Seminário Descartes

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O perfil do pensamento moderno que possibilitou a ontologia da substância e na sua radicalização a ontologia da estrutura

Citation preview

  • 1

    SEMINRIO DE DESCARTES

    O perfil do pensamento moderno que possibilitou a ontologia da substncia e na sua radicalizao a ontologia da estrutura

    (Resumo dos pensamentos de Heinrich Rombach, Substanz, System, Struktur)

    A filosofia moderna no se caracteriza pelas novas respostas para perguntas antigas. Mas sim: pelo novo modo de perguntar.

    O pensamento moderno desencadeado por um movimento de transformao bsica do pensamento, que j vinha de longe desde a Idade Mdia e atravs do declnio da Idade Mdia, chega em Descartes ao ponto de erupo: esse movimento de transformao bsica se chama nominalismo.

    Resumamos esquematicamente a problemtica e as consequncias desse nominalismo:

    > O nominalismo da Idade Mdia em ocaso a mais radical revoluo na histria da filosofia desde Plato:

    - Destroi as categorias fundamentais da metafsica que valeram por mil e mais anos.

    - Obriga o surgimento de novo pensar.

    - Que ao mesmo tempo o nascimento do mundo moderno.

    - Os conceitos metafsicos permanecem; mas como que corrodos por dentro.

    - A filosofia nas suas questes as mais decisivas e nos conceitos fundamentais foi atingida mortalmente pelo nominalismo e impossibilitada.

    - A destruio da antiga ontologia no um ato extrafilosfico, mas sim o nascimento de uma nova filosofia.

    - Vai corresponder s novas exigncias?

    - No pior do que a antiga?

    - Novo pensamento de consequncias sem fronteiras ficou possvel pelo nominalismo.

    Em que consiste o trabalho de destruio do nominalismo? Ataque contra e destruio da ideia do: ser, essncia e esprito (= ontologia da substncia).

    a) Reduo do ser ocorrncia. b) Reduo da essncia ao algo. c) Reduo do Esprito representao.

    > a) Reduo do ser ocorrncia:

  • 2

    - Encurta o significado do ser simples ocorrncia: existncia como simplesmente dado.

    - O ser por si mesmo sem valor.

    - O que existe no tem ligao com o qu.

    - Ser sem contedo, sem determinao.

    - Apenas uma posio.

    - O ser sem um sentido interior.

    - Em referncia ao ser, nada a dizer, nada a questionar.

    - Se o ser no questo, no h ontologia. Logo no h filosofia. O que h fato, ocorrncia.

    > b) Reduo da essncia ao algo:

    - Essncia = quid = quidditas, na Idade Mdia.

    - A determinao do quid segundo o nominalismo no se distingue mais em: essncia e indivduo. Para o nominalismo essncia e indivduo so iguais. Na Idade Mdia crist, em vez de indivduo = essncia; pessoa; universal-singular.

    - O qu-essencial no d mais o grau, a intensidade do ser. Por que isso? Porque o ser est separado da essncia, porque o ser apenas ocorrncia. Assim:

    - O ser no recebe nada da essncia; apenas ocorrer, o vir ao fato da essncia.

    - No h mais a essncia como o mago, que faz do ente um qu, i. , faz do ente um sendo, ao redor do qual as determinaes acidentais do indivduo podem repousar.

    - No h mais critrio para distinguir contedos necessrios e casuais: tudo que ocorre coisa contribui apenas para determinar o seu qu como simplesmente algo: assim tudo igual.

    - Essncia significa aqui apenas o que se ope ao puro que ocorre: o qu da totalidade de determinaes: algo.

    - Esse qu-algo no um quid ncleo, mas sim o todo de determinao-indivduo, o conjunto-qu indivduo. Desaparece a diferena entre o universal e o individual.

    - Existe apenas diferena nominal de conceitos e termos. No mais universalidade (uni-verso) interior do sendo, do ente.

    - Na Idade Mdia o mais importante, o real, o intenso e volumoso de um ente a essncia. O corpo da coisa, no qual est ligado tudo quanto perfaz a coisa. P. ex. um sapato, primeiro ele mesmo, e s ento, pequeno, grande, azul ou vermelho etc. Atributos e

  • 3

    substncia! Atributos, acidentes (ad-cadere, symbebekota) e a coisa ela mesmo! Com o nominalismo, tudo isso desaparece. O corpo murcha, o que fica so feixes de acidentes; o acidente realidade, a substncia apenas um ponto de referncia que segura, o que?

    > c) Reduo do esprito representao:

    - Segundo a Idade Mdia Esprito era ser, e ser era esprito. A coisa material modo deficiente do esprito. Esprito = medida do ser, intensidade, concentrao do ser.

    - Com o nominalismo vem a separao do esprito e ser:

    - Esprito no ser.

    - Esprito re-presenta o ser.

    - Coloca o ser diante de si.

    - Quando se diz: o Esprito assimila o ser, no significa: conduo do ser na e para a sua forma e intensidade a mais densa; mas significa: a alienao, o afastamento do ser, transposio em outro medium.

    - No pregnncia da coisa ela mesma interiorizada = intellectio; intuitus; intus-ire, intuitio.

    - Conhecer apenas apreenso, viso externa do aspecto = experimentao, a captao de e por fora.

    - Supremacia e ditadura do empirismo.

    - Empirismo no tanto uma parte, a parte sensvel do conhecimento, em oposio ao racionalismo, razo, ao entendimento, mas sim uma total determinao do conhecer.

    - ontolgico. Um modo de ser do conhecer, e no uma parte do conhecer.

    - Tambm o conhecimento espiritual e racional est diante, contra a coisa, e s compreensvel como transporte de um mdium a outro = perceptio.

    - Perceptio: no libertao, liberao de um ncleo essencial para a sua plenitude (conascimento); mas sim: dissimulao, encobrimento, alienao da coisa ela mesma.

    - Surge o esquema S e O ou S P.

    - Surge o problema da certeza do adaequatio rei et intellectus.

    - No se questiona o sentido do ser, mas um determinado sentido j estabelecido; se desvia o interesse apenas em averiguar e tentar resolver o problema da teoria de conhecimento.

    - S e O o dogmatismo da nova era.

  • 4

    Significao de Descartes nesse impasse do nominalismo

    = Descartes assume as transformaes do nominalismo, as supera na linha de radicalizao e aprofundamento, possibilitando uma nova filosofia.

    = Ele o faz, se ligando ao pensamento j existente na tradio do funcionalismo ocidental: Agostinho, Cusano, Paracelso, Joo Reuchlin, Valentin Weigel, Jacob Bhme, Giordano Bruno, Kepler, Galileu etc.

    = No vai o caminho do nominalismo s assim como funcionrio do nominalismo, ele vai co-pensando, na tentativa de resolver problemas insolveis.

    = A genialidade de Descartes = uma soluo simples que faz jus nova tendncia, sem se desligar da tradio. Da, l por 1650 os seus companheiros o chamarem de: O maior de todos os filsofos; Estrela da manh da filosofia nascente; O nico fomentador da verdade que se levanta da escurido e da escravido.

    = tido por muitos nominalistas como renegado e traidor.

    = Descartes >>> Universalidade = Uni-verso = Mundo.

    = No mais >>> Substncia-Ser-Essncia-Esprito > < Tese da Unidade do todo = mundo = realidade.

    De como, no pensamento da universalidade i. , da unicidade dos entes na sua totalidade chamada mundo, universo, Descartes possibilitou uma nova poca da filosofia, uma nova cincia, a mathesis universalis:

    1. Participa plenamente da destruio da ideia do ser. Ser = ocorrncia do existir, factum brutum, factualidade.

    No entanto, a factualidade possui articulao, e vida prpria, modo de ser e constituio do ser como ser do ente na totalidade.

    O saber acerca do ser no apenas a constatao do fato bruto, mas sim descrio, rastreamento do modo de ser e da constituio do ente na sua totalidade = ontologia, filosofia: cincia do ser. Assim satisfaz o nominalismo e recupera a profundidade da filosofia.

    2. Participa da reduo da essncia ao algo formal. O quid, a essncia do ente, no nominalismo no outra coisa do que o conjunto de suas propriedades. Como tal um ente no se diferencia do outro. Cada ente um todo que um qu, um 1, 2, 3, um algo. No h seno algos, indivduos, no h mais possibilidade do comum. A haecceitas do ente a generalidade do ser.

    Mas o que significa isto: a individualidade de cada conjunto, considerado cada vez como este a generalidade do ser? Usualmente entendemos o ser = geral abstrato, sem

  • 5

    diferenciao, comum, vazio de contedo, Cf. Ser e Tempo, os trs preconceitos do conceito do ser.

    Na realidade, segundo Descartes: Ser no o comum, o geral, mas sim: cada vez totalidade do conjunto que uma rede de constituio como propriedades: >>> mnadas, monadologia. Assim abre todo um mundo de totalidades de diferena radical.

    3. Adere reduo do esprito representao. Assim afirma a tese do conhecer aperceber. o captar da coisa pelos sentidos, a posteriori: a pura empiria. Experincia. Mas esse saber a posteriori significa que a existncia humana como saber a posteriori a facticidade desse saber, a possibilidade do saber e a atualizao desse poder a posteriori, i. , me dada. Esse saber um se saber, i. , um saber que no busca fora desse se saber outra informao sobre si, mas como que, em sendo, desdobra com coerncia e unidade a prpria estruturao do ser como a autoexplicitao da prpria essncia: no seu se saber, todo esse processo a priori, i. , contm todos os saberes que esto implicados nesse se saber.

    Descartes emprico e racional. Empirismo e racionalismo no fundo so o mesmo.

    Esse saber no a captao de uma ideia no esprito, mas sim o prprio nascimento do esprito: esse nascimento j decidiu tudo de antemo: a priori.

    Mas esse a priori, esse dado no uma factualidade, mas sim facticidade, i. , a responsabilidade de, em sendo, ter-que-ser cada vez a sua origem.

    Descartes no d um novo impulso filosofia tradicional. Ele coloca antes o pensar numa nova regio do perguntar e responder, ele funda uma nova filosofia.

    As caractersticas da Nova Filosofia, segundo Descartes

    1. Filosofia autoperfazer-se:

    A filosofia:

    - Agora no mais colocada no todo das essncias e o esprito no a forma de realizao do ser que tudo atua.

    - O esprito no tem a sua fundamentao e localizao de fora, mas a partir e atravs de si mesmo. Ele se deve dar a si mesmo o seu lugar, deve se colocar, deve-se dar.

    - No o acontecer do ser como o a ontologia medieval, o esprito acontece agora somente como ele mesmo.

    - O filosofante s se torna esprito, quando se encontra nele mesmo, quando ele toma como fundamento de si a si mesmo.

    - A filosofia est de p nela mesma. No tem outro lugar, no tem outro mvel para o seu prprio trabalho a no ser a si mesma.

  • 6

    - A nova definio da filosofia: um pensar que se coloca a si mesmo, e empreende buscar e tomar todas as suas solues e motivos de si mesmo.

    - Rejeita todas as outras fontes:

    - Experincia;

    - Autoridade;

    - Revelao:

    * No porque perderam a sua credibilidade.

    * No s a conduo de fora, mas tambm todo e qualquer contedo.

    * No por movimento de emancipao contra autoridade, Igreja, sociedade etc.

    * Mas sim: a tentativa de captar uma nova essncia do esprito, e abertura a um mdium nela mesma, na limpidez (ideias claras e distintas) dela mesma, sem se apoiar em algo que no seja ela mesma.

    2. Alienao social da filosofia.

    - Como a filosofia se coloca nela mesma, e se independiza da ordenao do universo, acontece tambm o mesmo na sociedade: no ocupa nenhuma posio na sociedade.

    - No tem utilidade imediata, nem credibilidade aos contemporneos e atuais.

    - No se comunica para fora, mas s para si mesma: dos iniciados para os iniciados.

    - No pretende ser educador.

    - No pretende ser testemunho do valor supremo.

    - Retrai-se, torna-se invisvel, se torna um Joo Ningum, no exemplo nem ideal de sabedoria, age como todo mundo, no tem doutrina nem ensinamento.

    - No oficial: clergeman.

    - No nem poltico nem educador vocacionado como telogo, juiz, mdico. Bene qui latuit, bene vixit.

    - monge, idiota, leigo.

    3. Ausncia da escolaridade:

    - Para os sculos vindouros, a filosofia vai emigrar das escolas e universidades. P. ex. Descartes, Hobbes, Arnauld, Pascal, Espinoza, Locke, Leibniz, Hume.

  • 7

    - No so funcionrios, professores, nem tem ligao com universidades.

    - Homens privados, relacionam-se com colegas privativamente.

    - As universidades e studium general no so tocados por esses pensadores.

    - No se trata de uma das consequncias da defesa da filosofia tradicionalista contra o novo pensar. Est na coisa ela mesma do novo pensar:

    - Sempre novo e de novo afundar-se, iniciar-se a partir de si mesma.

    - Somente com Christian Wolff (1679-1754) e Immanuel Kant (1724-1804) a filosofia volta s universidades, mas a escola se torna desnatural filosofia. Kant distingue: Filosofia segundo o conceito de escola e Filosofia segundo o conceito Mundo.

    4. A filosofia como ato-fundamentao e sondagem da origem.

    - No est mais ordenada a um mundo, mas ela mesma todo um mundo, que somente se refere ao que, a partir e atravs dela, surge e pensado.

    - pensar sem pressuposio.

    - No aceita nem axiomas, princpios, verdades primeiras, dados, formas dos outros, deve tirar tudo de si, a partir e atravs de si.

    - Da, ela sempre mais acossada, empurrada para o fundo, profundo, fundamento, fundamentao, origem de si.

    - Todos os empenhos, toda a concentrao vai na busca da sua prpria origem. No resta mais tempo nem motivo para propagao do pensamento, filosofia no mais enciclopdica.

    - No mais summa; speculum universale.

    - No mais expanso, propagao do saber essencial do mundo, mas problemas fundamentais da prpria facticidade.

    - Da, forma literria: tratados, essays, discursos, cartas, fragmentos.

    - No tanto o quantum, no tanto resultado do pensar, mas sim a origem, o retorno ao fundo.

    - Tcnica de discusso no mais disputatio >>>> pressuposio. Mas sim: sempre de novo a capoeira do pensar os fundamentos: a origem do pensar. P. ex. Locke > Descartes> Leibniz > Locke > Kant > Leibniz.

    5. A filosofia cria para si terminologia.

  • 8

    - Como a filosofia no mais mantida por um mundo extrafilosfico, ela deve ento no somente pensar por si, mas cuidar de todos os detalhes do seu mundo.

    - Da comea com autoreflexo, dizendo antes de tudo o que filosofia.

    - Cada filosofar deve determinar e fundar a prpria possibilidade de filosofar.

    - O objeto de cada filosofar a prpria possibilidade de filosofar.

    - Deve pois pensar tudo novo.

    - Na modernidade, cada qual comea radicalmente consigo mesmo.

    - Leibniz, Kant, Hegel, Husserl, Nietzsche, Heidegger, todos os post Descartes se compreendem como novo, incio, princpio da nova poca. Entra cada vez na histria, de tal sorte que inicia novo tempo, epocal, historial, kairtico e no cronolgico.

    - Deve reinterpretar os outros nova luz e se colocar nessa nova histria.

    - examina e conduz a sua prpria pressuposio: destruio.

    - Histria no exposio de diferentes opinies, culturas etc. mas sim histria dos problemas do ser: questo, cada vez diferentes possibilidades de interpretao do mundo, homem e Deus.

    - No h base comum imediata de discusso.

    - Cada qual possui a sua terminologia que deve ser compreendida cada vez no todo diferente.

    - Explica cada filosofia, mas no se deixa referir a outra filosofia.

    - Isolamento absoluto a cada mundo conceptual e terminolgico.

    - Categorias como essncia, substncia, ser, verdade, pensar, fundamento, razo, causa, matria, forma, esprito tm cada vez significao diferente.

    - No h introduo geral filosofia.

    6. Filosofia como uma atitude do esprito toda prpria.

    - Filosofia se atm a si mesma para si mesma. Possui por isso uma impostao toda prpria para com a sua prpria tarefa, irredutvel.

    - No ser e no processo se destaca a atitude do pensar e do processo de pensar do cotidiano.

    - Se torna realmente difcil.

    - Inacessvel a quem est de fora.

  • 9

    - Desnatural - Andar de cabea para baixo (Hegel).

    - Afirmaes fora do senso comum.

    - Tudo no fundo diferente.

    - Mundo sombra, iluso: o mesmo vale para o alm, a transcendncia.

    - chocante, especulativo-abstrata, subterrnea.

    - O seu trabalho no mais compreender e fundamentar o que a razo natural j sabe das coisas: desmascara, ironiza, interpreta totalmente diferente.

    7. Filosofia como mundividncia >>>> Ideologia.

    - Toda especial: eversio generalis (Descartes); reverso de todos os valores (Nietzsche).

    - Adquire carter confessional. Fanatizao, torna-se revolucionria.

    - Quer pois tudo transformar, no somente o social, o poltico etc., mas na totalidade.

    - Idealismizao. No necessariamente, mas h nela a tendncia.

    - Filosofia se transforma em crtica da sua prpria crtica: apatridade, inquietao, nenhuma utilidade para humanidade. Da tendncia de desaparecer, restando somente a sua caricatura: as ideologias.

    - Assim, se d o retraimento da filosofia.

    Como vimos no incio da apostila, a ontologia do sistema surge pelo esvaziamento da ontologia da substncia. Sistema indica uma forma ainda incompleta e no acabada da estrutura. Assim, na ontologia do sistema temos j o modo de ser da estrutura, mas no na sua total liberao, de tal sorte que no sistema, a estrutura ainda vem com as caractersticas da substncia, no na sua plenitude dinmica, mas na sua forma de fixidez esvaziada de contedo.

    Arquivo 2

    b) A mudana essencial de verdade e saber

    A primeira regra disse coisa decisiva sobre a nova cincia. Ela cincia da unidade. O saber definido como o que j carrega em si tudo e descansa na feliz posse de si mesmo. Com mais exatido: a feliz conscincia da autoposse a bona mens, esprito. Aquele saber que no veio a conscincia da sua unidade, vive na infelicidade com sigo mesmo. Descartes reconhece que o saber no deve ser compreendido a partir do ganho e do elaborar, j que todo o ganho do saber, seja ele por mais intensivo e abundante que possa ser, permanece questionvel sempre e por princpio. A distncia insupervel, quando ela determina a aproximao j desde comeo. To logo o saber compreendido a partir do

  • 10

    xito (Ausgriff)1, ele no mais pode encontrar a identidade consigo mesmo. A regula secunda agora d a primeira e a mais importante consequncia do princpio-mxima da unidade da cincia. Visto com exatido, ela contem a pea principal da teoria da bona mens. Ela constata que o esprito, que j a partir da natureza e sempre junto de si mesmo no encontra o seu progresso na aquisio, mas sim no esvaziamento de conhecimentos2.A primeira e a ltima tarefa do esprito no progresso da cincia, mas sim a regresso da cincia. Somente, porque essa lei paradoxal no era conhecida, a cincia entre os antigos no conheceu verdadeiro progresso. Limpar acmulo de sucatas do ente aparente ao mesmo tempo e de todo o surgir do um ente na claridade do saber seguro3.

    Arquivo 3

    c) A doutrina tomista da cognitio naturalis

    A objeo que Descartes faz contra a filosofia tradicional deveria estar claramente expressa nos seus escritos. O que ele no faz. Ali a objeo est formulada numa vaga generalidade.

    Se, porm, examinarmos a filosofia tomista que dominava na poca de Descartes, encontramos ali uma doutrina bem assinalada acerca das primeiras verdades (primae veritates ou tambm primeiros princpios) que poderia fazer eco ao que Descartes nas regulae expe como princpio da nova cincia universal.

    Nota do tradutor: como esse excurso, embora interessante para o estudo do pensamento de S. Toms no nos acrescenta nada de novo para a compreenso da maneira como Descartes expe nas regulae o modo de ser inteiramente novo da mathesis universalis, i. , da cincia universal, vamos pular esse excurso e continuar no pargrafo seguinte d) que leva o ttulo de: A Filosofia perspcua. Para quem quiser estudar em S. Tomas a doutrina da cognitio naturalis (cf. Toms de Aquino, De veritate, qu. 8, art. 15, c. art. etc.)

    d) A filosofia perspcua

    Descartes descobre todo um reino de evidncias, dadas de antemo, reino do modo de ser do esprito, da autopresena do esprito a partir de si, nele mesmo, sem nenhuma distncia de si. Descobre que na filosofia tradicional, essas evidncias que se tornavam presentes nas primeiras verdades (primae veritates) ou nos primeiros princpios, foram como que

    1 xito significa resultado de um empenho. Esse modo de ser do xito supe um esforo de ganho, de conquista de algo que est fora (Aus) do esforo, da captao (griff). Como est fora, como no imanente, no o tenho de antemo. No posso, pois, garantir o xito e s posso chegar a ele aproximadamente.

    2 A escrita em itlico do tradutor.

    3 Esse estado de coisa no foi visto p. ex. por Jaspers (Descartes e a Filosofia, 1937). Diz ele: No o objeto do conhecimento, mas o modo como o conhecimento adquirido, isto pelo qual a gente se deve esforar essencialmente. Segundo o que foi dito, o mtodo universal deve livrar-se de todo o contedo, e ento depois ele no o pode mais de novo readquirir (p. 43 e 46). Certamente, o mtodo universal (um recurso infeliz de interpretao) vazio de todo o contedo, se a gente entende por contedo o ente dado antes e de imediato (a entitas escolstica). Permanece, porm, alis impensado que para Descartes somente ali, nesse vazio que o ente aparece.

  • 11

    deixadas de lado, consideradas como sendo sem importncias e profundidades, devido a sua obviedade. Com outras palavras, Descartes descobre que os primeiros princpios no precisam ser descobertos, pois ali esto na plenitude da sua evidncia, no modo de ser que a medida da nova cincia. Ele, porm, ao mesmo tempo, observa que esses princpios aparentemente prontos a priori, essas verdades assim to abertas na sua evidncia e que aparecem estendidas diante dos nossos olhos, se deixam explicitar e desenvolver numa infinidade de consequncias desconhecidas e, somente assim, mostram seu pleno contedo da verdade. As verdades puras no so j dadas com os conceitos, com os quais as primeiras verdades so formuladas, mas esses conceitos contm uma riqueza inesgotvel, a qual, somente insinuada com a primeira enunciao da verdade, mas no vem luz e no se deixa de longe suspeitar da sua amplitude, profundidade e envergadura. P. ex., na enunciao o todo maior do que sua parte est contida, no somente a banalidade que todos entendem imediatamente, mas tambm uma teoria com consequncias dificilmente avaliveis na sua implicao, talvez o que ns hoje haveramos de chamar de teoria do conjunto (Mengenlehre)4.

    Os primeiros princpios no so somente condies da cincia e seus fundamentos, a partir dos quais a pesquisa progride, mas so eles mesmos objetos da cincia, so co-arrastados para dentro da pesquisa e, em cada passo que o conhecer pode dar, vm fala e tm a palavra. Eles formam qui o horizonte, dentro do qual os objetos da cincia esto, mas esse horizonte no fica sem ser discutido, ele cada vez de novo julgado na sua validade, no vigor da sua capacidade de mostrar, na sua funo de descobrir, e talvez a tarefa principal da pesquisa cientfica no seja receber dados mais prximos sobre isso e aquilo, mas examinar os fundamentos a partir dos quais isto ou aquilo pode se desvelar, e conduzi-los sua plena vastido5.

    4 Husserl iniciou a sua fenomenologia, intrigado com a teoria de conjunto (Nota do tradutor).

    5 (Nota do tradutor) Nas explicaes anteriores, Rombach tenta de todos os modos dizer em que consiste a descoberta de Descartes. Trata-se da autopresena do esprito a partir dele mesmo a ele mesmo: a evidncia. Para Rombach, o que Descartes descobriu foi o que Heidegger no Ser e Tempo expe ao falar da compreenso preliminar do fenmeno, phainmenon, phanesthai etc. Assim sendo a nova cincia, a mathesis universalis fenomenologia. E fenomenologia, enquanto ontologia (em que consiste o ser do ente? = a evidncia, a automostrao, a partir de si e em si mesmo = esprito, bona mens, cogitans-sum), a nova cincia que reconduz tudo que e no evidncia originria. Esta, porm, no um a priori fixo como uma determinada medida padro qual devem se adequar todas as outras medidas a modo de aproximao, graduao etc. Ela , antes, um reino, uma vastido, imensido, profundidade e vigncia do abismo da possibilidade de ser, cujo vigor, cuja vitalidade sempre de novo e sempre novo e-vidncia, Sendo assim, evidncia no medida padro, uma norma, mas princpio, i. , algo como frescor do salto de uma fonte, que como salto no algo existente em si, mas presena onipresente em todas as modalidades dos entes, sejam como forem os entes, prprios ou imprprios, autnticos ou decadentes. como a pura afinao da sonoridade em todos os tons, mesmo nos tons desafinados. A descoberta de Descartes no que ele tenha visto um reino, um mundo parte de puras verdades, puros princpios, cujo modo de ser era evidncia pura, mas sim que toda a verdade, todo ente, tudo que e no , deve referir a sua entidade a esse modo de ser da evidncia. Com outras palavras, no h evidncia excelente como medida-padro, mas a evidncia (ou esprito = sopro vital) cada vez a seu modo est presente como este ente, aquele ente, esta verdade, aquela verdade, mas no enquanto este ente, aquela verdade, mas como que a tonalidade que faz entoar todas as diferenas numa nica afinao universal, possibilitando a partir da afinao da tonalidade, ser. Na tradio, o que se consideravam nas cincias como primeiros princpios eram com que indicadores dessa realidade de fundo universal (evidncia), mas eles mesmos deveriam ser pesquisados como indicadores desse fundo

  • 12

    Cincia, pesquisa, conhecimento exato tornaram-se somente possveis no momento em que se abandonou a doutrina fixa do a priori simplesmente dado das primeiras verdades6, e se encontrou um novo modo da verdade e do esprito. A doutrina dos primeiros princpios e da cognitio naturalis7 encobriu um grande reino de pesquisa. Somente quando Descartes percebeu que ela exercia a funo de uma tranca e do fechamento e num ousado empreendimento a espedaou, atravessando-a, se tornou possvel que algo como a nova cincia, sim a cincia como tal, no sentido do novo pensar, se explicitasse.

    Certamente, se algo assim como o que acima estamos mencionando vem luz, necessrio levar em conta que no tarefa e sentido do pensar medieval impulsionar cincia ou mesmo trabalhar para elaborao de algo como preparao para a cincia. O progresso humano no est preso ao fenmeno da cincia. J de modo algum a substncia humana, moralidade, liberdade e historicidade esto atadas ao pensar cientfico. J que o pensar medieval no est, nem pode ser comprometido com cincia8, o efeito proibitivo da doutrina da cognitio naturalis no pode ser atribudo a ningum como culpa. Ns, hodiernos, podemos constatar tudo isso somente como um momento essencial, inevitvel e necessrio da estrutura espiritual toda prpria, que ns hoje podemos esboar como pensamento medieval. Com isso, a gente o julga e avalia de fora e dentro de um crculo de pensamento alheio a ele, o que equivale a dizer que a gente no o avalia nem o julga e de modo algum atinge a sua essncia. Isso devemos ter sempre presente, mesmo quando ns, hodiernos, afirmamos a importncia extraordinria da cincia moderna como fato historial.

    A nova cincia de Descartes se distingue de todos os outros empenhos e desempenhos de busca precisamente nisso que ele a reduz, ou melhor, reconduz o conhecer ao claro e fcil9 e assim delimita10 o crculo dos objetos ao autocompreensvel ou obviedade, ou melhor,

    ontolgico de todo e qualquer saber, e somente na medida em que essa pesquisa esotrica (virada para dentro de si mesma) se aclarava, uma cincia se tornava cincia no sentido prprio. Dito de outro modo, o inter-esse da nova cincia no estava tanto em adquirir e acumular novos conhecimentos, mas sim em efetuar sempre de novo e de modo novo a sondagem dessa reduo ao fundo de todo ente e de todo saber para cada vez mais limpidamente estar na disposio da espera do inesperado: Da-sein.

    6 (Nota do tradutor): das primeiras verdades como fundamento banal e bvio do saber j fixado e padronizado, buscando sobre essas verdades primeiras somente acumular cada vez mais saber provvel, difcil e de importncia, sem perceber que era ali na obviedade, na autocompreensibilidade do evideri, do phainesthai, que estava o grande segredo do saber verdadeiro.

    7 (Nota do tradutor): A doutrina dos primeiros princpios e da cognitio naturalis se refere filosofia tomista reinante no tempo de Descartes, onde se reconhecia nos primeiros princpios e na cognitio naturalis o modo de ser da evidncia, da qual fala Descartes. S que, devido obviedade, facilidade da compreenso, no se percebeu que ali estava uma jazida imensa de novo modo de verdade, ser e saber, o qual Descartes descobriu como o reino do novo saber, da Mathesis universalis.

    8 (Nota do tradutor): o grande compromisso do pensamento medieval a f.

    9 (Nota do tradutor = Nt): em alemo a palavra fcil leicht, que ao mesmo tempo significa leve.

    10 (Nota do tradutor): Historicamente pode Descartes t-la delimitado, mas ns hoje podemos interpretar e ampliar essa limitao como uma reduo no sentido fenomenolgico de reconduo.

  • 13

    evidncia11. A partir daqui, para Descartes, torna se tambm compreensvel por que at ento somente em aritmtica e geometria pde ser realizado algo de vlido, algo semelhante cincia. Essas cincias (aritmtica e geometria) possuem, alis, um objeto to puro e simples, que elas nada mais pressupem do que a si mesmas, e por isso no podem ser dubitveis. Essas cincias so as mais fceis e transparentes (maxime faciles et perspicuae) de todas, pois elas possuem tal objeto como ns o exigimos. Pois em referncia a este objeto deixando de lado casos de erros que vem da falta de ateno excludo o erro para o homem12.

    O que Descartes exige no somente uma ou outra disciplina em modo totalmente transparente e perspcuo, mas sim uma filosofia, i., uma cincia total, que do incio at o fim sem interrupo e enfraquecimento conserva a absoluta transparncia e autocompreensibilidade ou evidncia. Descartes exige, portanto, a Filosofia perspcua, que em todas as suas partes e para todas as tarefas deve entrar no lugar da Filosofia de at agora, que era apenas filosofia de conjeturas13. Pertence, por isso, s supremas leis, que a nova cincia, a Filosofia, se delimite somente ao fcil e simples e coloque de lado todos os contedos que de algum modo aparecem dbios. Na cincia cartesiana, portanto, muda no

    11 (Nt): Aqui, se permanecermos na teoria do conhecimento, nos surge o problema: muito bem, tenho um reino de evidncia, mas to delimitado. Como sair desse reino do a priori autoevidente (sujeito) para alcanar o a posteriori (cf. o mesmo problema em Kant, quando o interpretamos como sendo ele o teortico da teoria do conhecimento)? Na manualstica: Descartes recorre a Deus, harmonia preestabelecida (Malebranche), estabelece o dualismo: res cogitans e res extensa etc. Em Descartes trata-se na sua nova cincia, no de teoria de conhecimento, mas sim de uma nova ontologia. Por isso, a questo de como esse reino da evidncia se relaciona com o que no evidente deve ser investigada para dentro da questo de como o ontolgico se relaciona com o cada vez ntico. Esse relacionamento no como o prprio Descartes descobriu o de paulatina aproximao a modo da veritas adaequatio rei et intellectus (= teoria de conhecimento). Sobre isso, mais tarde. Em todas essas ambiguidades sempre de novo recordar o que Rombach fala da manobra de esconder a verdade, deixando-a no lusco fusco do ambguo, compreensvel somente a seus mais familiarizados com o seu pensamento.

    12 Ex quibus evidenter colligitur, quare arithmetica et geometria caeteris disciplinis longe certiores exsistant; quia scilicet hae solae circa objectum ita purum et simples versantur, ut nihil plane supponant, quod experientia reddiderit incertum... Sunt igitur omnium maxime faciles et perspicuae, habentque objectum quae requirimus, cum in illis citra inadvertentiam falli vix humanum videantur (Regulae II, AT X, p. 365): (De tudo isso que dissemos evidentemente se recolhe, porque aritmtica e geometria em referncia a outras disciplinas so de longe mais certas, porque, a saber, s elas se ocupam acerca de objeto to puro e simples, de tal modo que nada de modo algum supem que a experincia pudesse torn-lo incerto... De todas as outras, portanto, elas so as mais fceis e perspcuas, e elas tm o objeto que requeremos, porque nelas, fora do caso de inadvertncia, errar no parece ser humano).

    13 O conceito perspicuus volta to frequentemente nas Regulae que podemos chamar a nova cincia de filosofia perspcua, considerando isso com boa razo como a inteno dessa escrita de Descartes. Perspicuus vem da palavra perspicillum, que no tempo de Gallileu indicava o telescpio. Alis, aqui pode ser que haja influncia de Paracelsus, no mencionada por Descartes. pena que Estudo e Pesquisa sobre Descartes negligenciam essa suposta ligao de Descartes com Paracelsus. De Paracelsus deriva a idia de uma philosophia sagax (uma sagaz filosofia), de uma cincia que tudo sabe e tudo v transparente. Diz ele, pois na sua obra denominada Philosophia sagax, 1. captulo: Denn nichts ist so heimlich / das nicht von undristen der tieff erffnet werd und erfunden / zu seiner Zeit einem jeglichen darzu praedestiniert (traduzido essa citao feito por Rombach na nota de cima de modo no muito seguro, teramos: Pois, nada to profundo em si (heimlich = oculto, misterioso, heim = em casa) / que no se torne desde o mais nfimo da profundidade aberto e encontrado / predestinado para cada um no seu tempo (Ph. Sag. Cap. 1).

  • 14

    somente o objeto, mas tambm o modo da verdade e com este o sujeito da cincia. Este no mais o filsofo, no sentido tradicional, mas o pesquisador, que aborda as tarefas com uma atitude totalmente diferente e expectativa, e sabe resolv-las tambm num novo modo imprevisvel. Na cincia nova muda tudo. Ali, no h nada que pudesse permanecer o mesmo. Somente assim, para Descartes, parece ser possvel avanar para o saber absoluto, que tudo sabe e tudo sabe totalmente.

    A filosofia perspcua caracterizada de modo o mais distinto pela transformao da verdade em evidncia. Verdade no mais uma relao de saber e coisa, no mais adaptao do esprito realidade, medio, mensurao. No mais orientar-se seguindo a coisa, no mais corretidade, rectitudo, que encontra o seu objeto num espao da proximidade e distncia, numa abertura comum. Verdade no a abertura desse reino aberto, no qual saber e conhecimento se relacionam mutuamente e podem se comparar mutuamente um com o outro, verdade no tem o carter do des-ocultamento, da altheia. Cada coisa agora a abertura de si mesma. Ela, a coisa, no recua para dentro de um horizonte j preparado e dado juntamente com o prprio saber. Ela no referida a isso que est aberto em primeiros princpios fixos, como possvel de ser pensado e conhecvel, mas ela traz a sua verdade consigo. Ela de tal modo sua prpria aberta, que o homem somente em a vendo na verdade. O homem no a encontra, mas a deixa eclodir (aufgehen)14 em si (nele) como o horizonte do seu (dela) prprio poder aparecer. A coisa no est assim no esprito, como se ela ali tivesse sido colocada como algo estranho, como o ovo do pssaro chopim do conhecer. Ela no esprito como esse esprito ele prprio. Ela o eclodir e o poder compreender. Ela a disposio, o estar de prontido para ela mesma e a plenitude dessa disposio atravs da sua dadidade (Gegebenheit). A coisa que aparece em tal verdade se aclara, no a partir dos conceitos fundamentais dados previamente, mas ela sempre compreensvel atravs de si mesma, torna-se autocompreensvel, bvia, evidente. Quem j no sabe a coisa em questo, jamais a pode saber. Por isso, essa maneira da verdade pode ser entendida ao mesmo tempo como um ocultamento ou uma ocultao, e com esse termo se a atinge com maior exatido do que com o termo desocultamento (altheia). A verdade que a coisa ela mesma, e a coisa que a verdade ela mesma, trancam o acesso de modo o mais decisivo possvel a todos que primeiramente querem se aproximar dela. Ela est ali somente ao esprito, no qual ela j . Ela ou dada como o todo ou permanece para sempre oculta15.

    14 (Nt): verbo usado por Rombach aufgehen. Auf indica a dinmica do abrir-se, erguer-se, surgir, o sursum do sursum corda (= corao ao alto! do prefcio da missa); gehen ir, mover-se.

    15 (Nt): Todo esse pargrafo, onde Rombach em contraposio compreenso da verdade como altheia fala da evidncia etc., para quem de alguma forma conhece um pouco a filosofia de Heidegger, soa como uma espcie de crtica a Heidegger. Esse modo de se contrapor a tpico do modo de expor de Rombach. Principalmente em referncia a Heidegger, do qual Rombach se sabe inteiramente devedor de toda a sua nova fenomenologia, a interpretao que Rombach faz de Heidegger no faz jus ao que Heidegger diz. Em Rombach se d quase sempre uma interpretao de Heidegger que parece subestimar a envergadura do pensamento de Heidegger. Heidegger de Rombach uma espcie de produto da interpretao do prprio Rombach que usa o seu Heidegger como tabela, num chute ao gol. Heidegger defasado na interpretao serve para o prprio Rombach em contraposio dizer de modo melhorado e mais aperfeioado o que Heidegger disse de modo apoucado e at equivocado. Por isso, para o leitor de Rombach que conhece esse seu modo de expor seus pensamentos, no que ele prope como sua descoberta, est dito de modo diferente e muitas vezes de modo original e surpreendente, o que Heidegger no seu modo sbrio, ponderado e cuidadoso de dizer

  • 15

    Isto se mostre, talvez, de modo mais simples num exemplo um tanto vago. Quando ns achamos algo belo, com isso no pensamos que uma coisa ocupa um lugar dentro de um espao comum fixado de beleza, mas com isso no fundo queremos dizer que esta coisa pode e deve ser vista somente a partir de si mesma e s para si mesma. O belo no propriamente belo em comparao, mas translcido a partir da sua incomparabilidade e nos encanta nessa incomparabilidade. Por isso uma esttica que quer desenvolver um conceito geral e condies formais de beleza como tal, e nos quer dar regras com as quais pudssemos investigar casos particulares da beleza, est de antemo no caminho errado. No h nenhuma regra da beleza, h somente ela mesma, como ela cada vez aparece para e por si. E porque no h princpios gerais e categorias da beleza, no podemos tambm nem persuadir nem convencer a algum da beleza de uma determinada coisa, a qual ele no pode ver como bela, pois aqui falta o princpio da linguagem: a categoria, a generalidade, o horizonte, o desvelamento, o espao comum do dizer e do ver, o cho, sobre o qual sujeito e objeto possam se falar ou se ver mutuamente um do outro e um com outro em proximidade e distncia.

    Num modo semelhante, muitos outros fenmenos da nossa experincia da vida contm a evidncia como uma forma prpria e incomparvel da verdade: como p.ex. quando um homem se dedica a partir de uma situao de fundo de uma convico a uma tarefa, cuja importncia no est j por si mo, mas somente na sua plena consumao deixa ver tambm a sua importncia. A grande obra histrica, a grande ao, a ao que marca a virada da histria, tem a sua verdade em si mesma e no pode ser de antemo presumida no sentido de uma necessidade geral. Que ela seja necessria o que resulta somente da sequncia, j que ela que por primeiro extrai e traz fala o horizonte da sua prpria compreensibilidade e traz a medida, na qual ela quer ser medida. Grandeza histrica grandeza que pe a sua prpria unidade da medida. Assim, o ser e o agir histrico est debaixo da lei da verdade como evidncia e no debaixo da lei da verdade como rectitudo16, como correo ou adequao17.

    Evidncia a mais alta aberta18, i., ilimitada nitidez que tudo mostra e ao mesmo tempo a mais profunda ocultao e inacessibilidade, j que ela em nenhum momento de si mesma se abre de fora, ou se deixa mostrar para fora na sua importncia, ou nem sequer apenas na facticidade.

    Com a ideia da filosofia perspcua, Descartes coloca o ser-esprito do homem sobre um novo fundamento e tenta fazer com que este modo do experienciar e da verdade seja, no aprofundou com maior preciso e profundidade. Alis, aqui no fundo no se trata nem de Heidegger nem de Rombach, trata-se de deixar-se tocar pelo pensamento que tocou tanto a Heidegger como Rombach.

    16 (Nt): a palavra alem Richtigkeit. Richtig significa correto, certo. Vem do verbo richten

    17 (Nt); p. ex. nesse pargrafo sobre a evidncia da grandeza histrica est dito de modo muito prprio, o que na fenomenologia de Heidegger se diz da verdade como altheia. Rombach, bem lido, nos faz avivar e tornar concretos os textos de Heidegger, o que muitas vezes na nossa leitura descuidada os transformamos numa representao formal e abstrata.

    18 (Nt): a palavra Offenbarkeit = offen = aberto; bar = possvel, mas no no sentido de ainda no , mas est aberta a possibilidade, mas sim no sentido de: est ali presente, cheio de potncia (dynamis), de disposio.

  • 16

    somente a situao de fundo, mas tambm a nica determinao dominante do conhecer, sim ainda mais do ser do homem. A grandeza da significao de Descartes deve ser medida a partir disso que acabamos de observar. Assim, o que perfaz a sua importncia no uma determinada teoria particular, nem antes de tudo aquelas frmulas, a modo de griff, que a gente pinou, destacando-as de Meditaes ou de Princpios, as quais to facilmente se deixam transmitir em manuais. Aquelas frmulas j so sedimentaes fixadas do deslize do nvel, ao qual a filosofia j h muito tempo antes tinha chegado. A verdadeira significao de Descartes reside na translocao do esprito a um novo horizonte, que nem sequer pode ser expressa de modo geral, nem ser dita em determinadas demonstraes. Um horizonte, cuja essncia est justamente na sua pura dadidade de si mesmo (Selbstgegebenheit), que jamais visvel para quem no foi enaltecido pelo toque da prpria nova verdade e se abriu.

    Naturalmente, com essa descoberta no se transformou a totalidade de todo o saber, pesquisar, conhecer e pensar; nem sequer a radical e-verso que Descartes exige nessa sua obra de juventude (Regulae), aconteceu no prprio trabalho de Descartes. Lento e arrastado o andar dos eventos. Somente atravs de sculos purifica-se essa ideia e mostra a sua total propriedade em concreto. necessrio mais do que uma gerao de pensadores, para avaliar a envergadura dessa ideia e se adentrar nela, em caminhando e fazer visveis as suas consequncias, embora no plenamente, mas apenas em insinuaes e suspeitas. At hoje, a filosofia ainda est bem distante de intuir todo o alcance da filosofia perspcua e todo o seu circuito, embora a filosofia hoje j se prontifique a romper o cerco que rodeia a Filosofia perspcua e colocar-se sobre um outro cho19. Descartes mais do que ele mesmo. Ele ainda no alcanou de todo seu prprio pensamento que ele numa forma decisiva desenvolveu na sua primeira obra Regulae ad directionem ingenii. Ele mesmo fica atrs do seu pensamento. Ele apenas lhe rasga uma fenda; e com isso abre um novo patamar, uma nova plancie do filosofar. Um novo patamar, sobre o qual pode ser dito muito e tanto que ele se diferencia totalmente da tradio clssica at em seus mais fundamentos bsicos.

    Qui na velha tradio, em parte, as puras cogitationes j estivessem presentes. Mas elas no eram reconhecidas no seu prprio, na sua essncia. Elas eram como incios da adequao, como primeiras verdades e ainda no valiam como evidncias. Como evidncias, elas so a totalidade do saber ele mesmo. Por isso, Descartes deve mostrar que elas no so qui fundamentos nem condio para esclarecimento do outro, mas se aclaram a si mesmas. Tudo que a elas segue no pode lhes ser estranho, alieno, mas deve se tornar claro e ntido como autoaclaramento, como autoiluminao.

    O reconhecer das primeiras20 verdades atravs de si mesmas, no qual (= o reconhecer) elas so conduzidas ao seu pleno contedo, se chama em Descartes Deduo21. Deduo o

    19 (Nt): talvez Husserl, Heidegger, Rombach e outros pensadores da atual atitude fenomenolgica, seja qual for a rea do seu trabalho (arte, cincia, religio etc.)?

    20 (Nt): primeiras aqui no significa portanto primeiros de toda uma srie de passos, mas o modo de ser da origem, do toque, do salto que deve estar presente em todos os momentos do todo, que lanado por esse salto.

  • 17

    modo de desenvolvimento da cincia. Ela diz que o puro pensar permanece na sua evidncia e a plenitude de si mesma. Deduo se traduz mal com ilao. Deduo antes muito mais Explicao. Isto quer dizer: no segue outra coisa outra coisa, mas segue o mesmo em outro modo. Deduo no conduo de diferentes contedos do saber ao todo num conjunto pstumo, mas transformao, a partir da disperso, de volta, aos elementos particulares, para dentro da unidade e simplicidade da sua vigncia ou essncia. Deduo o modo de movimento do saber que junto de si mesmo e que ciente de si mesmo. Em diferena experincia.

    Estas so ambas as formas fundamentais do saber, experincia e deduo. Elas perfazem o conhecer no todo, onde a experincia, alis, no faz jus essncia do saber ele mesmo, pois, propriamente ela se baseia num engano do esprito sobre si mesmo. A gente deve observar, assim diz Descartes, que as experincias iludem muitssimas vezes; a deduo ou a pura explicao, no entanto, pode qui no suceder, se nem sequer entra no crculo da

    21 (Nt): Portanto, deduo e induo como ns usualmente entendemos e est em voga nas cincias no podem ser usados para entender o que Descartes quer dizer nas Regulae. Aqui deve acontecer o contrrio, a saber, o que usualmente tanto no nosso uso comum cotidiano como nas cincias entendemos por deduo e induo, deve ser iluminado luz do que Descartes nas Regulae entende por deduo e intuio. Portanto, em Descartes, deduo nada tem a ver com ilao, do conceito geral num movimento classificatrio descendente do mais para o menos geral at chegar ao indivduo, e nessa classificao, ir enfileirando debaixo de cada um dos graus desses nveis de classificao, os casos especiais, e casos individuais ou particulares que caem sob a extenso daqueles conceitos gerais; nada tem a ver com induo, i., conduzir os casos individuais, comparando-os e tirando da comparao traos comuns como padro de classificao. Em todo caso, nesse modo usual de entender deduo e induo, cada nvel do seu movimento cria padro de classificao fixada, e est no modo de ser da adaequatio, entendendo o padro como medida a que os indivduos devem se adequar, em aproximao. (Aqui entram pressuposies como o esquema do Sujeito e Objeto, da teoria do conhecimento, teoria e sua aplicao etc. etc.).

    No caso de evidncia, na sua expanso e recolhimento, ou na sua explicao e implicao de Descartes das Regulae a situao bem diferente. E-vidncia, autoluzir, autopresena, autocompreenso no nem gnero, nem espcie, no nenhum padro, classificao ou coisas similares. o modo de ser cada vez ela mesma na transparncia de si, afinao no ser, limpidez ela mesma; a claridade e a nitidez de no ser outro a no ser o vislumbre, a maravilha de ser. Por isso, a evidncia no evidncia de um ente, mas ser de tudo quanto em sendo; ela jamais ente, a saber, isto ou aquilo. Mas tudo, a saber, isto, aquilo, enquanto : ser do ente, ser no ente, afinao, presente de modo cada vez seu e diferente, em todos os tons, nos afinados e nos desafinados. decisivo para a boa compreenso do que Descartes nos prope como filosofia perspcua, entender e guardar com preciso o que clareza ou no caso de som, afinao. Clareza no cor, afinao no som. Para entender isso com maior preciso, cf. a teoria das cores em Paul Klee. A seguir, apresentamos breve resumidamente o piv da questo. Usualmente consideramos a claridade e a obscuridade como cor branca e preta, ao lado de outras cores que constituem mil e mil variantes e nuances das cores do arco-ris. Para Klee, claro e obscuro no so outra coisa do que limpidez da transluminicncia. De tal sorte que no se pode dizer que num quadro uma parte mais clara e outra mais escura, pois em cada momento do quadro, em cada pigmento das cores e de suas misturas e de seus sombreamentos est a trnasluminicncia na sua limpidez. Assim, no campo aberto de trigo ondulante, brilhando no amarelo de ouro do sol de meio-dia na Provence de van Gogh, est presente a transluminicncia da claridade pura do trigal; assim como num quadro de Turner, que pinta a paisagem do cais londrino, cheia de nvoas, neblinas e fumaas, toda encoberta e escura, est presente a transluminicncia da claridade pura da obscuridade do lusco-fusco do anoitecer ou do amanhecer da paisagem porturia.

  • 18

    nossa viso, ela, porm jamais e isso, mesmo em cabeas, as mais tolas, pode ser mal conduzida ou mudada por erro22.

    H pois duas formas fundamentais principialmente diferentes do esprito. Pensar claro, experincia, duvidosa; pensar imediato, experincia, mediada; pensar dado de todo, experincia d somente em sombreamento gradual; pensar evidente, experincia apenas conjetural; pensar fcil e se compreende por si mesmo, saber da experincia de difcil acesso e dependente do estranho. Estas duas formas de esprito possuem sua diferena, no porque estejam dirigidas a diferentes objetos. Assim foi interpretada a diferena na filosofia escolstica. Pensar e experincia so duas formas do mesmo esprito em vista ao mesmo objeto; h, pois, somente o um ente, o mundo. Apenas, entretanto, a experincia interpreta o mundo como o estranho, o outro, como pluralidade em coisas, que esto estendidas diante de ns e nos podem encontrar somente no estar em oposio contra, na objetividade e na alteridade. Aqui todo o conhecer aproximao e comparao. Em diferena experincia, o pensar interpreta o ente como o uno, atravs de cuja explicao o esprito vem propriamente autoposse de si mesmo.

    A diferena entre ambas as formas de conhecimento uma diferena da estrutura de conscincias23. Alis, h tambm no prprio Descartes a opinio de que a diferena de pensar e experincia se refere diferena de coisas, a saber, do espiritual de um lado e do outro do sensvel, do material, da coisa extensa. Mas nesse escorregar da diferena noolgica para a diferena ntica est uma queda dessa filosofia, sobre a qual devemos mais tarde falar prpria e detalhadamente. No fundo, ele pensa, ao menos nas Regulae, a diferena como tal do modo de ser da cincia e do comportamento da conscincia. Isso aparece com suficiente nitidez na formulao da terceira regra: Em vista dos objetos da pesquisa no se deve pesquisar, o que outros pensam deles ou o que a gente mesma conjetura sobre eles, mas sempre somente isso que ns intumos clara e evidentemente ou isso que podemos deduzir certa e seguramente; de outro modo e outra maneira, a cincia no pode ser adquirida24.

    22 Experientias rerum saepe esse fallaces, deductionem vero, sive illationem pura unius ab altero, posse quidem omitti, si non videatur, sed nunquam male fieri ab intellectu vel minimum rationali (Reg. II, AT X, p. 365).

    23 (Nt): Rombach usa a palavra conscincia, em alemo Bewusstsein, num sentido bem lato do saber (Wissen), sabido (Bewusst), embora ele tenda a entender Bewusstsein de modo ambguo no sentido da conscincia, no sentido mais estrito indicativo do modo de ser expresso no esquema sujeito objeto, portanto como o modo de ser da teoria do conhecimento, e se entendermos o ser da teoria do conhecimento, ento como o ontolgico da subjetividade. Nesse caso, ento deveramos dizer: aqui no se trata de diferena da estrutura da conscincia, mas sim diferena existente no modo de ser da conscincia e a prpria coisa ela mesma. Nesse sentido, enquanto houver ainda diferena entre o pensar e experincia, ainda no entendemos o pensar como evidncia de modo radical. Pois o modo de ser da experincia, contra-posto evidncia ou ao pensar, deve ser por sua vez transformado em uma das modalidades da deduo.

    24 Circa objecta proposita, non quid alij senserint, vel quid ipsi suspicemur, se quid clara et evidenter possimus intueri vel certo deducere, quaerendum est; non aliter enim scientia acquiritur (Reg. III, AT X, p. 366).

  • 19

    , portanto, um e o mesmo objeto, que no modo de conjetura, i., pelo caminho da experincia, ou no modo do pensar, i., pelo caminho da intuio e da deduo pode ser intencionado. De modo semelhante, encontramos uma declarao de Descartes sobre isso de que a gente no se torna matemtico pelo fato de se captar as provas por meio da memria, mas somente pelo fato de a gente as compreender pelo esprito (ingenio)25. A memria pertence experincia, o esprito deduo. E assim uma e a mesma coisa o que ns captamos em dois modos fundamentais.

    A filosofia perspcua aquela cincia que se ocupa com o fcil. Mas o que significa aqui fcil?26 Que essa no nenhuma pergunta fcil vemos pelas seguintes observaes de Descartes. A gente no se vira j e sempre ao fcil e ao perspicaz porque muito mais fcil (loge facilius est) intrigar-se e implicar, suspeitando algo numa pergunta qualquer (aliquid suspicari), do que em uma pergunta por mais fcil que seja (in uma quantumvis facili) adentrar e penetrar at verdade ela mesma (ad ipsammet veritatem pervenire)27.

    Duas vezes fala Descartes do fcil (facilius e facili), e qui em diferentes sentidos, justamente opostos. O que aqui a diferena na facilidade, e como a gente deve esclarecer, que a filosofia perspcua, que, pois, devido a sua facilidade deveria ser o que h de o mais prximo de ns mesmos, foi at agora passada por cima na histria da humanidade e encoberta e se necessitou um difcil e rduo trabalho de des-cobrimento?

    A dialtica do fcil e difcil surge disso que o puro esprito, i., o saber como tal, em si duplicado e no qui apenas simples. O puro esprito uma vez o puro saber, assentado solto e sereno, na autoposse de si mesmo. Por outro lado , porm, tambm a doao do saber, a sua difuso, para dentro das com-sequncias do seu desdobramento e da sua riqueza interna. Seguindo esse duplo movimento simultneo, a deductio, que foi definida como o movimento fundamental do pensar humano, se partilha entrando para dentro da ambiguidade, da duplicidade de intuitus e deductio, em acepo especial.

    Sob o termo intuitus, Descartes entende: no a crena fugaz dos sentidos nem o ajuizamento enganoso mal composto pela fora imaginativa, mas o conceber (Begreifen) to fcil e distinto do puro e atento esprito (sed mentis purae et attentae tam facilem distinctum que conceptum), de que sobre isto que ns intumos28 (intelligimus), no permanece nenhuma dvida; ou dito de outro modo, o intuitus o conceber (Begreifen) indubitvel do puro e atento esprito que nasce totalmente s da luz do entendimento (qui sola rationis luce nascitur)29.

    25 AT X, p. 367.

    26 (Nt): recordemos o que j foi dito numa outra nota que leicht pode significar tambm leve. Quem tem, em vez de mo, pata de elefante, como difcil segurar uma pena flutuante...

    27 AT X, p. 370.

    28 (Nt): em alemo einsehen.

    29 AT X, p. 368.

  • 20

    Intuitus, portanto, aquela presena do saber, na qual a verdade do sabido vista ao mesmo tempo com este. Intuio o esprito que se possui a si mesmo, enquanto a si desvela esta posse de si mesmo e o expe na sua estruturao. Mas no tudo lhe dado assim. Somente aquelas verdades que no pressupem trabalho subsequente que tm a dadidade (Gegebenheit) intuitiva. Assim, cada qual pode intuir com o seu esprito que ele existe (se existere), que ele pensa (se cogitare), que o tringulo formado somente por trs linhas, que a esfera tem somente uma nica superfcie. Essas enunciaes so muito mais numerosas do que a maioria das pessoas supem, pois elas consideram ser abaixo das suas dignidades con-verter o esprito s coisas to fceis30.

    Vale observar aqui que a primeira vez que surge o pensamento da autocerteza (Selbstgerwissheit). A existncia do pensar , para ele mesmo, intuitivamente certa, elevada acima de toda a dvida e transparente, sem nenhuma explicao. Esta autocerteza est como uma ideia originria (Uridee) no mesmo degrau das intuies geomtricas de que o tringulo necessita somente de trs linhas, de que a esfera possui somente uma nica superfcie etc. A autocerteza no ocupa nenhuma posio especial, mas pertence ao estado fundamental de todas as intuies, que perfazem uma unidade e uma conjuntura.

    O que agora a deduo no sentido estrito? Por deduo no sentido estrito ns entendemos tudo isso que concludo necessariamente de quaisquer outras coisas conhecidas com certeza31. A deduo parte da intuio e a conduz para dentro de suas consequncias atravs de um movimento do esprito contnuo e em nenhum lugar interrompido, que intui todo o particular de modo plenamente claro32. A deduo emana da inteno originria (Urintention) e desvela suas particularidades, de tal modo que estas se tornem no mesmo modo, claras e ntidas, como no da ideia originria ela mesma. Mas a conjuno no irrompe de uma vez, para dentro de uma nica intuio do todo, mas est concatenada somente por meio da forma exterior do um aps o outro do desenvolvimento necessrio para a unidade. Descartes diz: que a verdade e certeza na deduo se do de algum modo atravs da memria, j que o olhar total de uma continuidade clara no pode ser impostado no enfoque simultneo total devido limitao do esprito humano33.

    Essa ambiguidade do novo conceito da verdade corresponde com preciso ambiguidade do novo conceito de esprito. Assim como o novo conceito de esprito se expe na estruturao em intuio imediata e em deduo mediadora, assim tambm o novo conceito de verdade se expe na estruturao em evidncia e certitudo. Mas essa duplicidade no afeta a limpidez. Tambm deduo e certitudo so separadas atravs de um abismo e atravs de uma diferena essencial da probabilidade do apenas saber da experincia.

    30 AT X, p.368.

    31 Ex quibusdam aliis certo cognitis necessrio concluditur (9AT X, p. 369).

    32 Per continuum et nullibi interruptum cogitationis motum singula perspicue intuentis. Op. cit.

    33 Quia ad hanc non necessaria est praesens evidentia, qualis ad intuitum, sed potius a memria suam certitudinem quodammodo mutuatur (AT X, p. 370).

  • 21

    Deduo e intuio so, segundo o ranking, iguais, embora de maneira diferente34. Estes dois caminhos so os caminhos absolutamente seguros da cincia e outros caminhos no devem ser admitidos da parte do esprito35.

    A distino de evidncia e certitudo, que diferencia a totalidade do reino da nova verdade e conduz a filosofia perspcua a uma reflexo metdica importante, de grande e decisiva significao para a origem da cincia. Podemos ilustrar essa importncia da seguinte maneira: consideremos as verdades intuitivas como algo semelhante s primeiras verdades da filosofia escolstica e ento captemos toda a extenso e toda envergadura das verdades dedutivas, que as intuitivas desenrolam na sua sequncia, como o que foi descoberto por Descartes. Ento poderamos dizer que Descartes abre o gigantesco reino do meio entre a intuio e a empiria, entre o conhecer da razo e o da experincia dos sentidos e o dispe como o campo prprio da cincia. O reino do meio ou no foi visto na antiga doutrina de conhecimento ou muito subestimado na sua extenso e importncia. Somente agora se abre uma triplicidade do conhecer, e qui assim de tal modo que o campo do meio no s liga os outros dois, mas os subsume de certo modo, e a partir de si torna visvel a plena estrutura e toda a essencialidade do esprito. Tal interpretao da descoberta cartesiana no falsa; sim, ela possui a funo de mostrar e abrir a teoria de 3 ordenaes que ns haveremos de conhecer mais tarde. Mas essa interpretao no atinge com preciso a prpria inteno de Descartes que est dirigida duplicidade do esprito e todo o resto procura resolver atravs da diferenciao interna dessa polaridade36.

    Na perspectiva histrica, uma das perguntas que Descartes deve ter colocado : por que essa cincia, que se estende como imediatamente perspicaz diante dos olhos do esprito, permaneceu encoberta ao homem? Num trecho bem assinalado, Descartes suspeita de que a sua cincia tenha sido j sempre revelada aos espritos humanos, ao menos aos mais destacados entre eles, e de que esses, no entanto, a tenham de propsito ocultado, a fim de a proteger diante de manejo intil ou para no deixar aparecer os resultados mais admirveis, aos quais eles tinham chegado. Vale, diante da multido, como genialidade ter chegado a verdades absolutas ao mesmo tempo a partir do nada ou do cu claro da pura inspirao. To logo, porm, a gente mostre as verdades na sua deduo precisa, i., na sua autocompreensibilidade ou obviedade, elas perdem todo o encanto do espantoso e do admirvel. Conhecidamente, pois, assim como muitos artistas fizeram com suas invenes, tambm o fizeram os antigos. A saber, estes temessem talvez porque ela era

    34 (Nt): aqui segue no rodap um longo excurso de Rombach sobre um terceiro significado da certeza existente em Descartes, referido certeza da existncia no sentido da ocorrncia da coisa simplesmente dada. Omitimos aqui na nossa traduo esse excurso, pois ele pode interessar a quem est investigando esse tipo de problema em Descarte, mas para a nossa compreenso das regulae no , por enquanto, de importncia decisiva. Nesse excurso, Rombach critica a interpretao de Descartes de Martin Heidegger (em Holzwege, 1950), que para Rombach uma das interpretaes que coloca a fundo a impostao interpretativa. Talvez fosse interessante observar que ali Rombach nos fala da necessidade de distinguir Descartes e o Cartesianismo. As muitas interpretaes, e tambm as melhores acerca de Descartes, p.ex. a de Heidegger, so feitas, segundo Rombach, baseando-se no cartesianismo e no propriamente diretamente em Descartes.

    35 Atque hae duae viae sunt ad scientiam certissimae, neque plures ex parte ingenii debent admitti (op.cit.)

    36 (Nt): o itlico nosso, para acentuar a importncia dessa observao de Rombach.

  • 22

    fcil de se ver e simples (quia facillima erat et simplex) que a sua inveno perdesse o seu valor com a divulgao. Por isso, preferiram apresentar algumas das verdades inteis derivadas dos seus resultados (steriles quasdam veritates ex consequentibus acutule demonstratas) como efeito dessa sua arte (artis suae effectus), para que ns as admirssemos, em vez de ensinar sua arte ela mesma (quam artem ipsam docere), o que teria tornado inteiramente suprflua toda a admirao37.

    Alis, mais tarde Descartes faz algo semelhante. Ns falaremos ainda disso posteriormente. No entanto, esse trecho mostra que ele ainda no segurava totalmente o pulso do problema da facilidade da filosofia perspcua. Pois, ele deve aduzir razes puramente psicolgicas e casuais, para esclarecer o fato de que a gente chegou somente no ano de 1619 a ela. Confrontados com a mesma pergunta, devemos nos recordar que a nova maneira da verdade que Descartes descobre meio sem saber, no somente a mais alta abertura da sua (da verdade) causa, mas ao mesmo tempo significa tambm a mais profunda ocultao. Essas verdades so inacessveis, porque no esto sujeitas a uma compreensibilidade geral, mas se deixam compreender e apresentar somente a partir do seu prprio horizonte. Essa ocultao, que no somente pertence como um momento essncia ou vigncia dessa verdade, mas que a caracterstica essencial, a mais destacada e assinalada nela, certamente levou a isso que jamais tenhamos sabido reconhecer a autocompreensibilidade ou a obviedade na sua essncia e a descobrir em sua fertilidade. Verdade era sempre somente acessvel como altheia38 e adaequatio, sempre somente na abertura horizontal do espao, dentro do qual as coisas verdadeiras podiam aparecer, acessvel, porm, no na forma da evidncia como a in-diferenciao (Ununterschiedenheit) de espao da compreenso e coisa, in-diferenciao tambm de sujeito e objeto. A gente j deve ter se adentrado na filosofia do Cusano, para no somente admitir a possibilidade de tal verdade, mas tambm a reconhecer como supremamente real e significativa.

    e) O mtodo

    A 4. regra diz breve e simplesmente: Necessariamente pertence pesquisa da verdade das coisas, o mtodo39. Certamente, com isso, no se quis enunciar que bom seguir um mtodo, porque desse modo a gente pode penetrar mais no reino do desconhecido e ter mais perspectiva de obter sucesso no empenho de conhecer, mas que o mtodo deve ser index, o indicador de cada conhecimento, uma constituio formal do saber como tal, a condio

    37 AT X, p. 376 ss.

    38 (Nt): aqui aparece nitidamente como Rombach sub-interpreta a altheia, identificando-a com a adaequatio. Seria de interesse tanto na compreenso de Rombach como principalmente na compreenso da exposio de Martin Heidegger acerca da altheia confront-las. Se o fizermos de algum modo, logo vai aparecer que Rombach, se nessa colocao est de alguma forma se referindo a Heidegger, ele de modo algum atinge a altheia, como Heidegger nos mostrou a partir da origem do pensamento grego, mas sim uma compreenso inteiramente defasada e superficial, talvez comum em certas publicaes e interpretaes das escritas de Heidegger. Nesse sentido o que acontece com Descartes, que padronizado forma o cartesianismo, pode acontecer tambm com Heidegger, que padronizado se transforma em heideggerianismo? Para uma compreenso melhor da altheia, cf. de M. Heidegger, Beitrge.

    39 Necessaria est Methodus ad rerum veritatem investigandam (AT X, p. 371).

  • 23

    sine qua non da cincia. No o contedo que caracteriza a cincia, mas a forma do seu saber. Essa forma a metodicidade do conhecimento. Se algo conhecido sem mtodo, isso no somente duvidoso e de pouca valia, mas no pertence de modo algum cincia e seria melhor se jamais aparecesse no mbito do alcance de vista do pesquisador. Por isso, assim pensa Descartes, muito mais vantajoso no procurar de modo algum a verdade de uma coisa qualquer que deve ser pesquisado, do que a buscar sem mtodo40.

    Mas o que Descartes entende por mtodo, se o seu conceito do conhecimento e do saber exclui toda e qualquer aproximao coisa e com isso exclui toda a abordagem?

    O mtodo cartesiano tem duas exigncias fundamentais, que resultam imediatamente do texto: 1. No tomar por verdadeiro nada que falso. 2. Sempre ir at alcanar41 a totalidade de todo o conhecimento.

    A primeira exigncia parece ser bem simplria. Mas apenas parece assim. Na realidade, ela quer dizer: deve-se deixar valer somente isso que se v imediatamente, o evidente. Verdadeiro aqui entendido somente no sentido da evidncia, de tal maneira que o falso na enunciao da primeira exigncia mencionada acima no significa o errado e o des-virado42, mas sim o duvidoso, o dbio e o provvel. A frase que expressa a primeira exigncia diz, portanto: na cincia, no permitido deixar valer a no ser a evidncia.

    A segunda exigncia acima mencionada diz: o que possivelmente para ser sabido tambm para ser sabido realmente, e nada pode43 ser verdadeiro para e por si se no contiver em si e fizer aparecer a plena verdade, i., o todo de tudo que verdadeiro. Descartes supe com uma espantosa obviedade a possibilidade44, a plenitude, a completude de todo o conhecimento, tornando-a na exigncia fundamental de todo o

    40Atque longe satius est, de nullius rei veritate quaerenda unquam cogitare, quam id facere absque methodo (op.cit.).

    41 Nihil falsum pro vero supponere ... et ad omnium cognitionem pervenire (Reg. IV, AT X, p. 372).

    42 (Nt): em alemo das Verkehrte. Kehren significa virar, virar-se a, verter (p.ex. converter-se: sich be-kehren). Virado Gekehrte. Quando no se d a virada, Verkehrte, o contrrio, o des-virado. Todo esse modo de dizer o falso e o errado como o contrrio, o desvirado do verdadeiro, o no adequado, est inteiramente nos moldes da definio tradicional da verdade: veritas est adaequatio rei et intellectus.

    43 (Nt): Nessa ltima frase ocorrem os termos possivelmente, realmente e pode, os quais colocamos por nossa conta em itlico. Poder, possibilidade, aqui na exigncia da evidncia, no pode se referir ao poder, possibilidade no sentido da possibilidade aberta de no contradio, nem da possibilidade sempre aberta no processo de aproximao (cf. possibilidade como utopia!). Por isso, no tem nenhuma acepo da oposio a ou diferenciao com a realidade. Antes, possibilidade aqui a realidade anterior, a priori, que possibilita a realidade, ou melhor, a vigncia, a dinmica, a dynamis que a potncia, a fora da realizao de uma obra, i. , em grego, en-ergon ou enrgeia, a energia. Nesse sentido ou se evidncia ou no se . Em sendo evidncia, a vigncia-evidente, a possibilidade, o poder da evidncia a realidade. Essa possibilidade da verdade a plena verdade, a verdade necessria, onde se o todo de tudo que verdadeiro, a totalidade da verdade, a verdade plena e redonda, sem ainda algo que no , mas ainda pode ser, no modo de ser da aproximao assinttica da adaequatio.

    44 (Nt) cf. a nota 5 acima.

  • 24

    saber. Isto se esclarece assim: para o saber, natural ser na sua completude e sua plenitude, na sua realizao, i., a perfeio no se deve primeiramente dar ao saber, mas somente dele no se retirar.

    Onde a totalidade do saber no est presente (em tudo isso ns ainda no fomos notificados de que modo a totalidade pode estar presente), ali no a cincia. Ela no somente no plena, mas simplesmente no se d, nem sequer na sua possibilidade incoativa. Assim, as duas cincias, a aritmtica e a geometria, so atingidas pelo julgamento de Descartes. Pois, elas contm em particular algo certo, mas no conseguem dar a concepo da totalidade e por isso no podem ser propriamente autnticos membros da cincia da unidade. Como disciplinas que se delimitam realmente (sachlich = coisalmente) e se do limites em vista de determinado ente, elas esto de antemo no erro e permanecem fora do reino da cincia. Elas no tm o seu prprio, elas no possuem o conhecimento de que a cincia capta tudo em si e que cada frase atinge o todo. As cincias acima mencionadas tm fora delas ainda outras coisas, elas se referem como tais a o outro, de tal modo que elas de modo algum ainda no foram tocadas pela ideia do mundo.

    Descartes no tem nenhuma inteno de estatuir a usual matemtica do seu tempo, que ele conhecia muito bem, dentro da nova cincia da unidade, nem de restaurar a filosofia nos moldes dessa cincia. Antes, ele busca uma cincia que esteja to longe da usual matemtica quanto da filosofia tradicional. Esta nova matemtica ele primeiramente deve criar. Assim, ele diz com toda nitidez: quem observa com ateno realmente o sentido do que ele, Descartes, quer dizer deve perceber com facilidade que para ele, aqui, tampouco se trata da matemtica no sentido usual. O que ele quer , antes, expor outra disciplina, em vista da qual aquela matemtica no sentido usual mais um entulho do que uma parte45.

    Mostra-se nesse trecho com aquela nitidez que no se pode desejar mais clara, a j mencionada colocao de que no nos permitido entender o surgimento da cincia exata, que aqui sob o ttulo de mathesis universalis recebe a sua primeira configurao, como uma aplicao da matemtica existente a fatos da experincia; mas de que a cincia natural moderna deve primeiramente criar para si a matemtica, como tal, prpria dela; e de que, portanto, no momento do nascimento no pode partir de um modelo, mas deve projetar uma ideia nova, originria do saber e da cincia46. As nossas prprias afirmaes sobre a origem da cincia exata podem ser reconduzidas a essa tese como sua situao bsica, j que aqui

    45 Quicumque tamen attente respexerit ad meum sensum, facile percipiet me nihil minus quam de vulgari Matemtica hic cogitare, sed quamdam aliam me exponere disciplinam, cujus integmentum sint potius quam partes (AT X, p. 374).

    46 estranho que um intrprete de resto to cuidadoso como Aliqui (Descartes, 1956/62) tenha prestado to pouca ateno a essa inteno essencial de Descartes, que caracteriza o conceito da cincia como um conceito originrio e o conduz para suas consequncias prprias. Nesse passar por cima do novo conceito da cincia e das suas atuaes sobre o conceito da metafsica est, a nosso ver, a mais perceptvel fraqueza da interpretao de Aliqu. Afirma, pois, ele: Ento, Descartes encontra somente na matemtica a certeza. Seu desejo de chegar em toda parte certeza o leva consequentemente a isso de ter por universal um mtodo que em realidade matemtico e que jamais foi aplicado rigorosamente, a no ser no reino do quantitativo (20). Tais conjeturas so incompreensveis em face das declaraes diretas de Descartes.

  • 25

    se trata para ns de compreender a nova ideia de cincia como tal. Trata-se, pois, de compreender a nova ideia de cincia, no como a propriedade de uma determinada disciplina ou como a cpia de uma cincia j existente, mas como uma ideia originria e irredutvel, i., como uma ideia filosfica.

    O mtodo da nova cincia consiste essencialmente nisso que ele no admite diferenciaes e delimitaes, mas deve apresentar tudo em unidade; ele deve trazer presena em cada momento o todo. Nele no permitido haver nenhuma diferena entre coisas; ele se dirige, portanto, no mais como tal a coisas, j que estas so constitudas pela sua diferenciao. A nova cincia se abstrai, se retira de tais quididades ou qu-dades e qualidades; ele subtrai o olhar do subjectum, do que sub-jaz debaixo de, que emite o problema e lida com o que deve ser apresentado naquela forma comum que para todo o ente vale em igual modo. Assim, a cincia deve no somente conter a primeira pea da razo humana, mas deve se estender tambm sobre o todo e deixar nascer a verdade de cada objeto, indiferente a de que espcie essencial este seja47.

    Mtodo de Descartes significa: cada evidncia particular deve ser dissolvida para dentro da evidncia originria. E ali ela, no entanto, no perde a sua fora de expresso, no perde a sua significao particular prpria. Aqui temos uma dialtica que no mais pode ser resolvida com a lgica formal (aristotlica). Por isso, o mtodo uma nova lgica. a lgica da nova cincia. A lgica do funcionalismo.

    Se, no processo da realizao do conhecimento se abstrai do sujeito e somente restam permanentes os momentos, que podem constituir e caracterizar na unidade todo o ente qualquer, ento a determinao de um problema dado ainda s pode acontecer atravs do lugar que se ocupa no todo da conjuntura. Por isso, agora a ordenao (ordo) o que h de mais proeminente na cincia. Aqui no se trata mais de determinao do particular, mas do des-velamento da conjuno do todo.

    As trs seguintes regras (V-VII) assinalam a ordenao, que deve servir cincia de fio condutor. Ns no mais as interpretamos uma por uma, mas somente no seu trao fundamental.

    O mtodo exige ordem e disposio (ordo et dispositio) dos objetos. Por isso o pesquisador deve reconduzir (reducere) as frases complicadas que ele quer elaborar s simples, gradativamente (gradatim), e ento de novo, subir (ascendere) a partir do simples ao complicado, e assim conseguir o conhecimento da conjuntura48. Mtodo significa, portanto, conservao, manuteno de uma rigorosa ordem de deduo com a excluso de todos os saltos e inconsequncias. Tudo deve ser colocado em srie (series) e ser ordenado segundo o grau de sua dependncia em referncia ao ponto de partida originrio. Deve-se distinguir entre o absoluto e o respectivo. Todo o respectivo tem seu grau e seu lugar na srie. O

    47 Hae enim prima rationis humanae rudimenta continere, et ad veritates ex quovis subjecto eliciendas se extendere debet (AT X, p. 374).

    48 Nessa indicao metdica, reconhecemos a descoberta de Galileu: mtodo resolutivo e mtodo compositivo (cf. ROMBACH. Substanz, System, Struktur, vol. I, p. 324).

  • 26

    respectivo somente ento vale como compreendido, se contado e mantido firme nesse grau. No absoluto encontram-se juntos diferentes sries e essas tm ali sua derradeira con-juntura esclarecente.

    cincia pertence, assim, antes de tudo, o movimento do pensar, contnuo e ininterrupto49.

    Esse movimento no deve ser somente entendido como movimento de conduo para um determinado contedo de conhecimento, mas como momento constitutivo de cada conhecimento, aplique-se ele ao que quer que seja. Cada contedo da coisa particular deve estar reconhecido e firmado no grau da sua ordenao, i., ele deve ser enumerado segundo a sua deductibilidade. Essa enumerao descendente e ascendente50, que j quase perfaz o todo do conhecer, chamada por Descartes na regra 7 de enumeratio. Este um conceito importante, embora de modo algum claro, da teoria de mtodo de Descartes.

    Somente a enumerao ascendente de todas as estaes gradativas garante a certeza no particular e evita a errncia do entendimento. Somente ela pode manter a ligao de conjuno para baixo, na medida em que sobe, e evitar que algo nos escape (nihil nos plane effugiat) e garante que de tudo e de cada algo possamos saber o necessrio. A enumerao ascendente nessa perspectiva se chama enumeratio sufficiens. A enumerao suficiente e satisfeita significa o mesmo que num outro trecho Descartes chama de inductio, i., conduo para. A conduo para o caracterstico de uma coisa na ordo da com-juntura do todo. A induo deve ser realizada em cada conhecer e se essa realizao no vingar de modo algum sinal de que o que buscado transcende o entendimento humano.

    Somente a induo nos garante certeza nos lugares que no podem ser reconhecidos imediatamente no modo intuitivo. Para Descartes, induo e deduo so o mesmo51. A isso devemos guardar com insistncia na leitura dos escritos metdicos de Descartes, porque seno facilmente camos em grande equivocao errnea, atrelados que estamos no uso hodierno da linguagem, que com os termos induo e deduo assinalam um movimento de conhecimento contrrio. A induo mantm firme a certeza, mesmo ainda quando na conduo dedutiva ultrapassamos o limite disso que conseguimos ainda captar na sua verdade com uma mirada. Induo , por conseguinte, aquela memria da razo, que lhe garante a sua ampliao cientfica no reino do meio da verdade dedutiva. Induo a fora de conteno do conjunto, da qual surge a unidade do esprito no sentido da bona mens. A enumerao suficiente e satisfeita (i., a induo) plenamente distinta. Ela o deve ser, se seus fatos devem receber o pleno carter da cincia.

    As regras que seguem a regra 7 versam sobre a ordenao das coisas, da sua diviso, da composio, de diferentes modos do conhecimento, do erro etc. Ns destacamos e pontualizamos de tudo isso o seguinte: o conhecimento das coisas sensveis deixa-se

    49 Continuus et nullibi interruptus cogitationis motus (AT X, p. 387).

    50 (Nt): o termo alemo Auszhlung und Aufzhlung. Zhlung enumerao, contabilidade. Aus movimento de sair, de emanar, de esvair; auf movimento de subir, de erguer-se, de surgir, de abrir-se para o alto.

    51 (Nt): o itlico nosso.

  • 27

    reconduzir inteiramente Gestalt (figura). Pois esta parece ser o puro conceito de algo, porque s ele to geral e to simples, de modo que todo o sensvel pode ser reinterpretado de volta nele. S ele suficiente para expressar toda a diferenciao das coisas materiais entre si mutuamente52.

    Antes de tratarmos ainda de uma especial peculiaridade da teoria da cincia de Descartes, passemos brevemente um olhar sobre os passos seguintes andados pelas Regulae. Segundo o plano original dado pelo prprio Descartes, a escrita deveria conter trs livros. Cada um dos livros foi planejado para conter 12 regras. As primeiras 3 regras do primeiro livro do a introduo geral at o conceito da scientia generalis. As regras 4 a 12 tratam das primeiras evidncias da Sapientia humana.

    As regras 13 a 24, que perfazem o segundo livro, mostram como se pode conduzir forma cientfica cada uma das perguntas que vm tona pelos fenmenos. As regras 25 a 36 formam o terceiro livro, do qual nada possumos a no ser apenas o elenco geral do contedo. Este deveria mostra, o que deveria acontecer com aquelas perguntas que no se deixam reconduzir forma da pura cincia. Se lanarmos um rpido olhar sobre o todo da estrutura dessa obra, observamos que o primeiro livro traz a Metafsica de Descartes, i., a ideia da cincia como tal e aquela parte dela que se torna clara em modo intuitivo, sem o trabalho da deduo. O segundo livro contm a fsica (Physik), portanto, aquele reino do meio, que devia ser o propriamente novo e interessante da sua filosofia; ao passo que o terceiro livro se ocupa com o que se chamou mais tarde de filosofia experimental, portanto, daquela parte das cincias, que sem as dedues essenciais permanece referida mais ou/e menos experincia. So elas medicina, biologia, moral etc.

    Arquivo 6

    f) Quaestio perfecta

    A grande descoberta de Descartes que ultrapassa a de Kepler e Galilei que o reino dos primeiros princpios, o reino da plena clareza e autocompreensibilidade pode ser ampliado e totalizado. Sendo assim, ele deve, pois, mostrar, como a forma do saber da cincia perspcua pode assimilar e transmutar em si tambm o reino do saber da experincia. Conforme isso, assim, h tambm uma forma de pergunta na cincia, embora esta se ocupe propriamente somente com o bvio. Deve, porm, ser um modo de pergunta que no se extroverta, mas que reconduza o saber para dentro de si mesmo, que deixa o esprito afundar em si mesmo, de certo modo. Qual essa forma de pergunta? Descartes a chama de quaestio perfecta e lhe dedica a regra 13, que constitui a entrada para aquele livro, no qual tratada a transformao do saber da experincia em Gestalt do saber do esprito.

    Aqui, uma pequena observao! No h propriamente a problemtica do perguntar na filosofia tradicional. Esta foi sempre somente uma teoria do responder. Por isso, a lgica tradicional o que os mais novos lhe objetaram apenas uma ars demonstrandi (uma

    52 quod tam communis et simplex sit figurae conceptus, ut involvatur in omni sensibili rerum sensibilium differentiis exprimendis sufficere (AT X, p. 314).

  • 28

    doutrina, de como se pode mostrar na sua verdade o que j tinha sido encontrado) e no uma ars inveniendi (ensinamento artesanal de como se deve pesquisar o que ainda no era conhecido). Aqui na regra 13, encontramos um ensinamento elaborado do problema, que j por essa razo nos deve interessar sob o aspecto da histria do esprito.

    Descartes distingue entre simples enunciaes (propositiones simplices) e problemas (quaestiones) 53. As simples enunciaes no so procuradas, porque elas se apresentam ao esprito por si mesmas. A elas so dedicadas as primeiras 12 regras. As quaestiones, pelo contrrio, so os empreendimentos, com os quais o esprito reconduz o saber estranhado, alieno verdadeira autocompreenso, i., forma cientfica de unidade. Uma quaestio perfecta, i., uma pergunta no estilo da nova cincia, se destaca pelo fato de que fixada somente uma nica determinao como a buscada, e qui tal determinao que pode ser deduzida imediatamente do fato dado54. Quando perguntas imperfeitas devem ser reconduzidas a um problema perfeito, devem-lhes ser tiradas todas as determinaes que conduzem para fora, para alm do que pode ser tematizado em pergunta imediata. A gente deve primeiramente abstrair de todos os conceitos suprfluos55. Para isso, Descartes nos d um exemplo significativo: Se, p.ex., perguntarmos pela essncia ou pela natureza do tom, ns aqui no especulamos, mas tomamos trs cordas de som. A segunda corda duas vezes a grossura da primeira, mas esticada com o peso duplicado. E a terceira corda escolhida com o dobro da largura, mas mantida esticada com qudruplo peso. Se assim o fizermos, haveremos de descobrir que todas as trs cordas do o mesmo tom. Se agora for perguntado em que consiste a essncia do tom, encontramos uma determinao proporcional de relao de comprimento, grossura e peso. Ns encontramos o tom como uma medida de lei da altura e da profundidade que se deixa reconduzir a determinadas relaes de grandeza e por elas se expressar com exatido. Essa relao de grandeza e medida faz do tom tom. Essa relao permanece sempre igual, independente de qual o instrumento que o emite; independente tambm de em que altura o tom emitido. Sim, essa relao vale at no reino inaudvel das vibraes, de tal maneira que atravs dessa Gestalt da apresentao da essencialidade do tom, nos livramos do sensvel, embora o tom seja algo sensvel. Ns ganhamos uma proporo matemtica, que certamente transporta todas as dadidades para dentro de uma pura forma do esprito, que nos faz independente da experincia e do reino casual de fenmenos dentro do mundo dado a ns56.

    A pergunta perfeita conduzida de tal forma que indiferente se se est lidando com este ou aquele objeto; aqui, somente se tem de haver com certas grandezas, que so para ser

    53 AT X, p. 428 ss.

    54 Sed insuper ut quaestio sit perfecta volumus illam omnino determinari, adeo ut nihil amplius quaeratur, quam id quod deduci potest ex datis (Reg. XIII, AT X, p. 431).

    55 Ab omni superfluo conceptu abstrahendam (op.cit.).

    56 Este exemplo e suas consequncias, mencionadas por Descartes, faz-nos pensar muito na doutrina da harmonia de Kepler.

  • 29

    comparadas uma com outra entre si mutuamente.57 Mostra-se, portanto, que a transconduo de uma dada pergunta para dentro de um problema absoluto consiste nisso: aqui a mira da questo somente vai comparao dentro de iguais determinaes essenciais, i., se espraia apenas sobre relaes de grandeza, sobre propores matematicamente apresentveis. Os problemas das cincias absolutas tm, todas elas, a forma matemtica. Elas se expressam em nmeros e relaes de nmero; as categorias da sua maneira de refletir so medida, nmero e peso. Assim, Descartes pode dizer: tudo isso, onde se trata de ordem e medida, pode ser levado mathesis. E aqui no interessa muito se essa medida ocorre em puros nmeros ou em figuras, ou em estrelas, em tons ou em um objeto, seja qual for. E ele continua: deve haver uma cincia geral (scientiam generalem), que explicite tudo isso que pode ser pesquisado sobre ordem e medida, sem referncia a uma matria especial. Somente essa cincia pode ser nomeada com um conceito antigo e que j se acha no uso comum, chamado mathesis universalis58.

    Assim, de tudo isso, da caracterstica da reduo ou re-conduo do problema da cincia absoluta, resulta o conceito detalhado e completo da Mathesis universalis. Ela tem tais perguntas que se estreitam numa nica determinao da realidade, de tal modo que dos diferentes dados da mesma realidade resulta a determinao com exatido, i., atravs da comparao enumervel. Nos problemas absolutos deve ser estabelecida, portanto, uma natureza-identidade, de tal modo que o problema se move num nico nvel-plano de pergunta. Todos os dados, os dados e os buscados, devem pertencer mesma ordem. A uma pergunta que mantm o buscado na mesma ordem ao dado, chamamos de comparao (comparatio)59. Comparao, porque a pergunta permanece na igual60 essncia.

    Como Descartes se expressa, trata-se, portanto, somente de: Reconduzir propores, por mais emaranhadas que sejam, a isso de que o que desconhecido seja achado igual a um conhecido qualquer61.

    A pergunta absoluta transforma o problema da essncia num problema da comparao. Ela repensa o quale num aequale. Ela trabalha, assim, com a pura comparao da grandeza e substitui a essncia com a medida (mensura). Todas as qualitates so transpostas em

    57 eoque reducendam, ut non amplius cogitemus nos circa hoc vel illud subjectum versari, sed tantum in genere circa magnitudines quasdam inter se componendas (AT X, p.431).

    58 Quod attentius consideranti tandem innotuit, illa omnia tantum, in quibus ordo vel mensura examinatur, ad Mathesim referri, nec interesse utrum in numeris, vel figuris, vel astris, vel sonis, aliove quovis objecto, talis mensura quaerenda sit; ac proinde generalem quandam esse debere scientiam, quae id omne explicet, quod circa ordinem et mensuram nulli specialli materiae addictam quaeri potest, eamdemque, non ascititio vocabulo, sed jam inveterato atque usu recepto, Mathesim universalem nominari, quoniam in hac continetur illud omne propter quod aliae scientiae Mathematicae partes appellantur (AT X, p. 377ss.).

    59 ...ut in omni ratiocinatione per comparationem tantum veritatem precisa cognoscamus (op. cit.).

    60 (Nt) Comparao em alemo Vergleich. Em Vergleich est a palavra gleich que significa i