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Seminário URBFAVELAS 2016 Rio de Janeiro - RJ - Brasil REFLEXÕES SOBRE URBANIZAÇÃO DE FAVELAS NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A PARTIR DE 2003: DO DIAGNÓSTICO AO PÓS OBRA Maria Silvia Mariutti - [email protected] Arquiteta, Gestora Pública, Secretaria Municipal de Habitação- Prefeitura do Município de São Paulo Danielle Naomi Iwai - [email protected] Graduanda em Arquitetura e Urbanismo na FAUUSP; Estagiária na Secretaria Municipal de Habitação - Prefeitura do Município de São Paulo Geni Takeuchi Sugai - [email protected] Arquiteta, Gestora Pública, Secretaria Municipal de Habitação - Prefeitura do Município de São Paulo. Mestra e Doutora pela FAUUSP Guilherme Rocha Formicki - [email protected] Graduando em Arquitetura e Urbanismo na FAUUSP; Estagiário na Secretaria Municipal de Habitação- Prefeitura do Município de São Paulo Isabella Ventura - [email protected] Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Arquiteta na Secretaria Municipal de Habitação - Prefeitura do Municipio de São Paulo Samara Prado Valentim - [email protected] Arquiteta, Gestora Pública, Secretaria Municipal de Habitação - Prefeitura do Município de São Paulo Suelen Camila Gonçalves Yoshinaga - [email protected] Arquiteta, Secretaria Municipal de Habitação- Prefeitura do Município de São Paulo

Seminário URBFAVELAS 2016 REFLEXÕES SOBRE … · 2016-12-16 · da ocupação de terrenos públicos ou particulares. Fonte: a denominação que se dá em São Paulo às ZEIS de

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Seminário URBFAVELAS 2016Rio de Janeiro - RJ - Brasil

REFLEXÕES SOBRE URBANIZAÇÃO DE FAVELAS NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A PARTIRDE 2003: DO DIAGNÓSTICO AO PÓS OBRA

Maria Silvia Mariutti - [email protected], Gestora Pública, Secretaria Municipal de Habitação- Prefeitura do Município de São Paulo

Danielle Naomi Iwai - [email protected] em Arquitetura e Urbanismo na FAUUSP; Estagiária na Secretaria Municipal de Habitação - Prefeitura doMunicípio de São Paulo

Geni Takeuchi Sugai - [email protected], Gestora Pública, Secretaria Municipal de Habitação - Prefeitura do Município de São Paulo. Mestra e Doutorapela FAUUSP

Guilherme Rocha Formicki - [email protected] em Arquitetura e Urbanismo na FAUUSP; Estagiário na Secretaria Municipal de Habitação- Prefeitura doMunicípio de São Paulo

Isabella Ventura - [email protected] pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Arquiteta na Secretaria Municipal de Habitação - Prefeitura doMunicipio de São Paulo

Samara Prado Valentim - [email protected], Gestora Pública, Secretaria Municipal de Habitação - Prefeitura do Município de São Paulo

Suelen Camila Gonçalves Yoshinaga - [email protected], Secretaria Municipal de Habitação- Prefeitura do Município de São Paulo

REFLEXÕES SOBRE URBANIZAÇÃO DE FAVELAS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A PARTIR DE 2003: DO DIAGNÓSTICO AO PÓS-OBRA

Resumo

Este artigo visa refletir sobre os processos de urbanização de favelas, através da experiência de seus técnicos na região sudoeste do Município de São Paulo.

O Programa de Urbanização de Favelas da Prefeitura tem como premissa “transformar favelas e loteamentos irregulares em bairros, garantindo a seus moradores o acesso à cidade formal.”1

Entretanto, apesar das benesses prometidas pela urbanização, ao implantar infraestrutura nessas áreas de cidade e/ou sanar situações de risco para sua futura regularização é necessário deparar-se com a questão da remoção de moradias.

Nesse sentido, a Secretaria Municipal de Habitação, ao planejar as intervenções, trabalha com duas formas de urbanização: remoção parcial, como nas favelas Jd. Olinda, Sapé e Viela da Paz, e remoção total, como no exemplo do Real Parque. Para subsidiar a reflexão sobre as duas modalidades, serão apresentados critérios propostos para avaliação quanto à remoção das moradias.

Após a caracterização e reflexão sobre os processos de urbanização, será apresentada a percepção dos Conselhos Gestores sobre as intervenções. Também será analisada a efetiva inserção dessas áreas na cidade e a sua relação com o entorno. Por fim, será apresentada uma síntese dos avanços e das contrariedades dos processos de urbanização relatados.

Introdução

Este trabalho surgiu a partir de uma vivência prática adquirida por nós, técnicos da Secretaria Municipal de Habitação do Município de São Paulo (SEHAB). No entanto, escrevemos não enquanto representantes do poder público, mas como cidadãos que adquiriram algum conhecimento e alguma experiência na área de habitação e de urbanização de assentamentos precários.

Falaremos sobre algumas favelas2 de São Paulo que conhecemos a partir do nosso trabalho junto à Secretaria e que julgamos pertinentes para ilustrar os problemas que identificamos – problemas esses que nos motivaram a escrever esse texto. As favelas que abordaremos, localizadas na região sudoeste do município de São Paulo, são: Real Parque (situado no Distrito Morumbi), Sapé (no Distrito Rio Pequeno), Viela da Paz (Distrito Vila Sônia), Jardim Olinda (Distrito Campo Limpo), Parque Fernanda I (Distrito Capão Redondo), Jardim das Rosas (Distrito Capão Redondo) e Jardim Irene II (Distrito Capão Redondo). Todas foram demarcadas como Zonas Especiais de Interesse Social, ZEIS13, e pertencem ao escopo do Programa de Urbanização de Favelas da Prefeitura de São Paulo. Esse programa tem como objetivo principal “transformar favelas e loteamentos irregulares em bairros, garantindo a seus moradores o acesso à cidade formal com ruas asfaltadas, saneamento básico, iluminação e serviços públicos”. 4

Como já foi dito, na prática recente de trabalho da SEHAB, existem dois tipos de intervenção em favelas: no primeiro, a urbanização de remoção parcial5, grande parte das

1 Fonte: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/programas/index.php?p=3374 2 Entendemos por favelas “espaços habitados precários, com moradias autoconstruídas, formadas a partir da ocupação de terrenos públicos ou particulares.” Fonte: http://old.habisp.inf.br/habitacao 3 ZEIS 1 a denominação que se dá em São Paulo às ZEIS de áreas ocupadas.

4 Fonte: Idem n.r. 1 5 Adotamos esta expressão a partir do critério de permanência parcial ou de realocação total das famílias em favelas urbanizadas.

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moradias existentes é mantida, removendo-se as que estão em áreas de risco e as que estão nos locais objetos de melhorias, como alargamento de vielas, obras de saneamento, adequação de beiras de córregos à legislação, etc. Neste caso, as novas habitações são construídas apenas para abrigar os moradores removidos.

No segundo tipo, a urbanização com remoção total, todas as moradias existentes são removidas e substituídas por novos edifícios de apartamentos. Esse segundo modelo é pouco adotado, e geralmente é aplicado em áreas nobres, de grande visibilidade, próximos ao centro da cidade de São Paulo. Frequentemente, este tipo de intervenção é feito quando se dispõe de maiores recursos econômicos. Primeiro analisaremos o processo de intervenção na favela Real Parque, que é um dos poucos casos em que a SEHAB construiu um conjunto habitacional no local da antiga favela, integralmente removida para este fim. Em seguida, analisaremos os critérios de remoção das moradias e proporemos novos a partir da interpretação da prática atual de urbanização. Após a proposição, a inserção urbana dos projetos de urbanização é tratada à luz dos exemplos de favelas trabalhadas pela Secretaria. Feita a análise urbana, discutiremos a percepção dos moradores frente as suas apropriações do espaço urbanizado. Ao final, questões relacionadas ao pós-obra e à regularização fundiária são analisadas criticamente.

Objetivos

Nosso objetivo principal nesse artigo é problematizar e discutir os critérios de remoção de moradias com vistas à urbanização de favelas, além de tratar criticamente do pós-obra de urbanização. Em seguida, temos como objetivo propor um aperfeiçoamento a esses critérios de remoção e à atuação do poder público no pós-obra.

Nossos objetivos específicos são: 1. Discorrer sobre a remoção total e sobre a urbanização com remoção parcial a fim

de mostrar os pontos positivos e negativos de cada um dos tipos de intervenção; 2. Tratar dos critérios que guiam as remoções de casas em casos de urbanização de

remoção parcial; 3. Propor um aperfeiçoamento a esses critérios; 4. Discutir como os exemplos de urbanização de remoção parcial e de remoção total

em determinadas favelas levam ou não à inserção urbana dessas áreas; 5. Problematizar a atuação incipiente do poder público nas favelas já urbanizadas; 6. Propor uma melhor ação governamental nessas áreas, seja por meio da presença

efetiva de técnicos, seja por outros meios – tais como aprovando-se mecanismos legais.

Referencial teórico/empírico

O referencial teórico e empírico que balizou as reflexões contidas neste artigo são:

1. Legislação vigente e proposta; 2. Relatórios institucionais da SEHAB; 3. Referências bibliográficas de temáticas habitacionais, urbanização de favelas; 4. Experiência prática adquirida dos autores.

Remoção total: o caso do Real Parque

Oposta ao maior centro empresarial da cidade e localizada no distrito do Morumbi,

em meio a edifícios residenciais de alto padrão às margens do rio Pinheiros, a favela Real

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Parque teve seu início nos anos 1950, muito antes da ocupação do bairro pelos condomínios verticais de média e alta renda.

Em 2008, tiveram início as ações da SEHAB na favela com a realização de levantamentos e com o cadastramento de moradores. Em 2009, durante o desenvolvimento do projeto, as influências da elite vizinha já se faziam presentes. Os vizinhos defendiam o projeto de um conjunto de torres de 12 pavimentos com elevador, localizado nos limites da área da favela original. Em 2010, a equipe técnica da SEHAB propôs um novo projeto, desapropriando dois terrenos, para atender a todos os moradores da favela. Os vizinhos se mobilizaram e recorreram ao Ministério Público, para impedir tais obras. Apesar de, ao longo do tempo, novas representações terem sido registradas no Ministério Público e rebatidas pela SEHAB, as obras prosperaram e os primeiros edifícios foram entregues em 2011. Atualmente, as obras estão praticamente concluídas.

Os recursos que propiciaram a rápida execução das obras no Real Parque vieram da Operação Urbana Faria Lima, de acordo com a qual 10% dos valores arrecadados pela venda de CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção) são destinados a obras de Habitação de Interesse Social (HIS). Contando com razoável montante de recursos financeiros (se comparados aos recursos habitualmente disponíveis para obras de urbanização), o projeto do Real Parque sempre ofereceu maiores vantagens em termos de oferta de equipamentos coletivos e qualidade de espaços aos moradores. Entretanto, alguns itens representaram economia de custos, como, por exemplo: em alternativa à proposta em andamento de torres servidas por elevadores, implantar edifícios verticais com acesso apenas por escadas. Esse item teve como principal motivação garantir baixos custos de manutenção para o morador, evitando o indesejável fenômeno de venda de apartamentos.

Os terrenos desapropriados pela SEHAB abrigavam obras paralisadas de empreendimentos de alto padrão. Essa paralisação se devia à dificuldade de captação de compradores, possivelmente motivada pela presença da favela. A construção de edifícios nesses dois terrenos desapropriados era a principal queixa dos proprietários de imóveis vizinhos, pois, segundo eles “a SEHAB estaria ampliando a área ocupada pelos favelados”.

De uma maneira geral, a atuação da SEHAB nas áreas valorizadas da cidade tem sido objeto de vários tipos de críticas, às vezes movidas por preconceitos: "os moradores, após ocuparem os apartamentos do conjunto recém-construído, vendem seus apartamentos e ocupam outras áreas de favela", e, "com o dinheiro que se gasta nesse lugar pode-se construir, ou urbanizar 10 vezes mais em outras áreas”.

Outra motivação para as críticas da vizinhança é o receio de que uma favela urbanizada, ou conjunto para moradores de baixa renda, desvalorize seus imóveis.

Condomínios de edifícios verticais

A adoção do partido de construção de novos prédios no lugar das moradias existentes, no caso do Real Parque, mostrou uma peculiaridade em seu favor. A favela original estava implantada em uma encosta voltada para sul e sudeste. Isso explica, não por coincidência, a origem de favelas nessas áreas que, desfavorecidas em termos de insolação, são rejeitadas pelo mercado imobiliário. A solução adotada, de prédios verticalizados, com correta orientação em planta dos dormitórios, se revelou como única capaz de sanar completamente o problema de salubridade das habitações. Os índices de ocorrência de problemas respiratórios nas crianças da favela fizeram-se notar em algumas solicitações do posto de saúde local (UBS) ao Plantão Social da prefeitura, para que as famílias dessas crianças fossem direcionadas prioritariamente para os novos apartamentos.

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(fig. 1) – Real Parque: A favela original, implant ada em encosta voltada para sul e sudeste. (Acervo SEHAB)

Relação custo-benefício, considerando economia para outras secretarias municipais

Em futuras pesquisas de pós-ocupação, seria interessante analisar qual foi o impacto que o empreendimento do Real Parque representou nos custos arcados pelos demais setores de atendimento municipal. Não só nos gastos com saúde, medindo a diminuição de ocorrências nas UBSs, mas na área da educação, onde os benefícios, a longo prazo, poderiam ser de grande importância nessa análise. No processo de aprendizado escolar das crianças, a qualidade da moradia torna-se determinante, não só pelas condições para se estudar, por exemplo, de iluminação e ventilação, como pelo dimensionamento dos espaços para essa atividade. Uma grande diferença positiva no sucesso do aprendizado se observa quando a criança mora em local onde ela pode convidar os colegas de escola para brincar ou estudar. Quando a precariedade desse espaço impede que essa convivência aconteça e, pior do que isso, quando o fato de ela morar em uma casa precária é causador de constrangimento no convívio com os colegas, a criança tende a se sentir isolada e, não raro, pode abandonar os estudos. Esse processo tende a se acentuar na adolescência, onde ocorre o maior índice de abandono escolar6.

Viver em condomínio de apartamentos significa respeitar regras e dividir espaços de uso coletivo, como áreas de circulação, de lazer e outros equipamentos. O exercício prático da vida coletiva pode ajudar no processo de inserção do morador na sociedade formal e isso também representa vantagens indiretas na redução de gastos nos diversos setores de atendimento público, como limpeza urbana, acessibilidade, saúde, gestão de resíduos sólidos, entre outras áreas, muitas vezes, desconhecidas por ele.

Sendo assim, um levantamento da economia de gastos pelo município nos setores beneficiados pela inclusão do morador na sociedade, comparado ao custo investido na construção dos novos edifícios, seria um bom instrumento para avaliar a relação custo-benefício das obras de remoção total.

6 Fonte: KOHARA, 2009.

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A comparação entre esse modelo e o de urbanização com remoção parcial deve, portanto, considerar esses benefícios indiretos.

Percepção dos moradores no pós-ocupação

Venda de apartamentos

O preço de custo do Real Parque para a SEHAB, considerando apartamentos com 55 m² de área útil cada um, além da infraestrutura de água, luz, esgoto e gás e os equipamentos de uso coletivo de cada condomínio, foi estimado em 120 mil reais por apartamento. Considerando o subsídio municipal, o custo repassado do TPU (Termo de Permissão de Uso) aos moradores está, hoje, em torno de 100 reais mensais. Em consulta a alguns moradores, feita em julho de 2016, constatamos um índice de venda ou aluguel de apartamentos (ou seja, moradores dos apartamentos que o vendem ou o alugam para terceiros) variando entre 10 a 15%. O principal motivo apontado por eles são os altos custos: além do valor do TPU, o valor do condomínio, em torno de 40 reais, somado às contas de água, luz e gás, que representam cerca de 200 reais, totalizam um gasto mensal de 340 reais por família. Segundo a síndica de um dos condomínios, o morador, enfrentando dívidas mensais acumuladas, prefere vender o apartamento, por um preço bem abaixo do mercado, e montar um barraco em outra favela, “porque lá na favela não se paga condomínio, nem TV, nem TPU, e fica mais fácil pagar as contas…”

Venda de lojas

O projeto do Real Parque conta com uma grande área comercial, formada por 72 lojas. As lojas visavam atender os comerciantes originais, tendo em vista ser esta a principal fonte de renda na favela. Entretanto, também para o comércio, observa-se um índice alto de venda. Segundo denúncia de moradores, em 2014, antes do início da entrega desses espaços, do total de 72 lojas, pelo menos 18 haviam sido repassadas a outros comerciantes não cadastrados.

Por estarem as lojas localizadas nos pavimentos inferiores dos apartamentos, a relação entre os comerciantes e os moradores é conflitante. Desde o início do processo de implantação do comércio, a SEHAB estabeleceu acordos com um setor subordinado à Secretaria do Trabalho, para que eles fizessem a gestão desses espaços, nomeando um funcionário para ser o administrador do comércio. Passados 2 anos da entrega dessas lojas, a atuação desse setor ainda não se efetivou. Um episódio apontado como justificativa foi a ameaça sofrida por uma candidata a administradora do comércio que, em visita às lojas, foi abordada por um representante do tráfico que, entre outras coisas, disse que “o comércio não tem que ser fiscalizado, porque quem manda aqui somos nós”. Passado um ano após esse evento, foram feitas reuniões entre os secretários envolvidos nesse convênio, mas o assunto não teve prosseguimento.

Sendo assim, problemas de desrespeito a regras, como barulho excessivo durante a noite e na divisão de despesas em comum com os condomínios têm sido recorrentes.

Apesar dos problemas apontados, o orgulho de se ter uma casa digna para receber pessoas foi um dos itens mais enfatizados pelos moradores nos estudos de avaliação de pós-ocupação do Real Parque. Esse fato se mostra como uma compensação ao preconceito sofrido por eles durante o período de vida na favela.

Principalmente devido aos elevados recursos arcados nesse tipo de intervenção e à falta de oferta de terrenos vazios, às ocorrências de venda de apartamentos, ou ainda, pela pequena porcentagem que esse modelo representa na redução do déficit de

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moradias, a maioria das obras realizadas pela SEHAB são de remoção parcial, assunto que vamos analisar a partir de agora.

(fig. 2) Foto aérea do conjunto Real Parque, tira da em maio de 2016. O último condomínio, ao centro, aparece em fase de fundações. Atrás dele , área remanescente de casas resistentes e, a direita dele, área reservada para um futuro parque, ou edifício institucional. Ao fundo, atrás de um morro arborizado, os três pri meiros condomínios, construídos nos dois terrenos desapropriados pela SEHAB. No entorno do conjunto Real Parque, edifícios verticais ocupados por moradores de alta e média re nda. (Acervo SEHAB)

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(fig. 3) Primeiro condomínio do Real Parque, inaug urado em final de 2011 (Acervo SEHAB)

(fig. 4) Lojas com acesso pela rua Conde de Itagua í (Acervo SEHAB)

A remoção parcial

Uma das vantagens da remoção parcial em relação à remoção total é concentrar as obras apenas nos locais onde realmente se faz necessária a intervenção do poder público, com o objetivo de consolidar a área e integrá-la ao bairro. Desta forma, o intuito

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da urbanização é remover o mínimo possível, apenas para realizar obras como implantação de redes de água, esgoto, drenagem, canalização de córregos, alargamento de ruas e vielas e eliminação de áreas de risco. Esta minimização nas intervenções representa uma grande economia nos gastos públicos, até porque, ao se remover toda a favela, torna-se difícil reassentar a população no mesmo local devido a densidade que estas áreas apresentavam anteriormente, tornando necessária a desapropriação de outros terrenos para o reassentamento das famílias.

Mas, além da questão financeira, a manutenção do morador onde ele está habituado a viver representa a manutenção de diversos aspectos de sua vida: o vínculo com parentes e moradores vizinhos, a manutenção das crianças na escola do bairro, a proximidade do local de trabalho, a presença de comércio local, entre outras facilidades. Quando começam as obras de remoção, enquanto é construída a unidade habitacional para o atendimento definitivo, as famílias aguardam em auxílio-aluguel, no qual recebem uma ajuda de custos mensal para alugar uma moradia – devido ao valor baixo e alto preço dos aluguéis a família precisa realizar grande complementação.

Neste processo, as famílias removidas deparam-se com uma grande dificuldade para encontrarem uma construção que ao menos se iguale àquela em que originalmente moravam. Isso ocorre porque, quando há remoções em uma favela e, consequentemente, várias famílias desalojadas passam a buscar um novo domicílio, o mercado de aluguel nessa área detecta um aumento na procura por casas. Assim, os valores cobrados sobem e as famílias que antes pagavam um dado valor de aluguel, têm de pagar uma quantia maior – quantia essa que, muitas vezes, é excessivamente onerosa. Como conseqüência, as famílias removidas ou têm de ir para outras favelas cujos valores de aluguel sejam mais baixos, morando, muitas vezes, em casas ainda mais precárias do que habitavam anteriormente. Devido a estes fatores, convém realizar nas favelas intervenções mínimas, que causem menos transtornos às famílias das áreas urbanizadas.

Outra vantagem da mínima intervenção é relativa ao custo de vida. Como já foi dito anteriormente, os gastos mensais para o morador dos condomínios do Real Parque giram em torno de 300 reais, o que é oneroso para famílias mais pobres e vulneráveis. Além disso, a vida em condomínio representa grandes mudanças de hábitos. Por todos esses motivos, mas, especialmente, pela questão econômica, a remoção parcial, por implicar em menores intervenções, é o modelo adotado na maioria dos empreendimentos da SEHAB. A seguir, passaremos a analisar alguns aspectos desse modelo.

Critérios de remoção de moradores de favelas

Muitas vezes, os critérios de remoção de domicílios em favelas para obras de urbanização não são claros. Por mais que a experiência prática dos profissionais que lidam com urbanização de favelas seja grande e, por mais que muito já tenha sido aprendido ao longo das últimas décadas, ainda não se têm no município de São Paulo diretrizes que orientem a tomada de decisão – por vezes, difícil – acerca de quais casas devem ser removidas e de quais devem ser mantidas.

De forma geral, a intervenção em favelas na cidade de São Paulo tem como objetivo consolidar a ocupação e garantir a permanência das famílias nas áreas em que já estão inseridas, tentando minimizar ao máximo o número de remoções. Para tanto,

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levam-se em consideração, pelo menos em tese7, os seguintes critérios para a definição das remoções dos domicílios na cidade de São Paulo8.

1. Localização de domicílios em áreas de risco; 2. Localização de domicílios em espaço necessário para a implantação de viário

e/ou infraestrutura, tal como abastecimento de água, esgotamento sanitário, microdrenagem e canalização de córregos;

3. Precariedade física (quando o domicílio é construído com materiais precários, tais como a madeira);

4. Domicílios “encravados”, ou seja, sem acesso por viela ou rua; 5. Necessidade de reconfiguração do espaço de forma a se evitarem áreas

residuais, sujeitas a novas ocupações; 6. Necessidade de configuração do espaço de forma a se evitarem domicílios

isolados. É importante dizer que, nesses dois últimos casos, o projetista pode optar por

remover mais domicílios – mesmo os que estão consolidados – visando a um melhor aproveitamento da área para o reassentamento.

A título de ilustração de como se mapeiam as remoções em uma área a ser alvo de intervenção, pode-se observar o Mapa de Remoções da Favela Viela da Paz a seguir.

(fig. 5) Mapa de remoções da Favela Viela da Paz. (Acervo SEHAB, 2012).

Frente aos critérios atualmente estabelecidos, é importante frisar alguns pontos. Primeiramente, deve-se mencionar que, de forma geral, nem sempre se consideram fatores socioeconômicos para a remoção. Seria interessante a adoção de uma análise

7 Além dos critérios que serão listados, a experiência prática permite-nos concluir que há também fatores políticos que entram na definição dessas remoções. Estes fatores muitas vezes se sobrepõem aos demais. Este artigo tratará dos fatores políticos mais adiante. 8 Esses critérios estão, de forma muito superficial, implícitos na Portaria 021/12 da SEHAB. A reunião desses critérios nesse artigo são fruto essencial da experiência prática dos técnicos da Secretaria ao longo das urbanizações.

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aprofundada do diagnóstico social da área, considerando também a vulnerabilidade dos moradores de cada domicílio.

Para analisar esse critério, um índice importante que foi adotado na elaboração do Plano Municipal de Habitação (PMH) é o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), da Fundação SEADE. Esse indicador é composto por duas medidas, socioeconômica (escolaridade e renda) e demográfica, dividido em 6 grupos de vulnerabilidade social para caracterizar os diferentes setores censitários9. Abaixo, consta o mapa IPVS da cidade de São Paulo em 2010.

(fig. 6) Mapa do Índice Paulista de Vulnerabilidad e de 2010 na cidade de São Paulo. Fonte: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias /upload/chamadas/o3_1400688014.pdf> Acesso em: 20/07/2016

Vale dizer que, apesar de o PMH se basear nesses critérios, eles são adotados apenas para priorizar a intervenção em um assentamento precário em detrimento de outro, não para definir as remoções no momento da intervenção. Além disso, o plano, elaborado em 2009, não foi transformado em lei, o que dificulta a institucionalização dos critérios nas obras da Prefeitura de São Paulo.

Também, em alguns casos de urbanização de favelas, levam-se em conta fatores políticos. No caso da favela Real Parque, localizada no distrito do Morumbi, bairro

9 Fonte: SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Habitação. Plano Municipal de Habitação: uma construção coletiva. São Paulo, 2012.

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valorizado e às margens do rio Pinheiros, por exemplo, houve pressão da sociedade, ainda que não exatamente direcionada a um determinado partido de projeto. Porém, principalmente devido ao fato de a localização dessa favela ser em área nobre e próxima à sede da Rede Globo – sendo inclusive parte do cenário de fundo do jornal SPTV, o que aumentava sua visibilidade – o gabinete da SEHAB optou pela remoção total para construção de um novo conjunto de edifícios.

(fig. 7) Remoção favela Real Parque (Acervo SEHAB, 2012)

(fig. 8) Condomínio do Real Parque (Acervo SEHAB, 2014)

Já a favela Viela da Paz, localizada junto à Super Quadra Morumbi, (nos fundos do Cemitério da Paz) teve sua urbanização iniciada através do um acordo da Prefeitura do Município de São Paulo (PMSP) junto ao Ministério Público (MP). O acordo foi motivado por uma ação popular perpetrada pelos moradores do entorno para que a área voltasse a

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ser uma praça. Felizmente, a favela está sendo mantida e urbanizada. Entretanto, o projeto teve significativas alterações face à pressão desses moradores.

(fig. 9) Urbanização Viela da Paz (Acervo SEHAB, 2 016)

(fig. 10) Viela da Paz, Condomínio E – Alteração n o número de pavimentos devido a pressões externas. (Acervo SEHAB, 2016)

Outra questão que ocorre com certa frequência é o fato de que decisões de remoção por determinação do projeto de urbanismo acabam sendo tomadas pelo projetista sem levar em consideração a possibilidade de se modificá-las para que áreas mais consolidadas sejam mantidas. Muitas vezes, pela velocidade em que são elaborados os projetos básicos para as licitações de obra, há pouca oportunidade para análise de

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todos os critérios com mais profundidade e, por conta disso, os projetos são feitos às pressas e com pouca (ou nenhuma) participação dos moradores da área de intervenção.

Ainda sobre a urbanização da Viela da Paz, devido ao acordo com MP, o projeto básico foi feito em poucos meses, sem o cadastro, diagnóstico social e informações mais completas da área. A falta dessas informações gerou algumas falhas de projeto, bem como o não atendimento de toda a demanda de famílias. Algumas dessas questões foram corrigidas no projeto executivo após análises da equipe técnica da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), porém ainda existe um déficit que deverá ser reassentado em área de provisão fora do perímetro de intervenção da favela.

No caso da Favela do Sapé, o que se nota é que alguns domicílios de madeira foram mantidos na área chamada de Sapé B durante as obras de urbanização, enquanto domicílios que julgamos consolidados e passíveis de manutenção foram removidos10.

A nossa experiência prática nos permitiu concluir que, além de se pensar em critérios para a remoção de domicílios e para a manutenção de certas casas, também é necessário que se considerem os aspectos financeiros para essa manutenção – e consequente consolidação –, dando-se a devida importância a esse tipo de intervenção na licitação de obras. Muitas vezes, não há um equilíbrio entre a viabilidade financeira da manutenção de certos domicílios e a consequente proposta de melhoria habitacional dessas casas, que, por serem mantidas, seriam consolidadas.

De forma geral, estabelecer parâmetros para os projetos de urbanização é uma tarefa complexa, pois esses parâmetros devem ser adequados ao contexto em que estão inseridos. No entanto, tendo em conta a grande quantidade de problemas identificados, aproveitamos esta oportunidade para propor uma metodologia oficial para a intervenção em assentamentos precários. Antes de fazer essa proposta, julgamos importante considerar alguns pontos. São eles: 1. A formulação de critérios mais justos sob o ponto de vista socioeconômico e de justiça social ou a adoção de critérios existentes, tais como o IPVS;

2. A regulação/inclusão desses critérios nos novos planos municipais de habitação, desde que aprovados como lei11; 3. A proposta de oficialização dos critérios com vistas à sua validação, mesmo que não em um plano amplo, mas em uma lei específica ou portaria. Outros pontos que precisam ser considerados, especialmente à luz dos pontos citados, correspondem a características da etapa de pré-diagnóstico da favela a ser urbanizada. Essas características (letras a, b e c) são sugeridas por outros autores12 e encontram-se transcritas abaixo:

“a - as de natureza fundiária da área onde se localiza o assentamento; b - as de caracterização geral do assentamento que permitam conhecer o grau e a abrangência da sua precariedade - que se relaciona com a complexidade do projeto, número de remoções e custos; c - aquelas relativas aos programas e linhas de financiamento disponíveis que possam ser acessados para viabilizar os projetos e obras necessárias.” Por fim, seria importante realizar diagnóstico do projeto, para aprofundar os

conhecimentos sobre a área de intervenção, com a elaboração de mapas temáticos para

10 As obras de urbanização do Sapé B ainda estão em curso, mas grande parte do projeto urbanístico já foi executado. Resta, basicamente, a conclusão dos condomínios destinados à provisão habitacional e obras de infraestrutura, tais como redes de abastecimento de água e esgotamento sanitário. 11 Apesar de ser utilizado até os dias atuais como diretriz de intervenção em favelas, o PMH de 2009 não foi transformado em lei. Assim, suas propostas – como a adoção do IPVS – não pode ser exigida no projeto a nas obras. 12 Fonte: MORETTI, COMARÚ e SAMORA (2009, pp. 50-51).

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um maior entendimento das características fundiárias, físicas, ambientais e sociais da área13.

Na licitação em formato de concurso público RENOVA SP14, realizada pela SEHAB, em 2011, essas etapas precederam a elaboração dos projetos pelos escritórios contratados. Com base na nossa experiência profissional, em áreas abrangidas pelo RENOVA SP, podemos dizer que, embora tenha faltado um aprofundamento nas questões socioeconômicas, as etapas de levantamento e diagnóstico contribuíram bastante para um melhor entendimento da área de intervenção e na elaboração de projetos que mais se adequam a realidade de cada um dos assentamentos precários. No entanto, embora esses projetos continuem em desenvolvimento na Secretaria, nenhuma obra foi iniciada.

De posse de todas essas informações, propomos uma metodologia para a decisão de quais domicílios devem ser removidos e quais devem ser mantidos numa remoção parcial. Essa metodologia não constitui regras estanques. Julgamos que cada favela é um caso específico a ser considerado. De um modo geral, propomos que a prioridade desses critérios diminua conforme avance sua numeração. No entanto, como cada favela é um caso específico, a ordem de priorização dos critérios metodológicos também pode variar de acordo com o assentamento que se deseja urbanizar. Seguem, abaixo, os critérios:

I. Vulnerabilidade socioeconômica e demográfica (tal c omo engloba o IPVS). Quando possível, evitar a remoção de famílias mais vulneráveis ou adotar outras soluções tais como a readequação do domicílio ou construção de “embriões” na mesma área da moradia ou próxima a ela;

II. Material construtivo do domicílio . Analisar os materiais adotados na construção, removendo domicílios muito precários, como os de madeira, por exemplo;

III. Inserção urbanística entre o domicílio passível de remoção e a favela e o entorno desse domicílio. Poder-se-ia considerar, por exemplo, se a casa está integrada com as demais no seu alinhamento, no seu gabarito, se tem boa acessibilidade e se não interfere negativamente na circulação de pedestres e/ou de veículos ao seu redor;

IV. Grau de conforto ambiental e de densidade construti va. Graus de insolação e ventilação, por exemplo, poderiam ser considerados, já que “o aumento da densidade das favelas acarreta situações de precariedade quanto à insolação, ventilação, circulação e acesso, deteriorando as condições de habitabilidade desses núcleos, em decorrência da insalubridade oriunda dessa condição”15;

VIII. A constituição da favela – em especial de suas área s remanescentes – enquanto parte essencial da paisagem urbana . Esse critério protegeria a morfologia original da favela caso critérios de maior peso não implicassem a remoção. Os critérios de maior peso seriam os demais expostos nesse item;

IX. A importância da economia local de certas áreas rem anescentes na subsistência de moradores da favela. Além de prover sustento e empregos – informais ou não – a muitos habitantes diretamente envolvidos com certas atividades comerciais, certos estabelecimentos e certas atividades, como padarias, mercearias, salões de beleza e comércio ambulante típico do lugar, podem configurar um mínimo de qualidade urbanística a essas comunidades e de dinamização econômica da favela como um todo.

13 Ibid., p. 58. 14A licitação de projetos em formato de concurso público RENOVA SP, realizada em 2011, teve como principal objetivo a contratação de projetos de arquitetura e urbanismo para os 22 perímetros de ação integrada da cidade de São Paulo mais prioritários, conforme estabelecido no PMH de 2009. O escopo dos escritórios contratados contemplava a elaboração de diagnóstico da área, plano urbanístico do perímetro, estudo preliminar e projetos básicos de urbanismo e complementares tendo em vista a eliminação de áreas de risco, a implantação de infraestrutura urbana, drenagem, construção de espaços públicos e de novas unidades habitacionais. 15 MORETTI; COMARÚ; SAMORA, 2009, p. 60.

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Conforme o texto “Urbanização de Favelas: Lições aprendidas no Brasil”, é importante ressaltar que “A qualidade de um programa de urbanização depende de sua capacidade, por oferecer, não só a moradia em boas condições técnicas de uso, mas outras facilidades, como transporte público, disponibilidade de infraestrutura, de equipamentos sociais, saneamento, comércio, etc. um escopo que trate de forma integrada todos os aspectos setoriais, como transporte e mobilidade, saneamento, habitação e regularização fundiária, tratamento das questões ambiental e social”16.

Além disso, consideramos de suma importância que a favela urbanizada se integre a malha urbana, fazendo com que o assentamento precário se transforme em um bairro integrado à cidade.

Para concluir este item, vale dizer que uma tentativa para estabelecer alguns critérios foi a Portaria com as Diretrizes para Projetos de Urbaniz ação , de 2012. Consideramos essa portaria um avanço, mas julgamos que ela precisa ser complementada, principalmente no que diz respeito a esses critérios de remoção e a análise de precariedade.

A inserção urbana das favelas nos seus respectivos bairros

Embora o conceito de consolidação de áreas remanescentes em detrimento da remoção total de favelas se arraste por algumas décadas, é notável ainda a existência de uma deficiência na efetividade das ações quando se deseja inserir uma favela urbanizada no contexto urbano do bairro onde ela está fixada. Para além da execução de serviços de infraestrutura urbana – obras estritamente necessárias – é preciso um estudo mais aprofundado que equacione de forma efetiva a questão da inserção urbana das favelas, uma vez que esta inserção não tem se apresentado como um problema fácil de ser resolvido; pelo contrário, é uma tarefa cheia de complexidades físicas e sociais. De acordo com informações retiradas do “Sistema de Informações para Habitação Social na Cidade de São Paulo” podemos classificar tecnicamente favelas como: “(...) espaços habitados precários, com moradias autoconstruídas, formadas a partir da ocupação de terrenos públicos ou particulares17”. Embora esta definição se aplique a muitos assentamentos na cidade de São Paulo, ela não deve ser compreendida de uma forma generalizada, uma vez que, especialmente em favelas com um maior tempo de ocupação, existe uma mudança perceptível no que se refere especialmente às construções das moradias. Percebe-se que as autoconstruções extremamente precárias, com deficiências de serviços mínimos de esgotamento sanitário, água ou energia, gradualmente estão sendo substituídas por um número considerável de domicílios com características físicas aproximadas às casas existentes em seu entorno regular. De acordo com o IDMH (Índice de Desenvolvimento Municipal) nos últimos 25 anos a qualidade de vida aumentou nas maiores cidades do País, entre elas São Paulo. O aumento do poder aquisitivo certamente possibilitou o acesso desta fração da população a materiais de construção melhores e a condições de contratação de mão de obra na execução de seus domicílios. Entretanto, é necessário reconhecer que ainda existem distinções significativas quando se procura observar questões de legislação construtiva. Não há, ainda, uma preocupação no atendimento a estas legislações, como, por exemplo, aos CA’s (Coeficientes de Aproveitamento) e TO’s (Taxas de Ocupação) ou um respeito a recuos frontais e laterais nos lotes. Desta forma, estas áreas acabam por dispor de traços

16 DI VILLAROSA; MAGALHÃES, 2012, p. 1. 17 Fonte: http://old.habisp.inf.br/habitacao. Acesso em: em 09 ago. 2016

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peculiares: alto adensamento construtivo, lotes irregulares, ambientes subdimensionados, aberturas mal projetadas ou tamponadas por outras construções, gabaritos mais altos, entre outros.

Em uma situação real, um determinado morador da Favela do Sapé foi orientado pela equipe técnica que não deveria ter construído a escada de acesso ao seu domicílio sobre viela de circulação pública. Uma vez que o mesmo, que se apresentava bem resistente, este alegou: “Aqui é favela, e aqui a gente tem a nossa própria lei”. Isto demonstra o quão complexo é atuar em áreas remanescentes de favelas. Mesmo em face de importantes transformações, ainda há peculiaridades locais que necessitam de atenção específica quando a intenção é de se integrar essas áreas remanescentes à estrutura urbana da cidade. Entendemos ser necessária a existência de um código de posturas que direcione as questões urbanísticas específicas destes assentamentos (temática que abordaremos mais adiante).

(fig. 11) Domicílio em construção na área remanesc ente da Favela do Sapé “Trecho A”, ausência de recuos e avanço a vielas e calçadas ain da são recorrentes. (Acervo Pessoal - 2016)

Existem, de igual forma, outros serviços fundamentais que não devem ser exceção em áreas urbanizadas. Todo morador possui o direito de acesso a serviços de varrição de rua, coleta de lixo domiciliar e iluminação pública, bem como a vias e lotes regularizados, que devem ser oferecidos de modo igualitário em todas as áreas da cidade. Um espaço que permanece privado destes serviços, como também de acessos bem executados, equipamentos públicos, áreas de convívio e etc., muito facilmente retornará à condição de segregado em termos urbanísticos. Neste contexto, este artigo como um todo, tem por propósito analisar criticamente áreas remanescentes de favelas urbanizadas, objetos do Programa de Urbanização de Favelas do Município de São Paulo, em seus pós-obras. A intenção é observar as transformações decorrentes da urbanização e fazer breves confrontos baseados em nossas experiências pessoais enquanto técnicos,

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considerando as seguintes questões: Os serviços executados foram suficientes para uma integração efetiva à estrutura urbana? Quais ações deveriam ter sido executadas para facilitar o processo de integração? Quais são as relações que estes espaços possuem hoje com seu entorno?

A Favela Jardim Olinda, cujas obras de urbanização foram finalizadas no ano de 2009, se localiza no distrito do Campo Limpo, Zona Sul do Município de São Paulo. Em seu levantamento socioeconômico realizado em 2003, a área possuía 1.819 domicílios cadastrados e um total de 6.273 habitantes numa área de aproximadamente 9,88ha. A renda média na época era de 2,5 salários mínimos18 e a densidade habitacional de 180 domicílios por hectare e um total de 1.350 lotes19.

Na área em questão foram executados serviços de aberturas de vielas e ruas para conexão entre o assentamento e o bairro, a canalização do córrego Olaria, execução de 736 unidades habitacionais, praças, 1 equipamento público e serviços básicos de infraestrutura urbana. Uma das particularidades mais interessantes da intervenção no Jardim Olinda foi a criação de novas técnicas de pinturas como o “chapisco colorido” e a “pintura caiada”. Estas soluções consistiram basicamente em um revestimento externo de baixo custo à população, além de se apresentarem como uma solução estética e funcional. Estética porque propiciou embelezamento e funcional, porque, além da facilidade na aplicação, as suas propriedades impermeabilizantes procuravam minimizar problemas internos de umidade resultantes de vedações insuficientes nas construções. O uso da cor é comum na cidade e quando esta realidade é aplicada as casas que normalmente são construídas somente até o bloco, fomenta-se nesta população um sentimento de pertencimento ao todo, além de se contribuir para a qualidade na moradia.

Esta técnica, embora utilizada pontualmente, se apresenta como uma alternativa de solução a um problema habitual nos processos de urbanização de favelas na cidade de São Paulo: a falta de atuação de melhorias nas moradias que permanecem na área.

18 O salário mínimo vigente no ano de 2003 era de R$ 240,00 19 Dados fornecidos por técnicos da SEHAB.

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(fig. 12) Jardim Olinda – Execução dos melhorament os com chapisco colorido nos domicílios a e implantação de áreas de lazer (Acerv o SEHAB).

(fig. 13) Jardim Olinda – Antes e Depois da aplica ção do chapisco colorido e a pintura caiada (Acervo SEHAB)

Já na Favela do Sapé, localizada do Rio Pequeno, Zona Oeste do município, nenhum tipo de melhoria nesse aspecto foi executada nos domicílios remanescentes do trecho onde as obras já foram finalizadas. A intervenção urbanística nesse assentamento iniciou-se no ano de 2010 com o levantamento do diagnóstico físico-social através das ações de selagem de domicílios e de cadastramento das famílias residentes. Foram contabilizados 2.427 imóveis, entre residenciais e não residenciais, e uma população aproximada de 7.798 habitantes. Dos 2.427 imóveis cadastrados, 1.54820 foram removidos. Atualmente permanecem na área, com a finalidade de serem consolidados, 97921 domicílios22. 20 Incluída a remoção de 345 domicílios, realizada entre os anos de 2008 e 2010 pela Subprefeitura do Butantã devido a risco emergencial. 21 Novos domicílios foram construídos nas áreas remanescentes no decorrer da obra. 22 Dados fornecidos por técnicos da SEHAB.

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No trecho A da Favela, (denominado “Sapé A”)23, cujas obras foram finalizadas no fim do ano de 2015, permaneceram aproximadamente 143 domicílios. Verificamos que, em boa parcela destes domicílios, existem patologias construtivas que poderiam ter sido sanadas ou reduzidas durante as obras de urbanização. Percebe-se um grande cuidado construtivo nos Empreendimentos de Habitação de Interesse Social – HIS – executados na área, mas nota-se que o mesmo zelo não é reproduzido nas casas remanescentes. De acordo com a nossa experiência, este contraste – dentre outras razões – facilita, geralmente, a existência de um sentimento de segregação dentro do próximo assentamento, entre os moradores que se mudam para as unidades habitacionais e os que permanecem nas casas a se consolidarem.

(fig. 14) Sapé A - Contraste entre os serviços de revestimento executados nos empreendimentos construídos (para atender a demanda local) e a área remanescente (Acervo SEHAB, 2016).

É sabido que as intervenções urbanísticas precisam ser articuladas de forma integrada. A urbanização de uma favela envolve serviços que são de competência de diferentes secretarias, concessionárias e das subprefeituras (cabendo a esta última especialmente a zeladoria das áreas públicas no pós-intervenção). Quando os serviços são executados descompassados ou em algumas situações não são realizados, a integração urbana se torna muito mais morosa e até mesmo ineficaz. A exemplo disto, no Sapé A, mesmo após 7 meses da finalização das obras, a rede de iluminação pública ainda não foi implantada. Este quadro desestimula o uso das áreas comuns durante o período noturno, além de dificultar a circulação de pedestres nas vielas e, especialmente, na rua transversal à ocupação, executada exatamente para ser um eixo de conexão da área com o bairro. Dificilmente as pessoas circularão em locais onde elas não se sintam seguras para isto, e é função das intervenções propiciar que os ambientes

23 Para execução das obras de urbanização no Sapé foram elaboradas duas licitações, que dividiram a área contratualmente entre “Sapé A” finalizado e “Sapé B” em processo de obra.

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planejados apresentem em suas diversas formas condições de serem seguramente utilizados. Talvez um dos pontos mais problemáticos do pós-obra seja a manutenção das áreas públicas. Após as intervenções urbanísticas e fundiárias, os espaços públicos e privados são demarcados, desta forma, a zeladoria e manutenção das praças, passeios, vielas etc., ficam sob a responsabilidade da subprefeitura na qual aquela área está localizada. Segundo relato de uma assistente social que trabalhou no processo de urbanização da Favela Jardim Olinda, no pós-obra existiam frequentes reclamações dos moradores locais devido à ausência dos serviços de varrição, por exemplo, no assentamento. A inexistência de uma ação contínua do poder público em geral acaba facilitando também a reocupação privada (seja por construção de garagens, avanço dos domicílios existentes ou a edificação de uma nova casa) nos espaços destinados ao uso público. No Sapé A, por exemplo, alguns espaços livres públicos foram invadidos por garagens que se prolongam por toda a extensão da área remanescente. Sabemos que, pela experiência técnica de outras urbanizações, a não atuação na remoção destas ocupações acarreta, normalmente, a consolidação das edificações. Isso prejudica serviços de infraestrutura realizados, e num cenário menos desejável, leva à necessidade de uma nova intervenção urbanística.

(fig. 15) Sapé A – Ocupações irregulares de garage ns nos espaços públicos (Acervo SEHAB)

Ainda no âmbito da articulação integrada, um ponto positivo que destacamos foi o resultado da integração da Secretaria de Habitação com o então Programa Córrego Limpo da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP. Essa integração levou à recuperação do corpo d’agua na Favela do Sapé. Após a canalização (aberta) do córrego e as obras de saneamento, a qualidade da água, segundo dados do Programa Observando os Rios – da Fundação SOS Mata Atlântica – avançou consideravelmente nos últimos 3 anos: em 2014 era considerada RUIM, no ano de 2015 avançou para REGULAR e em uma última análise realizada no mês de março deste ano a

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qualidade se manteve em regular, entretanto, muito próxima de ser considerada BOA. Esta requalificação em conjunto com as adequações do passeio e a execução de uma ciclovia paralela ao curso d’água tem facilitado ações de caminhadas na área, envolvendo tanto moradores locais quanto do entorno.

(fig. 16) Sapé A - Detalhe do córrego do Sapé a ju sante canalizado e a implantação do passeio e ciclovia (Acervo SEHAB, 2016)

Fazem parte da dinâmica de uma cidade ações de coleta de lixo, entrega de correspondência, varrição de rua entre outros. Estes e outros serviços básicos que fazem parte do cotidiano da cidade em geral, devem igualmente ser efetivos nos assentamentos urbanizados.

Uma ação interessante que poderia ser implantada nestas áreas é a de coleta de lixo porta a porta, deste modo os coletores adentrariam as vielas recolhendo os lixos de todos os domicílios, levando-os posteriormente até uma caçamba em uma rua próxima ao local. Não é habitual também ver ações de varrição nas vielas e espaços públicos locais, e a falta de um endereço oficial dificulta a localização das residências. As ruas e vielas são oficializadas durante as ações de regularização urbanística e fundiária, que se dão, normalmente, em sequência às obras de urbanização, no entanto, no caso da Favela do Jardim Olinda, tanto os viários novos quanto as vielas pré-existentes permanecem não oficializadas, impedindo as moradias de possuírem um endereço reconhecido nos mapas da cidade. Por fim, é imprescindível que haja ações que promovam o direito à posse dos domicílios urbanizados. Neste sentido, são realizadas intervenções de regularização fundiária que resultam na entrega do Título de Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (CUEM) para cada lote urbanizado, minimizando inseguranças relativas à propriedade. Em tese, entende-se que a titulação de uma área deve considerar a premissa de que, tanto os lotes quanto área em geral, possuam condições urbanísticas para tal. Segundo informações fornecidas pela Secretaria da Habitação, no Jardim Olinda os

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títulos de Concessão de Uso para área remanescente foram entregues no ano de 2012, já no Sapé esta ação ocorreu anterior a intervenção urbanística: no ano de 2004. Na nossa avaliação, esta atuação não acarretou resultados efetivos, uma vez que o assentamento não possuía condições urbanísticas mínimas para esse fim já que, na época, a área não dispunha de serviços básicos de infraestrutura urbana. Atualmente, o Sapé A, especificamente, aguarda uma nova ação de regularização fundiária. Em uma avaliação geral, entendemos que as áreas aqui exemplificadas, mesmo após as obras de urbanização, ainda possuem deficiências ou ausência de alguns serviços de infraestrutura, e necessitarão, muito provavelmente, de novas intervenções para efetivar a inserção urbana com seus entornos.

Quando se deseja esta inserção, deve-se considerar que os direitos básicos de infraestrutura precisam ser abrangentes em toda a cidade. Serviços comuns resultam em áreas comuns.

Considerações sobre a participação e a percepção do s moradores

Um importante instrumento de participação das comunidades nas quais se fazem os trabalhos de urbanização são os Conselhos Gestores (CG) das áreas. São constituídos por determinação legal em todas as ZEIS onde atuam, formados por representantes do poder público e das comunidades, e funcionam como um dos atores fundamentais de todo o processo.

São espaços onde se verifica que, para além da conquista da moradia, que como fato em si, é um enorme avanço para aqueles que viviam em condições de extrema precariedade, há outras expectativas relevantes a serem observadas. Essas expectativas traduzem-se em cobranças sobre procedimentos, prazos, promessas não cumpridas, etc., conforme transcrição das falas a seguir:

“ Sra. Marlene questiona que há muitos meses ela solicita a vistoria e o conserto nas rachaduras dos blocos 06 e 07, pois elas estão piorando e subindo para os muros, e a construtora não foi vistoriar o local” (Ata do CG Jardim Irene II, Parque Fernanda I e Jardim das Rosas, 03/04/12).

“Os participantes questionam sobre a garantia das obras, os recursos financeiros, as projeções das obras e o recurso anual. Sra. Carmem questiona sobre (aplicação) de multa por atraso do projeto” (Ata do CG Viela da Paz,12/04/2016). Fazemos notar que esse tipo de problema é recorrente nos casos de urbanização com os quais lidamos no período recortado pelo artigo. Assim, fica evidente a necessidade de fortalecer mecanismo de fiscalização das obras.

Também estão presentes falas que representam preocupações de caráter geral e cidadão:

“Sr. Adilson e Sra. Tereza questionam sobre a destinação dos espaços vazios e sugerem a construção de um Centro Comunitário” (Ata do CG Viela da Paz, 12/04/ 16); “Sr. Sidney informa que os postes do Caminho Verde permanecem acesos o tempo todo” (Ata do CG Jardim Irene II, Parque Fernanda I e Jardim das Rosas, 04/10/11). Há ainda, embora raras, falas altamente alentadoras: “José Ferreira - morador - relata que mora no Jd.Olinda há mais de 30 anos e que do jeito que está hoje é como se fosse o Morumbi” (Ata do CG Jd. Olinda 04/11/08)

“Marinalva alega que é muito difícil participar, pois todos têm outras atividades. Relata que o projeto do Olinda foi precoce, pois se tivesse experiência teria solicitado creche e posto de saúde no projeto de urbanização.”

“Adenilton, conselheiro, relata que o Jd. Olinda teve um grande avanço, e atualmente é como se estivessem no “céu”. Cida, moradora e conselheira relata que o conselho foi ótimo e pensa ter atingido as metas estabelecidas, que poderia ter sido

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melhor, mas que as pessoas aprendem com os erros. Acredita que o projeto foi muito demorado, que já deveria ter acontecido na época do seu pai.”

“Carlos avalia que o conselho deve continuar existindo mesmo após o término da urbanização. Que o conselho deve ser atuante, que esse projeto é exemplar, pois foi muito cuidadoso, que a Secretaria aprendeu muito com Olinda.” (Ata do CG 04/11/08 Jd Olinda).

Conforme o exposto, acreditamos que o papel do Conselho Gestor nos processos de urbanização constitui-se ferramenta de efetiva participação popular. Dessa forma, apresenta grande potencial como mecanismo para construção de valores voltados à cidadania.

O pós-obra

A regularização urbanística e fundiária das favelas e demais áreas ocupadas, sejam elas localizadas em áreas públicas (no caso de São Paulo, a maioria das áreas em que já se logrou intervir), ou também particulares, a par de todos os seus méritos e avanços, expõe a grande lacuna da falta de reconhecimento público da legitimidade dessas ocupações.

Essa legitimidade, como se sabe, é explicitada na Constituição de 1988 (artigo 183) e é regulamentada pelo Estatuto da Cidade e pela Medida Provisória 2220, ambos de 2001. O intervalo de treze anos entre a promulgação da Constituição e a regulamentação através do estatuto e da medida provisória já prenunciava as dificuldades que viriam a seguir.

Essas dificuldades provêm dos diversos setores da sociedade para os quais a transformação do interdito em legal causa estranhamento e resistências de toda parte.

No presente trabalho, em que tratamos apenas de áreas públicas, verifica-se que uma das formas de resistência que mais têm trazido prejuízos à gestão dessas áreas provém do próprio Poder Público. Embora esse Poder, de forma geral, tenha tido papel preponderante nos processos que ensejaram a regularização urbanística e fundiária, em grande parte, tem atuado apenas até o momento em que se entregam as obras de urbanização, os títulos de posse e a demais documentações da regularização fundiária.

A partir desse momento, nos casos que analisamos, têm cabido apenas à Secretaria da Habitação (SEHAB) os encargos da chamada pós-ocupação, ou seja, a adaptação dos moradores à nova forma de vida. Falta, no entanto, fazer com que a cidade – Poder Público incluído – também se adapte a essa nova situação.

Dentro do Poder Público, a área jurídica, embora tenha a maior parte de seus integrantes favoráveis à regularização das áreas ocupadas, não raro se manifesta com o argumento sobre a discricionariedade desse Poder sobre as regularizações, não a considerando um direito subjetivo dos ocupantes. Embora no caso das áreas públicas esse argumento tenha sido afastado por decisão judicial em 201324, ainda persiste em pareceres e processos o termo "invasor" para referir-se ao ocupante de determinadas áreas.

O segmento jurídico não é o único do Poder Público a ignorar a legitimidade das ocupações. Outros o fazem, embora de modo mais sutil.

Um problema sério que se verifica é o da questão da diferença de tratamento entre os trechos da cidade "formal" e aqueles das "ex-favelas”. Assim, ao contrário do que ocorre no restante da cidade, nessas últimas, a varrição, o recolhimento de lixo porta a porta, a manutenção das vias e da iluminação pública, etc. ficam bastante prejudicados, alimentando o preconceito segundo o qual "não adianta se fazer essas obras, os

24 Fonte:http://www.conjur.com.br/2013-abr-03/tj-sp-julga-constitucional-mp-regualarizacao-fundiaria. Acesso em: 10 ago. 2016.

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favelados (sic) não cuidam mesmo", como se cuidar das vias recém-oficializadas fosse responsabilidade dos moradores.

Ainda mais complexa e prejudicial é a distorção sobre o entendimento da legitimidade quando acomete até os próprios moradores.

Uma das situações que se enfrenta é que, uma vez terminada a urbanização e entregues os títulos de posse, (normalmente em cerimônia com a presença de autoridades, que costumam discorrer sobre os direitos adquiridos), coloca-se, para os moradores a grande oportunidade de melhorarem suas casas, o que não se resume a apenas reformar a área interna, trocar esquadrias, revestir externamente, etc.

Nesse momento há quem resolva aumentar a casa, tanto vertical como horizontalmente, o que é explicitamente proibido, e consta dos títulos de posse. Quando a quebra dessa regra não traz prejuízo aos vizinhos, nem chega ao conhecimento dos técnicos da Prefeitura.

Quando, no entanto, o acréscimo do volume de uma casa interfere fortemente na casa vizinha, diminuindo a luminosidade e a ventilação, fechando ou diminuindo acessos, obstruindo janelas, o morador prejudicado procura a Prefeitura.

A narrativa desse morador segue um padrão comum: o vizinho está aumentando a casa, alega ser por necessidade, o que é prejudicado reclama, e ouve como resposta: "aqui é favela, e favela não tem Lei. Eu preciso aumentar a casa e aumento. Sempre foi assim". Esse “sempre foi assim”’ pode ir aos poucos corroendo o custoso trabalho feito no local.

Essa situação leva os técnicos a empreenderem um penoso processo de convencimento aos moradores sobre legalização da área, direitos e deveres, etc. (embora, como foi dito, já tenha sido explicitado, em especial quando da entrega dos títulos de posse). Nem sempre se obtém sucesso.

Um recurso de que se serve é o encaminhamento às Casas de Mediação da Guarda Civil Metropolitana, cuja missão é a da resolução de conflitos não tipificados com crimes. Embora não aparelhadas especificamente para esses casos, as Casas de Mediação têm sido o melhor meio de que se dispõe atualmente.

A grande lacuna, como já dissemos, é a da falta reconhecimento abrangente, por parte do Poder Público, dessas áreas da cidade. Essa falha fica explicitada na ausência de uma legislação específica para as mesmas, um Código de Edificações das Zonas Especiais de Interesse Social ocupadas e regularizadas (em São Paulo, ZEIS 1).

Obviamente não basta que haja esse Código. Ele precisa ser conhecido, regulamentado, explicado aos moradores e cumprido. E, para isso, faz-se necessária atuação multissecretarial, havendo o concurso imprescindível da Secretaria Municipal das Subprefeituras, que é a que detém o poder de polícia para fiscalizar a cidade (áreas públicas e particulares).

Obviamente, para haver fiscalização é necessária uma legislação, e também a demarcação dos lotes de cada um dos moradores da área regularizada através de SQL (setor, quadra, lote). Não existem nem um, nem outro.

Iniciativas não faltaram. Técnicos da SEHAB vêm, desde 2008, tentando, em primeiro lugar, criar uma legislação específica para áreas regularizadas, um código de posturas. Uma minuta foi criada, e levada à reunião com a Secretaria Municipal das Subprefeituras, SMSP. Aí, colocou-se a falta de endereçamento técnico, em São Paulo feita pelo sistema citado (SQL, setor, quadra, lote), instituído pela Secretaria de Finanças. Assim, essa Secretaria precisaria ser engajada no processo, o que não se conseguiu até hoje. Desse modo, São Paulo ainda não dispõe dessa legislação específica.

O que se verifica é que a cidade ainda não assumiu de fato as áreas ocupadas. Argumentos como “esta Secretaria (ou esta Subprefeitura) já está trabalhando no limite e não podemos assumir mais compromissos” obviamente encobrem a dificuldade, ou a falta

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de vontade política, de aceitar como integrantes da cidade áreas que pouco ou nenhum retorno financeiro trariam, uma vez que iriam se situar nas faixas de isenção do IPTU.

Temos, entretanto, conhecimento de uma iniciativa que prosperou. Foi implantado no Rio de Janeiro, a partir de 1996, nas favelas beneficiadas pelo programa Favela Bairro, um posto avançado da Prefeitura nas mesmas. Entre outras atribuições, esses postos (denominados POUSOs, postos) orientam os moradores das áreas urbanizadas quanto a modificações de suas edificações. Chegaram a existir 61 postos concomitantemente. Esse programa, mesmo havendo recebido um prêmio internacional em Medellín em 200525, teve, a partir de 2007 suas verbas reduzidas. No nosso entender, isso parece apontar para a ainda insuficiente importância que a inclusão das populações de baixa renda tem em nossas cidades. O caminho é longo.

Conclusão

Qual é a melhor maneira de se urbanizar uma favela? Removendo-a totalmente ou parcialmente? Caso se opte por removê-las em parte, quais devem ser os critérios de manutenção e de remoção de casas? O que os moradores das favelas urbanizadas têm a dizer a respeito das obras empreendidas? As favelas urbanizadas são, afinal, parte real do seu bairro e da cidade formal?

Essas questões foram algumas daquelas que buscamos responder – ou, ao menos, trazer à reflexão – nesse artigo. Não há, naturalmente, uma resposta estanque para essas indagações. No entanto, se a forma de se respondê-las pode variar de caso a caso, acreditamos que certos pontos não devem ser ignorados quando se reflete sobre a prática de urbanização de favelas.

O nível de urbanidade que o projeto de urbanização pode trazer aos seus beneficiários, a viabilidade de se removerem ou de se manterem casas consolidadas ou como se administrar uma área depois que as obras são concluídas são alguns desses pontos.

Esse artigo não busca ser um manual, mas, após algum tempo de experiência prática com os programas de urbanização de favelas em São Paulo, nós, técnicos da Secretaria Municipal de Habitação, humildemente damos nossas opiniões e sugestões. E, acima de tudo, fazemos um apelo para que o atual modelo de urbanização na cidade possa ser refletido e revisto, mantendo-se as práticas positivas e alterando-se aquelas que já se provaram ineficazes.

Referências bibliográficas

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25 Fonte: http://rioonwatch.org.br/?p=11409. Acesso em: 11 ago. 2016.

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KOHARA, Luiz. Relações entre as condições de moradia e o desempenho escolar: estudo com crianças residentes em cortiços. 297 p. Tese de doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009, MAGALHÃES, F.; DI VILLAROSA, F.. Urbanização de favelas, lições aprendidas no Brasil, 2012, SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Habitação. Plano Municipal de Habitação: uma construção coletiva. São Paulo, 2012. SÃO PAULO, Prefeitura do Município. Relatório de Pesquisa Qualitativa Real Parque. São Paulo, 2016.

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