depermitir que os possuidores de cópias dosprogramas possam adaptá-las para o seuuso e, no parágrafo 101, adotou-se umadefinição de programa de computador22.Portanto, nos EUA adota-se a tese daproteção da propriedade intelectual pormeio dos direitos autorais, embora, comovimos anteriormente, os Tribunais daquelepaís estejam admitindo a patente de progra-mas de computador, visando maior proteçãoda propriedade intelectual.

Cabe salientar ainda que, conformeobserva Arnoldo Wald23, nos EUA, a prote-ção do software por meio do copyrightabrange qualquer tipo daquele, em qualquercódigo e modalidade de expressão, além detodas as formas derivadas do programaoriginal. A doutrina ainda menciona estaremprotegidos pelo copyright os manuais e adocumentação que acompanham o software.

2. A proteção jurídica dosoftware no Brasil

2.1. Direitos autorais e a Lei nº 7.646/87

O tema é relativamente recente naliteratura jurídica brasileira, tendo em vistatratar-se de problema decorrente do rápidoavanço tecnológico das duas últimasdécadas.

Inicialmente, não havia legislação especí-fica regulando a matéria. Assim, a doutrina,majoritariamente, procurou enquadrar aproteção da propriedade intelectual do

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programador na disciplina dos direitosautorais, nos termos da Lei nº 5.988/73,vendo o programa de computador comouma criação intelectual exteriorizada pormeio de expressão tangível. Nessa linha, Joséde Oliveira Ascensão24, por exemplo, enten-dia que o art. 6º da Lei dos Direitos Autorais,que tratava das obras a serem abrigadaspela lei, continha enumeração exemplifica-tiva e nada impedia que os softwares pudes-sem enquadrar-se na proteção. Outros,como Carlos Augusto da Silveira Lobo25,entendiam que os programas de compu-tador se enquadravam na categoria “escri-tos” empregada nas Convenções de Berna ede Genebra. Dessa maneira, a doutrinaprocurava evitar o entendimento de quehaveria uma lacuna no direito no que serefere à proteção jurídica do software.

Em 1987, entretanto, surge uma legisla-ção específica acerca do tema, acabando comas discussões sobre a admissibilidade ounão dos regimes autorais para a proteçãodos programas de computador, visto o art. 2ºda Lei nº 7.646, de 18 de dezembro de 1987,dispor expressamente que se aplica ao casoa Lei dos Direitos Autorais, com as modifi-cações dadas por aquela legislação.

Ernesto Rengifo Garcia26 menciona queem 1984 um informe do Departamento deComércio dos EUA intitulado Competitiveassessment of the U.S. software sugeria queaquele país pressionasse os demais paísespara a adoção do regime dos direitosautorais para a proteção dos direitosautorais. Menciona ainda que alguns paísesreformaram suas leis a fim de dar umcapítulo especial para a proteção do software(China, Espanha, França e Japão), enquantooutros preferiram simplesmente adicionarà legislação dos direitos autorais existentea menção expressa dos programas decomputador como objeto de proteção, dandoainda algumas normas específicas (Aus-trália, Canadá, Alemanha, Reino Unido eoutros). Já o Brasil é visto como um caso suigeneris, pelo fato de haver editado umaregulação extensa sobre a proteção do

programa de computador, incluindo osprincípios do direito autoral aplicáveis aocaso.

Essa regulação extensa demonstrava, naverdade, a consagração do entendimento deque a proteção mais eficaz se dá pelosdireitos autorais, embora o legislador tenhaentendido, corretamente, ser necessária umalegislação especial que tratasse de pontosque são específicos da proteção do softwaree que poderiam apresentar dificuldades nasua solução pela via dos direitos autoraispura e simplesmente.

A proteção dos programas de compu-tador ficou garantida pelo prazo de vinte ecinco anos (art. 3º), independente de registro.Todavia, para que um programa possa sercomercializado, é necessário o cadastro naSecretaria Especial de Informática (art. 8º).

Outro ponto importante da Lei era aexclusão expressa de hipóteses que poderi-am ser reclamadas como de violação dosdireitos autorais. Dessa forma, admitia-sereprodução de cópia legitimamente adqui-rida, desde que indispensável à utilizaçãoadequada do programa, a citação parcialpara fins didáticos, citando o autor e oprograma a que se refere, e a integração deum programa, desde que se mantivessemsuas características essenciais, a um sistemaaplicativo ou operacional, tecnicamenteindispensável às necessidades do usuário,sendo de uso exclusivo de quem a promoveu.Além disso, não constitui ofensa aos direitosautorais a ocorrência de semelhança entreprogramas, um deles preexistente, quandose der por força das características funcio-nais de sua aplicação, da observância depreceitos legais, regulamentares ou denormas técnicas, ou ainda de limitação deforma alternativa para a sua expressão.

A Lei nº 7.646/87 manifestava fortecaráter protecionista ao condicionar acomercialização de programa desenvolvidopor empresas estrangeiras à inexistência deprograma similar desenvolvido por empre-sa nacional (art. 8º, § 2º), além de seremestabelecidas diversas exigências para que

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as empresas oriundas de outros paísespossam comercializar seus programas(art. 28-29).

Também foram estabelecidas regras deproteção ao consumidor, estabelecendo-seque a retirada do programa do mercadoantes do prazo de validade técnica gera parao consumidor um direito a indenização (art.25), além da necessidade de que a emba-lagem do programa contenha o nº de ordemdo cadastro e o prazo de validade técnicada versão comercializada (art. 23), além daobrigatoriedade de garantir-se assistênciatécnica (art. 24, § 2º).

Já o art. 5º da Lei nº 7.646/87 estabeleciaque pertenciam ao empregador ou contra-tador os direitos relativos ao programa decomputador desenvolvido durante vínculoestatutário ou vigência de contrato desdeque a tarefa esteja prevista. Concordamosaqui com a crítica feita por Marcelo Varela27,entendendo ser a norma equivocada, poisignora a importância do programador narealização do programa. Melhor seria, econcordamos inteiramente com o colega, aestatuição da obrigatoriedade da divisãodos royalties entre empregado e empregador.

2.2. A Lei nº 9.609 e a nova regulamentaçãoda propriedade intelectual dos programas de

computador

Em 20 de fevereiro de 1998, foi pro-mulgada a Lei nº 9.609, que revogou a Leinº 7.646/87. A nova lei regulamenta amatéria em apenas 16 artigos, evitandomaiores detalhamentos, como se dava, porexemplo, às normas relativas ao registro doprograma de computador na legislaçãoanterior.

A nova lei mantém a mesma conceituaçãode programa da Lei nº 7.647, mostrandoassim a preferência em delimitar já deantemão qual o objeto de direito protegido.

Mantém, da mesma forma, a aplicaçãoda legislação dos direitos autorais (art. 2º),excluindo, para os softwares, a aplicação dasdisposições atinente aos direitos morais,garantindo, contudo, a possibilidade de o

autor reivindicar seus direitos sobre oprograma, bem como opor-se a alteraçõesnão autorizadas, “quando estas impliquemdeformação, mutilação ou outra modificaçãodo programa de computador”, que preju-diquem a honra ou reputação do autor(art. 2 º, § 1 º).

Outro dispositivo que se manteve foi orelativo à propriedade intelectual dosprogramas por parte do empregador oucontratante de serviços, desde que a ativi-dade do empregado ou contratado estejaprevista ou decorra da natureza dos encar-gos contratados. Adicionou-se também àregulamentação os órgãos públicos, paraque gozem do mesmo direito de titularidadesobre os softwares produzidos pelos servi-dores ou contratados (art. 4º, caput, da Leinº 9.609/98). A nova lei também estabeleceque, salvo estipulação em contrário, “acompensação do trabalho ou serviço pres-tado limitar-se-á à remuneração ou ao salárioconvencionado” (art. 4º, § 1º), sendo que otratamento dado à relação empregado/empregador, regulada pelo art. 4º, estende-se para bolsistas, estagiários e assemelhados(art. 4º, § 3º).

Quanto àquelas condutas que nãoconstituem ofensa aos direitos do progra-mador, a nova regulamentação, no seu art. 6ºe incisos, manteve as disposições da lei an-terior, contidas no art. 7º. A Lei nº 9.609/98deixou expresso, contudo, ser admissívelapenas uma cópia do programa para asalvaguarda ou armazenamento eletrônico(art. 6º, I).

A proteção dos direitos do autor, assimcomo na lei anterior, independe de registroprévio (art. 2º, § 3º).

As alterações mais importantes, e que sãoos maiores motivos para se ter uma nova leide proteção da propriedade intelectual, sãoo aumento do prazo de proteção e a extinçãodo exame de similaridade.

O prazo de proteção aumentou de 25para 50 anos, procurando seguir a tendênciamundial. A meu ver, essa alteração não terámaiores efeitos, tendo em vista os rápidosavanços no mundo da informática.

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Já a verificação da inexistência deprograma nacional similar ao estrangeiro,como condição para a comercialização desteno país, prevista pelo art. 8º, § 2º, da Lei nº7.646/87, foi suprimida pela nova lei.Assim, abre-se o mercado para os progra-mas de origem externa, rompendo com aproteção dada à indústria nacional dosoftware. O que se exige agora é que o contratode licença para a comercialização doprograma de origem externa contenha,obrigatoriamente, os tributos e encargosexigíveis, a responsabilidade pelos paga-mentos e a remuneração do titular dosdireitos de programa de computador resi-dentes no exterior (art. 10, caput, da Lei nº9.609/98). Contudo, não há qualquerrestrição para o ingresso de programasestrangeiros no mercado brasileiro.

Em síntese, são esses os principaispontos da nova lei.

3. Considerações finaisA discussão sobre a natureza jurídica da

proteção da propriedade intelectual dosprogramas de computador é quase quepacífica atualmente. A grande maioria dosautores enquadram os programas de compu-tador dentro do regime dos direitos autorais.Essa orientação foi seguida pela doutrinabrasileira, pela Lei nº 7.646/87 e agora pelaLei nº 9.609/98, sendo que a legislação bra-sileira referente à matéria preocupou-se emdefinir algumas disposições específicas aosprogramas, e, no mais, continua-se apli-cando a lei dos direitos autorais.

Um breve comentário deve ser feito sobrea nova legislação. Quanto ao prazo, jáexplicitamos nosso entendimento no sentidode que a alteração provavelmente não terámaiores repercussões práticas.

No que se refere à comercialização deprogramas provindos do exterior, entende-mos não ter sido feliz a alteração dispen-sando um maior controle sobre os contratosde licença. Enquanto a lei anterior exigia, parase comercializar o software, o cadastramentona Secretaria Especial de Informática (SEI),

hoje a exigência é que os contratos dis-ponham obrigatoriamente sobre algunspontos. Todavia, isso evidentemente facilitaa existência de fraudes ou até mesmo deconcorrência desleal, visto não haver maismecanismos eficazes de proteção da produ-ção nacional de programas de computador.

Não se pode esquecer que as empresasde software brasileiras, via de regra, sofremdificuldades para manter paridade deconcorrência com as empresas estrangeiras.Assim, é essencial que o governo brasileiroreconheça essa diferença e procure garantiro desenvolvimento da tecnologia nacional,é claro, respeitando normas gerais deproteção relativas aos programas, como asrestrições à pirataria.

Deve-se ter em conta que uma grandeempresa estrangeira, com mercado em nívelmundial, pode a qualquer momento não sócopiar programas de empresas menores,sem que isso prejudique quem lesou odireito do programador, como tambémimplementar políticas de grandes reduçõesde preços, visando eliminar a concorrênciadas empresas menores, criando assim gran-des monopólios da indústria da informática.

Além disso, a manutenção do dispositivoque dá o direito sobre o programa ao patrão,prestador de serviços e órgãos públicos,quando haja cláusula prevendo a atividadedo programador ou quando seja sua tarefainerente à função, manifesta uma incoerên-cia com os princípios de preservação daatividade intelectual e o respeito à criativi-dade do programador, já que este perde todoe qualquer direito sobre sua atividade. Deve-se alterar essa orientação, exigindo aparticipação do programador na titulari-dade do programa.

Bibliografia

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BRASIL. Lei nº 7.646, de 18-12-1987. Dispõe sobrea proteção da propriedade intelectual sobre

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Notas1ASCENSÃO, José de Oliveira. Programa de

computador e Direito Autoral. In A ProteçãoJurídica Software. Rio de Janeiro: Forense, p. 52,1985.

2A Proteção Jurídica do Software. Rio de Janeiro:Forense, p. 23, 1985.

3ASCENSÃO. Ob. Cit., p. 53-54.4ARNOLDO WALD fala que a “substância

do ‘software’ é intangível, embora a suaexpressão e veiculação sejam processadas embens tangíveis”. Da natureza jurídica do software,

programas de computador e sua comer-cialização no país e dá outras providências.

_______. Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998.Dispõe sobre proteção da propriedade inte-lectual de programas de computador, suacomercialização no país, e dá outras provi-dências.

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in A Proteção Jurídica do Software. Rio de Janeiro,Forense, 1985. p. 20.

5 Proteção Jurídica do Software, in Revista deInformação Legislativa, a. 23, n. 89, p. 452, 1986. Aautora diz ainda que o software “nada mais é queuma série de instruções consubstanciadas numsuporte técnico. Assim, possui um elementoimaterial e um elemento material”.

6Ob. Cit., p. 57-58.7Ob. Cit., p. 58.8Propriedade Intelectual de Setores Emergentes.

Atlas, São Paulo, p. 208-209, 1996.9Idem, p. 209.10ASCENSÃO. Ob. Cit., p. 60.11VARELLA. Ob. Cit., p. 183.12A Proteção dos Programas de Computador,

in A Proteção Jurídica do Software. Ob. Cit., p. 2.13ASCENSÃO. Ob. Cit., p. 66.14 GOMES. Ob. Cit., p. 9.15 VARELLA. Ob. Cit., p. 186.16 GOMES. Ob. Cit., p. 10.17 ULMER, Elgen, e KOLLE, Gert. A Proteção sob

o Direito Autoral de Programas de Computador, inA Proteção Jurídica do software. Ob. Cit., p. 128-129.

18Idem, p. 130.19 WALD. Ob. Cit., p. 31.20 Idem, p. 34.21 ULMER. Ob. Cit., p. 124.22 WALD. Ob. Cit., p. 35.23 Idem, p. 37.24 Ob. Cit., p. 63.25A Proteção Jurídica dos Programas de

Computador, in A Proteção Jurídica do Software. Ob.Cit. A Convenção de Berna e a de Genebra são osmais importantes tratados sobre direitos autorais,sendo que ambas foram ratificadas pelo Brasil.

26 El software y su protección juridica. Revistadel Instituto de Ciencias Penales y Criminologicas,Bogotá, v XV, nº 50, maio/agosto 1993.

27 VARELLA. Ob. Cit., p. 215-216.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Intróito

Os planos e seguros privados de assis-tência à saúde estão agora sob a normati-zação da Lei nº 9.656, de 3-6-98, que intro-duziu profundas e expressivas mudançasno perfil contratual desse negócio jurídico,além da submissão de significativa parcelado setor empresarial à fiscalização gover-namental, alterando-lhe o regime de consti-tuição, funcionamento e extinção dasempresas que atuam no ramo.

A lei citada traz indiscutível proteção aosegurado ou beneficiário, registrando quetoda vez que o governo almeja regular o setorprivado mediante intervenção no domínioeconômico, o faz com notório desequilíbrioentre as partes, sobrecarregando uma emfavor da outra. É a política pendular a que serefere o preclaro magistrado Nagib SlaibiFilho1, em que o Legislativo edita lei muitorigorosa, depois seguida de legislaçãomenos intervencionista, para correção dasinjustiças anteriormente verificadas.

Justamente nesse aspecto, a Lei nº 9.656/98, com as alterações das medidas provisóriasposteriores2, traduz de forma pioneira umrigoroso caráter intervencionista no ramo

Planos e seguros privados de assistência àsaúde: inconstitucionalidades da Leinº 9.656/98

Frank Larrúbia Shih

Frank Larrúbia Shih é Procurador Autárqui-co Federal da Superintendência de SegurosPrivados – SUSEP. Ex-Professor da FaculdadeMoraes Júnior/RJ. Advogado no Rio de Janeiro.

Sumário1. Intróito. 2. Intervenção no domínio eco-

nômico e regulamentação: reflexões e críticassobre a Lei nº 9.656/98. 3. Inconstitucionalida-des materiais. 4. Posição da SUSEP frente aospreceitos inconstitucionais.

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especializado, em que os seus excessosadentraram as raias da inconstitucionali-dade, motivando o objeto deste breve estudo.

2. Intervenção no domínio econômico eregulamentação: reflexões e críticas

sobre a Lei nº 9.656/98A ordem econômica é fundada na valori-

zação do trabalho humano e na livreiniciativa, observado, entre outros princí-pios constitucionais, o da livre concorrência.Mas a própria Constituição condecora oEstado como agente normativo e reguladorda atividade econômica (CF, art. 174),conferindo-lhe como instrumento de ação afiscalização, que pressupõe também o poderde regulamentação. Daí a edição da Lei nº9.656/98 como expressão viva desse poder.O momento da lei (occasio legis) coincidiucom a política governamental de retraçãodo Estado na economia, afastando-se domodelo paternalista em que todas asnecessidades sociais devem ser providasgenerosamente pelo Estado 3, sobretudoquando presente um manifesto cenário defalência da previdência social, caracterizadapor exigências sociais muito acima de suaspossibilidades atuariais, como bem acen-tuado por Maria Leonor B. Jourdan4.

Referida lei deu novo trato jurídico àsempresas que operam ou venham a operarplanos ou seguros privados de assistênciaà saúde, exigindo-lhes autorização gover-namental para sua constituição e funciona-mento, além da formação de reservas técni-cas e da submissão ao regime especial defiscalização – direção fiscal, liquidação extra-judicial e procedimentos de recuperação finan-ceira –, excluído, assim, o regime falencialpara essas entidades, observados os vetoresestabelecidos pela Medida Provisória nº1.719, de 13-10-98.

Embora de lege lata, muito se debateusobre a conveniência da submissão de taisentidades (planos de saúde) ao crivo dessasexigências, como também a instituição dedois órgãos – SUSEP e Ministério da Saúde– para a fiscalização aparelhada das segu-

radoras e demais empresas, pois, apesar daprevisão de convênio com o objetivo dedefinir as respectivas atribuições (Lei cit.,art. 35-G, §§ 1º e 2º), a prática geralmenteevidencia descompasso de atuação na regu-lamentação de matérias intrinsecamenteespecíficas e complexas. A exemplo, se opróprio Judiciário, que tem suas competên-cias definidas na Lei Maior, já enfrentadiariamente vários problemas correlatos aoconflito de competência, certamente não seráo referido convênio o baluarte perfeito epreciso da definição das atividades de cadaórgão fiscalizador. Vale dizer, a duplicidadede procedimentos de fiscalização ocasionarádenodado gravame nas entidades fiscali-zadas, em prejuízo justamente do equilíbrioque se esperava para esse setor privado.

Outrossim, a instituição obrigatória doplano ou seguro-referência para os atuais efuturos consumidores, bem como a amplia-ção de cobertura assistencial compulsória(Lei cit., art. 10 e seu § 2º), não se traduz, aomeu ver, numa medida protetiva ao consu-midor. A proteção é apenas aparente. É queessa imposição legal trará conseqüênciasinevitáveis na majoração do prêmio ou dascontribuições devidas, excluindo o acessode significativa parcela de consumidores aum plano ou seguro-saúde, com a possívelperda ou redução de clientela para asempresas desse ramo, em desestímulo aocrescimento do mercado. Ou seja, a medidanão aproveita ao consumidor nem aoempresário. A despeito das críticas, melhorseria que a modalidade de contratação fossede livre negociação entre as partes, na exatamedida das possibilidades de cada uma.

Outros pontos polêmicos estão centra-dos na seara da regulamentação, tais comoa noção de carência para urgência e emer-gência, o problema fronteiriço da obrigato-riedade de cobertura para doenças mentais,o estreitamento das faixas etárias e o maispolêmico de todos, o relativo às doençaspreexistentes. Espera-se uma normatizaçãocoerente, a título de assegurar a claracompreensão sobre os normativos e aredução dos conflitos emergentes entre as

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empresas e os consumidores5. A responsa-bilidade do Poder Público, diga-se, é tambémde educar o mercado, ao invés de apenaspunir.

3. Inconstitucionalidades materiaisAo vezo da política pendular que indi-

vidualiza as legislações de natureza inter-vencionista, temos que a Lei nº 9.656/98,no afã de propiciar vantagens protetivas aoconsumidor, acabou justamente por desam-pará-lo na exata medida em que desconsi-dera e ofende a Lei Fundamental.

Nesse prisma da intangibilidade dasupremacia constitucional, merecem sériareflexão os seguintes dispositivos da Lei nº9.656/98 (com redação da MP nº 1.801-11,de 25-3-99):

Art. 9º Após decorridos cento e vin-te dias de vigência desta Lei para asoperadoras de planos e seguros deassistência à saúde e duzentos equarenta dias para as administra-doras de planos de assistência à saúdee até que sejam definidas as normasdo CNSP, as empresas de que trata oart. 1º só poderão comercializar ouoperar planos ou seguros de assistência àsaúde se estiverem provisoriamenteregistradas na SUSEP6 e com seusprodutos registrados no Ministério daSaúde, de acordo com o disposto no art.19.7

Art. 10.......................................(omissis)§ 2º As operadoras definidas nos

incisos I e II do § 1º do art. 1º oferece-rão, obrigatoriamente, a partir de 3 dedezembro de 1999, o plano ou seguro-referência de que trata este artigo atodos os seus atuais e futuros consu-midores.

Art. 35. Aplicam-se as disposiçõesdesta Lei a todos os contratos celebra-dos a partir de sua vigência, asseguradaao consumidor com contrato já em curso apossibilidade de optar pela adaptação aosistema previsto nesta Lei, observado oprazo estabelecido no § 1º.

§ 1º A adaptação aos termos destalegislação de todos os contratos celebradosanteriormente à vigência desta Lei, bemcomo daqueles celebrados entre 2 desetembro e 30 de dezembro de 1998,dar-se-á no prazo máximo de quinzemeses a partir da data da vigênciadesta Lei, sem prejuízo do disposto noart. 35-H.

Art. 35-H. A partir de 5 de junhode 1998, fica estabelecido para os con-tratos celebrados anteriormente à data devigência desta Lei que:

I, II, III e IV.................................(omissis)§ 1º Nos contratos individuais de

planos ou seguros de saúde, indepen-dentemente da data de sua celebração, epelo prazo estabelecido no § 1º do art.35, a aplicação de cláusula de reajustedas contraprestações pecuniárias,vinculadas à sinistralidade ou àvariação de custos, dependerá deprévia aprovação da SUSEP. (grifosnossos)

Os dispositivos sub oculi têm um núcleocomum de afetação direta sobre os contratosjá consumados e com suas execuções emcurso, impondo-lhes profunda alteração noperfil das condições anteriormente contra-tadas e dos critérios dos reajustes dascontraprestações pecuniárias. Não é possí-vel a dedução de nenhuma dúvida: osdispositivos precitados – se não foremalterados – atingem frontalmente as relaçõesjurídicas já estabelecidas de maneiradefinitiva. É dizer, a lei nova é retroativa eatinge em cheio o ato jurídico perfeito.

Mas o ato jurídico perfeito, assim enten-dido o que sob regime da lei antiga se tornouapto para produzir os seus efeitos pelaverificação de todos os requisitos a issoindispensável8, mesmo quando possa estarsujeito a termo ou condição9, constituigarantia constitucional de segurança dasrelações jurídicas, sendo inconstitucionalqualquer lei que venha prejudicá-lo (CF, art.5º, XXXVI).

A propósito, urge trazer à colação asdensas considerações exaradas em tom de

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advertência pelo Plenário do SupremoTribunal Federal na ADIn 493-0-DF, ocasiãoem que o emérito Ministro Moreira Alvesacentuou:

“Se a lei alcançar os efeitos futurosde contratos celebrados anteriormentea ela, será essa lei retroativa (retroati-vidade mínima), porque vai interferirna causa, que é um ato ou fato jáocorrido no passado. O disposto noart. 5º, XXXVI, da Constituição Federalse aplica a toda e qualquer lei infra-constitucional, sem qualquer distin-ção entre lei de direito público e lei dedireito privado, ou entre lei de ordempública e lei dispositiva. Precedentedo S.T.F.”

E continua:“Também ofendem o ato jurídico

perfeito os dispositivos impugnadosque alteram o critério de reajuste dasprestações nos contratos já celebradospelo sistema do Plano de Equivalênciasalarial por categoria profissional”.

A ilação resultante é que os contratossubmetem-se, quanto ao seu estatuto deregência, ao ordenamento normativo vigenteà época de sua celebração. Mesmos os efeitosfuturos oriundos de contratos anteriormentecelebrados não se expõem ao domínionormativo de leis supervenientes. Asconseqüências jurídicas que emergem de umajuste negocial válido são regidas pelalegislação em vigor no momento de suapactuação. Os contratos, que se qualificamcomo atos jurídicos perfeitos, acham-seprotegidos, em sua integralidade, inclusivequanto aos efeitos futuros, pela norma desalvaguarda insculpida no art. 5º, XXXVI,da Carta Política de 1988. Essa é a atualorientação do STF sobre a matéria: RE201.017, Rel. Min. Carlos Velloso; AGRRE199.636, Rel. Min. Maurício Corrêa; RE205.249, Rel. Min. Néri da Silveira; RE199.321, Rel. Min. Sydney Sanches; AGRAG158.973, Rel. Min. Ilmar Galvão, e maisrecente, AGRRE 221.663, Rel. Min. SydneySanches (D.J., 13-10-98, p. 33).

Posto isso, diante desse autorizadoentendimento do STF, resta irrefragável quesobre os dispositivos citados da Lei nº9.656/98 paira a espada de Dâmocles, aensejar o controle abstrato e concreto deconstitucionalidade, volvendo a delicadaquestão da extensão da declaração denulidade10.

4. Posição da SUSEP frente aospreceitos inconstitucionais

Qual será a postura administrativa daSUSEP frente aos preceitos inconstitucio-nais? A indagação não é meramente acadê-mica, pois, uma vez que a Autarquia dispõede poder para aplicação das penalidadescabíveis (Lei cit., art. 5º, III), presente a poten-cialidade de punir-se a entidade fiscalizadajustamente pelo descumprimento do preceitolegal acoimado de inconstitucional.

O órgão jurídico da Autarquia (PRGER)tem adotado, na dicção da ilustrada maioriade seus procuradores, o raciocínio de quemilita em favor da lei a presunção de consti-tucionalidade, devendo a Administraçãoobservar e aplicá-la em retitude ao princípioda legalidade que norteia a atividadeadministrativa, competindo ao Judiciário,no controle abstrato e concreto, a declaraçãode inconstitucionalidade de leis e atosnormativos. Exemplo dessa postura, que temressonância na doutrina e na jurisprudên-cia, tem ocorrido nos processos administra-tivos punitivos em que a seguradora éautuada por inobservância do art. 7º da Lei6.194/74 (DPVAT), embora aduza a incons-titucionalidade desse dispositivo sem lograrêxito, pois as defesas e os recursos sobre essepálio deságuam sempre no desprovimentoe a multa aplicada pode alçar valores atésessenta mil reais, passível de cobrançamediante execução fiscal.

Revendo o meu posicionamento sobre amatéria, o que faço em reserva de entendi-mento pessoal, tenho que a questão está amerecer melhor reflexão e amadurecimento.

A interpretação atualmente considerada,embora fundada em premissa verdadeira –

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presunção da constitucionalidade em favor dalei –, tem a cômoda vantagem de exonerar oExecutivo da apreciação sobre a constitucio-nalidade da lei e transferir essa responsabi-lidade exclusivamente para os ombros doJudiciário, em franca e singela homenagemao vulgar axioma dura lex sed lex.

Ocorre que a lei inconstitucional éinconstitucional para todos os Poderes e nãoapenas para o Judiciário, não sendo crível erazoável sustentar que a interpretação e aobservância da Lei Básica seja exclusivomonopólio do Judiciário, sobretudo quandoa nota distintiva do Estado Democrático deDireito é a submissão de todos à ordemjurídica.

Claro está que não se deve confundir a“declaração” de inconstitucionalidade, queé função típica do Judiciário, com a nãoaplicação da lei inconstitucional pelo PoderExecutivo11. Luis Roberto Barroso, eméritoProcurador do Estado do Rio de Janeiro,salienta que

“também o Executivo tem o poder e,mais ainda, o dever de impedir queela seja violada, e deverá abster-se daprática de qualquer ato que importeem desrespeito à Lei Maior. Esseentendimento tem a chancela quaseabsoluta da melhor doutrina, bemcomo tem sido reiteradamente aco-lhido pelo egrégio Supremo TribunalFederal”12.

De fato, a resenha da doutrina e da juris-prudência tem enfoque específico para osmais autorizados e destacados jurisconsul-tos, todos no mesmo sentido ora exposto:Gilmar Ferreira Mendes, Miguel Reale,Alfredo Buzaid, Themistocles BrandãoCavalcanti, Vicente Ráo, José FredericoMarques, Miranda Lima, Lucio Bittencourt,Ronaldo Poletti, Seabra Fagundes, CarlosMaximiliano, Cáio Tácito e Moreira Alves(Jurisprudência do STF: súmulas 346, 347 e473; RDA 76/308, 42/230, 72/221, 97/116;RTJ 96/496, 127/811, 72/329).

À guisa de torrencial e exaustiva convic-ção sobre o tema, mormente por ser conheci-

do, pode e deve a SUSEP apreciar a questãode fundo sobre as inconstitucionalidades daLei nº 9.656/98, devendo inaplicar as suasdisposições que estejam em flagrante dissí-dio com o Texto Constitucional, pois, noembate emergente entre a Lei e a Constitui-ção, deve-se, naturalmente, optar pelaúltima.

São essas, em apertada síntese, asminhas breves considerações sobre o tema.

Notas1 SLAIBI FILHO, Nagib. Comentários à Nova

Lei do Inquilinato. Rio de Janeiro, 8. ed., Forense,1995, p. 11.

2 O presente estudo tem seu exame atualizadoaté a edição da Medida Provisória nº 1.801-11, de25-3-99.

3 WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos parauma crítica do Estado. Porto Alegre, Sérgio AntonioFabris Editor, 1990, p. 49.

4 Semanário sobre Contratos de Seguro. OSeguro, esse desconhecido. TACIVRJ/EMERJ, RJ,1994, p. 78-9.

5 O Ministério da Saúde, mais célere, já editou,até o momento, as Resoluções CONSU de nº 1 a 21,regulamentando amplamente a matéria.

6 Respeitante ao registro provisório: v. CircularesSUSEP nº 68/99 e 77/99.

7 Redação dada pela MP nº 1.801-11, de 25-3-99. A nosso ver, a interpretação sistemática dessedispositivo com a adaptação obrigatória exigidaaos contratos em curso e anteriores à Lei leva-nosao quadro de ofensa direta ao ato jurídico perfeito.

8 FRANÇA, R. Limongi. A Irretroatividade dasLeis e do Direito Adquirido. São Paulo, 4. ed., RT,1994, p. 235.

9 SILVA, José Afonso da. Curso de DireitoConstitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 1997.

10 Cf. Gilmar Ferreira Mendes. JurisdiçãoConstitucional. São Paulo, Saraiva, 2. ed., 1998.

11 SLAIBI FILHO, Nagib. Anotações à Consti-tuição de 1998. Rio de Janeiro, Forense, 4. ed., 1993,p. 86.

12 In O Direito Constitucional e a Efetividade desuas Normas/Limites e Possibilidades da Consti-tuição Brasileira. Rio de Janeiro, Renovar, 2. ed.,1993, p. 333-7.

Referências bibliográficas conforme original.

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Começou a viger em 26 de junho de 1999disposição legal que permite às partes a“utilização de sistema de transmissão dedados e imagens tipo fac-símile ou outrosimilar, para a prática de atos processuaisque dependam de petição escrita”. Essanorma se acha contida na Lei nº 9.800,publicada no DOU de 27-5-99.

Trata-se, realmente, de importante ino-vação que vem a satisfazer imperiosanecessidade de agilizar o trâmite processual.Como abordado por Salomão AlmeidaBarbosa,

“a utilização do fax, em sede judicial,deve ser expandida, facilitando aatividade das partes, dos advogadose dos juízes, dado que a busca incan-sável de uma Justiça célere requer umJudiciário moderno, bem aparelhadoe suscetível aos avanços tecnológicos”(in ‘Fac-Símile – utilização para aprática de atos processuais – jurispru-dência do Supremo Tribunal Federal’,Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 213,julho/95).

A propósito, o juiz Geraldo Magela eSilva Meneses fez consignar:

“Úteis à rapidificação do processo,vêm sendo admitidas peças fac-simi-ladas. Fato irrefutável, o expedito meiode comunicação a distância (o fax)contribui para a almejada celeridadeprocessual” (in ‘Interposição de Re-curso por Fac-símile’, Repertório IOB

Anotações à Lei nº 9.800/99(que permite às partes a utilização de sistema detransmissão de dados para a prática de atos processuais)

Maria da Penha Gomes Fontinele

Maria da Penha Gomes Fontinele é pós-graduanda em Direito Processual pela UFSC(Universidade Federal de Santa Catarina).

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Jurisprudência, São Paulo 1ª quinzenade abril/97, nº 7/97, caderno 3, p. 128).

Observou, também, aquele magistrado que“somente a lei poderá dispor sobre aadmissibilidade do fac-símile parainterposição de recursos, regendocasos e circunstâncias. Descabe regu-lamentação infralegal, muito menossuplementação judicial, para prorro-gar prazo de recurso” (ob. cit., p. 127).

Verificava-se, há um certo tempo, atendência dos tribunais em admitir o usodo fax para o envio de peças postulatórias.Havia, porém, discussão acerca da necessi-dade da apresentação dos originais dentrodo prazo legal. Aos poucos, surgiramdecisões concedendo um prazo de tolerância,dito razoável, além do estipulado em lei, paraque o original chegasse a ser protocolado.

No próprio Supremo Tribunal Federal,os pronunciamentos não eram uníssonos,como se depreende dos seguintes informes:

“Agravo Regimental. Interposiçãopelo sistema fac-símile. A interposiçãode recurso pelo sistema da transmis-são fac-símile tem sido condicionadaà apresentação de documento originale à autenticação da mensagem, me-diante o reconhecimento da firma dosubscritor do documento. A não-observância de tais formalidades, nareprodução do documento, resulta noseu não-conhecimento.” (ac. unân. da1ª T. do STF – Ag. 0140347/040 – rel.Min. Ilmar Galvão – j. em 26-11-91, DJUI 13-12-91, p. 18.538 – publ. no RJ-IOB3/6508);“... a óptica até aqui prevalecenteconduz esse moderno meio de trans-missão, que é o fax, ao desuso porinutilidade. Exigir que alguém que outilize dê a entrada do original, noprotocolo da Corte, no prazo assinadopara a prática do ato é revelar que nãotem valia alguma.” (2ª T. do STF – tre-cho do voto do Min. Marco Aurélio,proferido no AgRg-HC 72338-2-RJ, j.em 12-12-95).

Até mesmo no Superior Tribunal deJustiça – Corte incumbida constitucional-mente de uniformizar a aplicação dalegislação federal –, as decisões turmáriasdestoavam, como se nota a partir dos arestosadiante transcritos:

“Admite-se recurso interposto viafax dentro do prazo legal, desde que ooriginal seja juntado a posteriori.” (STJ,6ª T., RHC 4.342-3-RS, rel. Min. VicenteLeal, DJU 24-4-95);

“Admite-se recurso interposto, viafax, com a juntada do original fora doprazo legal, mas em tempo razoável.A exigência de juntar-se, no prazo dorecurso, o original da petição equivalea não se admitir a interposição me-diante telefax. Evolução da jurispru-dência.” (STJ, ac. da 1ª T., AG-MC 547-RS, rel. Min. Gomes de Barros, publ.em 12-12-96);

“Em assentada recente, a CorteEspecial reafirmou a jurisprudênciano sentido de que é inadmissível orecurso por sistema fax, não supridaa falta pela apresentação de originalapós a fluência do prazo recursal.”(STJ, ac. 3ª T., AR-AI 144.426-RJ, rel.Min. Costa Leite, publ. em 6-10-97);

“Interposição via fax. Intempesti-vidade. A jurisprudência desta Corteassentou entendimento no sentido dapossibilidade de interposição derecurso via fac-símile, desde que osoriginais sejam protocolados dentrodo prazo recursal.” (STJ, ac. da 3ª T.,Edcl no AgRg no AI 164.676-SP, rel.Min. Waldemar Zveiter, DJU 1-3-99);

Agora, por força da lei recém-editada, aquestão dos prazos encontra-se definitiva-mente superada. Com efeito, dispõe o seuart. 2º que os originais das peças encami-nhada via fax devem “ser entregues em juízo,necessariamente, até cinco dias da data deseu término”. No caso de atos que nãoestejam sujeitos a prazos, a entrega dosoriginais deverá ser feita, “necessariamente,até cinco dias da data da recepção do

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material”, nos termos do parágrafo únicodo citado dispositivo legal.

Aplicam-se as disposições da Lei nº9.800/99 a todo e qualquer processo judicial– cível, trabalhista e penal –, tanto na fasepostulatória quanto na fase recursal.

Cabe à parte que se utilizar desse meiode transmissão de mensagens diligenciar“pela qualidade do material transmitido, epor sua entrega ao órgão judiciário” (artigo4º). Não sendo legível o texto enviado porfax, ou não sendo efetuada a entrega dooriginal dentro do prazo fixado legalmente,o ato praticado será tido como inexistente, nãoproduzindo nenhum efeito. Serão declaradosinsubsistentes as providências jurisdicio-nais adotadas a partir de requerimentosdirigidos através de fax, caso não sejamratificados nos moldes da lei comentada.

Naturalmente, o usuário do sistemaestará sujeito às sanções cabíveis porlitigância de má-fé (art. 18 do Código deProcesso Civil), sempre que agir sem leal-dade processual, incorrendo em quaisquerdas práticas anatematizadas no elenco doart. 17/CPC. Assim, terá que haver perfeitaconcordância entre o texto enviado por fax eo teor da peça original protocolada no órgãojudiciário.

Será grandemente satisfatório o uso dofax, a facilitar o acesso rápido à Justiça, àmedida que as repartições do Poder Judiciárioforem dotadas dos aparelhos necessários.Lamenta-se, no entanto, que a própria leisob análise prescreva não obrigar “a que osórgãos judiciários disponham de equipa-mentos para recepção”. Surge, então, o

fundado receio de que, em muitos órgãos, aidéia não venha a ser implementada porfalta de vontade de alguns juízes (renitentesa inovações), ou por não constituir priori-dade para determinados dirigentes detribunais (que mais se preocupam emostentar o conforto de prédios e gabinetes).

Fazem eco – e deveriam ser bem assimi-ladas pelos administradores da Justiça – aspalavras do Min. Sálvio de FigueiredoTeixeira:

“o Judiciário, conservador por tendên-cia e carências bem conhecidas, nãopode fechar os olhos a instrumento tãoeficaz e hoje amplamente utilizado noplano mundial. Recomenda-se, paramelhor segurança do sistema, inclu-sive para fins de aferição da tempesti-vidade, a colocação de aparelhoreceptor nas dependências do proto-colo” (STJ, 4ª T., Edcl no REsp 62.529-RS, DJU 02-9-96).

Teria sido mais proficiente o legisladorse houvesse, pelo menos, inserido comonorma programática que os tribunaisfizessem incluir, na próxima previsãoorçamentária, recursos financeiros paramaterializar a Lei, atendendo ao anseio dosjurisdicionados.

Apesar de inovadora, a aludida lei jásurgiu defasada. Em um futuro breve, porcerto, a legislação processual terá que sofrernova mudança para adequar-se aos avançostecnológicos, acompanhando as conquistascientíficas da informática. Assim, a comu-nicação dos atos processuais passará a serpromovida através de e-mail, com extraordi-nário benefício para a sociedade.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

Sem que implique, desde logo, aceitar-seplenamente a idéia da aldeia global (a quese refere MacLuhan), também na área dodireito, observa-se que é chegada a hora e avez do internacional.

Afonso Arinos, em seu Curso de DireitoConstitucional Brasileiro, fala em inter-nacionalização do Direito Constitucionale em constitucionalização do DireitoInternacional.

Com efeito, todas as constituições mo-dernas consagram preceitos de DireitoInternacional (vejam-se, por exemplo, osartigos 4º, com seu parágrafo único, e oparágrafo 2º do art. 5º da ConstituiçãoBrasileira de 1988), e, enquanto isso, osorganismos e organizações internacionais,à guisa de tratados fundadores, adotamverdadeiras constituições internacionais.

A rigor, desde o que a História do Direitodesigna por constitucionalismo (séculosXVIII e XIX) já se podia observar essefenômeno da internacionalização, só quepor outras motivações.

Nos Estados Unidos e na França, paracitarem-se dois significativos exemplos,foram razões de ordem interna (os Estados

Direito de integração, internacionalização dajustiça e duas palavras sobre o Mercosul

Carlos Fernando Mathias de Souza

Carlos Fernando Mathias de Souza éProfessor Titular da Universidade de Brasília eJuiz do Tribunal Regional Federal da PrimeiraRegião.

Sumário1. Introdução. 2. A realidade da integração

e o direito conseqüente. 3. A internacionaliza-ção da Justiça. 4. Algumas observações sobre oMercosul.

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Unidos, interessados na paz com a Ingla-terra e a França, envolvida em uma espéciede guerra européia) que os levaram a trazer,para seus sistemas constitucionais, normasdo direito das gentes.

Posteriormente, o que se verifica é ocontrário, posto que não se trata mais – comoproblema maior – de consolidar a ordemjurídica interna dos Estados e sim colaborare participar da organização jurídica inter-nacional, objetivando, natural e principal-mente, uma estrutura estável.

Foi dentro dessa óptica que MestreAfonso Arinos sintetizou que, na primeirafase (séculos XVIII e XIX), a tendência eratrazer para o direito interno princípios enormas do direito internacional; já nomundo do século XX, tem-se a criação deórgãos permanentes, que (muito embora nãosendo superestados) imitam na estrutura eno funcionamento as Constituições estatais,gerando a constitucionalização do DireitoInternacional. Fala-se, hoje, mesmo em umDireito Constitucional Internacional (Mirkine- Guetzévitch tem até, lembre-se como meroexemplo, um trabalho com o título (DroitConstitutionnel International).

Todavia, o mundo contemporâneoparece revelar fenômeno ainda mais signi-ficativo em matéria de internacionalizaçãono direito, inclusive conduzindo a umrepensar sobre a própria idéia ou conceitode soberania.

Hans Kelsen, em seu importante estudoA Paz por meio do Direito, mostrou comopoderia ocorrer o primado do Direito Inter-nacional sem sacrifício para a soberania:

“O Estado é soberano desde queestá sujeito ao Direito Internacional enão ao Direito Nacional de qualqueroutro Estado. A soberania do Estado,sob o Direito Internacional, representaa independência jurídica do Estadoem relação a outros Estados”.

Acontece que, hoje, repita-se, observa-sea ocorrência de algo de maior amplitude, noparticular, a tal ponto que Philip C. Jessupfala em um Direito Transnacional (Trans-national Law).

Assinala Jessup, em trabalho intituladoTransnational Law (Yale University Press,1956): (...)

I shall use, instead of ‘internationallaw’, the term ‘transnational law’ toinclude all law which regulates actions orevents that transcend national frontiers.Both public and private international laware included, as are other rules which donot wholly fit into such standard categories.

O que, em linguagem cabocla, poderiaser dito assim:

“Usarei em vez de direito interna-cional, a expressão direito transnacio-nal para incluir todas as leis (ou nor-mas) que regulam ações ou fatos quetranscendem fronteiras nacionais.Ambos, o direito internacional públi-co e o direito internacional privado,estão incluídos (compreendidos),como estão outras normas (ou regras)que não se enquadram totalmente (in-teiramente) nessas categorias clássi-cas”.

2. A realidade da integração e o direitoconseqüente

No Direito Transnacional, enquadra-seperfeitamente o que se designa DireitoComunitário, em uma linguagem maiseuropéia, ou Direito de Integração, expres-são mais usada entre os latino-americanos.

Aliás, fala-se também hoje em Comuni-dades de Direito.

Em verdade, criadas pelo direito, ascomunidades se querem como Comunidadede Direito, segundo a expressão cuja pater-nidade é atribuída a Walter Hallsfein,primeiro presidente da Comissão Comuni-dade Econômica Européia.

Recorde-se, de plano, que o DireitoComunitário ou de Integração não seconfunde com o Direito Internacionalclássico (tanto o Direito InternacionalPúblico quanto o Direito InternacionalPrivado) e, tampouco, colide com o direitonacional dos integrantes (Estados membrosou participantes) das comunidades.

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Não há necessidade sequer, ao tratar-sedesse novo direito, de se invocarem asclássicas teorias monista e dualista , tantosobre suas fontes (ou sobre a origem delas)quanto sobre o primado de suas normas,quando se tratar, efetivamente, de tutela derelação jurídica cuja norma de referência sejacomunitária.

A propósito, Joël Rideau, em sua relati-vamente recente obra (junho de 1995) LeDroit des Communautés Européennes, observasobre a dupla hierarquia normativa:

“La prééminence des traités constitutifssur les autres sources de droit est unedonnée fondamentale de l’ordre juridiquecommunautaire, mais sa nature et sesconséquences doivent être précisées.L’analyse de la hiérarchie interne aux actesde droit communautaire dérivé s’imposepour compléter la présentation de lahiérarchie des sources”,

o que, em latim vulgar mais próximo dabrasílica gente, poder-se-ia dizer assim:

“A preeminência dos tratadosconstitutivos sobre as outras fontes dedireito é um dado fundamental da or-dem jurídica comunitária, mas suanatureza e suas conseqüências devemser precisadas (bem definidas). A aná-lise da hierarquia interna sobre os atosde direito comunitário derivado im-põe-se para completar a apresentaçãoda hierarquia das fontes”.

Assim, à toda evidência, a humanidadevive hoje uma experiência, em matéria dedireito, para além da norma nacional e doclássico direito internacional. É o novotempo do Direito Comunitário, de Integraçãoou Transnacional, conforme se queiradesigná-lo.

Acrescente-se, por outro lado, que, apósa queda do muro de Berlim – tome-se-o comosímbolo –, desaparece o conflito Leste/Oeste.

A rigor, como lembra Jean-ChisthofeRufin, em obra (a um só tempo polêmica einteressante) sob o título L’emipre et lesnouveaux barbares, seria o caso de fazer-secoro com Catão, quando de forma irônica,após a destruição de Cartago, indagava: “O

que será de Roma sem seus inimigos?”Enquanto o conflito Leste/Oeste desa-

pareceu, muitas guerras e conflitos setoriaiscontinuaram pelos quatro cantos do mundo,como a nova questão balcânica, a guerra doGolfo, e o que está ocorrendo em algunspaíses africanos, por exemplo.

Assim, paradoxalmente, vêem-se, de umlado, disputas com assinalada afirmação deetnias ou de afirmações (ou reafirmações)nacionais, enquanto, por outro lado, paísesaglutinam-se em blocos, em que é inevitável,ou melhor, indispensável a integração.

Com respeito a esse último aspecto – eseria até desnecessária qualquer ilustração–, tem-se a União Européia e o incipienteMercosul, para citarem-se apenas doissignificativos exemplos.

De passagem, observe-se que o direitoresultante do Mercosul ainda não é direitodito de integração, mas sim (ainda) direitointernacional público clássico.

Permita-se, agora, uma indagação: comoficarão (ou como já ficam) os direitosnacionais em face dessa nova realidadejurídica, ou seja, na efetiva realidadecomunitária ou de integração?

Veja-se, desde logo, que não se trata deinvocar, nesse quadro, o direito internacio-nal privado como garantidor do exercíciode direitos de alienígenas e solucionador deconflitos da aplicação de leis no espaço.

A questão, aí, evidentemente, é outra.Trata-se, a rigor, de um novo tempo em

que países, no exercício de sua soberania,integram-se com outros para formar uma sócomunidade, o que, naturalmente, não serealiza sem problemas.

Todavia, o que se percebe é que nessascomunidades, concebidas como entessupraestatais, os seus membros estãoabrindo mão de muitos comportamentos oupráticas tradicionais, gerando até mesmoum novo conceito de soberania, em seupróprio benefício e em prol de objetivoscomuns.

Caberia aqui uma outra indagação:ficarão os direitos nacionais integralmentecomprometidos? Comprometidos parece

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que sim, mas não desaparecerão, como nãodesaparecem os direitos nacionais nasConfederações, ou determinados direitosautonomizados nas Federações.

Certamente, e a realidade o tem demons-trado, muitos direitos já não serão maisnacionais (ainda que do nacional de per se),tampouco serão internacionais (como seentende o direito internacional clássico),mas sim comunitários.

Assim, nada de estranho ou de excepcio-nal a assinalar diante desse quadro novode direitos nacionais (civil, penal, comercialetc.) convivendo, coexistindo e, mais do queisso, integrados com o direito, por exemplo,civil, penal, comercial e comunitário.

Haverá, pois (aliás já tem existido), leistipicamente nacionais e outras tipicamentecomunitárias ou de direito de integração,como, em um estado federativo, existem nor-mas de direito municipal, estadual e federal,dependendo do nível de esfera legiferante,em face, obviamente, da competência paralegislar.

Observe-se, para ficar-se tão-só com umailustração, que, no Brasil, o direito federal éo direito mais aplicado pelas justiçasestaduais, como o Código Civil, o CódigoPenal e os Códigos de Processos etc.

Para esse tempo novo, surge, evidente-mente, um direito novo.

O desafio dos juristas será o de seadaptarem a essa nova realidade, mas nãode forma acomodada, e sim participativa,elaborando, construindo, descobrindo, ouaplicando esse novum jus.

Nesse particular, a família romano-germânica (recorde-se a expressão de René-David) não pode estar separada.

Em outras palavras, o que ocorre naEuropa hoje, em termos de direito deintegração ou de direito comunitário, ésubsídio indispensável (veja-se bem que nãose fala em modelo ou figurino) para, porexemplo, o Mercosul, que está dando os seusprimeiros passos.

Como se sabe, o Mercado em destaqueestá apenas na fase de união aduaneira e

vive momento mais de aprofundamento doque de alargamento.

Da óptica brasileira, recorde-se, de outraparte, a integração não é uma opção, porexemplo, de política internacional, mas umimperativo constitucional, que tem porcomando que o Brasil “buscará a integraçãoeconômica, política, social e cultural dospaíses da América Latina, visando àformação de uma comunidade latino-americana de nações” (parágrafo único doart. 4º da Constituição).

3. A internacionalização da Justiça

De outra parte, observe-se o fenômenoda internacionalização da Justiça que pareceser um dos mais significativos do século XX.

A experiência pioneira – é dizer-se, daexistência de um órgão de jurisdição inter-nacional e com caráter de permanência –,como se sabe, foi a da Corte de Justiça Centro-–Americana, criada em 1907, por tratadoentre Costa Rica, El Salvador, Guatemala,Honduras e Nicarágua. Durou apenas dezanos, mas foi importante.

Como uma das conseqüências da pazresultante do término da Primeira GuerraMundial, adviria, em 1920, a Corte Perma-nente de Justiça Internacional (Haia), que, arigor, não era propriamente um órgão daSociedade das Nações (ainda que o Tribunalestivesse previsto no artigo 14 do Pacto daSociedade).

Essa Corte, primeira (efetivamente) comvocação internacional, duraria até 1939,cessando suas atividades, obviamente, porter eclodido a Segunda Grande Guerra.

Com o mesmo espírito, ressurgiria oórgão, com a Carta de São Francisco, agoracom o nome de Corte Internacional deJustiça, também com sede em Haia.

Prescreve, expressamente, o seu Estatutoque a Corte Internacional de Justiça, estabe-lecida pela Carta das Nações Unidas, é oprincipal órgão judiciário das NaçõesUnidas. Isso porque há outros órgãosjudiciários (ou assemelhados) previstospara atuação em plano internacional.

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Só Estados podem ser parte em questõesperante a Corte (art. 34 do Estatuto respectivo).

Basicamente, a competência do órgão emdestaque abrange todas as questões que aspartes lhe submetam, assim como todo equalquer assunto previsto na Carta dasNações ou especificamente em tratados econvenções.

Ademais, os Estados-partes, em qualquermomento, podem declarar que reconhecemcomo obrigatória,

“ipso facto e sem acordo especial, emrelação a qualquer outro Estado queaceite a mesma obrigação, a jurisdiçãoda Corte em todas as controvérsias deordem jurídica que tenham por objeto:a) a interpretação de um tratado; b)qualquer pacto de direito internacio-nal; c) a assistência de qualquer fatoque, se verificado, constituiria viola-ção de um compromisso internacio-nal, e d) a natureza ou a extensão dereparação devida pela ruptura de umcompromisso internacional”.

A Corte tem competência contenciosa econsultiva.

De outra parte, observe-se que, por vezes,um tribunal internacional pode ter umcaráter temporário e específico.

Ao término da Segunda Guerra, como sesabe, os governos dos Estados Unidos, daFrança, do Reino Unido e da antiga UniãoSoviética firmaram acordo (8 de agosto de1945) objetivando a criação de um TribunalMilitar para “processar e punir os maiorescriminosos de guerra”. Daí surgiria o célebre(e muito criticado – recordem-se as reflexõesde Nelson Hungria) Tribunal de Nuremberg.

Esse Tribunal Militar deveria julgar:a) crimes contra a paz; b) crimes de guerra,em sentido estrito, e c) crimes contra ahumanidade.

Ademais, o seu Estatuto dispunha quenenhum acusado estaria isento de respon-sabilidade pelo fato de ter agido em cumpri-mento de ordem de seu governo ou de seusuperior e, de igual modo, não se eximiriamaqueles que exerceram funções de chefe deEstado ou que foram funcionários grados,

responsáveis por órgãos ou departamentosgovernamentais.

Evidentemente, a condenação (de caráterpenal-militar) em Nuremberg recaiu sobreindivíduos e não sobre Estados.

De passagem, lembre-se que, sob ainspiração da Corte de Nuremberg, foi criadoo Tribunal do Extremo Oriente, para julgaros criminosos de guerra japoneses.

Esse tribunal, que funcionou a partir de1946, por vários meses foi organizado pelosEstados Unidos, Reino Unido, antiga UniãoSoviética e China e contou com a cooperaçãoe participação da Austrália, Canadá, França,Filipinas, Holanda, Índia e Nova Zelândia.

Há, como se sabe (e, aliás, já observado),outros tribunais internacionais, previstos oujá em funcionamento.

A convenção das Nações Unidas sobreo direito do mar, por exemplo, prevê aexistência de um órgão jurisdicional decaráter internacional.

De outra parte, organizações internacio-nais, como a OIT, a OEA e a ONU, possuemtribunais administrativos para dirimiremquestões decorrentes do exercício da funçãopública de caráter internacional.

A Constituição brasileira, no art. 7º doAto das Disposições Constitucionais Tran-sitórias, dispõe que “o Brasil propugnarápela formação de um tribunal internacionaldos direitos humanos”.

A propósito, no concernente aos conten-ciosos internacionais, relativos especifica-mente aos direitos humanos, já existem aCorte Interamericana, sediada em CostaRica, decorrente da Convenção sobre DireitosHumanos de 1969 (o Brasil aderiu à Con-venção em setembro de 1992), e a CorteEuropéia, com sede em Estrasburgo (Con-venção de 1950).

Em dezembro de 1995, sob o alto patro-cínio da Universidade de Roma La Sapienzae da Universidade Livre Internacional deEstudos Sociais (Libera Universitá Interna-zionale degli Studi Sociali), realizou-se umseminário cujo tema central não foi outroque não From the ad hoc International Criminal

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Tribunals to a Permanent Court (dos TribunaisInternacionais ad hoc a uma Corte Perma-nente).

Essa Corte Internacional, com a denomi-nação (em português, evidentemente) deTribunal Penal Internacional, acaba de seraprovada pela ONU. De passagem, lembre-se a existência do Tribunal de crimes deguerra das Nações Unidas, sediado emHaia, Holanda, sobre o qual a imprensa deugrande destaque, por motivo do julgamentodos líderes servo-bósnios, em particularRadovan Karadzic, acusado de comandara limpeza étnica de muçulmanos.

Os crimes sob jurisdição do novo Tribu-nal Penal Internacional serão (o verbo aquiestá empregado no futuro tão-só pelo fatode que algumas providências ainda pendempara sua instalação): genocídio, crimes deguerra, crimes contra a humanidade eagressão.

Observe-se que o exercício da jurisdiçãoda Corte em destaque sobre o crime deagressão está condicionado à aprovação deuma emenda ao Estatuto do Tribunal,isolada ou no contexto de uma conferênciade revisão, que inclua a tipificação doreferido crime e estabeleça o papel a serdesempenhado pelo Conselho de Segurançada ONU.

Ademais, tem-se a internacionalizaçãoda Justiça por decorrência do fenômeno dasComunidades ou Nações.

Em verdade, como manifestação dochamado direito comunitário (e até mesmopara garantir sua eficácia), tem-se a impor-tante Corte de Justiça das ComunidadesEuropéias, com sede em Luxemburgo.

Essa Corte não tem seu acesso restritoapenas aos Estados-membros da UniãoEuropéia, mas, ao contrário, ela existetambém (ou principalmente) para dirimirconflitos em que sejam as partes particulares(indivíduos, empresas ou outras pessoasjurídicas).

Acentue-se bem esse novo tipo de tribunalinternacional. Já não se trata mais de umaCorte restrita a Estados. E esse fenômeno de

internacionalização da Justiça parece umaonda, que vai aumentando a cada dia.

4. Algumas observações sobre oMercosul

Por fim, registre-se que, muito emboraainda não seja tão pacífica a aceitação daidéia da criação de um tribunal inter-nacional para o Mercosul (observe-se oProtocolo de Brasília), tem-se que, não só aexperiência do Tribunal de Luxemburgo (oumelhor, como fruto da experiência da UniãoEuropéia), mas principalmente quando oMercosul der passos mais largos e deixarde ser uma simples Zona Aduaneira,fatalmente advirá uma Corte com caráterpermanente.

A propósito do referido Protocolo deBrasília, para a solução de controvérsias,recorde-se que ele prevê negociações diretas(Capítulo II), intervenção do Grupo Merca-do Comum (Capítulo III) e procedimentoarbitral (Capítulo IV).

As controvérsias em destaque são as“que surgirem entre os Estados-Partessobre a interpretação, a aplicação ouo não cumprimento das disposiçõescontidas no Tratado de Assunção, dosacordos celebrados no âmbito domesmo, bem como das decisões do Con-selho do Mercado Comum e das Reso-luções do Grupo Mercado Comum”.

Particularmente, sobre os Tribunais adhoc previstos pelo Protocolo de Brasília, valedizer Tribunais Arbitrais, deviam eles serconstituídos, em cada caso, para conhecer eresolver as controvérsias surgidas no âmbitodo Mercosul (e daí, obviamente, a designa-ção ad hoc) e terão como sede a cidade deAssunção.

De outra parte, parece oportuno regis-trarem-se os passos que têm sido dados noque se poderia designar cooperação institu-cional, no âmbito do Mercosul.

Assim, tem-se o Protocolo de las Leñassobre a cooperação e assistência jurisdicional,em matéria civil, comercial, trabalhista eadministrativa (e seu acordo complementar),

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o Protocolo de Assistência Mútua em AssuntosPenais, o Protocolo de Medidas Cautelares, oProtocolo de Buenos Aires sobre jurisdiçãointernacional em matéria contratual e oProtocolo de São Luiz em matéria de respon-sabilidade civil emergente de acidente detrânsito entre os estados-partes do Mercosul.

De outra parte, recorde-se que o Judiciáriobrasileiro, nos diferentes graus de jurisdição,vem aplicando, com regularidade, asnormas do Mercosul.

O juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública(sentença de 13-1-98) concedeu segurançaimpetrada por uma empresa importadorade laticínios do Rio Grande do Sul, em quefoi pleiteado, como líquido e certo, o direitode efetuar importações de leite enlatado doUruguai, sem recolhimento do ICMS, similarao produto nacional, com fundamento noTratado de Assunção.

Sem diminuir o mérito do juiz senten-ciante e, mais ainda, sem extrair-lhe o méritode pioneirismo (em termos de aplicação denorma do Mercosul), a decisão, em si, nãocontém muita novidade e está na esteira develha posição firmada pelo STF e, maisrecentemente, pelo STJ (q.v. Súmulas nos 20 -71 dessa última Corte citada).

Por mera ilustração, transcrevam-se seusverbetes:

“A mercadoria importada de paíssignatário do GATT é isenta de ICM,quando contemplado como esse favoro similar nacional” (Súmula nº 20, doSTJ) e “o bacalhau importado de paíssignatário do GATT é isento de ICM”(Súmula nº 71, do STJ).

Em nível de Suprema Corte, tem-sedecisão relativamente recente, em que foiprontamente atendida carta rogatória (comaplicação do Protocolo de Las Leñas), carta,aliás, por equívoco encaminhada a um juizestadual.

De qualquer modo, deve-se registrar que,a teor do art. 49, I, da Constituição brasileira,

“é da competência exclusiva doCongresso Nacional (I) resolver defi-nitivamente sobre tratados, acordos ouatos internacionais que acarretem

encargos ou compromissos gravososao patrimônio nacional”.

O mecanismo adotado, a observação édo professor titular da Universidade de SãoPaulo, Luiz Olavo Baptista,

“para a incorporação dos acordosinternacionais é o da aprovação pelolegislativo, (art. 49, I) e depois suapromulgação pelo executivo, que osnegociou, celebrou e é, também, quemos ratifica.

O tratado segue um iter, que teminício pelas negociações, passa pelasua assinatura, e pela remessa aoPoder Legislativo com o pedido deaprovação, (atos esses da competênciaexclusiva do Poder Executivo, a quemincumbe a condução da políticaexterna do país). Prossegue com oimprescindível exame pelo PoderLegislativo, a quem cabe constitucio-nalmente examinar e, querendo,aprovar o tratado, terminando comsua promulgação, também ato decompetência do Executivo.

Trata-se de antiga tradição nodireito brasileiro.

A razão deste procedimento éexplicada pelo Prof. Vicente MarottaRangel:‘com a audição dos poderes Executivoe Legislativo, atende-se à consideraçãode que o tratado possui a natureza delei e se respeita, por outro lado, oprincípio da distinção dos poderesgovernamentais’.

A aprovação na Câmara dos Depu-tados deve ser por maioria absolutade votos (C.F. art. 47), e a ela segueum projeto de Decreto Legislativoque será enviado ao Senado, que oaprovará ou rejeitará. Se a aprovaçãofor sem emendas, o Presidente doSenado promulga o Decreto Legislativo(RIS, Título IX, Cap. IV, art. 48, item28). Se ocorrerem emendas, volta à Câ-mara, cabendo a esta decidir se aceitaas emendas ou mantém seu projeto.

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O Presidente do Senado é que promul-gará o Decreto Legislativo, em qual-quer caso.

À edição do decreto Legislativo,que é a aprovação do acordo, seguem-se a ratificação e a promulgação atravésde Decreto presidencial que incorporao tratado ao direito brasileiro, atosesses privativos do Presidente daRepública (C.F. art. 84, VIII).

Cabem só ao presidente estes doisúltimos atos do procedimento deinserção do tratado na legislaçãobrasileira, porque – como bem explicaCachapuz de Medeiros na sua obradefinitiva sobre a matéria – ‘pertenceao executivo a competência paradeclarar internacionalmente a vontadedo Estado’.

A importância da ratificação édestacada por Celso de A. Mello eclassificada pelo autor como ‘a fasemais importante do processo deconclusão dos tratados’, e a necessi-dade da promulgação ressaltada porautoridades como J. F. Rezek e o Prof.João Grandino Rodas, para quem ‘apromulgação atesta a adoção da leipelo legislativo, certifica a sua exis-tência e o seu texto, e afirma, finalmen-te o seu valor imperativo e executório’.

Por isso, é com a promulgação peloPresidente da República que culminaa inserção dos tratados no direitobrasileiro.”

Bibliografia

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BAPTISTA, Luiz Olavo - artigo, São Paulo, 1998.DAVID, René - Os grandes sistemas de direito

contemporâneo, São Paulo, Martins Fontes, 1986.DE ARAÚJO, Nadia; Marques Frederico V.

Magalhães e Reis, Márcio Monteiro – Código doMERCOSUL – Tratado e Legislação, Rio de Janeiro,Renovar, 1998.

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Referências bibliográficas conforme original.

Finalmente, registre-se que tudo isso bemse harmoniza com o Protocolo de Ouro Preto,que, em seu art. 42, contém expressamente:

“As normas emanadas dos órgãosdo Mercosul previstos no artigo 2 desteProtocolo terão caráter obrigatório edeverão, quando necessário, ser incor-poradas aos ordenamentos jurídicosnacionais mediante os procedimentosprevistos pela legislação de cada país.”

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1. Considerações iniciais

Ao debruçarmo-nos sobre a problemáticada Constituição dirigente, ou seja, a consti-tuição que define fins e objetivos para oEstado e a sociedade, precisamos fixar-nosao texto de uma determinada constituição.Isso porque o texto constitucional é o textoque regula uma ordem histórica concreta, ea definição da Constituição só pode serobtida a partir de sua inserção e função narealidade histórica1. Esse é, nas palavras deJosé Joaquim Gomes Canotilho, o “conceitode constituição constitucionalmente ade-quado”2. Dessa maneira, ater-nos-emos àConstituição da República Federativa doBrasil, de 5 de outubro de 1988.

A Constituição é a ordem jurídicafundamental de uma comunidade numdado período histórico, pois estabelece ospressupostos de criação, vigência e execuçãodo resto do ordenamento jurídico, além deconformar e determinar amplamente o seuconteúdo. É a Constituição que fixa os

A problemática da constituição dirigente:algumas considerações sobre o casobrasileiro

Gilberto Bercovici

Gilberto Bercovici é doutorando em Direitodo Estado pela Faculdade de Direito da Univer-sidade de São Paulo. Advogado em São Paulo.

Sumário1. Considerações Iniciais. 2. Do Estado

Liberal ao Estado Social. 3. Constituição garantiae constituição dirigente. 4. Eficácia e efetividadedo programa constitucional. 5. Constituiçãodirigente e decisão política. 6. A nova análisede Canotilho e a “Responsabilidade Social”.7. Crise de governabilidade e retorno ao EstadoLiberal. 8. Eficácia vinculante das normasconstitucionais programáticas. 9. Concretizaçãoda Constituição. 10. Conclusões.

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princípios e diretrizes sob os quais devemformar-se a unidade política e as tarefas doEstado, mas não se limita a ordenar apenasa vida estatal, regulando também as basesda vida não-estatal3.

A Constituição de 1988 é uma constitui-ção dirigente, pois define, por meio daschamadas normas constitucionais progra-máticas4, fins e programas de ação futurano sentido de melhoria das condiçõessociais e econômicas da população 5. Namesma linha das Constituições anterioresde 1934 e 1946, a Constituição de 1988construiu um Estado Social, ao englobarentre as suas disposições as que garantem afunção social da propriedade (artigos 5º ,XXIII, e 170, III), os direitos trabalhistas(artigos 6º a 11) e previdenciários (artigos194, 195 e 201 a 204), além de uma ordemeconômica fundada na valorização dotrabalho humano e na livre iniciativa, tendopor objetivo “assegurar a todos existênciadigna, conforme os ditames da justiçasocial” (art. 170). Conforme assinalou PauloBonavides6, a partir da Constituição de1988, o Estado passou não apenas a conce-der, mas a fornecer os meios de garantir eefetivar os direitos sociais (entre outros,mandado de segurança coletivo, mandadode injunção e inconstitucionalidade poromissão).

2. Do Estado Liberal ao Estado SocialO Estado Liberal, segundo, entre outros,

o Professor Fábio Comparato, é estático,conservador, cuja única tarefa é a degovernment by law, isto é, produzir direito,por meio da edição de leis7. Os mecanismosde freios e contrapesos, além de impediremo Estado de fazer o mal, isto é, ameaçar asliberdades e garantias individuais, tambémo impedem de empreender políticas ouprogramas de ação a longo prazo, revelando,assim, a inadequação estrutural dos poderespúblicos nesse tipo de Estado8.

A grande mudança ocorreu com asuperação do Estado de Direito formal peloEstado Social de Direito. A suposta anti-

nomia entre Estado de Direito e EstadoSocial tem um caráter ideológico de que areestruturação democrático-social não podeser feita por meio do Estado de Direito,refletindo a idéia de que a Constituiçãorepresenta uma limitação do poder estru-tural, devendo os fins político-sociais seremrelegados para a administração, sendo oEstado Social, conseqüentemente, contrárioàs liberdades individuais.

Nesse sentido, destaca-se a posição dojurista conservador alemão Ernst Forsthoff,que diz serem incompatíveis o Estado deDireito e o Estado Social no plano de umamesma constituição9 e destaca que o EstadoSocial deve limitar-se ao âmbito administra-tivo, não podendo alçar-se à categoriaconstitucional, pois a Constituição não é leisocial, devendo, além de tudo, ser breve10. OEstado Social de Direito não é, para Forsthoff,um conceito jurídico, no sentido em que delenão podem ser deduzidos direitos e deveresconcretos, nem instituições jurídicas11. Essesargumentos se assemelham em muito aosdaqueles que defendem a desconstituciona-lização de inúmeras matérias da nossaConstituição, pois, além de ser “detalhistaem excesso”, é muito extensa, com muitosartigos. Ao que parece, para eles, os nossosproblemas resumem-se ao fato de a Consti-tuição possuir 200 ou 20 artigos...

Para Luís Roberto Barroso, não háqualquer justificativa a esse tipo de argu-mento. O grande exemplo invocado nadefesa de um texto mais enxuto, a Consti-tuição norte-americana, foi fruto de condi-ções conjunturais e históricas únicas. Alémdisso, embora o texto da Constituição tenhapermanecido praticamente inalterado (comexceção das Emendas), ocorreram material-mente inúmeras mudanças constitucionaismediante a jurisprudência. Para ele, os quedefendem a adoção do modelo constitucio-nal americano como solução à “prolixi-dade” dos nossos textos constitucionaissão, na melhor das hipóteses, ingênuos12.Na realidade, segundo Paulo Bonavides, aConstituição tornou-se mais volumosagraças à preocupação de dotar certos

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institutos de proteção mais eficaz, ao anseiode conferir maior estabilidade a determina-das matérias e à conveniência de atribuir aoEstado, por meio do texto constitucional,encargos considerados pelo constituintecomo indispensáveis à manutenção da pazsocial13.

No Estado de Direito, as regras jurídicasestabelecem padrões de conduta ou compor-tamento e garantem também uma distan-ciação e diferenciação do indivíduo, pormeio do Direito, perante os órgãos públicos,assegurando-lhe um estatuto subjetivoessencialmente caracterizado pelos direitose garantias individuais. Isso não significahoje oposição entre o Direito e o Estado. Afunção do Direito num Estado de Direitomoderno não é apenas negativa ou defen-siva, mas positiva: deve assegurar, positi-vamente, o desenvolvimento da personali-dade, intervindo na vida social, econômicae cultural. O Estado de Direito atual não seconcebe mais como anti-estatal.

Com as novas tarefas do Estado, o livredesenvolvimento da personalidade nãomais se baseia no apego à propriedadecontra a intervenção estatal, excludente deboa parcela da população, mas se funda naspróprias prestações estatais. O arbítrio dospoderes públicos é evitado mediante areserva da lei e do princípio democrático,característicos do Estado de Direito. A buscade melhorias sociais e econômicas dá-se semo sacrifício das garantias jurídico-formaisdo Estado de Direito. Afinal, a liberdade éinconcebível sem a solidariedade, e aigualdade e progresso sócio-econômicosdevem fundar-se no respeito à legalidadedemocrática14.

Governar, no entanto, passou a não sermais a gerência de fatos conjunturais, mastambém, e sobretudo, o planejamento dofuturo, com o estabelecimento de políticas amédio e longo prazo. Com o Estado Social, ogovernment by policies substitui o governmentby law do liberalismo. A execução depolíticas públicas15, tarefa primordial doEstado Social, com a conseqüente exigênciade racionalização técnica para a consecução

dessas mesmas políticas, acaba por se revelarincompatível com as instituições clássicasdo Estado Liberal16.

A base do Estado Social é a igualdadena liberdade e a garantia do exercício dessaliberdade. O Estado não se limita mais apromover a igualdade formal, a igualdadejurídica. A igualdade procurada é a igual-dade material, não mais perante a lei, maspor meio da lei17. A igualdade não limita aliberdade. O que o Estado garante é aigualdade de oportunidades, o que implicaa liberdade, justificando a intervençãoestatal18.

3. Constituição garantia e constituiçãodirigente

O grande debate constitucional trava-seentre aqueles que consideram a Constituiçãoum simples instrumento de governo,definidor de competências e regulador deprocedimentos, e os que acreditam que aConstituição deve aspirar a transformar-senum plano global que determina tarefas,estabelece programas e define fins para oEstado e para a sociedade. No primeiro caso,a lei fundamental deve ser entendidaapenas como uma norma jurídica superior,abstraindo-se dos problemas de legitimaçãoe domínio da sociedade. A Constituiçãocomo instrumento formal de garantia nãopossui qualquer conteúdo social ou econô-mico, sob a justificativa de perda de juridi-cidade do texto. As leis constitucionais sóservem, então, para garantir o status quo. AConstituição estabelece competências,preocupando-se com o procedimento, nãocom o conteúdo das decisões, com o objetivode criar uma ordem estável. Subjacente àessa tese da Constituição como mero“instrumento de governo” está o liberalismoe sua concepção equivocada de separaçãoabsoluta entre o Estado e a sociedade, com adefesa do Estado-mínimo, competenteapenas para organizar o procedimento detomada de decisões políticas. Deve-se deixarclaro que o Estado não é o único opressor19,assim como nem sempre o Estado-mínimo e

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sua Constituição são os melhores guardiãesda liberdade. A Constituição não poderestringir-se ao Estado, deve ser a leifundamental também da sociedade20.

As teorias redutoras da Constituição amero instrumento de governo são insufi-cientes, pois hoje se constata que organizare racionalizar os poderes pressupõe algumamedida material para o exercício dessespoderes. Passa-se a se exigir a fundamen-tação substantiva para os atos dos poderespúblicos. Tradicionalmente, essa funda-mentação material é dada essencialmentepelos direitos fundamentais. A fundamen-tação pode limitar-se a princípios, denomi-nados por Canotilho princípios materiaisestruturantes (Estado de Direito, Demo-cracia, República), ou estender-se à impo-sição de tarefas e programas que os poderespúblicos devem concretizar. A constitu-cionalização de tarefas torna mais impor-tante a legitimação material, embora nãosubstitua (e nem deveria) a luta política.Esse problema de legitimação gera o fenô-meno da dinamização da Constituição,expresso na consagração de linhas dedireção, na tendência para sujeitar os órgãosde direção política à execução de imposiçõesconstitucionais e na constitucionalizaçãodos direitos econômicos e sociais. A Cons-tituição deixa de ser instrumento de gover-no, definidor de formas e competências parao exercício do poder, insistindo-se na pro-gramática (tarefas e fins do Estado)21.

As tarefas e fins do Estado inseridos notexto constitucional e os princípios consti-tucionais são propostas de legitimaçãomaterial da Constituição de um país. Acompreensão material da Constituiçãopassa pela materialização dos fins e tarefasconstitucionais. Se o Estado constitucionaldemocrático não se identifica apenas com oEstado de Direito formal e quer legitimar-secomo Estado Social, surge o problema daConstituição dirigente, que passa pelaquestão da legitimação além dos limitesformais do Estado de Direito, baseando-setambém na transformação social, na distri-buição de renda e na direção pública do

processo econômico22. A Constituição deixade ser apenas do Estado, para ser tambémda sociedade.

A dualidade marca as discussões emtorno da Constituição, contrapondo a idéiade sociedade civil e liberdade (mercado) àidéia de sociedade e igualdade (Estado). Aoinvés de considerarmos esses pontos comoabsolutos, devemos ter em mente que oproblema da Constituição dirigente é umproblema de transformação da realidade.Quando se questiona a Constituição diri-gente e sua matriz programática, opõe-sesempre a Constituição-garantia, instrumen-to de governo. O problema está em comodeve ser conformada a realidade: se essaadequação deve estar explícita ou não notexto constitucional. Não podemos deixarde destacar que todas as constituiçõespretendem, implícita ou explicitamente,conformar globalmente o domínio políticomediante a sua atuação. Hoje abandona-seo ordenamento majoritariamente repressivoe afirmam-se novas funções do Direito, decondução e incentivo do processo social23.

4. Eficácia e efetividade do programaconstitucional

Os problemas da Constituição não sãoapenas os derivados da ordenação doslimites e competências, mas também os defundamentação da ordem jurídica. Indepen-dentemente da função de dar forma eprocedimento à atuação estatal (a Consti-tuição jurídica também é uma Constituiçãopolítica), a fixação adquire sentido materialquando relacionada a determinados fins. Éóbvio que uma constituição apenas defini-dora de competências e garantidora deliberdades formais atinge mais facilmente oideal de efetividade imediata. Uma consti-tuição programática, por sua vez, torna maistransparente a vinculação dos órgãos dedireção política ao fornecer linhas deatuação e direção. A Constituição enquantolei fundamental tende a refletir a interdepen-dência do Estado e da sociedade (ela éestatal e social). De acordo com Canotilho, o

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sentido normativo de uma constituiçãoconcebe-se como prospectivamente orien-tado, sem fechar o sistema, pois não éapenas o garantidor do existente, mas deveser o esboço do porvir24.

O caráter programático suscita proble-mas específicos que põem em jogo a forçanormativa da Constituição, pois implica quese confie a concretização a instânciaspolíticas, dependendo da vontade dosdetentores do poder político25. A amplitudee a indeterminação do texto constitucionalnão supõe, segundo Konrad Hesse, aincapacidade da Constituição para regulara vida do Estado e da sociedade. Segundoele, a Constituição não se limita a deixarmatérias abertas, mas a estabelecer, comcaráter vinculante, o que não pode ficaraberto e indeterminado, além de estabeleceros procedimentos por meio dos quaispodem ser decididas as questões abertas26.

O pensamento constitucional tradicio-nal, de acordo com Konrad Hesse, estámarcado pelo isolamento entre norma erealidade, dando-se ênfase em uma ou outradireção. Assim, chega-se a uma normadespida de elementos de realidade ou a umarealidade sem elementos normativos. Anorma constitucional não tem existênciaautônoma em face da realidade. Sua essên-cia reside na vigência e na pretensão deeficácia (a situação regulada pretende serconcretizada na realidade), que não podemser separadas das condições históricas. Égraças a essa pretensão de eficácia que aConstituição vai procurar ordenar e confor-mar a realidade. A Constituição adquireforça normativa na medida em que lograrealizar essa pretensão de eficácia27.

A eficácia pode ser compreendida tantono sentido jurídico quanto no social. Noprimeiro caso, diz respeito à possibilidadejurídica de aplicação da norma, ou seja, é aqualidade de produzir, mais ou menos,efeitos jurídicos ao regular situações oucomportamentos. No segundo, trata-se daconformidade das condutas à norma, isto é,se ela foi realmente observada28. A eficáciada lei, para Marcelo Neves, abrange situa-

ções das mais variadas (observância29,execução30, aplicação e uso do direito),podendo ser compreendida genericamentecomo concretização normativa. Para ele, esseprocesso sofre bloqueios sempre que oconteúdo do texto legal positivado forrejeitado, desconsiderado ou desconhecidonas diversas interações da sociedade31.Detentoras de eficácia jurídica, as normasprogramáticas têm, assim, possibilidade deter alcançados os seus objetivos, ou seja,possuem perspectiva de efetividade32, ou naspalavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha:

“Os efeitos da norma constitucio-nal, contudo, são sempre plenos, valedizer, o que nela se contém e se consti-tuiu é efetivável”33.

Já a efetividade, ou eficácia social, refere-se à implementação do programa finalísticoque orientou a atividade legislativa. A normasó será efetiva quando seu objetivo foralcançado por força de sua eficácia (obser-vância, aplicação, execução, uso), ou seja,quando ocorrer a concretização do comandonormativo no mundo real34.

5. Constituição dirigente e decisãopolítica

As constituições dirigentes, como anossa de 1988, vêm sendo duramentecriticadas nos últimos tempos. O grandedebate travado diz respeito à continuidadeou não de um modelo de desenvolvimentocentrado no Estado intervencionista. Emtermos jurídicos, surgem os grandes defen-sores da “desconstitucionalização” e da“desregulamentação”. Em 1982, Canotilhojá tratava do tema:

“A ‘desconstitucionalização’ dematérias em nome de uma ‘desesta-dualização’ e ‘desregulamentação’mostra as conseqüências a que umaapressada crítica contra a juridiciza-ção conduz: aquela – a desestaduali-zação – propõe a substituição danormatividade constitucional pela‘economicização da política’ e davinculação jurídica do sistema político

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pelas ‘leis económicas’; esta – a des-regulamentação – pede a minimiza-ção da vinculação jurídica dos finspolíticos para tornar mais claudicanteo estatuto político-social já alcançado(direitos dos trabalhadores, medidassociais, garantias de qualidade devida)”35.

Uma das críticas mais comuns feitas àconcepção de constituição dirigente é a de otexto constitucional promover de tamanhaforma o dirigismo estatal que estaria preten-dendo substituir o processo de decisãopolítica. Nesse sentido, afirma Diogo deFigueiredo Moreira Neto:

“O caminho do desenvolvimentoinstitucional só estará aberto quandoas fórmulas impositivas de políticaspúblicas forem varridas da Constitui-ção, abrindo espaço para que se pos-sa praticar uma autêntica democraciade escolhas de como queremos ser go-vernados e não apenas de escolha dequem queremos que nos governe”36.

A Constituição dirigente não estabeleceuma linha única de atuação para a política,reduzindo a direção política à execução dospreceitos constitucionais, ou seja, substituia política. Pelo contrário, ela procura, antesde mais nada, estabelecer um fundamentoconstitucional para a política, que devemover-se no âmbito do programa constitu-cional. Dessa forma, a Constituição dirigen-te não substitui a política, mas se torna asua premissa material. O poder estatal é umpoder com fundamento na Constituição, eseus atos devem ser considerados constitu-cionalmente determinados. Inclusive, aonão regular inúmeras questões (afinal,nenhuma constituição pode-se pretendercompleta ou perfeita), cabe à discussãopolítica solucioná-las. A função da Consti-tuição dirigente é a de fornecer uma direçãopermanente e consagrar uma exigência deatuação estatal37.

A definição dos fins do Estado não podenem deve derivar da vontade políticaconjuntural dos governos38. Os fins políticossupremos e as tarefas do Estado encontram-

se normatizados na Constituição. Afinal, aConstituição legitima o poder político doEstado. O programa constitucional não tolhea liberdade do legislador ou a discriciona-riedade do governo, nem impede a reno-vação da direção política e a confrontaçãopartidária. Essa atividade de definição delinhas de direção política tornou-se ocumprimento dos fins que uma repúblicademocrática constitucional fixou em simesma. Cabe ao governo selecionar e especi-ficar sua atuação a partir dos fins constitu-cionais, indicando os meios ou instrumentosadequados para a sua realização39.

Segundo Cristina M. M. Queiroz:“Não obstante, o direito constitu-

cional não abrange o ‘todo’. O legisla-dor constitucional encontra-se, defacto, na impossibilidade de preverqual o tratamento das relações consti-tucionais futuras no quadro de umasociedade cambiante e mutável emmatéria de valores. Mas tal não oimpede de conformar e sancionar(:legitimar), nomologicamente, atotalidade da relação de vida política.A política encontra-se submetida a umcomplexo sistema de imposições elimitações constitucionais. Da sua con-formidade ou desconformidade com aparametricidade da norma constitu-cional depende em larga medida a ques-tão da sua constitucionalidade”40.

6. A nova análise de Canotilho e a“Responsabilidade Social”

José Joaquim Gomes Canotilho, em suaúltima obra, Direito Constitucional e Teoria daConstituição, afirma que o problema funda-mental da constituição na atualidade é o desaber ponderar as medidas liberais e estataisque devem informar o texto constitucionalpara que a Constituição continue sendo odocumento fundamental da res publica semse converter em instrumento totalizador comconcepções unidimensionais do Estado e dasociedade41.

Revendo posições anteriores, Canotilhodefende que a Constituição deve evitar

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converter-se em lei da totalidade social, paranão perder sua força normativa42. Afirmaque os textos constitucionais de cunhodirigente (como a Constituição portuguesade 1976 e a brasileira de 1988) perderam acapacidade de absorver as mudanças einovações da sociedade, não podendo maisintegrar o todo social, tendendo a exerceruma função meramente supervisora dasociedade, não mais diretiva. As constitui-ções dirigentes padeceriam de uma “crisede reflexividade”, ou seja, não mais conse-guiriam gerar um conjunto unitário derespostas, dotado de racionalidade ecoerência, às cada vez mais complexasdemandas e exigências da sociedade. Aeficácia das constituições é cada vez maiscontestada43, podendo fazer com que pas-sem a ser consideradas meramente como“constituições simbólicas”44.

A Constituição, para Canotilho, não temmais capacidade para ser dirigente. Deve,assim, limitar-se a fixar a estrutura eparâmetros do Estado e estabelecer osprincípios relevantes para a sociedade45. Ossistemas jurídico e político, assim, nãopodem mais ter a pretensão de supremaciae universalidade sobre os outros sistemassociais (como o econômico)46, ou seja, nãopodem mais pretender regulá-los de maneiraeficaz.

Grande parte das críticas ao modelo deEstado e de constituição existentes hoje éproveniente de teorias como a teoria dodireito reflexivo. Grosso modo, essa teoria tempor fundamento o postulado de que oEstado e seus instrumentos jurídico-norma-tivos não mais têm capacidade de regular acomplexidade da sociedade contemporânea.Diante dessa incapacidade do Estado, aprópria sociedade busca reduzir a suacomplexidade por meio da diferenciaçãointerna em vários sistemas, cada um delesatuando em áreas determinadas e auto-organizando suas estruturas, ordenamento,identidade, etc. Essa diferenciação dasociedade em vários sistemas faz com quenão haja mais necessidade das normasgerais e padronizadoras do Estado. Além

disso, nenhum sistema pode pretenderdirigir a sociedade como um todo, o queinvalida as pretensões do Direito, do Estadoe da Política de promoverem a integraçãosocial. O ordenamento jurídico passaria aser um ordenamento de coordenação,viabilizando a autonomia dos sistemas paramaximizar sua racionalidade interna.Embora não possa impor soluções para ossistemas, o ordenamento jurídico levariaesses sistemas, com base nos princípios da“responsabilidade social” e da “consciênciaglobal”, a uma reflexão sobre os efeitos sociaisde suas decisões e atuação, induzindo-os anão ultrapassar situações limite em quetodos perderiam47.

Esse modelo do direito reflexivo não estálivre de críticas. Destacaremos apenasuma48, que diz respeito ao fato de que, parafuncionar sem grandes traumas, a sociedadedepende do acatamento pelos vários siste-mas dos princípios da “responsabilidadesocial” e “consciência global”. Ou seja,critica-se a “utópica” pretensão do Estado eda Constituição de quererem regular a vidasocial mediante um programa de tarefas eobjetivos a serem concretizados de acordocom as determinações constitucionais e, emseu lugar, propõe-se, não menos utopica-mente, na nossa opinião, que os váriossistemas agirão coordenados pela idéia de“responsabilidade social”.

Utilizemos, para demonstrar a fragilidadedesse tipo de argumentação, as afirmaçõesde Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

“Nesse sentido, e recuando elegan-temente de posições anteriores, comoconvém a um sábio de seu porte,Gomes Canotilho considerou ‘pertur-bador da identidade reflexiva – capa-cidade de prestação de uma Consti-tuição e impeditivo de um desenvol-vimento constitucional – ... fazeracompanhar a positivação de direitosde um complexo de imposições cons-titucionais tendencialmente confor-madoras de políticas públicas dedireitos econômicos, sociais e cultu-rais’. Parece claro que a reflexividade,

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assim pretendida, poderá contribuirimensamente para reforçar os demaisemergentes acima referidos, abrindoespaços para a participação, substi-tuindo o dirigismo estatal pela consen-sualidade, avivando o sentido de identi-dade e de responsabilidade da sociedadecivil e, sobretudo, a sua sensibilidademoral, indispensável à sólida funda-mentação de uma duradoura teoria dajustiça, sem a qual o direito não é maisque uma coleção anódina de regras”49.

Não basta alegar que devemos substituira determinação e realização exclusiva daspolíticas públicas e sociais por parte doEstado pela supremacia do chamado“princípio da responsabilidade”, baseadoapenas na atuação da sociedade civil, comoo fizeram Diogo de Figueiredo Moreira Netoe José Joaquim Gomes Canotilho. Ao invésde propor a concretização constitucional,Canotilho limitou-se a substituir a inefetivi-dade das políticas estatais previstas naschamadas constituições dirigentes pelaresponsabilização da sociedade civil pelaimplementação dessas mesmas políticas50.

7. Crise de governabilidade e retorno aoEstado Liberal

Outras críticas feitas à Constituição de1988, enquanto constituição dirigente,dizem respeito à questão da governabili-dade. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho,a Constituição de 1988 agravou a governa-bilidade brasileira ao sobrecarregar o Estadode tarefas, sem providenciar os recursospara as mesmas, ou seja, preocupou-se coma distribuição de riquezas, não com aprodução delas51. Na sua opinião, a crise degovernabilidade brasileira seria solucio-nada com uma nova constituição:

“A superação da crise de ingover-nabilidade não prescinde, ao invés,reclama, uma nova Constituição. A de1988 nasceu fora de época, aindainspirada por um marxismo vulgarintitulado de socialismo ‘real’, quelogo se esboroou. É necessário jogar

no arquivo essa obra do copismo deesquerda”52.

Para ele, o Estado deve ser mínimo,baseado no princípio da subsidiariedade.No entanto, mesmo o princípio de subsidia-riedade deve ter suas prioridades hierarqui-zadas, dependendo da importância damatéria para o bem comum e os recursosdisponíveis pelo Estado53. O Estado, assim,deve limitar-se a ser o fiscalizador e incenti-vador da iniciativa privada, nunca agentede políticas públicas.

Na realidade, o que pretendem os atuaiscríticos da Constituição é a volta ao Estadomínimo do liberalismo do século XIX.Pretendem eles relegar o poder do Estado asimples garantidor, nas palavras de Diogode Figueiredo Moreira Neto, do funciona-mento das três instituições fundamentais doDireito Privado e da economia de mercado:a propriedade, o contrato e a responsabili-dade civil54.

Essa concepção, hoje em voga, pretendeignorar as mais atuais concepções do Direi-to Privado. A evolução do Direito Privadomoderno, a partir de 1918, evidencia umasérie de traços comuns. O principal dizrespeito à relativização dos direitos privadospela sua função social. O bem-estar coletivodeixa de ser responsabilidade exclusiva doEstado e da sociedade, para conformartambém o indivíduo55. Os direitos indivi-duais não são mais entendidos comopertencentes ao indivíduo em seu exclusivointeresse, mas como instrumentos para aconstrução de algo coletivo. Hoje não é maispossível a individualização de um interesseparticular completamente autônomo, iso-lado ou independente do interesse público56.A norma constitucional tornou-se a razãoprimária e justificadora da relevânciajurídica, incidindo diretamente sobre oconteúdo das relações entre situaçõessubjetivas, funcionalizando-as conforme osvalores constitucionalmente consagrados57.Isso ocorre tanto na esfera da propriedade,quanto na do contrato, da responsabilidadecivil58 e até do Direito de Família.

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A autonomia privada deixou de ser umvalor em si59. Os atos de autonomia privada,possuidores de fundamentos diversos,devem encontrar seu denominador comumna necessidade de serem dirigidos à reali-zação de interesses e funções socialmenteúteis60.

Na questão da propriedade privada, afunção social é mais do que uma meralimitação. Trata-se de uma concepção queconsubstancia-se no fundamento, razão ejustificação da propriedade. A função socialda propriedade não tem inspiração socia-lista, antes é um conceito próprio do regimecapitalista, que legitima o lucro e a proprie-dade privada dos bens de produção, aoconfigurar a execução da atividade doprodutor de riquezas, dentro de certosparâmetros constitucionais, como exercidadentro do interesse geral. A função socialpassou a integrar o conceito de propriedade,justificando-a e legitimando-a61. A proprie-dade dotada de função social legitima-sepela sua função. A que não cumprir funçãosocial não será mais objeto de proteçãojurídica, conforme salienta Perlingieri:

“A ausência de atuação da funçãosocial, portanto, faz com que falte arazão da garantia e do reconheci-mento do direito de propriedade”62.

De acordo com a doutrina tradicional, apropriedade privada, o contrato e a respon-sabilidade civil são regulados pelo CódigoCivil e a Constituição serviria apenas comolimite ao legislador ordinário, ao traçar osprincípios e programas a serem seguidos.No entanto, essa visão hoje não procede63.A perda de espaço pelo Código Civil decorreda chamada publicização ou despatrimo-nialização 64 do direito privado, invadidopela ótica publicista. A Constituição sucedeuo Código Civil enquanto centro do sistemade direito privado, conforme acentuouPerlingieri:

“O Código Civil certamente per-deu a centralidade de outrora. O papelunificador do sistema, tanto nos seusaspectos mais tradicionalmente civi-lísticos quanto naqueles de relevância

publicista, é desempenhado de manei-ra cada vez mais incisiva pelo TextoConstitucional”65.

8. Eficácia vinculante das normasconstitucionais programáticas

Sendo patente a impossibilidade deretorno ao Estado Liberal, devemos ater-nosà questão das normas programáticas. Aconcepção simplista que considera inexis-tentes ou de irrelevância social os textoslegais carentes de eficácia normativa deveser rejeitada. Todas as normas constitu-cionais, inclusive as normas programáticas,são dotadas de eficácia vinculante66. Deacordo com José Afonso da Silva:

“Temos que partir, aqui, daquelapremissa já tantas vezes enunciada:não há norma alguma destituída deeficácia. Todas elas irradiam efeitosjurídicos, importando sempre umainovação da ordem jurídica preexis-tente à entrada em vigor da Constitui-ção a que aderem e a nova ordenaçãoinstaurada. O que se pode admitir éque a eficácia de certas normas cons-titucionais não se manifesta na pleni-tude dos efeitos jurídicos pretendidospelo constituinte enquanto não seemitir uma normação jurídica ordiná-ria ou complementar executória,prevista ou requerida”67.

Equivocam-se, assim, aqueles que afir-mam que as normas programáticas de umaconstituição como a de 1988 não são jurídi-cas. Elas possuem juridicidade, carátervinculativo e são uma imposição constitu-cional aos órgãos públicos68. Os instru-mentos fornecidos pela própria ordemjurídica, consagrados na Constituição,visando a consecução da justiça social, nãopodem ser, sob hipótese alguma, despreza-dos69. A justiça social é determinanteessencial que conforma todas as normas daordem econômica, de modo que só possamser entendidas e operadas tendo em vistaesse princípio constitucional, além de seruma exigência constitucional para todo

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exercício de atividade econômica70. OEstado brasileiro possui o dever jurídico-constitucional de realização da justiçasocial, mesmo que seus dispositivos estejamem normas programáticas. Segundo CelsoAntônio Bandeira de Mello:

“Uma vez que a nota típica doDireito é a imposição de condutas,compreende-se que o regramento cons-titucional é, acima de tudo, um con-junto de dispositivos que estabelecemcomportamentos obrigatórios para oEstado e para os indivíduos. Assim,quando dispõe sobre a realização daJustiça Social – mesmo nas regraschamadas programáticas –, está, naverdade, imperativamente, constituin-do o Estado brasileiro no indeclináveldever jurídico de realizá-la”71.

No mesmo sentido, denuncia PauloBonavides:

“Vemos com freqüência os publi-cistas invocarem tais disposições paraconfigurar a natureza política eideológica do regime, o que aliás écorreto, enquanto naturalmente talinvocação não abrigar uma segundaintenção, por vezes reiterada, delegitimar a inobservância de algumasdeterminações constitucionais. Talacontece com enunciações diretivasformuladas em termos genéricos eabstratos, às quais comodamente seatribui a escusa evasiva da programa-ticidade como expediente fácil parajustificar o descumprimento da von-tade constitucional”72.

Podemos destacar, seguindo a lição deLuís Roberto Barroso, os seguintes efeitosdas normas constitucionais programáticas:

“Objetivamente, desde o início desua vigência, geram as normas pro-gramáticas os seguintes efeitos ime-diatos: (A) revogam os atos normati-vos anteriores que disponham emsentido colidente com o princípio quesubstanciam; (B) carreiam um juízo deinconstitucionalidade para os atosnormativos editados posteriormente,

se com elas incompatíveis73. Ao ângulosubjetivo, as regras em apreço confe-rem ao administrado, de imediato,direito a: (A) opor-se judicialmente aocumprimento de regras ou à sujeiçãoa atos que o atinjam, se forem contrá-rios ao sentido do preceptivo consti-tucional; (B) obter, nas prestaçõesjurisdicionais, interpretação e decisãoorientadas no mesmo sentido e direçãoapontados por estas normas, sempreque estejam em pauta os interessesconstitucionais por elas protegidos”74.

9. Concretização da ConstituiçãoA força normativa da Constituição, para

Konrad Hesse, não se limita somente à suaadaptação à realidade concreta. A Consti-tuição impõe tarefas que devem ser efetiva-mente realizadas. No entanto, isso se darásomente se existir a, por ele denominada,“vontade de constituição” (Wille zur Ver-fassung). Essa “vontade de constituição”possui três vertentes: a compreensão danecessidade de uma ordem normativacontra o arbítrio, a constatação de que essaordem não é eficaz sem o concurso davontade humana e de que a ordem norma-tiva adquire e mantém sua vigência sempremediante atos de vontade75. O que Hesseafirma é que a força normativa da Consti-tuição não depende apenas de seu conteúdo,mas também de sua prática. Se não foremrespeitados os princípios constitucionais,desperdiça-se um capital que nunca maisserá recuperado. As freqüentes revisõesexpressam a idéia de que as exigências con-junturais têm mais valor que a ordemconstitucional vigente76. Hesse concluiafirmando que a intensidade da forçanormativa deriva diretamente da “vontadede constituição”77. Entre nós, infelizmente,essa “vontade de constituição” praticamenteinexiste nos altos escalões da República,quer sejam do Executivo, do Legislativo oudo Judiciário.

Muitos afirmam que um dos problemasda concretização constitucional é o da

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ausência de sanção pelo não-cumprimentodas suas normas. Esclarece, no entanto, LuísRoberto Barroso que uma das sançõesexistentes no Direito Constitucional é aresponsabilidade política78. O governanteque descumprir ou violar dispositivos daConstituição estará cometendo crime deresponsabilidade (como os previstos noartigo 85 da Constituição, no caso doPresidente da República), estando sujeito,portanto, às penalidades previstas, inclu-sive a perda do mandato ou cargo público79.

Ainda há a questão das omissõeslegislativas. De acordo com Crisafulli, asomissões legislativas configuram um com-portamento inconstitucional do PoderLegislativo. Na sua opinião, o mecanismoconstitucional é organizado de maneira anão compreender a inércia legislativa. Asanção, para ele, é a responsabilidadepolítica dos legisladores e dos agentespúblicos que não cumpriram com seu deverconstitucional80. A Constituição de 1988instituiu como garantia contra as omissõeslegislativas a ação direta de inconstitucio-nalidade por omissão e o mandado deinjunção81.

A Constituição pode ainda ser concreti-zada por meio da interpretação constitucio-nal. O conteúdo de uma norma constitu-cional não pode realizar-se com base apenasnas pretensões contidas na norma, masnecessita de concretização. Esta só serápossível, para Konrad Hesse, se levarmosem consideração, junto ao contexto norma-tivo, as circunstâncias da realidade que essanorma pretende regular82.

A interpretação constitucional é domi-nada pelos princípios, que dão coerênciageral ao sistema83, ou, nas palavras de VezioCrisafulli, “l’adozione di un principio generalesignificando sempre l’adozione di una determi-nata linea di sviluppo dell’ordinamentogiuridico”84. As normas constitucionaisprogramáticas contêm princípios geraisinformadores de toda a ordem jurídica85.

De acordo com Vezio Crisafulli:“In ogni altri casi, le norme costitu-

zionali programmatiche avranno pur-

tuttavia una efficacia indiretta, in quantiprincipi generali d’interpretazione dellenorme legislative, il significato delle qualidovrà essere stabilito, nel dubbio e finchèciò si a consentito dalla loro formulazionetestuale, nel modo più conforme allanorma programmatica”86.

Os princípios, assim, são ordenações quese irradiam e coordenam os sistemas denormas. Apesar de serem base das normasjurídicas, os princípios podem estar positi-vados em um texto normativo, consubstan-ciando as chamadas normas-princípio,constituindo, assim, elementos básicos daorganização constitucional. A constitucio-nalização dos princípios tem um importantesignificado jurídico. Os princípios assumemforça normativo-constitucional, superandodefinitivamente a idéia de constituiçãocomo mero “instrumento de governo”(Constituição-garantia), prevalecendo aadoção da Constituição dirigente. Noentanto, os princípios possuem grau deabstração relativamente elevado, carecendode mediações concretizadoras87.

Os princípios político-constitucionaisintegram o Direito Constitucional positivo,explicitando as valorações políticas funda-mentais do legislador constituinte. Con-substanciam a ideologia inspiradora daConstituição. Esses princípios são normasconformadoras do sistema constitucionalpositivo. Traduzem, como afirmamos acima,as opções políticas fundamentais conforma-doras da Constituição. Os princípios fun-damentais são diretamente aplicáveis, fun-cionando como critério fundamental de in-terpretação e de integração, dando unidadee coerência a todo o sistema constitucional88.No caso da Constituição de 1988, osprincípios fundamentais são os estabele-cidos nos seus artigos 1º e 3º:

“Artigo 1º: A República Federativado Brasil, formada pela união indisso-lúvel dos Estados e Municípios e doDistrito Federal, constitui-se emEstado democrático de direito e temcomo fundamentos: I – a soberania; II– a cidadania; III – a dignidade da

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pessoa humana; IV – os valores sociaisdo trabalho e da livre iniciativa; V – opluralismo político. Parágrafo Único.Todo o poder emana do povo, que oexerce por meio de representanteseleitos ou diretamente, nos termosdesta Constituição.”

“Artigo 3º: Constituem objetivosfundamentais da República Federativado Brasil: I – construir uma sociedadelivre, justa e solidária; II – garantir odesenvolvimento nacional; III – erra-dicar a pobreza e a marginalização ereduzir as desigualdades sociais eregionais; IV – promover o bem detodos, sem preconceitos de origem,raça, sexo, cor, idade e quaisqueroutras formas de discriminação”.

Os princípios político-constitucionaisvisam essencialmente definir e caracterizaro Estado e enumerar suas principais opçõese objetivos político-constitucionais. Osartigos que fazem parte dessa divisão podemser considerados como matriz dos restantesdispositivos constitucionais, formando, nosdizeres de José Joaquim Gomes Canotilho eVital Moreira, “o cerne da Constituição”89.

Dessa maneira, os princípios constitu-cionais configuram o núcleo irredutível daConstituição, que não pode ter suas normasinterpretadas isoladamente, como se fossemartigos meramente justapostos. Afinal,conforme vimos acima, o texto constitu-cional é fundado em determinadas idéiaspositivadas em princípios que lhe garantemharmonia e coerência90. A Constituição é otexto jurídico que estabelece a estrutura e aconformação do Estado e da sociedade. Nãopode, portanto, ter suas normas compreen-didas pontualmente, a partir de um pro-blema isolado91. Uma norma constitucionalisolada não pode expressar significadonormativo se está destacada do sistema.Dessa forma, não há interpretação de textosisolados, e sim de todo o ordenamentoconstitucional92.

Cabe ao intérprete analisar a Consti-tuição de forma a evitar contradições entreas normas constitucionais93. As normas

constitucionais em tensão têm de serharmonizadas, equilibradas. A busca doequilíbrio dentro do sistema constitucionaltem por objetivo primordial que todos osseus preceitos obtenham efetividade94. Abusca por esse equilíbrio é denominadaotimização por Konrad Hesse. Para esseautor, a otimização (que deve ser estabe-lecida de forma que todas as normasconstitucionais alcancem a efetividade) éobtida ao conciliarmos o princípio daunidade da Constituição com o princípioda proporcionalidade95. Na medida em quea otimização produz um equilíbrio, aomesmo tempo impõe limites a determinadanorma constitucional, sem negar por com-pleto sua eficácia. Esse equilíbrio dá-se pormeio da ponderação de valores pelo intér-prete, realizada caso a caso, sem que nuncapossa ser realizada em uma única direçãopré-determinada96.

10. ConclusõesAs soluções dadas pelo intérprete e pelo

aplicador da Constituição devem estaradequadas e ser coerentes com a ideologiaconstitucionalmente adotada, que os vin-cula97. A Constituição de 1988 é voltada àtransformação da realidade. São os prin-cípios fundamentais da Constituição, comovimos, os consagrados nos seus artigos 1º e3º. São esses os princípios constitucionaisque constituem o “cerne da Constituição” eque devem servir de diretriz, por meio doprincípio da unidade da Constituição, paraa interpretação coerente das normas daConstituição de 1988 sem isolá-las do seusistema e contexto. A perspectiva jurídicada Constituição precisa ser completada porconsiderações de política constitucionaldirigidas para manter, possibilitar ou criaros pressupostos de uma realização legítimada Constituição 98.

O grande problema da Constituição de1988 é o de como aplicá-la, como realizá-la,ou seja, trata-se da concretização constitu-cional. E, como vimos acima, não faltammeios jurídicos para tanto. Não se reclamam

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mais direitos, mas garantias de sua imple-mentação. Na realidade, na opinião dePaulo Bonavides, a crise vivenciada sob avigência da Constituição de 1988 não é umacrise da Constituição, mas da sociedade, dogoverno e do Estado99.

A prática política e o contexto social têmfavorecido uma concretização restrita eexcludente dos dispositivos constitucionais.Não havendo concretização da Consti-tuição enquanto mecanismo de orientaçãoda sociedade, ela deixa de funcionarenquanto documento legitimador do Estado.Na medida em que se amplia a falta deconcretização constitucional, com as res-ponsabilidades e respostas sempre transfe-ridas para o futuro, intensifica-se o grau dedesconfiança e descrédito no Estado100, sejaenquanto poder político, seja enquantoimplementador de políticas públicas. Nessesentido, as constatações de Sergio Buarquede Holanda, infelizmente, continuamatuais:

“As constituições feitas para nãoserem cumpridas, as leis existentespara serem violadas, tudo em proveitode indivíduos e oligarquias, sãofenômeno corrente em toda a históriada América do Sul”101.

Notas1 Cf. Konrad HESSE, Escritos de Derecho

Constitucional , 2ª ed, Madrid, Centro de EstudiosConstitucionales, 1992, pp. 3-4 e 7-8.

2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributopara a Compreensão das Normas ConstitucionaisProgramáticas, reimpr., Coimbra, Coimbra Ed., 1994,pp. 154-158 e Direito Constitucional, 6ª ed, Coimbra,Livraria Almedina, 1993, pp. 75-76.

3 HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 15-17.4 Normas constitucionais programáticas são,

nas palavras de José Afonso da Silva, “normasconstitucionais através das quais o constituinte, emvez de regular, direta e imediatamente, determi-nados interesses, limitou-se a traçar-lhes osprincípios para serem cumpridos pelos seus órgões(legislativos, executivos, jurisdicionais e adminis-trativos), como programas das respectivasatividades, visando à realização dos fins sociais do

Estado” in SILVA, José Afonso da, Aplicabilidadedas Normas Constitucionais, 3ª ed, São Paulo,Malheiros, 1998, p. 138. Vide também CRISA-FULLI, Vezio, “Efficacia delle Norme Costituzionali‘Programmatiche’” in Rivista Trimestrale di DirittoPubblico, nº 1, Milão, Giuffrè, janeiro/março de 1951,pp. 360-361. As normas programáticas constituemum compromisso entre as forças liberais etradicionais e as reivindicações sociais e populares,cf. José Afonso da SILVA, Aplicabilidade cit., pp.135-137 e 145-146 e Paulo BONAVIDES, Curso deDireito Constitucional, 6ª ed, São Paulo, Malheiros,1996, p. 210. Nas palavras de Luís Roberto Barroso:“Os agrupamentos conservadores sofrem aparentederrota quando da elaboração legislativa, masimpedem, na prática, no jogo político do podereconômico e da influência, a consecução dosavanços sociais” in BARROSO, Luís Roberto, ODireito Constitucional e a Efetividade de suas Normas:Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira, 3ªed, Rio de Janeiro, Renovar, 1996, p. 62.

5 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., p.136.

6 BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 332-338. Nomesmo sentido de que a Constituição de 1988projeta a instalação de uma sociedade estruturadasegundo o modelo do bem-estar social, vide GRAU,Eros Roberto, A Ordem Econômica na Constituição de1988 (Interpretação e Crítica), 2ª ed, São Paulo, RT,1991, pp. 286-289 e 321-322.

7 COMPARATO, Fábio Konder, “Um QuadroInstitucional para o Desenvolvimento Democrático”in JAGUARIBE, Hélio; IGLÉSIAS, Francisco;SANTOS, Wanderley Guilherme dos ; CHACON,Vamiré & COMPARATO, Fábio, Brasil, SociedadeDemocrática, 2ª ed, Rio de Janeiro, José Olympio,1986, pp. 400 e 407; COMPARATO, Fábio Konder,“Planejar o Desenvolvimento: A PerspectivaInstitucional” in COMPARATO, Fábio Konder, ParaViver a Democracia , São Paulo, Brasiliense, 1989,pp. 93-95 e GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 74-77.

8 COMPARATO, Fábio Konder, “Planejar oDesenvolvimento...” cit., pp. 97-98 e 104-105.

9 FORSTHOFF, Ernst, “Problemas Constitucio-nales del Estado Social” in ABENDROTH, Wolfgang,FORSTHOFF, Ernst & DOEHRING, Karl, El EstadoSocial, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales,1986, p. 45.

10 FORSTHOFF, Ernst Forsthoff, “Concepto yEsencia del Estado Social de Derecho” in ABEN-DROTH, Wolfgang, FORSTHOFF, Ernst & DOEH-RING, Karl, El Estado Social, Madrid, Centro deEstudios Constitucionales, 1986, pp. 78-81 e 88.

11 Idem, p. 97.12 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitu-

cional cit., pp. 50-53.13 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 74.14 HELLER, Hermann, Teoría del Estado, México,

Fondo de Cultura Económica, 1992, pp. 229-234;

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SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitu-cional Positivo, 9ª ed, São Paulo, Malheiros, 1993,pp. 102-111 e CANOTILHO, José Joaquim Gomes,Direito Constitucional cit., pp. 358-359, 369 e 390-395.

15 Vide GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 13-14,19-20 e 31-34.

16 COMPARATO, Fábio Konder, “Um QuadroInstitucional...” cit., pp. 397-399. Conforme oProfessor Comparato: “A inadequação resulta dofato de que o Estado social não se legitimasimplesmente pela produção do direito, mas antesde tudo pela realização de políticas (policies), istoé, programas de ação” in idem, pp. 407-408.

17 BONAVIDES, Paulo, op. cit ., pp. 340-344.18 DOEHRING, Karl, “Estado Social, Estado de

Derecho y Orden Democratico ” in ABENDROTH,Wolfgang, FORSTHOFF, Ernst & DOEHRING, Karl,El Estado Social, Madrid, Centro de Estudios Cons-titucionales, 1986, pp. 161-168.

19 Karl Doehring, ao contrário dos liberaisconservadores, acredita ter sido o Estado criadopelos homens para garantir a liberdade, sendo estaa origem e o sentido da soberania do povo e dafórmula de que todo o poder emana do povo. Opapel do Estado é o de proteger a liberdade, pois éo único que pode garanti-la: “Por lo tanto, el Estadoes la expresión misma de la libertad, se identifica comella, ya que sin un Estado fuerte, la libertad no existiría”.Idem, pp. 148-150.

20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, DireitoConstitucional cit., pp. 79-82.

21 Idem, pp. 73-79 e 84-86 e CANOTILHO, JoséJoaquim Gomes; Constituição Dirigente cit., pp. 12,14 e 18-21. Sobre os fins e a legitimação do Estado,vide especialmente HELLER, Hermann, op. cit., pp.217-221 e 234-246.

22 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 21-24 e ROCHA, CármenLúcia Antunes, Constituição e Constitucionalidade,Belo Horizonte, Ed. Lê, 1991, pp. 34-36.

23 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 27-30 e 69-71.

24 Idem, pp. 150-154 e 169-170; CANOTILHO,José Joaquim Gomes, Direito Constitucional cit., pp.75-79 e ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op. cit.,pp. 35-36 e 46.

25 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 154-158 e 176-180.

26 HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 18-20.27 HESSE, Konrad, A Força Normativa da

Constituição , Porto Alegre, Sergio Antonio FabrisEditor, 1991, pp. 13-16. Nas palavras de Canotilho:“’Realizar a Constituição’ significa tornar juridica-mente eficazes as normas constitucionais. Qualquerconstituição só é juridicamente eficaz (pretensãode eficácia) através da sua realização. Estarealização é uma tarefa de todos os órgãos

constitucionais que, na actividade legiferante,administrativa e judicial, aplicam as normas daconstituição. Nesta ‘tarefa realizadora’ participamainda todos os cidadãos que fundamentam naconstituição, de forma direta e imediata, os seusdireitos e deveres” in CANOTILHO, José JoaquimGomes, Direito Constitucional cit., pp. 201-202.

28 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., p.66; BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitucionalcit., pp. 81-83 e 231; ROCHA, Cármen LúciaAntunes, op. cit., pp. 39-41 e NEVES, Marcelo, AConstitucionalização Simbólica , São Paulo, Ed.Acadêmica, 1994, p. 42.

29 Observância é, para Marcelo Neves, o fato dese agir conforme a norma sem que essa condutaesteja vinculada a uma atitude sancionatória. Cf.Marcelo NEVES, idem, p. 43.

30 Execução, ou imposição, é a reação concretaa comportamentos que contrariam os preceitoslegais, destinando-se à manutenção do direito ourecuperação da ordem violada. Cf. Marcelo NEVES,idem, ibidem.

31 NEVES, Marcelo, op. cit., p. 45. Vide tambémGRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 294-299.

32 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitu-cional cit., pp. 114-116.

33 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op. cit., p.41.

34 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp.65-66; BARROSO, Luís Roberto, O Direito Consti-tucional cit., pp. 82-83 e 231; ROCHA, Cármen LúciaAntunes, op. cit., pp. 40-41 e NEVES, Marcelo, op.cit., pp. 46-47.

35 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., p. 471.

36 MOREIRA Neto, Diogo de Figueiredo “Desa-fios Institucionais Brasileiros” in MARTINS, IvesGandra (org.), Desafios do Século XXI , São Paulo,Pioneira/Academia Internacional de Direito eEconomia, 1997, p. 195.

37 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., pp. 370-374;HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 17-18 e 20;CANOTILHO, José Joaquim Gomes, ConstituiçãoDirigente cit., pp. 193-196 e 462-471; GRAU, ErosRoberto, op. cit., pp. 287-289 e QUEIROZ, CristinaM. M., Os Actos Políticos no Estado de Direito: OProblema do Controle Jurídico do Poder, Coimbra,Livraria Almedina, 1990, pp. 16-18 e 111-113.Crisafulli afirma que as normas constitucionaisprogramáticas vinculam o legislador na medida emque este deve conformar suas decisões às suasdeterminações, eliminando, assim, a discriciona-riedade absoluta do legislador. Cf. Vezio CRISA-FULLI, idem, pp. 367-369.

38 De acordo com o Professor Eros Grau, a ordemeconômica constitucional não pode ser visualizadacomo um produto de imposições circunstanciaisou do capricho dos constituintes, mas como o

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resultado do confronto de posturas e texturasideológicas e de interesses que foram compostospara serem abrigados no texto constitucional demaneira peculiar, pois a Constituição é um sistemadotado de coerência, não havendo contradição entresuas normas. Cf. Eros Roberto GRAU, op. cit., pp.213-214 e 309. Para Crisafulli, a Constituição é quegarante o funcionamento correto e legítimo dosistema político, portanto, pode limitar a atuaçãodo governo ao estabelecer diretrizes e programasde atuação política. Afinal, a discricionariedade dogoverno não pode ser absoluta. Cf. Vezio CRISA-FULLI, op. cit., pp. 374-378.

39 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 462-471 e QUEIROZ,Cristina M. M.M., op. cit., pp. 139-147.

40 QUEIROZ, Cristina M. M., op. cit., p. 147.41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito

Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,Livraria Almedina, 1998, pp. 1191-1192.

42 Idem, pp. 1192-1193.43 Entre outras críticas às constituições

dirigentes, Canotilho destaca a da “sociologiacrítica”, que aponta para o fato de as normasconstitucionais não conseguirem obter eficácia real,havendo uma relação inversamente proporcionalentre o caráter ideológico das normas constitucionaise sua eficácia. Vide CANOTILHO, José JoaquimGomes, idem, p. 1204 e FARIA, José Eduardo,Direito e Economia na Democratização Brasileira, SãoPaulo, Malheiros, 1993, pp. 91-92, 99-102 e 152-155.

44 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, DireitoConstitucional e Teoria da Constituição cit., pp. 1199-1205 e 1208-1209. Sobre a chamada constituciona-lização simbólica, esclarece Marcelo Neves que, ondea ineficácia e a inefetividade atingirem graus muitoelevados, ocorrerá a falta de vigência social da lei,ou seja, a carência de normatividade do texto legal.Deve-se, no entanto, levar em consideração que asnormas produzem efeitos indiretos ou latentes quepoderão estar ou não vinculados à sua eficácia eefetividade. Um exemplo é o do significadoeconômico das normas jurídicas (Cf. MarceloNEVES, op. cit., pp. 47-49). A legislação simbólicaé caracterizada por ser normativamente ineficaz.Se for eficaz, mas inefetiva, não cabe falarmos emlegislação simbólica. A legislação simbólica pode-se apresentar de três maneiras: como confirmaçãode valores sociais, como álibi e como compromisso-dilatório (Idem, pp. 33-42 e 49). Em qualquer dessastrês maneiras, a legislação simbólica produz efeitosrelevantes para o sistema político, efeitos nãonecessariamente jurídicos. A legislação simbólicadescarrega o sistema político de pressões sociaisconcretas, constituindo respaldo político-eleitoralpara os legisladores ou servindo para demonstrarque as instituições são merecedoras da confiança

do povo (Idem, pp. 51-52).45 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito

Constitucional e Teoria da Constituição cit., pp. 1272-1273.

46 Idem, pp. 1205 e 1289-1290.47 Essa breve, portanto não isenta de erros e

simplificações de nossa parte, descrição da teoriado direito reflexivo foi baseada na análise dessateoria feita por José Eduardo FARIA, em sua obraO Direito na Economia Globalizada, São Paulo, mimeo,tese de titularidade, 1997, pp. 203-220.

48 Para outras críticas a essas teorias do direitoreflexivo, vide FARIA, José Eduardo, idem, pp. 321-328.

49 MOREIRA Neto, Diogo de Figueiredo, op. cit.,p. 195, grifos nossos.

50 Cf. José Joaquim Gomes CANOTILHO,“Rever ou Romper com a Constituição Dirigente?Defesa de um Constitucionalismo MoralmenteReflexivo” in Revista dos Tribunais: Cadernos de DireitoConstitucional e Ciência Política, nº 15, São Paulo, RT,abril/junho de 1996, pp. 7-17.

51 FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves, Consti-tuição e Governabilidade: Ensaio sobre a (In)governa-bilidade Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1995, pp.21-23 e 34-38.

52 Idem, p. 142.53 Idem, pp. 127-130.54 MOREIRA Neto, Diogo de Figueiredo, op. cit.,

pp. 197-198.55 WIEACKER, Franz, História do Direito Privado

Moderno, 2ª ed, Lisboa, Fundação CalousteGulbenkian, 1993, pp. 623-627.

56 PERLINGIERI, Pietro, Perfis do Direito Civil:Introdução ao Direito Civil Constitucional, 3ª ed, Riode Janeiro, Renovar, 1997, pp. 38-39 e 53-56.

57 Idem, pp. 11-12.58 Para uma excelente análise sobre os contornos

atuais da responsabilidade civil, o seu tratamentodoutrinário e jurisprudencial mais avançado e oseu entendimento de acordo com a Constituição,vide MATOS, Enéas de Oliveira, “ResponsabilidadeCivil do Transportador por Ato de Terceiro” inRevista dos Tribunais nº 742, São Paulo, RT, agostode 1997, especialmente pp. 146-152.

59 De acordo com Perlingieri: “A autonomia nãoé livre arbítrio”. Vide op. cit., p. 228.

60 Idem, pp. 18-19 e 277.61 Idem, p. 226; GOMES, Orlando, “A Função

Social da Propriedade” in Boletim da Faculdade deDireito: Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. A. Ferrer-Correia, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1989,pp. 428-429 e GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 251e 317.

62 PERLINGIERI, Pietro, op. cit., p. 229.63 Vide, especialmente, PERLINGIERI, Pietro,

op. cit., p. 10 e TEPEDINO, Gustavo, “A NovaPropriedade” in Revista Forense, nº 306, pp. 77-78.

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64 Para Perlingieri, a despatrimonialização é atentativa de reconstrução do direito civil, não comotutela das situações patrimoniais, mas como umdos instrumentos e garantidores do desenvolvi-mento livre e digno da pessoa humana. VidePERLINGIERI, Pietro, op. cit., pp. 33-34.

65 Idem, p. 6.66 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., pp. 358-359;

SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp. 71,75-76; BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 211-212 e219-223; BASTOS, Celso Ribeiro & BRITTO, CarlosAyres, Interpretação e Aplicação das Normas Constitu-cionais , São Paulo, Saraiva, 1982, pp. 35-36 e 82;QUEIROZ, Cristina M. M., op. cit., pp. 141-142;BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitucionalcit., pp. 82 e 87; ROCHA, Cármen Lúcia Antunes,op. cit., pp. 39 e 41 e NEVES, Marcelo, op. cit., p. 42.

67 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp.81-82.

68 Idem, pp. 138-139 e 152-155.69 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, “Eficácia

das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”in Revista de Direito Público, nº 57-58, São Paulo,RT, janeiro/junho de 1981, p. 235 e GRAU, ErosRoberto, op. cit., pp. 292-294.

70 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp.141-142 e GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 240-241.

71 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit.,p. 237.

72 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 218. Nomesmo sentido, vide CRISAFULLI, Vezio, op. cit.,pp. 357-358 e ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op.cit., pp. 46-48. José Afonso da Silva afirma queaqueles que negam juridicidade às normasconstitucionais programáticas têm por hábitocaracterizar como programática toda normaconstitucional incômoda. Cf. José Afonso da SILVA,Aplicabilidade cit., p. 153.

73 Escreveu Crisafulli: “In tutti questi casi, non viha dubbio che la inosservanza delle norme costituzionaleprogrammatiche da parte degli organi legislative saràmotivo di invalidità, totale o parziale, dell’ato di eserciziodel loro potere, ossia della legge deliberata in modocontrario o diverso da quanto disposto nella costituzione”in CRISAFULLI, Vezio, op. cit., p. 369. Vide tambémIdem, pp. 378-380 e SILVA, José Afonso da,Aplicabilidade cit., pp. 158-160. Para uma posiçãodiversa, vide BASTOS, Celso Ribeiro & BRITTO,Carlos Ayres, op. cit., pp. 86-88.

74 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitu-cional cit., pp. 117-118. Vide também MELLO, CelsoAntonio Bandeira de, op. cit., pp. 254-256.

75 HESSE, Konrad, A Força Normativa cit., pp.19-20.

76 Idem, pp. 21-23.77 Idem, pp. 24-25.78 BARROSO, Luís Roberto, O Direito Constitu-

cional cit., pp. 85-86.

79 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit.,pp. 247-249.

80 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., pp. 369-370.81 Não adentraremos na análise desses institutos

por fugir ao escopo deste trabalho. Vide BARROSO,Luís Roberto, O Direito Constitucional cit., pp. 159-177; ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op. cit., pp.202-213; CLÈVE, Clèmerson Merlin, A FiscalizaçãoAbstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro,São Paulo, RT, 1995, pp. 218-261 e CANOTILHO,José Joaquim Gomes, “Tomemos a Sério o Silênciodos Poderes Públicos – O Direito à Emanação deNormas Jurídicas e a Potecção Judicial contra asOmissões Normativas” in TEIXEIRA, Sálvio deFigueiredo, As Garantias do Cidadão na Justiça , SãoPaulo, Saraiva, 1993, pp. 351-367. Sobre asgarantias para a efetividade das normas constitu-cionais, vide SILVA, José Afonso da, Aplicabilidadecit. , pp. 164-166 e BARROSO, Luís Roberto, ODireito Constitucional cit., pp. 119-125.

82 HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 25-28.83 GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 185-187.84 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., p. 360.85 SILVA, José Afonso da, Aplicabilidade cit., pp.

156-158.86 CRISAFULLI, Vezio, op. cit., p. 378. No

mesmo sentido, afirma José Afonso da Silva: “Acaracterização das normas programáticas comoprincípios gerais informadores do regime político ede sua ordem jurídica dá-lhes importânciafundamental, como orientação axiológica para acompreensão do sistema jurídico nacional. Osignificado disso consubstancia-se no reconheci-mento de que têm elas uma eficácia interpretativaque ultrapassa, nesse ponto, a outras do sistemaconstitucional ou legal, porquanto apontam os finssociais e as exigências do bem comum, queconstituem vetores da aplicação da lei” in SILVA,José Afonso da, Aplicabilidade cit., p. 157.

87 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 277-279 e Direito Constitu-cional cit., pp. 166-168; CANOTILHO, José JoaquimGomes & MOREIRA, Vital, Fundamentos da Consti-tuição, Coimbra, Coimbra Ed., 1991, pp. 71-73 eSILVA, José Afonso da, Curso cit., pp. 84-85.

88 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Consti-tuição Dirigente cit., pp. 283-284 e Direito Constitu-cional cit., pp. 172-173; SILVA, José Afonso da, Cursocit., pp. 85-88 e BARROSO, Luís Roberto, Interpre-tação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de umaDogmática Constitucional Transformadora, São Paulo,Saraiva, 1996, pp. 141-150.

89 CANOTILHO, José Joaquim Gomes &MOREIRA, Vital, op. cit., p. 71. Vide tambémBONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 257-259.

90 BARROSO, Luís Roberto, Interpretação. cit.,pp. 181-2 e BASTOS, Celso Ribeiro & BRITTO,Carlos Ayres, op. cit., p. 22.

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91 HESSE, Konrad, Escritos cit., pp. 49-50.92 GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 180-182 e

216 e ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op. cit., pp.36-37 e 87.

93 HESSE, Konrad, Escritos cit., p. 45.94 BARROSO, Luís Roberto, Interpretação cit.,

pp. 185-186.95 HESSE, Konrad, Escritos cit., p. 46 e CANO-

TILHO, José Joaquim Gomes, Constituição Dirigentecit., pp. 197-202. Não analisaremos aqui, por fugirdo escopo deste trabalho, o princípio da proporcio-nalidade e suas implicações na hermenêuticaconstitucional. Recomendamos a leitura de KonradHESSE, Escritos cit., pp. 45-46 e de PauloBONAVIDES, op. cit., pp. 356-397.

96 HESSE, Konrad, Escritos cit., p. 46; STERN,Klaus, Derecho del Estado de la Republica FederalAlemana , Madrid, Centro de Estudios Constitucio-nales, 1987, pp. 293-295; CANOTILHO, José

Joaquim Gomes, Direito Constitucional cit., pp. 190-191 e GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 110-116.Klaus Stern é enfático ao dizer que a ponderação devalores nunca pode ser realizada em uma únicadireção pré-determinada. Para tanto, ele derruba apretensão de alguns teóricos alemães e americanosde tornar o princípio in dubio pro libertate comodiretriz primordial nas ponderações de valores.Stern ressalta a necessidade da ponderação serdecidida da forma mais conveniente caso a caso.Cf. Klaus STERN, op. cit., pp. 294-295.

97 GRAU, Eros Roberto, op. cit., pp. 194-195.98 HESSE, Konrad, Escritos cit., p. 29.99 BONAVIDES, Paulo, op. cit., pp. 345-348.

Vide também ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op.cit., p. 95.

100 NEVES, Marcelo, op. cit., pp. 158-162.101 HOLANDA, Sergio Buarque de, Raízes do Bra-

sil, 2ª ed, Rio de Janeiro, José Olympio, 1948, p. 273.

Referências bibliográficas conforme original.

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A obra de Hannah Arendt se colocacomo uma das grandes contribuições aopensamento contemporâneo, quer peloapurado conhecimento da Filosofia Clássica,quer pela originalidade da interpretação daFilosofia Moderna aliada a um profundoconhecimento da experiência do homem nomundo em que este vive.

Recebendo influências de pensadores daEscola de Weimar como Martin Heidegger eKarl Jaspers, Hannah Arendt voltou-se parao estudo do homem, da liberdade, da comu-nicação, do poder e de sua organização nomundo contemporâneo, procurando estabe-lecer os caminhos da evolução filosófica quenos trouxeram ao atual estágio de convi-vência em sociedade.

Seu pensamento divide-se basicamenteem três fases: a primeira, que engloba oestudo dos fenômenos modernos do totali-tarismo e do imperialismo, iniciada com apublicação de “As Origens do Totalita-rismo”, em 1951, e completada com umestudo intitulado “Eichmann em Jerusalém:um Relato sobre a Banalidade do Mal”; asegunda, que enfatiza sua reflexão sobre ohomem, da qual fazem parte “A CondiçãoHumana”, publicada em 1958, e “The Lifeof the Mind”, publicada postumamente em1978; e a terceira fase, que se inicia com apublicação de “Entre o Passado e o Futuro”,com edição completa em 1968, perpassa peloestudo intitulado “Da Violência” e terminacom a publicação de “Crises da República”,

Os direitos do homem e a condição humanano pensamento de Hannah Arendt

Jete Jane Fiorati

Jete Jane Fiorati é Professora Livre Docentede Direito Internacional da UNESP e Mestre eDoutora em Direito.

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em 1972, em que a autora faz um retrospectoe uma reflexão sobre o pensamento político.

O especial interesse para este estudo sãoas obras da segunda fase de cunho eminen-temente filosófico: “A Condição Humana”e “The Life of the Mind”, que representamas duas faces do modus vivendi humano.Enquanto em “A Condição Humana” aautora ocupa-se, em suas próprias palavras,de “refletir sobre o que estamos fazendo”1,na trilogia intitulada “The Life of TheMind”, Arendt privilegia o estudo da vidacontemplativa.

Em sua reflexão sobre o que os homensfazem, Arendt definiu três atividadescentrais que correspondem às condiçõesbásicas da vida humana, o labor, o trabalhoe a ação, enquanto em seu estudo sobre areflexão dos homens, a autora definiu avontade, o pensamento e o julgamento comoos três estados que demonstram a vida dointelecto.

Em “A Condição Humana”, HannahArendt define o labor como atividadeinerente ao corpo humano no que tange àexigência de manter-se vivo2. O labor é acondição de vida comum a homens e aanimais sujeitos à necessidade de prover aprópria subsistência. Daí a denominação deanimal laborans para o homem enquanto serque labora para prover a sua própriasubsistência, comumente utilizada naAntiguidade Clássica para nomear a cate-goria dos escravos3.

Já o trabalho é a atividade correspon-dente à criação de coisas artificiais, dife-rentes do ambiente natural e que transcen-dem às vidas individuais. Ao construtor domundo foi dado o nome de homo faber4.

Em “A Condição Humana”, ainda, éapresentada a definição de ação: “Atividadeexercida entre homens, independentementeda produção de coisas ou da manutençãoda vida, devido ao fato de que os homens e ohomem vivem na terra e habitam o mundo”5.Existente é a ação porque é a pluralidadehumana a condição de existência do homemsobre a terra: somos seres racionais igual-mente humanos, mas cada qual apresenta

diferenças e variações em seus caracteresindividuais e para que se reflitam essasdiferenças necessitamos da constantepresença e continuado diálogo com osoutros6.

A expressão vita activa utilizada paradesignar “o que os homens fazem” é comumdesde a Antigüidade. Aristóteles já definiaduas esferas relacionadas com as atividadeshumanas: a oikia (casa), cujo centro era avida familiar e privada com o domínio deuma só pessoa, e a polis, que dava aoindivíduo uma vida em comum e que eragovernada por muitos. Na oikia , o homemrealizava as atividades ligadas às necessi-dades de seu corpo para manter-se vivo enela estavam as mulheres responsáveis pelaprocriação e os escravos responsáveis pelasupressão das necessidades da vida.

Em contraposição, na polis, os homensse relacionavam com os seus iguais por meiode palavras e do discurso, exercitando-secontinuamente na arte do acordo e dapersuasão, e não da violência: somente pormeio da constante criação de novas relaçõesos homens se autogovernam sem se domi-narem uns aos outros ou se deixaremdominar uns pelos outros7.

Enfatiza Aristóteles que a finalidade dapolis era garantir “uma boa vida aoscidadãos”, sendo inquestionável que a “boavida” somente seria possível se ele vencessea necessidade, condição essencial para oexercício da liberdade. Como todos estãosujeitos à necessidade, somente a violênciaconsubstanciada no ato de subjugar outroshomens tornando-os escravos poderia livraro homem da necessidade. Assim o Filósofo,em célebre panegírico, defende a escravidãocomo condição necessária à “boa vida” napolis, pois sem recursos técnicos o homemda Antigüidade somente estaria livre deprover sua subsistência, podendo ocupar-se dos negócios públicos, se conseguissesubjugar escravos que com o seu labor lhesatisfizesse essas necessidades8.

Apesar do desprezo pela atividade dolabor, que igualava homens e animais, osgregos tinham dentro da esfera privada uma

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outra atividade, a qual se dedicavamfreqüentemente os estrangeiros: eram osnegócios privados, exercidos por aquelesque estavam excluídos da esfera pública,mas que também não eram escravos, ededicados à construção do mundo. Era otrabalho ou fabricação que, embora tornassericos os que a ela se dedicavam, não lhesdava o direito de participação política.

Com o advento do Cristianismo, o “estarna companhia de outros”, característica davida política e da ação, perdeu lugar para aprática da fé e da bondade, que, por sua vez,destroem a esfera pública: o discurso e a açãorequerem testemunhas e coadjuvantes,enquanto a verdadeira bondade jamais poderequerer testemunhas ou memória do ato.Talvez seja por esse motivo que Maquiavel,que, a exemplo dos gregos, utilizava-se docritério da glória para julgar a política, tenhaafirmado que os homens não deviam serbons9.

Na civilização cristã, a vita activa cedeulugar à contemplação, uma vez que osgregos, quando praticavam a arte do dis-curso, queriam permanecer na memória deseus companheiros, queriam a imortalidadena terra, enquanto aos cristãos somente erarelevante a vida eterna, extraterrena, ime-morial e atemporal, e seu caminho era a fé, aesperança e a caridade, virtudes estrita-mente antipolíticas10.

Se o Cristianismo trouxe a prevalênciada contemplação sobre a vita activa, aModernidade do final dos séculos XVIII eXIX aboliu as distinções entre as atividadesda vita activa ligadas à manutenção da vida(labor) e da construção do mundo (trabalho).É de Locke a frase que Arendt utiliza comomote para iniciar o estudo sobre o labor: “OLabor de nosso Corpo e o Trabalho de nossasMãos”11. Locke, juntamente com AdamSmith, na “Riqueza das Nações”, enfatiza queé a riqueza que implica a acumulação demais riqueza, e não a propriedade, a basedo progresso das nações12. Como a apro-priação para a acumulação depende darepetição infinita de atos, é o labor, e não otrabalho, a atividade humana apta para

prover essa acumulação, porque das trêsatividades é a única que se esgota somentecom o final da vida e tem conseqüênciasprevisíveis.Daí o surgimento da “força detrabalho” ou “labor power”, que pode servendida com o objetivo de acumulação deriqueza13.

Por outro lado, a Era Moderna, daprodução em série de artefatos para uso econsumo e da acumulação de riqueza,necessita de coisas que possam ser trocadas,uma vez que a propriedade das coisas e apossibilidade de sua transformação emriqueza é um dos fundamentos do sistemacapitalista que começou sua consolidaçãona modernidade. Essas coisas, cujo destinoé a troca, constituem parcela do mundohumano, que necessita de uma certa objetivi-dade e estabilidade para perdurar. Portanto,existem duas categorias de bens produzidospelo homem: aqueles destinados ao con-sumo imediato e aqueles que visam dardurabilidade ao mundo humano, que sãopassíveis de infinitas trocas necessárias àacumulação de riqueza, uma vez que nãodesaparecem de imediato, como os bensdestinados ao consumo, mas apenas sedesgastam com o uso.

Essas coisas produzidas pelo homempara a troca derivam da violência exercidapor ele contra a natureza mediante atransformação desta em artifícios que depoisserão trocados no mercado, visando aacumulação de riqueza. A esse ser quetransforma a natureza chamamos homo faber,observando que esse fabricante do mundoutiliza-se das categorias de meios e fins: eleimagina o objeto, destrói a natureza paraconstruí-lo e depois o leva ao mercado paratrocá-lo, adquirindo riqueza que o levará aproduzir novos objetos. Esse fabricante, queexerce o trabalho de construir um mundo, éum ser pragmático que instrumentaliza ascoisas para por meio delas conseguir outrascoisas, relacionando-se com seus semelhan-tes apenas no mercado de trocas, que é, paraele, a única parte do mundo que tem umsignificado.

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É com o apogeu da fabricação, nosséculos XVII-XIX, que surge o conceito devalor e a idéia de relatividade. Em sua obra“Entre o Passado e o Futuro”, Arendt esboçaclaramente o pensamento dominante nessesséculos:

“Valores são bens sociais que nãotêm significado autônomo, mas, comooutras mercadorias, existem somentena sempre fluida relatividade dasrelações sociais e do comércio. Atravésdesta relatividade, tanto as coisas queo homem produz para seu uso comoos padrões conforme os quais ele vivesofrem uma mudança decisiva: tornam-se entidades de troca e o portador deseu valor é a sociedade e não o homemque produz, usa e julga”14.

O bem perde seu caráter de idéia, padrãopelo qual o bem e o mal podem ser medidose reconhecidos: torna-se um valor que podeser trocado por outros valores, tais como aeficiência e o poder. O detentor de valorespode recusar-se a essa troca e tornar-se umidealista que estima o valor do bem acimado valor da eficiência, por exemplo; isso,porém, em nada torna o valor do homemmenos relativo15.

Os instrumentos e as coisas fabricadascriam para o fabricante um mundo comumcom os outros: os objetos de seu trabalhosão expostos no mercado de trocas e essemercado reflete uma esfera pública distorcidapela relatividade dos valores. Já para o serque labora, o animal laborans, é impossívelcompreender a relatividade dos valoresporque, para ele, somente existe o absolutovalor da necessidade, e, como somente oconsumo é capaz de satisfazê-la, o animallaborans trata todas as coisas como objeto deconsumo, gerando a desvalorização detodos os valores16.

A ação e o agente surgem num mundoque já existia, mas ao qual ele, ao surgir,acrescenta algo com as suas palavras, feitose potencialidades que são demonstradas aseus semelhantes. Em suma: o agente serevela no ato e mostra sua dignidade de

homem no ato de conviver com seus seme-lhantes na esfera pública17. Esses atosproduzem História que depois torna imor-tais os seus autores, cabendo à polis preser-var à memória posterior os atos origináriosdo discurso, da ação, da experiência e dojulgamento do que torna útil aos homensconviverem juntos18. Sendo a polis o espaçoem que os homens aparecem para revelaremas suas potencialidades, ela configura-se noespaço de poder, organizado por meio doacordo com os semelhantes em torno darealização dos negócios públicos.

A Era Moderna substituiu a ação pelafabricação, uma vez que a imprevisibilidadedos resultados e a irreversibilidade dosfeitos característicos da ação a fazem inútila um mundo preocupado com produtos elucros. Para o fabricante do século XIX, afunção do Estado é a defesa dos que têmalguma propriedade contra os que não têmnenhuma, e não a pluralidade humana19.Mais a mais, a inversão cristã entre ação econtemplação foi útil a esses fabricantes: énecessário primeiro a idéia do objeto paradepois se construí-lo. Por isso, a fabricaçãoprescinde da ação, mas não da contem-plação. Para que os lucros soassem, eranecessária a estabilidade política, algofrontalmente contrário à ação, que é, por suanatureza, irreversível e instável.

Desde os tempos antigos que a irreversi-bilidade da ação é combatida com o perdão:o perdão liberta o agente das conseqüênciasprejudiciais de seu ato que poderiam prorro-gar indefinidamente o processo com areação do ofendido. Contemporâneo aoperdão é a faculdade de fazer promessaspara combater a imprevisibilidade: a pro-messa cria um espaço de certeza entre oshomens por meio do acordo firmado comfundamento na pacta sunt servanda. Em últimaanálise, as normas representam acordos quefundam a paz na comunidade dos agentes.

Apesar disso, a Era Moderna, que pri-meiro transformou a ação em fabricação edepois aboliu a diferença entre o trabalho eo labor-consumo, perdeu por inteiro a fé nas

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potencialidades da ação, que, por sua vez,sempre fundou a existência da comunidadepolítica dando-lhe um significado: o estarcom os outros. O homo faber, com suainsistência na relação entre meios e fins ena prática de apropriação contínua deriqueza para a acumulação dessa mesmariqueza, deixou-se levar pelos valorescriados pelo mercado, passando a duvidarda existência de valores absolutos e univer-sais ou de valia intrínseca das coisas eobjetos. Se não há mais padrões universais,somente resta ao fabricante isolado de seussemelhantes voltar-se para si mesmo: é ofenômeno da introspecção, que vota imensadesconfiança ao mundo comum tal qualaparece aos nossos sentidos. Não temosmais a concepção de um mundo comum eperdemos aquela forma de vermos o mundotão típica da Antigüidade, o senso comum,próxima dos topoi gregos ou das máximasromanas.

O mundo instrumentalizado do homofaber, já despido de significado, perdeu lugar,em nossos tempos, para o mero existir, paraa satisfação das necessidades corpóreas,que deu origem ao hedonismo universa-lizado em matéria política. Hodiernamentedeve procurar-se a felicidade do maiornúmero de pessoas em detrimento daconservação do mundo comum. Nesteséculo, com a perda da fé na vida eterna eem si mesmo, o homem reduziu a felicidadeao interesse único e exclusivo da manuten-ção de sua vida.

A esse homem que perdeu a fé, o mundocomum, a capacidade de pensar e de agir eaté o controle sobre os objetos que fabrica(vide a questão nuclear) somente resultou apreocupação com a própria sobrevivência.Estamos na sociedade automatizada, daqual se espera dos homens um comporta-mento uniforme, um comportamento deseres que laboram para a satisfação de suasnecessidades. A sociedade dos homens quelaboram é a sociedade dos consumidores,daqueles que consomem para continuaremlaborando: todas as atividades humanas

voltaram-se à categoria da manutenção davida em abundância20. O único valor é oconsumo, pois somente ele pode satisfazeras nossas necessidades: o que não servepara consumir e ser consumido não temsignificado nem valor. Nesta sociedade de“detentores de empregos”, a necessidade deconsumir uniformiza a todos para depoisdesvalorizá-los21.

Comentando “A Condição Humana” einspirado em “Entre o Passado e o Futuro”,Tércio Ferraz Júnior, ao transmutar opensamento de Hannah Arendt para oDireito, assim descreve o homem e o Direitocontemporâneos:

“O último estágio de uma sociedadede operários, que é uma sociedade dedetentores de empregos, requer de seusmembros um funcionamento pura-mente automático, como se a vidaindividual realmente houvesse sidoafogada no processo vital da espéciee a única decisão ativa exigida doindivíduo fosse, por assim dizer, sedeixar levar, abandonar a sua indivi-dualidade, e aquiescer num tipofuncional de conduta entorpecida etranquilizante. Para o mundo jurídicoo advento da sociedade do animallaborans significa, assim, a contin-gência de todo e qualquer direito, quenão apenas é posto por decisão, masvale em virtude de decisões, nãoimporta quais, isto é, na concepção doanimal laborans, criou-se a possibili-dade de manipulação das estruturascontraditórias, sem que a contradiçãoafetasse a função normativa... Afilosofia do animal laborans deste modoassegura ao direito, enquanto objetode consumo, uma enorme disponibi-lidade de conteúdos. Tudo é possívelde ser normado e para uma enormedisponibilidade de endereçados, poiso direito não depende mais do status,do saber, do sentir de cada um, dasdiferenças de cada um, da personali-dade de cada um”.

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Continuando, Ferraz Júnior afirma: “Ao mesmo tempo continua sendo

aceito por todos e por cada um, emtermos de uma terrível uniformidade.Em suma, com o advento da sociedadedo animal laborans ocorre uma radicalreestruturação do Direito, pois suacongruência interna deixa de assentar-se sobre a natureza, sobre o costume,sobre a razão ou a moral e passa reco-nhecidamente a basear-se na própriavida social, da vida social moderna,com sua imensa capacidade para aindiferença. Indiferença quanto ao quevalia e passa a valer, isto é, aceita-setranqüilamente qualquer mudança.Indiferença quanto à incompatibilida-de de conteúdos, isto é, aceita-setranqüilamente a inconsistência econvive-se com ela. Indiferença quantoà divergência de opiniões, isto é,aceita-se uma falsa idéia de tolerância,como a maior de todas as virtudes. Esteé afinal o mundo jurídico do homemque labora, para o qual o direito éapenas e tão-somente um bem deconsumo”22.

Se na “Condição Humana” Arendt sepreocupa com o que é genérico e com oque é específico na condição humana,enfatizando que

“através de sua singularidade ohomem retém a sua individualidadee, através de sua participação nogênero humano, ele pode comunicaraos demais esta singularidade”23,

em “The Life of the Mind”, a autora se dispõea analisar os processos mentais que impli-ca essa singularidade: o pensar, o querer e ojulgar. Por questões metodológicas e temáti-cas, apenas será objeto de análise a obra deArendt sobre o juízo, uma vez que, ao tratar-mos “do que fazem os homens”, mister aênfase de “como eles julgam o que fazem”,especialmente aqueles atos que terminampor se dirigir contra outros homens, enquan-to membros da espécie humana. Mais amais, o pensamento da autora fornece ele-mentos valiosos sobre o ato de julgar dos

tribunais relativamente à conduta humananum mundo em que os homens perderam osenso comum.

Segundo Arendt, o homem se revela aosseus semelhantes por meio da palavra:portanto, essa revelação se dá no espaçopúblico e mostra nossas diferenças emrelação a outras pessoas. Por meio daspalavras, os homens aparecem aos outros:daí, para Arendt, aparência e ser se confun-dem, uma vez que as coisas são na mesmamedida em que aparecem, não existindoisoladamente, e sua realidade é percebidanum contexto em que existem outros. Isso éo que chamamos de sexto sentido, que “narealidade unifica os outros sentidos, publi-cizando-os num mundo compartilhado”24.A função do senso comum, portanto, éintegrar o indivíduo no mundo intersub-jetivo e visível das aparências, que é omundo dado pelos cinco sentidos no qualexistimos como espécies25.

Comentando a atividade de pensar, Laferafirma que “o querer e o julgar compartilhamcom o pensar o processo prévio de provi-sório desligamento do mundo26. Ocorre queo pensar não fundamenta o querer e o julgar,próprios para a apreciação de situaçõesparticulares e específicas. Destarte, tanto avontade como o juízo são autônomos aopensamento porque referem-se especifica-mente a particulares. O querer visa ao futuro,porque a vontade torna-se intenção para adecisão do que virá a ser. Já o julgar é umaatividade ligada à construção mental dasubsunção entre um geral dado e umparticular já ocorrido, referindo-se a situa-ções passadas27.

Ao discutir a vontade, a autora men-ciona, no segundo volume de “The Life ofthe Mind”, o posicionamento de DunsScotus, que foi mestre de Guilherme deOckan. Duns Scotus foi um dos primeirosautores a tratar da vontade como faculdadeque permite ao homem mostrar sua indivi-dualidade de ser singular, ao permitir àmente ultrapassar seus próprios limites28.Segundo Lafer, “a quintessência do pensa-mento de Scotus é a de postular a contin-

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gência como um modo positivo do ser”29,apontando para a singularidade que não sesubsume no geral como livre arbítrio ouliberdade na escolha de atos. Tanto Scotuscomo Ockan privilegiaram a singularidadee a intersubjetividade como fatores funda-mentais do relacionamento entre os homens.E foi esse privilégio que contribuiu para osurgimento, já na Idade Moderna, dacategoria dos Direitos Humanos.

Seguindo esse caminho, Arendt elaborouum apêndice ao segundo volume de “TheLife of the Mind”, referindo-se à atividadede julgar, tomando como ponto de partida a“Crítica ao Juízo” do filósofo alemãoEmmanuel Kant. Para Kant, o juízo é aatividade de subsumir o particular no geral:é o que conhecemos por juízo determinantee que hodiernamente se sujeita à Hermenêu-tica, à idéia de razoabilidade e à Tópica. Arazoabilidade implica a adequação entre osfatos, as circunstâncias em que se produ-ziram, as circunstâncias em que se encon-trava o agente e as normas interpretadassegundo a sua finalidade, objetivando abusca do senso comum. Já a Tópica representaa busca do comum no Direito e na Política,procurando encontrar os princípios que ostranscendem por intermédio da prudência.A Tópica constitui-se de um juízo retórico fun-dado na prudência e não na demonstração,sofrendo influências do juízo reflexivo.

Inobstante, existem situações que nemmesmo a razoabilidade constitui critériopara propiciar um julgamento justo. Nomundo em que vivemos, o mundo do animallaborans, essas situações são muito comuns,uma vez que se perderam o senso comum eo mundo comum responsável pela noção derazoabilidade. Apesar disso, sabemos queo animal laborans precisa de regras queaparecem por intermédio de leis, costumese convenções expressas em palavras. Comoo consenso expresso do animal laborans dizrespeito às necessidades ligadas à manu-tenção da vida, que não surgem num mundoconstruído e compartilhado pelos homens,esse consenso expressa-se em termos vagos,ambíguos, sobre pontos específicos tan-

gentes a uma realidade que se demonstradesconectada e fragmentada.

Essas leis, acordos, costumes e convençõesexpressam padrões universais vagos. Emconseqüência, torna-se impossível o ato dejulgar, uma vez que não existe uma regrageral determinada e clara a qual se devasubsumir o caso. É necessário um novo juízo,o juízo reflexivo, que permite ao julgadorjulgar o particular sem subsumi-lo direta-mente no geral. Arendt toma emprestado aKant a afirmação de que “o juízo reflexivose opera através de pensar no lugar dooutro”30, possibilitando o alargamento doraciocínio ligado ao pensamento do que ooutro pensa. Para Arendt, o julgamentoreflexivo que se preocupa com os particularesnão se baseia em critérios gerais e universais,mas sim em opiniões. Disso resulta o fato deque é o juízo reflexivo, comumente utilizadona vida política, o mais democrático: todospodem ter opiniões. Algo semelhante ocorrecom a Tópica, que é um pensamento proble-mático que tem como ponto de partida o casoconcreto sobre o qual se emitem opiniões.

Se o juízo é a faculdade de pensar umparticular buscando um geral que a elecorresponda, problemático se torna ainexistência de um geral. Portanto, é neces-sário criar um critério que permita umacomparação de particulares, que funcionariacomo um critério geral. Esse critério termi-naria por conduzir a generalização dosjuízos reflexivos.

Analisando Kant, Arendt afirma ser ogosto e/ou senso estético um dos critériospara o juízo reflexivo porque emitido acercade um mundo comum e comunicável porpalavras. O gosto e a opinião vindos apúblico pela comunicação e pela persuasãomostram não somente a concordância como próprio eu, mas principalmente umaconcordância potencial com os outros. ParaKant, a capacidade de julgar é a

“faculdade de ver as coisas nãoapenas do próprio ponto de vista masna perspectiva de todos aqueles queporventura estejam presentes: o juízopode ser uma das faculdades funda-

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mentais do homem enquanto ser namedida em que permite a sua orienta-ção no mundo comum”31.

Enfatiza a autora que:“A eficácia do juízo reflexivo

repousa em uma concordância poten-cial com outrem, e o processo pensanteque é ativo julgamento de algo não é,como o processo de pensamento doraciocínio puro, um diálogo de mimpara comigo, porém se acha sempre efundamentalmente, mesmo que euesteja inteiramente só ao tomar minhadecisão, em antecipada comunicaçãocom os outros com quem sei que devoafinal chegar a algum acordo. O juízoobtém sua validade específica desseacordo potencial. Isto por um ladosignifica que esses juízos devem selibertar das condições subjetivas pes-soais, isto é, das idiossincrasias quedeterminam naturalmente o modo dever de cada indivíduo na intimidadee que são legítimas enquanto sãoapenas opiniões mantidas particular-mente, mas que não são adequadaspara ingressar em praça pública eperdem toda a validade no domíniopúblico... Como lógica para ser corretadepende da presença do eu, tambémo juízo, para ser válido, depende dapresença de outros. Por isso o juízo édotado de uma certa validade especí-fica, mas não é nunca universalmenteválido. Suas pretensões à validadenunca se podem estender além dosoutros em cujo lugar a pessoa quejulga colocou-se para as suas conside-rações. O juízo, diz Kant, é válido paratoda pessoa individual que julga, masa ênfase na sentença recai sobre o quejulga não sobre o outro que julga”32 .

Outro critério seria o da validadeexemplar: estabelecer a analogia entre oparticular e o exemplo por conta de umaregra geral: Hércules é o exemplo da força eRui Barbosa da inteligência e cultura.Arendt não enfatiza a importância epistemo-lógica de outro critério kantiano: o apelo à

razão reguladora da humanidade, ligado aojuízo determinante, uma vez que, para ela, acomunidade do animal laborans está perden-do o seu senso de humanidade e de valoresgerais definidos. Nesse ponto, cabe uma crí-tica ao pensamento da autora.

Apesar do esgarçamento do mundocomum, é necessário que se tenha algumpadrão mínimo a orientar a conduta indivi-dual, mesmo que seja na sociedade dos“homens que laboram”, uma vez que, seassim não for, partiremos para o isolamento.Modernamente com a perda desse mundocomum, somente as leis terminam pordescrever uma conduta mínima, condutaessa que muitas vezes se antepõe aos desejosmais íntimos de cada um de nós. Ocorre que,como as leis não representam mais osdesvalorizados valores da comunidade, massim prescrições derivadas do poder quepodem mudar a qualquer hora, podemosopinar sobre sua validade a qualquermomento. Portanto, ainda temos que pro-curar algum critério para fundar as condutasem sociedade para evitar que elas setransformem em condutas próprias da vidana selva. Entre eles, critérios de respeito aohomem, mesmo sendo ele o animal laboransque deve ter seu direito à vida, à liberdade, àsaúde, ao labor do qual provê a sua subsis-tência e alimento expressos em regrasescritas ou costumeiras, regras essas que seinserem na categoria dos Direitos do Homem,que podem preencher a função de definiruma condição humana mínima ao homemcomo forma de um patrimônio simbólicofundante de um mundo esgarçado.

No mesmo sentido, Umberto Ecco, ementrevista concedida ao “Le Monde”, no anode 1994, e reproduzida pela “Folha de SãoPaulo”, deixa claro que a única ética possí-vel no mundo moderno é a ética de respeitoaos corpos no que tange ao relacionamentoentre o homem e o mundo. Ipsis Litteris:

“É possível constituir uma éticasobre o respeito pelas atividades docorpo: comer, beber, urinar, dormir,fazer amor, falar, ouvir, etc. Impediralguém de se deitar à noite ou obrigá-

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lo a viver de cabeça abaixada é umaforma intolerável de tortura. Impediroutras pessoas de se movimentaremou falarem é igualmente intolerável.O estupro é crime porque não respeitao corpo do outro. Todas as formas deracismo e exclusão constituem emúltima análise, maneiras de negar ocorpo do outro. Poderíamos fazer umareleitura, a única, de toda a históriada ética moderna sob o ângulo dosdireitos dos corpos, e das relações denosso corpo com o mundo”33.

O jurista Celso Lafer, considerado umdos grandes estudiosos da obra de Arendtentre nós, teceu importantes analogias entreo pensamento de Arendt e o estudo doDireito, especialmente no que tange aosDireitos Humanos. Em “A Reconstruçãodos Direitos Humanos: um Diálogo comHannah Arendt”, o autor parte do pressu-posto de que a preocupação fundamental detodo o pensamento de Arendt é o homem, que,na sociedade de massas, moderna e consu-mista, corre sério risco de perder sua condição,não sentindo o mundo como sua casa e es-tando prestes a tornar-se um ser descartável34.

Procurando traçar a origem do descon-forto e da descartabilidade do homem, Lafer,seguindo os passos de Arendt, localizou-osno totalitarismo, fenômeno exclusivo donosso século XX, que retira do homem a suacondição humana, tratando-o como um serdescartável que pode ser trocado por outro,substituído ou igualado a uma coisa.Partindo da situação extrema de violênciaconstituída pelo totalitarismo, Lafer procuraelaborar uma análise da legalidade e dalegitimidade de um poder e de um Estadoque reduzem os homens a instrumentosgeradores de novas violências contra outroshomens. Representa o totalitarismo umaruptura na evolução histórica da tradiçãoocidental, vinculando-se ao fenômeno dadescontinuidade e da fragmentação domundo moderno35.

O totalitarismo tem seu correspondentejurídico no amorfismo 36 e na sistemáticaignorância da lei pelos governantes, que

fundamentam suas ações no partido, napolícia ou no poder da mídia, consideradosinstituições acima da lei e que seguem regraspróprias desconhecidas do público. Não háhierarquias e competências definidas paratais órgãos e instituições nos governostotalitários, o que torna isolados e insegurosos indivíduos. A lei máxima dos regimestotalitários não é fruto da convivênciahumana, mas de pretensas leis da naturezae da história para medir as ações doshomens, cabendo ao líder enunciar o seuconteúdo, a interpretação e a aplicação detais leis. Destarte, o totalitarismo é imprevi-sível: não se trata de um governo despóticoque quer perpetuar-se no poder, como osregimes autoritários latino-americanos dasegunda metade deste século, mas sim de umgoverno que despreza a si próprio e à suautilidade, mantendo uma insana burocraciapor intermédio do terror aos súditos, especial-mente aqueles ligados a determinadascategorias da população, como os judeus naAlemanha nazista, os nobres e os tártaros sobo governo de Stálin. A sobrevivência dogoverno e sua perpetuação no poder se dápor meio da constante subjugação dessascategorias e da constante ameaça a todos osoutros indivíduos de serem subjugados.

O terror é o fundamento da “legalidadetotalitária”, pois somente ele poderá mantersegregados determinados setores da popu-lação, escolhidos pelo líder como adversá-rios, independentemente de quaisquer atosque tenham praticado, porque a guerraincessante contra esses inimigos objetivos(expressão de Arendt) é que legitima apermanência no poder do líder totalitário.Quando se examina a descrição de Arendtdo totalitarismo, é possível que se pense quenazismo, stalinismo, perseguições religiosasfazem parte do passado e que essa expe-riência esteja ausente em nossos dias. Não éverdade: Bósnia e a antiga Iugoslávia,Ruanda, Zaire, Afeganistão ou Haiti nosmostraram e mostram que as perseguiçõesraciais e/ou políticas, com o radical isola-mento de determinadas categorias da popula-ção, são possíveis e que, ainda hoje, não encon-

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tramos soluções adequadas para garantir osmínimos direitos aos habitantes da Terra.

Arendt talvez nos mostre a chave para acompreensão de experiências totalitárias,negadoras dos mínimos direitos da popu-lação, ao mencionar que, no início dosmovimentos nazistas e stalinistas, existiampessoas, como os desempregados, refu-giados, apátridas, homossexuais e margi-nais; que eram percebidas pelas outraspessoas como seres supérfluos, seresdespidos de qualquer utilidade. O totalita-rismo nasce, então, em virtude da própriacondição de animal laborans do homemmoderno: um homem que apenas sobrevive,cujos valores se encontram em descrédito,que tem dificuldade para pensar e formularum conceito de mundo e, por isso, pode sermanipulado, não possuindo sua opinião, seisolada, maior importância num mundo emque ele não compartilha com os outros, ondeele representa o acréscimo de mais um namassa de outros seres igualmente anônimos.

O totalitarismo representou o ápice daviolação ao homem de sua condição, umavez que o reduziu a uma condição de nãohomem, que pode ser descartada: daí osurgimento do genocídio como formaextrema de eliminação dos seres supérfluosou indesejáveis. Desse fato decorreu, no quetange à proteção dos direitos do homemenquanto homem, a qualificação técnico-jurídica de genocídio como crime contra ahumanidade, conforme se deflui do art. 2ºda Convenção para a Prevenção e Repressãoao Crime de Genocídio.

Modernamente, grande importânciaassume o direito ao governo justo, o que teminspirado aos filósofos modernos o estudoda desobediência civil. De Thoreau, oindividualista que se recusa a violar a suaética para dar cumprimento a uma leiinjusta, a Ghandi, que busca a convergênciade pessoas para sustentar a verdade frenteà injustiça, a desobediência civil temcaracterizado-se como forma de contestaçãoda legitimidade fundamentada na estritalegalidade, uma forma de resistir à opressão

dos governantes que vedam o acesso públicoe a palavra a seus súditos.

Por outro lado, Lafer, ao comentarArendt, enfatiza a importância ao direito deestar só, ao direito à intimidade, e àimportância dada a seu contraponto, odireito à informação. Modernamente, odireito à intimidade se liga não só à vedaçãode ingerência do poder público, comotambém da possibilidade de terceiros seimiscuírem, principalmente por meio derecursos tecnológicos, na vida privada daspessoas. Já o direito à informação se liga aoprincípio da publicidade e da transparênciado poder público, coibindo-se a mentira e amanipulação ideológica. Enfatiza Lafer:

“A desolação derivada do totalita-rismo tem como uma de suas caracte-rísticas não a politização da sociedade,mas a destruição da esfera pública e aeliminação da esfera privada”37.

Essencial para a preservação da esferaprivada é o direito à intimidade. A esferaprivada, que se tornou pública por ser ocerne do único mundo comum que todoscompartilham por meio da atividade do labor,somente poderá proteger o “diálogo do ho-mem consigo mesmo” mediante a proteçãode seu direito de alhear-se deste mundoprivado compartilhado pelos homens quelaboram por meio da proteção à intimidade.

Conclui Lafer que, a partir da obra deArendt, é possível inferir que a reconstruçãodos Direitos Humanos no mundo do animallaborans, passível de ser dominado a qualquertempo pelas várias espécies de totalitarismo,perpassa pelas seguintes proposições:

“ I) ver na cidadania o direito a terdireitos, uma vez que a igualdade nãoé um dado mas uma consciênciacoletiva construída que requer por issoespaço público; II) qualificar o geno-cídio como crime contra a humani-dade, a ser punido por recusar apluralidade e a diversidade; III) subli-nhar a importância do direito deassociação na geração do poder,inclusive como resistência à opressão,

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que – na situação limite da desobe-diência civil enquanto agir conjuntovoltado para a preservação do inte-resse público – pode resgatar a obri-gação político-jurídica de destrutivi-dade da violência, seja ela exercida exparte principis, ou ex parte populi; IV)insistir na clássica importância dadistinção entre público e privadopara tutelar o direito à intimidade,evitando a desolação, e de realçar arelevância da coincidência do pú-blico com o comum e o visível, paralimitar o efeito da mentira atravésdo direito à informação”38.

Destarte, podemos concluir que somentecom a valorização do homem enquanto serque sobrevive, trabalha, cria um espaçocomum no qual interage com outros, e acompreensão em sua totalidade desse serpelo direito é que conseguiremos construirum mundo onde todos os homens se sintamà vontade.

Notas1 ARENDT, Hannah – A Condição Humana . São

Paulo. Universitária. 1987. Pág. 14.2 ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

15. Nota 1.3 ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

31. Nota 1.4ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

15. Nota 1.5 ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

31. Nota 1.6ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

31. Nota 1.7ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

41. Nota 1.8ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

94. Nota 1.9ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

182. Nota 1.10ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

83. Nota 1.11ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.

90. Nota 1.12 LOCKE, John – Second Treatise of Civil

Government. Seção 26.

13ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.116-117. Nota 1.

14 ARENDT, Hannah – Entre o Passado e o Futuro.São Paulo. Perspectiva Universitária. 1972. Pág. 87.

15ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.60 . Nota 1.

16ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.62. Nota 1.

17ARENDT, Hannah - A Condição Humana. Pág.193. Nota 1.

18 ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.197 e 209. Nota 1.

19ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.232. Nota 1.

20ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.139. Nota 1.

21ARENDT, Hannah – A Condição Humana. Pág.337. Nota 1.

22FERRAZ JR., Tércio – Introdução ao Estudo doDireito. São Paulo. Atlas. 1987. pág. 30-31.

23LAFER, Celso – Hannah Arendt, Pensamento,Persuasão e Poder . São Paulo. Paz e Terra. 1979.Pág. 28.

24ARENDT, Hannah – The Life of the Mind. vol.1 New York. Brace Jovanovich Ed. 1978. Pág. 19.Tradução da Autora.

25 LAFER, Celso – Hannah Arendt. Pensamento.Persuasão e Poder. Pág. 85. Nota 23.

26LAFER, Celso - Hannah Arendt. Pensamento.Persuasão e Poder. Pág. 101. Nota 23.

27ARENDT, Hannah – The Life of the Mind. Pág.76-77. Nota 24.

28ARENDT, Hannah – The Life of the Mind. Pág.121 e 126. Nota 24.

29 LAFER, Celso – Hannah Arendt. Pensamento.Persuasão e Poder. Pág. 113. Nota 23.

30 ARENDT, Hannah- The Life of The Mind. Pág.257. Nota 24.

31ARENDT, Hannah – The Life of the Mind. Pág.275. Nota 24.

32ARENDT, Hannah – The Life of the Mind. Pág.274-275. Nota 24.

33 ECCO, Umberto – Entrevista publicada naFolha de São Paulo em 3 de abril de 1994. Ediçãode Domingo. Caderno 6, pág. 7.

34LAFER, Celso – A Reconstrução dos DireitosHumanos: um Diálogo com H. Arendt . São Paulo.Cia. Das Letras. 1991. Pág. 8.

35LAFER, Celso – A Reconstrução dos DireitosHumanos. Pág. 81. Nota 34.

36LAFER, Celso – Hannah Arendt. Pensamento.Persuasão e Poder. Pág. 95. Nota 23.

37LAFER, Celso – A Reconstrução dos DireitosHumanos. Pág. 302. Nota 34.

38LAFER, Celso – A Reconstrução dos DireitosHumanos. Pág. 308. Nota 34.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

A execução por quantia certa se realizaquando houver condenação ao pagamentode quantia certa em dinheiro. Da mesmaforma, sempre que houver condenação paraentrega de coisa, certa ou incerta, ou aindapara prestação de fazer ou não fazer, e estasse revelarem de impossível execução. Aexecução por quantia certa se consuma pelaapreensão e entrega de dinheiro, se encon-trado no patrimônio do executado, ou pelaapreensão de outros bens, sua transforma-ção em dinheiro mediante desapropriaçãoe entrega ao exeqüente do valor obtido,sendo que, às vezes, esses próprios bens sãodados ao exeqüente em satisfação do crédito.

A execução por quantia certa possui trêsfases distintas. A proposição, que é a consti-tuição da relação jurídico-processual; ainstrução, que consiste na apreensão edesapropriação dos bens (art. 647/CPC); ea entrega do produto , que é a entrega dodinheiro ao exeqüente, com a qual o créditoé satisfeito.

Processo de execução por quantia certa

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva é JuizFederal no Rio de Janeiro, Professor Assistenteda Universidade Federal Fluminense, Mestre emDireito e Doutor em Direito pela UniversidadeGama Filho.

Sumário1. Introdução. 2. Petição inicial. 3. Citação do

executado. 4. Liquidação. 5. Penhora. Generali-dades. 6. Bens impenhoráveis. 7. Meios de reali-zação da penhora. 8. Modificação, renovação eintercorrência de penhoras. 9. A desapropria-ção dos bens penhorados. Introdução. 10. Na-tureza jurídica da desapropriação. 11. A avalia-ção. 12. Arrematação.

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2. Petição inicial

Como o processo de execução é autôno-mo e independente do processo de conheci-mento, deve ser provocado mediante petiçãoinicial, a ser proposta nos autos principaisou em carta de sentença, caso seja a execuçãojudicial e provisória. A execução extrajudi-cial será provocada por petição inicial ins-truída com o título respectivo. São requisitospara a propositura da execução o pedido decitação do devedor; o título executivo1 (salvose a execução se fundar em sentença); odemonstrativo de débito atualizado; e aprova de que se verificou a condição outermo, se for o caso (art. 614/CPC). Caso apetição inicial esteja incompleta, deverá o juizconceder ao credor o prazo de 10 dias paracorreção, sob pena de extinção (art. 616).

Embora não haja prazo específico paraa propositura da execução, o exeqüente de-verá ficar atento para o lapso prescricionaldo direito material, que recomeça a contarda data do último ato realizado no processocognitivo, muito embora volte a ser inter-rompido com a propositura da execuçãodeferida (art. 617/CPC).

Além disso, para que o executado nãopermaneça indefinidamente com o status dedevedor, a legislação permite que o mesmoinicie a execução para que o exeqüente sejaobrigado a receber o valor devido, como umaespécie de ação consignatória executiva (art.570/CPC). Na verdade, é uma ação consig-natória com procedimento de execução.

É regra básica que a execução deve serrealizada do meio menos gravoso para odevedor, se por vários meios puder o credorpromovê-la (art. 620/CPC).

3. Citação do executadoUma vez regular a petição inicial, o juiz

determinará a citação do executado, medi-ante expedição do mandado de citação, quedeverá conter a advertência para pagamen-to ou nomeação de bens em 24h, sob penade penhora do patrimônio que se fizer ne-cessário à satisfação do crédito. Portanto,

ao contrário do processo de conhecimento,a citação não é para o executado se defen-der, mas sim para pagamento.

O comparecimento espontâneo do execu-tado supre a falta da citação, desde que lheseja facultado o prazo de 24h para paga-mento ou nomeação dos seus bens à penho-ra. O prazo de 24h conta da data da efeti-va citação, e não da juntada do mandadoaos autos.

A citação deve ser realizada pessoalmen-te por oficial de justiça (art. 652, §1º, CPC)ou por edital (art. 654/CPC). Não cabe cita-ção por hora certa ou por correspondênciano processo de execução. Caso o executadonão seja encontrado pelo oficial de justiçana primeira diligência, devem, de imediato,ser arrestados tantos bens quantos bastempara garantir a execução (art. 653/CPC),ainda que não haja autorização expressa nomandado, já que tal dever decorre da pró-pria lei. Posteriormente, com a citação (poredital ou pessoal), será o arresto convertidoem penhora.

A citação por edital será cabível tambémse não houver arresto, pois dela se extraemos efeitos do art. 219/CPC. Na hipótese denão comparecimento do devedor e inexis-tência de bens arrestados, a execução per-manecerá suspensa (art. 791, III, do CPC).Embora a conversão do arresto em penhoraseja automática, é necessária a intimação dodevedor, ainda que por edital2, para pos-sibilitar sua defesa mediante embargos.No entanto, nada impede que essa inti-mação esteja contida no edital a que serefere o art. 654/CPC.

4. Liquidação

Se o título executivo for ilíquido, estarásujeito ao processo de liquidação, uma vezque a liquidez é pressuposto de validade daexecução por quantia certa. A liquidação éum processo autônomo de cognição3, quetem por fim a preparação da execução porquantia certa. Diversas situações podemensejar o processo de liquidação: a sentença

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condenatória ilíquida e a execução porquantia certa como substitutiva de outraespécie de execução. Cabe, pois, liquidaçãosempre que a sentença não determinar ovalor ou não individuar o objeto da conde-nação (art. 603, caput, do CPC).

A sentença condenatória de perdas edanos futuros, que venham aflorar após otrânsito em julgado (sentença que deciderelação jurídica sujeita a condição/art. 572do CPC), é considerada nula, pois a sentençadeve ser sempre certa (art. 460, parágrafoúnico, do CPC, que foi acrescentado pela Leinº 8.952/94). A existência de perdas e danoshá de ser apurada no processo de conheci-mento, podendo haver liquidação apenasdo montante fixado. A superveniência dedano decorrente do mesmo fato apreciadojudicialmente deve ser objeto de processo deconhecimento autônomo, já que o litígio serádistinto. No entanto, se o dano é contempo-râneo à primeira lide, fica o mesmo acober-tado pela coisa julgada, ainda que o julgadotenha-se omitido a respeito (sentença citrapetita ou pedido mal formulado pelo autor).

A decisão que torna líquido o créditopossui natureza jurídica de sentença e, por-tanto, está sujeita ao recurso de apelação. Asimples homologação de conta de atualiza-ção monetária do crédito é considerada de-cisão interlocutória e passível de agravo deinstrumento (Súmula 118/STJ)4. A remessados autos à Contadoria Judicial para pro-mover cálculo de liquidação ou atualização,ainda que apontando os seus critérios, édespacho de mero expediente (ordinatório)e irrecorrível, isso porque, naquela oportu-nidade, ainda não teria havido efetivo pre-juízo para qualquer das partes5.

A liquidação que depender exclusiva-mente de operação aritmética será deduzi-da pelo próprio exeqüente por ocasião dapetição inicial, que deverá ser instruída coma memória do cálculo correspondente. Nãohá mais no ordenamento jurídico a denomi-nada liquidação por cálculo do contador, apartir do advento da Lei nº 8.898/94, quedeu nova redação ao art. 604 do Código de

Processo Civil. A liquidação por cálculo docontador era cabível nas seguintes situações:juros ou rendimento do capital, cuja taxa éestabelecida em lei ou contrato; o valor dosgêneros que tenham cotação em bolsa; e ovalor dos títulos da dívida pública, bemcomo de ações ou obrigações de sociedades,desde que tenham cotação em bolsa.

Na prática, no entanto, os juízes têmdeterminado a remessa dos autos à conta-doria para conferência dos valores apresen-tados pelos credores. A matéria é de direito,pois da exatidão do valor apresentado de-pende a liquidez do título executivo. Trata-se, portanto, de verdadeiro pressuposto devalidade do processo de execução, que deveser aferido de ofício pelo juiz. Não há homo-logação de cálculos, porém, caso o contadorapresente um valor inferior, o juiz poderáindeferir o pedido de execução (o que consi-dero excesso) ou reduzir o valor do título edeterminar o prosseguimento da execução(decisão essa de natureza interlocutória). Damesma forma, poderá o devedor, em sede deembargos6, alegar excesso de execução, oque levará o juiz a determinar a remessa dosautos à contadoria para cálculos.

Não devemos esquecer que, embora a li-quidação por cálculos não mais exista, ocontador continua sendo um auxiliar dojuiz, já que este não possui (e nem tem o de-ver de possuir) conhecimentos de contabili-dade. Nos casos específicos de gratuidadede justiça, é pacífico o entendimento de quea memória do cálculo será apresentada pelocontador judicial, havendo inclusive, noâmbito da Justiça Federal, diversos provi-mentos7 a respeito. Portanto, hoje são duasas espécies de liquidação: a liquidação porarbitramento e a liquidação por artigos.

A liquidação por arbitramento cabequando as partes expressamente conven-cionarem, houver determinação expressana sentença cognitiva ou o objeto da liqui-dação o exigir (art. 606/CPC). Nos dois pri-meiros casos, a rigor, a liquidação dependeapenas de simples cálculos aritméticos;porém, por questões de praticidade ou

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conveniência, é procedida mediante arbitra-mento. A convenção das partes deve ser ma-nifestada por petição conjunta na fase deexecução. No terceiro caso, a liquidaçãoimprescinde da participação de expert, sen-do aplicável a todas as hipóteses não pre-vistas na redação original do art. 604/CPC.

A liquidação por artigos será admissívelquando houver necessidade de provar fatonovo. Na condenação de prestações vincen-das, é possível que surja necessidade deprovar fato novo na fase de liquidação. Porexemplo, a condenação ao pagamento decotas condominiais, vencidas após a prola-ção da sentença e até mesmo o trânsito emjulgado. A fixação do valor de cada cota con-dominial depende da apreciação das atasdas assembléias, dos recibos etc. Haverá,assim, necessidade de provar fato novo.

Vale ressaltar que o “fato novo” a que serefere o art. 608/CPC não é relativo ao fatoconstitutivo do direito objeto de litígio, poiseste é necessariamente aferido na fase cog-nitiva, como aliás já consignado. O “fatonovo” diz respeito a circunstâncias parafixação do montante devido, vale dizer, dodireito declarado pelo julgado cognitivo.Poderíamos até afirmar que o “fato novo” éconstitutivo da prestação executiva, decor-rente de direito preexistente.

A liquidação por arbitramento é proce-dida mediante nomeação de perito e proce-dimento especial, no qual as partes se ma-nifestam sobre o laudo e o juiz homologa-o.Na liquidação por arbitramento, o juizarbitra o quantum do título executivo. O valorarbitrado pode ser real ou não, já que oarbitramento pode também decorrer depresunções legais ou judiciais.

A liquidação por artigos segue o proce-dimento comum, que pode ser o sumário ouordinário (art. 609 do CPC, com redaçãodada pela Lei nº 8.898/94). Dessa maneira,é até possível o julgamento antecipado dalide, ou mesmo a nomeação de perito parasolução da lide instaurada. Na liquidaçãopor artigos, é cabível a condenação emhonorários sucumbenciais, uma vez que a

sentença reconhecerá vencido e vencedornaquele procedimento8.

A citação do réu no processo de liquida-ção (arbitramento ou artigos) é na pessoado seu advogado (art. 603, parágrafo único,do CPC, com redação da Lei nº 8.898/94).Essa citação deve ser pessoal, e não pelaimprensa, bastando que o advogado possuapoderes ad judicia , não sendo necessáriospoderes específicos para receber citação, issoporque tal poder lhe é conferido por forçade lei9.

É entendimento consolidado no Supre-mo Tribunal Federal que,

“transitada em julgado, a sentençade liquidação faz lei entre as partes:fixado nela o critério para o cálculoda condenação, não é possível reabrir,em embargos à execução conseqüente,discussão sobre a sua fidelidade noponto à sentença de cognição”10.

A liquidação deve fixar o montante de-vido sem ampliação ou restrição do julgadocognitivo, não obstante seja recomendávelsua interpretação nos casos de omissão oucontradição referentes especialmente aoquantum. Para tanto, deve ser averiguado osentido lógico da decisão, por meio de análi-se integrada do seu conjunto (dispositivo efundamentação), afigurando-se despropo-sitado o apego à interpretação literal deperíodo gramatical isolado que conflita como contexto da referida decisão11. Ainda quehaja anuência das partes na fase de liqui-dação, não pode o juiz homologar transa-ção de valores que ultrapassem os limitesda pretensão a executar12.

5. Penhora. Generalidades

Instaurado o processo de execução, érealizada a penhora dos bens necessários àsatisfação do crédito. A penhora tem duplafinalidade: visa individuar e apreender efe-tivamente os bens que se destinam aos finsda execução, preparando o ato futuro dedesapropriação; e visa, também, conservaros bens assim individuados na situação em

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que se encontram, evitando que sejamescondidos, deteriorados ou alienados emprejuízo da execução em curso.

A responsabilidade patrimonial, que égenérica a todos os bens e direitos doexecutado, e até mesmo de terceiros, com apenhora, é reforçada e individuada. Apenhora delimita os bens que realmenteservirão para satisfação do crédito.

A função conservativa da penhora lheaproxima do arresto. Porém, o arresto émedida cautelar, enquanto a penhora é atoeminentemente executivo. Não obstante, écabível o arresto como incidente da execução,sempre que o executado não for encontrado,muito embora logo seja convertido empenhora. Mesmo assim, não deixa de pos-suir o arresto, nesses casos, caráter cautelare distinto da penhora, que é mais ampla.

A natureza jurídica da penhora é de atoprocessual executório, quer realizada pelojuiz, quer pelo oficial de justiça, ou aindapor termo nos autos. É questão controvertidana doutrina se a penhora ocasiona a indis-ponibilidade do bem. Para os privatistas(Rocco e Betti), a responsabilidade patrimo-nial do devedor é elemento do direitomaterial e, ainda, um direito real. Daí seconcluir que a penhora, para esses, produza indisponibilidade do bem.

No âmbito processual, é irrelevante aalienação do bem penhorado. Primeiro, por-que a responsabilidade patrimonial é insti-tuto processual e não de direito material.Segundo, porque a penhora se destina aconservação e preparação da desapropria-ção, o que, em tese, não impede a alienação.O adquirente, evidentemente, receberá o bemcom restrições e já sabedor de que o mesmoresponderá pela execução. Carnelutti ensinaque a penhora apenas enfraquece o direitodo devedor.

Observe-se que a penhora, por si só, nãotorna ineficaz, em face do exeqüente, a alie-nação do bem a terceiros. A ineficácia daalienação é considerada fraude à execução,muito antes da realização da penhora, queapenas torna evidente o caráter fraudulentoda operação. Nos direitos estrangeiros, em

que a fraude à execução é desconhecida, aísim, a penhora terá maior importância narepressão à alienação do bem a terceiros.

A eficácia da penhora se completa com aseparação e depósito do bem penhorado,pois dessa maneira torna-se mais difícil queo executado os possa consumir, deteriorar,esconder ou alienar. O depósito do bem pe-nhorado é relação jurídica de direito públi-co, entre Estado (representado pelo juiz) eparticular encarregado do ônus. O juiz no-meia o depositário, não havendo voluntari-edade no ato de aceitação do depositário,que poderá apenas recusar o encargo nashipóteses previstas em lei. Dessa maneira,não há como serem aplicáveis ao depósitode penhora as regras do contrato de depósitodo Código Civil e, via de conseqüência, odescumprimento do ônus pode implicarcrime de prevaricação ou desobediência,mas jamais resultar em prisão civil (deposi-tário infiel), que imprescinde do trâmite daação de depósito.

O depósito é posterior à penhora, muitoembora tenha de fazer parte do auto corres-pondente a ser lavrado pelo oficial de justiça.Caso o exeqüente concorde, o executadopoderá ser o depositário, o que será melhorpara ambos. Do contrário, o encargo recairánas pessoas elencadas pelo art. 666/CPC(Banco do Brasil e Caixa Econômica, paraas pedras preciosas e papéis de crédito; de-positário judicial, para os bens móveis eimóveis urbanos; e em mãos de particular,os demais bens).

Compete ao juiz nomear o depositáriojudicial. A recusa, injustificada, do devedorem permancer como depositário pode im-plicar ato atentatório à dignidade da justiça(art. 600/CPC), uma vez que acarretaráatraso no processamento. O depósito judi-cial em instituições bancárias implica odever destas em atualizar monetariamenteos valores em espécie13.

6. Bens impenhoráveis

A impenhorabilidade de determinadosbens decorre de política humanitária e faz

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com que os mesmos sejam excluídos dasujeição da execução, salvo se o própriodevedor os nomeia à penhora14. No entanto,a impenhorabilidade dos bens públicoscontém fundamento diverso, o da indepen-dência dos Poderes de Estado e da necessi-dade de continuidade do serviço público.

Assim, não estão sujeitos à execução osbens que a lei considera impenhoráveis ouinalienáveis (art. 648/CPC). São absoluta-mente impenhoráveis: os bens inalienáveise os declarados, por ato voluntário, nãosujeitos à execução; as provisões de alimentoe de combustível, necessárias à manutençãodo devedor e de sua família durante um mês;o anel nupcial e os retratos de família; osvencimentos dos magistrados, dos profes-sores e dos funcionários públicos, o soldodos militares e os salários, salvo para paga-mento de prestação alimentícia; os equipa-mentos dos militares; os livros, as máquinas,os utensílios e os instrumentos necessáriosou úteis ao exercício de qualquer profissão;as pensões, as tenças ou os montepios,percebidos dos cofres públicos, ou de insti-tutos de previdência, bem como os prove-nientes de liberalidade de terceiro, quandodestinados ao sustento do devedor ou dasua família; os materiais necessários paraobras em andamento, salvo se estas forempenhoradas; o seguro de vida; o imóvelrural, até um módulo, desde que este seja oúnico de que disponha o devedor, ressalva-da a hipoteca para fins de financiamentoagropecuário (art. 649/CPC); os bens defamília definidos pela Lei nº 8.009/90; osbens públicos pertencentes às autarquias eentes estatais; o elevador de um edifício emcondomínio (art. 3º da Lei nº 4.591/64); osexemplares da bandeira nacional nãodestinados ao comércio (Lei nº 4.075/62); aparte do produto dos espetáculos reservadaao autor e artistas (art. 79 da Lei nº 5.988/73); os bens vinculados à cédula de produtorural (art. 18 da Lei nº 8.929/94); as rendase serviços da Fundação Casa de Ruy Barbosa(Lei nº 7.615/87); os proventos de aposen-

tadoria (privada ou não), por extensão aoconceito de salário.

Para os fins da Lei nº 8.009/90, apenasas obras de arte e adornos suntuosos nãosão impenhoráveis. No entanto, a jurispru-dência tem admitido a penhora de aparelhode ar condicionado; mais de um aparelhode som; aparelhos elétricos sofisticados;forno de microondas; linha telefônica;piscina de fibra de vidro; e videocassete15.Os bens necessários à atividade econômicadas empresas (pessoa jurídica) estão sujeitosà penhora, pois o art. 649, VI, do CPC alcançasomente aqueles que vivem do trabalhopessoal próprio (firma individual).

É cabível a realização de penhora debens impenhoráveis adquiridos em frau-de à execução, pois é como se tal alienaçãonão existisse em face do credor. A realiza-ção de penhora sobre bens inalienáveisou impenhoráveis acarreta a sua nulida-de, que pode ser decretada, tanto em fasede embargos, quanto na própria execução,até mesmo de ofício16.

7. Meios de realização da penhoraA penhora pode ser realizada de diver-

sas maneiras: por meio da redução a termoda nomeação dos bens; por oficial de justiça;decorrente da conversão do arresto; por atodo juiz nas execuções alimentícias oupenhoras de direitos; e por termo nos autospelo escrivão.

Como nem sempre é fácil identificar opatrimônio do executado, é interessante parao exeqüente que seja feita a nomeação dosbens pelo próprio executado (art. 655/CPC).Aliás, é dever do executado indicar os benssujeitos à execução (art. 600, IV, do CPC),sob pena de ser advertido (art. 599, II, doCPC) e multado (art. 601, caput, do CPC). Feitaa nomeação, o exeqüente poderá impugná-la nos termos do art. 656 do CPC. Não sendoimpugnada, ou decidida como regular pelojuiz, a nomeação será reduzida a termo peloescrivão, com assinatura do executado, como que a penhora será considerada acabada.

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O depósito será realizado em seguida. Odevedor fica automaticamente intimadopara oferecer embargos. Essa é a modalida-de de penhora mais simples, célere e eficaz.Como já consignado, é interessante tantopara o exeqüente quanto para o executado.

A penhora realizada pelo oficial de jus-tiça ocorrerá sempre que o executado nãonomear bens ou quando a nomeação forconsiderada irregular. O oficial de justiçadeverá proceder de ofício, independente-mente de despacho judicial ou mandadoespecífico. Realizada a diligência, deveráproceder o respectivo auto. A penhora de-verá recair sobre os bens necessários à exe-cução, sempre com observância à ordemlegal e de modo a evitar prejuízo para oexecutado (art. 620/CPC). Caso o oficial dejustiça não encontre bens penhoráveis,devem ser descritos na certidão os que guar-necem a residência ou estabelecimento dodevedor. O arrombamento depende deautorização judicial (art. 660/CPC) e seráexecutado por dois oficiais de justiça (art.661/CPC).

A penhora de bens imóveis será realiza-da mediante auto ou termo de penhora, cominscrição do registro geral de imóveis (art.659, §4º, do CPC, com redação da Lei nº8.953/94).

A penhora de direito e ação implica pe-nhora de expectativa de direito. Em geral,pode-se dizer que, nesses casos, a penhoraé realizada mediante intimação do credordo terceiro para que não pratique ato de dis-posição do crédito; e do terceiro obrigadopara que não satisfaça a obrigação senãopor ordem do juiz, tornando-se o mesmodepositário, salvo se, desde logo, depositara quantia devida.

Pendente em juízo ação judicial do exe-cutado em face de terceiro, a penhora serárealizada mediante averbação pelo escrivãono rosto dos autos do processo, tornando-se efetiva nas coisas ou direitos que foremreconhecidos ao executado. O mandado exe-cutivo deverá conter ordem ao escrivão paraapresentação dos autos. A averbação será

na primeira folha dos autos do processo e,em seguida, o oficial de justiça procederá oauto de penhora, da qual será intimado oréu da ação pendente.

Se a penhora recair sobre dívidas de di-nheiro a juros, de direito a rendas, ou deprestações periódicas, o credor poderá le-vantar os juros, rendimentos ou as presta-ções à medida que forem sendo deposita-dos, abatendo-se do crédito as importânci-as recebidas, conforme as regras da imputa-ção em pagamento. A penhora de renda di-ária da empresa devedora é admissível, masexige a nomeação de administrador (art.719/CPC) e não pode ultrapassar 30% dofaturamento bruto17.

Recaindo a penhora sobre direito quetenha por objeto prestação ou restituição decoisa determinada, o executado será intima-do para, no vencimento, depositá-la, corren-do sobre ela a execução (art. 676/CPC).

A penhora de título de crédito será reali-zada mediante apreensão do documento,estando ou não em poder do devedor. Ain-da que não apreendido, mas havendo con-fissão do terceiro, este será considerado de-positário da importância (art. 672/CPC).

A execução de prestação alimentícia con-tém peculiaridades. A execução pode ser porquantia certa (art. 732); mediante ameaça deprisão civil (art. 733); ou por meio de des-conto em folha (art. 734). Na execução porquantia certa, a penhora de dinheiro facul-ta que o exeqüente levante mensalmente aimportância da prestação, ainda que hajaoferecimento de embargos (art. 732, parágra-fo único). Na execução sob pena de prisão,o seu decreto não obsta a posterior execu-ção por quantia certa. Na execução median-te desconto em folha, o empregador, ou aautoridade responsável pelo pagamento, éconsiderado depositário e a penhora é rea-lizada no momento do recebimento do ofí-cio judicial.

Realizada a penhora, o devedor será in-timado pessoalmente para embargar a exe-cução no prazo de dez dias (art. 669/CPC),

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sendo obrigatória a intimação do cônjugeno caso de bem imóvel. O prazo começa acontar da data da juntada aos autos da provade tal intimação, conforme consta do art. 738,I, do CPC, com redação da Lei nº 8.953/94.

8. Modificação, renovação eintercorrência de penhoras

Em princípio, a penhora não pode seralterada, posto que a finalidade da mesma éimpedir que os bens apreendidos venham aser subtraídos à execução. Em determina-dos casos, entretanto, a modificação serápossível, desde que atendidos os interessesdo exeqüente e executado. A modificaçãoserá cabível caso o valor dos bens exceda aocrédito, hipótese em que a penhora será re-duzida (art. 685, I, do CPC), ou caso o valordos bens seja inferior, hipótese em que ha-verá reforço de penhora (art. 685, II, do CPC).Ademais, a qualquer momento, antes da ar-rematação ou adjudicação, será possível asubstituição do bem penhorado por dinhei-ro, caso em que a execução correrá sobre aquantia depositada (art. 668/CPC).

A renovação da penhora tem cabimentoapenas em três hipóteses: anulação da pri-meira; executados os bens, se o produto daalienação não bastar para o pagamento docredor; e quando o credor desistir da pri-meira penhora, por serem litigiosos os bens,ou por estarem penhorados, arrestados ouonerados (art. 667/CPC). O perecimentonatural de bens penhorados tem sido justi-ficativa para proceder-se a nova penhora,com fulcro no art. 667, II, do CPC. É pruden-te que, nesses casos, o devedor seja nova-mente intimado para oferecer embargos.

A penhora de bens já penhorados se re-solvia, na vigência do CPC de 39, em con-curso de credores. Pela penhora, adquire ocredor direito de preferência sobre os benspenhorados, a se fazer valer na hipótese deconcorrerem outros credores contra o mes-mo devedor solvente (art. 612/CPC)18. Ape-nas no caso de insolvência, deverá haverconcurso de credores.

9. A desapropriação dos benspenhorados. Introdução

A fase de desapropriação inocorre casoa penhora recaia sobre dinheiro, pois, como levantamento do seu depósito, o crédito ésatisfeito e a execução extinta. A função dadesapropriação (arrematação) dos bens pe-nhorados é fazer com que o exeqüente rece-ba a importância exata do crédito, uma vezque a penhora pode compreender bens quenão correspondam exatamente ao que é de-vido. Outra maneira existe para solucionaro problema, a entrega do bem penhorado aoexeqüente, o que se denomina adjudicaçãoou, na dicção do Código Civil, dação empagamento (art. 995).

De toda sorte, seja na adjudicação, sejana arrematação, a titularidade do direitopenhorado é transferida para outra pessoa,o exeqüente ou terceiro. Em ambas as hipó-teses, as operações sucedem sem o consen-timento do executado. Na adjudicação, o atoimplica satisfação do crédito e extinção daexecução. Na arrematação, o ato é apenasmeio de se conseguir dinheiro para satisfa-ção do crédito.

10. Natureza jurídica dadesapropriação

A doutrina tradicional sustenta que o atode arrematação ou desapropriação é umcontrato de compra e venda realizado pelojuiz, que vende em nome do executado esupre a sua vontade ausente. Porém, na de-sapropriação judicial, nem o executado quervender, nem deu ao órgão judicial poderpara tanto. Carnelutti sustenta que o que éessencial na posição do representante legalnão é a vontade presumida ou ficta do re-presentado e sim o poder reconhecido aorepresentante de querer por conta dele. Lieb-man, ao criticar esse posicionamento, consig-na que a representação legal visa sempre be-neficiar o representado e, na desapropriação,o executado estará sendo “prejudicado”.

Outra teoria sustenta que o órgão judicial,ao promover a alienação forçada, estaria

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representando não o executado, mas sim oexeqüente, já que a este pertence o direito deexpropriação. Tal entendimento decorre daidéia de que a responsabilidade patrimoni-al do devedor é instituto de direito materiale consiste em direito real do credor. Contudo,a premissa é falsa. A responsabilidade pa-trimonial é garantia do órgão judiciário aptoa promover a execução do crédito. Trata-se,pois, de instituto de direito processual. Demais a mais, direito real algum confere aocredor o direito de alienação, mas apenas apreferência.

Chiovenda dispõe que o órgão judicialdesapropria do executado, não o direitosobre o bem, mas apenas a faculdade dedispor dos mesmos, para, em seguida,usando desta faculdade, vender o bem doexecutado. Portanto, o juiz, quando vende,não age como representante do executado,mas sim em vista do interesse público deprestar jurisdição.

Na realidade, a alienação judicial não éum contrato. É um ato unilateral do órgãojudicial, que, no exercício de sua função,transfere o direito do executado para outrem.É um ato eminentemente processual e, por-tanto, de direito público. Embora a concreti-zação do ato dependa da vontade do adqui-rente, essa aceitação é subordinada. A causaefetiva da alienação é, com efeito, a atuaçãodo órgão judiciário.

11. A avaliaçãoFeita a penhora e intimado formalmente

o executado, proceder-se-á a avaliação dosbens apreendidos, desde que não haja em-bargos ou estes sejam recebidos sem efeitosuspensivo. A avaliação é ato preparatórioda desapropriação, tendo por finalidade darconhecimento a todos os interessados dovalor aproximado dos bens que irão à leilãoou praça. A avaliação é confiada a serven-tuário da justiça ou outra pessoa idônea queo juiz nomeará.

A avaliação é dispensada quando o cre-dor aceitar a estimativa feita na nomeação

de bens, conforme exigência do art. 656, VI;quando se tratar de títulos ou mercadoriasque tenham cotação em bolsa, comprovadapor certidão ou publicação oficial; e quan-do os bens forem de pequeno valor (art. 684/CPC). Nas duas primeiras hipóteses, a dis-pensa ocorre diante da existência de outrosmeios de avaliação. Na última, a dispensadecorre do princípio do interesse, já que oprosseguimento com a execução de bem di-minuto poderá causar gastos superiores.

12. ArremataçãoOs editais serão expedidos com a finali-

dade de dar conhecimento da alienação aterceiros prováveis adquirentes. Os editaisconterão as informações prescritas em lei(art. 686/CPC). No caso de imóveis, comhipotecas inscritas, deverão ser intimadospessoalmente os credores hipotecários (art.698/CPC).

A praça ou leilão, caso seja imóvel oumóvel o bem penhorado, será realizado emdia e hora previamente designados pelo juiz.São admitidas a participar do ato todas aspessoas com capacidade jurídica, salvo aselencadas no art. 690/CPC. A arremataçãoserá conferida àquele que der maior lance.O leilão será procedido por leiloeiro público,nomeado pelo juiz, mediante prévia indica-ção do exeqüente. A hasta pública (praça)será procedida pelo porteiro do Fórum.

Notas1 De um modo geral, a jurisprudência não admite

a apresentação de cópia do título executivo extra-judicial, salvo se devidamente justificada a suaausência (Theotonio Negrão, pág. 486).

2 Recurso Especial 11.890/PR, Rel. Min. EduardoRibeiro, DJU. 11-5-92.

3 Recurso Especial 586/PR, de que foi Relator oMin. Sálvio de Figueiredo (DJU. 18-2-91).

4 Dificilmente hoje haverá decisão homologatóriade atualização, já que a atualização encerra cálculosde simples operação matemática e está sujeita aoprocedimento introduzido pela Lei nº 8.898/94 (art.604/CPC). Um único exemplo que parece aindaexistir seria o de atualização de crédito para

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expedição de precatório judicial complementar.5 STJ-3ª Turma, RMS 695-MG, rel Min. Nilson

Naves, j. 11.12.90, negaram provimento, vu. DJU.18-2-91, p. 1.032, 1ª col; RTFR 130/121, RJTJESP84/164, JTJ 142/216, JTA 74/382, 87/275, RP 1/200, em 45, 4/383, em. 54, 5/308, em. 62, apudTheotonio Negrão, 27.ed., p. 375.

6 Theotonio Negrão, 28 edição, pág. 482.7 Provimento 53 da Corregedoria Geral da 2ª

Região e Resolução 65 do Conselho da JustiçaFederal de São Paulo.

8 Recurso Especial 7.489/SP, de que foi Relatoro Min. Dias Trindade (DJU. 22-4-91).

9 Tal como ocorre na oposição (art. 57), nareconvenção (art. 316), nos embargos (art. 740).

10 Revista Trimestral de Jurisprudência, Vol. 146,pág. 278.

11 Recurso Especial 44.465-9/PE, de que foi

Relator o Min. Sálvio de Figueiredo (DJU. 23-5-94).12 Revista do Tribunal Federal de Recursos, Vol.

162, pág. 37.13 Recurso em Mandado de Segurança 6.701/

SP, Rel Min. Sálvio Figueiredo, DJU. 03-6-96.14 Theotonio Negrão, 28ª edição, pág. 496.

Recurso Especial 54.740-7/DF, Rel. Min. Ruy Ro-sado, DJU. 13-2-95.

15 Theotonio Negrão, 28ª edição, pág. 497.16 Revista do Superior Tribunal de Justiça, Vol.

78, pág. 228.17 Recurso Especial 36.535-0/SP, Rel. Min.

Garcia Vieira, DJU. 4-10-93.18 Aliás, é de ter-se por abrangidas na expressão

“penhora” do art. 612/CPC as figuras de arrestocontempladas nos arts. 563/654 e 813/821 domesmo diploma legal (Recurso Especial 2.435-0/MG, Rel. Sálvio Figueiredo, DJU. 16-10-95).

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

Entre as questões que mais geramcontrovérsia no Direito Econômico, e ex-põem à indesejável desuniformidade tantoas decisões administrativas quanto asjudiciais, estão a da definição de ‘InstituiçãoFinanceira’ e, especialmente, a da definiçãodo que seja ‘atividade própria ou exclusivade Instituição Financeira’.

Para se aferir a relevância de tais defini-ções, é suficiente dizer que delas dependemdiretamente a questão da licitude ou ilici-tude da prática de empréstimos a jurosanormais, a questão da aplicabilidade de

As Instituições Financeiras no Direito pátrio:definição e caracterização de atividadeprópria ou exclusiva

Leonardo Henrique Mundim MoraesOliveira

Leonardo Henrique Mundim Moraes Oliveiraé Procurador da Área Administrativa e Criminaldo Banco Central do Brasil; Membro daComissão Especial do Banco Central parareforma da Lei nº 7.492/86; Membro da Diretoriada Associação Nacional dos Procuradores dasAutarquias e Fundações Federais; Professor deCurso Preparatório para Concursos em Brasília.

1. Introdução. 1.1. Relevância da intervençãoestatal. 2. Desenvolvimento do tema. 2.1.Critérios comumente adotados. 2.1.1. Coleta derecursos. 2.1.2. Intermediação dos recursos.2.1.3. Aplicação de recursos. 2.1.4. Fim lucrativo.2.1.5. Habitualidade mínima. 2.1.6. Caráterpúblico da oferta de recursos. 3. Equacionamentoda questão. 3.1. Atividade financeira e requisitospropostos para caracterização da atividadeprópria ou exclusiva de Instituição Financeira.3.1.1. Lucro strictu sensu. 3.1.2. Reinserção doresultado dos financiamentos no fluxo comercialespecífico, de forma manifesta ou presumida.3.2. Das Instituições Financeiras. 3.2.1. Dosintegrantes do Sistema Financeiro Nacional.3.2.2. Origem da questão. 3.2.3. InstituiçãoFinanceira e o Banco Central. 4. Conclusõesgerais. 4.1. Do enquadramento de determinadassituações frente às definições ora propostas.

Sumário

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alguns crimes do colarinho branco (Leinº 7.492/86), a questão da aplicabilidadedo crime de usura (art. 4º da Lei nº 1.521/51c/c art. 1º do Decreto nº 22.626/33) e a questãoda aplicabilidade de multa administrativa(Lei nº 4.595/64).

É prerrogativa do Banco Central do Bra-sil conceder a indispensável autorizaçãoprévia para que uma Instituição Financeirapossa funcionar no País (Lei nº 4.595/64,art. 10, inc. IX). E, no âmbito de seu poderfiscalizatório e supervisor, cabe igualmenteàquela Autarquia Federal aplicar penali-dade de multa (até R$ 100.000,00 – Lei nº9.069/95) a qualquer pessoa física ou jurí-dica que exercer, sem a hábil autorização,atividade própria ou exclusiva de Institui-ção Financeira.

A Lei nº 7.492/86, por sua vez, pune compena de reclusão o indivíduo que ‘faz operar’Instituição Financeira sem a devida autori-zação do Banco Central do Brasil (art. 16).

Em tese, pois, o forte cerco legislativo de-veria inibir a conduta indesejada. Todavia,a jurisprudência e mesmo os ementários daAdministração Pública evidenciam discre-pâncias na condução do caso e na aplica-ção de sanções, todas fulcradas – ou de al-guma forma decorrentes – da vexata quaestioreferida no início deste texto, que pode serdesdobrada em três questionamentos: o queé Instituição Financeira? Quais são, no Di-reito pátrio, as Instituições Financeiras? E,o mais importante, o que é atividade pró-pria ou exclusiva de Instituição Financei-ra? E em que circunstâncias uma corriquei-ra atividade de concessão de empréstimosou realização de contratos de mútuo pecu-niário deve sofrer punição?

1.1. Relevância da intervenção estatal

Sabido que é no ramo de concessão definanciamentos que têm atuação básica asInstituições Financeiras.

Desnecessário dizer muito sobre a im-portância de o Estado regular o mercado definanciamentos. Se não o fizesse – sequalquer do povo pudesse emprestar da

maneira que lhe conviesse –, seria brutal,desordenada e injusta a transferência de ri-queza, que estaria respaldada unicamenteno nível de angústia ou prodigalidade dequem necessitasse da pecúnia, sem falar nainstabilidade que se provocaria nas famí-lias, no encrudelescimento das falências co-merciais e insolvências civis, e no presumí-vel aumento da criminalidade frente aosdébitos impagáveis.

2. Desenvolvimento do temaRelevante destacar, em preâmbulo, que

o mútuo ou empréstimo referenciado ao lon-go do trabalho restringe-se, aqui, àquele quetem por objeto o dinheiro.

Inicialmente, pedimos vênia para nãotranscrever quaisquer das pertinentes ma-nifestações doutrinárias ou jurisprudenciaisjá produzidas acerca da matéria, posto es-tamparem variegadas divergências, e umavez que ora se pretende propor um novo en-foque para o assunto, que seja conciliatório,e que possa abranger em si a solução dassucessivas situações novas que a atividadeeconômica é capaz de gerar.

2.1. Critérios comumente adotados

O que se tem atualmente, no âmbito dosórgãos governamentais que deliberam so-bre o sistema financeiro nacional, é a orien-tação que não define, mas apenas conceituaInstituição Financeira e atividade própriaou exclusiva de Instituição Financeira, fa-zendo-o de uma maneira que nos parece,data venia, muito casuística e que consistena aferição da presença concomitante dosseguintes requisitos, que devem informar sea atividade investigada imprescindia ounão da prévia autorização governamental:coleta, intermediação e aplicação de recursos, fimlucrativo, habitualidade mínima e caráter pú-blico da oferta de recursos.

Significa que, a princípio, somente em sepodendo comprovar a presença de todos os pres-supostos supracitados, poder-se-ia instaurarprocedimento administrativo e processo crimi-nal contra o agente financeiro desautorizado.

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Pensamos, data venia, que a utilização detantos e tais critérios tende apenas a dificul-tar o enquadramento em ilícito administra-tivo ou penal. Não bastasse, é patente a sub-jetividade de cada um dos requisitos, o que,além de gerar controvérsia dentro dos pró-prios órgãos estatais, ainda possibilita inú-meras nuanças de defesa, eventualmenteensejadoras de impunidade.

Permitimo-nos realizar, sucintamente,uma análise crítica da pertinência de cadaum dos vigentes requisitos, atualmente ne-cessários para caracterizar o exercício deatividade própria ou exclusiva de Institui-ção Financeira.

2.1.1. Coleta de recursos

O verbo “coletar”, aqui, traz o sentido dearrecadar. Significa arrecadação de recur-sos, portanto.

A obrigatoriedade da presença concomi-tante da coleta é, data venia, pouco conve-niente, posto que excluiria da ilicitude asconcessões de empréstimos respaldadas porrecursos próprios da pessoa física ou jurí-dica financiadora. Permiti-lo implicariaapreciar uma mesma conduta – financiar –sob dois aspectos diferentes em razão deuma questão secundária como a origem dosrecursos emprestados.

2.1.2. Intermediação dos recursos

Sabendo-se que a intermediação envol-ve atividade de repasse de recursos de ter-ceiros, pode-se aferir a inocuidade do requi-sito com um exemplo:

Os bancos comerciais, eminentes finan-ciadores, têm por natureza emprestar quais-quer recursos não-vinculados recebidos emsua atividade cotidiana. Todavia, nem to-dos os recursos manejados pelos referidosestabelecimentos bancários são de proprie-dade dos depositantes ou investidores.

Veja-se o caso dos juros recebidos em con-trato de cheque especial e o caso da remune-ração de serviços bancários debitada emconta de depósito. Tais recursos passam aintegrar o patrimônio do banco como dis-

posição própria e, ainda assim, são empres-tados, repassados aos tomadores.

Não houvera, portanto, intermediação,e, no entanto, os recursos foram utilizadospara financiamentos. Seria plausível, emcada processo criminal ou administrativopor atividade financeira desautorizada,apreciar qual a parcela de recursos empresta-dos que pertencem originalmente a terceiros– objeto de intermediação – e qual a parcelade recursos próprios, advinda dos juros e daprestação de serviços? As comunicações aoMinistério Público deveriam especificar taispercentuais para que fossem excluídos dasubseqüente deliberação judicial?

2.1.3. Aplicação de recursos

Esse seria um requisito válido, mas des-de que dirigido a uma finalidade específica.Não basta à ilicitude a simples aplicaçãodos recursos; a proibição está na naturezada aplicação dos recursos e no objetivoensejador do contrato pecuniário, como seexplicará adiante.

Somente en passant, é importante ressal-tar que, na atividade financeira, sempre ha-verá ou a coleta, ou a intermediação, ou aaplicação de recursos, sem concomitância,razão pela qual aqueles não são requisitosessenciais, mas apenas circunstânciasnaturais ou inerentes.

2.1.4. Fim lucrativo

O problema aqui é de definição específica:o que é lucro, quando se configura na medidaem que o bem principal, nos contratos demútuo, é o próprio dinheiro? Os juros podemser considerados uma forma de lucro?

2.1.5. Habitualidade mínima

“Habitualidade” é um vocábulo deverassubjetivo. O que seria habitual em matériade concessão de financiamentos? Uma vezpor mês, uma vez por semana? A Lei nº8.906/94, por exemplo, considera ativida-de advocatícia habitual, para fins de inscri-ção suplementar na OAB, o manejo de cincocausas por ano.

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Enfim, cada administrador, cada advo-gado, cada membro do Parquet, cada magis-trado pode ter uma idéia própria de habitua-lidade, o que dificulta a essencial transpa-rência e coordenação dos atos estatais eredunda em instabilidade na aplicação desanções.

2.1.6. Caráter público da oferta de recursos

Segundo De Plácido e Silva, “públicoequivale a notório, geral, publicado, divul-gado, conhecido” (in “Vocabulário Jurídi-co” – vol. III, Ed. Forense, 6ª edição, p. 1.263).Ora, aqui novamente se estaria atribuindo auma circunstância menor o valor de requi-sito intrínseco.

Efetivamente, não é necessário que a ofer-ta de recursos financeiros tenha caráter pú-blico, cediço ainda que o simples fato de pu-blicizar a notícia da prática ilegal de ativi-dades de financiamento não é, só por si, cri-minosa ou administrativamente reprovável.O que importa, repita-se, é a atividade em si.

3. Equacionamento da questãoTalvez toda a controvérsia tenha surgi-

do do ângulo pelo qual se vem enfocando oproblema.

Entendemos que o ponto nodal da ques-tão não é nem saber o que é Instituição Fi-nanceira, mas saber quando é que determi-nada atividade de financiamento é consi-derada própria, exclusiva de Instituição Fi-nanceira, e especialmente quais as caracte-rísticas que diferenciam tal mister – depen-dente de prévia autorização governamental– da simples realização de adiantamentosou contratos de mútuo pecuniário, previstanos arts. 1.256 a 1.264 do Código Civil e pra-ticável por qualquer pessoa.

Isso porque as sanções legalmente esta-belecidas – penal e administrativa – devemassentar não sobre o conceito, mas sobre aprática. Vale dizer: uma pessoa física ou ju-rídica não pode ser punida por ser conceitua-da como ou por se equiparar a uma InstituiçãoFinanceira; uma pessoa física ou jurídica

pode e deve ser punida, aí sim, por, sem auto-rização do Banco Central, atuar como InstituiçãoFinanceira, ou seja, praticar, irregularmente, atopróprio, exclusivo de Instituição Financeira.

3.1. Atividade financeira e requisitospropostos para caracterização da atividade

própria ou exclusiva de Instituição Financeira

Inicialmente, cabe assentar que ativida-de financeira é aquela mediante a qual umapessoa física ou jurídica disponibiliza di-nheiro a outra, direta ou indiretamente. Di-retamente, quando o numerário é entregueao próprio financiado. Indiretamente, quandoo numerário é entregue a terceiro, em benefí-cio do financiado, geralmente sob a formade adiantamento.

A destinação do financiamento pode serespecífica – custeio para aquisição ou em-preendimento – ou genérica – capital de giro,despesas pessoais ou gerais, abatimento dedívidas preexistentes, etc. E, sob o aspectoda atividade negocial – que aqui se pretendecaracterizar –, a concessão da pecúnia deveestar acompanhada da obrigatoriedade derestituição.

Sob tais embasamentos, a atividade co-mercial tida como própria ou exclusiva deInstituição Financeira não deixa de ser, pri-mariamente, uma atividade comercial derealização contínua de contratos de mútuo.O que vai diferir a atividade de financia-mento própria ou exclusiva de InstituiçãoFinanceira da atividade de realizar simplescontratos de empréstimo previstos na lei ci-vil é, acreditamos, a verificação concomitan-te de dois requisitos básicos, peculiares eexclusivos do primeiro mister, em substitui-ção a todos os requisitos atualmente vigen-tes: a) obtenção de lucro strictu sensu na ati-vidade de emprestar, frente ao financiadoou a terceiro; e b) reinserção do resultadodos financiamentos no fluxo comercial es-pecífico, de forma manifesta ou presumida.

3.1.1. Lucro strictu sensu

Ab initio, consigne-se que o lucro aquiabordado é no sentido estrito da palavra,

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não sendo tido, pois, como sinônimo de‘faturamento’.

Ainda assim, é tarefa difícil definir o queseja lucro strictu sensu no caso de financia-mentos, ou seja, contratos pecuniáriospuros.

Pensamos que sua definição deve pau-tar-se em duas diretrizes: a) o lucro strictusensu significa basicamente um ganho, istoé, um plus auferido na atividade; b) a sim-ples remuneração de uma atividade não éuma forma de ganho, não representa umplus, mas apenas o justo pagamento pelaprestação do outro contratante. O lucro, lem-bre-se, é uma característica típica da profis-sionalização da atividade.

Ora, no contrato de mútuo ou emprésti-mo, o capital em si é a própria prestação –uma prestação do financiador ao financia-do –, e esta é obviamente contraposta poroutra prestação, também pecuniária, porparte do financiado ou de terceiro, a ser im-plementada adicionalmente à devolução docapital adiantado ou mutuado.

Entendemos que essa contraprestação dofinanciado ou de terceiro enquadra-se comouma remuneração contratual, destinadaapenas a compensar, para o financiador, adisponibilização do capital que fizera, dire-ta ou indiretamente, ao financiado.

E a remuneração do capital, como cediço,é representada pelos juros. Diz Washingtonde Barros Monteiro:

“Juros são o rendimento do capital,os frutos produzidos pelo dinheiro.Assim como o aluguel constitui o preçocorrespondente ao uso da coisa nocontrato de locação, representam osjuros a renda de determinado capi-tal.” (in “Curso de Direito Civil”, Di-reito das Obrigações – 1ª parte, Ed.Saraiva, 11ª edição, p. 337)

Na medida em que os juros, em sua es-sência, significam uma renda lícita – por-quanto decorrente de um contrato de pres-tação de capital –, a sua simples cobrançaem um empréstimo ou financiamento nãoimplicaria, a princípio, um plus ou lucro, mas

apenas – e tão-somente – uma digna e justaremuneração em favor do financiador.

Entretanto, o legislador pátrio houve porbem fixar um limite ao montante de juros,fazendo-o mediante o art. 1º do Decreto nº22.626/33, in verbis:

“Art. 1º É vedado, e será punidonos termos desta Lei, estipular emquaisquer contratos taxas de juros su-periores ao dobro da taxa legal” (Có-digo Civil, art. 1.062).

E o singelo estabelecimento de tal taxa-limite, note-se, significou a criação de umapresunção legal de justa remuneração pelo fi-nanciamento, pelo capital emprestado. Aten-te-se para a importância do decreto supra-citado: foi criado um parâmetro impositivo –12% ao ano (“o dobro da taxa legal”) – parase aferir a adequação da remuneração, valedizer, a justeza da avença e conseqüente-mente o equilíbrio entre as partes nos con-tratos de financiamento.

Da presunção legal e do parâmetro esta-belecido decorre a conclusão de que, em de-terminada atividade de financiamento, osjuros fixados em até o dobro da taxa legal –ou seja, em até 12% ao ano (art. 1.062 doCódigo Civil) – estão perfeitamente abran-gidos no conceito de justa e devida remune-ração pelo ato de financiar, isto é, no concei-to de contraprestação adequada e mantene-dora do equilíbrio contratual, que propicia,autoriza e delimita a licitude da atividadede emprestar.

No mesmo raciocínio, a estipulação dosjuros além do limite legal remuneratório se-ria um plus, um algo a mais que a parte mu-tuante ganhará além da justa e repositoraremuneração, sendo esse excedente qualifi-cado, assim, como lucro strictu sensu.

Note-se que, na medida em que o finan-ciamento pode ser direto ou indireto (item3.1.), a remuneração e o lucro do financiadorpodem ser suportados tanto pelo financiadoquanto por terceiro. Veja-se, por exemplo, ocaso em que a financeira aparece como in-terveniente num contrato de compra-e-ven-da comercial, quando o comprador deseja

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parcelamento, sem acréscimo, de sua pres-tação. Nesse caso, muito comum em opera-ções com cartão de crédito, o comprador éfinanciado pela interveniente, que lhe con-cede indiretamente um adiantamento entre-gando a pecúnia ao comerciante, o qual re-cebe valor menor, à vista ou mesmo a prazo,mas em que restam abatidos, em forma depercentual, a remuneração e o lucro da fi-nanceira. Desse modo, o comprador é o fi-nanciado, mas os juros e o lucro strictu sensuoriginados do financiamento são suporta-dos pelo lojista-vendedor, que tem interesseno potencial incremento das vendas, gra-ças à maior facilidade aquisitiva para o con-sumidor do seu produto ou serviço.

O lucro strictu sensu, pois, no mútuo, em-préstimo ou financiamento, é aquela parteda contraprestação do mutuário, ou de ter-ceiro em seu benefício, que ultrapassa o li-mite legalmente imposto como suficiente re-muneração do capital disponibilizado.

3.1.2. Reinserção do resultado dosfinanciamentos no fluxo comercial específico,

de forma manifesta ou presumida

O segundo requisito que, a nosso modode ver, deve estar concomitantemente pre-sente para a caracterização de uma ativida-de de financiamento como própria de Insti-tuição Financeira é a reinserção dos resul-tados do mútuo ou financiamento no fluxocomercial específico, de forma manifesta oupresumida.

Se o mutuante, ao receber em retorno ocapital emprestado acrescido de juros aci-ma do dobro da taxa legal, concede comaquela pecúnia um novo financiamento,estará praticando ato próprio ou exclusivode Instituição Financeira.

Note-se: a reinserção exigida não é no flu-xo econômico – compra de mercadorias, porexemplo –, mas sim no fluxo do mesmo esquemade financiamento, objetivando a repetição e, viade conseqüência, a continuidade do modo deauferir lucro strictu sensu. Desse modo, bastauma única reinserção para, em concorrên-cia com o lucro, caracterizar-se a ilicitude.

E o ato de reinserção dos resultados namesma atividade pode apresentar-se tantosob a forma manifesta – quando evidencia-da mediante acompanhamento da trajetó-ria do dinheiro–, quanto sob a forma presu-mida. Pode-se presumir a reinserção do re-sultado dos empréstimos no fluxo comer-cial específico quando, verbi gratia, a pessoajurídica investigada qualifica-se como em-presa de factoring, empresa de fomento co-mercial ou mesmo, abertamente, como em-presa financeira desautorizada – enfim,naqueles casos em que o trato direto e espe-cializado com finanças é o único ou princi-pal escopo da existência da firma.

Também no caso de atividades pratica-das por pessoa física, a ocorrência da rein-serção dos resultados no fluxo comercial es-pecífico pode ser aferida com base em cir-cunstâncias adjacentes, como a oferta pú-blica de dinheiro sem que o ofertante dispo-nha, à vista dos assentos da Receita Fede-ral, de volumosa pecúnia em espécie possi-bilitadora da realização de diversos contra-tos singulares de mútuo.

3.2. Das Instituições FinanceirasPode-se concluir que, atualmente, as Ins-

tituições Financeiras – portanto integrantesdo Sistema Financeiro Nacional –, no Direi-to Pátrio, são, exclusivamente:

a) em virtude da previsão da Lei nº4.595/64 (art. 17 c/c art. 18, § 1º):

– os Estabelecimentos Bancários Ofici-ais e Privados (latu sensu: Bancos Comerciais,Bancos de Investimento, Bancos de Desen-volvimento e Bancos Múltiplos com Cartei-ra Comercial);

– as Sociedades de Crédito, Financiamen-to e Investimento (‘Financeiras’);

– as Caixas Econômicas;– as Cooperativas de Crédito e Coopera-

tivas que possuem Seção de Crédito.b) em virtude da previsão das Leis nos

4.380/64 (art. 8º), 9.514/97 (art. 1º) e da Re-solução nº 1.980/93 (arts. 1º e 2º), do Con-selho Monetário Nacional:

– os Bancos Múltiplos com Carteira deCrédito Imobiliário;

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– as Sociedades de Crédito Imobiliário;– as Associações de Poupança e Emprés-

timo;– as Companhias de Habitação;– as Fundações Habitacionais;– os Institutos de Previdência, exclusi-

vamente com relação à Seção de Crédito Imo-biliário;

– as Companhias Hipotecárias;– as Carteiras Hipotecárias dos Clubes

Militares;– os Montepios Estaduais e Municipais,

exclusivamente com relação à Seção de Cré-dito Imobiliário;

– as Entidades e Fundações de Previdên-cia Privada, exclusivamente com relação àSeção de Crédito Imobiliário.

‘Instituição Financeira’, em definição, éuma organização estruturada e coordenada,prevista em lei ou regulamento legalmenteautorizado, com objetivo e finalidade de,mediante atividade peculiar de gerencia-mento de recursos próprios e/ou de tercei-ros, prover meios pecuniários para financiara aquisição de bens e serviços, a realizaçãode empreendimentos, a cobertura de despe-sas pessoais ou gerais, a manutenção decapital de giro, o abatimento de dívidas pre-existentes e as demais atividades inerentesà vida econômica das pessoas físicas e jurí-dicas, de direito público e privado.

As entidades referidas no início desteitem, efetivamente, apresentam a peculiari-dade do lucro strictu sensu nas operações definanciamento, na medida em que lhes é per-mitido cobrar juros além da taxa-limite deremuneração do capital, legalmente adequa-da. A assertiva pode ser confirmada sob doisaspectos: o primeiro, pela exclusão preconi-zada no art. 17 do Decreto nº 22.626/33:

“Art. 17. O governo federal baixa-rá uma lei especial, dispondo sobreas casas de empréstimos, sobre penho-res e congêneres.”

E o segundo, pelo entendimento firma-do na Súmula nº 596 do Supremo TribunalFederal, in verbis:

“596. As disposições do Decreto nº22.626/33 não se aplicam às taxas de

juros e aos outros encargos cobradosnas operações realizadas por institui-ções públicas ou privadas que inte-gram o sistema financeiro nacional.”

Quanto à presença da segunda peculia-ridade da atividade própria ou exclusiva deInstituição Financeira, lembre-se que as pes-soas jurídicas enumeradas no início desteitem, por sua própria natureza de agentes deintermediação contínua, reinserem os resulta-dos da sua atividade financeira no fluxocomercial específico: financiam outrem comrecursos próprios e especialmente com apecúnia recebida em operação anterior,acrescida dos juros.

As atividades de financiamento daque-las pessoas jurídicas, pois, são o mais per-feito e contundente parâmetro para se aferirse determinada pessoa física ou jurídica estáatuando como Instituição Financeira semautorização do Banco Central do Brasil.Entendemos que qualquer referência legal a‘instituições financeiras’ significa, invaria-velmente, referência às entidades especifi-cadas no início deste item, as quais são inte-grantes diretas do Sistema FinanceiroNacional (alínea ‘a’), ou de um de seussubconjuntos Sistema Financeiro da Habi-tação/Sistema Financeiro Imobiliário/Sistema Brasileiro de Poupança e Emprés-timo (alínea ‘b’).

E, dessa forma, deflui facilmente a segun-da definição: atividade própria ou exclusi-va de Instituição Financeira é a concessãode financiamentos, mútuo ou empréstimos,direta ou indiretamente, na qual concorram,simultaneamente, os requisitos da obtençãode lucro strictu sensu frente ao financiado oua terceiro e da reinserção dos resultados nofluxo comercial específico, de forma mani-festa ou presumida.

3.2.1. Dos integrantes do Sistema FinanceiroNacional

Há certa tendência – a nosso ver, datavenia, equivocada – em conceder o status deInstituição Financeira – e portanto integran-te do sistema financeiro nacional – a todas e

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quaisquer empresas ou entidades que ope-rem ou deliberem diretamente com geren-ciamento de finanças.

Não é essa, efetivamente, a vontade dalei. Diz o art. 1º da Lei nº 4.595/64:

“Art. 1º O Sistema Financeiro Na-cional, estruturado e regulado pelapresente lei, será constituído:

I – do Conselho Monetário Nacio-nal;

II – do Banco Central do Brasil;III – do Banco do Brasil S/A;IV – do Banco Nacional de Desen-

volvimento Econômico e Social;V– das demais instituições finan-

ceiras públicas e privadas.”O art. 17, por sua vez, especifica:

“Art. 17. Consideram-se institui-ções financeiras, para os efeitos da le-gislação em vigor, as pessoas jurídi-cas públicas ou privadas, que tenhamcomo atividade principal ou acessó-ria a coleta, intermediação ou aplica-ção de recursos financeiros própriosou de terceiros, em moeda nacional ouestrangeira, e a custódia de valor depropriedade de terceiros.” (A custó-dia aqui não é elemento obrigatório,mas eventual, ocorrendo somentequando há garantia ao empréstimo)

“Parágrafo único. Para os efeitosdesta Lei e da legislação em vigor,equiparam-se às instituições financei-ras as pessoas físicas que exerçamqualquer das atividades referidasneste artigo, de forma permanente ouhabitual.”

E o especial art. 18, em seu caput e § 1º,esclarece concludentemente:

“Art. 18. As instituições financei-ras somente poderão funcionar noPaís mediante prévia autorização doBanco Central do Brasil ou decreto doPoder Executivo, quando forem es-trangeiras.

§ 1º Além dos estabelecimentos ban-cários oficiais ou privados, das socieda-des de crédito, financiamento e investi-mento, das caixas econômicas e das

cooperativas de crédito ou a seção de cré-dito das cooperativas que a tenham, tam-bém se subordinam às disposições edisciplina desta Lei no que for aplicá-vel as bolsas de valores, as companhi-as de seguros e de capitalização, associedades que efetuam distribuiçãode prêmios em imóveis, mercadoriasou dinheiro, mediante sorteio de títu-los de sua emissão ou por qualquerforma, e as pessoas físicas ou jurídi-cas que exerçam, por conta própria oude terceiros, atividade relacionadacom a compra e venda de ações e ou-tros quaisquer títulos, realizando nosmercados financeiros e de capitaisoperações ou serviços de natureza dosexecutados pelas instituições finan-ceiras.” (grifos nossos)

É conclusão natural que o art. 17 e o art.18, caput e § 1º, devem ser interpretados con-junta e harmonicamente, e que a Lei nº4.595/64 pretendeu também abranger, noconceito de ‘demais instituições financeiras’– e, portanto, no conjunto do Sistema Finan-ceiro Nacional –, todas aquelas pessoas ju-rídicas enumeradas na alínea ‘b’ do item3.2. (supra), já previstas no art. 8º da Lei nº4.380/64 (algumas delas repetidas no art.1º da Lei nº 9.514/97) e atualmente especi-ficadas, por força de deferimento legislati-vo, pela Resolução nº 1.980/93 (arts. 1º e 2º)do Conselho Monetário Nacional.

Nesse diapasão, confirma-se novamenteo disposto no início do item 3.2., sendo certoque as demais pessoas jurídicas referencia-das no § 1º do art. 18 não são InstituiçõesFinanceiras, mas apenas se sujeitam, no quecouber, à disciplina da Lei nº 4.595/64. Res-salte-se que, naturalmente, há sujeição a to-dos os atos – regulamentação, fiscalização,enfim, à autoridade e a qualquer deliberação – doConselho Monetário Nacional e do BancoCentral do Brasil, bem como, no que couber,às demais disposições da Lei Bancária.

3.2.2. Origem da questãoNão se pode olvidar, lamentavelmente,

que a vexata quaestio sobre a qual se discorre

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tenha-se originado da imprecisa técnica le-gislativa do parágrafo único do art. 17 daLei nº 4.595/64, o qual apenas objetivousujeitar também à disciplina e aos rigoresda Lei Bancária as pessoas físicas e jurídi-cas que, malgrado não sejam InstituiçõesFinanceiras – ou melhor, malgrado não se-jam qualquer das entidades referidas noitem 3.2. –, exerçam atividade própria ouexclusiva das Instituições Financeiras, ouseja, atividade de financiamento que apresentesimultaneamente as duas peculiaridades decli-nadas nos itens 3.1.1. e 3.1.2. O objetivo legal,pois, foi somente dar ensejo à punição ad-ministrativa e criminal, em face da ausên-cia de autorização do Banco Central do Bra-sil para, por exemplo, determinada pessoafísica funcionar como um Banco.

Houve, data venia, manifesta improprie-dade ao se criar aparentemente, no parágra-fo único do art. 17 da Lei nº 4.595/64, a fi-gura da ‘instituição financeira por equipa-ração’. Tal construção fictícia, decerto, nun-ca poderia encontrar interpretação harmo-niosa, uma vez que buscou desnecessaria-mente, para igualar efeitos ou submissãolegal, transmudar virtualmente a própria es-sência de pessoas físicas que, não sendo defi-nitivamente Instituições Financeiras, atuemcomo tais, pratiquem atividade própria ouexclusiva de Instituições Financeiras.

Seria o mesmo, data venia, que, para con-seguir idêntico enquadramento na classedos bens móveis, equiparasse-se forçosa-mente o armário e a cadeira.

3.2.3. Instituição Financeira e o Banco Central

Por fim, consigne-se que o Banco Centraldo Brasil não pode ser considerado como Ins-tituição Financeira. A uma, porque não hádisposição legal nesse sentido; a duas, por-que, tecnicamente, o Banco Central não temcomo função exercer atividade financeira.

A função daquela Autarquia Federal é,nesse particular, zelar pela higidez e integri-dade do Sistema Financeiro Nacional e dasdemais entidades submetidas à Lei Ban-cária, sendo certo que, nos limites e sob

vinculação do exercício de sua indispensá-vel ação governamental, eventualmente fi-nancia uma instituição financeira bancária(Lei nº 4.595/64, art. 10, inc. IV). Vale dizer,a atividade de concessão de financiamentonão integra a destinação especial da Autar-quia, mas apenas um leque de inúmeros atosgovernamentais coordenados e destinadosao cumprimento do papel de fiscalização,supervisão e zelo.

4. Conclusões geraisPor todo o exposto, concluímos que:a) são integrantes do Sistema Financeiro

Nacional apenas o órgão e as pessoas jurí-dicas enumeradas taxativamente no art. 1ºda Lei nº 4.595/64;

b) não são integrantes do Sistema Finan-ceiro Nacional, mas encontram-se igual-mente submetidas aos atos e deliberaçõesdo Conselho Monetário Nacional e do Ban-co Central do Brasil, e também, no que cou-ber, às demais disposições da Lei nº 4.595/64, todas as pessoas físicas e jurídicas refe-ridas no parágrafo único do art. 17 e § 1º doart. 18 da Lei nº 4.595/64;

c) Instituição Financeira é uma organi-zação estruturada e coordenada, prevista emlei ou regulamento legalmente autorizado,com objetivo e finalidade de, medianteatividade peculiar de gerenciamento de re-cursos próprios e/ou de terceiros, provermeios pecuniários para financiar a aquisi-ção de bens e serviços, a realização de em-preendimentos, a cobertura de despesaspessoais ou gerais, a manutenção de capi-tal de giro, o abatimento de dívidas preexis-tentes e as demais atividades inerentes àvida econômica das pessoas físicas e jurídi-cas, de direito público e privado;

d) nos limites da definição acima, eobservados conjuntamente os arts. 17 e 18,caput e § 1º da Lei nº 4.595/64, art. 8º da Leinº 4.380/64, art. 1º da Lei nº 9.514/97 e arts.1º e 2º da Resolução nº 1980/93, do Conse-lho Monetário Nacional, no Brasil, as Insti-tuições Financeiras resumem-se às pessoas

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jurídicas enumeradas taxativamente no item3.2. deste trabalho;

e) o Banco Central do Brasil, tecnicamen-te, não é Instituição Financeira – apenas,eventualmente, atua como tal, por expressaautorização da lei (art. 10, inc. IV, da Leinº 4.595/64);

f) atividade própria ou exclusiva de Ins-tituição Financeira é a concessão de finan-ciamentos, mútuo ou empréstimos, direta ouindiretamente, na qual concorram, simulta-neamente, as peculiaridades da obtenção delucro strictu sensu frente ao financiado ou aterceiro e reinserção dos resultados no flu-xo comercial específico, de forma manifestaou presumida.

4.1. Do enquadramento de determinadassituações frente às definições ora propostas

Considerando-se os componentes dasdefinições de Instituição Financeira e de ati-vidade própria ou exclusiva de InstituiçãoFinanceira ora propostas, seguem especifi-cadas algumas situações jurídicas que po-dem passar a ter tratamento aclarado:

a) a concessão de empréstimos a jurosaté o dobro da taxa legal, mas sem reinser-ção dos resultados no fluxo comercial espe-cífico, é contrato lícito de mútuo (arts. 1.256a 1.264 do Código Civil);

b) a concessão de empréstimos a jurosaté o dobro da taxa legal, e com reinserçãodos resultados no fluxo comercial específico,

é contrato lícito de mútuo (arts. 1.256 a 1.264do Código Civil);

c) a concessão de empréstimos a jurosacima do dobro da taxa legal, mas sem rein-serção dos resultados no fluxo comercial es-pecífico, enseja a aplicação do art. 4º da Leinº 1.521/51 c/c art. 1º do Decreto nº 22.626/33 (crime de usura), apenas;

d) a concessão de empréstimos acima dodobro da taxa legal, e com reinserção dosresultados no fluxo comercial específico, éatividade própria ou exclusiva de Institui-ção Financeira, e a sua prática por quem nãoseja Instituição Financeira devidamenteautorizada pelo Banco Central do Brasilenseja a aplicação do art. 44 da Lei nº4.595/64 e do art. 16 da Lei nº 7.492/86(que absorve, por ser elemento-meio, o cri-me de usura). Nesse caso, a empresa quedesejar operar com concessão de financia-mentos (algo comum nos dias atuais) deve-rá organizar-se sob a forma de Sociedade deCrédito, Financiamento e Investimento (‘Fi-nanceira’), sob pena de sofrer, juntamentecom seus administradores, penalidadeadministrativa e, estes últimos, tambémpenalidade criminal.

São essas as considerações acerca de tãopeculiar questão jurídico-econômica, elabo-radas na expectativa de apenas contribuirpara o contínuo debate de idéias, semprepropiciador do aprimoramento do Direito.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

Os delitos de resistência (CP, art. 329),desobediência (CP, art. 330) e favorecimen-to pessoal (CP, art. 348) mostram-se, à pri-meira vista, simples, e os fatos que os confi-guram, de fácil percepção e enquadramentono tipo penal. Contudo, certas situações secolocam no dia-a-dia que fogem às triviali-dades da lei, colocando o jurista, e, princi-palmente, o juiz e o advogado em contatocom situações anômalas, ou controvertidas.

No presente artigo, ponderar-se-á exata-mente sobre essas situações que, a despeitode serem raras, não são de todo impossíveis.

Inicialmente se discutirá a respeito daconfiguração ou não dos delitos de resis-tência e desobediência nos casos de prisãoem flagrante quando esta é realizada porparticular. Em um segundo momento, tece-remos considerações sobre os direitos domorador que alberga indivíduo procuradopela polícia, analisando se o impedimentoà entrada da polícia em sua moradia confi-guraria o crime de favorecimento pessoal.

Antes de mais nada, porém, verifica-se anecessidade de se proceder a um estudo pré-vio de alguns aspectos dos delitos acimaelencados, seus elementos e requisitos deconfiguração, para somente então enfrentar

Questões controvertidas: da resistência e dadesobediência em face do flagrante delitofacultativo e do favorecimento pessoal naprisão em domicílio

Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas eCarlos Maria Gambaro

Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas éprofessora assistente da FHDSS – Unesp, dou-toranda em Direito pela FHDSS – Unesp.

Carlos Maria Gambaro é mestrando em Di-reito Internacional pela FHDSS – Unesp.

Sumário1. Introdução. 2. Da resistência. 3. Da deso-

bediência. 4. Do favorecimento pessoal. 5. Ques-tões controvertidas. 6. Considerações finais.

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as situações as quais nos propusemos a tra-tar, uma vez que a consumação, ou não, dosmesmos está diretamente ligada aos even-tos, ações, circunstâncias e fatos ideados.

Desde já, esclarece-se que não se desejaesgotar as questões tratadas, mas apenascontribuir para o enriquecimento jurídico doestudo penal.

2. Da resistênciaO art. 329 do Código Penal dispõe a res-

peito do delito:“Art. 329. Opor-se à execução de

ato legal, mediante violência ou amea-ça a funcionário competente para exe-cutá-lo ou a quem lhe esteja prestan-do auxílio:

Pena – detenção de 2 (dois) mesesa 2 (dois) anos.

…”Esse artigo protege diretamente a autori-

dade e o prestígio da função pública, indis-pensáveis à liberdade de ação do poder es-tatal e à execução da própria vontade, e se-cundariamente a própria AdministraçãoPública.

Sujeito ativo desse delito pode ser qual-quer pessoa que se oponha à execução doato legal, não importando seja exatamenteaquela contra a qual se dirige a atuação doagente público, podendo responder pelodelito um terceiro. É o que ocorre no caso emque os “amigos” do interpelado pelaautoridade pública procuram frustar suadiligência.

Sujeitos passivos serão o Estado e, ao seulado, o agente ou quem lhe presta auxíliopara a execução do ato legal.

A conduta típica consiste em opor-se osujeito à execução, por agente competente,de ato legal ou funcional.

Observa-se, portanto, que o delito somen-te se configura quando se dá a oposição aato legal, de forma que, se o ato praticadopelo agente público for ilegal, não se podefalar em delito de resistência, sendo atípicaa conduta. Essa legalidade deve ser tanto subs-

tancial, isto é, quanto à natureza do ato, nãopodendo contrariar as normas do Direito, nemviolar as garantias fundamentais do indiví-duo, como também formal, ou seja, deve seguirà risca todas as formalidades impostas pelalei para a execução válida do ato.

Outro requisito para a configuração dodelito em estudo é que o funcionário que rea-liza o ato deve ser competente para a práti-ca do mesmo, dando-se a atipicidade casoeste não tenha atribuição ou competênciapara sua execução 1.

A violência a que se refere o artigo é aque-la cometida contra a pessoa, não tipifican-do a conduta a violência voltada a coisa2.Inexiste esse delito, portanto, quando, p. ex.,alguém, notificado por oficial de justiça,amassa ou rasga a contrafé oferecida na fren-te deste3. Além disso, a resistência passivatampouco tipifica o ato4, pois a atitude dosujeito ativo do delito deve ser atuante e po-sitiva. Para que se configure crime, a resis-tência deve ser ativa, traduzindo-se na vio-lência física (vis corporalis) voltada ao agen-te público que pratica o ato ou ao seu auxi-liar. Por outro lado, a resistência passivapode caracterizar o delito de desobediência.

O caput do art. 329 fala também em amea-ça a funcionário, a qual, ao lado da violên-cia, constitui-se elemento que deverá ser ana-lisado objetivamente quando da verificaçãoda ocorrência do delito.

“Ao contrário de outros tipos pe-nais, aqui não se exige que a ameaça[vis compulsiva] seja grave, bastandoque se prenuncie à vítima a prática deum mal. Pode ela ser feita por escritoou verbalmente. Dessa forma, confor-me o meio executivo, não se exige apresença do funcionário (p. ex.: amea-ça por bilhete)”5.

A resistência deve ser contemporânea aoato do funcionário público, não se caracte-rizando o delito se esta for anterior ou pos-terior ao mesmo.

O uso de palavras ultrajantes, palavrasde baixo calão, a negativa em acompanharo policial, em abrir a porta para o ingresso

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de policiais, esperneio no momento da exe-cução do ato, fuga6 ou outros casos de in-disciplina não têm sido entendidos comoconfiguradores da resistência, uma vez que,nessas horas, o sentimento de liberdade écolocado em perigo, o que torna o indivíduomais irascível7. Contudo, pode caracterizaros delitos de desacato ou desobediência.

Além do agente, funcionário público,pode ser sujeito passivo do delito de resis-tência o terceiro particular que auxilia o pri-meiro na execução do ato.

O dolo constitui o elemento subjetivo dodelito. Este deve ser tanto o denominadodolo genérico, que é a vontade livre e cons-ciente de agir de forma contrária ao Orde-namento Jurídico como um todo, no caso emtela, vontade livre e consciente de empregarviolência contra funcionário público ou ter-ceiro, ou ameaçá-los, como o dolo específi-co, ou seja, impedir a realização do ato fun-cional. Sem a presença deste último, fica des-caracterizada a resistência.

A resistência é um crime formal, o queimplica a não-necessidade de que o agenteconsiga alcançar o resultado pretendido,qual seja, a não-realização (execução) do atolegal para sua configuração. Ela se caracte-riza com a simples prática da violência ouameaça, e, caso o agente público deixe deexecutar o ato legal, responderá o responsá-vel pelo delito em sua forma qualificada.

3. Da desobediênciaO art. 330 do Código Penal regula esse

delito nos seguintes termos:“Art. 330. Desobedecer a ordem

legal de funcionário público:Pena – detenção, de 15 (quinze)

dias a 6 (seis) meses, e multa”.Inserido no Título XI – Dos crimes con-

tra a Administração Pública, no “CapítuloII – Dos crimes praticados por particularcontra a administração em geral”, esse artigotem por objeto de tutela a Administração Pú-blica, assegurando “o prestígio e a dignida-de da máquina estatal administrativa, noque diz respeito ao cumprimento de deter-

minações legais expedidas por funcionáriopúblico”8.

Tratando-se de crime comum, qualquerdo povo poderá ser seu sujeito ativo. Sendofuncionário público 9, deve o objeto da or-dem desobedecida não estar ligado às suasatribuições como funcionário, pois, nessecaso, poderá haver a configuração do delitode prevaricação (Código Penal, art. 319).

Por sujeito passivo, deve-se entender,primeiramente, o Estado, titular da Admi-nistração Pública e, secundariamente, o fun-cionário do qual emanou a ordem.

O ofendido deve ser funcionário compe-tente para emitir ordem legal, ou seja, fun-cionário cujo conceito é dado pelo direitoadministrativo, não tendo agora aplicaçãoo art. 327 do Código Penal10, lembrando-seque, para o Estatuto dos Funcionários Pú-blicos Civis da União (Lei nº 8.112, de 11 dedezembro de 1990, atualizada pela Lei nº9.527, de 10 de dezembro de 1997, art. 2º),“servidor é pessoa legalmente investida emcargo público”, sendo este criado por lei, comdenominação própria, em número certo epago pelos cofres públicos. Ainda nesse sen-tido, Nélson Hungria11 afirma que o sujeitopassivo, isto é, o expedidor ou executor daordem, há de ser funcionário público, maseste, na espécie, entende-se aquele que o éno estrito sentido do Direito Administrati-vo, já que o critério amplitativo do art. 327do Código Penal somente diz respeito aofuncionário como sujeito ativo de delito in-tra officium, e não para os casos em que figu-ra no pólo passivo.

A doutrina, por outro lado, criou a figu-ra do agente público de fato12, o qual, em deter-minados casos extremos (incêndios, guer-ras, calamidades públicas, epidemias, en-chentes, prisão de criminoso etc.), investir-se-ia temporariamente dos poderes e prer-rogativas da Administração Pública pararealizar o ato que caberia ao funcionário pú-blico strictu sensu.

Como se observa, esse agente de fato nãoé investido de acordo com as formalidadesexigidas para o preenchimento do cargo pú-

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blico; ele não possui vínculo laboral com aAdministração Pública (ou qualquer outrainstituição concessionária de serviço públi-co) e tampouco recebe dos cofres públicos.Dessa forma, não se poderia considerá-loum servidor público na acepção formal dapalavra, tendo em vista que o formalismoadquire importância superlativa no campoadministrativo. Ao que parece, essa defini-ção foi criada pelos teóricos administrati-vistas como forma de enquadrar esse indi-víduo que age nos momentos de exaspera-ção em alguma categoria jurídica, determi-nando-lhe, por conseguinte, a natureza ju-rídica, tornando mais fácil a compreensãoacadêmica dessa figura.

Nada obstando contra a classificaçãoadotada pelo ramo administrativo, ela, con-tudo, não pode ser aplicada no âmbito pe-nal, cujos conceitos e definições são maisrestritos e precisos. Dessa maneira, não sepode utilizar essa classificação doutrináriade um dos ramos do Direito para conferirpoderes a alguém, capaz de interferir de for-ma negativa no âmbito jurídico de terceiros.Em outras palavras, o entendimento de fun-cionário público no ramo penal deve ser fei-to o mais restritivamente possível, toda vezque venha a causar, de qualquer modo, gra-vame à pessoa. Nesse sentido, a hermenêu-tica jurídica da norma será sempre restrita eexaustiva13.

Não basta, portanto, que a ordem sejalegal no sentido formal e material, ela deveser expedida por funcionário público, devi-damente investido na função, dentro de suasatribuições e com observância das determi-nações legais, sendo atípico, por exemplo,deixar de atender voz de prisão emitida porfuncionário de autarquia. Aqui a ordememana de funcionário público strictu sensu,mas este não tem, entre suas funções, a prer-rogativa de prender alguém.

O comportamento tipificado se verificano verbo núcleo do artigo desobedecer, istoé, desatender, não cumprir.

Além disso, essa desobediência deveestar ligada a uma ordem legal, não bastan-

do para caracterizar o crime a desatenção asimples pedido ou solicitação, ou, ainda, seilegal tal ordem. Essa ordem deve ser dire-ta14 e dirigida expressamente ao destinatá-rio, isto é, a quem tenha o dever jurídico deobedecê-la, sob forma verbal ou escrita15.

Ocorre, contudo, tratar-se o art. 330 deuma norma penal em branco, uma vez que opreceito foi somente emanado em parte, ne-cessitando de norma futura que o completee esclareça. O dispositivo diz, apenas, “de-sobedecer a ordem legal”, mas não determi-na qual seja essa ordem. É preceito que en-cerra disposição vaga que será completadapor disposição futura, constante de outranorma, regulamento ou ainda em face docaso concreto.

A desobediência, delito de mera condutaque é, pode dar-se de forma comissiva ouomissiva, dependendo do conteúdo daordem, se positiva ou negativa; isto é, se aordem exige que se faça algo, a desobediên-cia dar-se-á com o não-cumprimento desta;de outro lado, se a ordem proíbe algumaprática, o crime se caracteriza com a práticado ato.

O dolo, nesse caso, é o chamado genéri-co16. Assim, o agente deve ter a vontade livree consciente de desobedecer à ordem dofuncionário público 17, desde que saiba ereconheça a legalidade18 da mesma, além daobrigatoriedade de seu cumprimento19.

Importante nesse ponto é diferenciar odelito de resistência do de desobediência, umavez que ambos possuem características bempróximas. Na resistência, o crime é cometidopor meio de ato de violência e de ameaça,enquanto na desobediência ele se reveste deuma resistência passiva, apenas deixa-se defazer, sem qualquer violência ou ameaça20.

4. Do favorecimento pessoalO art. 348 do Código Penal dispõe:

“Art. 348. Auxiliar a subtrair-se àação de autoridade pública autor decrime a que é cominada pena dereclusão:

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§ 2º Se quem presta o auxílio é as-cendente, descendente, cônjuge ou ir-mão do criminoso, fica isento depena”.

O bem jurídico tutelado por esse dispo-sitivo é a administração da justiça, impon-do-se o dever de o sujeito não colocar obstá-culos à ação judiciária em sua cruzada con-tra a criminalidade.

O sujeito ativo desse delito pode ser qual-quer pessoa, exceto o co-autor ou o partíci-pe de crime anterior, desde que a este sejacominada pena de reclusão. Dessa forma,se o indivíduo prometeu auxílio ao crimi-noso, antes ou durante a prática do delitopunido com reclusão, ele não poderá serincurso no delito tipificado no art. 348, poisse tratará de partícipe daquele. Para que seconfigure o favorecimento pessoal, o auxí-lio deve ser prestado somente após a práti-ca delitiva.

Em lição de Damásio Evangelista deJesus,

“não há auto-favorecimento. No con-curso de agentes, se o partícipe pres-tar auxílio aos outros, beneficiando-se também, não responde por este de-lito. Somente há crime quando benefi-ciar apenas os comparsas”21.

Pune-se a conduta de quem auxilia, fa-vorece, autor de crime22 – doloso, culposoou preterdoloso; consumado ou tentado – asubtrair-se, isto é, escapar, esquivar-se àação da autoridade pública, por meio doemprego de meios para fuga, promovendo oengano da polícia, ocultando o autor dodelito, proporcionando asilo etc. Não existefavorecimento pessoal no auxílio ao autorde ilícito contravencional.

Não há que se falar em favorecimentopessoal se no delito principal houve

“extinção da punibilidade, exclusãoda ilicitude, irresponsabilidade ouinimputabilidade penal, imunidadepenal absoluta. Igualmente, se o cri-me precedente for de ação privada enão houver queixa, ou sendo a açãopública condicionada à representação

ou requisição ministerial, estas nãoforem oferecidas”23.

O dolo, nesse delito, é o genérico, auxi-liando criminoso, buscando livrá-lo da atu-ação da autoridade pública24. O indivíduoque auxilia deve ter conhecimento, mesmoque superficial, de que o auxiliado é autorde crime. Não havendo esse conhecimento,excluído estará o dolo, sendo que, de acor-do com a doutrina, a dúvida caracteriza doloeventual.

“O crime consuma-se no momento emque o beneficiado, em razão do auxílio dosujeito, consegue subtrair-se, ainda que porbreves instantes, da ação da autoridadepública”25. Não é necessário, portanto, queseja definitiva a subtração do favorecido àação de autoridade pública, basta o retar-damento, ainda que breve, da captura ouretenção. Trata-se de delito comissivo, sen-do impossível a prática por omissão.

Tendo em atenção os laços de especialafeto que ligam os membros de uma mesmafamília, o legislador viu por bem isentar depena o sujeito ativo que se enquadre em al-guma das situações previstas no § 2º do re-ferido artigo. Tal enumeração, contudo, étaxativa, não podendo ser ampliada aoparentesco afim.

Para que se configure o delito de favore-cimento pessoal, é irrelevante a existência,ou não, de prisão em flagrante, prisãopreventiva decretada, perseguição ouprocura ao criminoso, uma vez que aconduta descrita no delito do art. 348procura exatamente impedir a ocorrênciadessas conseqüências.

5. Questões controvertidasUma vez traçadas as considerações

gerais acerca desses delitos que, eventual-mente, podem ocorrer nas espécies desituações a que nos propusemos tratar eestudados os elementos que auxiliarão naresolução das questões apresentadas, pode-se, finalmente, enfrentar tais problemas deforma mais clara.

As situações a seguir apresentadas

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buscam esclarecer pontos controvertidos emrelação à configuração, ou não, dos delitosem estudo, por meio da aplicação da teoriaa supostos fatos reais, em que se confronta-rão os direitos assegurados e restriçõesimpostas pelo Direito, quando envolvemparticulares, utilizando-se, para tanto, ométodo analítico.

I – Negativa à ordem de prisão em flagrantepor particular

A primeira situação a ser analisada bus-ca verificar a ocorrência dos delitos de re-sistência ou desobediência, na hipótese de,sendo o agente delituoso surpreendido emflagrante por particular que lhe dá voz deprisão, negar-se a acompanhá-lo, de modoativo ou passivo.

A prisão em flagrante inclui-se entre asprisões cautelares de natureza processual.É uma espécie de autodefesa do próprio or-denamento jurídico.

Segundo Fernando da Costa TourinhoFilho26,

“A prisão em flagrante, a rigor, émero ato administrativo, levado acabo, grosso modo, pela Polícia Judi-ciária, incumbida que é de zelar pelaordem pública. Mesmo quando leva-da a cabo por particulares ou pelo pró-prio Juiz, não perde o caráter de atoadministrativo”.

Dispõe o art. 301 do Código de ProcessoPenal que “qualquer do povo poderá e asautoridades policiais e seus agentes deve-rão prender quem quer que seja encontradoem flagrante delito”.

Existe, portanto, a possibilidade, fran-queada pela lei, de que qualquer do povocapture alguém em flagrante delito.

“Trata-se de um caso especial deexercício de função pública transitóriaexercida por particular, em caráterfacultativo e, portanto, de exercícioregular de direito. Embora a lei nãoseja expressa, admite-se que o parti-cular, autor da prisão, que pode ser oofendido, possa apreender coisas em

poder do preso desde que relaciona-das com a prova do crime e da auto-ria”27 (grifo nosso).

Trata-se do flagrante facultativo, pois oparticular tem a faculdade de, em queren-do, proceder à prisão em flagrante; diferen-te dos agentes públicos, os quais têm o de-ver de prender, sob pena de responderemadministrativa e penalmente por sua omis-são. Por outro lado, o particular que se omi-te à prática do flagrante não estará submeti-do a nenhum tipo de sanção, uma vez quenão é função primordial deste zelar, de for-ma ostensiva e direta, pela obediência aospreceitos da Administração Pública.

O art. 329 do Código Penal tipifica a re-sistência procurando proteger o bem jurídi-co autoridade e prestígio da função pública , in-dispensáveis à liberdade de ação do poderestatal e à execução da própria vontade, e,secundariamente, a própria AdministraçãoPública. Assim sendo, observa-se que essaautoridade e prestígio da função pública di-zem respeito apenas aos atos de funcioná-rios públicos strictu sensu, pois, quando é oparticular que realiza a prisão, não está eleimpondo respeito àqueles, já que ele próprio,particular, não possui tais prerrogativas. Naverdade, o particular, ao dar a voz de pri-são, está agindo de acordo com os desíg-nios da Administração Pública, quais sejam,procurar fazer com que todo aquele que pra-tica crime responda por seus atos perante oPoder Judiciário. Mas, ao agir assim, nãoincorpora ele as prerrogativas próprias dofuncionário público devidamente investido,segundo a lei.

Ademais, o art. 329 é claro ao dispor quecometerá o delito de resistência aquele quese insurgir contra o funcionário público ouseu auxiliar, particular, mas que não age deforma autônoma, apenas ajuda o executorpúblico em sua tarefa. Quem dirige o ato aquié o agente público devidamente investidoem suas funções, exercendo o particularsimples papel de colaborador. Nesse senti-do, são esclarecedoras as palavras dos céle-bres Alberto Silva Franco, José Silva Júnior,

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Luiz Carlos Betanho, Rui Stoco, SebastiãoOscar Feltrin, Vicente Celso da Rocha Guas-tini e Wilson Ninno28, ao afirmarem que

“é também sujeito passivo, ainda ex-pressamente dito pela lei, o terceiroque auxilia o funcionário na execu-ção do ato legal. Pouco importa a ma-neira por que foi dada a ajuda (pedi-do do funcionário, requisição, ofereci-mento com aceitação dele etc.). É neces-sário, entretanto, que sua ação sejasupletiva, isto é, junte-se à do funcio-nário; ao contrário, se for única e exclu-siva (como a do particular que prendeem flagrante delito – Código de Pro-cesso Penal, art. 301), a oposição a elanão configurará o delito em questão,mas outro, pois não é feita contra atolegal de funcionário. Não há delito con-tra a Administração Pública (E. Ma-galhães Noronha, Direito Penal, 8ª ed.,vol 4º/318, Saraiva, 1976).

Sobre o assunto, esclarece NélsonHungria que outro dos pressupostosdo crime é que o sujeito passivo revis-ta a qualidade de funcionário públicoou de assistente deste. Pouco importaque o executor do ato seja titular pri-mário ou secundário da autoridadepública: o que é essencial é que tenhacompetência funcional in concreto. Aespecial proteção ampliada ao extra-neus que presta auxílio ao funcioná-rio vem de que tal assistente represen-ta um desdobramento, um delegadoou uma ‘longa manus’ do assistido.A assistência pode ser prestada me-diante requisição ou a rogo do funcio-nário, ou espontaneamente (com assen-timento do funcionário); e pressupõe apresença do assistido. Assim, não éadequado sujeito passivo de resistên-cia o ‘quidam de populo’ que, por suaconta exclusiva, prende alguém sur-preendido em flagrante delito. Semdúvida, estará ele exercendo uma fun-ção pública, mas a regra do art. 327,como já foi acentuado, somente se

aplica quando o exercente de funçãopública se faz, em tal qualidade (istoé, ‘intra officium’), sujeito ativo do cri-me. Em tal caso, a violência física oucoação moral empregada em resistên-cia terá enquadramento fora da órbitados crimes contra a AdministraçãoPública” (grifo nosso).

Observa-se, pois, que todo o ato de parti-cular deve estar jungido ao ato do funcioná-rio público, sendo até mesmo necessária aaceitação por parte deste no caso em que oprimeiro se oferece livremente para ajudá-lo, para que se tenha o indivíduo como auxi-liar e potencial sujeito passivo do crime deresistência.

Poder-se-ia, por outro lado, argumentarque o agente privado, ao proceder à prisãoem flagrante, estaria exercendo função pú-blica, mesmo que transitoriamente, prerro-gativa que lhe é dada pela própria lei, in-vestindo-se, portanto, de todas as faculda-des próprias do funcionário público com-petente para tal ato.

É bem verdade que o popular pode darvoz de prisão e até mesmo usar da força paraconduzir o flagrado à presença da autori-dade competente para conhecer do caso;contudo, essa maneira de agir não lhe é obri-gatória, podendo este furtar-se à ação semnenhuma conseqüência. O mesmo não sepode dizer do agente público, que está obri-gado a agir. Afigure-se a situação em queexistem vários agentes delituosos, cometen-do crime no exato instante em que são fla-grados por um particular; se este, vendo-seem menor número e situação desvantajosa,retirar-se sem nada fazer, não poderá serresponsabilizado. O mesmo não acontece-rá, v. g., com um policial, que, surpreenden-do os criminosos e estando em menor nú-mero, terá, obrigatoriamente, de agir, sejaprocedendo à prisão em flagrante, seja to-mando providências para que ela aconteça,sob pena de responder administrativa e pe-nalmente por sua eventual omissão. Sãoexatamente essas situações que o legisladorprocurou abranger, buscando desencorajar

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ainda mais o criminoso que, uma vez sur-preendido, mostra-se em situação de supe-rioridade em face do agente público, o qualterá o dever de interpelar aquele, não im-portando quais sejam as circunstâncias dasituação.

Além disso, como já frisado anteriormen-te, deve o intérprete da norma penal execu-tar suas elucubrações tendo por paradigmao princípio de hermenêutica que determinanão se poder interpretar, ou utilizar de ana-logias, extensivamente aquilo que for gra-vame em relação à pessoa. Assim sendo, nãoé correto estender-se restrições e prejuízos,como a configuração de delitos, isto é, resis-tência ou desobediência, àqueles que agemcontrariamente às ordens proferidas por par-ticulares, quando investidos, ou melhor,auto-investidos, transitoriamente, na funçãopública. Aqui não cabe a figura do agentepúblico de fato, pois esta, existente na doutri-na administrativa, é simples classificaçãodada ao particular que age em situaçõesextremas para evitar um mal maior em faceda impossibilidade de atuação da Adminis-tração Pública no momento. O particular fazas vezes da Administração, uma vez que,sendo cidadão, deve também zelar pelo bemestar público; porém, essa atuação supleti-va não lhe pode conferir direitos que se tra-duzam em prejuízos para terceiros, já queninguém lhe deu legitimidade de agir, pio-rando a situação de seu igual, mas tão-somente para melhorá-la.

Quanto à desobediência , dispõe expres-samente o art. 330 do Código Penal que seconfigura o delito quando o agente nãoacata, discorda por meio de gestos ou pa-lavras, menospreza, intencionalmente, or-dem legal provinda de funcionário públicocompetente.

O ofendido deve ser, portanto, funcionáriopúblico competente para emitir ordem legal,ou seja, funcionário cujo conceito é dado peloDireito Administrativo (Lei nº 8.112/90), nãotendo agora aplicação o art. 327 do CódigoPenal.

Não basta, portanto, que a ordem sejalegal no sentido formal e material, ela deveser expedida por funcionário público,devidamente investido na função, dentro desuas atribuições e com observância dasdeterminações legais.

Dessa forma, se o criminoso se recusa aacompanhar o particular que efetuou o fla-grante, ele não estará cometendo crime emquestão, já que a desobediência é a resistên-cia passiva, ou seja, a simples negativa emobedecer, sem a utilização de violência.

Do exposto, verifica-se, assim, a impos-sibilidade de configuração dos delitos de re-sistência ou desobediência caso o flagradose recuse a acompanhar o particular que efe-tuou o flagrante, mesmo que para tal utili-ze-se aquele de violência ou ameaças, noprimeiro caso, ou simplesmente não acate aordem proferida, no segundo.

É possível, contudo, a configuração deoutros delitos como, v. g., lesões corporaisou ameaça, tendo por sujeito passivo oparticular.

II – Negativa do morador ao cumprimento demandado judicial durante o dia

A segunda questão a ser abordada refere-se à configuração de delito quando o mora-dor nega permissão à entrada da autorida-de pública, na posse de mandado judicialordenando prisão de indivíduo, ou em casode perseguição, em virtude de flagrante,quando este vai abrigar-se durante o dia nodomicílio daquele.

Antes de mais nada, vale lembrar que oconceito de domicílio no Direito Penal édiferente do conceito presente no Direito Civil.Neste, significa residência com ânimo de de-finitividade, local de irradiação de relaçõesjurídicas. No Penal, por sua vez, em virtudedo que estabelece o art. 150, § 4º, do CódigoPenal, a expressão casa, entendida como si-nônimo de domicílio, compreende: qualquercompartimento habitado (inc. I); aposentoocupado de habitação coletiva (inc. II); com-partimento não aberto ao público, onde al-guém exerce profissão ou atividade (inc. III).

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Dispõe a respeito o art. 293 do Código deProcesso Penal:

“Art. 293. Se o executor do manda-do verificar, com segurança, que o réuentrou ou se encontra em alguma casa,o morador será intimado a entregá-lo,à vista da ordem de prisão. Se não forobedecido imediatamente, o executorconvocará duas testemunhas e, sen-do dia, entrará à força na casa, arrom-bando as portas, se preciso; sendonoite, o executor, depois da intimaçãoao morador, se não for atendido, faráguardar todas as saídas, tornando acasa incomunicável, e, logo que ama-nheça, arrombará as portas e efetuaráa prisão.

Parágrafo único. O morador que serecusar a entregar o réu oculto em suacasa será levado à presença da auto-ridade, para que se proceda contra elecomo for de direito”.

Encontrando-se o perseguido já alojadodentro da residência, com o consentimentodo morador29, durante o dia, que a jurispru-dência considera o período contido entre6:00 e 18:00h, e este se recusando a permitira entrada da autoridade pública, poder-se-á ter várias possibilidades:

a) caso o morador apenas negue permis-são à entrada da autoridade competente,não lhe abrindo a porta, ou não oferecendoresistência quando esta a arromba e entra,atendidos os requisitos do art. 293 doCódigo de Processo Penal, não estará come-tendo o delito de resistência, uma vez que estese traduz no emprego de força física ouameaça, não sendo suficiente para caracte-rizá-lo a resistência passiva.

Quanto à desobediência, o delito já estaráconsumado antes mesmo do momento daentrada forçada da autoridade, pois esta, emsendo competente, já terá emanado a ordemdiretamente àquele que está obrigado a obe-decê-la, respondendo, então, o morador pelodelito.

Em relação ao favorecimento pessoal, háque se verificar se presentes os requisitos

exigidos para a consumação do crime. Ini-cialmente deve o asilado ter cometido delitoanterior apenado com reclusão, do qual omorador não teve participação alguma; háque se verificar se não se operou extinção depunibilidade ou outras causas que venhama desnaturar a punibilidade do delito; final-mente, o morador deve ter conhecimento,mesmo que superficial, de que o auxiliado éautor de crime e o auxílio visar a subtraçãoà ação da autoridade. Verifica-se, ainda, que,mesmo que caracterizado o delito, não so-frerá imposição alguma de pena o moradorse auxiliar qualquer das pessoas descritasno § 2º do art. 348 do Código Penal.

b) se o morador, além de negar a permis-são de entrada à autoridade policial, vier aagredi-la, física ou moralmente, ou a quema estiver auxiliando quando esta adentrar aresidência, desde que observados os requi-sitos do caput do art. 293, isto é, mandadojudicial válido e presença de duas testemu-nhas, praticará o delito de resistência.

O crime de desobediência, nesse caso, fi-cará absorvido pela consumação do delitoanterior – de resistência.

Quanto ao favorecimento pessoal, estarácaracterizado o delito desde que presentestodos os pressupostos: anterioridade do cri-me principal sem a participação do mora-dor, punibilidade do crime principal, conhe-cimento, por parte do morador, de que o au-xiliado é criminoso e vontade de o auxiliara subtrair-se à atuação pública.

Em qualquer dos casos acima, se a auto-ridade adentrar forçosamente a casa, semhaver preenchido previamente todos os re-quisitos exigidos pelo art. 293 do Código deProcesso Penal, estará violando o domicí-lio, cometendo o crime de abuso de autori-dade consistente em “executar medida pri-vativa de liberdade individual sem as for-malidades legais ou com abuso de poder”(art. 4º, a, da Lei nº 4.898, de 9-12-65). Omorador que se opuser à presença deladentro da residência, mesmo mediante o usode força física ou fazendo ameaças, nãoresponderá por crime algum, pois estará

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agindo no exercício regular do direito (CódigoPenal, art. 23, inc. III, 2ª parte), ao preservar ainviolabilidade de seu domicílio, previsto naConstituição Federal, art. 5º, inc. XI.

III – Negativa do morador ao cumprimento demandado judicial, durante a noite

A última situação a ser analisada diz res-peito ao cometimento de crime pelo moradorque se nega a permitir a entrada da autori-dade pública, em posse de mandado judicialordenando prisão de indivíduo, ou em casode perseguição, em virtude de flagrante,quando este vai se abrigar, durante a noite,dentro do domicílio daquele.

A Constituição Federal de 1988 determi-na, em seu art. 5º, inc. XI, que

“a casa é asilo inviolável do indiví-duo, ninguém nela podendo penetrarsem consentimento do morador, sal-vo em caso de flagrante delito ou de-sastre, ou para prestar socorro, oudurante o dia, por determinaçãojudicial” (grifo nosso).

Observa-se que o legislador Constitu-cional determinou taxativamente os eventosque permitem à autoridade pública adentraruma casa sem consentimento de seu mora-dor, restringindo ainda mais essa entrada noperíodo noturno, que vai das 18:00h às 6:00h.

No mesmo sentido, o Código de Proces-so Penal, em seu art. 293, caput, 2ª parte, afir-ma:

“… sendo noite, o executor, depois daintimação ao morador, se não foratendido, fará guardar todas assaídas, tornando a casa incomunicá-vel, e, logo que amanheça, arrombaráas portas e efetuará a prisão”.

Verifica-se, pois, que é totalmente vedadaa entrada da autoridade pública em qualquercasa, durante a noite, sem o consentimentodo seu morador, ressalvadas as permissivasconstitucionais (art. 5º, inc. XI), devendo esteaguardar pelo dia seguinte, tomando todasas providências de modo a impedir a evasãodo capturando durante a noite.

Em se opondo, portanto, o morador à

entrada do executor ou executores da ordemjudicial, ou perseguidores do fugitivo sur-preendido em flagrante, não poderão estesadentrar a residência e, se acaso o fizerem,estarão violando o domicílio, cometendo ocrime de abuso de autoridade consistenteem “executar medida privativa de liberda-de individual sem as formalidades legaisou com abuso de poder” (art. 4º, a, da Leinº 4.898, de 9-12-65). Nesses casos, toda equalquer oposição do morador, mesmo queviolenta, não configurará delito algum, poisestará agindo ele no exercício regular dodireito (Código Penal, art. 23, inc. III, 2ªparte), protegido pela Constituição Federal.

Contudo, não é facultado ao moradorusar de violência excessiva. Sua ação deve-se restringir ao necessário para retirar desua moradia o funcionário que age com abu-so de poder. O próprio Código Penal refere-se ao exercício regular do direito. Não pode,a pretexto de exercer o direito de inviolabili-dade de domicílio, causar lesões corporaisgraves ou gravíssimas, ou mesmo matar oexecutor da ordem judicial. Nesses casos, omorador deixaria de agir acobertado pelacausa de exclusão da ilicitude, configuran-do-se o excesso púnivel30, tipificado no pa-rágrafo único do art. 23. Há uma flagrantedesproporção entre os bens jurídicos tutela-dos, a inviolabilidade da casa, por um lado,e a integridade física ou a vida, de outro.Dessa forma, ao extrapolar os limites legaisda excludente, o morador cria uma situaçãoem que o funcionário poderá agir em situa-ção de legítima defesa, afastando agressãoque, a despeito de ser válida no início,acabou por se tornar injusta.

Levantou-se a possibilidade de que, pelofato de a Constituição Federal e o Código deProcesso Penal permitirem a entrada notur-na em residência em caso de flagrante deli-to ou crime, estaria possibilitada “a entradacontra o consentimento do morador que es-tivesse auxiliando o capturando a subtrair-se à ação da autoridade, pela prática do ilí-cito penal previsto no artigo 348 (favoreci-mento pessoal). Entretanto, tal auxílio não é

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ilícito, pois, nos termos do artigo 293 doCódigo de Processo Penal, não se permite aentrada à noite sem o consentimento domorador. A lei processual dilatou a garantiaconstitucional da inviolabilidade de domi-cílio mesmo que seja o caso de executar-semandado de prisão. O morador, portanto,encontra-se no exercício regular de direito,que exclui a ilicitude do fato (art. 23, III, 2ªparte do Código Penal)”31 (grifo nosso).

A nosso ver, houve uma imprecisãoanalítica por parte do ilustre professor Mi-rabete, pois o auxílio que configura o fa-vorecimento pessoal é coisa distinta dafaculdade de impedir o acesso noturno daautoridade ao interior da casa. O que olegislador constituinte procurou evitar foia possibilidade de o capturando se man-ter, de forma forçada, no interior da resi-dência ameaçando e pressionando o mo-rador a não consentir com a entrada dosfuncionários públicos, e não a negativade permissão por sua livre vontade, mes-mo que, a priori, esteja cometendo delitonaquele exato instante. Mas o moradorpode não querer, em momento algum, au-xiliar o fugitivo a subtrair-se à ação daautoridade pública, podendo até mesmoquerer que o autor do crime seja levado àjustiça. Contudo, ele – morador – não ad-mite a entrada do funcionário público emsua residência durante a noite, por quais-quer motivos que sejam. Nesses casos, omorador não está cometendo crime de fa-vorecimento, pois não age dolosamente emfavor do criminoso, apenas está exercen-do direito constitucional de ter respeita-da a inviolabilidade de sua casa. Por ou-tro lado, se o morador tiver o animus deauxiliar o delinqüente a subtrair-se à açãopolicial, sua conduta será típica. O pro-blema que aqui se apresenta está ligado àprova das intenções do morador, por-quanto, desde já, observa-se ser nitida-mente de foro íntimo o diferencial que ti-pifica a conduta ou não, e sabe-se que aprova, nesses casos, é de dificultosa eduvidosa verificação.

6. Considerações finais

O flagrante facultativo tem-se tornadocada vez mais raro em nossa sociedade,devido, principalmente, ao armamento deque atualmente dispõem os criminosos.Restou esse poder de prisão relegado a ape-nas ser utilizado contra “trombadinhas” oupungistas e, mesmo aqui, em número cadavez menor.

A questão é que, como o indivíduo nãopossui aparelhamento para lutar contra opoder de fogo dos delinqüentes, esse tipo deflagrante, ainda que, na maioria das vezes,efetivo, somente é utilizado para a repreen-são de delitos de menor ou ínfima monta,não contribuindo globalmente para aerradicação da violência. Um assaltante debancos ou seqüestrador dificilmente serápreso por um particular.

Mesmo assim, esse direito do particularé essencial para uma melhor administraçãoda justiça e no auxílio ao já bastantedesgastado setor de repressão da criminali-dade e violência da Administração Pública.

Quanto à inviolabilidade do domicílio,ele é pilar fundamental para a construçãode uma sociedade pacífica e segura. Aproteção dada pela Carta Magna é de indu-bitável importância, pois coloca uma bar-reira de cunho social e íntimo à sede, muitasvezes válida, de cumprimento do dever porparte da força pública.

Um particular pode consentir que umcriminoso permaneça em sua casa, proibin-do a entrada da polícia, pelo menos durantea noite, e não cometer qualquer tipo de delito!

Esse poder de freiar a ação persecutóriado Estado traz segurança aos lares de queestes não serão adentrados sem que existauma permissão expressa, seja legal ou porparte de seu ocupante, e que, afora isso, todae qualquer entrada forçada é invasão e vio-lação, o que remonta às barbáries cometi-das pelos regimes nazista, facista e militar.

O combate à violência e ao crime é umdos escopos do Estado Moderno; ele possuilegitimidade para tal. Contudo, em uma pers-

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pectiva social, tal poder-dever do Estado estávoltado somente para atender os anseios dopovo e seu bem-estar e, sob essa óptica, nãopode vir a prejudicá-lo, ou causar-lhe temore inquietação, na busca dessa finalidade. Acasa é asilo inviolável para todos, um portalque somente se abre com autorização clarae expressa de seu ocupante ou da lei, e queassim continue.

Notas1 RF. 296/368 e RT 518/350.2 Em sentido contrário, entendendo que é típica

a violência contra coisa: Nélson Hungria, inComentários ao Código Penal, 1959, IX/412.

3 JTACrSP 20/59.4 “Delito não caracterizado – Ausência de

violência física ou moral – Réu que se limita a seopor à prisão agarrando-se ao volante de seu veículo– “Oposição branca” – Decisão absolutóriamantida – Inteligência do art. 329 do Cód. Penal”(Ac. 1ª Câm. Crim. Trib. Alçada de São Paulo,in RT. 324/318).

5 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 182.

6 “A simples fuga do infrator, ao ser preso, nãoconfigura o delito de resistência, que exige, parasua caraterização, a presença dos requisitos daviolência ou ameaça contra o funcionário” (TA-CRIM-SP – AC – Rel. Mattos Faria – JUTACRIM10/249). No mesmo sentido: JUTACRIM 61/326.

7 “Não configura o delito de resistência oobstáculo oposto pelo réu, com um movimentoinstintivo de fuga ao flagrante, reflexo de seu desejode preservar ou garantir sua liberdade” (TARJ –AC – Rel. Erasmo do Couto – RT 523/461).

8 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 185.

9 “O delito de desobediência não é suscetível decometimento apenas por particulares. Também ofuncionário público pode ser sujeito ativo dainfração” (TACRIM-SP – RHC – Rel. Ricardo Couto– RT 418/249).

10 Contra, entendendo que também nesse casodeve-se considerar a ampliação do art. 327: JulioFabrini Mirabete, Manual de Direito Penal, vol. III,Editora Atlas, São Paulo, 1987, pg. 275 – 9.

11 Op. cit., pg. 417.12 Denominação adotada por Diogo de Figueireo

Moreira Neto (Curso de Direito Administrativo, pg.202); “funcionário de fato” – denominação utilizadapor Diógenes Gasparini (Direito Administrativo,pg. 47); “gestor de negócios” – denominação dada

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por Maria Sylvia Zanella Di Pietro (DireitoAdministrativo, pg. 309).

13 Esse entendimento conta com o aval de CarlosMaximiliano (in Hermenêutica e Aplicação do Direito,1964, pg. 256), que afirma dever ser “estrita a inter-pretação das leis excepcionais, das fiscais e das PU-NITIVAS” (grifo nosso).

14 “Desrespeito a instruções ou a proibições decaráter geral não constitui crime de desobediência”(Rec. Crim. 3.485, ac. 24.06.52, p. 2.992).

15 “Para os efeitos de interpretação do art. 330do Código Penal, a ordem legal deve ser expressa,real e atual, não podendo ser presumida em nenhumcaso” (TACRIM – SP – AC – Relator Manoel Pedro– RT 370/269).

16 “O dolo específico não é exigível para a confi-guração da desobediência, delito que se completacom o mero dolo genérico, consistente na vontadeconsciente e livre de desobedecer” (TJSP – AC – Rel.Prestes Barra – in RT. 518/347.

17 “Desobedecendo à ordem legal da autoridadee pondo-se em fuga para evitar ser surpreendidona prática de infração penal, não comete o acusadoo delito do art. 330 do Código Penal, por estaragindo num impulso instintivo de conservar aliberdade” (TJSP – AC – Rel. Cunha Camargo – RT551/311 e RJTJSP. 71/316). No mesmo sentido: RT.378/235, 383/216, 396/303, 398/292, 462/376,555/374; e JUTACRIM 1-2/75, 8/182, 12/240-1.

18 “Indispensável à caracterização de deso-bediência opor-se o agente à ordem legal, conscienteda antijuricidade do fato” (TACRIM-SP – AC –Rel. Geraldo Ferrari – JUTACRIM 26/158).

19 Ignorando o agente a qualidade de funcionário,que não se identifica, não se configura o ilícito. RT.449/431.

20 “Não há confundir os delitos dos arts. 329 e330 do Código Penal. A resistência encerra adesobediência, enquanto esta representa resistênciapassiva, ou, quando comissiva, desacompanhadade força física ou coação moral” (TACRIM-SP – AC– Rel. Edmond Acar – Juricrim-Franceschini 1/624).

“Sem que haja violência ou grave ameaça àpessoa incumbida do cumprimento da ordem legal,não há falar em resistência, mas em mera deso-bediência” (TACRIM-SP – AC – Rel. GonçalvesSantana – RT. 382/87).

21 Direito Penal, vol. IV, Editora Saraiva, SãoPaulo, 1988, pg. 271.

22 A doutrina tem entendido que a expressão“autor de crime” é empregada no sentido amplo,compreendendo também os co-autores e partícipes.

23 DELMANTO, Celso. Código Penal Comenta-do , 3ª ed., Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1991,pg. 537.

24 “Não caracteriza o delito de favorecimentopessoal previsto no art. 348 do Código Penal oauxílio para iludir as investigações do delito, masapenas e tão-somente o prestado ao agente parasubtrair-se à ação da autoridade pública” (TJSP –HC – Rel. Dante Busana – RT. 671/321).

“Favorecimento Pessoal – Delito não caracteri-zado – Acusado que não ocultou homicida em suaresidência, mas apenas permitiu que ali se lavasse,retirando-se em seguida – Impronúncia decretada– Recurso provido – Inteligência do art. 348 do CP– Imprescindível à configuração do delito do art.348 do CP que se demonstre tenha o acusado pres-tado auxílio a criminoso, homiziando-o para quenão fosse alcançado pela ação da autoridade” (TJSP– AC – Rel. Nigro Conceição – RT. 500/319).

25 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal,vol. IV, Editora Saraiva, São Paulo, 1988, pg. 272.

26 Prática do Processo Penal, pg. 34.27 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito

Penal , vol. III, Editora Atlas, São Paulo, 1987,pg. 373.

28 Código Penal e sua Interpretação Jurispruden-cial, 5ª ed., Editora Revista dos Tribunais, São Pau-lo, 1995, pg. 3.104 – 5.

29 Caso contrário, estaria configurado o delitode violação de domicílio, previsto no art. 150 doCódigo Penal, permitindo-se a invasão semconsentimento, em virtude da ocorrência deflagrante delito (CF, art. 5º, inc. XI).

30 Vários estudiosos e doutrinadores jádiscorreram a respeito do tema, sendo aqui suficienteesclarecer que uma ação legítima tornar-se-á ilegítimaou irregular, configurando o abuso de direito,sempre que o exercício deste tenha por finalidadeúnica causar dano a uma pessoa ou coisa. No casoem tela, o morador, uma vez subjugado o policialque adentrou a sua casa sem permissão durante anoite (ação legítima), em vez de expulsá-lo dointerior da residência, passa a ofendê-lo com socose pontapés (ação ilegítima – abuso).

31 MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal, 5ªed., Editora Atlas, São Paulo, 1996, pg. 359.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Considerações preliminares

Já tivemos a oportunidade de enfrentaro tema da aparente antinomia existente en-tre as normas dispostas no parágrafo únicodo art. 7º da Lei nº 9.099/95 (Juizados Es-peciais Cíveis e Criminais) e no inciso IV doart. 28 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advo-cacia e da Ordem dos Advogados do Brasil),que, à primeira vista, poderia inviabilizar oexercício da advocacia por aqueles advoga-dos que atuassem como juízes leigos dos Jui-zados Especiais, por incompatibilidade total1.

Conforme verificamos, malgrado oConselho Pleno do Conselho Federal daOrdem dos Advogados do Brasil tenhaconsiderado “[...] que os juízes leigos es-tão incompatibilizados para o exercícioda advocacia”2, temos ser jurídico e legi-timamente admissível o exercício da ati-vidade advocatícia por aqueles advoga-dos que estejam no mister da função dejuiz leigo dos Juizados Especiais, desdeque não a exerçam, “enquanto no desem-penho de suas funções”, perante os mes-mos Juizados Especiais3.

Limites ao exercício da advocacia por juízesleigos dos Juizados EspeciaisEnsaio de uma interpretação do art. 7º , parágrafo único,da Lei nº 9.099/95

Yuri Grossi Magadan eDanilo Alejandro Mognoni Costalunga

Yuri Grossi Magadan é Advogado, Profes-sor de Direito Processual Civil da UniversidadeLuterana do Brasil – ULBRA, Mestrando emDireito na UFRGS, Membro Efetivo do Institu-to Brasileiro de Direito Processual.

Danilo Alejandro Mognoni Costalunga éBacharel em Direito, Especialista em Direito Pro-cessual Civil, Mestrando em Direito ProcessualCivil na PUCRS, Membro Efetivo do InstitutoBrasileiro de Direito Processual.

Sumário1. Considerações preliminares. 2. Natureza

jurídica da função de juiz leigo. 3. Fundamentose limitações à atividade advocatícia por juízesleigos. 4. Da eventual regulamentação da for-ma de investidura do advogado na função dejuiz leigo. 5. Conclusão.

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Do mesmo modo, tratamos de afirmar4

como viável e legítimo o exercício daadvocacia por juízes leigos nos JuizadosEspeciais quando essa atividade for exercidaem comarca diversa da que desenvolvam afunção de juiz leigo. E, até mesmo, a atua-ção perante os Juizados Especiais Crimi-nais, ainda que na própria comarca, quan-do estiverem no desempenho de suas fun-ções nos Juizados Especiais Cíveis, e vice-versa, desde que as estruturas dos JuizadosEspeciais Cíveis e dos Juizados EspeciaisCriminais sejam autônomas e independen-tes entre si, o que por certo é óbvio, e a for-mação de seus quadros seja mantida porjuízes leigos diversos, que, em hipótese algu-ma, poderão cumular ambas as atividades5.

A questão que ora é proposta para análi-se diz respeito aos limites para o exercícioda advocacia por juízes leigos dos JuizadosEspeciais, sempre partindo da premissa deque a atividade da advocacia é perfeitamentepossível por aqueles advogados que este-jam no exercício da função de juiz leigo dosJuizados Especiais, em virtude da supera-ção da aparente antinomia. Assim, cabe en-tão indagar em quais circunstâncias pode-rão os advogados exercer a sua atividade6,enquanto no desempenho da função de juizleigo dos Juizados Especiais.

Para tanto, inicialmente entendemos im-portante a análise da natureza jurídica dafunção de juiz leigo dos Juizados Especiais,para deste estudo, e, enfrentando-se o seuconteúdo e pressupostos inerentes à respec-tiva definição, extrairmos algumas conse-qüências. Em seguida, trataremos de exami-nar quais os fundamentos e as limitações (ju-rídicos e éticos) para o exercício da advocaciapor juízes leigos, para, ao final, verificarmosquais as repercussões que poderiam ocorrerse eventualmente fosse regulamentada a for-ma de investidura de advogados na funçãode juiz leigo dos Juizados Especiais. Tudo demolde a não tornar vão o intento de encontraro mais adequado caminho para o cumprimen-to da tarefa que assumimos.

2. Natureza jurídica da função de juizleigo

Questão da mais alta importância parabem classificarmos a natureza jurídica dafunção que exercem os juízes leigos peranteos Juizados Especiais diz respeito à nature-za heterogênea dos atos judiciais, que, con-forme clássica lição, podemos considerarcomo jurisdicionais e administrativos.

Não resta dúvida de que a atividade queexercem os juízes leigos, quando no desem-penho de suas funções perante os JuizadosEspeciais, possa ser de natureza jurisdicio-nal, malgrado a decisão que venham a pro-ferir ao cabo de toda a instrução processualfique condicionada à homologação porparte do juiz togado7.

Essa afirmação exsurge como coroláriológico da simples e fundamental distinçãoentre eficácia e conteúdo dos atos judiciais.Para tanto, mister que antes analisemos anatureza dos provimentos praticados pelosjuízes leigos, quando no exercício de suasatividades perante os Juizados Especiais.

Assim como o Juiz de Direito, o juiz leigopratica atos tanto de natureza jurisdicionalcomo administrativa. O que caracteriza aatividade jurisdicional é a solução da lideou de questões emergentes do processo,ambas fundamentadas no conflito de inte-resses. Esse posicionamento Carneluttianoé defendido em nossa literatura pátria peloeminente processualista Galeno Lacerda,que não apenas adotou a tese peninsularcomo ampliou o conceito de lide, solucio-nando e superando as críticas opostas porCalamandrei à Carnelutti na famosa polê-mica sobre o conceito de lide8.

Carnelutti pontuou a nota essencial doconceito de atividade jurisdicional comosendo aquela que soluciona a lide. Já seuopositor contemporâneo rebateu a teoria,afirmando que a definição seria insuficien-te para determinar a atividade jurisdicionalem processos inquisitórios, como a anula-ção do casamento, na qual ambas as partesestivessem de comum acordo acerca de even-

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tual nulidade do vínculo matrimonial. Apa-rentemente, nesse caso não existiria confli-to de interesses, e nem por isso poderiamdispor as partes da tutela jurisdicional, obri-gatória e indisponível. Igualmente a teseCarneluttiana não explicaria a jurisdiçãopenal em casos em que o Ministério Públicosolicitasse a absolvição do réu. Tais críticasnão foram rebatidas por Carnelutti, que,após o célebre debate, infelizmente, voltouatrás em sua posição9.

Entre nós, Galeno Lacerda10 manteve alide como a “pedra de toque” da atividadejurisdicional, mas não dentro dos limitesrestritos concebidos por Carnelutti, quesomente a compreendia nos conflitos priva-dos de interesse. Nosso conterrâneo é injus-tamente considerado, por alguns, retrógradopor defender um posicionamento doutriná-rio do qual o próprio Carnelutti se retratara.

Ocorre que seus críticos não compreen-deram a amplitude do conceito de lide con-cebido por Galeno Lacerda, que extrapolaos limites privados para alcançar a tutelade interesses públicos ou de ordem pública,inclusos aí os conflitos de valores sociais,de forma a tornar compreensível o fenôme-no jurisdicional em processos inquisitórios,nos quais aparentemente não existiria oconflito privado entre as partes, mas é níti-do o conflito dos valores sociais postos emcausa, cuja importância clamam pela ade-quada tutela jurisdicional.

Assim, a nós parece que a manutençãoda lide como a nota essencial da atividadejurisdicional, longe de constituir posicio-namento ultrapassado, é, ao contrário,atual e inovador dentro da nova propostaempreendida.

Podemos afirmar, portanto, que o juizleigo, ao decidir a lide ou as questões ma-teriais e processuais que derivam da rela-ção processual posta em causa, exercefunção eminentemente jurisdicional.Exemplo é o indeferimento de produçãode prova pericial.

Por outro lado, seguindo igualmente adistinção entre as atividades jurisdicio-

nais e administrativas preconizadas porGaleno Lacerda, os atos judiciais deordenação ou direção do processo, emque não há qualquer conflito, possuemnatureza administrativa.

Assim, resta claro que o juiz leigo praticaatos cujo conteúdo pode ter natureza tantoadministrativa como jurisdicional, conformeresolva lide ou questões emergentes do pro-cesso, ou ordene e dirija o procedimento11.

A situação que se mostra peculiar no exer-cício das atividades jurisdicionais do juizleigo diz respeito, portanto, não ao seu con-teúdo, mas a sua eficácia. Todos os atos quepratica durante o procedimento validamenteinstaurado de eficácia são destituídos. As-sim, por exemplo, quando determina quaisas provas que devam ser produzidas, ouquando decide de plano incidente que pos-sa interferir no regular prosseguimento daaudiência12, ambas decisões de naturezajurisdicional, evidentemente que esses pro-vimentos não estão revestidos de eficácia eefeito13, uma vez que sempre da homologa-ção do juiz togado dependerão. Note-se quemesmo as decisões acerca da produção deprovas, proferidas durante a audiência, nãoobstante produzirem o efeito em concreto(fático ou social, e não jurídico), consistentena produção ou não de determinada provanaquele momento, somente produzirão efi-cácia com a homologação da decisão finalpelo juiz togado. Tanto é verdade que, se esteconsiderar o processo insuficientemente ins-truído, poderá, ao invés de homologar a deci-são do juiz leigo, proferir outra decisão, ourequisitar a produção e realização de atosprobatórios que entenda indispensáveis14.

Com efeito, embora nosso sistema confiraà figura do juiz leigo poderes decisórios acer-ca de questões incidentes no procedimento,que possam interferir no feito, bem como so-bre a produção de provas, determina a Leique a instrução será supervisionada pelo juiztogado15. Essa premissa autoriza concluirmosque a atividade judicial praticada pelo juizleigo possui caráter tão-somente auxiliar dojuiz titular do Juizado Especial.

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Note-se que a necessidade de homolo-gação, sob pena de ineficácia do ato, ou asimples substituição do ato por outro reali-zado pelo juiz togado, como se o praticadopelo juiz leigo não existisse, é sui generis noâmbito da administração pública, quer sejano Poder Judiciário, quer seja no Executivo.Não estamos tratando da revisão do ato ad-ministrativo pelo ocupante de cargo hierar-quicamente superior, ou mesmo da reformade decisão pelo órgão jurisdicional de grausuperior, como se poderia inicialmente pen-sar. Isso pressupõe o poder inerente ao car-go ou órgão inferior de praticar atos válidose eficazes. O fato é que estes até podem pra-ticar atos nulos, inválidos e ineficazes, queserão assim declarados pela decisão substi-tuta. Mas a diferença é que eles possuem opoder-dever de praticar atos válidos eeficazes dentro de suas respectivas compe-tências, diferentemente do juiz leigo.

A função pública, conforme definição deCRETELA JÚNIOR16, “é toda a atividadeexercida por um órgão para a realização dedeterminado fim”. Mesmo a atividade dojuiz leigo, por si só, não atinge as finalida-des dos Juizados Especiais, que são conci-liar, processar, julgar e executar as causasde sua competência17. Quem efetivamentepratica atos destinados a realizar tais fina-lidades é o juiz togado, mesmo quando so-mente homologa a decisão do juiz leigo, poisé a homologação o ato judicial que revesteas decisões do juiz de fato de eficácia jurídi-ca. Antes da homologação, todas as ativi-dades do juiz leigo permanecem no mundodos fatos, incapazes de atingir quaisquerdas finalidades dos Juizados Especiais.Como o plano dos fatos, físicos, próprios domundo natural, não lida com valores, con-soante advertência de Carlos Alberto Álva-ro de Oliveira18, único a interessar no con-texto do mundo jurídico, e o efeito jurídicoda norma não é nem o simples valor, nem osimples fato, mas o valor atribuído ao fato, aimportância da eficácia dos atos praticadospelos juízes leigos, quando no exercício desuas atividades nos Juizados Especiais,

mostra-se possuidora da mais alta impor-tância para o presente estudo.

Devemos, ainda, analisar a presentequestão com a combinação dos seguintesartigos da Lei nº 9.099/95:

“Art. 5º O Juiz dirigirá o processocom liberdade para determinar asprovas a serem produzidas, paraapreciá-las e para dar especial valoràs regras de experiência comum outécnica.”(grifo nosso)

“Art. 6º O Juiz adotará em cadacaso a decisão que reputar mais justae equânime, atendendo aos fins sociaisda lei e às exigências do bem comum.”(grifo nosso)

“Art. 7º Os conciliadores e juí-zes leigos são auxiliares da justiça, re-crutados, os primeiros, preferente-mente, entre os bacharéis em direi-to, e os segundos, entre advogadoscom mais de cinco anos de expe-riência.” (grifo nosso)

Claro está que quem dirige o processo eefetivamente decide é o juiz togado, que po-derá ser auxiliado, sob sua supervisão, por juizleigo. Joel Dias Figueira Júnior comunga domesmo posicionamento acerca da ativida-de meramente auxiliar do juiz leigo19. Logo,dessa premissa possível concluirmos que apresença do juiz leigo não é obrigatória parao funcionamento dos Juizados Especiais,embora, na atual conjuntura, seja indispen-sável para viabilizar o funcionamento dosJuizados, haja vista a escassez de recursoshumanos para tal desiderato.

3. Fundamentos e limitações à atividadeadvocatícia por juízes leigos

Assentada essa premissa, é momento deverificarmos em quais circunstâncias pode-rão os advogados no desempenho da funçãode juízes leigos exercer a atividade advoca-tícia. Para tanto, a análise dos fundamentose limites ao desempenho deste importante eindispensável mister se torna precípua, como que ensaiaremos, quiçá, uma adequada

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interpretação do parágrafo único do art. 7ºda Lei nº 9.099/95.

A doutrina que sobre este tema versoupouco trouxe para a contribuição do nossodebate. Entretanto, e até mesmo para atri-buirmos caráter científico ao nosso estudo,elaboraremos breve leitura acerca da tímidaprodução de nossa comunidade jurídica.

Em um dos poucos comentários existen-tes sobre o Estatuto da OAB, Paulo LuizNetto Lôbo afirmou que os juízes leigos nosJuizados Especiais estão apenas impedidosde advogar perante tais Juizados20.

No mesmo sentido, parte da doutrina queanalisou e comentou a lei que instituiu osJuizados Especiais nada mais fez do querepetir os dizeres da lei, sem, contudo, veri-ficar as conseqüências e efeitos da fria e lite-ral aplicação desse dispositivo.

Assim, por exemplo, José Maria Melo eMário Parente Teófilo Neto, ao entenderemque, diante do exercício da função de juizleigo, “será vedado ao Juiz Leigo exercer aadvocacia perante o Juizado Especial, en-quanto estiver no desempenho deste mis-ter”21. Igualmente Suzani de Melo Lenza,para quem “os juízes leigos ficarão impedi-dos de exercer a advocacia perante os Juiza-dos Especiais, enquanto estiverem desem-penhando as suas funções”22.

Natacha Nascimento Gomes Tostes eMárcia Cunha Silva Araújo Carvalho rea-firmam o preceito legal, ao dizerem que osjuízes leigos estão impedidos de exercer aadvocacia perante os Juizados Especiais,enquanto exercerem a função que lhes foioutorgada23.

Como já afirmado, indiscutivelmente quemelhor teria sido que a Lei nº 8.906/94 ti-vesse ratificado o dispositivo do anterior Es-tatuto da OAB (Lei nº 4.215/63), que, reco-nhecendo como relativa a incompatibilida-de, ao contrário do novo estatuto, que a defi-ne como absoluta, impedia o advogado deatuar apenas na área de atividade do órgãoao qual estava subordinado, e tão-somentequanto às matérias desses órgãos24. No en-tanto, como a Lei nº 8.906/94 não ratificou

a disposição relativizadora do anterior Es-tatuto, e diante da promulgação e especifi-cidade posterior da Lei nº 9.099/95, cabe aooperador do direito a devida interpretaçãoe adequada inserção do permissivo legal noordenamento jurídico.

Assim, podemos afirmar que a ativida-de advocatícia por aqueles advogados queestejam no desempenho da função de juizleigo dos Juizados Especiais poderá ser exer-cida em foro diverso do que estejam atuan-do. Ou, em outras palavras, o exercício daadvocacia por juízes leigos é legítimo quan-do não a exercerem nos Juizados Especiaisque estejam desempenhando suas funções.

Esta, ao que nos parece, a melhor dicçãodo parágrafo único do art. 7º da Lei nº9.099/95, quando dispõe que “os Juízes lei-gos ficarão impedidos de exercer a advoca-cia perante os Juizados Especiais, enquan-to no desempenho de suas funções”. Nessaperspectiva, é como se a lei afirmasse que osjuízes leigos estão impedidos de exercer aatividade advocatícia perante os JuizadosEspeciais que desempenhem suas funções,e não perante todos e quaisquer JuizadosEspeciais.

Devemos, para tanto, optar pela exegeserestritiva, ou estrita, do mencionado dispo-sitivo legal. Isso porque a relação lógica quepara nós deve ser estabelecida entre os ter-mos “ficarão impedidos” e “perante os Jui-zados Especiais” é a mais estrita, de moldea não lhe ampliar o campo de atuação, masdeterminar-lhe e delimitar-lhe as fronteirasespecíficas25.

Se procedêssemos de modo diverso, o art.7º da Lei nº 9.099/95 deveria ser considera-do como norma que restringe o exercício dalícita atividade de advogado, proibindo esteprofissional de atuar no âmbito de todo equalquer Juizado Especial. Ocorre que,diante da lacuna da norma e da ausênciade outra regulamentadora, resta evidenteque a não-especificação do âmbito de suaincidência é fator que deve ser valorado porocasião da adequada interpretação do dis-positivo legal, uma vez que não esclarece se

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o juiz leigo que exerce suas atividades pe-rante os Juizados Especiais Cíveis estará im-pedido de exercer a advocacia na esfera dosJuizados Criminais, ou se estará impedidode praticá-la perante os Juizados EspeciaisCíveis de outra comarca ou foro, no caso decidades que possuam foros regionais.

Numa interpretação estritamente literal,poderíamos chegar à (falsa) conclusão deque o impedimento é generalizado. Contu-do, essa não é a melhor exegese da referidanorma.

O art. 5º, inc. XIII, da Constituição Fe-deral assegura o exercício de qualquer tra-balho, ofício ou profissão, atendidas as qua-lificações profissionais que a lei estabelecer.Já vimos que a atividade de juiz leigo não éincompatível com o exercício da advocacia,mas apenas restritiva26. Dessa forma, o ad-vogado regularmente inscrito na Ordem dosAdvogados do Brasil, preenchendo os re-quisitos legais, não pode ser tolhido doexercício de sua atividade.

Do dispositivo constitucional supracita-do depreendemos duas premissas. A primei-ra premissa é a de que, se a norma permissi-va é constitucional, toda e qualquer lei queoponha restrição ao exercício de profissão,no caso da advocacia, deve ter também res-paldo constitucional. A segunda é que, se anorma constitucional oferece ampla liber-dade ao exercício da profissão, desde quepreenchidos os requisitos legais e, é claro,obedecidos critérios e valores éticos, a inter-pretação de norma proibitiva, no caso o art.7º da Lei nº 9.099/95, deve ser restritiva. Edizemos que deve ser restritiva porque, sen-do a regra geral o pleno e livre exercício porqualquer pessoa de qualquer profissão, me-diante eventuais condições legais, ou a leidisciplina taxativamente quais as restriçõesa tal direito, ou o princípio constitucionalmencionado quedará violado.

Os dispositivos constitucionais que fun-damentam as normas que visam restringiro exercício de atividade privada por aqueleque ocupa cargo ou exerce função pública

estão previstos no art. 37, caput, que consagrao princípio da moralidade; no art. 37, inc.XVII, que proíbe a acumulação de cargo pú-blico com empregos e funções; e no art. 95,parágrafo único, e inc. I, que veda aos juízeso exercício de outros cargos e funções.

Esses dispositivos constituem o funda-mento constitucional das normas estatutá-rias restritivas do exercício de atividade pri-vada por ocupantes de cargos públicos, es-pecialmente os juízes.

O que visam mencionados diplomas le-gais é garantir a dedicação integral do ser-vidor e evitar que este se utilize do cargopara obter benefícios pessoais no exercíciode sua atividade privada. Pelo enfoque dadopela Ordem dos Advogados, a proibição deque juízes e promotores exerçam a advoca-cia visa evitar a concorrência desleal e a cap-tação de clientes. Em um ordenamento jurí-dico hipotético, no qual fosse permitido ajuízes de carreira advogar, haveria o riscode que alguns usassem de sua natural as-cendência sobre os demais servidores paraobter facilidades no trâmite dos processos.Mesmo que tal não ocorresse, restaria sem-pre a desconfiança, a suspeita e a acusaçãode concorrência desleal, do tráfico deinfluência, em detrimento da moralidade doserviço público.

Mesmo em comarcas distintas da queatua o juiz ou o promotor, exerceriam elesigual influência, pois é conhecida a freqüên-cia com que ocorrem as substituições. Du-rante sua carreira, um juiz atua em váriascomarcas, em inúmeras varas cíveis e crimi-nais. Mesmo que não pretendesse utilizarseu título para obter facilidades, muitas de-las viriam ao natural com a simples identi-ficação e reconhecimento do magistrado porparte do servidor que o atender. No tratocom clientes, a captação seria muito maisfácil, pois, pelo simples fato de ser ele juizou promotor, seria criada uma presunçãode notório saber e melhor desenvoltura noexercício das praxes forenses, já que, paraobter seu cargo, enfrentou com êxito acirra-da candidatura. Note-se que não estamos

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aqui defendendo ou sequer ventilando ahipótese de aceitação da pretendida “qua-rentena” aos magistrados, mas tão-somenteesboçando situações que eventualmentedeveriam restringir o exercício da advocacia,totalmente antagônicas à realidade por nósanalisada neste ensaio.

As normas que proíbem o exercício daatividade privada por magistrados preten-dem evitar tais situações, mantendo a inte-gridade e a moralidade do serviço público,em especial, do Poder Judiciário. Contudo,agora no estreito campo de discussão dopresente estudo, cumpre distinguirmos, ne-cessariamente, a atividade que exerce o juiztogado da que exerce o juiz leigo, enquantono desempenho de funções perante os Jui-zados Especiais, sempre tendo em vista anatureza jurídica dessa atividade.

Com efeito, o juiz leigo não é titular de varaou juizado. Não exerce ascendência hierár-quica sobre os funcionários dos cartórios,embora deles possua o mais alto respeito ereconhecimento pela nobre atividade que exer-ce. Não possui qualquer documento que oidentifique como juiz leigo e não percorreoutras comarcas ou juizados de forma a setornar conhecido como tal em outros juiza-dos que não o que atua. Toda a sua ativida-de carece ser referendada pelo juiz togado.Diante de tais constatações, entendemos queé praticamente inviável ao juiz leigo, no exer-cício da atividade advocatícia perante ou-tros juizados, que não o que atua, exercerqualquer influência sobre os respectivos ser-vidores judiciários e obter qualquer benefí-cio pelo fato de ser juiz leigo. Também nãovislumbramos possibilidade alguma de queocorra concorrência desleal, tráfico de in-fluências ou captação de clientela.

Mesmo que o exercício da atividade dejuiz leigo possa trazer algum plus ao currí-culo do advogado, esse fato não pode seroposto de forma a lhe gerar alguma incom-patibilidade, sob a infundada acusação deque se está utilizando disso para captaçãode clientes, tráfico de influência ou favore-cimento pessoal junto aos cartórios.

A atividade de juiz leigo gera a esseprofissional muito mais deveres do quedireitos e prerrogativas, de forma que, nãoexistindo mecanismos para que o juiz leigoobtenha facilidades no exercício da advo-cacia, não nos parecem aplicáveis asrestrições constitucionais, pois estas, nocaso, estariam despidas de utilidade. Dessaforma, entendemos possível que o juiz leigodos Juizados Especiais Cíveis venha a ad-vogar junto aos Juizados Criminais, quepossuem estrutura distinta daqueles, e jun-to aos Juizados Especiais Cíveis de outrascomarcas, ou mesmo junto a outros Juiza-dos (Cíveis ou Criminais) regionais, semviolação ao princípio da moralidade inscul-pido no caput do art. 37 da Constituição Fe-deral e ao disposto no art. 7º, parágrafoúnico, da Lei nº 9.099/95.

Os Juizados Especiais e de PequenasCausas, hoje transformados em Juizados Es-peciais Cíveis e Criminais, criados com vis-tas a atender às diretrizes do Programa Na-cional de Desburocratização, são de grandeinteresse público, pois viabilizam o acessoà Justiça às camadas desfavorecidas ealiviam, em parte, o excesso de trabalho dasvaras comuns.

Para atender esses objetivos, foi criada afigura do juiz leigo, recrutado entre advoga-dos com mais de cinco anos de profissão.Pretendeu a Lei, portanto, não descuidar daqualidade dos julgadores, selecionando-ospelo critério da experiência, adotado emoutros ordenamentos jurídicos.

Pretender que um advogado com cincoanos de atividade profissional, com uma ra-zoável carteira de clientes, seja cerceado noexercício de sua função, que é constitucio-nalmente considerada essencial ao funcio-namento da Justiça, porque pretendeu cola-borar com o Poder Judiciário, no mínimo,fere o bom senso. Primeiro porque retira osustento do juiz leigo, que não tem nesta ati-vidade fonte de renda considerável; segundoporque retira o interesse dos advogados emexercer a função, tornando inviável o funcio-namento dos Juizados Especiais Cíveis.

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O juiz leigo exerce, sim, função públi-ca, vinculada ao Poder Judiciário, masnão é funcionário público. É cidadãotemporariamente encarregado de uma fun-ção pública27, da mesma forma que o perito,que o depositário, o inventariante, o síndicoda massa falida, o mesário e demais fun-ções relativas à Justiça Eleitoral. É sujeitoestranho ao Órgão judiciário, do qual o Juizde Direito poderá necessitar28. Da mesmaforma o jurado, juiz leigo por excelência, queexerce não somente função pública, masatividade jurisdicional.

Nenhuma dessas pessoas, no entanto,possui qualquer restrição ao exercício da ad-vocacia. Injustificável, portanto, seja o juizleigo tolhido de sua atividade advocatícia.

4. Da eventual regulamentação daforma de investidura do advogado na

função de juiz leigoA fim de bem consolidarmos o nosso

entendimento no que pertine à viabilidadelegítima e jurídica de exercício da atividadeadvocatícia por juízes leigos dos JuizadosEspeciais, cumpre a nós, agora, afastarmoso (falso) argumento de que eventual re-gulamentação, por uma das unidades dafederação, da forma de investidura na fun-ção de juiz leigo poderia inviabilizar diretae primariamente a validade do permissivolegal previsto no parágrafo único do art. 7ºda Lei nº 9.099/95, que, como visto, tornajuridicamente admissível o exercício daadvocacia por aqueles advogados queestejam no desempenho da função de juizleigo dos Juizados Especiais, desde que nãoa exerçam perante os mesmos JuizadosEspeciais.

Com efeito, por expressa determinaçãolegal, o mandamento constitucional dodispositivo do art. 98, I, da ConstituiçãoFederal29 foi cumprido por meio da promul-gação da Lei Federal nº 9.099/95, que dispôssobre os Juizados Especiais Cíveis e Crimi-nais, instituindo a figura do juiz leigo, fun-ção inexistente na legislação anterior.

Após a edição da lei federal, no uso desua competência constitucional, é quecoube aos Estados criar e suplementar alegislação federal genérica, de molde a bemestruturar as suas respectivas organizaçõesjudiciárias30.

No Estado do Rio Grande do Sul, foi edi-tada a Lei nº 10.675, de 2 de janeiro de 1996,que criou o Sistema dos Juizados EspeciaisCíveis e Criminais, em substituição ao antigoSistema dos Juizados Especiais e de Peque-nas Causas.

Segundo se verifica da referida Lei, osJuizados Especiais Cíveis, adjuntos, ou não,foram criados com o aproveitamento da or-ganização e composição dos Juizados dePequenas Causas, colocando a Administra-ção do Tribunal de Justiça à disposição dosJuizados os equipamentos e recursos mate-riais e humanos necessários à efetivação doprocedimento previsto legalmente31.

Não obstante, como de regra é o que temacontecido com as demais unidades da fe-deração, deixou a mencionada Lei de regu-lamentar a forma de recrutamento e investi-dura dos juízes leigos. Assim, naqueles Es-tados em que não houvesse regulamenta-ção específica sobre a forma de recrutamen-to e investidura na função dos juízes leigos,deveria ser aplicado inequivocamente o per-missivo legal do parágrafo único do art. 7ºda Lei nº 9.099/95.

Por outro lado, nos estados da federa-ção em que houvesse sido regulamentadaa forma de recrutamento e investidura dosjuízes leigos, independentemente de seremeles reconhecidos como detentores de fun-ção ou cargo vinculado direta ou indireta-mente a qualquer órgão do Poder Judiciá-rio32, o que poderia, em tese, incompatibili-zar o exercício da advocacia nos termos doart. 28, IV, da Lei nº 8.906/9433, o permissi-vo legal do parágrafo único do art. 7º da Leinº 9.099/95 deveria ter especial prevalên-cia sobre a disciplina estadual, sob pena deaceitarmos que a lei estadual tem o condãode revogar a lei federal (especial).

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Logo, a permanecer o permissivo legal doparágrafo único do art. 7º da Lei nº 9.099/95,ainda que venham a ser considerados osjuízes leigos como detentores de função oucargo vinculados direta ou indiretamente aoPoder Judiciário, a norma proibitiva do art.28, IV, da Lei nº 8.906/94 não abrange aque-les advogados que exerçam a função de juí-zes leigos dos Juizados Especiais. Dizemosisso porque referido permissivo legal auto-rizou o exercício da atividade advocatíciapelos juízes leigos, não podendo ser revo-gado por diploma estadual que porventuraregulamente a forma de investidura erecrutamento dos juízes leigos, afrontandoa disciplina legal34.

Se é certo que o art. 93 da Lei nº 9.099/95atribui aos Estados competência para defi-nir a forma de investidura nas funções au-xiliares de conciliador e juiz leigo, por outrolado, também é certo que, independentemen-te da Organização Judiciária a ser estrutu-rada, a incompatibilidade para o exercícioda advocacia por juízes leigos dos JuizadosEspeciais deverá ficar restrita aos própriosJuizados, sob pena de reconhecermos a pri-mazia do legislador estadual ao legisladorfederal, mediante revogação parcial –derrogação – da Lei nº 9.099/95 – especifi-camente do parágrafo único do art. 7º.

5. ConclusãoReafirmando, de tudo o quanto foi visto,

e a prática nos irá demonstrar, podemosconsiderar como viável e legítima a ativida-de advocatícia por juízes leigos nos Juiza-dos Especiais, quando essa atividade forexercida em foro ou comarca diversos doque desenvolvam a função de juiz leigo. E,até mesmo, a atuação perante os JuizadosEspeciais Criminais, ainda que no próprioforo que atuem, quando estiverem no desem-penho de suas funções nos Juizados Espe-ciais Cíveis, e vice-versa, desde que as es-truturas dos Juizados Especiais Cíveis e dosJuizados Especiais Criminais sejam autôno-mas e independentes entre si, e a formaçãode seus quadros seja mantida por juízes

leigos diversos, que, em hipótese alguma,poderão cumular ambas as atividades.

A solução, ainda que posta pelos argu-mentos jurídicos acima, melhor seria se olegislador infraconstitucional bem especifi-casse o dispositivo legal ora analisado, ou,talvez, a OAB contornasse a problemática,por meio de simples averbação, mediantereferendo do Conselho Federal, no docu-mento de identificação do advogado,enquanto no desempenho da função de juizleigo dos Juizados Especiais, de que estáimpedido para o exercício da advocacia nospróprios Juizados (Cíveis ou Criminais) queexerçam as suas funções.

Notas1 Cf. Danilo Alejandro Mognoni Costalunga,

“Sobre o exercício da advocacia por Juízes leigosdos Juizados Especiais – Para uma superação doconflito aparente de normas entre a Lei nº 8.906/94e a Lei nº 9.099/95”, in Revista Cidadania e Justiça,da Associação dos Magistrados Brasileiros, ano 2,nº 05, 2º semestre/1998, pp. 185/199, e RevistaJurídica, ano XLVI, nº 254, dezembro de 1998,pp . 05 /20 .

2 Este o teor do voto proferido pelo Relator eConselheiro Arx da Costa Tourinho, em sessãoordinária realizada aos 12-02-96, ao apreciar a Pro-posição CP nº 4.062/95, juntamente com o ProcessoCP nº 4.093/95, verbis : “[...] Essa disposição viola,vigorosamente, a norma ínsita no art. 28, nº IV, doEOAB, que impõe a incompatibilidade dos servi-dores para o exercício da advocacia. Há que severificar que norma geral não derroga norma espe-cial. Os impedimentos e as incompatibilidades sãoregrados na Lei 8906/94, que é o Estatuto próprioda Advocacia e dos Advogados. Não enxergo, noparticular, inconstitucionalidade, porém, violaçãode princípio de interpretação jurídica que não pode,nem deve ser tolerada. A lei sub studio, ao fixarimpedimento para o juiz leigo e o conciliador, trazuma norma geral, que contraria norma especial. Épreceito clássico que ‘a disposição geral não revogaa especial’. Lex posterior generalis non derogat legipriori speciali, di-lo Carlos Maximiliano, ‘é máximaque prevalece apenas no sentido de não poder oaparecimento da norma ampla causar, só por si,sem mais nada, a queda da autoridade daprescrição especial vigente’ (Hermenêutica e aplica-ção do direito, 1957, RJ, Livraria Freitas Bastos S/A,6ª ed., pág. 442). Não é, pois, razoável a aceitação

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de que a lei que disciplina os juizados especiais seocupe de matéria que impõe norma que destoa desistematização jurídica, referente aos impedimentose às incompatibilidades inseridas no Estatuto daOAB. Esse diploma foi editado com a finalidadede regular o exercício da advocacia, disciplinando eselecionando a atividade advocatícia. A OAB nãopode aceitar essa disposição que contraria a siste-mática jurídica, na seleção da advocacia. O juizleigo é um servidor do Poder Judiciário e está in-compatibilizado para a advocacia. A solução nãoestá na propositura de ação de inconstitucionali-dade, mas, parece-nos, na edição de Provimento,com fulcro no art. 154, do Regimento Geral, inter-pretando a disposição legal, para orientação dosConselhos Seccionais da OAB, dizendo que a nor-ma do EOAB não foi derrogada pela lei posterior.Concluindo, [...], b) o art. 7º, da lei dos Juizados,não derrogou o art. 28, inc. IV, do EOAB, por sernorma geral, opondo-se a norma especial” (grifosno original) (cf. voto de fls. 28/29, dos autos daProposição CP nº 4062/95 referida, gentilmentecedido pelo Sr. Luiz Carlos Maroclo, Gerente deDocumentação e Informação do Conselho Federalda OAB). Confira-se a ementa do acórdão doprocesso mencionado, que por 15 votos a 10, com aabstenção da delegação do Estado de Pernambu-co, decidiu que “o parágrafo único do art. 7º da Lei9.099, de 26.09.1995, que fixa impedimentos paraos Juízes leigos, quando no exercício da advocacia,não pode derrogar o inc. IV do art. 28 da Lei 8.906,de 04.07.1994 (EOAB), por aplicação do princípiolex posterior generalis no derrogat legi priori speciali.A norma posterior aludida quebra a sistematiza-ção jurídica na seleção da advocacia, com gravesreflexos para a comunidade, devendo, pois, o Con-selho Federal da OAB manifestar orientação aosConselhos Seccionais para que apliquem o EOABem detrimento do parágrafo único do art. 7º da Lei9.099/95 [...]”, cf. publicação feita no Diário daJustiça (DJU) de 19-04-1996, Seção 1, p. 12.487, efl. 33 dos autos acima referido.

3 Confira-se a nossa conclusão acerca da inexis-tência de antinomia entre os dispositivos legais ci-tados: “Visto que a antinomia se mostra inexisten-te, ao menos de modo que torne inviável a preser-vação da unidade interna e coerência do sistema,como a caracteriza Juarez Freitas, convém notarque no caso ora analisado o parágrafo único, doart. 7º , da Lei nº 9.099/95, em momento algumrevogou os incisos II e IV, do art. 28, da Lei nº8.906/94, devendo continuar a vigorar esta legisla-ção para todos aqueles casos de incompatibilidadenela previstos, excetuados pelo que dispõe clara-mente o dispositivo legal do parágrafo único, doart. 7º, da Lei nº 9.099/95, que permite aos Juízesleigos dos Juizados Especiais o exercício da essen-cial atividade advocatícia, desde que não o façam,

‘enquanto no desempenho de suas funções’, peran-te os mesmos Juizados Especiais. Assim, possívela coexistência e compenetração das Leis nº 9.099/95 e 8.906/94, sem que com isso possamos causara ruptura no sistema. O que os incisos II e IV, doart. 28, da Lei nº 8.906/94 fixam é a norma geralsobre as atividades que tornam incompatível o exer-cício da advocacia. Essa norma deverá ter aplica-ção sempre que não houver norma especial deter-minando regime diferente, como decorre da dispo-sição do parágrafo único, do art. 7º, da Lei nº 9.099/95, que, seguramente, não determina incompatibi-lidade entre ambas as normas, e, além disso, nosautoriza reconhecer um nexo coerente e estável en-tre estas duas normas, ratificado pelo relevantefundamento social da nova disposição. Atravésdos incisos II e IV, do art. 28, da Lei nº 8.906/94,deveremos extrair todas as referências e implica-ções que eventualmente possam surgir do exercícioda nobre atividade advocatícia, como cláusula ge-ral e retora. A ressalva que deveremos fazer équando do exercício desta atividade por Juízes lei-gos dos Juizados Especiais, que, neste caso, tem anorma do parágrafo único, do art. 7º , da Lei nº9.099/95, o condão de relativizar o modelo geralanterior. Admitirmos interpretação contrária ao queora sustentamos, além de avalizar nenhuma solu-ção razoável, acarretará o absurdo da má técnicade hermenêutica, que nega reconhecer o caráter di-retivo e de norma-objetivo do modelo específicosuperveniente.” (cf. Danilo Alejandro Mognoni Cos-talunga, op. cit.).

4 Cf. Danilo Alejandro Mognoni Costalunga,op. cit.

5 Claro que melhor teria sido que a Lei 8.906/94tivesse ratificado o dispositivo do anterior Estatu-to da OAB (Lei nº 4.215/63), que, reconhecendocomo relativa a incompatibilidade, ao contrário donovo estatuto, que a define como absoluta, impe-dia o advogado de atuar apenas na área de ativi-dade do órgão ao qual estava subordinado e quan-to às matérias desses órgãos, como bem pinçadopor Domingos David Júnior, Estatuto da Advocacia:dos dispositivos inovadores (Lei n º 8.906/94) e sua ina-plicabilidade após três anos de vigência, in RevistaJurídica, ano XLVI, nº 249, julho de 1998, PortoAlegre, Ed. Síntese, p. 43. No entanto, como a Leinº 8.906/94 não ratificou a disposição relativiza-dora do anterior Estatuto, e diante da promulga-ção posterior da Lei nº 9.099/95, temos ser maiscorreto procedermos a devida adaptação do atualEstatuto da OAB, viabilizando, assim, a sua res-sistematização no ordenamento jurídico, do quenegarmos a vigência da norma específica formula-da, que corresponde a precípuo e determinadomodelo contemporâneo.

6 O exercício da advocacia, como sabido, repre-senta serviço público da mais alta relevância social,

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previsto constitucionalmente no art. 133, verbis: “Oadvogado é indispensável à administração da jus-tiça, sendo inviolável por seus atos e manifestaçõesno exercício da profissão, nos limites da lei”.

7 Cf. art. 40 da Lei nº 9.099/95.8 Cf. Rivista di Diritto Processuale Civile, 1928.9 Cf. Carnelutti, Trattato - Diritto e Processo,

1958, p. 54, nota 2.10 Cf. Galeno Lacerda. Comentários ao Código

de Processo Civil, vol. VIII, Tomo I, 2ª ed. p. 19.11 Cf. Galeno Lacerda op. cit.12 Cf. arts. 5º e 29 da Lei nº 9.099/95.13 Sobre a distinção de eficácia e efeitos do pro-

vimento judicial, importante a lição do processua-lista Carlos Alberto Álvaro de Oliveira: “A eficáciadiz respeito ao conteúdo do ato jurídico, aos ele-mentos que o compõem, os efeitos à produção dealterações no mundo sensível, como conseqüênciada eficácia. A condenação, por exemplo, constituieficácia da sentença condenatória, elemento do seuconteúdo, a possibilidade de execução ou a pró-pria execução efeito executivo dela decorrente.Verifica-se, portanto, íntima relação condicionanteentre essas duas categorias, pois não pode haverpor hipótese efeito sem eficácia, determinando oconteúdo desta a conseqüência verificada comaquele.” in Perfil dogmático da tutela de urgência,AJURIS nº 70, julho-1997, p. 225.

14 Cf. art. 40. Lei 9.099/95.15 Cf. art. 37. Lei 9.099/95.16 Cf. Cretela Júnior, Tratado de Direito Admi-

nistrativo. Vol IV, Ed. Forense. 1ª Ed. p. 6117 Cf. art. 1º, Lei 9.099/95.18 Cf. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, in Perfil

dogmático da tutela de urgência, AJURIS nº 70, julho-1997, p. 225.

19 “A restrição imposta pelo Estatuto é absolu-tamente perfeita; todavia, não se coaduna com apretendida incompatibilidade em face do exercícioda função de Juiz Leigo, tendo em vista que o ad-vogado, nesses casos, ingressa simplesmente comsuas atividades de instrutor, como mero colabora-dor (auxiliar) da Justiça, sem que isso signifiqueestar integrando cargo ou função vinculados dealguma forma ao Órgão do Poder Judiciário.”Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis eCriminais. Ed. RT. pg. 164

20 Cf. Paulo Luiz Netto Lôbo, Comentários aoEstatuto da Advocacia, 2ª ed., Brasília, DF, EditoraBrasília Jurídica, 1996, p. 132.

21 CF. José Maria Melo e Mário Parente TeófiloNeto, Lei dos Juizados Especiais - Comentada, Curitiba,Juruá Editora, 1997, p. 30.

22 Cf. Suzani de Melo Lenza, Juizados EspeciaisCíveis, AB Editora, 1997, p. 39.

23 Cf. Natacha Nascimento Gomes Tostes eMárcia Cunha Silva Araújo Carvalho, Juizado Espe-cial Cível – Estudo doutrinário e interpretativo da Lei

9.099/95 e seus reflexos processuais práticos, Rio deJaneiro, Renovar, 1998, p. 83.

24 Cf. nota 5 supra.25A tarefa de declaração estrita da norma não é

fácil. Carlos Maximiliano já alertava para adificuldade de se evitar a dilatação do verdadeiro eexato sentido da norma sem suprimir coisa algu-ma, em perfeita abstração do sentido literal (cf.Hermenêutica e aplicação do direito, 14ª ed., Rio deJaneiro, Forense, 1994, pp. 198 e seguintes).

26 Cf. Danilo Alejandro Mognoni Costalunga,“Sobre o exercício da advocacia por Juízes leigosdos Juizados Especiais – Para uma superação doconflito aparente de normas entre a Lei nº 8.906/94e a Lei nº 9.099/95”, op. cit.

27 Cf. Joel Dias Figueira Júnior, Comentários àLei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Ed.RT, p. 165, citando Nicola Picardi.

28 Cf. op. cit. citando Andrea Lugo.29Assim dispõe o art. 98, inciso I, da Constitui-

ção da República Federativa do Brasil, verbis: “Art.98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, eos Estados criarão: I - juizados especiais, providospor juízes togados, ou togados e leigos, competen-tes para a conciliação, o julgamento e a execuçãode causas cíveis de menor complexidade e infraçõespenais de menor potencial ofensivo, mediante osprocedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nashipóteses previstas em lei, a transação e ojulgamento de recursos por turmas de juízes deprimeiro grau”.

30 É o que determina o art. 93 da Lei nº 9.099/95, verbis: “Lei Estadual disporá sobre o Sistemade Juizados Especiais Cíveis e Criminais, sua orga-nização, composição e competência”.

31 Cf. arts. 2º e 6º, da Lei nº 10.675, de 2 dejaneiro de 1996.

32 São órgãos do Poder Judiciário aqueles pre-vistos expressamente no art. 92 da ConstituiçãoFederal. No Estado do Rio Grande do Sul, os Juiza-dos Especiais e de Pequenas Causas são considera-dos como órgãos do Poder Judiciário do Estado,conforme se verifica do art. 91, VI, da ConstituiçãoEstadual, cuja redação foi dada por força daEmenda Constitucional nº 22, de 23-12-97.

33 Sobre a não-incidência do disposto no art. 28,IV, da Lei 8.906/94 àqueles advogados que exerçama função de Juiz leigo dos Juizados Especiais, oque hipoteticamente poderia ensejar uma antinomiacom o disposto no parágrafo único, do art. 7º, daLei nº 9.099/95, veja-se em Danilo Alejandro Mog-noni Costalunga, “Sobre o exercício da advocaciapor Juízes leigos dos Juizados Especiais – Para umasuperação do conflito aparente de normas entre aLei nº 8.906/94 e a Lei nº 9.099/95”, op. cit.

34 Esta, inclusive, a conclusão do ilustre Juizde Direi to de Pernambuco Demócrito Ramos

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Reinaldo Filho, que, no nosso anterior estudo,foi o único a acenar com a tese da inexistência deantinomia entre as disposições dos arts. 7º, pará-grafo único, da Lei nº 9.099/95 e art. 28, IV, da Leinº 8.906/94, verbis: “[...] Os conciliadores e juízesleigos, portanto, independentemente do modo comosão investidos nas suas funções (quer ocupem ounão cargo público), não estão abrangi dos pela proi-

bição geral que alcança os demais servidores do Po-der Judiciário, pela simples razão de que a faculda-de do exercício cumulativo decorre de regra expres-sa fundida em texto de lei federal.” Cf. Da capacida-de para o exercício da advocacia dos conciliadores e juí-zes leigos dos Juizados Especiais Cíveis, in Revista daEscola da Magistratura de Pernambuco, vol. 3, nº7, jan/junho 98, pp. 139/150.

Referências bibliográficas conforme original.

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I – Introdução

Este texto procura, como afirmado no tí-tulo, abordar de forma objetiva algumasquestões relativas à Ação Direta de Incons-titucionalidade. Contudo, a pretensão de ob-jetividade não pressupõe nem pretende asimplificação dos problemas levantados.Assim, procurei apresentar a predominân-cia jurisprudencial, as teses discordantes eindicar ampla bibliografia para seu apro-fundamento, afinal, é preciso ao menos des-confiar da floresta ao ver as árvores.

Talvez o inafastável vício do professoresteja profundamente expresso nas obses-sivas notas de rodapé, mais relacionadas àquestão da angústia em propiciar fontes deaprofundamento que às veleidades intelec-tuais, sempre tão presentes, por que negar,em qualquer trabalho. Querendo, pode edeve o leitor desprezá-las. Nada tão irreme-diável ou irreversível, portanto.

A forma pergunta/resposta procura tor-nar mais dinâmica a apresentação sem, comisso, ignorar a complexidade do tema e daspossíveis respostas oferecidas. A preocupa-ção foi essencialmente didática, repita-se.

De resto, procuro ofertar possíveis alter-nativas ao entendimento dominante e certodos meandros e caminhos apenas e absolu-tamente jurisprudenciais, pois, por incrível

Algumas questões objetivas sobre AçãoDireta de Inconstitucionalidade

Carlos Antonio de Almeida Melo

Carlos Antonio de Almeida Melo é Procura-dor do Estado de Mato Grosso, Professor daFaculdade de Direito da UFMT, da Escola Judi-cial do TRT 23ª Região e membro do IJAP (Ins-tituto Jurídico Alcedino Pedroso da Silva).

SumárioI – Introdução. II – Questões gerais. III –

Questões objetivas.

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que pareça a alguns, a realidade muda. In-clusive no campo jurídico...

Tentei ser fiel ao princípio que apontapara o sentido que as coisas sociais não sãoeternas e imutáveis, mas que apenas signifi-cam momentos fugazes, desconexos e possí-veis de cada um e de todos nós nas intera-ções sociais.

A realidade social não surge penduradanas jaqueiras e goiabeiras, como as goiabase as jacas se oferecem descuidadas e passi-vas ao nosso entendimento e aparente reco-nhecimento. Na natureza, apenas as coisasnaturais, enquanto naturais, são dadas,pois, a partir da valoração humana, tam-bém integram o nosso mundo social, fútil egrandioso em suas limitações e possibilida-des magníficas ainda não completamentedescobertas.

Creio que é somente isso. Dizer mais se-ria negar a objetividade pretendida logo notítulo.

II – Questões gerais1 – Nome: Ação Direta de Inconstitucio-

nalidade1.2 – Outras designações: ADIN 2, ADIN-

ML3, ADIn.3 – Referencial histórico: Constituição de

1946 (Emenda Constitucional nº 16, de 6 dedezembro de 1965): instituiu a fiscalizaçãoabstrata da constitucionalidade, criandomodalidade de ADIN, atribuindo competên-cia ao Procurador-Geral da República paraoferecer representação de inconstitucionalida-de de lei ou ato normativo federal ou esta-dual junto ao Supremo Tribunal Federal, quea processava e julgava originariamente.

4 – Previsão constitucional e foro com-petente: Supremo Tribunal Federal: art. 102,inciso I, alínea “a”, primeira parte, da Cons-tituição da República.

5 – Normas infraconstitucionais: Lei nº4.337, de 1º de junho de 1964; Lei nº 5.778, de16 de maio de 1972; Lei nº 6.383, de 7 de de-zembro de 1976; Lei nº 8.038, de 28 de maiode 1990; Regimento Interno do Supremo Tri-bunal Federal (RISTF) artigos 169 a 178.

6 – Quorum para a declaração de incons-titucionalidade: maioria absoluta (art. 97,C.R.). O RISTF, art. 143, parágrafo único, es-tabelece que para votação de matéria cons-titucional o quorum é de oito Ministros, querdizer, é necessária a presença de oito inte-grantes da Corte para votação de ADIN. Adecisão pela inconstitucionalidade ou nãosó ocorre com a manifestação de seis Minis-tros, maioria absoluta (art. 173, RISTF, e 97,C.R.).

7 – Legitimação ativa: elenco do art. 103,incisos I a IX, C.R.

8 – Legitimação passiva: em se tratandode lei, a casa legislativa de origem e o chefedo Poder Executivo que a sanciona, sendoato normativo, a autoridade que o expede.

9 – Pressuposto: inconstitucionalidadede lei ou ato normativo. A inconstituciona-lidade é decorrência da supremacia formale material da Constituição, pois todas as nor-mas devem conformidade, também formal ematerial, aos princípios e preceitos consti-tucionais4, sob pena de receberem o indelé-vel estigma de inconstitucionalidade.

10 – Inconstitucionalidade: pressupõe oconflito de um comportamento5, de umanorma ou de um ato com princípios e pre-ceitos da Constituição. Importa destacarque, contrariamente aos sistemas jurídicosque possuem Corte Constitucional específi-ca, como a Itália6, o ordenamento jurídiconacional não aceita, ao menos no âmbito doSTF, a denominada inconstitucionalidade me-diata ou indireta7, pela qual, em virtude dahierarquização do ordenamento a partir daConstituição, subordinando todos os atosnormativos a esta última, poderia ocorrerde a norma ou ato subordinado à lei, quepor seu turno está subordinada à Constitui-ção, ao desobedecer à lei estar, indiretamen-te, desatendendo também ao texto constitu-cional. Nesses casos, há mera ilegalidade,sob pena de atrair para a inconstitucio-nalidade todos os conflitos normativosverticais. Há inconstitucionalidade ape-nas em relação direta e imediata com a

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Constituição. Segundo Jorge Miranda, oque aproxima inconstitucionalidade deilegalidade é a idêntica natureza de am-bas (trata-se, nos dois casos, de vício porviolação normativa), diferindo na quali-dade do preceito ofendido8.

11 – Controle de constitucionalidade: aexpressão indica os modos de expressar avigilância do ordenamento jurídico quantoà prevalência da supremacia da Constitui-ção. Quanto ao órgão que realiza o controle,pode ser político, jurisdicional ou misto.

12 – Critérios de controle: difuso (tam-bém denominado jurisdição constitucional9

difusa), quando seu exercício está dissemi-nado indistintamente pelos órgãos do Po-der Judiciário; controle concentrado (ou ju-risdição constitucional concentrada), quan-do atribuído a um órgão judiciário específi-co ou especial10.

13 – Instrumento: a ADIN configura ins-trumento de controle de constitucionalida-de por via principal, concentrada ou abs-trata. Também chamado controle de incom-patibilidade vertical11.

14 – Objetivo: não cuida da defesa de umdireito subjetivo individual, mas da prote-ção e garantia da própria Constituição, bus-cando expurgar do ordenamento jurídiconormas inconstitucionais, ou seja, que aten-tem contra o texto constitucional em vigor,possibilitando seu melhor funcionamento,mantendo uma harmonia possível e deseja-da.

15 – Tutela: interesse exclusivamente deordem pública.

III – Questões objetivas1 – Natureza jurídica: trata-se de uma

ação ou não?R. Aqui reside a grande chave para en-

tender todas as outras questões relativas aocontrole concentrado de constitucionalida-de, isto é, à ADIN no sistema constitucionalbrasileiro. O tema é cercado de interessantepolêmica, abrindo-se duas frentes de posi-

cionamento: trata-se de autêntica ação 12,mas configurando mecanismo especial deprovocação da jurisdição constitucional. Naoutra corrente, a ADIN não configura ação,mas processo objetivo 13 sem partes, inexis-tindo litígio relativo a situações concretasou individuais14, e, sendo objetivo, inexis-tem lide, partes em sentido formal ou pre-tensão resistida no sentido carneluttiano dotermo.

Neste último sentido, apenas para lem-brar, como procedimento especial, a ADIN se-ria uma ação de caráter excepcional com acentu-ada feição política15, pois está em julgamentonão uma relação jurídica concreta, mas avalidade de uma lei em tese. Daí falar-se quea ADIN possui natureza jurídica de processolegislativo-negativo16. Esta segunda correnteé a adotada pelo STF 17, gerando uma sériede conseqüências, principalmente de natu-reza processual (v. perguntas nº 6, 8, 10 e11).

Em verdade, essa posição adotada peloSupremo Tribunal Federal, o guardião ex-presso, mas não definitivo 18, da Constitui-ção, apresenta-se francamente contraditóriacom outras conclusões extraídas deste pos-tulado (e adotadas pela Corte), como a perti-nência temática (v. questão nº 25), além de sechocar com a idéia, reiterada mais de umavez pelo próprio Supremo, mormente emmandado de injunção (no que foi conforta-velmente acompanhado pela magistraturanacional em expressiva e significativa maio-ria), que ao magistrado não cabe legislar, quan-do, no caso concreto, essa decorrência é ina-fastável da função jurisdicional. Em outraspalavras, em casos concretos de ADIN, aSuprema Corte do Brasil admite atuar comolegislador negativo (v. questão nº 2), mas nãoadmite a mesma função in casu, em sua ver-são concreta-positiva como nas questõesrelacionadas ao injuction do direito anglo-saxão, inspiradoras do mandado de injun-ção (art. 5º, inciso LXXI, C.R.).

2 – Qual o significado da expressão le-gislador negativo em relação à ADIN?

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R. Não sendo aceita como ação do pontode vista material, o controle abstrato ou con-centrado de constitucionalidade implicaalijar uma norma inconstitucional do orde-namento jurídico, isto é, consiste no exercí-cio de uma competência de rejeição, como men-ciona Gomes Canotilho 19, exercendo umafunção política, como, aliás, reconhece o pró-prio STF20. Assim, a expressão legislador ne-gativo significa que o legislador não poderáeditar uma nova lei com um conteúdo igualao da norma declarada inconstitucional. Deoutro lado, expressa que, ao exercer o juízode declaração de inconstitucionalidade, oSTF afirma a ineficácia de determinada nor-ma, significando que, sem revogá-la no sen-tido formal do termo, suspende sua aplica-ção por inadaptação em relação aos princí-pios ou normas do texto constitucional,como se “legislador” fosse.

3 – Uma norma afetada por outra decla-rada inconstitucional tem sua eficácia res-taurada?

R. Sim, pois, configurando atividade le-gislativa negativa a declaração de inconsti-tucionalidade, produz o efeito constitucio-nal de restaurar a eficácia (alguns preferemusar o termo “repristinar”) da norma revo-gada pela que foi declarada incompatívelcom a Constituição (v. STF – RTJ 146/461).

4 – Em que consiste a interpretação confor-me a Constituição?

R. Trata-se de o Supremo fixar, sem alte-rar o texto, a interpretação, quando váriassão permitidas, que seja compatível com aConstituição, ficando afastadas as demais.Também é designada pela expressão fixa-ção da exegese sem redução do texto21. O STFfincou entendimento no sentido de o princí-pio da interpretação conforme a Constitui-ção (Verfassungskonforme Auslegung) ser prin-cípio que se situa no âmbito do controle daconstitucionalidade e não apenas simplesregra de interpretação, sofrendo sua aplica-ção, entretanto, restrições, pois a Corte, aodeclarar a inconstitucionalidade em tese deuma lei, atuando como Corte Constitucio-nal, funciona como legislador negativo, não

tendo o poder de agir como legislador posi-tivo para criar norma jurídica diversa da es-tabelecida pelo Poder Legislativo. Em facedisso, caso a única interpretação possívelpara compatibilizar a norma com a Consti-tuição contrarie o sentido inequívoco que oPoder Legislativo lhe pretendeu dar, não sepode aplicar o princípio da interpretaçãoconforme a Constituição, pois implicaria, emverdade, criação de norma jurídica, o que éprivativo do legislador positivo22.

5 – Contra quais atos cabe ADIN?R. Apenas leis23 e atos normativos24 fe-

derais ou estaduais (art. 102, inciso I, alínea“a”, C.R.), quer dizer, abrange apenas nor-mas que disciplinem relações jurídicas emabstrato, não cabendo contra atos de efeitosconcretos25, pois são despojados de qualquer co-eficiente de normatividade ou de generalidadeabstrata26. Há hipótese, remota mas não im-provável, de ato normativo que possua umaparte abstrata e outra concreta. Nesses ca-sos, estão sujeitas ao controle abstrato ouconcentrado de constitucionalidade, emsede de ADIN, apenas e tão-somente as pri-meiras disposições.

6 – Cabe desistência da ação?R. Não, em virtude de tutelar interesse

de ordem pública, prevalece o princípio daindisponibilidade de instância (v. STF – RTJ151/3 e RISTF art. 169, § 2º).

7 – Revogada a lei ou ato normativo ar-güido de inconstitucional, a ADIN perde oobjeto?

R. Pelo entendimento expressado atual-mente pelo STF, sim. O objeto da ADIN é adeclaração de inconstitucionalidade em tese.Assim, o interesse de agir só existe se normaestiver em vigor. A revogação da norma ouo exaurimento de sua eficácia (hipótese denormas temporárias) realiza a própria mis-são da ADIN: banir do ordenamento jurídi-co a norma inconstitucional. V. STF – RDA195/79, 194/242, 197/180; e STF – RTJ 152/740 e 154/397.

8 – Ocorrem prescrição ou decadência?R. Não, pelo mesmo motivo expresso nas

perguntas nºs 1 e 6.

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9 – Cabe contra emenda constitucio-nal27?

R. Sim, sendo o STF guarda da Consti-tuição (art. 102, caput, C.R.), cabe-lhe apre-ciar violação ao texto constitucional perpe-trada pelo exercício do poder constituintederivado. V. STF – RDA 191/214 e 198/12328.

10 – Cabe litisconsórcio?R. Não, em face da natureza especial do

processo (v. resposta à pergunta nº 1)29.Quanto ao litisconsórcio ativo, em face doelenco taxativo de legitimados (art. 103,C.R.). Em relação ao litisconsórcio passivo,por ser a ADIN procedimento objetivo, nãopossui partes ou lide, sendo, no entendimen-to do STF, impossível, seja qual for o resul-tado da ADIN, a modificação de direito in-dividual (v. STF – RTJ 149/62 e 156/440)30.

11 – Cabe intervenção assistencial de ter-ceiro interessado?

R. Não, em face da natureza especial doprocesso. O STF entende que a Corte estálimitada ao exame da norma impugnadacomo inconstitucional, não podendo esten-der a declaração a outros dispositivos vin-culados àquele, mas não atacados, aindaque o fundamento da inconstitucionalida-de seja o mesmo (v. resposta à pergunta nº1). V. art. 169, § 2º, RISTF, e STF – RDA 155/155, 157/166 e 188/122; STF – RT 715/309.

12 – Cabe reclamação?R. Não, por não se tratar de julgamento

de caso concreto. V. resposta à questão nº 1.13 – Cabe contra lei municipal em face

da Constituição da República?R. Não. O STF entende ser o guardião da

Constituição apenas nos estreitos termosprevistos, neste caso, no art. 102, inciso I,alínea “a”, C.R., isto é, leis e atos normati-vos federais ou estaduais. Assim, não cabeADIN contra lei ou ato normativo munici-pal em face da Constituição da República,sendo inconstitucional a disposição daConstituição Estadual que estabeleça sobrecompetência do Tribunal de Justiça do Es-tado para processar e julgar originariamen-te representação de inconstitucionalidade

nesse sentido, pois estaria usurpando o pa-pel do Supremo de guarda da Constituição(v. STF – RT 664/189 e STF – RDA 199/201). Na hipótese de inconstitucionalidadede lei ou ato normativo municipal em faceda Constituição da República, o remédio é ocontrole difuso ou incidenter tantum, quan-do do julgamento de caso concreto31.

Diferente, contudo, é a hipótese de con-trole concentrado de lei municipal em quese alega ofensa à norma da Constituição es-tadual que reproduz dispositivo da CartaMagna de observância obrigatória pelos Es-tados. Nesse caso, há competência do Tri-bunal de Justiça, com possibilidade de Re-curso Extraordinário para o STF (art. 102,inciso III, C.R.). V. STF – RDA 199/201, RDA202/249, RDA 204/249 e STF – RTJ 147/404.

14 – Cabe pedido de medida liminar?R. Sim. A admissibilidade depende da

comprovação do fumus boni iuris (plausibi-lidade jurídica do pedido) e do periculum inmora (possibilidade de dano irreparável pelademora da prestação jurisdicional), com odeferimento de medida liminar que suspen-da ex nunc (→) e erga omnes a eficácia da nor-ma impugnada. Fundamento: art. 102, inci-so I, alínea “p”, C.R..

15 – Cabe Agravo Regimental da deci-são provisória do Relator concedendo ou ne-gando liminar?

R. Pelo disposto no RISTF, em casos deurgência, o Presidente (art. 13, inciso VIII)ou o Relator (art. 21, inciso V) podem conce-der medida liminar ad referendum do Plená-rio32. Nesses casos, o STF assentou que adecisão individual tomada ad referendum deórgão colegiado da Corte é irrecorrível (v.STF – RTJ 157/794).

16 – Qual o alcance da decisão?R. A lei inconstitucional pode ser consi-

derada nula ou anulável. Na primeira hi-pótese, a lei inconstitucional é, ab initio, nula,destituindo de validade qualquer ato que atome como fundamento, sendo o juízo deinconstitucionalidade declaratório, operan-do desde a sua elaboração (ex tunc). Pela se-

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gunda, inspirada em Hans Kelsen, é anulá-vel, pois a lei existiu validamente até o mo-mento da decisão, sendo o juízo de incons-titucionalidade constitutivo, valendo ape-nas a partir daquela data (ex nunc). O Supre-mo tem fixado que a eficácia da declaraçãodefinitiva de inconstitucionalidade é retroa-tiva, pois, tendo caráter declaratório, pro-duz efeitos ex tunc (←) e erga omnes, alcan-çando, inclusive, atos pretéritos praticadossob sua égide, que são considerados nulos,impossibilitando a invocação de qualquerdireito (v. STF – RDA 181-182/119 e STF –RTJ 91/407, 98/758 e 146/461).

17 – Qual a natureza da decisão definiti-va?

R. Faz coisa julgada material, vinculan-do as autoridades encarregadas de aplicara lei33, que tem sua eficácia suspensa ex tunc(←) e erga omnes independentemente da atua-ção do Senado. Note-se que a norma não érevogada, mas tem sua aptidão para produ-zir efeitos jurídicos retirada, tornando-se,assim, ininvocável e inaplicável, abrindo-se a hipótese de uma futura compatibilida-de desta mesma norma com a Constituição,em caso de emenda desta, falando-se, en-tão, em resgate da constitucionalidade ou cons-titucionalidade superveniente.

18 – Cabe recurso do acórdão proferidopelo STF?

R. Apenas Embargos de Declaração, nahipótese de haver dúvida, obscuridade, con-tradição ou omissão (artigos 337 a 339, RIS-TF). V. a próxima questão.

19 – Cabem Embargos Infringentes?R. Sim, com base no art. 6º, da Lei nº

4.337/64 e art. 333, inciso IV, parágrafo úni-co, do RISTF. Os Embargos podem ser opos-tos quando houver na decisão quatro votosvencidos sobre o mesmo ponto. O STF sóadmite a interposição após a publicação doacórdão no DJU (v. STF – RTJ 143/718). OsEmbargos Infringentes possuem eficáciasuspensiva (v. STF – RTJ 129/268 e 148/487).

20 – Cabe ação rescisória?R. O Supremo entende que não, em face

das características especiais do processoutilizado (v. resposta à pergunta nº 1 e STF– RTJ 94/49). Não obstante, pode ser cons-truída a tese em caso que esteja caracteriza-da a nulidade absoluta do julgado (v. art.485, C.P.C.).

21 – Cabe contra leis e atos normativoseditados sob a égide do texto constitucionalanterior21?

R. O advento de uma nova Constituiçãoprovoca, entre outros efeitos, a revogação dotexto constitucional anterior, retirando ofundamento de validade fornecido ao direi-to anterior. Com isso, em face da aplicaçãoda teoria da recepção, serão admitidas noordenamento jurídico inaugurado pelanova Carta apenas as normas compatíveiscom o novo texto constitucional, que recebe-rão novo fundamento de validade, enquan-to as demais são revogadas.

Em função disso, por ser norma absolu-ta e incontrastavelmente superior, a novaConstituição revoga as normas infraconsti-tucionais com ela incompatíveis, cassando-lhes o fundamento de validade e afastando,assim, o juízo de inconstitucionalidade, querdizer, normas subconstitucionais elabora-das sob a égide da Carta anterior são recebi-das pela nova ordem constitucional quan-do com ela são compatíveis e, ao revés, asnormas inadmitidas no novo sistema sãorevogadas.

Dessa forma, não cabe ADIN quando anorma questionada é anterior à promulga-ção da Constituição em vigor, prevalecendoo critério norma superior/inferior (↓), poiso critério cronológico cede ao hierárquico.Sob o ponto de vista formal (vícios relativosao processo legislativo), inquestionável ainocorrência da denominada inconstitucio-nalidade superveniente (v. questão nº 22). Deoutra mirada, inexiste inconstitucionalida-de material nesses casos (relativa aos prin-cípios ou normas), ocorrendo simples revo-gação35 (v. STF – RT 686/218, STF – RDA188/288 e STF – RTJ 160/62).

A despeito disso, em nome da certeza esegurança das relações jurídicas, principal-

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mente, tão cara aos ordenamentos jurídicoscomo o brasileiro, a não-apreciação dessasquestões representa mais uma tomada deposição política da Corte, considerandomais seu volume de trabalho que a ordemjurídica36.

22 – Qual o sentido da expressão incons-titucionalidade superveniente?

R. A designação é empregada para sereferir à hipótese de uma norma ser consti-tucional sob a égide da Constituição sob aqual foi elaborada, mas, com o advento denovo texto constitucional, passar a se indis-por com os novos dispositivos (daí o adjeti-vo superveniente)37. O Supremo não apreciaessas questões (v. STF – RDA 188/288 e STF– RT 686/218). Nesses casos, cabe apenasapelar para o controle difuso de constitu-cionalidade.

23 – Cabe contra súmula?R. Não, pois, não apresentando caracte-

rísticas de ato normativo (falta-lhe impera-tividade, embora seja abstrata e geral), nãoestá a súmula sujeita ao controle concentra-do. É como vem-se posicionando o STF (v.STF – RTJ 151/20 e STF – RDA 196/202).Todavia, na hipótese de serem adotadas sú-mulas vinculantes, creio na possibilidadede reexame dessa questão por parte da Cor-te.

24 – Cabe contra decisões normativas daJustiça do Trabalho (art. 114, § 2º, C.R.)?

R. Configuradas como ato geral, abstra-to, imperativo e praticado por órgão federal,tais decisões, desde que editadas após a pro-mulgação da Constituição (5 de outubro de1988), podem ser submetidas ao controleabstrato de constitucionalidade na parte emque se refira a dispositivo constitucional,isto é, tratando de matéria que regulamentenormas infraconstitucionais, a contrarieda-de se resolve no plano da ilegalidade e nãoda inconstitucionalidade (v. STF – RDA661/208 e 683/20038).

25 – A inicial necessita ser subscrita poradvogado?

R. Ainda como conseqüência de caracte-rizar a ADIN como atividade materialmen-

te legislativa, isto é, não se tratando de pres-tação jurisdicional, mas de procedimento le-gislativo-negativo 39, no entendimento doSTF, em ADIN apenas há ilegitimidade adprocessum na hipótese de inicial subscritapor pessoa desvestida de capacidade pos-tulatória (v. STF – RT 651/200).

26 – A competência deferida ao SenadoFederal pelo art. 52, inciso X, C. R., é exerci-da em ADIN?

R. Por esse dispositivo, compete ao Se-nado suspender a execução, no todo ou em par-te, de lei declarada inconstitucional por decisãodefinitiva do Supremo Tribunal Federal. A dou-trina entende que essa competência só é acio-nada no controle difuso, agindo o Senadocomo órgão nacional40, quando há uma ca-deia recursal e, por fim, a manifestação defi-nitiva do Supremo, não abrangendo a deci-são definitiva prolatada em processo decompetência originária, como no caso deADIN41. Nesse sentido, o art. 178 do RISTFestabelece que será feita comunicação aoSenado, para efeitos do art. 52, inciso X, C.R. (ao qual correspondia o art. 42, inciso VI,da Carta de 67/69, mencionado no disposi-tivo), nos casos de declaração incidental deinconstitucionalidade.

27 – Qual o significado da expressão per-tinência temática em relação às figuras legiti-madas para ingressar com ADIN (art. 103,incisos I a IX, C.R.)?

R. A expressão faz referência à exigên-cia estabelecida jurisprudencialmente peloSTF, com nítidas intenções restritivas42, parao ajuizamento de ADIN, pela qual, além deconstar do elenco estabelecido taxativamenteno art. 103, incisos I a IX, C. R., é necessárioque haja relação entre a norma impugnadae as atividades institucionais do requeren-te. Assim, o Governador de um Estado, ape-sar de legitimado pelo inciso V do art. 103,não poderia argüir a inconstitucionalidadede uma lei de outro Estado (v. STF – RTJ159/771 e 162/857). Pela natureza de suasfunções, esse requisito não é exigível em re-lação ao Procurador-Geral da República. OConselho Federal da OAB foi excluído pelo

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STF da pertinência temática, entendendo aCorte que sua específica menção no incisoVII deve ser compreendida como permissãopara proposição de ADIN contra qualquerato normativo (v. STF – RTJ 142/363). Ospartidos políticos também estão dispensa-dos da pertinência temática em face de suaampla destinação institucional (v. STF – RTJ158/441) 43.

Notas

1 No plano estadual, seu equivalente é a representa-ção de inconstitucionalidade de leis ou atos normati-vos estaduais ou municipais em face da Constitui-ção Estadual (art. 125, § 2º, C.R.).2 Utilizo no texto especificamente essa denomina-ção apenas pela facilidade de referência.3 ADIN com pedido de medida liminar. Sigla muitofreqüente em julgados do STF.4 Sobre princípios constitucionais, anote-se a mono-grafia pioneira de Sampaio Dória Princípios Cons-titucionaes, São Paulo Editora, SP, 1926, sob a Cons-tituição de 1891. V., tb., Conceito de Princípios Cons-titucionais, Ruy Samuel Espíndola, Ed. RT, SP, 1998;Direito Constitucional, J.J. Gomes Canotilho, Alme-dina, Coimbra, 1991, pp. 171 ss.; Tércio SampaioFerraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito, Atlas, SP,1990, pp. 222/224.5 Significando a hipótese de inconstitucionalidadepor omissão.6 E talvez com o intuito de ampliar o número dequestões submetidas à Corte.7 V. Marcelo Neves, Teoria da Inconstitucionalidadedas Leis, Saraiva, SP, 1988, p. 72/3.8 Manual de Direito Constitucional , Ed. Coimbra,Coimbra, 2ª ed., 1988, t. 2, p. 276.9A expressão jurisdição constitucional designa instru-mentos de defesa da Constituição contra eventuaisinvestidas contra seus princípios e normas.10 O nosso ordenamento jurídico combinou os doiscritérios, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal acompetência precípua de guarda da Constituição (art.102, caput, C.R.).11 V. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitu-cional Positivo, Malheiros Editores, SP, 16ª ed., 1999,p. 49.12 V. Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstratade Constitucionalidade no Direito Brasileiro, Ed. RT,SP, 1995, p. 112 ss., entre outros. O pioneiro desseentendimento (é de fato ação) foi Alfredo Buzaid(Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalida-de , Saraiva, SP, 1958, notadamente p. 105).

13 Gilmar Ferreira Mendes, citando jurisprudênciados Tribunais Constitucionais alemães, fala em pro-cesso unilateral, não-contraditório, isto é, de um proces-so sem partes, no qual existe um requerente, mas ine-xiste requerido (Controle de Constitucionalidade – As-pectos jurídicos e políticos, Ed. Saraiva, SP, 1990, p.250).14 Aliomar Baleeiro (Rp. nº 700, RTJ 45/690) enten-dia que não era ação em sentido clássico, mas umainstituição de caráter político semelhante ao impeach-ment.15 Min. Moreira Alves, Rp. nº 1.016, RTJ 95/999.16 V. Rodrigo Lopes Lourenço, Controle da Constitu-cionalidade à Luz da Jurisprudência do STF, Forense,RJ, 1998, p. 23 ss.17 V. STF - RDA 193/242, entre outras.18 No sentido que o povo (principalmente) e os ope-radores jurídicos (em particular) necessitam e de-vem ter uma leitura crítica da Constituição (pormais utópica que pareça tal afirmação).19 Op. cit., p. 463.20 V. STF – RTJ 131/1.001 e 146/461.21 V. Rp. nº 1.417 – DF – julgada em 9/12/87, una-nimidade, Rel. Min. Moreira Alves, in Cadernos deDireito Constitucional e Ciência Política, Ed. RT, SP,nº 1, outubro/dezembro de 1992, p. 330, item 3.22 V. ementa oficial Rep. Inconstitucionalidade nº1.417-7-DF, Rel. Min. Moreira Alves, in, op. cit., p.314.23 As denominadas leis exclusivamente formais, leisconcretas ou leis de efeitos concretos, como, por exem-plo, as que autorizam a criação ou extinção de umórgão ou entidade, estão infensas ao controle con-centrado. A razão reside em que, assim dispondo,tais normas atingem pessoas específicas, não con-figurando, assim, a atividade do legislador-negati-vo (v, questão nº 2). No entanto, podem ocorrerhipóteses em que, mesmo nessa espécie normativa,haja violação de norma ou princípio constitucional,embora o STF venha considerando que qualquerato concreto, ainda que veiculado por lei, não possaser objeto de ADIN (v. STF – RTJ 156/767 e 159/775 e RT/Cad. D. Const. e Ciência Política, Ano 1,nº 1, out./dez. 1992, p. 332/336, ADIN nº 643-6-SP). Sobre o tema, v. Elival da Silva Ramos, A In-constitucionalidade das Leis – Vício e Sanção, Saraiva,SP, 1994, p. 192 e ss.24 Desde que editados por órgão federal, estadualou, ainda, distrital no exercício de competência de-ferida aos Estados (art. 32, § 1º), caracterizadoscomo abstratos, gerais e dotados de imperativida-de .25 Assim caracterizados aqueles atos administrati-vos com objeto determinado e destinatário certo (v.STF – RTJ 140/36).26 V. STF – RDA 191/171.27 V. Flávio Bauer Novelli, Norma Constitucional In-constitucional?, RDA 199/21.

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28 O STF entende cabível mandado de segurançacontra o processamento de emenda constitucionalque viole as limitações materiais expressas cons-tantes do art. 60, § 4º, C.R., consubstanciando fis-calização jurisdicional de proposta de emenda queabrigue matéria subtraída à incidência do poderconstituinte de segundo grau (v. STF – RTJ 99/1.031 e STF – RDA 191/200). V. , tb., O ControleJurisdicional da Constitucionalidade do Processo Legis-lativo , Germana de Oliveira Moraes, Ed. Dialética,SP, 1998.29 Contra esse posicionamento, v. Firly NascimentoFilho, Da Declaração de Inconstitucionalidade. Aspec-tos Constitucionais, Processuais e Federativos, Ed. Lu-men Juris, RJ, 1996, pp. 112 ss. De outro lado, The-místocles Brandão Cavalcanti, em obra clássica,louva esse impedimento (v. Do Controle da Consti-tucionalidade, Forense, RJ, 1956, p. 68).30 Em relação ao argumento que a decisão de umaADIN sempre repercutirá na esfera jurídica dosindivíduos, Rodrigo Lopes Lourenço (Controle daConstitucionalidade..., cit., p. 30) adverte que, tendonatureza legislativa-negativa, o controle abstrato de cons-titucionalidade, não se pode reconhecer, a todos quepossam ser prejudicados pela eliminação de um ato nor-mativo do ordenamento jurídico, legitimação para in-tervir no respectivo procedimento. Ressalte-se que, quan-do uma casa legislativa delibera sobre um projeto de leinão se exige direito de voz a representantes dos gruposcujos interesses possam ser lesados. O argumento é cor-reto porque, em ambos os casos, cuida-se de procedi-mentos legislativos, sendo o primeiro legislativo-nega-tivo e o segundo, legislativo-positivo.31 Sobre o tema, v. Ação Direta de Controle da Consti-tucionalidade de Leis Municipais, em Tese, SP, Centrode Estudos da Procuradoria-Geral do Estado, 1979;Regina Maria Macedo Nery Ferrari, Controle da Cons-titucionalidade das Leis Municipais, Ed. RT, SP, 2ªed., 1994; Gilmar Ferreira Mendes, Controle de Cons-titucionalidade – Aspectos jurídicos e políticos, Ed. RT,SP, 1990, p. 300 ss; O Controle da Constitucionalida-de de Leis e Atos Normativos Municipais em face daConstituição Federal, Fernando Luiz Ximenes Rocha,RDA 203/107; Apontamentos sobre o Controle Juris-dicional de Leis e Atos Normativos Estaduais e Munici-pais na Constituição do Estado do Rio de Janeiro, Sílvio

Roberto Mello Moraes, Cadernos de Direito Constitu-cional e Ciência Política, Ed. RT, SP, nº 2, Ano 1,janeiro/março de 1993, p. 220; O Controle Jurisdi-cional de Constitucionalidade de Lei Municipal Contrá-ria à Constituição Federal, Patricia Saito, Cadernos deDireito Constitucional e Ciência Política, Ano 4, nº 16,julho/setembro de 1996, p. 178.32 V. STF – RTJ 157/472 e 158/795.33 V. José Afonso da Silva, Curso..., cit., p. 57.34 V. Paulo Brossard, Constituição e Leis a ela Ante-riores, RDP 4/29.35 Em verdade, como não há declaração formal derevogação, seria mais adequado falar-se que asnormas são tidas como revogadas.36 Reside nessas e outras questões o caráter funda-mentalmente político do STF, que, não obstante,não aceita, pela voz corrente da maioria de seusMinistros, restringir-se a uma Corte Constitucionalexclusivamente.37 V. Elival da Silva Ramos, A Inconstitucionalidadedas Leis – Vício e Sanção, Saraiva, SP, 1994, p. 67 ss.38 A jurisprudência do Supremo, bem como a dou-trina, diferencia entre atos normativos primários e atosnormativos secundários. Os primeiros derivam dire-tamente da Constituição, donde retiram seu fun-damento de validade (leis complementares, dele-gadas, ordinárias e outros atos à lei equiparados).Os outros (decretos regulamentares, instruções,portarias e outros), sendo secundários em relação àlei, fonte de seu fundamento de validade, não po-dem ser objeto de controle concentrado, pois nãoestão em confronto direto com a Constituição. Nes-ses casos, caso haja inconstitucionalidade, será dalei que dá fundamento de validade ao ato secundá-rio e a Constituição.39 V. questão nº 2 .40 V. Rodrigo Lopes Lourenço, Controle da Constitu-cionalidade..., cit., p. 103.41 V. José Afonso da Silva, Curso..., cit., p. 56.42 A esse respeito, v. comentário crítico de RodrigoLopes Lourenço, Controle da Constitucionalidade...,cit., pp. 54/55.43 Sobre legitimidade ativa, v. tb. ADIN nº 433-6DF,Rel. Min. Moreira Alves, Cadernos de Direito Consti-tucional e Ciência Política , Ed. RT, SP, nº 1, Ano 1,outubro/dezembro 1992, p. 341.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

O presente trabalho tem origem naobservação das deficiências que, a nosso ver,o procedimento atualmente empregado derepresentação judicial da parte passiva nomandado de segurança possui.

Em diversas oportunidades, tanto noexercício das funções de Procurador daRepública quanto nas de Procurador daFazenda Nacional, verificamos o processa-mento de mandados de segurança nos quaisa Fazenda Pública, apesar de suportar os

A pessoa jurídica de direito público e aautoridade coatora no mandado desegurança

Marlon Alberto Weichert

Marlon Alberto Weichert é Procurador daRepública em São Paulo. Ex-Procurador da Fa-zenda Nacional. Mestrando em Direito Consti-tucional pela Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo. Professor de Direito Tributário.

Sumário1. Introdução. 2. As várias posições doutri-

nárias e jurisprudenciais sobre o legitimado pas-sivo e o papel da autoridade coatora no manda-do de segurança. 2.1. A autoridade coatoracomo representante processual, com capacida-de postulatória, da pessoa jurídica de direitopúblico, que seria a verdadeira parte passiva.2.2. A autoridade coatora como substituto pro-cessual (parte legitimada extraordinariamente).2.3. A autoridade coatora como parte legitima-da ordinariamente. 3. A inafastabilidade da con-sideração da pessoa jurídica como parte em facedos efeitos da coisa julgada. 4. O verdadeiropapel da autoridade coatora: mera presen-tante em juízo da pessoa jurídica, sem capa-cidade postulatória. 5. Outros aspectos dessaconstrução. 5.1. A legitimidade recursal dapessoa jurídica de direito público. 5.2. A im-possibilidade de assistência ou litisconsórcioda autoridade. 5.3. A revisão do papel doMinistério Público. 6. Conclusões.

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ônus da sentença, não lograva sequer tomarconhecimento do feito e exercer a sua defesaem primeiro grau.

O caso mais rotineiro ocorre na impetra-ção de mandados de segurança em matériatributária, nos quais a defesa do ato decobrança do tributo é feita pela autoridadecobradora (Delegado ou Inspetor da ReceitaFederal, no âmbito dos tributos federais),muitas vezes sequer bacharel em Direito.Normalmente fundamentadas em intrinca-das questões jurídicas e a partir de estudosde renomados juristas da área, essesmandados de segurança são submetidosao Judiciário sem que a Fazenda Públicapossa, regularmente, manifestar-se pormeio dos seus agentes para tanto especial-mente selecionados mediante rigorososconcursos públicos.

Tivemos, ainda, a oportunidade deatuar – como custos legis – em mandado desegurança no qual a autoridade impetrada(Chefe de Seção de Pessoal de órgão da ad-ministração direta) aparentemente possuíainteresse conflitante com o ato que pratica-va no estrito exercício de uma atividade vin-culada, consistente em deixar de incorpo-rar gratificações pelo exercício de função co-missionada (à qual ele provavelmente tam-bém fazia jus). Esse suposto conflito fez-sesentir na qualidade das informações, quenenhuma defesa técnica do ato traziam.

No plano acadêmico, o estudo dessaquestão demonstrou-nos, com o máximorespeito aos entendimentos em contrário,que a prática atual de se admitir a represen-tação da pessoa jurídica de direito públicono mandado de segurança durante o seuprocessamento em primeira instância pormeio apenas da autoridade coatora nãose compatibiliza com as normas constitu-cionais pertinentes à defesa em juízo daFazenda Pública.

Esses os motivos que nos levam a, emseguida, enfrentar a construção doutriná-ria e jurisprudencial que se consolidou nosentido de ser apenas a autoridade coatoraapta a figurar no pólo passivo do mandado

de segurança em primeiro grau, seja naqualidade de representante da pessoajurídica de direito público, de substituto pro-cessual dela ou de parte em sentido estrito.

2. As várias posições doutrinárias ejurisprudenciais sobre o legitimado

passivo e o papel da autoridade coatorano mandado de segurança

Muitos e renomados autores já sededicaram ao enfrentamento da questão oraproposta, ainda que incidentalmente emmanuais sobre mandado de segurança, fir-mando posições distintas e algumas vezesconflitantes.

Acresce que a matéria já sofreu variadasregulamentações legislativas, conforme de-monstra o eminente Ministro SepúlvedaPertence em voto proferido na Reclamaçãonº 367-1/DF1:

“10. Ao criar o mandado de segu-rança para a defesa de direito ‘amea-çado ou violado por ato manifestamenteinconstitucional ou ilegal de qualquerautoridade’, a Constituição de 1934,art. 113, n. 33, estipulou, de logo, queo seu processo seria o mesmo do ha-beas-corpus, prescrevendo, no entanto,que deveria ‘ser sempre ouvida a pessoade direito público interessada’.

11. A primeira disciplina infra-constitucional do instituto – L. 191,de 16.1.36 – é que introduziu noprocedimento do mandado de segu-rança, além da notificação por ofícioda inicial ao representante judicial oulegal da pessoa pública interessada(art. 8º, § 1º, II), a citação do coator(art. 8º, § 1º, I), para apresentação, em10 dias, ‘da defesa e das informaçõesreclamadas’ (art. 8º, § 3º); a lei nãoprevia audiência posterior do Minis-tério Público; a sentença concessivaera comunicada, para cumprimento,ao representante da pessoa jurídica dedireito público (art. 10, parág. único)

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e o recurso, facultado ao impetrante, àmesma entidade estatal interessadaou ao coator (art. 11, § 1º).

12. Não obstante a equívoca refe-rência legal à citação do coator, con-traposta à simples comunicação dademanda à pessoa jurídica, logo emseguida – MS 248, 10-6-36, Ataulphode Paiva, Arq. Jud. 40/97 – a CorteSuprema não teve dúvida em repor ascoisas em seus devidos lugares, repu-tando essencial a audiência do entepúblico, mas não as informações, por-que, no caso, prestadas por outro ór-gão, erroneamente indicado como res-ponsável, pelo impetrante, bastavamao esclarecimento de matéria de fato.

(...)14. O C. Pr. Civil de 1939, arts. 319

e ss., manteve, em substância, a disci-plina da L. 191/36, corrigindo-lhe, noentanto, a impropriedade terminoló-gica: o coator seria notificado, ‘a fimde prestar informações’ (art. 322, I), e apessoa jurídica de direito público in-teressada na ação citada para contes-tá-la (art. 322, II e § 2º); ‘quando a pes-soa do coator se confundir com a do repre-sentante judicial ou legal, da pessoa jurí-dica’ – esclarecia o Código (art. 322, §1º) –, ‘a notificação (...) produzirá tam-bém os efeitos da citação’.

15. O texto codificado, portanto,não deixava margem a hesitaçõesquanto a ser a parte passiva, não aautoridade coatora, mas a pessoa ju-rídica a que fossem imputáveis os seusatos de ofício.

16. Certo, a competência originá-ria para o mandado de segurança con-tinuou determinada segundo a hierar-quia da autoridade coatora. Por isso,prescreve o art. 324, § 1º, do Código,que, conclusos os autos, após vencidoo prazo para as informações e a con-testação, ‘se o juiz verificar que o atofoi ou vai ser praticado por ordem deautoridade não subordinada à sua ju-

risdição, mandará remeter o processoao juiz ou Tribunal competente’.

17. Surge a perplexidade com a L.1533/51, ainda vigente no ponto, quereduziu o mecanismo de cientificaçãodo pedido à notificação do coator ‘afim de que (...) preste as informações queachar necessárias’ (art. 7º, I); à autorida-de coatora, de resto, é que se comuni-cará por ofício o deferimento da segu-rança (art. 11).” (grifos são do origi-nal).

Com o advento da Lei nº 1533/51,portanto, modificou-se o procedimentoanteriormente previsto, que se inseria nasistemática ordinária de representação doprocesso civil.

Em face da comunicação da impetraçãotão-somente à autoridade e, por decorrência,da não-previsão de participação da pessoajurídica no feito – ao menos em primeira ins-tância – por meio dos seus representantescom capacidade postulatória, dedicou-se adoutrina, com reflexos na jurisprudência, aanalisar qual a natureza que revestia aatuação da autoridade no pólo passivo domandado, bem como se algum papel aindaera reservado à própria pessoa jurídica.

2.1. A autoridade coatora como representanteprocessual, com capacidade postulatória, dapessoa jurídica de direito público, que seria a

verdadeira parte passivaUm dos principais defensores dessa tese

é Celso Agrícola Barbi. Em obra datada de1966, o eminente Professor historia asposições até então formuladas, para entãoapresentar a sua teoria. Registrou que:

“Para Sebastião de Sousa, Lopesda Costa, Ari Florêncio Guimarãese Hamilton Moraes e Barros, partepassiva no mandado de segurançaé a autoridade coatora. Acrescentao primeiro que a pessoa jurídica dedireito público é litisconsorte neces-sária. Para o segundo, se a decisãovai repercutir no patrimônio da pes-soa de direito público, será caso deintervenção litisconsorcial. ..”2.

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“O eminente professor paulistaLuís Eulálio de Bueno Vidigal, ado-tando a técnica de Carnelutti, apresen-ta original formulação, em que distin-gue o sujeito da ‘lide’ e o sujeito da‘ação’: desta, seria o coator; e daque-la, seria o Estado, na maioria dos ca-sos, pois pode também haver proces-so sem lide. E, quando o Estado forsujeito passivo da lide, deverá ser ci-tado, sob pena de ineficácia da sen-tença, porque o art. 19 da Lei nº 1.533manda aplicar as regras do litiscon-sórcio, que aqui seria ‘necessário’”3.

“Pontes de Miranda, com poucaprecisão, diz que o mandado de segu-rança é impetrado contra o órgão e nãocontra a pessoa jurídica de direitopúblico, e afirma que esta é a deman-dada, embora o ato seja do órgão oudo executor”4.

“Seabra Fagundes, TemístoclesCavalcânti e Castro Nunes sustentamque a parte passiva é a pessoa jurídi-ca de direito público”5.

Com relação à tese de que a própria au-toridade seria a parte passiva, Barbi a refu-ta, sustentando que a relação jurídica dis-cutida no mandado de segurança não é en-tre o agente e o impetrante, mas sim entre apessoa jurídica e este.

“O ato que a autoridade coatorapratica, no exercício de suas fun-ções, vincula a pessoa jurídica dedireito público a cujos quadros elapertence: é ato do ente público e nãodo funcionário”6.

Ademais, os agentes, enquanto órgãos daadministração, não teriam personalidadejurídica ou capacidade processual.

Para repelir a construção de Luís Vidi-gal, o Professor mineiro acresce às críticasacima o fato de existirem ações sem lide –segundo a doutrina de Carnelutti –, fazen-do com que, nesses casos, os ônus do pro-cesso recaíssem sobre a autoridade, o queseria inadmissível.

Quanto a Pontes de Miranda, registraBarbi que a sua tese não enfrentaria o

problema, pelo contrário, seria contraditó-ria, ao afirmar que o impetrado é o órgão e ademandada a pessoa jurídica7.

Posiciona-se Barbi com Fagundes,Nunes e Cavalcânti, considerando a autori-dade coatora como representante da pessoajurídica de direito público, esta sim partepassiva no mandado de segurança:

“... o ato do funcionário é ato da entida-de pública a que êle se subordina. Seusefeitos se operam em relação à pessoajurídica de direito público. E, por lei, sóesta tem ‘capacidade de ser parte’ nonosso direito processual civil.

A circunstância da lei, em vez defalar na citação daquela pessoa, haverse referido a ‘pedido de informações àautoridade coatora’ significa apenasmudança de técnica, em favor dabrevidade do processo: o coator écitado em juízo como ‘representante’daquela pessoa, bem como notou Sea-bra Fagundes e não como parte”8.

Adhemar Ferreira Maciel segue a esteirado pensamento de Barbi, reiterando que, aseu ver, “a ré na ação de mandado de segu-rança não é a ‘autoridade coatora’, mas apessoa jurídica, da qual ela é órgão”9.

A vacilante jurisprudência do SupremoTribunal Federal chegou a sufragar esseentendimento, quando, ao apreciar a men-cionada Reclamação nº 367/DF, assim de-cidiu, a partir de voto médio do eminenteMinistro Sepúlveda Pertence:

“Mandado de segurança: legitima-ção passiva da pessoa jurídica dedireito público ou assemelhada, à qualseja imputável o ato coator, cabendo àautoridade coatora o papel de seurepresentante processual, pois que deidentificação necessária: conseqüentepossibilidade de sanar-se o erro doimpetrante na identificação da auto-ridade coatora, mediante emenda dainicial, para o que se determina aintimação da parte: voto médio dorelator para o acórdão.”

Aliás, ainda antes, em 1980, assim jáhavia decidido a Suprema Corte, conforme

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aresto na RTJ 97:374, Rel. Ministro MoreiraAlves:

“Auxiliar de Cartório. Tempo deServiço.

Inexistência de ilegitimidade daProcuradoria-Geral do Estado pararecorrer, uma vez que, nos mandadosde segurança contra atos do PoderExecutivo, do Poder Legislativo ou doPoder Judiciário, o sujeito passivo é apessoa jurídica de direito público aque pertence o órgão tido como coa-tor, ou seja, a União, o Estado ou oMunicípio.”

À caracterização, por lei específica, daautoridade coatora como representante dapessoa jurídica não identificamos óbices. Oque, todavia, parece-nos incompatível comas normas constitucionais pós-1988 éadmitir que, além de ser representante dapessoa jurídica de direito público, possa aautoridade coatora, em nome da pessoa ju-rídica pública, postular em juízo, defenden-do o ato atacado.

Isso porque os artigos 131 e 132 da Cons-tituição Federal atribuem, com exclusivida-de, à Advocacia-Geral da União, inclusiveProcuradoria-Geral da Fazenda Nacional,e às Procuradorias-Gerais dos Estados a re-presentação judicial dos entes públicos.

Essas normas objetivam, justamente,impedir que pessoas despreparadas, inclu-sive estranhas aos quadros do Estado, ve-nham a desempenhar a representação judi-cial das pessoas jurídicas de direito público.De fato, tanto para a Advocacia-Geral daUnião como para as Procuradorias dosEstados, a Constituição exige o ingresso nacarreira por meio de concurso público deprovas e títulos, sabidamente a forma maiseficiente e transparente de contratação porcritérios técnicos. São, aliás, carreirasintegrantes, pela relevância de suasatribuições, do rol das típicas de Estado,remuneradas mediante subsídios estatais(art. 135 c/c art. 39, § 4º, da ConstituiçãoFederal, com a redação dada pela EmendaConstitucional 19/98).

Dessa forma, não pode o legisladorordinário validamente atribuir a órgãos ouagentes estranhos a essas instituições acapacidade de postular em nome daspessoas jurídicas de direito público erepresentá-las judicialmente, por afronta aodesiderato constitucional.

De notar que a representação judicialdessas entidades por agentes não-integran-tes dos órgãos competentes acaba porprejudicar inelutavelmente o exercício dodireito de defesa, na medida em que passama ser defendidas judicialmente por pessoasnão-qualificadas oficialmente para tanto e,especialmente no caso de autoridadescoatoras que exercem cargos não-privativosde bacharéis em Direito, sequer com forma-ção acadêmica minimamente adequada aoexercício do mister.

Enrico Tullio Liebman já registrava que“as partes não têm, geralmente, osconhecimentos do direito e da técnicado processo, necessários para poderdefender eficazmente as suas razõesem juízo; de outro lado, trazem para acontrovérsia uma passionalidade queprejudica o curso ordenado da fun-ção judiciária. Por isso, exigências aomesmo tempo de interesse privado epúblico tornam preferível entregar atarefa de operar efetivamente no pro-cesso a pessoas especialmente prepa-radas, as quais, em razão da cultura,experiência e hábito profissional, sai-bam portar-se no trato das razões doslitigantes com aquela serenidade eaquela competência específica que fal-tam às partes. São essas, em brevespalavras, as razões que tornam indis-pensável, desde tempos antigos, a co-laboração dos advogados na obra deadministração da justiça10”.

Admitir, pois, que a Lei nº 1.533/51instituiu hipótese de a autoridade coatorapostular em juízo em nome da pessoa jurí-dica de direito público implica aceitar que olegislador ordinário possa determinar fiqueo ente público em posição de desvantagem

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no exercício do seu direito de defesa, namedida em que feita por representante não-preparado para esse fim. A nosso ver, essaconclusão arranha o princípio constitucionalda ampla defesa, que assegura a todos a ga-rantia de ser defendido da maneira mais am-pla e adequada possível (art. 5º, inciso LV).

Logo, se a Lei nº 1.533/51 efetivamenteadmitiu a postulação em juízo das pessoasjurídicas de direito público por meio da au-toridade coatora, não temos dúvidas em afir-mar que essa norma não foi recepcionadapela Constituição Federal de 1988, seja emface da garantia da ampla defesa, seja pelavedação à representação judicial dos entespúblicos por órgãos estranhos à Advocacia-Geral da União ou às Procuradorias dosEstados e dos Municípios (onde houver).

Nem mesmo o fato de o mandado de se-gurança ser garantia constitucional permiteaceitar tenha sido consagrada uma exceçãoà representação judicial dos entes públicospelos órgãos adequados, pois o preceito doartigo 5º, inciso LXIX, não pormenoriza as-pectos da relação processual ou da repre-sentação judicial dos entes públicos. O men-cionado dispositivo tão-somente estipulaque será concedido mandado de segurançapara proteger direito líquido e certo violadoou ameaçado por ato ilegal ou abusivo deautoridade. Isso, todavia, não implica a ne-cessidade de ser a pessoa jurídica represen-tada judicialmente pela própria autoridadecoatora. Pelo contrário, a existência de umaoutra norma constitucional instituindo aexclusividade da representação judicial daspessoas jurídicas por órgãos específicosdeve ser combinada com a garantia domandado de segurança. Impõe-se ao intér-prete construção que as observe conjunta-mente, em homenagem ao princípio da uni-dade da constituição, assim assinalado porCanotilho:

“O princípio da unidade hierár-quico-normativa significa que todasas normas contidas numa constitui-ção formal têm igual dignidade (nãohá normas só formais, nem hierarquia

de supra-infra-ordenação dentro da leiconstitucional). Como se irá ver emsede de interpretação, o princípio daunidade normativa conduz à rejeiçãode duas teses, ainda hoje muitocorrentes na doutrina do direito cons-titucional: (1) a tese das antinomias nor-mativas; (2) a tese das normas constitu-cionais inconstitucionais. O princípio daunidade da constituição é, assim,expressão da própria positividadenormativo-constitucional e um impor-tante elemento de interpretação.

Comprendido desta forma, o prin-cípio da unidade da constituição éuma exigência da ‘coerência narrati-va’ do sistema jurídico. O princípioda unidade, como princípio de deci-são, dirige-se aos juízes e a todas asautoridades encarregadas de aplicaras regras e princípios jurídicos, nosentido de as ‘lerem’ e ‘compreende-rem’, na medida do possível, como sefossem obras de um só autor, expri-mindo uma concepção correcta do di-reito e da justiça (Dworkin)11”.

Ainda que partindo de premissas umpouco distintas – admitindo ‘disposições demaior ou menor hierarquia’ no texto consti-tucional –, Rodolfo Luis Vigo tambémressalta a importância da unidade consti-tucional, privilegiando uma interpretaçãoque não ponha as normas constitucionaisem conflito:

“La propriedad de la unidad evita quelos diferentes enunciados sean interpreta-dos sin tener en cuenta el resto del bloquenormativo al que pertenece; pues si hayun plan o una estructura armónica, no esposible, sin correr serios riesgos de error oincoherencia, el despreocuparse por eltodo; la parte sólo es tal en tanto integradaal todo”12.

Não havendo, pois, qualquer dificul-dade em assegurar a garantia do mandadode segurança ao lado da regra que estipu-la a representação judicial das pessoasjurídicas de direito público pelos seus

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órgãos definidos nos artigos 131 e 132, im-põe-se sejam ambas igualmente observadas.

A partir da promulgação da Constitui-ção de 1988, portanto, é inadmissívelconsiderar possa a pessoa jurídica de direitopúblico estar sendo representada e tendoseus interesses postulados judicialmente pormeio de uma autoridade não-integrante dosórgãos constitucionalmente consagradospara tanto.

Essa, aliás, é a lição que Sérgio Ferraz játrouxera:

“... quando se vê que à Advocacia-Geral da União, à Procuradoria-Ge-ral da Fazenda Nacional e às Procu-radorias dos Estados, Municípios e doDistrito Federal incumbe (artigos 131e 132 da CF de 1988), com exclusivi-dade, a representação judicial daspessoas jurídicas de capacidade polí-tica, perde sentido tentar responder aoproblema com as possíveis especifici-dades da Lei 1.533, que contra a LeiMagna não prevalecerão. A soluçãoconstitucional é, pois, inequívoca: par-te, também no mandado de segurança, é apessoa jurídica de direito público, aque vinculada a autoridade coatora.E essa pessoa jurídica só atua atravésdos representantes indicados nos ar-tigos 131 e 132 da Constituição, o quetorna obrigatória sua citação, indepen-dentemente da notificação do coator,para prestar informações13”.

Acrescentamos, ainda, que, mesmo antesda entrada em vigor da nova Carta, a tesesob exame já se afigurava incoerente, namedida em que a representação processualpela autoridade era admitida apenas emprimeira instância. Ora, caso a autoridadefosse efetivamente a mais adequada repre-sentante judicial do ente público, deveriamanter-se nessa posição até final julgamen-to do processo. Não há, nesse particular,razão para impedir pudesse a autoridade,em nome do ente público, recorrer.

Na verdade, a construção jurispruden-cial de admitir a interposição de recursos

somente por meio dos órgãos especializadosna representação judicial dos entes públi-cos demonstra, por si só, que a autoridadecoatora não deveria – e nem poderia, em facedo seu despreparo – estar sozinha no pro-cesso, exercendo a defesa do ente público.

O que, de fato, parece-nos ter regulado aLei nº 1.533/51 – a exemplo dos diplomasanteriores – foi a participação no mandadode segurança da autoridade coatora comopresentante, sem capacidade postulatória, doórgão da pessoa jurídica de direito públicoque se alega estar atuando ilegalmente oucom abuso de poder. É o que veremos maisadiante.

2.2. A autoridade coatora como substitutoprocessual (parte legitimada

extraordinariamente)

Inicialmente, por uma questão de preci-são semântica, cumpre destacar que o subs-tituto processual é parte:

“Quando o legitimado extraordi-nário litiga sozinho, não há dúvidasquanto à sua qualidade de parte, por-que exerce o direito de ação devida-mente autorizado em lei. Não é, por-tanto, terceiro. Exemplo típico é o dasubstituição processual, em que parteé o substituto e não o substituído”(Greco Filho)14.

Dessa forma, aparentemente haveriacoincidência entre essa posição e aquelaregistrada no item 2.3., que também entendeser a autoridade parte. No entanto, aessência da distinção entre as duas hipóte-ses reside na espécie de legitimação: paraos adeptos da corrente apresentada nesteitem, a autoridade coatora é parte legitima-da extraordinariamente, enquanto para osda exposta no item 2.3., a autoridade é partecom legitimidade ordinária, defendendodireito próprio, enquanto agente público.

Antônio de Pádua Ribeiro, com espequeem Amaral Santos, é um dos autores quesustenta ser a autoridade coatora substitu-ta processual da pessoa jurídica de direitopúblico:

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“O impetrado é a autoridade coa-tora, que figura no processo como subs-tituto processual da pessoa jurídica dedireito público, e, portanto, como par-te em sentido formal. Parte em sentidomaterial é a pessoa jurídica da qual aautoridade coatora é órgão. Tal colo-cação da autoridade coatora comosubstituto processual não é referida,em geral, pelos doutrinadores. Quema propôs, de forma magistral, foi oinsigne Amaral Santos.

Tal posicionamento da autorida-de coatora é convincente, pois, na ver-dade, não funciona em defesa de di-reito próprio, mas alheio. Ademais,permite resolver importantes questõesprocessuais. Primeiramente, é de ver-se que a sentença contra o substitutoprocessual atinge o substituído. De ou-tra parte, nada impede que a pessoajurídica ingresse no processo como li-tisconsorte da autoridade coatora”15.

Como decorrência desse entendimento,Ribeiro entende que a autoridade coatorapode recorrer, ao lado da pessoa jurídica16.

Também é adepto dessa tese CândidoRangel Dinamarco, exposta em conferênciaproferida em 1979, antes, portanto, da Cons-tituição de 1988. Na oportunidade, salien-tou o ilustre mestre:

“De regra e mais comumente,quando se impetra o mandado de se-gurança, o titular da eventual relaçãojurídica com o impetrante é uma pes-soa jurídica. Normalmente, é o Esta-do de São Paulo, ou a Municipalida-de de São Paulo, ou a União, ou algu-ma autarquia, o titular da relação ju-rídica controvertida posta no proces-so pela impetrante. No entanto, a leiconfere legitimidade passiva ao pró-prio autor do ato impugnado. É casotípico, conforme muito bem ressalta-do pelo Min. Moacyr Amaral Santos,em artigo publicado sobre ‘A Nature-za Jurídica no Mandado de Seguran-ça’, nos arquivos do Ministério da Jus-

tiça, vol. 114, é caso típico, repito, desubstituição processual ou de legiti-mação extraordinária. Alguém, semser titular de uma relação jurídica con-trovertida, tem, no entanto, titularida-de de uma posição no processo. Auto-ridade coatora é, portanto, o substitu-to processual da pessoa jurídica dedireito público, nela encarnada na-quele momento”17.

Sérgio Ferraz18 cita que Coqueijo Costa19

e o próprio Hely Lopes Meirelles20 tambémteriam já defendido essa posição.

Essa corrente doutrinária, pautada emfortes argumentos teóricos, não resolve,todavia, o problema da carência de capaci-dade postulatória para a autoridade atuardiretamente no processo, sem representaçãopelos órgãos constitucionalmente para tantoinstituídos.

Cumpre notar, ainda, que, na substitui-ção processual, o substituto assume os ônusprocessuais, inclusive custas, o que, comtoda evidência, não ocorre no mandado desegurança.

2.3. A autoridade coatora como partelegitimada ordinariamente

Sobre os autores que advogam essaposição, cumpre, inicialmente, registrar quealguns pugnam pela existência de litiscon-sórcio passivo necessário entre a autoridadee a pessoa jurídica e outros pela existência,a priori, apenas da autoridade coatora comoré, facultada a intervenção, como assistente,da pessoa jurídica de direito público.

Hely Lopes Meirelles, na sua clássicaobra sobre Mandado de Segurança, AçãoPopular e outras ações constitucionais,entende que

“o impetrado é a autoridade coatora ,e não a pessoa jurídica ou o órgão aque pertence e ao qual seu ato é impu-tado em razão do ofício”21.

Nesse contexto, admite possa a pessoajurídica de direito público ingressar no feitocomo assistente:

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“Nada impede, entretanto, que aentidade interessada ingresse nomandado a qualquer tempo, comosimples assistente do coator, recebendoa causa no estado em que se encontra,ou, dentro do prazo para as informa-ções, entre como litisconsorte do impe-trado, nos termos do art. 19 da Lei1.533/51”22.

Alfredo Buzaid, após analisar a tese deque a autoridade coatora seria representanteda pessoa jurídica, registra que

“... sujeitos passivos do mandado desegurança são a autoridade coatora e apessoa jurídica de direito público,unidos por litisconsórcio necessário”23.

Apesar de provocar leituras díspares24,parece-nos que também Pontes de Mirandapostula a existência de litisconsórciopassivo entre a autoridade coatora e apessoa jurídica. De fato, em sua obra,consignou em diversas passagens a neces-sidade de ambos figurarem na lide:

“Mas a pessoa jurídica é inelimi-nável, na relação jurídica processual:tem de ser citada (Lei nº 1.533, art. 6º;Código de Processo Civil, arts. 158 e159, a que o art. 6º da Lei nº 1.533 serefere). O demandado é ela. Por issoquem fala, como demandado, é pessoajurídica, embora o ato seja do órgão,ou do executor. A particularidade con-siste em que a decisão vai diretamenteao coator, em vez de ir à pessoa jurídi-ca, para que a mande cumprir”25.

“O mandado de segurança é impe-trado contra o órgão, e não contra apessoa jurídica. Seguiu essa via de téc-nica legislativa a própria Constituiçãode 1946, nos arts. 101, I, i)... Em vez deadotar o princípio da responsabilidadepelo ato do órgão, como acontece nasações em geral, notadamente na açãode indenização por ato ilícito, ato-fatoilícito ou fato stricto sensu ilícito, prefe-riu-se o princípio da imediatidade de le-gitimação. Tanto na Constituição de

1946 quanto na lei sôbre a ação demandado de segurança”26.

“As informações são prestadaspelo coator, no prazo de cinco dias27;a citação para a contestação é feita aoprocurador judicial da pessoa jurídi-ca de direito público, ou, na falta, aoórgão ou representante da pessoajurídica de direito público (nunca àpessoa de direito privado, que seacha na situação do art. 1º, § 1º, daLei nº 1.533). (...)

É preciso que não se confunda coma unidade estatal (União, Estadomembro, Distrito Federal, Município),ou autarquia, que é interessada nofeito, a autoridade a que se atribui aprática do ato ilegal. A citação àquela(= notificação ao órgão daquela) ou aalgum representante (representante, enão órgão) e a notificação à autoridadeofensora ou ameaçante não se equi-valem, nem aquela pode suprir afalta dessa”28.

A ilustre Professora Lucia Valle de Fi-gueiredo, embora não o diga expressamen-te, aderiu à tese de ser a autoridade coatoraré no mandado de segurança, na medidaem que defende

“... ser indispensável à defesa dos in-teresses da pessoa jurídica de direitopúblico sua citação como litisconsor-te necessário...”29.

De fato, para haver litisconsórcio exige-se a existência de duas partes no mesmo póloda ação. Assim, seriam partes a autoridadee a pessoa jurídica.

Na jurisprudência, aliás, encontramosacórdãos do E. Tribunal Regional Federalda 1ª Região sufragando a tese da existênciade litisconsórcio passivo necessário entre aautoridade coatora e a pessoa jurídica dedireito público, conforme noticia o DJU de6/4/98, p. 276:

“Tributário. Seguridade Social.Descontos. MP nº 1.415/96 e suas re-edições. Ilegalidade. Servidor públicoaposentado. Legitimidade passiva da

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autoridade coatora. Litisconsórciopassivo necessário. União Federal.Questão da constitucionalidade. Prin-cípio da anterioridade.

1. A autoridade coatora é aquelaque pratica o ato impugnado. Entre-tanto, faz-se necessária a presença daUnião Federal na lide como litiscon-sorte passiva necessária. Precedentesda Corte”30.

O Supremo Tribunal Federal, todavia,parece estar atualmente entendendo queapenas a autoridade é parte passiva nomandado, conforme salienta o MinistroSepúlveda Pertence no julgamento doMandado de Segurança nº 21.392-2-DF, emjunho de 199531:

“Sr. Presidente, na Reclamaçãonº 367, de 5-2-93, dediquei longo votoà questão. Concluí, em síntese, que nomandado de segurança a autoridadecoatora não é a parte passiva da rela-ção processual, que esta é a entidadepública à qual sejam impetrável (sic)32

o ato ou omissão questionadora.A autoridade coatora é a represen-

tante processual da parte. Mas – e aquidissenti do em. Ministro Marco Auré-lio – o processo de mandado de segu-rança tem peculiaridades que deter-minam, como ônus necessário, a indi-cação de quem seja a autoridadecoatora, até porque dela depende adeterminação da competência, alémde ser a destinatária direta do man-dado resultante da sentença de pro-cedência do pedido.

Por isso raciocinei, naquele caso, echeguei à conclusão de que era possí-vel, não, de logo, corrigir a indicaçãoequivocada da autoridade coatora,porém, possibilitar ao autor, ao impe-trante, que o fizesse em prazo assinadopelo Tribunal.

Naquela oportunidade, a minhaposição prevaleceu como voto médio.Sou informado, todavia, de que, emdecisões posteriores, a maioria voltou

a manifestar-se no sentido de que aautoridade coatora é parte passiva nomandado de segurança, e, conseqüen-temente, não pode o juiz nem alterá-lade ofício, quando equivocadamenteindicada, nem viabilizar essa altera-ção, no curso do processo, já vencidoo prazo preclusivo para impetração.

Os precedentes indicam orienta-ção firme da maioria do Tribunal”.

Aliás, ainda anteriormente (em 1974), aExcelsa Corte já havia fixado entendimentonesse sentido, ao consignar ser cabível aassistência da pessoa jurídica à autoridadecoatora (com efeito, só se pode ser assistentede quem é parte):

“Mandado de Segurança. Assis-tência. Pode a pessoa jurídica de di-reito público intervir como assistentede seu funcionário, apontado comocoator, em mandado de segurança.”(RTJ 72:220, Rel. Min. Rodrigues Al-ckmin)

Entendemos, todavia, que, em face doobjeto do mandado de segurança e do pro-cedimento previsto na Lei nº 1.533/51, nãohá como considerar a autoridade coatoracomo parte legitimada ordinariamente.

Com efeito, a relação jurídica que o im-petrante ataca no âmbito do mandado desegurança é a que mantém com a pessoa ju-rídica de direito público, especificamente noque diz respeito a atuação de um dos seusórgãos. O impetrante não litiga em face doagente público. O que ele pede é que um dosórgãos do Estado atue legalmente.

Lembre-se, conforme lição do douto Wal-ter Claudius Rothenburg, que, nas relaçõescom as pessoas jurídicas de direito público,

“... condutas faticamente realizadaspor seres humanos na qualidade deórgãos (‘presentantes’) devem ser cre-ditadas ao próprio ente coletivo: ‘...quando o prefeito atua por conta daMunicipalidade, não o faz por vonta-de própria, mas sim pela manifestavontade do Município’ (Pierangelli,ob. cit., p. 283, citando exemplo de

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Achiles Mestre). Essa ilustração res-salta um aspecto peculiar à condutados indivíduos investidos de umafunção pública, qual o da obrigatorie-dade (poder-dever) – que evidenciaainda mais a distinção entre um com-portamento atribuível ao indivíduo emsi mesmo considerado e um compor-tamento adotado enquanto órgão(‘presentando a pessoa jurídica’).”33

Assim, o que se ataca no âmbito do man-dado de segurança é um ato do Estado, pra-ticado, obviamente, pelo titular de um dosseus órgãos, já que são eles que exprimem erealizam em concreto a vontade do Estado,conforme clássica lição do ilustre Professorlusitano Marcello Caetano:

“Órgão é o elemento da pessoa co-lectiva que consiste num centro insti-tucionalizado de poderes funcionaisa exercer pelo indivíduo ou pelo colé-gio de indivíduos que nele estiveremprovidos com o objectivo de exprimira vontade jurìdicamente imputável aessa pessoa colectiva.

Dizemos que o órgão é um elemen-to da pessoa colectiva porque o subs-trato desta compreende essencialmen-te: – um interesse protegido, uma comu-nidade de pessoas determinada poresse interesse ou um património afec-tado à sua prossecução, e órgãos queexprimam a vontade necessária à rea-lização jurídica do interesse.

O órgão faz parte da pessoa colec-tiva, pertence ao ser, exactamente comoacontece com os órgãos da pessoahumana.

É através dos seus órgãos que apessoa colectiva conhece, pensa equer. O órgão não tem existência dis-tinta da pessoa, a pessoa não podeexistir sem órgãos. Os actos dos ór-gãos são actos da própria pessoa etudo quanto diz respeito às relaçõesentre os diversos órgãos da mesmapessoa colectiva tem carácter mera-mente interno.

O órgão é servido por vontades hu-manas, mas não se confunde com osindivíduos que são seus titulares. Adoutrina designa por titular ou suportedo órgão o indivíduo que desempenhafunções no órgão de uma pessoacolectiva. Há órgãos singulares, isto é,servidos por um só indivíduo, mas háoutros, órgãos colegiais, que são cons-tituídos por uma pluralidade de indi-víduos”34.

Nesse contexto, cumpre notar, como pre-cisamente lecionou Bandeira de Mello, que...

“A relação existente entre a vonta-de dos órgão (sic) e dos agentes, ou até,para nos expressarmos com maior ri-gor, entre a vontade do Estado e de seusagentes, é uma relação de imputação di-reta dos atos dos agentes ao Estado. Estaé, precisamente, a peculiaridade dachamada relação orgânica. A vontadedo agente é imputada diretamente ao Es-tado, ou seja, é havida como sendoprópria do Estado e não de alguémdiferente dele, distinto dele. O que oagente queira, no exercício de sua ati-vidade funcional – pouco importa sebem ou mal desempenhada –, enten-de-se ser o que o Estado naquele mo-mento quis, ainda que haja queridomal. O que o agente nestas condiçõesfaça é o que o Estado fez. Nas relaçõesexternas não se considera se o agenteobrou bem ou mal. Em suma: não sebiparte Estado e agente (como se fos-sem representante e representado)mas, pelo contrário, são consideradosuma unidade”35.

Diferentemente do mandado de seguran-ça, na ação popular, por exemplo, busca-se,além da responsabilidade do Estado, a deter-minação de eventual responsabilidade dopróprio agente, enquanto indivíduo pes-soalmente considerado; por isso ele é parte. Aação popular se presta à responsabilizaçãocivil do agente que tenha, culposa ou dolo-samente, praticado atos lesivos ao patrimô-nio das pessoas jurídicas de direito público

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ou entidades por elas controladas. Note-se,inclusive, que os próprios beneficiários deatos lesivos ao patrimônio são litisconsor-tes necessários nesta ação.

No mandado de segurança, todavia, oagente não é parte. Isso porque não cabe, noprocedimento célere do mandado, apurarresponsabilidade pessoal dele, inclusive porimplicar a determinação do elemento subje-tivo culpa ou dolo. Trata-se de matéria que,via de regra, sujeita-se a uma instrução pro-batória incompatível com a garantia dadaao cidadão de sumariamente obter uma or-dem obstativa de uma conduta ilegal ouabusiva da autoridade. O que o impetrantebusca ao requerer a segurança é, pois, tão-somente, sustar a prática de um ato admi-nistrativo que lhe está sendo lesivo, mas nãoa responsabilização do agente público.

Lembre-se ser pacífico que a responsabi-lidade do Estado é objetiva, enquanto a doagente é subjetiva: As pessoas jurídicas de di-reito público e as de direito privado prestadorasde serviços públicos responderão pelos danos queseus agentes, nessa qualidade, causarem a tercei-ros, assegurado o direito de regresso contra oresponsável nos casos de dolo ou culpa (CR, art.37, § 6º). O mandado de segurança circuns-creve-se, pois, à verificação objetiva da exis-tência de um ato ilegal ou abusivo de umórgão do Estado, visando a sua correção,enquanto para se responsabilizar o agenteimpõe-se a necessária apuração do elementosubjetivo da sua atuação. Por isso, o agentenão é parte individualmente considerada noestreito âmbito do mandado de segurança.

No que diz respeito ao procedimento,ocorre que a Lei nº 1.533/51 não deixa es-paço para a autoridade defender o méritodo seu ato. Cabe a ela prestar informaçõessobre a matéria de fato e o porquê da práticado ato (p. ex., que se trata de ato vinculado ouque foi ordenado por autoridade superior).Vale dizer, a ela cumpre informar, funda-mentadamente, se os fatos indicados na ini-cial são verdadeiros ou não, ou, ainda, sehá fatos impeditivos, modificativos ou ex-tintivos da pretensão. As informações pro-

duzem o efeito de colocar em dúvida a pro-va produzida pelo impetrante e, portanto,conduzem à necessidade de instrução, in-cabível no âmbito do mandado.

No entanto, fosse a autoridade parte, asua atuação não poderia se cingir a ‘prestarinformações’. A ela deveria ser necessaria-mente dada a oportunidade de ‘se defen-der’, contestando o pedido. Mas, para tan-to, novamente incidiria a necessidade deestar representada em juízo por advogado,único profissional habilitado a realizar ade-quadamente a sua defesa: o advogado éindispensável à administração da justiça (art.133 da CF).

Não há, portanto, como admitir a parti-cipação da autoridade no processo na qua-lidade de parte legitimada ordinariamente,seja pela imputação dos seus atos à pessoajurídica de direito público, seja pela inexis-tência de previsão, no procedimento, de atosconducentes à sua adequada defesa.

3. A inafastabilidade da consideração dapessoa jurídica como parte em face dos

efeitos da coisa julgadaDo até agora exposto, resulta, a nosso

ver, que nenhuma dessas teses isoladamen-te explica adequadamente o fenômeno dalegitimidade passiva no mandado de segu-rança e o papel que a autoridade coatoranele exerce.

No entanto, elas contêm os elementos ne-cessários à compreensão do fenômeno.

Inicialmente, cumpre destacar que apessoa jurídica de direito público é, efetiva-mente, a parte passiva legitimada para omandado de segurança.

De fato, é a pessoa jurídica de direitopúblico quem suporta os ônus da coisa jul-gada, especialmente os patrimoniais. Assim,não há como deixar de considerá-la parte.Basta, nesse sentido, verificar a dicção doartigo 472 do Código de Processo Civil, quepositiva um dos princípios básicos doprocesso civil: “A sentença faz coisa julga-da às partes entre as quais é dada, nãobeneficiando, nem prejudicando terceiros.”

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Ora, sendo quem verdadeiramente supor-ta os ônus da sentença – fato de que nenhumautor discorda –, é evidente que não poderiaa pessoa jurídica não ser considerada parteno mandado de segurança. Isso já é sufi-ciente para afastar cabalmente a teoria quediz ser a autoridade coatora – e somente ela– a parte passiva no mandado de segurança.Fosse assim, e uma sentença que mandassereintegrar funcionário público não poderiaresultar no pagamento dos vencimentos,pois estes são suportados pela pessoa jurí-dica, e não pelo agente. Aliás, a própria rein-tegração e a prestação de serviços pelo rein-tegrado já é fato que interfere em interessejurídico da pessoa jurídica, e não do agente.

Combinando-se a inafastabilidade daconsideração da pessoa jurídica de direitopúblico como parte no mandado de segu-rança em face dos limites subjetivos da coi-sa julgada com a exigência constitucionalde que esses entes sejam representados emjuízo exclusivamente pelos órgãos consa-grados nos artigos 131 e 132 da Carta de1988, chega-se facilmente a uma primeiraconclusão: no mandado de segurança, a pessoajurídica de direito público é parte legitimada or-dinariamente, devendo ser citada, em nome pró-prio, por meio dos órgãos de representação judi-cial previstos nos artigos 131 e 132 da Consti-tuição Federal.

Insistimos que esse entendimento ne-nhum prejuízo traz às características essen-ciais do mandado de segurança. Nem mes-mo a celeridade seria ameaçada, houvessenorma ordinária fixando menor prazo parao oferecimento da contestação e, ainda, queo mesmo se contaria da entrega do manda-do (ou ofício, se assim se desejar) e não dasua juntada aos autos. Exemplos, nesse sen-tido, não faltam, tais como o prazo reduzi-do para contestar nas medidas cautelaresou, ainda, o prazo de setenta e duas horaspara a pessoa jurídica se pronunciar sobrepedidos de liminar em mandado de segu-rança coletivo36 e ação civil pública.

Acrescente-se, outrossim, o que abaixoiremos expor, de não mais ser pertinente opronunciamento, em todos os casos, do Mi-

nistério Público no mandado de segurança.A mudança da Lei nº 1.533, nesse particular,tornaria o procedimento mais célere, pois (i)o parquet se pronuncia após o réu, enquantose poderia prever prazo comum para a pes-soa jurídica e a autoridade se manifestarem;(ii) o prazo do Ministério Público é impró-prio, sendo muitas vezes ultrapassado, e oda parte é próprio, fato que conduziria aoseu imprescindível atendimento.

Destaque-se, ademais, que a norma doartigo 3º da Lei nº 4.348/64 – que impõe aobrigação da autoridade coatora, em casode concessão da liminar, remeter ao órgãode representação judicial da pessoa jurídi-ca cópia do mandado e elementos para adefesa – não supre a necessidade de citaçãoda pessoa jurídica, pois trata-se de ato es-tranho à relação jurídico processual. Ade-mais, o preceito se aplica apenas nos casosde concessão de liminar.

De qualquer forma, não se pode, a pre-texto de garantir a celeridade, subtrair dapessoa jurídica o direito de exercer sua de-fesa. Vale, nesse sentido, a advertência deMauro Cappelleti e Bryant Garth, de, a parda indispensável necessidade de se aprimo-rar os mecanismos de acesso à justiça (como,aliás, é o caso do mandado de segurança,em especial o coletivo), não se abandona-rem as garantias conquistadas de um pro-cesso justo:

“El mayor peligro (que hemos tratadode considerar durante todo este trabajo) esque los procedimientos modernizados yeficientes abandonarán las garantiasciviles fundamentales: esencialmente lasde un adjudicador imparcial, y el derechode las partes a ser escuchadas. (...) Por muyimportante que pueda ser la innovación,no debemos olvidar el hecho de que,después de todo, se han forjado procedi-mientos sumamente técnicos a lo largo demuchos siglos de esfuerzo, para evitararbitrariedades e injusticias. Y aunque pordesgracia los procedimientos formales nofueron bien ideados para hacer valer losderechos ‘nuevos’ especialmente (aunqueno sólo) al nivel individual, sí sirven a

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ciertas funciones importantes, que no sedeben pasar por alto”37.

4. O verdadeiro papel da autoridadecoatora: mera presentante em juízo da

pessoa jurídica, sem capacidadepostulatória

Já vimos que a autoridade coatora nãodiscute no mandado de segurança relaçãojurídica própria, não tem a oportunidade defazer a defesa do mérito do ato e não possuicapacidade para postular em nome dapessoa jurídica de direito público.

Qual seria, portanto, o seu papel, mor-mente por ter a lei lhe dado função relevan-tíssima de prestar informações ao juízo e tera Constituição Federal fixado toda a distri-buição de competência em face da suahierarquia?

Parece-nos que a autoridade coatoracomparece ao processo apenas e tão-somente para prestar as informações sobrea matéria de fato, sem que, com isso, possa-lhe ser imputada a condição de represen-tante processual da pessoa jurídica. Aessência da sua atuação seria a de umpreposto da pessoa jurídica, que, por ser amelhor conhecedora dos fatos, vem a juízopara, sobre eles, pronunciar-se.

A figura da autoridade coatora lembra,de certa forma, aquela tradicional doprocesso do trabalho, da pessoa jurídicareclamada ir a juízo representada por umpreposto que tenha conhecimento dos fatos,além do seu advogado.

Nesse contexto, a autoridade coatora nãodesempenha a tarefa de defensora da pes-soa jurídica, embora, em face do princípioadministrativo da lealdade, nada obsta elatraga a juízo elementos que conheça para adefesa da atuação do órgão. Mas, ressalte-se, a autoridade não é a pessoa com a atri-buição específica de fazer essa defesa e a elanão está obrigada. A autoridade coatora nãodeduz pretensão em juízo.

Na doutrina, idéia semelhante é defen-dida por Sérgio Ferraz, que destacou:

“... a) parte passiva é a pessoa de direitopúblico (que, como tal, deve ser citada); b)o coator é mero informante; por não serparte, e por ser agente administrativo, estájungido ao dever da veracidade; c) comoinformante, pode postular sua perma-nência no feito, eis que legítima, emtese, sua pretensão de sustentação doato que cometeu ou omitiu; d) comonão é parte, o coator não tem, direta-mente (como tal se entendendo a legi-timação recursal que decorre do fatode ser litigante sucumbente), legitima-ção recursal, a não ser que intervenhatambém como terceiro, numa das mo-dalidades legalmente admissíveis; e)como parte é a pessoa jurídica, ela é aque diretamente se legitima para inter-por ou impugnar recursos (com muitarazão, Celso Bastos criticou, na nota derodapé supra referida38, o acórdão doColendo Pretório no RE 78.620, que dis-pôs poder a pessoa jurídica de direitopúblico intervir como assistente do fun-cionário coator. Assistente de quem nãoé parte?!)”39. (destaques nossos)

Sobre a posição de Ferraz, ressalvamos,todavia, que não podemos concordar coma possibilidade de a autoridade poder plei-tear seu ingresso no feito como terceiro inte-ressado, conforme demonstraremos maisadiante (item 5.2).

A presença da autoridade coatora dire-tamente em juízo adquire, ainda, grande re-levância para assegurar a efetividade domandado de segurança. De fato, ao exigir-se a correta identificação da autoridade,assegura-se que a eventual ordem judicialserá encaminhada à autoridade que efeti-vamente deve cumpri-la.

Sem desejar entrar na discussão sobre aexistência da categoria autônoma das açõesmandamentais (incabível no escopo destetrabalho), não podemos olvidar que pontocaracterístico fundamental do mandado desegurança é a expedição de uma ordem, pormeio de um mandado (ainda que inseridona sentença), do Juiz para a autoridade

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coatora. Fato, aliás, que dá origem ao nomedo instituto.

Pertinente, nesse aspecto, a conside-ração de Pontes de Miranda:

“A pretensão ao mandado de segu-rança é preponderantemente manda-mental. Não se precisa de ação deexecução da sentença proferida naação de mandado de segurança.Nem há nela mesma execução, quepudesse sugerir fôsse ação executi-va lato sensu. O juízo expede o man-datum de faciendo ou de non faciendo.É êsse mandado que representa aeficácia principal da sentença. Aparte não pediu sòmente que se de-clarasse ou condenasse, nem pediuque se constituísse, ou executasse odevedor; a parte pediu o mandamentocontra o que ameaçou ou violou,autoridade estatal, como o juiz, oualguém, com função delegada”40.

É pertinente notar que a autoridadecoatora não precisa ser parte para estarsujeita ao provimento do mandado de segu-rança. Na simples condição de órgão dapessoa jurídica, ela já está apta juridica-mente a receber a ordem judicial. O ofícioque o juiz encaminha com o teor da sen-tença (ou da liminar) à autoridade coato-ra equivale, assim, a uma intimação paracumprir a ordem judicial (CPC art. 234) eo seu não-acatamento implica a respon-sabilidade da autoridade.

Vislumbra-se, portanto, duplo funda-mento para a necessidade de correta iden-tificação, pelo impetrante, da autoridadecoatora: (a) propiciar a célere e fidedignacoleta de elementos de fato, por meio dasinformações e (b) assegurar a efetividadeda segurança concedida, de forma a quea ordem vá, diretamente, para quem tematribuição para cumpri-la.

É justamente a presença da autoridadecoatora no mandado de segurança que lhedá uma das suas características maismarcantes. Frise-se que toda a distribuição

de competências para processamento ejulgamento dos mandados de segurança éefetivada no plano constitucional em faceda hierarquia da autoridade. Isso, todavia,não faz com que ela seja parte ou se lhe sejaatribuída inusitada capacidade postulató-ria, apenas implica a imprescindibilidadeda sua presença em juízo, na condição depresentante do órgão coator – e, portanto,da pessoa jurídica, assegurando a efetivi-dade do provimento judicial.

O Superior Tribunal de Justiça, aliás, jámanifestou entendimento na linha do queora defendemos:

“Processual – Mandado de Segu-rança – Litisconsórcio entre a autori-dade coatora e o Estado – Impossibili-dade.

I – O processo de mandado de se-gurança tem como partes, de um lado,o impetrante e de outro, o Estado. Nele,a denominada ‘autoridade coatora’atua como órgão anômalo de comuni-cação processual.

II – O recurso interposto peloEstado, no processo de mandado desegurança desde que adimplidos seusrequisitos, é de ser conhecido comoapelo da parte sucumbente – não delitisconsorte ou de terceiro interessa-do.” (DJU 21-10-96, p. 40204. Rel. Min.Humberto Gomes de Barros).

Exceção que vislumbramos ao rigortécnico desse tratamento ocorre quando aprópria autoridade coatora for o agenteincumbido da representação judicial da pes-soa jurídica de direito público ou de um deseus órgãos. Trata-se de hipótese não rara,como no caso de mandados de segurançaimpetrados contra atos de Procuradores daRepública, da Fazenda Nacional e dosEstados. Aí não se justificaria a duplamanifestação da autoridade e do repre-sentante judicial da pessoa jurídica, poiso agente em face de quem se impetra a se-gurança já possui, legalmente, a atribui-ção de defesa judicial do órgão.

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5. Outros aspectos dessa construção

5.1. A legitimidade recursal da pessoa jurídicade direito público

Corolário do acima exposto é o reconhe-cimento da legitimidade recursal da pessoajurídica de direito público. Com efeito, sendoela a parte efetivamente legitimada, é elaquem pode recorrer.

Ao contrário, a autoridade coatora nãodetém essa legitimidade, haja vista que nãoé parte e tampouco possui capacidade pos-tulatória. Não merece reparos, portanto, ajurisprudência que assim vem entendendo.Deixamos, pois, de nos aprofundar nessetema, em face de, a nosso ver, não apresentarnovidades.

5.2. A impossibilidade de assistência oulitisconsórcio da autoridade

Matéria que, todavia, apresenta grandesdivergências na doutrina e na jurisprudên-cia diz respeito à possibilidade de a autori-dade ser assistente ou litisconsorte dapessoa jurídica (deixamos de analisar aquestão sobre o prisma inverso – possibili-dade de a pessoa jurídica ser litisconsorteou assistente da autoridade – pela evidenterazão de já termos concluído que ela é a efe-tiva parte legitimada ordinariamente).

Na doutrina, alguns dos autores adep-tos da posição de ser a pessoa jurídica parteentendem possa a autoridade – para defen-der interesse próprio – ingressar no feitocomo assistente da pessoa jurídica.

Celso Ribeiro Bastos registra:“Seriam muitos os fundamentos

que ainda poderiam ser aduzidospara demonstrar que o sujeito passi-vo da segurança é a pessoa jurídica enão a autoridade coatora, ou mesmoo órgão em que esteja integrada. Lem-bre-se, de passagem, o problema dascustas judiciais que, no caso de con-cessão do writ, estarão sempre a cargoda pessoa jurídica.

Nada obsta, todavia, a que aautoridade coatora permaneça no pro-

cesso até o seu final, mesmo depois dejá ter prestado as informações e de,eventualmente, já ter, a pessoa jurídi-ca a que pertença, vindo a assumir,através dos seus órgãos jurídicos, adefesa do ato impugnado.

Pode manter-se, a autoridadecoatora, na qualidade de assistenteuma vez que, como visto, da concessãoda segurança lhe poderão, de futuro,advir conseqüências desfavoráveis,configurando-se, destarte, seu interes-se processual em permanecer no feito.Em sendo assim, é legítima a sua even-tual pretensão de manter-se no pro-cesso objetivando a sustentação do atoque praticou ou que omitiu”41.

Sérgio Ferraz, conforme monografiadecorrente do Curso sobre Mandado deSegurança promovido pela Associação dosJuízes Federais em conjunto com o Institutodos Advogados do Brasil, a Associação dosAdvogados de São Paulo e o Instituto dosAdvogados de São Paulo, sustenta que,também pelo fato de a autoridade eventual-mente ter interesse próprio a defender(prevenindo futuras responsabilizações),poderia ela recorrer, na condição de terceirointeressado:

“... eu creio que a legitimação recursalaí se apresenta aberta em leque. Não éapenas, suponho, a pessoa jurídica dedireito público que tem legitimaçãopara recorrer. Eu diria que a autoridadecoatora também pode recorrer.

Evidentemente sou chamado a dizer porquê. Por uma de duas razões: para aquelesque entendem que se instaura um litiscon-sórcio entre a pessoa jurídica de direito pú-blico e a autoridade coatora, em razão destelitisconsórcio, parte sendo, recorrer poderia;doutra parte, uma outra hipótese que tam-bém legitimaria a possibilidade, é que sen-do em tese, potencialmente, essa autorida-de coatora responsabilizável, à vista do quedispõe o art. 107 da CF, teria, ainda que nãofosse parte, a postura de terceiro interessado,o que também a legitimaria a recorrer. Então,

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por uma circunstância ou por outra, creioque, ao contrário do que se entende hoje, aautoridade coatora poderia recorrer.

Mas, na verdade, não recorre por umdesses desvios, aqui do Brasil. Não vejonenhuma objeção para que a autoridadecoatora recorra. Evidentemente, ela o fará,nessa hipótese, submetida à preceituaçãoque deflui da Lei 4.215, recorre patrocinadapor advogado. Teria de constituir advoga-do que teria, realmente, capacidade postu-latória”42.

Não podemos, com o devido respeito,concordar com essa tese. De fato, o mandadode segurança é garantia constitucional afavor do cidadão, prevista para ser instru-mento célere de obtenção de medida judicialem face de ato ilegal ou abusivo do Estado.Admitir a discussão no estreito âmbito domandado de segurança de eventual respon-sabilidade do agente implicaria desvirtuar oinstituto. Lembre-se que para definição deresponsabilidade do agente seria imprescin-dível a apuração de culpa ou dolo. Issorequereria evidente instrução probatória,incabível no estreito âmbito do mandado.

Ainda que a impetração esteja funda-mentada em atuação abusiva do agente – enão em ilegalidade do órgão 43 –, não hácomo cindir, para fins de concessão dasegurança, um do outro. Reportamo-nos aodito acima – item 2.3. – com relação à com-paração da ação popular com o mandadode segurança. Naquela ação, sem dúvida,busca-se apurar – além da responsabilida-de objetiva do Estado – a responsabilidadesubjetiva do agente e, inclusive, de terceirosbeneficiários. No mandado não, o que sequer é tão-somente a obstrução à atuaçãoilegal do Estado em face de direito indivi-dual do impetrante, não importando seja ailegalidade imputável ao agente ou não.

Embora a autoridade possa até ter inte-resse remoto no desfecho da lide posta nomandado de segurança (a improcedência dopedido de mandado pode por ela ser dese-jada como forma de afastar qualquer possi-bilidade de regresso pela pessoa jurídica), é

evidente que eventual concessão da segu-rança não produz efeitos jurídicos na suaesfera de interesses (do agente pessoalmen-te considerado), pois qualquer responsabi-lização dependerá de processo específico.

O procedimento de mandado de segu-rança não é, portanto, o adequado para aautoridade coatora fazer a sua defesa, atémesmo por não ser no seu estreito âmbitoque lhe será imputada qualquer responsa-bilidade pessoal pelo ato ilegal ou abusivo.

Em última análise, permitir a participa-ção do agente no âmbito do mandado desegurança para defender interesse próprioacabaria por admitir, até mesmo, a possibi-lidade de a pessoa jurídica eventualmentedenunciá-lo à lide, com inestimáveis pre-juízos à celeridade no processamento da me-dida. Ou, ainda que isso não ocorra, a sim-ples assistência, de certa forma, já prejudicaa celeridade, em face do aumento do núme-ro de atos cartorários e judiciais a praticar.

Essa, aliás, parece-nos ter sido a ratio daalteração introduzida na redação do artigo19 da Lei nº 1.533/51 pela Lei nº 6.071/74,suprimindo do texto legal a previsão de as-sistência no mandado de segurança. Sendoa assistência uma participação voluntáriano processo, não é imprescindível para aconcessão do provimento judicial, ao con-trário do litisconsórcio, quando necessário.

O Supremo Tribunal Federal registraprecedentes nesse sentido, alterando seu an-terior posicionamento:

“Processual Civil. Mandado deSegurança. Concessão de serviço pú-blico. Interesse na causa alegado pelaUnião Federal. Pedido de assistência(inadmissibilidade).

Mostra-se correto o entendimentofirmado pelo v. acórdão recorrido nosentido do descabimento de assistênciano mandado de segurança, tendo emvista o que dispõe o art. 19 da Lei nº1.533/51, na redação dada pela Leinº 6.701/74, que restringiu a interven-ção de terceiros no procedimento dowrit ao instituto do litisconsórcio.

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Sendo parte ilegítima para recor-rer, como assistente, considera-seinexistente o recurso extraordináriointerposto pela União Federal.” (RTJ123:722)

No seu voto, o eminente Ministro CélioBorja, Relator, consignou, a nosso veracertadamente, que:

“... mostra-se correto o entendimentoesposado pelo v. acórdão recorrido, nosentido do descabimento da assistên-cia em mandado de segurança, tendoem vista o que dispõe o art. 19 da Leinº 1.533/51, na redação que lhe foidada pela Lei nº 6.071, de 3-7-74...

13. Houve preocupação do legis-lador, como se nota, no sentido deafastar outras figuras de intervençãode terceiros do procedimento do writ,o que não ocorria quando da vigênciado CPC de 1939, visto que a redaçãodo referido art. 19 da Lei nº 1.533/51dizia, então, serem aplicáveis os arts.88 a 94 do Código, dispositivoscolocados no ‘Capítulo II – DosLitisconsortes’, sabendo-se, porém,que o art. 93, neles incluído, cuidavade assistência.

14. Tanto é assim que, no julga-mento do RE 78.620/GB (RTJ 72/220),invocando o Código de 1939, esseColendo STF admitiu a assistência emmandado de segurança, o que hoje nãoé mais possível, ante a claríssima reda-ção do art. 19, da lei de mandamus.”

5.3. A revisão do papel do Ministério Público

O art. 10 da Lei nº 1.533/51 estipula que,após as informações, deve ser “ouvido o re-presentante do Ministério Público”. A dou-trina e a jurisprudência são unânimes emafirmar que se trata de caso de manifesta-ção obrigatória do membro do parquet, inde-pendentemente da matéria versada.

Com efeito, atualmente a manifestaçãodo Ministério Público no mandado de segu-rança adquire relevante papel, enquantoúnico pronunciamento – ao menos na Justi-

ça de primeira instância – sobre a matériade direito posta pelo impetrante. Isso por-que os representantes judiciais da pessoajurídica de direito público permanecem au-sentes do processamento da medida.

No passado (antes da CF de 1988 e daLei Complementar nº 73/93, que instituiu aAdvocacia Geral da União) – ao menos noplano federal –, essa sistemática era até ad-missível, em face de, à época, caber ao Mi-nistério Público tanto a missão de ser repre-sentante judicial da União Federal como ade ser defensor da ordem jurídica, comocustos legis. Dessa forma, embora chamadoa se manifestar na condição de custos legis,em face dessa confusão de missões, poderiaaté se admitir – sob um prisma meramentepragmático – que a sua intervenção sanavao vício de falta de manifestação da Uniãosobre o direito invocado pelo impetrante.

Mas, com a Constituição de 1988, asfunções atribuídas ao Ministério Públicoforam profundamente modificadas. De fato,o artigo 127 da Constituição Federal incum-biu o Ministério Público da “defesa daordem jurídica, do regime democrático e dosinteresses sociais e individuais indisponí-veis” e o artigo 129, inciso IX, vedou-lhe arepresentação judicial e a consultoria jurí-dica de entidades públicas.

O parquet deixou, assim, de atuar tam-bém como representante judicial da pessoajurídica de direito público, função agora atri-buída à Advocacia Geral da União. Comisso, o Ministério Público passou a ser, ex-clusivamente, instituição dedicada à defe-sa dos interesses da coletividade.

Assim, não se pode mais – por expressavedação constitucional – sequer imaginarpossa a manifestação do Ministério Públicosuprir a falta de manifestação do represen-tante judicial dos entes públicos. Essa,conforme insistimos, é imprescindível, en-quanto ato de defesa da pessoa jurídica.

Ao mesmo tempo, a doutrina e a juris-prudência sobre o mandado de segurançaadmitem – a nosso ver acertadamente – oemprego da medida em face de qualquer tipo

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de lesão por ato de autoridade, independen-temente da natureza e da complexidade damatéria discutida, desde que a pretensãocaracterize direito líquido e certo, enquantoprescindível de instrução probatória.

Destarte, no âmbito do mandado desegurança, discutem-se, muitas e muitasvezes, matérias de exclusivo interessepatrimonial do impetrante e da Fazenda Pú-blica, sem maior relevância para o interessepúblico primário, aquele defendido peloMinistério Público. Fossem, aliás, essas pre-tensões deduzidas pela via ordinária e, comtoda certeza, não se reclamaria a atuaçãodo Ministério Público, justamente pela na-tureza do interesse público envolvido (emi-nentemente patrimonial da Fazenda Públi-ca). É o caso típico das discussões sobrematéria tributária, nas quais se acoima deilegal (ou inconstitucional) ato praticadopela autoridade no âmbito de uma ativida-de administrativa plenamente vinculada.

Parece-nos, com o maior respeito a opi-niões em contrário, que essas demandas nãoatraem necessariamente a participação doparquet. Com efeito, não seria o procedimen-to – do mandado de segurança – fundamentosuficiente para atrair a atuação do MinistérioPúblico, pois a instituição deve ser chama-da a atuar em juízo em razão da matériadiscutida, de acordo com as funções a elaatribuídas constitucionalmente.

Aplicáveis seriam, nesse caso, as regrasdo artigo 82 do Código de Processo Civil e aconstrução doutrinária e jurisprudencialdesenvolvida em torno do seu inciso III.

Vale dizer, embora o legislador tenhaquerido, em 1951, interviesse o MinistérioPúblico em todos os mandados de seguran-ça, com a nova distribuição de funções entreas instituições jurídicas constitucionais, oparquet deve ser chamado a se manifestarapenas quando se tratar de matéria perti-nente ao interesse público que lhe incumbedefender.

Apesar de se tratar de garantia consti-tucional, não nos parece que isso seja su-ficiente para exigir a intervenção do parquet

em todos os feitos, mormente pela imensaquantidade de impetrações que buscam dis-cutir interesse patrimonial do impetrante eda Fazenda Pública.

Não queremos, com essa interpretação,dizer que é vedado ao legislador manter aintervenção do Ministério Público em todosos mandados de segurança (com espequena autorização do art. 129, IX, da Constitui-ção, quando diz que a instituição pode “exer-cer outras funções que lhe forem conferidas,desde que compatíveis com sua finalida-de”). No entanto, ela não se reveste mais deum caráter de imprescindibilidade.

Aliás, em uma releitura atual do dispo-sitivo do artigo 10 da Lei nº 1.533/51 –conforme a Constituição de 1988 –, nãoencontramos essa obrigatoriedade de oMinistério Público se manifestar, mas ape-nas de o Juiz remeter-lhe os autos, para, en-tão, verificar se se trata de matéria inseridano rol do artigo 82 do CPC a exigir seupronunciamento.

De lege ferenda, todavia, defendemos quenem mesmo essa remessa obrigatória deve-ria ocorrer, seguindo-se a sistemática do pro-cesso civil ordinário: o juiz verificaria a pre-sença do interesse público primário, subme-tendo o seu entendimento, quando conclu-sivo pela sua existência, ao membro doMinistério Público; ou o próprio membro doparquet solicitaria o processo para exame,caso tivesse notícia de impetração relacio-nada com o interesse público primário. Essamedida agilizaria imensamente o processa-mento dos mandados de segurança, propi-ciando maior celeridade.

6. ConclusõesEm suma, podemos concluir que:a) no mandado de segurança, a pessoa

jurídica de direito público é parte legitimadapassiva ordinariamente;

b) a autoridade coatora não é sua repre-sentante judicial, pois não possui capaci-dade postulatória;

c) a autoridade coatora tampouco é subs-tituto processual da pessoa jurídica de

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direito público, em face, também, da suacarência de capacidade postulatória;

d) os órgãos que detêm capacidade pos-tulatória para representar as pessoas jurí-dicas de direito público são aqueles discri-minados nos artigos 131 e 132 da Constitui-ção Federal: a Advocacia Geral da União, aProcuradoria Geral da Fazenda Nacional,as Procuradorias dos Estados e as Procura-dorias dos Municípios, onde houver;

e) a autoridade coatora também não éparte legitimada ordinariamente, pois nãodiscute relação jurídica sua, mas da pessoajurídica à qual seus atos como órgão sãoimputados;

f) a autoridade coatora é presentante emjuízo da pessoa jurídica, mas não postulaem seu nome. À autoridade incumbe pres-tar informações sobre a matéria de fato –inclusive fatos modificativos, extintivos ouimpeditivos do direito invocado pelo impe-trante –, mas não fazer a defesa do méritodo ato. Ademais, é em face dela que se expe-de a ordem com a segurança, fato que impli-ca a sua inafastável identificação no feito;

g) a defesa do mérito do ato – em espe-cial sobre a matéria de direito – deve ser fei-ta pelos órgãos previstos constitucionalmen-te para defender, em juízo, a pessoa jurídicade direito público (arts. 131 e 132 da CR de1988). Logo, a pessoa jurídica de direitopúblico deve ser citada, na pessoa dessesrepresentantes, para apresentar defesa;

h) a legitimidade recursal no mandadode segurança é exclusiva da pessoa jurídicade direito público;

i) a autoridade coatora não pode ingres-sar no feito, como assistente ou litisconsor-te, para defender interesse seu enquantoagente, pois trata-se de matéria estranha aomérito do mandado de segurança;

j) a intervenção do Ministério Público nãosupre a ausência do representante judicialda pessoa jurídica de direito público nomandado de segurança;

l) o Ministério Público não é obrigado ase manifestar sobre o mérito do mandado

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m) de lege ferenda, a obrigatoriedade deremessa dos autos do mandado de seguran-ça ao Ministério Público em todo e qualquercaso deve ser revista.

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Notas

1 Julgada em 4 de fevereiro de 1993, DJU 6/3/98, p. 4. Ementário 1901-01.

2 Celso Agrícola Barbi, Do mandado de seguran-ça, p. 108.

3 Celso Agrícola Barbi, Do mandado..., p. 108.4 Celso Agrícola Barbi, Do mandado..., p. 108.5 Celso Agrícola Barbi, Do mandado..., p. 108.6 Celso Agrícola Barbi, Do mandado..., p. 108.7 Registramos que a nossa leitura de Pontes de

Miranda conduz a conclusão diversa da proclama-da por Celso Barbi, conforme se demonstrará adian-te, ao expormos a doutrina que defende ser a auto-ridade parte no mandado de segurança.

8 Celso Agrícola Barbi, Do mandado..., p. 1109 Adhemar Ferreira Maciel, Observações sobre

autoridade coatora no mandado de segurança, in Man-dados de Segurança e Injunção, Coordenação de Sál-vio de Figueiredo Teixeira, p. 180.

10 Enrico Tullio Liebman, Manual de Direito Pro-cessual Civil, p. 96-7.

11 J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p.191-2.

12 Rodolfo Luis Vigo, Interpretación Constitucio-nal, p. 120.

13 Sérgio Ferraz, Mandado de Segurança, p. 45.14 Vicente Greco Filho, Da intervenção de tercei-

ros, p. 30.15 Antônio de Pádua Ribeiro, Mandado de Segu-

rança: alguns aspectos atuais, in Mandados de Seguran-ça e Injunção, Coordenação de Sálvio de FigueiredoTeixeira, p. 154.

16 Antônio de Pádua Ribeiro, Mandado..., p. 155.17 Cândido Rangel Dinamarco, As partes no man-

dado de segurança . in RP 19:199.18 Sérgio Ferraz, Mandado de Segurança, p. 43.19 Coqueijo Costa, Mandado de Segurança e Con-

trole Jurisdicional, p. 64, apud Sérgio Ferraz, Manda-do...

20 Hely Lopes Meirelles, Problemas do Mandadode Segurança, RDA, Vol. 73, p. 46, apud Sérgio Fer-raz, Mandado...

21 Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança,Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injun-ção, Habeas Data, p. 41.

22 Hely Lopes Meirelles, Mandado de Seguran-ça ..., p. 41/42.

23 Alfredo Buzaid, Do Mandado de Segurança, p.184.

24 Conforme afirmam Celso Barbi, Do Manda-do..., p. 109, e Sérgio Ferraz, Mandado de Segurança,p. 43.

25 Pontes de Miranda, Comentários ao Código deProcesso Civil, Vol. V, p. 156.

26 Pontes de Miranda, Comentários..., p. 157/158.27 Hoje o prazo é de 10 dias.28 Pontes de Miranda, Comentários..., p. 187/188.29 Lúcia Valle Figueiredo, A autoridade coatora e o

sujeito passivo do mandado de segurança, p. 36.30 AMS 0100036423/97-DF - 4ª Turma, Rel. Juiz

Eustáquio Silveira.31 Lex 203:127.32 Cremos que a expressão correta seria. .. seja

imputável...33 Walter Claudius Rothenburg, A pessoa jurídica

criminosa, p. 212.34 Marcello Caetano, Manual de Direito Adminis-

trativo, p. 197-8.35 Celso Antônio Bandeira de Mello, Apontamen-

tos sobre os agentes e órgãos públicos, p. 71-2.36 Trata-se de norma que implicitamente reco-

nhece a inafastabilidade do pronunciamento dapessoa jurídica no mandado de segurança.

37 Mauro Cappelletti e Bryant Garth, El acesso ala justicia, p. 98-9.

38 Nota de rodapé 4 da p. 38 da obra Do manda-do de segurança, 1978.

39 Sérgio Ferraz, Mandado de Segurança, p. 44/45.40 Pontes de Miranda, Comentários ... Vol. V, p.

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Referências bibliográficas conforme o original.

194. De notar que a legislação posteriormente pas-sou a admitir execução em mandado de segurança(Lei nº 5.021/66). No entanto, trata-se de expedi-ente excepcional, que homenageia a economia pro-cessual e a efetividade do instituto, na medida emque permite ao impetrante vencedor obter todos osefeitos decorrentes da concessão da ordem de fazer.

41 Celso Ribeiro Bastos, Do mandado de segu-rança , p. 38.

42 Sérgio Ferraz, Aspectos Processuais do Mandado

de Segurança, in Curso de Mandado de Segurança, p.139/140.

43Admitimos aqui a distinção feita por DiógenesGasparini entre ilegalidade e abuso de poder, si-tuando este último no campo da execução do ato.“... abuso de poder é toda ação que torna irregulara execução do ato administrativo, legal ou ilegal, eque propicia, contra seu autor, medidas disciplina-res, civis e criminais.” Vide Direito Administrativo,p. 59-64.

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1. Considerações preliminares

O Município, tradicional objeto de inves-tigações no campo do Direito, da Adminis-tração Pública e do Urbanismo, hoje, sensi-velmente impactado, por um lado, pelo mar-cante fenômeno de complexificação social aimpor a densificação de demandas e rela-ções em âmbito local, e, por outro, pela ten-dência globalizante da economia e da cul-tura, a par de continuar como desafio da-quelas ciências, suscita a canalização deesforços de estudiosos de outras áreas doconhecimento, notadamente da Sociologia,da Psicologia, da Economia, da Ciência Po-lítica e da História, para quem já se colocacomo categoria funcional estratégica de ga-rantia de referência e de identidade dos ci-dadãos. Assim é que se afirma o Municípiocomo contraponto da tendência universali-zante, como espaço de expressão do homem-sujeito, e, então, de significação do dado ouestatística e, ainda, como o locus de apro-

Autonomia municipal no Estado brasileiro

Maria Coeli Simões Pires

Maria Coeli Simões Pires é Mestre em Di-reito Administrativo pela Faculdade de Direi-to da UFMG, doutoranda e profesora junto àmesma Faculdade.

Sumário1. Considerações preliminares. 2. Origem

do Município brasileiro. 3. Evolução do regi-me municipal no Brasil e conformação da au-tonomia. 4. Neo-municipalismo na Constitui-ção de 1988. 4.1. Competências constitucionaisdo município. 5. Descentralização e poder lo-cal sob uma visão comparativa. 5.1. Descentra-lização na Alemanha. 5.2. Outras experiênciasde governos locais. 6. Conclusão – uma visãocrítica da autonomia no Brasil.

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priação dos benefícios da civilização e derevelação de seus efeitos perversos.

Nesse contexto, o próprio direito há dedesenvolver ânimo criador de nova reflexãoacerca dos conteúdos desse núcleo de estu-dos, na busca de releitura e ressemantiza-ção de seus elementos, a partir de conside-rações outras, que, classicamente, refugiriamao plano comum de análise.

A autonomia municipal, tema estrutu-rante das construções jurídicas nesse cam-po, há, pois, de ser retomada tendo em vistaa nova contextualização e a contribuiçãomultidisciplinar que se adensa no estudode estratégias de gestão contemporânea ede compreensão da trama urbana e dos di-versos atores que a tecem.

Nesse sentido, as questões relacionadascom as tendências internas quanto à orga-nização local e com as perspectivas do di-reito comunitário assumem um papel fun-damental na ressemantização do conceitoda autonomia municipal no Brasil, o queestá a demandar estudo específico.

Com o propósito de preparar as basespara a reflexão, buscar-se-á, neste passo, orecuo na tentativa de rastrear as origens dainstituição municipal, em breve escorço his-tórico, sem uma científica sistematizaçãodos diversos estamentos de razões que a eri-giram no tempo; as construções teóricas sópermearão a abordagem como suporte parareavaliação, tendo em vista o prisma da rea-lidade brasileira, dos pontos essenciais edas teses fundamentais que o tema suscita,pacificadas ou não. O presente trabalho nãoabre espaço para que se possa passar a lim-po a teoria dos Municípios, seja porque apertinaz caminhada da Doutrina brasileiranessa seara já muito avançou, seja porque arealidade da Federação brasileira está a in-vocar uma reflexão sobre o tema sob pers-pectiva mais conjuntural.

Tomar-se-á, então, o aporte já feito emsubstanciosos trabalhos sobre a matéria,muitos deles anteriores à Constituição de1988, e outros editados na vigência da novaordem, sendo certo que, sob a égide do Esta-

do Democrático de Direito, intensificaram-se as contribuições, ampliando-se consi-deravelmente a plêiade de estudiosos deassuntos atinentes à municipalidade bra-sileira.

2. Origem do Município brasileiro

Diferentemente das cidades européiassurgidas a partir do século XII como frutode evolução natural dos grupos sociais,as brasileiras foram impulsionadas pelosartifícios e interesses colonialistas da Me-trópole1.

Segundo Castro2, nossa instituição mu-nicipal, tendo sua origem nas comunas por-tuguesas, inaugurou-se no Brasil com a cria-ção, por Martim Afonso, em 1532, sob a vi-gência das Ordenações Manuelinas de 1521,da Vila São Vicente, atual São Paulo, segui-da aquela por Olinda, Santos, Salvador,Santo André de Borda do Campo e Rio deJaneiro. A Vila, por sua vez, marcou o inícioda República Municipal Brasileira, consti-tuindo-se, historicamente, no primeiro gover-no local autônomo das Américas, conforme re-gistra Godoy3.

A política de colonização portuguesa,partindo da fundação de vilas e atendendoaos interesses da Metrópole, tomara, ini-cialmente, a descentralização como estraté-gia para a ocupação territorial, um modomais seguro de garantir a dependência daColônia. A lógica de dispersão do poder emdiversos pólos justificou a instituição dasCapitanias Hereditárias, concedidas aos do-natários sob regime de sujeição à Metrópolee com autonomia interna, cabendo àqueles,entre outros poderes, o de criar Vilas, con-forme anota Rocha4.

Essas Capitanias, em sua feição original,perpétuas, inalienáveis e hereditárias, orga-nizaram-se sob os signos da autonomia eindivisibilidade, submetendo-se, contudo,às imposições da Coroa.

A organização municipal lusitana foi,então, transplantada para as primeiras vi-las e cidades do Brasil com suas múltiplas

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figuras: um alcaide, juízes ordinários, verea-dores, almotacés, juiz de fora, procurador ehomens bons. A estrutura revelou logo aimposição da Metrópole e um certo despres-tígio da Comuna, alçada ao controle cercea-dor daquela, especialmente, pela integraçãodos representantes da Coroa nos Conselhos,os juízes de fora5.

O principal papel de governo local forareservado à Câmara Municipal ou Câmarade Vereança, composta de vereadores esco-lhidos entre os grandes proprietários, oschamados “homens bons”, e juízes, ordiná-rios ou de fora, estes enviados de Portugalpara zelar pelos interesses da Coroa. Entreas atribuições da Câmara, a administraçãodo patrimônio público, a autorização paraconstrução de obras públicas, o policia-mento, a nomeação de funcionários e o esta-belecimento de impostos.

As vilas e as cidades evoluíram. O siste-ma de Capitanias, contudo, não apresentouos resultados esperados, verificando-se o de-senvolvimento de algumas delas apenas.

Surgiram, então, propostas unificadorasda Colônia, estruturadas pela reação dasCapitanias, ou a partir do espírito centralis-ta da Coroa, e que se revelaram em contradi-tórias medidas: a instalação do Governo-Ge-ral na Bahia, que, entanto, logo dividiu po-der com o estabelecido no Rio de Janeiro(1572); a transferência da Corte Portuguesapara a Colônia, com o propósito de domina-ção das capitanias; a elevação daquela aVice-Reino, a Reino Unido de Portugal eAlgarve; o próprio evento da Independên-cia, que, conquanto tivesse precedentes re-lacionados com a alternativa de índole fe-derativa, assentou solução unitarista, sob oargumento de adequação aos propósitos deconsolidação da emancipação do EstadoBrasileiro6.

Apesar da lógica centralista da Coroa notocante à administração, persistente na sub-jugação da Colônia e na resistência das Ca-pitanias às Comunas, a instituição munici-pal ganhou incontestável vigor ainda noBrasil Colônia, para o que contribuíram,

entre outros fatores: a distância da Metró-pole; a vastidão territorial da Colônia; o afas-tamento entre a cidade e a sede dos latifún-dios, o que projetava a necessidade de quecada cidade logo se constituísse em centrode poder auto-suficiente; a ênfase dada pelacolonização portuguesa à instalação denúcleos urbanos como suporte às aspiraçõesde desenvolvimento da burguesia mercan-til, seja como ponto de convergência da pro-dução rural, seja como estratégia para al-cance do mercado europeu; as determina-ções contidas nas cartas de doação aos do-natários e nos regimentos dos Governado-res-Gerais quanto às atividades econômicase quanto à fundação dos centros político-administrativos; o apoio da Igreja; o poderpolítico da vereança e a iniciativa própriadas câmaras que se arrogavam relevantesatribuições em assuntos das Capitanias ede interesse local; o poder econômico dosproprietários rurais; o sentimento nativistade cada povo e a reação das Câmaras con-tra os governadores das Capitanias Heredi-tárias. Registros desse tempo dão conta daexistência de senadores das Câmaras Mu-nicipais do Brasil e do clima de resistênciadas Casas Legislativas locais aos Governa-dores, como resposta às sucessivas tentati-vas da Coroa de submeter as localidades àsuperioridade das Capitanias. Nesse climade resistência, as Câmaras, gozando de au-tonomia, chegaram a questionar o domínioda Coroa, o que levou a sucessivas medidasde restrição do poder local por parte daMetrópole7.

A despeito das tentativas de unificaçãono Brasil Colônia e da unidade do BrasilImpério, a estrutura descentralizada do Es-tado brasileiro, adotada, na Carta de 1824,por imposição política, fora assimiladacomo solução natural. Em efeito, a centrali-zação caiu logo em declínio, antes que seaglutinassem as Províncias em torno do mo-narca, motivando a partida de D. Pedro Ipara Portugal em 1831. Após esse episódio,instalou-se a regência em clima francamen-

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te aberto à descentralização, principalmen-te pela posição independente das Provín-cias e pelas injunções regionais com o apelode participação. Desse período, anotam-se,ainda, providências importantes de inspi-ração descentralizadora: o Ato Adicional –Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, e o Códi-go de Processo. O referido Ato, embora nãotendo acolhido soluções aventadas no pro-jeto que lhe servira de antecedente, como ade Monarquia Federativa, entre outras alter-nativas mais ousadas, adotou a substitui-ção dos Conselhos Gerais das Provínciaspor Assembléias Provinciais com poderessignificativamente mais amplos que os da-queles. Não se registrara, contudo, lineari-dade nesse processo, eis que não infenso àspressões e críticas, constatando-se alternân-cia centralização – descentralização até quese firmaram as bases do federalismo8.

3. Evolução do regime municipal no Bra-sil e conformação da autonomia

Deitando raízes no contexto sócio-polí-tico e econômico do período colonial, a ins-tituição municipal aí se conformou e evo-luiu, sofrendo, também, adaptações na faseseguinte, na qual se elevou a Colônia à cate-goria de Vice-Reino (1763). Com efeito, es-truturou-se o regime municipal, principal-mente, a partir de 1549, no Governo-Geral,quando as Câmaras Municipais, revestin-do-se de grande prestígio político, tiveramnas pessoas de seus senadores os respon-sáveis pela administração do Município,pela arrecadação dos impostos e pela admi-nistração da justiça, detendo poder de con-trole sobre Governadores e forte atuação noprocesso emancipacionista brasileiro. Pre-sentes naquelas representações a índole li-bertadora e a identificação com as aspira-ções de nacionalidade.

Referindo-se ao regime municipal sob osauspícios da Coroa Portuguesa, Brasileiro9

mostra os interesses que sustentaram a or-ganização local de então:

“No período colonial, que se esten-de até 1822, as cidades funcionaram,principalmente, para promover os in-

teresses dos colonizadores portugue-ses voltados para a exportação ou paraa ocupação do interior. (...) A munici-palidade brasileira conservou-se numestágio primitivo e foi bastante inefi-ciente como unidade de governo”.

No Brasil Império, a instituição munici-pal ganhou foro constitucional. A Carta de1824, num aceno de fortalecimento da ins-tância local, destinou tratamento especialàs Câmaras Municipais, em capítulo apar-tado, estabelecendo, entre outras prescri-ções, que, em todas as cidades e Vilas entãoexistentes e nas mais que para o futuro secriassem, haveria Câmaras eletivas, às quaiscompetiria o governo econômico e munici-pal (art. 167).

A Constituição reservara à lei a defini-ção do número de vereadores às câmaras ea explicitação das funções municipais e doscritérios de formação das Posturas Polici-ais, a forma de aplicação das rendas e todasas particularidades e atribuições do Muni-cípio.

A Lei 28, de 1/10/1828, editada comodocumento básico da organização munici-pal no Brasil, em linha centralizadora, e emcontradição com as idéias nacionalistas, es-tabeleceu subordinação administrativa e po-lítica das Câmaras aos presidentes das Pro-víncias, reduzindo o órgão legislativo mu-nicipal a mera corporação administrativados Conselhos Provinciais, sem atuação najurisdição contenciosa. Configurou-se, aí,absoluta fragilidade da autonomia, já queficou, então, reservado um papel secundá-rio e subalterno à Câmara, por sua vez, am-plamente submetida à tutela permanente dopoder central mediante autorizações paraobras, aprovação de nomeações dos empre-gados e outras manifestações limitadoras,e, sobremaneira, vitimada pela perda demuitas franquias. Nesse quadro, não pas-saram os Municípios de meras circunscri-ções administrativas.

Meirelles10 afirma, contudo, que as mu-nicipalidades, mesmo sob o centralismo

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imperial, foram mais autônomas que no re-gime de 1937, porque os

“interesses locais eram debatidos naCâmara de Vereadores e levados aoconhecimento dos Governadores (Lei1828) ou das Assembléias Legislati-vas das Províncias (Ato Adicional de1834)”.

Em 1834, o Ato Adicional abriu perspec-tiva no sentido de que as Províncias recupe-rassem o prestígio do poder municipal,como reação à linha centralizadora da Lei28. Não houve, entretanto, qualquer fortale-cimento no plano da reforma constitucio-nal ou das normas subseqüentes, tendo pre-valecido, em todo o Império, o desprestígiodo governo municipal e o clima francamen-te desfavorável ao ideário de autonomia dasmunicipalidades.

Consoante apostila Tavares Bastos11, emestudo clássico sobre a matéria, o que sebuscou, posteriormente, foi a descentraliza-ção provincial, não se tendo cogitado daautonomia municipal.

A Constituição de 1891, consagrando oFederalismo e revigorando a instituição lo-cal, inaugurou, no art. 68, a expressão auto-nomia municipal e o próprio termo Municí-pio, vinculando o conteúdo daquela ao cri-tério do peculiar interesse. Fê-lo, todavia, emfrágil construção, já que sua extensão deve-ria ser traçada pelo próprio Estado. Tal pe-culiaridade, aliada à escassez de recursosdestinados aos municípios e às contingên-cias de nomeação de prefeitos para a maio-ria dos municípios, reservou àquele modelode autonomia um caráter meramente nomi-nal.

O municipalismo — segundo as críticasnão-liberais, uma idéia exótica, e, sobretu-do, americana — só emergiu, verdadeira-mente, no século XX, na esteira do Movi-mento Pluralista. A ideologia municipalis-ta aí se estruturou para desembocar na cam-panha do Movimento Municipalista, quegerou, a um só tempo, instituições como oIBAM e a Associação Brasileira dos Muni-cípios, conforme assevera Melo12.

Até a década de 30, as circunstânciassócio-político-econômicas do Brasil, taiscomo a prevalência da economia de expor-tação do café, da oligarquia rural e do coro-nelismo, distanciaram, sobremaneira, asperspectivas de um Brasil urbano, a despei-to da ocorrência de alguns processos de ur-banização em algumas regiões do País.

Todas essas determinantes estiveram nabase da política dos Governadores, falsea-ram as eleições, interferiram no processo daorganização municipal e projetaram refle-xos na máquina governamental.

No período de 1930 a 1934, com a ascen-são da classe média ao poder e com a dita-dura de Vargas e, mais, na ausência de Cons-tituição, o Brasil esteve sujeito às drásticasconseqüências do Decreto 19.398, de 11/11/1930: inexistência de Poder Legislativo; exer-cício de governo por interventores nomea-dos para os Estados, e por prefeitos, tam-bém, nomeados e sujeitos àqueles. Iniciou-se o período de centralização da Ditadurade Vargas, sob a bandeira de um projetonacional urbano, de cunho industrialista.Nessa fase, teve, ainda, espaço o movimen-to constitucionalista.

Com a Constituição de 1934 (art. 13), sobo pálio das idéias sociais democráticas, re-gistrou-se o renascimento do municipalis-mo, ao amparo do Poder Central, com o res-tabelecimento e a ampliação da autonomiamunicipal, baseada no critério do peculiarinteresse e assegurada em plano constitucio-nal: em termos políticos, pela eleição de pre-feito e vereadores; em matéria financeira,pela previsão de rendas próprias para oMunicípio por meio de atribuição de com-petência tributária para decretação de seusimpostos e, finalmente, pela capacidade or-ganizatória de seus serviços, severamenteprotegida contra a ingerência do Estado.

Lembra Melo13 que a ideologia munici-palista dessa época colocou-se contra as for-ças oligárquicas e corruptas, compromete-doras da racionalidade do aparelhamentoestatal:

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“Na década de 30, Alberto Torrese Oliveira Viana enunciavam o muni-cipalismo como algo antagônico aosuposto estadualismo da RepúblicaVelha que, dentro dessa crítica, eravista como inteiramente oligárquica ecorrupta, onde as oligarquias estadu-ais e o mundo da política imprimiamirracionalidade à esfera pública”.

Segundo registro do mesmo autor14, aidéia então defendida foi a de um Estadoforte, no qual o Município pudesse signifi-car a esfera política comunitária. Nesse con-texto, o enaltecimento do municipalismo foia estratégia de fortalecimento da União —contra a idéia da Província — tendo-se con-vertido, então, nessa ideologia curiosa, ruralis-ta que aparece como redenção do interior, umaespécie de pedagogia rural.

No período de 1937 a 1945, atingido pe-los reflexos do impulso da industrialização,da crise de 1929, do Estado Novo, da defla-gração da Segunda Guerra Mundial, regis-trou-se um quadro desolador da história mu-nicipalista.

A Carta de 1937 manteve apenas nomi-nalmente o poder local. Vulnerou a autono-mia política: previu eleição de vereadores,mas, ao mesmo tempo, desprezou o Legisla-tivo, ao assinalar a dissolução dos sistemasde representação; definiu a nomeação peloGovernador como critério para investidurados prefeitos e abrigou um regime interven-torial nos Estados e Municípios. Neutrali-zou a autonomia financeira e administrati-va no âmbito da Federação, mediante rigo-rosa técnica de concentração de poderes noâmbito do executivo federal em prejuízo deEstados e Municípios, transformados estesem instâncias gerenciais da União, tendo-se voltado a atenção desta, em especial, paraas cidades estratégicas e de expressão in-dustrial.

No período de 1945 a 1964, o Brasil vi-venciou o cenário do fim da Guerra Mundi-al, da deposição do Governo Ditatorial, daqueda do Estado Novo, da reconstituciona-lização do País, do liberalismo político, das

bandeiras do nacionalismo, da expansão dabase econômica nacional, com substituiçãodas importações. De traço democrático, operíodo restaurou o sistema federativo des-centralizador, oportunidade em que se res-tabeleceram os poderes das Casas Legisla-tivas e em que se abriram perspectivas dereorganização partidária.

A campanha municipalista teve grandereflexo na Constituinte de 1946 e impreg-nou a política do Estado Novo. Nesse con-texto, imbricada na cultura política não-li-beral, surgiu a proposta de uma RepúblicaMunicipalista, com base na redivisão dosEstados, como contraponto da hegemoniado café com leite15.

A Constituição de 1946, que reinaugu-rou os valores democráticos, deu nova den-sidade à autonomia, prefigurando-a segun-do as três linhas básicas: política; financei-ra e administrativa (art. 28). O arranjo cons-titucional prestigiou a instituição munici-pal, seja pela eqüitativa distribuição de ren-da mediante ampliação da participação doente local nas finanças, seja pelo delinea-mento dos fundos de transferência, seja pelareintegração do Município no sistema elei-toral do País e, ainda, pelas categóricas bar-reiras à indiscriminada intervenção esta-dual nos municípios. Não se pode dizer, to-davia, de uma consistente autonomia polí-tica no referido período, sobretudo pela au-sência de clareza no sistema de repartiçãode competências e poderes entre as diver-sas esferas.

No período de 1964 a 1970, num cenáriomarcado pela queda de João Goulart; pelogolpe militar, com a ascensão das ForçasArmadas, a distribuição do poder nas mãosde militares, tecnocratas e burguesia indus-trial; pela ditadura das armas, sob as ban-deiras da moralização, do desenvolvimen-tismo, do combate à inflação e da segurançanacional, a autonomia municipal apenas semanteve nominalmente. Esteve, aí, afetadapela hipertrofia do Poder Executivo, nota-damente na esfera da União, pelo dirigismoestatal, caracterizado por forte poder de in-

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tervenção do Governo Central em todos osdomínios, por meio de planejamento fede-ral compreensivista dos diversos setores,pela expansão da máquina pública federalem modelo conformador do aparelhamentodas esferas estadual e municipal, com pre-valência da simetria dos organogramas ra-cionalistas e burocráticos.

Com efeito, a Carta de 1967 e a EmendaConstitucional nº 1/69 fragilizaram osMunicípios em termos políticos, adminis-trativos e financeiros. Ficaram eles, finan-ceiramente, submetidos à União, que pas-sou a concentrar a maior parte da receitapública e a impor-lhes condição de mendi-cância e de dependência na aplicação dasverbas; e tornaram-se os entes locais maisvulneráveis perante o Estado-membro, doponto de vista político, pelo aumento dashipóteses de intervenção estadual; adminis-trativamente, estiveram condicionados à si-metria na organização, segundo matrizes daUnião, sem espaço para o necessário afina-mento às peculiaridades de cada qual. E é,ainda, nesse período que se estabeleceramrigorosas restrições à remuneração de verea-dores, determinando-se, para municípioscom população abaixo de certa faixa, a gra-tuidade dos mandatos.

De 1970 a 1984, ainda sob a égide daEmenda Constitucional nº 1/69, e presen-tes a ideologia e a estratégia da Revoluçãode 1964, os Municípios continuaram refénsda União, eis que permaneceram sujeitos àlinha centralizadora do Governo Federal, noobstinado propósito de assimilar e imporos avanços da tecnologia. Tal linha, de ca-ráter racionalista, estratificou, sobremanei-ra, a dependência dos Municípios à tecno-cracia dos gabinetes.

Com efeito, na ditadura militar, a auto-nomia política foi atingida diretamente pelaregra de nomeação de prefeitos de capitais,de estâncias e de municípios de SegurançaNacional; o campo de atuação legislativafoi, também, sensivelmente restringido, demodo que os governos locais atuaram comomeros executores da política central, espe-

cialmente no tocante ao desenvolvimentourbano traçado pela União.

Registra-se a contribuição de Melo16 so-bre o municipalismo nas décadas de 60 a80:

“Durante o regime militar, salvonum primeiro momento em que o Mi-nistério do Interior tinha a idéia deplanos de desenvolvimento integrado,o municipalismo foi absorvido pelaspolíticas governamentais. Mas, com osegundo PNB e a recentralização queo governo Geisel imprime, o munici-palismo ficou deslocado, enquantoprincípio ordenador de políticas. Issose mantém até 1985, quando se ini-ciam os movimentos que vão transpa-recer na Constituição de 1988, que éprofundamente Municipalista.”

No período de 1984 a 1988, abriram-seamplas perspectivas, a partir da mobiliza-ção da sociedade, de abertura política e dis-tensão.

Essas sinalizações intensificaram-se de-pois de 1984, com os movimentos popula-res pró-constituinte, as campanhas munici-palistas, a sensibilização da sociedade paraparticipação das cruzadas pelos Planos deEstabilização do Cruzado, passando peloBresser e pelo Verão, e com o processo cons-tituinte, de caráter participativo e democrá-tico, que culminou com a edição da Consti-tuição de 1988, rotulada como Constituiçãoda Cidadania, a qual, restabelecendo, porinteiro, a autonomia política, prescreve tra-tamento privilegiado à entidade local, inte-gra-a formalmente à Federação e agrega, ain-da, ao poder local a competência para ela-boração de sua lei orgânica, consolidando,de modo expressivo, o conteúdo de autono-mia municipal, sob o pilar do interesse lo-cal.

Vê-se, pois, que, ao longo da história bra-sileira, o conteúdo da autonomia munici-pal não se manteve uniforme, nem esteveinfenso aos interesses da Coroa, às vicissi-tudes dos regimes, nem aos caprichos dosditadores ou tecnocratas.

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Desde a sua inauguração nominal notexto constitucional de 1891, a autonomiafoi mantida nas cartas seguintes, muitas ve-zes, relativizada: no plano político, pela no-meação de prefeitos, pelo fechamento dascâmaras, pela neutralização do campo decompetência legislativa municipal; no pla-no administrativo, pelas linhas centraliza-doras, pelos processos centrípetos de pla-nejamento e decisão no âmbito da União,pela prefiguração de modelos administrati-vos e de estrutura de serviços; no plano fi-nanceiro, por uma perversa repartição dereceita que estruturou a onipotência daUnião. Esta, concentrando a receita públi-ca, pode manter reféns os Municípios, ten-do estes, por sua vez, na ode palaciana, oespaço de mendicância.

Nesse tópico, utilizaram-se amplamen-te dados constantes de estudos e quadrosdesenvolvidos por Brasileiro17 e Dias18.

4. Neo-municipalismo naconstituição de 1988

Erigem-se como pilares estruturantes daFederação Brasileira, na Constituição de1988, os comandos expressos nos artigos 1ºe 18.

Na interpretação dos referidos disposi-tivos, especialmente no que tange à posiçãodo Município no quadro federativo, diver-gem os doutrinadores, sustentando algunsa absoluta inconsistência da tese da figura-ção daquele como entidade federativa, eoutros, a integração do ente local naquelaestrutura. Na primeira corrente, colocam-se,entre outros, Baracho19 e Silva20. Aduzem, emabono à tese, argumentos como o de que ofederalismo não pressupõe o Municípiocomo elemento essencial; o da não-partici-pação do ente local na formação da vontadee das decisões do Senado e na prestação ju-risdicional; o de que não se lhe reconhece opoder de apresentação de emendas à Cons-tituição. Sustentam, categoricamente, que apossibilidade de intervenção do Estado nosMunicípios mostra a vinculação direta des-

ses à entidade federativa intermediária ouregional, afastando, portanto, a vinculaçãodos entes locais à unidade federativa aglu-tinadora ou central, que é a União.

Em posição antagônica, colocam-se Bas-tos, Horta, Ferrari e Santana, entre outros.

Sustenta o primeiro21:“Desde o momento em que a Cons-

tituição brasileira alçou o Municípioa entidade condômina do exercíciodas atribuições que, tomadas na suaunidade, constituem a soberania, nãopoderia, para ser conseqüente consi-go mesma, deixar de reconhecer que aprópria Federação estava a sofrer umprocesso de diferenciação acentuada,relativamente ao modelo federal do-minante no mundo, que congrega ape-nas a ordem jurídica central e as or-dens jurídicas regionais: a União e osEstados Membros”.

Por sua vez, referindo-se ao esforço dereconstrução e retificação do federalismocomo mérito inegável da Constituição de1988, Horta22 assinala:

“Projetou-se além da edificação re-construída, para introduzir novosfundamentos e modernizar o federa-lismo constitucional brasileiro.

Entre esses fundamentos, sobres-sai a singular inclusão do Municípioentre os entes que compõem a uniãoindissolúvel da República Federativa,no artigo inicial da Constituição (art.1º). Essa eminência do Município nãodispõe de correspondência nas ante-riores Constituições Federais Brasilei-ras, nem tão pouco nas ConstituiçõesFederais dos Estados Unidos, do Mé-xico, Argentina, Venezuela, Áustria,Alemanha, Canadá, Índia, Suíça eAustrália. A inovação da Constitui-ção adveio da atração sugestionado-ra do movimento municipalista, querompeu o quadro da lógica constitu-cional e erigiu o Município autônomoem componente da República Federa-tiva”.

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Ferrari23, embora reconhecendo que o fe-deralismo se assenta sobre duas idéias fun-damentais – a autonomia das entidades fe-derativas e a participação dessas na forma-ção da vontade dos órgãos federais e nassuas decisões –, não nega a integração doMunicípio no condomínio federativo:

“... na Federação brasileira, conformedetermina a Constituição Federal, osMunicípios são unidades territoriais,com autonomia política, administra-tiva e financeira, autonomia essa li-mitada pelos princípios contidos naprópria Lei Magna do Estado Federale naqueles das Constituições Esta-duais”.

Na mesma linha, e admitindo a relevân-cia dos argumentos contrários à tese da con-figuração do Município como entidade fe-derativa encontradiços na doutrina, adver-te Santana24:

“... o fato é que não podemos nos es-quecer de que os modelos federativosnão podem ser transplantados de umEstado para outro. Enfatizamos nova-mente que cada Estado possui suaspróprias características e, assim, tipi-ficam sua estrutura interna. No casobrasileiro é de se dar grande impor-tância a esse aspecto, porque, comosabido, todas essas particularidadesque o Município apresenta são, emverdade, notas definidoras dos con-tornos da nossa fisionomia federati-va; são especificidades do ser-federa-tivo-pátrio”.

De fato, a Constituição de 1988 introduzsignificativas alterações na fisionomia doEstado Brasileiro. E, se já não tínhamos umafederação segundo o modelo tradicional, apartir da nova ordem, ela mais se afastadaqueles moldes, pela tonificação de suaspeculiaridades. Acentua-se, portanto, a dis-tinção de tratamento dado ao ente local.Ganha este relevância no plano federativo,seja pela excepcionalidade do status a eleconferido, seja pela sinalização – pelo me-nos no plano constitucional – no sentido da

inversão do movimento expansionista dopoder central.

Sobre a importância desse status do entelocal, lembra Horta25:

“ a ascensão do Município desfazantigas reservas que se opunham àsrelações diretas entre a União e o Mu-nicípio”.

Em efeito, a Carta é categórica ao explici-tar o Município na configuração da Federa-ção, é pródiga em referências ao ente local:uma leitura de seu texto evidencia a preocu-pação do constituinte em enaltecê-lo, querno plano da estrutura do federalismo; querna partilha de competências, embora sejapossível verificar-se, ainda, a persistênciade competências centralizadas em relaçãoa uma gama considerável de matérias; ou,ainda, no reconhecimento de seu papel comoimportante agente de políticas públicas, e,especialmente, na dedicação de comandosbásicos e preordenadores da lei orgânicamunicipal.

Sob a perspectiva reconstrutiva dofederalismo, acena a Constituição para so-luções mediante cooperação entre a União,os Estados, os Municípios e o Distrito Fe-deral, consoante disposto no artigo 23, pa-rágrafo único.

Além da reconstrução formal e materialdo federalismo de vocação cooperativa, comênfase para o ente local, a concepção demo-crática de Estado é fator de fortalecimentoda esfera municipal de governo.

De fato, a Constituição de 1988, acolhen-do as reivindicações dos movimentos orga-nizados, firma o compromisso com a igual-dade material, reconhece garantia de aces-so dos cidadãos aos serviços públicos so-ciais, consagra a universalização dos bene-fícios da seguridade social, entre outros, etraça diretriz de participação da sociedadena concepção, na execução e controle daspolíticas públicas, o que põe em realce, so-bretudo, o poder local26.

Como conseqüência do agravamento doquadro social e daquela mobilização, a má-quina pública é impactada pela demanda

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cada vez mais densa e diversificada de be-nefícios, o que reflete de forma mais claranas esferas estadual e local, tendo em vista,principalmente, a diminuição da capacida-de de investimento do Governo Federal naprestação direta de serviços ou no financia-mento das políticas27.

A resposta natural seria a criação de me-canismos cooperativos consistentes entre asdiversas esferas de governo e entre estas e osetor privado, como recurso indispensávelpara o enfrentamento das questões relacio-nadas com emprego, segurança, acesso aequipamentos básicos. O Poder Público de-veria conjugar seus esforços buscando si-nergia no âmbito da esfera pública estatal e,insuficientes tais esforços, pois o Estado nãopoderia dispor de todos os recursos e mo-dos de gestão para o atendimento das de-mandas sociais, invocar-se-ia, também, aintegração da sociedade e do próprio setorde mercado.

O quadro de múltiplas demandas e oapelo de participação forçaram a precipita-ção dos processos de descentralização ecooperação, que têm conduzido, nos últimosanos, à formação de várias políticas seto-riais, sob novos moldes, alimentadas, tam-bém, por tendências internacionais: o SUS,que teve sua matriz na Reforma SanitáriaItaliana de 1978; as políticas de controlesocial, que têm sua inspiração na França so-cialista28.

Esses processos de descentralização ecooperação desenvolveram-se, então, sem ospressupostos das negociações políticaspara que a incorporação de ações, serviços,equipamentos se fizesse sem os traumas quese impuseram como resultado da lógica au-toritária no traspasse dos serviços sociais.As bases de cooperação federativa revelam-se insuficientes no plano constitucional esequer estavam disciplinadas pela via legalou mediante pactos sociais. E, ainda, o ve-tor da participação popular se conduziamais em caráter emblemático que conse-qüente, não figurando como instrumentoefetivo de controle. Entre esses fatores, a

ausência da lei complementar preconizadapelo art. 23 da Constituição da Repúblicaressai como dificultador da desejável inte-ração ou inviabiliza, na prática, o federalis-mo cooperativo29.

Nesse sentido, a crítica de Ferreira30, Co-ordenador do Grupo de Trabalho sobre Des-centralização e Federalismo do IPEA:

“Apesar do avanço no reconheci-mento da autonomia dos entes fe-derativos, o Texto Constitucional é,porém, falho no que diz respeito a umadefinição clara de competências den-tro da Federação. (...) Mas a indefini-ção de perfil da estrutura cooperativadentro da Federação e a imprecisãodas fronteiras de competência faz comque a União dificulte esse processo dedescentralização, interferindo na au-tonomia dos outros níveis de poder”.

O certo é que, nesse contexto, o munici-palismo passa a ser defendido sob enfoquesdiferentes e sobre bases ideológicas distin-tas: como princípio democrático e como prin-cípio de engenharia administrativa, com vistasà construção da eficiência na prestação dosetor público. Essas idéias, segundo Melo31,constituem o núcleo de sustentação do con-senso em torno da idéia do neo-municipalismo .

O autor32 sustenta, contudo, ser mera-mente aparente essa unidade em torno domunicipalismo, colocando sob foco o apa-rente consenso relativo à autonomia do entelocal, que, na sua advertência, escamoteia umdissenso muito profundo. Para ele, o neo-muni-cipalismo brasileiro ou o neo-localismo, comodiscurso recorrente, há de ser apreendidosegundo as conotações que lhe emprestamos núcleos filosóficos subjacentes, os quais,por sua vez, se inscrevem em genealogias in-telectuais distintas:

“Na realidade, a idéia de descen-tralização é hoje lugar comum tantoem uma agenda neo-liberal quanto emuma agenda histórica, identificadacom a social-democracia, uma agen-da reformista e, ambas aquelas sãosimétricas dentro de uma tradição neo-liberal.

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A idéia da descentralização, da de-volução de funções e competências aentes subnacionais, equivale a umaestratégia maior de retirada de parce-la do poder do Governo central. Este éo Leitmotiv da idéia da descentraliza-ção. Da mesma forma, dentro de umaagenda social democrática, histórica,a idéia de descentralização é inteira-mente diversa; aqueles que propug-nam pela descentralização e pela au-tonomia local, em última instância,estão postulando a democratizaçãoda gestão e a ampliação do controlesocial”.

Na perspectiva da teoria econômica, ocontraponto é o mercado como mecanismolocativo; sob a ótica da democratização dagestão, a participação do cidadão tem o pri-mado”33.

Assim, na prática de descentralizaçãode políticas públicas, não se tem verificadoa sintonia entre os entes federativos, o queacarreta irracionalidade de gastos públicose prejuízo de qualidade da prestação. Deigual modo, as parcerias público e privado,por ausência de tradição na realidade, fra-gilizam-se, na prática, em razão do com-prometimento do interesse público e da pre-valência da lógica de socialização de ônuse privatização dos benefícios. E, por fim, aparticipação popular, apesar dos avançosjá conquistados, ainda não alcançou o está-gio de efetivo controle social. Demais disso,a nova ideologia municipalista há de se as-sentar, sim, sobre os pilares da participa-ção, da democratização da gestão, da efi-ciência do setor público na prestação de ser-viços públicos, da parceria, mas isso nãobasta, eis que não pode perder de vista osfatores que desafiam a criatividade e o arro-jo das cidades, as quais se colocam comoreferência de identidade e estratégia de su-peração da crise contemporânea.

Nesse sentido, deve-se acreditar comoMagalhães34 que, à luz dos paradigmas doEstado Democrático de Direito, na perspec-tiva da construção do Estado Constitucio-

nal, novo tratamento há de ser dado ao po-der local, projetando-lhe força proativa damudança do próprio Estado na relação coma sociedade.

4.1. Competências constitucionais doMunicípio

Tradicionalmente, o conceito de autono-mia do Município fixou-se sobre os pilaresdo provimento privativo dos cargos gover-namentais e da competência exclusiva doente local no trato de assuntos afetos do seupeculiar interesse.

Na Constituição de 1988, o arranjo daautonomia municipal está estruturado pe-los artigos 1º,18, 29, 30, 35, 39, 145, 149, 150,158, e 182, entre outros. O conteúdo do po-der aí delineado expressa-se em quatro pla-nos: o da auto-organização, o do autogover-no, o da autolegislação e o da auto-admins-tração, sendo o primeiro a principal novi-dade incluída no objeto do “direito públicosubjetivo” do Município, oponível aos de-mais entes federativos, consoante anotaçãode Meirelles35.

O teor político da autonomia revela a ca-pacidade de o Município estruturar seus po-deres, organizar e constituir seu própriogoverno mediante eleições diretas de prefei-tos, vice-prefeitos e vereadores e de editar oseu próprio direito, observados os princí-pios estabelecidos na Carta da República ena Constituição do Estado. Nesse plano, ga-nha relevância a análise da competência le-gislativa do ente local.

Os artigos 21, 22, 23 e 24 da Constitui-ção da República atribuem competênciasaos diversos entes federativos.

A norma prevista no art. 21, relativa àUnião, enunciada por verbos que remetema ações concretas, sugere um plano de atua-ção administrativa, ou seja, indica compe-tência executiva. Contudo, essa prevalênciade seu caráter não exclui competência legis-lativa em matérias referidas naquele espaçode atribuição. E, conquanto aquela atuaçãonão esteja restringida privativamente àUnião, não parece comportar partilhamen-

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to com as demais esferas, salvo no que tocaà elaboração e execução de planos de orde-nação do território e de desenvolvimentoeconômico, social e urbano, incluindo habi-tação, saneamento básico e transportes, pelapertinência do interesse e tendo em vista oapelo de complementariedade que a com-petência atribuída à União suscita.

A competência estabelecida no art. 22 di-rige-se à União em caráter privativo e temnatureza legislativa. Só comporta partilhacom outras esferas quando têm sede naUnião as diretrizes ou normas gerais ou,ainda, quando a matéria, mesmo tematiza-da no art. 22, tenha um desdobramento es-pecífico a justificar a tutela direta do inte-resse local. Quanto ao Estado, é de desta-car-se o disposto no parágrafo único do ar-tigo referido, que deixa à lei complementara possibilidade de autorização para queaquele legisle sobre questões específicas re-lacionadas no artigo.

No art. 23, a Constituição da Repúblicatrata da competência comum da União, dosEstados, do Distrito Federal e dos Municí-pios. Esse traço da competência é definidopor Silva36 como a faculdade de legislar ou pra-ticar certos atos, em determinada esfera, junta-mente e em pé de igualdade, consistindo, pois,num campo de atuação comum às várias entida-des sem que o exercício de uma venha a excluir acompetência de outra.

Assim, não obstante catalogue o artigouma série de ações comuns aos diversosentes, do que se deduz, à primeira leitura,um traço executivo de competência, tem-seque a legislação instrumental de açõesenunciadas fica, também, alçada às entida-des indicadas no caput.

No art. 24, tratou o constituinte de disci-plinar a competência no âmbito da legisla-ção concorrente. Não incluiu nesse condo-mínio o Município. Contudo, a referida au-sência não significa, segundo sustentamalguns autores, que o Município não tenhacompetência nesse campo concorrencial,pois restar-lhe-ia a competência para legis-lar sobre matéria de interesse local, com ful-

cro no art. 30, I, bem assim para suplemen-tar a legislação federal e a estadual, no quecouber, a teor do art. 30, II, podendo incidirsobre matérias constantes do artigo 24.

Nessa ordem de idéias, Santana37, trace-jando um elástico contorno do poder de atua-ção legislativa do Município, afirma a exis-tência de competência concorrente originá-ria do ente local.

Adverte o magistrado38, no entanto, parao fato de que os Municípios não estão habi-litados a editar normas concernentes ao art.24, simultânea ou concomitantemente coma União ou Estado, restringindo-se ao âm-bito da expressão no que couber.

E assenta o mesmo autor39:“Evidente não se tratar apenas de

competência administrativa regula-mentar. Os Municípios estão autori-zados, por força de dispositivo cons-titucional, a legislar suplementarmen-te. Podem, em nosso entender, ditarleis que tenham por objetivo o estabe-lecimento de regras específicas e,quando for o caso, também estão legi-timados à elaboração de leis geraisquando tal se faça necessário em ra-zão do exercício de competências ma-teriais, comuns ou privativas”.

De outro lado, os que inadmitem atua-ção do Município no âmbito da legislaçãoconcorrente, isto é, competência suplemen-tar por força do art. 24, destacam que o dis-posto no art. 30, II, há de ser entendido comopoder de mera complementação, ou seja, deadaptação às peculiaridades comunais.

Contudo, tem-se reconhecido ao Muni-cípio operar no campo legislativo relativa-mente a matérias elencadas no art. 24, porforça de conjugação com outras normas atri-butivas de competência ao Município ou aopoder público genericamente.

Nesse sentido, por exemplo, o julgadodo Tribunal de Justiça do Estado de MinasGerais na Apelação Cível nº 72.988/9 – Co-marca de Belo Horizonte. Rel. Des. CamposOliveira, cuja ementa encontra-se assim re-gistrada: “Tombamento de Imóvel – Com-

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petência Legislativa do Município. Inteli-gência dos Arts. 24, VII; 30, II, e 216, § 1º daConstituição Federal. Mandado de Seguran-ça – Fundamentação da Sentença (“MG” 5/4/1997).

A capacidade auto-organizatória é umdesdobramento da autonomia política, queganha contorno no poder de edição pelo Mu-nicípio de sua própria lei orgânica.

Horta40, referindo-se a esse aspecto daautonomia municipal, leciona:

“Prestigiando a descentralilzaçãonormativa, consectário da descentra-lização política, a Constituição de1988 implantou o poder de auto-or-ganização do Município, atribuindo-lhe a elaboração da lei orgânica.

A decisão do Constituinte federalretoma no plano mais elevado daConstituição da República a soluçãooriginariamente contemplada naConstituição do Rio Grande do Sul,de 14 de julho de 1981 (art. 64)”.

A Constituição, inovando nesse ponto,apresenta uma matriz da lei orgânica mu-nicipal, isto é, traz normas de preordenaçãobalizadoras do tratamento de determinadostemas na esfera local. O processo de elabo-ração daquela lei tem, por sua vez, caráterespecial, consoante definido na própriaCarta da República, em linha bastante rígi-da, à semelhança do processo constituinte.

O art. 29 da Carta da República localizao Estado Brasileiro no sistema de Cartas Pró-prias relativamente à organização munici-pal, projetando a lei orgânica com status delei fundamental.

O plano administrativo da autonomiadiz respeito ao espaço de ação do Municí-pio voltada para a organização e prestaçãode serviços de sua competência. Esse com-ponente do poder autônomo do Municípiotem seu fundamento, especialmente, no dis-posto no art. 30, V, cuja redação é a seguin-te:

“Art. 30 – Compete ao Município:(...)V – organizar e prestar, diretamen-

te ou sob regime de concessão ou per-missão, os serviços públicos de inte-resse local, incluído o de transportecoletivo, que tem caráter essencial;”

Analisando o art. 30, comando de cen-tralidade inegável para o Município, afir-ma Santana41:

“Sendo a base das competênciaslegislativas municipais aquela forma-da pelo teor do art. 30 da Carta Fe-deral, cumpre-nos esclarecer que oconstituinte acabou por fazer opçãoem não apartar em dispositivos dis-tintos as competências materiais dascompetências legislativas.

(...)Convivem, assim, no mesmo dis-

positivo as competências municipaisde ordem legislativa e de ordem mate-rial. Isto porque o constituinte, tam-bém para as competências materiais,erigiu o critério do interesse local comoo ponto de partida para a sua concre-tização”.

Com efeito, essa competência adminis-trativa desenha-se em função do interesselocal, o que justifica atenção especial naanálise da expressão, cuja adequada inter-pretação poderá inibir a invasão de compe-tência, pelo Município, de outra esfera degoverno 42.

Da lição de Bastos43, colhem-se algunselementos conformadores do interesse local:

“Cairá, pois, na competência mu-nicipal tudo aquilo que for de seu in-teresse local. É evidente que não se tra-ta de um interesse exclusivo, visto quequalquer matéria que afete uma dadacomuna findará de qualquer manei-ra, mais ou menos direta, por repercu-tir nos interesses da comunidade na-cional. Interesse exclusivamente mu-nicipal é inconcebível, inclusive porrazões de ordem lógica: sendo o Mu-nicípio parte de uma coletividademaior, o benefício trazido a uma partedo todo acresce a este próprio todo.Os interesses locais dos Municípios

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são os que entendem imediatamentecom as suas necessidades imediatas,e, indiretamente, em maior ou menorrepercussão, com as necessidades ge-rais.”

A conotação da expressão, portanto, nãoremete à exclusividade – sob pena de, nosistema federativo, comprometer-se a uni-dade, que pressupõe superposição de inte-resses com a impossibilidade de absolutoisolamento de seus diversos níveis –, masao critério da prevalência.

Relativamente ao poder administrativodo Município, a derradeiro, enfatiza-se cons-tituir o art. 23 em conjugação com o art. 30,V, VI, VII, VIII, IX, a sede especial de suaprevisão.

O elemento da autonomia no campo fi-nanceiro está previsto no art. 30, III, cuja re-dação prescreve competir àquele ente: insti-tuir e arrecadar os tributos de sua competência,bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo daobrigatoriedade de prestar contas e publicar ba-lancetes nos prazos fixados em lei.

Esse poder no plano financeiro deve serexercido nos termos dos artigos 145; 149,parágrafo único; 156 e 158 da CF.

5. Descentralização e poder local sobuma visão comparativa

A leitura comparativa de diversos qua-dros de poder local em países desenvolvi-dos leva à conclusão de que o Brasil detémposição privilegiada quanto à descentrali-zação, o que não afasta a necessidade deque a referida técnica, entre nós, persiga avertente da democratização da gestão ou,por outras palavras, a incorporação do po-der local que se localiza fora dos centros ofi-ciais dos Poderes Executivo e Legislativo.Com efeito, poucos países apresentam ex-periências em que o Município participe docondomínio de poder de forma tão expres-siva, pelo menos em plano nominal. Paraexemplificação desse contraste entre o Mu-nicípio brasileiro e outras experiências depoder local, comenta-se a descentralizaçãono Estado alemão, no qual a instância co-munal, reconhecidamente um destaque em

termos de eficiência na prestação de servi-ços públicos, ostenta uma autonomia sensi-velmente menos expressiva que a do Muni-cípio brasileiro, que traz matrizes muito pe-culiares. São registradas, também, informa-ções básicas relativas a outras organizaçõesde governos locais de destaque no plano daprestação de serviços públicos.

5.1. Descentralização na Alemanha

A descentralização é um fenômeno in-ternacional, ganhando matizes próprios emcada realidade que lhe serve de suporte deaplicação. O modelo alemão de descentrali-zação, pelas suas peculiaridades, é aqui des-tacado a partir de considerações desenvol-vidas no Seminário Internacional Princípioda subsidiariedade e o fortalecimento do PoderLocal no Brasil e na Alemanha44, realizado emSão Paulo, em 1994.

No referido evento, Lässing45, Prefeito daMicrorregião de Rems-Murr-Kreis e Presi-dente da Associação Brasil-Alemanha doDistrito de Baden-Württemberg, realça ostraços da Federação alemã, em considera-ções que são amplamente usadas no pre-sente tópico.

Aquela federação compõe-se de 16 Esta-dos Federados (11 da Velha República Fe-deral da Alemanha e os novos que ressurgi-ram a partir de 1990) e da União Federal,detendo cada qual a qualidade de Estado.A organização comporta ainda as entida-des locais, os Municípios ou autarquiasmunicipais, cerca de 10.000, aproximada-mente, e os Landkreis, circunscrições ou re-giões, que atuam como instâncias de gover-no de nível intermediário de Municípios eEstados.

O princípio do Estado Federativo é into-cável na Constituição alemã, enquadrando-se numa longa tradição constitucional, sóinterrompida com o Estado unitário dos Na-zistas, de 1933 a 1945, de modo que a Ale-manha faz parte dos clássicos países fe-deralistas46.

Os encargos da legislação dividem-seentre a União e os Estados Federados, con-

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tando também os Landkreis com sua própriacâmara, a Kreistag, com Constituição Regio-nal própria.

Na autonomia legislativa do EstadoFederado, inclui-se a competência relati-va à edição da Constituição Municipal,documento que traça modelos próprios deestruturação do poder local, apresenta ar-ranjo específico e peculiar aplicável aos mu-nicípios integrantes do território estadual,aos quais é reservado o direito de regula-mentar, sob responsabilidade própria, todasas questões de interesse da comunidade lo-cal, isto é, todas as funções públicas nos res-pectivos territórios47.

As competências administrativas distri-buem-se entre as diversas instâncias. Estãosob responsabilidade direta da União, en-tre outras, a política externa, a defesa, a or-ganização e manutenção do serviço militar,a definição da política econômica e monetá-ria, podendo o Estado participar da Admi-nistração da União. Uma administraçãoprópria da União só existe, basicamente, emestreito campo de atuação, cabendo aos Es-tados autonomia no tocante a uma gama deatividades administrativas. A eles cabem oensino público, a política de cultura e a res-ponsabilidade pelo corpo policial, entreoutras competências48. Já os Municípios,consoante disciplinam as leis comunais, sãoresponsáveis primariamente pelas questõesde interesse local, prevalecendo, assim, emrelação a eles a norma da universalidade,que pode ser restringida pela legislação, jáque esta pode ser instrumento de transfe-rência dessas questões para instâncias in-termediárias ou para a estadual ou federal.

A relativização da universalidade, quese dá pela lei, não pode perder de vista oprincípio da subsidiariedade, aplicável aosistema alemão, e que se assenta na racio-nalidade das soluções da instância localpela sua proximidade com os problemas edemandas mais imediatas e concretas. Porforça do referido princípio, só o que não podeser adequadamente atendido pelos Municí-

pios é transferido para outra esfera de go-verno.49

Nesse diapasão, cabe à União a defini-ção quanto aos conteúdos mais abstratos eideológicos; aos Municípios, de uma formageral, ficam reservadas as funções traduzi-das por prestações obrigatórias como as deregistro, de proteção por corpo de bombei-ros, de instalação de cemitérios, de criaçãode câmaras de desenvolvimento, de manu-tenção de escolas para todos os níveis deformação, de construção de rodovias, deabastecimento de água, e por encargos vo-luntários relacionados com o oferecimentode infra-estrutura adequada para a práticade esportes, o acesso à educação, à cultura,ao lazer, entre outras prestações. Além decumprir essas funções básicas que afetam avida da comunidade, o Município vem atu-ando, também, como elemento de peso naeconomia, dirigindo empresas de eletricida-de, gás, e transportes; aos LandKreis cabe asolução de problemas que ultrapassem a capaci-dade administrativa ou financeira dos Municí-pios, como construção de grandes hospitais, co-leta de lixo, escolas profissionalizantes, escolasespeciais, rede rodoviária, assistência social,transporte público, entre outros. E não desem-penham eles apenas funções das autarqui-as municipais, mas também do Estado, su-jeitando-se à fiscalização deste no que serefere à execução das leis vigentes50.

Na esfera de sua autonomia, estão osMunicípios protegidos contra o próprio Es-tado de que fazem parte, que a eles deve res-peito, sem prejuízo do poder de lhes imporsujeição à sua fiscalização jurídica e aos in-teresses mais abrangentes e gerais51.

A publicação Perfil da Alemanha registrafragmentos históricos da autonomia muni-cipal naquele país:

“A autonomia administrativa mu-nicipal, como expressão da liberdadecívica, tem tradição na Alemanha.Remonta aos privilégios das cidadeslivres da Idade Média (...)”, entanto,em tempos recentes, relacionada como surgimento do Código das Cidades,

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adotado na Prussia em 1808. A lei fun-damental “garante a autonomia ad-ministrativa das cidades, comunida-des municipais e distritos, dando-lheso direito de regulamentar a critériopróprio todos os assuntos da comu-nidade local, dentro da moldura tra-çada pelas leis. O Direito comunal éda competência dos Estados: as Cons-tituições Municipais diferem muito deEstado a Estado; isso também tem ra-zões históricas”52.

Lässing53, relatando a experiência mu-nicipal alemã, destaca a importância histó-rica desse nível de governo:

“Depois da destruição da II Guer-ra Mundial, foram os Municípios queprimeiro alcançaram condições defuncionamento, pois na miséria e nocaos do pós-guerra, foram eles os pri-meiros a retomar suas atividades, poisseu funcionamento era necessáriopara solucionar os problemas ime-diatos”.

Na mesma linha, Jung54, Diretor da Fun-dação Konrad Adenauer – Stiftung no Bra-sil, assimilando a tendência mundial defortalecimento do Município no Estado De-mocrático, mostra o conteúdo da autonomiano Direito alemão:

“Na Alemanha, existe a medidanecessária de autonomia para quecada Município possa germinar, deper si e sobre sua própria responsabi-lidade, todas as questões que dizemrespeito à comunidade local. Nessaconcepção, a auto-administração mu-nicipal deve ficar livre, na medidapossível, da tutela do Estado. Por isso,os cidadãos são instados a participarativamente da solução dos assuntoslocais. Desta forma, a auto-adminis-tração municipal funciona como es-pécie de escola de democracia”.

Estudiosos como Scheid55 chamam aatenção para o grau de solidez de implanta-ção de regulamentos territoriais democráti-cos e descentralizados na Alemanha, reco-

nhecendo nos Länder os verdadeiros prota-gonistas da política de organização territo-rial. Nesse nível subnacional, a RepúblicaFederal Alemã ostenta estrutura adminis-trativa de planejamento extremamente de-senvolvida e abrangente, cujo princípio é odo “contrafluxo” que materializa uma es-treita combinação do planejamento dos Län-der e de suas entidades subregionais, e queprojeta o Município como instância de exe-cução de várias políticas contempladas noamplo planejamento.

Finalmente, com relação às bases de fi-nanciamento das políticas públicas, caberessaltar que as Regiões dispõem de rendaspróprias oriundas da cota arrecadada pe-los municípios, do recolhimento de impos-tos a elas destinados, de taxas e tarifas rela-tivas aos setores sob sua responsabilidade.Recebem, também, subvenção da União e doEstado para execução de leis ou para inves-timentos específicos. Os Municípios, igual-mente, dispõem de receitas próprias e bene-ficiam-se de transferências e subsídios dosEstados e da União para compensação porexecução de leis ou para subsidiar certosencargos56.

Observa-se que o Município alemão, con-quanto assentado em concepção diversa deautonomia e cuja delimitação decorre dopróprio Estado-Membro, na prática, coloca-se como autêntica instância de democracia,e de cumprimento efetivo do papel estatal.

5.2. Outras experiências de governoslocais

A descentralização do Estado como es-tratégia de democratização é uma tendên-cia generalizada, sobretudo na Europa.

O artigo intitulado “La Democracia Ter-ritorial. Descentralización Del Estado Y Po-líticas en la Ciudad”, de Borja i Sebastiá57,analisa o crescente processo de descentrali-zação do Estado na Europa, mostrando atentativa de se dotarem as instituições ad-ministrativas de maior identidade comuni-tária. O trabalho indica os Municípios como

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sujeitos comunitários privilegiados no refe-rido processo de descentralização, aborda-do como elemento chave para moderniza-ção das administrações públicas e comocondição prévia e favorável à participaçãocidadã. Por outro lado, cuida de questõespolêmicas derivadas da experiência euro-péia de descentralização, notadamente dassituações em que se verifica a hipertrofia dasinstituições representativas locais sem oscorrelatos fins de democratização da gestãoe atuação mais global. Por fim, o artigo mos-tra que o urbanismo que se afigura, acatan-do a diretriz participativa, abandona o rígi-do funcionalismo do passado em favor deuma concepção mais compreensiva e poli-valente da cidade, postulando mecanismosde inclusão da cidadania para materializa-ção da democracia política, econômica, so-cial e cultural. Nesse sentido, deve ser en-tendida a revalorização das cidades, bair-ros e comunidades enquanto espaços privi-legiados de enraizamento da estrutura po-lítico-administrativa e de gestão políticacontemporânea na Europa.

Um estudo comparado dos modelos deorganização de governos locais adotadospor diversos países que se destacam na pres-tação de serviços mostra que o grau de auto-nomia do governo local não guarda relaçãodireta com o nível de eficiência dos serviçosno plano municipal, isto é, a forma de Esta-do ou o tipo de organização não interferediretamente nesses resultados. A relaçãomais direta se estabelece em função dos pa-drões de gestão e do grau de identificaçãodo cidadão com a esfera comunitária. Re-gistramos alguns fragmentos de estudosnesse sentido e que sintetizam as principaiscaracterísticas das administrações selecio-nadas neste tópico.

Relativamente aos Estados Unidos, Es-tado Federal por excelência, Meirelles58, en-fatizando a eficácia do Município a despei-to da falta de arrojo de sua burocracia, apon-ta a multiplicidade de modelos de estrutu-ração do poder local:

“Quanto à forma de administraçãomunicipal, não é menor a diversida-de de sistemas adotados nos váriosEstados e até mesmo entre cidades deum mesmo Estado, podendo-se distin-guir os seguintes tipos básicos: 1) ogoverno por um Conselho (council) quetoma decisões colegiadas; 2) o gover-no por uma Comissão (comission), emque cada membro cuida individual-mente de uma atividade pública; 3) ogoverno por um indivíduo (Mayor), emcujas mãos se concentram amplospoderes, embora assessorado por umConselho; 4) o sistema denominadofederal analogy, bastante próximo doregime municipal brasileiro; 5) o go-verno por um gerente (Manager), con-tratado para administrar a cidade porum determinado período”.

Entre esses sistemas, o mais comum é oGoverno pelo Mayor, no qual a figura cen-tral é a do prefeito eleito, por voto direto enão obrigatório, pela respectiva comunida-de, e o Conselho corresponde a uma Câma-ra Municipal; no sistema de Governo porCouncil, o prefeito é eleito pelo mesmo pro-cesso, mas detém poderes muito mais restri-tos, já que as decisões são tomadas pelaCâmara; o sistema de Governo por Gerenteconcentra o poder político na Câmara, re-servando a gestão administrativa para omanager, uma espécie de profissional con-tratado pela Câmara. Este, detendo conhe-cimentos específicos de Administração Pú-blica, de Finanças, entre outros, reúne con-dições satisfatórias para a indicação de so-luções para o Município, as quais se sub-metem à apreciação pelo Conselho. Contu-do, a regra é a eficiência do serviço munici-pal americano, independentemente do sis-tema que o sustenta, sendo certo que o cida-dão exerce um papel ativo na cobrança dequalidade59.

Acrescente-se que, nos Estados Uni-dos, paralelamente à burocracia tradicio-nal, atuam as agências da AdministraçãoPública Americana, às quais são delega-

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dos poderes para a realização de funçõesde interesse governamental. São formalmen-te dependentes do legislativo e do executi-vo, sujeitam-se ao controle político de suasdecisões, o que é de expressivo relevo parasua eficácia60.

Itália

Meirelles61 analisa a autonomia do Mu-nicípio italiano, indicando múltiplas inter-ferências sobre o campo de atuação do po-der local, seja por meio de mecanismos deintervenção da Província em casos excep-cionais, seja pela presença de delegados domesmo poder provincial em atividades per-manentes de controle, ou ainda pela no-meação de certos agentes pelo Ministério daJustiça.

França

Quanto à França, Meirelles62, realçandoo traço administrativo de sua descentrali-zação, localiza em três níveis as atribuiçõesdaquela natureza: o do Estado, o dos De-partamentos e o da Comuna, reconhecidaesta como uma coletividade territorial e es-fera administrativa preponderante para ocidadão. Mostra, contudo, que a autonomiada Comuna francesa é sensivelmente maisacanhada que a que se atribui ao Municípiobrasileiro, comparecendo ela, naquele Esta-do unitário, na base hierárquica, sucessiva-mente controlada pelo departamento e peloEstado.

A despeito da acanhada autonomia, omodelo de gestão e prestação de serviços pú-blicos na França estrutura-se com grandeapoio nas Comunas. Lorrain63, analisandoesse modelo, realça a especificidade da or-ganização dos serviços urbanos, apontan-do três importantes fatores que os informam.Em primeiro lugar, uma arquitetura admi-nistrativa e um sistema de ofertas que divi-de tarefas entre agentes públicos e privados,nacionais ou locais, tendo como base terri-torial as Comunas. Em segundo lugar, omodelo de serviços urbanos caracteriza-sepela busca de formas cooperativas entre

agentes envolvidos, preservando-se-lhesautonomia financeira, e flexibilidade insti-tucional. Por último, salienta a cultura polí-tica que subjaz à concepção e regulação dosserviços urbanos, qual seja, o critério de boaexecução dos serviços a partir da opiniãodos administrados.

6. Conclusão – uma visão crítica daautonomia no Brasil

1) O Município brasileiro, de inspiraçãoportuguesa, foi introduzido na Colônia, ten-do como modelo institucional de gestão oConcelho lusitano, transplantado da expe-riência urbana de Portugal para a nova so-ciedade política, assentada, especialmente,sobre bases rurais.

2) O processo histórico de estruturaçãoda municipalidade, entre nós, baseado emartificiosos e contraditórios interesses deemancipação comunitária, imprimiu no Fe-deralismo brasileiro feição própria, caracte-rizada, inicialmente, pela garantia de auto-nomia à esfera local e, a partir da ReformaConstitucional de 1926, pela incorporaçãoexpressa do Município, condição que per-sistiu em constituições posteriores até con-solidar-se na Constituição de 1988 comoentidade federativa.

3) Integrando o condomínio do poder noEstado Federal, colocou-se, desde logo, comopartícipe das competências constitucionaisexpressivas da autonomia em diversos des-dobramentos.

4) A despeito do teor autonômico origi-nário do próprio texto da Constituição Fe-deral, e por força de seus próprios ditames,submetia-se a entidade local, até 1988, comraras exceções, à capacidade organizatóriados Estados-Membros, da qual deveria pro-jetar-se a matriz estrutural dos Municípios;o regime municipal como um todo, por suavez, sofria os reflexos dos nefastos proces-sos de concentração de poderes na União,seja no plano financeiro, seja no plano polí-tico-administrativo, pelos reiterados meca-

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nismos de inibição do papel governativo eadministrativo do Município.

5) A descentralização político-adminis-trativa, conquanto seja uma tendência con-temporânea, entre nós, está longe de alcan-çar o estágio desejável, quer pela ambigüi-dade no plano de definição de competên-cias, quer pela imposição de matrizes daUnião que minimizam a força criadora dosMunicípios no sentido de soluções próprias,ou pela persistência de práticas autoritárias,que condicionam a atuação da instâncialocal à capacidade reativa desta em face daquebra dos lindes de sua autonomia peloPoder Central, seja, ainda, pela dificuldadede adaptação da realidade comunitária ànormatividade nacional e vice-versa.

6) Sob a perspectiva de consolidação dadescentralização, a par da superação dasdificuldades apontadas, tornam-se necessá-rias a ampliação das bases da negociaçãopolítica dos processos de dispersão do po-der e de cooperação, a conformação da dis-ciplina legal dos mecanismos da prática fe-deralista cooperativa, o investimento na ca-pacidade institucional dos atores respon-sáveis pela sua operacionalização e a ousa-dia de construção de soluções próprias.

7) Numa sociedade em transição, queabriga situações distintas e contraditórias,em termos de densidade populacional, ex-tensão territorial, arrecadação, renda per cap-ta, características do povo e do eleitorado —sob o signo da mais ampla diversidade cul-tural —, o modelo de autonomia não pode-ria ser o mesmo para todas as municipali-dades e nem poderia ser o Município a úni-ca unidade de Governo local. Experiênciasalienígenas mostram uma proliferação deformas organizativas do poder local em con-traste absoluto com a simetria de organiza-ção política brasileira, na qual sujeitam-seas pequenas comunidades e os grandes cen-tros urbanos, entre os quais figuram mega-cidades do mundo, a idênticas prescriçõesde autonomia.

8) Não se percebe relação direta entreforma de Estado e autonomia de base comu-

nitária ou grau de eficiência da instâncialocal na prestação de serviços públicos. Há,igualmente, Estados unitários e federais comelevados padrões de desempenho do setorpúblico local e com ampla integração da co-munidade nas instâncias decisórias, assimcomo há exemplos extremados de ineficiên-cia e autoritarismo nos mesmos modelos. Oimportante é a prática do regime autonômi-co no plano de realidade em modelos me-nos artificiosos e mais plausíveis e adapta-dos às peculiariedades.

9) Há necessidade de ampla reflexão so-bre a prática descentralizante, com vistas,especialmente, à identificação do núcleo ide-ológico que a sustenta, distinguindo as es-tratégias de sua aplicação, consoante aler-tam os estudiosos da matéria. Como princí-pio democrático, a prática tende a integrar abase comunitária nos processos de decisãoe a estimular o controle social da atuaçãoda esfera local; como princípio de engenha-ria administrativa, a descentralização podesustentar soluções de eficiência pela lógicada proximidade em relação a problemas ealternativas para seu enfrentamento, ou seestabelecer como mecanismo de afastamen-to do Estado de áreas tradicionalmente a elereservadas, o que se vislumbra num hori-zonte de artificiosa substituição dos entescentral e intermediário pelo de âmbito locale, finalmente, pelo mercado, em hipótese deineficiência do Município.

10) Pretende-se como núcleo ideológicoprevalecente na descentralização o de ins-piração democrática, o que invoca a inter-pretação da autonomia segundo paradig-mas que apelam pela inserção do poder co-munitário na esfera decisória de âmbito lo-cal, que se há de expandir como espaço deexperiência direta da cidadania. Nesse sen-tido, o fortalecimento do Município deve, ne-cessariamente, passar pela sua consolida-ção como espaço privilegiado de manifesta-ção dos discensos e tensões e, por conse-qüência, de consensos sociais.

À evolução do regime municipal na cons-trução normativa e nas concepções doutri-

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nárias nem sempre corresponde o aperfei-çoamento da autonomia no plano de reali-dade, isto é, a definição dos contornos daautonomia no sistema jurídico e a internali-zação e sofisticação teórica de seus elemen-tos, pressupostos e desdobramentos não sãoinstrumentos suficientes de contenção domovimento expansionista do poder central;essas balizas podem estar mais ou menosflexibilizadas pela força interpretativa dostribunais e pelas precompreensões e precon-ceitos que se revelam, também, no campo daregulação e da prática da autonomia muni-cipal, tendo em vista as interfaces com osdemais entes federativos.

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1 Sobre o processo de formação dos municípiosbrasileiros, veja-se CARNEIRO, Levi. “Organiza-ção dos Municípios e do Distrito Federal”. Rio deJaneiro: S/ Ed., 1953, p. 9-14.

2 CASTRO, José Nilo de. “Direito MunicipalPositivo”. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 31.

3 GODOY, Mayr. A Câmara Municipal. 2 ed.São Paulo: EUD, 1989, p. 10. APUD CASTRO,José Nilo, IBIDEM.

4 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O Municí-pio no Sistema Constitucional Brasileiro. Belo Hori-zonte: UFMG, 1982, p. 21.

5 CASTRO. Ibidem. p. 30.6 ROCHA. Ibidem. p. 22-3.7 WILHEIN, Jorge. e LEVY, Maria Bárbara.

Apud . DIAS, José Maria A. M. Fundamentos Insti-tucionais do Município Brasileiro. Belo Horizonte:Ed. do autor, 1994, p. 2-4; CASTRO, José Nilo de.Ob. Cit. p. 30-1.

8 ROCHA. Ibidem. 20-7.9 BRASILEIRO, Ana Maria. O Município como

Sistema Político. Rio de Janeiro: FGV, 1973, p. 4.10 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal

Brasileiro. São Paulo: RT, 1985, p. 39.11 BASTOS, Aurelino Cândido Tavares. A Pro-

víncia. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1975.12 MELO, Marcus André B.C. de. O Município

na Federação Brasileira e a Questão da Autonomiain Subsidiariedade e Fortalecimento do Poder Lo-cal. Debates. Fundação Konrad Adenauer Stiftung– Representação no Brasil. São Paulo: Centro deEstudos, 1995, n. 6. p. 64.

13 MELO. Ibidem.14 MELO. Ibidem.15 MELO. Ibidem.16 MELO. Ibidem. p. 65.17 BRASILEIRO, Ana Maria. Capítulo Evolu-

ção do Governo Local no Brasil - Quadro “O Siste-

Notas

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ma maior e a Autonomia Municipal” in O Municí-pio como sistema Político. RJ: FGV (Cadernos deAdministração Pública - Administração Municipal),1973, p. 3-12.

18 DIAS, José Maria de Almeida Martins. Anexo- Quadro Evolutivo da Autonomia Municipal -Contexto Sócio-Político e Econômico Brasileiro inFundamentos Institucionais do Município Brasilei-ro. Belo Horizonte: Edição do autor, 1994.

19 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. TeoriaGeral do Federalismo, Belo Horizonte: FUMARC -UCMG.

20 SILVA, José Afonso da. Curso de DireitoConstitucional Positivo, São Paulo: RT, 1990, p.408 -9.

21 BASTOS, Celso. Comentários à Constituiçãodo Brasil, São Paulo: Saraiva, 1988, v. I, p. 232.

22 HORTA, Raul Machado. Estudos de DireitoConstitucional. Belo Horizonte: Del Rey. 1995, p.523.

23 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Ele-mentos de Direito Municipal, São Paulo: RT, 1993,pp. 62 e 63.

24 SANTANA, Jair Eduardo. Competências Le-gislativas Municipais. Belo Horizonte: Del Rey, 1993,p. 40.

25 op. cit. p. 523.26 FERREIRA, Paulo Brum. O Modelo Federati-

vo Brasileiro: Evolução, o Marco da Constituiçãode 1988 e Perspectivas in Subsidiariedade e Forta-lecimento do Poder Local. Debates. p. 9.

27 FERREIRA. Ibidem.28 MELO. Ibidem. p. 66.29 FERREIRA, op. cit. p. 10.30 FERREIRA: Ibidem.31 MELO, op. cit. p. 65.32 MELO. Ibidem. p. 63.33 MELO. Ibidem.34 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. “Po-

der Municipal: paradigmas para o Estado Consti-tucional”. Belo Horizonte: Faculdade de Direito daUFMG, 1997.

35 Apud FERRARI, Regina Maria Macedo Nery.Elementos de Direito Municipal. SP: RT. 1993, p.65.

36 SILVA. op. cit. p. 415.37 “Afirmamos haver no âmbito municipal as

competências ditas concorrentes, mesmo a despeitode não constar o Município no rol do artigo 24 daConstituição Federal, porque o próprio artigo 30,inciso II, dá a exata magnitude desse campo a serexplorado pelo referido ente. De fato, ´cabe aomunicípio, suplementar a legislação federal e a es-tadual, no que couber’

(...)Releve-se, mais uma vez, que o simples fato de

ter sido o Município excluído do artigo 24 não éfator conclusivo de que não tenha ele competência

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concorrente. Desmente quem assim o afirma o pró-prio teor do artigo 30, II, da Constituição Federal.

Colocado nosso entendimento com relação aotema e, concluindo que se trata de modalidade decompetência legislativa concorrente primária (por-quanto prevista diretamente da Constituição Fe-deral), não podemos comungar, por incompatível,com o pensamento que professa Manoel GonçalvesFerreira Filho ao afirmar que o artigo citado apenasautoriza o Município a regulamentar normas fe-derais ou estaduais” (SANTANA. op. cit. p. 89).

38 “Pensamos que, na verdade, a competênciaconcorrente primária (na sua acepção mais rigoro-sa) somente foi partilhada entre a União, os Esta-dos e o Distrito Federal, nos moldes do artigo cita-do. De modo que, em tais termos o Município nãoa tem. (...)

Portanto, a legislação municipal somente po-derá se efetivar após detectados os requisitos exigi-dos pela expressão “no que couber”, ou seja, paraque seja viável a legislação municipal é de se verque a normação existente é deficiente ou insuficien-te de modo a comportar normação local, aliando-se a isso as demais exigências constitucionais, con-forme teremos oportunidade de ver. Inobstante,utilizaremos a expressão concorrente para desig-nar a competência legislativa municipal que ad-vém do inciso II do artigo 30 (Carta Federal), já queela se encontra de certo modo consagrada em nossomeio” (SANTANA. Ibidem. p. 89).

39 SANTANA. Ibidem. p. 90.40 HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito

Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, p. 524.41 ob. cit. p. 87-8.42 SANTANA. ob. cit. p. 97.43 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito

Constitucional, 1989, p. 277.44 Evento promovido pela Representação da

Fundação Konrad Adenauer – Stiftung no Brasilem conjunto com o Centro de Estudos e Pesquisasde Administração Municipal – CEPAM, da Funda-ção Prefeito Faria Lima, no auditório da CEPAM –Cidade Universitária, São Paulo, nos dias 17 e 18de outubro de 1994, com participação de autorida-des e estudiosos brasileiros, cujos debates estãoregistrados em publicação da referida fundação,sob aquele título e datada de 1995.

45 LÄSSING, Horst. O Papel da Esfera Munici-pal no Modelo Federativo Alemão in Subsidiarie-dade e Fortalecimento do Poder Local. Debates. p.49.

46 Perfil da Alemanha. Societáts - Verlag. Frank-furt Germany. 1992. Tradução: João A. Persh eoutros.

47 Ibidem.48 LÄSSING. op. cit. p. 49-50.49 LÄSSING. Ibidem. p. 49.50 LÄSSING. Ibidem. p. 52-3.

51 LÄSSING. Ibidem. p. 50.52 p. 135-6.53 op. cit. p. 50.54 JUNG, Winfried. Palavras de abertura do Se-

minário Internacional “Princípio da Subsidiarieda-de e o Fortalecimento do Poder Local no Brasil e naAlemanha”. in Subsidiariedade e Fortalecimento doPoder Local. Debates. p. 3.

55 SCHEID, Andreas Hildenbrand. Politica deOrdenación Del Territorio en Alemania. Las experi-encias de Los Länder e su interés para las Comuni-dades Autónomas. In: Ciudad y Territorio Estu-dios Territoriales, III (104). Madrid, MOPT, 1995,p. 297-313.

56 LÄSSING. op. cit. p. 52.57 BORJA i SEBASTIÁ. La Democracia Territo-

rial. Descentralización del Estado y Politicas en laCiudad. In: Ciudad y Territorio-81-82 13-41, Ma-drid, MOPT, 1989 - p. 25-38.

58 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito MunicipalBrasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p.45.

59 Informações extraídas de entrevista feita porPaulo David de Oliveira Ferreira – UFMG com osadvogados Roy Alexander e J. Meurling, o primeiroda Imigration and Naturalization Service e o se-gundo da Shell Oil Company, ambas dos EstadosUnidos.

60 Ibidem.61 “O Município italiano (Comune) é autônomo

no âmbito dos princípios fixados pelas leis da Re-pública, dispondo do poder de editar normas lo-cais e de arrecadar tributos necessários a suas des-pesas. É, entretanto, criado e organizado pelo Esta-do em moldes uniformes para toda a República(CF, art. 118)”.

O governo local é constituído pelo prefeito (Sin-daco), pela Junta Municipal (Giuta Municipale) e peloConselho Comunal (Consiglio Comunale), na confor-midade do Dec. Legislativo 1, de 7-1-46.

O prefeito é o presidente da Junta e o represen-tante legal da Comuna, enfeixando em suas mãostodas as funções executivas da administração lo-cal.

A Junta Municipal é o órgão administrativo au-xiliar do prefeito, constituída por secretários eleitosentre os conselheiros, e variando o seu número de 2a 14 membros, conforme a população da Comuna.A Junta, além de auxiliar o prefeito na rotina admi-nistrativa, colabora com o Conselho na tarefa legis-lativa e pode substituí-lo na função deliberativados casos de urgência, submetendo a sua resolu-ção, posteriormente, à ratificação da Câmara Co-munal. Em caso de impedimento ou irregularidadeverificada na Junta, a Província, por seu governa-dor (Prefetto), pode intervir na Comuna por meiode interventor provincial (Comissario Prefettizio), atéa regularização do governo municipal.

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A Comuna italiana possui, ainda, um órgão suigeneris, que é o Escritório Comunal (Ufficio Comu-nale), dirigido por um secretário remunerado pelaadministração local, mas equiparado em suas prer-rogativas a funcionário provincial, e com a incum-bência de fiscalizar a execução das leis e atos dosadministradores locais. O secretário comunal é no-meado e transferido pelo Ministério do Interior,ouvida a Comuna interessada (Dec. Legislativo 553,de 21-8-45, e Lei 530, de 9-6-47). Sua posição é a dedelegado do poder provincial no Município.

O órgão legislativo da Comuna italiana é oConselho Comunal, composto de membros eleitospor sufrágio direto, em número variável de 15 a 80,segundo a população local” (ob. cit. p. 55).

62 “... as Comunas e os Departamentos que asagrupam são as únicas unidades territoriais comalguma importância político-administrativa na di-visão do território francês. Todavia, comparadascom os Municípios e os Estados-membros brasilei-

Referências bibliográficas conforme original.

ros, essas unidades territoriais desfrutam de umaautonomia muito acanhada, em razão do enérgicocontrole do Estado, que atua até mesmo com po-deres hierárquicos. Esse controle é exercido não sósobre os órgãos unipessoais, como, também, sobreas assembléias locais (Conselhos departamentais ecomunais). Com efeito, no plano municipal, o Con-selho pode ser dissolvido por decreto motivado dopresidente da República, que também pode exone-rar qualquer de seus membros; o Maire e seus ad-juntos podem ser suspensos por um mês pelo Pré-fet (agente executivo do Departamento) e por trêsmeses pelo Ministro do Interior, e revoqués, isto é,destituídos de suas funções executivas, sem prejuí-zo de sua condição de conselheiros municipais, pordecreto do presidente da República, em qualquercaso, sempre motivadamente” (Ibidem. p. 53).

63 LORRAIN, Dominique. El Modelo France deServicios Urbanos. In: Ciudad Y Territorio 15, n. 2,Madrid, MOPT, 1991, p. 15-27.

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1. Introdução

As instituições de controle, entre as quaisdestaca-se o Tribunal de Contas da União,são pouco conhecidas da sociedade e do ci-dadão. Sobre os Tribunais de Contas, já dis-se o Ministro Carlos Veloso, que na atuali-dade ilustra a Presidência do Supremo Tri-bunal Federal: são “casas de esperança”1.

Por desconhecimento, muito provavel-mente, ou em decorrência de fatos episódi-cos, a maioria da sociedade, porém, nãopossui visão tão nobre dessas instituições.

Se esse é o cenário mais facilmente per-ceptível, quando se transpõe a questão parao nível dos Estados federados, o quadro agra-va-se.

Desconhecidos pela sociedade, subme-tidos a intensas pressões políticas oriundasdos segmentos controlados, sem autonomiafinanceira para arrecadar recursos e depen-dentes de liberação de verbas por parte dos

Os limites do poder fiscalizador doTribunal de Contas do Estado

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes é Procuradordo Ministério Público junto ao Tribunal deContas do Distrito Federal, ex-Juiz do Trabalhoda 10ª Região, Professor titular de DireitoAdministrativo da AEUDF, instrutor do CentroIbero Americano de Administração e Direito(Brasil/Portugal) e Instituto Serzedello Corrêado TCU.

Sumário1. Introdução. 2. Tribunal de Contas – uma

instituição de controle. 3. Poderes de fiscalizaçãodos Tribunais de Contas. 3.1. Poder de fiscali-zação do TCU e as demais esferas do governo.3.2. O poder de fiscalização e o dever deprestar contas. 3.3. O poder fiscalizador doTCU sobre recursos repassados às demaisesferas de governo. 3.4. Recursos da Educação.3.5. Convênio entre a União e Estados, Muni-cípios ou Distrito Federal. 3.6. Limites do po-der de fiscalização dos Tribunais de Contas.4. Conclusão.

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órgãos fiscalizados, os Tribunais de Contasdos Estados têm maiores dificuldades parao desempenho de sua missão institucional.

Por outro lado, o Poder Judiciário, quepoderia dar contornos mais eficazes a suaação, normalmente profere decisões valori-zando o princípio da ampla revisibilidadedos atos administrativos, colocando em evi-dência o monopólio da função jurisdicional,num misoneísmo que não abre espaço paraa melhor doutrina, nem para os benfazejosventos da renovação do direito comparado.Também fruto do desconhecimento.

Completando essas matizes desanima-doras, verifica-se que, nas relações entre oscontroles estaduais e federais, ocorre umaespécie de diminuição daqueles frente aestes, porque alguns setores ainda insistemem definir a competência pela regra de ori-gem dos recursos, ao invés do regime de cai-xa. Não é preciso muito esforço para lem-brar que o atual modelo constitucional for-taleceu a arrecadação tributária dos Muni-cípios e da União, criando Estados fracos epobres, com elevado grau de dependênciado poder central.

Numa ampla e aprofundada pesquisana doutrina pátria, verifica-se com facilida-de que não se tem dispensado à competên-cia legislativa estadual maior relevo. No mo-mento, apenas duas obras estudam o direi-to constitucional estadual, demonstrandoque a nossa federação está mais para umsofisma do que para uma realidade. Corolá-rio dessa visão é ainda a falta de estudossobre a competência dos Tribunais deContas dos Estados.

Nas linhas a seguir, demonstra-se, combase em ampla coleta de informações, queos Tribunais de Contas dos Estados têm-selimitado a transferir para a esfera dos entesfederados a competência do Tribunal deContas da União numa simetria exata.

Mesmo assim, há algo a ser dito com somde novidade; muito a ser debatido, em proldo aperfeiçoamento; limites a serem conti-dos e searas a serem limitadas; fronteiras a

serem alargadas e restrições a serem repen-sadas.

2. Tribunal de Contas – uma instituiçãode controle

O Tribunal de Contas, no Brasil, é umainstituição com raiz constitucional, delibe-rando de forma colegiada, incumbida dejulgar a boa e regular aplicação dos recur-sos públicos e auxiliar o Poder Legislativona realização do controle externo da Admi-nistração Pública e no julgamento das con-tas anuais dos chefes do Poder Executivo.

Há duas competências nesse conceito:a) a primeira diz respeito à competência

privativa de julgar contas.Esse termo mereceu detido exame de bri-

lhantes juristas pátrios, a iniciar-se pelo Pro-curador do Ministério Público junto ao TCU,Leopoldo da Cunha Melo2, asserindo que o“Tribunal de Contas não é um simples ór-gão administrativo”, mas exerce “uma ver-dadeira judicatura sobre os exatores, os quetêm em seu poder, sob sua gestão, bens edinheiros públicos”.

Também Pontes de Miranda, com seuperene brilho, sustenta que “a função dejulgar as contas está claríssima no textoconstitucional. Não havemos de interpretarque o Tribunal de Contas julgue e outro juizas rejulgue depois. Tratar-se-ia de absurdobis in idem.”3

Nesse sentido já se pronunciou a JustiçaFederal: “O TCU só formalmente não é órgãodo poder Judiciário. Suas decisões transitamem julgado e têm, portanto, naturezaprejudicial para o juízo não especializado”.

A própria Constituição Federal em vigor,respeitando a linha ortodoxa e histórica,assentou inequivocamente essa natureza aoreferir a “julgar”4, quando elencou a com-petência, e “judicatura”, quando se referiuao exercício do cargo de Auditor, Ministro-substituto5.

b) a segunda refere-se à sua posição cons-titucional, em que exerce a função de auxi-liar o Poder Legislativo no controle externo

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da Administração e no julgamento das con-tas anuais do Chefe do Poder Executivo.

O Tribunal de Contas não é órgão auxiliardo Poder Legislativo, órgão de assessora-mento do parlamento ou seu apêndice. Cons-titui, no mínimo, desconhecimento da históriae da Constituição assim cognominá-lo.

Se assim fosse, como explicar que oTribunal de Contas da União faz auditorianas Casas do Congresso Nacional, julgaaposentadoria de servidores da Câmara edo Senado, determina ao Poder Legislativoque se abstenha da prática de ato? Comoexplicar recente decisão do Tribunal de Con-tas do Distrito Federal, o qual, acolhendorepresentação do Ministério Público queatua junto àquele Tribunal, realizou audi-toria na Câmara Legislativa?

A Constituição Federal de 1988 estabe-leceu no art. 70 que o titular da função doControle Externo da Administração Públicaé o Congresso Nacional, exercendo essafunção com o auxílio do Tribunal de Contas.

Não é raro que menos esclarecidos ten-tem visualizar nesse contexto vínculo de hie-rarquia, que subordinaria o TCU ao Con-gresso Nacional. Guardadas as devidasproporções, observa-se idêntico equívoconas demais esferas de governo.

Incorreto, porém, esse entendimento. Opoder hierárquico, conforme noções elemen-tares do Direito Administrativo, existe naestrutura organizacional típica do PoderExecutivo; por extensão, adota-se como ele-mento de ordenação interna de órgãos ad-ministrativos dos demais Poderes. Para re-lacionar órgãos autônomos ou independen-tes, o vínculo jurídico que existe é o de co-laboração 6. Ninguém ousaria sustentar aexistência de subordinação entre Tribunalde Justiça e Supremo Tribunal Federal ouentre as Casas do Congresso Nacional, exa-tamente porque consabida é a existência darelação jurídica de colaboração.

A propósito, lembra Celso de Mello, atualMinistro-Presidente do Supremo TribunalFederal7, que, “como o Texto Maior desde-nhou designá-lo como Poder” – referindo-

se ao Tribunal de Contas –, “é inútil ou im-profícuo perguntarmo-nos se seria ou nãoum Poder. Basta-nos uma conclusão ao meuver irrefutável: o Tribunal de Contas, emnosso sistema, é um conjunto orgânico per-feitamente autônomo.”

Se é órgão autônomo e não está inseridono Poder Executivo, a relação entre Tribu-nal de Contas e qualquer órgão de Poder éde colaboração, a exemplo do que ocorreentre casas do parlamento ou juízos etribunais do Poder Judiciário.

Esse raciocínio deve ser desde logo esta-belecido a fim de que não se incorra nova-mente em equívoco ao tentar subjugar oTribunal de Contas da União. Por outro lado,devem sempre os Tribunais de Contas terconsciência de que o titular do controle ex-terno é o Poder Legislativo, razão pela qualnão podem deixar de emprestar colabora-ção nas auditorias e inspeções que lhe foremrequeridas.

Aliás, compreende-se que a Constituiçãotenha dado essa titularidade ao Poder Le-gislativo porque esse é composto de repre-sentantes do povo, com legitimidade paraimpor a arrecadação (ou extorsão?) tributá-ria, definir sua aplicação, mediante a LeiOrçamentária, e, por corolário natural,exercer o controle.

3. Poderes de fiscalização dos Tribunaisde Contas

A Constituição Federal não estabeleceuexpressamente os poderes de fiscalizaçãodos Tribunais de Contas dos Estados, doDistrito Federal e dos Municípios. Seguindoo delineamento sistêmico de funções queadotou para outras atividades, definiu acompetência do Tribunal de Contas daUnião, de forma detalhada, nos arts. 70 e71, e, no art. 75, mandou aplicar, no que cou-besse, as normas dispostas para aquela Cor-te, pertinentes à organização, composição efiscalização.

Sobre o assunto, em escólio ao art. 75,assere Manoel Gonçalves Ferreira Filho que“tem-se aqui uma norma de extensão norma-

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tiva (ou seja, regra que estende a outro ououtros órgãos normas que presidem a insti-tuição, ou lhe cometem poderes)”8. Ampa-rado em Rubens Catelli, acrescenta que “anorma dispõe sobre matéria de competên-cia obrigatória pelos Estados-membros, nãopermitindo, em conseqüência, a estes qual-quer distorção na aplicação das normas quecorporificam o sistema de fiscalização ins-tituído”. Ao final, arremata que os Estadosnão podem desobedecer à ordenação dadaao Tribunal de Contas da União, sendo queas normas só podem ser postas de lado onde“não couber a sua aplicação”.

A lógica abona a interpretação literal, namedida em que se pretende, no art. 74, umsistema de controle interno, o qual certamen-te deve ter uma interface com o sistema decontrole externo. Inexoravelmente a estrutu-ração sistêmica exige uma similitude orgâ-nica, só permitida com a simetria imposta.

Aliás, com a singeleza e a capacidade desíntese que sempre o destacaram, pontificaWolgran Junqueira Ferreira: “Todos os ór-gãos estaduais e municipais devem ter si-metria com o Tribunal de Contas da União”9.

Poderia um Estado criar na Constitui-ção Estadual norma que conflite com omodelo federal?

Responde, com propriedade, J. CretellaJr. que “nenhuma Constituição de Estado-membro pode abrigar uma só regra jurídicaconstitucional que conflite com a correspon-dente regra jurídica constitucional federal”.Lapidarmente complementa: “a Constitui-ção Federal é a matriz. Dá os parâmetros aserem seguidos em todo o país”10.

Com sabedoria e senso de Justiça, pode-se equacionar a questão, com respeito aoprincípio federativo, de molde a proporcio-nar uma convivência harmoniosa dos ór-gãos de controle dessas esferas de governo.É possível, porém, que eventualmente sejamsuscitados conflitos de competência. Poresse motivo, impõe-se analisar o poder defiscalização do TCU, dos Tribunais deContas dos Estados, dando maior elastérioao tema proposto, visando oportunizarpossível exame de conflito de competência.

3.1. Poder de fiscalização do TCU e as demaisesferas de governo

Atento à estruturação constitucional,examina-se a seguir cada uma das compe-tências definidas para o TCU e sua corres-pondência nos Estados, Distrito Federal eMunicípios.

Para melhor compreensão do tema, im-põe-se uma análise comparativa de cada umdos incisos da Lei Orgânica, do paradigmafederal frente à Constituição Federal e às vá-rias leis de outros Tribunais de Contas quetivemos a oportunidade de conhecer.

Lei Orgânica do TCU - competência11

Art. 1º Ao Tribunal de Contas daUnião, órgão de controle externo, compe-te, nos termos da Constituição Federal ena forma estabelecida nesta Lei:

I - julgar as contas dos administrado-res e demais responsáveis por dinheiros,bens e valores públicos das unidades dospoderes da União e das entidades da ad-ministração indireta, incluídas as funda-ções e sociedades instituídas e mantidaspelo poder público federal, e as contas da-queles que derem causa a perda, extravioou outra irregularidade de que resultedano ao Erário;

Comentários:O texto reafirma o inc. II do art. 71 da

Constituição Federal de 1988, com mudançade redação. Foi colocado na Lei, em primeirolugar, para destacar a feição jurisdicionaldo Tribunal de Contas, que, nesse particular,exerce julgamento privativo.

Reproduzem essa competência as leisdos Tribunais de Contas dos Estados doAcre, Ceará, Goiás, Mato Grosso, MinasGerais, Pará, Piauí, Rio Grande do Sul, RioGrande do Norte, Rondônia, Roraima, SãoPaulo e Tocantins, entre outros Estados,como também a Lei Orgânica do Tribunalde Contas do Município de São Paulo e doTribunal de Contas do Distrito Federal.

No subitem seguinte, será essa compe-tência analisada com mais vagar.

II – proceder, por iniciativa própriaou por solicitação do Congresso Nacio-nal, de suas Casas ou das respectivas

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Comissões, à fiscalização contábil, finan-ceira, orçamentária, operacional e patri-monial das unidades dos poderes da Uniãoe das demais entidades referidas no incisoanterior;

Comentários:O texto repete o inc. IV do art. 71 da Cons-

tituição Federal de 1988, com mudança deredação.

Reproduzem essa competência as Leisdos Tribunais de Contas dos Estados doAcre, Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais,Pará, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio Grandedo Norte, Rondônia, Roraima, São Paulo eTocantins, entre outros Estados, como tam-bém a Lei Orgânica do Tribunal de Contasdo Município de São Paulo e do Tribunal deContas do Distrito Federal.

III - apreciar as contas prestadas anual-mente pelo Presidente da República, nostermos do Art. 36 desta Lei;

Comentários:O texto repete o inc. I do art. 71 da Cons-

tituição Federal de 1988, com mudança deredação.

É importante notar que, no julgamentoda Suspensão de Segurança nº 1.197-9, emdespacho singular, o atual Presidente do Su-premo Tribunal Federal, apreciando pedi-do do Tribunal de Contas do Estado de Per-nambuco, que requeria a suspensão de efi-cácia da medida liminar de decisão proferi-da pelo Tribunal de Justiça daquela Unida-de da Federação, nos autos do Mandado deSegurança nº 36.947-1, impetrado peloGovernador do Estado, decidiu manter a Se-gurança concedida. Firmava, assim, o en-tendimento de que, no julgamento de con-tas anuais, deve a Corte assegurar a efi-cácia do princípio da ampla defesa e docontraditório.

Da decisão de S. Exa. merece ser desta-cado o seguinte:

“A análise do art. 71, I , da CartaFederal – extensível aos Estados por for-ça do art. 75 – permite, de logo, extrairduas conclusões: (1) a de que o Tri-bunal de Contas, somente na hipó-

tese específica de exame das contasanuais do Chefe do Executivo, emitepronunciamento técnico, sem conteúdodeliberativo, consubstanciado emparecer prévio destinado a subsidiaro exercício das atribuições fiscaliza-doras do Poder Legislativo e (2) a deque essa manifestação meramenteopinativa não vincula a instituiçãoparlamentar quanto ao desempenhode sua competência.

(...)A circunstância de o Tribunal de

Contas exercer atribuições desvesti-das de caráter deliberativo não exoneraessa essencial instituição de controle– mesmo tratando-se da apreciaçãosimplesmente opinativa das contasanuais prestadas pelo Governador doEstado – do dever de observar acláusula constitucional que assegurao direito de defesa e as demais prerro-gativas inerentes ao ‘due process oflaw’ aos que possam, ainda que em sedede procedimento administrativo, even-tualmente expor-se aos riscos de umasanção jurídica.

(...)Todas as razões ora expostas, pois,

levam-me a indeferir a postulaçãodeduzida pelo E. Tribunal de Contasdo Estado de Pernambuco.”

Após longo e detido exame dos funda-mentos da decisão adotada, é possível vis-lumbrar lição que fortalece os Tribunais deContas. De fato, não é razoável supor-se quepretenderia aquela autoridade impor a ma-nifestação do governo interessado, antes daemissão de parecer prévio, sem que reconhe-cesse, de forma subjacente, a definitividadeda manifestação técnica que encerra o Pare-cer Prévio.

Desse modo, a equação que sintetiza acompetência dos Tribunais de Contas podeser assim resumida:

a) o julgamento das contas anuais dosórgãos e entidades, decidindo sobre a regu-laridade, ou irregularidade, é soberano, pri-vativo e definitivo.

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A Constituição excepcionou a competên-cia da ampla revisibilidade desses atos peloPoder Judiciário, inscrita no art. 5º, incisoXXXV, para assegurar aos Tribunais deContas o poder de julgar, na forma do art.71, inciso II;

b) a Constituição tratou das contasanuais da ação governamental, prevendopara o Tribunal de Contas a atribuição deapenas emitir Parecer Prévio, de caráter tam-bém definitivo, mas sem o poder de julgar.

O julgamento é, nesse caso, de cunho po-lítico, fundado nos fatos tecnicamente apu-rados; a Corte, nesse contexto, converte-se,em seu conjunto, no corpo de perícia espe-cializado e credenciado do juiz soberano –a Sociedade contribuinte –, que outorgamandato aos seus legítimos representantes,sob a ação permanente de controle jurisdi-cional do Ministério Público, que tem a mis-são institucional da defesa da ordem jurídi-ca, do regime democrático, da guarda da leie a fiscalização de sua execução, nesse casono âmbito das contas do Distrito Federal.

Repetem essa competência as Leis dosTribunais de Contas dos Estados do Acre,Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará,Piauí, Rio Grande do Sul, Rio Grande doNorte, Rondônia, Roraima, São Paulo eTocantins, entre outros Estados, comotambém a Lei Orgânica do Tribunal deContas do Município de São Paulo e doTribunal de Contas do Distrito Federal.

IV – acompanhar a arrecadação dareceita a cargo da União e das entidadesreferidas no inciso I deste artigo, medianteinspeções e auditorias, ou por meio dedemonstrativos próprios, na forma esta-belecida no Regimento Interno;

Comentários:O texto é uma decorrência natural do que

prescreve o art. 71, inc. IV, da ConstituiçãoFederal de 1988. Aliás, em nenhum país domundo se concebe um Tribunal de Contaslimitado ao exame da despesa.

É importante notar que o Tribunal deContas da União, ao proceder a uma audi-toria parcial na Receita Federal, constatou

gravíssima irregularidade na arrecadaçãode tributos, envolvendo banco multinacio-nal. Quando, em continuidade, pretendeupromover uma auditoria operacional, tevesua ação obviada por uma inexplicável –sob o aspecto jurídico – e vergonhosa – sobo aspecto da moralidade – liminar concedi-da pelo Supremo Tribunal Federal a pretex-to de estar violando o sigilo fiscal12.

Repetem, expressamente, essa compe-tência, de forma idêntica, as Leis dos Tribu-nais de Contas dos Estados do Ceará, Mi-nas Gerais, Rondônia, São Paulo, entreoutros. Nas demais, porém, a competênciaestá subentendida.

VIII – representar ao poder competen-te sobre irregularidades ou abusos apura-dos, indicando o ato inquinado e definin-do responsabilidades, inclusive as de Mi-nistro de Estado ou autoridade de nívelhierárquico equivalente;

Comentários:Repetem o dispositivo acima as Leis Or-

gânicas dos Tribunais de Contas do Distri-to Federal, Mato Grosso, Município de SãoPaulo, Pará, Rio Grande do Sul, Ceará,Piauí, entre outros.

Em alguns tribunais, essa competêncianão é privativa do plenário das Cortes deContas, podendo ser exercida por suas tur-mas ou câmaras.

V – apreciar, para fins de registro, naforma estabelecida no Regimento Interno,a legalidade dos atos de admissão de pes-soal, a qualquer título, na administraçãodireta e indireta, incluídas as fundaçõesinstituídas e mantidas pelo poder públicofederal, excetuadas as nomeações para car-go de provimento em comissão, bem comoa das concessões de aposentadorias, refor-mas e pensões, ressalvadas as melhoriasposteriores que não alterem o fundamentolegal do ato concessório;

Comentários:Essa competência, repetida em todas as

leis orgânicas consultadas, com freqüência,volta a ser debatida em nossos tribunais. O

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Supremo Tribunal Federal firmou entendi-mento de que

“constatada a ocorrência de vício delegalidade no ato concessivo de apo-sentadoria, torna-se lícito ao Tribunalde Contas da União – especialmenteante a ampliação do espaço institu-cional de sua atuação fiscalizadora –recomendar ao órgão ou entidadecompetente que adote as medidasnecessárias ao exato cumprimento dalei, evitando, desse modo, a medidaradical de recusa de registro.

Se o órgão de que proveio o atojuridicamente viciado, agindo noslimites de sua esfera de atribuições,recusar-se a dar execução à diligên-cia recomendada pelo Tribunal deContas da União – reafirmando,assim, o seu entendimento quanto àplena legalidade da concessão daaposentadoria –, caberá à Corte deContas, então, pronunciar-se, defi-nitivamente, sobre a efetivação doregistro.

(....)O Tribunal de Contas da União,

no desempenho dessa específicaatribuição, não dispõe de competên-cia para proceder a qualquer inova-ção no título jurídico de aposentaçãosubmetido ao seu exame”13.

Nesse particular, há um ponto quemerece relevo: se a concessão implicapagamento maior do que o devido, com arecusa do registro, a despesa é declaradailegal; e, se não sustada sua execução,responderá direta e pessoalmente o orde-nador de despesa pela recomposição doerário. Contudo, se está sendo pago valorinferior ao devido, a Corte não detém compe-tência para impor o pagamento.

No desempenho da função de Procura-dor-Geral do Ministério Público junto aoTCDF, temos proposto que, em casos tais,fosse remetida cópia do parecer do Ministé-rio Público diretamente ao interessado, a fimde que, por sua iniciativa, resguardasse o

direito que lhe é devido. A forma conciliató-ria curva-se à exegese do Supremo TribunalFederal e à lógica que impede ao órgão decontrole ser ordenador de despesa. Resguar-da-se a ordem jurídica e o direito lesado,atribuindo-se a quem de direito a iniciativada ação, com o apoio do Ministério Públicoespecializado que atua junto às Cortes deContas.

Verifica-se que os Tribunais de Contasdos Estados, com pequenas alterações, se-guem não só a competência constitucional-mente definida para o TCU, como assimi-lam as disposições legais, podendo apro-veitar a jurisprudência estabelecida emrelação ao paradigma federal.

Exercem o poder de fiscalização de mo-dos diversos, nem sempre intercambiandoexperiências, informações ou tecnologia decontrole.

3.2. O poder de fiscalização e o dever deprestar contas

O poder de fiscalização pode estar ounão associado ao dever de prestar contas.Pode existir o primeiro independente dosegundo, e o segundo independente doprimeiro.

Nas mais variadas vezes, há coincidên-cia entre os órgãos que repassam recursos eos que fiscalizam e os que recebem recursose ficam sujeitos ao dever de prestar contas.

Mais do que isso: ordinariamente, quemrecebe os recursos fica sujeito ao dever de pres-tar contas diretamente ao órgão repassador.

Importante examinar, primeiramente,quem está sujeito ao dever de prestar contas.

3.2.1. O dever de prestar contas

A resposta à questão teve alteração formalrecente com a Emenda Constitucional nº19, de 5 de junho de 1998, que modificou aredação do parágrafo único do art. 70.

Estratificando o comando legal, tem-seque são sujeitos passivos do dever de pres-tar contas:

1) a pessoa física,

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2) a pessoa jurídica, pública ou privada,a) que esteja praticando pelo me-

nos uma das seguintes ações:utilize,arrecade,guarde,gerencie, ou administredinheiros,bens, evalores públicosou pelos quais a União responda;b) ou que em nome desta (da

União) assuma obrigações de nature-za pecuniária.

Como o dever de prestar contas é umaobrigação jurídica, segue-se que, para vali-dade de sua existência, o sujeito deve ser re-conhecido como capaz pela ordem jurídica.

3.2.1.1. Pessoas físicasAssim, a pessoa física deve ser conside-

rada capaz, segundo as regras do CódigoCivil brasileiro, para assumir obrigação.

Se, ao tempo em que se consuma o deverde prestar contas, essa pessoa já não mais éconsiderada capaz ou não existe, a jurispru-dência tem oferecido as seguintes soluções:

a) se o advento da perda da capacidadejurídica ou a morte são anteriores ao julga-mento, as contas são consideradas iliqui-dáveis;

b) se posteriores ao julgamento pelairregularidade, busca-se a recomposi-ção do dano com o patrimônio curadoou transferido. As multas não são trans-feridas, dado o caráter intuito personaede que se revestem.

3.2.1.2. Pessoa jurídica

Estão sujeitas ao dever de prestar contasas pessoas jurídicas, públicas ou privadas,na mais lata acepção.

Desse modo, assujeitam-se a União, osEstados, o Distrito Federal, autarquias, fun-dações, agências executivas, empresas pú-blicas, organizações sociais, sociedades deeconomia mista, associações e sindicatos.

Dada a natureza pública dos recursosque manejam, também estão sujeitos ao

dever de prestar contas os serviços sociaisautônomos, as entidades e conselhos regula-dores das profissões regulamentadas14.

Pelo mesmo motivo, ainda que não perso-nalizados, os fundos públicos com receitasoriundas direta ou indiretamente do erário,respondendo, no caso, o respectivo gestor.

Os organismos internacionais que utili-zem recursos federais, bem como empresassupranacionais, organizações não-governa-mentais, também submetem-se a esse dever.

3.2.1.3. “A qualificadora” utilizar, arrecadar,guardar, gerenciar ou administrar dinheiros,

bens e valores públicosA doutrina saudou com entusiasmo a

clareza da norma, porque afastou qual-quer possibilidade de entidades fugiremao controle.

Coube, contudo, ao próprio TCU darcontornos mais eficazes a essa norma aosubmeter todo o elenco de pessoas referi-das, nos três últimos parágrafos, ao deverde prestar contas, por evidenciar a pre-sença dessa qualificadora.

3.2.2. O direito-dever de tomar contasQuem tem o direito-dever de tomar

contas?Essa idéia remonta à Idade Média,

quando houve a separação das noções dedinheiro público e fortuna dos governan-tes e a separação de funções do Estado. ADeclaração dos Direitos do Homem e doCidadão, de 1789, em seu art. 15, estabe-lece: “A sociedade tem o direito de pedircontas a todo agente público de sua ad-ministração.”

Numa síntese, quem tem o direito de to-mar contas ou a pessoa a qual se dirige odever de prestar contas é a sociedade.

No âmbito da estrutura jurídica institu-cional de controle, a definição da questãonão está diretamente associada à singelarelação órgão-repassador-fiscalizador-tomador das contas, tendo no outro póloórgão-recebedor-fiscalizador e prestador decontas. Antes, incidem sobre essa relação,

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para definir o terceiro e quarto elementos –poder de fiscalizar e tomar contas –, outroscritérios, como por exemplo:

• o princípio da descentralização;• o princípio da economicidade;• o princípio da eficiência;• o princípio federativo.Os princípios referidos defluem da evo-

lução histórico-jurídica, encontrando arrimorecente no Decreto-Lei nº 200, de 25 defevereiro de 1967, e em outros diplomas edi-tados na esteira da reforma administrativa.

O primeiro princípio, à luz do art. 10daquele diploma, assentou-se em linhasdiretivas, como descentralizar e distinguiros níveis de direção e execução, no âmbitofederal; descentralizar da AdministraçãoFederal para as unidade federadas; descen-tralizar a competência da administraçãocasuística – decisão de casos individuais –para os serviços de natureza local, que estãoem contato com os fatos e com o público; porfim, ressalvados apenas “os casos de mani-festa impraticabilidade ou inconveniência”,a execução de programas federais de caráternitidamente local deverá ser delegada aosórgãos estaduais e municipais. Definiu,ainda, que os órgãos federais responsáveispelos programas exercerão a fiscalização eo controle indispensáveis sobre a execuçãolocal.

Poderia a lei descentralizar o controle?A resposta é afirmativa e pode significarimplemento de eficácia, se adotados meiosde gerenciamento adequados de gestão deprogramas. Em plena consonância com avisão de futuro, o próprio Decreto-Lei nº200/67, no art. 14, ao cuidar do controle –portanto norma específica –, recomendou aincidência do princípio da economicidade,segundo expressões vernaculares corres-pondentes da época.

Essas linhas gerais são indicativas deque, se o dever de prestar contas é indelévele inarredável, o mesmo não se pode dizerem relação ao tomador e fiscalizador dascontas, que, embora deva necessariamenteexistir, pode ter parâmetros e forma, ou até o

agente, definidos em norma infraconstitu-cional.

Nesse compasso, é importante assinalarque a reforma do estado tem lançado mati-zes no amplo espectro de competência, rumoà racionalização do controle. Merecem serdestacados os seguintes trechos de impor-tante manifestação do ilustre Dr. DomingosPoubel de Castro, Secretário Federal deControle, in Nota técnica nº 02/SFC/MF,de 9-2-98:

“Tudo isso posto, conclui-se queos procedimentos em vigor, que orien-tam o exame e aprovação da presta-ção de contas de convênios de nature-za financeira, firmados entre a União,estados, municípios e Distrito Federal,não se coadunam com o princípio daeconomicidade exigido nos textosconstitucionais acima referidos, e,tampouco, com a celeridade desejávelna prática administrativa, ensejandoa revisão de tais procedimentos, parao que proponho a inclusão de um ar-tigo na Medida Provisória de nº 1626-48 que organiza e disciplina os Siste-mas de Controle Interno e de Planeja-mento e de Orçamento do Poder Exe-cutivo...

(....)Por tudo isto, e considerando a

economia, inclusive processual, pre-conizada pelo artigo 14 do Decreto-Lei nº 200/67, sugiro a reorientaçãoda matéria, salientando que a suges-tão de valer-se da Medida Provisórianº 1626-48, para implementação daproposta, decorre da pertinência damatéria com as competências do Sis-tema de Controle Interno do PoderExecutivo Federal.

(...)Corroborando esse nosso posicio-

namento, o Excelentíssimo SenhorPresidente da República acabou desancionar a Lei nº 9.604, de 5 de feve-reiro de 1998, aplicável especificamen-te aos recursos do Fundo Nacional deAssistência Social, que determina, de

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modo semelhante, o encaminhamentodas prestações de contas dos recursosdescentralizados pelo Governo Fede-ral para as esferas estaduais e muni-cipais, aos órgãos de controle daque-las esferas governamentais, dispen-sando, destarte, a comprovação formalda aplicação de tais recursos aogoverno Federal, passando a exigir,tão-somente, a comprovação do cum-primento do objeto que tenha moti-vado a transferência dos recursos.”

3.3. O poder fiscalizador do TCU sobrerecursos repassados às demais esferas de

governo

Se é certo que qualquer pessoa, seja físicaou jurídica, que receba recursos públicosfica jungida ao dever de prestar contas; setambém é correto que mesmo Estados,Municípios e Distrito Federal, quandorecebem recursos federais, ficam sujeitos aodever de prestar contas, não é necessaria-mente correto declarar-se ipso facto que os orde-nadores de despesa dessas unidades estãosubmetidos ao poder fiscalizador do TCU.

A definição da competência, ser ou nãodo TCU, e sua exata dimensão depende dasseguintes ocorrências:

a) os recursos sejam públicos federais(lato sensu);

b) os órgãos repassadores sejam jurisdi-cionados ao TCU;

c) do instrumento ou da legislação queensejou o repasse conste o dever de prestarcontas;

d) o direito-dever de exigir as contas sejaafeto ao órgão repassador ou a outro, desdede que sujeito à jurisdição do TCU;

e) que o órgão tomador das contasinstaure tomada de contas especial - TCE,por dano causado ao erário;

f) que a irregularidade seja comprovadae não elidida;

g) que a TCE seja encaminhada ao TCU.Examinando algumas das ocorrências

mais comuns, verifica-se que o poder fisca-lizador não é tão externo quanto pretendem

os que fazem exame perfunctório do art. 70da Constituição Federal.

3.3.1. Recursos do FPE, FPM e Fundef

Os recursos arrecadados pela União,como qualquer dinheiro, “não levam carim-bo” e transferem-se segundo as regras jurí-dicas ordinárias da tradição. Assim, porexemplo, cita-se que a prestação de contasdo Fundo de Participação dos Estados, dosMunicípios e do Fundef é feita perante osrespectivos Tribunais de Contas dos Esta-dos, dos Municípios, onde houver, e do Dis-trito Federal. Compete ao Tribunal de Con-tas da União a tarefa de zelar pelo efetivorepasse dos recursos.

Qual o fundamento jurídico dessa com-petência? É a resposta estabelecida pelo re-gime de caixa: quando o recurso ingressanos cofres das demais esferas de governo,ipso facto, nasce a competência dos respecti-vos Tribunais de Contas. O modelo ideali-zado, com singular mestria, resolve suma-riamente, com amparo na lógica e no direi-to, o problema de competência. Lógico, por-que define por critérios objetivos e racionaisa competência de cada Tribunal: o TCU fis-caliza o cumprimento do dever da União derepassar os recursos até a entrada nos co-fres do Estado; o Tribunal de Contas do Es-tado fiscaliza a entrada do recurso e suautilização. Para ampliar a ação do controlee assegurar o rigoroso acompanhamento emtodas as etapas, o TCU teve a feliz iniciativade firmar acordos de cooperação com osdemais Tribunais de Contas, visando aointercâmbio de informações.

Não só o TCU reconhece que a fiscaliza-ção desses recursos é do órgão de controleexterno da esfera recebedora, quanto o Po-der Judiciário tem igual e uniforme entendi-mento, como se observa deste elucidativoacórdão da lavra do Ministro do SuperiorTribunal de Justiça Anselmo Santiago:

“Processual Penal. Competência. Crimecometido em tese por ex-prefeito. Parcelasdo fundo de participação dos municípios –FPM Decisão15.

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1. Não é da competência da JustiçaFederal o processo e julgamento decrimes praticados na aplicação derecursos financeiros do fundo departicipação dos Municípios transfe-ridos e incorporados ao patrimôniodos Municípios.

2. Conflito conhecido, declaradocompetente o Tribunal de Justiça doEstado de Tocantins, o suscitado.”

3.3.2. Recursos do Fundo Nacional deAssistência à Saúde

Em 5 de fevereiro de 1998, em consonân-cia com as modernas normas administrati-vas, a Lei nº 9.604, estabeleceu a sistemáticareferente à prestação de contas do precitadofundo, dispondo:

“Art. 1º A prestação de contas daaplicação dos recursos financeirosoriundos do Fundo Nacional de As-sistência Social, a que se refere a Leinº 8.742, de 7 de dezembro de 1993,será feita pelo beneficiário diretamente aoTribunal de Contas do Estado ou do Dis-trito Federal, no caso desses entes federa-dos, e à Câmara Municipal, auxiliadapelos Tribunais de Contas dos Municí-pios, quando o beneficiário for o Municí-pio, e também ao Tribunal de Contas daUnião, quando por este determinado.16

Parágrafo único. É asseguradoao Tribunal de Contas da União e aoSistema de Controle Interno do PoderExecutivo da União o acesso, a qual-quer tempo, à documentação compro-batória da execução da despesa, aosregistros dos programas e a todadocumentação pertinente à assistên-cia social custeada com recursos doFundo Nacional de Assistência Social.”

3.3.3. Recursos do Fundo Nacional de Saúde

Por meio da Lei nº 8.080, de 19 desetembro de 1990, regulamentada peloDecreto nº 806, de 24 de abril de 1993, oGoverno Federal normatizou a aplicaçãodos recursos do Fundo Nacional de Saúde.

No art. 8º do retrocitado Decreto, conferiu-se a administração de recursos do FundoNacional de Saúde a uma Junta Deliberativae Diretor-Executivo, sob a orientação esupervisão direta do Ministro de Estado daSaúde. Acresce a Lei nº 8.080 que, “consta-tada a malversação, desvio ou não aplicaçãodos recursos, caberá ao Ministério da Saúdeaplicar as medidas previstas em lei”.

Haveria nessa hipótese a competênciado TCU?

Conquanto tenha definido com clarezaa responsabilidade do órgão repassador, aLei nº 8.080, no art. 35, § 6º, deixou eviden-ciado o seguinte:

“§ 6º O disposto no parágrafo ante-rior não prejudica a atuação dosórgãos de controle interno e externo enem a aplicação de penalidadesprevistas em lei, em caso de irregula-ridades verificadas na gestão dosrecursos transferidos.”

Releva notar que o mencionado parágrafoanterior estabelecia que “as transferênciasde recursos previstas nesta Lei dispensama celebração de convênios ou outros instru-mentos jurídicos” e foi vetado pelo Presi-dente da República.

Após a transferência de recursos, à todaevidência, a competência para julgamentodefine-se nos seguintes termos:

a) para o TCU, a jurisdição permanecesobre o órgão repassador, dado que o fundoé gerido pelo Ministério da Saúde;

b) para os Tribunais de Contas dos Esta-dos ou Municípios da respectiva unidadeque recebeu os recursos, a jurisdição seestabelece em relação aos atos de gestão dosrecursos repassados.

O tema oferece relevância não só noâmbito das contas públicas, como tambémno aspecto penal e no direito cível, pois, sefor entendido que os recursos da saúdecontinuam sendo federais, mesmo apósterem ingressado no orçamento do Estadoou Distrito Federal, por exemplo, a compe-tência para julgar contas será do TCU e crimede apropriação indébita ou de aplicação

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irregular de verbas públicas, será da Justiçafederal. Ao contrário, se for entendido comorecurso público, em conformidade com osclássicos postulados da Lei nº 4.320, de 17de março de 1964 – que estatui normas dosorçamentos e balanços da União, dosEstados, dos Municípios e do Distrito Fe-deral –, no caso do exemplo, os recursos queingressarem nos cofres do Estado ou doDistrito Federal serão estaduais ou distri-tais, conforme o caso, e a competência serádo Tribunal de Contas do Estado ou doDistrito Federal e do respectivo Tribunalde Justiça.

Não se trata, pois, de singela questão deconflito de atribuições entre Tribunais deContas, mas de conflito de competência, derespeito ao princípio federativo.

O Poder Judiciário tem enfrentado aquestão, havendo torrencial jurisprudênciano sentido exposto:

“Penal. Competência. Crime pra-ticado por Prefeito Municipal. Desviode verbas transferidas ao Municípiopor entidade federal. Incorporação aopatrimônio da municipalidade”17.

1. Compete à Justiça comum esta-dual processar e julgar os crimes pra-ticados, em tese, por Prefeito Munici-pal acusado de malversação de verbasconcedidas ao Município por órgãoda Administração Federal, por forçade convênio, em face da prevalênciado interesse municipal sobre o daUnião, vez que referidas verbasincorporam-se ao patrimônio da mu-nicipalidade. Precedente do STF.

2. Conflito conhecido. Competên-cia do Juízo Estadual, o suscitado.

“Penal. Processual. Prefeito. VerbaFederal. Desvio. Crime. Competência18.

1. A verba que a União Federal ouseus agentes entregam ao Municípiose incorpora ao patrimônio municipal.

2. O crime de desvio de verbafederal praticado por prefeito não seinsere na competência Jurisdicionalda Justiça Federal.

3. Conflito conhecido. Competên-cia da justiça comum estadual.”

“Conflito de competência19. Repas-se de verbas federais. Falta de presta-ção de contas. A justiça estadual écompetente para processar e julgaração proposta pelo Município contrao ex-prefeito para que apresentecontas relativas ao repasse de ver-bas federais. Conflito conhecidopara declarar competente o MM. Juizde Direito da comarca de Augusti-nópolis.”

“Processo Penal20. Prefeito Muni-cipal. Desvio de verbas federais con-veniadas.

1. Competência. Tradicional Juris-prudência dos Tribunais Superiores,ora adotada pelo STJ, sobre competirtal ação penal a justiça Estadual, hojea seus tribunais de justiça (Cf. art. 29,VIII).”

Diferentemente, porém, se os recursosdestinados à saúde não ingressam na receitado Estado, ou do Município ou do DistritoFederal, e sendo desviados antes de chegaraos cofres dessa unidade da federação, acompetência é da esfera federal21.

3.4. Recursos da educaçãoA fiscalização dos recursos federais

destinados à educação também é da com-petência das demais esferas de governo apóso ingresso nos respetivos cofres.

Nesse caso em particular, parece que ajurisprudência, antes do advento da Medi-da Provisória nº 1677-58, fazia a distinçãoentre recursos repassados pela União, me-diante convênio22 ou não23. Em isolado acór-dão de uma turma, admitiu aquela Corte aintegral competência do TCU, quando se tra-tar de recursos repassados pela União poroutro instrumento que não seja o convênio,isto é, quando o Estado estiver executandoserviço típico da União por delegação dire-ta dessa. Insta notar que, no caso de convê-nio, o STF, em composição plenária, reco-nheceu a competência da Justiça Estadual.

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3.5. Convênios entre a União e Estados,Municípios ou Distrito Federal

Se a fiscalização dos recursos dos fundosestá bem equacionada, o mesmo também sepode afirmar em relação aos convêniosfirmados entre a União e as demais esferasde governo.

Pano de fundo para a questão é a políticatributária injusta e iníqua, que não se sabegraças a quê ainda não motivou uma nova“derrama” ou inconfidência. Sustentadopor esse equilíbrio instável e letárgico, per-petra-se constante violação aos princípiosvetores da Administração Pública, emespecial ao princípio da impessoalidade.

Efetivamente, como o convênio é ato decolaboração entre as partes, deve ser reco-nhecida razoável – ou enorme – margem dediscricionariedade. A imprensa, sempre vi-gilante, tem apontado indícios de favoreci-mento para Estados geridos por partidos doGoverno Federal ou, ainda, a maciça libera-ção de recursos em períodos pré-eleitorais.Por dever de Justiça e a bem da verdade, taisacusações não são marcas registradas des-te ou daquele governo, parecendo ser mes-mo uma constante.

Qual a situação geral dos convênios? Me-rece o tema atenção da sociedade?

Segundo estatísticas do próprio TCU, noano de 1997, o Governo Federal firmou, sócom os Estados, o Distrito Federal e os Mu-nicípios, 51.004 convênios, numa assom-brosa média de 142 por dia! O total de re-cursos alcançou a cifra de 3,2 bilhões dereais24!

Interessante notar que se estima o con-sumo de 34% do tempo destinado a julga-mentos da Corte federal de Contas para oexame desses convênios.

Embora mereça aplauso a iniciativa defiscalização conjunta, mediante acordo decooperação entre Tribunais de Contas, é pre-ciso refletir se o exame de ditos convêniosde fato insere-se na competência do TCU.

O instrumento de convênio é um ato ju-rídico administrativo. Nele assumem aspartes obrigações recíprocas, entre as quais,

nos termos do art. 116 da Lei nº 8.666/93, odever de prestar contas e a quem é dirigidoesse dever. Pelas normas hoje em vigor, no-tadamente a Instrução Normativa nº 1 daSecretaria do Tesouro Nacional25, o direitode tomar contas é do órgão repassador, nor-malmente o Ministério, a autarquia ou a fun-dação a ele vinculados. Se houver omissão,deverá o órgão repassador instaurar, nostermos do art. 8º da Lei Orgânica do Tribu-nal de Contas da União26, a correspondenteTomada de Contas Especial.

Esse sistema é de fato o único que, inter-pretado com rigor científico, evidencia nãosó conformidade com os melhores postula-dos do Direito, como implica extraordiná-ria racionalização administrativa. Observe-se que, havendo regular aplicação de recur-sos, o dever de prestar contas – e o corres-pondente dever de tomar contas – exaure-seentre os convenentes; havendo omissão, ex-surge o dever de instaurar Tomada de Con-tas Especial e a competência do TCU parajulgá-las.

Importante evidenciar aqui o conteúdodo art. 71, inc. II, da Constituição Federal, inverbis:

“Art. 71. O controle externo, a cargodo Congresso Nacional, será exerci-do com o auxílio do Tribunal de Con-tas da União, ao qual compete:(...)II — julgar as contas dos administra-dores e demais responsáveis por di-nheiros, bens e valores públicos daadministração direta e indireta, incluí-das as fundações e sociedades insti-tuídas e mantidas pelo Poder Públicofederal, e as contas daqueles que de-rem causa a perda, extravio ou outrairregularidade de que resulte prejuí-zo ao erário público.”

A primeira parte do inciso, que define acompetência, renova o direito de julgar con-tas das autoridades da administração dire-ta e indireta federais, na mais lata acepção.Na segunda parte, e por exceção, o Consti-tuinte submeteu também à jurisdição do

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Tribunal de Contas da União aqueles que“derem causa a perda, extravio ou outra ir-regularidade de que resulte prejuízo ao erá-rio público”. Reparem a simetria existenteentre essa norma e aquela insculpida no art.8º da Lei Orgânica do Tribunal de Contasda União27. O fato leva a inafastável conclu-são: somente se ficar apurado em regularprocesso administrativo, no qual, por óbvio,garanta-se a ampla defesa e o contraditó-rio28, o prejuízo ao erário federal é que seformará o liame jurídico que atrai a compe-tência do Tribunal de Contas da União sobreagentes federais repassadores.

Desse modo, a avaliação da gestão se fazsobre o órgão repassador, que está sujeito àpeculiar jurisdição de legalidade, economi-cidade e eficiência do Tribunal de Contasda União. Não havendo a prestação de con-tas do convênio, esse órgão repassador ins-taura a tomada de contas especial e remeteao TCU para julgamento, apontando o res-ponsável.

Em harmônica afinação com o exposto,entende-se a competência definida no art.71, inc. VI, da Constituição Federal, que es-tabelece:

“VI — fiscalizar a aplicação de quais-quer recursos repassados pela União,mediante convênio, acordo, ajuste ououtros instrumentos congêneres, aEstado, ao Distrito Federal ou a Mu-nicípio.”

O poder de fiscalização ora referido seexerce com a maior amplitude, sempre, po-rém, sobre a autoridade repassadora; e, porintermédio dessa, sobre o agente recebedordo recurso. Assim, pode e deve o Tribunalde Contas da União promover o acompa-nhamento sistemático dos atos praticadospela autoridade repassadora, fiscalizar ocumprimento das normas em vigor e até pro-mover a fiscalização in loco. Somente de-pois de decorrido o prazo para a prestaçãode contas, ficando caracterizado o prejuízo,poderá o TCU reportar-se aos agentes pú-blicos não federais, para julgar-lhes as con-tas, em processo de TCE instaurado pelo

órgão repassador. Não se mostra razoável,estando ainda por vencer esse prazo, ser oagente recebedor do recurso submetido à ju-risdição do Tribunal para ter sua condutaavaliada. De igual modo, também não é cor-reto que, tendo prestado contas, considera-das corretas pelo órgão repassador, oTribunal de Contas da União venha a julgaratos de gestão referente a tais recursos.

No âmbito do Distrito Federal, registra-ram-se casos de realização de obras comrecursos federais, obtidos mediante convê-nio, em que houve julgamento tanto peloTribunal de Contas da União quanto peloTribunal de Contas do Distrito Federal.Criou-se inusitado fato, porque a obra foirealizada com parte de recursos federais(18%) e contrapartida de recursos locais. Osatos praticados não poderiam ser julgadosparcialmente. Como conceber-se que 18% deuma licitação foi julgada legal?

O Direito agasalha em seu âmago umaextraordinária lógica e sua aplicação nãopode conduzir ao absurdo. No caso citado,a competência da Corte federal limita-se averificar:

• se os recursos foram repassados;• se houve a correspondente prestação

de contas;• por exceção, se a obra foi realizada.O TCU exerce tal poder de fiscalização

junto ao órgão repassador, podendo obri-gá-lo a proceder à fiscalização in loco ou,havendo motivos suficientes, e justificáveispor critérios de economicidade, poderá rea-lizar, por sua própria iniciativa, a precitadafiscalização.

Em matéria legislativa, coube ao ilustreDr. Domingos Poubel de Castro dar signifi-cativo passo nessa linha diretiva. É eviden-te que o sistema de controle interno está as-soberbado de exames de convênios e que osmesmos vêm sendo fiscalizados pelos Tri-bunais de Contas dos Estados. Percebe-se,por isso, que a busca da qualidade doprocesso decisório de controle e o princípioda economicidade recomendavam uma

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mudança de postura que agasalhasse, emnível infraconstitucional, a exegese raciona-lizadora em tela.

Teve aquela autoridade a feliz iniciativade provocar a alteração da Medida Provisó-ria nº 1.626, que disciplina e organiza osSistemas de Planejamento e Orçamento Fe-deral e de Controle Interno do Poder Execu-tivo, a partir de fevereiro de 1998. Na atuali-dade, a Medida Provisória nº 1677/58 re-gula o tema nos seguintes artigos:

“Art. 26. Os órgãos e entidades, daAdministração direta e indireta, daUnião, ao celebrarem compromissosem que haja a previsão de transferên-cias de recursos financeiros, de seusorçamentos para Estados, Distrito Fe-deral e Municípios, estabelecerão nosinstrumentos pactuais a obrigaçãodos entes recebedores de fazerem in-cluir tais recursos nos seus respecti-vos orçamentos.

§ 1º Ao fixarem os valores a seremtransferidos, conforme o disposto nes-te artigo, os entes nele referidos farãoanálise de custos, de maneira que omontante de recursos envolvidos naoperação seja compatível com o seuobjeto, não permitindo a transferên-cia de valores insuficientes para a suaconclusão, nem o excesso que permi-ta uma execução por preços acima dosvigentes no mercado.

§ 2º Os órgãos do sistema de con-trole interno e o controle externo, a quese vincule a entidade governamentalrecebedora dos recursos transferidospor órgão ou entidade de outra esferade governo, incumbir-se-ão de verifi-car a legalidade, a legitimidade e aeconimicidade da gestão dos recur-sos, bem como a eficiência e a eficáciade sua aplicação.

§ 3º Os órgãos do Sistema de Con-trole Interno do Poder Executivo Fe-deral zelarão pelo cumprimento dodisposto neste artigo, e, nos seus tra-balhos de fiscalização, verificarão se

o objeto pactuado foi executado obe-decendo aos respectivos projetos eplanos de trabalho, conforme con-vencionado, e se a sua utilização obe-dece à destinação prevista no termopactual.

§ 4º O disposto nos parágrafos an-teriores não impede que, nos casos emque julgar conveniente, o órgão do sis-tema de Controle Interno do PoderExecutivo Federal verifique a aplica-ção dos recursos em questão sob osaspectos da legalidade, da eficiência,da eficácia, da legitimidade e da eco-nomicidade.

§ 5º Nas hipóteses de haver des-cumprimento de cláusulas ou de obri-gações por parte do conveniente, oude qualquer forma de inadimplência,os órgãos de controle referidos no § 2ºtomarão as providências no sentidode regularizar as impropriedades ouirregularidades constatadas, inclusi-ve, promovendo, ou determinando, olevantamento da tomada de contasespecial, quando for o caso.

§ 6º Os órgãos e entidades, de ou-tras esferas de governo, que receberemrecursos financeiros do Governo Fe-deral, para execução de obras, para aprestação de serviços ou a realizaçãode quaisquer projetos, usarão dosmeios adequados para informar àsociedade e aos usuários em geral aorigem dos recursos utilizados.”

Aliás, parece que o próprio Tribunal deContas da União já tem esse nível de ciên-cia. Pronunciou-se a respeito o Ministro Ben-to Bugarim, daquela Corte29:

“ (....)8) Natureza dos recursos repassa-

dos mediante convênio:– Entendimento da Justiça Federal:

Conflito de competência: A JustiçaFederal, sempre que provocada adecidir sobre questões oriundas daaplicação de recursos repassados pelaUnião a Estados e Municípios, me-

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diante convênio, tem suscitado con-flito de competência, por entender que,com o repasse, os recursos perdem aqualidade de federais e passam a serestaduais ou municipais, conforme obeneficiário.

– Jurisprudência do STJ: O Supe-rior Tribunal de Justiça, por sua vez,tem julgado procedente o conflito e de-clarado competente a Justiça Esta-dual, ora sob o argumento de que, tra-tando-se de verba transferida, perdeua qualidade de federal, e ora sob o fun-damento de que a União não manifes-tou interesse de ingressar nos autos.”

Efetivamente, essa é a jurisprudência do-minante:

“Conflito. Processual Penal30.Compete à Justiça Federal julgar

prefeito acusado de desvio de verbasdestinadas ao Município em razão deconvênio com a União (Fundo Nacio-nal de Desenvolvimento da Educa-ção).”

“Competência31. Penal. Crime pra-ticado por ex-Prefeito Municipal.Verbas conveniadas da União trans-feridas para o Município, incorporada.

1. Compete à Justiça comum esta-dual o processo e julgamento de cri-mes atribuídos a Prefeito Municipal,acusado de malversação de verbasoriundas da Administração Federal,por força de convênio em virtude daprevalência do interesse do Muni-cípio.

2. Conflito conhecido, competên-cia do juízo suscitado (Tribunal deJustiça do Estado do Mato Grosso doSul).”

“Processual Penal32. Competência.Desvio e má aplicação de verbas.

1. Compete à Justiça estadual pro-cessar e julgar ação proposta contraex-Prefeito acusado de ter desviado ouaplicado indevidamente verba repas-sada pela União Federal ao Municí-pio, em virtude de convênio firmado

perante o Fundo Nacional de Desen-volvimento de Educação.

2. Conflito conhecido para decla-rar competente o Tribunal de Justiçado Estado do Rio Grande do Sul, osuscitado.”

“Habeas Corpus33. Ação Penal con-tra Prefeito Municipal. Malversaçãode verbas concedidas ao Municípiopor entidades federais. Competênciada Justiça Comum.

I – Alegação de competência daJustiça Federal. A verba, ainda queproveniente de entidade federal, pas-sou ao patrimônio da municipalida-de. O prejuízo resultante de sua mal-versação pesou sobre o município, nãosobre a União. Afasta-se a incidênciado artigo 109-IV da Constituição.

II – Perquerir sobre a existênciade dolo ou de prejuízo pressupõeanálise do acervo probatório – tarefaincompatível com a destacando dowrit.

III – Incompetência das câmarascriminais reunidas. Inovação do pe-dido: não-conhecimento. Recurso or-dinário não provido.”

“Habeas Corpus34. Competência. Éda competência da Justiça do Estadoo processo e julgamento de prefeitoacusado de ter-se apropriado de ver-ba oriunda do Ministério da Educa-ção e Cultura, destinada, em virtudede convênio, à construção de escolado Município com quatro salas deaulas. Anulação de sentença conde-natória, proferida por Juiz Federal,bem como de acórdão do Tribunal Fe-deral de Recursos, que lhe deu provi-mento em parte. Remessa dos autos àJustiça comum. Ordem deferida.”

“Inquérito instaurado contra Prefei-to35, para a apuração de desvio derecursos repassados pela União, me-diante convênio, para a realização deobras municipais. Competência daJustiça do Estado.”

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Esse contexto e a adequada exegese dasnormas em questão revelam que os traba-lhos das Cortes de Contas podem ser bas-tante racionalizados, contribuindo aindamais para resgatar o crédito dessas institui-ções, evitando a sobreposição de competên-cias – até porque o modelo federativo e oprincípio da economicidade a repugnam –,além do constrangedor conflito de decisões.

Por outro lado, cientes dos limites dopoder de fiscalização, devem as autoridadesenvolvidas buscar o acatamento dos princí-pios do juízo natural e do devido processolegal.

3.6. Limites do poder de fiscalização dosTribunais de Contas

O poder de fiscalização tem limite sim.Primeiramente, devemos afastar a tese

dos que, por inocência, ingenuidade ou es-treiteza de visão do interesse público, pre-tendem sustentar a existência de limitescomo o sigilo bancário e fiscal.

Não podemos vislumbrar controle semacesso a tais informações, seja porque é pos-sível resguardar a privacidade numa inves-tigação de controle, seja porque não se con-cebe controle de contas considerando-seapenas a despesa, sem permitir-se o exameda receita, inclusive a tributária.

O limite que delineamos é o decorrentedo Estado Democrático de Direito e, portan-to, oriundo da própria Constituição Federal,assim considerado:

a) limitações decorrentes do dever de acatar odevido processo legal

Quando, v. g., a Lei estabeleceu que“diante da omissão no dever de prestar con-tas, da não-comprovação da aplicação dosrecursos, da ocorrência de desfalque ou des-vio de dinheiros, bens ou valores públicos,ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal,ilegítimo ou antieconômico de que resultedano ao Erário deve ser instaurada Toma-da de Contas Especial”, o legislador defi-niu o processo devido para a apuração dairregularidade36.

Essa definição legal de um procedimen-to próprio, quando promulgada pela Lei,imediatamente passou a constituir uma ga-rantia para todos os agentes jurisdiciona-dos ao Tribunal de Contas da União. Se asleis orgânicas dos Tribunais de Contas eri-girem norma semelhante, a exemplo do quefez o TCDF, haverá uma uniformidade na-cional, acatando a pretensão do legislador.

Sobretudo, porém, é um processo que nãose limita às estreitas e frias fronteiras da le-galidade. Consagra, em toda sua extensão,uma possibilidade de apreciação jurídicados fatos, permitindo que sejam sopesados,pelo órgão de controle, todos os fatores queincidiram sobre o agente no momento emque buscava a realização do interesse pú-blico, tantas vezes premido pelas constran-gedoras carências de recursos humanos emateriais. É, portanto, um processo quealmeja justiça.

Bem se vê, portanto, que, embora aguarda e aplicação dos recursos públicospossam ser tutelados por medidas judiciaisà disposição da sociedade, a TCE, comohoje está normatizada, constitui umdireito público subjetivo dos agentesenvolvidos nesse mister, e sua instauraçãopode ser perfeitamente encaixada comouma garantia do devido processo legal,com significativas vantagens para osagentes envolvidos, para a celeridade daJustiça e da sociedade.

Em judiciosa manifestação, lembra oeminente Ministro Substituto do TCU Lin-coln Magalhães da Rocha que a jurispru-dência daquela Corte, ao interpretar o art.197 do RI, “de há muito vem considerandoque a transformação do processo de Denún-cia em Tomada de Contas Especial empol-ga o rito daquela, passando o due process oflaw a ser aquele pertinente ao processo deTomada de Contas Especial”, acrescentan-do que “a esse procedimento não é ínsito osigilo, mas a publicidade”37.

Para os agentes, as vantagens do reco-nhecimento da TCE como direito subjetivosão manifestas, porque permitido será

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postular diretamente, não sendo indispen-sável o patrocínio de advogado, conquantorecomendável, mas apenas nas causas maiscomplexas; também será possível contex-tualizar os fatos na ampla órbita jurídica,avaliando procedimentos com vistas aoDireito e não à restrita interpretação literal.O processo de TCE firma-se com tal força noordenamento jurídico que, no seu curso, nemmesmo as Cortes de Contas podem impedira sua instauração e tramitação, devendodirigir sua atuação para o julgamento38.

Com relação ao Poder Judiciário, só hávantagens em reconhecer o processo de TCEcomo prejudicial de mérito, especialmenteem relação à celeridade e certeza de julga-mento. Celeridade, na medida em que serãodispensados os extensos percursos de rea-lização de perícia, sendo os fatos avaliáveispor pessoas que conhecem os procedimen-tos administrativos e são experimentadosnas peculiaridades, com efetiva garantia docontraditório e da ampla defesa. Certeza,porque a reposição do erário iniciar-se-á comum título executivo, líquido e certo. Consa-grando esse entendimento, já deixou as-sentado o antigo Tribunal Federal de Recur-sos que, “cuidando-se de cobrança executi-va, a título de alcance, embora dispensadaa inscrição, a liquidação da conta proces-sar-se-á perante o órgão competente, valedizer, no caso de crédito da União, medianteo julgamento do Tribunal de Contas”39.

O Supremo Tribunal Federal, guardiãoda Constituição, registra firme jurisprudên-cia no sentido de que o julgamento das con-tas de responsáveis por haveres públicos éde competência exclusiva das Cortes deContas, salvo nulidade por irregularidadeformal grave40 ou manifesta ilegalidade41.

b) limitação decorrente do dever de garantir aampla defesa e o contraditório

• a divulgação de informações não pode pre-cipitar o juízo do julgamento

A sociedade deve ter o direito de ser in-formada de que os órgãos responsáveisagiram para preservar a legalidade. Não se

trata, apenas, de zelar pela imagem institu-cional na imprensa, porque tal perspectivanão seria juridicamente tutelada. Trata-se,ao contrário, de permitir à sociedade o co-nhecimento e controle sobre os órgãos quetêm o dever de zelar pelo bom emprego dosrecursos públicos.

Nesse diapasão, a instauração do pro-cesso para apurar a irregularidade pode serlevada à imprensa, desde que não prejul-gue condutas ou pessoas, sob pena de vio-lação ao devido processo legal.

Peculiar posição respalda a ação do Mi-nistério Público, incumbido constitucional-mente de zelar pela defesa da ordem jurídi-ca, do regime democrático e dos interessessociais e individuais indisponíveis.

Em razão de tal mister, podem os mem-bros dessa instituição dar publicidade deseus atos, inclusive pela imprensa oficiosa,não se constituindo esse fato em violação apreceito jurígeno se houver equilíbrio, pon-deração e amadurecido senso crítico, respei-tando, sempre, a inocência presumível quepaira sobre todos os integrantes de uma co-letividade. Essa publicidade deverá aindase efetivar somente após a preclusão dasfases processuais, de tal forma que registrefatos ocorridos. Assim, pode um Promotorou Procurador do Ministério Público infor-mar que deu entrada numa ação ou represen-tação para apurar um fato, que determinadoagente foi citado para se defender, quandoserá o julgamento do processo, qual foi o deci-sum adotado, se ingressou com recurso, etc.

O eminente Procurador da RepúblicaWellington Cabral Saraiva, em lapidar sín-tese, averbou que: “a imprensa é um instru-mento de trabalho do Ministério Público edo Poder Judiciário. A divulgação amplados atos dessas instituições, além de darcumprimento ao direito da população desaber o que fazem os seus servidores, servecomo meio de comunicação social das açõesde responsabilização dos infratores da or-dem jurídica42. Acresce, ainda, que “a divul-gação da responsabilização e das sançõesdecorrentes de lesão aos valores juridica-

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mente protegidos funciona como meio detornar eficaz a chamada prevenção geral.Como diz Aníbal Bruno, promove-se a pre-venção geral dos crimes por meio de açãoeducativa sociocultural que o direito puni-tivo exerce pela definição dos bens jurídicosfundamentais e pela ameaça da sanção comque procura assegurar a sua inviolabili-dade. Desse modo, o direito dá segurança eforça a seus preceitos e incute na consciênciacoletiva o valor desses bens e o respeito queo sistema jurídico lhes quer garantir,prevenindo sua violação (Das penas, Rio deJaneiro, Rio, 1976, p. 22-3).”

Os servidores do Tribunal de Contas,jungidos à Lei Federal nº 8.112/90, têm suaação restringida pelo disposto no art. 116,VIII, que impõe o dever de “guardar sigilosobre assunto da repartição”. Após ojulgamento, poderiam manifestar-se, com apublicidade do ato, desde que atendido oinciso II desse mesmo dispositivo, namedida em que não seja “desleal” à insti-tuição a que servir.

Quanto aos Ministros do Tribunal deContas da União, por força do disposto noart. 73, § 3º, da Constituição Federal, sãoequiparados em impedimentos aos Minis-tros do Superior Tribunal de Justiça, regidospela Lei Orgânica da Magistratura Nacional.Assim, de igual modo, esses magistradossubmetem-se à vedação do art. 36, III, da LeiComplementar nº 35, de 14 de março de 1979,que averba:

“Art. 36. É vedado ao magistrado:I – (...)(...)III – manifestar, por qualquer meio

de comunicação, opinião sobre pro-cesso pendente de julgamento, seu oude outrem, ou juízo depreciativo so-bre despachos, votos ou sentenças, deórgãos judiciais, ressalvada a críticanos autos e em obras técnicas ou noexercício do magistério.”

Aos Conselheiros das Cortes de Contasse aplica igual restrição, em decorrência deexpressa equiparação a Desembargadores,

encontrada nas Leis Orgânicas desses ór-gãos, como pela implícita regra que decorredo art. 75 da Constituição Federal.

Na atualidade, a propósito, mostra-se in-dispensável que os Tribunais de Contas or-ganizem um sistema de divulgação de suasações, a exemplo do que já vem fazendo oSupremo Tribunal Federal com o encarte doDiário Oficial da União “Informativo doSTF”. Sendo a sociedade uma fonte primá-ria do Direito, é indispensável considerar aimprensa como o mais importante forma-dor de opinião e, nessa linha de entendi-mento, compreender que a ação dos Tribu-nais de Contas só alcançará a eficácia dese-jada com o engajamento da coletividade nocontrole se houver ressonância positiva nasações dessas Cortes.

Na esfera federal, importantes passosnessa direção foram dados na gestão do Mi-nistro Marcos Vinícius Rodrigues Villaça,quando Presidente do TCU.

• qualquer punição só pode ser aplicada apósa oitiva do envolvido

A Constituição Federal de 1988 asse-gura aos litigantes em processo judicialou administrativo , e aos acusados em geral,o contraditório e a ampla defesa, com osmeios e recursos a ela inerentes43.

Como, a rigor, a TCE só assume a natu-reza de processo a partir do seu ingresso noTribunal de Contas na chamada fase exter-na, anteriormente não apresenta partes oulitigantes, porque inexiste uma lide, mas, tão-somente, uma unidade dos atos investiga-tórios rumo à verdade material.

No relatório final da comissão de TCE,poderá esta firmar a irregularidade das con-tas, hipótese em que, após a manifestaçãodo órgão de controle interno e da autorida-de em nível de Ministro ou de Secretário deEstado, ou equivalente, remeterá os autosao Tribunal de Contas para julgamento. Pre-cisamente nesse momento, a TCE assume acondição de processo, quando o órgão ins-trutivo, apreciando a apuração promovidapela comissão e os demais elementos dosautos, destacará os principais aspectos,

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passando, diretamente ou após a delibera-ção do Colegiado das Cortes de Contas –plenário, câmara ou turma –, para manifes-tação do Ministério Público, que funcionaem caráter especializado junto ao Tribunal.

Nesse momento, presenciando a existên-cia de indícios, formaliza-se a acusação, se-guindo-se a citação, defesa e julgamentopelo Tribunal de Contas.

Essa mudança de procedimento paraprocesso de TCE, que, guardadas as devidasproporções, pode ser equiparada às duasfases do processo penal – inquérito policiale ação penal propriamente dita –, é tambémo marco essencial à plena satisfação dosprincípios da ampla defesa e do contraditório.

O princípio do contraditório, comu-mente resumido na antiga parêmia latina– audiatur et altera pars –, consiste no deverdo Juiz, em razão do seu dever de impar-cialidade, de ouvir a parte do processosobre as alegações deduzidas por outra.Também é chamado de princípio da au-diência bilateral.

Esse axioma dá sustentação a toda teoriageral do processo, e sua inobservânciaacarreta a nulidade, ressalvadas as exceçõesexpressamente admitidas em lei, como amedida liminar sem oitiva da parte adversa,que, por isso mesmo, constitui-se instrumen-to restrito.

Com o descortino superior que lhe épeculiar, obtempera o Dr. João BonifácioCabral Jr. que, no Direito comparado, emespecial na doutrina alemã, é reconhecidoque, subjacente ao direito de defesa, estãopresentes três outros direitos, quais sejam:

a) o direito de informação – pelo qual segarante que o interessado, por exemplo, numprocesso administrativo disciplinar, tenhaacesso a todas as informações relativas aoandamento e aos atos do processo;

b) o direito de manifestação – pelo qualse garante ao sobredito interessado o direi-to de manifestar-se oralmente ou peticionan-do por escrito no processo;

c) o direito de ver suas razões conside-radas – vale dizer: no caso de uma sindi-cância ou processo administrativo disci-

plinar, a Comissão, em seu relatório final,não está vinculada a acatar como procedentesas razões de defesa; todavia, isto sim, estáobrigada, sob pena de nulidade, a consi-derar as razões de defesa, enfrentando-as,quer para acatá-las, quer, principalmente,quando for o caso, para mostrar, fundamen-tadamente na prova colhida na instrução, aimprocedência ou inconsistência dasmesmas.

Em decorrência desse princípio, au-toriza-se o servidor ou responsável acontradizer os fatos apurados pela co-missão de TCE, se agasalhados peloMinistério Público na proposta de cita-ção. Para demonstrar a diferença entre aTCE e o processo administrativo discipli-nar, cabe assinalar que, no primeiro, não hánulidade se a prova é constituída sem ob-servância do princípio. A citação posterior,realizada pelo TCU, simplesmente sana oprocesso, na medida em que assegura a maisampla defesa.

c) limitações específicas de órgãos de controle

• o respeito ao poder decisório, quando hou-ver teses juridicamente razoáveis

Já decidiu o TCU44 que, se o Adminis-trador atua seguindo tese razoável firma-da pelo órgão jurídico, não pode ser pe-nalizado.

• a impossibilidade de criar procedimentospara a atividade-fim da Administração

Em norma já esquecida, certa vez o le-gislador pátrio delineou com mestria essacompetência, nos seguintes termos:

“ É vedada a imposição de nor-mas não previstas na legislação ge-ral ou específica”45.

Na atualidade, essa limitação ao poderdecorre de dois fundamentos:

a) o primeiro, que o Tribunal de Contas,exercendo atividade-meio, deve dirigir suaação de modo a não criar novas tarefas ouatividades para os que desenvolvem as ati-vidades- fim.

Obviamente a necessidade de informa-ções e o processo decisório eficaz, em tempo

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real, exigem a ação por meio de inspeções eauditorias, evitando-se sempre a criação deformulários, relações e remessa de incontá-veis documentos, cópias, atas, pareceres, quemuito pouco ou nada contribuem para a efe-tiva ação de controle;

b) o segundo concerne ao dever dos Tri-bunais de Contas de darem cumprimentoao princípio da legalidade, no desempenhode suas funções.

Desse modo, ao impor a alteração de ro-tinas ou procedimentos habituais, devemfazê-lo por intermédio de lei. Por exemplo:remeter ao tribunal relação dos ordenado-res de despesa, com os dados...

Não se confunde com o princípio da re-serva legal e, portanto, prescinde de lei or-dem do Tribunal de Contas para ajustarações ao fiel acatamento da norma.

4. ConclusãoEsse breve panorama da legislação e as

considerações expendidas permitem con-cluir definindo dois vetores fundamentais– limitador e expansor – para a ação docontrole externo exercido pelos Estados-membros.

O primeiro impõe limite ao poder do con-trole externo do Estado-membro frente à so-ciedade dos órgãos e agentes controlados, de-finidos pelo Direito, e estabelece uma relaçãode cooperação com o Poder Legislativo.

O segundo vetor expande o poder docontrole externo dos Estados-membros emduas grandes áreas: primeiro ao estabelecerlimites aos órgãos federais em suas incur-sões controladoras sobre gestão de recursosadministrados pelos Estados; segundo aoampliar o modelo estrutural da ação de con-trole externo, permitindo o desenvolvimentode novos paradigmas de sistemas, que, pelacriatividade, possa açambarcar em favor docidadão a mais ampla expressão de uso efi-caz e probo de recursos públicos.

Sobre o primeiro vetor – limitador do con-trole –, Montesquieu ensina: “para que nãopossa abusar do poder, é preciso que, pelas

disposições das forças, o poder detenha opoder. Dando azo à filosofia pátria, acres-centaríamos, com Calheiros Bonfim: “Todoo poder a salvo de controle externo tende aoabuso, ao arbítrio, ao autoritarismo. Dessaregra não se excetua o Judiciário, nem qual-quer outra instituição.” Observe que o re-nomado jurista abre exceção ao controleexterno como fator limitador de poder,mas não aos órgãos de controle externoque, a exemplo dos órgãos do Poder Judi-ciário, devem ser submetidos também aum controle externo.

Por isso, os Tribunais de Contas têm odever de prestar contas de sua gestão aoPoder Legislativo, mediante relatórios perió-dicos e realização de auditorias e inspeçõesrequeridas, com acatamento da forma regi-mental pelas casas parlamentares.

Em estudos no Direito comparado, veri-fica-se que a evolução da sociedade leva aoexaurimento da função legislativa e aprimo-ramento da função de controle, competindoao Poder Legislativo estar ciente da atençãoque deve dispensar à elaboração da Lei Or-çamentária e ao julgamento das Contas doChefe do Poder Executivo. Em conferênciarealizada em Coimbra, sob os auspícios doCentro Brasileiro de Administração e Direi-to – CEBRAD, destacamos esse papel, asso-ciado à ação dos Tribunais de Contas comoinstrumento de combate à corrupção numavisão de futuro, a curto espaço de tempo.

Na Argentina, enfocamos a importânciado papel do controle em ano eleitoral comoimportante instrumento de garantia à regu-laridade do processo democrático, impedi-tivo de abusos da máquina administrativa.

É nesse cenário que vislumbramos o pa-pel do Poder Legislativo e dos órgãos de con-trole externo, no qual todos nós temos umrelevante papel a desempenhar, vez que osistema pressupõe um nível de amadureci-mento da cidadania em que a expressão“recursos públicos” assuma a conotação derecursos de todos e não mais recursos deninguém.

Sobre o segundo vetor – expansor –, alémdo que já foi exposto, não se pode olvidar

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Klaus Vogel, citado por Raimundo JulianoRêgo Feitosa, quando assinala a existênciade nexo entre o surgimento do Estado de-mocrático constitucional e a inserção damatéria financeira nas constituições e atri-bui à luta pelo direito de elaborar a legisla-ção tributária o ponto de partida para for-mular outras exigências como liberdadespúblicas46.

A completar esse cenário, é preciso in-centivar o desenvolvimento da ação fiscali-zadora do cidadão, tal como pretendia o mo-vimento iluminista quando insculpiu na De-claração dos Direitos do Homem e do Cida-dão, em 1789: “a sociedade tem o direito depedir conta a todo agente público de suaadministração”47.

No delineamento das competências tri-butárias, coube ao Estado o imposto maisdiretamente relacionado com a coletivida-de e a riqueza da sociedade: o imposto so-bre a circulação de mercadorias e parcelasoriundas das repartições de tributos dascompetências das outras esferas de gover-no. Por esse motivo, o controle das riquezasdos Estados-membros depende, ainda mais,do amadurecimento político de um povo eda consciência da cidadania como parcelada sociedade.

Na medida em que não se desenvolveum Direito Constitucional estadual, deixa asociedade de explorar as potencialidades deorganização, estruturação e definição decompetências próprias e peculiares, passan-do a exercer o papel menor de acolher ma-trizes federais. Em decorrência, na esfera dafiscalização e controle – que exige maiorexercício do controle dos direitos difusos –,a legislação sofre duplamente: pela atrofiano exercício, pelo subjugamento ao limita-do papel de copiar competências.

Há searas a explorar e aqui se pode refe-rir, por exemplo, ao controle sobre execuçãodos serviços públicos, tema sobre o qualtivemos a oportunidade de oferecer projetode lei, ao Deputado Distrital Peniel Pache-co, imediatamente aprovado, sem alteração,pelo parlamento local. Muito há ainda a serfeito, como, por exemplo, os Tribunais de

Contas criarem sistema de atendimento aopúblico, que, ainda não corrompido pelosentimento de impunidade, busca quem lheescute para oferecer uma denúncia ou fazeruma reclamação.

Entre a harmonização com o modelo es-tabelecido pela Constituição Federal e a im-possibilidade de inovar ou o dever de copiar,existe uma longa distância e compete aosoperadores do direito vivificar a norma, tor-ná-la fértil, real, concreta, para que a socie-dade sinta a presença permanente da pos-sibilidade de exercitar o controle, sem cus-tos pessoais ou financeiros, sem demorasou objeções, sem timidez ou vergonha.

Que o desenvolvimento desse rico ma-nancial de exercício do Poder Consti-tuinte Decorrente e de legislar seja efeti-vamente progressivo e aponte na direçãode novos horizontes na consolidação deuma sociedade mais consciente, justa efraterna.

Notas

1 Por ocasião do I Encontro Nacional deProcuradores do Ministério Público junto aos Tri-bunais de Contas, realizado em Brasília, em abrilde 1994.

2 Pareceres, 1950, vol. IV, pág. 118/9, apud Sea-bra Fagundes, O controle dos atos administrativospelo Poder Judiciário, Rio de Janeiro, Forense, pág.144, nota de rodapé ao § 69.

3 Ob. cit., pág. 239.4 Art. 71, inc. II, da Constituição Federal5 Art. 73, § 4º, da Constituição Federal6 Nesse sentido, José Cretella Jr., in Curso de

Direito Administrativo, 12ª ed., Ed. Forense, Rio deJaneiro, p. 71.

7 RDP 72:137.8 Comentários à Constituição Brasileira de 1988,

vol. 1, Ed. Saraiva, São Paulo, 2ª ed. atual. e re-form., p. 412.

9 Comentários à Constituição de 1988, vol. 2, 1ªed. Julex, Campinas-SP, p. 634.

10 Comentários à Constituição de 1988, vol. V,– Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

11 Publicada no D.O.U. de 17-7-1992.12 MS nº 22801-6.13 MSG nº 21.466-0, de 15 de maio de 1993, DJ

de 6-5-94, seção I, pág. 10.486.

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Federal do Rio de Janeiro para o Curso de PolíticasPúblicas, oferecido a servidores do TCU.

30 CC 14358/RS, Relator Min. Felix Fischer. Pro-cesso STJ nº 95/0034767-9, publicado no DJ de 19-5-97.

31 CC 17541/MS, Relator Min. Anselmo Santia-go. Processo STJ nº 96/0036000-6, publicado noDJ em 19-12-97.

32 CC 12580/RS, Relator Min. Anselmo Santia-go. Processo STJ nº 95/003293-1, publicado no DJem 13-5-96.

33 RHC-71419 / MT. Relator Ministro FranciscoRezek, publicado no DJ em 16-6-95.

34 HC 55074/CE STF Relator Min. Leitão deAbreu. Publicado no DJU 9-8-77.

35 RE 205773/SC STF Relator Min. OctávioGallotti. Publicado no DJ de 1-8-97.

36 Art. 8º da Lei nº 8.443/9237 Excerto do voto proferido no Proc. TC –

019.880/93-6, publicado no DOU de 26-3-96, p.5.013 e s.

38 Colhe-se o seguinte excerto do voto do Minis-tro Paulo Affonso: “Outrossim, convém esclarecerque esta Corte de Contas não tem o poder de obstaro andamento de contas especiais instauradas pelosórgãos repassadores de recursos federais, a quemcompete aprovar as respectivas contas, devidamentecertificadas pelos órgãos de controle interno, con-soante reiterado no âmbito desse Tribunal”. Proc.TC - 009.458/93-0, Decisão 019/96 - TCU - Plená-rio, Ata 04/96, sessão de 31-1-96 – ordinária, pu-blicada no DOU de 22-2-96.

39 Apelação Cível 63.492-RN, Rel.: Min. Sebas-tião Alves dos Reis, em 29-3-82, publicada no DJUde 6-5-82.

40 MS 6.960, 1959.41 RE 55.321/67-PR, publicado no DJU de 24-

11-67; MS 7.280, 1960.42 In Correio Braziliense, Caderno Direito e Jus-

tiça, de 26-2-96, p. 5.43 Art. 5º, LV.44 Decisão 074/97 - TCU Plenário. Relator: Min.

Carlos Átila. Publicada no DOU em 11-3-97, p. 4782.45 Lei nº 6.223 de 14-7-75, art. 7º, § 2º.46 Constituição Financeira: a ordenação da ati-

vidade financeira e tributária do Estado, artigo ain-da inédito, distribuído em aula pelo autor.

47 Art. 15.

14 Decisão nº 047/95 – TCU – 1ª Câmara – Re-lator: Min. Homero dos Santos DOU: 21-3-95 –Seção I, p. 4647.

15 CC 15887/TO Processo nº 95/0068699-6,publicado no DJ de 1-7-96, p. 23981.

16 Grifos nossos.17 CC 15530/RS Processo STJ nº 95/0057266-4.

Relator: Min. Vicente Leal. Publicado no DJ em 26-2-96, p. 03929.

18 CC 13073/RS Processo STJ nº 95/0013207-9.Relator: Min. Edson Vidigal. Publicado no DJ em 5-2-96, p. 01351.

19 CC 20294/TO Processo STJ nº 97/0057614-0. Relator: Min. Arri Pargendler. Publicado no DJ24-11-97, p. 61087.

20 CC 12578/RS Processo STJ nº 95/0003289-9Relator: Min. José Dantas. Publicado no DOU em23-10-95, p. 35604.

21 RECR 196982/PR, STF. Rel.: Ministro Neri daSilveira. Publicado no DJ em 27-6-97 PP 30247Ement. Vol-01875-09 PP 01779 (anterior à MP1677-58).

CC 13325/SP Processo STJ nº 95/0016788-3.Relator Min. Cid Flaquer Scartezzini, publicado noDJ em 3-2-97, p. 0063 (anterior à MP 1677-58).

22 RECR – 76789/RN, STF. Relator MinistroThompson Flores, publicado no DJ em 14-5-76 PG.

CC 15666/DF, Processo STJ nº 95/0061338-7. Relator Min. Ari Pargendler, pub. no DJ em 18-3-96, p. 07499.

HC 055074/CE, STF. Relator Min. Leitão deAbreu, publicado no DJ em 9-8-77 PG. RTJ. Vol.00082-02, p. 378.

23 HC 74788/MS, STF. Relator Min. SepúlvedaPertence, publicado no DJ em 12-9-97 PP-43714Ement Vol-01882-01 PP - 00112.

24 Dados obtidos em palestra do Ministro BentoBugarin, em 29-5-98, no Instituto Serzedello Cor-rêa, no curso de Políticas Públicas.

25 Publicada no Diário Oficial da União de 31 dejaneiro de 1997, p. 1887 a 1896.

26 Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992, publica-da no D.O.U. de 17-7-92.

27 Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992, publica-da no D.O.U. de 17-7-92.

28 Art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal29 Painel de Debates promovido, no dia 29-5-98,

no Instituto Serzedello Corrêa, pela Universidade

Referências bibliográficas conforme original.

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O processo de fortalecimento democrá-tico constitui-se no resultado da mutaçãohistórica dos comportamentos e represen-tações coletivas, em que a formalização dasmentalidades influenciam as estruturassociais e as superestruturas ideológicas1.

“A participação do cidadão no po-der, como característica da demo-cracia, configura-se pela tomada deposição concreta na gestão dos negó-cios” do Estado, “consagrada essaparticipação através de modalidades,procedimentos e técnicas diferentes”2.

O desenvolvimento do constituciona-lismo delimitou juridicamente o enquadra-mento dos fenômenos políticos, formulandoa premissa doutrinária que conecta o Estadoà Constituição, o sistema partidário aosregimes representativos e a mecânica elei-toral à base social.

A idéia da institucionalização do siste-ma partidário como instrumento de racio-nalização e organização do poder, tanto porsua função representativa, quanto por suafunção governativa, constitui pressupostoinquestionável da dogmática constitucional.

Da polis grega ao Estado Moderno, aquestão da representação assumiu novascolorações, vez que, na Antigüidade, a socie-dade política era representada pelos que

Limitação dos mandatos legislativos: umanova versão do contrato social

Maria Elizabeth Guimarães TeixeiraRocha

Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rochaé Professora de Direito Constitucional e Mes-tra em Ciências Jurídico-Políticas pela Univer-sidade Católica Portuguesa.

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governavam a Cidade e, no Estado Moderno,o poder do Estado representa a Nação,portanto, a concepção de representaçãoinfluencia diretamente a própria concepçãode Estado3.

Contudo, a reflexão jurídica e a análisesociológica que se pretende abordar diz res-peito à questão da legitimidade e os funda-mentos do poder numa sociedade políticaem crise.

Quer-se discutir os novos contornos darepresentação político-partidária, num mo-mento histórico relevante que vivencia que-das de regimes, variações de ideologias e deestruturas de autoridade.

A novel sociedade política que emergedo realinhamento de forças no EstadoContemporâneo questiona o credo iguali-tário e libertário teorizado pelo EstadoBurguês, pondo em cheque os dogmas jurí-dicos e os antagonismos da representaçãode vontades.

O term limits, objeto de exame deste tra-balho, aprovado, via referendum, em vinte edois estados da federação norte-americanae que visa limitar o mandato eletivo dos par-lamentares estaduais por um período variá-vel de 6 a 12 anos, reavalia as dimensões e osignificado do contrato social.

Mecanismo revisor das bases do poder edo próprio conceito de representação, oslimiting terms, instrumento que se pretendeadotar em um Estado sacralizado por Ale-xis de Tocqueville como o berço da demo-cracia ocidental, buscam suprimir o políti-co profissional ou, se preferir, extinguir aPolítica como profissão segundo a termino-logia de Max Weber.

Numa breve digressão histórica, pode-se afirmar que a teoria da representaçãoprecede o liberalismo alcançando a Anti-güidade Greco-Romana e a Idade Média,consoante a concepção teocrática expos-ta por Santo Thomás de Aquino e susten-tada pelos teólogos católicos Belarmino eSuárez , que assentaram bases eminente-mente democráticas de organização e usodo poder político.

Distinguindo no poder três elementos: oprincípio, o modo e o uso; o primeiro – oprincípio do poder –, provindo de Deus, cria-dor do Universo, e o segundo e terceiro, ine-rentes aos homens, fonte da soberania, San-to Thomás escreveria:

“As leis positivas estabelecidaspelos homens são justas ou injustas.Quando são justas elas têm, pela leieterna de onde derivam, a força deobrigar os homens, conforme a pala-vra da Escritura: é por mim que os reisreinam e os legisladores fazem leisjustas. As leis opressivas, que impõemencargos injustos aos súditos, ultra-passam os limites do poder conferidopor Deus, e não se é obrigado a respei-tá-las, se puder resisti-las sem escân-dalos ou males exteriores”4.

Resistir à opressão continua sendo, des-de a metafísica e cosmologia que inspirou ateologia medieval ao racionalismo queinspirou o pensamento moderno, o grandedesafio da humanidade.

A tese do século, síntese do iluminismo,fixou o indiscutível axioma jurídico: “semcontrato social não há legitimidade”.

O racionalismo filosófico oporia-se àspremissas teocráticas que consideravamDeus princípio do poder e produziria osconceitos de soberania, poder constituinte erepresentação, provocando a primeira crisede legitimidade da sociedade ocidental5.

À toda evidência, a tônica da legitimida-de recaiu na ideologia de sustentação doTerceiro Estado, donde decorre que ideolo-gia é pressuposto de legitimidade.

Essa tese, mesmo quando não explicita-mente enunciada, encontra-se tanto no con-ceito hobbesiano de autoridade6, quanto nopensamento individualista e democráticode Locke7 ou no contratualismo de Rous-seau8, autores que resumem o pensamentopolítico de seus contemporâneos e cujasidéias exerceram larga influência naevolução do constitucionalismo.

A idéia de representação seria reto-mada na atualidade por Max Weber, que

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a associou aos conceitos de autoridade edominação.

Segundo Weber, é na esfera política quese desenvolvem as relações de potência –Macht – e de poder – Herrschaft, marcadaspor uma luta incessante9.

Sua definição de Estado como “mono-pólio da força legítima“, repetida, com pou-cas variações, em seus últimos escritos, per-tence à tradição clássica do pensamento po-lítico, o qual é retomado “idealmente”, najustificação hobbesiana do Estado produtoda renúncia ao uso da força individual, con-forme era feito pelos homens no estado na-tural, com o objetivo de deixarem a anar-quia e darem vida a uma força coletiva (cha-mada por Hobbes, “poder comum“) que osprotege uns dos outros.

Weber define o Estado “sociologica-mente” como um meio específico que, comotoda associação política, detém a força físi-ca (die physische Gewaltsamkeit). Para validaro realismo dessa afirmação, cita Trotski em“Brest-Litovsk”: “todo o Estado é fundadona força (Gewalt)”. E comenta:

“na verdade, é justo que assim seja. Sesó existissem organismos sociais queignorassem a força como meio, o con-ceito de Estado teria desaparecido eem seu lugar haveria o que, num sen-tido especial da palavra, poderíamoschamar de ‘anarquia’”10.

Na esteira desse entendimento, NorbertoBobbio, transpondo o sociologismo deWeber para o jurisdicismo de Kelsen, for-mula a definição do Estado como “a orde-nação jurídica que tem o uso exclusivo dopoder de coação como atribuição das suasnormas” 11; se se admitir que em qualquergrupo humano há duas outras formas depoder – o ideológico e o econômico –, poder-se-á precisar, ulteriormente, que o monopó-lio da força ou o uso exclusivo do poder decoação é uma condição necessária à exis-tência do Estado.

Essa idéia de Estado-de-poder também épartilhada por Marx, que encara as relaçõesinternas de cada Estado como pura força, jáque ele se baseia no domínio de uma classe

sobre outra, que só pode ser mantido pelaforça12. As relações de força que existem en-tre os Estados refletem, muitas vezes, re-lações de forças internas, embora os defen-sores do Estado-de-poder tendam a disfar-çá-las sob o manto do interesse nacional13.

A redução do poder político à domina-ção, à aceitação da autoridade, é defendidapor autores tão diferentes ideologicamentecomo Thomás de Aquino, Marx, Nietzsche14,Weber, Aron, Mosca, Pareto e Wright Mills.

Precursores da teoria das elites, Mosca,Pareto e Mills responderam que em toda asociedade existe sempre, e apenas, uma mi-noria que, por várias formas, é detentora dopoder, em contraposição a uma maioria quedele está privada.

A teoria das elites nasceu e se desenvol-veu por uma especial relação com o estudodas elites políticas, podendo ser redefinidacomo a teoria segundo a qual, em cada socie-dade, o poder político pertence sempre a umestrito círculo de pessoas e se traduz no po-der de tomar e de impor decisões válidaspara todos os membros do grupo, mesmoque tenha de recorrer à força, em última ins-tância15.

A elaboração, tornada clássica, dessateoria encontra-se nos “Elementi di ScienzaPolítica” (1896), de autoria de GaetanoMosca. Segundo ele:

“Entre as tendências e os fatos pre-sentes em todos os organismos políti-cos, existe um cuja evidência pode serfacilmente verificada: em todas associedades, a começar por aquelasmais mediocremente desenvolvidas,apenas chegadas aos primórdios dacivilização, até as mais cultas e fortes,existem duas classes de pessoas – ados governantes e a dos governados.A primeira, que é sempre a menosnumerosa, cumpre todas as funçõespúblicas, monopoliza o poder e gozaas vantagens que lhe são inerentes;enquanto a segunda, mais numerosa,é dirigida e regulada pela primeira,de modo mais ou menos legal ou demodo mais ou menos arbitrário e

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violento, fornecendo a ela, ao menosaparentemente, os meios materiais desubsistência e os que são necessáriosà vitalidade do organismo político”16.

Mas a evocação da expressão “elite” per-tence a Pareto, que, sob a influência de Mos-ca, enunciou, na “Introdução dos SistemasSocialistas” (1902), a tese segundo a qualem toda a sociedade há uma “classe supe-rior” que detém, via de regra, o poder polí-tico e econômico, chamada “aristocracia”ou“elite”17.

Obviamente, não se trata de um pensa-mento inusitado. O próprio Mosca reconhe-ceu em Saint-Simon, Taine, Marx e Engelsseus predecessores. O mérito de Mosca con-siste no fato de ele ter tentado elaborar umadoutrina científica, fundada numa impar-cial observação dos fatos, sem qualquerconotação ideologizante de política18.

Seu primeiro e fundamental princípiometodológico consistia em recolher o maiornúmero possível de fatos históricos das maisdiversas civilizações. A construção da Ciên-cia Política estava, para ele, irremedia-velmente ligada à “condição indispensávelde conhecer a história, ampla e exatamente;o que não era possível para Aristóteles,Maquiavel, Montesquieu ou qualquer outroescritor que tenha vivido há mais de umséculo, pois as grandes sínteses só podemser tentadas depois da reunião de uma vas-ta coletânea de fatos, estudados e verifica-dos com critério científico”19. Assim, paralivrar-se dos preconceitos nocivos à forma-ção de uma ciência objetiva é necessário “terestudado muitos fatos sociais” e “conhecerbem e muito a História, não só de um perío-do ou de um povo mas, possivelmente, detoda a humanidade”20. E mais, é necessárioainda combater o socialismo (remédioutópico que jamais se poderia implementar,sendo os homens como são, “egoístas e du-ros de coração, a não ser sob a mais crueltirania”)21 e a democracia (cujo axioma teó-rico é o governo da maioria), pela boa razãode que nunca houve e nem haverá um go-verno da maioria. Mosca expõe a faláciaque é a democracia social, demonstrando

como, em um mundo onde um tal sistemapreponderasse, “os grandes da terraseriam os senhores absolutos de tudo”22.

Expurgando essas falsas doutrinas dasociedade e do Estado e substituindo “todoum sistema metafísico (...) por um completosistema do positivismo”, o diletantismo dos“politicantes”, que abriam um fosso entre aciência e a política, seria afastado23.

A partir da aplicação adequada dométodo histórico, Mosca reformulou concei-tos fundamentais da teoria política tradicio-nal, como o das três formas clássicas degoverno para renovar o conteúdo das Ciên-cias Políticas, cuja atenção deveria ser vol-tada para a natureza e as diferentes ca-racterísticas dos tempos e das civilizaçõesnos problemas da formação e da organi-zação da classe política24.

Para além disso, Mosca procurou expli-car o princípio por ele formulado segundo oqual existe, em toda sociedade, uma classepolítica composta por um número limitadode pessoas, enfatizando que a força dessaclasse reside no fato de ser ela “organiza-da”, entendendo por organização tanto oconjunto de relações de interesse que indu-zem os membros da classe política a coliga-rem-se e constituírem um grupo homogêneoe solidário contra a mais numerosa, divi-dida e desarticulada classe dirigida, quan-to o aparelho estatal do qual se serve a clas-se política como instrumento para a reali-zação de seus próprios interesses. Vai daí,também, ser a teoria da classe política habi-tualmente chamada de teoria da minoriaorganizada25.

Teór ico da ant i - revolução, Moscaconfiava na superioridade do sistemarepresentativo.

Para ele, a resposta para a rápida disso-lução que ameaça a sobrevivência do siste-ma representativo está na sua transforma-ção gradual. Nesse sentido, o esforço cientí-fico de Mosca encontra uma aplicação prá-tica nas sugestões e orientações fornecidasàs elites para reforçarem o sistema represen-tativo, pois as elites, se a um tempo sofrem a

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multiplicidade dos golpes mencionados, sãoas responsáveis pela estabilidade dessesistema.

A teoria da classe política, elaborada porMosca, fez escola. Ela foi acolhida, naquelamesma época, pelo internacionalmente co-nhecido Vilfredo Pareto26.

Na introdução ao “Sistemas Socialis-tas”(1902-1903), Pareto chamou atençãopara a desigualdade dos homens em todosos campos de atividades.

A existência de classes sociais é por elecaracterizada como um “fenômeno de hete-rogeneidade social”, disseminado em todasas sociedades. Em face de tal diferenciação,os homens encontram-se dispostos em ní-veis, que vão do superior ao inferior.

Constitui a elite, a camada superior, quecompreende a elite governante e não gover-nante; a camada inferior é a classe estranhaa ela.

“Em suma, as classes sociais nãopassam de agregados nominais ou decoleções de pessoas entre as quais, asque compõem a elite, possuem os ín-dices mais elevados, no ramo em quedesenvolvem sua atividade”27.

Essa concepção liga-se, em Pareto, a umateoria psicológica destinada a caracterizaras relações entre as classes dirigentes e diri-gidas. Tratam-se de “resíduos”, que seriamemotivos, e de “derivações”, que seriam jus-tificações intelectuais desses resíduos, dife-rentes na classe superior e inferior.

Mais do que os problemas da constitui-ção e formação da classe política, Pareto foiatraído pelo fenômeno da grandeza e da de-cadência da aristocracia, ou seja, pelo fatode que as aristocracias não duram e a His-tória nada mais é do que um teatro de lutacontínua entre uma aristocracia e outra, ousegundo suas próprias palavras: “A Histó-ria é um cemitério de ‘aristocratas’28.

No seu “Tratado de Sociologia Ge-ral”(1916), a teoria do equilíbrio social é fun-dada, em grande parte, sobre o modo comose combinam, integram-se e se intercambiamas diversas classes de elite, cujas principaissão: as políticas (representadas por dois

pólos: os políticos que usam a força – leões– e os que usam a astúcia – raposas); as eco-nômicas (com os pólos nos especuladores enos banqueiros), e as intelectuais (em que secontrapõem continuamente os homens defé e os homens de ciência)29.

Seus pressupostos são exatamente con-trários aos dos marxistas: as elites que for-mam as classes dirigentes hão de manter-sesempre no poder; foram elas que fizeram ehão de fazer sempre a História, não pas-sando esta duma circulação das elites.

Por fim, a teoria das elites conquistou oscientistas políticos norte-americanos30.

A obra de Mills é interessante por reve-lar uma denúncia contra a sociedade ame-ricana na qual se inspira e suas elites31.

Contestando a imagem idílica de umaAmérica comumente vista como o paraísodo homem comum, Wright Mills parte dacontraposição entre este “homem comum”,definido como aquele cujos poderes são li-mitados pelo mundo cotidiano em que vivee que parece freqüentemente ser movido porforças que não pode compreender nem con-trolar, e a “elite”no poder, “composta porhomens cuja posição lhes permite trans-cender o ambiente dos homens comuns eocupar postos de comando estratégicos daestrutura social, nos quais se centralizamatualmente os meios efetivos de poder, a ri-queza e a celebridade”32.

A obra de Mills denuncia a existência deprofundas mazelas estruturais na socieda-de norte-americana. Por meio de uma análi-se histórica e sociológica, ele procura de-monstrar como o país se encontra domina-do por um restrito grupo de poder que cons-titui precisamente a “elite no poder”. Essaelite é composta pelos indivíduos que ocu-pam os círculos elevados nos setores da eco-nomia, do Exército e da política.

“No alto da economia, entre asgrandes empresas, estão os principaisdiretores; no alto da ordem política,os membros dos diretórios políticos;no alto da organização militar, a elitedos soldados estadistas (...). À medidaque estes domínios coincidem entre si,

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as decisões passam a ser totais emsuas conseqüências os líderes destestrês domínios do poder – os soldados,os chefes das empresas e o diretóriopolítico – reúnem-se para formar aelite do poder na América”33.

Tal elite, diferente do que se faz crer, estáunida por ligações sociais, familiares e eco-nômicas, de forma a reforçar e manter os seusvínculos. O resultado é a concentração dosinstrumentos de poder em instituiçõescentralizadas e interdependentes.

É a “legitimidade”imposta como umafarsa e o seu desmascaramento por um pen-sador da democracia. O problema, além depolítico, é também moral34.

A avaliação de Mills aproxima-se da tesede Mosca sobre as maiorias organizadas edesorganizadas35.

Mas, ao contrário do sociólogo italiano,Mills era um democrata36.

Sua denúncia gira em torno de dois pon-tos básicos: a ausência de uma burocraciagenuína no governo civil, incapaz de afir-mar-se com a neutralidade necessária paratornar-se um instrumento da opinião públi-ca e subordinar, tanto a si própria como oresto da sociedade, aos ditames do regimedemocrático;37 e o esvaziamento e manipu-lação da opinião pública no âmbito de umasociedade de massas.

Concluindo, a ilegitimidade do poder,para Mills, não decorre da dominação declasses, mas da sistemática perversão dalegitimidade democrática que se traduzna invocação de seus princípios para finsalheios, ou, por outra, para atender a inte-resses da elite do poder que a ela sesobrepõem.

Talvez por isso Mills não questione a es-trutura do Estado mas, tão-somente, aponteos graves defeitos comprometedores da de-mocracia americana contemporânea.

A recuperação da legitimidade demo-crática passa longe das lutas de classes.Para ele, ela está na reorganização de umaburocracia estatal independente e politica-mente neutra, bem como na revigoração daopinião pública.

Há, porém, enfoques divergentes, con-soante os esposados por Hegel, Talcott Par-sons e Michel Foucault, que dissolvem opoder na autoridade.

Parsons, o mais influente autor do de-senvolvimento de uma sociologia sistemá-tica, ao traduzir a expressão WeberianaHerrschaft por imperative control, “obscureceo confronto entre quem comanda e quem obe-dece, num sistema de ordem imposto”.

Tal edulcoração do sentido de Herrschafté muito significativa. Parsons recusa-se aconsiderar o poder como sendo essencial-mente “uma ação imposta por um ator a umoutro ator”. Segundo ele, o political power é

“a aplicação de uma capacidade ge-neralizada, que consiste em obter queos membros da coletividade cumpramobrigações legitimadas em nome defins coletivos, e que, eventualmente,permite forçar o recalcitrante atravésde sanções impositivas”38.

É que Parsons considera errônea todacompreensão do poder que o reduza a umasituação marcada pela desigualdade e, por-tanto, pelo menos potencialmente confli-tuosa. Segundo ele, ter o poder não é, basi-camente, estar em condições de impor a pró-pria vontade contra qualquer resistência. É,antes, dispor de um capital de confiança talque o grupo delegue aos detentores do po-der a realização dos fins coletivos. Em suma,é dispor de uma autoridade – no sentido emque um escritor de renome, um pensadorilustre, um velho sábio... são autoridades nointerior de um grupo dado (sem que essaautoridade implique uma idéia de coerção).Na política, a coerção só seria utilizadaem casos-limites, e a possibilidade de em-pregá-la não serviria para definir o impe-rative control.

Parsons, aqui, constitui apenas um exem-plo entre tantos outros. Na filosofia políticade Hegel também se encontra essa mesmavontade de dissolver o poder (no sentidoweberiano). Hegel nunca deixa de insistirna diferença que existe entre o poder deEstado, por um lado, e por outro “a potênciapura e simples (Blosze Macht) e o puro

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arbítrio (Leere Eillkur)”do despotismo. Odéspota é aquele cuja vontade particular ecaprichosa vale como lei, enquanto o poderde Estado persegue fins que são os da cole-tividade. Apenas excepcionalmente, por-tanto, poderia exercer-se mediante coerção.Assim, pode-se dizer que a crítica de Marx aHegel anuncia o espírito da crítica dirigidaa Parsons pelos weberianos39.

A idéia de poder-dominação comofenômeno necessariamente vinculado atoda organização política foi igualmenterecusada por Foucault.

Contestando a representação do podercomo mero limite imposto à liberdade,Foucault reformula objetivos teóricos,aprofunda e generaliza as inter-relaçõescapazes de situar os saberes constituti-vos das Ciências Humanas, estabelecen-do uma rede conceitual que lhes cria o espa-ço de existência e na qual as estruturas eco-nômicas e políticas são, propositadamente,deixadas de lado.

Trata-se de uma análise do porquê dossaberes, que pretende explicar sua existênciae suas transformações, situando-os comopeças de relações de poder ou incluindo-osem um dispositivo político que Foucaultchamou genealogia.

Inexiste no pensamento de Foucault umateoria geral do poder. O que significa quesuas análises não consideram o poder comouma realidade que possua uma natureza,uma essência, definida por característicasuniversais. Inexiste, para ele, algo unitárioe global chamado poder, mas unicamenteformas díspares, heterogêneas, em constantetransformação. O poder não é um objetonatural, mas uma prática social e, como tal,constituída historicamente.

Essa fragmentação das relações de po-der gerou, como conseqüência, o deslo-camento do Estado como eixo central deinvestigação sobre o poder, o que não é novo,nem inusitado, mas determinante para o“estruturalismo dos modelos”de Foucault40.

A partir desse momento, em que o Estadoé desconsiderado como aparelho central eexclusivo de poder, vêm à tona formas de

exercício de poder que intervêm na reali-dade concreta dos indivíduos e se situamao nível do próprio corpo social, e não acimadele, penetrando na vida cotidiana, e, porisso, podem ser caracterizadas como micro-poder ou subpoder.

Tratam-se de poderes periféricos e mole-culares que se exercem em níveis diversosda rede social, podendo estar ou não inte-grados ao Estado, bem como às suas trans-formações. A própria destruição do Estadonão seria suficiente para fazer desaparecerou transformar, em suas característicasfundamentais, a rede de poderes que imperaem uma sociedade41.

Metodologicamente, Foucault esquadri-nhou o nível molecular do exercício do po-der tendo o cuidado de o deduzir, a partirdo Estado, até os escalões mais baixos dasociedade, em que o poder se prolonga, pe-netra e reproduz em níveis atomizados.

É fato que livros como “Vigiar e Punir” e“A Vontade de Saber” não refletiram, expli-citamente, sobre o Estado e seus aparelhos.

Porém, não se tratava de minimizar opapel do Estado nas relações de poder exis-tentes em determinada sociedade. A preten-são era insurgir-se contra a idéia de que oEstado seria o órgão central e único de po-der ou de que a inegável rede de poderesdas sociedades modernas seria uma exten-são dos efeitos do Estado, um simples pro-longamento ou uma simples difusão de seumodo de ação, o que seria destruir a especi-ficidade dos poderes que a análise prendiafocalizar.

A análise que Foucault propõe e realizaestuda o poder não como uma dominaçãoglobal e centralizada que se pluraliza,difunde-se e repercute, de modo homogêneo,nos outros setores da vida social, mas comotendo uma existência própria e formasespecíficas em nível mais elementar. OEstado não é o ponto de partida necessário,o foco absoluto que estaria na origem de todotipo de poder social e do qual também sedeveria partir para explicar a constituiçãodos saberes nas sociedades capitalistas. Foimuitas vezes fora dele que se instituíram as

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relações de poder essenciais para situar agenealogia dos saberes modernos, que, comtecnologias próprias e relativamente au-tônomas, foram investidas, anexadas, utili-zadas, transformadas por formas mais ge-rais de dominação, concentradas no apa-relho de Estado.

Pode-se dizer que, quando, em seus es-tudos, Foucault foi levado a distinguir nopoder uma situação central e uma periféri-ca e um nível macro e micro de exercício, oque pretendia era detectar a existência e ex-plicitar as características de relações de po-der que se diferenciam do Estado e seusaparelhos. Mas isso não significa, em con-trapartida, querer situar o poder em outrolugar que não o Estado, como sugere a pala-vra periferia. O interessante da análise é jus-tamente que os poderes não estão localiza-dos em qualquer ponto específico da estru-tura social. Funcionam como uma rede dedispositivos ou mecanismos a que nada ouninguém escapa, a que não existe exteriorpossível, limites ou fronteiras. Daí a impor-tante e polêmica idéia de que o poder não éalgo que se detém como uma coisa, comouma propriedade, que se possui ou não.Não existe, de um lado, os que têm o podere, de outro, aqueles que se encontram delealijados. Rigorosamente falando, o podernão existe; existem, sim, práticas ou relaçõesde poder. Isso significa dizer que o poder éalgo que se exerce, que se efetua, que funcio-na. E que funciona como uma maquinaria,como uma máquina social que não está si-tuada em um lugar privilegiado ou exclu-sivo, mas se dissemina por toda a estruturasocial. Não é um objeto, uma coisa, mas umarelação. E esse caráter relacional do poderimplica que as próprias lutas contra seuexercício não possam ser feitas de fora, deoutro lugar, do exterior, pois nada está isen-to de poder. Qualquer luta é sempre resis-tência dentro da própria rede do poder, teiaque se alastra por toda a sociedade e à qualninguém pode escapar; ele está sempre pre-sente e se exerce como uma multiplicidadede relações de forças. E, como onde há po-der há resistência, não existe propriamente

o lugar de resistência, mas pontos móveis etransitórios que também se distribuem portoda a estrutura social. Foucault rejeita, por-tanto, uma concepção do poder inspiradapelo modelo econômico, que o consideracomo uma mercadoria.

Em suma, trata-se de um enfoque que nãovincula o poder às relações de produção, àinfra-estrutura material, em contraposiçãoao pensamento marxista, que, na visão deFoucault, apresenta um grave defeito:

“o de supor, no fundo, que o sujeitohumano, o sujeito de conhecimento,as próprias formas do conhecimentosão, de certo modo, dados prévia edefinitivamente, e que as condiçõeseconômicas, sociais e políticas da exis-tência não fazem mais do que deposi-tar-se ou imprimir-se neste sujeito de-finitivamente dado”.

Seu objetivo é mostrar como as práticassociais podem chegar a engendrar domíniosde saber que não somente fazem aparecernovos objetos, novos conceitos, novas técni-cas, mas também fazem nascer formastotalmente novas de sujeitos, constituídosno interior da História e que, a cada instan-te, são fundados e refundados por ela42.

Sistematizadas as principais correntesdoutrinais que teorizaram sobre o podere seu entrelaçamento com o Estado, é mis-ter enforcar o significado e a amplitudeda representação política nos regimesdemocráticos.

Afirma Carnelutti que o instituto repre-sentativo tem por finalidade que “um outrofaça com relação a um interesse alheio o quefaria se fosse o respectivo titular”43.

Giovanni Sartori, na esteira de Carnelutti,acrescenta um novo elemento à teoria darepresentação: a responsabilidade. Respon-sabilidade essa, de caráter político, que deveser cobrada do mandatário a cada eleiçãopara efeito de renovação ou revogação demandatos. Segundo ele, o

“apelo periódico ao corpo eleitoralobriga, a seu modo e por seus cami-nhos, o eleito a comportar-se com

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relação aos eleitores como estes fariamse estivessem em seu lugar”44.

As eleições constituem, pois, a principalsalvaguarda do representado em face dorepresentante.

É fato que o instituto da representaçãonem sempre existiu. Fruto da conquista so-cial, sua evolução é conseqüência direta doaperfeiçoamento do Estado,45 definido comoum pacto firmado pela sociedade politica-mente organizada.

A prática histórica tem demonstrado sera representação política o instrumento maisrelevante para reunir a diversidade de inte-resses sociais de uma unidade estatal deter-minada. Contudo, como representar in-teresses diversos, como representar classessociais e grupos de status divergentes quecompõem o Estado?

Edmund Burke, ao analisar as relaçõesentre sociedade e Estado, propugna a exis-tência de uma determinada camada apta aguiar sabiamente os destinos de uma socie-dade fragmentada.

À toda evidência, não se trata de refle-xão inusitada. Montesquieu já afirmara queo povo sabe escolher, mas não possui sa-piência para governar, incapaz de discutirseus interesses e aspirações.

“Daí, a necessidade da mate-rialização da representação políti-ca: a absoluta incapacidade dosrepresentados é a mola propulsora dosurgimento de representantes quedecidem as questões cruciais dos pri-meiros, conduzindo-os à melhordemocracia”46.

Siéyès, o teórico do Terceiro Estado, cons-truiria sua concepção de representação aoabrigo da argumentação de Montesquieu,ou seja, para ele os cidadãos estão aptos,tão-somente, a escolher seus representantes,que devem atuar independentemente davontade de seus eleitores, vinculados queestão aos interesses da Nação. Defende oabade francês a autonomia do represen-tante, controlada por meio do assentimentodos governados.

Ocorre, porém, ser o sufrágio, via de re-gra, o único modo de participação do povona formação da vontade do Estado. Semdúvida, um grande inconveniente da demo-cracia, sobretudo aceitando-se como politi-camente incorreto o mandato imperativo,submetido que está o representante à Naçãoe não às ordens ou instruções dos seuseleitores.

Nesse sentido, Burke detectou precoce-mente a ambigüidade do conceito de repre-sentação, estabelecendo distinção entre re-presentação real e representação virtual.

“Enquanto esta (representaçãovirtual) possui caráter de nacionali-zação ou de ‘comunhão’ de interes-ses diversos sem a necessidade de elei-ções, aquela outra (representação vir-tual) vincularia somente através deeleições a relação entre representan-tes e representados. Representaçãoreal e virtual podem existir separada-mente, embora Burke afirme que estadeva buscar fundamento naquela”47.

“A discussão assumida porBurke sobre a função da representa-ção é hoje resgatada por inúmerosteóricos da representação política(em especial os norte-americanos).Confrontando estudos empíricos so-bre a relação entre expectativa do pú-blico e decisão de representantes setem alargado contemporaneamente adiscussão da representação política apartir de um referencial sistêmico.

As tipologias ‘burkenianas’ de re-presentação focal (distrital/nacional)e estilística (livre/imperativa) são oponto de partida para uma análisecada vez mais complexa dos novos‘focos’ e novos ‘estilos’ de represen-tação atuais. Evidentemente, o exameempírico do comportamento dos par-lamentos na nossa década conduz aum leque muito maior de opções, sejaem relação ao ‘foco’, seja em relaçãoao ‘estilo’ da representação. A teoriada representação política busca hojesuperar concepções estanques (...) se

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mantendo, todavia, fiel a alguns pos-tulados de Burke, tais como: o parla-mento é antes de tudo o locus da coor-denação e integração dos interessessociais, econômicos e políticos; neleencontram-se indivíduos mais infor-mados e melhor aparelhados a tomardecisões políticas responsáveis”48.

Aceitando o postulado acima formula-do mas insatisfeita com a atuação dos polí-ticos profissionais, a sociedade norte-americana, por meio dos limiting legislativeterms, propõe um novo enfoque à teoria darepresentação popular, que, se, por um lado,reconhece a relevância do Parlamento e domandato, por outro, eleva a vontade cole-tiva à condição de instrumento efetivo paraa realização de práticas políticas transfor-madoras.

Votado e aprovado, a partir de 1990, emvinte e dois estados da federação dos Esta-dos Unidos da América, o term limit expres-sa o profundo descontentamento públicocom o Congresso e as legislaturas estaduais.Descontentamento com a atuação dos par-lamentares, com o processo político e, prin-cipalmente, com a profissionalização da po-lítica foi o que levou mais de 23 milhões avotarem, de forma expressiva, a favor da limi-tação de mandatos eletivos estaduais49.

Os argumentos favoráveis à sua implan-tação sustentam que o Congresso – domi-nado por políticos carreiristas, voltados ape-nas para seus interesses pessoais e não parao interesse público – perde o contato com arealidade do Estado; por tal razão, a limi-tação asseguraria um fluxo renovador deidéias e reduziria a vinculação entre oscongressistas e os grupos de poder. O ci-nismo político do processo eleitoral tam-bém é citado no ataque à credibilidade dosparlamentares 50 .

À frustração da sociedade é ainda adu-zido propiciar a limitação de mandatosmaior competitividade nas eleições, bemcomo maior renovação da bancada, vez queatribui-se como uma das causas da poucarotatividade dos mandatos a utilização damáquina pública que beneficia os atuais

congressistas com privilégios e regalias taiscomo franquias telefônicas, de postagem, depassagens e empregos a assessores remu-nerados pelo Poder Legislativo que atuarãoem campanhas eleitorais.

Com a adoção do instituto, o Congressoseria revitalizado com a eleição de novosparlamentares.

Ademais, alegam seus defensores quecongressistas antigos tendem a desinteres-sar-se dos trabalhos legislativos, delegan-do funções aos seus assessores. Isso, em tese,não ocorreria com os novos legisladores, in-clinados a correrem mais riscos e a votaremmatérias de real interesse nacional.

Por fim, a limitação de mandatos provo-caria um impacto no comportamento do elei-torado e, por conseqüência, no do candida-to ao mandato, em face do aprimoramentodo sufrágio.

Importa menos aos propósitos desta aná-lise, refutar ou aquiescer a argumentação ex-pedida e, sim, aferir a essência de suas pre-missas, que refletem a decadência da classepolítica aos olhos da sociedade, em últimaanálise, do próprio sistema representativo.

Desinteressa, de igual modo, procederavaliações jurídicas acerca da constitu-cionalidade de tal procedimento, penden-te de julgamento na Suprema Corte. A dis-cussão de teor axiológico que releva apon-tar versa sobre o juízo negativo atribuído aopoder que se vai estabelecer, ou já se achaestabelecido, numa sociedade politicamentedesenvolvida.

Mister ressaltar que, a despeito doslimiting terms trazerem no seu bojo acontestação da institucionalização do podere uma proposta de atualização do conceitode legitimidade, os instrumentos jurídico-constitucionais firmados pelo constitucio-nalismo liberal mantêm-se preservados.

Isso porque, indiscutivelmente, a legiti-midade é ainda a melhor solução para “omais terrível problema da humanidadecomo ser coletivo: o medo do poder”51.

O esvaziamento do instituto da represen-tação implicaria o esvaziamento da estru-tura dos ordenamentos jurídico-constitu-

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cionais do Ocidente. Equivaleria à neutrali-zação do conceito de legitimidade e sua re-dução à legalidade radicalizada, consagra-da por autores como Carl Schmitt e HansKelsen e refinada teoricamente pela doutri-na formalista de Niklas Luhmann.

O dilema porém subsiste. Saber se as as-pirações de institucionalização de umaNova Ordem aperfeiçoarão a dinâmica po-lítica, econômica e social, preservando-se asmais caras conquistas alcançadas pelo Ho-mem ou, despolitizado o conceito de demo-cracia, dissolver-se-ão no formalismo jurí-dico e no procedimentalismo sociológico.

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Notas

1 VOVELLE, Michel – “Ideologias e Mentalida-des”, Tradução de Maria Júlia Goldwasser, SãoPaulo, Editora Brasiliense, 1987.

2 BARACHO, José Alfredo de Oliveira – “Teo-ria Geral da Cidadania. A Plenitude da Cidadaniae as Garantias Constitucionais e Processuais”, SãoPaulo, Saraiva, 1995, p. 3.

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3 LEITÃO, Claúdia – “A Crise dos PartidosPolíticos Brasileiros - Os Dilemas da Representa-ção Política no Estado Intervencionista”, Fortaleza,Gráfica Tiprogresso, 1988, p. 25.

4 “Summa Theologica”, 2ª parte, questão 96,art. 4º.

5 BONAVIDES, Paulo – “A despolitização dalegitimidade”, Separata da Revista “O Direito”,1993, p. 63.

6 Thomas Hobbes (1588-1679), no capítulo XVIde sua obra, “Leviatã ou Matéria, Forma e Poderde um Estado Eclesiástico e Civil”, São Paulo, AbrilCultural, 1974, p. 100, sustenta: “E tal como o di-reito de posse se chama domínio, assim também odireito de fazer qualquer ação se chama autorida-de. De modo que por autoridade se entende sem-pre o direito de praticar qualquer ação, e feito porautoridade significa sempre feito por comissão oulicença daquele a quem pertence o direito”.

7 John Locke (1632-1704), em seu Essay on CivilGovernment – 1690 –, propugna a criação de umasociedade política – o Estado – mediante um con-trato, cuja finalidade é interpretar a lei natural emanter a ordem e a harmonia entre os homens. Es-ses, porém, não cedem ou alienam seus direitos emfavor do Estado, que deve respeitá-los.

“Esboçada por Grotius nos prolegómenos aostrês livros do Traité guerre et de la paix – 1625 –,desenvolvida pelos seus discípulos, Pufendorf eBarbeyrac da escola do direito natural, a tese dodireito individual foi formulada por Locke em suaobra já referida. “Seguindo um método de raciocí-nio que o século XVIII generalizou, Locke parte doestado de natureza, que descreve como um estadode independência do indivíduo unicamente sujeitoao direito natural pela sua responsabilidade moral.Este estado primitivo acaba com o contrato que oshomens fazem entre si para fundar a sociedadecivil. Simplesmente, ao contrário do que fizeramHobbes antes dele e Rousseau depois, Locke nãoconsidera este contrato como gerador da onipotên-cia do Estado. Quando, por uma convenção unâni-me, os homens renunciam à sua liberdade primiti-va absoluta para fundar a autoridade pública, nãoabdicam em benefício do poder senão uma parcelada sua independência original, incompatível com aexistência duma ordem social. O que conservam desua liberdade natural constitui os direitos indivi-duais. Esses direitos, resíduos da liberdade primi-tiva, não devem nada ao Estado, nem na sua ori-gem, nem na sua consistência. Anteriores a ele, po-dem ser-lhe opostos. O papel do Estado é primeirorespeitá-los e depois garanti-los. ”BURDEAU,Georges – “O Liberalismo”, Publicações Europa-América, sd.

8 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) admitemais explicitamente do que Hobbes e Locke o estadode natureza e a imperatividade do contrato social

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por meio do qual o homem cede ao Estado parte deseus direitos naturais, criando uma organizaçãopolítica com vontade própria, que resulta na von-tade geral. Contudo, nessa organização, cada indi-víduo possui uma parcela de poder, de soberania.Os eleitos pelo povo não se constituem em seusrepresentantes, mas meros comissários da vontadegeral.

Teórico do absolutismo das massas, Rousseaupropunha a submissão do indivíduo ao poder su-premo das maiorias.

9 Para Weber, “potência” (Macht) significa todaa oportunidade de impor a sua própria vontade nointerior de uma relação social, até mesmo contraresistências, pouco importando em que repouse taloportunidade. O “poder” inclui um elemento su-plementar. Existe poder quando a potência, deter-minada pela força (que é a sua canalização), expli-cita-se de maneira precisa, sob a forma de umaordem dirigida a alguém que, presume-se, devecumpri-la. É o que Weber denomina Herrschaft, tra-duzido por Raymond Aron como “dominação”(conservando-se a raiz alemã Herr, significandodominus, senhor ). In: “Études Politiques”, Paris,Gallimard, 1971, p. 176.

A dominação é, segundo Weber, a probabilida-de de que uma ordem com determinado conteúdoespecífico seja seguida por um dado grupo de pes-soas. WEBER, Max – “The Methodology of SocialSciences”, traduzido para o inglês e editado porEdward Ashils e Henry A. Finch, Glencoe, The FreePress, 1949, pp. 173-175 e “Economy and Society;an Outline of Interpretative Sociology”, New York,Editado por Guenther Roth e Glans Wittich, Bed-minster Press, 1978 vol. 1, p. 53.

10 WEBER, Max – “Essays of Sociology”, tradu-zido para o inglês e editado por H. H.

11 BOBBIO, Norberto, op. cit, p. 161.12 “O poder político é, evidentemente, o poder

organizado de uma classe para oprimir a outra”.MARX, Karl – “O manifesto Comunista”, op. cit,p. 36.

13 Idem, pp. 78.14 O pensamento de Weber já foi aproximado

por alguns autores ao de Nietzsche. Ver em parti-cular BOBBIO, Norberto – “A Teoria do Estado edo Poder em Max Weber”, In: Ensaios Escolhidos –História do Pensamento Político, tradução SérgioBath, São Paulo, Cardim Editora, sd, pp. 157-184.Anterior a ele consultar; FLEISSCHMANN, E – “DeWeber a Nietzsche”, In: Archives Européennes deSociologie, V, 1964, pp. 192-238.

15 BOBBIO, Norberto, In Dicionário de Política,tradução Carmem C. Varrialle e outros, sob a coor-denação de João Ferreira, Brasília, DF, Editora UNB,1991, 3ª ed, vol. I, p. 385.

16 MOSCA, Gaetano – “The Rulling Class – Ele-menti di Scienza Politica”. Editado e Revisado por

Arthur Livingstone, traduzido do italiano por Han-nah D. Kahn, New York, Mc Graw-Hill, 1939, p. 50.

17 PARETO, Vilfredo – “Les Systèmes Socialis-tes”, Genève, Libraire Droz, 1965, pp. 7-15.

18 BOBBIO, Norberto – “Gaetano Mosca e aCiência Política”, In Ensaios Escolhidos, Históriado Pensamento Político, op. cit., pp. 185-205.

19 “The Ruling Class: Elementi di Scienza Políti-ca”, op. cit., pp. 41-43.

20 Idem, p. 47.21 Id. pp. 50-69 e 286-293.22 Id. pp. 279-285.23 Para Mosca, o sociólogo, tal como o historia-

dor, deve ultrapassar os antagonismos e paixõespolíticas em busca de um espírito crítico que possaavaliar corretamente as variações sociais, na cons-trução de uma Ciência Política não emocional. É oque ele denomina de “dessacralização da história eda política”.

“Da mesma maneira que a Física libertou ohomem da ação da gravidade ou do raio, a Sociolo-gia libertará o homem dos impulsos coletivos ce-gos, de que tem sido... mero joguete”. MOSCA,Gaetano – tradução Marco Aurélio de Moura Matos,Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968, cap. LVIII,pp. 410ss.

24 “The Ruling Class... “, Op. cit, pp. 394-396 e427-428.

25 Idem, p. 53.26 Sobre o pensamento de Mosca e Pareto, con-

sultar: MEISEL, James Hans – “Pareto y Mosca”–Eaglewood City, Prentice Hall, 1965. Para umaanálise da “Teoria das Elites” na América Latina,ver: “Elites In Latin America”, London, editado porSMC e Aldo Solon, Oxford University Press, 1967.

27 PARETO, Vilfredo – “Traité de SociologieGénérale”, Oeuvres Complètes, publicadas sob adireção de Giovanni Busino, edição francesa porPierre Boeven, Gènève, Libraire Droz, 1968, t. XII,pp. 1301-1305.

28 “Traité de Sociologie Générale”, op. cit., p.1304.

29 “Traité de Sociologie généralé, op. cit., pp.1386-1387 e 1460-1463.

30Ela foi reelaborada e divulgada por HaroldLasswel em suas obras – “Politics: Who gets What,When, How”, New York, The World Publishing,1971. “The Political Writings of H. D. Lasswell”,Glencoe, Free Press, 1951; “Power and Society: AFramework for Political Inquiry”, escrito emcolaboração com Abraham Kaplan, New Haven,Yale University Press, 1950; BURNHAM, James –“L’Ere des Organisateurs”, tradução Melene Clai-reau, Paris, Calmann – Levy, 1947; MILLS, C. Wri-ght – “A Elite do Poder”, tradução Waltensir Du-tra, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1962.

31 “A Elite do Poder”, op. cit. pp. 39-41.32 Idem, pp. 13-14.

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33 Idem, p. 19.34 “Não há, atualmente, um grupo de homens

representativos, cuja conduta e caráter constituammodelos a serem imitados e invejados pelos ame-ricanos. Não há um grupo de homens com o qualos membros da massa possam, com acerto e satis-fação, identificar-se. Nesse sentido fundamental, aAmérica está realmente sem líderes”. “A Elite doPoder”, op. cit., p. 423.

35 “A cúpula da moderna sociedade americanaestá cada vez mais unificada e, freqüentemente,parece estar coordenada com espontaneidade: nacúpula surge uma elite do poder; os níveis médiossão um grupo de forças sem orientação, num im-passe, equilibradas; o meio não liga a base com acúpula. A base dessa sociedade está politicamentefragmentada, e (...) cada vez mais impotente”.Idem, op. cit., p. 383.

36 Segundo Mills, duas coisas são necessáriasnuma democracia: públicos articulados e informa-dos, e líderes políticos que, se não são homens depensamento, sejam, pelo menos, razoavelmente res-ponsáveis perante o público informado que exista.Idem, p. 52.

Quanto a Gaetano Mosca, o caráter antidemo-crático dos seus escritos é bastante explícito, vg :“Não pararemos para refutar esta teoria”(a teoriademocrática moderna), “já que esta é a tarefa destelivro como um todo!” In: The Ruling Class...., op.cit., p. 52.

Numa confissão de fé, ele próprio admitiu serantidemocrático, embora não antiliberal. In: “Parti-ti e Sindaciti Nella Crisi del Regime Parlamentare”,Bari, Guis. Laterzar, Figli, 1949, p. 335.

37 Ao reverso do desejado, a burocracia, na vi-são de Mills, subordinava-se aos interesses das eli-tes militares, corporativo-empresariais e políticas,que a utilizavam para fazer coincidir seus interes-ses com os interesses do Estado.

38 “The Social System”, op. cit., p. 127. “Parale-lamente à economia (...) acredito que se possa falarnum subsistema funcional da sociedade na áreapolítica, designado, adequadamente, pelo termopolity. (...) o objetivo ou função da polity , concebocomo sendo a mobilização de recursos societais ede seu compromisso em levar a cabo os objetivoscoletivos (collective goals), para a formação e imple-mentação de “projetos políticos públicos”. O “pro-duto” da polity enquanto sistema, é o poder, queeu gostaria de definir como a capacidade generali-zada, existente em um sistema social, de promo-ver realizações no interior dos objetivos coletivos”.In “Structure and Process in Modern Society”, op.cit., p. 181.

39 LEBRUN, Gerard – “O que é o Poder”, tradu-ção: Renato Janine Ribeiro e outros, São Paulo, Edi-tora Brasiliense, 1984, 9ª ed., pp. 14-15. Sobre coer-ção, sanção negativa e poder na teoria de Parsons,

consultar. “Structure and Process in Modern Socie-ty”, op. cit., pp. 260 ss. Trata-se de uma visão depoder funcionalista.

Diz Parsons: “desde Hobbes, se não há muitomais tempo, tem-se compreendido, cada vez mais,que o poder é o foco central do problema de in-tegração nas sociedades”... Mas o poder não é oprodutor, ele é o produzido, e o é por este subsiste-ma social chamado polity , que por sua vez se con-funde com o quadro institucional. In: “Structureand Process in Modern Society”, op. cit. pp. 180-183.

40 Jean Viet, na sua obra “Les MéthodosStructuralistes dans les Sciences Sociales”, Pa-ris – La Haye, Mouton, 1965, considera três ti-pos de “estruturalismos”: um “estruturalismofenomenológico”(com Merleau-Ponty, Sartre etc.);um “estruturalismo genético” (com Goldmann,Piaget e autores de vários matizes, como Gurvitch,Lefebvre, entre outros) e um “estruturalismo dosmodelos” (com Levi–Strauss, Lacan, Barthes,Althusser, Foucault, etc.). Cada uma dessas cor-rentes enfatiza, respectivamente, a predominânciada significação, da dialética e do modelo na estru-tura social. Uma outra classificação foi propostapor François Châtelet, em seu artigo “como vai oestruturalismo?”, publicado no jornal “La Quin-zaine Littéraire” nº 31, julho de 1967, in “Estrutu-ralismo. Antologia de Textos Teóricos”, seleção deEduardo Prado Coelho, São Paulo, Martins FontesEditora, sd., pp. 37-43.

41 MACHADO, Roberto – op. cit., p. XII.42 FOUCAULT, Michel – “A verdade e as For-

mas Jurídicas”, In: Cadernos da PUC nº 16, RJ,1979, 4ª ed., p. 5 ss. (mimeog).

43 Apud: SARTORI, Giovanni – “A Teoria daRepresentação no Estado Representativo Moderno”,In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, BeloHorizonte, 1962, p. 85.

44 Idem, p. 84.45 Jorge Miranda sumaria as grandes corren-

tes doutrinais sobre a natureza, o ser do Estado.São elas: “A) as correntes ‘idealistas’ (o Estadoencarado como idéia ou finalidade) e ‘realistas’ (oEstado como ser de existência temporal e sensível);B) as correntes ‘objectivistas’ (o Estado considera-do como realidade exterior aos homens) e ‘subjecti-vistas’ (o Estado tomado como realidade predomi-nantemente subjectiva ou até como expressão fun-damentalmente psicológica de relações humanas);C) as correntes ‘atomistas’ ou ‘nominalistas’ (oEstado, mero conjunto de indivíduos, susceptívelde ser tomado como uma entidade específica oucom vontade própria); D) as correntes ‘contratua-listas’ (o Estado como produto da vontade, comoassociação) e ‘institucionalistas’ (o Estado comosentido, relação, ordem objectiva ou objectivada,como instituição); E) as correntes ‘monistas’ (o Es-

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tado como centro ou titular do poder político) e‘dualistas’ (o Estado como objecto do poder ouinstrumento ao serviço dos verdadeiros detentoresdo poder); F) as correntes ‘normativistas’ (o Esta-do, realidade normativa ou, numa visão radical,identificado com o sistema ou a unidade de nor-mas) e ‘não-normativistas’ (o Estado não redutívela normas jurídicas ou, numa visão radical, somen-te realidade sociológica à margem das normas ju-rídicas)”. In “Manual de Direito Constitucional”,Coimbra, Coimbra Editora Limitada, 1988, 2ª edi-ção, tomo III – “Estrutura Constitucional do Esta-do”, pp. 9-10. O autor desenvolve o tema nas pági-nas 10-38 e na mesma obra, 3ª ed, tomo I – “Preli-minares. A Experiência Constitucional”, às pp. 45-92.

Ver, ainda, as elaborações doutrinárias de BUR-DEAU, Georges – “Traité de Science Politique”,Paris, LGDJ, 1968, t. II, pp. 7 ss.; JELLINEK, G. –“Teoria General del Estado”, traduzido para o es-panhol por Fernando de los Rios, Buenos Aires,Editoral Albatroz, sd., pp. 3 ss.; DUGUIT, Léon -“Droit Constitutionnel”, Paris, Ancienne LibrairieFontemoing P. Cie, Éditeurs, 1927, 3ª ed., t. I, pp.534 ss. KELSEN, Hans – “Teoria Pura do Direito”,tradução João Baptista Machado, São Paulo, Mar-tins Fontes Ed. Ltda, 1985, pp. 301-334; GARCIA -PELAYO, Manuel – “Derecho Constitucional Com-parado”, Madrid, Alianza Universidad Textos,1984, pp. 103-108; GUETZEVITCH, Mirkine –“Modernas Tendências del Derecho Constitucional”,tradução para o espanhol de Sabino Alvarez Gen-din, Madrid, Editorial Réus S.A, 1934, pp., 43-44,RUFFIA, Paolo Biscaretti di - “Direito Constitu-cional – Instituições de Direito Público”, traduçãode Maria Helena Diniz, São Paulo, Revista dos Tri-bunais, 1984, pp. 1-80; ROMANO, Santi – “Princí-pios de Direito Constitucional Geral”, traduçãoMaria Helena Diniz, São Paulo, Revista dos Tribu-nais, 1977, pp. 59-93; LOZADA, Salvador Maria– “Instituciones de Derecho Publico”, Buenos Ai-res, Editorial El Coloquio, sd., 2ª ed., t. I, pp. 13-40;CANOTILHO, J. J. Gomes – “Direito Constitucio-nal”, Coimbra, Livraria Almeida, 1991, pp. 39-53;CAETANO, Marcelo – “Direito Constitucional”, Riode Janeiro, Forense, 1977, v. 1, pp. 157-218; MAL-

BERG, R. Carré de – “Contribution à La ThéorieGénérale de l’État”, Paris, Recueil Sirey, 1920, tomoI, pp. 8 ss., HELLER, Hermann – “Teoria do Esta-do”, tradução Lycurgo Gomes da Motta, São Paulo,Mestre Jou, 1968, cap. I e III; BONNARD, Roger –“Précis Élémentaire de Droit Public”, Paris, RecueilSirey, 1932, 2ª édition, pp. 7-16 e HAURIOU, Mau-rice – “Princípios de Derecho Público y Constitucio-nal”, tradução de Carlos Ruiz del Castello, Ma-drid, Editorial Reus, 1927, pp. 162-197. Entre osjuristas brasileiros, consultar sobre o assunto BO-NAVIDES, Paulo – “Ciência Política”, Rio deJaneiro, Forense, 1992, 8ª ed. pp. 47-56, BARA-CHO, José Alfredo de Oliveira – “Regimes Políti-cos”, São Paulo, Editora Resenha Universitária,1977, pp. 119-134; MELO FRANCO, Afonso Ari-nos de – “Curso de Direito Constitucional Brasi-leiro”, Rio de Janeiro, Forense, 1958, v. 1, pp. 11-23,SAMPAIO, Nelson de Souza – “Prólogo à Teoriado Estado (Ideologia e Ciência Política)”, São Pau-lo – Rio, Forense, 1960, 2ª ed., pp. 253-263.

46 LEITÃO, Claúdia – “A Crise dos PartidosPolíticos Brasileiros. Os dilemas da representaçãopolítica no estado intervencionista”, GráficaTiprogresso, Fortaleza, 1989, pp. 31.

47 PITKIN, Hanna Fenichel – “El Concepto deRepresentacion”, Centro de Estudios Constitucio-nales, Madrid, 1985, p. 191.

48 LEITÃO, Cláudia, op. cit. pp. 33-34.49 JOST, Kennet – “Judgement Time for Term

Limits”, in ABA Journal, November, 1994, pp. 80-83. Só para ter uma idéia do percentual de votação,o estado do Colorado, primeiro a adotar o termlimits, obteve 71% de aprovação; o estado deOklahoma obteve 67% e o da Califórnia, 52%.

50 Nesse sentido consultar “Limiting LegislativeTerms”, editado por BENJAMIN, Gerald e MAL-BIN, Michael, CQ Press, Washington DC; KARP,Jeffrey A – “Explainning Public Support for Legis-lative Term Limits” Public Opinion Quaterly, vol.59, 373-91, 1995, American Association for PublicOpinion Research, pp. 374-379; BERGER, Gloria –“Can limits do the job”, US New & World Report,Nov, 1991, pp. 34-36.

51 FERRERO, Guiglielmo – “Potere”, editado porGina Lombroso, Milão, 1959.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

As sociedades contemporâneas e o sis-tema mundial em geral estão a passar porprocessos de transformações sociais rápi-dos e profundos que põem definitivamenteem causa as teorias e os conceitos, os mode-los e as soluções anteriormente considera-dos eficazes para diagnosticar e resolver ascrises sociais, no ensinamento de Boaven-tura de Sousa Santos1, uma vez que a impo-sição de uma sociedade civil mundial, con-seqüência irreversível da globalização, emvirtude da complexidade de sua estrutura,denuncia a incapacidade da utilização doinstrumental teórico tradicional, centradono conceito de Estado Soberano.

Nesse contexto, a teoria dos direitos fun-damentais, em virtude das transformaçõesdo direito na sociedade contemporânea –percebendo-se uma internacionalização dodireito constitucional acompanhada de uma

As garantias dos direitos fundamentais,inclusive as judiciais, nos países doMercosul

Jairo Gilberto Schäfer

Jairo Gilberto Schäfer é Juiz Federal em San-ta Catarina, Mestrando em Direito pelo CPGD/UFSC, Professor de Direito Constitucional naEscola Superior da Magistratura Federal deSanta Catarina.

Sumário1. Introdução. 2. Garantias dos direitos fun-

damentais. 2.1. Conceito. 3. Classificação dasgarantias dos direitos fundamentais. 3.1. Ga-rantias de rigidez constitucional dos direitosfundamentais. 3.2. Garantias judiciais dos di-reitos fundamentais. 3.3. Garantias de eficáciados direitos fundamentais. 3.4. Garantia da Di-visão dos Poderes (autonomia e independên-cia do Poder Judiciário). 3.5. Garantia da supe-rioridade da Constituição (controle da consti-tucionalidade das leis e dos atos normativos).4. Considerações finais.

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redução de seu espaço –, deve sofrer umarevisão profunda, objetivando adequá-laaos novos paradigmas da sociedade, que secaracteriza pela complexidade de suas re-lações, em que o sujeito de direito é vistoenquanto inserido no contexto social, ouseja, analisado em uma situação concreta,em que a geração dos direitos transindivi-duais passa a ser objeto do estudo do juris-ta, pois o “direito só existe no plano das re-lações humanas, devendo então ser pensa-do não como um instrumento que opõe umhomem contra o outro, mas como um ins-trumento que harmoniza a convivência deambos”2.

Patrice Gélard ensina que a internacio-nalização do Direito Constitucional temvárias explicações e a mais considerável é ainternacionalização dos Direitos do Ho-mem, pois temos

“aqui um fenômeno que podemos da-tar de 1948, quando da adoção daDeclaração Universal dos Direitos doHomem e, mais tarde, da adoção doPacto de Teerã sobre os Direitos Civise Políticos e os Direitos Econômicos eSociais. Essa redação internacionaldos Direitos do Homem deve ser igual-mente examinada paralelamente àconcepção européia dos Direitos doHomem e à inserção de jurisdições queasseguram sua proteção”3.

Conforme anotado por Canotilho, a com-plexidade política e jurídica criada pela co-munidade jurídica dos povos dos estadosintegrados na União Européia (exemplo vivoda internacionalização do direito constitu-cional) lança novos desafios à teoria da cons-tituição, uma vez que esta terá de teorizar a‘arte da forma supranacional’ e de fornecersuportes dogmáticos para a compreensãode uma nova ordem jurídica, em que se mos-tra presente a existência de órgãos e pode-res de decisão supranacionais4.

Nesse desiderato, os povos da AméricaLatina encontram-se diante de um processointegrativo profundo e irreversível, com aformação de um mercado comum, rompen-

do-se barreiras alfandegárias e obstáculoshistóricos. O surgimento do Mercosul (paí-ses signatários originários: Brasil, Argenti-na, Uruguai e Paraguai) determina o aportede novas preocupações teóricas no âmbitodo Direito Constitucional, pois se mostraimperioso o afastamento da tendência atualde integração meramente alfandegária, bus-cando-se cristalizar uma integração cultu-ral entre os povos, inclusive com harmoni-zação possível dos sistemas jurídicos deproteção aos direitos fundamentais. Naacepção de Sílvio Dobrowolski5, aliás, a in-tegração dos países do Mercosul somenteserá possível

“se os respectivos Estados se basea-rem em sistemas de valores compatí-veis entre si, de modo a poder efeti-var-se a sua harmonização e, por viade conseqüência, dos seus sistemasjurídicos, a partir das suas Constitui-ções”.

Objetiva o presente trabalho verificar apossibilidade da harmonização das garan-tias dos direitos fundamentais, inclusive asjudiciais, tendo por ponto de partida umestudo comparativo dos textos constitucio-nais dos países integrantes do Mercosul,pressupondo-se ser a integração jurídicafundamental ao sucesso de qualquer proje-to de integração.

2. Garantias dos direitos fundamentais

2.1. Conceito

Utiliza-se a expressão “garantias dos di-reitos fundamentais” para significar os meca-nismos jurídicos que dão estabilidade aoordenamento constitucional e estabelecempreceitos para a integridade de seu valornormativo.

Clássica e bem atual é a“contraposição dos direitos funda-mentais, pela sua estrutura, pela suanatureza e pela sua função, em direi-tos propriamente ditos ou direitos eliberdades, por um lado, e garantias,

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por outro lado. Os direitos represen-tam só por si certos bens, as garantiasdestinam-se a assegurar a fruição des-ses bens; os direitos são principais, asgarantias acessórias e, muitas delas,adjectivas (ainda que possam ser ob-jecto de um regime constitucionalsubstantivo); os direitos permitem arealização das pessoas e inserem-sedirecta e imediatamente, por isso, nasrespectivas esferas jurídicas, as garan-tias só nelas se projectam pelo nexoque possuem com os direitos; na acep-ção jusracionalista inicial, os direitosdeclaram-se, as garantias estabele-cem-se.”6

Ou seja, o Texto Constitucional, pre-tendendo manter sua força normativa, es-tabelece institutos jurídicos cujos objeti-vos centram-se na proteção de seu núcleoessencial, meios mediante os quais é pos-sível tornar eficaz concretamente os di-reitos declarados em seu corpo, ou, ain-da, proteção contra ataques à manuten-ção dos preceitos constitucionais. A essesinstrumentos jurídicos é que se reserva aexpressão ‘garantias dos direitos funda-mentais’: de um lado, a declaração dos di-reitos; de outro lado, a estes ligados indis-sociavelmente, os mecanismos de sua pro-teção.

Segundo doutrina Carl Schmitt, a garan-tia do direito fundamental dirige-se, com di-ferentes graus de eficácia, (1) aos órgãos go-vernamentais competentes para revisar aConstituição, (2) aos órgãos competentespara editar as leis infra-constitucionais e (3)às demais autoridades do Estado, sobretu-do aquelas integrantes do Poder Executivo7,exteriorizando o efeito vinculatório comple-xo e totalizante que é característica desseinstituto jurídico-constitucional. A diferen-ciação proposta não passou despercebidaao gênio de Ruy Barbosa, ao estabelecer ocaráter meramente declaratório das disposi-ções que conferem direitos e a função assecu-ratória das garantais constitucionais8.

3. Classificação das garantias dosdireitos fundamentais

As garantias dos direitos fundamentaispodem sofrer diversas classificações, depen-dendo dos preceitos teóricos utilizados pelointérprete. No presente trabalho, em virtudede se buscar estabelecer um quadro compa-rativo entre os diversos textos constitucio-nais dos países do Mercosul, serão utiliza-das cinco categorias classificatórias: a) ga-rantias de rigidez constitucional dos direi-tos fundamentais; b) garantias judiciais (re-médios constitucionais); c) garantias de efi-cácia dos direitos fundamentais; d) garan-tia da divisão dos poderes (autonomia doPoder Judiciário); e) garantia da superiori-dade da Constituição (controle de constitu-cionalidade das leis).

3.1. Garantias de rigidez constitucional dosdireitos fundamentais

Conceito: entende-se por rigidez consti-tucional dos direitos fundamentais os pre-ceitos inseridos no texto constitucional queprotegem os direitos fundamentais da in-tervenção modificadora ou supressora dolegislador constitucional futuro, limitando-lhe sobremaneira os poderes, criando umnúcleo essencial intangível ou estabelecen-do procedimentos diferenciatórios quandodo processo de revisão. Para Carl Schmitt9,a reforma dificultada é uma característicaformal da Constituição, exteriorizando umagarantia de duração e estabilidade10. A ga-rantia de rigidez constitucional, pois, carac-teriza-se “pela inserção de determinados li-mites à atuação do poder público, das pes-soas em geral e do legislador infraconsti-tucional no que se refere à proteção dos di-reitos fundamentais” 11.3.1.1. A Constituição Brasileira de 1988: AConstituição brasileira, em seu artigo 60, pa-rágrafo 4º, inciso IV, determina que não seráobjeto de deliberação a proposta de emendatendente a abolir os direitos e garantias in-dividuais, criando expressamente um nú-cleo constitucional intangível pelo Consti-

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tuinte Revisor. Assim, no atual sistema cons-titucional brasileiro, os direitos fundamen-tais foram elencados à categoria de “cláu-sulas pétreas”, cuja imunidade constitui umdos mais eficazes instrumentos de sua pro-teção. De acordo com a Jurisprudência daSuprema Corte brasileira, essa cláusula pro-tetiva alcança inclusive aqueles direitos fun-damentais que não se encontrem expressa-mente elencados no catálogo do artigo 5ºda Constituição Federal, como, por exem-plo, a garantia de anterioridade tributária,inserta no artigo 150 da Constituição Federal:a Corte Constitucional, ao apreciar a consti-tucionalidade da Emenda Constitucional nº3/93 e da Lei Complementar nº 77/93, noque se refere à criação do IPMF (Imposto Pro-visório sobre Movimentação Financeira), re-conheceu a possibilidade de existência deum direito fundamental que não se encon-tre relacionado no catálogo do artigo 5º daConstituição Federal, adotando um critériomaterial na sua conceituação 12.

3.1.2. A Constituição do Paraguai: O TextoConstitucional paraguaio efetua uma dife-renciação clara entre reforma da Constitui-ção e emenda da Constituição. Em seu artigo289, determina que a reforma da Constitui-ção somente poderá ser procedida após dezanos de sua promulgação. Uma vez decla-rada a necessidade da reforma, o TribunalSuperior de Justiça Eleitoral chamará a elei-ção dentro do prazo de 120 dias. De outrolado, a Constituição, em seu artigo 290, es-tabelece a possibilidade de emenda à Consti-tuição, após três anos de sua promulgação,mediante iniciativa da quarta parte dos le-gisladores, do Presidente da República oude 30% dos eleitores. O texto íntegro daemenda deverá ser aprovado por maioriaabsoluta nas duas Câmaras. Após, o texto éenviado ao Tribunal Superior de Justiça Elei-toral, para que convoque um referendum.Estabelece a norma, ainda, que não poderáser utilizado o procedimento de emenda paraaquelas disposições dos Capítulos I, II, III eIV do Título II da Parte I (o título II mencio-nado refere-se aos direitos e as garantias

fundamentais). Assim sendo, no sistemaconstitucional do Paraguai, os direitos fun-damentais igualmente encontram-se prote-gidos por uma cláusula impeditiva de mo-dificação ou supressão por meio do proces-so denominado Emenda Constitucional,havendo necessidade do procedimento dereforma da Constituição da aprovação po-pular.

3.1.3. A Constituição do Uruguai: A Cons-tituição uruguaia não estabelece matériasretiradas do âmbito do poder reformador,somente exigindo, em seu artigo 331, proce-dimentos que diferem dos procedimentosaplicáveis ao processo legislativo ordinário.Assim, a Constituição poderá ser reforma-da: a) por iniciativa de 10% dos cidadãos,que será submetida à decisão popular, naeleição mais próxima; b) projeto de iniciati-va de 2/5 dos Componentes da AssembléiaGeral, que será submetido ao plebiscito naprimeira eleição que se realize; c) Projeto dosSenadores, Representantes e Poder Executi-vo, que deverá ser aprovado pela maioriaabsoluta dos componentes da AssembléiaGeral. Após, o projeto é apreciado por umaConvenção Nacional Constituinte, convo-cada especificamente para apreciar esse pro-jeto. Aprovado o projeto pela Convenção,este deve ser ratificado pelo Corpo Eleitoral,convocado pelo Poder Executivo (os votan-tes expressarão “sim” ou “não”), sendo quea reforma deverá ser aprovada por maioriade votos, necessária a participação de, nomínimo, trinta e cinco por cento dos cida-dãos inscritos no Registro Cívico Nacional;d) a Constituição poderá ser reformada, ain-da, por leis constitucionais, mediante apro-vação de 2/3 do total de componentes decada uma das Câmaras. O projeto deveráser aprovado pelo eleitorado, convocadoespecialmente para esse fim, mediante con-formidade da maioria absoluta dos votosemitidos.

3.1.4. A Constituição da Argentina: Em seuartigo 30, determina a Constituição argenti-na a possibilidade da reforma no todo ouem qualquer de suas partes, havendo ne-

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cessidade, para isso, de declaração do Con-gresso, com o voto de 2/3, ao menos, de seusintegrantes. Todavia, a reforma não poderáser efetuada senão por uma Convenção con-vocada para esse fim.

Comparando-se as quatro Constituições,conclui-se ser ponto coincidente a presençade um sistema constitucional rígido, ou seja,a adoção de um regime de modificação doTexto Constitucional diferenciado daqueleutilizado para introduzir no ordenamentojurídico as leis ordinárias. O sistema maiseficaz para a proteção dos direitos funda-mentais parece ser aquele adotado pelaConstituição Uruguaia, cujas disposiçõespertinentes a sua alteração, embora a au-sência de impeditivo à modificação ou su-pressão das normas regulamentadoras dosdireitos fundamentais, traduzem um siste-ma protetivo com flagrante cunho democrá-tico, em que sempre quem dará a última pa-lavra sobre as alterações é o cidadão, tradu-zindo uma força estabilizadora indiscutí-vel da norma constitucional, afastando-se,aqui, aquele problema apontado por boaparte da doutrina quando do estudo de cons-tituições que vedam a alteração das normasconsagradoras dos direitos fundamentais,qual seja, a submissão das gerações futurasàs regulamentações das gerações passadas(caso da Constituição do Brasil). Em senti-do oposto, a Constituição da Argentina é aque menos proteção formal confere aos di-reitos fundamentais, pois não cria um nú-cleo intangível ao poder reformador nemcondiciona a modificação da Constituiçãoà aprovação popular, criando, em conse-qüência, uma instabilidade de vigência e efi-cácia das normas protetivas dos direitosfundamentais.

3.2. Garantias judiciais dos direitosfundamentais (Remédios

Constitucionais)Por definição, os direitos fundamentais

têm de receber, em Estado de Direito, prote-ção jurisdicional. Só assim “valerão inteira-

mente como direitos, ainda que em termos egraus diversos consoante sejam direitos, li-berdades e garantias ou direitos econômi-cos, sociais e culturais”13. As garantias judi-ciais dos direitos fundamentais, tambémconhecidas por remédios constitucionais,permitem tornar concretos os direitos funda-mentais, que se encontram tão-somente de-clarados no Texto Constitucional. A maiorou menor dificuldade no acesso ao PoderJudiciário para efetiva proteção dos direitosfundamentais, sem dúvida, é sinal de apri-moramento cultural de um povo, refletindoa intenção de materialização dos princípiosnorteadores da democracia. Nesse passo,mostra-se de fundamental importância aquestão atinente à morosidade da prestaçãojurisdicional, mal maior do Poder Judiciá-rio, nas palavras do Ministro Carlos Vello-so, do Supremo Tribunal Federal14, sendo asolução do problema, por meio de busca desoluções concretas e viáveis, como a adoçãodos juizados especiais de pequenas causasno âmbito da Justiça Federal, com liberaçãodo regime do precatório para essas deman-das, racionalização dos recursos proces-suais, com valorização do magistrado deprimeiro grau, adoção de súmula impedi-tiva de recursos, imperiosa para a plena efi-cácia dos direitos fundamentais, situaçãoque, no âmbito dos países componentes doMercosul, não é exclusiva do Brasil.

3.2.1. A Constituição brasileira de 1988: In-questionavelmente, avanços notáveis foramintroduzidos pela “Constituição Cidadã” aotratar da defesa judicial dos direitos, crian-do institutos jurídicos antes inéditos emnosso sistema, sempre com a intenção decercar os direitos fundamentais da maisampla possibilidade protetiva, bem comoinstituindo mecanismos para tornar eficazo direito diante da omissão do Poder Públi-co: a) garantia do acesso ao Poder Judiciário, aoestabelecer a Constituição, em seu artigo 5º,inciso XXXV, que a lei não excluirá da apre-ciação do Poder Judiciário lesão ou ameaçaa direito, com previsão da gratuidade doacesso (artigo 5º, inciso LXXIV) e dos insti-

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tutos da substituição e da representaçãoprocessual; b) habeas-corpus: remédio jurídi-co atualmente utilizado para proteger a li-berdade de locomoção. Interessante obser-var que o instituto do habeas corpus brasi-leiro apresenta uma evolução histórica queo singulariza definitivamente, a ponto deser criada a chamada “doutrina brasileira”do habeas corpus. Com efeito, consoante en-sina Seabra Fagundes15, a conceituação dohabeas corpus na Constituição brasileira de1891 é expressa numa fórmula que não ovincula à proteção da liberdade de locomo-ção, mas, sim, genericamente, à proteçãocontra ‘violência ou coação por ilegalidadeou abuso de poder’. O Supremo TribunalFederal, rendendo-se às postulações de RuiBarbosa,

“expressivas daquilo que ele própriodenominaria, alhures, de ‘contumáciada verdade’, e tirará, do novo texto,ilações capazes de converterem o ve-tusto remédio do Direito britânico eminstrumento de proteção do indivíduocontra o arbítrio do poder e, indireta-mente, de defesa das próprias insti-tuições republicanas” (p. 104);

c) Mandado de Segurança: o artigo 5º, incisoLXIX, da Constituição Federal consagra esseinstituto:

“Conceder-se-á mandado de segurançapara proteger direito líquido e certo, nãoamparado por habeas corpus ou habeas data,quando o responsável pela ilegalidade ouabuso de poder for autoridade pública ouagente de pessoa jurídica no exercício deatribuições do Poder Público”.Direito líquido e certo, para fins de Manda-do de Segurança,

“pressupõe a demonstração de planodo alegado direito e a inexistência deincerteza a respeito dos fatos. Susten-ta-se na incontestabilidade destes,verificando-se quando a regra jurídi-ca, que incidir sobre fatos incontestá-veis, configurar um direito da parte.”(STJ, Rel. Min. Salvio de Figueiredo,DJ 20-04-92 pg: 05256);

d) Mandado de Segurança Coletivo: trata-se de umas das inovações da Constituiçãode 1988, sendo regulado o instituto no arti-go 5º, inciso LXX:

“O mandado de segurança coleti-vo pode ser impetrado por: a) partidopolítico com representação no Con-gresso nacional; b) organização sin-dical, entidade de classe ou associa-ção legalmente constituída e em fun-cionamento há pelo menos um ano,em defesa dos interesses de seus mem-bros ou associados”.

Trata-se, segundo melhor doutrina16, de uminstrumento coletivo de tutela de direitosindividuais:

“O mandado de segurança protegedireito individual. Não substitui aação popular ou a ação civil pública.Naquele realça o interesse particular.Nestas, o interesse público; o pos-tulante só reflexamente se beneficiarádo que requer”. (STJ, Rel. Min. Vicen-te Cernicchiaro, DJ DATA:5-2-90PG:00447) “O objeto do mandado desegurança coletivo será um direito dosassociados, independentemente deguardar vínculo com os fins própriosda entidade impetrante do writ, exi-gindo-se, entretanto, que o direito es-teja compreendido nas atividades exer-cidas pelos associados, mas não seexigindo que o direito seja peculiar,próprio, da classe.” (Supremo Tribu-nal Federal, Tribunal Pleno, Rel. Min.Carlos Velloso, MS 22132/RJ, DJ 18-11-96, pp 39848);

e) Mandado de Injunção: instrumento cons-titucional conducente à eficácia plena dosdireitos conferidos pela Constituição, pre-visto no artigo 5º, LXXI:

“Conceder-se-á mandado de in-junção sempre que a falta de normaregulamentadora torne inviável o exer-cício dos direitos e liberdades consti-tucionais e das prerrogativas ineren-tes à nacionalidade, à soberania e àcidadania”.

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Inobstante a intenção da norma constitu-cional criadora do mandado de injunção, oSupremo Tribunal Federal, chamado a jul-gar a extensão do instituto, acabou por su-primir a sua utilidade prática, decidindopela inviabilidade de o Poder Judiciário pro-duzir, concretamente, a norma individualimpeditiva do pleno gozo do direito conce-dido na Constituição Federal, apenas decla-rando a existência de mora legislativa, o que,por certo, não supre a pretensão do titulardo direito: mandado de injunção é ação

“outorgada ao titular de direito, ga-rantia ou prerrogativa a que alude oart. 5º, LXXI, dos quais o exercício estáinviabilizado pela falta de norma re-gulamentadora, e ação que visa a ob-ter do Poder Judiciário a declaraçãode inconstitucionalidade dessa omis-são se estiver caracterizada a mora emregulamentar por parte do Poder, ór-gão, entidade ou autoridade de queela dependa, com a finalidade de quese lhe dê ciência dessa declaração,para que adote as providências neces-sárias, à semelhança do que ocorrecom a ação direta de inconstituciona-lidade por omissão (art. 103, § 2º, daCarta Magna), e de que se determine,se se tratar de direito constitucionaloponível contra o Estado, a suspen-são dos processos judiciais ou admi-nistrativos de que possa advir para oimpetrante dano que não ocorreria senão houvesse a omissão inconstitu-cional” (STF. Mandado de Injunção107-3-DF – Questão de Ordem –, Rel.Min. Moreira Alves).

Em sentido contrário, colhe-se o posi-cionamento do Ministro do Supremo Tribu-nal Federal Carlos Velloso, para quem aCorte, ao julgar procedente o mandado deinjunção, deverá elaborar a norma para ocaso concreto17; f) habeas-data: Inovação daConstituição de 1988, enunciada no artigo5º, inciso LXXII:

“Conceder-se-á habeas data: a) paraassegurar o conhecimento de informa-

ções relativas a pessoa do impetrante,constantes de registros ou banco dedados de entidades governamentaisou de caráter público; b) para a retifi-cação de dados, quando não se prefi-ra fazê-lo por processo sigiloso, judi-cial ou administrativo”;

g) ação popular: prevista no artigo 5º, LXXIII:“Qualquer cidadão é parte legí-

tima para propor ação popular quevise a anular ato lesivo ao patrimôniopúblico ou de entidade de que o Esta-do participe, à moralidade adminis-trativa, ao meio ambiente e ao patri-mônio histórico e cultural, ficando oautor, salvo comprovada má-fé, isen-to das custas judiciais e do ônus dasucumbência”.

Trata-se de um típico instrumento de exer-cício da cidadania; h) ação civil pública: con-sagrada no artigo 129, III, da Constituição:“Para a proteção do patrimônio público esocial, do meio ambiente e de outros interes-ses difusos e coletivos”.

3.2.2. A Constituição do Uruguai: a) habeascorpus: artigo 17: Em caso de prisão indevi-da, o interessado ou qualquer pessoa pode-rá interpor perante o juiz competente o re-curso de habeas corpus, a fim de que a autori-dade coatora explique e justifique de ime-diato o motivo legal da prisão, devendo de-cidir o juiz indicado; b) gratuidade do acesso àjustiça (art. 254).

3.2.3. A Constituição do Paraguai: a) habe-as corpus (artigo 133: poderá ser preventivo,reparador ou genérico); b) ação de amparo (ar-tigo 134: pode ser equiparado ao nosso man-dado de segurança, com a particularidadede ser possível sua utilização contra ato departicular); c) habeas data (artigo 135).

3.2.4. A constituição da Argentina: a) habeascorpus (artigo 43, parte final); b) habeas data(artigo 43); c) ação de amparo (artigo 43: comamplitude maior que o mandado de segu-rança brasileiro, inclusive podendo ser in-terposto contra ato de particular). Deve-seatentar para as particularidades da ação deamparo no sistema constitucional argenti-

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no, cuja amplitude o eleva a efetivo instru-mento de defesa de direitos individuais, cole-tivos e difusos (meio ambiente e defesa doconsumidor). Aquela pretensão que, no sis-tema brasileiro, deve ser instrumentalizadamediante diversas ações (mandado de se-gurança, mandado de segurança coletivo,habeas data, ação popular, ação civil públi-ca), na Constituição argentina encontra asua satisfação plena por meio da ação deamparo, o que torna mais eficiente a defesados direitos constitucionais. Constitui oamparo o

“mais prestigioso meio para imple-mentar um verdadeiro ‘processo cons-titucional’. A tutela fundamental quea ação de amparo procura são os di-reitos fundamentais das pessoas –direitos humanos –. (...) Apesar daaparente amplitude assinalada aoamparo pela Constituição argentina,a Corte Suprema de Justiça da Naçãotem reiterado, depois da reforma cons-titucional de 1994, o caráter subsidiá-rio da ação” 18.

3.3.Garantias de eficácia dos direitosfundamentais

3.3.1. A Constituição brasileira de 1988:a) aplicabilidade imediata dos direitos e ga-rantias fundamentais, consoante parágrafo1º do artigo 5º, assim redigido: “As normasdefinidoras de direitos e garantias indivi-duais têm aplicação imediata”; b) manda-do de injunção (artigo 5º, inciso LXXI); c)ação de inconstitucionalidade por omissão(art. 103, parágrafo 2º, Constituição Federal):

“Declarada a inconstitucionalida-de por omissão de medida para tor-nar efetiva norma constitucional, serádada ciência ao Poder competentepara a adoção das providências ne-cessárias e, em se tratando de órgãoadministrativo, para fazê-lo em trintadias”.

3.3.2. A Constituição do Uruguai: a) apli-cabilidade imediata dos direitos e garantiasfundamentais, consoante artigo 332: os pre-

ceitos da Constituição que reconhecem di-reitos aos indivíduos não deixam de ter apli-cabilidade por falta de regulamentação res-pectiva, sendo a lacuna suprida recorren-do-se aos fundamentos de leis análogas, aosprincípios gerais de direito e às doutrinasgeralmente admitidas.

3.3.3. A Constituição da Argentina: impos-sibilidade de as garantias e direitos reco-nhecidos na Constituição serem alteradospor leis que regulamentem o seu exercício(artigo 28), não havendo outro preceito cons-titucional regulando, de forma expressa, aeficácia das disposições referentes aos di-reitos fundamentais.

3.3.4. A Constituição do Paraguai: as ga-rantias contempladas na Constituição se-rão reguladas por lei, consoante dispostono artigo 131, havendo, portanto, disposi-ção expressa delegando à legislação infra-constitucional o poder regulamentar dosdireitos fundamentais, retirando a eficáciaimediata das garantias contempladas.

3.4. Garantia da divisão dos poderes(autonomia e independência do Poder

Judiciário)

3.4.1. Constituição do Brasil de 1988:a) a independência do Poder Judiciário éprincípio fundamental da República, con-soante disposto no artigo 2º; b) ao Poder Ju-diciário é assegurada autonomia adminis-trativa e financeira (artigo 99); c) os Juízes,em virtude da necessidade da autonomiado Poder Judiciário, gozam de garantias(que são, em verdade, dos cidadãos) 19: vita-liciedade; inamovibilidade; irredutibilidadede vencimentos (apenas nominal, segundoo Supremo Tribunal Federal) – artigo 95; d)os Juízes de primeiro grau são escolhidospor meio de concurso público (art. 93, inci-so I).

3.4.2. Constituição da Argentina: o PoderJudiciário é independente em sua relaçãocom os outros poderes do Estado20: a) o arti-go 109 da Constituição estabelece que emnenhum caso o Presidente da Nação podeexercer funções judiciais; b) a administra-

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ção do Poder Judiciário, no âmbito federal, éefetuada pelo Conselho da Magistratura (art.114); c) garantia dos Juízes: artigo 110 es-tabelece a inamovibilidade e a intangibi-lidade de seus vencimentos; d) designaçãode magistrados: adotou-se, em termos ge-rais, o sistema constitucional norte-ame-ricano, sendo a designação dos juízesrealizada segundo critérios das insti-tuições políticas do Estado (Poder Execu-tivo e Poder Legislativo). Na ordem fe-deral, os juízes inferiores são selecio-nados pelo Conselho da Magistratura (ar-tigo 114).

3.4.3. Constituição do Uruguai: a inde-pendência do Poder Judiciário tem diretarelação com a situação funcional dos ma-gistrados, motivo pelo qual as garantiasestatuídas estão dirigidas a assegurar atodos os cidadãos a imparcialidade domagistrado 21: a) independência do PoderJudiciário: princípios da independência,submissão à lei, da unidade de jurisdi-ção, exclusividade, igualdade de acessoà justiça não estão expressamente previs-tos na Constituição, mas decorrem de umainterpretação harmonizada; b) ingressona carreira: os juízes são designados pelaSuprema Corte de Justiça, a qual, por suavez, é nomeada pela Assembléia Geral doPoder Legislativo; c) os juízes gozam dasgarantias: estabilidade, independênciaeconômica.

3.4.4. A Constituição do Paraguai: a) in-dependência e função do Poder Judiciá-rio encontram-se nos artigos 247 e 248: oPoder Judiciário é o guardião da Constitui-ção, sendo que a administração da Justiçaestá a cargo do Poder Judiciário, sendo ga-rantida a sua independência; b) designa-ção de seus membros: os membros dosTribunais e juízes de toda a Repúblicaserão designados pela Corte Suprema deJustiça (artigo 251); c) inamovibilidadedos magistrados está garantida no artigo252; d) imunidade dos magistrados: arti-go 255.

3.5. Garantia da superioridade da constituição(controle da constitucionalidade das leis e dos

atos normativos)

3.5.1. A Constituição do Brasil: a Consti-tuição do Brasil prevê, em matéria de con-trole de constitucionalidade, expressamen-te o sistema concentrado (artigo 102, incisoI, letra “a”), decorrendo do artigo 5º, XXXV,da CF o sistema difuso. O sistema constitu-cional vigente, em sintonia com sua própriatradição, e guardando forte semelhança,nesse aspecto, com o esquema norte-ameri-cano, em que pese as substanciais diferen-ças culturais, sociais, econômicas dos res-pectivos contextos, consagra ao Poder Judi-ciário o judicial control, a capacidade de, emcada caso concreto, decidir e decretar a in-constitucionalidade das leis, decretos, regu-lamentos, atos dos Poderes Públicos e ques-tões, em geral, submetidas ao seu crivo, com-petindo-lhe, com exclusividade, o controlede constitucionalidade da lei ou dos atosnormativos (Supremo Tribunal Federal, Rel.Min. Moreira Alves, ADIMC-221/DF, DJ 22-10-93, pp 22251).

Em virtude dessas características histó-ricas, a Constituição Federal de 1988 dedi-cou-se com cuidado à defesa judicial dosdireitos dos cidadãos (a chamada jurisdi-ção constitucional), prevendo diversos ins-titutos, antes inéditos no nosso sistema, paraconferir efetividade aos direitos e garantiaselencados pela Carta Magna (ressaltam-seo habeas data, o mandado de injunção e omandado de segurança coletivo). No que serefere ao controle de constitucionalidadedas leis, preservou a Constituição de 1988 osistema misto, qual seja, conjugação do sis-tema americano (difuso) com o sistema aus-tríaco (concentrado), ampliando-se, contu-do, sobremaneira, a legitimação ativa paraa ação direta de inconstitucionalidade. Omodelo concentrado de fiscalização da cons-titucionalidade das leis está previsto no ar-tigo 102, I, ‘a’, da Constituição Federal,enquanto o sistema difuso decorre da cláu-sula inserida em seu artigo 5º, XXXV.

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Novidade teoricamente questionável res-tou inserida na Carta da República por meioda Emenda Constitucional nº 3/93, ao ins-tituir a ação declaratória de constitucio-nalidade de lei ou ato normativo federal, decompetência originária do Supremo Tri-bunal Federal, com eficácia erga omnes, vin-culando todos os intérpretes da norma, con-soante decidido pelo Supremo Tribunal Fe-deral na Ação Direta de Inconstitucionali-dade nº 04, uma vez que se está negando apresunção de legitimidade e de constitucio-nalidade da norma legal.

3.5.2. A Constituição da Argentina: a Cons-tituição da Argentina adotou o sistema di-fuso de controle da constitucionalidade: naArgentina, o controle de constitucionalidadenão é concentrado, mas difuso. Vale dizer,qualquer juiz da República é competentepara exercer a jurisdição constitucional nascausas em que é chamado a entender22. Noartigo 43 da Constituição Argentina, en-contra-se referência expressa à possibi-lidade de o Juiz, no caso concreto, decla-rar a inconstitucionalidade de uma leiinfraconstitucional.

3.5.3. A Constituição do Paraguai: segun-do o disposto no artigo 137, carecem de va-lidez todas as disposições e atos de autori-dades opostos ao estabelecido na Constitui-ção, cabendo ao Poder Judiciário interpre-tar, cumprir e fazer cumprir a Constituição(artigo 247).

3.5.4. A Constituição do Uruguai: segundoo artigo 256, as leis poderão ser declaradasinconstitucionais por razão de forma ou deconteúdo. Compete à Suprema Corte o co-nhecimento e a decisão originária e exclusi-va sobre a matéria (artigo 257). A declara-ção de inconstitucionalidade de uma leipoderá ser requerida, segundo o artigo 258:a) via de ação, que deverá ser ajuizada pe-rante a Suprema Corte de Justiça; b) por viade exceção, que poderá ocorrer em qualquerprocedimento judicial. O juiz ou tribunal queentender, em qualquer procedimento judi-cial, inconstitucional uma lei poderá solici-tar de ofício a declaração de inconstitucio-

nalidade de uma lei. Nesse caso, suspende-se o procedimento, levando-se a causa aoconhecimento da Suprema Corte de Justiça.Ou seja, elegeu a Constituição do Uruguaium sistema concentrado de controle da cons-titucionalidade, delegando a um único ór-gão da estrutura do Poder Judiciário o po-der de decidir sobre a constitucionalidadedos atos normativos.

4. Considerações finaisAs disposições constitucionais dos paí-

ses integrantes do Mercosul atinentes às ga-rantias dos direitos fundamentais seguemas enumerações constantes nos tratados in-ternacionais, havendo uma indiscutívelpreocupação com a concretização da demo-cracia enquanto valor fundamental dos po-vos. Nesse sentido, percebe-se clara ênfasena proteção judicial dos direitos fundamen-tais, instituindo-se instrumentos eficazes ecéleres para a defesa das posições constitu-cionais, sendo um elemento decisivo na oti-mização dos valores agregados pelas res-pectivas Constituições.

Para que a defesa dos direitos fundamen-tais não seja mera retórica constitucional,mostra-se imprescindível o aprimoramentodo Poder Judiciário, conferindo-lhe as ga-rantias necessárias à configuração da inde-pendência jurisdicional, requisito inafastá-vel à segurança do cidadão, consoante bemapreendido por Sílvio Dobrowolski23.

Os instrumentos básicos de defesa dosdireitos fundamentais encontram-se de-vidamente contemplados nas Constitui-ções dos países signatários originários doMercosul, como a) rigidez constitucional;b) garantia da divisão dos poderes (auto-nomia do Poder Judiciário); c) garantia dasuperioridade da Constituição (controle deconstitucionalidade); d) previsão de remé-dios judiciais de defesa de direitos constitu-cionais, como o habeas corpus e o mandadode segurança ou a ação de amparo. No quese refere à divisão dos poderes e à indepen-dência do Poder Judiciário, mostra-se neces-

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sária a inserção, em alguns textos constitu-cionais, de normas mais claras deferindo aautonomia aos juízes, o que passa pela pre-visão de garantias individuais dos magis-trados (que têm por objetivo a proteção dojurisdicionado) e pela adoção de um siste-ma de escolha de juízes que não tenha porsuporte critérios políticos, fator que se mos-tra decisivo à consolidação do regime de-mocrático no âmbito do Mercosul.

Por fim, em virtude da constatação daexistência de uma harmonização possívelentre os sistemas jurídicos dos países doMercosul, deve ser aprofundada a discus-são envolvendo a criação de um TribunalJudicial comum aos povos do Mercosul, comatribuições em matéria envolvendo direitose garantias fundamentais, situação que ge-raria uma maior segurança na efetiva inte-gração política e cultural dos países signa-tários, imprimindo uma maior uniformida-de no trato de questões que, atualmente, nãomais podem ser mantidas restritas às fron-teiras nacionais.

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Notas

1 Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortêz, 1995.

2 JÚNIOR, José Alcebíades de Oliveira, Cidada-nia coletiva, p. 24.

3 As transformações do Direito Constitucional nasociedade contemporânea. Texto extraído da Internetem 12 de julho de 1997.

4 Direito Constitucional e Teoria da Constitui-ção, p. 1214.

5 Harmonização, no âmbito do Mercosul, das garan-tias Constitucionais e processuais dos Direitos Funda-mentais e o Acesso à Justiça. In: Revista da EscolaSuperior da Magistratura do Estado de Santa Ca-tarina, 4:228.

6 Jorge Miranda, Manual de Direito Constituci-onal, p. 88.

7 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Ma-drid: Alianza universidad textos, 1996, p. 182.

8 Commentarios à Constituição Federal Brasileira.São Paulo: Saraiva, 1934, vol. V, p. 181.

9 SCHMITT, Carl. Op. Cit., p. 41.10 Em virtude de se afastar dos objetivos do

presente estudo, não se aborda a questão da fun-damentação da inalterabilidade das cláusulas pé-treas (é possível uma geração sujeitar às geraçõesfuturas as suas leis?) ou a tese denominada “du-pla revisão”, defendida por Jorge Miranda, a qualacaba por retirar toda a eficácia estabilizadora das“cláusulas pétreas”. A respeito, para maior apro-fundamento, leia-se: “Significação e alcance das‘cláusulas pétreas’”, Manoel Gonçalves Ferreira Fi-lho, Cadernos de Direito Constitucional e CiênciaPolítica, 13:05/10.

11 QUADROS DE MAGALHÃES, José Luiz. Asgarantias dos direitos fundamentais. In: Revista deInformação Legislativa, 31:41/46.

12 EMENTA: – Direito Constitucional e Tri-butár io .

Ação Direta de Inconstitucionalidade deEmenda Constitucional e de Lei Complementar.I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentaçãoou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direi-tos de Natureza Financeira – I.P.M.F. Artigos 5.,par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III,“b”, e VI, “a”, “b”, “c” e “d”, da ConstituiçãoFederal.

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1. Uma Emenda Constitucional, emanada,portanto, de Constituinte derivada, incidindo emviolação a Constituição originária, pode ser decla-rada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Fe-deral, cuja função precípua é de guarda da Consti-tuição (art. 102, I, “a”, da CF).

2. A Emenda Constitucional nº 3, de 17-3-1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir oI.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade,ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que,quanto a tal tributo, não se aplica “o art. 150, III,“b” e VI”, da Constituição, porque, desse modo,violou os seguintes princípios e normas imutáveis(somente eles, não outros):

1 – o princípio da anterioridade, que é ga-rantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2.,art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, “b”, daConstituição);

2 – o princípio da imunidade tributária recí-proca (que veda à União, aos Estados, ao DistritoFederal e aos Municípios a instituição de impostossobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos ou-tros) e que é garantia da Federação (art. 60, par. 4.,inciso I, e art. 150, VI, “a”, da CF);

3 – a norma que, estabelecendo outras imu-nidades, impede a criação de impostos (art. 150,III) sobre: “b”) templos de qualquer culto; “c”)patrimônio, renda ou serviços dos partidos políti-cos, inclusive suas fundações, das entidades sindi-cais dos trabalhadores, das instituições de educa-ção e de assistência social, sem fins lucrativos, aten-didos os requisitos da lei; e “d”) livros, jornais,periódicos e o papel destinado a sua impressão;

3. Em conseqüência, é inconstitucional, tam-bém, a Lei Complementar n. 77, de 13-7-1993, semredução de textos, nos pontos em que determinoua incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) edeixou de reconhecer as imunidades previstas noart. 150, VI, “a”, “b”, “c” e “d” da CF (arts. 3., 4. e8. do mesmo diploma, LC nº 77/93).

4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julga-da procedente, em parte, para tais fins, por maio-ria, nos termos do voto do Relator, mantida, comrelação a todos os contribuintes, em caráter defini-tivo, a medida cautelar, que suspendera a cobran-ça do tributo no ano de 1993. (ADIN-939 / DFAÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDA-DE. Relator Ministro SYDNEY SANCHES. Publi-cação DJ DATA-18-3-94 PP-05165 EMENT VOL-01737-02 PP-00160. Julgamento 5-12-1993 – TRI-BUNAL PLENO).

13 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitu-cional, p. 232.

14 “O Poder Judiciário: como torná-lo mais ágile dinâmico: efeito vinculante e outros temas”. InVerbis, Caderno de Estudos, número 10, março de1998, p. 153.

15 FAGUNDES, Seabra. A evolução do sistema de

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proteção jurisdicional dos direitos no Brasil Republica-no. In: Revista de Direito Público, 23:103/111.

16 “Do mandado de segurança coletivo há quempense tratar-se de instrumento para salvaguardarunicamente direitos coletivos e assim chegou a de-cidir o Superior Tribunal de Justiça. Há, por outrolado, quem sustente poder ele ser utilizado tantoem defesa de direitos coletivos, quanto de direitosindividuais. E, finalmente, em terceira orientação,estão os que pensam tratar-se, simplesmente, deinstrumento para defesa coletiva de direitos subje-tivos individuais. Esse entendimento mereceu o avalimportantíssimo do Supremo Tribunal Federal. Fi-nalidade – defesa de direitos subjetivos individuais.Em verdade, para proteção de direitos coletivos oumesmo difusos, desde que líquidos e certos, contraato ou omissão de autoridade, não se fazia neces-sário modificar o perfil constitucional tradicionaldo mandado de segurança. Muito antes da Consti-tuição de 1988, que criou o mandado de segurançacoletivo, a jurisprudência já admitia, por exemplo,que Sindicatos ou a Ordem dos Advogados do Bra-sil, impetrassem mandado de segurança – indivi-dual – para defender interesses gerais da classe,vale dizer, típicos direitos coletivos, pois que tran-sindividuais, indivisíveis, pertencentes a umgrupo indeterminado de pessoas. Tudo é apenasuma questão de legitimação: configurada lesão adireito difuso ou coletivo líquido e certo – e estaconfiguração certamente não é corriqueira – nãohaverá empecilho algum ao acesso dos legitimadosa via mandamental tradicional. (...). Assim, a úni-ca novidade introduzida pelo constituinte de 1988

foi a de autorizar que o mandado de segurançapossa ser utilizado por certas entidades para, nacondição de substitutas processuais, buscarem tu-tela de um conjunto de direitos subjetivos de tercei-ros. O que há de novo, destarte, é apenas uma for-ma de defesa coletiva de direitos individuais e nãouma forma de defesa de direitos coletivos.” (TeoriAlbino Zavascki, Defesa de direitos coletivos e defesacoletiva de direitos, Revista da AJUFE, outubro/de-zembro 1994, p. 28).

17 Temas de Direito Público, Del Rey: Belo Hori-zonte, 1994, p. 174.

18 URTUBEY, Rodolfo José. El sistema de admi-nistración de Justicia em Argentina. In: Revista daEscola Superior da Magistratura do Estado de SantaCatarina, p. 57.

19 Por questão meramente didática, inseriram-se as garantias dos juízes neste tópico, qual seja,autonomia e independência do Poder Judiciário,inobstante sejam atributos que se refiram direta-mente à independência dos juízes, necessária parasua posição de imparcialidade.

20 URTUBEY, Rodolfo José. Op. Cit., p. 41.21 LOMBARDI, Eduardo. Princípios Constitucio-

nales y Organizacionales del Poder Judicial Uruguayo:Forma de Ingresso. Carreira. Responsabilidad Adminis-trativa, Penal y Civil. Processo para la Pérdida del Cargo,p. 173.

22 Urtubey, Rodolfo José. El sistema de Admi-nistración de Justiça en Argentina, p. 50.

23 Harmonização, no Âmbito do Mercosul, das Ga-rantias Constitucionais e Processuais dos Direitos Fun-damentais e o Acesso à Justiça, 239.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

O Mercosul é um fato. É um fato político,econômico e jurídico. Não há na afirmaçãonenhuma novidade. Trata-se de uma cons-tatação perceptível a qualquer observador,a partir do perfunctório exame da realidadeantes e após a celebração do Tratado deAssunção em 19911. Mais do que isso, oMercosul vai-se revelando uma organiza-ção internacional2 original, com caracterís-ticas próprias3, surpreendentemente sim-ples, considerada nossa origem latina, sem umaestrutura institucional complexa, estatuindouma experiência nova e eficiente, em muitodessemelhante de outras concepções e mo-delos de integração, como, por exemplo, osempre referido modelo europeu.

O surgimento das organizações interna-cionais é, sem dúvida, um fenômeno con-temporâneo, e, mais recente, é o apareci-mento das chamadas organizações interna-cionais de integração, do tipo comunitário,ou, como preferem alguns, organizações in-

Os modelos de integração européia e doMercosul: exame das formas de produção eincorporação normativa

Carlos Eduardo Caputo Bastos eGustavo Henrique Caputo Bastos

Carlos Eduardo Caputo Bastos é Advogado;Conselheiro Federal e Presidente da Comissãode Relações Internacionais do Conselho Federalda Ordem dos Advogados do Brasil; DelegadoBrasileiro junto ao COADEM – Colégios e Or-dem de Advogados do Mercosul.

Gustavo Henrique Caputo Bastos éAdvogado; Pós-graduado em Direito Econômicoe das Empresas pela FGV – Fundação GetúlioVargas; Extensão de Estudos Europeus daUniversidade de Coimbra pelo Instituto LusoBrasileiro de Direito Comparado.

Sumário1. Introdução. 2. Mercado comum: identi-

dade de objetivos e dessemelhança na consti-tuição dos modelos de integração da UniãoEuropéia e do Mercosul. 3. Cotejo das formasde produção normativa nos modelos UniãoEuropéia e Mercosul. 4. Delimitação do conceitode recepção. 5. A recepção da regra de direitocomunitário: o modelo da União Européia. 6.Recepção e incorporação das normas no modeloMercosul. 7. Conclusão.

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ternacionais de âmbito regional ou sub-re-gional4. As organizações internacionais decaráter regional, em que a União Européia éo exemplo mais marcante, vêm produzindoum complexo normativo próprio, gerado porórgãos da comunidade, cujas característi-cas têm, na sua relação com as ordens inter-nas, ocupado grande parte da doutrina nabusca de sua natureza jurídica.

Manoel Diez de Velasco pondera5, comprecisão, que o mundo das organizações in-ternacionais é extremadamente fragmenta-do e heterogêneo. Existem, segundo ele, nu-merosas categorias de organizações e estas,por sua vez, não constituem departamentosestanques e excludentes, já que estão sujei-tos a uma incessante evolução que caracte-riza esse fenômeno associativo. A par de re-conhecer que a doutrina em geral oferece di-versos critérios de classificação, bem comoregistrar que a natureza híbrida de algumasorganizações e as transformações a que es-tão sujeitas podem levá-las a transitar pordiversas categorias, propõe três critérios declassificação: (a) segundo os seus fins; (b) suacomposição; e (c) suas competências.

No correspondente às competências, oreferido autor subdivide a classificação em:(a) organizações de cooperação; e (b) organiza-ções de integração ou de união. Nas primeiras,encontram-se o tipo clássico, nas quais – res-peitada a soberania dos Estados membros – acooperação é estritamente interestatal, valedizer, intergovernamental, no sentido de queas decisões da Organização – adotadas porunanimidade – dirigem-se aos Estados-Mem-bros; e aplicáveis, nos respectivos territórios,mediante incorporação.

As segundas – organizações de integração– pretendem a constituição de uma uniãoefetiva entre os seus Estados-Membros, es-pecialmente pela cessão de competênciasaos órgãos comuns da organização, compe-tências essas antes atribuídas aos Estadossoberanos, com a particularidade de que asdecisões – no âmbito dos órgãos comuns – po-dem ser tomadas por maioria, bem comopodem produzir, em determinadas ocasiões,

efeito direto e imediato nas ordens jurídicasnacionais.

2. Mercado comum: identidade deobjetivos e dessemelhança na

constituição dos modelos de integraçãoda União Européia e do Mercosul

Na medida em que o Mercosul objetiva aconstituição de um mercado comum6, pode-se afirmar que, nesse aspecto, há uma iden-tidade que o aproxima do modelo UniãoEuropéia. De registrar-se, contudo, que noTratado CEE a livre circulação de pessoasestá explícita7, enquanto no Tratado de As-sunção – no seu artigo 1º – há referência,apenas, à “livre circulação de bens de servi-ços e fatores produtivos entre os países...”.

O que, à primeira vista, pode parecer ir-relevante possui, em realidade, uma parti-cularidade significativa. Assim é que o Tra-tado CEE, já no seu artigo 8º, instituía a “ci-dadania da União – É cidadão da União qual-quer pessoa que tenha nacionalidade de umEstado-membro”. No Tratado de Assunção,e nos Protocolos que se lhe seguiram, nãohá qualquer menção a uma hipotética “ci-dadania do Mercosul”8.

Todavia, almejando o mesmo fim, os mo-delos de integração do Mercosul e da UniãoEuropéia valem-se de meios próprios. Comefeito, a União Européia constituiu-se ummercado comum desde o Tratado CEE, em1957, possuindo instituições e órgãos queexercem competências antes reservadas aosEstados-Membros. No Mercosul, diferente-mente, o mercado comum continua sendoum fim a ser alcançado, e os seus órgãosnão exercem competências transferidas nemdelegadas, antes ao contrário, constituemexemplo clássico de órgãos de natureza in-tergovernamental9.

Nesse sentido, Rui Manoel Moura Ra-mos, em seminário havido na Faculdade deDireito de Coimbra, asseverou:

“Assim, não pode a este propósitodeixar de se acentuar a fidelidade doMERCOSUL ao clássico modelo da in-

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tergovernabilidade ou da cooperação,que caracteriza o mecanismo decisio-nal da maior parte das organizaçõesinternacionais, em contraponto coma mais arrojada aposta do legisladorcomunitário no princípio da integra-ção e na introdução de típicas notasde supranacionalidade. Fruto decer-to da maior importância ainda hojereconhecida no hemisfério sul-ame-ricano ao dogma da soberania esta-dual bem como da menor pressão nosentido da unificação face à que carac-terizara o pensamento e a vida políti-ca europeus do pós-guerra, o certo éque o Tratado de Assunção se afastaa esse respeito bem nitidamente daconstrução comunitária”10.

Quanto à tomada de decisões, na UniãoEuropéia, delibera-se por maioria, com atri-buição de peso ponderado por voto de cadaEstado-Membro11, enquanto, no Mercosul,a palavra de ordem é o consenso, a unani-midade, exigindo-se a presença obrigatóriade todos os Estados-Partes em todas asdeliberações12.

Sobre o tema, Luiz Olavo Baptista étaxativo:

“A característica fundamental do sub-sistema normativo, administrativo e decontrole interno, criado pelo Tratadode Assunção e mantido com ligeirasmodificações pelo Protocolo de OuroPreto, é a regra da unanimidade. Comefeito, não havendo desejo das partesde criar uma instituição supranacio-nal, mas sim internacional, a regra daunanimidade permite-lhe exprimir avontade comum. Esta coincide com anacional, pois, como as normas devemser introduzidas nos Estados pela viada ratificação e aprovação legislativa,os respectivos parlamentos têm a opor-tunidade de manifestar-se em nomedos cidadãos que representam. O fatoé que as dissimetrias não permitiriamo recurso imediato a um sistema pon-derado de votos, sob pena de sacrifi-

car algum dos participantes, tantoem havendo um peso igual, comodiferente”13.

Já no que respeita à composição de con-flitos, na União Européia, observa-se o pro-cedimento jurisdicional14. No Mercosul, porsua vez, prestigia-se o método diplomático,como primeira etapa, e a solução arbitral,como última fase do procedimento de com-posição de controvérsias, muito embora noTratado de Assunção15 e, posteriormente,nos Protocolos de Brasília16 e de Ouro Pre-to17 preveja-se um sistema permanente desolução de controvérsias, que poderá, ounão, manter a atual opção pela arbitragem.

Diante desse quadro, resulta claro queos modelos de integração do Mercosul e daUnião Européia, embora, repita-se, objeti-vem o mesmo fim, possuem característicasinconfundíveis, o que desautoriza, à sacie-dade, a equivocada e constante afirmaçãode que o modelo europeu é o padrão doMercosul18. Não se trata aqui de examinarqualitativamente a concepção e a eficiênciados modelos cogitados. Trata-se, apenas, deidentificar as diferentes soluções adotadasmalgrado a confluência de objetivo.

No que respeita as etapas para se alcan-çar o mercado comum, o Mercosul, entre-tanto, possui vantagens comparativas aomodelo europeu. Nesse sentido, no Merco-sul, os Estados-Partes possuem o mesmosistema jurídico, vale dizer, o civil law. NaUnião Européia, por seu turno, há que secompatibilizar o sistema do civil law com odo common law. Essa circunstância da UniãoEuropéia, por si só, cria uma dificuldadeadicional na perspectiva da aproximação eda harmonização de legislações.

De outra parte, a questão lingüística étambém uma vantagem comparativa, poisno Mercosul há, apenas, duas línguas ofi-ciais19. Na União Européia, o regime lingüís-tico é a expressão da multiplicidade de lín-guas dos Estados-Membros, que, não raro,possuem, no seu próprio território, diversi-dades marcantes20.

Ocorre, porém, que, não obstante tratar-se de modelos de integração peculiares, é

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fato que, na consecução da constituição domercado comum, o Mercosul vai ter que en-frentar uma importante decisão: a institui-ção de órgãos próprios e independentes, com ca-racterísticas e competências típicas de suprana-cionalidade. Até aqui, tem sido possível ma-nejar as fases precedentes de estabelecimen-to de uma zona de livre comércio e de umaunião aduaneira, sem que se fizesse neces-sário, por exemplo, contar com uma buro-cracia comum, na medida em que o Merco-sul não tem empregados, servidores ou fun-cionários21. Até quando?

3. Cotejo das formas de produçãonormativa nos modelos União Européia

e MercosulComo se disse no capítulo antecedente,

ainda que se reconheça uma identidade deobjetivo (constituição de um mercado comum),a União Européia e o Mercosul possuem di-ferenças marcantes que remontam ao seupróprio nascedouro. O Mercosul surgiu esegue sendo um modelo clássico de coope-ração entre Estados, com substância no re-gime de intergovernabilidade, enquanto aUnião Européia – desde o Tratado de Paris, de18-4-1951, e do Tratado de Roma, de 25-3-1957– instituiu, no âmbito de sua organização,órgãos com capacidade decisória e com exer-cício de competências antes reservadas, tão-somente, aos seus Estados-Membros.

Ao preservar o exercício de suas compe-tências soberanas, os Estados-Partes doMercosul timbraram uma vontade políticainequívoca: almejam um mercado comum,mas os órgãos de decisão e a produção nor-mativa devem obedecer ao regime de incor-poração que caracteriza as relações inter-nacionais, entre Estados, disciplinadas noDireito Internacional Público em geral. Valedizer, as decisões e as normas geradas nasinstituições e nos órgãos do Mercosul de-pendem, para sua aplicação e execução, doseu recebimento pelas ordens jurídicas na-cionais, mediante os respectivos procedi-mentos nacionais.

Na União Européia, ao contrário, osórgãos que compõem sua estrutura institu-cional produzem “direito próprio”, isto é,legislam e estabelecem critérios de produ-ção legislativa no interesse da comunidadee não dos seus Estados-Membros. Para tan-to, o Tratado de Roma, de 1957, que insti-tuiu as Comunidades Européias, dotou oConselho e a Comissão de poderes de expe-dir regulamentos e diretivas com o objetivode determinar o interesse e o alcance davontade comunitária22.

Após sua publicação no Jornal Oficialdas Comunidades – observada a “vacatiolegis”, que pode ser de vinte dias após o da pu-blicação ou a data fixada nos referidos diplomaslegislativos (artigo 191, T.R.) –, os regulamen-tos, as diretivas e as decisões entram ime-diatamente em vigor. Araceli Mangas Mar-tin e Diego J. Liñán Nogueras anotam, a pro-pósito, que o princípio da publicidade23 dasnormas tem, no Direito Comunitário, umapresença importante. A publicidade é umrequisito formal e substancial na aplicaçãodos atos comunitários, isto é, embora nãoafete a sua motivação ou a sua validade, afalta de observância do referido princípio afetasua eficácia.

No Mercosul, por sua vez, a par de nãoexistir um órgão oficial de publicação 24 desuas decisões e de sua produção normativa,é de ver-se que as comunicações fazem-sevia diplomática, e a entrada em vigor de suasnormas obedecem a um burocrático sistemade incorporação. Com efeito, no Tratado deAssunção – por ser o diploma de constituiçãodo Mercosul –, era de se esperar que sua en-trada em vigor observasse a sistemática clás-sica de incorporação das regras de DireitoInternacional Positivo em geral, com a vi-gência condicionada à existência de umnúmero previamente estipulado de depósitodos instrumentos25.

O Protocolo de Brasília, por sua vez, esta-beleceu critério qualificado ao disciplinarque sua entrada em vigor demandaria a ra-tificação dos quatro Estados-Partes. Aqui, acircunstância da unanimidade era uma de-

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corrência da necessária observância do Tra-tado de Assunção (artigo 16) e, até mesmo,em face da natureza e do objetivo do Diplo-ma – disciplina de solução de controvérsias en-tre os Estados-Partes.

Com a celebração do Protocolo de OuroPreto, a questão da produção normativa e arespectiva entrada em vigor das decisões dosórgãos do Mercosul ganham explicitude,disciplina e sistematização. Convencionou-se que: (a) Conselho – órgão superior do Mer-cosul – manifestar-se-á mediante decisões26,as quais serão obrigatórias para os Estados-Partes; (b) o Grupo Mercado Comum – órgãoexecutivo do Mercosul – manifestar-se-á me-diante resoluções27, as quais serão obrigató-rias para os Estados-Partes; (c) a Comissãode Comércio do Mercosul – órgão encarrega-do de assistir o Grupo Mercado Comum nas ques-tões de política comercial comum – manifestar-se-á mediante diretrizes28 e propostas. As di-retrizes serão obrigatórias para os Estados-Partes.

Impende observar que, no Tratado de As-sunção, apenas o Conselho e o Grupo Merca-do Comum possuíam capacidade decisória29.Com a institucionalização de outros órgãosna estrutura do Mercosul30, havida com o Pro-tocolo de Ouro Preto, a Comissão de Comér-cio passou, também, a dispor de capacidadedecisória31, no que respeita às suas delibera-ções veiculadas sob a forma de diretrizes. Deoutra parte, expressou-se, também, a nature-za intergovernamental dos órgãos decisórios(artigo 2º do Protocolo de Ouro Preto), bem comoexplicitou-se a obrigatoriedade no cumpri-mento – pelos Estados-Partes – das decisões,resoluções e diretrizes, originárias, respecti-vamente, do Conselho do Mercado Comum,do Grupo Mercado Comum e da Comissãode Comércio do Mercosul.

4. Delimitação do conceito de recepção

Para apreciar o tema objeto deste estu-do32, necessário se faz, ainda, percorrer e pre-cisar o conceito de “recepção”, para, ao fi-nal, delinear as relações que presidem a in-teração entre as ordens jurídicas nacionais

e as ordens jurídicas comunitária e interna-cional, ainda que, en passant, examine-se aquestão, também, sob a ótica da recepção daordem jurídica internacional no modelo co-munitário europeu.

A preocupação é de todo justificada, por-que o operador do Direito não pode pres-cindir do desafio da conceituação e nem daidentificação dos elementos que circunscre-vem sua reflexão. Principalmente, quandoa análise da recepção objetiva averiguar seualcance, repercussão e conseqüências dasordens internacional e comunitárias peran-te as ordens jurídicas nacionais. Por isso,também, requer-se uma brevíssima investi-gação da natureza jurídica do chamado Di-reito Comunitário, cujo conceito é, hoje, mo-tivo de grandes debates entre os juristas edoutrinadores, especialmente no que con-cerne a sua classificação no index do Direito.

Ao se referir à “recepção” de uma regrajurídica, o observador contempla, automa-ticamente, a dicotomia que encerra o racio-cínio da existência de duas ordens jurídi-cas (uma interna e outra externa). Isso se apre-ende na medida em que a produção da nor-ma de que se cogita não procede do mesmoprocesso de criação da qual dimanam asdemais que formam o complexo normativointerno. Portanto, quando se invoca o termo“recepção” de uma regra jurídica, o obser-vador estabelece, rigorosamente, um dos ele-mentos de convicção, que é, nessa hipótese,a distinção entre as ordens jurídicas inter-na e internacional, no que tange à fonte deprodução normativa.

Enquanto, na ordem jurídica interna, aprodução normativa observa os ditamesprocedimentais estabelecidos em uma nor-ma maior – via de regra, uma Constituição, emque estão estabelecidas as competências dos ór-gãos que dispõem de poder normativo –, na or-dem jurídica internacional, as normas pro-cedem das convenções internacionais, docostume e dos princípios gerais de direitoreconhecidos pelas “nações civilizadas”,conforme preconiza o Estatuto do TribunalInternacional de Justiça, em seu artigo 38.

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Por outro lado, a distinção entre as or-dens jurídicas interna e internacional recorreao objeto de sua disciplina. Enquanto a or-dem jurídica interna é o complexo de nor-mas que constitui o ordenamento jurídicode uma soberania, e, por conseguinte, é oque rege as relações jurídicas naquele terri-tório, a ordem jurídica internacional é o com-plexo normativo, positivo ou consuetudi-nário, que vincula duas ou mais soberanias,e/ou as organizações internacionais, disci-plinando suas relações enquanto sujeitos deDireito Internacional.

Fixado, ainda que sucintamente, que asordens jurídicas em foco podem distinguir-se no que respeita a sua fonte normativa e oseu objeto, verificamos que o termo “recep-ção” pertine, exclusivamente, às relaçõesque se estabelecem entre as duas ordens, valedizer, em que medida a ordem jurídica inter-na “recebe” a ordem jurídica internacional.

No particular, o conceito jurídico de re-cepção confunde-se com sua acepção ver-nacular, isto é, num ou noutro, recepção sig-nifica “ato ou efeito de receber”. A recepçãoda regra jurídica é, assim, ato ou efeito dereceber a norma internacional no âmbito deuma ordem jurídica interna. Sob essa pers-pectiva, recepção pode, mesmo, ser definidacomo internação de uma norma internacio-nal, ou a incorporação, no ordenamento ju-rídico de uma soberania, de uma regra jurí-dica adstrita – antes da recepção – ao com-plexo normativo internacional.

Essa internação ou incorporação é quevaria de um para outro sistema jurídico, eque, no plano doutrinário, divide monistase dualistas. Para nossa reflexão, interessa-nos examinar a recepção pelas ordens jurí-dicas internas – ato ou efeito de receber umaregra jurídica – das normas que promanamdas relações entre soberanias, ou seja, dasrelações convencionais entabuladas entresujeitos de Direito Internacional.

De início, cumpre esclarecer que a diver-gência entre os doutrinadores surge da con-cepção de existência, ou não, de uma ou

duas ordens jurídicas. De um lado, os mo-nistas entendem que o direito interno e o in-ternacional são dois ramos de um mesmosistema jurídico; e, entre eles, os monistas,há os que sustentam a primazia do direitointerno em conflito com o internacional e osque, em sentido diametralmente oposto, su-fragam o primado do direito internacionalem conflito com o direito interno.

Por sua vez, os dualistas entendem que odireito interno e o internacional são dois sis-temas distintos, separados e independen-tes, até porque a criação das normas é obradireta de seus destinatários. Para essa cor-rente, a norma internacional só tem valida-de após recebida pela ordem jurídica inter-na, pois, se nesta avulta o conceito de su-bordinação, na ordem jurídica internacio-nal a coordenação é que preside a convi-vência organizada entre as soberanias.

A validade e a eficácia da norma inter-nacional, por via de conseqüência, paraos dualistas, requer sua “domesticação”,vale dizer, requer seja observada sua“transformação” em direito interno. Issosignifica dizer, em realidade, que a nor-ma internacional jamais terá validade naordem interna senão e quando após o la-bor de um órgão nacional de aprovaçãodo ato executivo em sede internacional.

Em regime constitucional, como o nos-so, por exemplo, no qual designa-se aoExecutivo competência para conduzir asrelações externas e ao Legislativo compe-tência para aprovar os atos celebrados noplano internacional, a regra internacio-nal, para ter validade, não dispensa suatransformação em direito interno pela viacongressual.

Nos regimes monistas, ao contrário, aomenos naqueles em que se afirma o pri-mado do direito internacional, dispensa-se qualquer atividade interna tendente areceber a regra jurídica externa, pois, comose disse, reverencia-se a concepção de queo direito interno e o internacional são doisramos de um mesmo sistema jurídico.

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5. A recepção da regra de direitocomunitário: o modelo da União

EuropéiaNos estritos termos deste estudo, não se

nos permite, senão sucintamente, introduziros conceitos para deles conduzir os rumosdo raciocínio. Como ponto de partida, é ne-cessário consignar: (a) que os estudos dotema têm afastado, paulatinamente, a idéiade que essas organizações sejam “Estados”,“Estados Federais” ou “Confederações deEstados” no sentido clássico; (b) que a UniãoEuropéia, desde Maastricht, caminha a pas-sos largos na direção de se constituir umaUnião de Estados, em que cada vez mais ésignificativa a limitação de soberania pelaatribuição de poderes e competências aosórgãos comunitários.

Nesse contexto, é oportuno mencionarque a doutrina tem-se debatido, no que con-cerne à atribuição de competência aos órgãoscomunitários, ao perquirir se essa atribui-ção se dá sob a forma de “delegação” ou“transferência”33. A razão de ser da contro-vérsia reside em que os conceitos de delega-ção e transferência não são convergentes,vale dizer, enquanto na delegação o titulardo poder apenas cede o exercício da compe-tência, mantida em todos os seus termos atitularidade do poder jurídico, na transfe-rência, há cessão definitiva do poder jurídi-co, que não mais se apresenta como poderderivado, saindo definitivamente da esferada titularidade do poder cedente.

Essa singularidade, antes de represen-tar um jogo de palavras, tem para conside-ração da natureza jurídica da ordem comu-nitária uma dimensão nuclear, porquantorepercutirá na própria existência da comu-nidade, ou seja, as conseqüências jurídicasda opção terminológica podem materializarum caminho sem volta, para os Estados-Membros, no processo de integração.

Portanto, malgrado a dificuldade de sechegar à classificação precisa dessas novasorganizações internacionais, e, por via deconseqüência, do instrumental jurídico que

se forma no seu bojo, é a partir de suas ca-racterísticas específicas e, especialmente, dajurisprudência da Corte Européia que se vaiforjando sua natureza jurídica.

O Direito Comunitário, como disciplinaque regula as relações jurídicas entre os Es-tados-Membros comunitários e entre estes eos seus súditos, e os súditos dos demaisEstados-Membros, tem, nos tratados consti-tutivos e nos acordos internacionais firma-dos pela própria comunidade, o seu direitoprimário e, nos regulamentos e nas diretivasemanadas dos órgãos comunitários, o seudireito derivado.

Do seu nascedouro não remanesce dú-vida de que os tratados constitutivos são,em essência, Direito Internacional Público,em tudo regulado pelo Direito das Gentes,e, em particular, pela Convenção de Vienasobre Direito dos Tratados. Quanto aos tra-tados constitutivos, de per se, a recepçãoobservará o mesmo procedimento designa-do às normas internacionais, variando deEstado para Estado, de acordo com o regi-me adotado, que divide os sistemas jurídi-cos em monistas e dualistas.

No que respeita ao direito derivado, arecepção34 das normas que dimanam dos ór-gãos comunitários não se subsume a ques-tão que divide monistas e dualistas, sejaporque a ordem jurídica comunitária, em-bora externa, não constitui direito interna-cional, seja porque, por vontade das sobera-nias plasmadas nos tratados constitutivos,as normas derivadas têm caráter geral e dire-tamente aplicável nos ordenamentos jurídi-cos nacionais (confira-se, entre outros, oscasos “Van Gend En Loos versus Adminis-tração Fiscal Holandesa”35, de 5-2-63; “Sim-menthal versus Comissão”, de 9-3-78).

O caso Van Gend En Loos possuipart icularidade que merece destaque:pela vez primeira, a Corte de Justiça decidiusobre o chamado efeito direto das normas co-munitárias sobre as ordens jurídicas nacio-nais, que fixou entendimento para os casossubseqüentes, constituindo-se um dos maisimportantes precedentes36 da Corte. De refe-

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rir-se, ainda, que, nesse caso, a Corte nãoadotou – como aparentemente é usual37 – o ra-ciocínio deduzido pelo Advogado-Geral(à época, M.K. Roemer).

No contexto, é de se ressaltar também que– a par de estabelecer a origem do efeito diretodos tratados institutivos da Comunidade Euro-péia –, o Tribunal de Justiça firmou, conco-mitantemente, o marco interpretativo daautonomia do direito comunitário em face dodireito local.

No que concerne à elaboração de nor-mas e os seus efeitos na ordem jurídica dosEstados-Membros, a União Européia optoupela eficácia direta e imediata de suas re-gras, enquanto, no Mercosul, a incorpora-ção de normas obedece ao sistema de recep-ção clássico, do tipo dualista, observando-se a legislação de regência de cada Estado-Parte.

Jorge Luiz Fontoura Nogueira39, a pro-pósito da eficácia ou efeito direto das nor-mas na União Européia, assinalou:

“A presente característica decor-re da automática integração do direi-to comunitário às ordens jurídicasinternas, sem os mecanismos de incor-poração aplicáveis aos tratados, dis-pensando-se as técnicas de outorgalegislativa tradicionais. Tal dispen-sa não se refere, obviamente, ao di-reito comunitário originário, no queconcerne aos tratados institutivosdo bloco, que devem passar pelosmecanismos ordinários de incorpo-ração. O sucesso de um processo deintegração não dispensa a convicçãosocial de que a vida comunitária nãoé algo estrangeiro, mesmo às adminis-trações locais. É eloqüente, per se, ofato de cerca de 60% das leis queatualmente compõem o ordenamentojurídico europeu serem a natureza co-munitária, em detrimento dos outros40%, diluídos entre as diversas ins-tâncias político-administrativas na-cionais. O fato de uma violação de direi-to comunitário poder ser argüida por qual-quer jurisdicionável, já perante seus juí-

zes nacionais e não só pelos Estados, nasinstâncias européias, é ainda importantecorolário do efeito direto das normas co-munitárias. Na história do direito eu-ropeu, a convicção do efeito direto nãofoi de fácil construção, não estandoprevista expressamente no bojo doTratado de Roma. Houve, de fato, for-tes resistências à idéia, tendo emvista a tradição jurídica dos países,bem como o arraigado espírito desoberania, cujo berço político foi opróprio velho continente”.

Verifica-se, portanto, que não há pro-priamente recepção – ou ato de receber – danorma comunitária pelas ordens nacionais,convindo ressaltar que, no conflito entre anorma comunitária e a norma interna, já nãomais subsiste dúvida quanto à primaziaabsoluta e incondicional da ordem comuni-tária, inclusive no que respeita às normasconstitucionais (entre outros, confira-se:“Costa-Enel”40, de 15-7-64; caso “Storck”, de4-2-59; caso “Comptoir de vente du Char-bon de la Rhur”, de 15-7-60; caso “Interna-tionale Handelsgesellschaft”, de 17-12-70).

Ao comentar o acórdão Costa-Enel, Fáti-ma Pintado41 observa que o processo permi-tiu ao Tribunal

“criar e desenvolver o ‘primado’ e es-clarecer novos aspectos relacionadoscom o mecanismo de cooperação en-tre o Tribunal de Justiça e os Tribu-nais nacionais para interpretaçãouniforme do direito comunitário...”.

De fato assinala que“sem o primado a Comunidade nãoexistiria porque qualquer Estadomembro poderia destruir os efeitosdas normas comunitárias através daatuação legislativa, tornando asregrascomunitárias inoperantes. A existên-cia das Comunidades exige o primadodas normas criadas e interpretadaspor fontes Comunitárias”.

João Mota de Campos42, sobre o mesmoacórdão, afirma:

“Este acórdão é justamente célebre:está nele contida toda uma teoria ge-

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ral das relações entre o direito comu-nitário e o direito interno; e a justifica-ção da superioridade da ordem jurí-dica comunitária sobre as ordens ju-rídicas nacionais é aí deduzida em ter-mos que, embora esclarecidos e desen-volvidos em acórdãos ulteriores, ja-mais foram modificados”.

De outra parte, assinala que o precedentejudicial reveste-se de singular importância,na medida em que ultrapassa – especialmentena perspectiva dos regimes dualistas forjadossob a inspiração de Anzilotti – a questão de sebuscar, nos ordenamentos jurídicos inter-nos, o princípio jurídico que fundamentas-se o primado do direito comunitário. Esseprincípio, no caso Costa/Enel, vem expres-so simultaneamente pela “natureza especí-fica” e nas “exigências próprias” da ordemjurídica comunitária.

No tocante ao primeiro aspecto – nature-za específica –, a conclusão dimana da con-vicção de o Tratado CEE “instituiu uma or-dem jurídica própria, integrada na ordem ju-rídica dos Estados membros e que se impõe àssuas jurisdições”; no que toca ao segundoaspecto – exigências próprias –, o fundamen-to extrai-se da circunstância de que a forçaexecutiva do Direito Comunitário não po-deria variar, de um Estado para outro, aosabor das legislações internas posteriores.

Nesse sentido, conclui43 que:“Trata-se pois de uma solução

comunitária que corresponde à pró-pria noção e às exigências do merca-do comum que os Estados membrosda Comunidade quiseram instituir,solução essa que, traduzida em termosde direito, exprime-se numa ordemjurídica marcada pelas característicasda unidade, uniformidade e eficácia quejá tinham permitido o Tribunal, no seuAcórdão de 5 de fevereiro de 1963,VAN GEND EN LOOS, justificar aaplicabilidade direta do direitocomunitário”.

Destaque-se, ainda, que, no que tange aodescumprimento da norma comunitária,

erigiu-se, paralela e coercitivamente, a res-ponsabilidade do Estado-Membro pelos da-nos causados ao particular, como corolárioda violação da regra comunitária, exatamen-te por inobservância dos seus efeitos diretoe imediato. É exemplo, no particular, o caso“Francovich e Bonifaci versus Itália”44, de 19-11-91, em que, em ambos os casos, a origemda controvérsia residia em torno da omis-são da República Italiana no observar a Di-retiva nº 80/987, de 20-10-1980.

A importância do precedente no que per-tine à incorporação das regras comunitáriase as suas conseqüências decorrentes do não-cumprimento pelos Estados-Membrosensejou, na afirmação de Maria LuísaDuarte45 , a definição “de um dever de inde-nizar por parte do Estado que não deu exe-cução atempada (ou executou mal) a umadiretiva...”, muito embora reconheça que odever de indenizar já era sustentado pelamaioria da doutrina e com fundamento emdeterminados consideranda de acórdãos doTribunal de Justiça.

Resta, por último, examinar a questão darecepção no que respeita à ordem jurídicainternacional pela ordem jurídica comuni-tária. Referimo-nos aos acordos internacio-nais firmados por órgãos comunitários noexercício de sua competência, e suarepercussão nas ordens jurídicas nacionais.

Em face do que prescreve a normativacomunitária, os “acordos... são vinculativospara as Instituições da Comunidade e para osEstados membros”. Da exegese do referidopreceito resulta, de meridiana clareza, quea ordem comunitária abraça a regra do pac-ta sunt servanda, em homenagem à Conven-ção de Viena sobre Direito dos Tratados.Mais do que isso, expressa o primado daordem internacional em face da ordemcomunitária.

Ora, nessa linha de raciocínio, e consi-derando os efeitos direto e imediato que anorma comunitária produz nas ordens jurí-dicas nacionais, nada mais coerente, por-tanto, que se credite os mesmos efeitos quan-do se aprecia a repercussão das normas

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internacionais do ponto de vista das ordensjurídicas internas.

Frise-se, nesse sentido, que a jurispru-dência da Corte Européia segue nesse enten-dimento (caso Haegeman, de 30-4-74) ao afir-mar que, no que respeita à Comunidade, osatos adotados por suas instituições “cons-tituem parte integrante da ordem jurídicacomunitária”. E, por assim ser, é de se con-cluir que as normas internacionais produ-zirão os mesmos efeitos antes atribuídos ànorma comunitária.

6. Recepção e incorporação das normasno modelo Mercosul

No tocante ao regime de incorpo-ração das normas e decisões dos órgãosdo Mercosul – dada a sua na turezaintergovernamental –, não era mesmo dese esperar algo diferente do que se esta-beleceu no Protocolo de Ouro Preto. Peloseu artigo 38, os Estados-Partes comprome-tem-se a adotar as medidas necessárias paraassegurar, em seus respectivos territórios, ocumprimento das normas procedentes dosórgãos do Mercosul que disponham de ca-pacidade decisória (Conselho, Grupo Merca-do Comum e Comissão de Comércio).

Observe-se, no ponto, que – a par daobrigatoriedade de os Estados-Partes informa-rem46 a Secretaria Administrativa do Mercosuldas medidas adotadas em atenção ao artigo 38,supra referido – o Protocolo de Ouro Preto,ao dispor sobre a Comissão ParlamentarConjunta – órgão representativo dos parlamen-tos dos Estados-Partes no âmbito do Mercosul47

–, atribuiu-se-lhe a incumbência de “acele-rar48 os procedimentos internos correspon-dentes nos Estados Partes para a prontaentrada em vigor das normas emanadas doMercosul”.

Na dicção do artigo 25 do Protocolo deOuro Preto, já se reconhece, quantum satis, aexistência de assimetrias procedimentais deincorporação – nos Estados-Partes – das nor-mas provenientes dos órgãos do Mercosul.A afirmação se reforça na conjugação inter-

pretativa do artigo 42, do mesmo Diploma,que prescreve, peremptoriamente, que asnormas do Mercosul – quando necessário –deverão ser incorporadas aos ordenamen-tos jurídicos nacionais mediante os proce-dimentos previstos pela legislação de cadapaís49.

Mais do que isso, no Mercosul – certa-mente por não se ter instituído o mercado co-mum –, não há um órgão permanente desolução de controvérsias que, a rigor, con-forme se verifica na União Européia, tem de-cidido por diversas vezes a questão do con-flito entre a norma interna e a comunitária eentre a norma interna e a internacional emconflito com a comunitária.

Ocorre, porém, que, havendo no Merco-sul órgão com capacidade decisória-norma-tiva, a questão da recepção merece ser exa-minada, pela eventual pertinência que pos-sa ter com o fenômeno que se experimentana União Européia. Com efeito, o Tratadode Assunção atribuiu ao Conselho do Mer-cado Comum competência para conduzirpoliticamente o processo de integração e a“tomada de decisões para assegurar o cum-primento dos objetivos estabelecidos paraconst i tu ição def in i t iva do MercadoComum”.

Não se projetou, entretanto, a forma derecepção dessas decisões, o que, sem dúvi-da, permitia-se supor, desde então, que a suavalidade e eficácia estariam subordinadasaos procedimentos constitucionais dos Es-tados-Partes. Registrou-se, no Tratado deAssunção, apenas, a criação de uma Comis-são Parlamentar Conjunta e o compromissodos Poderes Executivos dos Estados-Partesde manter os respectivos Legislativos “in-formados” da evolução dos acontecimentos.

Com a edição do Protocolo de Ouro Preto,estendeu-se capacidade decisória à Comis-são de Comércio, explicitando – o que já eravoz corrente – que se tratava de capacidadedecisória de natureza intergovernamental.Aqui é necessário abrir parêntese. É preci-samente pela natureza intergovernamentalque caracteriza o Mercosul que se diz que

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as normas geradas no seu seio não consti-tuem propriamente uma ordem jurídica co-munitária. Para que isso fosse possível, àsemelhança do que ocorre na União Euro-péia, haveríamos de ter órgãos com repre-sentação distinta dos Estados-Partes, com atri-buições de competência tradicionalmente aeles (Estados) reservados, bem como a eficá-cia direta das normas nas ordens jurídicasinternas.

Além disso, é de ver-se, também, que asfontes de direito derivado na União Euro-péia – basicamente os regulamentos e as direti-vas do Conselho – possuem, analogicamente,o mesmo efeito e eficácia que se atribui à leino panorama do ordenamento jurídico in-terno. Por isso que, no Mercosul, o Proto-colo de Ouro Preto cuidou de esclarecer oprocedimento de recepção, que, à toda evi-dência, exclui a hipótese de eficácia direta,pois, do contrário, não haveria de se referirao compromisso dos Estados-Partes de“adotar todas as medidas necessárias paraassegurar, no seu território, o cumprimentodas normas emanadas dos órgãos doMercosul”.

Demais disso, a observância de incorpo-ração está explícita, pelo menos, em duasoportunidades: primeiro , quando se tratoude garantir a vigência simultânea das nor-mas emanadas dos órgãos do Mercosul,impôs-se aos Estados a obrigação de adotaras medidas necessárias “para sua incorpo-ração ao ordenamento jurídico nacional”;segundo, ao se enfatizar o caráter obrigató-rio daquelas referidas normas, estabeleceu-se o dever de os Estados-Partes, sempre quenecessário, atuarem para que sejam “incor-poradas aos ordenamentos jurídicos nacionaismediante os procedimentos previstos pela legis-lação de cada país”.

Ora, bastaria a menção de que a incor-poração dar-se-á mediante os procedimen-tos previstos pela legislação de cada país,para se concluir que o Protocolo de OuroPreto reconheceu, expressamente, que tipode relação há entre a norma emanada dosseus órgãos com os ordenamentos jurídicosnacionais. Por isso, é pertinente a observação

de Werter Faria quando – ao examinar oartigo 42 do Protocolo de Ouro Preto – afirmou:

“esta disposição denota que o proces-so de produção de normas jurídicasno Mercosul não é autônomo, e as re-gras criadas pelos seus órgãos comcapacidade decisória, possuindonatureza internacional, convertem-seem direito interno pelos processos estabe-lecidos nas Constituições dos Estados-par-tes”50.

Frise-se, entretanto, que, ao se excepcio-nar a obrigatoriedade da recepção, quandose diz, “sempre que necessário”, refere-se,por óbvio, àquelas situações já disciplina-das pelas ordens internas, vale dizer, pres-cinde-se da recepção nas hipóteses em quea norma de que se cogita já esteja discipli-nada na ordem jurídica nacional.

Não menos certo afirmar, ainda, que, aose conferir à Comissão Parlamentar Conjun-ta, nos termos do artigo 25 do Protocolo deOuro Preto, a tarefa de “acelerar os procedi-mentos internos correspondentes nos Esta-dos Partes para a pronta entrada em vigordas normas emanadas do Mercosul”, exsur-ge, à saciedade, que se reconhece a imperio-sa exigência de se “receber” aquelas normasna ordem jurídica interna.

Daí por que, no tocante ao Mercosul, aquestão em foco não guarda nenhuma difi-culdade, uma vez que se adota, no particu-lar, o regime específico de recepção de cadaEstado-Parte, cuja observância, certamente,far-se-á à semelhança da regra de direito in-ternacional na exata medida de sua nature-za intergovernamental e não comunitária.

7. ConclusãoCom o fito de ordenar as idéias aqui ex-

pendidas, permite-se, à guisa de conclusão,oferecer ao debate as seguintes ponderações:

a) o fenômeno da recepção no Mercosulguarda consonância com os regimes dua-listas, isto é, com os protagonistas da exis-tência de dois sistemas jurídicos indepen-dentes, constituídos por uma ordem jurídi-ca interna e uma internacional;

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b) o complexo normativo comunitário(modelo da União Européia), pelas suas ca-racterísticas e peculiaridades, não se sub-sume à regra da recepção, em face dos seusefeitos direto e imediato nas ordens jurídi-cas nacionais;

c) a norma internacional, vale dizer, osacordos internacionais firmados pelos ór-gãos comunitários não demandam, também,qualquer procedimento tendente à sua re-cepção, seja por coerência com os efeitosproduzidos pelo direito comunitário deri-vado, seja porque, introduzida a norma(internacional) por força do exercício de com-petência de órgão comunitário, por issomesmo constitui propriamente direito comu-nitário;

d) nas organizações internacionais denatureza intergovernamental, por não ge-rar complexo normativo comunitário, o fenô-meno da recepção apresenta-se indispen-sável, ao menos nos sistemas jurídicos dos Esta-dos-Partes do Mercosul que protagonizam osistema dualista.

Com a instalação do mercado comum, anão ser que se viabilize uma idéia mais ori-ginal, tudo indica que o modelo europeupoderá até ser o rumo a se alcançar. Issoporque é característica essencial do merca-do comum a uniformidade de procedi-mentos tendentes à elaboração das normas,sua interpretação e aplicação.

Não se trata mais de harmonização legis-lativa, mas de decisão política de criação deórgãos supranacionais, em que os servidoresnão representem os governos nacionais e, sim,os interesses comunitários51. Corta-se, porassim dizer, o cordão umbilical entre o servi-dor e o seu Estado de origem. O que interessaé a vontade comunitária. Ora, nessa perspec-tiva, há, ainda, a transferência inexorável decompetências para os órgãos comunitários deatribuições, internas e internacionais, antes re-servadas aos Estados-Membros.

Mais do que isso, e em face da mencio-nada transferência, há que se enfatizar oimpacto do ordenamento jurídico comuni-tário sobre as ordens nacionais. E, final-mente, a necessidade de se preservar a uni-

formidade de interpretação e de aplicaçãoda ordem jurídica comunitária nos Estados-membros, o que desafia considerar a exis-tência de um único órgão com essa atribui-ção, quem sabe, um Tribunal de Justiça doMercosul.

Notas

1 No Brasil, o Tratado de Assunção foi aprova-do pelo Congresso Nacional – D.L. nº 197, de 25-9-1991, e promulgado pelo Presidente da Repúblicapor meio do Decreto de promulgação nº 350, publi-cado no D.O.U. de 22-11-1991.

2 Manoel Diez de Velasco, ao buscar o conceitoe as características das organizações internacionais,afirmou: “Situándonos ... podemos definir las Organi-zaciones internacionales como unas asociaciones volun-tárias de Estados establecidas por acuerdo internacio-nal, dotadas de órganos permanentes, proprios e inde-pendientes, encargados de gestionar unos intereses co-lectivos y capaces de expresar una voluntad jurídicadistinta de la de sus miembros”; entre as característi-cas marcantes, destacou: “una composición esencial-mente interestadual, una base jurídica generalmenteconvencional, una estructura orgánica permanente eindependiente y, finalmente, una autonomia jurídica”.in “Las Organizaciones Internacionales”, Tecnos, 9ªedição, 1995, pág. 37.

3 Luiz Felipe Lampréia, Ministro das RelaçõesExteriores do Brasil, ao prefaciar o livro “O Merco-sul suas instituições e Ordenamento Jurídico”, deLuiz Olavo Baptista, assinalou que o Mercosul –embora fruto de um amadurecimento lento – “tematuado com uma identidade própria, respeitada emsua dimensão presente e na sua perspectiva de setornar uma realidade permanente, que de formaalguma vai diluir-se em um exercício mais abran-gente de integração hemisférica”.

4 Ao classificar as organizações internacionais,José A. Pastor Ridruejo – após propor três grandescritérios de classificação: (a) pela participação, uni-versais ou limitadas; (b) pela matéria, com compe-tências gerais ou especiais; (c) pelo método de coo-peração: c.1 de coordenação, c.2 de controle; c.3operacional e c.4 de integração – assinalou: “Estánpor fin aquellas organizaciones, que pudiran llamarse deintegración, cuyos órganos reciben de los miembros com-petencias tradicionalmente comprendidas dentro de lospoderes soberanos de los Estados, a cuyo ejercicio éstosrenuncian”. in “Curso de Derecho Internacional Pú-blico y Organizaciones Internacionales”, Tecnos, 6ªedição, 1996, pág. 700/703.

5 Ob. citada, pág. 41.

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6 Artigo 1º do Tratado de Assunção: “Os Esta-dos Partes decidem constituir um Mercado Comum ...que se denominará “Mercado Comum do Sul” (MER-COSUL)”; No artigo 2º do Tratado CEE, com aredação que lhe deu o Tratado de Maastricht, insti-tuiu-se entre as partes contratantes uma Comuni-dade Européia, – através da criação de um mercadocomum...; À semelhança do Mercosul , havia naUnião Europé ia , t ambém, o es tabe lec imentode um per íodo de t rans ição (T.A . , ar t igo 1 º ;T.CEE, artigo 7º) .

7Alínea “c” do artigo 3º do Tratado CEE: “Ummercado interno caracterizado pela abolição, entreos Estados-membros, dos obstáculos à livre circu-lação de mercadorias, de pessoas, de serviços e decapitais”.

8A distinção é sutil. Parece-nos, todavia, que sepode perceber nessa particularidade uma prioriza-ção de vocação econômica maior no modelo de in-tegração do Mercosul, até porque, ao se referir aosparticulares, pessoas físicas – no artigo 25 do Proto-colo de Brasília –, trata-se-os mais como “fator pro-dutivo”, ou como destinatários de bens de consu-mo, a revelar, nesse sentido, que os seus direitos decidadania devem ser exercidos em face dos respecti-vos ordenamentos jurídicos nacionais e não dasnormativas do Mercosul.

9 Martha Lucia Olivar Jimenez, após assinalarque, para a doutrina integracionista, tanto euro-péia como latinoamericana, o elemento essencialque diferencia os processos de integração e de coo-peração é a supranacionalidade, concluiu que asnormas do Tratado de Assunção não contemplamesse elemento – supranacionalidade...: “Al examinarlas normas del Tratado de Asunción se constata la au-sencia de algunos de esos elementos esenciales: hay ob-viamente el reconocimiento de valores comunes, perolos poderes efectivos a su servicio y sobre todo la autono-mía de un nuevo centro de decisión no aparecen. LA

ESTRUCTURA ORGÁNICA PREVISTA EN EL CAPÍTULO II DEL ACUERDO

ES INTERGUBERNAMENTAL”. in “MERCOSUL – seus efei-tos Jurídicos, Econômicos e Políticos nos Estados-membros”, Livrar ia do Advogado Editora , 1ªed. , 1995, pág. 44.

10 in “O Mercosul e a União Européia”, Coim-bra, 1994, pág. 107.

11Artigo 148 do Tratado CEE, item 2: “Relati-vamente às deliberações do Conselho que exijammaioria qualificada, atribui-se aos votos de seus mem-bros a seguinte ponderação...”; Ao se referir ao Conse-lho da União Européia, Elizabeth Accioly anota que“o Conselho delibera por maioria e, alguns casos,por unanimidade. Durante o período de transição,nos primórdios da CE (1958/1965), era exigida aunanimidade para a maior parte das decisões doConselho. A partir de 1966, no início de sua fasedefinitiva, a partir da consolidação da união adua-neira, tentou-se inverter as decisões, aplicando-se a

regra da maioria”. Com o Ato Único Europeu, eposteriormente com o Tratado da União Européia,apenas “questões de extrema importância conti-nuam a ser decididas por unanimidade”. (in “Mer-cosul & União Européia – Estrutura Jurídico-Institu-cional”, Juruá Editora, 1996, pág. 69).

12 O artigo 16 do Tratado de Assunção, estabe-leceu que as decisões do Conselho do Mercado Co-mum e do Grupo Mercado Comum “serão toma-das por consenso e com a presença de todos osEstados Partes”. A consensualidade obrigatóriaveio a ser ratificada no Protocolo de Ouro Preto:“Artigo 37. As decisões dos órgãos do Mercosulserão tomadas por consenso e com a presença detodos os Estados Partes”.

13 Ob. citada, pág. 73.14 Interessante notar, que o artigo 7º do Tratado

CEE, com a redação que lhe deu o Tratado deMaastricht, faz menção a uma instância arbitral noperíodo de transição do mercado comum europeu,por ocasião da verificação do cumprimento dasetapas de sua consolidação.

15 No Anexo III, o item 3 previa que até 31 dedezembro de 1994 – data que foi inicialmente desig-nada para constituição do mercado comum – os Esta-dos-Partes adotariam um “Sistema de Solução deControvérsias para o Mercado Comum”.

16 Com o advento do Protocolo de Brasília, seuartigo 34 estabeleceu: “O presente Protocolo per-manecerá vigente até que entre em vigor o SistemaPermanente de Solução de Controvérsias para oMercado Comum a que se refere o número 3 doAnexo III do Tratado de Assunção”.

17 No Protocolo de Ouro Preto, a indicação éreiterada, conforme se lê no seu artigo 44: “Antesde culminar o processo de convergência da tarifaexterna comum, os Estados-Partes efetuarão umarevisão do atual sistema de solução de controvér-sias do Mercosul, com vistas à adoção do sistemapermanente a que se refere o item 3 do Anexo III doTratado de Assunção e o Artigo 34 do Protocolo deBrasília”.

18 Luiz Olavo Baptista, após apontar que, entreoutras facetas, o Mercosul é caracterizado pelo prag-matismo e gradualismo, afirma: “Por outro lado,algumas críticas decorrem da crença de que fora omodelo da União Européia não há outro, o que anosso ver representa um engano, ou quiçá desconhe-cimento. O MERCOSUL deve ter sua originalida-de, para atender ao peculiar desenho geopolíticoque o conforma. As diferenças existentes entre asdimensões dos países, que opõe dois grandes a doispequenos, os mais industrializados aos menos, ocaráter presidencialista dos respectivos governos,uma fortíssima tradição de defesa de uma noçãode soberania excludente de controles internacionais,e outros fatores... levam a crer que a cópia do mo-delo da União Européia é inadequada, porém sen-

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do útil examinar essa experiência e a do Benelux“.in ob. citada, pág. 41. Há quem afirme, como PauloRoberto de Almeida, que, ao analisar os Tratadosde Assunção e o de Roma, “parece evidente, contu-do, que, constando de apenas 24 artigos, o Tratadode Assunção não pode ser comparado ao Tratadode Roma, muito embora ele persiga, grosso modo,os mesmo objetivos integracionalistas de seu an-cestral (mas não antecessor) europeu. Diferente-mente, porém, do instrumento institucional que lan-çou o mercado comum europeu, o TA não compor-ta nenhum procedimento de tipo comunitário, nemprevê órgãos supranacionais; tampouco ele con-templa aspectos normativos de alcance tão vastocomo, por exemplo, a política agrícola comum daCEE, cujos parâmetros são definidos ao seio daComissão Européia. Do ponto de vista comparativo,portanto, o TA se aproxima mais da Convenção BENE-LUX de 1944. in “Boletim de Integração LatinoAmeri-cana”, Brasília: Ministério das Relações Exteriores,nº 14, pág. 21.

19 Artigo 17 do Tratado de Assunção: “Os idio-mas oficiais do Mercado Comum serão o portu-guês e o espanhol e a versão oficial dos documen-tos de trabalho será a do idioma do país sede decada reunião”; Artigo 36 do Protocolo de Brasília:“Serão idiomas oficiais em todos os procedimentosprevistos no presente Protocolo o português e oespanhol, segundo resultar aplicável”; O artigo 46do Protocolo de Ouro Preto repete, ipsis litteris , oartigo 17 do Tratado de Assunção; é de se registrar,também, que o boletim oficial do Mercosul, quan-do for editado, será publicado, em sua íntegra, nosidiomas espanhol e português (artigo 39 do Protoco-lo de Ouro Preto).

20Artigo 217 do Tratado de Roma: ”O regimelingüístico das Instituições da Comunidade seráfixado, sem prejuízo das disposições previstas noregulamento do Tribunal de Justiça, pelo Conselho,deliberando por unanimidade”. A título de ilustra-ção, o regime lingüístico a ser observado nos proce-dimentos judiciários é o fixado no “Regulamentode Procedimentos perante o Tribunal de Justiça dasComunidades” (artigos 29 a 31) e, perante o Tribu-nal de Primeira Instância das Comunidades, peloseu “Regulamento” (arts. 35 a 37) .

21 Jorge L. F. Nogueira, no particular, afirma:“A inelutável decorrência da opção política quegerou o Mercosul intergovernamental, com umaestrutura funcional de grande simplicidade e cominstituições comunitárias muito singelas, determi-nou inclusive o curioso fato de não ter a instituiçãoquadro funcional próprio. Todos os seus operado-res técnicos e mesmo políticos, em verdade, são oufuncionários de seus próprios governos ou autori-dades estatais”. in “Solução de controvérsias e efetivi-dade jurídica: as perspectivas do Mercosul”, separata,Revista de Informação Legislativa, ano 33, nº 130,

abril/junho – 1996, pág. 147.22 Artigo 189 do Tratado de Roma, com a

redação resultante do Tratado de Maastricht,de 7-2-1992: “O regulamento tem caráter geral. Éobrigatório em todos os seus elementos e direta-mente aplicável em todos os Estados-membros. Adiretiva vincula o Estado-membro destinatário quan-to ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, àsinstâncias nacionais a competência quanto à formae aos meios. A decisão é obrigatória em todos osseus elementos para os destinatários que designar.

23 in “Instituciones y Derecho de La Union Euro-pea”, McGraw-Hill, 1996, 1ª ed., pág. 361.

24 O Tratado de Assunção não cogitou de umórgão ou veículo oficial para publicidade dos atospraticados com o objetivo de sua implementação;mencionou, tão-somente, a existência de uma Se-cretaria Administrativa para apoio do Grupo Mer-cosul Comum, para guarda de seus documentos ecomunicações de suas atividades (artigo 15); O Pro-tocolo de Brasília, também, no seu artigo 3º, fazmenção a uma “Secretaria Administrativa”, que,todavia, só veio a se tornar oficial – enquanto órgãoda estrutura institucional do Mercosul – após a cele-bração do Protocolo de Ouro Preto (artigo 1º, incisoVI e 31 a 33 ); a previsão de se editar um boletimoficial do Mercosul vem contemplada, pela vez pri-meira, na designação das competências da Secreta-ria Administrativa (alínea “b”, inciso II, do artigo 32do Protocolo de Ouro Preto).

25 O Artigo 19 do T.A.: “O presente Tratadoterá duração indefinida e entrará em vigor 30 diasapós a data do depósito do terceiro instrumento deratificação. Os instrumentos de ratificação serãodepositados ante o Governo da República do Para-guai, que comunicará a data do depósito aos go-vernos dos demais Estados-Partes”.

26Artigo 3º e 9º do Protocolo de Ouro Preto.27 Artigo 10 e 15 do Protocolo de Ouro Preto.28Artigo 16 e 20 do Protocolo de Ouro Preto.29Artigo 9º, Tratado de Assunção.30Artigo 1º, do Protocolo de Ouro Preto: “A es-

trutura institucional do Mercosul contará com os se-guintes órgãos: Conselho do Mercado Comum(CMC); Grupo Mercado Comum (GMC); Comis-são de Comércio do Mercosul (CCM); ComissãoParlamentar Conjunta (CPC); Foro Consultivo Eco-nômico-Social (FCES) e Secretaria Administrativado Mercosul (SAM).”

31Artigo 2º do Protocolo de Ouro Preto: “Sãoórgãos com capacidade decisória, de natureza in-tergovernamental, o Conselho do Mercado Comum,o Grupo Mercado Comum e a Comissão de Comér-cio do Mercosul”.

32 O tema constante deste capítulo foi, original-mente, desenvolvido sob a forma de artigo publica-do no “Direito Comunitário do Mercosul”, organi-zado por Deyse Ventura, Livraria do Advogado,

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1997, págs. 287/296, por ocas ião da VI Reu-nião de Ministros da Justiça do Mercosul, rea-l izada em Santa Mar ia -RS, nos d ias 19 a 22de novembro de 1996.

33 Em sua dissertação de doutoramento, “Direi-to das Comunidades Européias e Direito Interna-cional Público”, 1991, pág. 200, Fausto de Qua-dros explora com profundidade a questão.

34 Ricardo Alonso Garcia, em seu “Derecho Co-munitario”, ao assinalar a proibição de medidasnacionais de recepção ou de reprodução dos regu-lamentos, faz menção a um julgado do Tribunal deJustiça da Comunidade Européia que merece des-taque: “En la S. Comisión v. Itália, 7 febrero 1973 (39/72), ante la adopción por el Gobierno italiano de unDecreto cuyo artículo 1 establecía que determinadosreglamentos comunitários ‘son considerados como rece-bidos por el presente Decreto’, limitándose a reproducirlas disposiciones de dichos reglamentos, el Tribunal deJusticia consideró que ‘mediante la utilización de esteprocedimiento, el Gobierno italiano há creado un equí-voco en lo que se refiere tanto a la naturaleza jurídica delas disposiciones aplicables como al momento de su en-trada en vigor’. Y teniendo en cuenta, continuó el Tri-bunal, que según los artículos 189 y 191 TCEE ‘losreglamentos son, en cuanto tales, directamente aplica-bles en todo Estado miembro, y entran en vigor, envirtud de su sola publicación en el Diario Oficial de lasComunidades, en la fecha que fijen, o en su ausencia, enel momento determinado por el Tratado’, resulta queson ‘contrárias al Tratado todas las modalidades de eje-cución cuya consecuencia podría ser obstaculizar el efec-to directo de los reglamentos comunitários y compro-meter así su aplicación simultánea y uniforme en elconjunto de la Comunidad’. Así pues, prohibición, enprincipio, de cualquier medida interna de recepción oreproducción de los reglamentos comunitarios”; Nomesmo sentido é a observação de Werter Faria: “Asnormas emanadas dos órgãos do Mercosul não sãoequiparáveis ao regulamento da Comunidade Eu-ropéia, que possuem valor de lei e prescinde de qual-quer ato de recepção para incorporar-se nos ordena-mentos jurídicos do Estados-membros”. - in “Mer-cosul seus efeitos, Jurídicos, Econômicos e Políti-cos nos Estados-membros”, Livraria do Advogado,1995, pág. 82.

35 Tratava-se de pedido de decisão prejudicial,ao abrigo do artigo 177, alínea 1, a, e alínea 3, doTratado CEE. O ponto nodal objetivava saber se oartigo 12 do Tratado CEE tinha efeito interno (dire-to), ou seja, se os cidadãos podem fazer valer, porforça deste artigo, direitos individuais que o juiztenha que salvaguardar. O Advogado-Geral, emseu parecer, opinou que o “artigo 12 contém ape-nas uma obrigação para os Estados membros”, valedizer, não reconheceu efeito direto do referido dis-positivo. O Tribunal, contudo – afastando-se das con-clusões do Advogado-Geral –, sumariou: “3 – A Co-

munidade Económica Europeia constitui uma novaordem jurídica de direito internacional, em benefí-cio da qual os Estados limitaram, ainda que emdomínios restritos, os seus direitos soberanos e daqual os sujeitos não são apenas os Estados Mem-bros mas também os seus nacionais. O direito co-munitário, independente da legislação dos Estadosmembros, ao mesmo tempo em que cria obrigaçõespara os particulares, cria também direitos que en-tram na sua esfera jurídica. Estes direitos nascemnão só quando há atribuição explícita no Tratado,mas também por força de obrigações que o tratadoimponha de maneira bem definida, tanto aos parti-culares, como aos Estados membros e às institui-ções comunitárias. 4 – A circunstância de o Trata-do CEE, nos artigos 169º e 170 º, permitir à Comis-são e aos Estados membros levar, perante o Tribu-nal, o Estado que não cumpra as suas obrigaçõesnão priva os particulares do direito de invocar, sefor caso disso, estas mesmas obrigações perante ojuiz nacional. 5 – De acordo com o espírito, a eco-nomia e o texto do Tratado CEE, o artigo 12º deveser interpretado no sentido de que produz efeitosimediatos (directos) e cria direitos individuais queas jurisdições internas (nacionais) devem salvaguar-dar”. E na fundamentação firmou o seguinte en-tendimento: “Atendendo a que o objectivo do Tra-tado C.E.E., que é instituir o mercado comum cujofuncionamento respeita diretamente aos cidadãosda Comunidade, implica que este tratado consti-tua mais do que um mero acordo que só criariaobrigações mútuas entre os Estados contratantes;Que esta concepção se encontra confirmada pelopreâmbulo do Tratado que, para além dos Gover-nos, visa os povos, e de maneira ainda mais concre-ta, pela criação de órgãos que institucionalizamdireitos soberanos cujo exercício afecta tanto osEstados membros como os seus cidadãos; Que épreciso, ainda, vincar que os nacionais dos Estadosreunidos na Comunidade são chamados a colabo-rar, por intermédio do Parlamento Europeu e doComité económico e social, em funcionamento nes-ta Comunidade; Que, por outro lado, o papel doTribunal de Justiça no quadro do artigo 177º, cujafinalidade é assegurar a unidade de interpretaçãodo Tratado pelas jurisdições nacionais, confirmaque os Estados reconhecem ao direito comunitáriouma autoridade susceptível de ser invocada pelosnacionais perante as suas jurisdições; Que é preci-so concluir, deste estado de coisas, que a Comuni-dade constitui uma nova ordem jurídica de DireitoInternacional, em benefício da qual os Estados li-mitaram, ainda que em domínios restritos, os seusdireitos soberanos, e cujos sujeitos são não só osEstados membros mas igualmente os seus nacio-nais...” (fls. 27/28) ... “Que, com efeito, as circuns-tâncias de o tratado, nos artigos referidos, permitirà Comissão e aos Estados membros trazer perante

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o Tribunal um Estado que não cumpra as suasobrigações não implica para os particulares a im-possibilidade de as invocarem, se for caso disso,perante o juiz nacional pelo facto de o tratado colo-car à disposição da Comissão os meios para asse-gurar o respeito das obrigações impostas aos obri-gados o que não exclui a possibilidade, nos litígiosentre particulares e perante o juiz nacional, de serinvocada a violação destas obrigações; A limita-ção, das garantias contra a violação do artigo 12ºpelos Estados membros, restrita aos processos dosartigos 169º e 170 º, suprimiria toda a proteção ju-risdicional directa dos direitos individuais dos na-cionais; O recurso a estes artigos correria o risco deser ferido de ineficácia se obrigasse a intervir depoisda execução da decisão nacional, tomada em me-nosprezo das prescrições do Tratado; Que a vigi-lância dos particulares interessados em salvaguar-dar os seus direitos exige controlo eficaz que seassemelha àquele que os artigos 169º e 170º confiamà diligência da Comissão e dos Estados membros.Atendendo a que, resulta das considerações queprecedem que conforme o espírito, a economia e otexto do tratado o artigo 12º deve ser interpretadono sentido de que produz efeitos imediatos e criadireitos individuais que as jurisdições internas de-vem salvaguardar”. In “Seleção de Acórdãos No-táveis do Tribunal de Justiça (C.E)”, I Volume,Europa Editora, pág. 16 – 27/29; in “Recueil de laJurisprudence de la Cour”, 1963, pág. 1 e segs.

36 “It is a fundamental principle of the administra-tion of justice THAT LIKE CASES SHOULD BE DECIDED ALIKE ... Inthis sense the principle of stare decisis, of abiding byprevious decisions, figures prominently in most legalsystems, including those of all the Member States of theCommunity”. L. Neville Brown e Tom Kennedy, in“The Court of Justice of the European Communities”,4ª ed., Sweet & Maxwell, 1994, pág. 343/344.

37 “Curiosamente e apenas como nota, o advo-gado geral, nas suas conclusões, pronuncia-se pelonão reconhecimento do efeito directo ao artigo 12º.As conclusões do advogado-geral formuladas emtodos os processos têm normalmente em vista aapreciação das várias facetas do caso concreto,numa perspectiva de direito Comunitário, com vis-ta a habilitar o Tribunal de Justiça a pronunciar orespectivo acórdão. Embora não muito freqüente-mente o Tribunal afasta-se por vezes do raciocínioseguido nas conclusões do advogado geral...”. (inob. citada, pág. 50).

38 No particular, João Mota de Campos ano-tou : “No seu Acórdão de 5 de Fevere i ro de1963 (caso VAN GEND EN LOOS) o TCE con-siderou – afirmando a autonomia do direito co-m u n i t á r i o – que razões vál idas no plano dodire i to in ternacional convencional não o sãonecessa r i amente no quadro dos t r a t ados co-muni tár ios” . in “Dire i to Comuni tár io” , Fun-

dação Calouste Gulbenkian, Lisboa, I I Volu-me, 3ª ed. , 1990, pág. 229.

39 in “Fontes e formas para uma disciplina jurídicacomunitária”, separata, Revista de Informação Le-gislativa, ano 33, nº 132, outubro/dezembro-1996,pág. 56; no mesmo artigo, Jorge L. F. Nogueira ar-remata: “Fruto de lenta elaboração jurisprudencialda Corte do Luxemburgo, o efeito direto confir-mou-se a partir do julgamento do histórico casoVan Gend en Loos, em 5 de fevereiro de 1963, peloqual se entendeu que, não obstante o silêncio dosTratados CEE, não se poderia conceber a existênciade um mercado comum sem este requisito. A deci-são foi sendo assimilada gradualmente pelos Esta-dos comunitários, inclusive pela Grã-Bretanha, quesempre praticou um dualismo extremado, funda-do no princípio da supremacia absoluta do Parla-mento – “... Parliament cannot bind itself or its suc-cessor...” –, com o requisito sendo revogado peloEuropean Communities Act, de 17 de outubro de1972, que criou uma sofística forma de autoriza-ção de incorporação antecipada, sem precedentesna lógica jurídica, mas que de toda hábil a permitira adesão britânica à Europa”.

40 Em 1962, a República Italiana procedeu anacionalização da produção e da distribuição deenergia elétrica e criou a ENEL. Em razão de confli-to a respeito do pagamento de uma fatura de con-sumo de energia elétrica, M. Costa – na qualidade deconsumidor e acionista da sociedade Edison Volta, eafirmando-se afetada pela nacionalização – ajuizou açãocontra a ENEL, requerendo acessoriamente que oGiudice Conciliatore de Milão aplicasse o artigo 177do Tratado CEE, com o objetivo de obter a interpre-tação dos artigos 102, 93, 53 e 37 do referido Trata-do, que teriam sido violados pela lei italiana quan-do do processo de nacionalização; nos seus consi-deranda, o Tribunal de Justiça afirmou: “Atenden-do a que, diferentemente dos tratados internacio-nais ordinários, o tratado CEE institui uma ordemjurídica própria, integrada no sistema jurídico dosEstados membros após a entrada em vigor do tra-tado e que se impõe às suas jurisdições; que comefeito, ao instituírem uma Comunidade de dura-ção ilimitada, dotada de instituições próprias, depersonalidade, de capacidade jurídica, de capaci-dade de representação internacional e muito espe-cialmente de poderes reais nascidos da limitaçãode competência ou da transferência de atribuiçõesdos Estados para a Comunidade, estes Estadoslimitaram, ainda que em domínios restritos, os seusdireitos soberanos e criaram um corpo de normasjurídicas aplicáveis aos nacionais e a eles próprios;atendendo a que a integração, no direito de cadapaís membro, de disposições provenientes de fontecomunitária, e mais genericamente, os termos e oespírito do tratado, têm como corolário a impossi-bilidade de os Estados fazerem prevalecer, contra

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uma ordem jurídica aceite por eles numa base dereciprocidade, qualquer medida unilateral poste-rior que desta forma não lhes poderá ser oposta;que a força executiva do direito comunitário nãopoderá, com efeito variar de Estado para Estadoao sabor de normas internas posteriores, sem colo-car em perigo a realização dos fins do tratado con-tidos no artigo 5º, nem tão pouco provocar discri-minação proibida pelo artigo 7º; que as obrigaçõesassumidas no tratado que instituiu a Comunidadenão seriam incondicionais mas apenas eventuais,se pudessem ser postas em causa por actos legisla-tivos futuros dos signatários; que, quando o direitode agir unilateralmente é reconhecido aos Estados,existe uma cláusula especial e precisa nesse senti-do (artigo 15º, 93º-3, 223º a 225º por exemplo);que, além disso, os pedidos de derrogações dosEstados estão submetidos a processos de autori-zação (artigos 8º-4, 17º-4, 25º, 26º, 73º, 93º-2, 3ªalínea e 226º por exemplo) que ficavam sem objetose os Estados tivessem a possibilidade de se sub-traírem às obrigações por meio de uma simples lei;atendendo a que o primado do direito comunitárioestá confirmado pelo artigo 189º nos termos doqual os regulamentos têm força ‘obrigatória’ e são‘directamente aplicáveis em todos os Estados mem-bros’; que esta disposição, que não é acompanhadade qualquer reserva ficava sem conteúdo se umEstado pudesse unilateralmente destruir-lhe os efei-tos por acto legislativo oponível aos textos comuni-tários; atendendo a que resulta do conjunto desteselementos que, provindo de fonte autónoma, o di-reito nascido do tratado não poderá, em razão dasua natureza específica e original, ver-se judicial-mente contrariado por qualquer texto interno, semperder o caráter comunitário, e sem que seja postaem causa a base jurídica da própria Comunidade;que a transferência operada pelos Estados, da suaordem jurídica interna em benefício da ordem jurí-dica comunitária, dos direitos e obrigações corres-pondentes às disposições do tratado, operou a li-mitação definitiva dos seus direitos soberanos con-tra a qual não poderá prevalecer qualquer acto uni-lateral posterior incompatível com a noção de Co-munidade; que em conseqüência há que fazer aaplicação do artigo 177º, qualquer que seja a lei

nacional, quando se coloque questão de interpreta-ção do tratado” (págs. 85/86).

41 in ob. citada, pág. 108/109.42 in ob. citada, pág. 290.43 in ob. citada, pág. 291/293.44 Os processos Andrea Francovich (C-6/90) e

Danila Bonifaci (C-9/90) versavam sobre dívidassalariais em face de empresas declaradas falidas.A República Italiana havia sido considerada em“situação de incumprimento” por acórdão do Tri-bunal de Justiça desde 2-2-1989.

45 in “A Cidadania da União e a responsabilidadedos Estados na violação do Direito Comunitária”, LexEdições Jurídicas, 1994, pág. 57/58.

46 Parágrafo único, do artigo 38, do Protocolode Ouro Preto.

47 Artigo 22 do Protocolo de Ouro Preto.48Artigo 25 do Protocolo de Ouro Preto.49 “Isso quer dizer que as Decisões serão incor-

poradas a cada um dos sistemas jurídicos segun-do as regras próprias de cada um. Serão tratadas,em suma, ora como se foram acordos internacio-nais novos, ora como executive acts e serão objetode medidas administrativas que as implantem (sede natureza regulamentar, não se chocarem com asleis do país, e estiverem na esfera de competênciado Poder Executivo)”. Luiz Olavo Baptista, obracitada, pág. 75.

50 in ob. citada, pág. 82.51 Na União Européia, a questão da indepen-

dência dos membros da Comissão e a autonomiacom que exercem seus deveres são dignas de nota.O artigo 157 do Tratado de Roma, com a redaçãodo Tratado de Maastricht, não se contentou emproclamar a independência e a autonomia dosmembros da Comissão no interesse geral da comu-nidade; mais do que isso, o compromisso dos Esta-dos-membros “de respeitar este princípio e não pro-curar influenciar os membros da Comissão no exer-cício das suas funções”; De resto, o dispositivo temregra explícita aos membros da Comissão no senti-do de “abster-se de praticar qualquer ato incompa-tível com a natureza de suas funções, bem como –no cumprimento de seus deveres – não solicitarnem aceitar quaisquer “instruções de nenhum go-verno ou qualquer outra entidade”.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

O conceito globalização econômica surgeneste final de século como um dos conceitosmais poderosos que existem nos pensamen-tos políticos e econômicos presentes nomundo ocidental desenvolvido, entenden-do-se como tal a globalização das escalascomerciais, de produção e das finanças.Essa teoria da globalização, que reduz oespaço e a importância do político, faz comque os governos fiquem submetidos às for-ças econômicas internacionais, que passama definir o marco do possível dentro de cadaEstado-nação.

Assim, é inegável que o Estado nacionalestá sofrendo um acelerado processo de en-fraquecimento, em decorrência dos efeitosda globalização, bem como de um cresci-mento desajustado, fenômenos esses iden-tificados de forma consensual, nas diversasobras que tratam da questão, como os

Repensando a administração pública: ofuturo do Estado de bem-estar

José Matias Pereira

José Matias Pereira é economista e advoga-do. Professor de Finanças Públicas da Universi-dade de Brasília – UnB. Doutorando em CiênciasPolíticas pela Universidade Complutense deMadrid – Espanha.

Sumário1. Introdução. 2. O papel da sociedade dian-

te das novas funções do Estado. 3. As origensdo Estado do bem-estar (welfare state). 4. O sur-gimento do Estado de bem-estar. 5. As distintasformas do Estado de bem estar: os modeloseuropeu, norte-americano e brasileiro. 6. A cri-se do paradigma político do Estado de bem-estar. 7. Distinção entre a atividade política e aeconômica. 8. A crise do Estado de bem-estar. 9.A concepção da terceira via. 10. Consideraçõesrelevantes sobre a crise do Estado de bem-es-tar. 11. Conclusões.

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responsáveis pelas profundas alteraçõesem suas formas de intervenção. Essapreocupante constatação é que me levoua desenvolver o presente estudo sobre ofuturo do Estado de bem-estar, visto que,de forma concreta, é a população que viveno Estado-nação que está sendo afetadapor essas mudanças.

É necessário entender, nesse sentido,os mecanismos pelos quais essa globali-zação está afetando os salários, a quanti-dade de emprego e, de forma especial, onível de proteção social ofertado peloEstado. É oportuno ressaltar no conjuntodessa discussão que o Estado de direitopode-se revestir de diversas formas, entreelas o Estado liberal de direito, o Estadosocial de direito ou Estado de bem-estar(Estado-providência).

Os autores de visão liberal consideramque os direitos sociais não podem formar,na atualidade, parte do conceito decidadania, para os quais bastam apenasos direitos civis e políticos. E, de modoespecial, argumentam que o Estado-nação,responsável em zelar pelos direitos da se-gunda geração, está deixando de ser o pro-tagonista da vida política, pois, à medidaque a economia se globaliza, somente asempresas transnacionais poderiam assu-mir responsabilidade desse tipo . A políti-ca de pleno emprego, capaz de pagar osgastos sociais, mostra-se impraticável emuma época de desemprego estrutural (emque as máquinas substituem os homens,bem como são as pessoas com capacida-de produtiva as que desejam encontrar umemprego) . E terminam lembrando queacabou a cultura da divisão sexual dotrabalho, que durante séculos fez o possívelpara atender gratuitamente as crianças, an-ciãos e enfermos. Agora a mulher, além dotrabalho remunerado, busca identificaçãoe participação social. Assim, em qualquerum dos casos citados, dizem, se o Estadotiver que assumir essas funções sociais, ocolapso é inevitável.

2. O papel da sociedade diante dasnovas funções do Estado

No contexto do debate sobre o futurodo Estado do bem-estar, torna-se funda-mental a compreensão do papel e oposicionamento da sociedade diante dasnovas funções do Estado – provocadaspelo crescimento disfuncional e pelasmudanças decorrentes da globalizaçãono cenário econômico e político interna-cional –, no encaminhamento das políti-cas públicas a serem implementadas peloEstado, cujo objetivo principal é tornar asociedade mais justa.

Ramon Cotarelo (1990), ao tratar doavanço do Estado sobre a sociedade,observa que

“El Estado social atiende mal quebien a las necesidades de la sociedadincluidas algunas que sólo aparecencuando ya se han satisfecho las pri-mordiales. No en balde lleva ese adje-tivo de ‘social’ que, de querer deciralgo, es de suponer que indique la vo-luntad estatal de mantenerse en con-tacto con la sociedad real. Un intento,pues, de acabar con la famosa dicoto-mía entre el ‘país legal’ y el ‘país real’,que fue una constante de gran partedel siglo XIX y la que durante muchotiempo se han estado culpando de serel punto de partida de los movimien-tos revolucionarios, sin que haya so-bradas razones para ello”1.

Constata-se, na atualidade, e de formaacentuada nos países mais ricos, onde omodelo do “Estado de bem-estar” encon-tra-se em crise, uma marcante preocupa-ção de como reduzir as crescentes despe-sas decorrentes das necessidades sociais,num quadro de mudanças econômicas epolíticas cada vez mais complexo. Nessecontexto, parte-se do pressuposto de queos Estados-Nação devem implementarações cada vez mais restritivas e direcio-nadas nas áreas do Estado de bem-estar,de forma a manter uma estrutura mínimaque garanta o acesso para uma parcela

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muito específica da população, que per-mita ao Estado-nação a realização de umajustiça social concreta.

3. As origens do Estado do bem-estar(welfare state)

O conceito de “cidadania” que veio a seconverter em canônico é o de “cidadaniasocial” (criado por Thomas H. Marshall).Dessa forma, é cidadão aquele que, em umacomunidade política, goza de direitos civis(liberdades individuais), direitos políticos(participação política) e de direitos sociais(trabalho, educação, habitação, saúde e segu-ridade social). A cidadania social se refere,portanto, também a esse tipo de direitossociais, cuja proteção estaria garantida peloEstado nacional, entendido não mais comoEstado liberal, mas como Estado social dedireito. Historicamente esse modelo de Es-tado-nação, implementado de maneiraespecial em alguns países europeus, temsido denominado de “Estado de bem-estar”ou “Estado-providência”. É com base nesseEstado social que se reconhece a cidadaniasocial de seus membros.

Ao tratar dessa questão, Adela Cortinaobserva que historicamente tem sido cha-mado de “Estado del Bienestar” o que

“hemos disfrutado sobre todo en algunospaíses europeos, la figura que mejor haencarnado el Estado social y mejor ha con-tribuido, por tanto, a reconecer la cidada-nía social de sus membros. Lo cual ha sidosin duda un gran avance, pero que hoy nodeja de tener sus problemas porque el Es-tado del Bienestar ha entrado en crisis ylas críticas que a él se dirigen, como figu-ra histórica, están afectando también a laposibilidad de un Estado social que satis-faga las exigencias de la ciudadaníasocial”2.

É importante recordar, ainda, que a cida-dania é uma forma de relação muito espe-cial, em que a comunidade necessariamentedeve ir ao encontro do cidadão e o cidadão,por sua vez, deve ir ao encontro dela. É com

base nesse fundamento que o cidadão ten-de a contrair deveres em relação à comuni-dade e, em conseqüência, passa a assumirde maneira ativa suas responsabilidadesem relação a ela. Dessa forma, fica evidenteque só é válido exigir que um cidadão assu-ma responsabilidades quando a comunida-de política já tenha demonstrado claramenteque lhe reconhece como um membro seu, ouseja, como alguém que está integrado a ela.

4. O surgimento do Estadode bem-estar

Pode-se afirmar que o Estado de bem-estar nasce na Europa, e de forma especialna Alemanha, dentro de um contexto muitoespecial, no qual estava em jogo uma estra-tégia política do dirigente alemão Bismarck,em 1880. A conversão do Estado em Estadode bem-estar é adotada não como uma exi-gência ética, mas sim para se contrapor aosocialismo. Dessa forma, o governo daAlemanha adota medidas sociais extrema-mente avançadas para a época. Foram as-sumidos pelo Estado: seguro contra enfer-midade, seguro contra acidentes de traba-lho e pensão por velhice. Essas medidasadotadas por um Estado que até então sóhavia se preocupado com funções políticasfomentam o bem-estar dos trabalhadores eenfraquecem as reivindicações dos menosfavorecidos pelo sistema.

Nesse sentido, conforme Cortina, é im-portante observar que essas medidas pater-nalistas, que exigem a gratidão dos que asrecebem, fincam as bases de uma políticasocial, que tem a sua tradução acadêmicana Escola Histórica Alemã e sua versão po-lítico-econômica na Verein für Sozialpolitik.

É necessário lembrar também dascontribuições de Pareto y Pigou, com a Wel-fare-Theorie, que cria as bases da Escola deBienestar, preocupada com os critérios demedir e aumentar o bem-estar coletivo: Key-nes também contribuiu para o fortaleci-mento do Estado de bem-estar ao combateros princípios da teoria econômica liberal

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(doutrina do laissez faire), propondo a inter-venção do Estado no campo econômico esocial, tendo como objetivo final evitar aquebra do sistema capitalista.

A consolidação e configuração doEstado de bem-estar.

Essa consolidação ocorre com a aprova-ção da proposta contida no “informeBeveridge”, que procura enfrentar ascircunstâncias da guerra e amenizar as de-sigualdades, propondo um sistema univer-sal de luta contra a pobreza que proteja todaa população frente a qualquer classe dedificuldades, incluindo o recebimento de umvalor mínimo para sobreviver.

O Estado de bem-estar se configura (vejaa esse respeito: “El Estado del Bienestar”,Generalit de Catalunya, 1996, p. 19) pelosseguintes elementos:

1. Intervenção do Estado nos mecanis-mos de mercado para proteger determina-dos grupos de um mercado deixado a suaspróprias regras;

2. Política de pleno emprego, imprescin-dível porque os salários dos cidadãos se per-cebem por meio do trabalho produtivo ouda aportação de capital;

3. Institucionalização de sistemas de pro-teção, para cobrir necessidades que dificil-mente os salários normais podem satisfa-zer;

4. Institucionalização de ajudas para osque não podem estar no mercado de traba-lho.

Esses elementos permitiram que os go-vernos democráticos, depois da SegundaGuerra Mundial, passassem da condição deprovedores para a condição de gestores.

5. As distintas formas do Estado debem-estar: os modelos europeu, norte-

americano e brasileiro

Na Europa, existem dois tipos de Estadode bem-estar: o modelo implementado nocentro e sul da Europa e o modelo dos paísesdo norte do continente europeu.

1. Modelo de Estado de bem-estar do centro esul da Europa

O modelo de Estado de bem-estar histo-ricamente estabelecido no centro e sul daEuropa é financiado de forma predominan-te com as contribuições sociais dos empre-sários, empregados e trabalhadores – e vin-cula os benefícios (como o tipo e a extensãoda cobertura) às contribuições. Esse tipo deEstado de bem-estar se baseia na popula-ção empregada e tanto o seu financiamentocomo a sua provisão reproduzem a estru-tura laboral e social do país. Depois daSegunda Guerra Mundial, o nível de benefí-cios se expandiu a fim de assegurar que astransferências e serviços sociais manti-vessem o nível de vida ao qual o contribuintees t ivera acostumado segundo a suaocupação e status. Para a população não-empregada, as transferências e serviços sebaseiam na comprovação de necessidade,segundo o critério de necessidade definidopelas autoridades governamentais dosrespectivos países.

É importante ressaltar, também, que aspolíticas sociais nesse tipo de bem-estar es-tão orientadas para favorecer o tipo defamília tradicional, baseado em um esposoque trabalha e uma esposa que cuida dosfilhos e avós. Nesse sistema, a ajuda familiarnão inclui de maneira geral uma política deserviços sociais, tais como creches e serviçoscomunitários domiciliares, que facilitem aincorporação da mulher à força de trabalho.

Nas sociedades em que prevalece essetipo de Estado de bem-estar, como é o casoda Espanha, a porcentagem de mulher naforça de trabalho é relativamente baixa.Nessas sociedades, a resposta ao desempre-go por parte das forças favoráveis ao Esta-do de bem-estar tem-se centrado principal-mente em diminuir a força de trabalho me-diante a aposentadoria antecipada e aredução do tempo de trabalho e incrementode sua repartição.

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2. Modelo de Estado de bem-estar donorte da Europa

O segundo modelo de Estado de bem-estar, que prevalece nos países do norte daEuropa, é do tipo universalista, no qual ofinanciamento tem sido provido em suamaior parte pelo imposto sobre a renda e osbenefícios são considerados inerentes à con-dição de cidadania e residência, e independedo estado, ocupação e nível de renda. Essesistema redistribui recursos entre grupos eclasses sociais e favorece a incorporação damulher na força de trabalho, com a provisãode serviços sociais que facilitam talincorporação.

Nestes países, como é o caso da Suécia, éonde tem existido menos desemprego,apesar da maior incorporação da mulher naforça de trabalho. Isto se deve a utilizaçãodo Estado de bem-estar como um instru-mento básico para alcançar o plenoemprego. Nestes países os governos temfavorecido políticas redistributivas orienta-das para reduzir as desigualdades sociais.

3. Modelo de Estado de bem-estar dos EE.UU.Nos Estados Unidos da América, dife-

rente da Europa, o Estado de bem-estar émajoritariamente privado, tanto em seufinanciamento como em sua provisão, e serealiza de maneira predominante por meiodas empresas, dos empregados e dos traba-lhadores. Nesse sistema, busca-se resolvero desemprego mediante a aposentadoriaantecipada, a redução dos salários e da co-bertura social privada provida pelas empre-sas, criando assim postos de trabalho depouca qualidade, como contrato de traba-lho temporário e parcial com remuneraçãomuito baixa e com proteção social limitada.Os serviços sociais, em sua maioria priva-dos, provêm de postos de trabalho de muitopouca qualidade (em termos de saláriose benefícios).

Nesse sentido, é importante registrar que,independentemente do tipo de Estado debem-estar que o país tenha, os serviçossociais, comunitários e pessoais têm sido ossetores em que têm aportado maiores pos-

tos de trabalhos na maioria dos países inte-grantes da Organização de Cooperação e deDesenvolvimento Econômico (OCDE). Adiferença entre esses países está principal-mente no tamanho e na taxa de crescimentodesses setores e na qualidade desses postosde trabalho. Assim, quando esses postos detrabalho são altos, como nos países nór-dicos, praticamente não existe polarizaçãosocial. Por sua vez, quando esses postos detrabalho são baixos, como nos EE.UU.,ocorre uma forte polarização social.

4. O Modelo de Estado de bem-estar do Brasil

O frágil modelo de Estado de bem-estardo Brasil (ou de mal-estar?), a exemplo doexistente no centro e sul da Europa, tambémé financiado de forma predominante comas contribuições sociais – dos empresários,empregados e trabalhadores – e vincula osbenefícios às contribuições.

Pode-se afirmar que o Brasil possui umsistema de serviços sociais, comunitários epessoais pouco desenvolvido. Direitossociais, esses estão garantidos pela Consti-tuição do Brasil, promulgada em 1988 (e, naprática, permanecem inalterados, apesar daboa intenção dos constituintes que escreve-ram a Constituição). A retomada da demo-cracia no Brasil não significou que tenhaocorrido a mudança de um Estado repres-sivo para um Estado social. Os problemaspodem ser avaliados pelos índices queindicam o baixo desenvolvimento do Esta-do de bem-estar brasileiro e o seu gastosocial, tanto em transferências como em ser-viços públicos ofertados à população, quese apresenta significativamente abaixo doseu nível de desenvolvimento.

A partir dos indicadores sociais do país,é possível concluir que o Brasil não está pre-parado para enfrentar as grandes mudan-ças demográficas, sociais e econômicas quea sociedade brasileira está experimentando.No Brasil, grande parte do debate sobre inter-venções para resolver os problemas da po-pulação, como o desemprego, por exemplo,que se apresenta como um dos problemassociais mais graves do país, tem-se centrado

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na necessidade de flexibilização da força detrabalho, e não suf ic ientemente nanecessidade de flexibilização do mundoempresarial (visando maior competividadeno mercado brasileiro) e no mundo daAdministração pública.

6. A crise do paradigma político doEstado de bem-estar

O aumento acelerado da abrangência doEstado no século XX, como decorrência daprevalência do público e da primazia dapolítica, criou uma sobrecarga de demandada sociedade civil sobre o poder público.Essas demandas de serviços adicionais aosprestados até então pelo Estado forçaram oaumento do aparato administrativo e, porconseqüência, dos impostos. Não pode serdesconsiderado que as teorias keynesianasdo deficit spending foram interpretadas comoum argumento para explicar os descontro-les orçamentários e o crescimento desorde-nado das atividades do Estado. O rápidoincremento do número de empresas estataisno pós-guerra é uma das conseqüênciasmais notáveis desse descontrole.

Constata-se essa forte presença do Esta-do na economia a partir dos dados elabora-dos pelo Banco Mundial, relativos à parce-la de gastos do governo em relação ao Pro-duto Nacional Bruto (PNB), a escalada ace-lerada do Estado nos últimos 100 anos. AFrança, por exemplo, parte de 15% dos gas-tos do governo em relação ao PNB, em 1880,para alcançar 52% em 1985; a Inglaterra saiude 10% em 1880 para atingir 48% em 1985;a Alemanha, de 10% para 47%; o Japão, de11% para 33%; a Suécia, de 6% para 65%; eos Estados Unidos da América, de 8%, em1880, para 37%, em 19853.

7. Distinção entre a atividade política ea econômica

Verifica-se, ao longo da história, a dis-tinção entre a atividade política e a econô-mica. Isso foi possível com base na funda-mentação do Iluminismo e da Fisiocracia,que garantiram o máximo de autonomia do

sistema econômico no bojo do sistema social.Desde o direito romano, existe clara preva-lência do direito privado (baseado na famí-lia, na propriedade, nos contratos e nos tes-tamentos), que, embora tenha sido na ori-gem um direito positivo e histórico, acabatransformando-se em direito natural. O di-reito público nasce apenas à época da for-mação do Estado moderno, mesmo assimtendo como fundamentação os institutosoriginários do direito privado, a saber odominum (em contraposição ao imperium) eo pactum.

Assim, a primazia do direito privado, poresse longo tempo na civilização ocidental,atingiu seu nível mais alto por ocasião doexacerbado liberalismo europeu vivenciadono século XVIII. Nesse sentido, a preva-lência do privado sobre o público significao domínio da justiça comutativa, que presi-de as trocas, sobre a justiça distributiva, quecomanda a partição da riqueza. Significa avitória do conceito do “Estado mínimo”, quecuida apenas das tarefas clássicas de segu-rança pública, defesa externa e distribuiçãoda justiça.

Fundamentada na tese da necessidadede subordinação do interesse pessoal aopúblico, ocorre no século XIX a reação con-tra a concepção liberal e o Estado mínimo.Dessa forma, tem início uma intervençãomaior do Estado no comportamento dos in-divíduos e dos grupos, ou seja, o caminhoinverso ao da emancipação da sociedadecivil em relação ao Estado.

A esse respeito manifestou-se NorbertoBobbio4:

“Com o declínio dos limites à ação doEstado, cujos fundamentos éticos haviamsido encontrados pela tradição jusnatura-lista na prioridade axiológica do indivíduoem relação ao grupo e na conseqüente afir-mação dos direitos naturais do indivíduo, oEstado foi pouco a pouco se reapropriandodo espaço conquistado pela sociedade civilburguesa, até absorvê-lo completamente naexperiência do Estado total”.

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Verifica-se, como decorrência da inter-dependência entre os homens e o caráteragregativo das ações econômicas, de rápi-do aumento dos custos sociais e externa-lidades, que a mudança social decisiva naatualidade consiste na subordinação da fun-ção econômica à ordem política. Nessesentido, ao predomínio do sistema religiosodurante grande parte da Idade Médiaseguiu-se o da primazia do sistema econô-mico, que foi gradativamente cedendoespaço ao subsistema político, desde oséculo passado.

O crescimento da presença do Estado noatual século é a prova concreta da prevalên-cia do público sobre o privado. A primaziado público sobre o privado significa o co-mando do interesse coletivo, o poder do Es-tado, ou seja, a prevalência política. A polí-tica, nesse sentido, deve ser entendida comoum complexo jogo de interação de interes-ses, em que ativos e o poder em geral sãoalocados numa sociedade. A prevalência dapolítica é decorrente do fato de dispor dopoder de coação, pela posse direta ou indi-reta dos meios pelos quais se exerce a forçafísica.

As teorias políticas, é importante obser-var, até o século XV, eram concebidas comoformas de criação de leis justas e institui-ções legais que pudessem garantir correçãoe justiça nas decisões. Após Maquiavel eHobbes, a política passou a ser analisadasob o ângulo do poder. A noção de políticacomo instrumento norteador no processo detomada de decisões é um fato recente, massubstituiu por completo o enfoque legislati-vo. A presença do Estado na economia, me-dida pela concentração de gastos efetuadospelo poder público, incluindo a previdên-cia social, saiu de 18% na década de 1920 eatingiu, 40 anos depois, quase 40%, confor-me ressalta K. Deutch5.

A crescente intervenção do Estado na economiaEssa forma de atuar do Estado teve como

objetivo conter e corrigir as grandes desi-gualdades sociais geradas pela competiçãosem limites criada pelo mercado, típica do

liberalismo praticado no século XIX, e foi aforma que as democracias ocidentais pas-saram a adotar desde a década de 1930, pormeio do Estado do bem-estar ou Estado-pro-vidência6. Para Rosanvalon7, a impossibili-dade de conciliar duas ideologias distintas,que se excluem reciprocamente, a liberal,baseada na defesa do mercado, e a estatizante,fundada no dirigismo governamental, levoua uma situação de impasse, traduzida pelafalência das políticas sociais no mundoocidental, apesar do aumento contínuo dascontribuições e da redução das indenizaçõespagas aos c idadãos . Questões comoaumento populacional , e levação dalongevidade média, inovações tecnológicas,ressurgimento do desemprego em massaforam decisivas para inviabilizar os siste-mas de previdência social , e , dessaforma, conquistas históricas, como a dasécurité sociale francesa, entram em crise e oEstado-providência entra em processo dedecadência acelerada.

Robert Castel, ao contextualizar o Esta-do do bem-estar ou Estado-providência,assinalou que

“é um sistema de regulamentaçãomontado, em torno do fim do séculoXIX, no âmbito dos Estados-naçõeseuropeus. O fato de haver sido cons-truído sobre bases nacionais tornaproblemática sua manutenção, hoje,diante de uma dinâmica de mercadoque atravessa fronteiras nacionais. Ébem verdade que o capitalismo sem-pre atravessou fronteiras, porque sem-pre teve uma dimensão internacional.As trocas, no entanto, em maior oumenor medida, nunca fugiram ao con-trole dos Estados-nações. Agora, cor-remos os riscos de ver instituições docapitalismo internacional, como oBanco Mundial ou o Fundo Monetá-rio Internacional, por exemplo, subs-tituírem as instituições jurídico-polí-ticas dos Estados-nações”8.

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8. A crise do Estado de bem-estar

Entre as medidas para superar a deno-minada crise do Estado de bem-estar (comoparte do discurso político, econômico e filo-sófico prático para justificar as medidas parasubstituí-lo por outra forma de Estado, maisadequado às necessidades dos novos tem-pos do pós-capitalismo), o exemplo maissignificativo na Europa é o da Inglaterra,que no passado liderou o movimento de es-tatização de setores básicos da economia ede sustentação ao Estado de bem-estar. Como declínio de sua capacidade econômica,enquanto Estado, foi a primeira nação a im-plementar uma forte política de privatiza-ções. A adoção dessas medidas, a partir dosanos 80, deu-se de uma maneira indiscrimi-nada, especialmente pelos países em desen-volvimento, bem como por algumas econo-mias centralizadas, como a Rússia e a China.

Nesse sentido, com exceção da Inglaterra,onde estão sendo adotadas medidas de res-trições aos beneficiários do Estado do bem-estar, verifica-se que na Europa tem havidomuito mais discussão sobre a reforma doEstado do que reforma efetiva. Até agora, asforças políticas e a mobilização social têmevitado o desmantelamento do Estado debem-estar (Estado-providência).

Deve-se recordar que, quando se começoua falar da reforma do Estado na Europa, esseprojeto político estava muito ligado à crisedo Estado de bem-estar (Estado-providên-cia) e à necessidade de a superar por meiode uma redução dos direitos sociais e eco-nômicos. Os enfrentamentos sociais e polí-ticos a que conduziu esse projeto fizeramcom que ele fosse adiado. Apenas na Ingla-terra o projeto avançou e mesmo assim numaintensidade muito mais restrita do que ti-nha sido proposto pela ex-primeira-minis-tra Margareth Thatcher. Os resultados des-sa reforma, de acordo com os indicadoresingleses, não são animadores em termos sociais.O Estado inglês diminuiu, de fato, as despe-sas sociais, mas o resultado foi um aumentodrástico nas desigualdades sociais.

9. A concepção da terceira via

No contexto do debate sobre o Estado debem-estar, é oportuno registrar a concepçãomanifestada por Anthony Giddens, ao in-terpretar a “terceira via”, em reunião ocorri-da em meados de 1998 (relatada pela revis-ta The Economist), na qual enumerou as se-guintes características diferenciais da ter-ceira via, em relação às formulações tradi-cionais da “velha esquerda” e da “velha di-reita”: (1) o conceito obsoleto de “classes”seria substituído pelo de coalizões; (2) emvez de maximizar o papel do Estado (esquer-da) ou do mercado (direita), o Estado seriareestruturado sob o princípio da subsidia-riedade, corrigindo-se (por meio de maiortransparência e delegação a governos locais)o déficit “democrático”; (3) o “estado do bem-estar social”, tido pela esquerda como o ins-trumento de redistribuição e pela direitacomo gerador de desperdícios e dependên-cia, passaria a ser o “estado do investimen-to social”, substituindo a gastança assisten-cial por investimentos no capital humano,visando à melhoria da “empregabilidade”;(4) na nova “economia mista”, o caráterpúblico ou privado da propriedade seriamenos importante que a preservação dacompetição e o exercício de regulação; (5) aterceira via enfatizara a “nação cosmopoli-ta”, sem a desconfiança das esquerdas so-bre o conceito de nação e sem a associação,pela direita, do nacionalismo à xenofobia;(6) num mundo “globalizado”, as naçõesde regulação enfrentariam não mais “ini-migos” e sim “perigos”, ficando sem senti-do tanto o internacionalismo proletário dasesquerdas quanto a preocupação belicistada direita. A esse respeito, veja também olivro de Tony Blair9.

Para David Osborne10, a “reinvención delgobierno” (reinventing the government) é umpilar básico da terceira via proposta pelogoverno Tony Blair, da Inglaterra, porquan-to essa filosofia política, no seu entendimen-to, é muito mais ampla. Define ele a “rein-venção do governo” como “el cambio de la

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dinámica, de los incentivos en el funcionamien-to de la Administración, para que cada uno ten-ga interés personal en cambiar el sistema”. E apedra angular de tudo isso é a introduçãode concorrência, de mecanismos de merca-do, na gestão pública. A introdução de con-corrência na gestão pública é sinônimo deeconomia, de eficiência, de satisfação doscidadãos com seu aparato administrativo.

O importante para ele não é privatizaros serviços públicos na Administração, esim criar uma estrutura orgânica que per-mita aproveitar as vantagens do mercadona economia dos assuntos públicos. Em suaopinião, a compatibilidade entre o públicoe o privado é o denominador comum da re-forma da Administração de todas as demo-cracias, ou seja, “la reinvención del Gobiernono tiene un motor ideológico, sino que tanto laizquierda como la derecha participan de ella”.

Afirma Osborne que essas mudanças sãodecorrentes de uma transição inevitável,obrigada pela passagem da era industrialpara a era da informação, que exige trans-formar as estruturas administrativas paraadaptá-las a um mundo definido por mu-danças aceleradas, a globalização, o uso detecnologia de informação e as restrições fis-cais que impõem essas coordenadas a umsetor público que deve responder a essesdesafios.

A atitude dos cidadãos também estámudando em relação à Administração. Ocidadão está sendo dotado de liberdade deeleição, de um autêntico poder. E, para aten-der a essas exigências, observa Osborne,

“debemos gestionar el sector público conmentalidad de empresario, lo que obliga aorganizar el servicío público como unaempresa, cobrando por él, pero introdu-ciendo también la responsabilidad de susadministradores”.

10. Considerações relevantes sobre acrise do Estado de bem-estar

A partir dos fundamentos e argumentosexpostos, pode-se afirmar que as causasmais importantes para explicar a evolução

do Estado de bem-estar (tanto em termos definanciamento como de organização) sãopolíticas. Assim, é importante ressaltar que,enquanto as bases do Estado do bem-estarse estabeleceram, em muitos países, antesda Segunda Guerra Mundial, o desenvol-vimento mais extenso desse Estado do bem-estar coincidiu com o período pós-SegundaGuerra Mundial, de 1946-1980 (denomina-do de “período dourado do capitalismo”).

Dentro desse desenvolvimento, e duran-te esse período de 1946-1980, Navarro con-sidera quatro tipos de políticas públicas doEstado de bem-estar baseadas nas quatroopções políticas majoritárias existentes nospaíses capitalistas desenvolvidos, a saber:a social-democracia, a democracia cristã, aliberal e a ditatorial-conservadora dos paí-ses do sul da Europa11.

É perceptível que o Estado social de di-reito e o Estado de bem-estar, na prática, cer-tamente ocorreram de forma concomitante.Assim, é preciso observar que, se o Estadode bem-estar se degenerou em megaestado e,por isso mesmo, entrou em um processo dedecomposição, o mínimo de justiça que pre-tende defender é que o Estado social de di-reito se constitua em uma exigência ética(que necessita ser satisfeita).

Conforme observa Francisco Laporta12,no surgimento do Estado social

“concurren dos tipos de justificación: unade tipo ético, que consiste en precatarse deque la satisfacción de ciertas necesidadesfundamentales y el acceso a ciertos bienesbásicos exige la presencia del Estado bajoformas diversas; y outra que surge porcritérios económicos”.

Isso porque a acumulação capitalista quenecessitava da grande sociedade anônimaexige a produção em massa e, portanto, aexpansão indefinida da demanda interna,o que parece impossível sem uma distribui-ção relativa dos recursos em forma de salá-rios e sem a presença do Estado na econo-mia como regulador da distribuição, comoprodutor, bem como consumidor. A justifi-cação ética dá lugar ao estado social, quevinha sendo formado por distintos cami-

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nhos desde a metade do século XIX, e a jus-tificação econômica também dá lugar aoEstado de bem-estar.

Do ponto de vista econômico, especial-mente para as populações de países em de-senvolvimento, em áreas específicas comoeducação e saúde, o Estado ainda é uma ins-tituição importante. Sob a perspectiva social,o Estado tem, em muitos casos, de assumiruma postura paternalista para resolver oproblema da eqüidade, especialmente empaíses com um grande número de excluídos.

É sabido que as causas mais importan-tes do crescimento das desigualdades sãorepresentadas pela distribuição da renda docapital e do trabalho, das desigualdades dossalários e do impacto redistribuidor do Es-tado do bem-estar. E cada uma dessasvariáveis depende do contexto político decada país, estimulado pela força dos instru-mentos políticos e sociais dos agentes e clas-ses sociais.

11. ConclusõesA perplexidade diante da qual se encon-

tram as sociedades dos países onde o Esta-do de bem-estar encontra-se em crise édecorrente da constatação de que esse Esta-do-providência, tal como tem sido conhe-cido, era funcional para o capitalismo vi-gente no mundo no período de 1945 até ofinal da década de sessenta, como forma degarantir a demanda solvente. Isso quer di-zer que, em sua forma historicamente conhe-cida, o Estado do bem-estar só é funcionalpara um capitalismo regido por uma lógicakeynesiana (entendido como um capita-lismo de alta rentabilidade, que conte comuma suficiente demanda solvente).

As novas condições criadas pela crisedos anos setenta converteu em disfuncio-nal esse tipo de capitalismo, tornando per-ceptível a denominada crise de legitimação,como conseqüência da crise fiscal, ou seja, aincapacidade do Estado de atender, diantede um cenário de queda de rentabilidade,as crescentes demandas sociais.

A extensão e difusão do pensamentoneoliberal, nos anos oitenta, que conside-rava o Estado e suas intervenções como umobstáculo para o desenvolvimentoeconômico e social das populações, foi faci-litada pelas eleições de opções conservado-ras e liberais da maioria dos países daOCDE, e em particular nos EE.UU., com aeleição de Ronald Reagan, do partido repu-blicano, e na Grã-Bretanha, com a eleiçãodo partido conservador l iderado porMargareth Thatcher. Desde então, este pen-samento neoliberal vem substituindo o pen-samento keynesiano, convertendo-se nopensamento dominante nos centros políticose econômicos nacionais e internacionais.

Com base nessas distintas posições, épossível constatar que a crise do paradigmapolítico do Estado de bem-estar (welfare state),ocorrida na metade da década de 80, quemostrou as insuficiências das concepçõesque enxergavam no Estado o provedor diretodo bem-estar, incluindo o próprio emprego,desencadeou um processo no mundo nosentido de repensar a administração pública,tendo como referência suas reais possibi-lidades orçamentárias, bem como suasfinalidades principais. Pressionada pornecessidades econômicas, bem como porideários políticos que constituem as ideolo-gias do minimal State, a administração públicavem sendo forçada, especialmente nos últi-mos 18 anos, a rever seus pressupostos,assim como a repensar seus parâmetrosconstitutivos.

Assim, o Estado de bem-estar, por haversido estruturado sobre bases nacionais, en-contra-se em uma profunda crise, cuja ten-dência é agravar-se nos próximos anos, vistoque, numa economia globalizada, é signifi-cativamente estreita a margem de manobrados governos, tendo de curvar-se aos recla-mos políticos sem desrespeitar a eficiênciado mercado.

Deve-se alertar, porém, que o Estado-na-ção, enquanto puder sobreviver como tal, emdecorrência da tendência de criação de umanova ordem mundial, mesmo diante das

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1 COTARELO, Ramon, “Del Estado del Bienes-tar al Estado del Malestar”, Centro de EstudiosConstitucionales, Madrid, 1990, p. 34.

2 CORTINA, Adela, “Ciudadanos del mundo:hacia una teoria de la cidadania”, Ciudadanía so-cial. Del Estado del bienestar al Estado de justicia,2ª ed., Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 66.

Notas

imposições do processo de globalização,deverá continuar desempenhando um papelindispensável na formulação de políticaseconômicas (em que incluem-se as políticaspúblicas), de regulador da competitividadee na promoção do bem comum da sociedade.

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Revista de Informação Legislativa250

3 WORLD BANK. World Development Report– 1988. Washington, 1988.

4 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e socie-dade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pags. 20 a25.

5 DEUTCH, K. Política e governo. Brasília: Edi-tora UnB, 1983. p. 25-26.

6 Registre-se que o Brasil não chegou a benefi-ciar-se, no mesmo nível de intensidade, dos ganhosobtidos por esse modelo de proteção social, comoocorreu nos países industrializados europeus. Asocialização dos resultados da produção, objetivoprincipal do Welfare State, não chegou a ocorrer nomodelo social paternalista e populista do Estadobrasileiro, que se tornou hegemônico a partir doinício da década de 30.

7 ROSANVALLON, Pierre, La crise de l’état-providence. Paris Seuil, 1981 e 1992. Publicado emportuguês pela Editora UnB/UFG, Brasília, 1997.

8 CASTEL, Robert. O mundo e o trabalho. Ru-mos (Entrevista.) Rio de Janeiro: ABDE, n. 148, p.5-6, maio 1998.

9 BLAIR, Tony, La Tercera Vía , Madrid, Adi-ciones El País/Aguilar, 1998.

10 OSBORNE, David, Reinventing theGovernment. Entrevista “La reinvención del Gobi-erno es un pilar básico de la tercera vía”, Expansi-on, 22.02.99. p. 58.

11 NAVARRO, Vicenç, La economia política delEstado del Bienestar, Madrid, Revista Sistema, 148,Enero. 1999, p. 21.

12 LAPORTA, Francisco, Sobre La precariedaddel individuo en La sociedad civil y los deberes delestado democrático, en Varios, Sociedad civil y Es-tado, Madrid, Fundación F. Ebert/Instituto Fe ySecularidad, pags. 19 a 30.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

O poder estatal na esfera municipal podemelhor atender as necessidades locais, poisestá em contato direto com os munícipes eseus problemas, restando clara, pois, aimportância do município na organizaçãopolítica administrativa brasileira.

Desde a sua organização político-admi-nistrativa mais primitiva, o municípioenfrenta problemas políticos (autonomiareduzida), sociais (êxodo rural e o conseqüen-te desequilíbrio urbano) e econômicos (faltade recursos para a consecução de seus fins).

Ocorre que, nos dias de hoje, devido àcrescente urbanização, os recursos públicossão escassos, incapazes de sustentar asrealizações do Estado. As necessidadessociais aumentam, seguindo o crescenteprogresso material do país, e, para aconcretização daquelas, torna-se necessárioo levantamento de verbas que pode ser feitopela via tributária.

Contribuição de melhoria: o desuso de umtributo justo para os municípios

Luciana de Andrade Saraiva, AlineFerreira Caruso, Maurinho Luiz dosSantos, Patrícia Aurélia Del Nero

Luciana de Andrade Saraiva é Bacharel emDireito pela Universidade Federal de Viçosa;pesquisadora pelo programa institucional PI-BIC/CNPq.

Aline Ferreira Caruso é Bacharel em Direitopela Universidade Federal de Viçosa; pesquisa-dora.

Maurinho Luiz dos Santos é Professor doDepartamento de Economia Rural da Universi-dade Federal de Viçosa, orientador, doutor emEconomia pela Universidade de São Paulo.

Patrícia Aurélia Del Nero é Professora doDepartamento de Direito da Universidade Fe-deral de Viçosa, co-orientadora.

Sumário1. Introdução. 2. Tributo. 2.1. Diferenças

entre imposto, taxa e contribuição de melhoria.2.2. Diferenças entre obra e serviço públicos.3. Contribuição de melhoria: conceito e caracte-rísticas essenciais. 3.1. Fundamento. 4. Auto-nomia e interesses municipais frente à con-tribuição de melhoria. 5. Dificuldades na aplicaçãoda contribuição de melhoria. 6. Conclusão.

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Esse problema pode ser visto maisclaramente no âmbito local, pois os muni-cípios não suportam cargas pesadas deobras de vultoso custo. Dessa forma, muitasobras e melhoramentos públicos ficam porfazer, não atendendo aos interesses dacomunidade. Nesse sentido, a ConstituiçãoFederal da República de 1988 deu maiorautonomia aos municípios, principalmenteno que se refere às competências tributária efinanceira, e assegurou às entidades polí-ticas da Federação um meio eficaz pararesolver os referidos problemas, que é acontribuição de melhoria.

As primeiras notícias da contribuição demelhoria datam de 1250, na Inglaterra.Procurava-se um meio para custear osgrandes empreendimentos do Estado, aomesmo tempo em que se constatava umbenefício especial, para alguns imóveis, emrelação aos outros, advindos da realizaçãode tais obras.

A contribuição de melhoria, nos EstadosUnidos, special assessment, obteve melhoresresultados em virtude de uma máquinaadministrativa bem estruturada e um am-biente adequado para o seu desenvolvimento.

No Brasil, esse instituto surgiu com aConstituição de 1934, sob influência norte-americana; contudo, não foi aplicadodevidamente, culminando em infrutíferastentativas.

Apesar das dificuldades na sua imple-mentação, o legislador constituinte mantevea contribuição de melhoria no ordenamentojurídico brasileiro, tendo em vista os seusfundamentos de justiça e equidade.

Para melhor compreender esse instituto,passa-se agora a analisá-lo segundo seusfundamentos, sua origem, observando,ainda, as dificuldades encontradas para asua implementação, frente a sua importân-cia como fonte de renda, principalmente,para pequenos municípios. Pretende-se,ainda, mostrar que a contribuição demelhoria é um poderoso meio para viabilizargrandes projetos de urbanização, favore-cendo o progresso municipal.

2. Tributo

O conceito de tributo sofreu evoluções,cercado por várias teorias, que tentaram, navisão de seus defensores, definir essecomposto da receita derivada do Estado.

Não possui o tributo caráter punitivo, ouseja, o tributo não tem como fato gerador umato ilícito ou o descumprimento de umaobrigação. Ele é instituído por meio de leiordinária, independentemente da vontadedo contribuinte, é imposição do Estado nouso do ius imperii.

O tributo vem alcançando definição maisampla nos povos modernos, à medida queos problemas sociais estão crescendo. Assim,visam mais que a obtenção de recursos paraos encargos do Estado; procuram sempreassegurar o bem estar e o progresso dahumanidade. As finalidades básicas dotributo são satisfazer as necessidadespecuniárias do Estado, além de seremutilizados em metas de política econômicae em programa de ação social. No planojurídico tributário, a finalidade é a satisfaçãodo dever. É o tributo objeto da prestaçãojurídica. Logo, tenta-se encontrar um pontode equilíbrio entre a necessidade indispen-sável do Estado em tributar e a pretensãofundada do contribuinte em que estaatividade seja realizada de modo equânime,racional e justo, podendo, ainda, aquelecontar com as garantias constitucionais,para evitar abusos que desta atividadepossam advir.

O tributo diferencia-se da multa, porquenesta o multado descumpriu algum devercontratual ou legal, figurando um fato ilícito;da indenização também, porque esta traduzuma prévia e comprovada lesão ao patri-mônio alheio; das prestações contratuais, poisestas dependem de um acordo de vontades,embora estejam sob os ditames legais.

São três as espécies de tributo, conformeprevisto na Constituição Federal de 1988:Imposto, Taxa e Contribuição de Melhoria.Sendo o Brasil um país federado, a Consti-tuição traça as regras de competência,evitando conflitos e dupla ação tributativa.

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2.1. Diferenças entre imposto, taxa econtribuição de melhoria

Após definir tributo, e para melhorcompreender o tema, faz-se necessárioanalisar as três espécies tributárias: impos-to, taxa, e contribuição de melhoria, a fim dediferenciá-las, evitando, assim, a aplicaçãoerrônea de uma por outra.

Ao longo da história jurídica, no Direitobrasileiro, a contribuição de melhoriapassou por muitas definições e comparações,realizadas pelos doutrinadores.

Identificaram-na com o Imposto deRenda, quando cobrada como mais valia, jáque faziam distinção de duas espécies decontribuição de melhoria: a de custo e a dobenefício.

Alfredo Augusto Becker adota umamodalidade de contribuição de melhoriacom base de cálculo na mais valia da coisaprivada (semelhante ao imposto de renda) eoutra com base no custo do serviço estatal(semelhante à taxa). Os adeptos dessa teoriavêem a contribuição de melhoria na clas-sificação econômica do imposto ou da taxae não admitem a classificação jurídica autô-noma daquele tributo; percebe-se desde já aconfusão que existe em torno da definiçãoda contribuição de melhoria.

Ao contrário dos tributos vinculados,taxa e contribuição de melhoria, o imposto éexigido em razão de um fato que se refere àatividade da pessoa obrigada, o contribuintenão recebe direta e imediatamente o resultadopelo que paga, pois o dinheiro destina-se àmanutenção das atividades gerais doEstado.

Ao passo que a taxa e a contribuição demelhoria integram a categoria das exaçõesdiretamente referidas à atuação concreta doEstado, contudo, elas não se confundem,guardando algumas afinidades.

No imposto, não deixa de existir acontraprestação do Poder Público, mas estaé indeterminada e não é condição para oexercício da competência tributária. Diver-samente ocorre com a contribuição demelhoria, porque o ente público só poderá

fazer uso de seu poder de tributar se realizaruma obra, e esta conseqüentemente levaruma valorização aos imóveis vizinhos.

Não há que se confundir o imposto sobrevalorização imobiliária e a contribuição demelhoria, pois que o motivo social e a basede cálculo daquele é a valorização imobiliá-ria, sobre a qual incide uma alíquota,geralmente progressiva.

O imposto sobre valorização imobiliáriavisa tributar o aumento imerecido de valorimobiliário ou da fortuna do proprietário.Essa medida é feita pelo cálculo da diferençaentre um valor anterior do imóvel e outroposterior, e incidirá por ocasião da vendaou da transmissão do imóvel a outrem.

No caso do imposto sobre valorizaçãoimobiliária, o tributo é exigido por ter oimóvel se valorizado, qualquer que tenhasido a causa, enquanto, na contribuição demelhoria, o tributo é cobrado sobre o imóvelvalorizado em decorrência de obra públicae só por isso.

Para alguns doutrinadores, a contribui-ção de melhoria confunde-se com a taxa,porque visa o pagamento de um benefíciocerto e determinado, e que obedecerá a umaproporção de valor.

Entre os defensores dessa corrente,encontram-se Pontes de Miranda, Monteirode Barros Filho, Francisco Campos e outros.Para esses, a contribuição de melhoria é umacontraprestação de um benefício recebido,especial e determinado por um serviçoexecutado pelo Estado, que leva umavalorização ao imóvel de um particular,decorrente de uma obra pública.

Contudo, a contribuição de melhoria emnada se confunde com as taxas ou com osimpostos, ela tem caráter autônomo. Paraessa corrente, encabeçada por Bilac Pinto,aqueles que vêem a contribuição de melho-ria como uma subespécie da taxa procuramuma solução simplista na definição edeterminação dos tributos, considerandouma divisão bipartida, com a dilação doconceito de taxa.

A taxa está, intimamente, ligada à pres-tação de serviço público, enquanto a contri-

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buição de melhoria está ligada a uma outraatuação estatal, que é a realização de obrapública com a conseqüente valorização imo-biliária; portanto, não é possível dilatar oconceito de taxa e nele incluir a contribuiçãode melhoria.

Não se pode, portanto, confundir taxa econtribuição de melhoria, pois naquela aatuação é direta, prestando utilidade ecomodidade aos administrados, enquantona última, inicialmente, visa-se o interesseda coletividade e só indiretamente serelaciona com a pessoa obrigada.

Conforme o art. 77 do CTN, as taxas têmcomo fato gerador o exercício regular dopoder de polícia, ou a utilização, efetiva oupotencial, de serviço público específico edivisível, prestado ao contribuinte ou postoà sua disposição.

O serviço divisível é aquele que pode serdestacado e individualizado do conjuntodos serviços e atividades do Estado. Aexemplo disso, o serviço de pavimentaçãonão é hipótese de incidência da taxa, porquefalta a ele o atributo da divisibilidade eespecificidade, fundamental ao conceitodesse tributo.

A base imponível da taxa vai basear-sena quantidade e intensidade das diligênciasnecessárias que o Estado terá de desem-penhar para dar uma licença, por exemplo.Enquanto a base imponível da contribuiçãode melhoria será a valorização do imóveladvinda da obra pública.

Não faltam especialistas que entendemque, em caso de realização de obra pública,o ente político poderá optar alternativa-mente pela taxa remuneratória ou, havendovalorização imobiliária, pela contribuiçãode melhoria. Opta-se aqui por uma soluçãosimplista, pois as hipóteses de incidênciadessas espécies tributárias são diversas.

É claro que a obra pública é encargonatural do Estado, que o deve prover com osrecursos normais provenientes dos encar-gos coletados indistintamente de todos osmembros da coletividade. Certas obras,contudo, nomeadamente indicadas em lei,são suscetíveis de beneficiar especialmente

determinadas pessoas, valorizando-lhes osimóveis situados em sua área de influência.Como não haveria justiça em que a contri-buição de todos servisse para custear obenefício de uns poucos, pode e deve oEstado recuperar-se junto a estes, propor-cionalmente ao benefício absorvido por cadaimóvel. Afasta-se, assim, a possibilidade deo Estado recorrer à taxa para recuperar ocusto da obra. Porque, não ocorrendo avalorização imobiliária, a obra deverá sercusteada pelos recursos gerais do Estado,os impostos.

Assim, entendeu o Supremo TribunalFederal, no julgamento do RE 87.604, que,nos casos em que couber a imposição dacontribuição de melhoria,

“não tem o Poder Público a opção deinstituir, alternativamente, taxa remu-neratória” (acórdão cujas conclusõesforam publicadas no DJ de 30-3-79)1.

Outra diferença, que pode ser citada,ainda, entre a taxa e a contribuição demelhoria, é que, na primeira, a simplesatuação do contribuinte já concretiza oaspecto material da hipótese de incidência,enquanto, na última, a ligação entre aatuação e o obrigado é indireta, ocorremediante a valorização, fator necessário.

A taxa é ilimitada, sua fixação é feita combase nos custos do serviço prestado aocontribuinte e pode ser proporcional àutilização desse mesmo serviço, enquanto acontribuição de melhoria é instantânea,embora seja parcelada, esgota-se no reco-lhimento de seu montante.

Ottorino Tentolini assim justifica aautonomia da contribuição de melhoria:

“Todo tributo encontra sua razãode ser no princípio de que os cidadãosdevem contribuir em medida equâ-nime para a promoção das finalidadesde interesse geral e utilidade pública,perseguidas pelo Estado; com maiorrazão devem contribuir se, além davantagem que – como participantes dacomunidade – retiram, ainda recebemparticular benefício patrimonial.

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Donde decorre que a C.M. não pode-se identificar com a taxa – enquantocorrespectivo pela prestação de ser-viço público – nem com o imposto,enquanto a C.M. pressupõe vantagemparticular, mediata ou imediata, quebeneficia a propriedade privada, emconseqüência da execução de obrapública. Não resta, assim, senãoreconhecer à C.M. o caráter de tributoespecial, dirigido a cobrir parcial-mente a despesa da atividade pública,que ajudou determinados proprie-tários de imóveis de maneira dúplice,ou seja, como proprietários e comoparticipantes da coletividade”2.

Enfim, a contribuição de melhoria e a taxasão tributos que não podem, de formaalguma, ser confundidos ou usados alter-nativamente, posto a sua natureza jurídicadistinta.

2.2. Diferenças entre obra e serviço públicos

Faz-se necessário analisar, em separado,as diferenças existentes entre obra e serviçopúblicos, pois este é fator relevante para adiferenciação entre a taxa e a contribuiçãode melhoria. Para muitos, essa distinção nãose justifica, porque quase sempre participaa obra pública da execução de serviçopúblico.

Contudo, as obras públicas não sãopermanentes e não são diretamente presta-das à comunidade, mas transitórias, e avantagem que elas trazem à comunidade éindireta; enquanto os serviços públicosconstituem uma atividade estatal perma-nente e são prestados diretamente aoindivíduo. Sendo assim, essa distinção sejustifica.

Obra é diferente de serviço, pois hápredominância dos materiais sobre o traba-lho naquela. É importante essa distinçãopara a Administração Pública, pois servepara a determinação de tributos e modali-dades de licitação.

O serviço público se desenvolve de formaregular, contínua e uniforme, visando

atender à comunidade, aos seus interessesprimários, básicos.

Ele é específico (quando ele puder serseparado em unidades autônomas de suautilidade ou de necessidade pública) edivisível (quando o serviço funcionar demodo que possa-se avaliar a utilizaçãoindividual de cada usuário), podendo serde utilização efetiva (quando é colocado àdisposição do contribuinte e ele o utiliza,porque lhe interessa) ou potencial (quandofor compulsório o seu pagamento, ou seja, oserviço está à disposição do contribuinte, e,ainda que ele não o use, será obrigado apagar) pelos contribuintes.

Por outro lado, o conceito de obra ébastante amplo: realização material dohomem, construção, melhoramento, am-pliação, produção intelectual, artística,literária, jurídica ou científica. O queinteressa, na verdade, é o conceito adminis-trativo, ou seja, construção, melhoramentoou alteração.

A obra pública destina-se a fins públicos,ou seja, ao público diretamente ou a umserviço público realizado pela Adminis-tração direta, indireta. É executada sobre umbem público, podendo ser implantada emterreno particular com finalidade pública.

São consideradas obras públicas: oequipamento urbano (vias e logradourospúblicos, ruas, praças, monumentos, cemi-térios, calçamentos, canalizações, redes deenergia elétrica, estádios, etc.), o equipa-mento administrativo (oficinas, laboratórios,garagens, etc.), o empreendimento deutilidade pública (estradas, pontes, ferro-vias, portos, aeroportos, canais, usinas,obras de saneamento, construções deserventia geral) e edifícios públicos (fóruns,sedes de governo, repartições públicas, etc.).

Não existe, porém, uma enumeraçãotaxativa dos serviços e obras públicas, poisestes aumentam ou diminuem de acordocom as novas realidades dos munícipes.

No entanto, apesar de serem inúmerasas obras públicas e necessárias para acomunidade, o Poder Público local, hoje, não

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têm dado a devida atenção àquelas, ora porfalta de recursos para fazê-las, ora pela faltade vontade política de buscar soluções paraesses problemas.

O que vem acontecendo nos dias de hojeé que os municípios e os particulares vêmcompartilhando o custo elevado das obras,como pavimentação e calçamento; ou, atémesmo, algumas vezes, os particularesarcam com o custo total daquelas.

3. Contribuição de melhoria: conceito ecaracterísticas essenciais

A contribuição de melhoria, como jáesclarecido anteriormente, é uma espécietributária autônoma, assim expressa naConstituição Federal de 1988; constitui-senuma prestação pecuniária imposta peloEstado, no uso do ius imperii, cuja hipótesede incidência é a realização de obra pública,que leve uma valorização para os imóveiscircunvizinhos, sendo instituída por meio delei e cobrada por atividade administrativa.

O professor Bilac Pinto foi um dosprimeiros, no Brasil, a tratar da contribuiçãode melhoria e a definiu assim:

“pagamento obrigatório, decretadoexclusiva ou concorrentemente pelomunicípio, estado ou União, em razãode valorização produzida em imóveldo contribuinte, por obra pública, reali-zada após sua audiência, e cujo mon-tante não pode ultrapassar nem o cus-to da obra nem o valor do benefício”3.

É possível destacar três elementosbásicos da definição de contribuição demelhoria: “recompensa do enriquecimentoganho por uma propriedade”, “em virtudede obra pública concreta”, “local de situaçãodo prédio”. Há a penetração de expressões,no Direito Tributário, de outros ramos doDireito, que auxiliam o intérprete nasquestões relativas à definição, conceituaçãoe configuração da contribuição de melhoria,quais sejam: a valorização, o imóvel e a obrapública.

Por meio dos princípios da moralidadee da justiça, o Poder Público, embora

realizando obras do interesse da coletivi-dade, emprega grandes fundos públicos emobras específicas, atendendo diretamente aum grupo, com melhoramento e aumento navalorização do imóvel. Logo, o Poder Públicoterá direito de restituição em relação a partedo benefício originado, que será paga peloproprietário.

O que impressiona, desde logo, noinstituto das contribuições de melhoria é queele vem corrigir uma situação, que o EstadoModerno não poderia mais tolerar por muitotempo: obras públicas, realizadas com oconcurso de todos os contribuintes, benefi-ciavam, quase sempre, a um pequenonúmero deles. É justo que o particularindenize o Estado se auferiu vantagemeconômica especial, mesmo sem sua vontade.

A contribuição de melhoria é um tributojusto porque não onera qualquer valo-rização imobiliária, é necessário que a causareal dessa valorização seja obra pública quebeneficie imóveis urbanos ou rurais. Emexigência constitucional, pode ensejarcontribuição de melhoria a obra públicacusteada por cofres públicos, e que propor-cione valorização imobiliária. Em regra, asobras públicas valorizam os imóveisadjacentes.

Contudo, há obras que desvalorizam osimóveis, apesar de necessárias para a cole-tividade, como a construção de cemitérios,de prisões, etc. O Estado, nessas hipóteses,deve e precisa indenizar o proprietáriodesses imóveis por dano que possa provocarna propriedade privada.

É necessário esclarecer que a efetivaçãoda obra pública não é suficiente paracaracterizar a contribuição de melhoria. Épreciso ocorrer um fato exógeno, que é avalorização imobiliária.

Ponto relevante que enseja grandesdiscussões em torno da contribuição demelhoria diz respeito aos limites que devemser obedecidos para a cobrança dessetributo.

Na história das Constituições brasi-leiras, esses limites foram ora expressos, oraomitidos, ora implícitos, o que confirmam a

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CF/34 (art. 124), em nada preceituandosobre tais pressupostos, a CF/67 (art. 30) eEC nº 18/65 (art.19), com expressa declara-ção dos limites; a CF/67 (art. 18) só se refereao limite individual, e a CF/88 calou-se. ODecreto-Lei nº 195/67, que regulamenta ainstituição e arrecadação da contribuição demelhoria, admite, em seu art. 3º, os doislimites, e assim também dispõe o CódigoTributário Nacional em seu art. 81.

O limite individual consiste no acréscimode valorização incorporado ao imóvel. E olimite total é a despesa realizada com a obra.É difícil conciliar ambos no momento dacobrança do tributo; contudo, é da suaessência o equilíbrio entre o custo da obra ea valorização imobiliária, para que ele serevele um tributo equânime.

3.1. Fundamento

Os fenômenos financeiros são conside-rados, no plano da realidade, em função defatores políticos, sociais, econômicos ejurídicos.

Sendo assim, é importante analisar todosos fundamentos que justificam a aplicaçãoda contribuição de melhoria.

3.1.1. Fundamento econômico-social

Sabido é que as cidades não constituemárea homogênea ou que deva ser tratada,sob o aspecto tributário, de maneira igual eindistinta. O que realmente há são áreas maisfavorecidas que outras, em virtude dadensidade dos serviços, obras e melhora-mentos públicos, que são realizados com osrecursos do tesouro público, oriundos daarrecadação dos tributos pagos por toda apopulação.

Então, aquele cidadão que, além dobenefício de ordem geral, não individuali-zável, recebeu também a melhoria especial,e individualizável, deverá contribuir para adespesa da obra, na medida da valorizaçãoou melhoria especial que recebeu.

Quando executa-se um melhoramentourbano em uma cidade, não há distribuiçãouniforme pelos munícipes, pois a uns

interessa mais que a outros. Assim foi com aretificação do rio Tietê em São Paulo.Concluída a obra, o sistema de comuni-cações urbanas, as condições e a beleza dacapital paulista melhoraram, beneficiandoa todos. Porém, as propriedades situadasna várzea do rio lucraram mais, pois acaboucom as inundações, encontrando-se, agora,numa situação privilegiada.

3.1.2. Fundamento moral

A valorização imobiliária, ou aumentode valor sofrido pelo imóvel em decorrênciado benefício trazido pela obra pública, é quetorna justa e adequada com a moral admi-nistrativa a cobrança desse tributo toda vezque esse fato ocorrer.

Então, é a valorização imobiliária omotivo moral que o Poder Público tem paraexigir do cidadão a contribuição de melhoria(o acréscimo de valor absorvido pelo imóvelé a base de cálculo desse tributo).

São apontados alguns fatores comocausa de valorização: o interesse na circu-lação com acesso da população aos trans-portes; a concentração da população, dariqueza e do poder de compra, que podemacarretar valores altos nos terrenos; aadaptabilidade ao mais lucrativo, juntando-se ao comércio de varejo, luxo e finanças.

E têm-se como resultados da adoção dacontribuição de melhoria: diminuição daespeculação com o decréscimo do comércio;aceleração da venda na baixa dos lotes não-edificados, pois dos proprietários sãotirados a valorização gratuita e representaônus pesado para os terrenos improdutivos;correção da desigualdade existente nosnúcleos urbanos entre favorecidos e aban-donados, pois cada qual pagará pelas obrase melhoramentos que lhes beneficiarem.

A obra pública beneficia o imóvel semadicionar nada de material à estrutura dele,mas traz um melhoramento que está inti-mamente ligado a este, como maior conforto,mais higiene, maior arejamento, ou aindatorna o imóvel mais acessível. Todos essesfatores contribuem para elevar o valor do

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imóvel, e este aumento foi provocado pelaobra realizada; este é o benefício especialacarretado ao imóvel e que dá subsídio parao Poder Público cobrar a contribuição demelhoria dos beneficiários.

3.1.3. Fundamento político

Todos os conceitos políticos e sociaispermeiam o sistema tributário, assim comosofrem as suas influências. O processolegislativo de criação da lei passa porcritérios eminentemente políticos. Com asanção do Presidente, votam-se os orça-mentos e decretam-se os tributos. Controla-se e fiscaliza-se a parte técnico–financeira,seja por meio de concessão ou denegaçãodos projetos de obras públicas, seja naopinião sobre as quotas individuais decontribuição.

Na política, apura-se também se oscontribuintes podem ou não suportar o ônustributário. Tal atitude funda-se em evitar oefeito inverso na execução de obras públicas,qual seja, a desvalorização. Cabe, in casu ,indenização aos proprietários prejudicadospelo Estado. Além disso, impede um pro-grama de intensificação de obras públicas,financiadas pela contribuição de melhoria,acarretando lucro exorbitante à Adminis-tração Pública.

A oportunidade, como critério político,na aplicação prática da contribuição demelhoria não é problema porque nota-se queé oportuno e necessário o tributo que venhacorrigir desigualdades e até suprir defici-ências do sistema tributário.

E, quanto à conveniência, a contribuiçãode melhoria só pode ser considerada conve-niente, porque supre o Poder Público de realfonte de recursos, além de corrigir desigual-dades e injustiças.

É motivo político, também, que justificaesse tributo, o objetivo de devolver à comu-nidade os benefícios de sua ação, conde-nando a inércia e a especulação daquelesque adquirem imóveis a preços baixos paraaguardar a sua valorização, por razão doprogresso, da expansão urbana e da reali-zação de obras públicas.

É importante salientar a prática dosprincípios da contribuição de melhoria noâmbito administrativo. Tal prática estáligada às leis orgânicas dos municípios e,em especial, à capacidade administrativados aplicadores. Robert M. Heig vincula osucesso do special assessment à eficácia doaparelho administrativo da maioria dasgrandes cidades norte americanas. Ratifi-cando esse posicionamento, ensina AnhaiaMello que a confiança na AdministraçãoPública faz parte desse quadro de êxito.

A Lei paulista nº 2.509/36 é muito citadapelos seus preceitos e suas preocupaçõespara com a aplicação da contribuição demelhoria. Procurava assegurar as maioresgarantias aos contribuintes, a fim deimpossibilitar abusos ou excesso por parteda Administração Pública. A valorização dobenefício para a propriedade, em razão darealização da obra pública, deve ser provadae avaliada previamente, com intervençãopopular, a fim de evitar injustiças tributárias.As contribuições nunca devem ultrapassaro valor do benefício, nem o custo do melho-ramento, pois, caso contrário, ter-se-ia uma“febre” de execução de obras públicas comlucro considerável à Administração Pública.

3.1.4. Fundamento jurídicoO poder estatal pode apoderar-se da

propriedade particular de quatro formas:pelos poderes de tributação, de polícia, dedomínio eminente e penal.

A contribuição de melhoria está total-mente ligada ao poder de tributação. Algunsautores a qualificavam como imprópria,quando expressão dos poderes de polícia ede domínio eminente. Já o poder penal nãose associa a essa espécie tributária, pois acontribuição de melhoria não incide sobreato ilícito.

Na verdade, esse tributo passou por trêsfases, claramente vistas nos exemplos norte-americanos e nas tentativas brasileiras,quais sejam, do poder de polícia, do dedomínio eminente e, finalmente, de tribu-tação. Na primeira fase, o proprietário eranotificado para construir o passeio ou sarjeta

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correspondente ao seu terreno; caso desaten-desse, a Administração Pública executavao trabalho e o lançava por special assessmentpara pagamento de despesas.

Já na segunda fase, os special assessmentssurgiram por ocasião das desapropriaçõesdestinadas à abertura de novas ruas nasgrandes cidades. O motivo para sua apli-cação foi que os terrenos fronteiriços danova via pública construída subiriamsensivelmente de valor.

Num terceiro e último momento maissatisfatório, as contribuições de melhoriarepousavam, integralmente, no poder detributação do Estado, no seu poder deimpério, obrigando os proprietários dosimóveis valorizados a figurarem na posiçãode contribuinte, já que uma obra pública osbeneficiara sensível e particularmente.

Do fundamento jurídico da contribuiçãode melhoria surge uma pergunta: por que oEstado exige contribuição de melhoria se jáse pagam outros tributos, principalmenteimpostos, cuja finalidade é atender àsnecessidades públicas?

Há fundamentação legal e econômicapara isso. O Estado utiliza, economicamente,uma gama de dinheiro para um determi-nado setor; logo, nada impede que esse setorbeneficiado retribua, ou melhor, promova oretorno aos cofres públicos do custo da obra.Poderia, então, o Estado despender aqueledinheiro com outras obras. O fundamentojurídico decorre do enriquecimento doproprietário do imóvel, sofrido por umavalorização pela implantação de uma obrapública.

É o verdadeiro princípio da equidadeque a Constituição Federal de 1988, seguin-do as anteriores, adotou ao manter a contri-buição de melhoria no nosso Direito Positi-vo, pois não é justo que toda a comunidadepague uma obra totalmente quando delaretiraram especial proveito algumas pessoas.

É necessário esclarecer que toda obrapública deve e tem como fim atender aosinteresses da comunidade em geral. Contu-do, há certos tipos de obras em que, seexaminadas mais de perto, pode-se perceber

dois aspectos: o primeiro é o benefício deordem geral, que atinge a todos os cidadãos;o segundo é um benefício especial paradeterminados cidadãos; estes, além dereceberem o benefício de ordem geral,recebem também o especial.

Por isso, o emprego da contribuição demelhoria é recomendado, modernamente,por ser o mais justo dos tributos, cujautilização é simpática ao contribuinte, emvista de sua vinculação às obras públicasconcretas. Quando se fala em contribuiçãode melhoria como o mais justo dos tributos,fala-se na não-aceitação de o Estado repartirseus lucros de forma desigual, advindos dasua própria atividade, assim como natributação proporcional à capacidadecontributiva de cada um.

4. Autonomia e interesses municipaisfrente à contribuição de melhoria

Inicialmente os municípios brasileiros seorganizaram como as antigas formas colo-niais portuguesas, dispostas nas Orde-nações Manoelinas e Afonsinas.

Em um segundo momento, os municí-pios, no Brasil, não faziam parte da estru-tura do sistema federal, mas eram conside-rados entidades político-administrativasrelativamente autônomas, o que estavaassegurado na Constituição Federal.

Durante o período republicano, osmunicípios eram teoricamente autônomos,mas, devido à centralização da políticafinanceira e tributária, não dispunham derecursos financeiros para solucionaremproblemas relativos à saúde, educação,transportes. A falta de autonomia financeirae econômica contribuiu para o desapareci-mento de muitos municípios.

Assim como a Constituição de 1934, ade 1946 retirou da competência dos Estados-membros a conceituação de autonomiamunicipal determinando os seus limitesmínimos, colocando-a sob a responsabili-dade da União.

No período pós-64, a Constituiçãobrasileira foi introduzida de excessiva

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matéria municipal, de tendência centraliza-dora, embora o objetivo da ConstituiçãoFederal seja estabelecer princípios estrutu-radores do governo local, como a instituiçãoda competência tributária dos municípios, etc.

Em 1988, a Constituição veio consagrare assegurar a autonomia municipal, em seusarts. 18, 29 e 30, pois as constituiçõesanteriores atribuíam ao município autono-mia em termos de governo próprio e compe-tências exclusivas; e, com a Constituição de1988, foi acrescentado o poder de auto-organização. Com essa nova postura, a atualConstituição devolveu ao município suaprópria fisionomia, favorecendo o renasci-mento das instituições municipais, que sãonecessárias à consolidação e desenvolvi-mento do governo municipal.

A grande mudança que a ConstituiçãoFederal de 1988 trouxe para os municípiosestá na instituição e arrecadação de tributos(vide arts. 18, 29-31 e 145 da ConstituiçãoFederal/88), nas repartições tributárias (videarts. 156 e 158 da Constituição Federal/88),fornecendo, assim, aos municípios meiopara solucionar seus problemas, dada aescassez de renda.

Atribuiu-se ao município poder heterô-nomo, que é a capacidade de elaborar leis,com vistas às necessidades locais, comtraços próprios, principalmente no que serefere à legislação tributária e financeira,assegurado no art. 30, I, II, da ConstituiçãoFederal/88. Esse poder é exclusivo e nãopode ser limitado por nenhum outro enteda federação.

É de competência do município legislarsobre assuntos de interesse local, e essa é averdadeira autonomia concedida pelaConstituição. Contudo, não se trata aqui deinteresse local exclusivo, pois indiretamentesão atendidas as necessidades gerais danação, observando-se primeiramente asnecessidade imediatas, melhor atendidaspelo Poder Público local.

Os Poderes Públicos locais enfrentamhoje graves problemas, como o êxodo rurale a concentração humana nos grandes

centros urbanos, em virtude do crescimentodesordenado das metrópoles, da desinte-gração da política regional e nacional. Ascidades necessitam de obras que melhoremas condições de vida dos seus cidadãos.Contudo, tais problemas não são solucio-nados, pois a falta de recursos é genera-lizada, e ainda mais acentuada nos peque-nos municípios, cuja arrecadação é menor,sem quaisquer perspectivas de desenvolvi-mento. Assim, eles não suportam obras devultoso custo, ficando grande parte dasobras por fazer, e são muitos os melhora-mentos reclamados pela coletividade.Muitos municípios não têm progressoporque não têm renda.

Diante do quadro aqui estampado, épossível perceber que os municípios pos-suem meio eficaz para solucionar o pro-blema da falta de renda, para proporcionaro desenvolvimento urbano, pois a Consti-tuição Federal dá competência para essesentes instituírem contribuição de melhoria.É necessário maior vontade política, com ofim de superar as dificuldades técnicas deimplantação desse tributo, para tornarconcreta a contribuição de melhoria, que émuito importante para o desenvolvimentomunicipal.

5. Dificuldades na aplicação dacontribuição de melhoria

A contribuição de melhoria existe noSistema Tributário Nacional desde a Cons-tituição de 1934, mas ela não é usada, pordificuldades impostas à sua instituição. Aoinvés de fazer uso dela, os poderes tribu-tantes optam sempre pela taxa, como se fossecontribuição de melhoria, mascarando-a.

Em muitos municípios, são adotadas astaxas de pavimentação e calçamento, sob opretexto de a técnica de implantação dacontribuição de melhoria ser complicada eexigente. Entretanto, ela poderá ser apli-cada, com excelentes resultados, especifica-mente, nos municípios, como meio decompensar a redução de receita, motivadapela discriminação de rendas.

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Muitos juristas e políticos sabem do fun-damento de justiça em que se baseia acontribuição de melhoria; no entanto, muitosdeles apresentam resistência e preferemdizer que a cobrança desse tributo é inviável,baseando-se nas dificuldades para delimi-tar a zona beneficiada pela obra pública,bem como o fator de benefício que corres-ponde a cada imóvel situado na área deinfluência.

Manoel Lourenço dos Santos diz ser acontribuição de melhoria uma utopia, porexistir e não ser cobrada; se assim o fosse,poderia resultar em progressos das locali-dades e constituiria uma cobrança, moral-mente, válida. No Brasil, ela não é arreca-dada, prejudicando o Erário.

Na verdade, não é fácil instituir essetributo, devido à complexidade de seusmecanismos; por isso não é, quando previstona legislação, exercitado, ou, quando o é,opera-se com inconveniência.

Por outro lado, a cobrança da contri-buição de melhoria não é só viável, é tambémum dever político, porque os fundamentosdesse tributo levam a crer que o Estado nãopode, de forma alguma, sobrepor interessestécnicos ao bem-estar da coletividade.

Não se pode opor à aplicação da contri-buição de melhoria tendo-se em vista ainjustiça em que incidem alguns quandoauferem vantagem patrimonial para a qualtoda a comunidade contribuiu. Portanto,quando se cogita da conveniência e oportu-nidade, não se pode levar em consideraçãoapenas as dificuldades técnicas, mas deve-se observar fundamentos mais relevantescomo a melhor distribuição do ônus tributário.

E, sem dúvida alguma, a contribuição demelhoria é uma das fontes mais aptas acontribuírem para a realização das obrasnecessárias ao desenvolvimento social.

A técnica de arrecadação e o procedi-mento administrativo da contribuição demelhoria não são simples. Com isso, hápouca utilização dessa fonte de receita,principalmente nos municípios, pois nãodispõem de pessoal especializado para tal.

Assim sendo, é premente a seleção e otreinamento de pessoal, de acordo com osnovos métodos e técnicas, aclamados pornecessidades novas, o que leva tempo,apesar de ser o mínimo possível e exigívelaos agentes públicos.

O que, normalmente, acontece é a con-versão de receitas, segundo pretensõespolíticas, para terminar as obras públicasde um determinado setor, prejudicando-se,assim, outros setores. Seria melhor, princi-palmente para manter uma série de cons-truções públicas, o retorno, para os cofrespúblicos, do quantum que os proprietáriosreceberam de benefício.

A grande dificuldade encontrada para ainstituição da contribuição de melhoriapercebe-se que é a determinação da valori-zação imobiliária, do quantum debeatur; porisso, o legislador, na Constituinte de 1988,não deixou claro os limites, requisitosimprescindíveis, para a aplicação dessetributo.

Contudo, essa dificuldade não justificadescaracterizar a contribuição de melhoria,tornando-a um simples meio de financiarobras públicas. Porque, se assim se fizer, osprincípios que permeiam esse institutoestariam minados, pois que não haveria aisonomia, a equidade, devendo cada pro-prietário arcar com o ônus que realmentelhe cabe, benefício trazido ao seu imóvel,pela obra pública.

Para alguns doutrinadores, não é possí-vel determinar com exatidão a valorizaçãoimobiliária, pois se encontra dentro de umemaranhado de possíveis valorizações, reaise aparentes. Para os seguidores dessa idéia,há a melhoria decorrente da obra conside-rada, mas há também outras melhoriasproduzidas por obras vizinhas, não seesquecendo das valorizações e desvalori-zações decorrentes das variações monetárias.Todos esses fatores se unem, mascarando-se,de forma a dificultar a sua análise separa-damente.

É bem verdade que a determinação davalorização imobiliária é complexa, mas, noBrasil, os imóveis já estão sujeitos a impostos

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(territoriais, estaduais e municipais) que sãocalculados sobre o seu valor; portanto, existeum valor oficial, que deverá ser aplicado nocálculo da valorização. Há que se lembrartambém das avaliações que são feitas paraos casos de desapropriação.

O argumento de que a determinação damais-valia imobiliária decorrente de obrapública está permeada de subjetivismo nãopode ser levado em consideração, porquedefeitos assim existem até mesmo nasnormas de ordem pública, como ocorre nafixação do salário mínimo, que é determi-nado em valor, e que está abaixo da reali-dade, o que não impede a sua utilização nasrelações empregatícias.

Se houver superestimação da valori-zação imobiliária, ou ainda subestimaçãodesse tributo pelo contribuinte, o Judiciáriosolucionará esses conflitos.

A determinação da mais-valia ficará porconta dos técnicos, e a própria naturezademocrática do tributo se levanta comosolução para o problema da avaliação dobenefício.

O professor Geraldo Ataliba buscasolução para a implementação desse tributoe aponta os seguintes procedimentos:

1 – “exclusão da aplicação aos casosde pequena arrecadação, em que asquantias a receber não compensariamdispêndios e trabalhos de avaliação elançamento;2 – nos demais casos, a parte maispenosa é inevitavelmente feita, paraoutros fins, pelas repartições técnicasde engenharia, que levantam plantasdas zonas atingidas, aéreas, estadoatual, projeto da modificação empre-endida, especificações, cálculos doscustos da obra, custo unitário, etc.;3 – os imóveis a serem provavelmentevalorizados têm estimativa previstanos cadastros fiscais para fins deimposto territorial rural ou urbano, ouainda predial;4 – a técnica de avaliação para desa-propriações, inteiramente conhecidae efetivamente praticada até para os

casos individuais e de pequena monta,é de todo aplicável à contribuição demelhoria;5 – a preleção pode também resolveros casos extremos, resistentes aoprocesso de avaliação, insinuados nosistema brasileiro em vigor” 4.

Quanto ao problema de determinação dequal obra é capaz de levar à tributação pormeio de contribuição de melhoria, esse podeser resolvido com a lei complementar quepreceituaria os tipos de obra pública quecomporiam a hipótese de incidência dessetributo, pois há muitas obras públicas quesão financiadas com os recursos estataisadvindos dos impostos.

A determinação da zona de influênciagera algumas dúvidas, pois o critério para asua determinação, se feita anteriormente, ésubjetivo ou aleatório, o que não corres-ponde à prática. É melhor que as análisessejam feitas a posteriori, para que se possa com-parar a realidade com a hipótese original.

Nos casos de valorizações decorrentesde uma pavimentação, por exemplo, écostumeiro carregar somente os proprie-tários que possuem imóveis com frente paraa via beneficiada. Essa é a situação que maisocorre nas prefeituras atualmente, divide-se o custo total da obra entre os proprietáriosdos imóveis localizados na rua beneficiada.

Em verdade, quem recebe o benefíciodireto são os imóveis situados na via públicapavimentada. Mas o Poder Público nãopode negar, e nem deixar de levar em conta,que as ruas transversais e próximas daquelasofrem uma influência, e de alguma formauma valorização, sujeitas, portanto, à tribu-tação por meio de contribuição de melhoria.

Quando não se delimita a real zona deinfluência, cria-se uma situação muito difícilpara a cobrança da contribuição de melho-ria, porque o tributo torna-se alto e, por vezes,injusto, pois somente os imóveis diretos sãotributados. Contudo, a valorização dosimóveis se dá de forma direta e indireta.

Além dos problemas citados, surge aindaoutro questionamento em torno da validadeou não do Decreto-Lei nº 195/67. Para

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alguns, como Sidney Saraiva, esse decretonão tem força de lei complementar e, porisso, as unidades federadas não estãoobrigadas a segui-lo. Dessa forma, surgiriao problema da falta de uniformidade, e umgrande problema para o Judiciário, pois queseriam inúmeros os questionamentos emtorno da aplicação desse tributo num ounoutro lugar.

Outro é o posicionamento do professorSacha Calmon de Navarro Coelho; para eleo referido Decreto-Lei caducou antes mesmoda Constituição de 1988, porque estediploma, com caráter de lei complementar,regulava a contribuição de melhoria basea-da na valorização imobiliária conforme aConstituição de 1967 e a Emenda nº 1/69.Entretanto, em 1983, a Emenda Constitu-cional nº 23 de 1/12, Passos Porto, mudouo critério para aplicação da contribuição demelhoria, passando a ser o do custo da obra.

Houve, assim, duas alterações: omitiu-se “...tendo como limite individual o acrésci-mo de valor que da obra resultar para cadaimóvel beneficiado...” e foi substituída aexpressão “ imóveis valorizados” por“imóveis beneficiados”.

Para o eminente jurista, a intenção dolegislador, ao fazer essa modificação, foiclara, porque o fim era realmente substituiro critério valorização pelo critério custo,discordando de outros doutrinadores queesclarecem: imóveis beneficiados são omesmo que imóveis que sofreram umacréscimo de valor, o benefício.

Em face disso, Sacha Calmon entendeque existem dois tipos de contribuição demelhoria (a contribuição de custo, se seobservar somente o limite total, e a contri-buição de melhoria propriamente dita, se seconsiderar ambos os limites), e não adiantao questionamento acerca de qual tipo seadotou. Há corrente que defende ser neces-sário lei complementar para conferir a opçãodo legislador, mas há também doutri-nadores que negam a necessidade de leicomplementar, porque entendem que acompetência tributária é plena, e cabe-lhes

escolher quando, como e quanto irão cobrardos proprietários de imóveis beneficiados.

Toda essa discussão gira em torno dadeterminação dos limites a serem seguidospara a cobrança da contribuição de melho-ria. No entanto, está-se questionando não aessência do tributo, que é o mais relevante,mas sim a lei. O que deve ser levado emconsideração é a razão de ser do instituto,se se observar somente o limite total da obraestar-se-á cobrando taxa, e não contribuiçãode melhoria. É, assim, essencial que sejamobservados os limites total e individual, paraque sejam cumpridos os princípios deequidade e justiça, que fundamentam essetributo, senão corre-se o risco de aplicaremum outro instituto, e não a contribuição demelhoria.

É necessário que seja elaborada uma leicomplementar, com o fim de traçar as regrasgerais de instituição e arrecadação dacontribuição de melhoria, para que o tributoseja cobrado de maneira uniforme em todoo país, evitando possíveis problemas. Deve-se lembrar que essa lei deverá tratar somentede aspectos gerais, deixando a entidadepolítica livre para adequar o tributo segundoas suas necessidades locais.

Outra razão do insucesso da aplicaçãoda contribuição de melhoria no Brasil,apontada pelo professor Geraldo Ataliba, éa de que a lei brasileira seguiu critérios dalegislação norte-americana referentes ao costassessment, que é uma espécie do specialassessment, e que não é a legítima contri-buição de melhoria. O cost assessment édestinado para financiar pequenas obraspúblicas, que podem ter o seu custeiodiscutido com os proprietários vizinhos, éuma espécie de negócio, advém do acordode vontades, não se adaptando à realizaçãode grandes obras.

6. Conclusão

Este estudo tem respaldo em autorizadadoutrina e no ordenamento jurídico nacio-nais. Por todas as razões expostas, acredita-se na viabilidade da contribuição de

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melhoria como meio de arrecadar recursospara a realização de obras, favorecendo oprogresso das cidades brasileiras.

Desde as primeiras tentativas de apli-cação desse tributo, percebem-se problemascomo a falta de um aparelho administrativoapropriado para a sua arrecadação, receiopor parte dos contribuintes em face dessanova espécie tributária, falta de vontadepolítica; tudo isso leva à imposição de outrostributos.

Contudo, a maior dificuldade encon-trada para a implementação desse tributocontinua sendo a determinação do quantumdebeatur, pois, para que a contribuição demelhoria, segundo os seus princípiosinformadores, seja aplicada é necessárioobedecer a dois limites essenciais, o total(custo da obra) e o individual (valorizaçãoimobiliária decorrente da obra), que, paramuitos, são considerados de difícil harmo-nização. É de suma importância, também, apresença de técnicos especializados paraque se proceda a uma justa e adequadaavaliação do quantum devido a cada pro-prietário beneficiado.

Tudo isso já foi discutido ao longo destetrabalho; contudo, é necessário lembrar quea contribuição de melhoria, antes mesmo deser implementada, por meio de lei, é uminstituto com características próprias, asquais devem ser observadas para que seconcretizem os ideais de justiça e equidadedela inerentes.

É premente a operacionalização dacontribuição de melhoria, pois os pequenosmunicípios, em especial, necessitam dessaimportante fonte de renda para a consecuçãodos seus fins, ao passo que a coletividadeespera do Poder Público solução para osproblemas sociais que atingem as cidadesbrasileiras hoje.

E, nos dias de hoje, com a reforma doEstado, que se torna cada vez menor,atribuindo as suas funções à sociedade civilorganizada, ficando apenas na situação defiscal do exercício das funções estatais, é omomento de todos participarem, reclamando

os problemas de sua comunidade, qual obraé mais urgente, etc. É a ocasião própria paraexercer a verdadeira cidadania, que ultra-passa a simples representatividade política.

A contribuição de melhoria representaum meio efetivo para a realização das obrasnecessárias à sociedade, do qual dispõemtodos os cidadãos, uma vez que a iniciativanão é somente do Poder Público, mas,também, da comunidade que desejar a obra;é meio de exercer a cidadania, por meio dafiscalização do procedimento tributário,desde a publicação do edital, passando pelaimpugnação do orçamento da obra, etc.

Espera-se, pois, que este trabalho con-tribua, de alguma forma, para despertar asociedade e o Poder Público para a impor-tância desse instituto, tendo em vista que éum meio justo e eficaz de satisfazer asnecessidades públicas.

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Notas

1CATALDO, Paulo César. Taxa de contribuiçãode melhoria: natureza jurídica. Revista de direitopúblico, nº 61, 1982, p. 88.

2Ottorino Tentolini citado por CATALDO,Paulo César. Ob. cit., p. 53.

3Pinto, Bilac. Contribuição de melhoria, Rio deJaneiro, p. 07.

4Geraldo Ataliba in Alguns enfoques sobre acontribuição de melhoria, Hélio Caires, Revista daUFG, nº 09, p. 61-74.

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Na frase lapidar que começa o CapítuloIV do Tratado de meu antigo professor, oproblema da aplicação do direito estrangeiropelo juiz nacional aparece como coisasimples. Mas como suas lições, o livro e avida me mostraram, trata-se de um dos pro-blemas mais difíceis do direito.

Por isso é bom, desde logo, conceituar aexpressão direito estrangeiro para os efeitosdeste texto.

João Baptista Machado explica muitobem que

“o direito estrangeiro chamado pelasnormas de conflito é aquele direitoprivado que efectivamente vigora noterritório de um determinado Estado.Todos os preceitos de direito privadonormal e efectivamente aplicados no

Aplicação do direito estrangeiro pelo juizbrasileiro

Luiz Olavo Baptista

Luiz Olavo Baptista é Advogado em SãoPaulo; Doutor em direito internacional pelaUniversidade de Paris II; Professor titular dedireito do comércio internacional na Faculdadede Direito (USP); membro da Corte Permanentede Arbitragem de Haia; árbitro, designado peloBrasil, para o sistema de solução de disputas doMercosul; Grande Oficial da Ordem de RioBranco.

“La règle de conflit prescrit au juge l’applicationsoit d’une loi étrangère, soit de la loi française.”Henry Batiffol, Traité de droit international

privé, Tomo I, 5ª. ed. Paris, 1993

Sumário1. Aplicação da lei estrangeira designada

pela regra de conflito. 1.1. Aplicabilidade dasleis estrangeiras, aspectos gerais. 1.2. Aplica-ção concreta do direito estrangeiro no Brasil. 2.Obstáculos à aplicação do direito estrangeiro.2.1. As exceções implícitas na legislação. 2.2. Asexceções explícitas na legislação. 3. Conclusão.

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território de um Estado são abrangidospela referência do direito conflitual doforo. Não será necessário que taispreceitos emanem directamente defonte estadual: basta, como se disse,que constituam direito privado vigenteno domínio territorial de um Estado”1.

Adotada essa definição, veremos que aoperação da regra de conflito, indicar umanorma de direito estrangeiro ao juiz dacausa, coloca-nos diante de problemasteóricos. Entre eles, temos, por um lado,aspectos de teoria geral do direito – v.g. anatureza do direito estrangeiro –, por outro,aspectos operacionais – tais como se se fará,e como, a aplicação do direito estrangeiro seocorrerá, sua interpretação, como se faz suadeterminação, etc.

Nessa ordem de idéias, começarei pelaaplicação da lei estrangeira, e depoisexaminarei os obstáculos à sua aplicação.

1. Aplicação da lei estrangeiradesignada pela regra de conflito

É preciso determinar – do ponto de vistada teoria geral do direito – a que título odireito estrangeiro é aplicado pelo juiz doforo, competente, no Brasil, numa visãogeral. Em seguida, abordar os aspectospositivos do reconhecimento do seu teor edo modo de sua interpretação.

1.1. Aplicabilidade das leis estrangeiras,aspectos gerais

Ao se aplicar o direito estrangeiro,aparentemente ocorre uma brecha na sobe-rania. Com efeito, aí o juiz estaria reconhe-cendo uma autoridade ou a competência aolegislador estrangeiro autor da normaaplicada.

Todavia, é mera aparência. Isso nãoocorre. A questão está também ligada à desaber como esse direito será reconhecido.Ambas foram objeto de muita discussão e adoutrina, em diversos países, deu soluçõesdiferentes a esses problemas.

Na common law, falou-se em vested rights– expressão que se pode traduzir, grossei-

ramente (pois há diferenças conceituais emcada sistema), por “direitos adquiridos”.

Na civil law, houve, de início, duasgrandes correntes – a italiana da recepção ea francesa do direito como fato, que subdi-videm-se em variantes, no curso do tempo,dando origem a aplicações baseadas nosenfoques mais ou menos internacionalistase ideológicos dos autores.

Examinemo-las.

Teoria dos “vested rights”Autores tradicionais na common law,

ingleses e norte-americanos2, entendem quea aplicação do direito estrangeiro pelo seujuiz decorre de que este não poderia apreciara existência dos vested rights das partes semrecorrer ao teor do direito de onde estestiveram origem. Essa concepção se casa com,ou derivaria da idéia de comity, ou comitasgentium desenvolvida há séculos por HugoGrotius, e que justificaria a aplicação do di-reito estrangeiro.

Essa teoria dos vested rights indaga: comose poderia examinar um contrato, senão sobo enfoque do direito sob que nasceu?Respondendo que, se nesse direito se funda-mentariam as obrigações das partes, e outrosaspectos da sua execução, não se poderia,sem cometer injustiça, ignorá-lo.

Entretanto, se esse raciocínio tem seufundamento, este é limitado, pois, se a leiestrangeira regeu o nascimento do contrato,não teria obrigatoriamente por que reger suavida, ou regular as conseqüências de suaexecução.

O papel desempenhado pela lei estran-geira, com efeito, situou-se num territóriodiferente e num momento do passado,enquanto o juiz atua no presente, e noutroterritório. Então ele estaria recriando a leiestrangeira para aplicá-la, ou então estariareconhecendo vigência, o que não pode fazersem menosprezar a soberania do Estado quelhe dá a jurisdição.

Essa teoria foi fortemente criticada e,ainda que tenha influenciado o primeiroRestatement of the Conflict of Laws, foi, depois,abandonada, em favor da local law theory da

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escola de Yale3, e, hoje em dia, perdeu suaimportância.

Alguns autores italianos procuraram, noséculo passado, resolver essa questão,propondo a “teoria da recepção”, que veio aser uma das inspirações da chamada escolade Yale.

Teorias ditas “da recepção”A primeira explicação teórica, dentro

dessa corrente, foi a dada por Anzilotti nocomeço do século, quando, ultrapassandoas posições da sua juventude4, afirmou adualidade das ordens internacional einterna5, donde decorreria, para a doutrinaitaliana, um exclusivismo da ordem jurí-dica, que “exclui o caráter jurídico do quenela não se inclui”6.

Assim, para ele e seus seguidores, umaregra qualquer de direito estrangeiro só teriavalor se fosse incorporada ao direito local –ou seja, recebida por este. Daí o nome “teoriada recepção”.

Como doutrinou Perassi7, as normas dedireito internacional privado,

“produzem normas substancialmenteconformes por seu conteúdo àquelasque, na ordem designada por elas,estão, ou estarão em vigor”.

A recepção da norma estrangeira, dis-criminou, depois, a doutrina italiana, podeser material ou formal.

No primeiro caso – no que é, a meu ver,uma explicação carregada de artificialismo–, entende-se que a lei perde o seu caráterestrangeiro, pois apenas seu conteúdomaterial seria incorporado numa regrapertencente à lei do foro, que, para atender aum dado caso, torna-se uma norma seme-lhante à lei estrangeira8.

Criticando essa construção, Ago propôsa teoria da recepção formal: a lei estrangeirase incorpora como tal, mas só vale porque aregra de conflito local lhe dá valor. Assim,decorre de ato de soberania do país do juiz.

Trata-se de explicação que é aceita porboa parte da doutrina, na primeira metadedeste século, criticada, embora, por Maury eBatiffol, mas apoiada por autores alemães.

Assim, esses autores entendem que, de umaou outra maneira, o direito estrangeiro éaplicado pelo juiz nacional, enquanto leiestrangeira. Autônoma.

Com elas concorre outra corrente doutri-nária, também na França e Alemanha, comseguidores em outros países, segundo a qualo legislador estrangeiro comandaria o juizdo foro, por via da regra de conflito, que lhedelegaria poderes para isso, a aplicar sualei9, a chamada teoria da recepção por delega-ção ou, simplesmente, da delegação.

Teoria de BatiffolA meu ver, entretanto, foi Batiffol quem,

de maneira criativa, abordou melhor aquestão, partindo do modo de aplicação dalei estrangeira.

Segundo ele, na prática, a parte deveaportar ao juiz a prova do seu conteúdo, oueste deve determinar que ele seja provado,ou obter a prova do seu teor por outra forma,conduta essa diametralmente diferente, pois,da sua, diante do seu próprio direito, quelhe compete dizer e conhecer.

Ora, como diz Batiffol, se os juízespediram às partes a prova da lei estrangeira,“ils ont traité la loi étrangère comme un point defait”. Não se pede prova do direito.

A posição de Batiffol, entretanto, écontestada10. Trata-se, porém, de posiçãorealista.

O grande internacionalista e algunscríticos como Valadão não quiseram ver isso,nunca afirmaram que o direito estrangeiro éfato, mas, atente-se bem para a nuança, aliásdecisiva – ele é tratado como fato; e aplicadocomo lei, uma vez determinado seu conteúdo.

Como lei porque, após determinado seuteor, é ou não aplicado segundo a regra deconflito, portanto o direito nacional mandafazê-lo. Com efeito, a inaplicabilidade (emcaso de força maior, por exemplo) da leiestrangeira está a indicar tanto a excepciona-lidade de sua aplicação, como o seu trata-mento como se fora um fato, que o juiz decideignorar por julgá-lo inaplicável à espécie. Eisso nunca pode ocorrer em relação ao direitointerno.

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Isso explica também porque, ao aplicaro direito estrangeiro, o juiz não o deveriainterpretar, mas, isso sim, adotar a interpre-tação que lhe é fornecida, observando-o,como dizia W. Goldschmidt, como se foraum sociólogo, de fora do mesmo.

Como doutrinava Batiffol, há na lei umelemento imperativo e um fator racional (ou,como ensina Miguel Reale, o direito é fato,valor e norma), sendo que o elementoimperativo (a norma) estrangeiro é abando-nado, deitado fora, subsistindo apenas oelemento racional, o fato e valor, deixando odireito estrangeiro, então, como

“un ensemble de propositions généralesapplicables à des cas particuliers, et le jugeopérant rationnellement, le cas échéant,comme il ferait pour la loi française, maisdans la mesure seulement où il n’existeraitdéjà à l’étranger une interpretation ou deséléments de solution qu’il ne pourrait queconstater”.

Dessa forma, sem negar que a lei estran-geira é lei sob a soberania do Estado que aformulou, em face do juiz estrangeiro – porexemplo, o nosso –, ela não constitui umimperativo em si mesma, pois não emana doEstado donde decorre a jurisdição do foro.Trata-se, então, como acentuava Batiffol, deuma questão de inoponibilidade e não denatureza jurídica da norma.

O exame de sua aplicação concreta nosconfirma a validade dessa formulaçãoteórica.

Segundo Baptista Machado11,“o direito estrangeiro a ter em conta,para efeitos de aplicação no Estadodo foro, é aquele que for criado pelasrespectivas fontes formais, isto é,através dos modos ou processos comotais reconhecidos pelo ordenamentorespectivo. Se este ordenamento reco-nhece o costume como fonte do direito,o tribunal local aplicará as normasconsuetudinárias estrangeiras. Senessa ordem jurídica vale o princípiodo ‘stare decisis’, se nela vigora umdireito de formação jurisprudencialcomo o ‘case law’ anglo-saxônico,

também o juiz do foro terá de se ateràs decisões anteriores dos tribunaisestrangeiros com força de precedentes”.

1.2. Aplicação concreta do direitoestrangeiro no Brasil

Ao aplicar o direito estrangeiro, então, ojuiz do foro, por coerência e obedecendo àregra de conflito, deverá aplicar o direitoestrangeiro interpretando-o na conformidadedas regras de interpretação daquele direito.Isto é, deve obter, tanto quanto possível, aprova do seu teor exato, como interpretadonos tribunais. Para a compreensão dodireito estrangeiro, não basta – como sepensa correntemente – o texto frio de umanorma qualquer, traduzida (quase sempremal) por algum tradutor juramentado ououtro escriba.

Não. É preciso compreender e ter bempresente que a aplicação é do direitoestrangeiro, e não de uma regra avulsaextraída de lá, e inserida no direito do foro.Para clarificar bem esse aspecto e reforçar oargumento, basta atentar para o fato de queas chamadas leis uniformes aplicam-se demodo diferenciado de país para país, de talmodo que o procedimento da uniformizaçãodo direito vem sendo abandonado exata-mente por isso 12. Outro exemplo, tambémclássico, é o dos direitos belga e francês,onde o mesmo texto, o Code Civil, vigora,quase sem diferenças. Entretanto, é aplicadocom interpretações diferentes, de regrasformalmente idênticas. Veja-se, por exemplo,a disposição relativa aos testamentoshológrafos (art. 970), em que, na França, a dataerrada é causa de nulidade e, na Bélgica, não.

Mas, como em direito, repito, nada ésimples, alguém perguntará: e se a jurispru-dência do país cuja lei se aplicará divergir?Não cabe uma terceira interpretação. Émelhor a que for dominante. Predomina aque for apoiada pela doutrina, se todasforem do mesmo peso.

Como ensinava Luiz Antônio Severo daCosta,

“a interpretação da lei estrangeiradeve ser feita no estado de espírito

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dessa legislação, pois os termos, osconceitos e os institutos jurídicos têmo sentido e conteúdo que ali lhe sãodados”13.

A prova do direito estrangeiroChega-se, então, ao problema da prova

do direito estrangeiro. Como bem explicaMaristela Basso14:

“O juiz não é obrigado a conhecera lei estrangeira, daí pode exigir dequem a invoca a prova do texto e davigência (LICC art. 14).”

A prova se fará pelos meios admitidospelo CPC, ou por convenções internacionaisde que o Brasil é parte15, por exemplo ovetusto Código Bustamante16, que dispõesobre a matéria no seu art. 409:

“a parte que invoque a aplicação dodireito de qualquer Estado contratanteem um dos outros, ou dela divirja,poderá justificar o texto legal, suavigência e sentido mediante certidão,devidamente legalizada, de doisadvogados em exercício no país decuja legislação se trate”.

No artigo seguinte, dispõe ainda que:“na falta de prova ou se, por qualquermotivo, o juiz ou o tribunal a julgarinsuficiente, um ou outro poderásolicitar de ofício pela via diplomática,antes de decidir, que o Estado, de cujalegislação se trate, forneça um relatóriosobre o texto, vigência e sentido dodireito aplicável”.

Havendo, ainda, a obrigação legal decada Estado parte nesse tratado, decorrentedo artigo 141,

“ministrar aos outros, no mais breveprazo possível, a informação a que oartigo anterior se refere e que deveráproceder de seu mais alto tribunal, oude qualquer de suas câmaras ouseções, ou da procuradoria geral ouda Secretaria ou Ministério da Justiça”.

A interpretação do direito estrangeiroA referência, nos textos citados, ao direito

alegado ou invocado por uma parte não quer

dizer que o juiz não deva aplicar, de ofício,o direito estrangeiro. A aplicação deste écompulsória, e decorre da regra de conflito.

Como diz Baptista Machado:“é esta também a orientação actual-mente dominante em diversos outrospaíses: o juiz deve conhecer e aplicaroficiosamente o direito estrangei-ro...(...) De igual modo a doutrinalargamente dominante vota decidida-mente no sentido da aplicação exofficio do direito estrangeiro e daadmissibilidade de um recurso decassação ou revista para o supremoTribunal com fundamento em viola-ção, falsa interpretação ou incorretaaplicação de tal direito”17.

No Brasil, ocorre o mesmo que emPortugal, pelo que a lição do mestre deCoimbra vale para nós. Aliás, o direito a esserecurso é assegurado pelo artigo 412 doCódigo de Bustamante, e foi reconhecido empelo menos uma decisão do STF18.

Entretanto, a regra do art. 23, 2, do CódigoCivil Português não tem equivalente emnosso direito. Dispõe essa norma que, “naimpossibilidade de averiguar o conteúdo dalei estrangeira aplicável, recorrer-se-á à leique for subsidiariamente competente”.

No direito francês, o juiz, sem maiordificuldade, aplica, no lugar do direitoestrangeiro desconhecido, o seu.

O problema das lacunasAí ocorre o problema clássico das

lacunas do direito. Como vimos, o juizbrasileiro, obedecendo a norma de conflito(LICC – art. 14; RISTF – art. 115-I, c/c. 116;CPC – art. 337), não conhecendo a leiestrangeira, mandará que quem a invocou aprove – mas também, por dever de ofício,deverá determiná-la para fazer sua aplicação.

A lacuna eventual deve ser supridasegundo o artigo 4º da LICC19?

Pode-se admitir que sim, tendo em vistaa coerência do sistema, pois a regra aparececom pequenas variações formais em outrostextos – por exemplo, no CPC, art. 129, noC.Co., art. 291, na Lei dos Juizados Especiais,

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art. 6º –, sendo então o preenchimento dalacuna de ser feito, segundo estabelecidopelo STJ:

“A interpretação das leis é obra deraciocínio, mas também de sabedoriae bom senso, não podendo o julgadorater-se exclusivamente aos vocábulosmas, sim, aplicar os princípios queinformam a normas positivas”20.

Preciosa essa decisão, que, aliás, refleteem nossos dias a sabedoria de Cícero,segundo o qual, na decisão, a ratio prudentispredomina sobre aequitas não a qualificandocomo apenas fruto da razão e do conheci-mento humanos21.

Por isso mesmo já dizia Ruy Cyrne Limaque:

“Não é impossível pois que aremissão de Direito InternacionalPrivado depare, à relação jurídica ‘inhypotesi’ regra jurídica, revelada, noordenamento jurídico estrangeiro, poranalogia ou pelo recurso aos princí-pios gerais de direito”22.

2. Obstáculos à aplicação do direitoestrangeiro

O propósito expresso das regras deconflito, como vimos, é a indicação dodireito aplicável a determinada situação,nacional ou estrangeiro. A sua atuação,entretanto, vê-se tolhida em certos casos,quer por princípios implícitos ao sistemalegislativo, quer por disposições explícitas.

É verdade que, no primeiro caso, essesprincípios (e não a sua aplicação prática)podem estar enunciados em alguma regra –como é o caso do art. 17 da Lei de Introduçãoao Código Civil – de caráter geral, ou seremaplicados por analogia, como ocorria, emrelação à Ordem Pública, no antigo CódigoCivil Português. De qualquer modo, elesestão integrados em cada sistema jurídico.Aí desempenham o papel dos “anticorpos”,são instrumentos do seu mecanismo imuno-lógico de defesa, contra corpos estranhos aosistema ou ao seu uso indevido. São asnoções de fraude à lei e a ordem pública.

De outro lado, há manifestações expressasdo legislador, em que este indica certassituações às quais não se aplicam as regrasde conflito e, por conseqüência, este nãomanda aplicar o direito estrangeiro. E outrashá em que, aplicada a regra de conflito, estaé expressamente afastada em favor do direitonacional; são exemplos o “interesse nacio-nal lesado” ou aqueles decorrentes da reci-procidade.

Por último, há casos em que a regra deconflito é inaplicável – e por isso o recursoao direito estrangeiro é impossível –, comoocorre com os institutos desconhecidos enaquelas situações em que há impossibili-dade de determinar o elemento de conexão.

Seguindo esse roteiro, examinaremos,sumariamente, cada um dos aspectos apon-tados.

2.1. As exceções implícitas na legislação

Como se disse há pouco, há princípiosinerentes a todo sistema jurídico que lhepermitem rejeitar os elementos que entramem choque com suas concepções.

Duas são as maneiras pelas quais seopera esse repúdio: por meio das exceçõesde ordem pública e da fraude à lei. Exami-naremos sucessivamente, uma e outra.

Ordem públicaHistoricamente, tem sido atribuído a

Savigny, em 1845, ter enunciado o princípioda ordem pública, trazido à luz o mecanismode sua atuação. Trata-se de equívoco, comumna doutrina brasileira, que foi desfeito peloProf. Jacob Dolinger, que deu a Story o lugarque lhe cabia como aquele que primeiro –em 1843 – enunciou a problemática daordem pública. Bem se vê que é – em relaçãoàs regras de conflito – descoberta jurídicanova.

O mestre do Rio de Janeiro, em mono-grafia clássica sobre a evolução desseconceito23, com precisão afirma ser “prin-cípio indefinível e de efeitos imprevisíveis”.A doutrina nacional, Strenger, Tenório,Batalha, Valladão, Amilcar de Castro, éconcorde e uniforme em que não se pode

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definir a ordem pública. No exterior, omesmo ocorre. Battifol citava inúmerosautores que haviam-se recusado a definiresse fenômeno, ou que haviam naufragadonos recifes sem chegar ao bom porto dadefinição.

Mas nem por indefinível o conceito estáfora de nossa compreensão. O que é impor-tante é buscar suas características e finali-dade, pois daí decorre sua compreensão.

CaracterísticasCaracteriza-se a ordem pública pela sua

dinâmica histórico-geográfica: ela é uma emdeterminado momento, para no momentoseguinte deixar de ser a mesma. Exemplogritante é o divórcio, instituição que forneciafarta messe de jurisprudência da SupremaCorte, em matéria de sentenças estrangeirasa que se recusava o exequatur em nome doprincípio da indissolubilidade do matri-mônio, antes inscrito na Constituição. Hoje,desparecida a proibição constitucional, nãocabe mais a exceção de ordem pública nessecaso. Mas, se o divórcio era inadmissível àordem pública brasileira, não o era nasistemática jurídica do Uruguai, nossovizinho próximo, na do México, ou na dosEUA. Varia, assim, no espaço e no tempo.

Além dessas características de mutabili-dade (no plano do tempo e do espaço),apresenta a ordem pública o princípio dasua gradualidade.

Ela é noção que se aplica gradualmente,medida pela sensibilidade do juiz diante daantinomia entre a lei ou a decisão estrangeirae o nosso sistema jurídico. Daí ser umconceito amplo, protegido quer pelo direitointerno, quer pelas regras de Direito Inter-nacional Público. Podemos lembrar aexistência de certos princípios não-escritosde Direito Internacional Público que impe-dem, negam eficácia a tratados que colidemcom eles.

Em seguida, a noção de ordem públicaapresenta as características de operar emprimeiro grau, quando se respeita a aplicaçãodo direito estrangeiro no momento da ope-ração da regra conflitual, e em segundo grau,

ao se negar a execução de atos estrangeirosque com ele choquem. E essas característicasse integram às suas finalidades.

FinalidadeTal como no mecanismo imunológico

dos organismos vivos, opera a ordempública pela rejeição dos corpos estranhosque possam afetar o equilíbrio do sistemaem causa.

Trata-se, à evidência, de um mecanismodefensivo, e é essa a sua finalidade. O que aordem pública visa defender? É questão quesó comporta uma resposta, de ordem geral:a coerência do sistema jurídico. Essacoerência decorre de uma situação social queo sistema incorpora e tenta reger, deve reger,operando, nas palavras do Prof. Dollinger,como “reserva mais aguerrida no sentidodo isolamento jurídico de cada sistemanacional”.

Phillipe Mallaurie, o grande civilistafrancês, de quem também tive a ventura deser aluno, entendia que a ordem pública erajudiciária ou legislativa, segundo a formacomo operava.

Mas essa distinção se apaga se encarar-mos a “finalidade da mesma, que explica oporquê de sua existência. Entretanto, areferência que fez é útil pela lembrança daconfusão em que certos autores incidiram: ade crer que há algo em comum entre as leisimperativas e a ordem pública. Essa sedesfaz com a consideração de qual a suanatureza.

Natureza da ordem públicaHá leis imperativas, a que certa termino-

logia de direito administrativo, e em geraldo direito privado interno, chama de “leisde ordem pública”. Mas essas leis não são omesmo. Na realidade, encontramo-nos napresença de um princípio, o mesmo queinspirou o legislador a editar essas leis.Portanto, a ordem pública antecede àsnormas escritas: ela é fundamento da ordemjurídica.

Foi por ignorar esse aspecto fundamentalde que há um princípio geral – o da ordem

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pública – que integra o sistema que certosautores foram levados ao naufrágio na ten-tativa de sua definição ou ao fracasso, naenunciação do que seria “de ordem pública”.Ora, sendo um princípio, assente nas ori-gens do sistema jurídico, confundindo-se coma concepção que o grupo social tem do di-reito e que o Estado tem de sua organização,é fácil ver que não se a pode definir. Nem sepodem elencar regras de ordem pública, oucasos em que ela opera, de modo exaustivoou permanente. Qualquer enunciação seráfalha: ou porque casos novos podem surgir,ou porque o conceito evoluiu. Ele é amebiano.

Examinada, embora de modo perfunctó-rio, a ordem pública, cabe ver a noção defraude à lei.

A fraude à leiIntimamente aparentada à noção de

ordem pública, não se confunde com ela. Afraude à lei é reconhecida e a exceção incideno momento da decisão judicial sobre oexequatur ou sobre o cumprimento de um atoemanado do exterior. Ela afasta a aplicabili-dade da lei indicada pela regra de conflitos,porque o eloqüente de conexão ou a situaçãoem que se acha são fraudulentos.

A noção de fraude vem do DireitoRomano e suas raízes são remotas. Nodireito internacional privado, o caso clás-sico, exemplo de escola apontado pormuitos, é o do divórcio da Princesa deBeaufremont, ainda hoje critério de decisão,precedente respeitado na Cassação Francesa.

É noção menos universal que a de ordempública: desconheceram-no, por exemplo, osdireitos da Common Law nos EUA (comexceção da Louisiana) e na Grã-Bretanha,onde o problema é atacado por outros meios.

Há dois aspectos da exceção de fraude àlei que merecem nossa atenção mais próxima:o conceito e a sanção.

ConceitoBernard Audit, em sua monografia sobre

a matéria, lembrava “que, para que um atoseja sancionado como de fraude à lei, épreciso que a lei seja ignorada, isto é,

fraudada”. É justamente aí – na aplicaçãode uma lei que não cabia, incompetente,mercê de manobra dos interessados –, quereside a fraude.

A noção de violação da lei é que motivao procedimento da rejeição.

Mas há confusões. Em um julgamentode exequatur, “no caso Weiller”, a CassaçãoFrancesa incorreu numa delas. Mme.Weiller, casada com um francês, ela tambémfrancesa, obteve um divórcio em Reno,Nevada. Sabe-se que lá o divórcio por mútuoconsentimento é admitido (ou o é comprocedimento que resulta no mesmo efeito).Ao examinar o pedido, recusando-lheguarida, a Cassação negou-o, em razão das“condições artificialmente criadas pelaDame Weiller, tendo em vista substituir àlei francesa sobre o casamento, a aplicaçãopor um tribunal incompetente, permitindo-lhe repudiar seu marido sem um debatesério”. O acórdão falava, nos seus conside-randa, em efeitos visados por Mme. Weiller.

Com razão, a doutrina atacou essefundamento, pela voz autorizada de Fran-cescakis, indagando: como saber qual oefeito visado?

Realmente, é impossível, ou haveria, des-de logo, um pré-julgamento. Portanto, o efeitovisado pelas partes não é a pedra de toque.Qual seria, então?

É na associação à intenção, da prova doefeito alcançado, que está a resposta. É naviolação concreta da Lei (em decorrência doartifício usado) que deve repousar a certezado juiz ao decidir.

E quando se viola a lei?Não é, como já vimos, quando se almeja

violá-la: é quando essa violação ocorre pelanão-aplicação da lei, quando todos oselementos para essa estão reunidos, e sãoalterados e falseados.

Assim, a noção de fraude à lei exige certasimetria entre a solução dada pelo juiz ouautoridade estrangeira e a que seria aplicadanacionalmente. É fácil de compreender:porque, para que essa simetria ocorra, umasituação é criada artificialmente, e por meiode um falso conflito de leis provoca-se a

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aplicação de uma lei que não seria acompetente; e, além disso, o interessadoprocura exercer os direitos daí decorrentes.É como se alguém mudasse a sinalizaçãonuma estrada para levar o viajante até outrolugar, que lhe interesse.

Assim, conceituada a fraude à lei, épreciso ver quais suas conseqüências.

Conseqüências da fraude à leiAssentado que a aplicação da exceção

da fraude à lei passa pela determinaçãoprévia de que a indicação da lei aplicávelfoi fraudada, resta saber a oportunidade dasanção e o modo como ela opera.

No tocante ao primeiro aspecto, cabelembrar que nem toda fraude à lei é punível.É ao juiz que compete decidir se aplicará asanção ou não.

Tal como ocorre com a Ordem Pública, ojuiz tem certa latitude decisória nestamatéria.

Assim, debate-se na doutrina – e asrespostas não são convincentes – se só afraude à lei nacional do juiz deve serreprimida, ou também a fraude à outra lei.A vexata questio aproxima-se, na sua solução,à da interposição da exceção de ordempública no tocante às leis financeiras oufiscais de outro país, para lembrar umexemplo.

A oportunidade da sanção então residena vontade (informada pela formação) do juiz.

Já no que se refere ao modo, é precisodeterminar antes que a fraude ocorreu,mediante a busca da lei aplicável (efetiva-mente) ao ato. Trata-se de procedimentoindireto, e não imediato como ocorre no D.I.Público.

A sanção é a ineficácia do ato fraudu-lento, tal como ocorre com aquele queinfringe a ordem pública. Ineficaz porque ojuiz não pode anulá-lo sem investir sobre acompetência alheia.

Isso relaciona-se com a problemática dafraude à lei estrangeira – e o caso “Mancini”,na Cassação Francesa, é um bom exemplode como isso ocorre. Mancini, cidadão daItália, que não admitia o divórcio; a esposa

naturalizou-o francês e requereu seu divórcioneste país. Após decisões contraditórias, em1º grau e na apelação, a Cassation admitiudar efeito ao divórcio francês – guardando-se, porém, de afirmar ou negar à fraude odireito italiano, porque entendeu que ascondições para a naturalização da leifrancesa foram preenchidas regularmente.

Assim, os efeitos da fraude à lei não sãobilaterais, mas vinculam-se ao sistemajurídico do juiz.

Porém, como já se disse, não só a ordempública e a fraude à lei afastam a aplicaçãodo direito estrangeiro. Há outras hipótesesem que é determinado expresso, na lei, oafastamento.

2.2. As exceções explícitas na legislação

Há casos em que ocorre uma vocaçãosubsidiária – porém inafastável, para a lexfori – da aplicação de suas regras. Elasdecorrem da norma de conflito prever areciprocidade ou da presença de disposiçõesque protegem o chamado interesse nacionallesado.

ReciprocidadeO princípio da reciprocidade é muito

conhecido, e tanto é combatido comodefendido com ardor.

Os que combatem, como Haroldo Va-ladão, afirmam ser ele fator de atraso naevolução do direito, e os que o defendemafirmam justamente o contrário: que areciprocidade força os demais países aconceder mais direitos aos estrangeiros,para que deles possam se beneficiar seusnacionais no exterior.

Há boas razões de ambos os lados, epode-se crer que é o peso relativo do paísque estabelece a realidade ou a eficácia dorecurso à reciprocidade, e que fará com queela atue positivamente num ou noutro sen-tido.

O mecanismo da reciprocidade é simples:a solução indicada pela regra de conflito sóserá aplicada se, no outro extremo, ela o fosseaos nacionais do outro país, o do julgadorou o do legislador.

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É importante anotar aqui que, ao contráriodos institutos antes estudados, não ocorreuma negativa de vigência à solução apon-tada pela regra de conflitos. Aqui é esta queé afastada, pela condição de reciprocidade.

Interesse nacional lesadoA regra do interesse nacional lesado, ou

melhor colocado, da proteção ao interessenacional lesado, opera da mesma forma quea da reciprocidade: afasta a aplicação daregra de conflito, determinando a aplicaçãoimediata da lei nacional.

Alguns exemplos a explicam: a normado art. 5º, XXXI, da Constituição, ecoado peloart. 10, § 1º, da Lei de Introdução ao CódigoCivil, é um deles.

Outro, o do art. 42 do Decreto-Lei nº 2.044/1908, que em matéria cambial dispõe que:

“Tendo a capacidade pela leibrasileira, o estrangeiro fica obrigadopela declaração que firmar, sem em-bargo de sua incapacidade pela lei doEstado a que pertence”.

É interessante notar que, no mecanismoda primeira norma citada, avaliam-se,primeiro, as conseqüências advindas daaplicação dos direitos em conflito e, após,decide-se pela proteção ao direito nacionallesado. A mesma coisa ocorre com a normarelativa à responsabilidade civil – no tocanteà indenização – do direito alemão.

Já no caso da Lei Cambial, não há sequernecessidade de exame da lei aplicável, queé afastada desde logo cedo pelo fato de osignatário da declaração ser capaz pela leibrasileira.

Há outros casos de afastamento da leiestrangeira, que não cabem nas categoriasapresentadas; serão vistos na conclusão.

3. ConclusãoNão se aplica, também, a lei estrangeira,

por razões paralelas à da ordem pública,quando o instituto não tiver correspon-dência no direito nacional. Muitos enten-dem ser este um caso de ordem pública, masnão é doutrina assentada. Na dúvida, émelhor colocá-los à parte, até porque os

fundamentos da ordem pública podem nãoestar presentes. Se no caso da poligamiaestão, no caso de sociedade unipessoalpodem não estar. Assim, os tribunaisitalianos sempre reconheceram a existênciados Anstaltlichsteinianos, mas o de Venezanão, por muito tempo.

Pode também ocorrer a impossibilidadede se empregar um ponto de localização, umacircunstância de conexão: é o caso de nacio-nalidade em relação aos apátridas, ou a pes-soas cuja lei nacional seja indeterminável.

A impossibilidade de se estabelecer umacircunstância de conexão ou a inexistênciada figura jurídica definida pela lei estran-geira tem conseqüências jurídicas diferentesdos casos de ordem pública e fraude à lei:não há a ineficácia, mas sim a impossibili-dade jurídica de se abranger a situação daforma indicada pela regra de conflitos, aensejar a aplicação da lei nacional.

Assim, a regra de conflitos, como toda aregra, comporta exceções: exceções à apli-cação do direito por ela indicado, ou a suaprópria aplicação. Essa é uma outra maneirapela qual o problema poderia ser abordado.

Essas exceções vêm, com desculpas pelochavão, confirmar a regra de aplicabilidadesdo direito estrangeiro. Servem-lhe deelemento moderador, reforçando a validadedo sistema multissecular que busca antes detudo a justiça, a certeza do direito e a estabili-dade das relações jurídicas internacionais.

A balança da justiça aí coloca em seuspratos, de um lado, a autoridade, visandoassegurar a justiça nas relações interpes-soais, e, de outro, a vontade dos indivíduos,procurando tirar o melhor partido de sualiberdade. E é o equilíbrio dessa balança quetodos nós buscamos.

Notas1 Lições de Direito Internacional Privado, 3ª ed.

Coimbra: Almedina, 1985, p. 242-3.2 Halsbury’s Laws of England, 2ª ed. V.6; Ho-

lland “Jurisprudence”, 2ª ed., p. 317, Beale, Caseson the Conflicts of Laws, III, § 1er e R. 1937.2; Goo-drich, Handbook on the Conflict of Laws, 1927, p.

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10; v. Wigny, Essai sur le droit international privéamericain, 1932, pp. 163 e s.; B. Hanotiau, Le droitint. privé américain, 1979, pp. 7 e s.; Audit, Tra-vaux du Com. Fr. de droit int. privé, 1977-79, p. 29.A idéia, no entanto, sob a influência de Beale, tinhainspirado o primeiro “Restatement”. Ela tinha sidoindicada, na França, por Vareilles-Sommières. Syn-tèse du droit int. privé, I, n. 40 e s; V. contrariamen-te Müller, Der Grundsatz des wohlerworbenen Re-chts, Hamburgo, 1935; os autores americanos sãocontrários desde a crítica de Cook, The logical andlegal bases of the conflict of laws, 1942; sobre asligações da doutrina com o caráter fechado da com-mon law, v. H. Muir Watt, Quelques remarques surla théorie anglo-américaine des droits acquis, R.1986, 425, 429.

3 cf. Cook e Lorenzen; id. Maury “Règles géne-rales de conflit des lois”, n. 48; M. Wolff, “PrivateInternational Law”, 2ª ed. 217; R. De Nova, Leconcezioni statunidensi dei conflitti di leggi,Valladolid, 1964.

4 Ele ensinava, então, numa postura positivis-ta, ou quase, que, se as regras de DIP são substan-cialmente internacionais, elas seriam formalmenteinternas (“Studi critici di diritto internazionaleprivato”, 1898), mas sua posição é diferente no seucorso, 1925.

5 “Corso di diritto internazionale privato”, 1925.6 R. Ago, Curso da Academia de Direito Inter-

nacional da Haia, 1936, IV, p. 302.7 Introduzione al diritto internazionale privato,

in Comentari e studi, IV, 1952, p. 484.8 Essa é a posição de Fedozzi, op. cit. p. 157;

Pacchioni, Elementi di diritto int. privato. 1931, p.116-118, entre outros.

9 Cf. Loussouarn e Bourel, n. 239; Maury, op.cit., n. 59.

10 V., principalmente, Maury Trav. du Comitéfr. de droit int. privé, 1950.97 Döle, R. 1955.233;Zajtay. Contribution à l’étude de la condition de laloi étrangère en droit int. privé français, 1958;L’aplication du droit étranger: science et fictions,Rev. Int. dr. comp., 1971.49, Motulsky, Mél. Sava-tier, p. 681; Giuliano, Rev. Int. du dr. comp., 1962.5;Yasseen, Cours du l’Acad. de dr. int., 1962; Vitta,Dir. int. privato, I, 224; cf. Cyrille David, La loiétrangère devant le judge du fond, 1965, que, aomesmo tempo em que evita a aproximação comum ponto de fato, constata um elemento específicono caráter estrangeiro da regra.

11 op. cit. p. 243-4. O direito português, nesseaspecto, dá soluções idênticas ao nosso.

12 Cf. BAPTISTA, Luiz Olavo. “The UnidroitPrinciples – A Possible Model for the Harmonizati-on of International Contract Law in the Context ofthe Regional Integration of the Americas, with Spe-cial Reference to Mercosur”, Congreso Interameri-cano – Valência, Venezuela – 6-9 Nov. 1996.

13 Da aplicação do direito estrangeiro pelo juiznacional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1968, p. 35.Nesse mesmo sentido GOLDSCHMIDT, Werner.Sistema y filosofia del derecho internacional priva-do, 2ª. ed. Buenos Ayres: EJEA, 1952, v. 1, p. 368.

14 Da aplicação do direito estrangeiro pelo Juiznacional – o direito internacional privado à luz dajurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 60.

15 No caso do direito francês, por exemplo, ainformação solicitada proviria da repartição doMinistério da Justiça denominada “Office de légis-lation étrangère et de droit international”. No casode outros países, há instituições privadas reconhe-cidas como fonte de informação; na Alemanha, oMax Plank Institut für auslandisches und interna-tionales Privatrecht”, na Itália, o Istituto di dirittocomparato e di studi legislativi, de Roma, na Ho-landa, o Institut Juridique International.

16 Promulgado pelo decreto 18.871 de 13 deagosto de 1929. O tratado foi firmado quando da6ª Conferência Internacional Americana, reunida em1928 em Havana, e resultou de esboço do JuristaCubano Sanchez de Bustamante.

17 Op. loc. cit. p. 247.18 Recurso extraordinário n. 93.131-MG. Rela-

tor: Min. Moreira Alves (RTJ 101:1149).19 “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá de

acordo com a analogia, os bons costumes e os prin-cípios gerais de direito”.

20 RSTJ 19/461, maioria.21 De Legibus, 1, 19: “nam ut illii aequitatis, sic

nos delectus vim in lege ponimus” e 2, 8: “hancigitur video sapientissimorum fuisse sententiam,legem neque hominum ingeniis excogitatam necscitum aliquod esse populorum”.

22 Lacunas e conflitos de leis, Porto Alegre: Su-lina, 1963, p. 17.

23 A evolução da Ordem Pública no Direito In-ternacional Privado: Tese Cátedra, Faculdade deDireito UERJ – Rio de Janeiro: Ed. Universitária,1979.

Referências bibliográficas conforme original.

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I - Introdução

A conveniência de prevenir ou repa-rar as violações à Constituição é defendi-da pelos tratadistas pátrios e estran-geiros1. De um modo geral, os sistemasconstitucionais modernos e contempo-râneos, fundados numa Lei FundamentalSuprema, base de todo o ordenamentojurídico, centrados em constituições rígi-das, admitem o controle de constituciona-lidade.

É o controle de constitucionalidade umdos princípios do Estado Democrático deDireito, que se funda na legitimidade de umaConstituição rígida, emanada da vontadepopular e dotada de supremacia.

Notas sobre o controle preventivo deconstitucionalidade

Anna Candida da Cunha Ferraz

Anna Candida da Cunha Ferraz é Professo-ra Associada da Faculdade de Direito da Uni-versidade de São Paulo, Procuradora do ESP –Ex-Procuradora-Geral do ESP.

SumárioI- Introdução. II- O controle preventivo de

constitucionalidade: 1. Conceituação. 2. Objeti-vo do controle. 3. A presença constitucional docontrole preventivo de constitucionalidade. 4.Notas características do controle preventivo. 4.1Modalidades do controle preventivo. 4.2. Pra-zos. 4.3. O objeto do controle preventivo de cons-titucionalidade. 4.4. O processo do controle pre-ventivo de constitucionalidade. 4.5 Os efeitosda decisão em sede de controle preventivo deconstitucionalidade. 5. O controle preventivo deconstitucionalidade no Brasil. 5.1. O controle deconstitucionalidade preventivo político. 5.2. Ocontrole de constitucionalidade preventivo ju-risdicional. III- Considerações finais: as vanta-gens e as desvantagens do controle preventivode constitucionalidade.

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Certo é mencionar que, embora ainda setenha presente a discussão sobre a compa-tibilização do controle de constitucionali-dade com a teoria democrática, ou, mais pre-cisamente, sobre a legitimidade do controlede constitucionalidade exercido sobre as leispor órgão estranho ao Legislativo2, o fato éque a adoção de sistemas de controle deconstitucionalidade permeia praticamentetodos os estados constitucionais3.

Se não se questiona, portanto, a necessi-dade e a conveniência do controle de cons-titucionalidade, certo é que acesa polêmicase trava quando se busca organizar ou ins-trumentalizar o exercício do controle deconstitucionalidade: que métodos de con-trole adotar, que método se mostra mais ade-quado ao Estado Democrático de Direito,qual deve ou pode ser o objeto do controle,que órgãos devem exercer o controle, queefeitos deve ou pode o controle de constitu-cionalidade produzir, qual o método maiseficaz, como se coloca, nesse contexto, a in-terpretação constitucional, quais os limitesda jurisdição constitucional. Essas sãoalgumas questões que o tema do controlesuscita.

De outro lado, convém recordar que, hoje,mais do nunca, a preocupação de se buscarassegurar a efetividade e o cumprimento daConstituição coloca o “controle de constitu-cionalidade” como um dos pontos centraisno plano do Direito Constitucional.Preocupam-se os juristas com a eficáciajurídica e social do documento constitucio-nal, sede normativa básica dos valores dasociedade. Como assegurar o efetivo cum-primento das normas constitucionais?Como “vigiar”, “fiscalizar” para que a nor-ma constitucional, fruto da escolha (presu-me-se) consciente dos representantes dopovo, seja observada? Nesse campo, por-tanto, situa-se a principal problemáticado “controle da constitucionalidade”: aefetividade da Constituição e a eficiênciado controle, eis os pólos de preocupaçãona temática.

II- O controle preventivo deconstitucionalidade

1. Conceituação

Como se sabe, por controle de constitu-cionalidade entende-se a verificação da ade-quação de qualquer ato jurídico comissivo(ou omissivo) à Constituição. Consiste, pois,o controle de contitucionalidade em verifi-car a conformidade ou a desconformidade,a adequação ou a inadequação do ato jurí-dico ou da omissão do poder público ante aConstituição, com o objetivo de, se descon-forme ou inadequado, sanar-se o vício e fa-zer prevalecer a Norma Fundamental4; ou,por outras palavras, busca-se, pelo controlede constitucionalidade, garantir que cadanorma e cada comportamento subordinadosà Constituição lhe sejam conformes5, e, sedesconformes, procura-se inutilizá-los.

Pressupõe, pois, o controle a existência deuma norma-parâmetro – a Constituição –,que funciona como o segundo termo da re-lação, sendo que o primeiro termo é repre-sentado por atos normativos (leis, leis dele-gadas, qualquer que seja o nome pelo qualsão reconhecidas nos diferentes ordena-mentos jurídicos, etc.) ou por comportamentos(uma obrigação de fazer, verbi gratia umanomeação pelo Presidente da República)ditados diretamente pela Constituição.

É que o controle de constitucionalidade,qualquer que seja a modalidade por ele as-sumida, implica o exame do ato ou compor-tamento em confronto direto com a Consti-tuição. Em tese, entre o ato em questão e aConstituição não existe norma interposta,ou, quando existe, tal norma não esgota ounão contém todo o fundamento do ato ou docomportamento que acaba por se fundar naprópria Constituição.

Entre as modalidades de controle, apon-ta-se o controle preventivo de constitucio-nalidade.

Caracteriza essa modalidade de contro-le o momento em que atua. Contrapondo-seao chamado controle sucessivo ou repressi-vo6, relaciona-se ao momento da formação dos

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atos ou dos comportamentos sob controle.Assim, o controle prévio é aquele que se exer-ce antes de concluído o processo de forma-ção do comportamento ou do ato, inclusiveno que pertine à sua efetiva execução7.

Destarte, em regra, é o controle que ope-ra antes que o comportamento ou o ato seaperfeiçoem8, tornem-se obrigatórios, exis-tentes e válidos e eficazes.

2. Objetivo do controle

Ponto relevante a ressaltar, segundogeneralizadamente aponta a doutrina9, é oobjetivo do controle preventivo, que, em ge-ral, significa interferência frontal no exer-cício da atividade normativa dos poderespolíticos.

O objetivo do controle preventivo é im-pedir, vedar ou dificultar a vigência de nor-mas indubitavelmente inconstitucionais; éevitar que um ato jurídico inconstitucional,especialmente uma norma inconstitucional,venha a ser promulgada e se torne válida eeficaz. Assim, essa modalidade de controleconstitui, em essência, um instrumento dedefesa da Constituição contra violações pri-márias, grosseiras e inequívocas, que justi-fiquem a fiscalização a priori.

Trata-se, destarte, de controle que incidesobre a criação da norma, diferentemente docontrole repressivo que incide para a des-truição de uma norma já posta.

3. A presença constitucional do controlepreventivo de constitucionalidade

O controle preventivo desponta comomodalidade de controle particularmente nasconstituições de pós Segunda Guerra Mun-dial (Itália, 1948; Alemanha, 1949; França,1946 e 1958), mas assume espaço significa-tivo nas constituições das décadas de 70, 80e 90, afora outras constituições10. Apresen-ta-se tratado, de modo expresso, na Consti-tuição de Portugal de 1976 (mantido, comalgumas alterações nas reformas posterio-res de 1982, 1989, 1992), num capítulo cujorótulo por si é bastante elucidativo: “Da fis-calização preventiva de constitucionalida-de” (art. 278). O modelo é seguido por algu-

mas constituições de Estados lusófonos,promulgadas nesta década11; é assimiladopela Constituição da Espanha de 1978 e seencontra, também, estampado em algumasconstituições de Estados, antigas colôniasfrancesas, que seguem o modelo francês.Jorge Miranda, examinando o tema, cita ain-da outros exemplos de constituições que es-tampam essa modalidade de controle12.

Releva assinalar que, pelos exemplos ci-tados, já se percebe que o controle preven-tivo de constitucionalidade convive maisdiretamente com o sistema parlamentaristade governo, que, a seu turno, adota o mode-lo concentrado de controle de constitucio-nalidade, em regra posto na competênciadas Cortes Constitucionais. É certo que va-mos encontrar algum tipo de controle pre-ventivo em constituições presidencialistas.Entre essas, merece menção expressa a Cons-tituição de Costa Rica. Embora dentro de umsistema presidencialista de governo, o mo-delo de controle de constitucionalidade ado-tado é o modelo concentrado atribuído a umaCâmara Especializada da Corte Suprema deJustiça, composta de sete magistrados elei-tos por maioria qualificada de 2/3 (dois ter-ços) de parlamentares13. Nas demais, comoveremos adiante, o controle prévio de cons-titucionalidade, além de estritamente limi-tado quanto ao seu objeto, apresenta-se, tam-bém, bastante diferenciado dos modelosadotados nos sistemas parlamentaristas.

4. Notas características do controle preventivo

4.1. Modalidades de controle preventivo

O controle preventivo apresenta-se emvárias modalidades, conforme o critério ado-tado para examiná-lo. Assim, é possível dis-tinguir o controle prévio externo e o interno;o controle preventivo político e o jurisdicio-nal; o controle que incide diretamente du-rante o procedimento de formação dos atosou comportamentos e o que incide após con-cluído tal procedimento, mas antes de o atose aperfeiçoar e produzir os seus efeitos nor-mais; o controle obrigatório e o facultativo eo controle prévio material ou formal; o con-

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trole total ou parcial; o puro ou o misto; ocolegiado ou o singular. Merecem exameparticularizado algumas dessas modalida-des de controle quando especialmente vol-tadas para o controle dos atos legislativosou normativos:

a) Controle preventivo externo ou interno O controle preventivo externo é o reali-

zado por órgão estranho àquele que produzo ato ou o comportamento sindicado. No querespeita aos atos legislativos, é precipua-mente o controle que incide sobre o projetode lei, nas suas várias fases, e é realizadopor órgão diferente do Poder Legislativo:exemplificando, é o controle atuado por umórgão jurisdicional propriamente dito, pelaCorte Constitucional, pelo povo ou peloExecutivo.

O controle preventivo interno, que incidetambém sobre os atos legislativos, é orealizado por órgãos e comissões do próprioPoder Legislativo durante a tramitação deum projeto de lei.

A modalidade de controle prévio maisfreqüentemente encontrada é o controleprévio externo, que incide sobre atos apro-vados pelo Legislativo e em vias de promul-gação. É o caso do veto do Poder Executivoa um projeto de lei (como ocorre em CostaRica) ou do controle atuado pelo ConselhoConstitucional na França, por força do quedispõe o artigo 61 da Constituição francesade 1958.

b) O controle preventivo quanto ao ór-gão: controle político e controle jurisdicional

O controle preventivo tanto pode seratuado por um órgão político, como por ór-gão jurisdicional. Via de regra, nos sistemasque adotam o modelo concentrado de con-trole atuado por um Tribunal Constitucio-nal, cumpre a esse órgão exercê-lo. É o casode Portugal, Itália, Angola14.

O controle preventivo atuado por órgãonão-jurisdicional, ou seja, o chamado con-trole político de constitucionalidade, talcomo indicado em Burdeau, é por exemploo veto, que permeia os sistemas presiden-cialistas. Aliás, Burdeau usa exatamente a

Constituição brasileira de 1934 para exem-plificar essa modalidade de controle.

A Constituição de Costa Rica, em seuartigo 125, habilita o Poder Executivo a aporveto a projetos de lei (com algumas ressalvas)fundado em motivos de inconstitucionali-dade. Interessante observar que essa Cons-tituição, diferentemente das demais que tam-bém adotam o veto executivo, determina que,quando a Assembléia Legislativa rejeita oveto, este deve ser remetido à Câmara Cons-titucional, que deverá resolver a questão emtrinta dias. Não é, pois, o veto superáveldefinitivamente pela Assembléia, como éusual nos demais s i s temas , f icando,destarte, sob a dependência do pronun-ciamento do órgão constitucional. Pode-seidentificar, nesse caso, a incidência do con-trole dito misto, que combina elementos docontrole político com o exercido pelo órgãojurisdicional.

A Constituição de Angola, de 1992, quesegue a de Portugal, admite a legislação de-legada em que não existe reserva absolutade legislação pelo Parlamento (art. 57),cabendo ao Tribunal Constitucional, àsemelhança de Portugal, exercer a fiscali-zação preventiva (art. 154), mediante reque-rimento do Presidente da República ou de1/5 de deputados.

Também a Constituição espanhola abri-ga o controle prévio a ser realizado pelo Tri-bunal Constitucional e que recai especial-mente sobre a ratificação de certos tratados(art. 95.2). Estende-se, todavia, tal controleàs leis em geral, por força da cláusula geralcontida no art. 161.1 “d”, que incorporou amodalidade na Lei Orgânica do TribunalConstitucional. Esse controle prévio inci-dente sobre as leis é rotulado de “forma ex-cepcional de controle”, conforme apontaCruz Villalon15, que o admite “como um malmenor”. “Um mal porquanto se trata da in-terferência no processo legislativo por partede um órgão estranho ao mesmo, aparecen-do como um “’veto constitucional’”16. Afo-ra isso, em Espanha, o Tribunal Constitu-cional exerce controle prévio sobre o projeto

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de Estatuto de Autonomia das comunida-des autônomas, que pode ser provocadopelo Presidente do Governo, pelo Defensordo Povo, cinqüenta deputados, cinqüentasenadores e pelos órgãos colegiadosexecutivos e Assembléias das ComunidadesAutônomas17.

c) Controle preventivo quanto aomomento

O controle preventivo pode incidirdurante o procedimento de elaboração doato ou após sua elaboração e antes de seuaperfeiçoamento.

Em Portugal, segundo Jorge Miranda18,não há sujeição automática de certos diplo-mas, nem uma pré-apreciação necessária detodos os diplomas. Para o exercício do con-trole, impõe-se a iniciativa do Presidente daRepública ou dos Ministros da República.A iniciativa exerce-se antes da ratificaçãoquanto aos tratados; quanto às leis e aosdecretos-leis, os diplomas referidos devemser remetidos ao Tribunal Constitucionalantes da promulgação das leis; e devem sersubmetidos ao controle preventivo, antes daassinatura, os decretos de aprovação de acor-dos internacionais e os decretos legislativosregionais ou decretos regulamentaresregionais. Interessante observar que, no casode o Tribunal Constitucional não se pronun-ciar pela inconstitucionalidade, tanto o Pre-sidente da República como o Ministro daRepública podem exercer o poder de veto,solicitando nova apreciação do diplomapela Assembléia respectiva ou comuni-cando-o ao Governo (art. 139º, 1 e 4, e art.235º, 4). Já, ao contrário, o exercício do “vetopolítico” preclude a iniciativa de fiscaliza-ção preventiva, salvo se houver modifica-ção do texto pela Assembléia, em segundadeliberação19.

d) Controle preventivo obrigatório efacultativo

Revelam as constituições vigentes que ocontrole preventivo pode ser obrigatório,exigível para certos diplomas, ou pode serfacultativo, isto é, provocado por iniciativadiscricionária de certas autoridadespúblicas.

Em regra, o controle preventivo é facul-tativo, tal como ocorre em Portugal, ondepode ser suscitado por órgão ou autorida-des políticas: o Presidente da República(quando a este cabe promulgar leis, decre-tos-leis – leis delegadas), os ministros deEstado, os Presidentes do Parlamento ou desuas Casas (art. 278º, 1 e 2).

Vale ainda observar que o Presidente daRepública, o Primeiro Ministro e um quintode Deputados podem requerer ao TribunalConstitucional a apreciação preventiva dequalquer norma constante de decretoenviado ao Presidente da República parapromulgação como lei orgânica.

A Constituição francesa abriga os doistipos de controle preventivo20: o obrigatórioe o facultativo21. De um lado, a Constituiçãofrancesa demanda, obrigatoriamente, o exer-cício do controle preventivo no caso das leisorgânicas e dos regimentos parlamentares. De-vem esses diplomas ser remetidos ao Con-selho Constitucional antes da promulgaçãoou publicação. Nesses casos, a promulga-ção fica suspensa pelo prazo em que o Con-selho deve-se pronunciar (1 mês ou 8 dias).O requerimento pode ser formulado peloPresidente da República, Primeiro Ministro,Presidente da Assembléia Nacional e doSenado e, mais recentemente, por 60 depu-tados. O controle preventivo é facultativo nocaso dos Tratados Internacionais quandoaprovados, mas não publicados. As mesmasautoridades retro-indicadas podem solici-tar o pronunciamento do Conselho Consti-tucional. Cabe ao Conselho Constitucionalexaminar a compatibilidade entre o tratadoe a constituição. No caso de negativa, a revi-são da constituição deve preceder à ratifica-ção do tratado22.

A Constituição de Costa Rica, como seviu, abriga também as duas modalidadesde controle prévio: o obrigatório e ofacultativo.

e) Controle preventivo material e formalTal como ocorre no controle repressivo,

o controle preventivo pode incidir sobre oexame do conteúdo material do ato em refe-

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rência à Constituição ou relativamente aoprocedimento formal que deve ser observa-do na sua elaboração.

Jean Gicquel aponta tais modalidades decontrole: o controle interno ou material da lei,que se opera por referência à Constituição, eo controle externo ou formal do texto, que seexerce tendo como parâmetro as regras pro-cedimentais introduzidas pela Constituição,em prol da racionalização da atividade par-lamentar23.

Ruben Hernandez Valle, analisando aConstituição de Costa Rica, aponta o con-trole formal de constitucionalidade ali exis-tente ao observar que, em Costa Rica, a “de-cisão da Câmara Constitucional somente seimpõe na medida em que ela estabelece aexistência de um procedimento inconstitu-cional no exame do projeto” considerado,quer se trate de reforma constitucional, querde um projeto de lei qualquer24.

4.2. Prazos

Essencial para o funcionamento adequa-do do controle preventivo é a fixação de pra-zos, seja para as autoridades requererem aapreciação do diploma pelo órgão compe-tente (controle facultativo), seja para provo-carem tal manifestação (controle obrigató-rio), seja para o órgão competente (TribunalConstitucional ou Conselho Constitucional)se pronunciar.

A eficácia do controle preventivo está,assim, ligada à celeridade da apreciação daquestão de constitucionalidade pelo órgãocompetente. A questão de prazo se torna tan-to mais necessária quando se percebe queesse controle barra a ação legislativa, impe-dindo a elaboração de um ato normativopelo poder competente, como se viu.

Releva notar que a fixação de prazos tan-to incide sobre a iniciativa do controle como,e principalmente, para a tomada de decisãosobre o mesmo pelo órgão competente.

Em Portugal, a provocação deve ser re-querida no prazo de oito dias a contar darecepção do diploma pela autoridade com-petente (art. 278º, 3). A vacatio deve ser pre-

vista no diploma, vale dizer, este tem deestabelecer que, antes de sua promulgação,transcorrerá o prazo para a interposição docontrole de contitucionalidade preventivo.O Tribunal Constitucional tem prazo devinte e cinco dias (que pode ser encurta-do por solicitação de urgência do Pre-sidente da República – art. 278º , 8) parapronunciar-se.

A vacatio estabelecida pelo próprio di-ploma, salienta Jorge Miranda25, não podefrustrar os poderes dos órgãos de iniciativae do Tribunal Constitucional, nem reduziro tempo para a fiscalização se exercer. Seisso ocorrer, a vacatio deverá ser consideradaprejudicada ou automaticamente pro-longada por efeito da norma constitucional.

De notar-se que a Constituição de Portu-gal prevê, de modo expresso (art. 278, 7), queo Presidente da República não pode promul-gar os decretos de lei orgânica sem que de-corram oito dias após a respectiva recepção,o que busca, exatamente, evitar a inviabili-zação do controle prévio por uma promul-gação célere, no dia imediato da recepção,por exemplo; também o Presidente da Re-pública não pode promulgar o decreto refe-rido antes do pronunciamento do TribunalConstitucional, nos casos em que a inter-venção deste órgão é requerida.

O artigo 61 da Constituição francesa de1958 estabelece que o Conselho Constitu-cional deve-se pronunciar dentro de um mêsa partir da provocação, sendo que, em casode urgência, esse prazo, por solicitação doGoverno, pode ser reduzido a oito dias. Nocaso do controle obrigatório das leis orgâni-cas, a provocação deve ser feita antes de suapromulgação, e a dos regulamentos parla-mentares antes de sua entrada em vigor (art.61). No caso das leis em geral, incluídascomo objeto do controle pela Emenda Cons-titucional de 1974, presume-se que o prazopara a provocação do controle deve ser omesmo que o prazo atribuído ao Presidentepara a promulgação da lei (art. 10).

Em Costa Rica, a provocação do contro-le prévio deve ser posta antes de a matéria

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receber votação definitiva, e a Câmara Cons-titucional tem um mês de prazo para resol-ver a questão.

4.3. O objeto do controle preventivo deconstitucionalidade

Usualmente, essa modalidade de con-trole incide sobre e no processo de criação denormas e, apenas raramente, sobre atos oucomportamentos diretamente derivados daConstituição.

Revela o estudo comparado que o objetoprincipal do controle preventivo são: a.1) asnormas ditas primárias, isto é, normas deri-vadas diretamente da Constituição 26. Nesserol de normas primárias, incluem-se as leisem elaboração pelo Parlamento ou os atosnormativos primários, originados, por reser-va constitucional, do Governo; a.2) as leisdelegadas, ou seja, sobre atos normativoselaborados pelo Governo mediante autori-zação do Parlamento; a.3) as normas cons-tantes de tratados internacionais; a.4) osdecretos regulamentares regionais (nos Es-tados que adotam o sistema administrativode divisão regionalizada, como ocorre emPortugal27; a.5) em alguns sistemas, talcontrole incide também sobre a reformaconstitucional.

Exemplificando:A fiscalização preventiva em Portugal,

disciplinada no artigo 278º, é bastante am-pla quanto ao objeto de controle. Incide so-bre qualquer norma constante de tratado in-ternacional, sobre decretos enviados ao Pre-sidente da República para promulgaçãocomo lei ou decreto-lei, sobre acordo inter-nacional remetido para a assinatura do Pre-sidente da República. Incide, ainda, sobredecretos regulamentares regionais e decre-tos legislativos regionais.

Em Espanha, o controle prévio incidesobre os tratados internacionais e sobre osprojetos de Estatutos de Autonomia (quedevem ser submetidos ao referendo popu-lar) e sobre as Leis Orgânicas. O primeiro éprevisto diretamente pela Constituição (art.95), e o segundo foi incorporado pela

LOTC28. Fernandes Segado, discorrendo so-bre o “recurso prévio” para declarar a in-constitucionalidade dos Estatutos de Auto-nomia, defende a validade da medida, ten-do em vista que seria irrazoável o gravís-simo problema que seria suscitado pela in-validação jurisdicional de uma norma emcuja elaboração participou o povo por inter-médio do correspondente referendo 29.

Na França, o Conselho Constitucionalexerce controle prévio sobre as leis orgâni-cas, antes de serem estas promulgadas; tam-bém exerce controle prévio sobre os regula-mentos parlamentares e suas modificações.Em ambos os casos, o fundamento constitu-cional está no artigo 61 da Constituição, sen-do que o Conselho Constitucional se recusaa examinar qualquer caso que envolva re-gulamentos parlamentares já em execução.Quando consultado com fundamento nomencionado artigo, o Conselho não pode-se recusar a examinar a questão30. Em refor-ma introduzida em 1974, o alcance do arti-go 61 foi ampliado para abranger tambémas leis em geral que, antes de sua promulga-ção, podem ser “deferidas” ao ConselhoConstitucional mediante solicitação do Pre-sidente da República, do Primeiro Ministro,do Presidente da Assembléia Nacional, doPresidente do Senado ou de sessentadeputados ou sessenta senadores31.

Costa Rica, que adota um sistema con-centrado de controle de constitucionalidadepor meio de uma Câmara especializada naSuprema Corte de Justiça, conforme se men-cionou, admite um controle prévio, como naFrança, porém em amplitude bem maior,segundo acentua Ruben Hernandez Valle32.O controle prévio obrigatório incide sobreprojetos de reforma constitucional ou de re-forma da lei relativa à jurisdição constitucio-nal, além de alcançar os projetos relativos àaprovação de tratados ou acordos interna-cionais; o controle facultativo pode ser mo-vimentado, mediante solicitação de dez de-putados, relativamente a todos os demaisprojetos de lei e aos textos de aprovação deatos ou contratos administrativos ou a revi-

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são do regulamento interno da AssembléiaLegislativa; a Corte Suprema de Justiça, oProcurador-Geral da República, o TribunalEleitoral também podem provocar controleprévio sobre projetos de lei que afrontem asnormas relativas à competência constitu-cional respectiva; finalmente, o Defensor doPovo também pode provocar o controle so-bre projetos de leis que entenda afrontososa direitos e liberdades fundamentais33.Anota referido autor a particularidade dosistema que permite controlar a constitucio-nalidade das regras interna corporis do Legis-lativo, sendo que, conforme indica, esse con-trole prévio – tanto o dos regimentos inter-nos da Assembléia como os relativos às re-visões constitucionais - somente incide sobreos vícios procedimentais.

4.4. O processo do controle preventivo deconstitucionalidade

Parece relevante mencionar que a disci-plina do processo de controle prévio, que sedesenvolve nos sistemas em que o controleé atribuído a um órgão constitucional espe-cífico (as Cortes ou Tribunais Constitucio-nais, ao Conselho Constitucional em França,à Câmara Constitucional em Costa Rica), as-sume especial relevo. De observar-se que aConstituição e as Leis Orgânicas dos Tribu-nais Constitucionais e órgãos especiais bus-cam, acima de tudo, manter a celeridade doprocesso mediante a fixação de prazos es-treitos e das restrições às delongas dilatóriasdo procedimento.

A iniciativa do controle preventivo é no-tadamente reservada a órgãos ou autorida-des públicas (o Governo, o Presidente da Re-pública, o Procurador-Geral) ou a um grupode parlamentares. Não se encontram exem-plos de controle preventivo provocado poriniciativa popular (ressalvado o caso do re-ferendo obrigatório que deve ser provocadoantes de a lei entrar em vigor e que, indireta-mente, poderia constituir manifestação decontrole popular de constitucionalidade) oupor particulares interessados.

Em razão da fixação de prazos, acimamencionada, o processo de controle preven-tivo busca ser célere, ficando o contraditó-rio reduzido ao mínimo. Na verdade, a fixa-ção de prazos, como se viu, é extraordi-nariamente necessária nessa modalidade decontrole, a fim de que esta não se constituaem mero instrumento político de retarda-mento do processo de elaboração legislativa.

Para exemplificar, veja-se o processo ado-tado em Costa Rica, muito bem relatado porRuben Hernandez Valle.

Em Costa Rica, a solicitação de controleobrigatório deve ser formulada pela Mesada Assembléia Legislativa; nos demais ca-sos, pelos deputados ou órgãos habilitadospara tanto.

Quando se trata de uma revisão consti-tucional, a solicitação de exame deve ser for-mulada após o voto da reforma em “pri-meira leitura”, no curso da primeira legisla-tura e antes da leitura definitiva do projeto.Relativamente aos outros projetos ou atoslegislativos sujeitos ao controle, a solicita-ção deve ser feita após o voto em “primeiraleitura” e antes do voto em “terceira e últi-ma leitura”. Todavia, quando a Assembléiatem prazo fixado pela Constituição ou peloRegimento para votar o texto, a demanda àCâmara deve ser formulada em “prazo ra-zoável”, diz Ruben Hernandez Valle, sen-do que o projeto pode ser votado mesmo se adecisão da Câmara não é proferida. Essecaso ocorre principalmente com os projetosde lei orçamentária.

Inexistindo prazos fixados constitucio-nalmente ou regulamentarmente, a provo-cação do controle deve ser feita antes do votodefinitivo, repita-se.

Salvo no caso do exame obrigatório, ademanda deve ser apresentada sob formaarticulada, precisando os aspectos do pro-jeto considerados inconstitucionais.

A Câmara Constitucional, depois de re-ceber a demanda, comunica à Assembléia orecebimento e lhe solicita enviar osdocumentos relativos à questão, bem comoos elementos de fato que possam instruir o

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processo. O exame de constitucionalidadenão interrompe o processo legislativo, sal-vo o voto do projeto em terceira e última “lei-tura”, ou, se esta já teve lugar, a assinaturaou a publicação do respectivo decreto (res-salva feita aos projetos que têm prazos fixa-dos constitucionalmente ou regulamen-tarmente, como se viu).

Tem a Câmara um mês de prazo paraexaminar o projeto questionado, prazo essecontado da recepção do mesmo pelaCâmara. Uma vez terminado o exame pelaCâmara Constitucional, a discussão doprojeto continua.

Fernandez Segado relata o procedi-mento a ser observado pelo TribunalConstitucional em Espanha, acrescentandoque o processo não apresenta a natureza deum conflito, porque, em realidade, formula-se ao Tribunal uma consulta que se resolvesegundo formas processuais e, emboratenha efeitos vinculantes, parece aproximar-se mais da chamada jurisdição voluntáriaconstitucional34. A decisão do Tribunal nãoadota em sentido estrito a forma de sentença:a LOTC menciona o termo pronunciamento.Se esse pronunciamento é no sentido da ine-xistência da inconstitucionalidade alegada,o texto seguirá o curso do procedimento cor-respondente. Se o Tribunal entender existira inconstitucionalidade alegada, deverá de-clarar qual o preceito ou os preceitos consti-tucionais infringidos. Nesse caso, a trami-tação do texto não poderá continuar sem aprévia supressão ou modificação dos mes-mos pelo órgão competente. Assim, opronunciamento do Tribunal tem efeitosvinculantes, pois obriga a supressão oureforma dos preceitos que contrariem aConstituição.

Assinale-se, ainda, que essa via de con-trole preventivo não cerra a possibilidadede um controle posterior, segundo determi-na, de modo expresso, o artigo 79,5 da LOTC.Destarte, ressalta o constitucionalistaespanhol, o pronunciamento do TribunalConstitucional, nesses casos, não produzefeitos de “coisa julgada material”. A decla-

ração do Tribunal tem efeitos vinculantes(embora tal não esteja expressamente pre-visto no texto constitucional, mas sim naLOTC, art. 78.2). Os órgãos legitimados paraprovocar o controle prévio estão previstosno artigo 95. e da Constituição espanhola e78.1 da LOTC (o Governo, qualquer dasCâmaras e, no caso dos Estatutos Autôno-mos, as autoridades interessadas, conformemencionado acima). O Regulamento doCongresso estabelece, de modo expresso,como pode o órgão provocar o controle pré-vio (iniciativa do Pleno, dos Grupos Parla-mentares, uma quinta parte dos deputados);o Regulamento do Senado também dispõe arespeito35.

O Tribunal, como se viu, não se pro-nuncia sobre anteprojetos ou propostasprévias, mas somente sobre o texto defini-tivo pendente apenas do requisito do con-sentimento para tornar-se ato normativoaperfeiçoado.

Recebida a provocação, o Tribunal assi-nala prazo para que o solicitante ou demaisórgãos legitimados, no período de um mês,manifestem sua opinião fundamentada so-bre a questão. Salvo outros pedidos de escla-recimentos formulados pelo Tribunal, esteemitirá sua declaração 36.

4.5. Os efeitos da decisão em sede de controlepreventivo de constitucionalidade

Fixar, de modo preciso, os efeitos das de-cisões sobre controle de constitucionalidadeé medida de grande importância na dinâ-mica constitucional, particularmente em setratando de controle preventivo, uma vezque essa modalidade de controle incide so-bre a atuação própria e independente dospoderes políticos, seja quando se trata decontrole sobre a formação da lei, seja quan-do incide sobre decretos-lei ou decretos re-gulamentares, da lavra do Governo com aaprovação dos Parlamentos. Isso mesmoevidenciam as Constituições dos Estadosque adotam o controle preventivo de consti-tucionalidade. Em sua maioria, tais consti-tuições cuidam de disciplinar, de modo ex-

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presso, os efeitos da decisão produzida emsede de controle preventivo.

Assim, se o órgão competente se pro-nuncia pela constitucionalidade das nor-mas legislativas, das normas regulamenta-res, etc., a autoridade que provocou o inci-dente deve promulgar o diploma. É o que ocor-re em Portugal, com ressalva ao tratado,porquanto, nesse caso, o poder do Presidentepara assiná-lo ou não é discricionário.

Se a pronúncia é pela inconstitucio-nalidade, ainda no caso de Portugal (art.279º), estabelece a Constituição que os efei-tos são imediatos e comuns, isso signifi-cando que o Presidente da República ou oMinistro da República devem vetar a nor-ma constante de qualquer decreto ou acor-do internacional. Assim, prevê a Consti-tuição a impossibilidade de promulgação,assinatura ou ratificação do diploma, con-forme o caso, se o órgão que o tiver aprova-do não expurgar a norma julgada inconsti-tucional (art. 279º, 2). Refere-se Jorge Miran-da a um tipo de veto vinculado, diferente doveto clássico. Por outro lado, a comunica-ção do pronunciamento somente é feita aoórgão que provocou o controle37.

Em Portugal, admite-se que os decretossejam reformulados e novamente examina-dos, se isso for solicitado. Canotilho refere-se, nesse caso, à reabertura do processo legisla-tivo38. Observe-se que somente o órgão legis-lativo elimina o preceito inconstitucional ou podereformulá-lo. Mas se admite, também (art.279º, 2), que o decreto seja confirmado pormaioria de dois terços dos Deputados pre-sentes, desde que superior à maioria abso-luta dos Deputados em efetividade de fun-ções. Assim, a Assembléia da Repúblicapode confirmar um decreto inconstitucionalpelo voto de 2/3 de deputados, e o Presi-dente deve promulgá-lo, nesse caso. Vê Jor-ge Miranda, nessa medida, um meio de equi-líbrio entre o Poder Legislativo e o TribunalConstitucional.

No caso de norma constante de tratado,se o Tribunal Constitucional se pronunciarpela sua inconstitucionalidade, este pode-

rá ser ratificado se a Assembléia da Repú-blica o vier a aprovar por maioria de doisterços dos Deputados presentes, desde quesuperior à maioria absoluta dos Deputadosem efetividade de suas funções (art. 279, 4).

Observa-se, portanto, que, em Portugal,a decisão do Tribunal Constitucional podeser superada, não sendo definitiva, pois.

A Constituição de Cabo Verde, no tocan-te aos efeitos da decisão de constitucionali-dade, segue, em linhas gerais, a de Portugalno que se refere à fiscalização preventiva daconstitucionalidade, conforme dispõem osartigos 301º e 302º.

Na França, estabelece o artigo 62 daConstituição de 1958 que uma disposiçãodeclarada inconstitucional não pode serpromulgada nem ter aplicação. As decisõesdo Conselho Constitucional não são susce-tíveis de recurso. Elas se impõem aos pode-res públicos e a todas as autoridades admi-nistrativas e jurisdicionais. Na verdade, oConselho Constitucional não anula leis,apenas admite que o governo revogue ouafaste a lei (no caso, por ex., do art. 34, queintroduz a figura da chamada deslegalização).Em se tratando do controle previsto no arti-go 61, o qual, conforme Gicquel, é o únicocontrole de constitucionalidade existente emFrança, o Conselho Constitucional, segun-do a lei orgânica que o organizou, deve mo-tivar a declaração e fazê-la publicar no Jor-nal Oficial, depois de comunicar seu texto àAssembléia (art. 61)39. Na verdade, o juizconstitucional dá uma interpretação à lei queresulta numa reedição da lei ou, conformeressalta Gicquel, ocorre uma censureconstructive que determina a não-conformi-dade da lei à Constituição e que o legisladordeverá observar. Reformulada a lei, o textodefinitivo, votado, deve ser promulgado peloChefe de Estado (art. 10 da Constituição),num prazo de quinze dias após o seu enca-minhamento pelo Governo40. Esse prazo ficasuspenso quando ocorre a consulta ao Con-selho Constitucional.

Também a Constituição de S. Tomé e Prín-cipe, que adota modalidade de controle polí-

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tico prévio, estabelece, diretamente, os efeitosdo pronunciamento de inconstitucio-nalidade: as decisões tomadas em matériade inconstitucionalidade pela AssembléiaNacional terão força obrigatória geral eserão publicadas no Diário da República(art. 111º, 4).

Em Espanha, os efeitos do pronuncia-mento do Tribunal Constitucional foram re-latados acima, englobadamente com o pro-cesso a que submete o controle prévio. Ape-nas para relembrar, demonstra FernandezSegado que a decisão do Tribunal Constitu-cional, no caso de controle prévio, tem cará-ter vinculante, porquanto se trata de evitara ratificação do tratado, a aprovação refe-rendária de um Estatuto ou a promulgaçãode uma Lei orgânica que faria politicamen-te mais onerosa sua invalidação ex post porinconstitucionalidade, se o bloqueio prévio,anterior aos atos finais, não tivesse lugar41.

Nos sistemas que admitem o controle po-lítico prévio externo, por meio do veto aoprojeto de lei, os efeitos do veto são, via deregra, superáveis. O veto pode ser derruba-do pelo Legislativo, ressalvado o exemplodantes citado de Costa Rica, onde o veto nãoaceito pelo Legislativo por motivo de incons-titucionalidade deve ser submetido à Câma-ra Constitucional. No tocante ao prazo parao exercício do veto, as Constituições sempreo definem de modo expresso.

5. O controle preventivo deconstitucionalidade no Brasil

As constituições brasileiras não abriga-ram, de modo geral, o controle preventivode constitucionalidade, nos moldes vistosnas constituições parlamentaristas contem-porâneas. O sistema presidencialista de go-verno, adotado entre nós desde 1891, nalinha do modelo americano introduzidopela famosa decisão de Marshall de 1803,inclinou-se pelo controle de constituciona-lidade jurisdicional e, conseqüentemente,repressivo, inicialmente difuso, e presente-mente, seja pelo método difuso, seja peloconcentrado42.

Não obstante, é possível identificar aexistência, em nosso sistema, de institutos epráticas próprias ou exemplificativas docontrole de constitucionalidade preventivo,quer político, quer jurisdicional.

5.1. O controle de constitucionalidadepreventivo político

Até a Constituição de 1988, a título decontrole preventivo de constitucionalidade,no plano federal, apontavam-se os usuaisnos sistemas presidencialistas, vale dizer ochamado controle político de constituciona-lidade, operado pelo Poder Executivo oupelo próprio Poder Legislativo, a saber: oveto presidencial, veto preventivo, modelode controle externo, fundado em motivo deinconstitucionalidade, e o pronunciamentodas Comissões de Justiça das Casas Legis-lativas contrário à constitucionalidade dequalquer projeto ou ato submetido à suacensura (controle preventivo interno).

Assim, previam as Constituições de 1891(art. 37, § 1º), 1934 (art. 45, caput), 1937(art. 66, § 1º), 1946 (art. 70, § 1º), 1967 (art.62, § 1º) e 1969 (art. 59, § 1º) o veto presi-dencial fundado em motivo de inconstitu-cionalidade. Em todos os casos, o veto pre-sidencial, modalidade de controle políticoexterno, não era definitivo, mas superávelpelo Congresso Nacional.

A Constituição de 1988 mantém o vetopresidencial (art. 66, § 1º). Pode o Presidenteda República vetar o projeto de lei, já apro-vado no Congresso Nacional, fundando seuveto na inconstitucionalidade do projeto. Oveto será sempre motivado e poderá colhero projeto no seu todo ou parcialmente. Comonas constituições anteriores, o veto não éabsoluto, mas apenas relativo e superável.Será superado desde que, em sessão con-junta das Casas, tomada dentro de 30 diasde seu recebimento, for rejeitado pelo votoda maioria absoluta dos deputados e sena-dores, em votação secreta (§ 4º). Observe-seque, existindo no Brasil o controle jurisdicio-nal de constitucionalidade, a lei porventuraresultante de veto superado poderá ser objeto

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desse controle jurisdicional que, este sim, éterminativo.

Mantido o veto, o projeto será promulga-do pelo Presidente da República ou pelo Pre-sidente do Senado (ou Vice-Presidente), nocaso de os dois primeiros não assinarem apromulgação devida (§ 7º). Além de prazospara a apresentação do veto pelo Presiden-te, e para apreciação do veto pelo Congres-so Nacional, institui a Constituição Federalde 1988 a figura do sobreestamento, que con-siste em, esgotado o prazo sem deliberaçãopelo Congresso Nacional, colocar-se o vetona ordem do dia da sessão imediata, fican-do as demais proposições sobreestadas atéa votação final do veto, com algumas ressal-vas (§ 6º); o silêncio do Presidente da Repú-blica, no prazo de 15 dias fixado para o seuveto, importará sanção do projeto (§ 3º).

Ainda em matéria de controle preven-tivo externo, viabilizado por órgão político,a Constituição de 1988 inova ao introduzirnova modalidade de controle político deconstitucionalidade, consoante decorre dosartigos 49, V, e 68, § 3º. Trata-se de controlede “sinal trocado”, todavia, porquanto secogita de controle político de constituciona-lidade a ser exercido pelo Congresso Nacio-nal relativamente a atos do Presidente daRepública. Como se observa à leitura dosindicados textos, além de introduzir o con-trole político sucessivo, consubstanciado nasustação, pelo Congresso Nacional, de atosregulamentares e de legislação governamen-tal delegada (art. 49, V), a Constituição emvigor cria a modalidade do controle políticoprévio. Tal controle prévio é exercido peloCongresso Nacional, no caso previsto noartigo 68 (que disciplina a lei delegada)quando este estabelece que o CongressoNacional pode determinar a remessa neces-sária do projeto de lei delegada, elaborado peloExecutivo, para apreciação do Poder Legis-lativo. Assim, o exame da legislação delega-da se fará previamente à promulgação dalei delegada. A decisão do Congresso Nacio-nal, rejeitando o projeto de lei delegada, abor-ta o nascimento da legislação delegada. Não

há recurso contra essa decisão do PoderLegislativo, de tal sorte que esse controle,que não está sujeito a prazo, é definitivo einsuscetível de controle jurisdicional deconstitucionalidade43.

É certo que nem sempre configurará essaapreciação do Congresso Nacional contro-le de constitucionalidade, porquanto, emrazão da amplitude do texto constitucional,tal controle poderá, também, incidir no mé-rito do projeto de lei delegada ou configurarsimplesmente um controle de legalidade44.Mas a inferência mais evidente que se retirada disciplina constitucional é que a rejeiçãodo projeto de lei delegada se fará por “ex-cesso de delegação” ou pelo abuso ou mauuso que o Presidente da República faz dadelegação que recebe, o que resulta, em últi-ma análise, em infração das normas consti-tucionais de distribuição de competênciasentre poderes.

Observe-se que a sustação a posteriori dosatos normativos presidenciais, que tambémconfigura controle de constitucionalidade,é controle político sucessivo e, a meu ver,superável pelo pronunciamento do PoderJudiciário.

Por outro lado, é possível vislumbrar, noBrasil, controle de constitucionalidade pre-ventivo, político, porquanto exercido peloCongresso Nacional, de atos administrati-vos presidenciais, derivados diretamente daConstituição ou inerentes à função executi-va própria do Presidente da República. Tra-ta-se do controle do Poder Legislativo sobreatos do Poder Executivo que, ainda que pos-sam ser vistos sobre outras óticas (freios econtrapesos, partilha de competências rele-vantes para o estado, etc.), resultam verda-deiro controle de constitucionalidade daatuação do Poder Executivo pelo PoderLegislativo.

Tal modalidade de controle preventivopode configurar controle de constituciona-lidade no caso do exercício de certas com-petências administrativas do CongressoNacional, arroladas precipuamente nosarts. 49 e 52 da Constituição Federal. Sob a

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ótica do controle, cogita-se, nesses casos, deo Poder Legislativo participar do exercícioda função executiva, aprovando atos que,em decorrência do princípio da separaçãode poderes, seriam inerentes à função exe-cutiva. Essa participação, que pode ser vis-ta como exercício do controle de freios e con-trapesos, não deixa de ser interferência deum poder na competência de outro poder,daí por que, ao menos no que respeita à dis-tribuição de competências, pode ser visto talcontrole como controle de constitucionali-dade. Veja-se, exemplificadamente, o artigo52, quando cogita da aprovação de nomespara o exercício de certos cargos tipicamenteadministrativos, ou o artigo 49, quandocuida da aprovação de certos atos presiden-ciais ou da autorização de certas práticaspresidenciais.

Também é mantido no sistema brasileiroem vigor, como modalidade de controle po-lítico preventivo interno, o pronunciamentodas Comissões de Constituição e Justiça dasCasas do Congresso sobre a constituciona-lidade dos projetos de leis e resoluções aserem apreciados pelo Parlamento. A disci-plina dos efeitos do pronunciamento des-sas comissões fica a cargo dos respectivosRegimentos Internos. Assim, exemplifi-cando, o parecer da Câmara de Deputadosopinando sobre a inconstitucionalidade dapropositura implica arquivamento do pro-jeto, salvo se 2/3 (dois terços) dos deputa-dos solicitarem a votação em plenário. Coma ressalva apontada, tal parecer é terminati-vo. Nesses casos, considerando-se tratar-sede “questão de política interna”, não podeincidir controle jurisdicional.

5.2. O controle de constitucionalidadepreventivo jurisdicional

O controle jurisdicional de constitucio-nalidade no Brasil, já se disse, é precipua-mente repressivo e, ante o sistema constitu-cional vigente, desenvolve-se por dois mé-todos: o controle difuso de constitucionali-dade e o controle dito concentrado. Pelo pri-meiro, todo e qualquer ato jurídico pode ser

apreciado em sua compatibilidade com aConstituição, e todo e qualquer juiz podedecidir a questão de constitucionalidade. Adecisão definitiva e final fica a cargo do Su-premo Tribunal Federal, cuja missão, no sis-tema constitucional brasileiro, é a de guar-da da Constituição (art. 102, caput e incisoIII). Dessa forma, a decisão que envolve aconstitucionalidade de atos jurídicos, par-ticularmente das leis (federais, estaduais oumunicipais), proferida em grau de jurisdi-ção inferior, poderá ser levada à apreciaçãodo Supremo Tribunal Federal, que, em deci-são definitiva, proferida pela maioria abso-luta de votos (art. 97), decidirá sobre a in-constitucionalidade questionada. A deci-são, nesses casos, terá efeitos para as par-tes. O controle concentrado é atuado peloSupremo Tribunal Federal pela ação diretade inconstitucionalidade de lei ou ato nor-mativo federal ou estadual e pela ação dire-ta de constitucionalidade, introduzida pelaEmenda Constitucional 3/93 (e ainda pelaação direta de inconstitucionalidade poromissão). Na primeira, a decisão tem efeitoserga omnes, e, na segunda, eficácia contratodos e efeitos vinculantes para os demaisórgãos do Poder Judiciário e para o PoderExecutivo (art. 102, I, “a”). Na ação diretade inconstitucionalidade por omissão, osefeitos ditados pela Constituição resumem-se a dar ciência ao órgão competente paraeditar a norma ou a fixação de prazo para aadoção das providências administrativascabíveis (art. 103, § 2º).

Destarte, ante o sistema vigente, não exis-te a previsão do controle preventivo jurisdi-cional de constitucionalidade, nos moldesexistentes no direito comparado. Não é pre-vista a possibilidade de o Judiciário, em tese,impedir a tramitação (frustrando a inicia-tiva, discussão ou aprovação) de projetosde lei em curso no Congresso Nacional45 e aconseqüente conversão destes em lei, fun-dado em motivo de inconstitucionalidade.

Não obstante, o tema do controle preven-tivo jurisdicional vem aflorando as lides

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jurídicas, tanto em sede de controle difusocomo no de controle concentrado.

No caso do controle concentrado, a ques-tão tem sido suscitada ante o Supremo Tri-bunal Federal particularmente a propósitode propostas de Emenda Constitucional que,de modo flagrante, violam as cláusulas in-tocáveis contidas no art. 60, §4º, da CF.Como se sabe, a Constituição de 1988, alar-gando o conteúdo das matérias intocáveispor Emendas Constitucionais, determinaem seu artigo 60 que: “não será objeto dedeliberação a proposta de emenda tendentea abolir a forma federativa de Estado, o votodireto, secreto, universal e periódico, aseparação de Poderes, e os direitos egarantias individuais”. Ante a propositurade Emendas Constitucionais, tidas comoafrontosas a tais cláusulas, é que se tem im-petrado a ação direta.

Desse teor a Ação Direta de Inconstitu-cionalidade nº 466-DF, interposta pelo Par-tido Socialista Brasileiro contra a Comissãode Constituição e Justiça da Câmara, queadmitiu proposta de Emenda Constitu-cional instituindo a pena de morte no Brasilmediante consulta plebiscitária46, cujo Re-lator foi o Ministro Celso de Mello. A súmu-la da decisão proferida nessa ação, aindaem sede de Medida Liminar, enfatizainexistir “controle preventivo abstrato (emtese) no direito brasileiro” afora considerara ausência, no caso, de ato normativo quepossibilite o ajuizamento da ação direta, nostermos da Constituição.

Convém transcrever parte de referidaEmenta:

“O direito constitucional positivobrasileiro, ao longo de sua evoluçãohistórica, jamais autorizou – como anova Constituição promulgada em 1988também não o admite – o sistema decontrole jurisdicional preventivo, emabstrato. Inexiste, desse modo, emnosso sistema jurídico, a possibilida-de de fiscalização abstrata preventi-va da legitimidade constitucional demeras proposições normativas peloSupremo Tribunal Federal.

Atos normativos in fieri, ainda emfase de formação, com tramitação nãoconcluída, não ensejam e nem dãomargem ao controle concentrado ouem tese de constitucionalidade, quesupõe – ressalvadas as situações con-figuradoras de omissão juridicamen-te relevante – a existência de espéciesnormativas definitivas, perfeitas eacabadas. Ao contrário do ato norma-tivo – que existe e que pode dispor deeficácia jurídica imediata, constituin-do, por isso mesmo, uma realidadeinovadora da ordem positiva –, a meraproposição legislativa nada mais en-cerra do que simples proposta de di-reito novo, a ser submetida à aprecia-ção do órgão competente, para que, desua eventual aprovação, possa deri-var, então, a sua introdução formal nouniverso jurídico.

A jurisprudência do Supremo Tri-bunal tem refletido claramente essaposição em tema de controle norma-tivo abstrato, exigindo, nos termos doque prescreve o próprio texto cons-titucional – e ressalvada a hipótese deinconstitucionalidade por omissão –,que a ação direta tenha, e só possa ter,como objeto juridicamente idôneo,apenas leis e atos normativos, federaisou estaduais, já promulgados, editadose publicados.

A impossibilidade jurídica decontrole abst ra to prevent ivo demeras propostas de emenda não obs-ta a sua fiscalização em tese quan-do transformadas em emendas àConstituição. Estas – que não sãonormas constitucionais originárias –não estão excluídas, por isso mesmo,do âmbito do controle sucessivo ourepressivo de constitucionalidade”.

De outro lado, no tocante ao controle ju-risdicional difuso, pode-se perceber a inci-dência de um controle preventivo de consti-tucionalidade, ainda que “indireto”.

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Via de regra, essa modalidade de con-trole vem sendo intentada sob a alegação deum direito subjetivo, líquido e certo, violadoe cuja violação não pode ser afastada daproteção jurisdicional por força do queassegura o inciso XXXV do art. 5º daConstituição Federal.

Exemplificando, via mandado de segu-rança, parlamentares, titulares do direito deiniciativa e de voto no processo legislativo,impedidos de exercerem tais direitos no cur-so da tramitação de um projeto de lei, postu-lam o reconhecimento desse seu direito “lí-quido e certo” ante o Poder Judiciário. Lo-grando acolhimento de sua pretensão, con-seguirão, conseqüentemente, abortar a tra-mitação do projeto de lei em causa. Ante oargumento de que existe lesão de direitos,afasta-se a questão do controle de atos inter-na corporis ou das chamadas “questões po-líticas” pelo Judiciário.

Nesse campo do controle difuso, parecesignificativo registrar o controle jurisdi-cional sobre propostas de EmendasConstitucionais intentadas via mandado desegurança.

É o caso do Mandado de Segurança nº20.257-DF, impetrado contra ato da Mesado Congresso que admitiu a “deliberaçãode proposta tendente à abolição da repú-blica”47, cujo Relator foi o Ministro MoreiraAlves. Veja-se parte da Ementa do Acórdão:

“Mandado de segurança contraato da Mesa do Congresso que admi-tiu a deliberação de proposta de emen-da constitucional que a impetraçãoalega ser tendente à abolição da repú-blica.

Cabimento do mandado de segu-rança em hipóteses em que a vedaçãoconstitucional se dirige ao próprioprocessamento da lei ou da emenda,vedando a sua apresentação (como éo caso previsto no parágrafo único doartigo 57) ou a sua deliberação (comona espécie). Nesses casos, a inconsti-tucionalidade diz respeito ao próprioandamento do processo legislativo, e

isso porque a Constituição não quer –em face da gravidade dessas delibe-rações, se consumadas – que sequerse chegue à deliberação, proibindo-ataxativamente. A inconstituciona-lidade, se ocorrente, já existe antes deo projeto ou de a proposta se transfor-mar em lei ou em emenda constitucio-nal, porque o próprio processamentojá desrespei ta , f ronta lmente , aConstituição.

Inexistência, no caso, da preten-dida inconstitucionalidade, uma vezque a prorrogação de mandato de doispara quatro anos, tendo em vista aconveniência da coincidência de man-datos nos vários níveis da Federação,não implica introdução do princípiode que os mandatos não mais são tem-porários, nem envolve, indiretamente,sua adoção de fato....”

Em conclusão, sob certos aspectos, é pos-sível vislumbrar-se a incidência de um con-trole de constitucionalidade preventivo, ain-da que indireto, ao menos no modelo do con-trole difuso de constitucionalidade48.

III - Considerações finais: vantagens edesvantagens do controle preventivo de

constitucionalidadeNão figura o controle preventivo entre

os que a doutrina elege como ideal para adefesa da Constituição. Na verdade, nãoraro, sofre ele críticas. É o que mostra Ferrei-ra Filho quando aduz:

“Sem dúvida, grande vantagemhaveria em impedir-se de modo abso-luto a entrada em vigor de ato incons-titucional. Todavia, a experiência re-vela que toda tentativa de organizarum controle preventivo tem por efeitopolitizar o órgão incumbido de tal con-trole, que passa a apreciar a matériasegundo o que entende ser a conveni-ência pública e não segundo a suaconcordância com a lei fundamental.Isso é mais grave ainda no que con-

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cerne à lei, que se considera, na demo-cracia representativa, expressão davontade geral, pois vem dar a um ór-gão normalmente de origem não po-pular uma influência decisiva na ela-boração das leis”49.

Posição igual assume Fernandes Sega-do ao apontar tratar-se de forma excepcio-nal de controle que se caracteriza como um“mal menor”, como retro mencionado.

Não se trata, pois, de modalidade de con-trole isenta de dificuldades e perplexidades.

Se o controle repressivo de constitucio-nalidade das leis suscitou e ainda suscitadúvidas quanto a sua compatibilidade como regime democrático, como se apontou deinício, por consistir, em última análise, narealização de um controle sobre a ação cons-titucional do órgão de representação popu-lar, realizado por órgão estranho e, em re-gra, não-eleito diretamente pelo povo, o con-trole preventivo, a esse propósito, colocapolêmica particularmente mais acirrada.Isso porque o controle preventivo usual, ine-gavelmente eficaz, incide sobre o próprioexercício da competência constitucional doórgão legislativo, impedindo o nascimentoda lei. O controle preventivo aborta o nasci-mento da lei, ata a ação parlamentar, claroem nome de uma grande causa. Mas fica avelha polêmica: como pode um punhado dejuízes, não-eleitos, interpretar “melhor” aConstituição do que o órgão de representa-ção da vontade popular? Assim, o funda-mento democrático do exercício do controlepreventivo parece ainda mais questionável.

Por outro lado, aponta a doutrina, o con-trole preventivo vai muito além da razão deser da justiça constitucional que, no sentidoque lhe empresta Georges Vedel, respondea exigências da democracia quando o juizse limita a aplicar a vontade do povo ex-pressa na Constituição. No controle preven-tivo, o juiz constitucional parece não encon-trar suficientes limites à sua atuação, salvonos sistemas em que esse controle se res-tringe aos aspectos formais ou procedimen-tais dos atos examinados. O Parlamento,

onde existe controle preventivo de fundo,parece depender, para fazer a lei, do livre-arbítrio de um colégio de composiçãopolítica mais ou menos arbitrária ou semrespaldo popular.

Admitir-se, assim, a interposição de umpoder estranho sobre a atuação de outro po-der, quando este exerce competência pró-pria, é certamente questão preocupante, par-ticularmente onde se adota o sistema da se-paração ou divisão de poderes, tal comoocorre nos sistemas presidencialistas eparlamentaristas.

O exercício do controle preventivo retra-ta problemas graves, se não mais intrinca-dos, certamente semelhantes àqueles susci-tados pelo controle repressivo de constitu-cionalidade.

Bem por isso, vale a advertência de JorgeMiranda: o objetivo do controle preventivo(ou da fiscalização preventiva, rótulo ado-tado pela Constituição de Portugal) é impe-dir, vedar ou dificultar a vigência de nor-mas indubitavelmente inconstitucionais; éevitar que um ato jurídico inconstitucional,fundamentalmente, uma norma inconstitu-cional, venha a ser promulgada e se torneválida e eficaz. É, fundamentalmente, uminstrumento de defesa da Constituição con-tra violações primárias, grosseiras e inequí-vocas, que justifiquem a fiscalização a priori.E, para tanto, deve ser extremamente bemdefinido e necessariamente muito limitadoquanto ao seu objeto e alcance50.

A intromissão de um órgão estranho sig-nifica clara interferência na função legisla-tiva. Por igual, quando se trata de interfe-rência nos comportamentos ditados direta-mente pela Constituição (por ex., nomeação,exercício de certas competências adminis-trativas, etc.). Se o Presidente da Repúblicatem certa competência, inerente ao PoderExecutivo que exerce, fazer submetê-la a umcontrole preventivo de constitucionalidadepode significar anulá-la.

De outro lado, não há como negar-se: ocontrole preventivo impressiona pela eficá-cia. Impede o nascimento de um ato incons-

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titucional, de um ato em desconformidadecom a Constituição, e isso é bem significativo.

Todavia, em razão dos pontos negativosque apresenta, é preciso acentuar os cuida-dos com que se deve cercar o controle pre-ventivo, nos casos em que é ele adotado e seporventura se cogitar de vir a adotá-lo noBrasil.

1 Cf., por todos, Fernandez Segado, Sistema Cons-titucional Español, 1992, p. 1.041.

2 Usualmente órgão composto por membrosnão-eleitos, como é o caso do controle exercidopelo Poder Judiciário nos sistemas presidencialis-tas de governo.

3 A questão da legitimidade do controle de cons-titucionalidade e sua compatibilidade com o regi-me democrático foi discutida em profundidade noColóquio realizado em Uppsala pela AssociaçãoInternacional de Ciências Jurídicas, em 1984. Otema abordado especificamente no Colóquio: “LeControle Juridictionnel des Lois - Legitimité, effec-tivité e devéloppements récents” mereceu um Rela-tório Geral lavrado por Mauro Cappelletti In LeControle Juridictionnel des Lois, organizado por LouisFavoreu et J. A. Jolowicz, Econômica, Présses Uni-versitaires D’Aix-Marseille, 1986, p. 286 e segts.

4 Cf., Anna Candida da Cunha Ferraz, Conflitoentre Poderes, Revista dos Tribunais, 1994, p. 192.

5 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucio-nal, Coimbra Ed, 1983, II, p. 305.

6 Cf. Ferraz, Anna Candida da Cunha, Conflitoentre Poderes, 1994, p. 194; tb. Cléve, ClémersonMerlin, A fiscalização abstrata de constitucionalidadeno Direito Brasileiro, RT, 1995, p. 58.

7 Cf. Jorge Miranda, Manual, 1983, II, p. 312.8 Cf. Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, Curso de

Direito Constitucional, Saraiva, 1995, p. 31.9 Ver Jorge Miranda, cit. fls. 317.10 Cf. Jorge Miranda, Manual, p. 356.11 Cf. As Constituições dos Estados Lusófonos, com-

piladas por Jorge Bacelar, Aequitas, 1995.12 Cf. Manual de Direito Constitucional, II, 1983,

p. 356.13 Cf. Ruben Hernandez Valle, La Justice consti-

tutionnelle au Costa-Rica, in Revue française de DroitConstitutionnel, PUF, nº 18, 1994, p. 227 e segts.

14 Na Constituição do Estado de S. Tomé e Prín-cipe, de 20-9-1990, o controle é realizado pela pró-pria Assembléia Nacional (art. 86), a quem caberatificar os decretos-leis (leis delegadas). Na verda-de, em São Tomé e Príncipe, não existe Tribunal

Notas

Constitucional. Somente existe controle político deconstitucionalidade, cabendo à Assembléia Nacional(art. 111) exercê-lo, inclusive em caráter de controlepolítico repressivo . No referido Estado, apenas aAssembléia Nacional pode apreciar os atos do go-verno, apreciar, modificar ou anular diplomas le-gislativos ou quaisquer medidas de caráter norma-tivo adotadas pelos órgãos do poder político quecontrariem a Constituição. O controle de constitu-cionalidade é incidente em um processo, podendoser suscitado de ofício pelos tribunais, pelo MP oupelas partes (art. 111.4), tendo a decisão da As-sembléia Nacional força obrigatória.

15 Apud Francisco Fernandez Segado, La Jurisdic-ción Constitucional en España , Dykinson, Madrid,1984, p. 187.

16 Fernandez Segado, La Jurisdicción Constitucio-nal en España, 1984, p. 187.

17 Cf. Fernandez Segado, La Jurisdicción, 1984, p.192.

18 Cf. Manual, Tomo II, p. 358 e 359.19 Cf. Jorge Miranda, Manual, 1983, p. 358.20 Jean Gicquel Droit Constitutionnel et Institu-

tions Politiques, Montchrestien, 1995, p. 766) menci-ona o controle exercido pelo Conselho Constitucio-nal em via de ação e o controle prévio, mas aduz aexistência de um projeto de revisão da Constitui-ção, sugerido por Robert Badinter, instituindo o con-trole por via de exceção na França.

21 Cf. Anna Candida da Cunha Ferraz, Conflito,p. 195, nota, 199 e 200.

22 Ver Gicquel, cit., p. 768. O Autor menciona aLei Constitucional que disciplina a matéria.

23 Cf. Droit Constitutionnel et Institutions Politi-ques, 14ª ed., Montchrestien, 1995, p. 745-746.

24 La Justice Constitutionnelle au Costa-Rica, inRevue française de Droit Constitutionnel, PUF, nº18, 1994, p. 237.

25 Cf. Manual, 1983, p. 359.26 Cf., para ver o sentido de normas primárias,

Ferreira Filho, Curso, 1995 , p. 159-162.27 Cf. Jorge Miranda, Manual, p. 357.28 Cf. Fernandez Segado, La jurisdicción, 1984, p.

190. Observa o autor que, nesse caso, a função doTribunal Constitucional se aproxima mais da fun-ção legislativa do que da jurisdicional, porquantose trata de um controle sobre projeto de normas. Adecisão do Tribunal Constitucional não pode de-clarar a nulidade da norma, mas apenas ordenar areabertura do processo de elaboração.

29 Ob. cit., p. 191.30 Cf. Les Grandes Décisions du Conseil Constitu-

tionnel, Favoreu e Philip, 3éme éditions, Sirey, 1984,p. 37-38.

31 Cf. Constitutions et Documents Politiques, org.de Maurice Duverger, PUF, 1985, p. 264.

32 La Justice constitutionnelle au Costa-Rica, RevueFrançaise de Droit Constitutionnel, PUF, nº 18, 1994,p. 227 e segts.

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33 Cf. Ruben Hernandez Valle, La Justice constitu-tionnelle au Costa Rica, p. 235.

34 Ob. cit., p. 189.35 Cf. Fernandez Segado, ob. cit., p. 189.36 Cf. ob. cit., p. 190.37 Cf. Jorge Miranda, Manual, p. 361.38 Cf. Canotilho, Direito Constitucional, 1996.39 Observe-se que a Assembléia Nacional pode

modificar as disposições julgadas desconformes àConstituição pelo Conselho Nacional e reapresentaro texto ao mesmo, que, então, é submetido a umsegundo exame. Essa praxe foi admitida pelo Con-selho Constitucional, cujo rigor para examinar osregulamentos parlamentares sofre sempre questio-namentos. Cf. Favoreu et Philip, Les Grandes décisionsdu Conseil Constitutionnel, 1984, p. 40-41.

40 Trata-se de competência vinculada, segundoobserva Gicquel, Droit Constitutionnel et InstitutionsPolitiques, 1995, p. 748-749.

41 Cf. ob. cit., p. 187.42 Cf. de minha autoria “Apontamentos sobre o

Controle de Constitucionalidade”, RPGE, v. 32.

43 Idem supra, fls. 138.44 Cf. Conflito entre Poderes, 1994, p. 99 e

seguintes.45 A mesma regra se projeta relativamente aos

demais níveis de poder, Estadual e Municipal.46 Cf. RTJ 136, 25.47 Cf. RTJ 99, 1.031.48 Cf., a esse propósito, Alexandre de Moraes,

Direito Constitucional, 5ª edição, Atlas, 1999, p.538-547. O Autor analisa o “controle difuso deconstitucionalidade durante o processo legislativo”,trazendo à colação decisões do STF e apontando ascorrentes formadas em torno da matéria.

49 Cf. Curso de Direito Constitucional, 1995, p. 31.50 Cf., também, Cappelletti, Mauro, “Necéssité

et légitimité de la Justice Constitucionnelle” InCours Constitutionnelles Europeénnes et DroitsFondamentales, sous la direction de Luis Favoreu,Economica, Presses Universitáires D´Aix-Mar-seil le, 182, p. 479-481.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

O desiderato deste trabalho é teceralgumas considerações sobre o créditoextraordinário, incluindo um panoramahistórico de sua utilização no direitoorçamentário pátrio. Essa modalidade dedespesa pública excepcional tem merecidotratamento jurídico controverso, e não raroinadequado, tanto no âmbito do PoderExecutivo, quanto do Legislativo.

No âmbito executivo, persistem contro-vérsias sobre a maneira mais adequada delegalizá-lo: ou por intermédio de decreto, quevigeu até a promulgação da atual CartaConstitucional, ou pela edição de medidaprovisória (MP). Além disso, os pressupos-tos para a abertura desses créditos contem-plam causas diversas, muitas vezes distantesdos parâmetros constitucionais.

Já no legislativo, a tramitação lenientedesses créditos tem proporcionado assime-trias fáticas no processo orçamentário. Exis-tem medidas provisórias em vigor, abrindocrédito extraordinário à Lei Orçamentáriade 1997. O problema é que o exercíciofinanceiro findou em 31 de dezembro destemesmo ano. Ou seja, o Congresso, quando

Crédito extraordinário: discussão sobretramitação e forma de operacionalização

Luiz Fernando de Mello Perezino

Luiz Fernando de Mello Perezino éConsultor de Orçamentos da Consultoria deOrçamentos, Fiscalização e Controle do SenadoFederal.

Sumário1. Introdução. 2. Modalidades de créditos

adicionais. 3. Breve histórico. 4. Formalizaçãodos créditos extraordinários. 4.1. Medidas pro-visórias ou decretos? 5. Tramitação no PoderLegislativo. 6. Conclusão.

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ultimar a tramitação desses diplomas legais,aprovará uma autorização para um orça-mento inexistente. As argumentações quepretendemos ofertar à análise demonstrarão anecessidade de encaminhá-los à Comissão Mistade Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização,alterando a fórmula atual, em que para cadacrédito extraordinário aberto é instalada umaComissão Mista Temporária.

2. Modalidades de créditos adicionaisA alocação dos recursos públicos é

anualmente autorizada na lei orçamentária.Consoante o princípio constitucional daanualidade, o orçamento estima a receita efixa a despesa para o período de um ano1.

Durante a execução do orçamento, écomum a insuficiência de recursos emalgumas dotações, inclusive não progra-madas. Visando dar solução de continui-dade às ações administrativas, o PoderLegislativo autoriza novos acréscimos ecancelamentos atinentes à despesa públicautilizando os créditos adicionais2.

Os créditos adicionais são, portanto,instrumentos retificadores do orçamentooriginariamente aprovado pelo PoderLegislativo e sancionado pelo Presidente daRepública. Visam promover a adequação doorçamento às necessidades de execução. Oartigo 40 da Lei nº 4.3203, de 17 de março de1964, define: “São créditos adicionais asautorizações de despesa não computadasou insuficientemente dotadas na Lei deOrçamento.” Essas autorizações são intro-duzidas no ordenamento jurídico por meiode legislação ordinária4. A autorizaçãolegislativa prévia da despesa pública é oprincípio constitucional que harmoniza todoordenamento positivo atinente às finançaspúblicas5.

O artigo art. 41 da Lei nº 4.320 classificae conceitua os créditos adicionais, verbis:

“Art. 41. Os créditos adicionaisclassificam-se em:

I – suplementares, os destinados areforço de dotação orçamentária;

II – especiais, os destinados adespesas para as quais não hajadotação orçamentária específica; e

III – extraordinários, os destinados adespesas urgentes e imprevistas, em casode guerra, comoção intestina ou calami-dade pública.”(grifamos)

Deter-nos-emos somente com os créditosdefinidos no inciso III.

3. Breve históricoA legislação atual, inserindo os casos de

guerra ou calamidade pública como pas-síveis de solicitação de crédito extraordi-nário, ratifica um hábito antigo da legislaçãoalicerçada na Constituição do Império erecepcionada pela República, conforme asdisposições insertas nos seguintes diplomaslegais6:

Lei nº 514, de 28 de outubro de 1848,art. 53; Lei nº 589/1850, art. 4º

Em casos extraordinários, comosejam os de epidemia ou qualqueroutra calamidade pública, sedição, in-surreição, rebelião e outros desta na-tureza, o Governo poderá autorizarpreviamente a despesa, abrindo cré-ditos extraordinários e dando imedi-atamente conta ao Poder Legislativo.

Leis nº 3.229/1884, art. 20; Lei nº 266/1894 art. 8º

Conjuntamente com o decreto deabertura de qualquer crédito extraor-dinário ou suplementar, fará o Gover-no publicar a proposta e informaçõesdemonstrativas das necessidades dosmesmos créditos.

Lei nº 1.144/1903, art. 5ºOs diferentes ministérios, nos

respectivos relatórios, darão conta aoCongresso dos motivos de neces-sidade e urgências, que determinarama abertura de créditos suplementarese extraordinários, da aplicação quelhes deram, quanto por eles se gastoue o estado em que se acham.

Os excertos legais retromencionados per-mitem asseverar que os casos passíveis de

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solução por crédito extraordinário sãoaqueles de natureza semelhante a um estadode calamidade pública, corroborando como texto vigente estatuído no transcrito itemIII do art. 41 da Lei nº 4.320.

As revoluções e pacificações, tanto noImpério, como no início do período republi-cano, exigiram inúmeras solicitações deverbas extraordinárias ao Parlamento.

Diversos documentos históricos asseve-ram que o expediente do crédito extraordi-nário foi utilizado inúmeras vezes comoforma de burlar autorizações orçamentáriaslegislativas. Em 11-10-1892, durante discus-são de uma comunicação que “autoriza oPoder Executivo a abrir um crédito extraor-dinário de 267 contos de réis, para paga-mentos de despesas realizadas com Revo-luções em Mato Grosso e com o desastre docouraçado Solimões”, o Deputado consti-tuinte Epitácio Pessoa advertia para

“este sacrifício que se exige dos cofresdo Tesouro, já esgotados, já exaustosde dezenas de milhares de contos quelhes têm sido subtraídos a título decréditos extraordinários;...vem pediraos defensores do regime federativoque apliquem os dinheiros públicosem pagamentos de dispêndios exorbi-tantes que provieram do mais desco-munal atentado ao regime federativoe à autonomia dos estados”.

Prosseguindo, em outros trechos, ele sinte-tiza a indignação com as despesas nãoexecutadas, preteridas em função dosdiversos créditos extraordinários. Apesar demais de um século, suas palavras continuamatuais:

“Pois então, não há dinheiro paraaumentar o vencimento do funciona-lismo público que se debate com amiséria; não há dinheiro para auxiliar,eficazmente, os estudos que, enfraque-cidos e depauperados, não podemorganizar-se; não há dinheiro paraacudir a melhoramentos que se im-põem, como urgente e inadiáveis...paraa continuação de serviços já inicia-

dos...; mas há dinheiro para pagarajudas de custo e vencimentos aemissários políticos encarregados defazerem deposições nos estados;ajudas de custos e passagens acentenas de oficiais do Exército trans-feridos de todos e para todos osestados da República; mas há dinheiropara se dar de presente aos afilhadosdo Governo que quiserem passearpela Europa e pela América...”7.

Comparando as solicitações antigas comas hodiernas, infere-se a pouca criatividadedos nossos atuais órgãos de planejamento.O problema climático, por exemplo, é antigo.Em 30-11-1915, nos anais do Senado, constaa solicitação de crédito extraordinário

“até a quantia de 50 mil contos, paraocorrer às despesas com os Estadosflagelados pela seca. Desde a Bahiaaté os sertões do Norte estão inteira-mente devastados; as colheitas perdi-das, os rebanhos extintos e as popu-lações famintas emigram, bradandopor socorro”.

Não era somente o Poder Executivo quecontribuía para as solicitações de créditosextraordinários. O Parlamento também faziaa sua parte, como registra Agenor de Roure8:

“Mas, o crédito suplementar nãofoi o principal causador do desequi-líbrio orçamentário no Brasil. O créditoextraordinário, para execução deserviços novos, criados por leis doParlamento, gravaram enormementeos orçamentos de todos os exercíciosfinanceiros. Os legisladores devemrefletir ao votarem leis, na repercus-são que elas possam ter em orça-mentos futuros. Não o fazem, nunca ofizeram...O mal só poderia ser corrigido,tão enraizado ele está, se o Parlamentoadotasse como conduta irredutível averdade e a sinceridade orçamentáriasdentro de um programa de economiasque não pudessem ser destruídasainda dentro do exercício, peloscréditos suplementares.”

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4. Formalização dos créditosextraordinários

Os créditos suplementares e especiaisserão autorizados por lei e abertos pordecreto do Poder Executivo. Esse manda-mento consubstancia o citado princípio daautorização legislativa prévia dos gastospúblicos. Já os créditos extraordinários,autorizados por medidas provisórias,consoante alicerce constitucional estatuídonos arts. 167, § 3º, e 62:

“Art. 167- São vedados:§ 3º A abertura de crédito extraor-

dinário somente será admitida paraatender a despesas imprevisíveis eurgentes, como as decorrentes deguerra, comoção interna ou calami-dade pública, observado o disposto noart. 62.

Art. 62. Em caso de relevância eurgência, o Presidente da Repúblicapoderá adotar medidas provisórias, comforça de lei, devendo submetê-las deimediato ao Congresso Nacional, que,estando em recesso, será convocadoextraordinariamente para se reunir noprazo de cinco dias.”(grifamos)

Infere-se, portanto, que o § 3º do art. 167transfere excepcionalmente a titularidade dedireito deferida aos membros do PoderLegislativo de previamente serem ouvidospara, à sua discrição, autorizarem, ou não,qualquer alteração na lei orçamentária, nashipóteses elencadas nos incisos do citadoartigo.

À evidência, é incontroverso o direito emtela, que, de cunho político, é líquido e certo,eis que imediatamente derivado do textoconstitucional, não sendo objeto de qualquerrestrição ou limitação, além daquelasrelacionadas no § 3º acima transcrito. HelyLopes Meirelles conceituava o direitolíquido e certo como: “é o que se apresentamanifesto na sua existência, delimitado nasua extensão e apto a ser exercido nomomento da impetração”9.

É assente que a Carta Magna não deli-mitou explicitamente, no universo total da

competência legislativa da União, a área deque pudessem ou não tratar as medidasprovisórias. Isso não obstante, no caso dedespesas extraordinárias, as lindes estãoínsitas no transcrito art. 167, § 3º. Em NotaTécnica da Consultoria de Orçamentos doSenado Federal, sobre reformas no prédiodo Tribunal de Justiça do DF, Luiz Gonçalvesalerta sobre o caráter restritivo da discricio-naridade do Chefe do Poder Executivo emface do dispositivo constitucional emcomento:

“De acordo com o § 3º do art. 167da Constituição, ‘a abertura de créditoextraordinário somente será admitidapara atender a despesas imprevisíveise urgentes, como as decorrentes de guerra,comoção interna ou calamidade pública’(g.n.). Mesmo fazendo-se um esforçoincomum, seria muito difícil concor-dar com a assertiva de que a não-execução das obras objeto destaMedida Provisória poderia vir acausar uma calamidade pública. Falarem guerra ou comoção interna, então,poderia provocar uma exposição aoridículo. Ainda que se considerasse aconotação exemplificativa do § 3º doart. 167 da Lei Maior, ao utilizar otermo como , teríamos que apresentarjustificativas semelhantes à guerra,calamidade pública ou comoçãointerna, previstas na Carta Magna,para justificar a aprovação destaMedida Provisória.

Por outro lado, despesas imprevi-síveis, em nosso entendimento, sãoaquelas que estão acima da capaci-dade humana de prever. Portanto, aocorrência de danos em edifíciospúblicos de mais de 30 (trinta) anos éperfeitamente previsível, o que justi-fica a inclusão, na lei orçamentáriaanual, de dotação específica destinadaà sua recuperação. O que se podeadmitir é a eventual insuficiência dadotação orçamentária, e nunca a suafalta”10.

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Nessa manifestação da Consultoria deOrçamentos, está consubstanciado o enten-dimento sobre os fundamentos legítimosatinentes ao crédito extraordinário. Diver-sos créditos são abertos sem a clareza dospressupostos constitucionais. A expressãocomo as, grifada no mencionado § 3º do art.167, muitas vezes é utilizada somente comsentido exemplificativo. No CongressoNacional, as preocupações atinentes àmatéria orçamentária preenchem reduzidosespaços na agenda dos congressistas,colimando poucos avanços no aprimora-mento do processo orçamentário. Questõescomo essas já foram objeto de pronuncia-mento, conforme o seguinte trecho exaradono Parecer do Senador Pedro Simon à PEC29/9611:

“Outra importante questão quemerece melhor disciplinamento cons-titucional é a que diz respeito aos tiposde despesas passíveis de serem aten-didas através de créditos extraordiná-rios, assim como ao emprego de medi-das provisórias nesta modalidade deretificação orçamentária.

O direito orçamentário brasileiro,pelo menos desde a Constituição de1934, estabelecia que a abertura decréditos orçamentários poderia se darna hipótese de necessidade urgente ouimprevista, em caso de guerra, como-ção interna ou calamidade pública. OConstituinte de 1988 manteve a reda-ção tradicional do dispositivo, mastornou essas três situações, antesconsideradas as únicas justificativaspara o crédito extraordinário, comomeramente exemplificativas. Essaflexibilização no emprego do meca-nismo é extremamente perigosa e tem-se prestado a abusos, como os recentescasos de edição de medidas provi-sórias abrindo créditos extraordi-nários para obras no setor rodoviárioe aumento de capital do Banco doBrasil S/A.”

A discricionaridade dos predicadosimprevisíveis e urgentes para as despesas

extraordinárias requer do Poder Legislativomanifestação tempestiva, pois uma dasconseqüências da edição de uma medidaprovisória versando crédito extraordinárioé a possibilidade de o administrador públicoempenhar despesas com inexigibilidade delicitação12.

4.1. Medidas provisórias ou decretos?

Alguns autores não comungam com anecessidade de edição de medidas provi-sórias para a abertura de crédito extraordi-nário. Interpretam de maneira restritiva oart. 62 da Constituição, entendendo que amenção ao dispositivo seria apenas paracomunicar ao Poder Legislativo a super-veniência de uma despesa cuja vigência éimediata. O crédito extraordinário, segundoesse juízo, deveria ser aberto por decreto doPoder Executivo. Essa exegese pressupõe arecepção do art. 44 da Lei nº 4.320, queprescreve:

“Art. 44 – Os créditos extraordiná-rios serão abertos por decreto do PoderExecutivo, que deles dará imediatoconhecimento ao Poder Legislativo.”

Schetinni defende essa tese argumen-tando que

“nesta hipótese surge uma dúvida denatureza formal: pode o Congressoalterar a programação de despesaconstante de medida provisória? Ocrédito extraordinário, por definiçãoconstitucional e legal, é para atenderdespesa imprevisível e urgente. Pormais ágil que seja o Legislativo naapreciação da MP, é de se supor que adespesa já tenha sido realizada. Comopoderá então o Congresso alterar adestinação dos recursos? Por este eoutros motivos, que não nos cabediscutir neste trabalho, nos alinhamosdentre aqueles que defendem a segun-da posição – créditos extraordináriosdevem ser abertos por decreto execu-tivo”13.

Sanches também considera bastantequestionável autorização de crédito por meiode medidas provisórias. O fundamento

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básico é “não existirem razões de ordemprática, legal ou doutrinária para mudar oprocedimento tradicional, utilizado semproblemas por mais de um século”14.

Mas restou tácita, após uma década soba égide de novo Estatuto Político, a plausibi-lidade jurídica da medida provisória paraas despesas extraordinárias. A leitura dosparâmetros constitucionais inclinam assen-tar a MP como a única alternativa para taisdespesas. A jurisprudência não elucida asdemandas aventadas ao tema devido àspoucas ações impetradas na Corte Suprema.Em decisão ínsita no MS-22990/RJ, oMinistro Sepulveda Pertence manifesta-seentre os

“que tendem a transpor para o regimedas medidas provisórias as proibi-ções de delegação legislativa enume-radas no art. 68, § 1º, da Constituição,o que bastaria para inibi-las em maté-ria orçamentária (art. 68, § 1º, III), coma única ressalva explícita no art. 167,§ 3º, da abertura de créditos extraor-dinários.”

Portanto, se na Lei Maior está insertauma prescrição cuja execução estorva oordenamento positivo pátrio, a alternativamais viável, conciliando a doutrina quealicerça a abertura de crédito extraordináriopor decreto, é a modificação do multicitadoart. 167, § 3º, eliminando a referência ao art. 62e a expressão como as, passando o texto avigorar com a seguinte redação:

“Art. 167- São vedados:§ 3º A abertura de crédito extraor-

dinário somente será admitida paraatender a despesas imprevisíveis eurgentes, decorrentes de guerra, como-ção interna ou calamidade pública.”

5. Tramitação no Poder Legislativo

As medidas provisórias configuram-seem exceção derrogatória do postulado dadivisão funcional dos Poderes. Inauguramo ordenamento positivo de imediato, pelasomente manifestação monocrática do Chefedo Poder Executivo. Publicada a medida,

sua vigência é imediata, com força de lei.Esse instrumento legal caracteriza-se pelainstabilidade. Perdem a vigência se nãoapreciadas pelo Congresso Nacional noprazo de 30 dias.

A edição de medidas provisórias gera doisefeitos imediatos. O primeiro efeito é de ordemnormativa, eis que a medida provisória – quepossui vigência e eficácia imediatas – inova, emcaráter inaugural, a ordem jurídica. O segundoefeito é de natureza ritual, eis que a publica-ção da medida provisória atua como verda-deira provocatio ad agendum, estimulando oCongresso Nacional a instaurar o adequadoprocedimento de conversão em lei15.

O crédito extraordinário, ao submeter-seaos ritos previstos para a conversão em leida MP, contribui de forma negativa com orecrudescimento do já conturbado ordena-mento positivo brasileiro. A MP é uma dasespécies de atos normativos primáriosemanados pelo Poder Executivo, masrobustecida com a força, eficácia e valor delei. Esses predicados impregnam o créditode eficácia nula, quando finda o exercíciofinanceiro e, silente o Poder Legislativo emestabelecer o procedimento ritual de suaconversão em lei, induz o Poder Executivo areedições sucessivas, inserindo cláusula deconvalidação dos efeitos produzidos pelamedida anterior.

A perda retroativa da eficácia jurídicada medida provisória ocorre tanto nahipótese de explícita rejeição do projeto desua conversão em lei quanto no caso deausência de deliberação parlamentar noprazo constitucional de 30 (trinta) dias16.

A reedição é a solução criativa para reno-var a vigência desse ato quase-legislativo,de eficácia temporal limitada, pois é certoque a autorização extraordinária de despesajá tenha sido executada, devido aos pres-supostos exigidos na admissibilidade damatéria – como as decorrentes de guerra,comoção interna e calamidade pública.Estamos, assim, diante da possibilidade delegislar sobre algo inexistente, alterando umacoisa inexistente, que é justamente a lei orça-

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mentária do exercício financeiro já encerrado.Ora, a lei de orçamento é uma legislaçãoânua. Com o encerramento do exercíciofinanceiro, resulta írrito e nulo qualquer pro-cedimento tendente a modificar as autori-zações de despesas. Inclusive, findo o exer-cício financeiro, a contabilidade pública estáapta a exercer os atos legais, visando à cor-reta prestação de contas do Presidente daRepública. Como é possível legislar sobrealgo fictício?

A análise ofertada até o momento visaexpor esses efeitos perversos da tramitaçãoimperfeita do crédito extraordinário noCongresso Nacional. À evidência, os ques-tionamentos suscitados até o momentomerecem a solução tempestiva deste Poder.

Parece-nos inequívoco alterar o modusoperandi nas deliberações legislativas sobreo crédito extraordinário. A cada edição deuma medida provisória abrindo um créditoextraordinário é criada uma ComissãoMista Temporária para apreciá-lo. Esseprocedimento está alicerçado nos arts. 1º e2º da Resolução nº 1, de 1989-CN, queprescreve:

“Art. 1º O exame e a votação, peloCongresso Nacional, de MedidasProvisórias adotadas pelo Presidenteda República, com força de Lei, nostermos do art. 62 da ConstituiçãoFederal, será feita com a observânciadas normas contidas na presenteResolução.

Art. 2º Nas quarenta e oito horasque se seguirem à publicação, noDiário Oficial da União, de MedidaProvisória adotada pelo Presidente daRepública, a Presidência do CongressoNacional fará publicar e distribuiravulsos da matéria, e designará comis-são mista, para seu estudo e parecer.”

À nitidez, resta evidente a preocupaçãodo legislador ordinário em normatizar osinjuntivos constitucionais atinentes àsmedidas provisórias. No entanto, não foiobservada a especificidade do créditoextraordinário. Este configura-se em matériaorçamentária de caráter excepcional, exigin-

do iniciativa administrativa imediata,devido aos pressupostos para sua abertura.Ora, constituindo-se matéria orçamentária– e o é sem nenhum esforço exegético, pois ocrédito extraordinário altera a lei orçamen-tária –, o trâmite legislativo para esse tipode despesa tem de ser examinado pelaComissão Mista aludida no art. 166 daConstituição Federal, in verbis:

“Art. 166. Os projetos de lei relati-vos ao plano plurianual, às diretrizesorçamentárias, ao orçamento anual eaos créditos adicionais serão apreciadospelas duas Casas do Congresso Na-cional, na forma do regimento comum.

§ 1º Caberá a uma comissão mistapermanente de Senadores e Deputados:

I – examinar e emitir parecer sobreos projetos referidos neste artigo esobre as contas apresentadas anual-mente pelo Presidente da República;

II – examinar e emitir parecer sobreos planos e programas nacionais,regionais e setoriais previstos nestaConstituição e exercer o acompanha-mento e a fiscalização orçamentária,sem prejuízo da atuação das demaiscomissões do Congresso Nacional ede suas Casas, criadas de acordo como art. 58.” (grifamos)

No Congresso Nacional, a regulamen-tação desse artigo resultou na aprovação daResolução nº 2, de 1995-CN. Os arts. 1º e 2ºelucidam as matérias concernentes à suacompetência:

“Art. 1º Esta Resolução é parteintegrante do Regimento Comum edispõe sobre a tramitação das maté-rias a que se refere o art. 166 daConstituição Federal e sobre a Comis-são Mista Permanente a que se refereo § 1º do mesmo artigo, que passa adenominar-se Comissão Mista dePlanos, Orçamentos Públicos e Fisca-lização – CMPOF.

Art. 2º A Comissão tem como fina-lidade:

I – examinar e emitir parecer sobreos projetos de lei relativos ao plano

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plurianual, às diretrizes orçamen-tárias, ao orçamento anual e aoscréditos adicionais, assim como sobreas contas apresentadas anualmentepelo Presidente da República;

II – examinar e emitir parecer sobreos planos e programas nacionais,regionais e setoriais previstos naConstituição Federal e exercer o acom-panhamento e a fiscalização orçamen-tária, sem prejuízo da atuação dasdemais Comissões do Congresso Na-cional e de suas Casas, inclusive noque se refere ao disposto nos arts. 70 e71 da Constituição Federal.”

É fácil deduzir que a competência dessaComissão abrange todas as matérias con-cernentes ao universo orçamentário. O caputdo citado artigo 166 da Constituição não fazrestrições às modalidades de créditosadicionais a serem apreciados pela Comis-são Mista aludida no § 1º. Tampouco aResolução nº 2 supra o fez, e nem o poderia.Como todas as matérias orçamentáriasrestaram inclusas nos trabalhos dessaComissão de Orçamento, parece-nos umerro involuntário da burocracia legislativacriar uma outra Comissão Mista paraapreciar os créditos extraordinários. Acontrovérsia subsiste devido às medidasprovisórias observarem o disposto naResolução nº 1, de 1989-CN (que trata detodas as medidas provisórias). No entanto,em se tratando de crédito extraordinário –matéria orçamentária excepcional –, o consti-tuinte originário definiu sua apreciação pelaComissão Mista Permanente de Orçamento.Essa interpretação preserva a harmonia dosprincípios constitucionais referentes àdespesa pública.

Poder-se-ia argüir em contrário utilizando--se da interpretação literal do § 1º do art.166 da Carta Magna ou do art. 2º, inciso I,da Resolução nº 2/95-CN, cujo texto contéma palavra projetos, não se inserindo em seucontexto matérias concernentes às medidasprovisórias. A interpretação literal, nessecaso, macula novamente toda a harmoniado artigo 166, robustecido que está do

princípio da especialização legislativa emmatéria orçamentária, por intermédio deuma única Comissão Mista, de caráter perma-nente, para examinar tanto o orçamento geralda União, quanto suas alterações.

Decorrida quase uma década da insta-lação daquela Comissão Permanente,resulta evidente a especialização alcançadanos estudos atinentes à matéria orçamentária.Inclusive, os episódios da CPI do Orçamentocontribuíram para a democratização dosdebates sobre a transparência na alocaçãodos recursos públicos. Corrobora os funda-mentos esposados a grande quantidade decréditos especiais e suplementares anual-mente apreciados no âmbito dessa Comis-são. Ora, a quantidade de créditos extraor-dinários submetidos à apreciação do Con-gresso é infinitamente menor. Dessa sorte,não seriam eternizadas as reedições demedidas provisórias versando sobre créditoextraordinário, expondo ao constrangimentoa inércia congressual dessas proposiçõeslegais. Resta um abismo entre a probabili-dade de a Comissão de Orçamento ultimara tramitação dessas matérias no exercíciofinanceiro a que se referem e as inúmerascomissões mistas formalizadas para apre-ciar cada crédito extraordinário encaminhadoao Parlamento fazê-lo tempestivamente.

Portanto, é incontroverso que, se existeuma Comissão Permanente especializada nocontrole social dos gastos públicos, na apre-ciação ordinária do orçamento anual e doscréditos suplementares e especiais, aargumentação lógica seria que a ComissãoMista de Planos, Orçamentos Públicos eFiscalização detém alicerces sólidos demaior amplitude na apreciação de gastosextraordinários, exceção daquelas circuns-tâncias extremas do princípio constitucio-nal da autorização legislativa prévia dosgastos públicos.

6. ConclusãoDos argumentos expendidos, resulta

inequívoco a adoção das seguintes provi-dências concernentes aos créditos extraor-dinários:

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1) modificar a tramitação atual doscréditos extraordinários, iniciando-a somentepor intermédio da Comissão Mista dePlanos, Orçamentos Públicos e Fiscalização;

2) alterar o artigo 167, § 3º, da Constitui-ção Federal, consoante proposto, visandoeliminar a necessidade de edição de medi-das provisórias para a abertura de créditosadicionais, perturbando o já tumultuadoordenamento jurídico pátrio.

Notas1A lei orçamentária anual (LOA) é também

conhecida como OGU – Orçamento Geral da União,lei de meios e orçamento público, entre outrossinônimos. É uma lei de caráter anual, com vigênciaaté 31 de dezembro.

2 O § 8º do art. 167 da Constituição Federal(CF) contém as únicas exceções ao princípio daexclusividade:

“a autorização para abertura de créditossuplementares e contratação de operações decrédito, ainda que por antecipação de receita, nostermos da lei.”

3 Lei que estabelece as normas gerais de DireitoFinanceiro para a elaboração e controle dosorçamentos. Recepcionada como lei complementar(art. 165, § 9º, da CF), é a Lei de maior importânciaem matéria orçamentária.

4 Tanto o orçamento da União, quanto suasretificações por meio dos créditos adicionais, sãoautorizados pelo Congresso Nacional por lei. Existeuma discussão secular sobre o caráter dessalegislação no sentido de ser formal ou material.

5 Nas vedações do art. 167, esse princípio estáínsito no inciso V:

“V – a abertura de crédito suplementar ouespecial sem prévia autorização legislativa e semindicação dos recursos correspondentes;”

6 BIOLCHINI, Alberto. Indice Analytico daConsolidação das Disposições Orçamentárias de CaracterPermanente; Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928.p. 90 e 91.

7 PESSOA, Epitácio. Perfis Parlamentares, 7.Brasília: Câmara dos Deputados, 1978. p. 280 a284.

8 ROURE, Agenor. Formação do Direito Orçamen-tário Brasileiro . Rio de Janeiro: Typ. do Jornal doCommercio, 1916. p. 169.

9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandatode Segurança – MS-22990 / RJ. Relator: MinistroSepulveda Pertence. Diário da Justiça . Brasília, 5 defevereiro de 1998.

10 FILHO, Luiz Gonçalves de Lima. Nota Técnicanº 21/99 . Consultoria de Orçamentos do SenadoFederal. Brasília, 1999.

11 PEC – Sigla utilizada para as Propostas deEmendas à Constituição. Esta, a de nº 26, de 1996,propõe alterações em diversos artigos referentes àsmatérias orçamentárias.

12 Lei nº 8.666/93, art. 24, inciso IV.13 SCHETTINI, Francisco de Paula. Emendas a

Projetos de Lei de Crédito Adicional. Revista deInformação Legislativa. Brasília, nº 135, p. 198, jul./set. 1997.

14 SANCHES, Osvaldo Maldonado. Dicionáriode Orçamento, Planejamento e Áreas Afins. 1ª ed.Brasília: Prisma, 1997. p. 70.

15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RevistaTrimestral de Jurisprudência. Brasília, v. 151, p. 13,jan. 1995.

16 Idem, ibidem, p. 14.

Referências bibliográficas conforme original.

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Discriminação racial e princípioconstitucional da igualdade

Joaquim B. Barbosa Gomes

Joaquim B. Barbosa Gomes é Doutor emDireito Público pela Universidade de Paris-II(Panthéon-Assas). Membro do MinistérioPúblico Federal. Professor-Adjunto de DireitoAdministrativo da UERJ. Ex-Consultor Jurídicodo Ministério da Saúde. Visiting Scholar daColumbia University School of Law, New York.

“A Constituição dispõe que o ensino será minis-trado com base no princípio da ‘igualdade de condições’para acesso e permanência na escola; no entanto,dando aulas há 28 anos na Faculdade de Direito daUSP, para, em média, 250 alunos por ano, e tendotido aproximadamente 7.000 alunos, dou meutestemunho de que nem cinco eram negros!”(Professor Antonio Junqueira de Azevedo, in Folhade S. Paulo de 15-11-96, pág. 3-2)

“Education is perhaps the most importantfunction of state and local governments. Compulsoryschool attendance laws and the great expendituresfor education both demonstrate our recognition ofthe importance of education to our democratic society.It is required in the performance of our most basicpublic responsibilities, even service in the armedforces. It is the very foundation of good citizenship.Today it is a principal instrument in awakening thechild to cultural values, in preparing him for laterprofessional training, and in helping him to adjustnormally to his environment. In these days, it isdoubtful that any child may reasonably be expectedto succeed in life if he is denied opportunity of aneducation. Such an opportunity, where the state hasundertaken to provide it, is a right which must bemade available to all on equal terms”.(Trechoextraído da decisão “Brown v. Board of Educationof Topeka” da Suprema Corte dos EUA, 1954)

“Educação: passaporte seguro para a liberdade,arma indispensável na luta pela igualdade” (Juristabrasileiro anônimo)

Sumário1. A ruptura de 1985/1988: o reconhecimento

dos direitos coletivos e de grupos e o adventodas ações civis coletivas. 2. Legitimação para

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A luta por transformações sociais e pelapromoção da justiça social constitui tarefa aser levada a cabo mediante esforço eminen-temente coletivo.

No plano jurídico, essa singela constata-ção se traduz, na maioria dos países ociden-tais, na possibilidade de utilização deinstrumentos legais de promoção e defesa dedireitos de natureza coletiva, seja por meiode entidades formadas por grupos específicosoriundos da sociedade civil (associações,ONG’s etc.), seja por meio de órgãos gover-namentais concebidos e instituídos com o fimespecífico de promover a efetiva igualdade ede defender os direitos de determinadascategorias sociais vulneráveis.

O sistema jurídico brasileiro, que tem suasraízes mais antigas no Direito continentaleuropeu1, durante muito tempo ignorou porcompleto essa evidência. E o que é ainda maisgrave, o establishment jurídico nacional2 semprefoi majoritariamente individualista. É indisfar-çável o desconforto sentido por muitos opera-dores do Direito em relação aos instrumentosde defesa coletiva da sociedade ou de algunsde seus segmentos mais necessitados.

Entretanto, cresce a cada dia a consciênciaacerca da maior eficácia dos instrumentoscoletivos de aplicação do Direito e de buscada Justiça Social. Embora, ressalte-se, atendência de se aplicar o direito por meio deiniciativas de caráter meramente individualainda seja prevalecente, vislumbram-se nohorizonte, porém, claros sinais de mudança.

1. A ruptura de 1985/1988: oreconhecimento dos direitos coletivos ede grupos e o advento das ações civis

coletivas

Com efeito, a aprovação pelo CongressoNacional, em 1985, da Lei nº 7.347/85, com-plementada pela promulgação da nova

Constituição em 5 de outubro de 1988,anunciou uma mudança vital nesse campo.Pelo menos do ponto de vista jurídico-formal,trata-se de um divisor de águas, pois asinovações produzidas por esses dois atosnormativos cuidam precisamente de instru-mentos jurídicos de proteção e defesa dedireitos de grupos sociais específicos, ou dedireitos e interesses afetos à coletividadecomo um todo (Public Interest Law).

De fato, o Congresso Nacional, consta-tando a existência de uma lacuna no orde-namento jurídico brasileiro, e tambémsabedor da necessidade de se incentivar aimplementação de direitos que transcendama esfera individual, buscou criar instru-mentos de defesa e promoção dos chamadosdireitos “coletivos” e “difusos”, perante oPoder Judiciário.

Em 1985, portanto, foi editada a chamadaLei da Ação Civil Pública, que autoriza oPoder Executivo federal e estadual, asassociações constituídas há mais de um anoe o Ministério Público a proporem ações civisperante o Poder Judiciário, em defesa dedireitos e interesses difusos e coletivos. AConstituição de 1988 veio reforçar essa lei,atribuindo enormes poderes ao MinistérioPúblico para agir em defesa de tais direitos einteresses, inclusive o de conduzir investi-gações próprias por meio do chamadoInquérito Civil Público, novidade absolutano Direito brasileiro.

Nas palavras de José Carlos BarbosaMoreira, o Poder Legislativo, por meio dasnovas normas introduzidas em 1985 e 1988,fez “irromper o social na paisagem doprocesso”, com isso deixando em segundoplano a concepção individualista até entãopredominante. Ao fazê-lo, o Congressoampliou a legitimação para postular em juízodas entidades jurídicas vocacionadas à de-fesa e à promoção dos interesses das massas3.

Essa foi, sem dúvida, uma mudançacrucial no domínio da aplicação do Direito eterá certamente, num futuro próximo, profun-das repercussões no campo da eficácia dasnormas jurídicas em nosso país.

defesa de interesses de grupos étnicos mino-ritários. 3. Facilitação do acesso à Justiça. 4. Osobstáculos à ação eficaz do MP. 5. As deficiênciasestruturais do MP.

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Com efeito, a noção de interesse públicoou interesse geral da coletividade passou nosúltimos tempos por certas modificaçõesconceituais, a ponto de se cogitar, com umaboa dose de precisão, da diferenciação entrea) direitos e interesses gerais de toda acoletividade; b) direitos e interesses dedeterminados grupos; e c) direitos individuaisindisponíveis. Isso significa que, ao invés datradicional dicotomia entre direitos doindivíduo e direito da coletividade, admite-se a existência de uma categoria intermediáriade direitos, situada a meio caminho entre osdireitos puramente individuais e os direitos einteresses gerais da sociedade como um todo4.

No Brasil, a partir de 1985 e com maisprecisão a partir de 1988/905, não há dúvidade que essa categoria intermediária dedireitos admite uma outra diferenciação: aque separa os direitos pertencentes a umacategoria “determinada” ou “determinável”de pessoas e aquela pertinente a um grupo“indeterminado” de indivíduos. Por exem-plo, podem seguramente ser catalogadoscomo membros de uma categoria determi-nada ou determinável de pessoas: a) osmoradores de um edifício; b) os empregadosde uma empresa estatal ou de um conglome-rado de empresas privadas; c) os membrosdos corpos docente e/ou discente de umaUniversidade; d) as pessoas pertencentes auma determinada etnia; e) as adeptas dedeterminado culto ou religião. Os elementos-chave de caracterização em todos essesexemplos são, de um lado, o caráter transindi-vidual do direito ou interesse tutelado; deoutro lado, a noção de appartenance oumembership que anima os membros do grupo,vinculados uns aos outros em razão dointeresse comum decorrente do fato depertencerem a um universo de pessoasdotadas de certas características distintivasfacilmente identificáveis; ou, no dizer da lei,do fato de existir, entre os titulares do referidodireito, uma “relação jurídica-base” comuma todos os integrantes do grupo ou categoria.Nessa categoria jurídica determinada oudeterminável, poderiam ser enquadrados,

por exemplo, todos os cidadãos brasileirosdescendentes de africanos, as mulheres, osíndios, os membros da minoria judaica, osadeptos desta ou daquela confissão religiosa,em suma, todos aqueles grupos que, no nossosistema jurídico, têm legitimação parareivindicar direitos que lhes são próprios, sejapor razões históricas ligadas à sua inserçãona comunidade nacional, seja por peculiari-dades que os distinguem daqueles quecompõem o contingente majoritário no seioda nação brasileira.

Já o grupo social indeterminado ou de difícildeterminação seria aquele cujos direitos einteresses trazem igualmente a marca datransindividualidade. Noutras palavras,trata-se de direitos e interesses que “depas-sam a esfera de atuações dos indivíduosisoladamente considerados, para surpreendê-los em sua dimensão coletiva”6. Entretanto,em relação a esse grupo, haveria indefiniçõesimportantes: a que se refere à individuali-zação das pessoas titulares dos direitos einteresses reivindicados e a concernente aoalcance das lesões eventualmente infligidasaos membros desse grupo. Isso porque, nessecaso, em se tratando de dano aos direitos einteresses do grupo, a lesão se dissemina “porum número indefinido de pessoas, tantopodendo ser uma comunidade, uma etnia oumesmo toda a humanidade” 7. Noutraspalavras, para dar exemplos mais concretos,seriam titulares de direitos difusos a) osmoradores anônimos de uma cidade ou de umEstado; b) os consumidores de determinadoproduto espalhados por todo o país; c) ouainda, os contribuintes de determinadotributo de incidência geral e indiscriminada.

Vários autores, brasileiros e estrangeiros,tentaram traçar o conceito e a diferenciaçãoentre essas categorias de direitos, que, comojá dito, constituem novidade no sistemajurídico do Brasil. Albino Zavaski, porexemplo, assim se pronuncia sobre o tema:

“Do ponto de vista objetivo, asse-melham-se os interesses difusos aoscoletivos: ambos são indivisíveis, nãopodendo ser satisfeitos nem lesados

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Revista de Informação Legislativa310

senão de forma que afete a todos ospossíveis titulares, difusa ou coletiva-mente considerados. O que os diferenciasão seus aspectos subjetivos: emboraambos sejam transindividuais, a indeter-minação dos sujeitos titulares é absolutaquando se trata de interesses difusos, masé relativa em se tratando de interessescoletivos. É que, nos difusos, a ligaçãoentre os titulares decorre de meracircunstância de fato, enquanto ostitulares dos interesses coletivos têm aligá-los, entre si ou com o obrigado,uma relação jurídica-base” 8.

Um autor que também enfrentou o temafoi o jurista italiano Mauro Cappelletti, e ofez na perspectiva de busca de uma soluçãopara problemas sociais, isto é, aquelesproblemas para cuja solução não basta a açãoisolada de um único indivíduo, mas ainiciativa conjunta de Governo, de movimen-tos sociais e organizações não-governamen-tais nacionais e estrangeiras. Diz Cappelletticom muita propriedade:

“O que são os chamados direitosdifusos? Para entender-se perfeita-mente o tema, é preciso, antes de tudo,abandonar os esquemas dogmáticos epuristas. É necessário entender aquestão social, primeiro. Pois a questãosocial está na base dos interessesdifusos. Só a partir daí se podemcompreender os aspectos propriamentejurídicos. Acima de tudo compreen-dendo o problema social e a sua nova,mas já enorme e crescente, importânciana sociedade contemporânea. Então,compreenderemos por que este tematem sido negligenciado pelos juris-tas(....)”. “Quando surge o problemasocial, o direito logo deve intervir, devetratar de resolvê-lo, ou de colaborar naresolução do mesmo. Esse é o direitorealista, não um direito abstrato,dogmático, direito das nuvens. Qual éo problema jurídico que correspondeao problema social característico dasociedade contemporânea? Não posso

dizer que, em outras épocas, nãoexistissem exigências de intervençãodo mesmo tipo, intervenções difusas.Mas o que desejo enfatizar é que hojeesse problema emerge com uma impor-tância extraordinária, sem precedentesna história do homem. O problemajurídico é muito simples. Como prote-ger essa categoria, essa massa, essesinteresses difusos (do consumidor, domeio ambiente, etc?). Certo, umaprimeira resposta é óbvia: o legisladorpode aprovar leis de direito substancialque protejam o consumidor, o ambiente,as minorias raciais, civil rights, direitoscivis etc. Aí está apenas um primeiropasso, não mais. Porque especifica-mente o interesse difuso necessita deuma proteção judiciária, processual,sempre que violado. Não basta queexista uma lei de direito material queexija lealdade, por exemplo, em matériapublicitária. Não basta isso. É precisoantes uma proteção adequada no casode fraude publicitária”9.

São, portanto, muito próximas as noçõesde interesses “difusos” e “coletivos”. En-quanto os primeiros dizem respeito a direitose interesses importantes para a coletividadecomo um todo, os últimos se destacam porserem pertinentes a um grupo suscetível deidentificação.

A proximidade e a semelhança dessesconceitos faz surgir um primeiro problema: oda legitimidade para a defesa de cada tipode direito ou interesse, já que são múltiplosos atores autorizados pela Constituição epelas leis brasileiras a agir em defesa dedireitos metaindividuais.

2. Legitimação para defesa de interessesde grupos étnicos minoritários

De saída, uma reflexão se impõe: quemdetém legitimidade para a promoção e adefesa dos interesses de determinado grupoétnico – apenas as entidades representativasdesses grupos ou os órgãos que agem emnome de toda a coletividade?

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À primeira vista, a questão parece de fá-cil solução, pelo menos no plano jurídico. Naprática, ela não o é, e as dificuldadesinerentes ao seu deslinde só ainda nãovieram à tona por força da ligeireza e do maldisfarçado desdém com que a situação socialdo negro e de outras minorias é tratada nasociedade brasileira.

Dada a avassaladora predominância deuma visão conservadora nos meios jurídicosbrasileiros, não constituiria nenhuma sur-presa o eventual surgimento de corrente depensamento tendente a desqualificar o fatorétnico-racial como elemento determinante delegitimação para efeito da ação civil pública.Aliás, uma tal corrente de pensamento nãoseria estranha às tradições jurídicas brasilei-ras, que tendem sempre a deixar de lado adiscussão da essência das coisas paraprivilegiar a abordagem de aspectos secun-dários, periféricos, processuais...

Porém, no caso específico do objeto desseestudo, existem obstáculos de peso a essapossível tentação diversionista: de um lado, aprópria Constituição Federal que, em seuartigo 129, III, declara o Ministério Públicohabilitado a propor ações civis públicas paradefesa de “outros interesses difusos ecoletivos”. Como já vimos, a promoção dosdireitos constitucionais dos negros brasileirospode ser enquadrada tanto como direitocoletivo quanto como direito difuso. De outro,a Lei Orgânica do Ministério Público daUnião, que acrescentou ao elenco de atribui-ções desse órgão a defesa dos direitos das“minorias étnicas” (L.C. 75/93, art. 6º, VII, b),atribuição essa exercitável justamente pelavia da ação civil pública. Portanto, no planopuramente normativo, não existe qualquerobstáculo à atuação do MP na proteção aosdireitos de grupos étnicos minoritários. Aocontrário, existe autorização expressa, comojá visto. Isso significa que a propositura deação civil pública com vistas à defesa dedireitos e interesses de minorias étnico-raciais independe de autorização legislativaespecífica, ao contrário do que vêm decidindoalgumas cortes brasileiras, quando convo-

cadas a decidir ações coletivas em outrasáreas, como, por exemplo, na área deimpostos...

Resta saber se tal atuação se faria a títulode tutela de defesa dos direitos difusos oucoletivos. Em se tratando de atuação doMinistério Público, a questão me pareceirrelevante, eis que a legitimação consti-tucional foi outorgada pelo legisladorconstituinte em termos deliberadamenteirrestritos (“outros interesses difusos ecoletivos”)10. Vale dizer, ainda que, nessecaso, os direitos e interesses protegidostenham, em sua essência, uma indisfarçávelnatureza de classe ou de grupo, é plenamenteviável a sua tutela por iniciativa do MinistérioPúblico, como de resto pode ocorrer em outrosdomínios em que estejam em jogo direitoscoletivos e não difusos. Já as associações sópodem agir a título de defesa de direitos einteresses de grupo ou classe. Isto é, prevaleceaqui o princípio da especialização: somenteas associações que, de acordo com os seusestatutos, tenham como objetivo a defesa dedireitos de certas minorias poderão ingressarem juízo com ação civil em nome delas.

De toda sorte, o que nos parece absoluta-mente relevante é o fato de que, efetivamente,o fator étnico constitui um critério inegávelde classificação, para efeito de enquadramentodo tipo de tutela a ser reivindicada perante oPoder Judiciário.

Por outro lado, vista sob o ângulo daJustiça Social, que constitui um dos pilaresdo sistema constitucional brasileiro11, a buscade solução aos problemas de grupos étnicosminoritários interessa não só a esses gruposmas também à sociedade brasileira como umtodo, ao Estado brasileiro e, cada vez mais,às forças econômicas hegemônicas no País,que têm todo o interesse em ver integradas àsociedade de consumo as grandes massasmarginalizadas da nossa sociedade, compos-tas majoritariamente por pessoas de ascen-dência africana. Isso contribuiria, semdúvida alguma, para a preservação da pazsocial, para a cessação do alijamento social eda marginalização de um grupo social de

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importância vital na construção da naciona-lidade brasileira. Sob esse ângulo, pois, oenquadramento jurídico dos direitos dosnegros brasileiros se faria na categoria dedireitos difusos, e não de direitos de umaclasse de pessoas12.

Como um dos detentores da legitimaçãopara propor Ação Civil Pública, o MinistérioPúblico é de longe a instituição que reúne asmelhores condições para obter sucesso nessaempreitada, que é de interesse de toda asociedade brasileira, como já dissemos. Comefeito, nos diversos domínios em que as açõescivis públicas são taxativamente admitidas(meio ambiente, defesa do consumidor,mercado financeiro, defesa do patrimôniopúblico), o MP é, sem dúvida alguma, entreos legitimados, a instituição mais atuante.Isso decorre de alguns fatores, entre os quais:a) a boa qualificação jurídica dos membrosdo Ministério Público e o prestígio profissionalde que desfrutam na sociedade brasileira;b) a fragilidade financeira e organizacionaldas associações voltadas à defesa de interessescoletivos e de grupos, ainda bastante inci-pientes e rudimentares no Brasil; c) a notávelausência, entre os brasileiros em geral,daquilo que os povos anglo-saxões apro-priadamente denominam espírito de commu-nity, deficiência agravada pela nossa seculartendência a acreditar que deve vir do Estadoa solução para todos os problemas sociais.

Não resta dúvida de que a ConstituiçãoFederal elegeu o Ministério Público como uminstrumento privilegiado de promoção edefesa dos direitos coletivos e difusos. Aleitura de alguns de seus dispositivos nosconduz à conclusão de que essa Instituiçãofoi alçada à condição de Promotor daCidadania e dos direitos coletivos, como temsido dito à exaustão. Rompeu, assim, aConstituição de 1988 com uma longa e já bemestabelecida tradição dessa Instituição, que,até então, dedicava-se preferencialmente aodesempenho do papel de mero fiscal da lei ede titular da ação penal, o que é muito poucoquando se sabe que o Brasil é um país em quea persecução penal constitui precisamente a

mais dramática prova da ineficiência e docaráter às vezes artificial, puramente mimé-tico, de algumas peças do sistema jurídico.

De fato, em seu art. 129, a CF 1998 incluientre as funções institucionais do MP a de

“promover o inquérito civil e a açãocivil pública, para a proteção dopatrimônio público e social, do meioambiente e de outros interesses difusos ecoletivos”.

Note-se que a Constituição não incluiexpressamente a defesa dos direitos dasminorias entre os interesses a serem tuteladospor meio da ação civil pública. À primeiravista, esse suposto silêncio do texto constitu-cional poderia constituir um poderosoargumento para os segmentos conservadorese imobilistas do establishment jurídico brasi-leiro, que aí encontrariam a base jurídicaformal para entravar toda e qualquer açãodo Ministério Público em defesa das minoriasmarginalizadas13.

Contudo, é a própria Constituição, nomesmo artigo 129, inciso III, que outorga aoMinistério Público a atribuição de proporação civil pública para defesa de “outrosinteresses difusos e coletivos”. Vale dizer, aprevisão constitucional é ampla, sem qual-quer cláusula restritiva. Portanto, não háobstáculo jurídico sério à ação do Ministérioem defesa dos direitos da minoria negrabrasileira14.

Ainda no plano constitucional, guardapertinência com o tema da afirmação dosdireitos da comunidade negra a seção rela-tiva à cultura (seção II do capítulo III do títuloVIII), artigos 215 e 216, assim concebidos:

“Art. 215. § 1º: O Estado protegeráas manifestações das culturas popula-res, indígenas e afro-brasileiras, e dasde outros grupos participantes doprocesso civilizatório nacional (...);

Art. 216. Constituem patrimôniocultural brasileiro os bens de naturezamaterial e imaterial, tomados indivi -dualmente ou em conjunto, portadoresde referência à identidade, à ação, àmemória dos diferentes grupos for-

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madores da sociedade brasileira, nosquais se incluem: a) as formas deexpressão; os modos de criar, fazer eviver;

§ 4º Os danos e ameaças ao patri-mônio cultural serão punidos, naforma da lei”.

Como se vê, a própria ConstituiçãoFederal (art. 215) singulariza os brasileirosde descendência africana, ao assegurar aproteção do Estado às suas manifestaçõesculturais específicas. Reconhece-lhes, por-tanto, a condição de grupo social portadorde certas características histórico-culturais,diferenciadoras dos demais elementoscomponentes da Nação. No plano estrita-mente jurídico, o art. 215 imprime de formainequívoca aos direitos e interesses dos ne-gros em geral, assim como dos índios e dosdescendentes de europeus, a marca de direitocoletivo, de classe. Em suma, reconhece-lheso caráter de grupo dotado de direitosespecíficos em face da sociedade brasileira15.

Já o art. 216 vai mais longe: diz que opatrimônio cultural brasileiro se compõe dosbens de natureza material ou imaterialoriundos das três raças que compõem a nossanação, e que qualquer dano causado a umou a todos os elementos componentes dessepatrimônio (“tomados individualmente ouem conjunto”) será reprimido na forma dalei. Aqui não se trata mais de direitos de grupoou de classe, mas de direitos pertencentes atoda a coletividade (“patrimônio culturalbrasileiro”). Poderá, assim, ser consideradaviolação de direitos difusos toda e qualqueração (privada ou governamental) tendente asufocar, a suprimir, a escamotear, a mitigar aimportância da contribuição de cada umadas três raças na construção da naciona-lidade brasileira. Nesse sentido, pois, ocombate à opressão e à situação de quase-ausência de direitos em que vive a maioriados negros no Brasil constitui, sem dúvidaalguma, um direito difuso a ser perseguidona via da ação civil pública.

Portanto, os artigos 215 e 216 da Carta de1988 reforçam o entendimento de que o MPestá constitucionalmente autorizado a propor

ações civis públicas em defesa das minoriasoprimidas, a título de defesa de interessesdifusos. Tais interesses, como já vimos,somados aos dos demais grupos étnicos queformam a identidade nacional, constituem,à luz do dispositivo constitucional acimatranscrito, o chamado patrimônio culturalbrasileiro. Ou seja, um típico interesse difuso.

Não bastasse isso, a Lei Complementarnº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Públicoda União) veio tornar ainda mais explícita essaatribuição do MP, ao dispor em seu artigo 6º:

“Art. 6º – Compete ao MPU:VII – Promover o inquérito civil e

ação civil pública para:a) proteção dos direitos constitu-

cionais;b) proteção do patrimônio público

e social, do meio ambiente, dos bens edireitos das comunidades indígenas,à família, à criança, ao adolescente,ao idoso, às minorias étnicas e aoconsumidor.”

Por fim, no plano da lei ordinária, aprópria Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) outorgou ao MP os instrumentos de açãonecessários à defesa dos direitos de minorias.Com efeito, concebida inicialmente comoinstrumento de defesa do meio ambiente, doconsumidor e do patrimônio cultural (bens edireitos de valor artístico, estético, histórico,turístico e paisagístico), na sua versãooriginal essa lei teve amputado, por força deveto do Presidente José Sarney, o dispositivoque possibilitava o ajuizamento da ação paradefesa de “outros interesses difusos”. Oargumento jurídico usado para justificar oveto foi o de que a amplitude dessa expressãofindaria por causar insegurança jurídica.

Foi necessário aguardar a promulgaçãoda Lei 8.078/90 (Código de Defesa doConsumidor) para que o quadro normativoda ação civil pública viesse a se completar, jáque esse Código veio não apenas restaurar odispositivo vetado cinco anos antes, mastambém dar a definição precisa do que sãodireitos difusos, direitos coletivos e direitosindividuais homogêneos (art. 81)16.

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Assim, a partir de 1990, como diz aProcuradora Thaís Graeff em sua dissertaçãode Mestrado17,

“a ação civil pública passou a ser ins-trumento de defesa de todo e qualquerinteresse difuso ou coletivo, transfor-mando-se em poderoso instrumento depreservação do patrimônio público edos direitos de minorias, bem comoveículo de demandas sociais na buscada efetiva realização de direitosconstitucionalmente assegurados”.

3. Facilitação do acesso à justiça

Também no plano da efetividade dasnormas constitucionais e legais pertinentesà tutela de interesses difusos e coletivos, apresença do Ministério Público se reveste degrande importância, na medida em que aatuação dessa Instituição pode ser vista comoum utilíssimo instrumento de superação dasdificuldades de acesso à Justiça.

Com efeito, é sabido que a Justiça no Brasilé cara, morosa e inacessível ao cidadãocomum. “Imagine-se o cidadão comumlitigando com uma grande multinacional embusca do seu direito a um meio ambientesaudável” (Thais Graeff, ob. Cit., p. 44)18. Ou,diríamos nós: imagine-se um grupo decidadãos negros em luta contra o Estado oucontra o poderoso cartel do ensino privadolucrativo brasileiro, a fim de fazer valer o seudireito, de cunho constitucional, de ver osfilhos contemplados com o acesso à boaeducação...

Em princípio, a ação civil pública seriaum excelente meio de remover tais obstáculos,já que ela não expõe individualmente cadapessoa interessada, tampouco implica gastospor parte do cidadão beneficiário da tutela.Isso porque, proposta pelo Ministério Públicoou por associações, a Ação Civil Pública nãoacarreta condenação em honorários deadvogado nem despesas processuais. 19,20 Poroutro lado, evita-se o congestionamento doPoder Judiciário, eis que uma só ação ésuficiente para dar solução a problemas de

interesses de milhares, e até mesmo demilhões, de pessoas ao mesmo tempo.

Some-se a isso o fato de que o inquéritocivil público conduzido pelo MinistérioPúblico, procedimento preparatório à açãocivil pública, permite a celebração de ajustesentre as partes em confronto, visando àadequação aos desígnios da lei, os chamadosCompromissos de Ajustamento de Conduta.Tais compromissos têm-se revelado maiseficazes do que o ajuizamento de ações, pois,muitas vezes, os direitos difusos envolvemquestões estruturais, de larga repercussãosocial, que não podem ser resolvidas à basede uma simples e, em muitos casos, abruptadecisão judicial.

4. Os obstáculos à ação eficaz do MP

Resta saber, contudo, se esse complexoarcabouço constitucional e legal tem obtidorepercussão na vida diária da instituiçãoMinistério Público e, por via de conseqüência,do Poder Judiciário. Mais: é imperiosotambém indagar se esses poderosos instru-mentos de intervenção do poder público naárea social são sequer do conhecimento dealguns órgãos do Poder Executivo, quetambém têm legitimidade para utilizá-los.

Tome-se por exemplo a educação, que éum setor crucial e que tem um impactodesproporcional sobre os negros, pois elesconstituem a maioria esmagadora dos pobresbrasileiros. A educação é um tema que seenquadra perfeitamente no conceito de“direitos difusos”: a Constituição Federal dizexpressamente que a “educação é um direitode todos e dever do Estado e da família”.Noutras palavras, um típico exemplo dedireito que é ao mesmo tempo individual, istoé, suscetível de ser postulado pelo cidadão atítulo pessoal, e difuso, por ser um dever doEstado para com todos aqueles que vivem noterritório nacional.

Mas a educação é precisamente umexemplo perfeito do divórcio entre lei erealidade, entre meras proclamações jurí-dicas e direitos efetivamente assegurados. Às

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vésperas da virada do milênio, até o nível deensino médio, as escolas que oferecem boaqualidade de ensino no Brasil são, em geral,as escolas privadas. Apesar de privadas,essas escolas recebem diversos tipos definanciamento governamental, seja sob aforma de ajuda direta para construção ereforma de suas instalações, seja por meio deisenções fiscais de diversas naturezas21.Somente as famílias dotadas de considerá-veis recursos financeiros têm meios dematricular seus filhos em escolas privadas.Negros, portanto, estão excluídos dessesistema, em razão de injustos artifícioscriados pela própria lei.

A injustiça se torna ainda mais intolerávelem se tratando de ensino universitário. Aquia equação se inverte: as boas universidadessão as públicas. Contrariamente ao que sepassa nos EUA, em que há uma grandediversidade de instituições de ensino univer-sitário, no Brasil boa qualidade de ensinouniversitário se confunde com universidadepública. Pouquíssimas universidades pri-vadas oferecem ensino de razoável qualidade.Contudo, o acesso à Universidade pública éultralimitado: a seleção dos alunos se fazmediante o exame “vestibular”, no qual sãoaprovados, em sua maioria esmagadora, pelomenos para os cursos de maior prestígio,apenas os alunos egressos das escolasprivadas, que, além de terem tido o privilégiode freqüentar boas escolas, indiretamentefinanciadas com recursos públicos (quedeveriam imperativamente ser usados parafinanciar o ensino público universal, e não oensino canalizado para uma pequenaminoria), ainda dispõem de recursos finan-ceiros para freqüentar cursos específicos depreparação para tal exame de admissão aocurso superior.22

Em resumo: o dinheiro dos impostospagos por toda a sociedade é canalizado,primeiro para subsidiar a escola privada deensino fundamental e médio à qual apenasos ricos têm acesso; em segundo, parafinanciar integralmente a universidadepública a que somente esses mesmos privile-

giados terão acesso23. Ou seja, a perfeitaperpetuação do ciclo vicioso da miséria e daexclusão.

Esse nosso sofisticado (chancelado pelasleis24) sistema de opressão social e racial, seconfrontado com o de outros países, traria àtona a intolerável incivilidade das nossasrelações sociais. À guisa de comparação,tome-se mais uma vez como exemplo osEstados Unidos, país que, como o Brasil, tevelonga história de escravidão, mas que as elitesconservadoras brasileiras têm especial horrorem ver comparado ao Brasil. Esquecem-se deque lá, como aqui, negros foram duranteséculos considerados como objeto e, mesmoapós a emancipação legal, continuaramalijados dos mecanismos suscetíveis deconduzir ao aprimoramento pessoal ehumano. Lá, o alijamento se operou por meiode leis e de decisões judiciais aplicáveis emtodo o território do país (v. Plessy v. Ferguson,1896). Aqui, por meio do “jeitinho” brasileirode fazer as coisas.25 Lá, o problema vem sendocorajosamente enfrentado por todas as forçasatuantes no espectro político. A mobilizaçãoda sociedade em favor dos direitos civis nosanos 60 resultou na aprovação pelo Congressodo Programa de Direitos Civis, um complexo,minucioso e vasto conjunto de atos norma-tivos que apregoam várias medidas depromoção no campo cível, mas que no Brasiljá começa a ser deturpado como se se tratas-se meramente de um “sistema de quotas”.Os resultados desse programa, passadospouco mais de trinta anos de aplicação, sãosimplesmente espetaculares26.

Na área da educação, insista-se maisuma vez, o combate aos efeitos da discrimi-nação racial nos EUA se faz por diversosmétodos, uns aparentemente heteredoxos(affirmative action programs), porém conce-bidos com prazo certo de duração como únicomeio de extirpar a mentalidade escravocrata,responsável por aquele tipo de discriminaçãodisseminada, estrutural, não necessaria-mente ancorada em leis; outros por meio demecanismos jurídicos revestidos de induvi-dosa sofisticação, como é o caso do capítulodas Civil Rights Laws de 1964, que, ao invés

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de se limitar a condenar a discriminaçãoracial por meio de normas proibitivas vagas,como se faz no Brasil, optou por uma posturamais afirmativa, pró-ativa, de promoção,impondo o dever de promoção da “diversi-dade” em todo e qualquer estabelecimentode ensino ou programa educacional que sebeneficie de qualquer tipo de ajuda governa-mental federal (Discrimination in federallyassisted programs). Como se vê, é o Estado,usando de suas prerrogativas de supremaciapara impor não apenas às instituições deensino públicas, mas também às privadasbeneficiárias de qualquer tipo de apoiogovernamental, a obrigatoriedade de inclusão,em percentuais compatíveis com a respectivapresença de cada grupo em uma dadacomunidade, de representantes de grupossociais historicamente marginalizados, quede outra maneira não teriam acesso àeducação de boa qualidade, já que estanormalmente é reservada ao atendimento dosinteresses das classes sociais dominantes, emcaso de inércia do Estado.27

Em suma, embora não seja a única, aeducação é uma das áreas em que o conceitode “direitos difusos” se adapta perfeitamente.Nela se encontra entrelaçada a questão raciale os mecanismos legais por meio dos quais oDireito brasileiro exclui os negros e os pobresem geral do processo de aprimoramentosocial.

É certo que um empreendimento dessaenvergadura incumbe prioritariamente aopoder público e às lideranças políticasnacionais mais expressivas, cujo poder deimpulsão não deve ser menosprezado. Seriaum equívoco imaginar que a segregação defato do negro no Brasil se resolveria com baseapenas em ações judiciais. O exemplo dosEUA está aí para nos mostrar o contrário:sem a firme determinação do Governo federalsob Kennedy, Johnson, Carter, Clinton e atémesmo de alguns republicanos28, os negrosnorte-americanos não teriam obtido o que jáconseguiram, que é muito se comparado coma triste situação dos negros brasileiros, quevivem num país que ironicamente se auto-proclama uma “democracia racial”!

A ação civil pública, portanto, conduzidapor ONG’s e pelo Ministério Público, seriaum ótimo instrumento de combate a essesistema viciado de criação de “injustiçaslegitimadas pelo Direito”. E isso não apenasno campo da educação, mas também no dasrelações de emprego29 e muitos outros, emque o Brasil se notabiliza por uma insupor-tável injustiça.

Resta saber se esse formidável instru-mento de combate jurídico vem sendo utili-zado adequadamente.

5. As deficiências estruturais do MP

No âmbito federal, não obstante a boareceptividade que o assunto tem em algunssetores do Ministério Público Federal,especialmente da Procuradoria Federal dosDireitos do Cidadão e das suas ProcuradoriasRegionais dos Direitos do Cidadão, é forçosoreconhecer que muito pouco foi feito até hoje.É bem verdade que somente agora, passadosquatorze anos desde a sua instituição, asações civis públicas começam a ter umimpulso positivo na vida institucionalbrasileira. Até há bem pouco tempo, militavacontra a sua evolução o effet de blocage doJudiciário, consistente ora em abortar abrupta-mente, ainda no nascedouro, certas açõesmais indigestas, invariavelmente por meiode technicalities ou mumbo jumbo , isto é,medidas judiciais estapafúrdias de conteúdomeramente processual, ora por intermédio deliminares altamente contestáveis, impostasde cima para baixo pelos órgãos jurisdi-cionais de revisão e de cúpula do JudiciárioFederal. Noutras palavras, no seu períodode amadurecimento inicial, as ações civispúblicas têm servido para expor às escânca-ras os vícios e as chagas perpétuas do sistemajurídico brasileiro como um todo: o individua-lismo exacerbado, o formalismo outrancier, afalta de racionalidade e de praticidade dagrande maioria dos instrumentos de ação etc.Diante desse quadro, não surpreende que obalanço geral das ações civis públicas sejatão esquálido, e que na coluna referente à

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proteção dos direitos das minorias, por partedo Ministério Público, nada haja para seanalisar!

Tal estado de coisas reflete, não é ociosofrisar, o conhecido drama institucional demuitas nações, o qual é particularmenteagudo no Brasil: o da profunda dissociaçãoentre direito positivo e direito efetivamenteaplicado, entre norma formal e realidadeinstitucional concreta. Tal clivagem, a bemda verdade, vem inteiramente ao encontro daacurada reflexão de Norberto Bobbio, paraquem, em se tratando de direitos do homem,“deve-se ter em mente, antes de mais nada,que teoria e prática percorrem duas estradasdiversas e a velocidades muito desiguais”.Pensamento esse também compartilhadopela ilustre autora da dissertação já mencio-nada, que constata o “abismo verificado entredireitos reconhecidos e direitos asseguradosefetivamente no Brasil”, isto é, a enormedistância existente entre os instrumentoslegais de que se dispõe para tentar interferircom essa realidade no âmbito do Judiciário edo Ministério Público, e a realidade cruel davida cotidiana dessas instituições.

Como já dito, a Constituição de 1988transformou o Ministério Público em verda-deiro “promotor da cidadania”. Colocou-ocomo ponte entre a sociedade e o Estado,dando-lhe poderes para muitas vezescontrariar e impedir a realização de açõespelo próprio Estado, quando ilegais oulesivas ao interesse da coletividade. Para isso,dotou-o de autonomia administrativa efinanceira, concedeu aos seus membrosgarantias funcionais idênticas às da Magis-tratura. Em suma, retirou-o da esfera deinfluência do Poder Executivo.

Mas os problemas organizacionais,estruturais e até ideológicos da Instituiçãonão têm permitido que ela exerça plenamentea sua missão.

Com efeito, o Ministério Público Federal,passados mais de dez anos da promulgaçãoda Constituição de 1988,30 continua funcio-nando como se, na prática, o sistemajurisdicional ainda estivesse sob a égide do

regime constitucional anterior a 1988: muitosmembros da Instituição ainda agem (ou sãoforçados a agir por força da estruturaorganizacional traçada pela L.C. 75/93)como se a sua missão mais importante aindafosse a de defender a União em Juízo; nãopoucos se dedicam quase exclusivamente aatuar em litígios de cunho individual,cumprindo o papel de custos legis. Ou seja,existe atualmente no MPF um grande númerode profissionais experimentados que sededicam a atividades que são seguramentesubalternas se comparadas ao papel ativoreservado à Instituição pela Constituição epelas Leis de regência da chamada “tutelacoletiva”. Poucos Procuradores são afetadosa este setor de Promoção de Direitos eInteresses Difusos, quase todos eles jovensrecém-ingressados na Instituição, não raromovidos por um edificante entusiasmo pelacausa da regeneração da nossa triste evexaminosa praxis social e institucional, mas,em realidade, desprovidos do indispensávelapoio das esferas dirigentes da Instituição,ainda muito impregnadas do esprit d’antan31.Um contingente expressivo de procuradoresexperientes – profissionais com cerca de 10-15 anos de exercício – está inteiramentealijado da atuação ativa no campo dosdireitos difusos ou coletivos, seja por razõesde ordem legal e estrutural concernentes àorganização e ao funcionamento do Órgão,seja porque esta é uma matéria ainda deraríssima aparição no âmbito da jurisdiçãode segundo e terceiro graus em que atuamesses Procuradores. Noutras palavras, oMinistério Público Federal, por força de umacerta inércia institucional e de uma pésanteurtípicas das instituições estatais, vem de certaforma ignorando o seu novo papel constitu-cional, privilegiando a tarefa de emissão depareceres em casos de natureza eminente-mente privada e relegando a um planosecundário a missão que a Constituição lheoutorgou – de defesa de direitos e interessesdifusos e coletivos, inclusive os direitos dasgrandes massas, das minorias humilhadase sem voz na vida pública do país.

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Diante desse quadro de omissão e com-prometimento do Estado brasileiro, só restaàs organizações não-governamentais que sededicam ao combate à discriminação racial:

a) exercer pressão constante junto aosórgãos competentes do Poder Executivo(especialmente o Ministério da Justiça), a fimde despertá-los para a necessidade deassumir o papel ativo de promoção e execu-ção que a Constituição e as leis lhes atribueme que, infelizmente, vem sendo, de certa forma,negligenciado em prol de uma atuaçãomeramente protocolar;

b) provocar, com freqüência e por todosos meios possíveis, o Ministério Público,subtraindo essa Instituição do estado deletargia institucional em que ela se encontra,no que concerne ao tema da discriminaçãoracial;

c) buscar estabelecer canais de contatofreqüentes e institucionalizados com o MP,de modo a criar parcerias para atuação naárea de defesa de direitos coletivos e difusos;

d) promover gestões junto aos PoderesExecutivo e Legislativo, no sentido de quesejam feitas alterações na Lei de Ação CivilPública, de modo a adaptá-la ao atendimentodos interesses específicos das minoriasraciais. Por exemplo: a criação de um Fundoespecífico para depósito de quantias oriundasde condenações judiciais cíveis ou criminaismotivadas por ofensas de cunho racial, coma conseqüente utilização desses recursos napromoção de cursos de formação destinadosa formar lideranças e a chamar a atenção deimportantes decision-makers para a situaçãocrítica em que se encontram os negros no Brasil;

e) abandonar a ação militante fechada, degueto, pela qual vêm pautando suas condutas;é fundamental que a luta pelos direitos dosnegros seja levada a cabo também porpessoas pertencentes aos segmentos não-negros da sociedade brasileira;

f) solicitar ajuda a organismos inter-nacionais e ONG’s voltados à defesa dedireitos humanos, para que pressionem oGoverno brasileiro, no sentido de forçá-lo aassumir a sua responsabilidade na pro-moção dos direitos dos negros.

Notas

1 É importante salientar, porém, que a partir de1891, quando o Brasil deixou de ser a únicaMonarquia do continente americano e adotou ofederalismo e o regime presidencial ao estilo dos EUA,as instituições político-jurídicas norte-americanaspassaram a ter grande influência no país. V. JacobDolinger, “The influence of American constitutionallaw on the Brazilian legal system”, in American Journalof Comparative Law, Fall 1990 38 nr 4 p. 803/837.

2A expressão “establishment jurídico nacional”tem aqui uma significação pouco precisa, reconheceo autor: trata-se de um pequeno grupo de profis-sionais do Direito, composto essencialmente porautores de obras jurídicas de impacto no planonacional e por advogados de prestígio e clientelaafluente, quase todos estreitamente vinculados àestrutura de mando do País. Esses profissionaisexercem sobre o sistema jurídico brasileiro umainfluência maior que a exercida, por exemplo, porscholars e advogados europeus em seus respectivospaíses. Seguramente, têm prestígio e poder inalcan-çáveis por profissionais com perfil semelhante empaíses de common law, como os EUA. Essa forma depoder é, em muitos casos, excessiva e injustificada,e só se explica pelo isolamento cultural em quevivemos, cujo efeito mais devastador reside na faltade referências, de parâmetros de comparação. Ilustraà perfeição o poder de certos causídicos brasileiros aseguinte comparação, feita, reconheça-se, assim meioà la sauvette: o Doyen Georges Vedel, o maisprestigiado e influente jurista francês das três últimasdécadas, mundialmente conhecido, não tem em seupaís uma influência sobre as instituições comparávelà que desfruta, entre nós, alguém como, digamos, oadvogado e ex-ministro Saulo Ramos... Numapalavra, a compreensão do Direito brasileiro, dosseus avanços e recuos, passa necessariamente pelaanálise dessas nuanças sócio-culturais.

3 V. sobre Ação civil pública, entre outros: JoséCarlos Barbosa Moreira – Tutela Jurisdicional dosInteresses Coletivos ou Difusos – in “Temas de DireitoProcessual”, 3ª série, Saraiva, 1984, p. 193-197; AdaPellegrini Grinover – A problemática dos interessesdifusos – in “A Tutela dos Interesses Difusos”, Coord.Ada Pellegrini Grinover, ed. Max Limonad, SP, 1984,p. 29-45; Rodolfo de Camargo Mancuso – 1)Interesses Difusos, ed. RT, 1988; 2) Interesses Difusos:conceito e colocação no quadro geral dos interesses, inRevista de Processo, nº 55, 1989, p. 165-179; 3)Ação Civil Pública – ed. RT, 1994; Antonio AugustoMello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson NeryJunior – A Ação Civil Pública e a Tutela Jurisdicionaldos Interesses Difusos, ed. Saraiva, 1984, p. 54-59;Hugo Nigro Mazzilli – A Defesa dos Interesses Difusosem Juízo, ed. Saraiva, 1997; Hely Lopes Meirelles –Mandado de Segurança, Ação popular e Ação Civil

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Pública – Ed. RT, São Paulo, 1989; Roy R. Friede –Ação Cautelar, Ação Civil Pública e Ação Popular – Riode Janeiro, ed. Forense Universitária, 1993; JoséCarlos Barbosa Moreira – Ação Civil Pública – Sepa-rata da Revista Trimestral de Direito Público, SP,p. 1-18, 1992; Paulo Afonso L. Machado – AçãoCivil Pública: meio-ambiente, consumidor, patrimôniocultural, tombamento – Ed. RT, 2ª edição, SP, 1987;José dos Santos Carvalho Filho – Ação Civil Pública:Comentários por artigo – ed. Freitas Bastos, Rio deJaneiro, 1995; Ada Pellegrini Grinover, AntônioHerman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel RobertoFink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe,Nelson Nery Júnior e Zelmo Denari – CódigoBrasileiro de Defesa do Consumidor, ed. ForenseUniversitária, RJ, 1998.

4 Os direitos individuais homogêneos, segundo oSTF, são subespécie dos direitos coletivos (RE nº163231-SP, Rel. Min Mauricio Correia).

5 É importante salientar que, embora essasimportantes modificações tenham sido introduzidasno Direito brasileiro desde 1985, a definição mais oumenos exata das novas categorias de direitos só veioa ser feita em 1990, quando o Congresso aprovou oCódigo de Defesa do Consumidor, o qual, em seusartigos 81 e seguintes, dá a definição legal de DireitosDifusos, Direitos Coletivos e Direitos IndividuaisHomogêneos.

6 Rodolfo de Camargo Mancuso, Comentários aoCódigo de Proteção do Consumidor, ed. Saraiva, 1991,p. 274/275.

7 Mancuso, op. cit., p. 275.8 Albino Zavascki – Ministério Público e Ação Civil

Pública , in Revista do Ministério Público do RioGrande do Sul, v. 32, p. 117/124.

9 Mauro Cappelletti, “A Tutela dos InteressesDifusos” in AJURIS, 1985, nº 33/174.

10 Confira-se, nessa mesma linha de entendimento,importante acórdão do STJ: “Processual Civil.Ministério Público. Ação Civil Pública. Dano aoErário. Legitimidade. 1. Impossível, com base nospreceitos informadores do nosso ordenamentojurídico, deixar de se reconhecer ao MP legitimidadepara propor ação civil pública com o objetivo deproteger patrimônio público, especialmente, quandobaseia o seu pedido em prejuízos financeiroscausados a ele por má gestão (culposa ou dolosa)das verbas orçamentárias. 2. Com efeito, não poderiaa Ação Civil Pública continuar limitada apenas aosinteresses difusos ou coletivos elencados em leiordinária, quando preceitua a Carta de 1988 que éfunção do MP promover ‘Ação Civil Pública, para aproteção do patrimônio público e social, do meioambiente e de outros interesses coletivos ou difusos’(art. 129, III), tout court (e não os ‘interesses coletivose difusos indicados em lei’) (Milton Flaks, in RevistaForense v. 32, pp. 33 a 42). 3. Nem mesmo a açãopopular exclui a ação civil pública, visto que a

própria lei admite expressamente a concomitânciade ambas (art. 1º ) Hely Lopes Meirelles, p. 120,Mandado de Segurança, Ação Civil Pública,Mandado de Injunção, Habeas Data, RT – 12ªedição). 4. Procedentes jurisprudenciais entre tantosoutros: RESP 98.648/MG, Rel. Min. José Arnaldo,DJU de 28-4-97; RESP 31.547-9/SP, rel. Min.Américo Luz, DJU de 8-11-93, pg. 23-5-46. 5. Nãocabe exame, em sede de recurso especial, a existênciaou não da conexão, continência, litispendência oucoisa julgada se, primeiramente, o acordãohostilizado não tratou de nenhuma dessas entidadesprocessuais e, em segundo, quando inexiste provaabsoluta da caracterização de qualquer uma delas.6. Recursos especiais improvidos. (RESP nº 167783-MG, 1ª Turma, rel. Min. José Delgado; julgado em 2-6-98; in DJU de 17-8-98, p. 00038)”.

11 A Constituição Federal brasileira, em seu art.3º , IV estabelece como um dos “objetivos funda-mentais” da República: “promover o bem de todos,sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade equaisquer outras formas de discriminação”.

12 Nesse ponto, nosso entendimento coincide como de Hugo Nigro Mazzilli, que assim se manifesta:“Às vezes, a defesa de interesses de um grupodeterminado ou determinável de pessoas pode convirà coletividade como um todo. Isto geralmente ocorreem diversas hipóteses, como quando a questão digarespeito à saúde ou à segurança das pessoas; ocorre,também, quando haja extraordinária dispersão dosinteressados, a tornar necessária ou, pelo menos,conveniente a sua substituição processual pelo órgãodo Ministério Público(...) ocorre, ainda, quandointeressa à coletividade o zelo pelo funcionamentocorreto, como um todo de um sistema econômico,social ou jurídico”.

13 O temor de que isso venha realmente aacontecer é plenamente justificável à luz da curtamas significante experiência já acumulada emmatéria de ação civil pública. Por falta de conheci-mento, ou simplesmente por má-fé, têm-se tornadorotineiras, especialmente na esfera da Justiça Federal,decisões de juízes que extinguem liminarmente açõescivis públicas propostas pelo MPF em defesa dopatrimônio público. Invariavelmente, a alegaçãonesses casos é de que seria preciso uma lei específicadando legitimação ao MP para atuar em cada caso!Se tais absurdos ocorrem em domínios taxativamenteprevistos na Constituição como objeto da chamadatutela coletiva, da alçada do MP, é de se imaginarquantos disparates virão à tona quando o MPfinalmente se dispuser a tomar iniciativas efetivasem defesa de certas minorias, especialmente a negra!

14 É importante salientar que os MinistériosPúblicos dos Estados e o Ministério Público doTrabalho teriam nesse domínio um papel muito maisativo do que o Ministério Público Federal, cujasatribuições são fixadas à luz de critérios orgânicos,

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rationi personae, ao contrário do que ocorre nos EUA,onde a violação da legislação federal de direitos civis,por si só, é suficiente para determinar a competênciado Judiciário federal, et partant , dos chamados USAttorneys.

15 Numa perspectiva de direito comparado, v.Judith Baker (ed.), “Group Rights”, University ofToronto Press, 1992; Charles Taylor, “Multiculturalismand The Politics of Recognition”, Princeton UniversityPress, 1992; s/direito do consumidor, v. SamuelIssacharoff – Group Litigation of Consumer Claims:Lessons from the American Experience – Revista AJURIS,edição especial, vol. I, Porto Alegre, março de 1998.

16 “Art. 81 (...) Parágrafo único: A defesa coletivaserá exercida quando se tratar de: I – interesses oudireitos difusos, assim entendidos, para efeitos desteCódigo, os transindividuais, de natureza indivisível,de que sejam titulares pessoas indeterminadas eligadas por circunstâncias de fato; II – interesses oudireitos coletivos, assim entendidos, para efeitos desteCódigo, os transindividuais de natureza indivisívelde que seja titular grupo, categoria ou classe depessoas ligadas entre si ou com a parte contrária poruma relação jurídica base; III – interesses ou direitosindividuais homogêneos, assim entendidos osdecorrentes de origem comum”.

17 Thais GRAEFF – “Cidadania e Tutela dosDireitos Difusos – Uma análise do Papel do MinistérioPúblico.” Dissertação de Mestrado – Departamentode Direito – PUC-RJ, 1996.

18 Cappelletti, no estudo aqui já citado, faz usoda imagem Davi versus Golias, para demonstrar aineficácia das soluções individualistas para osproblemas envolvendo lesão de interesses jurídicosde massa. Diz ele: “Pensemos, ainda uma vez, nofenômeno do consumidor. Quando uma lesão éproduzida em forma massiva, de massa, não apenaseu sendo consumidor, mas muitos, muitos outrossendo consumidores também, o meu direito, minhalesão, não passa de um fragmento do dano total. Eiso ponto, jurídico, de partida. Interesses difusos,interesses fragmentários, não são totalmenteprivados, nem inteiramente públicos. Aquilo quedenominei, parafraseando Pirandello, interesses embusca de autor (interessi in cerca di autore), porquenão têm um proprietário, um titular, são difusos(...)”“Suponhamos a emissão ilegal de fumaça, ou apoluição das águas de um rio, lago, onde vamospassar as férias. Se somente o indivíduo pode agir, oque poderá obter? Lembre-se que a soluçãotradicional diz caber ação ao vizinho, ao proprietário,e não a quem se vê perturbado, por exemplo, nogozo de férias. No caso em tela, é lógico que apenasum herói terá coragem, resistência, e mesmo fundospara intentar uma ação contra um grande poluidor.Sem falar que este terá normalmente uma forçaeconômica muito superior à do indivíduo singularprejudicado”.(p. 174-5)

19 Aqui se impõe mais um esclarecimentoendereçado àqueles não familiarizados com a praxisjurisdicional brasileira (os que lerem este paper nasua versão em inglês). No sistema jurídico do Brasil,salvo raríssimas exceções, a parte perdedora em umprocesso de natureza civil é sempre condenada pelojuiz a pagar ao ganhador o correspondente àsdespesas processuais por este adiantadas e umasoma relativa aos honorários do Advogado dovencedor, independentemente da natureza do ajustefinanceiro entre este e o seu advogado. Na AçãoCivil Pública, porém, essa regra de compensaçãofinanceira do advogado da parte contrária não temaplicação quando o autor da ação civil públicasucumbe. Essa exceção constitui um incentivoimportante à atuação das entidades voltadas à defesade direitos de minorias pobres e marginalizadas, quenão dispõem de recursos suficientes para contratarbons advogados. Nos EUA, o Congresso se deu contada importância dessa questão, ao instituir, não fazmuito tempo, sistema parecido com o brasileiro,permitindo que nos processos judiciais envolvendocivil rights o vencedor possa se reembolsar dos gastoscom attorney’s fees. Eis aí, portanto, uma boa e raracoincidência entre os dois sistemas! V. Civil RightsAttorney’s Fees Awards Act of 1976.

20 Tanto no Brasil quanto nos EUA, a exclusãoda condenação do perdedor ao pagamento de certasdespesas processuais em demandas de cunhocoletivo funda-se na própria natureza do litígio, nasua importância para a sociedade como um todo.Nos EUA, porém, onde as despesas com advogadosão estratosféricas, a alteração apontada na notaanterior foi motivada por um fator adicional:incentivar a advocacia individual pro bono, em defesade causas nobres, que promovam a coesão social, aigualdade efetiva entre os cidadãos. Note-se,contudo, que as Cortes controlam com rigor oexercício desse tipo de advocacia. Não é permitida,em nenhuma hipótese, a advocacia temerária(frivolous suits).

21 Um grande número de escolas se autodeno-minam instituições sem fins lucrativos. Com isso,são isentas de tributos. Trata-se em realidade deuma fraude jurídica legitimada pelo Congresso. Noano de 1998, a imprensa anunciou com estupefaçãoe indignação o caso de um senhor proprietário deescolas privadas consideradas instituições sem finslucrativos. O ilustre senhor se desloca pelo país comum meio de transporte bem especial: um jato privadode última geração, formalmente registrado comopropriedade da escola!

22 Nos EUA, um sistema de educação como obrasileiro seria fulminado na via judicial por inconsti-tucionalidade à luz de múltiplos fundamentosjurídicos. O principal entre esses seria a doutrina dodisparate impact, que pretendemos abordar com maiorprofundidade em outro estudo. Ao aplicar tal

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doutrina, as Cortes de Justiça não se limitam averificar a compatibilidade vertical, aparente,semântica, das normas infraconstitucionais comdispositivos específicos da Constituição, mas, aocontrário, escrutinizam os seus “resultados” à luzdo objetivo constitucional que se quer atingir, que é aigualdade efetiva. Assim, uma norma ou medidagovernamental que tenha toda a aparência de serplenamente compatível com a Constituição (faciallyneutral provision), quando examinada sob a ótica dosresultados que ela produz ou poderá vir a produzir,pode ser considerada inconstitucional em função doimpacto desproporcional (Disparate impact ) queproduzirá em certos segmentos vulneráveis dasociedade. E isso será o bastante para a respectivainvalidação. No Brasil, a utilização de técnicas deinterpretação jurídica revestidas de tamanhasofisticação conduziria inexoravelmente à constata-ção que as elites dirigentes brasileiras procuram atodo custo escamotear: a de que inúmeras políticaspúblicas adotadas entre nós, ainda que nãoconcebidas com a intenção clara de promover aexclusão dos negros, têm nestes a sua clientelapredileta, pois qualquer medida governamentaltomada em detrimento dos pobres em geral atingede forma “desproporcional” os negros, que compõemo grupo social numericamente mais expressivo entreos pobres. O mais desatento observador estrangeiropercebe isso no primeiro contato com a realidadebrasileira; mas, entre nós, até mesmo pessoasintegrantes do segmentos mais refinados daintelligentsia nacional fogem a esse debate. No meiojurídico, então, a discussão desse tipo de questãoseria considerada anátema! Nessa esfera, prefere-se,candidamente, enfrentar os problemas decorrentesdo racismo pela via do Direito penal, a qual, se écerto que deve continuar a ser explorada, não podede forma alguma ser a única, tampouco ser aquelana qual o Estado e as organizações anti-racistasdespendem a maior parte das suas energias, comoocorre atualmente.

23 É importante assinalar que os alunos dasuniversidades públicas não pagam um único centavopelo ensino que recebem. Tudo é gratuito, até mesmoas instalações esportivas, os estacionamentos ondeos alunos deixam os seus carros! E todos acham issoperfeitamente legítimo!

24 V. Michael Mitchell – Racism and Brazilian LegalCulture: Nineteenth Century Antecedents, 1999, aindainédito.

25 Eis a arguta observação feita por um atentoparticipante de seminário co-organizado por nós naFaculdade de Direito da Universidade de Columbia,NY, em março de 1999, acerca do que todos no Brasilsabem mas evitam discutir abertamente, isto é, queentre nós a discriminação racial prescinde de leisexplicitamente racistas: ”So, Professor, you mean thatin Brazil racist laws aren’t needed to discriminate blacks?”).

26 De acordo com os dados apresentados nomagnífico estudo conduzido por um ex-Presidenteda Universidade Harvard e ex-Diretor da Faculdadede Direito daquela mesma Universidade, Derek Bok,em colaboração com um ex-Presidente da Universi-dade de Princeton, William Bowen, os avançosobtidos pelos negros norte-americanos na área daeducação, em conseqüência do programa de direitoscivis, são impressionantes, sobretudo se levarmosem conta o fato de que, até o início dos anos 60,negros eram proibidos de freqüentar os mesmos locaispúblicos, as mesmas escolas, os mesmos locais dediversão freqüentados pelos brancos. O mencionadoestudo revela, por exemplo, que o percentual denegros formados em Universidades e escolasprofissionais pulou, entre 1960 e 1995, de 5.4% para15.5% do total de graduandos; nas faculdades deDireito, o progresso foi de 1% para 7.55%, ou seja,mais de 700%; em Medicina, de 2.2%, em 1964, para8.1% em 1995; as empresas americanas em geral,que, no início dos anos 60, não tinham negros emcargos executivos (como no Brasil de hoje!),atualmente abrigam 8% de negros nas posições deexecutivos e administradores; o número total deagentes públicos eleitos negros (governadores,prefeitos, delegados, juízes, promotores, xerifes etc.)passou, entre 1965 e 1995, de 280 para 7.984! V.“The Shape of the River: Long-Term Consequences ofConsidering Race in College and University Admissions”,de Derek Bok e William Bowen, ed. PrincetonUniversity Press, 1998.

27 O caso Bob Jones University, julgado pela CorteSuprema dos EUA em 1982, apesar de conterparticularidades específicas da sociedade americana,em que o ódio racial é bastante disseminado, traznão obstante lições jurídicas úteis a todos aquelesque pensam seriamente em meios eficazes de combateao racismo, especialmente essa forma de racismoestrutural, entranhada nas instituições e em todosos quadrantes da vida social, embora não impostopor normas jurídicas explícitas. Em Bob Jones, aCorte Suprema considerou legítima a decisão daReceita Federal Americana (Internal Revenue Service-IRS ) de cancelar a isenção de tributos de que erabeneficiária uma instituição privada de ensino que,a par de não praticar a saudável recomendação doGoverno no sentido de se instituir classes escolaresmulti-étnicas, mantinha uma política de admissãofrancamente racista, além de normas internas que,sob o pretexto de convicção religiosa, proibiamrelacionamentos afetivos entre pessoas de raçasdiferentes.

28 Nos EUA, tem sido decisiva a ação do Estadona busca de soluções para o problema da opressãode minorias raciais, sexuais, religiosas e de origemnacional. Várias instituições governamentais atuamnesse setor. Destaque-se, em primeiro lugar, oimportantíssimo papel desempenhado pelo Solicitor

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General (a segunda maior autoridade do Ministérioda Justiça americano, equivalente ao nossoAdvogado-Geral da União), cuja principal atribuiçãoé defender os interesses do Governo dos EstadosUnidos perante a Corte Suprema. Foi graças àintervenção decisiva do Solicitor General que os negros,as mulheres e os cidadãos de origem latina ganharammuitas das batalhas judiciais travadas perante aCorte Suprema nas últimas décadas, em busca deigualdade efetiva no acesso à educação, ao mercadode trabalho e a outros setores da vida coletiva emque são discriminados. A intervenção do SolicitorGeneral se dá não apenas nos casos judiciais em queo Governo seja parte no litígio, mas também naquelesenvolvendo entidades e pessoas privadas. Nesteúltimo caso, em que atua como Amicus Curiae (“Amigoda Corte”), sua intervenção se opera por meio dachamada Amicus Brief, peça jurídica por meio daqual ele influencia as decisões da Corte, transmitindo-lhe as posições da Administração Federal nos litígiosque são submetidos à decisão desta (V. LincolnCaplan, “The Tenth Justice: The Solicitor General andthe rule of Law” – ed. Alfred Knopf, NY, 1987).Ainda no âmbito do Justice Department, cujasatribuições correspondem grosso modo às queatualmente no Brasil se distribuem entre o Ministérioda Justiça, Ministério Público Federal e a Advocacia-Geral da União, existe um outro órgão comimportantes competências na área de defesa dosdireitos de minorias, podendo agir tanto na esferaadministrativa quanto na Judicial: é a Civil RightsDivision (v. Brian K. Landsberg, “Enforcing civilrights: race discrimination and the Department ofJustice”, University Press of Kansas, 1997); outroórgão de vital importância nessa área é a chamadaEqual Employment Opportunity Commission-EEOC,uma agência reguladora independente, colegiada,com membros nomeados pelo Presidente apósaprovação do Senado, dotada de poderes investiga-tórios e capacidade postulatória, incumbida depromover a “diversidade”, isto é, a real presença deminorias e de mulheres em todos os setores domercado de trabalho, inclusive no setor público. Paraum país, como o Brasil, cujo Direito público a cadadia mais se aproxima do Direito norte-americano, aEEOC apresenta peculiaridades importantes: a) asreclamações por discriminação no acesso ao empregoou nas relações de trabalho perante ela formuladassubmetem-se à regra da obrigatoriedade da exaustãoda instância administrativa, isto é, o ajuizamento dequalquer ação judicial por discriminação só é possívelapós a EEOC emitir o chamado Right to sue; b) elatem poderes quase-judiciais, podendo aplicarpesadas multas às empresas ou a entidadesgovernamentais que deixem eventualmente depromover a diversidade nas suas relações detrabalho, e até mesmo estipular indenizações emfavor de pessoas que tenham sido vítimas de

discriminação; c) um número significativo deconquistas das minorias raciais, das mulheres e dedeficientes físicos nas últimas três décadas ocorreugraças à ação dessa agência governamental, cujamissão institucional se desenrola tanto na esferajudicial, mediante ações visando a compelir asempresas e o Governo a promover a igualdade e adiversidade, quanto na esfera administrativa, pormeio de variados procedimentos administrativos denatureza investigatória, que podem desembocar emacordos que em muito se assemelham aos “Com-promissos de Ajustamento de Conduta”, própriosda nossa ação civil pública. Como se vê, ao contráriodo que pensam alguns influentes juristas brasileiros,paladinos de um ultrapassado individualisme àoutrance , mesmo na pátria do liberalismo econômicoa busca pela igualdade efetiva não se faz sem aintervenção decisiva, afirmativa, quase militante, doEstado. Entre os representantes da elite brasileira,quem tem-se declarado favoravelmente à ação doEstado para promover o acesso dos negros àeducação e ao mercado de trabalho é o embaixadore ex-Ministro da Fazenda Rubens Ricúpero. Confira-se, a esse respeito, trecho de artigo no qual, com obrilhantismo e a lucidez habituais, ele analisa asposturas de Brasil e EUA sobre a questão: “Osamericanos abominam a intervenção do Estado naesfera econômica e, salvo em crises como a daDepressão, preservam no domínio privado tudo oque, direta ou indiretamente, tem a ver com aprodução. Em compensação, são ativistas emilitantes para exigir a ação do governo, às vezesintrusiva e dura, a fim de corrigir injustiças raciais epromover a mudança social. Nós, em contraste,herdeiros dos monopólios e companhias de comércioda colônia, nos comprazemos com empresas estataisa vender gasolina, exportar minério de ferro, prestarserviço telefônico e até administrar hotéis. Reagimos,porém, indignados cada vez que se sugere que ogoverno faça algo para promover o ingresso de negrosnas universidades e carreiras de prestígio do serviçopúblico ou intervir para reduzir a incomensuráveltaxa de injustiça social. Se em economia estamosentre os campeões mundiais de um estatismo quasesem qualificações, em matéria social o nosso laissez-faire é de dar inveja aos puristas do liberalismo doséculo 19”.(Folha de S. Paulo, 31-8-96, p. 2-2)

29 Na área do emprego, citem-se alguns númerosque envergonhariam qualquer pessoa medianamentecivilizada, mas que no Brasil não causam o menorimpacto. Tomemos por exemplo alguns setores deprestígio na vida pública brasileira: o Brasil tem cercade 800 juízes federais. Desses, os negros mal chegama uma dezena; o Ministério Público Federal tem cercade 600 Procuradores, entre os quais apenas 6 negros;a Diplomacia, a mais racista das instituiçõesbrasileiras, não conta com mais do que 3 diplomatasnegros num quadro em que há cerca de 1000

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diplomatas!; as Universidades públicas brasileiras,sobretudo nos seus cursos de maior prestígio, nãotêm sequer 3% de alunos negros, o que é um absurdonum país em que a população negra é superior a40% do total; nas universidades, são pouquíssimosos professores negros, não sendo incomum encontrarDepartamentos desprovidos de um único represen-tante dos afro-descendentes; nem mesmo em Estadoscom forte presença negra na população a represen-tação dos negros é mais significativa. No Rio deJaneiro, por exemplo, havia, em 1995, apenas 4negros entre os cerca de 400 Juízes Estaduais (v.“Veja Rio”, de 17-5-95, p. 13); a televisão brasileiraé avassaladoramente branca...Essas cifras, chocantes,causam a cada dia mais perplexidade e embaraçosàs autoridades brasileiras em suas relações noExterior. Internamente, porém, a indiferença é geral...

30 Antes da Constituição de 1988, o MinistérioPúblico Federal brasileiro, à semelhança do JusticeDepartment dos EUA, exercia basicamente duasfunções constitucionais importantes: a) persecuçãopenal dos crimes de natureza federal; b) defesa daUnião em juízo. No segundo e terceiro graus dejurisdição, os Procuradores se limitavam, em suagrande maioria, a emitir pareceres nos processos emcurso nos Tribunais, quase sempre em questões depouco ou nenhum interesse público. Por outro lado,não havia uma distinção nítida entre os Procuradoresafetados a uma ou outra dessas funções. Esse sistemacaótico marcou indelevelmente essa Instituiçãocentenária e contribui enormemente para sua relativaineficiência na nova ordem constitucional.

31 Nesse passo, faz-se imperativa uma obser-vação, endereçada sobretudo aos militantes em proldas causas de minorias, quanto a um aspectorelacionado ao que denominaremos pretensiosa-mente “a dimensão sociológica do MP do novomilênio”. Sob essa ótica, com efeito, as perspectivasnão são das mais encorajadoras. Isso porque o MP,como de resto todas as demais instituições brasileirasde prestígio, singulariza-se por um impressionantedesconhecimento a respeito das questões atinentes aesse vasto contingente humano a que comumente se

dá o nome de “comunidade negra”. Não por culpaou deficiência pessoal dos membros da Instituição,mas como resultado do tipo de política governa-mental posta em prática em nosso país nas últimastrês décadas, sem falar nos efeitos perversos do mitoda “democracia racial”. Egresso majoritariamenteda classe média e da classe média alta, o novocontinente de promotores e procuradores daRepública, que atualmente formam maioria no seiodo MP, teve a sua mentalidade formada noexcludente sistema educacional vigente no país noperíodo acima mencionado. São todos oriundos deescolas privadas, onde quase não há negros.Perderam, em razão disso, a oportunidade defreqüentar escolas verdadeiramente multi-étnicas natenra idade, período que marca de maneira indelévela formação das pessoas, que faz despertar nelas ossentimentos de fraternidade e igualdade, poucoimportando as origens e as classes sociais a que cadaum pertença. Numa palavra, salvo as raríssimasexceções de praxe, ajusta-se como uma luva a essesjovens guerreiros do MP, que a sociedade brasileiracomeça justificadamente a apreciar, com um mistode admiração e estupefação, a observação agudafeita pelo também jovem escritor Diogo Mainardi,em artigo publicado na revista “Veja” de 28-4-99sob o título “Onde Estão os Negros?”, no qualcomentava o livro America in Black and White , deStephan e Abigail Thernstrom. Disse Mainardi:“...Ao ler o livro, fui estabelecendo alguns paraleloscom a minha própria vida no Brasil. Estudei numascatorze escolas. Vergonhosamente, nunca tive umcolega negro. Nunca tive um chefe negro. Nuncavotei num negro. Nunca vi um sócio negro no meuclube. Nunca convidei um negro para jantar. E assimpor diante. O Brasil é um regime de apartheiddisfarçado.....Eu sou de São Paulo. É provável queem outras cidades brasileiras o negro seja menosdiscriminado. Que o preconceito seja menosevidente. Pouco importa. O fato é que, nos anos 60,os americanos eram muito mais racistas do quenós. Eles melhoraram. Enquanto nós pioramos”.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução: apresentação do tema edelimitação do objeto.

Em nenhum tempo na história, como oatual, o Poder Judiciário assumiu tamanhoprotagonismo, o que nos leva a conjecturarque, seguramente, será o Poder que estaráem evidência no próximo século.

Vindo de um período anterior, resultadoda própria estrutura social e política do País,em que estava praticamente envolvido nasua função tradicional de solução deconflitos individuais, passou o Judiciáriorapidamente ao centro dos impasses institu-cionais entre os Poderes Legislativo eExecutivo. O seu campo de atuação foialargado, principalmente após a Constitui-ção de 1988, para abarcar o julgamento dequestões que envolvem, não raro, complexase delicadas relações políticas.

Tentaremos, com o presente estudo,traçar um paralelo sobre a evolução e osproblemas que hoje se colocam com relação

O Poder Judiciário no Brasil e em Portugal:reflexões e perspectivas

Mônica Jacqueline Sifuentes

Mônica Jacqueline Sifuentes é Juíza Federalem Minas Gerais. Professora universitária.

Sumário1. Introdução: apresentação do tema e deli-

mitação do objeto. 2. Notas históricas e organi-zação atual. 2.1. O Poder Judiciário no Brasil.2.2. Os Tribunais em Portugal. 3. As questõesque se colocam atualmente nos dois países. 3.1.Controle (externo) do Poder Judiciário. 3.2. Alegitimidade democrática. 3.3. Recrutamento eformação dos juízes. 3.4. Acesso à Justiça. 3.5.Poder judicial e sociedade. 4. Situação do Judi-ciário no Brasil e em Portugal – uma generali-zada sensação de crise. 5. Perspectivas.

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ao Poder Judiciário em dois países que estãoa completar 500 anos de relações históricas– Brasil e Portugal. As experiências comuns,em especial a imediatamente anterior eposterior aos governos autoritários (noBrasil, com a Revolução de 1964 e, emPortugal, com o Governo de Salazar/Marcello Caetano), permitem-nos compará-las e inferir que os problemas que hoje secolocam, no tocante à Justiça, são pratica-mente os mesmos.

Nosso objetivo é, à partida, bastantesimples: sem pretender esgotar o assunto,dar um primeiro passo para uma análiseque se impõe, sobre um sistema judicial emevolução, num espaço e num tempo, elespróprios, de contornos difusos, de valores aserem consolidados, mas seguramente demudança.

2. Notas históricas e organização atualA história do Direito, em Portugal e no

Brasil, como decorrência do processo decolonização, conheceu longa fase substan-cialmente comum1.

Essa “convivência”, de certo modo,estendeu-se para além da fase de separaçãoe independência da Colônia – mesmo após1822, o Brasil ainda conservaria, por muitotempo, o ordenamento lusitano. Não édespiciendo lembrar que o Brasil somenteteria o seu Código Civil na segunda décadadeste século. Até então, subsistia basicamenteo velho arcabouço das Ordenações do Reino,se bem que com muitas modificações,provocadas por legislação esparsa.

Assim é que também a orgânica do modode se distribuir ou “administrar” a Justiçaserá transportada da Metrópole, numasimbiose que marcará definitivamente, pelonascimento, o Poder Judiciário na Colônia.

2.1. O Poder Judiciário no Brasil

A administração da Justiça implantadanas capitanias hereditárias, na primeira fasedo período colonial brasileiro, tinha caracte-rísticas feudais: fazia-se por intermédio defuncionários nomeados pelo donatário,

competindo à autoridade pessoal deste oreexame das decisões em grau de recurso.

Somente na segunda fase do períodocolonial, a dos governadores-gerais, aorganização judiciária brasileira passará aser regulada pelas Ordenações Filipinas. Demodo que a “primeira instância” da Justiçaera formada por ouvidores gerais, correge-dores, ouvidores de comarca, provedores,juízes de fora, juízes ordinários, juízes devintena (correspondentes ao juiz de paz),juízes de órfãos, almotacés, alcaides evereadores. Foram instalados dois órgãosde segunda instância – os Tribunais deRelação do Rio de Janeiro e da Bahia–, sendoque das causas superiores a duzentos milréis admitiam-se recursos para o Desembargodo Paço, de Lisboa2.

Com a mudança da Corte portuguesapara o Brasil em 1808, o Tribunal da Relaçãodo Rio de Janeiro passou a se chamarSupremo Tribunal de Justiça, sendo equipa-rado à Casa de Suplicação de Lisboa3.

Essa situação permaneceu até a indepen-dência, quando, sob o impulso da Consti-tuição Federal norte-americana de 1787 (queelevou, “pela primeira vez no mundo, oPoder Judiciário à alta categoria de institui-ção constitucional, a que chamou JudicialPower4), também a nossa Constituição de 25de março 1824 adotou a terminologia –“Poder Judicial” (Título VI).

Declarou-o independente e composto dejuízes e jurados, cabendo a estes pronunciar-se sobre o fato e àqueles aplicar a lei (art.151 e 152). Aos juízes de direito, de todas asinstâncias, era assegurada a vitaliciedade,porque “perpétuos”, mas removíveis (art.153). Podiam perder o seu cargo em virtudede sentença, cabendo aos tribunais processá-los e julgá-los (art. 101, 7, c/c art. 154), muitoembora pudessem ser suspensos dos seuscargos pelo Imperador em virtude de queixascontra eles apresentadas (art. 154 e 155). Aorganização judiciária era composta peloSupremo Tribunal de Justiça, na capital doImpério, composto de juízes togados eletrados, bem como das Relações, nas

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capitais das Províncias (art. 158 e 163).Havia ainda juízes de paz eleitos pelo povo,com atribuições não contenciosas (art. 162).

Mas a “modernidade” haveria ainda deconviver com as tradições monárquicas (atal “marca” da Metrópole?), de modo que aConstituição de 1824 também consagrariauma novidade, na esfera dos Poderes estatais,acrescentando o Poder Moderador, deferidoao Monarca e considerado a “chave de todaa organização política”. Esse Poder, pinçadoda teia em que se achava envolto com o PoderExecutivo, noutras Constituições,

“muito se aproximava da prerroga-tiva do soberano inglês, ou seja, naexpressão de Dicey, da autoridadediscricionária ou arbitrária que per-manecia, juridicamente, na dimensãorelativa à Coroa” 5.

Desse modo, na Constituição de 1824, oPoder Judiciário convivia numa atípica re-partição dos Poderes, em que ao Poder Mo-derador, e não àquele, é que era sublinhada,num plano ideal, a neutralidade...

No entanto, como observa PaulinoJacques,

“era com o Judiciário que o Moderadormantinha relacionamento mais ceri-monioso, precisamente porque osmagistrados não exerciam atividadepolítico-partidária, qual ocorria comos agentes do Executivo e do Legis-lativo, cuja ação, por vezes, devia sermoderada para o bem do Estado” 6.

A Constituição Republicana de 1891,inspirada pelas idéias liberais da Américado Norte, instituiu o regime federativo,bipartindo a Justiça em federal e estadual,num sistema de dualidade que permaneceaté hoje. O Judiciário passou a ser um Podersoberano da República, ao lado do Executivoe do Legislativo. O Judiciário da União tinhacomo órgãos o Supremo Tribunal Federal,com sede na capital da República, e juízes eTribunais Federais (art. 55). A Constituiçãoassegurava aos Estados-membros a compe-tência para organizar a sua Justiça e,portanto, o seu Tribunal de Apelação.

Não obstante a forte influência liberal naConstituição escrita, a prática ainda deno-tava uma relação de continuidade, e não derompimento, com as estruturas anteriores àRepública. Prova disso é a própria compo-sição do Supremo Tribunal Federal, quenasceu, segundo o Ministro Aliomar Baleeiro,

“com 15 juízes de ‘notável saber ereputação, e elegíveis para o Senado’,isto é, com 35 anos de idade mínima.Foram nomeados 48 horas depois depromulgada a Constituição e instala-dos quatro dias depois dela no edi-fício da Relação, à Rua do Lavradio.Aproveitou-se a maior parte do Supre-mo Tribunal de Justiça da Monarquia,inclusive quatro conselheiros septua-genários, sete sexagenários e quatro,apenas, de menos de 60 anos”7.

A Constituição de 1934 manteve adualidade de Justiça (art. 104), inserindo noPoder Judiciário, ainda, a Justiça Militar e aJustiça Eleitoral, como Justiças especializa-das. Instituiu a Justiça do Trabalho, mascomo órgão administrativo, não-integrantedo Poder Judicial (art. 122).

A Constituição de 1937, manifestação docaráter autoritário de que era porta-voz,extinguiu a Justiça Federal e a Eleitoral.Como era de se supor, foi um período dahistória brasileira caracterizado por forteingerência política do Executivo no Judiciá-rio, inclusive mediante a nomeação, peloChefe do Executivo, do Presidente doSupremo Tribunal Federal. É ainda AliomarBaleeiro quem dirá, a respeito dessa fase, tero Supremo experimentado “o colete de açodo Estado Novo”, voltando “a respiraramplamente com a Carta de 1946” 8.

Com a restauração democrática, veicu-lada pela Constituição de 1946, o PoderJudiciário foi estruturado (art. 94) com osseguintes órgãos: Supremo Tribunal Fede-ral, Tribunal Federal de Recursos, Juízes eTribunais Militares, Juízes e TribunaisEleitorais, Juízes e Tribunais do Trabalho.Conquanto tenha previsto o TFR, não dispôsa respeito da Justiça Federal de 1ª Instância

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(que somente viria a ser restaurada pelo AtoInstitucional nº 2, de 27-10-65). A novidadeficou por conta da elevação da Justiçatrabalhista ao patamar constitucional.

A Constituição de 1967, a não ser quantoao ressurgimento da Justiça Federal, man-teve, quanto ao mais, inalterada a organi-zação judiciária anterior.

O Ato Institucional nº 5 de 13-12-68trouxe profundas alterações no PoderJudiciário, retirando-lhe várias prerroga-tivas e diminuindo o seu poder: foramsuspensas as garantias constitucionais devitaliciedade e inamovibilidade dos magis-trados, podendo o Presidente da República,por decreto, demitir, remover, aposentar oucolocar os juízes em disponibilidade. Excluiuda apreciação judicial qualquer medidapraticada com base em seus dispositivos,além de suspender a garantia do habeas corpus.

Dentro do mesmo espírito autoritário, aEmenda Constitucional nº 7, de 13-4-77,alterou o art. 112 da Constituição, criando oConselho Nacional da Magistratura comoórgão integrante do Poder Judiciário. Esseórgão seria composto de sete Ministros doSupremo Tribunal Federal (art. 120, caput,da CF/67), competindo-lhe conhecer dereclamações contra membros de tribunais epodendo, inclusive, avocar processosdisciplinares contra juízes de primeiro grau.Esse Conselho desapareceu com a atualConstituição.

Foi nessa época editada a Lei Orgânicada Magistratura Nacional – LOMAN (LeiComplementar nº 35, de 14-3-79), queregulamentou o Conselho nos seus artigos50 a 60 e 133 a 135. Trouxe ainda normasrelativas à organização, funcionamento,disciplina, vantagens, direitos e deveres damagistratura, respeitadas as garantias eproibições previstas na Constituição,matérias que lhe foram reservadas pelo pa-rágrafo único do art. 112.

Recuperada a democracia, promulgou-se a Constituição de 5-10-1988, a qualestruturou o Poder Judiciário no título da“Organização dos Poderes” (Título IV) e

dentro da perspectiva da dualidade dejurisdições – federal e estadual. Consideroucomo órgãos dele integrantes: I – o SupremoTribunal Federal; II – o Superior Tribunalde Justiça; III – os Tribunais RegionaisFederais e Juízes Federais; IV – os Tribunaise Juízes do Trabalho; V – os Tribunais eJuízes Eleitorais; VI – os Tribunais e JuízesMilitares; VII – os Tribunais e Juízes dosEstados e do Distrito Federal e Territórios.

A Constituição brasileira de 1988 foiquase exaustiva, ao contrário, como vere-mos, da atual Constituição Portuguesa, emestabelecer normas gerais quanto à estruturae organização do Poder Judiciário, dandoenfoque especial ao próprio “Estatuto” dosjuízes. Remeteu a pormenorização dosprincípios nela consagrados à lei comple-mentar, de iniciativa do Supremo TribunalFederal, na qual deverá ser observado oseguinte (art. 93):

1. ingresso na magistratura por concursode provas e títulos, onde se assegura aparticipação da Ordem dos Advogados;

2. a promoção dos magistrados se farápor critérios alternados de antigüidade emerecimento, assegurada a promoçãoobrigatória daquele que figurar por trêsvezes consecutivas ou cinco vezes alternadasem lista de merecimento elaborada pelosseus respectivos tribunais;

3. na avaliação por merecimento (o queaté o presente momento não passa deprevisão), será observado o critério de pres-teza e segurança na prestação jurisdicional,além de se considerar a freqüência e apro-veitamento em cursos de aperfeiçoamento;

4. previsão de cursos oficiais de prepa-ração e aperfeiçoamento de magistrados,como requisito de ingresso e promoção nacarreira.

Infelizmente, até o presente momento –passados mais de dez anos –, ainda não seencontra aprovado o projeto de lei relativo ànova Lei Orgânica da Magistratura Nacional,que, não obstante seja mais avançado do quea lei atual, ainda assim é alvo de muitascríticas, especialmente por parte dos juízes.

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Além desses princípios, a Constituiçãoconsagra outros, que denotam a importânciaatribuída ao Judiciário. Podemos citar, porexemplo:

1. garantias atribuídas aos juízes – vitali-ciedade, inamovibilidade e irredutibilidadede vencimentos. Por outro lado a Constitui-ção estabelece determinadas proibições quesão consideradas “garantias de imparciali-dade”, quais sejam: proíbe-se aos magis-trados o exercício de outro cargo ou função,ainda que em disponibilidade, salvo um demagistério; receber, a qualquer título oupretexto, custas ou participação no processo;e exercer atividade político-partidária (art.95 e parágrafo único);

2. os tribunais gozam, na atual Consti-tuição, de uma boa dose de independência:podem eleger seus órgãos diretivos eelaborar seus regimentos internos; organizarsuas secretarias e juízos, bem como zelarpela atividade correicional das mesmas;prover, por concurso público, os cargosnecessários à administração da Justiça e,inclusive, como novidade, prover os cargosde juiz de carreira da respectiva jurisdição(art. 96).

Manteve a Constituição atual o chamado“quinto constitucional”: em cada um dostribunais, um quinto dos lugares deverá serpreenchido por membros do MinistérioPúblico ou da Ordem dos Advogados,conforme lista remetida para nomeação peloChefe do Executivo (art. 94).

Importante conquista do Judiciário foi aassegurada autonomia financeira, ao lado daadministrativa. Significa isso que os tribunaispoderão elaborar as suas propostas orça-mentárias, em conjunto com os outrosPoderes, encaminhando-as para aprovaçãona lei de diretrizes orçamentárias (art. 99).

Como na Constituição de 1967, com aredação da Emenda nº 1/69, permaneceu oprincípio de que o Poder Judiciário énacional , tanto que, entre os seus órgãos,estão alinhadas a Justiça dos Estados eTerritórios. Considera-se, assim, comotribunais nacionais o Supremo Tribunal

Federal e o Superior Tribunal de Justiça, porexaminarem questões relativas às duasordens jurisdicionais.

Ainda como inovação, a Constituiçãoatual instituiu o Superior Tribunal deJustiça, que absorveu parte da competênciado Supremo Tribunal Federal (guarda dalegislação federal infraconstitucional), bemcomo os Juizados Especiais de PequenasCausas e Justiça de Paz remunerada, noâmbito das Justiças dos Estados, Territóriose Distrito Federal.

2.2. Os Tribunais em Portugal9

Sob a vigência do regime anterior ao 25de abril de 1974, a Constituição de 1933,muito embora definisse os tribunais comoórgãos de soberania (art. 71), não eraexpressa quanto à sua independência.Apenas dizia serem os juízes dos “tribunaisordinários” vitalícios e inamovíveis (art.119) e assegurava, “ressalvadas as exceçõesque a lei consignasse”, que os juízes eram“irresponsáveis” nos seus julgamentos (art.120).

Maior detalhamento do Poder era forne-cido pelo Estatuto Judiciário de 1962(Decreto-Lei nº 44.278/62, de 14 de abril),que dizia, no seu art. 111, ser a magistraturaindependente, irresponsável e inamovível.Consistia a independência, segundo essediploma,

“no fato de o magistrado exercer afunção de julgar segundo a lei, semsujeição a ordens ou instruções, salvoo dever de acatamento dos tribunaisinferiores em relação às decisões dostribunais superiores, proferidas porvia de recurso”.

Mas a prática era diferente. Havia umaindisfarçada intromissão do Poder Executivona esfera do Poder Judicial, designadamentepor meio do Ministro da Justiça, que eraquem nomeava, por indicação do Governo,o Presidente do Supremo Tribunal deJustiça, o qual era também o Presidente doConselho Superior Judiciário. Preenchiaainda o referido Ministro, por escolha,

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metade das vagas ocorridas no SupremoTribunal de Justiça e nomeava o seu Vice-Presidente, o secretário do Conselho Supe-rior Judiciário, bem como, por despacho,efetuava as nomeações, promoções e “quais-quer colocações” dos magistrados judiciais10.

A necessidade de se reforçar os tribunaiscom garantias de independência foi umapreocupação do movimento revolucionáriode 1974, que tratou de priorizar a estrutura-ção do Poder Judiciário de modo a fortalecê-lo. Tanto que, no “Programa de GovernoProvisório”, consubstanciado no Decreto-Lei nº 203/74, de 15 de maio, emanado daJunta de Salvação Nacional, definiu-se comoprincípio básico da Organização do Estadoa “reforma do sistema judicial, conducenteà independência e dignificação do seupoder”. Foi a mesma Junta que decretoucomo constitucional a Lei nº 3/74, estabele-cendo, no seu art. 18, que “as funções jurisdi-cionais serão exercidas exclusivamente portribunais integrados no Poder Judicial”11.

A atual Constituição da RepúblicaPortuguesa não utilizou a denominaçãoPoder Judiciário. Preferiu o legislador consti-tuinte elencar, na parte relativa à “Organi-zação do Poder Político”, ao lado doPresidente, da Assembléia da República edo Governo, os Tribunais como “órgãos desoberania com competência para administrara Justiça em nome do povo”12.

Para o Professor Jorge Miranda, a opçãodas duas últimas Constituições portuguesaspela concepção “mais realista da separaçãode órgãos (poderes – competências)”, aoinvés da clássica “separação mêcanica depoderes (poderes – função)”, é reveladora doseu avanço em relação às anteriores, vez que“expressamente proclama a separação einterdependência dos órgãos de soberaniacomo princípio geral de organização do Po-der político” (atual art. 111, nº 1, da CRP) 13.

Essa qualificação dos tribunais comoórgãos de soberania não é novidade da Cons-tituição de 1976 e suas Reformas. A primeiraConstituição da República, de 1911, já assimse referia ao “Poder Judicial” (art. 6º) ,

denominação que seria ainda adotada pelaConstituição de 1822 (art. 176). A CartaConstitucional de 1826 também reconhece-ria o Poder Judiciário como um dos poderespolíticos, emanados da Nação, na qual“reside essencialmente” a soberania (art. 11).

A independência dos Tribunais é expres-samente garantida (art. 203º ), sendo daessência da sua função assegurar a defesa dosdireitos e interesses legalmente protegidos doscidadãos, reprimir a violação da legalidadedemocrática e dirimir os conflitos de interessespúblicos e privados. Também o Estatuto dosMagistrados Judiciais consagra o princípioda independência, ao estabelecer que “osmagistrados judiciais julgam apenas segun-do a Constituição e a lei e não estão sujeitosa ordens ou instruções” (art. 4º, 1) 14.

A organização judiciária portuguesacompreende, para além do Tribunal Consti-tucional, as seguintes categorias de Tribu-nais: a) o Supremo Tribunal de Justiça e ostribunais judiciais de primeira e de segundainstância (Relações); b) o Supremo TribunalAdministrativo e os demais tribunaisadministrativos e fiscais; c) o Tribunal deContas; d) Tribunais marítimos e; e) Tribu-nais arbitrais e julgados de paz (art. 209, 1 e2, CRP). A Constituição proíbe a existênciade tribunais especiais ou de exceção, salvo osmilitares, para o julgamento de certascategorias de crimes (art. 209, 4).

Considerando a adoção do sistema dedualidade de jurisdição (administrativa ejudicial), muito embora a completa jurisdi-cionalização dos tribunais administrativos,principalmente a partir da reforma consti-tucional de 1989, é prevista a existência deuma categoria especial de “Tribunais deConflitos”, exatamente para dirimir ascontrovérsias de competências entre asjurisdições, remetendo a Constituição paraa lei a determinação dos casos e das formasem que estes tribunais podem-se constituir.

O princípio da independência é válidotambém em relação aos juízes integrantesdas outras categorias que não a judicial.Desse modo, são magistrados independen-

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tes não só os juízes do Tribunal Constitu-cional (Lei nº 85/89, art. 22), como os dosTribunais Administrativos e Fiscais (Decreto-Lei nº 129/84, art. 77) e do Tribunal deContas (Lei nº 86/89, art. 4º).

A organização judiciária constitucionalportuguesa prevê a existência do ConselhoSuperior da Magistratura15, de composiçãomista: dois vogais designados pelo Presi-dente da República, sete eleitos pela Assem-bléia da República e sete juízes eleitos pelosseus pares, em harmonia com o princípioda representação proporcional (art. 218). AoConselho Superior da Magistratura judicial,que é presidido pelo Presidente do SupremoTribunal de Justiça, compete não somente oexercício da ação disciplinar, como tambéma nomeação, colocação, transferência e apromoção dos juízes.

Da leitura dos dispositivos da Consti-tuição da República Portuguesa, emboranão expressamente designado como tal,pode-se constatar a organização do Judi-ciário como verdadeiro Poder, atribuindo-se aos juízes garantias para o exercício dasua função e zelando pela sua imparciali-dade, vedando o exercício de outras funções,a não ser a docente ou de investigaçãocientífica, sem remuneração , bem como aprática de atividades político-partidárias.Tais normas vêm inscritas no capítulo III daConstituição, que é muito propriamentedenominado de Estatuto dos Juízes.

3. As questões que se colocamatualmente nos dois países

O crescimento, projeção e protagonismodo Poder Judiciário, tanto em Portugal comono Brasil, são sem dúvida o reflexo doprocesso de democratização de ambos ospaíses, fenômeno que, aliás, tem-se verifi-cado em praticamente todos os paísesocidentais.

Em conseqüência, os problemas e questio-namentos são basicamente os mesmos: anecessidade ou não de controle por meio deum órgão externo; a legitimação democráticade um Poder que cada vez mais se imiscui

não só na vida social, como também nasquestões políticas e econômicas; o sistemade recrutamento e formação dos juízes.Questiona-se, ainda, a participação popularna administração da Justiça e o própriorelacionamento entre o Poder Judicial e asociedade.

Os argumentos levantados são, princi-palmente, que o Judiciário é um Poder não-renovável, não-designado por eleiçãopopular e não-responsável politicamente,embora tenha a última palavra em impor-tantes decisões políticas, sobrepondo-se atodos os órgãos, como o Presidente e oCongresso, diretamente eleitos pelo povo.

Com o pretexto de lhes assegurar repre-sentatividade e democraticidade, de estabe-lecer formas de controle sobre o que se temchamado de “super-Poder”, projetam-seidéias sobre a constituição, no Brasil, ou areforma, em Portugal, dos órgãos de gestãoe disciplina da magistratura. Coloca-se emfoco ainda, principalmente em Portugal, aquestão do recrutamento dos juízes e,estabelecendo confronto com a legitimaçãoconferida pelo voto popular aos outrosórgãos de soberania, avança-se na idéia deque só a eleição pode assegurar-lhes “legiti-midade democrática” 16.

Tentaremos fracionar esses temas,embora estejam umbilicalmente ligados,para uma pequena reflexão.

Vejamos primeiramente a questão docontrole.

3.1. Controle (externo) do Poder Judiciário

A existência de um órgão superior, comobjetivos disciplinares em relação à magis-tratura, remonta, em Portugal, há mais deum século. Assim é que já em 1892 criava-seum “Conselho Disciplinar da Magistratura”e, em 1901, um outro organismo denominado“Conselho Superior Judiciário”, este últimocom atribuições consultivas, ambos ligadosao Ministério da Justiça. Em 1921, as funçõesde consulta e disciplina foram reunidas emum único órgão, o “Conselho Superior daMagistratura Judicial”, ao qual foi aindaconfiada a promoção dos juízes17.

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Atualmente, existem em Portugal trêsConselhos Superiores: da magistraturajudicial, da magistratura dos tribunaisadministrativos e do Ministério Público.Tem-se defendido a criação de um “Con-selho Superior de Justiça” 18, que substituiriaos atuais Conselhos, objetivando garantir alegitimidade e democraticidade desse órgão,além de ser uma forma de permeabilizar asmagistraturas.

Mas a idéia ainda é polêmica, e os seusopositores argumentam que o sistema deseparação das duas magistraturas tem-serevelado positivo, não merecendo re-formas19. O Professor Canotilho tambémconsidera que, “faltando uma estrutura uni-tária integrativa de todos os tribunais”, seriamanifesta a inadmissibilidade de umarepresentação unitária dos mesmos, o que domesmo modo sucederia quanto aos juízes20.

Críticas também têm sido dirigidas àatual composição do Conselho Superior daMagistratura Judicial, ao qual já se referiulinhas acima. Pela redação anterior àRevisão Constitucional de 1997, pelo menosum dos vogais indicados pelo Presidente daRepública deveria ser juiz. A alteração foisutil, “de grande significado político e deefeitos práticos imprevisíveis”: com a novaredação, que não prevê essa exigência, oequilíbrio “duramente conseguido” narevisão de 1989 “fica nas mãos do Presidenteda República” 21.

No Brasil, ante a inexistência de um“Conselho Superior” 22, como ocorre emPortugal, o que atualmente se discute é acriação de um órgão de controle externo damagistratura.

A idéia tem sido alvo de acirradosdebates, com enorme repercussão na mídia,principalmente no tocante à composiçãodesse órgão com elementos externos àmagistratura e suas conseqüências quantoao alijamento da independência judicial.Mas mesmo os que repudiam a idéia docontrole externo concordam com a criaçãode um órgão superior, com atribuiçõesadministrativas e disciplinares, ou mesmode gestão e planejamento do Judiciário23.

No anteprojeto do Estatuto da Magistra-tura Nacional, ainda em trâmite no Senado,prevê-se a criação de um Conselho Nacionalde Administração da Justiça, mas comoórgão disciplinar e composto apenas pormembros dos Tribunais superiores.

3.2. A legitimidade democrática

A Constituição Portuguesa avançoumais do que a brasileira no tocante à legitimi-dade democrática do Poder Judiciário aoconsignar expressamente serem os Tribu-nais “órgãos de soberania com competênciapara administrar a Justiça em nome dopovo” (art. 202, 1). Outros princípiospoderiam também ser invocados, como asujeição apenas à lei (art. 203); a publicidadedas audiências nos tribunais (art. 206); aobrigatoriedade da fundamentação dasdecisões dos tribunais “na forma previstana lei” (art. 205, 1); a natureza obrigatóriadas decisões dos tribunais para todas asentidades públicas e privadas e a preva-lência dessas decisões sobre as de quaisqueroutras autoridades (art. 205, 2).

A legitimidade jurídico-política dosjuízes emana, desse modo, como para osdemais órgãos de soberania, da Consti-tuição, da sua definição da República Portu-guesa como “um Estado de direito democrá-tico baseado na soberania popular” (art. 2º).

Da Constituição brasileira, embora nãoexpressa quanto à soberania, também temorigem a legitimidade do Poder judicial.Basta verificar ser o Poder Judiciário, dentroda clássica tripartição dos poderes, um dosPoderes da República (art. 2º), constituindoessa separação cláusula pétrea (art. 60, § 4º),insuscetível de modificação por emendaconstitucional. Entre os princípios estrutu-rantes do Poder estão, do mesmo modo quena Constituição Portuguesa, disposiçõesrelativas à carreira dos magistrados, publi-cidade e motivação das decisões, entreoutros (art. 93).

A questão maior colocada pelos críticosé, não obstante, a relativa ao princípio dofundamento democrático da soberania. Comefeito, enquanto nos outros Poderes os seus

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titulares são ou eleitos, ou designados eexonerados por quem o é, nenhuma dessassoluções é adotada genericamente em rela-ção aos juízes, em ambas as Constituições.

A designação dos tribunais como órgãosde soberania no direito português levanta,no entanto, alguns problemas delicados deteoria constitucional, como advertem osProfessores Gomes Canotilho e Vital Moreira.

“Na verdade, pertencendo a sobe-rania e o poder político ao povo (art. 3ºe 111), não existe contudo qualquerrelação orgânica, nem directa, nemindirecta, entre o titular da soberaniae os titulares deste órgão de soberania”.

Os juízes, ressalvados os do TribunalConstitucional, não são eleitos, “nem directanem indirectamente”, mas nomeados.Talvez por isso – ponderam aqueles autores– “a Constituição acentua que os tribunaisadministram a Justiça ‘em nome do povo’.O que, na circunstância – concluem – éapenas uma fictio juris” 24.

Esse não é, no entanto, o pensamento doProfessor Rebelo de Sousa, que, além daemanação constitucional, defende tratar-se,no caso português, de uma legitimidadepolítica representativa indireta,

“porque se funda na forma de designa-ção dos titulares de órgãos que, porseu turno, designam a maioria dosmembros do Conselho Superior daMagistratura, a quem compete anomeação, a colocação, a transfe-rência e a promoção dos juízes dostribunais judiciais e o exercício daação disciplinar” 25.

Cremos que a solução do problema dalegitimidade há que se buscar ainda emoutros argumentos.

Uma instituição não pode ser conside-rada antidemocrática unicamente porquenão provenha de eleição popular. Como jáafirmou Zaffaroni, em percuciente estudosobre o Poder Judiciário, uma instituição édemocrática “quando seja funcional para osistema democrático, quer dizer, quando sejanecessária para sua continuidade, comoocorre com o Judiciário”26.

É a mesma perspectiva que, aliás, coloca-se quanto à questão da legitimidade nopróprio Estado democrático e social dedireito, focalizada por Parejo Alfonso, emprimeira linha, pela

“sua capacidade para resolver osproblemas e conflitos sociais sob aperspectiva da Justiça social inspiradapela dignidade da pessoa, ou seja, suacapacidade de cumprir o seu fim deinstância de ordenação social, deefetivo serviço à sociedade (da qual oEstado não é mais do que uma mani-festação em regime de auto-organiza-ção institucionalizada)”27.

O sistema da eleição é inadequado à ati-vidade judiciária e por certo colidiria com aindependência e imparcialidade dos juízes.Sem dúvida, o terreno seria propício àparcialidade, consciente ou não, das de-cisões de quem sentisse que a sua perma-nência no cargo dependesse da boa ima-gem que conseguisse transmitir ao seu“eleitorado”.

3.3. Recrutamento e formação dos juízesAo se afirmar como “Poder” político,

torna-se imperioso ao Judiciário o recruta-mento de elementos preparados para oexercício das suas funções, o que supõenecessariamente formação científica etécnica de nível universitário – licenciaturaem Direito e bom domínio da práticajudiciária.

Tanto Portugal como o Brasil adotam osistema de recrutamento por meio de con-curso público, constante de testes de aptidãoescritos e orais, sendo que, quanto aoprimeiro país, dispensa-se destes testes osdoutores em Direito, o que não ocorre nosegundo.

As dúvidas quanto ao sistema de seleçãoque se deva adotar são basicamente as se-guintes: deve-se exigir um período deexperiência do bacharel nas áreas de advo-cacia, ou no exercício de cargos privativosde bacharel? Qual seria o tempo exigível deprática, antes do ingresso? Poder-se-ia

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admitir os doutorados em direito, semnenhuma outra exigência, ou dispensar osadvogados com determinado tempo deexperiência do concurso público? Estabe-lecer um regime de eleição direta, como osdemais cargos políticos? Estabelecer umlimite temporal para o exercício da judica-tura? Tornar dependente de preparação emescola da magistratura (com o necessáriocomplemento de estágios) o exercício dafunção de julgar?

No entanto, quanto à formação, mesmoaqueles que defendem o sistema eletivo paraos juízes são unânimes em considerar anecessidade da implantação – onde aindanão exista – e o fortalecimento das “escolasjudiciais” como organismos destinados aformar profissionais que possam contribuirpara o aperfeiçoamento da Justiça.

Nesse sentido, em Portugal há uma únicaescola – o CEJ – Centro de Estudos Judiciá-rios, criado e estruturado, em 1979, seguindomuito de perto o modelo da Ecole Nationalede la Magistrature, na França28. Atualmenteo CEJ goza de autonomia administrativa efinanceira, embora continue sob a tutela doMinistério da Justiça. Esse ponto tem sidoobjeto de críticas dos magistrados, sob oargumento de que essa dependência deveriase dar em relação aos Conselhos Superioresde ambas as magistraturas29.

No Brasil, em razão da sua dimensão eforma federativa, hoje há várias escolas demagistratura, espalhadas por quase todosos Estados, com modelos diversos de atua-ção. No âmbito da Justiça Federal, essaconstituição ainda está em passos lentos,encontrando-se mais avançada na Justiçado Trabalho. Como órgão nacional, ligadaà Associação dos Magistrados Brasileiros,constituiu-se a Escola Nacional da Magis-tratura30, com objetivos amplos de atuarpositivamente, seja na elaboração de pro-postas de reforma legislativa, seja noaperfeiçoamento da magistratura nacional,por meio da realização, em parceria com asdemais escolas, de cursos de extensão, pós-graduação e aperfeiçoamento.

3.4. O acesso à Justiça

A expressão “acesso à Justiça”, emboradifícil de ser definida, serve para delimitarduas finalidades básicas do sistema jurí-dico, segundo os professores Cappelletti eGarth: “primeiro, o sistema deve ser igual-mente acessível a todos; segundo, ele deveproduzir resultados que sejam individual esocialmente justos”31.

Considerado hoje como o “mais básicodos direitos humanos”, em qualquer sistemajurídico que pretenda “garantir e não apenasproclamar o direito de todos”32, já se podever, no Brasil e em Portugal, a antigatendência à burocratização das formasprocessuais ser substituída, rapidamente,por meios mais eficazes de acesso dapopulação ao Poder Judiciário.

Nesse sentido, aumenta-se o número dejuizados de conciliação e pequenas causas.Desburocratizam-se os ritos, reduzem-sefórmulas. As recentes modificações nalegislação processual, em ambos os países33,principalmente na parte relativa aos recur-sos34, refletem essa preocupação do legis-lador, como espelho do pensamento de todaa sociedade.

3.5. Poder judicial e sociedade

O relacionamento entre o Poder judiciale a sociedade pode ser centrado em doisaspectos: a participação popular na adminis-tração da Justiça e o conhecimento, pelapopulação, da sua estrutura e funcionamento.

A participação popular na Justiça, tantoem Portugal como no Brasil, apresenta-seprimeiramente na manutenção do júri, que,no Brasil, tem competência absoluta parajulgar os crimes dolosos contra a vida (art.5º, XXXVIII, da CF/88) e, em Portugal, inter-vém no julgamento dos crimes graves, em-bora apenas convocado quando a pedidoda acusação ou da defesa (art. 201, 1, CRP).

Outros exemplos de participação popu-lar são previstos na Constituição Portu-guesa, como a intervenção dos “juízessociais” no julgamento de questões detrabalho, infrações contra a saúde pública,

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pequenos delitos ou “outras em que sejustifique uma especial ponderação dosvalores sociais ofendidos” (art. 207, 2).Prevê-se ainda a participação de assessorestécnicos “qualificados para o julgamento dedeterminadas matérias” (art. 207, 3).

Na Constituição brasileira, pode-se citara participação de “juízes leigos” nosjuizados especiais de conciliação, julga-mento e execução de causas cíveis de menorcomplexidade e infrações penais de menorpotencial lesivo, além da “Justiça de paz”,composta por cidadãos eleitos, a quem seatribui a atividade conciliatória, embora semcaráter jurisdicional (art. 98, I e II).

Quanto ao segundo ponto, deve-seressaltar o importante papel assumido pelamídia na divulgação de decisões e julga-mentos. Infelizmente, esse poderoso ins-trumento, que poderia ser colocado a servi-ço do esclarecimento da população, aindanão alcançou tal objetivo: o que se vê é umlamentável desconhecimento, por parte dosseus operadores, salvo raras exceções, dosmecanismos da Justiça, transmitindoinformações distorcidas e muitas vezesdirecionando a opinião pública, sendo dese temer a sua influência nos julgamentos.

O “diálogo” do Poder judicial com asociedade, pelos meios de comunicação demassa, é um fato que está a merecer umaséria reflexão, por parte dos juristas deambos os países, exigindo a ponderaçãoentre valores aparentemente de difícilconciliação: a liberdade de informação eimprensa, o esclarecimento do povo e atranqüilidade e imparcialidade necessáriasao julgamento.

Poder-se-á invocar ainda a questão damotivação das decisões judiciais, comoinstrumento de legitimação democrática,esclarecimento e prestação de contas àsociedade.

De fato, a motivação, a par de seufundamento endoprocessual, de controle dofundamento da decisão, tem o efeito deextrapolar os limites do processo, tornandoa sentença judicial compreensível para ocidadão, em nome do qual é administrada a

Justiça. Este, então, pode transformar-se desujeito passivo em sujeito ativo de umcontrole generalizado e difuso sobre opróprio sistema judiciário: para isso, deve asentença não só ser pública, como redigidade forma a possibilitar que qualquer pessoa,embora não tenha formação jurídica, estejaem condições de verificar se as justificaçõesde fato e de direito enunciadas são coerentescom a decisão.

A motivação das decisões judiciaisimplica, nessa perspectiva, segundo Taruffo,“uma profunda transformação no sentidodemocrático da relação entre o povo e aadministração da Justiça, e do papel do juizno Estado moderno” 35.

A sentença deixa, desse modo, de ser algomístico ou esotérico, cuja revelação só seapresenta aos “iniciados”, para se tornarum instrumento de democratização dopróprio Poder Judiciário.

4. Situação do Judiciário no Brasil e emPortugal – uma generalizada sensação

de crise Os problemas e questões que se projetam

em relação ao Poder Judiciário têm suscitadouma generalizada sensação de crise da insti-tuição, que, na realidade, insere-se nopanorama maior de crise do próprio Estadosocial de direito. A crescente complexidadee multiplicidade das relações jurídicas esociais (individualismo e solidarismo social,grupos de pressão, movimentos como ofeminismo, ecologismo, pacifismo, contra-posição entre patrões e trabalhadores,pessoas com trabalho e sem trabalho, comterra ou sem-terra, integradas ou marginali-zadas, dentro e fora do sistema, etc.) acabapor repercutir na percepção que os cidadãospassam a ter do aparelho estatal e, dessemodo, nas expectativas e novas exigênciasem relação a ele.

Também a normatividade se tornoucomplexa. O alargamento da intervenção doPoder Judiciário na vida da sociedade éfruto, por sua vez, não só do processo detomada de consciência dos cidadãos, dos

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seus direitos e meios de defesa, o que se temdenominado de “explosão de litigiosi-dade”36, como, por outro lado, do próprioestrangulamento do Poder Legislativo,dominado por blocos de pressão e interesses,que resultam em uma “inflação normativa”,imprecisa e contraditória.

Assim é que, por um desses movimentoscontraditórios da história, o aumento dospoderes do legislador, na passagem doEstado liberal ao Estado social, determinouum aumento dos poderes do juiz. O fenô-meno foi acelerado, paradoxalmente, poruma “patologia” de uma legislação osci-lante entre a inflação de alguns setores e oesvaziamento em outros. As várias formasde inatividade do legislador ou, por outrolado, de sua super-atividade representam,desse modo, uma das principais causas queestão na origem do alargamento dos poderesdo Judiciário37.

A atividade jurisprudencial vem, dessemodo, ocupar um espaço importante natarefa de criação do Direito, mas o seuexercício só é possível em um Estado queassegure a independência e a imparcia-lidade dos seus Tribunais.

Num Estado de Direito, essa indepen-dência e imparcialidade não é um favorconcedido aos juízes, mas uma garantia aocidadão, para que possa exercer plenamenteo seu direito à Justiça. Nesse enfoque, insere-se, portanto, a efetividade do acesso aostribunais, o qual todo cidadão deve ter, comoprerrogativa cívica de obter uma decisãojudicial que lhe assegure o respeito e asegurança da sua pessoa, dos seus bens edos seus direitos.

Vivemos um momento histórico extrema-mente interessante, ainda que contraditórioe presidido pela incerteza. Esta se deve, semdúvida, à mudança, complexidade e rapi-dez do presente. Não que as transformaçõesnão tivessem sempre ocorrido. Mas o quevai caracterizar essa época é a justificaçãoda mudança pela mudança em si mesma,uma espécie de “veneração” da mudança, oque acentua a sensação de crise.

Desse modo, a atual “crise”, instaladadentro do Poder Judiciário, nada mais é doque o reflexo desse impasse maior, não sóentre o Estado e a sociedade, como dopróprio Estado e da sociedade, em simesmos. É preciso, pois, “desdramatizar” acrise, como já disse Zaffaroni, inseri-la nocontexto de transformação, analisá-laprospectivamente, no aspecto positivo deque a crise, na realidade, é um indicativo deevolução e renovação.

5. PerspectivasNas palavras dos futurólogos ameri-

canos, está a emergir das nossas vidas umanova civilização. A humanidade está a darum salto e enfrenta a mais profundaconvulsão social e a mais criativa reestrutu-ração de todos os tempos, o que terá pro-fundas conseqüências no modo comodirigiremos as nossas instituições e comoserá a nossa participação política. A terceiraonda38 é exatamente a da síntese, e na vida,como no Direito, a tendência é sempre a dauniversalização, a de englobação de valoresnovos.

Assim também o Judiciário.Nesse mundo de mudanças, o Poder

Judiciário se revela como o Poder do futuro,apto a resgatar o cidadão, efetivar-lhe osdireitos e dar-lhe garantias, acentuando, emsuma, o seu papel ativo no seio de umasociedade que se pretende democrática.

Dentro desse quadro, é possível pensar-se em perspectivas que se delineiam para ofuturo, em ambos os países. Vejamos algumasdelas:

1) já se tem sentido a necessidade, prin-cipalmente no Brasil, da instituição de umórgão superior, de planejamento e gestão doPoder Judiciário, dotando-lhe de estruturase meios para proporcionar ao cidadão umaJustiça verdadeiramente ágil e célere. Seriasalutar que participassem da sua compo-sição membros dos demais Poderes, o quelhe daria a feição de um verdadeiro Conselhode Estado. Esse órgão superior poderia,inclusive, ser responsável pela estrutura e

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planejamento dos mecanismos extraju-diciais de composição de litígios, como osjuizados especiais de conciliação e arbi-tragem e a Justiça de Paz;

2) a proposta da criação de um ConselhoSuperior da Magistratura, no Brasil, encon-tra hoje vários defensores. Seria um órgãoprincipalmente de administração do apa-relho judiciário, responsabilização e açãodisciplinar dos seus juízes. Em Portugal, jáse vislumbra a necessidade de reestrutura-ção dos órgãos existentes e a reunião, se nãodo Conselho Superior do Ministério Público,pelo menos dos Conselhos Superiores damagistratura judicial e administrativa, quenão tem sentido continuem separados;

3) o aperfeiçoamento dos critérios deseleção e formação da magistratura judici-al, do Ministério Público e mesmo dos“juízes leigos”, por meio do incremento decursos, em uma perspectiva de interdiscipli-nariedade, sendo imprescindível pensar-seem formas de parceria com as Universidades;

4) o fortalecimento do papel do Judiciáriona criação normativa do Direito, diante nãosó da “febre legislativa”, que tem ocasionadouma avassaladora e caótica proliferação detextos legais, com o objetivo de assegurarum valor tão indispensável à liberdade, queé a da segurança jurídica;

5) o crescimento da participação popularna administração da Justiça, por meio doimplemento de juízos arbitrais e de conci-liação, o que tem reflexo na própria con-cepção do julgador: segundo o juristaitaliano Giuliano, na verdade, a experiência– do processo civil ou do processo penal –mostra hoje um juiz que decide cada vezmenos, medeia e contrata cada vez mais,assume um papel “promocional” e chega adesempenhar uma função de orientaçãopolítica e econômica39;

6) a inserção de Portugal e do Brasil, res-pectivamente, em espaços jurídicos maiores,como a União Européia e o Mercosul, levaráa uma necessária reformulação das estru-turas do Poder Judiciário, em nível supra-nacional. No primeiro caso, o crescimentoda criação jurisprudencial já é bastante

visível no âmbito do direito comunitário,suprindo a jurisprudência emanada doTribunal Europeu de Justiça a incompletanormativização, a divergência de conceitosou de institutos dos diversos sistemasjurídicos abarcados pela sua área de juris-dição. No segundo caso, torna-se imperiosaa necessidade de criação de um Tribunal deJustiça para atender aos conflitos que já estãosurgindo no círculo dos países componentesdo Mercosul.

Todas essas possibilidades nos levam aconcluir pelo inevitável fortalecimento doJudiciário e o importante papel que se lhereserva o Terceiro Milênio.

E, a respeito do Poder Judiciário que nós– brasileiros e lusitanos – queremos, pedi-mos licença para ouvir a voz do coração etranscrever o belo trecho do discursoproferido em setembro de 1997 pelo MinistroSálvio de Figueiredo Teixeira no Tribunalde Alçada de Minas Gerais:

“Neste momento de justificadasapreensões, de inquietações e incoerên-cias, não bastam a retórica e o discurso,impondo-se a compreensão de queinadiável a melhoria da prestaçãojurisdicional, a começar pela moder-nização do Judiciário, com planeja-mento permanente e efetivo, pararesponder aos desafios dos novostempos, que chegam como o novoséculo no dorso de uma evoluçãocientífica e tecnológica que está a exigirnovas concepções e novas posturas.Só assim teremos o Judiciário que asociedade merece e com o qual todosnós sonhamos: confiável, eficiente,eficaz, ágil, transparente, afirmativo,sensível às transformações sociais eaos sonhos de felicidade da almahumana” 40 .

Bibliografia

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Notas1 Sobre a trajetória comum do constitucionalis-

mo brasileiro e português, ver, notadamente:BONAVIDES, Paulo. Constitucionalismo luso-brasileiro: influxos recíprocos. FERREIRA FILHO,Manoel Gonçalves. Constitucionalismo portuguêse constitucionalismo brasileiro. In: MIRANDA, Jorge(org.). Perspectivas... p. 19 a 69.

2 Cf. SAHID MALUF, Direito Constitucional, 9ªed., p. 283/4.

3 O Alvará de 10 de maio de 1808 criou no Brasiluma Casa de Suplicação, “com predicados iguaesà de Lisboa”, sendo considerada como SuperiorTribunal de Justiça, com sede no Rio de Janeiro. OAlvará de 16 de maio de 1809 sujeitou novamenteà Casa de Suplicação de Lisboa os distritos do Pará,Maranhão, Açores e Madeira , que estavam peloAlvará de 1808 submetidos à Casa de Suplicaçãodo Brasil. Cfr. Auxiliar Jurídico... Apêndice àsOrdenações Filipinas. v. I. Lisboa: Gulbenkian, 1985.op. cit., p. 4.

4 JACQUES, Paulino. O relacionamento dospoderes políticos..., p 5-16.

5 RUSSOMANO, Rosah. Facetas da Consti-tuição de 1824, p. 25.

6 Idem, idem.7 O Supremo Tribunal Federal, esse outro desco-

nhecido. p. 22.

dos Juízes Portugueses. Poder judicial na vira-gem do século: realidade ou ficção? Viseu, 1997, p.107-120.

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8 Op. cit., p. 12.9 A não-menção, neste subtítulo, do Poder

Judiciário em Portugal é proposital: a atualConstituição da República Portuguesa, alteradapela Lei Constitucional nº 01/97, de 20 de setembro,apenas utilizou a palavra tribunais, como órgãos desoberania, para designar todo o poder judicial.

10 FIGUEIREDO, Roseira de, FERREIRA, FlávioPinto, O Poder judicial e a sua independência, p. 21.

11 Em Portugal e o Futuro , o General AntónioSpínola fala da “probabilidade de reforçar a coesãonum quadro federal através de um Poder Judicialfortalecido e isento”. Adiante acrescenta que “umPoder judicial funcionalmente estruturado parajulgar da constitucionalidade ou inconstitucionali-dade dos atos executivos e legislativos, federais eestaduais; e uma forte capacidade de intervençãono sentido de poderem ser impostas as decisões doPoder judicial”. Cfr. FIGUEIREDO, Joaquim R., ob.cit.

12 Art. 110, c/c art. 202º, 1, da CRP.13 MIRANDA, Jorge. Estudos sobre a Constituição,

p. 380/4. Vale observar, no entanto, que tambémna Constituição francesa, de 25 de dezembro de1799, a expressão “Poder Judiciário” foi substituídapor “tribunais”. Para ZAFFARONI, isso deveu-seàs reformas napoleônicas – “o resultado dodiretório, do consulado e do império foi um PoderJudiciário com juiz profissional, nomeado peloexecutivo, hierarquizado como um exército e queperdeu o próprio nome de ‘Poder’”. “PoderJudiciário”, p. 53.

14 Art. 202, 2, da CRP – É a mesma definiçãoutilizada pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais(Lei nº 38/87, art. 2º., atualmente Lei nº 3/99, de13 de janeiro, ainda não em vigor) e Estatuto dosTribunais Administrativos e Fiscais (Decreto-Lei nº129/84, arts. 1º e 3º) .

15 Embora a Constituição apenas se refira a que,no tocante aos juízes dos tribunais administrativose fiscais, a ação disciplinar, nomeações, promoçõese transferências sejam da competência do “respec-tivo conselho superior, nos termos da lei”(art. 217,2), o Estatuto dos Tribunais Administrativos eFiscais (DL 129/84) regula a composição, compe-tências e funcionamento do Conselho Superior dosTribunais Administrativos e Fiscais (art. 98 a 102).

16 COSTA, José Gonçalves. O Poder judicialnuma sociedade democrática, p. 66.

17 Cfr. VIDAL, Armando Lúcio. ConselhoSuperior Judiciário. In: Dicionário jurídico daAdministração Pública, p. 631-645.

18 Cfr. COSTA, José Gonçalves. O Poder judicialnuma sociedade democrática, p. 81/2.

19 COSTA, José Gonçalves. O Poder judicialnuma sociedade democrática, p. 81/2.

20 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição daRepública Portuguesa anotada, p. 805/806.

21 AFONSO, Orlando. O Poder judicial.., p. 118.22 Registre-se o antecedente da criação, em 1977,

do Conselho Nacional da Magistratura, pelaEmenda Constitucional nº 7/77, sem resultadospráticos.

23 Cfr. matéria da Revista Consulex, ano I, nº 3 ,mar/97, p. 17.

24 CANOTILHO... Constituição da RepúblicaPortuguesa Anotada, 3ª ed., p. 791, nota 13.

25 Orgânica judicial e responsabilidade dos juízes...,p. 17.

26 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário.p. 43.

27 PAREJO ALFONSO. Estado Social..., p. 94.28 Lei nº 16/98, de 8 de abril de 1998. Ver, a

propósito: FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros. Aseleção e formação de magistrados em Portugal.SIFUENTES, Mônica Jacqueline. Seleção e formaçãode magistrados em Portugal: novo sistema. In:TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O JUIZ: seleção eformação de magistrados no mundo contemporâneo. BeloHorizonte: Livraria Del Rey Editora, 1999. p. 239-244 e 245-252, respectivamente.

29 Nesse sentido, a proposta da AssociaçãoSindical dos Juízes Portugueses, aprovada no VCongresso, realizado em Viseu, novembro de 1997.

30 Cfr. TEIXEIRA. Sálvio de Figueiredo. O futurodas escolas judiciais. In: TEIXEIRA, Sálvio deFigueiredo. O JUIZ: seleção e formação de magistradosno mundo contemporâneo. Belo Horizonte: LivrariaDel Rey Editora, 1999. p. 117-133.

31 CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant.Acesso à Justiça, p. 8.

32 Idem, idem, p. 12.33 No Brasil, Lei nº 9.756/98. Segundo o Ministro

Sálvio de Figueiredo Teixeira, coordenador daspropostas de reformas ocorridas no CPC brasileiro,“tais iniciativas, longe de afirmar a má estruturado referido Código, se devem à circunstância deque este, sem embargo da sua louvável arquitetura,muito deixou a desejar em termos de efetividade,preocupação inexistente em nossa doutrina à época,deficiência que se somou à inocorrência do seuprojeto submeter-se ao debate democrático quandode sua elaboração e aprovação, em face doautoritarismo político em que vivia o País”. A Lei9.756/98 e suas inovações.

34 O Professor Miguel Teixeira de Sousa, arespeito das reformas ocorridas no CPC português(Decreto-Lei nº 329-A/95), com profundasalterações, principalmente na parte recursal, diz queas “linhas mestras” foram: “a distinção entre osprincípios que se referem aos valores fundamentaisdo processo civil e as regras, de natureza maisinstrumental, que definem o funcionamento dosistema processual, a garantia da prevalência dofundo sobre a forma e, portanto, a orientação pela

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verdade material, que se procura alcançar atravésda concessão ao juiz de um papel mais interventore da submissão da atuação das partes a umprincípio de cooperação e de participação maisativa no processo de formação da decisão”. Estudossobre o novo processo civil, p. 22.

35 TARUFFO, Michele. Note sulla garanziacostituzionale della motivacione, p. 29 e 33.

36 Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Giudice legislatori?,p. 8.

37 GIULIANO, Alessandro, PICARDI, Nicola.Professionalità e responsabilità del giudice, Rivistadi Diritto Processuale, p. 256 ss.

38 TOFFLER, Alvim e Heidi. Criando uma nova

civilização... p. 205: “A necessidade de novasinstituições políticas acompanha exatamente anossa necessidade de novas instituições familiares,educacionais e corporativas. Está profundamenteligada à nossa procura de uma nova base de energia,novas tecnologias e novas indústrias. Reflete arevolução das comunicações e a necessidade dereestruturar o relacionamento com o mundo não in-dustrial. É, em suma, o reflexo político das mudançasem aceleração em todas essas diferentes esferas”.

39 GIULIANO, Alessandro, PICARDI, Nicola.op. cit.

40 A voz do coração. Revista da escola da magis-tratura..., p. 189.

Referências bibliográficas conforme original.

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1. Introdução

A matéria aqui tratada talvez pareçaredundância, já que toda a legislação nacio-nal define ser impossível a terceirização dacobrança da dívida ativa. Ocorre que, porvárias vezes, os administradores públicostendem a se apegar nesse argumento, sob aalegação de resolução da “caótica” situa-ção da cobrança da dívida ativa.

Ora, a terceirização, ou qualquer outradenominação que se dê à tentativa de pas-sar a cobrança da dívida at iva paraadvogados não Procuradores dos Estados,Distrito Federal e União, não irá resolveressa situação, muito antes pelo contrário,irá tão-somente contrariar o Código Tribu-tário Nacional e a Constituição Federal.

2. A cobrança da dívida ativamediante atividade administrativa

vinculadaOs tributos são todas as imposições coer-

citivas que o Estado arrecada, em dinheiro,por força e na forma da lei, para cobrir des-pesas orçamentárias1.

O Código Tributário Nacional dispõeacerca da definição e determina as caracte-rísticas do tributo em seu art. 3º in verbis:

A impossibilidade da terceirização dacobrança da dívida ativa

Angela Cristina Pelicioli

Angela Cristina Pelicioli é Procuradora doEstado de Santa Catarina, Presidente da Asso-ciação dos Procuradores do Estado de SantaCatar ina , Pres idente da Comissão deAdvocacia Pública – OAB/SC.

Sumário1. Introdução. 2. A cobrança da dívida ativa

mediante atividade administrativa vinculada.3. Impossibilidade da terceirização da cobrançados tributos. 4. Conclusão.

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“Art. 3º – Tributo é toda prestaçãopecuniária compulsória, em moeda oucujo valor nela se possa exprimir, quenão constitua sanção de ato ilícito,instituída em lei e cobrada medianteatividade plenamente vinculada”.

As características do tributo foram muitobem arroladas por Rogério Vidal Gandra daSilva Martins e José Ruben Marone2, ipsislitteris:

“a) tem a natureza jurídica de ‘presta-ção’, a qual o contribuinte dá ao Esta-do;b) obrigatoriedade da prestação;c) prestação que deve possuir carátermonetário;d) prestação que não pode ser puni-ção do Estado por ato ilícito do contri-buinte;e) prestação que deve ser instituídapor lei;f) cobrança de prestação feita pelaAdministração Pública, que deve se-guir apenas os procedimentos que alei determinar.”

No que se refere à última característica, ea que nos interessa no presente momento,temos que o tributo será cobrado mediante ati-vidade plenamente vinculada, o que determi-na que o tributo somente será cobrado porato da Administração Pública, sendo que oPoder Público só poderá cobrar por meio deprocedimentos previstos em norma legal(Lei nº 6.830/80).

3. Impossibilidade da terceirização dacobrança dos tributos.

A cobrança da dívida ativa da FazendaPública é tarefa de prestação de serviço pú-blico colocada à disposição da coletividade.E como tal é função vinculada à lei e não aoadministrador público, aliás, independe davontade do administrador. É dever que seimpõe em decorrência do princípio da im-prescritibilidade dos bens e interessespúblicos.

Hely Lopes Meirelles3 define a imprescri-tibilidade dos bens públicos como aquela que:

“... decorre como conseqüência lógicade sua inalienabilidade originária. Eé fácil demonstrar a assertiva: se osbens públicos são originariamenteinalienáveis, segue-se que ninguém ospode adquirir enquanto guardaremessa condição. É princípio jurídico, deaceitação universal, que não há direitocontra Direito ou, por outras palavras, nãose adquire direito em desconformidade como Direito.” (grifei)

Poder-se-ia alegar que, como a cobrançada dívida ativa é prestação de serviços, estapoderia ser terceirizada, como ocorre comoutros tipos de mão-de-obra, por meio delicitação.

Isso não pode ser levado em considera-ção, posto que o Decreto nº 2.271, de 7-7-97,aplicável à Administração Pública Federal,define quais os tipos de atividades não-essenciais que poderão ser contratadas pormeio de licitação. Vejamos:

“Art. 1º No âmbito da Adminis-tração Pública Federal, direta, autár-quica, e fundacional, poderão serobjeto de execução indireta as ativi-dades materiais acessórias, instru-mentais ou complementares aos as-suntos que constituem área de com-petência legal do órgão ou entidade.

§ 1º As atividades de conservação, lim-peza, segurança, vigilância, transportes,informática, copeiragem, recepção, repro-grafia, telecomunicações e manutenção deprédios, equipamentos e instalações serão,de preferência, objeto de execução in-direta”. (grifei)

Dessa forma, em nenhum momento foicitado, no presente Decreto, que a cobrançada dívida ativa poderá ser licitada, isso por-que tal prestação de serviço é essencial àAdministração Pública.

Maria Sylvia Zanella di Pietro4 acercado assunto preleciona:

“No âmbito da Administração Pú-blica Direta e Indireta, a terceirização,como contrato de fornecimento de mão-de-obra, à semelhança dos que eram cele-brados no Estado de São Paulo..., não

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tem guarida, nem mesmo com base naLei nº 6.019, que disciplina o trabalhotemporário, porque a Constituição, noart. 37, inc. II, exige que a investiduraem cargos, empregos, ou funções sedê sempre por concurso público. (...)Tais contratos têm sido celebrados soba fórmula de prestação de serviços técni-cos especializados, de tal modo a asse-gurar uma aparência de legalidade.No entanto, não há, de fato, essa pres-tação de serviços por parte da empre-sa contratada, já que esta se limita, narealidade, a fornecer mão-de-obra parao Estado; ou seja, ela contrata pessoassem concurso público, para que pres-tem serviços em órgãos da Adminis-tração Direta e Indireta do Estado. Taispessoas não têm qualquer vínculo coma entidade onde prestam serviços, nãoassumem cargos, empregos ou fun-ções e não se submetem às normasconstitucionais sobre servidores pú-blicos. Na realidade, a terceirização,nestes casos, ... mascara a relação deemprego que seria própria da Admi-nistração Pública; não protege o inte-resse público, mas, ao contrário, favo-rece o apadrinhamento político; bur-la a exigência constitucional de con-curso público; escapa às normas cons-titucionais sobre servidores públicos;cobra taxa de administração incom-patíveis com os custos operacionais,com os salários pagos e com os encar-gos sociais; não observa as regras dascontratações temporárias; contrataservidores afastados de seus cargospara prestarem serviços sob outro tí-tulo, ao próprio órgão do qual estáafastado e com o qual mantém vínculode emprego público. (...)

Além disso, o real objeto do con-trato não é a prestação de serviços,mas o fornecimento de mão-de-obra.(...)

Tais contratos são manifestamen-te ilegais e inconstitucionais. Eles cor-

respondem a uma falsa terceirização enão escondem a intenção de burla àConstituição.“

Na esfera federal, quem detém a repre-sentação do Poder Público, nas execuçõesfiscais da União é a Procuradoria Geral daFazenda Nacional, como dispõe o art. 131,§ 3º, da Constituição Federal:

“Art. 131.§ 3º Na execução da dívida ativa

de natureza tributária, a representa-ção da União cabe à ProcuradoriaGeral da Fazenda Nacional, observa-do o disposto em lei.”

Igualmente, na órbita estadual, quemdetém essa representação judicial são osProcuradores do Estado, conforme precei-tua o disposto no art. 132, da Carta Magna,in verbis:

“Art. 132. Os Procuradores dos Es-tados e do Distrito Federal, organiza-dos em carreira, na qual o ingresso de-penderá de concurso público de pro-vas e títulos, com a participação daOrdem dos Advogados do Brasil emtodas as suas fases, exercerão a repre-sentação judicial e a consultoria jurí-dica das respectivas unidades fede-radas”.

O Supremo Tribunal Federal, nas AçõesDiretas de Inconstitucionalidade – Medidaliminar – nºs 881-1-ES, DJ de 25-4-19975, e1.679-2-GO6, decidiu que os Procuradoresdetêm a atribuição da representação judicialdos Estados, respectivamente:

ADIN nº 881-1-ES(...) O conteúdo normativo do art.

132 da Constituição da República re-vela os limites materiais em cujo âm-bito processar-se-á a atuação funcio-nal dos integrantes da ProcuradoriaGeral do Estado e do Distrito Federal.Nele contém-se norma que, revestidade eficácia vinculante, cogente paraas unidades federadas locais, não per-mite conferir a terceiros – senão aospróprios Procuradores do Estado e doDistrito Federal, selecionados em con-

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curso público de provas e títulos – oexercício intransferível e indisponíveldas funções da representação estatale de consultoria jurídica do PoderExecutivo.José Afonso da Silva, após vincularas funções institucionais da Procura-doria Geral do Estado aos domíniosda Advocacia Pública, expende ma-gistério irrepreensível sobre o tema:“Representação das unidades federa-das. Remissão.A representação judicial e a consulto-ria jurídica das unidades federadas(Estados e Distrito Federal) competemaos seus Procuradores, organizadosem carreira, em que ingressarão porconcurso público de provas e provase títulos. Com isso se institucionali-zam os serviços jurídicos estaduais(...).” (Curso de Direito ConstitucionalPositivo, p. 509, 5ª ed. , 1989, RT)E, ao concluir pela inalterabilidade eindisponibilidade das funções insti-tucionais deferidas aos Procuradoresdos Estados e do Distrito Federal, as-severa, verbis:“(...) Os Procuradores dos Estados edo Distrito Federal hão de ser organi-zados em carreira em que ingressarãopor concurso público de provas e títu-los (art. 132), estando, pois, vedada aadmissão ou contratação de advogadospara o exercício das funções de represen-tação judicial (salvo, evidentemente,impedimento de todos os Procurado-res) e de consultoria daquelas unidadesfederadas, porque não se deram essas fun-ções aos órgãos, mas foram diretamenteimputadas aos Procuradores.” (op. cit.,p. 533 – grifei)ADIN nº 1679-2-GOO Tribunal deferiu o pedido de medi-da cautelar, para suspender, com efi-cácia ex nunc, a execução e a aplicabi-lidade dos §§ 2º e 3º e respectivos in-cisos I, II, III e IV do art. 118 da Consti-tuição do Estado de Goiás, na reda-ção dada pela EC nº 17, de 30-6-97.

O dispositivo legal questionado:Parágrafos 2º e 3º, inciso I, II, III, IV doart. 118 da Constituição do Estado deGoiás, introduzidos pela EmendaConstitucional nº 17, de 30 de junhode 1997.Art. 1º – O art. 118 da Constituição doEstado de Goiás passa a vigorar comas seguintes alterações, renumerando-se o seu parágrafo único para § 1º:Art. 118 – (...)§ 2º – Na execução da dívida ativa denatureza tributária, a representaçãodo Estado cabe à Procuradoria da Fa-zenda.§ 3º – O órgão previsto no parágrafoanterior:I – será integrado por quadro própriode Procuradores da Fazenda Esta-dual, organizados em carreira, na qualo ingresso dependerá de concurso pú-blico de provas e títulos;II – será dirigido por um Procurador-Chefe, de livre nomeação do Gover-nador do Estado, dentre brasileiros ebacharéis em Direito, maiores de 21anos, de notável saber jurídico-tribu-tário;III – subordina-se ao titular da Secre-taria da Fazenda integrando a estru-tura desta;IV – será instituído e terá a suacompetência fixada em lei que, tam-bém, regulará a sua organização efuncionamento, bem como as atribui-ções , d i re i to e deveres de seusProcuradores.”

Como a cobrança da dívida ativa é servi-ço essencial, não será possível a concessãoou permissão desse serviço, mesmo porqueo art. 175 da Carta Magna determina que:

“Incumbe ao Poder Público, na formada lei, diretamente ou sob regime deconcessão ou permissão, sempre atra-vés de licitação, a prestação de servi-ços públicos.”

No caso em tela, a essencialidade do ser-viço determina que a Administração Públi-

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ca deva, por meio de seus Procuradores, co-brar a dívida ativa de seus Estados e doDistrito Federal.

Impossível a concessão, pois não se tra-ta de hipótese em que se possa contratar compessoa física; e, em segundo lugar, a cobran-ça da dívida ativa não poderia ser objetodestes trespasses do exercício do serviço pú-blico, vez que, obviamente, não poderiamensejar a cobrança de tarifas, a serem supor-tadas pelos administrados7.

4. ConclusãoO Estado tem a finalidade essencial da

realização do bem comum de seu povo ouda realização do interesse público, o aten-dimento das necessidades gerais da popu-lação ou a manutenção segura e ordenadada vida social8 e, como tal, deverá sempreobedecer aos princípios constitucionais or-denadores da legalidade dos seus atos.

Dessa forma, não poderá ser terceiriza-da a cobrança da dívida ativa, pois esta écompetência exclusiva, na esfera federal,estadual e do Distrito Federal, de seus

1 Célio Loureiro e Miguel Lins, Teoria e Práticade Direito tributário, Forense, Rio de Janeiro, 1ª ed.,1961, p. 367.

2 Carlos Valder do Nascimento, Comentáriosao Código Tributário Nacional, Forense, Rio de Ja-neiro, 1997, p. 34.

3 Hely Lopes Meirelles, Direito AdministrativoBrasileiro, 17ª ed., Malheiros, p. 450.

4 Maria Sylvia Zanella di Pietro, Parcerias naAdministração Pública. Concessão, Permissão, Fran-quia, Terceirização e outras formas, Atlas, São Pau-lo, 1996, p. 102/103.

5 ADIN nº 881-1-ES, rel. Min. Celso de Mello -Lex 227/54.

6 ADIN nº 1.679-2-GO, rel. Min. Néri da Silvei-ra, julgada em 1º-10-97.

7 Affonso de Aragão Peixoto Fortuna, Advoca-cia Pública em debate n. 3 - IBAP - 1998.

8 Bernardo Ribeiro de Moraes, Compêndio deDireito Tributário, 1º vol., Forense, Rio de Janeiro,2ª ed., 1993, p. 290.

Notas

Procuradores, isso em conformidade com osarts. 37, inc. I; 132; 175 da Constituição Fe-dera l e a r t . 3º do Código Tr ibutár ioNacional.

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1. A nova ordem mundial

O atormentado final de século consolidaa crise do Estado moderno: de um lado, oEstado-nação ameaçado em sua soberania;de outro, o Estado-social esvaziado peloneoliberalismo. Ambos sofrem, por igual, acrise da política, com todos os seus desdo-bramentos possíveis, inclusive a suprema-cia da guerra sobre a détente e a negociação,o esvaziamento da ONU e a virtual falência

Civilização e barbárie(ou ensaio sobre a nova ordem mundial)

“Boas idéias e boas tecnologias precisam deuma forte potência que promova essas idéias

pelo próprio exemplo e que proteja essas idéiasao sair vencedora do campo de batalha”.

Robert Kagan, historiador, citado porFriedman

“Os Estados Unidos de hoje são o MichaelJordan da geopolítica – o sistema esmagadora-

mente dominante”. Thomas L. Friedman,The New York Times Magazine

Roberto Amaral

Roberto Amaral é Escritor, professor daPUC-Rio, membro titular do Instituto dosAdvogados Brasileiros, IAB e Presidente doCentro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos –CEBELA. Editor da revista Comunicação&política.Vice-presidente nacional do Partido SocialistaBrasileiro, PSB.

Sumário1. A nova ordem mundial. 1.1. A pax

americana. 1.2. A ‘globalização’ da nova ordemmundial. 1.3. Os Estados Unidos e a globalização:um caso de sucesso econômico. 1.4. De novo (esempre) o velho complexo industrial-militar. 2.A ‘guerra’ da OTAN. 2.1. A economia da guerra.2.2. A guerra como ‘valor’. 3. E a América Latina?

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do direito internacional, reduzidos a merosarcaísmos pela nova ordem mundial, presi-dida pelo regime da potência única.

Nesse quadro, as crises do Golfo Pérsico(relembre-se: o Iraque continua vítima diá-ria dos bombardeios norte-americanos e in-gleses, levados a cabo sem mandato daONU1) e dos Bálcãs são episódios paradig-máticos, mas não encerram a história toda.

De fato, ao lado da ‘globalização’ econô-mica (essencialmente um projeto político),este final de século assinala a vigência deuma nova ordem mundial – caracterizadapela unipolaridade política, econômica,militar, tecnológica e cultural (que implica,também, o monopólio da informação) –, fe-nômeno desconhecido pela comunidade dasnações nos últimos dois séculos, e bem maissignificativo que o imperialismo/colonia-lismo inglês, talvez só comparável à pax ro-mana , mas, sem dúvida alguma, mais pro-fundo do que essa. Na verdade, ‘globaliza-ção’ e nova ordem mundial se fundem comofenômenos intercomunicantes, cada umcausa e conseqüência do outro. Trata-se deum domínio político, planetário, construídocomo desdobramento do império norte-ame-ricano sobre a economia de mercado, dondea balcanização/libanização dos demais Es-tados – que não mais podem aspirar à sobe-rania –, cujas prerrogativas são crescente-mente limitadas, reduzidas e condiciona-das, do ponto-de-vista político, do ponto-de-vista econômico e do ponto-de-vista mi-litar. O Estado tradicional entra em deca-dência e a humanidade volta a conviver comprotetorados de fato.

Essa falência da soberania (donde a cri-se dos Estados-nação e dos organismosinternacionais) é uma das conseqüências datransição do mundo do polipoder (e da bipo-laridade e da ‘guerra fria’) para a unipolari-dade, o período que vem do momento histó-rico identificado como ‘queda do muro deBerlim’ (1989) até nossos dias, cujo marco éa autonomia da OTAN (Organização doTratado do Atlântico Norte) em face da ONU,autoproclamando-se e agindo como umaforça erga-Estado, erga-direito.

Como fase de polipoder denominamosaqueles anos que medeiam a primeira e se-gunda guerras mundiais, assinalados pelaconstrução de vários pólos de poder econô-mico, político e militar, tanto na Europa(Alemanha, Itália, França, Inglaterra, URSS),quanto na Ásia (Japão), quanto na América(Estados Unidos). A bipolaridade é operíodo que se segue à derrota do nazi-fascismo, com seus desdobramentos, asaber, o controle político-militar sobre aAlemanha dividida e partilhada, a desmili-tarização do Japão sob controle norte-americano, a construção do império sovié-tico, a liderança ideológica, cul tural emilitar do ‘sistema ocidental’ pelos EstadosUnidos e, finalmente, a ‘guerra fria’.

A derrocada do ‘socialismo real’ e o con-seqüente (e articulado) desmantelamento daUnião Soviética ensejam a unipolaridade,isto é, o império isolado, autônomo e incon-testável dos Estados Unidos. Da condiçãode unipotência econômica, militar e políticaresulta o monopólio de intervenção nos ne-gócios e interesses de outras soberanias,posto que a política internacional, para essepaís, e em face dessa nova geopolítica, éapenas o prolongamento de sua políticanacional, a saber, uma projeção de seus inte-resses. De outra parte, e como desdobra-mento inevitável dessa compreensão demundo, o que quer que seja que não sirvaaos interesses norte-americanos é entendidocomo desservindo aos interesses norte-ame-ricanos, e, nessas condições, hostilizado.

A unipolaridade – ou esta era de unipo-tência – determina a falência dos organis-mos internacionais (e do direito interna-cional público) — com destaque para o des-vanecimento da ONU – e, pari passu –, a des-truição do Estado, dos Estados nacionais,do Estado-nação e, inevitavelmente, da po-lítica. Dito de outra forma, queremos assi-nalar que a chamada ‘crise do Estado’ é maispropriamente a crise da soberania, postoque, se é impossível a sobrevivência do Esta-do carente de soberania, é de igual modoinconcebível a sobrevivência da soberaniaem face do regime da unipotência. E, assim,

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os Estados são reduzidos a simples territó-rios, e as nações a um anacronismo.

Daí, o fim da política.É essa a nova ordem mundial.No plano das relações internacionais, a

falência da soberania (ou o fim da autode-terminação, acentuado pela militarizaçãodos conflitos políticos) é a matéria-prima dainterdependência global; no âmbito internodas nações, seu correspondente é o esvazia-mento da política.

Porque o fim da política é também o rei-no da política única, espinha dorsal ideoló-gica da ‘globalização’.

A política, esvaziada, deixa de ser ins-trumento de realização dos fins sociais;abastardada, é a arte da mentira, do engo-do, da farsa, da fraude, do subterfúgio. Dacoisa sempre menor, dos projetos indivi-duais, da traição aos interesses coletivos. Apolítica é reduzida a um inócuo exercícioinstitucional, organizando eleições defrau-dadas e corrompidas das quais emergemgovernos fraudulentos e corruptos, em elei-ções que não valem nada porque nada mu-dam. Assim, o povo vai sendo expulso daágora e cada vez menos se identifica comseus mandatários ou com as instituições degoverno. E como se identificar com a cor-rupção, com a traição do interesse público,a privatização do público pelos interessesdo capital? As administrações controladaspelos interesses do empresariado, o tráficode informações privilegiadas proporcio-nado por funcionários públicos em funçõesestratégicas que transitam do serviço públi-co para o empresariado privado e vice-ver-sa? O desvio, para fins privados, dos bens,benefícios e serviços públicos? O nepotismo,o favorecimento, o clientelismo e a desmo-ralização do interesse público e do interessenacional, anatematizados como arcaísmos?Com o fim das conquistas republicanas – ofim do serviço público, o fim da igualdadedos direitos, o fim do direito à educação, dodireito à saúde, à cultura, à arte e, final-mente, o fim do direito ao trabalho – insta-la-se na população a crise de desconfiançano Estado e na prioridade do bem público.

Poucos se dão conta do ‘novo’ autorita-rismo porque são preservados os marcos dademocracia formal: o povo – o grande de-senganado – ainda vota, e os meios de co-municação circulam sem censura estatal.

Organizando essa fraude, a ação concer-tada dos meios de comunicação e da inte-lectualidade, inclusive acadêmica, cons-truindo o discurso único, dogmático, omonopólio da informação abundante e in-significante, desintegrada e desintegrado-ra, dispersa e desestruturada e desestrutu-rante, uma visão cada vez mais despolitiza-da, incolor e inodora, desistoricizada edesistoricizante, instantaneísta e descon-tínua, atomizada e atomizante do mundo, omundo mediático, que, virtual, sobrepõe-seao mundo real, expulso da televisão. Daí avideopolítica e a videodemocracia. A opi-nião pública é a opinião dos que controlamos grandes meios de comunicação, verda-deiros partidos, ou o partido-único, porta-dor do discurso ideológico homogeneizado:a inevitabilidade da ‘globalização’, o ‘fimdo Estado’, o ‘fim da história’, a privatiza-ção e a desnacionalização como imperati-vos, donde o fim do debate e do contradi-tório. Há uma unanimidade planetária dosgrandes meios de comunicação – impressose tecnológicos – em torno dos primados ideo-lógicos da nova ordem internacional. Amesmice da imprensa brasileira2 é a repro-dução colonizada das matrizes do pensa-mento internacional, de onde copiamosidéias, hábitos, costumes, visão de mundo,política, regime, amor e ódio. A política,assim, é o simulacro da política, a demo-cracia (sem diálogo e sem representação)nega a democracia, a comunicação nãoinforma: a ampla liberdade de imprensa é omanto que encobre a ausência de debate, ocontraditório e o confronto das idéias. Acidadania é um puro engodo, quando maisdireitos os cidadãos poderiam aspirar.

Daí, a ideologia única, o discurso único,a economia única, o mercado (globalizado)como religião. O monopólio da ortodoxiatecnocrática, exercido pelos novos evan-

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gelistas do novo mundo: a tecnoburocracia,os altos funcionários das grandes empre-sas, os executivos dos organismos interna-cionais empunhando as bíblias e os alco-rões do fundamentalismo neoliberal. A ‘glo-balização’ torna-se uma fatalidade, o fim doEstado, inevitável, a dependência, uma ne-cessidade. Apesar do fracasso do modeloneoliberal. É, uma vez mais, a vitória do dis-curso sobre a realidade.

O fundamento dessa nova ordem eco-nômica é a liberdade dos indivíduos. Mas oque se vê é sua destruição: a violência dodesemprego, a precariedade da sobrevivên-cia física, o medo da insegurança: o homempassou a temer o futuro. O reinado do mer-cado implica o reinado do consumidor, osubstituto comercial (despolitizado) do ci-dadão: o bem público é o bem privado, acoisa pública é a coisa privada3. Dizem queas fronteiras entre Estados já não funcionam,mas os trabalhadores não têm livre-trânsi-to. Ao livre fluxo de mercadorias (no senti-do Norte-Sul) e do capital não correspondeo livre trânsito de homens; a mão-de-obrafarta das antigas colônias e os conflitos reli-giosos, estimulados, alimentam, na Europae em todo o mundo, políticas migratóriasracistas e discriminatórias. Importam-seempresas e mercadorias; exportam-se em-pregos e territórios:

“Importam-se empresas e expor-tam-se lugares. Impõe-se de fora dopaís o que deve ser a produção, a cir-culação e a distribuição dentro dopaís, anarquizando a divisão internado trabalho com o reforço de uma di-visão internacional do trabalho quedetermina como e o que produzir eexportar, de modo a manter desigual-mente repartidos, na escala planetária,a produção, o emprego, a mais-valia, opoder econômico e político”4.

E, em nome do mercado e da liberda-de, do livre-câmbio e do neoliberalismo,temos o monopólio absoluto ou mais per-feito (e não estamos em face de uma con-

tradição em termos): o monopólio estatalpelo Estado único.

O monopólio da economia.O monopólio do mercado.O monopólio dos valores.O monopólio da informação e, final-

mente, o monopólio da violência e da guerra.Os Estados cedem poder e competência

em proveito de organismos que não perten-cem a qualquer categoria da soberania po-pular ou da democracia representativa5. Sãoo FMI, o BID, o Banco Mundial, o BIRD, aMicrosoft, as General Motors, as IBM, as CNN,a banca internacional e o capital especula-tivo que ditam as regras do comércio e daeconomia no planeta, o novo Leviatan domundo neoliberalizado6.

Uma só rede de televisão decide o quepodemos ver e ouvir, transformando o mun-do num espetáculo, num video game, redu-zido o mundo a uma visão ideológica uni-lateral, e os fatos, aos fatos que interessam aessa visão. Em nossos países, onde reina omonopólio da audiência7, as redes locais re-produzem a grande rede mundial. A aldeiaglobal macluhaniana funde-se com a pre-monição orwelliana.

Finalmente, depois do mercado único 8,estabeleceu-se o exército único, mais pode-roso e mais impudico do que as legiões deCésar, mais impiedoso com seus adversá-rios do que qualquer outro.

Mas o desmantelamento das Federações(o fim da União Soviética foi um só começo),no que desfaz grandes Estados e enseja amultiplicação de pequenos entes políticos,sem capacidade de autonomia econômico-política e segurança militar, também alimen-ta as reivindicações de nacionalidades ereacende conflitos territoriais, religiosos eétnicos de difícil controle9. Assim, provoca-da, a desconstituição da Iugoslávia está naraiz dos conflitos entre sérvios e kosovares10,estimulando aqueles nacionalismos étnicosque Tito havia posto sob o controle de umafederação (República Socialista Federativada Iugoslávia).

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Como ignorar a história, descontextua-lizando os fatos, como se cada fato ou epi-sódio fosse uma totalidade, uma realidadehistórica desapartada do passado que a en-gendrou, como fazem os Estados Unidos eseus aliados, com a complacência de umaimprensa mundial comprometida com aideologia da guerra?

É preciso lembrar que os sérvios chega-ram à região hoje identificada como Kosovono ano VI d.C.

É preciso lembrar a Batalha de Kosovoem 1389, com a derrota do expansionismosérvio.

É preciso lembrar a primeira grande guerra.É preciso lembrar a invasão da Iugoslá-

via por tropas alemãs, italianas, húngaras,romenas e búlgaras em abril de 1941, quan-do a diplomacia de guerra de Hitler e Mus-solini cunhou a expressão ‘Nova ordemmundial’, reatualizada pela OTAN.

É preciso lembrar a guerra da Bósnia.Como ignorar as seqüelas da guerra ci-

vil da Bósnia (1992-1995), e o artificialismodo compromisso de paz firmado em Dayto-na (EUA) em 1995 por iniciativa dos Esta-dos Unidos? 11

É preciso lembrar o acordo de Daytona ea expulsão, pelos croatas do Presidente Fran-jo Tudjman, de milhares de sérvios da re-gião de Krijina, que já estava sob a proteçãoda ONU, e que não esboçou qualquer sortede reação, reação que também não se conhe-ceu, de qualquer organismo internacional,quando o deslocamento de civis sérvios daCroácia e da Bósnia criou um contigente decerca de 700 mil refugiados.

“Os sérvios não esqueceram a sua histó-ria, como também não a esqueceram os ou-tros povos da região”12.

A política de negar a guerra sem cons-truir a paz era o germe inevitável da segun-da fase da tragédia13.

Mas, se não é o primeiro confronto étni-co-religioso com desdobramentos político-militares (católicos e protestantes na Irlan-da, o Irã dos aiatolás, os curdos no Iraque ena Turquia, os conflitos no Paquistão, no

Afeganistão e na Argélia), não será o últi-mo. Outros virão, como desdobramento deum processo já desencadeado, ou, se neces-sário, virão estimulados de fora para dentro.Como foi estimulada a guerra Iraque-Irã,como foi estimulada a guerrilha talibã quan-do esta servia para desestabilizar o governodo Afeganistão, quando pró-soviético.

Pergunta-se: a OTAN continuará inter-vindo nos conflitos étnicos e religiosos quese multiplicarão pelo mundo, nas próximasdécadas? Só nos Bálcãs os estrategistas daguerra podem anotar as rivalidades entrecristãos (ortodoxos e católicos romanos) emuçulmanos, divididos entre povos e etniasos mais diversos como sérvios, croatas,eslovenos, macedônios, búlgaros, romenos,húngaros, gregos, albaneses e turcos. Naregião do Cáucaso, os atritos entre a Armê-nia e o Azerbaijão parecem incontornáveis,tanto quanto os confrontos com a guerrilhafundamentalista no Daguestão. Na Geórgia,eclodem os movimentos separatistas dosEslavos da Ossétia do Sul e da Abkhazia. Ainstabilidade e o conflito são as caracterís-ticas dos Estados muçulmanos: Turquia,Irã, Afeganistão e Paquistão. Há conflitoscom os curdos principalmente na Turquia eno Iraque. Na Europa, não foram resolvidasas questões autonomistas no interior daEspanha, nem o conflito religioso-políticona Irlanda do Norte. Estão presentes asdisputas entre a Grécia, o Chipre e a Tur-quia. No Líbano, no Marrocos, em todo oOriente, para além das disputas entre ára-bes e judeus. Os conflitos são inumeráveisna Ásia (Índia, Paquistão, Afeganistão, Ban-gladesh, Coréias, Taiwan…) e na África, maseste continente não conta…

Ora, certamente um dos objetivos da es-tratégia da OTAN (isto é, dos Estados Uni-dos) nos Bálcãs é a pulverização dos Esta-dos, mediante o estímulo à vontade autono-mista de minorias e unidades federativasque agora podem ter a esperança de que con-tarão com o maior exército do mundo paraavalizar seus pleitos diante dos Estados aque pertencem. Essa política, que começa a

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dilacerar o Leste europeu, não deverá ficar,necessariamente, contida no sub-Conti-nente. Ao contrário, a expectativa a mais ra-zoável é que o mundo venha a assistir a umamultiplicação de movimentos separatistaslaicos, o que implica a multiplicação de fo-cos de conflito e guerra e o enfraquecimentodos Estados, criando condições favoráveispara a estratégia da potência hegemônica14.O episódio de Kosovo é, na essência, umatomada de posição da OTAN em face deuma guerra civil autonomista, no seio daIugoslávia. E de aspirações como essa estápontilhado o mundo de hoje, seja na Euro-pa (atingindo, além do Leste, países como aFrança e a Espanha), seja na Ásia, seja naÁfrica. E onde esses movimentos não aten-dam a motivações históricas, culturais ouétnicas, elas bem que podem ser provoca-das, estimuladas, organizadas, financiadas,pois essa é a lógica da guerra.

Não será exagero indicar, já como frutodesse autonomismo despertado pela inter-venção da OTAN, a inesperada iniciativade Taipé reivindicando do Governo de Pe-quim um tratamento de Estado-Estado en-tre a China e Taiwan. Ou os novos conflitosno Cáucaso, onde o grupo rebelde funda-mentalista Wahhabi Islâmico ocupou, noinício de agosto de 1999, três cidades da Re-pública russa do Daguestão. Seu objetivo éforçar a criação de um Estado islâmico aonorte do Cáucaso, ao lado da Chechênia.

1.1. A pax americana

Essas são as características essenciais deuma nova ordem internacional presididapelo que todos estão chamando de paxamericana , estabelecendo, de um lado, amelancólica agonia da ONU e do direitointernacional e, de outro, o império dosinteresses norte-americanos sobre o mundo,daí o conflito com o Irã, os bombardeios pu-nitivos sobre o Iraque, o Sudão e a Iugoslá-via, a lei Helmans-Burton de pretendida apli-cação extraterritorial, os bloqueios econômi-cos e políticos e o direito que se atribuem osEstados Unidos de aplicar sanções políti-

cas e econômicas severíssimas (embargos,sobretaxações e outras práticas protecio-nistas e retaliatórias) contra nações sobera-nas. Mais da metade dos países do planetaestão submetidos, foram vítimas ou estãoameaçados por sanções econômicas oucomerciais decretadas por Washington.Estados como o Iraque, a Coréia do Norte, oSudão, Cuba ou a Líbia, condenados unila-teralmente como ‘párias’ por Washington,pagaram ou pagam alto por insistirem, cadaum ao seu modo, em sobreviver com ummínimo de autodeterminação. Um deles, oIraque, está submetido a uma liquidação decaráter genocida em conseqüência de umembargo cujos objetivos não obedecem maisa qualquer lógica razoável, salvo a auto-satisfação da implacável cólera norte-americana15.

A discriminação comercial e o comércioadministrado de forma bilateral são postosem prática tendo como pano de fundo umdiscurso que proclama o livre-comércio e omultilateralismo. As vítimas não têm a quemrecorrer, emparedadas entre a unipotênciae a inutilidade de uma Organização Mun-dial de Comércio (OMC) justamente esva-ziada e impotente, ademais de manipulada.Nem a diplomacia brasileira ousa ignorar:

“As potências econômicas e co-merciais são responsáveis pela maiorparte das distorções no multilateralis-mo pela razão simples de que têm in-fluência determinante sobre as trocasinternacionais. A Rodada Uruguai foipródiga em exemplos, que envolveramnotadamente a questão dos subsídiosagrícolas (aplicados em larga escalapela UE e, setorialmente, por america-nos e japoneses) e das barreiras prote-cionistas informais (caso flagrantedos sistemas de distribuição de mer-cadorias no Japão).

“Os Estados Unidos, principal de-fensor das teses multilateralistas e li-beralizantes, revelam-se acentuada-mente protecionistas no que concernea ramais vitais da sua indústria (me-

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diante, por exemplo, os subsídios in-diretos à microeletrônica por meio dasencomendas de material bélico). Aadministração Clinton, que desde acampanha eleitoral definiu priorida-des de política externa condicionadasao incremento da performance comer-cial dos produtos nacionais, atentapermanentemente contra o multila-teralismo ao promover o comércioadministrado com o Japão e ao multi-plicar as ameaças de aplicação dalegislação comercial retaliatória deque dispõe (Super 301), ignorando asinstâncias multilaterais de recurso.

“A combinação dessas duas carac-terísticas da ordem comercial interna-cional – multilateralismo regulado porconsensos negociados e práticas co-merciais discriminatórias utilizadasunilateralmente – parece configurar ocenário mais provável no horizontepróximo”16.

O déficit comercial recorde dos EUA de-verá fortalecer esse protecionismo e preju-dicar ainda mais as exportações dos paísesemergentes (v.g. Brasil, Argentina, México,‘tigres asiáticos’) às voltas com os rescaldosnacionais da crise econômica mundial17.

A condição de único país com interesseglobal desaparta os Estados Unidos das li-mitações legais: seus interesses, onde querque estejam, são interesses ‘nacionais’ e seudireito não pode confinar-se a limitaçõesgeográficas, até porque suas fronteiras seconfundem com a extensão de seus interes-ses; são do tamanho do mundo. Os EstadosUnidos, assim, não compreendem por queteriam de partilhar sua soberania ou limitá-la em face da soberania de outros países,quando podem exercer essa soberania deforma absoluta e sem que ninguém, nenhumpaís e nem mesmo as Nações Unidas, possacontestá-los. Eis como se desfaz um dospressupostos do direito: sua universalidade.Essa, a conseqüência fática do regime deunipotência militar.

Essa pax americana só semanticamenteremonta à pax romana imposta ao mundo

depois da vitória de Cipião sobre as tropasde Aníbal decretando a queda de Cartago eo fim das guerras púnicas (264-146 a.C.).Porque o império norte-americano é maisextenso e mais profundo, política, ideoló-gica e militarmente, muito mais planetário emuito mais poderoso do ponto de vistabélico, concentrando em suas mãos poderesde destruição inimagináveis por outros im-périos em qualquer época da humanidade.Poderes que jamais foram empregadoscomo hoje.

Ora, por inevitável, a ‘globalização’ eco-nômica estaria a exigir um projeto tambémglobalizado de estratégia militar (mais pre-cisamente: econômico-militar) de segurança,ditado, evidentemente, pelos interesses daunipotência. Assim, não é mais insólito quea primeira ‘guerra’ da OTAN seja travadaapós o fim do Pacto de Varsóvia e a débâcleda União Soviética e o fim do ‘fantasma’comunista; que, ao invés de repelir umaagressão comunista, promova o bombardeiode um país que até há pouco se consideravaeuropeu e ocidental… e que não havia inva-dido ou ameaçado a integridade territorialde nenhum outro país europeu.

Mero desdobramento dessa lógica, aOTAN, a partir de Kosovo e da reunião deWashington18, atribui-se o direito de inter-vir onde quer que seja e, ademais de intervire bombardear o território que lhe parecer deseu direito bombardear, outorga-se tambémo poder de estabelecer embargos econômi-cos, para obediência de todas as nações domundo. Nessa reunião, a cúpula da Alian-ça praticamente revogou o ‘Conceito estra-tégico’, aprovado em 1991, em Roma, quan-do ainda existia a União Soviética, e cons-truiu uma linha de ação da chamada novaOTAN. Se, pelo estatuto original, os objeti-vos estratégicos da organização se limita-vam à defesa diante de agressões de outrospaíses, pela nova ordem a OTAN pode in-tervir fora de seu território, independente-mente de agressão e sem autorização préviado Conselho da ONU, exigência do Presi-dente norte-americano. Seu desafio, agora,

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“é combater novas ameaças, como o terro-rismo, as armas de destruição em massa eos conflitos regionais provocados por riva-lidades étnicas ou religiosas”19.

Tudo, como se vê.Um colegiado de exércitos, assim auto-

transformado em instrumento de interven-ção militar, sob o comando dos EstadosUnidos age como se fora um organismo in-ternacional de direito, decretando a obso-lescência da Carta das Nações. O fim doEstado se dá num processo moloch : cons-truindo o Estado erga-Estado.

1.2. A ‘globalização’ da nova ordemmundial

Comecemos pelo óbvio: a nova ordeminternacional (de que a autonomia dos exér-citos norte-americanos é um só indicador) ea ‘globalização’ constituem fenômenosinterdependentes e complementares, um cir-cuito de vasos comunicantes. Sistema in-ternacional de poder que substitui a guerra-fria, a ‘globalização’ é a disseminação docapitalismo financeiro sobre o capitalismode produção, a onipotência do mercado li-vre (sendo livre, tão-só, o fluxo Norte–Sul),com todos os seus ingredientes, não só eco-nômicos quanto políticos, não só ideológi-cos quanto militares, interligando mercado,ideologia e guerra. É perfeita a síntese deThomas Friedman:

“Nós, americanos, somos os após-tolos do mundo veloz, os profetas dolivre-mercado e os sumos sacerdotesda alta tecnologia. Queremos a ‘am-pliação’ tanto dos nossos valorescomo de nossas Pizza Huts.

“Queremos que o mundo siga a nos-sa liderança e se torne democrático ecapitalista, com um web site em cadaatividade, uma Pepsi nos lábios, o Win-dows da Microsoft em cada computadore com todos, em toda parte, colocandoa própria gasolina”20.

Nunca a guerra foi tão exemplarmente acontinuação da política por outros meios. Éo mesmo Friedman:

“A mão oculta do mercado jamaisfuncionará sem um punho oculto – oMcDonald’s não pode prosperar sema Mc Donnel Douglas, que projetou oF-15. E o punho oculto que mantém omundo seguro para as tecnologias doVale do Silício chama-se ForçasArmadas, Força Aérea, Marinha eFuzileiros Navais dos EstadosUnidos”21 .

A ‘globalização’, assim, precisa ser vis-ta como um sistema articulado de poder pla-netário (que abarca todas as esferas da ex-pressão humana) e que atinge forçosamentea todos os países e povos, como engrena-gem que, para funcionar, não admite ponto-morto. Os recalcitrantes serão punidos. A‘globalização’ é a homogeneização do pen-samento e dos exércitos, o fim das nações edos projetos regionais (e, se desaparecem asnações, devem desaparecer a cultura nacio-nal e os exércitos nacionais), donde a redu-ção do mundo a um mercado a um só tempouniversal e único, com ideologia única, comprojeto único, com vontade única, presididopor uma unipotência, senhora do bem e domal, portadora do ‘bem’ e inimiga do ‘mal’.E mal é tudo o que por ela for designadocomo tal. Para esse efeito, o império militarprecisa de uma causa, de um inimigo a per-seguir e a punir; se ele não existe, pode sercriado. Daí as satanizações sucessivas: ocomunismo em geral e Cuba em particular,o Irã dos aiatolás, o Iraque de Saddam, aIugoslávia de Milosevic. Até Granada22 e aRepública Dominicana23 já foram alvos deintervenção.

O objeto da satanização pode ser umregime, um país, um dirigente político ouuma causa, como o combate ao narcotráfi-co, que pode amanhã justificar a balcaniza-ção da Colômbia, ou a defesa de recursosnaturais indispensáveis à sobrevivência dahumanidade…

Nesse sentido é mesmo o fim da história…A crise dos Bálcãs é, pois, uma das exi-

gências da ‘globalização’ (via potênciaúnica) vista como a sucessora da guerra fria.

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1.3. Os Estados Unidos e aglobalização: um caso de sucesso

econômico.A ‘globalização’ se confunde com os Es-

tados Unidos e os Estados Unidos são osmaiores beneficiários da ‘globalização’.

Os Estados Unidos são o único grandemercado consumidor que cresceu durantetodo o período da crise global, iniciada emjulho de 1997, na Tailândia. São inumerá-veis, e incontroversas, as análises de obser-vadores norte-americanos. Em recente co-mentário, o New York Times escreve:

“O grande afluxo de capitaisimpulsionou Wall Street: a soma dovalor de todas as Access negociadasna Bolsa de Nova Iorque subiu de US$8,92 trilhões em junho de 1997, quan-do começou a etapa asiática da crise,para US$ 11,72 trilhões em dezembrodo ano passado. Uma alta de 31%, noperíodo em que outras Bolsas ditasemergentes, como a de Moscou,acumulavam perdas de até 86%.Simultaneamente, o desemprego ame-ricano caiu aos níveis mais baixos dasúltimas três décadas e a economia cres-ceu em ritmo acelerado. No ano pas-sado, o Produto Interno Bruto (PIB)expandiu-se a uma taxa de 6,1%, amelhor dos anos 90”24.

O Brasil, depois das ‘duas décadas per-didas’, deve ter, em 1999/2000, crescimen-to negativo em torno de -1% a -1,5%.

O déficit comercial norte-americano deUS$ 21,3 bilhões, revela, a um tempo, a ri-queza dos Estados Unidos e a pobreza domundo. Revela mais, que sua riqueza resul-ta da pobreza do mundo, cuja capacidadede compra vem caindo. Esse outro lado da‘globalização’ põe a nu a fragilidade da eco-nomia mundial, dependente do poder decompra, isto é, da vitalidade de uma só eco-nomia cujo permanente boom pode levar auma inflação (ameaça admitida pelo Fede-ral Reserve Board) que, associada ao déficit,será tratada pelos remédios clássicos do ca-pitalismo norte-americano: mais protecio-

nismo. Ou seja, mais restrições ao desenvol-vimento da economia mundial, de particulardos países chamados ‘emergentes’, Brasilentre eles.

1.4.De novo (e sempre) o velhocomplexo industrial – militar

A expressão military-industrial complexfoi insuspeitadamente grafada pelo Presi-dente General Dwight Eisenhower, nocélebre discurso de transmissão do cargo dePresidente dos Estados Unidos a JohnKennedy (1961). Peça premonitória, guardadramática atualidade quase 40 anos passa-dos e muito pode-nos ajudar a compreendera política militarista americana:

(…) “fomos compelidos a criaruma indústria de armamentos perma-nente de vastas proporções. Além dis-so, três milhões e meio de homens emulheres estão diretamente engajadosno sistema de defesa. Gastamos anu-almente, com segurança militar, maisque a renda líquida de todas as cor-porações dos Estados Unidos. Estaconjunção de um imenso establishmentmilitar com uma grande indústria dearmas é nova na experiência america-na. A influência total, econômica, po-lítica e até espiritual se faz sentir emcada cidade, em cada Assembléia, emcada repartição do governo federal.Reconhecemos a necessidade impera-tiva desse desenvolvimento. Não po-demos, porém, deixar de compreendersuas graves implicações. Nossas ati-vidades, recursos e subsistência estãotodos envolvidos, bem como a própriaestrutura de nossa sociedade. Nosconselhos de governo, devemos nosprevenir contra a influência injustifi-cada, buscada ou não, do complexomilitar-industrial (military-industrialcomplex). O potencial para uma desas-trosa emergência ou extravio de po-der existe e persistirá. Não devemosjamais permitir que o peso dessa com-binação ameace nossas liberdades e

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nossos processos democráticos. Nãodevemos dar nada como pronto e ga-rantido. Somente uma cidadania aler-ta e bem informada pode exigir a har-monização adequada do imenso apa-rato industrial e militar de defesa comnossos métodos e objetivos pacíficos,para que segurança e liberdade cami-nhem juntas. A revolução tecnológicadas últimas décadas tem sido similare em grande parte responsável pelasdramáticas transformações em nossapostura militar-industrial. Nessa re-volução, a pesquisa tornou-se central;também tornou-se mais formal, com-plexa e cara. Uma parte cada vez mai-or é realizada, para, pela ou sob a di-reção do governo federal. Hoje, o in-ventor solitário, trabalhando em suaoficina, foi substituído por forças-ta-refas de cientistas em laboratórios ecampos de prova. Do mesmo modo, auniversidade gratuita – historicamen-te o berço das idéias livres e das des-cobertas científicas – experimentouuma revolução na política de pesqui-sa. Em parte devido aos altos custosenvolvidos, o que passa a orientar apesquisa não é a curiosidade intelec-tual, mas a possibilidade de um con-trato com o Governo. Para cada velhoquadro-negro existem agora centenasde novos computadores eletrônicos. Aperspectiva de dominação dos nossosscholars pelo emprego federal, peladistribuição de projetos e pelo poderdo dinheiro está sempre presente edeve ser considerada em sua gravida-de. Mas, levando em consideração,como é de nosso dever, a pesquisa ci-entífica e as invenções, precisamosestar igualmente alertas para o perigode as políticas públicas se tornaremcativas de uma elite científica e tecno-lógica”25.

Eis, na palavra de um velho cabo de guer-ra, comandante da maior potência do mun-do, o reconhecimento da autonomia econô-

mica das guerras e do círculo vicioso do de-senvolvimento industrial capitalista: a eco-nomia de guerra gerando o desenvolvi-mento industrial que exige a guerra parapoder continuar crescendo.

Não é, pois, destituído de lógica o fatode os Estados Unidos, hoje, finda a guerrafria e desmantelada a União Soviética e de-sativado o Pacto de Varsóvia, gastarem comarmamento mais que todos os países oci-dentais juntos. O orçamento militar para1999 é 30% maior que o orçamento conjuntode todos os demais países da OTAN. Tantadespesa deve ser justificada, esta já é umaboa razão. Uma pequena guerra é semprebem vinda para os negócios. Para isso, é ne-cessário ter bons inimigos. Não tendo, é sóinventá-los: Coréia do Norte, Cuba de Fidel,Vietname, a República Dominicana deBosch, Granada, a Nicarágua dos sandinis-tas, Noriega, o Irã dos aiatolás, a Líbia deKadafhi, o Iraque de Saddam, Ben Laden,Milosevic, a guerrilha colombiana…

Nos anos da pós-industrialização, nosanos dessa nova ordem mundial, a tecnolo-gia da guerra – que se sofistica a cada dia –associa aos interesses industriais até mes-mo o desenvolvimento científico tecnológico:

“Grande parte da prosperidadeamericana decorre dos investimentosdiretos e do comércio das megaempre-sas americanas no mundo. São elesque colocam os Estados Unidos nocentro da economia e da política in-ternacional. Essa situação hegemôni-ca depende de sua liderança científi-ca e tecnológica. Na sociedade ameri-cana, a intervenção do Estado na eco-nomia é vigorosamente rejeitada. As-sim, a estratégia para poder investirem ciência e tecnologia, dínamo daeconomia, utiliza o argumento da se-gurança nacional. Esse argumento,para ser crível, necessita de inimigose estes têm de ser eventualmente en-frentados e punidos, o que serve deteste para novos armamentos e novasestratégias. A definição de novos al-

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vos desafia a racionalidade e aprevisão, como os exemplos de Gra-nada, do próprio Iraque e do Kosovoindicam”26.

Como, de outra forma, explicar o esforçode guerra norte-americano, os altos investi-mentos em pesquisa e tecnologia, as inver-sões vultosíssimas na pesquisa e produçãode novos armamentos, a manutenção de umcaríssimo exército que quase cobre toda aextensão do planeta, quando não há maisinimigo a enfrentar?

E, hoje, é de tal ordem a distância tecno-lógico-bélico-econômica que separa os Es-tados Unidos dos demais países que se re-vela uma farsa qualquer tentativa de justifi-car a guerra – guerras, guerrinhas, invasõesetc. — com o argumento de sua defesa pre-ventiva em face de uma ameaça presumívelou real. Não há ameaça ou quem quer quepossa constituir-se em ameaça ao grandeImpério. Tudo o mais é retórica de guerraque o complexo industrial-militar-tecnoló-gico-científico explica.

2. A ‘guerra’ da OTAN“E a ironia da história é que, ao

contrário da fé marxista de que a his-tória não se repete a não ser como umafarsa, nos Bálcãs ela parece se repetir:as forças internacionais provocaramlá, e agora de novo, o apressamentoda limpeza étnica, catalizaram a vio-lência. Seria necessária uma forte dosede autocensura ou de ingenuidadepara não perguntar: será que a OTANnão queria exatamente provocar alimpeza étnica para organizar áreashomogêneas e impor assim uma pazmais duradoura após a matança?”(Leão Serva. ‘Bálcãs: onde as tragédiasda História se repetem’. PolíticaExterna vol. 8. N. 1)

Primeiro de tudo, não se pode chamarde guerra um conflito sem combate, umaintervenção sem resistência, quando as bai-xas só se dão de um lado e o desnível de

poderio militar, econômico e tecnológicoentre as partes é simplesmente abissal.

A propósito dessa nova doutrina de guer-ra norte-americana, de guerra ‘segura’ e ‘lim-pa’, na qual o pessoal e os equipamentosmilitares são praticamente inatingíveis einvulneráveis aos ataques, à defesa e àsrepresálias dos inimigos, Edward W. Saïd,professor de literatura comparada na Uni-versidade de Colúmbia (Nova York), obser-va, com Richard Falk, autor de direito inter-nacional por ele citado, que a estrutura des-se tipo de guerra (v.g. Iraque e Iugoslávia)assemelha-se às técnicas da tor tura :enquanto o interrogador-algoz dispõe detodos os poderes, podendo escolher e utili-zar os métodos que desejar, sua vítima, àdisposição da vontade de seu perseguidor,não dispõe de qualquer recurso 27.

Em nome de uma ingerência humanitária– caracterização de resto insustentável –, aOTAN violou três princípios fundamentaisda convivência internacional, conquista quenossa civilização supunha haver consoli-dado em Yalta, ao preço de tantos sacrifí-cios: a soberania dos Estados —que remon-ta às revoluções americana (1776) e france-sa (1789)28 –, a autodeterminação dos povose a Carta da ONU29, da qual seus paísessócios são signatários, a grande maioriafundadores e alguns são membros doConselho de Segurança.

Os bombardeios da OTAN contra aIugoslávia – matando civis30, atingindo al-vos civis, destruindo a infraestrutura dopaís— foram desfechados sem o amparo emqualquer deliberação da ONU. E, assinadaa rendição, é ainda a OTAN quem decide acomposição da força internacional de paz.Que papel resta à ONU? Fazer apelos à ca-ridade internacional para que socorra os re-fugiados. Aliás, é da tradição norte-ameri-cana o unilateralismo de suas ações, sem-pre ao largo das Nações Unidas, seja a purae simples intervenção militar (e a militari-zação dos conflitos políticos), tanto em suaextensão geográfica latina (Panamá, Cuba,Granada) quanto no Oriente, assim suas

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incursões no Irã, seus bombardeios puniti-vos no Iraque, no Sudão (destruindo meta-de da indústria farmacêutica desse paupér-rimo país africano) e no Afeganistão; seja aassunção, pela sua diplomacia, das nego-ciações internacionais (os acordos deDaytona sobre a Bósnia e os diversos acor-dos Israel-países árabes-palestinos), conde-nando a plano secundário a função media-dora e arbitral da ONU, aquele papel quejustificou sua criação.

Dir-se-á que, no caso da ação da OTANnos Bálcãs, tratava-se de salvar o povo ko-sovar da fúria luciferina de um ditador san-guinário. Isso justificaria a destruição da so-berania iugoslava? Justificaria o assassinatode tantos civis (22 mil, segundo as autori-dades de Belgrado)? A argüição de preten-sas motivações humanitárias pode justifi-car o uso indiscriminado da força contra ad-versários? Pode-se falar em intervençãomoral quando a desproporção militar e tec-nológica entre os supostos adversários é tãocolossal? Quando a morte – o bombardeiode áreas civis, áreas residenciais, hospitais,embaixadas, escolas, pontes, ônibus, trens,sanatórios, comboios de refugiados etc. – éreduzida à sua mais miserável insignifi-cância ética: ‘acidente tecnológico’? Pode aproteção do povo kosovar justificar a amea-ça à sobrevivência dos sérvios? Afinal, podea barbárie justificar a barbárie?31

Se a vida humana é sagrada – e ela o é, ea função dos Estados, isto é, das nações civi-lizadas é garanti-la –, ela não pode ser sa-crificada, mesmo quando a vítima não sejanem branca nem européia.

Ademais da demanda ética, que nãopode ser superada, a pergunta não é, tão-só,se é lícita a intervenção em defesa de direi-tos humanos violados; mas: que Tribunal –fora do direito internacional – é competentepara julgar a violação e determinar a açãomilitar, e o caráter dessa ação?

Uma das exigências da regra moral é suauniversalidade. Se era – e é! – crime a limpe-za étnica levada a cabo na Iugoslávia, tam-bém foram e são crimes as limpezas étnicas

levadas a cabo na Turquia, na Palestina ena África.

Poder-se-á perguntar – pergunta que nãose fez a imprensa brasileira, reflexa, reativa– onde estavam os sentimentos humanita-ristas de norte-americanos e ingleses (dei-xamos de fazer referências ao humanita-rismo alemão para não lembrar o holocaus-to e a segunda-guerra mundial…) quandoa violência se abatia sobre povos de outrasetnias (não-brancos) e de outros continen-tes que não o europeu? A começar por umadas primeiras limpezas étnicas do após-guerra, aquela de 1948, da qual a Palestinafoi vítima e testemunha, e que por outrosmeios prossegue até hoje. Assim, é precisolembrar que, em Angola, diante da insensi-bilidade de norte-americanos e ingleses, jámorreram, só este ano, vítimas da guerra(financiada de fora por grandes potências),780 mil negros, e outros 650 deixam, diaria-mente, suas casas. Cerca de 70 mil angola-nos perderam braços e pernas nas explo-sões de minas terrestres. Aliás, esse povo évítima dos ataques da UNITA, um exércitode facínoras armado pela África do Sul ra-cista e pelos Estados Unidos e até recente-mente mantido com recursos norte-ameri-canos. Justificativa ‘humanitária’: os gover-nos angolanos pós-descolonização eramapoiados por Cuba e pela URSS. No Sudão,há pouco punido pelos Estados Unidos,contam-se quatro milhões de vítimas daguerra. Em todo o continente africano, são2,7 milhões de refugiados, quase 9 milhõesde desabrigados. Na Ásia, no Afeganistão,contam-se 2,6 milhões. Na Indonésia, du-rante seu mandato, garantido pelos EstadosUnidos, e em nome da guerra fria, Suharto32

matou, em 1965, cerca de 500.000 adver-sários políticos, que não contavam para ohumanitarismo do Pentágono e o ForeignOffice: eram todos, dizia o ditador sangui-nário, comunistas. Também não se conhe-ceu o humanitarismo nem norte-americanonem inglês no Zaire (ex-República Demo-crática do Congo e ex-Congo Belga), onde ogeneral Mobutu, corrupto e genocida, a par-

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tir de um golpe-de-Estado instrumentaliza-do pela C.I.A, que anteriormente já haviaobtido a queda e assassinato (1961) do pri-meiro Ministro Patrice Lumumba, governouaté 1998, deixando o poder pouco antes defalecer, e quando, esgotada a guerra fria, nãotinha mais serventia. A ideologia do com-bate aos ditadores, defesa dos direitos hu-manos e defesa das minorias, pretexto paraintervenções de toda ordem, também não seviu no Chile, onde os ‘especialistas’ norte-americanos e sua diplomacia – Kissinger(Departamento de Estado) e Bush (CIA) àfrente – colaboraram com Pinochet no golpecontra o governo constitucional de SalvadorAllende e no apoio à ditadura em todos osanos de brutal repressão; também não se viunem na Argentina dos militares e dos civis‘desaparecidos’, nem no Brasil da tortura.

A ‘teoria de valores’ da política externanorte-americana, para a qual os marines sãoseus melhores embaixadores e a guerra amelhor diplomacia, conhece apenas doispostulados: seus interesses e o argumentoda força bruta. Assim, jamais teve apreço,de princípio, seja pela democracia, sejapelas ditaduras. Combateu essas quando ostitulares eram adversários de seus interes-ses e as defendeu quando postas a serviçoda guerra fria (v.g. Indonésia, Brasil, Chile... ).Jamais hesitou em golpear aqueles regimesdemocráticos – v.g. República Dominicanade Bosch, Brasil de Goulart e Chile deAllende – que pudessem contrariar, aindaque minimamente, seus interesses. Assimtambém em face dos movimentos guerrilhei-ros. Para ela, é insuportável a guerrilha naColômbia, desestabilizando uma democra-cia (vá lá o termo), ou em São Salvador: es-ses guerrilheiros, esquerdistas, têm sempreobjetivos totalitários… Mas essa mesma po-lítica jamais deixou de apoiar os movimen-tos guerrilheiros, de direita, que ameaça-vam a consolidação de regimes que podiamser considerados adversários: os ‘contras’da Nicarágua desestruturando a democra-cia sandinista; as tropas criminosas daUNITA destruindo o futuro de Angola. Sem

falar no seu apoio à guerrilha talibã, ao seuapoio inicial aos aiatolás, e no seu incita-mento e apoio ao Iraque (sempre uma dita-dura sob Saddam) na sua guerra contra oIrã, o financiamento dos cubanos anti-cas-tristas...

Em que recesso repousava o humanita-rismo anglo-americano enquanto hutus etutsis se matavam (e se matam desde 1966)na África central (só no último massacre,em 1998, morreram mais de 500 mil homens,mas… negros), conflito que prossegue, per-correndo essas etnias, em Ruanda, ondecomeçou, em Burundi, no Congo, no Zaire,nada obstante o silêncio da imprensa inter-nacional, que, silenciando, tenta negar suaexistência?

A repressão turca contra os curdos, se-gundo os cálculos mais moderados, nadafica a dever às atrocidades de Milosevic. Noinício dos anos 90, cerca de um milhão decurdos abandonaram o campo, enquanto oexército turco arrasava as zonas rurais. Nes-sa época, denuncia Jonathan Randal,

“a Turquia se transformou no maiorimportador individual de materialmilitar americano e, por conseguinte,no maior comprador de armas domundo. Quando os grupos de direi-tos humanos denunciaram que a Tur-quia havia utilizado aviões america-nos para bombardear povoações, ogoverno Clinton encontrou formas dese esquivar às leis que exigiam a sus-pensão da entrega de armamentos”33.

A Turquia é uma base militar americana,de extraordinária importância estratégica...

E a morte de 560 mil iraquianos?Não foi diferente no Camboja. Não se

sabe quantos milhares (ou milhão?) de cam-bojanos foram mortos pelo Kmer Vermelho,a serviço do regime de Pol Pot. Sabe-se queos Estados Unidos, após a invasão do Viet-name, reconheceu o governo banido daKampuchea Democrática como represen-tante oficial do Camboja, por sua ‘continui-dade’ com o regime de Pol Pot. O governoamericano apoiou o criminoso Kmer Verme-

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lho em suas carnificinas contra o povo doCamboja e puniu o Vietname com severíssi-mas sanções, por havê-lo combatido.

Anualmente, pelo menos 20 mil pessoas,civis e camponeses, principalmente crian-ças, morrem ao pisarem em miniminas queestão espalhadas por todo o território doNorte do Laos,

“que, nos anos 60 e 70, foi alvo do queprovavelmente terão sido os maiorese, seguramente, os mais cruéis bom-bardeios da história contra uma po-pulação civil. As mortes foram causa-das pelas minibombas, diminutas ar-mas antipessoais muito piores do queas minas: são projetadas especifica-mente para matar e mutilar, e não têmqualquer efeito sobre caminhões, edi-fícios ou outros objetos. A planície fi-cou juncada de centenas de milhõesdesses projéteis. (…) O Grupo Consul-tivo sobre minas, com sede na Grã-Bretanha, está tentando limpar oscampos dessas armas letais; mas, se-gundo a imprensa britânica, os Esta-dos Unidos se negam a emprestar seusespecialistas e seus ‘procedimentos’que fariam o trabalho ‘com muito maisrapidez e segurança’. Esses procedi-mentos constituem segredo de Esta-do, como tudo que se relaciona comeste assunto nos EUA”34.

Como é sabido, os Estados Unidos seopõem ao tratado de Ottawa de prescriçãodas minas.

Que humanitarismo resiste à catástrofeecológica que se abateu sobre a Iugoslávia?O bombardeio de usinas químicas que po-luem rios e matam fauna e flora; o uso debombas com grafite que contêm componen-tes cancerígenos; bombas de urânio provo-cando radioatividade; bombas/minas defragmentação e seus estilhaços não detona-dos que ficarão no solo agindo como minas,atingindo civis, as mesmas bombas que, de-positadas no Adriático, ameaçam a popu-lação civil que o utiliza?35

Todos esses são armamentos proscritospelo direito internacional e cujo emprego

constitui crime de guerra, diga-se depassagem.

O humanitarismo estaria a exigir, se aintervenção tivesse realmente motivaçõeséticas, a ingerência militar em outros paísesonde povos igualmente com direito à vidaestão sujeitos a toda sorte de expiação, noSudão (Sul), em Serra Leoa, no Tibet, em Ti-mor-Leste. A miséria de Biafra também aninguém comove e não é porque não como-va as lentes da CNN que deixou de existir.

A mesma ética que se irritou com a inva-são do Kuwait (tão rico em petróleo – forne-cedor do Japão e da Alemanha – e tão estra-tegicamente localizado em face do Golfo Pér-sico) silenciou em face da invasão e anexa-ção do Timor-Leste, pela Indonésia, e do Ti-bet, pela China. Nada a falar sobre o Líbano,invadido de um lado por Israel, de outro pelaSíria, e bombardeado quase diariamente,sem estar em guerra com quem quer que seja.Nada a dizer sobre a guerra de Moscou con-tra os separatistas da Chechênia.

Na verdade, o humanitarismo deWashington, determinando o belicismo daOTAN, é uma pura manobra geopolítica, quevisa a assegurar um caminho europeu parao Oriente, afastar a influência russa36 (quesempre teve interesses militares nos Bálcãse no Adriático), colocar uma cunha entre aAlemanha e a Rússia, enfim, a balcanizaçãodo Leste europeu, e, por meio do exércitocoletivo consolidado, impedir a emergência,na Europa, de qualquer sorte de formaçãomilitar independente.

A questão fundamental está em que obombardeio do povo iugoslavo – sejam quaisforem as conseqüências para os kosovaresde origem albanesa, que permanecem emguerra contra os sérvios – assegura o forta-lecimento da OTAN, quando o lógico seria,após o fim da guerra fria, sua dissoluçãosubstituída por uma organização de defesaeuropéia específica. Esse fortalecimento daOTAN é peça preciosa na estratégia militarnorte-americana, que, assim, bloqueia o sur-gimento, na Europa, de um sistema estraté-gico rival37.

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Ela também lembra aos europeus quemé o chefe da firma.

2. 1. A economia da guerra

Não podem ser descartadas as razõespuramente econômicas da economia deguerra, que envolve tantos bilhões de dóla-res em armamentos crescentemente sofisti-cados, e razões puramente tecnológicas,pois, de fato, desde o experimento das Mal-vinas, as grandes potências vêm investindomaciçamente na sofisticada tecnologia deguerra e episódios como esse servem de cam-po para teste dos novos inventos38; princi-palmente considerando-se seu alto custo fi-nanceiro – o que não é nada desagradávelpara o complexo industrial-militar –, e obaixíssimo – na verdade nulo – custo ourisco em vidas humanas, o que atende auma das exigências da opinião públicanorte-americana39. De fato, em 78 dias debombardeios intensíssimos, não há o regis-tro de um só militar a serviço da OTANmorto em ação. Mesmo a perda de materialé irrelevante. Após mais de 25 mil incursõesaéreas, apenas dois aviões foram declara-dos perdidos (mas seus tripulantes salvos,resgatados em território inimigo) e um heli-cóptero tombou, em treinamento.

O que poderia – por via política e diplo-mática – ser obtido como encaminhamento,ainda gradual, de uma solução para umacrise que tem raízes históricas vai deman-dar mais algumas décadas de guerra efrustração.

Terminada a ação punitiva dos EstadosUnidos-OTAN contra os sérvios, verifica-seque ela não impediu a limpeza étnica deMilosevic contra os kosovares albaneses.Nem destruiu o ditador. Ao contrário, osraids aéreos ilegais aceleraram a limpezaétnica contra os povos de origem albanesa eo êxodo da população de Kosovo, e seu sal-do, assinada a rendição incondicional, ésimplesmente macabro: milhares de iugos-lavos, sérvios e descendentes de albanesesmortos, o exacerbamento do ódio, a impos-sibilidade de qualquer solução política, o

aprofundamento dos conflitos entre as di-versas etnias, nações e regiões. Terminadosos bombardeios, os kosovares – que perma-necerão na Iugoslávia, ao contrário dospilotos americanos e ingleses – não podemcontar com qualquer vitória. Ao contrário, aexpectativa é que ficou ainda mais difíciluma alternativa de paz com os sérvios, queterminaram virtualmente expulsos doKosovo, que consideram o berço de suanação, e onde estão seus templos maissagrados40.

Nesse episódio, perderam quase todos:perderam os kosovares que não alcançarama paz e retornam a um Kosovo destruído;perderam os iugoslavos que quase perde-ram seu país, arrasado pelos bombardeios;perderam os sérvios que, num êxodo esti-mado em 100 mil, estão nas estradas embusca de novas terras e território onde pos-sam encontrar um mínimo de segurança;perdeu a minoria sérvia de Kosovo, amea-çada de ser chacinada pela maioria deorigem albanesa, que busca vingança paraseus mortos (e quem vai agora assegurar umlar para os sérvios expulsos de Kosovo?);perderam a Macedônia e Montenegro, cujaseconomias, de si já frágeis, foram destroça-das; perderam os países balcânicos; perdeua ONU; perdeu o direito internacional; per-deu a paz; perdeu o princípio da negocia-ção e da arbitragem sobre a militarizaçãodos conflitos. E perderam os que lutam pelaeliminação das armas nucleares.

Ganhou a indústria da guerra.Perderam os defensores dos direitos

humanos.Terminados (ou suspensos?) os bom-

bardeios, arrasada a Iugoslávia, destruídoKosovo, partilhada a antiga província sérviaentre as potências agressoras e invasoras,os Bálcãs terminam o século mais explosivosdo que nunca. O ódio religioso-étnico foiagravado, Turquia, Grécia e Chipre, membrosda OTAN e aliados de Washington, mantêmsuas rivalidades históricas e disputas deterritórios e os conseqüentes conflitos sobreos respectivos espaços aéreos. A ‘guerra’

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contra os sérvios – população agredida pe-los turcos, pelos austríacos, pelos nazistase por seus aliados croatas – tornou iminen-tes os conflitos entre a Iugoslávia e a Albâ-nia e aqueles países que serviram de baseaos aviões aliados.

Terminados (ou suspensos?) os bombar-deios, milhares e milhares de iugoslavos,sérvios e croatas, retornam uns às suas ca-sas perdidas, outros delas são expulsos.Ninguém pode avaliar seu próprio futuro.Autodeterminação? Autonomia sob a sobe-rania sérvia? Ocupação permanente pelastropas da OTAN? Partilha? Soberania par-tilhada? Quem protegerá os ‘sérvios deKosovo? Nenhuma dessas interrogaçõespassou pela cabeça dos dirigentes da guerra.

A sorte do povo de Kosovo, massacradopor um governante imoral, parece um por-menor em tudo isso, até porque o conflitoétnico não foi resolvido, senão agravado, eMilosevic continua no poder e nele ou foradele deve permanecer impune, como impu-nes permanecerão genocidas pró-Ocidentecomo Suharto, entre tantos outros.

Uma alternativa poderia ser a criação deum Tribunal penal internacional com po-deres para julgar os autores de crimes con-tra a humanidade, imprescritíveis indepen-dentemente do status do agente, e indepen-dentemente mesmo de eventual decisão le-gal tomada por um Estado soberano. Masos Estados Unidos são contra esse Tribunale impedem sua constituição…

Além de haver votado contra a criaçãodo Tribunal Penal Internacional, na reuniãode Roma, os Estados Unidos vêm-se opondoà competência de um Tribunal internacio-nal para processar acusados de crimes deguerra. Desde então o Ministério da Defesavem advertindo a comunidade inter-nacional de que os Estados Unidos nãopoderão aprovar a criação de um Tribunalque tenha o poder de julgar militares ameri-canos. Precatadamente, estão tentandoobrigar alguns governos – África do Sul,Polônia, Hungria e República Tcheca sãocitados nominalmente – a firmar acordos

segundo os quais norte-americanos nãoseriam entregues ao Tribunal se fossemacusados de crimes contra a humanidade,de guerra ou genocídio. A afirmação é dePierre Sane, secretário-geral da AnistiaInternacional41. Mas Washington não estápreocupada apenas com seus militares:

“(…) o governo americano procuratambém garantir que os funcionáriosda Agência Central de Inteligência(CIA) fiquem protegidos de ser extra-ditados por solicitação do TPI. Apreocupação de Washington é queoperações como o atual bombardeioda OTAN contra a Iugoslávia façamcom que dezenas de funcionários mi-litares, civis e da inteligência sejamprocessados pelo TPI” 42.

Mas, se o Sr. Milosevic foi, e justamente,indiciado pelo Tribunal de Haia como cri-minoso de guerra, qual deve ser a acusaçãoa ser formulada contra os responsáveis pe-las agressões ao território e às populaçõescivis do Líbano, do Iraque, do Irã, do Afega-nistão, do Panamá, de Granada, do Sudão eda Iugoslávia, violando as constituições deseus próprios países, realizando guerras nãodeclaradas nem autorizadas, violando aCarta das Nações Unidas.

2. 2. A guerra como ‘valor’

Subsiste, por fim, a questão da guerrajusta. Mas haverá guerra justa? Quem deci-de o que é uma guerra justa? O vencedor?Ora qualquer argüição desse conceito, paravalidar-se, terá, primeiro, de reabilitar o na-zifascismo (e suas autoproclamadas razões),absolver os tiranos de todos os tempos e abrirum precedente moral de tal ordem que podesignificar o suicídio da humanidade.

É fácil de demonstrar.As atrocidades do governo turco

procuram justificativa no argumento de queestá defendendo o país da ameaça de guer-rilheiros e terroristas. Na América Latina,esse argumento foi utilizado, à saciedade,pelos governos militares para justificar o as-sassinato de seus adversários, na Argentina,

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no Brasil, no Chile, no Uruguai, no Peru, noParaguai, na Nicarágua. Foi repetido noLaos e no Camboja pelos assassinos do KmerVermelho. Na Argélia, o argumento doOcidente (França à frente) para impedir aposse do governo legalmente eleito foi aameaça islâmica. Essa violência está na raizde todos os massacres que ali se repetemquase diariamente, prometendo transbordarpara a Europa. O ataque do Japão à Mand-chúria, a invasão da Etiópia por Mussolinie a ocupação da Tchecoslováquia pelas tro-pas de Hitler foram acompanhadas de ele-vada retórica humanitária, ou simplesmentedo que Noam Chomsky prefere chamar:‘justificativas obscenas’.

“O Japão ia construir um ‘paraí-so’ terrestre enquanto defendia os ha-bitantes da Mandchúria contra os‘bandidos chineses’. Mussolini esta-va libertando milhares de escravosenquanto realizava a ‘missão civili-zadora’ do Ocidente. Hitler anuncioua intenção alemã de aliviar as tensõesétnicas e a violência, além de ‘salva-guardar a individualidade dos povosalemão e tcheco’. O presidente da Es-lováquia pediu a Hitler que transfor-masse seu país num protetorado”43.

A categoria determinante da moral é auniversalidade, ou, dito pelo anverso, tudoaquilo que não pode ser generalizado é imo-ral, é anético. A legitimidade do direito derivada universalidade de sua vigência: só cons-titui direito aquela norma que se aplica atodos ou que por todos pode ser acionada44.

Se a OTAN tem o direito de bombardearos sérvios para garantir a autonomia de Ko-sovo – legalmente e historicamente uma de-pendência da Sérvia, que, ao lado de Mon-tenegro forma a Iugoslávia45 –, por que ou-tros povos, os curdos, os palestinos, os tibe-tanos, os chechenos, os muçulmanos daCaxemira, não têm o mesmo direito? Ou, têmos tibetanos o direito de bombardear Pequimpara se livrarem da opressão chinesa? OuPequim pode bombardear Taiwan para re-tomar sua ilha, roubada pelas tropas de

Chang-Kai-Chek, apoiadas pelo Ocidente?Que tal Brasil e Portugal bombardearem aIndonésia para libertar os povos irmãos doTimor-Leste, ou os libaneses bombardea-rem a Síria e Israel para recuperar seu terri-tório e punir Tel-Aviv pelos raids crimino-sos que assassinam a população civil sob opretexto de perseguir guerrilheiros? O ar-gumento, dos sérvios, para justificar suaposse de Kosovo – a antigüidade – poderiajustificar uma reivindicação mexicana sobreo Novo México e tantas outras terras suasperdidas para os Estados Unidos; por outrolado, o argumento (croata) da maioria, san-cionado pelos bombardeios, poderia justifi-car uma reivindicação autonomista cubanasobre Miami, ou a expulsão, pelo Paraguai,dos ‘brasilguaios’ que estão ocupando suasterras e seus negócios. Evidentemente, aaplicação dessas teorias aos EstadosUnidos parece mera excentricidade, atéporque o colosso militar está acima tambémdas doutrinas e das teorias. Mas, observaLeão Serva, “nos Bálcãs elas se mostraramtão reais quanto recentemente se revelaramreais na Palestina e em Chipre”46.

Se a ação da OTAN fosse legítima, seestivesse amparada no direito, estaríamoscondenando a humanidade à barbárie. Sefosse possível fazer valer como direito, istoé, em regra universal, o direito a que se auto-atribuem os Estados Unidos, a humanida-de sucumbiria, devorada numa chacinaautofágica.

Os bombardeios contra a Iugoslávia,pela OTAN, constituem, de todos os modos,uma guerra inaugural, no sentido de suajustificativa, pois a OTAN não pode alegara defesa de nenhum dos territórios de seusEstados-membros, objeto de sua criação, nofragor da ‘guerra fria’. As alegadas razõeshumanitárias de hoje, puramente ideológi-cas, podem amanhã ser substituídas poroutras, como a defesa de determinado sobe-rano ou de um regime, ou de uma tese. Asalvação da humanidade, por exemplo,pode amanhã justificar, manu militari, a ‘pro-teção’ de santuários ecológicos como a

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Amazônia, ‘ameaçada de destruição’ porisso ou por aquilo. O combate ao narcotrá-fico pode amanhã ser a justificativa domuito provável desembarque das tropasnorte-americanas na Colômbia. A ‘ameaça’que à sua segurança pode representar aconsolidação de um regime nacional-popu-lar na Venezuela, pode justificar a interven-ção dos Estados Unidos na Venezuela…Ninguém se iluda: o regime da unipotên-cia arrogante atualiza La Fontaine e alógica do lobo.

A intervenção da OTAN, finalmente,representa um salto no escuro para todas asnações do mundo que agora estão sabendoque não há mais soberania absoluta, nemdireito internacional inquestionável, e queEstado nenhum pode entrar em conflito como Estado hegemônico.

Ontem Panamá, Vietname, Iraque. HojeIugoslávia. Amanhã…

(A propósito, a invasão do Panamá e se-qüestro de seu Presidente custaram a mortede mais de 2 mil pessoas, duas vezes maisque na derrubada de Ceausescu, na suamaior parte civis. Mas ninguém fala aí nemem genocídio nem em carnificina)47.

Da convicção da comunidade internacio-nal de que ninguém está a salvo da esmaga-dora superioridade militar dos Estados Uni-dos e seus sócios da OTAN resultam conse-qüências estratégicas e ideológicas. No pla-no militar, a constituição de um eixo atômi-co anti-hegemônico, reunindo Rússia, Chi-na e Índia48, que não tem mais qualquer ra-zão para cumprir a promessa de assinar otratado de não-realização de testes nuclea-res. A humanidade pode estar à beira de umanova e catastrófica corrida atômica, enquan-to a ação da OTAN está oferecendo a diri-gentes irresponsáveis um irrespondível áli-bi ideológico para a retomada do armamen-tismo, criando emulações regionais de des-dobramento imprevisível49. E no plano polí-tico, os Estados Unidos deverão reforçar asegurança de suas embaixadas em todo omundo e assumir a responsabilidade de se-

rem vistos por grande parte da humanida-de (chineses, russos, indianos, árabes, lati-no-americanos e africanos) como inimigosde suas sociedades.

É claro que a ONU sai do episódio peri-gosamente sem função. Há que repensá-lano regime da unipotência.

Não há dúvida de que os bombardeiosacabam por destruir o que restava da frágilordem internacional, que já não pode ofere-cer aos fracos qualquer grau de proteçãoante os Estados predadores.

Os Estados Unidos – a superpotência quenão respeita a lei – estão assumindo, perantea humanidade, com o apoio de seus peõeseuropeus, o papel de principal ameaçaexterna contra nossas sociedades e nossacivilização.

Não é de admirar, portanto, que o res-sentimento com relação aos Estados Unidosesteja crescendo globalmente50.

Depois de relembrar uma antiga senten-ça do general De Gaulle (“Podem ter certezade que os americanos cometerão todas asidiotices que puderem imaginar, mais algu-mas que estão além do imaginável”), o jor-nalista brasileiro Márcio Moreira Alves51

comenta o estrago que os bombardeios fize-ram à ONU e às negociações para elimina-ção das armas nucleares. A professora MaryWynne-Ashford, vice-presidente da organi-zação Físicos Internacionais pela Prevençãoda Guerra Nuclear (FIPGN), por ele citada,revela o desalento de dois recentes seminá-rios a que compareceu em Moscou e Esto-colmo, e põe em destaque que “a opiniãopública antiamericana na Rússia é maisprofunda e ampla do que nunca. ‘Hoje aSérvia, amanhã a Rússia’ é uma opinião quese enraizou profundamente na consciênciadas pessoas”. Por fim, conclui o articulistade O Globo :

“Nós, no Brasil, não temos de re-petir, por enquanto, o temor de Mos-cou: ‘Hoje a Sérvia; amanhã a Rússia’.Mas não custa pensar no assunto”.

Pensemos.

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3. E a América Latina?

A experiência nos Bálcãs, no que depen-der dos Estados Unidos, deve ser levadapara o resto do mundo. O primeiro alvo podeser o nosso Continente.

Senão, vejamos.Na 29ª Assembléia Geral da Organiza-

ção dos Estados Americanos (OEA), encer-rada a 9 de junho de 1999, o delegado norte-americano propôs “que um grupo de paí-ses, vizinhos ou simplesmente relacionadospolítica e economicamente, pudesse inter-vir em conflitos internos de outra nação”52,sem a necessidade de apelo à Assembléia.Teve o apoio do Brasil.

No mês seguinte, o presidente Clinton,em entrevista coletiva, declarou que a crisecolombiana é assunto “de interesse da segu-rança nacional” dos Estados Unidos53. To-dos sabemos quais podem ser as conseqüên-cias desse entendimento.

A Colômbia está às voltas, há pelo me-nos três décadas, com uma verdadeira guer-ra civil – que já produziu mais de um mi-lhão de refugiados (mais que em Kosovo) esó nos últimos dez anos matou cerca de 35mil pessoas (cerca da metade do seu territó-rio encontra-se sob o controle das Forças Ar-madas Revolucionárias da Colômbia-FARC) – e com a guerra do narcotráfico, oqual, diga-se de passagem, é alimentadopela demanda dos usuários norte-america-nos e pela incompetência dos Estados Uni-dos de controlarem suas próprias frontei-ras. Esse complexo de crises já fez com queaquele país se transformasse no terceiro domundo em ajuda militar norte-americana(logo após Israel e Egito):

“Neste ano, a Colômbia receberáUS$ 289 milhões em ajuda militar dosEUA, e, no ano que vem, a quantiapode subir para US$ 1 bilhão. Embo-ra o dinheiro só possa ser usado paratreinamento e missões de apoio, comovôos de observação, foi assim que osEUA começaram seu envolvimento noVietname”54.

Os colombianos vêem com espanto – masa opinião pública internacional latino-ame-ricana com indiferença – o interesse deWashington em fornecer armas e recursosdestinados ao combate à guerrilha, em vezde ajudar a resolver a crise social maisaguda de sua história55.

Mas não é tudo. O exército americanotem presença física e ativa em territóriocolombiano, sob o pretexto de ajudar as for-ças armadas no combate à guerrilha e aotráfico. Há mais de 300 americanos naColômbia, entre soldados (200) e agentes doDEA (órgão de combate às drogas) e da CIA.São ‘assessores’ treinando mil colombianosde um batalhão que deve entrar em opera-ção em dezembro, para enfrentar os guerri-lheiros. Em setembro, o governo de Pastra-na receberá mais seis helicópteros de com-bate para proteger os aviões que jogam des-folhantes. O avião norte-americano que caiuna selva estava equipado para vigiar a guer-rilha56. Também foi assim que tudo come-çou no Vietname. Aliás, por razões fáceis decompreender, os Estados Unidos unem, nomesmo processo, a guerrilha esquerdista dasFARC e o narcotráfico, identificado como fi-nanciador daquela57. Ninguém fala em com-bater os paramilitares de direita e extremadireita.

E a imprensa faz a sua parte. A brasi-leira Veja, ainda presa à retórica da guerrafria, diz que a situação da Colômbia é de‘emergência’ em face do ‘agravamento daguerra civil e do envolvimento da guerrilhacomunista (sic) com o narcotráfico’58. O bo-letim do Pentágono não escreveria melhor.Segundo o jornal argentino La Nación, o sem-pre dócil governo Ménem (que acaba de verrecusada sua ridícula autocandidatura àOTAN) teria sido instado por Washingtona assumir a iniciativa de propor a criaçãode uma força conjunta de intervenção, à qualos EUA depois se juntariam59. Argumentosnão faltariam para essa nova ‘intervençãohumanitária’: a guerra civil, o narcotráficoe a ameaça de incursões da guerrilha nosterritórios de fronteira, o que, aliás, já vem

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sendo preventivamente manipulado pelasimprensas locais. Ressalvada a gravidadecolombiana, que a transforma em um casoespecial, também estão em crise, seja porforça do narcotráfico, seja pela sobrevivênciada guerrilha, o Peru e a Bolívia. O Equador,há anos, transita de uma crise econômicapara outra. Essa conjunção de fatoresconstitui o pano de fundo daquele que podeser o cenário de maior apreensão: uma novaVenezuela de futuro imperscrutável, gover-nada por um líder populista de raízesmilitares que mantém o apoio quase con-sensual de sua população, com um discursonacionalista, desenvolvimentista e até aquiem nada comprometido com os interessespolíticos, econômicos e ideológicos da novaordem mundial.

Não precisamos falar de Cuba.Mas esse é só um dos ingredientes que

podem transformar nosso Continente numexplosivo caldeirão social.

Nem mesmo os néscios ignoram o preçosocial que nossos países estão pagando à‘globalização’. O fundamentalismo dos queacreditam na magia do mercado tem sido acausa da derrocada de nossos mercados, doaumento da concentração de renda, daqueda do PIB, e do aumento da recessão, dodesemprego e da exclusão e da queda geralda qualidade de vida. O PIB da AméricaLatina deverá cair, em 1999, entre -0,5% e-1,5%. Na Argentina, essa queda será de -3%,no Equador de -5%, no Chile de -2,3%, noUruguai de -0,5%, na Colômbia de -1%, noBrasil de -1% a -1,5% e na Venezuela de -6%60.Alguns países apresentarão taxas de desem-prego de 15%. Em compensação, o comérciointernacional dos Estados Unidos só é su-peravitário com a América Latina. Há 10anos, vendiam-nos 25 bilhões de dólares porano; hoje, essa cifra saltou para 90 bilhões,informa a CEPAL. Com isso os EstadosUnidos ganharam 650 mil empregos.

A crise econômica aumenta as desigual-dades sociais, colocadas hoje em patamaresobscenos. Nesse campeonato, o Brasil man-tém a liderança: o país registrou uma queda

no percentual de renda total em mãos dos40% mais pobres de 11,5% em 1993 para10,5% em 1996, enquanto os 10% mais ricosda população viram sua fatia de renda au-mentar de 43% para 44,3%61. Numa popu-lação estimada de 160 milhões de seres, so-mos 15% de analfabetos, 35% com menosde quatro anos de educação, 36% de infec-tados por parasitas. Em compensação, osbancos privados brasileiros tiveram, no pri-meiro semestre de 1999, a melhor rentabili-dade da história: 35,35%, duas vezes maisque a média do setor (15%), que já se desta-ca como uma das maiores do mundo. Combase no estudo de 15 bancos, a consultoriaAustin Assis conclui que a rentabilidadedessas instituições saltou de R$ 194,5milhões no primeiro semestre de 1998 paraR$ 2,560 bilhões neste ano, o que equivale aum crescimento de 1.216% no intervalo deum ano! O que representa, principalmente,uma brutal transferência de renda da popu-lação para os bancos, que, aliás, não pagamimposto, segundo declarou à Câmara dosDeputados (CPI do Sistema Financeiro) oSecretário da Receita Federal. O outro ladodessa moeda perversa é inevitável: aumen-to das ocupações de propriedades, bloqueiode estradas, greves e lock-outs, desabasteci-mento, aumento da violência urbana, con-flito social, que pode-se manifestar por meiodo ressurgimento de ações guerrilheiras erevolucionárias, e na retomada do tradicio-nal autoritarismo latino-americano. Emqualquer hipótese, requer muita ingenuida-de apostar, nesse quadro, na segurança dasinstituições políticas democráticas.

As informações disponíveis indicam quea diplomacia brasileira não estaria dispos-ta a aprovar a idéia da intervenção militar,conjunta ou não, na Colômbia. Nosso go-verno teria consciência de que essa opera-ção seria uma porta aberta para outras in-tervenções, notadamente nas regiões limí-trofes da Amazônia, por onde o Brasil temfronteiras com o Peru, a Colômbia, a Vene-zuela e também com a Bolívia.

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Sabe-se que nossas Forças Armadas,justificadamente preocupadas com a inte-gridade da Amazônia brasileira, jamaisveriam com bons olhos a presença de tropasestrangeiras na região, mesmo tratando-sedo exército norte-americano.

Sabe-se, igualmente – dá conta o noticiá-rio da imprensa –, que Brasil e Estados Uni-dos já discutem uma ação conjunta de ‘cer-co a guerrilheiros’ e uma ação militar brasi-leira. Foi esse o tema da conversa entre ogeneral Charles Whilhelm, chefe do Coman-do Sul das Forças Armadas, e o Ministro daDefesa do Brasil, Élcio Alvares62 em agostode 1999. Enquanto espera a data certa paraa ‘operação militar’, a Polícia Federal brasi-leira foi acionada para desencadear uma“operação destinada a fechar as rotas deabastecimento de alimentos para as regiõesda Colômbia controladas pelas ForçasArmadas Revolucionárias da Colômbia(Farc). A operação faz parte da estratégiaamericana de cerco à área controlada pelosguerrilheiros que foi desmilitarizada pelogoverno colombiano em novembro de 1998para viabilizar as negociações de paz”. A‘operação’ coincidiu com a presença, emBrasília, do Chefe do Escritório de Controlede Drogas da Casa Branca, Barry MacCaffrey,que se encontrou com o Chefe da CasaMilitar da Presidência da República, generalAlberto Cardoso63...

Não se sabe, porém, qual é a política domaior país da América do Sul e da AméricaLatina para a América do Sul e a AméricaLatina. Não se sabe, mesmo, se existe umatal política. Como não se sabe qual é suapolítica para a África e a lusofonia. Emmatéria de política exterior, sabe-se, apenas,que o Brasil pleiteia um assento (talvezrotativo) no Conselho de Segurança daONU. Para fazer o que, não se sabe. Paradefender que programa, que idéias, quepolítica, não se sabe.

Até aqui, temos sido incapazes de pro-duzir uma política externa que não seja pu-ramente reativa. Fora o curto período dasadminis t rações Jânio Quadros/João

Goulart (ministros Afonso Arinos e SanThiago Dantas) e Geisel (ministro Azeredoda Silveira), nossa política internacionaltem-se caracterizado, principalmente a par-tir da II Guerra Mundial, pelo alinhamentoautomático aos interesses norte-americanos,nada obstante o notável contencioso eco-nômico resultante das barreiras americanasàs exportações brasileiras. Em abono à re-núncia à vida independente, nem mesmodifusos interesses de uma geopolítica co-mum podem hoje ser alegados, em face dofim da guerra fria e da total irrisão da‘ameaça’ comunista. Nesses termos, portan-to, nada impediria o país de procurar umaagenda própria, consolidando sua lide-rança no Continente, ocupando na África oespaço que sua história nos oferece eprocurando novos parceiros internacionais,como, por exemplo, a Índia, a China64 e aRússia.

Enfim, ocupar um espaço próprio, ade-quado à sua importância territorial, à suaeconomia, à sua história, e contribuir – porexemplo ao lado da China, da Índia, do Ja-pão e de uma Rússia livre de seus atuaisdirigentes – para a recuperação da multipo-laridade, fundamental para nosso desenvol-vimento e mesmo para a sobrevivência dahumanidade.

Mas isso seria querer demais de nossaselites, pois significaria a busca de caminhospróprios. E a história das elites brasileiras éa permanente traição aos interesses nacio-nais, o total descompromisso com a cons-trução da nacionalidade, ou com a defesados interesses de seu povo.

Não se trata de propor para nossospovos um quixotesco enfrentamento da‘globalização’ em condições de absolutadesigualdade de forças, mas, tão-só, defortalecer o país e a nacionalidade para fazerface aos desafios dessa forma modernade imperialismo.

A resistência passa pela liderança denossos povos, da unificação da AméricaLatina em torno de seus interesses, da asso-ciação com outros continentes e povos.

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Separados e isolados até por imposiçãoda geopolítica colonizadora, precisamos en-cetar o processo do mútuo conhecimento,assim descobrindo que temos mais unida-de do que diversidade, mais aproximaçõesdo que divergência e que, respeitando nos-sas culturas e nossos projetos, de cada povoe de cada país, podemos construir o projetodo desenvolvimento comum.

Mas tudo isso passa, antes de mais nada,por alterações na correlação de forças polí-ticas no interior de nossos países.

Com vistas à nossa integração, o MER-COSUL pode ser um primeiro passo, agluti-nando, de princípio, os interesses dos paí-ses do cone-Sul. Nesse sentido, trata-se deprojeto que precisa ser estimulado e preser-vado, nada obstante suas limitações. Nãopodemos nos iludir quanto à sua fragili-dade, reflexo das limitações dos países-membros. Simples acordo de mercado ouaduaneiro, o MERCOSUL pode-se transfor-mar num grande instrumento tanto de inte-gração econômica quanto de integração cul-tural e política, fortalecendo nossos paísesno diálogo com outros blocos e com o Norte,sobretudo com a União Européia e mesmona resistência à ALCA (Área de Livre Co-mércio das Américas). Uma das últimas emais graves ameaças à sobrevivência denossos países, ela representará, na prática,a absorção, pela economia e pela políticados Estados Unidos, da política, da econo-mia, da autonomia e da soberania de nos-sos países. A ALCA, uma vez efetivada, in-corporará os territórios dos 33 países dasAméricas65 (12% do PIB da região) ao terri-tório dos Estados Unidos (88% do PIB),absorvendo, com os territórios, a economia,a política, a autonomia, a independência ea cultura dos nossos países, que tambémterão renunciado ao direito à soberania e àhistória própria, como observa SamuelPinheiro Guimarães:

“As decisões de política econômi-ca tomadas por autoridades america-nas nos Estados Unidos passariam ater influência decisiva sobre o pro-

gresso e o bem-estar dos brasileiros esobre a possibilidade de ter o Brasilpolíticas econômicas próprias, volta-das para seus interesses”66.

A adesão brasileira à ALCA – que devecomeçar a funcionar a partir de 2005,segundo compromissos do atual governobrasileiro 67 – pode representar nossosuicídio coletivo. Seria a modernidade‘pós’-Kosovo.

A nova ordem mundial derivada do fimda guerra fria coloca para os nossos povosuma questão irrecusável: os Estados Uni-dos e sua política econômico-militar (ondecomeça uma e termina a outra?) dirigida pelointeresse e pelo oportunismo – jamais poruma teoria de valores –, sem mesmo atendera questões concretas de segurança, interes-se nacional ou fins estratégicos claramentedefinidos, e levada a cabo com truculência earrogância, continuarão a dirigir o mundo?Ou, é possível enxergar no horizonte de nos-sas existências qualquer sorte de resistên-cia, pelo menos intelectual e moral?

A utopia é a recuperação do direito deconstruir nosso próprio destino, em quepese a nova ordem mundial.

Notas1 Em 2 de agosto de 1990, o exército iraquiano

invadiu o Kuwait, de onde, semanas seguintes, foiexpulso por tropas de 26 países lideradas pelosEstados Unidos. Um cessar-fogo foi firmado em1991, e a ONU decidiu ditar uma série de embar-gos, com o objetivo de assegurar-se do desarma-mento do Iraque; os Estados Unidos estabeleceram,dentro do País, para proteção das minorias curdas,uma zona de exclusão (sobre a qual o Iraque deixade ter soberania) e outros embargos, econômicos epolíticos. A ‘violação’, pela força aérea iraquiana,do espaço aéreo correspondente a esse território temjustificado os bombardeios norte-americanos e in-gleses. Passados dez anos, o conflito perdura. Osembargos políticos e econômicos estão destruindoo país e levando seu povo à miséria, mas o ditadorSaddam Hussein permanece no poder, aparente-mente inabalável; nada obstante os esforços norte-americanos visando à sua destruição, seja por meiodos bombardeios e de sabotagens, via CIA, sejamesmo mediante o apoio à oposição iraquiana.

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Assim, mediante o ‘Iraq Liberation Act’, de 31 deoutubro de 1998, Washington abriu um crédito de97 milhões de dólares para apoiar a oposição aSaddam. Até aqui os efeitos não se fizeram visíveis.Sobre o tema, Le Monde Diplomatique elaborou umdossiê (‘Cahier Iraq’), que está disponível em seusítio http://www.monde-diplomatique.fr/cahier/irak.

2 O papel da imprensa, instrumento da guerra– a guerra mediática em que objetivos militares seconfundem com seus efeitos nos meios de comuni-cação de massa, na qual a imprensa é um instru-mento de ação com objetivos em nada diversos dosbombardeiros e das bombas –, está a exigir umensaio à parte, o que extrapolaria os limites destetexto. Da imprensa brasileira – em face do distan-ciamento geográfico e da inexistência de interessesenvolvendo as economias brasileira e iugoslava –poder-se-ia esperar um mínimo de não-passiona-lismo. Mas não foi o que se viu. Ao leitor brasileirofoi transmitido um noticiário de segunda mão eunilateral, fornecido por uma das partes em confli-to. Jamais a imprensa brasileira procurou conhecerum eventual outro lado da história. Quando en-viou seus próprios repórteres, foi para reforçar avisão unilateral da guerra. Que Hollywood sirva aoPentágono e a CNN atenda ao Departamento deEstado norte-americano, até que se entende. Mas oque a imprensa brasileira tem com isso? Sua sub-serviência chega a pô-la em distonia com Brasília,cuja posição foi sempre, ainda que exageradamen-te tímida, de condenação da guerra como meio desolução dos conflitos políticos.

3 BURDIEU, Pierre. Contre-feux. Propos pourservir à la résistence contre l’invasion néo-liberale. Liber-Raisons d’Agir. Paris. 1998.

4 SANTOS, Milton. Geógrafo, professor eméritoda USP. In ‘Guerra dos lugares’. FSP. 8.8.1999.

5 A crítica de Gore Vidal à ‘democracia repre-sentativa’ norte-americana pode ser aplicada a to-das as democracias ocidentais. Depois de assina-lar, como fato triste, que em seu país não existamais política (o que seria uma das fontes da ‘polí-tica’ de guerra), observa: “(…) Nós não possuímosuma democracia representativa. Quem foi eleitopara o Congresso não representa a Califórnia ou aVirgínia Ocidental, senão a General Motors ou aBoing. Todo mundo sabe disso, e as pessoas seacostumaram com essa situação. (…) Nós, ameri-canos, temos de defender o nosso Bill of Rights oujá quase o perdemos. Um homem que durante vin-te anos fez comerciais para a General Electric setornou um dia presidente dos Estados Unidos e fezno seu novo emprego aquilo que melhor podia –comerciais para a General Motors. Estou-me refe-rindo a Ronald Reagan. Os apresentadores talvezsejam trocados, mas o comercial para a empresapermanece o mesmo. Richard Nixon não foi imbecilquando disse que os EUA não precisavam de

nenhum governo para a política interna. Natural-mente precisariam urgente de uma, mesmo quandonão sob o seu ponto de vista. O país se auto gera.Nixon queria dizer com isso que as empresas dopaís conduziam os negócios do país. E neste negócionão se trata de outra coisa que não de dinheiro. Opresidente só é necessário para a política externa.Um demagogo experto poderia demonstrar essacosa nostra das empresas. (…) Ele (Clinton) é apenasum empregado. Os presidentes não interessam. Elespodem fazer algumas besteiras na política externa,como agora em Kosovo, mas não na política interna.O presidente americano pode ser porventuraimportante para os sérvios, mas não o é para osamericanos. A América dos conglomeradosemprega seus advogados, que tratam de seusinteresses no Congresso e no governo. Para isso elessão bem pagos; os donativos para as campanhaseleitorais fazem mais do que o necessário”. VIDAL,Gore. Em entrevista a WINKLER, no SuddeutscheZeitung, edição de 2-3 de junho de 1999 (Traduçãode Susana de Castro Amaral).

6 Escreve FRIEDMAN, Thomas, articulista doThe New York Times Magazine, no artigo ‘Manifestopara o mundo veloz’ traduzido pelo O Estado deSão Paulo e publicado na edição de 29-5-99: “Osistema da ‘globalização’ encontra-se erguido emtorno de três elementos de equilíbrio que se sobre-põem e exercem influência entre si. É o tradicionalequilíbrio entre Estados e Estados. O seguinte é oequilíbrio entre Estados e supermercados – osgigantescos mercados globais de títulos e ações. OsEstados Unidos podem destruir você jogandobombas e os supermercados podem destruir vocêdesvalorizando os seus títulos”.

7 Cf. O Globo de 5-9-99: “67 das 70 maioresaudiências do Brasil são da (TV) Globo”.

8 Os mercados nacionais cedem lugar aos blocosregionais (CEE, NAFTA, MERCOSUL, ALCA etc.),que, por seu turno, tendem à unificação; em nossoContinente, a última pá de cal será a absorção doMERCOSUL pela ALCA, projeto ostensivo da‘diplomacia’ norte-americana. Retomamos essatemática em nossas considerações finais: 3. E aAmérica Latina?

9 “A desaparição da URSS originou 15 novosEstados, com graus variados de soberania efetivamas dotados de representação internacionalprópria, forças armadas e sistemas de leisparticulares. A criação da CEI não foi capaz deevitar a deflagração de guerras abertas emrepúblicas ex-soviéticas. Os conflitos latentes entrepovos, etnias e nacionalidades que compunham oEstado soviético degeneraram em conflitos milita-res e uma instabilidade estrutural se instalou naperiferia da Comunidade e na região báltica”.MAGNOLI, Demétrio. Questões internacionais

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contemporâneas . Fundação Alexandre Gusmão.Brasília. 1995. P. 84.

10 Escreve FARAH, Paulo Daniel ‘Os Bálcãs –Qual será a próxima guerra?’ in Folha de São Paulo,20-6-99: ‘O Ocidente viu o desmantelo da ex-Iu-goslávia como uma vitória sobre o comunismo’ (mas)‘a ofensiva neoliberal contra os antigos Estados co-munistas produziu desordens na Europa que cau-saram o ressurgimento de comportamentos seme-lhantes aos dos nazistas’.

11 O acordo de Daytona, “ao mesmo tempo queimpôs uma paz armada, coroou a lógica da limpe-za étnica e a separação entre os povos criando trêsentidades nacionais (de um lado, com metade doterritório, as entidades croata e muçulmana reuni-das em uma federação; com a outra metade, umaentidade sérvia). Em cada um dos territórios, osmembros das demais etnias foram deslocados,impondo assim a lógica da separação, que era atri-buída aos sérvios e cuja negação, supostamente,justificava toda ação dos aliados dos Estados Uni-dos. Os acordos implicaram a renúncia sérvia acertos territórios. Eles, que tinham chegado a domi-nar 70% da Bósnia, ficaram com cerca de 50%. Ossérvios perderam terras, mas o acordo tornou ven-cedora a lógica da imposição de uma separaçãoentre os povos”. SERVA, Leão. In ‘Bálcãs: onde astragédias da História se repetem (Nesta guerra, aprimeira vítima é o leitor)”. Política Externa. Vol. 8.N.1- junho- 1999. p-14.

12 Idem. P 3-15. Recomendamos sua leituraprincipalmente para aquele leitor que desejar umaindispensável contextualização da crise e do confli-to dos Bálcãs.

13 “Como se poderia ter evitado a tragédia, jáque se tratava de fragmentar a Iugoslávia? Comoos 600 mil sérvios que viviam na Croácia poderiamviver a divisão senão como uma tragédia que leva-ria à guerra e aos massacres?”. Peter Handke, ementrevista ao Libération, FSP, 4 de abril de 1997, istoé, dois anos antes da invasão ‘humanitária’.

14 Cf. MARTINS, José Miguel Q., in ‘Nem a guer-ra nem a paz’, apud Conjuntura política , Boletim deanálise do Departamento de Ciência Política daFaculdade de Filosofia e Ciências Humanas daUFMG, n. 7-maio/1999, p. 33-36.

15 SAID, Edward W., ‘La trahision de losintelectuales’. In Le Monde Diplomatique, aoüt,1999. P. 6-7.

16 MAGNOLI, Demétrio. Ob. cit. . p-122-3.17 Cf. FSP, 26-6-1999.18 Trata-se da Cimeira de 23 de abril pp. reali-

zada em comemoração dos 50 anos do Tratado.Nessa reunião, a cúpula da OTAN decidiu, alémde manter os ataques à Iugoslávia, adotar medi-das complementares como ‘aplicação intensificadade sanções econômicas e um embargo de produtospetrolíferos’. Jornal do Brasil , 24 de abril de 1999.

19 “Intervenção é a nova estratégia”, Oppenhei-mer, W., in Jornal do Brasil, idem.

20 FRIEDMAN. Idem.21 Idem Idem.22 Só para lembrar: trata-se de uma das Anti-

lhas, um Estado independente com 344 km 2 e 110mil habitantes. Foi invadido pelos Estados Unidos(administração Reagan) em 1983 porque tinha umgoverno sob forte influencia cubana, evidenciadapela construção, em sua capital (São Jorge), de umapista de aviões, que, podendo servir a um aeropor-to internacional, também poderia servir de base parauma agressão ao território norte-americano… A pis-ta ou o aeroporto eram construídos por engenhei-ros ou técnicos cubanos.

23 Só para lembrar: Estado independente daAmérica Central, situado na parte oriental da ilhado Haiti, com 48.400 km 2 e 7.500.000 de habitan-tes; em 1983, foi invadido por tropas norte-ameri-canas e de outros países da OEA, inclusive o Brasil(sob ditadura militar), para impedir a posse doPresidente eleito, J. Bosch, de esquerda.

24 Citado pelo Jornal do Brasil de 1º- 3- 99.25 A íntegra do discurso pode ser encontrada na

Internet , no seguinte endereço: CNN.com/Custom-News. O autor agradece a colaboração de PedroAmaral .

26 Samuel Pinheiro Guimarães, diretor do Insti-tuto de Pesquisas em Relações Internacionais doItamarati, em entrevista ao Jornal do Brasil, 25-07-99. Este texto já estava concluído quando nos che-gou às mãos seu livro Quinhentos anos de periferia.A Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Con-traponto. 1999. O livro em si, ademais de seus ex-traordinários méritos, tem duas características bembrasileiras: editado por uma Universidade, sofreuma comercialização amadora, não se encontra naslivrarias; de outra parte, vem merecendo significa-tivo silêncio dos diplomatas brasileiros que, no en-tanto, e justificadamente, não se cansam nas loas alivro de antigo chefe do Departamento de EstadoNorte-Americano; a edição brasileira conta, até,com declarações (‘comerciais’) do Ministro do Ex-terior brasileiro em anúncios de página inteira noJornal do Brasil de 22-08-99.

27 Cit. Idem.28 Diz o artigo 3º da Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão: “Le príncipe de toute souve-ranité réside essentiellement dans la nation”.

29 A Carta da ONU proíbe a ameaça ou uso daforça, a não ser que o Conselho de Segurança otenha autorizado expressamente, depois de con-cluir que os meios pacíficos fracassaram, ou emdefesa própria contra “agressão armada”, até queo Conselho de Segurança atue.

30 Jornal do Brasil, 19-6-99. “Nossos soberanosatacam do ar pessoas inocentes. Isto é tão ruimquanto tudo o que Milosevic faz. Milosevic, ao

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menos, menosprezava as pessoas que mata,enquanto nós nem ao menos as conhecemos”.VIDAL, Gore. Cit. Idem.

31 A dúvida se coloca mesmo para as autori-dades americanas, como revela recente artigo doex-presidente Jimmy Carter (New York Times,27.5.99), no qual o antigo líder do PartidoDemocrata, de Clinton, após afirmar que a decisãode atacar toda a Iugoslávia tornara-se contrapro-ducente, e a destruição da vida civil ‘sem sentido ebrutal’, escreve: “Não estou certo de que nosso paísconcorde em destruir vidas civis de um país inteiropara tentar forçar um líder recalcitrante, que é umcriminoso de guerra, a obedecer aos nossos desejos”.

32 Defenestrado do poder quando não mais ser-via ao regime da unipotência, o ditador encontra-seintocado e conduz um governo fantoche formadopor ex-auxiliares por ele mesmo indicados.

33 CHOMSKY, Noam. “Lei, direitos humanos eas lições da história”. Jornal do Brasil, 25-4-99.

34 Idem. 35 Cf. RAMONET, Ignacio. ‘Nouvel ordre

global’. Le Monde Diplomatique, juin 1999 p. 4. 36 A Rússia tem laços históricos, culturais e

cristãos ortodoxos com a Sérvia, à qual vende armase petróleo desde o fim da Segunda Guerra. Foi suaaliada na Primeira e Segunda guerras mundiais.

37 Cf. William Pfaf. ‘What Good is NATO ifAmerica Intends to Go Alone?’. In InternationalHerald Tribune. 20-1-1999.

38 José Meireles Passos, ‘A caminho da guerrado futuro’ (O Globo), fazendo um resumo dos avan-ços do Pentágono na direção da guerra tecnológica,observa que “A tendência é que os combates setornem mais parecidos com um video game , umaespécie de guerra virtual, só que, na prática, devas-tadora. Em vez de produzir munição sólida, pesa-da, convencional, biológica, química ou nuclear,opta-se pelo cultivo de vírus de computador, dafabricação das chamadas bombas lógicas e dasbombas eletromagnéticas”. Acrescenta: “Já na Guer-ra do Golfo Pérsico, em janeiro de 1991, os EUAutilizaram uma dessas novas armas, na época ain-da em estágio inicial: em vez de explosivos, os mís-seis cruzadores Tomahawk levavam ogivas eletro-magnéticas para destruir os sistemas eletrônicosdo Iraque”.

39 “Entre as coisas mais espertas que a direitanorte-americana poderia fazer está a revogação,depois da guerra do Vietname, da obrigatoriedadedo serviço militar. Com a obrigatoriedade do servi-ço militar não seria possível uma tal campanha(Kosovo). Eles possuem mães e pais ricos e pode-rosos que diriam: meu filho não irá voar sobreKosovo para vocês, seus idiotas! Por isso, o exércitoamericano recruta soldados entre os pobres, negrose brancos na mesma medida. Esse exército assala-riado é bem pago. Uma cláusula importante no

contrato de serviço, entretanto, diz: não queremosnenhum ferido e morto”. VIDAL, Gore. idem.

40 “A região que hoje chamamos Kosovo é cha-mada de Velha Sérvia pelos sérvios, que a reivindi-cam por ser a terra de seus ancestrais, porque alieles estavam no começo de sua história conhecida(antes, ágrafos, migraram para a região em tornodo século VI d.C. expulsando outros moradores) eali perderam a batalha para os turcos otomanos eforam expulsos, tornando-se os que ficaram umaminoria em sua terra natal. A seu modo de ver,‘vencer os turcos’ é retomar Kosovo, desfazer o queos otomanos fizeram. A mesma região é reivindica-da pelos albaneses porque há muito são eles quefazem a maioria de seus habitantes, pelo menosdesde que a derrota dos sérvios forçou a migraçãopara o Norte e a hegemonia turca permitiu a chega-da dos albaneses. Para um leitor brasileiro, cujatotalidade da história escrita se mede em meio mi-lênio, essas histórias podem parecer sem sentido.Para povos cujas árvores genealógicas muitas ve-zes remontam a mil anos, a memória do passadoestá escrita na história pessoal de cada um”. SER-VA, Leão. Idem. p-7.

41 HAQ, Farhab,. “EUA agem contra tribunalinternacional”. Jornal do Brasil. 9-6-99.

42 Idem.43 CHOMSKY, Noam. Ob. Cit.44 O preceito ‘não matarás’ não deriva de um

critério gravado por natureza no coração dos ho-mens, como pretendiam os jusnaturalistas, mas doimperativo categórico (Kant), pois, se eu matar equiser, para me absolver a mim mesmo, transfor-mar essa máxima em princípio, convertendo o as-sassinato em princípio universal, todos matariam,e, portanto, todos morreriam. Ouso sugerir duasleituras: ‘Guerra santa ou guerra justa?’ e ‘Segun-das considerações éticas (ou: Cada história tem oRicardo que merece)’, in HOUAISS, Antônio &AMARAL, Roberto. Socialismo, vida morte, ressur-reição (2ª ed.) Editora Vozes. Petrópolis, 1993.

45 Relembre-se: a Iugoslávia, até o fim da guerrafria, isto é, antes de ser despedaçada, como a mai-oria dos Estados do antigo Leste-europeu (como aURSS e a Tchecoslováquia), era uma RepúblicaSocialista Federativa, formada por seis repúblicas:Bósnia-Herzogovína, Croácia, Macedônia, Monte-negro, Sérvia (que incluía as províncias de Voivodi-na e Kosovo-Metohija) e Eslovênia. Compreendiaum território de 255.805 km 2 e uma população de23.239.000 habitantes. Após a débâcle , a Iugoslá-via, o mais aberto dos países do Leste, passou areunir apenas a Sérvia (com as províncias de Voi-vodina e Kosovo) e Montenegro, reduzida a umterritório de 102.200 km2 e a uma população de10.500.000 habitantes. As guerras que se seguiramà partição da antiga Federação (Eslovênia, Croáciae Bósnia) mataram 250 mil pessoas e provocarama fuga de um milhão de refugiados.

Page 356: Sem título-1...Os aliados de Atenas pagavam um tributo (phóros) com alíquotas e base de cálculo que variavam na razão da riqueza do sujeito passivo. O resultado era deposi-tado

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46 SERVA, Leão… p-8.47 Cf. RAMONET, Ignácio. La Tyrannie de la

communication. Galilée. Paris. 1999. p. 148.48 A idéia desse eixo (ao qual se somariam, ine-

vitavelmente, o mundo islâmico e outras potên-cias) teria sido lançada por Primakov, ex-primeiro-ministro russo, em dezembro p.p. A proposta foiretomada a 11 de maio p.p., pelo embaixador daChina na Índia, anunciando haver chegado a horade os “três gigantes asiáticos se juntarem para ve-lar por sua segurança mútua num universo unipo-lar”. Cf. CARLOS, Newton. “Choque de civiliza-ções?” in. Jornal do Brasil, 24-5-99.

49 Noticia o Jornal do Brasil, edição de 9-6-99: “Aimportância da criação de um sistema de defesada América do Sul foi levantada no seminário‘Diálogo para o Milênio’, promovido ontem no Riopelo Itamarati”.

50 “Desde o colapso econômico da Rússia, emagosto, pesquisas mostram que uma parcela con-siderável da população culpa os EUA pelas falhasdo país (…). Muitos russos acham que os EUA –apesar de sua ajuda econômica e assessoria, outalvez por causa disso – têm uma política determi-nada de rebaixá-los e enfraquecê-los”. HOLMES,Charles W. ‘Jogo russo movido por patriotismo emágoa’, in O Globo, 20-6-99.

51 ‘Além de Kosovo’ in O Globo. 11-6-99.52 Cf. Jornal do Brasil, ed. 11-6-99.53 Cf. CASTRO, Moacir Werneck de. ‘A porta

aberta’, in Jornal do Brasil, 27 de julho de 1999.54 SEKLES, Flávia. ‘A guerra americana na Co-

lômbia”. Jornal do Brasil, 1º de agosto de 1999.55 Cf. GARZÓN, Luis. Presidente da Central

Unitária dos Trabalhadores, CUT (Social-democrata). ‘Intervenção dos EUA pode oficializarguerra civil’. Diário de Pernambuco. 7-8-99.

56 Veja. Ano 32, edição 1.610, 11 de agosto de1999. ‘A sombra do Vietnã’. p. 52-53.

57 “Antes de partir para a Colômbia, o gal.Barry McCaffrey, chefe da luta contra o narcotráfi-co nos EUA, disse, em Milão, que os EUA não di-ferenciam mais o combate ao narcotráfico do com-bate à guerrilha. Na visão americana, as FARC sãofinanciadas por uma extensa rede de narcotráfico”.O GLOBO, 27 de julho de 1999. V., igualmente,SEKLES, Flávia. Idem.

58 Veja . Idem.59 SEKLES, Flávia. Idem.60 “Instabilidade mostra sua cara. América La-

tina revive tensão social com protestos e ameaçasde estado de exceção”. O Globo, 1º de agosto de1999.

61 Idem.62 ‘EUA e Brasil discutem cerco a guerrilheiros’.

O Globo. 18-08-99.63 ‘Brasil cortará rotas para a Colômbia’. Jornal

do Brasil. 20-08-99.64 Observa Samuel Pinheiro Guimarães que “A

China tem experimentado extraordinário crescimen-to de produção e das exportações de uma maneiraindependente, sem se submeter à política das agên-cias internacionais. A China, após resolver a ques-tão da unidade de seu território, com a reintegra-ção de Taiwan, deverá desempenhar, em conjuntocom o Japão, outra economia heterodoxa, papelextraordinário internacional, o qual poderá recupe-rar sua multipolaridade, o que é fundamental parao Brasil”. Idem.

65 Todos, menos Cuba.66 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. id. Idem.67 Cf. ROSSI, Celso. ‘EUA cobram ‘plena atenção’

à Alca’. FSP, 21 de julho de 1999.

Referências bibliográficas conforme original.