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Seminário URBFAVELAS 2016 Rio de Janeiro - RJ - Brasil A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS NOS MORROS DE SANTOS: “ALUGUEL DE CHÃO”, DIREITO À MORADIA, RISCO GEOLÓGICO E RECUPERAÇÃO AMBIENTAL Renata Sioufi Fagundes dos Santos (Unisantos) - [email protected] Pós graduanda no Programa de Mestrado em Direito pela UNISANTOS. Arquiteta e urbanista graduada pela UNISANTOS. Arquiteta do quadro da Prefeitura Municipal de Santos. José Marques Carriço (Unisantos) - [email protected] Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela FAU USP, graduado arquiteto e urbanista pela UNISANTOS. Docente e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Direito e do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNISANTOS. Arquiteto da Prefeitura de Santos. Marcos Pellegrini Bandini (Prefeitura de Santos) - [email protected] Mestre em Geociências pela UNESP/Rio Claro. Graduado geólogo pela UNESP/Rio Claro. Geólogo da Prefeitura de Santos.

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Seminário URBFAVELAS 2016Rio de Janeiro - RJ - Brasil

A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS NOS MORROS DESANTOS: “ALUGUEL DE CHÃO”, DIREITO À MORADIA, RISCO GEOLÓGICO E RECUPERAÇÃOAMBIENTAL

Renata Sioufi Fagundes dos Santos (Unisantos) - [email protected]ós graduanda no Programa de Mestrado em Direito pela UNISANTOS. Arquiteta e urbanista graduada pelaUNISANTOS. Arquiteta do quadro da Prefeitura Municipal de Santos.

José Marques Carriço (Unisantos) - [email protected] em Planejamento Urbano e Regional pela FAU USP, graduado arquiteto e urbanista pela UNISANTOS. Docentee pesquisador do Programa de Pós-graduação em Direito e do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNISANTOS.Arquiteto da Prefeitura de Santos.

Marcos Pellegrini Bandini (Prefeitura de Santos) - [email protected] em Geociências pela UNESP/Rio Claro. Graduado geólogo pela UNESP/Rio Claro. Geólogo da Prefeitura deSantos.

Introdução

No município de Santos, polo da Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS)1, situada no litoral de São Paulo, a regularização fundiária e urbanística em assentamentos precários apresenta algumas características peculiares e demandam soluções específicas.

Tais soluções ensejam articulação efetiva entre políticas municipais, como meio ambiente, proteção e defesa civil, urbanismo e habitação de interesse social, dentre as principais. Também há que se articular os instrumentos jurídicos disponíveis para enfrentamento desta questão, colocados à disposição de gestores públicos, assessorias técnicas e população residente nestas áreas.

Segundo o Censo Demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 84% da população brasileira vivem em áreas urbanas, mas no município de Santos, a taxa de urbanização é de 99,93%, para uma população de 419.400 habitantes. Isto ocorre, porque quase totalidade da população habita a sede do município, situada na Ilha de São Vicente, caracterizada por planícies costeiras e morros baixos, com apenas 39,4 km² e 416.547 habitantes. Porém, a maior parte do município, com 231,96 km², encontra-se no continente e é constituída predominantemente por morros, serras, escarpas e áreas com severas restrições ambientais, com população rarefeita.

Na Macroárea Morros2, com 7,02 km², que ocupa 17,8% da porção insular do município, está localizada a maior quantidade de áreas de preservação permanente (APP)3 e a maior reserva de fauna e flora desta porção. Nesta mesma região concentra-se a maior quantidade de assentamentos precários, cuja forma de ocupação, conflita com a setorização estabelecida pela Carta Geotécnica dos Morros de Santos e São Vicente (IPT, 1979)4, devido à ocupação de áreas com severas restrições geotécnicas. Esta situação pode ser mais bem compreendida a partir da análise do Plano Municipal de Redução de Risco – PMRR (IPT, 2012), segundo o qual, das 11.407 moradias mapeadas, 5.246 encontram-se em setores de Risco Muito Alto - R4 - ou Risco Alto - R3, incluindo cerca de 817 moradias indicadas para remoção.

De acordo com Carriço5, a fixação da população de baixa renda nos morros de Santos, foi mais conflituosa, em relação às favelas implantadas em manguezais, na Macroárea Noroeste, pois quase todas as glebas dos morros pertenciam a poucos proprietários e possuíam maior valor imobiliário, devido a sua proximidade com o centro6, embora sem infraestrutura e com difícil acesso.

1 A RMBS foi institucionalizada pela Lei Complementar Estadual nº 815, de 30 de julho de 1996. 2 Os morros da área insular, dispostos em um maciço central, integram a “Macroárea Morros”, de acordo com o Plano Diretor de Desenvolvimento e Expansão Urbana do Município de Santos, Lei Complementar nº 821/2013, que dividiu o município em seis Macroáreas, de acordo com suas características urbanas, ambientais, sociais e econômicas, quais sejam: Macroárea Noroeste, Macroárea Morros, Macroárea Centro, Macroárea Leste, Macroárea Continental e Macroárea Estuário. 3 As áreas de preservação permanente são definidas no Código Florestal, Lei n° 12.561, de 25 de maio de 2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa. 4 IPT. Levantamento das condicionantes do meio físico e estabelecimento de critérios normativos para a ocupação urbana dos morros de Santos e São Vicente. São Paulo: IPT, volume de textos, Relatório n.11599, 162 p., 1979. Instrumento pioneiro de planejamento, que caracteriza os condicionantes físicos e processos naturais dos morros de Santos e São Vicente, hierarquizando suas áreas quanto à aptidão física para o assentamento urbano. 5 CARRIÇO, José Marques (2002). Legislação urbanística e segregação espacial nos municípios centrais da Região Metropolitana da Baixada Santista. Dissertação de mestrado. São Paulo: FAU USP. 6 O centro de Santos ainda concentra a maior parte das oportunidades de trabalho do município.

Quanto à questão fundiária, esta tem se agravado, em face da instituição do denominado “aluguel de chão”, processo perverso, que até hoje ocorre. Estas glebas, com grandes dimensões, onde houve uso agrícola ou retirada de solo para aterro, por possuírem restrições ambientais, de acesso e infraestrutura, foram desprezadas pelo mercado imobiliário. Assim, famílias de baixa renda as foram ocupando paulatinamente, sobretudo a partir da década de 1960, pois não conseguiram acessar ao mercado formal de moradias, nas áreas baixas das Macroáreas Centro e Leste.

A perversidade do “aluguel de chão” consiste no fato de que, devido às ocupações, os proprietários das glebas preferiam não reintegrar a posse e acabavam fazendo acordos em que o “chão”, passa a ser alugado, sendo a benfeitoria construída pelo ocupante. Em alguns casos, o proprietário era o promotor das ocupações, pois a relação locatícia com as famílias permitia burlar a Lei Federal nº 6766, de 1979, que estabeleceu requisitos mais onerosos para o parcelamento urbano, além de critérios de ocupação que respeitam as características ambientais destas áreas.

O “aluguel de chão” não foi adotado exclusivamente nos morros de Santos. Além de ser exercido nos morros da área insular de São Vicente, há três casos em que esta modalidade de exploração fundiária foi utilizada por proprietários privados, na Macroárea Leste, a saber: favelas dos “Caminhos do Marapé”, “Caldeirão do Diabo” e Rua Clóvis Galvão de Moura Lacerda, esta última persistente até hoje, embora em fase final de regularização fundiária.

O instituto do “aluguel de chão” é característico de Santos e São Vicente e, pelo menos no Estado de São Paulo, não há registro de situações similares. Esses acordos por vezes resultaram em despejo de famílias de baixa renda, que por circunstâncias econômicas foram impedidas de pagar os aluguéis. Nesses casos, normalmente o Judiciário decidia por reter a propriedade à benfeitoria construída pela família despejada. O resultado é que esta, além de ter desrespeitado o direito à moradia, perde a edificação, resultado de uma vida inteira de sacrifícios. Esta situação, tolerada por sucessivos governos municipais, constitui-se em grave problema social.

Os proprietários dessas áreas, historicamente utilizaram seus ocupantes para pressionar a prefeitura a nelas implantar infraestrutura e equipamentos comunitários. Assim, embora com infraestrutura completa, a situação fundiária permanece precária. Ironicamente, conforme Carriço7, “os investimentos públicos nessas glebas acabam por valorizá-las e provocar a alta dos ‘aluguéis de chão’”, constituindo-se em ciclo vicioso, pois essa alta provoca inadimplência.

De acordo com a mesma fonte8, “essas áreas somente foram objeto de legislação de uso do solo detalhada em 1992, com a criação das Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS”9. Até então, a legislação urbanística aplicável aos morros de Santos era muito genérica10 e um pouco mais detalhada no caso do Morro da Nova Cintra11.

7 CARRIÇO, op. cit., p. 65. 8 Id., 2002, p. 65-66. 9 A Lei Complementar nº 53, de 15 de maio de 1992, que estabelece as Zonas Especiais de Interesse Social em Santos, foi uma das precursoras desse tipo de regulamentação, no Brasil. 10 Lei N° 3.531, de 16 de abril, de 1968. Estabelece Normas Ordenadoras e Disciplinadoras da Urbanização e da Preservação da Paisagem Natural dos Morros de Santos. 11 Este bairro localiza-se em uma planície no alto do maciço de morros da Ilha de São Vicente e se caracteriza por ser o único que guarda semelhança com as áreas de baixada e por isso passou a ter maior valor imobiliário, o que explica porque essa foi objeto de um zoneamento mais acurado, em 1968.

A permanência desta modalidade de aluguel merece análise específica que considere a legislação urbano-ambiental existente, em conjunto à questão mais geral dos Direitos Humanos, pois os Estados têm o papel de garantir o direito a “moradia adequada”, instituído pelo artigo 6º da Constituição Federal12, no rol dos direitos sociais.

Portanto, o objetivo deste trabalho é apresentar subsídios para entendimento mais amplo e formulação de políticas públicas mais certeiras e efetivas para a regularização fundiária e urbanística de assentamentos precários, por meio da análise de elementos jurídicos, sociais, ambientais e físico territoriais, especialmente das áreas objeto de “aluguel de chão”, localizadas na Macroárea Morros, de Santos.

Assim, apresenta-se o processo de ocupação da Macroárea Morros, destacando-se seu significado ambiental e suas fragilidades em termos de solo, relevo e cobertura vegetal, que a tornam suscetível ao risco geológico, devido à ocupação desordenada. Também se apresenta o processo de consolidação do “aluguel de chão” como modalidade de acesso a moradia para a população de baixa renda e de exploração fundiária para os proprietários de glebas desta área.

Posteriormente, busca-se compreender as origens e transformações do direito à moradia e como o conceito de “moradia adequada” tornou-se um dos direitos humanos. Em seguida, procura-se compreender como esta questão é regulada e como foram se estabelecendo as políticas habitacionais e urbanas no país, sobretudo no que respeita à regularização fundiária, destacando-se as oportunidades que se abrem a partir da instituição do novo marco legal, na última década.

No contexto local, recupera-se o processo de construção da política urbana, ambiental, habitacional e de controle de ocupações, em Santos, o que permitirá analisar, mais detidamente, os pontos críticos e as potencialidades de uma política de regularização fundiária e urbanística da Macroárea Morros.

Destaca-se que, este processo apresenta um desenvolvimento peculiar, pois, na década de 1990, foram articuladas e integradas várias políticas públicas focadas nesta área, por meio de uma gestão que promoveu a atuação de equipe multidisciplinar, privilegiando significativos momentos de participação popular e a aprovação, de legislação urbanística inovadora, que já tratava dos assentamentos não regularizados no município.

O processo de surgimento do “aluguel de chão” nos m orros de Santos A ocupação da Macroárea Morros tomou impulso no início do período republicano, junto com a formação da Santos moderna, possibilitada pela implantação do Plano de Saneamento de Saturnino de Brito, e com a atuação da Comissão Sanitária, chefiada por Guilherme Álvaro, em processo violento, que permitiu a eliminação dos cortiços da área central (LANNA, 1996)13.

Nos loteamentos desta nova Santos, além dos limites do centro, em direção à orla marítima, não havia espaço para a população de baixa renda, formada por trabalhadores imigrantes do

12 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 13 LANNA, Ana Lúcia Duarte (1996). Uma Cidade na Transição Santos: 1870-1913. São Paulo-Santos: Hucitec-Prefeitura Municipal de Santos.

sul da Europa, migrantes do nordeste e escravos libertos14. Para a maior parte das famílias a solução habitacional possível era a “autoconstrução”, com ocupação das encostas próximas ao centro, com edificações de madeira, conhecidas como “chalés” (fig. 1), usando tecnologia de muros de pedra com “juntas secas” (fig. 2), trazida por imigrantes da Ilha da Madeira e Açores. Este processo deu origem à ocupação dos morros São Bento, Monte Serrat, Fontana, Penha e Pacheco. A maior parte destes muros ainda existe até hoje.

Durante o período nacional-desenvolvimentista, nos governos de Getúlio Vargas, o país iniciou seu processo de industrialização e a imigração do sul da Europa começou a declinar, até se esgotar, no início da década de 1960, em função da melhoria das condições de vida nos países de origem. Por outro lado, a nascente indústria e o próprio porto demandavam mão-de-obra sem especialização, necessidade suprida pela migração nordestina, em face das secas que desde então agravavam as condições de vida nos estados do Nordeste.

Figura 1 . Óleo sobre tela com imagem do morro da Penha, Santos/SP.

Fonte: Dário Villares Barbosa Acervo da Pinacoteca do Estado (1944).

14 A única exceção neste período, que perdurou até a década de 1930, foi a implantação do loteamento popular denominado Vila Macuco, junto ao novo cais de Outeirinhos, e que deu origem ao bairro de mesmo nome.

Figura 2 . Muro de pedra com “juntas secas” no morro Monte Serrat, Santos/SP.

Fonte: Foto dos autores (2016).

Este período, devido à insuficiência da política habitacional brasileira, foi marcado por intensa ocupação irregular de manguezais, na Ilha de São Vicente e nos municípios vizinhos, assim como de encostas, a partir das áreas anteriormente ocupadas, estendendo-se ao sul do maciço central de morros. A nova população residente não dominava técnicas de construção em encostas, como os ilhéus, no período anterior, resultando em um modo de ocupação (fig. 3) muito mais suscetível a desastres, em face da execução inadequada de cortes e aterros, sem apoio técnico, agravando o risco geológico (IPT, 1979). Sobretudo entre os anos 1950 e

1970, com ocupação mais intensa, os escorregamentos com vítimas foram uma constante nos morros da área insular.

Figura 3. Modo de ocupação da Macroárea Morros, Monte Serrat, Santos/SP.

Fonte: Prefeitura de Santos, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (2014).

Posteriormente, com a crise econômica descrita em Carriço15, houve aumento de inflação e desemprego, com graves consequências em termos de ampliação das ocupações precárias, nos principais municípios brasileiros. Em Santos e São Vicente a crise foi sentida de forma intensa, em face da dependência do mercado de trabalho destas cidades com relação ao porto e a indústria de base implantada em Cubatão16.

Neste período, os assentamentos precários surgidos anteriormente apresentaram expressivo crescimento e outros surgiram, ampliando-se situações de risco geológico (fig. 4). O vetor sul de expansão das ocupações consolidou-se, com a conurbação dos morros São Bento, Jabaquara, Marapé e Nova Cintra, além do surgimento da Vila Progresso e, nos anos 1990, a ocupação dos morros Santa Maria e Caneleira, formando um eixo de favelas que, na década passada, interligou as vertentes norte, leste e oeste dos morros.

15 CARRIÇO, op. cit. 16 Sobretudo a partir do governo de Juscelino Kubitschek, o município de Cubatão, vizinho a Santos, passou a abrigar importante indústria siderúrgica e petroquímica, responsável pelo crescimento econômico da Baixada Santista.

Figura 4. Assentamento precário no morro Santa Maria, Santos/SP.

Fonte: Foto dos autores (2010).

O “aluguel de chão” como forma de exploração fundiária destas áreas, surge entre os dois últimos períodos, com intensificação das ocupações nos morros Pacheco, José Menino e Nova Cintra, assim como com a ocupação acelerada da Vila Progresso, nas décadas de 1970 e 1980, conforme apresentado em Ambrosio17. Abaixo (fig.5), apresenta-se a localização destes assentamentos, classificados como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) do Tipo 1, respectivamente, “Pacheco” nº 1, “Vila Progresso” nº 2, “Torquato Dias” nº 3, “José Menino” nº 4 e “Clóvis Galvão de Moura Lacerda” n° 5, sendo que esta última localiza-se na Macroárea Leste e a de nº 5 tem sua maior porção no município de São Vicente. De acordo com os dados da tabela 1, o número de unidades habitacionais nas áreas situadas na Macroárea Morros se aproxima de mil. Contudo, é importante destacar que, devido aos tipos de edificações característicos dos assentamentos dos morros, há muitas situações de coabitação familiar em um mesmo edifício, como casas sobrepostas implantadas em desníveis. Portanto, embora não haja dados atualizados disponíveis, certamente o número de famílias é muito maior. Na Vila Progresso, a maior dessas áreas, segundo dados da Coordenadoria de Regularização Fundiária18, em 2010, estimava-se em 949 o número de famílias.

17 AMBROSIO, Rafael Paulo (2013). Acesso à terra urbana e informalidade: Vila Progresso e o aluguel de chão. Dissertação de mestrado. São Paulo: FAU USP. 18 Coordenadoria de Regularização Fundiária (COREFUR) da Secretaria Municipal de Planejamento, atual Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano.

Figura 5. Localização das áreas de “aluguel de chão” na Macroárea Morros, Santos/SP.

Fonte: Elaborado pelos autores (2016).

Tabela 1. Número de unidades habitacionais em áreas de “aluguel de chão” na Macroárea Morros, Santos/SP

Denominação do Assentamento Nº UH

Pacheco 362

Vila Progresso 413

José Menino 66

Torquato Dias 114

Total 955

Fonte: Plano Municipal de Regularização Fundiária, Prefeitura Municipal de Santos (2014).

Desde então, a política municipal de habitação e de regularização fundiária passa por avanços e retrocessos. Mas apenas a partir de 1989, com a criação do Grupo de Morros, e com aprovação da Lei de ZEIS, consolidou-se uma política municipal para o setor, a qual foi impulsionada, décadas mais tarde, com a criação da COREFUR, coordenadoria específica para regularização fundiária e com a aprovação do marco legal nacional, Lei Federal nº 11.977, de 07 de julho de 200919.

Hoje, a regularização fundiária se torna ainda mais urgente, pois apesar do município, em 2015, ter alcançado o sexto melhor Índice de Desenvolvimento Humano do país e o terceiro melhor do estado, o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (SÃO PAULO et alii, 2010), apresenta setores classificados como de Vulnerabilidade Alta e Muito Alta, nas Macroáreas

19 BRASIL. Lei n° 11.977, de 07 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas.

Morros, Centro e Noroeste. Por outro lado, setores da Macroárea Leste foram classificados como de “baixíssima vulnerabilidade” e “vulnerabilidade muito baixa”.

Este quadro é marcado por constante tensão e desequilíbrio, por parte de gestores públicos e operadores do direito, entre direito à propriedade, direito à moradia digna e direito à cidade, os últimos entendidos como direitos sociais, no âmbito dois direitos humanos, conforme será abordado a seguir.

Direitos humanos: origens e transformações Após a Segunda Guerra Mundial, evidenciaram-se os papéis do Estado na garantia da paz e do direito, responsável pela legalidade ou pelo equilíbrio que caminhe para paz, conforme Benacchio e Cassettuari (2014, p.51)20:

A compreensão do Direito por meio da construção de uma ordem legal embasada na positividade acarretou o distanciamento da lei perante o Direito quando observamos a ruptura dos Direitos Humanos ao longo das duas grandes guerras do século XX. A tomada do poder legislativo por grupos políticos imbuídos de determinadas ideologias totalitárias redundou em situações nefastas de opressão ao ser humano, tudo encetado por políticas oficiais do Estado.

Nesse contexto, em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração dos Direitos Humanos e, em 1966, foram promulgados os Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. No primeiro, valorizou-se a liberdade individual e o não abuso do Estado na vida privada. No segundo, destacou-se o apoio às classes desfavorecidas. Esse segundo pacto vigorou a partir de 1976, com a 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, Habitat I, realizada no Canadá, quando os Estados-partes desenvolveram o conceito de “moradia adequada”.

Em 1991, o Comentário Geral nº 4 assim fixa parâmetros para avaliação do cumprimento dos ditames do direito à habitação adequada: segurança legal da ocupação, materiais, equipamentos e infraestrutura, disponibilidade de serviços, acessibilidade, habitabilidade, facilidade de acesso, localização e respeito pelo meio cultural. Em relação à segurança da ocupação, discutiu-se o direito de segurança jurídica da moradia, ainda que não fosse pela propriedade, mas por outros instrumentos jurídicos, como locação social e concessão.

Em 1996, aconteceu a 2ª Conferência Habitat, na Turquia, definindo a Agenda Habitat II, acrescentando-se temas globais e ambientais, em que os conceitos de sustentabilidade e de participação popular foram incorporados, surgindo a questão da violação dos direitos humanos para a retirada forçada de moradores, em face da vulnerabilidade social dos ocupantes, por conta de guerras, conflitos sociais e políticas estatais de renovação urbana, instalação de equipamentos públicos e modificação de zoneamentos. Apontou-se, também, a importância da valoração econômica adequada para as desapropriações e a garantia, pelo Estado, do restabelecimento da proteção ao direito à moradia aos desapossados, para que não ficassem delegadas apenas ao mercado tais negociações.

Em 2016, será realizada a 3ª Conferência das Nações Unidas, Habitat III, no Equador. O objetivo será rever as agendas Habitat I e II, formulando os próximos compromissos,

20 BENACCHIO, Marcelo; CASSETTUARI, Denis. (2014). Regularização fundiária urbana como efetivação do direito humano à moradia adequada. in NALINI, J. N.; LEVY, W. (orgs.). Regularização Fundiária. Rio de Janeiro: Forense, p. 49-71.

enfrentando o fato de que, agora, a maior parte da população global vive em cidades, com maiores níveis de desigualdades do que há vinte anos.

Mas em que medida este arcabouço de proteção aos direitos sociais, construído pela paradiplomacia internacional, pode garantir o direito à moradia e à cidade, no Brasil? Para responder esta questão, em seguida será avaliada a evolução do direito à moradia em nosso país.

Evolução da política habitacional no Brasil No final do século XIX, os trabalhadores encontravam dificuldades para adquirir ou construir moradias próximas ao mercado de trabalho, enquanto os industriais viam nos serviços de transportes, uma oportunidade de esquivarem-se da responsabilidade de prover habitações para os operários, próximas às fábricas. Neste contexto, a habitação para baixa renda tornou-se responsabilidade pública, configurando uma crise social.

Somente na Constituição de 1934 surgiu o conceito de “bem-estar social”, quando já era grave a crise da habitação, nos centros urbanos mais populosos, em que milhões de famílias residiam em cortiços e favelas, levando ao congelamento do valor dos aluguéis21. Assim, a evolução da política habitacional, no Brasil, foi marcada por marchas e contramarchas, conforme analisado em Bonduki (1998)22.

Somente na década de 1960, surgiram os primeiros movimentos populares, contra a situação socioeconômica e a política urbana segregacionista, que vão se consolidar nos anos 1970, sendo o mais importante o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU).

Em 1964, o governo militar cria o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e o Banco Nacional da Habitação (BNH), cujos recursos e operações de crédito imobiliário eram geridos pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Apesar da vasta produção do BNH, este não conseguiu reduzir substancialmente o déficit de moradias, nem a ampliação expressiva das favelas, como ocorreu em Santos. Com graves problemas de gestão, o BNH acumulava grande déficit financeiro, sendo extinto em 1986, aprofundando a falta de investimentos em habitação no país, com reflexos que perduram até hoje.

No ano seguinte, o Congresso Nacional recebeu do MNRU emenda popular reivindicatória, com mais de 200 mil assinaturas, resultando na incorporação do capítulo sobre política urbana na Constituição Federal, introduzindo os princípios fundamentais das “funções sociais da propriedade e da cidade”, marco legal de enorme importância para as lutas sociais urbanas. Delegou-se, assim, aos municípios a execução da política urbana, por meio do ordenamento do pleno desenvolvimento da “função social da propriedade”.

Em relação aos pactos globais dos Direitos Humanos, o Brasil aderiu somente em 1992, por meio dos Decretos Federais n° 591 e n° 592. Já o direito expresso à moradia, foi inserido na Constituição, em 2000, pela Emenda nº 26:

21 Em face da inflação elevada e da carestia, devido à 2ª Guerra Mundial, com o Decreto-lei nº 4598, de 1942, Getúlio Vargas, procurou aliviar o custo de vida dos trabalhadores com o congelamento dos aluguéis, por dois anos a partir de dezembro de 1941, além de outras medidas que tornaram a relação locatícia desequilibrada e acabou por provocar queda expressiva da produção de novas habitações pelo mercado. Este processo impulsionou o surgimento de favelas nas grandes cidades. 22 BONDUKI, Nabil (1998). Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade.

Art. 6° São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.23

Ainda em 1989, fora apresentado ao Congresso Nacional, o projeto de lei nº 181, visando regulamentar o capítulo da política urbana da Constituição, transformando-se, posteriormente, no Estatuto da Cidade. Mas durante os anos 1990, enquanto o projeto tramitava com dificuldades, a aplicação pioneira do novo marco constitucional, por parte de municípios como Santos, enfrentou enorme resistência, organizada por setores patrimonialistas da sociedade, devido à ausência da regulamentação dos artigos 182 e 183.

O Estatuto da Cidade representou grande avanço, pois instituiu instrumentos de política urbana que permitem, aos municípios, regulamentar estratégias para incremento da produção habitacional e efetiva ordenação do solo, em atendimento aos princípios constitucionais mencionados.

Em 2004, a Emenda Constitucional n° 45 reconheceu a importância dos tratados de direitos humanos, no Brasil, afastando a natureza estritamente econômica no trato do direito à moradia adequada, estabelecendo, no parágrafo 3°, do artigo 5º, que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes às emendas constitucionais, desde que aprovados pelo Congresso Nacional.

Em 2003, o governo federal criou o Ministério das Cidades, com objetivo de enfrentamento da crise urbana, privilegiando a produção de programas de oferta de infraestrutura, reabilitação de áreas degradadas e enfrentamento ao risco geológico. Em 2005, foi criado o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, reativando o mercado de habitação popular, com uma série de subprogramas.

Em 2009, aprovou-se a Lei Federal n° 11.977, consolidando um arcabouço legal e institucional, que possibilita garantir concretamente o direito à moradia adequada. Esta norma estabeleceu critérios e métodos de operacionalização da regularização fundiária, assim definida:

Art. 46 A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da “propriedade urbana” e o direito ao “meio ambiente” ecologicamente equilibrado.

É a partir deste arcabouço jurídico institucional que se avaliará, a seguir, a evolução da política de regularização fundiária, em Santos.

A regularização fundiária no município de Santos e na Macroárea Morros Em Santos, os assentamentos precários surgiram em localizações dispersas, afastadas da orla marítima, segundo descrito em Carriço24, como no maciço dos morros, na atual Macroárea Noroeste, que ainda era em grande parte desocupada, e na área central, com cortiços formados em casarões antes ocupados pelas famílias abastadas, que passaram a

23 Foram também inseridos através de emendas os direitos a alimentação (Emenda Constitucional nº 64, de 2010) e ao transporte (Emenda Constitucional nº 90, de 2015). 24 CARRIÇO, op. cit.

residir na orla. Este processo foi caracterizado pela ausência de marco legal para o setor de regularização fundiária, tanto em nível local, como em nacional.

Até os anos 1960, ainda não havia normas que disciplinassem o uso e a ocupação da Macroárea Morros, o que contribuiu para configurar um território desassistido pelo Poder Público e com ocupações em diversas áreas impróprias para assentamento humano. Em 1956, a Lei Municipal nº 1.83125 definiu parâmetros diferenciados por zonas e permitiu a verticalização da área central e da avenida da praia, atendendo à pressão por maior potencial construtivo nas áreas mais valorizadas, conforme Rios (2012, p. 125)26. Para a habitação de baixa renda, a lei reservou áreas problemáticas, sem infraestrutura, em trechos descontínuos das Macroáreas Leste, Morros e Noroeste. Nessas áreas eram permitidas “casas do tipo econômico”, que a legislação regulamentou, e chalés de madeira.

Em março daquele ano, após chuvas intensas, ocorreram diversos escorregamentos nos morros, causando pelo menos 64 mortes e desabrigando centenas de moradores (PICHLER, 1957)27. Ironicamente este evento foi uma das causas que levaram a ocupação inicial da Vila Progresso, conforme descrito em Ambrosio28.

O final dos anos 1950 é marcado pelo aumento da migração e aprofundamento da crise de moradia em Santos. Apenas em 1965 foi criada a Companhia Habitacional da Baixada Santista (COHAB-ST), em conjunto com municípios vizinhos29. A nova empresa aderiu ao SFH e passou a ter atuação importante na atual Macroárea Noroeste, por meio da urbanização de 1.057 lotes, no bairro Areia Branca, e da construção de 636 casas no bairro Jardim Castelo, segundo dados da COHAB.

Em 1968, foi promulgada a Lei nº 3.53330, estabelecendo requisitos de preservação, uso do solo permitido e procedimentos para estabilização de taludes, com as mesmas exigências edilícias do Código de Edificações do município. Contudo, esta norma não dispunha de zoneamento indicando áreas suscetíveis para ocupação, em termos ambientais e de risco geológico. Na mesma data foi promulgado o Plano Diretor Físico do município31, que vigorou por trinta anos, sem, contudo, estabelecer estratégias de garantia do direito a moradia para a população de baixa renda.

Vale lembrar que os anos seguintes foram politicamente conturbados, pois o prefeito eleito democraticamente, Esmeraldo Tarquínio, fora cassado em 1968, e o município perdeu sua autonomia política, devido a abrigar o Porto de Santos32.

A década de 1970 foi marcada por ampliação ainda maior do fluxo migratório de baixa renda, agravando o quadro de segregação socioespacial na região. Segundo Rios (2012, p.128)33: 25 SANTOS. Lei nº 1.831, de 9 de maio de 1956. Altera o zoneamento do Município. 26 RIOS, Lenimar Gonçalves (2012). O processo de revisão do Plano Diretor de Santos à luz das diretrizes do Estatuto da Cidade. In: VAZQUEZ, D. A. (org.). A questão urbana na Baixada Santista: políticas, vulnerabilidades e desafios para o desenvolvimento. Santos: Leopoldianum. 27 PICHLER, Ernesto (1957). Aspectos geológicos dos escorregamentos de Santos, Boletim da Sociedade Brasileira de Geologia, 6(2), setembro. São Paulo: p. 69 - 77. 28 AMBROSIO, op. cit. 29 A COHAB-ST é uma sociedade de economia mista, qualificada como agente financeiro e tendo como acionistas as prefeituras de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão, onde também atua. 30 SANTOS. Lei nº 3.533, de 16 de abril de 1968. Estabelece normas organizadoras e disciplinadoras da urbanização e da preservação da paisagem natural nos morros de Santos. 31 SANTOS, Lei nº 3.529, de 16 de abril de 1968. Estabelece o Plano Diretor Físico do Município, suas normas ordenadoras e disciplinadoras. 32 O município somente teve restabelecida sua autonomia política em 1984. Mas foi apenas a partir de 1989, que o processo de planejamento urbano participativo foi instituído como política.

A ineficácia da lei e a negligência do Poder Público culminaram com novos eventos catastróficos em 1978, que resultou na Carta Geotécnica dos Morros, elaborada pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).

De fato, entre 1978 e 1979, foram registradas 26 mortes devidas a escorregamentos, sendo 17 na Macroárea Morros. Neste período, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) foi contratado pelo Estado de São Paulo, para elaborar a Carta Geotécnica dos Morros de Santos e São Vicente (fig.4), que serviu como base técnica para buscar uma adequada ocupação do ponto de vista físico territorial para a Macroárea Morros. Instrumento de planejamento urbano pioneiro no Brasil, esta carta classifica dois grupos de áreas, separando aquelas aptas à ocupação urbana com restrições geotécnicas, daquelas consideradas inadequadas à urbanização. Em 1980, ocorreu novo avanço, com a criação da Defesa Civil do Município.

Figura 4. Áreas da Carta Geotécnica dos Morros de Santos e São Vicente, delimitadas segundo a aptidão para ocupação, Santos/SP.

Fonte: Bandini (2015, p. 153).

A década seguinte caracterizou-se por baixo crescimento econômico, e o fluxo migratório e taxa de crescimento demográfico desaceleraram-se. Por outro lado, a crise do modelo desenvolvimentista fez surgir novos assentamentos precários, especialmente na Macroárea Morros, em um quadro de redução dos projetos habitacionais, inclusive daqueles executados nos municípios vizinhos, que indiretamente reduziam o déficit de Santos. Ainda assim, em 1981, a COHAB-ST entregou o conjunto habitacional Dale Coutinho, no bairro Castelo, na Macroárea Noroeste, com 1.200 unidades.

33 RIOS, op. cit.

Com a crise do SNH e a extinção do BNH, a ausência de marco legal e de fonte de recursos federais perdurou por quase duas décadas. Sem alternativa, o município passou a estruturar sua própria política habitacional de interesse social, a partir dos novos princípios constitucionais. Foi após a retomada da autonomia política do município, a partir de 1989, que se consolidou uma política para o setor, com a criação do Grupo de Morros e aprovação da Lei de ZEIS, constituindo um marco na gestão política e institucional, com ênfase na participação popular.

Segundo Nogueira (2002, p.162-172)34, o grupo criou sua própria estrutura administrativa, composta por equipe multidisciplinar. Um conjunto de programas foi implantado, pautado pela necessidade de redução de riscos, prevenção de acidentes associados a escorregamentos, visando ainda melhorar a infraestrutura urbana e serviços públicos. Foram implantados programas específicos, sendo o de Obras Públicas, no qual se destacam as obras de drenagem superficial e caminhos púbicos; Programa de Saneamento Ambiental, com destaque para implantação de redes de esgoto executadas pela própria Prefeitura; Programa de Planejamento, Controle e Orientação da Ocupação Urbana, com o cadastro de ocupações, levantamentos de campo, solução das situações de risco e controle da ocupação em áreas impróprias, por meio de multas, embargos e demolições; e Programa Habitacional, com as demandas de sem teto, residentes em assentamentos irregulares, moradores de área de risco e moradores das áreas de “aluguel de chão”.

Segundo Nogueira (2002)35, o grupo criou sua própria estrutura administrativa, composta por equipe multidisciplinar. Um conjunto de programas foi implantado, pautado pela necessidade de redução de riscos, prevenção de acidentes associados a escorregamentos, visando ainda melhorar a infraestrutura urbana e serviços públicos. Foram implantados alguns programas específicos, sendo o de Obras Públicas, no qual se destacam as obras de drenagem superficial e caminhos púbicos; Programa de Saneamento Ambiental, com destaque para implantação de redes de esgoto executadas pela própria Prefeitura; Programa de Planejamento, Controle e Orientação da Ocupação Urbana, com o cadastro de ocupações, levantamentos de campo, evolução das situações de risco e controle da ocupação em áreas impróprias, por meio de multas, embargos e demolições; e Programa Habitacional, com as demandas dos sem teto, dos residentes em assentamentos irregulares, dos moradores de área de risco e dos moradores das áreas de “aluguel de chão”.

Esta experiência resultou em legislação mais adequada àquela realidade, sendo a principal a Lei de ZEIS. Também foi intensa a participação popular nestes programas, sendo criadas as Comissões de Urbanização e Legalização (COMULs), em cada ZEIS 1, compostas por representantes do Poder Público e moradores das comunidades.

Ainda, segundo Nogueira (2002)36, o principal instrumento técnico adotado pelo grupo foi o Plano Preventivo de Defesa Civil (PPDC), conceituado pelo IPT e pelo Instituto Geológico, e aplicado pela primeira vez na Baixada Santista e Litoral Norte, entre 1988 e 1989. Com acompanhamento de índices pluviométricos, previsão meteorológica permanente e vistorias em campo para verificar indícios de movimentação em áreas de risco, os técnicos estimam a possibilidade de escorregamentos e atuam preventivamente por meio de ações que

34 NOGUEIRA F. R. (2002). Gerenciamento de riscos ambientais associados a escorregamentos: contribuição as políticas públicas municipais para áreas de ocupação subnormal. Tese de Doutorado. Rio Claro: Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas. 35 NOGUEIRA, op. cit.. 36 NOGUEIRA, op. cit., p. 172-180.

minimizem as consequências de desastres, com informes nas mídias e remoção preventiva de famílias em áreas potencialmente de risco.

Até hoje, o PPDC é implantado entre os meses de dezembro a abril, pela Defesa Civil37, quando os índices pluviométricos atingem 80 mm, em 72 horas. Conforme Bandini (2015, p. 6 - 7)38:

Em Santos são notórios e palpáveis os ganhos como a implementação dessa normatização, principalmente em relação à convivência com o risco. A partir da implementação do Grupo de Morros, da estrutura de Defesa Civil, do Departamento de Administração Regional dos Morros e, principalmente, do Plano Preventivo de Defesa Civil - PPDC e da ação dos Núcleos de Defesa Civil – NUDECs, reduziu-se significativamente o número de vítimas fatais nos Morros de Santos. Nesses últimos 25 anos de implementação do PPDC foram registradas apenas 04 mortes em acidentes nos morros da área urbana de Santos, sendo que o último acidente com morte ocorreu no ano 2000.

Em 1991, foram criados o Fundo de Incentivo à Construção de Habitação Popular (FINCOHAP), o Conselho Municipal de Habitação (CMH)39 e um ano depois a Lei de ZEIS. A partir de então, passaram a ser realizadas as Conferências Municipais de Habitação do município. As ZEIS têm como objetivo garantir espaços dentro da cidade onde o direito à moradia adequada seja efetivado. Assim, foram criados três tipos de ZEIS, da seguinte forma:

a) ZEIS 1: parcelamentos ou loteamentos irregulares ou clandestinos, incluindo casos de aluguel de chão, habitados por população de baixa renda familiar, destinados exclusivamente à regularização jurídica da posse, à legalização do parcelamento do solo e sua integração à estrutura urbana;

b) ZEIS 2: terrenos não edificados, subutilizados ou não utilizados, que, por sua localização e características, sejam destinados exclusivamente à implantação de programas habitacionais de interesse social;

c) ZEIS 3: áreas com concentração de edificações de uso residencial plurihabitacional precário, onde deve ocorrer a melhoria de condições de habitabilidade nestas edificações ou o remanejamento de moradores cadastrados para novas unidades habitacionais.

Pode-se afirmar que esta norma foi precursora, pois foi aprovada dois meses antes da adesão do Brasil aos Pactos dos Direitos Humanos, dentre eles o Pacto Social, e o direito à moradia foi acrescentado à Constituição Federal, como direito social, apenas em 2000.

Neste período, apesar da baixa disponibilidade de financiamento, ocorreu um salto na produção habitacional municipal, com a estrutura administrativa e institucional estabelecida. Entre 1991 e 1992, ocorreram as primeiras intervenções da COHAB-ST nas ZEIS da Macroárea Morros, como os projetos “Vila Vitória”, com produção de 93 lotes urbanizados, “Vila Telma”, com reurbanização de 111 lotes, além da implantação do projeto piloto da Lei de

37 Departamento atualmente afeto à Secretaria Municipal de Segurança. 38 BANDINI Marcos Pellegrini. (2015). O papel da Defesa Civil na gestão dos riscos naturais: o caso da área insular de Santos – SP. Santos. In FREITAS, M. I. C.; LOMBARDO, M. A.; ZACHARIAS, A. A. (orgs). Vulnerabilidades e Riscos: Reflexões e Aplicações na Análise do Território. Rio Claro: UNESP-IGCE-CEAPLA, 2015, p. 153 - 157. 39 A Lei Municipal nº 810, de 12 de dezembro de 1991 (revogada pela Lei Municipal nº 1.519, de 25 de outubro de 1996) criou o FINCOHAP e o Decreto Municipal nº 1759, de 1992, a regulamentou. A Lei Municipal nº 817, de 18 de dezembro de 1991, criou o CMH.

ZEIS, em área municipal do “Morro do José Menino”40, na qual foi concedido direito real de uso, como instrumento de garantia da posse, a 392 famílias, uma década antes da sanção do Estatuto da Cidade. Nesta área, a COHAB-ST urbanizou 48 lotes a fim de atender demanda das áreas de risco e casos pontuais.

Como neste, foram utilizados recursos municipais em vários projetos da companhia, no período, caracterizados pela diversidade edilícia e de formas de produção habitacional, tais como lotes urbanizados, mutirões e outros. O projeto de urbanização da favela do “Dique da Vila Gilda”, o maior de todos, executado a partir de 1994, que contou, também, com recursos federais e do programa Habitar Brasil - BID, e o do morro “Ilhéu Alto”, em parceria com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), a partir de 1995, foram os únicos a contar com recursos externos nos anos 1990. Desde então, segundo a COHAB-SP, a companhia estadual construiu 320 apartamentos em outras duas áreas, na Macroárea Morros.

Em 2005, a COREFUR foi criada com o objetivo de agilizar a regularização de assentamentos no município, a maioria localizada em ZEIS 1. Mas mesmo com a existência da Lei de ZEIS e do Estatuto da Cidade, este período anterior à Lei Federal nº 11.977/2009 foi marcado pela insuficiência de instrumentos mais efetivos para apoiar a política municipal de regularização fundiária, embora a moradia já fosse constitucionalmente um direito social, e o Estatuto da Cidade elegesse a regularização fundiária como um dos instrumentos de política urbana. Além disso, o Brasil já era signatário do Pacto Social e duas Conferências Habitat já haviam ocorrido. Portanto, o conceito mais amplo de moradia, como localização, acesso, segurança jurídica e sustentabilidade ambiental da ocupação, já era considerado no processo de regularização fundiária.

Com a criação da COREFUR, foram retomados projetos de regularização, em áreas de “aluguel de chão”, paralisados na década anterior, como “Vila Progresso”, “Torquato Dias”, “Caminhos do Marapé I” e “Clovis Galvão de Moura Lacerda”. Também é deste período o início da parceria do município com a Secretaria de Estado da Habitação, por meio de Convênios de Cooperação Técnica41, primeiramente com o programa “Pró-Lar Regularização” e posteriormente com o “Cidade Legal”, que garantiram consultorias e levantamentos técnicos.

Com o intuito de reduzir os riscos geológicos nos assentamentos precários dos morros da área insular de Santos, em 2006, foi elaborado o Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR), atualizado em 2012. O PMRR mapeou áreas dos morros conforme o grau de risco, subdividindo-as em setores e prevendo onde são necessárias remoções, obras de contenção, custos, além do monitoramento permanente de áreas mais frágeis.

Contudo, foi após a instituição da Lei Federal nº 11.977/2009 e da Lei Complementar nº 778, de 31 de agosto de 201242, que definiu os procedimentos para a regularização fundiária no município, que a política para o setor tomou novo impulso e se consolidou. Em 2014, elaborou-se o Plano Municipal de Regularização Fundiária e Urbanística, trabalho interdisciplinar coordenado pela SEDURB, com apoio da COHAB-ST, Defesa Civil do Município e Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Este trabalho, detalhadamente

40 No município de Santos, apenas pequena parte deste assentamento pertence à Santa Casa de Misericórdia, em que é exercido o “aluguel de chão”. 41 Decreto n° 48.340, de 18 de dezembro de 2003 e Decreto n° 52.052, de 13 de agosto de 2007. 42 SANTOS. Lei Complementar nº 778, de 31 de agosto de 2012. Disciplina os procedimentos para regularização fundiária de assentamentos urbanos consolidados no Município.

apresentado em LIMA JUNIOR e CARRIÇO (2014)43, identificou sete tipologias de ocupação, com distintas modalidades de intervenção, de forma a classificar cada assentamento e posteriormente hierarquizar estas intervenções, de acordo com critérios ambientais, jurídicos, urbanísticos, sociais, financeiros e quanto aos projetos incidentes previstos. Esta hierarquia pode ser automaticamente atualizada, por estar mapeada no Sistema de Informações Geográficas de Santos (SIGSantos). Este plano possibilitou definir estratégias de atuação mais racionais e eficazes, representando um marco da política urbana do município:

Com a hierarquização definida, também é possível administrar a origem-destino das demandas, conforme cada tipologia, permitindo, assim, uma captação de terras e de verbas assertiva e eficaz. Desta forma, acredita-se que o município passa a estar mais preparado para atuar na área de regularização fundiária e urbanística, articuladas com outras políticas setoriais e com o apoio de outras esferas de governo, em um contexto francamente favorável, se comparado ao de décadas anteriores. (LIMA JUNIOR; CARRIÇO, 2014)44.

Apesar do esforço empreendido, em termos de políticas públicas e gestão, a prática do “aluguel de chão” ainda provoca insegurança social na Macroárea Morros, pois sua solução envolve complexas questões de cunho jurídico, no tocante ao direito de propriedade, e de cunho político, pois pressupõe contrariar interesses de proprietários de glebas. Merece menção o fato de que algumas tratativas junto a bancos públicos foram feitas, no sentido de se criarem linhas de financiamento específicas para esta modalidade, mas sem sucesso.

A questão ambiental em face da questão habitacional na Macroárea Morros Torna-se cada vez mais urgente compreender e ordenar os usos da Macroárea Morros, que em primeira análise apresentam conflitos entre o direito ambiental, em que prevalece o princípio da indisponibilidade da preservação do meio ambiente, e o uso habitacional, caracterizado majoritariamente por assentamentos precários, onde residem milhares de famílias de baixa renda.

Do ponto de vista ambiental, nesta região incidem APPs de grandes dimensões, caracterizadas por declividade acima de 45° ou pela presença de córregos e nascentes, por estas condições desprezadas pelo setor imobiliário. Do ponto de vista das ocupações para fins habitacionais, a maioria é irregular e precária, quanto aos aspectos urbanísticos e fundiários. Além destes aspectos, deve-se considerar a falta de acesso ao mercado formal de habitação, pela população de baixa renda, que em Santos é especialmente grave, em face do alto valor dos terrenos. Assim, esta conjunção de fatores contribui para a ocupação de áreas que deveriam ser protegidas.

De fato, o número de assentamentos precários e de ocorrências de acidentes decorrentes de escorregamentos, em épocas chuvosas, aumentou consideravelmente nas três últimas décadas, no município45. Assim como em outros centros urbanos, a ocupação de APPs torna recorrentes as tragédias, com movimentos de massa e inundações. São catástrofes típicas, causadas por ocupações que destroem as coberturas vegetais, impermeabilizam o solo e

43 LIMA JUNIOR, Nelson Gonçalves de; CARRIÇO, José Marques (2014). O plano de regularização fundiária e urbanística do município de Santos/SP: priorizando a inclusão social e a cidadania. I Seminário URBFAVELAS. São Bernardo do Campo, SP. 44 Id., 2014. 45 Vale lembrar, ainda, que o município possui um dos maiores índices pluviométricos do país, com isoietas em torno de 2.000 a 2.500 mm anuais.

alteram relevos, com cortes inadequados de terra. O problema é agravado quando ocorrem ocupações precárias com alteração da geometria natural dos terrenos, sem sistema de drenagem e de esgoto, dentre outros elementos de infraestrutura. Também é frequente que as moradias sejam executadas pelos próprios moradores de baixa renda, com baixo investimento na segurança de obras.

Com exceção da área denominada “Torquato Dias”, nas demais glebas da Macroárea Morros onde persiste o “aluguel de chão”, existem situações de risco geológico. Estes fatores são agravados pelo fato de que estas áreas são de propriedade privada. Portanto, a demora na regularização fundiária e urbanística destes assentamentos provoca grande perda de energia por parte das equipes que atuam no controle de ocupação e do risco geológico. Por outro lado, a atual política de proteção e defesa civil definida pela Lei Federal nº 12.608/2012, estabelece a obrigatoriedade do Poder Público identificar as áreas críticas quanto ao risco e garantir de forma compulsória um processo de redução do risco, com a estruturação de um plano de obras, bem assim com uma estratégia de remoção das moradias, em setores com severas restrições geológico-geotécnicas.

De fato, apesar das possibilidades abertas pelo novo marco legal, o município não tem conseguido enfrentar questões estruturais, em áreas privadas, que por vezes demandam remoções, implantação de infraestrutura e provisão habitacional. Outro aspecto relevante é a ausência de uma política municipal de assistência técnica, nos termos da Lei Federal nº 10.888/200846, que garanta a consolidação de moradias, quando possível tecnicamente.

Quanto à política ambiental47, o Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica ainda está no início de sua formulação. Este plano é de extrema importância, já que a Lei Federal nº 11.428/200648, Lei da Mata Atlântica prevê que o município elabore e desenvolva um Plano de Proteção, no qual sejam mapeadas as áreas degradadas por antigas pedreiras, saibreiras, áreas de risco muito alto em APPs, enfim áreas prioritárias para a recuperação, na Macroárea Morros.

Soma-se a política ambiental, a atuação que a Defesa Civil do município desenvolve, em atendimento à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, disciplinada pela Lei Federal n° 12.608/201249, que estabelece o papel dos municípios no tocante à fiscalização e vedação de novas ocupações nas áreas de risco, contribuindo assim para preservação das áreas de APP, pois via de regra estas áreas se sobrepõem.

Por outro lado, é importante destacar que o Ministério Público Estadual, que normalmente acompanha os processos de regularização destas áreas, parece ainda não ter formado uma visão da problemática, que sopese direito de propriedade, direito à moradia e direito ao meio ambiente equilibrado. Este fato é importante, pois o órgão poderia atuar com mais firmeza, no apoio ao município, para o enfrentamento do “aluguel de chão”.

46 BRASIL. Lei nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social. 47 É importante destacar que a política ambiental conta hoje com o Plano Municipal de Gestão integrada de Resíduos Sólidos e o Plano Municipal de Saneamento Básico, que contribuem de forma indireta, mas que também são importantes, na preservação e recuperação de APPs. 48 BRASIL, Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica, e dá outras providências. 49 BRASIL, Lei Federal n° 12.608, de 10 de abril de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil - CONPDEC; autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres.

Limites e potenciais para regularização fundiária d e glebas com “aluguel de chão” De extrema relevância para a solução dos impasses ocorridos nos projetos de regularização fundiária de glebas onde há “aluguel de chão”, é a ausência de programas estatais específicos. Compreende-se que, por se tratar de questão que ocorre em poucos municípios, as esferas federal e estadual não tenham construído alternativas de financiamento voltado para a aquisição de lotes regularizados nestas áreas. Contudo, o próprio município de Santos, por exemplo, poderia garantir a utilização de parte do FINCOHAP para esta finalidade, pois com a utilização da Lei nº 11.977/2009, os projetos de regularização fundiária têm adquirido maior celeridade, esbarrando no final, na questão do financiamento.

Ainda assim, seria importante que órgãos como Ministério das Cidades e Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo oferecessem apoio financeiro aos municípios de Santos e São Vicente, em face da dimensão do problema50.

No que concerne à atuação de órgãos de fiscalização, dentre os quais se destaca o Ministério Público Estadual, é importante que evolua o entendimento da questão, pois a atuação deste órgão poderia ser mais decisiva, se o direito a moradia fosse considerado mais relevante do que o direito a propriedade nestes casos. É oportuno destacar, ainda, ser facilmente caracterizável a burla à Lei Federal nº 6.766/1979, que dispõe do parcelamento do solo urbano, nas áreas de “aluguel de chão”51.

Também é condenável a postura dos proprietários dessas glebas, que buscam impor, na negociação dos lotes produzidos ao final do processo de regularização fundiária52, valores de mercado para os mesmos, ignorando que são proprietários unicamente de terra nua, uma vez que foi resultado do esforço dos moradores e do Poder Público, todo o investimento historicamente direcionado para a urbanização dessas áreas. Neste aspecto, é importante que o município adote uma postura firme, cobrando os valores devidos pelos proprietários, no curso dessas negociações, em face dos gastos efetivados para urbanização e regularização fundiária.

Ambrosio53 argumenta que instrumentos do Estatuto da Cidade, como Concessão do Direito Real de Uso ou Direito de Superfície poderiam ser utilizados em projetos de regularização, como o da Vila Progresso. Ainda assim, a segurança jurídica destes instrumentos não é comparável à aquisição dos lotes produzidos no final do processo de regularização fundiária, sobretudo porque nestes lotes está o produto do sacrifício de uma vida inteira, de milhares de famílias: a edificação da moradia.

50 A Secretaria de Habitação oferece apoio técnico, por meio do programa Cidade Legal, utilizado em alguns projetos de regularização fundiária, para contratação de levantamento topográfico e cadastral, como na Vila Progresso, mas nem União, nem o Estado de São Paulo possuem linha de financiamento para aquisição dos lotes regularizados. 51 A Lei Federal veda expressamente a comercialização de lotes sem aprovação do projeto de parcelamento, por parte do Poder Público, o que, por analogia, pode ser estendido à relação locatícia que se estabelece nessas áreas. Esta situação é agravada pelo fato de que alguns “lotes” nas áreas de “aluguel de chão” são implantados em áreas de risco, em APPs ou com supressão irregular de vegetação. 52 Observa-se que as parcelas ocupadas pelas benfeitorias só são consideradas lotes de direito, cabendo-lhes a respectiva abertura de matrícula no cartório de registro de imóveis, no final do processo de regularização fundiária de interesse social, o qual vem sendo elaborado e custeado pela Prefeitura, na maior parte dos casos de “aluguel de chão” citados neste trabalho. 53 Op. cit., 2013.

Este autor menciona, ainda, a possibilidade de desapropriação pelo município, mas em face da dimensão e quantidade de glebas que apresentam esta situação, deve se considerar a limitação orçamentária, sobretudo porque o município já vem investindo no próprio projeto de regularização.

Desta forma, a chave para a solução destes impasses talvez esteja na atuação articulada entre as esferas de governo, no tocante ao financiamento, assim como na evolução da visão e da atuação do Ministério Público Estadual e do próprio município, no âmbito da negociação.

Deve-se considerar, inclusive, a possibilidade de que o próprio município exija, dos proprietários destas glebas, a celebração de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para que a negociação dos lotes regularizados seja acessível aos moradores. O TAC tornou-se nos últimos anos importante instrumento de resolução de conflitos e pode ser utilizado por qualquer órgão público legitimado à ação civil pública, como os municípios, de acordo com o art. 5º, da Lei Federal nº 7.347/198554, para mediação de futuros e potenciais conflitos de posturas de proprietários privados com os interesses sociais e individuais indisponíveis.

Considerações finais: os desafios das políticas púb licas na Macroárea Morros É fundamental enfrentar o desafio de compatibilizar o uso da habitação em regiões cercadas de restrições geológico-geotécnicas e ambientais, como é o caso da Macroárea Morros, em Santos, devido ao nível de consolidação e de precariedade dos assentamentos, em um quadro de permanente pressão, pela falta de oferta de moradias para a população de baixa renda, no mercado privado, assim como pelo papel de atração que a cidade de Santos exerce, em termos de concentração dos empregos regionais.

Implantar políticas públicas integradas é, portanto, essencial. O arcabouço jurídico institucional urbanístico e ambiental existente hoje é base necessária e grande oportunidade para a efetividade destas políticas.

Soma-se a este contexto, o entendimento global da questão da moradia como Direito Social, oriundo dos Direitos Humanos, trazendo sentido ainda maior à questão. O resgate desta referência é fundamental para melhor compreensão da questão, no contexto de paz que originou os Direitos Humanos e de sustentabilidade social, econômica e ambiental, construído a partir das conferências das Nações Unidas. Esta compreensão também afasta a implantação de políticas meramente assistencialistas.

Para além do conhecimento dos pactos e das normas, há também uma questão crucial a ser considerada nas políticas públicas, a gestão. É por meio desta que se devem desenvolver ações e articulações, entre normas ou agentes envolvidos, promovendo-se sistematicamente a participação popular e ações estruturais, como obras de contenção, relocação e recuperação ambiental, ou não estruturais, como planos preventivos, monitoramento, programas habitacionais e educacionais, com articulação cada vez maior entre aspectos urbanísticos e ambientais.

É fundamental, que neste processo, sobretudo em áreas objeto de regularização fundiária, como as em que se desenvolvem relações sociais perversas, como o “aluguel de chão”, haja

54 BRASIL. Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

equilíbrio ao se considerar os direitos à moradia, à propriedade e ao meio ambiente equilibrado, de forma a privilegiar a vida humana acima de tudo. Para esta finalidade, é necessário construir alternativas de financiamento para aquisição de lotes resultantes de projetos de regularização fundiária de interesse social, assim como a adoção de posturas mais enérgicas, por parte do Ministério Público Estadual e do município, no tocante a observância à Lei Federal de parcelamento do solo urbano, na negociação entre proprietários e moradores, de forma que o investimento do Poder Público nestas áreas seja revertido para os últimos, tornando o valor dos lotes mais acessível.

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_________. Lei nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social.

_________. Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica.

_________. Lei n° 10.257 de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais da política urbana.

_________. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

_________. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

CARRIÇO, José Marques (2002). Legislação urbanística e segregação espacial nos municípios centrais da Região Metropolitana da Baixada Santista. Dissertação de mestrado. São Paulo: FAU USP.

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_________. Lei nº 3.533, de 16 de abril de 1968. Estabelece normas organizadoras e disciplinadoras da urbanização e da preservação da paisagem natural nos morros de Santos.

_________. Lei nº 3.529, de 16 de abril de 1968. Estabelece o Plano Diretor Físico do Município, suas normas ordenadoras e disciplinadoras.

_________. Lei nº 1.831, de 9 de maio de 1956. Altera o zoneamento do Município.

SÃO PAULO (ESTADO); ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA; IPL; FUNDAÇÃO SEADE. Índice Paulista de Vulnerabilidade Social – 2010, Disponível em http://indices-ilp.al.sp.gov.br/view/index.php?prodCod=2&selLoc=3548500&selTpLoc=2#, Acesso em: 06 mar. 2016.