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organização Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz Jean Cristtus Portela SEMIÓTICA E MÍDIA textos, práticas, estratégias

Semiotica e Midia eBook

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Maria Lúcia Vissotto Paiva DinizJean Cristtus Portela

SEMIÓTICA E MÍDIAtextos, práticas, estratégias

capa.indd 1 12/10/2008 20:32:34

SEMIÓTICA E MÍDIAtextos, práticas, estratégias

Unesp – Universidade Estadual Paulista

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação

Bauru, São Paulo, Brasil

Reitor

Marcos Macari

Vice-Reitor

Herman Jacobus Cornelis Voorwald

Diretor

Antônio Carlos de Jesus

Vice-Diretor

Roberto Deganutti

Organizadores

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

Jean Cristtus Portela

Comissão editorial

Jean Cristtus Portela

Loredana Limoli

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

Mariza Bianconcini Teixeira Mendes

Matheus Nogueira Schwartzmann

Revisão

Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

Fouad Camargo Abboud Matuck

Mariza Bianconcini Teixeira Mendes

Matheus Nogueira Schwartzmann

Normalização

Dimas Alexandre Soldi

Fouad Camargo Abboud Matuck

Luiz Augusto Seguin Dias e Silva

Tânia Ferrarin Olivatti

SEMIÓTICA E MÍDIAtextos, práticas, estratégias

organização

Maria Lúcia Vissotto Paiva DinizJean Cristtus Portela

Unesp/FAAC2008

DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO

UNESP – Campus de Bauru

Semiótica e mídia: textos, práticas, estratégias / Maria Lúcia

Vissotto Paiva Diniz e Jean Cristtus Portela (organizadores). --

Bauru: UNESP/FAAC, 2008.

269 p.

ISBN 978-85-99679-11-1

1. Semiótica. 2. Comunicação. 3. Mídia. 4. Práticas semióti-

cas. I. Diniz, Maria Lúcia Vissotto Paiva. II. Portela, Jean Cristtus.

III. Título.

302.2

S474

Ficha catalográfi ca elaborada por Maristela Brichi Cintra – CRB/8 5046

Copyright © 2008 Unesp/FAAC

Projeto gráfi co e capa

Diego Pontoglio Meneghetti

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação

Departamento de Ciências Humanas

Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação (GESCom)

http://www.faac.unesp.br/pesquisa/gescom/

[email protected]

Av. Eng. Luiz Edmundo C. Coube, 14-01

Bauru, SP, CEP 17033-360

Tel.: (14) 3103-6064 / 6036 - Fax (14) 3103-6051

SEMIÓTICA E MÍDIAtextos, práticas, estratégias

Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom 7Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

PARTE I – NOVOS DESENVOLVIMENTOS EM SEMIÓTICA E MÍDIA

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização 15Jacques Fontanille

Semiótica e comunicação 75José Luiz Fiorin

Semiótica midiática e níveis de pertinência 93Jean Cristtus Portela

PARTE II – JORNALISMO IMPRESSO E TELEVISADO

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores 117Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira Mendes

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo 131Juliano José de Araújo

PARTE III – VINHETAS

Break comercial: estratégia e efi ciência 155Jaqueline Esther Schiavoni

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima 169Loredana Limoli

O Nu de Boubat e a Globeleza 183Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

PARTE IV – REALITY SHOW E PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil 201Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento 215Dimas Alexandre Soldi

PARTE V – NOVAS MÍDIAS

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor 237Tânia Ferrarin Olivatti

Rádio e podcast: intersecção das práticas 251Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

Os organizadores 265

Os autores 267

Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom | 9

SEMIÓTICA E MÍDIAA proposta de integração do GESCom

Realizar a integração entre semiótica e mídia foi sempre o desafi o, nos dez

anos de atividade ininterrupta, do GESCom – Grupo de Estudos Semióticos em

Comunicação. Um trabalho difícil no princípio, quando parte da academia e

dos órgãos de fomento olhava ainda com desconfi ança a semiótica, sobretudo a

greimasiana ou francesa (SF). No entanto, nossa insistência nessa corrente tem

dupla fundamentação, como veremos.

De um lado, a SF tem como alicerce o projeto pioneiro da teoria científi ca

de Ferdinand de Saussure, a Lingüística, redescoberta, de início, pela Antro-

pologia, e depois utilizada pela epistemologia geral das ciências humanas. No

entanto, tanto a SF standard, preconizada por Greimas, quanto a SF mais re-

cente, sustentada por seus sucessores, relegam a pura descrição lingüística aos

seus limites, pois nem a morfologia nem a sintaxe nem a gramática nem a le-

xicologia, que embasava os estudos inaugurais de Greimas, são tratadas como

tais na semiótica narrativa (ou da ação), na semiótica discursiva, na semiótica

das paixões ou, ainda, na vertente tensiva. E isso realmente não é apenas uma

impressão sobre a evolução da semiótica, pois o próprio Greimas, depois de

ter defendido duas teses valendo-se de estudos em lexicologia, confessa “eu vi,

depois de trabalhar cinco ou seis anos, que a lexicologia não leva a nada – que

as unidades, lexemas ou signos não levam a nenhuma análise, não permitem a

estruturação, a compreensão global dos fenômenos” e fi naliza dizendo: “uma

10 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

semiótica é um ‘sistema de signos’ desde que ultrapasse esses signos e olhe o que

acontece sob os signos”1.

O que resta, portanto, como a espinha dorsal da SF, é a refl exão epistemoló-

gica da lingüística saussuriana, pois desde o artigo “L’actualité du saussurisme”

(1956)2, concebido para a comemoração do 40° aniversário da publicação do

Curso de lingüística geral, até Semiótica das paixões (1991), Greimas faz diversas

referências àquela ciência demonstrando que os conceitos básicos de seu proje-

to semiótico estão enraizados, certamente, em Saussure e Hjelmslev.

Por outro lado, Greimas teve também um papel importante na fundação das

ciências da informação e comunicação na França, desempenho até hoje pouco

conhecido e pouco difundido. Como pesquisador de renome, foi um dos treze

membros escolhidos para compor o comitê francês para o reconhecimento des-

sa área de estudo pelo Ministério da Educação. E ainda participou, em outubro

de 1970, em Milão, do Congresso Nacional do Instituto Gemelli, que tinha por

tema, já naquela época, “Estado e tendências atuais da pesquisa em comunica-

ção de massa”, discussão que resultou no livro Semiótica e ciências sociais, publi-

cado em 1976, com tradução brasileira em 1981. Relendo esse livro, trinta anos

depois, é notável a acuidade intelectual de Greimas ao afi rmar que “a teoria da

comunicação social generalizada deve colocar-se sob a égide não da informação,

mas da signifi cação”. Nas observações fi nais do capítulo II, descreve os atributos

do que chamou de “uma disciplina difícil de nomear, de objeto vago e meto-

dologia embrionária, aparece, cresce, alastra-se em todos os sentidos, quase se

impõe”, evidenciando sua abrangência então crescente e hoje certamente confi r-

mada. Porém, Greimas indica também a fragilidade de tal teoria que, segundo

suas palavras, “recobre um campo de curiosidade científi ca inexplorado”. Diante

disso, considera que é o momento da disciplina interrogar-se sobre si mesma e

de colocar em causa seus postulados e seu próprio fazer, e aponta a necessidade

precípua de que se instaure “uma investigação semiótica sobre as dimensões e

as articulações signifi cativas das macrossociedades atuais”3.

Para melhor compreender as considerações de Greimas, é importante

revermos o contexto em que a semiótica surgiu. Sua pretensão era construir

uma semiótica da significação, um projeto científico que permitisse chegar à

1 Resposta de Greimas ao ser interrogado por Michel Arrivé no colóquio de Cérisy-la-Salle (1983) sobre o papel da lexicologia estrutural em sua obra. A. J. Greimas, “Algirdas Julien Greimas mis à la question”, em Michel Arrivé e Jean-Claude Coquet (orgs.), Sémiotique en jeu. A partir et autour de l’œuvre d’A. J. Greimas, Paris/Amsterdam, Hadès/Benjamins, 1987, p. 302-303.

2 Publicado em Le Français moderne, n. 24, 1956, p. 191-203, e republicado em A. J. Greimas, La mode en 1830, Paris, PUF, 2000, p. 371-382.

3 Todas as citações desse parágrafo foram extraídas de A. J. Greimas, Semiótica e Ciências Sociais, São Paulo, Cultrix, 1981, p. 48.

Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom | 11

significação do texto, opondo-se radicalmente às teorias literárias de cunho

psicossociológico da época. O que fez a semiótica ter sucesso em outros

campos, além das ciências da linguagem, foi sua noção de texto, conside-

rado não como substância, mas como um todo formal de significação não

importando qual fosse sua forma de manifestação. Em seu projeto semiótico

há lugar tanto para a semiótica geral quanto para as semióticas específicas.

De um lado, estabelece-se uma perspectiva teórica englobante que dá a cada

conceito um valor universal, seja qual for o campo das práticas humanas a

que esteja vinculado. De outro, temos várias perspectivas teóricas engloba-

das, um vasto campo de pesquisas que se efetuam por empréstimos concei-

tuais. Tomando este ou aquele conceito da semiótica geral, cada semiótica

específica modela-o e o redefine de acordo com seus princípios de pertinên-

cia. Assim aconteceu com as semióticas visual, musical, da arquitetura, ou

mesmo com a semiótica das paixões, do gosto e do olfato. E o mesmo vem

acontecendo com a semiótica das mídias, que hoje é a vedete nos eventos

científicos que reúnem semioticistas e especialistas da comunicação.

Como vemos, a relação entre semiótica e mídia é bastante antiga: os estu-

dos comunicacionais avançam e os semioticistas vêm dando sua contribuição.

Entretanto, a relação entre essas áreas parece ainda autista, pois uns e outros

não se entendem entre si, resultando em uma convivência difícil. Se tentarmos

descrever essas duas áreas, chegamos a um paradoxo: uma infi nidade de con-

tatos íntimos, acompanhados de quase total desconhecimento recíproco. Mas

os congressos nacionais e regionais de comunicação vêm abrindo espaço para

os estudos semióticos, chegando mesmo a um fato inusitado: reunir os semio-

ticistas dos três maiores ramos da semiótica (semiótica peirceana, semiótica

francesa e semiótica da cultura) num mesmo espaço, em mesas de discussão e

sessões temáticas, o que aponta, evidentemente, para um convívio necessário e

produtivo. Assim, a investigação das semióticas das mídias, projeto que ainda

apresenta pontos de vistas discordantes, revelam prismas que se encontram e,

muitas vezes acabam por cooperar entre si.

A herança estruturalista da semiótica francesa (SF) perde força nos anos

1980, diante de novas concepções fi losófi cas e científi cas (ciências cognitivas,

teorias das catástrofes, auto-organização de sistemas etc.), levando-a a buscar

novas questões e novos centros de interesse. Tais mudanças de perspectivas não

prevêem um recomeçar do zero, ao contrário, o que era proibido volta a ser

questionado, o que foi excluído, é reintegrado de acordo com a necessidade da

teoria. A enunciação, a percepção, que antes eram vistas como uma saída do

12 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

texto em direção à referência e à representação do mundo, são agora retomadas

e, com o tempo, a SF percebe que o texto não contém apenas os níveis enuncivo

e enunciativo, mas abarca também os processos que acionam e “formatam” o

enunciado e a enunciação, pois para a apreensão da signifi cação é preciso con-

siderar os processos que atuam ali, processos instáveis, considerados ainda em

seu devir. Dessa forma, a SF traçou seu próprio caminho nas veredas sinuosas

das paixões e nas precondições da signifi cação, identifi cando, antes da signifi ca-

ção e da comunicação, um universo indiferenciado, que hoje é objeto de estudo

da pesquisa semiótica que a distancia da autonomia do texto.

A partir de Semiótica das paixões de Greimas e Fontanille, traduzido para

o português em 1993, a SF abriu o texto para o “mundo natural”, sustentando

que a signifi cação articula-se em duas direções, uma manifestada e realizada,

outra manifestante e realizante. Se, para a primeira, os esquemas actanciais ou

os programas narrativos são efi cazes, para a segunda, os elementos pertinentes

são a percepção, as sensações, o sensível, a intencionalidade, a cognição, o con-

texto social. Se alguns criticam ainda o imanentismo ou o percurso gerativo do

sentido, demonstram com isso total desconhecimento sobre a evolução da SF,

pois ela agora considera a signifi cação não como dependente apenas do texto,

do enunciado, mas decorrente de dados extralingüísticos, tais como as noções

de precondições da signifi cação, valências, estesia, protensividade e devir, afeto,

andamento, espaço tensivo, práxis enunciativa, modos de presença, interações e

níveis de pertinência, que incluem as práticas, as estratégias, as formas de vida e

a cultura, aquisições e desdobramentos introduzidos a partir dos anos 1990.

Sobre esses patamares, pouco explorados nos estudos comunicacionais, é

que se inscrevem os textos aqui apresentados, que refl etem certa heterogenei-

dade nas abordagens empreendidas pelos autores, decorrente tanto da perspec-

tiva priorizada pelo analista quanto da natureza intrínseca do objeto analisado.

Os textos reunidos na presente coletânea foram distribuídos em cinco partes:

I – Novos desenvolvimentos em semiótica e mídia; II – Jornalismo impresso e

televisado; III – Vinhetas; IV – Reality show e programas de comportamento, e

fi nalmente, V – Novas Mídias.

A primeira parte inicia-se com um texto inédito em língua portuguesa de

Jacques Fontanille, intitulado “Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi -

ciência e otimização”, uma das leituras que embasaram os seminários do GES-

Com em 2007 e 2008 e que fomentaram muitas das pesquisas dos membros do

grupo. Na seqüência, ainda na primeira parte temos a reedição de um texto de

José Luiz Fiorin, “Semiótica e Comunicação”, um clássico da área, que defende

Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom | 13

a semiótica como proposta metodológica para o estudo da comunicação midiá-

tica. Para fechar essa primeira parte, há o texto de Jean Cristtus Portela, “Semi-

ótica midiática e níveis de pertinência”, que empreende uma refl exão sobre os

níveis de pertinência semiótica propostos por J. Fontanille e sua aplicação do

campo da análise das mídias.

As demais partes do livro trazem os textos dos membros do grupo selecio-

nados para publicação e organizados segundo os objetos analisados. A parte II

apresenta dois textos. O primeiro, intitulado “Cartas na mídia impressa: uma

prática semiótica entre leitores e editores”, de Matheus Nogueira Schwartzmann

e Mariza Bianconcini Teixeira Mendes, analisa a troca epistolar presente na mí-

dia impressa como uma prática semiótica interativa, ressaltando a sua efi ciên-

cia. O segundo, “Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejorna-

lismo”, de Juliano José de Araújo, apresenta a análise de um telejornal que, sob

o enfoque do sensível, busca mostrar como esse gênero faz para captar e manter

a adesão do telespectador durante a sua transmissão. A parte III reúne três arti-

gos, “Break comercial: estratégia e efi ciência”, de Jaqueline Esther Schiavoni, que

trata de um estudo sobre a composição e o ordenamento do break comercial

na programação televisiva, e dois textos sobre semiótica visual, “Figuralidade

e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima” de Loredana Limoli,

em que a abertura da telenovela é tomada como um objeto estético de natureza

sincrética, e “O Nu de Boubat e a Globeleza”, de Adriane Ribeiro Andaló Tenuta,

em que uma análise de Jean-Marie Floch é retomada a fi m de analisar o “nu

artístico” da mulata brasileira na televisão. Na parte IV temos dois trabalhos

também sobre televisão: “Práticas enunciativas como estratégias de interação:

Big Brother Brasil”, de Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi

Degelo, no qual as autoras buscam identifi car como se dá a adesão do teles-

pectador a esse tipo de programa, elegendo a enunciação e suas práticas como

estratégias de interação, e “Práticas passionais na mídia televisiva: programas

de comportamento”, de Dimas Alexandre Soldi, que analisa os programas Silvia

Poppovic e Casos de Família, explicitando e comparando o envolvimento emo-

cional dos atores e actantes. Finalmente, temos a parte V, que reúne os trabalhos

sobre o YouTube e o Podcast, respectivamente “Internet, YouTube e semiótica:

novas práticas do usuário/produtor”, de Tânia Ferrarin Olivatti, e “Rádio e pod-

cast: intersecção das práticas”, de Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira

Schwartzmann, que tentam evidenciar a pertinência e a efi ciência das práticas e

estratégias propostas pelos avanços midiáticos.

Esta obra é, portanto, o resultado de três semestres de atividade do GES-

14 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

Com (2007-2008) que tiveram como tema as “Práticas na mídia”, tomando

como eixo teórico o texto de Jacques Fontanille, que, como já dissemos, inicia

este livro. A discussão desse texto inovador e de outras leituras, abordadas como

desdobramentos da SF, fomentou a produção de análises de objetos midiáticos

pelos membros do grupo que, conseqüentemente, redundaram na concepção

deste nosso projeto. Desse modo, os textos ora apresentados foram reunidos, e

mesmo concebidos, com a intenção de demonstrar ao leitor que o estudo de um

determinado caso pode elucidar uma série de práticas recorrentes em diferen-

tes manifestações midiáticas de natureza multimodal, sobretudo verbo-visual

e audiovisual, sendo que o próprio Greimas dizia-se persuadido de que esses

objetos possuem “uma linguagem comum de que se valem para nos ‘falar’, mas

também – e sobretudo – de que é possível construir uma linguagem que nos

permita ‘falar’ deles...”4.

Os agradecimentos são sempre muitos no GESCom, pois foi graças à cola-

boração constante de todos os membros que o grupo pôde ser continuamente

impulsionado, chegando a esta primeira publicação. Entre aqueles que nos aju-

daram a efetivá-la, agradeço aos membros que se apresentaram como autores

dos capítulos, aceitando o desafi o de investigar seus objetos na perspectiva da

SF, desdobrando-se, muitas vezes, para os níveis de pertinência semiótica pro-

postos por Fontanille. Agradeço aos pareceristas, aos membros que participa-

ram da tradução, da normalização, da revisão e diagramação, num verdadeiro

trabalho de equipe. E também à direção e vice-direção da FAAC, que fi nancia-

ram esta publicação via verba departamental e projeto de extensão. Agradeço,

principalmente, ao co-organizador desta obra, pelo empenho em resolver as

questões técnicas e o cuidado com a excelência dos trabalhos.

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

Líder do GESCom-UNESP

Bauru, setembro de 2008

4 Embora nesse artigo Greimas refi ra-se à linguagem plástica, não há dúvida de que tal fundamento teórico possa ser estendido a toda forma signifi cante. A. J. Greimas, “Semiótica fi gurativa e semiótica plástica”, em Signifi cação, Revista brasileira de semiótica, n. 4, junho/ 1984, p. 29.

Parte I

NOVOS DESENVOLVIMENTOS EM SEMIÓTICA E MÍDIA

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 17

PRÁTICAS SEMIÓTICAS Imanência e pertinência, efi ciência e otimização1

Jacques Fontanille

1. IMANÊNCIA E PERTINÊNCIA

1.1. Introdução“Fora do texto não há salvação!” é um slogan que marcou uma época, quan-

do era preciso resistir aos cantos de sereia do contexto e às tentações de práticas

hermenêuticas, especialmente no domínio literário, que procuravam “explica-

ções” num conjunto de dados extratextuais e extralingüísticos. “FDTNHS!” era

o slogan de uma ascese metodológica fecunda, que permitiu levar o mais longe

possível a pesquisa dos modelos necessários a uma análise imanente e delimitar

o campo de investigação de uma disciplina e de uma teoria, a semiótica do texto

e do discurso.

Mas se tais tentações permanecem atuais, hoje a questão é colocada de ma-

neira diferente.

De um lado, as pesquisas cognitivas convidam a semiótica a tomar uma

posição sobre o estatuto das operações de “produção de sentido” que ela iden-

tifi ca em suas análises de discurso: são operações cognitivas dos produtores ou

dos intérpretes? São rotinas desenvolvidas coletivamente no interior de cada

cultura? São atividades das próprias semióticas-objeto, consideradas como “má-

quinas signifi cantes” e dinâmicas?

1 Este texto foi originalmente publicado na revista Nouveaux Actes Sémiotiques, n. 104 -105-106 (Pulim, 2006). A presente tradução é de Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz, Adriane Ribeiro Andaló Tenuta, Mariza Biancon-cini Teixeira Mendes, Jean Cristtus Portela e Matheus Nogueira Schwartzmann. (N.T.)

18 | Jacques Fontanille

De outro lado, a própria prática semiótica ultrapassou amplamente os li-

mites textuais, interessando-se, há mais de vinte anos, pela arquitetura, pelo

urbanismo, pelo design de objetos, por estratégias de mercado (Floch, 1990)

ou ainda pela degustação de um charuto ou de um vinho e, de um modo mais

geral, pela construção de uma semiótica das situações (Landowski, 1992) e até

mesmo, hoje em dia, segundo as proposições de Landowski, de uma semiótica

da experiência – a partir da problemática do contágio – do ajustamento estésico

e do aleatório (Idem, 2004; 2005).

Parece que chegou a hora de redefi nir a natureza daquilo de que a semiótica

se ocupa (as “semióticas-objeto”), para, ao mesmo tempo, responder às ques-

tões que lhe são colocadas a partir do exterior (às vezes também do interior) e

assumir teoricamente essas múltiplas e necessárias pesquisas conduzidas fora

do texto, pesquisas que se justifi cam na medida em que se submetem à coerção

mínima de uma solidariedade entre expressão e conteúdo e não constituem es-

capadas “fora da semiose”.

Entretanto, o princípio da imanência revelou-se como portador de um

grande potencial teórico, pois a restrição que impõe à análise é uma das condi-

ções da modelização e, conseqüentemente, do enriquecimento da proposição

teórica global: sem o princípio da imanência, não haveria teoria narrativa, mas

uma mera lógica da ação aplicada a motivos narrativos; sem o princípio da ima-

nência, não haveria a teoria das paixões, mas uma mera importação de modelos

psicanalíticos; sem o princípio da imanência, não haveria a semiótica do sensí-

vel, mas somente uma reprodução ou um arranjo de análises fenomenológicas.

Por trás do princípio da imanência perfi la-se uma hipótese forte e produtiva,

segundo a qual a própria práxis semiótica (a enunciação “em ato”) desenvolve

uma atividade de esquematização, uma “metassemiótica interna”, pela qual po-

demos “apreender” o sentido, e que a análise tem por tarefa inventariar e expli-

citar em sua metalinguagem.

Todas as lingüísticas e semióticas que renunciaram ao princípio da ima-

nência encontram-se hoje divididas em dois ramos: um ramo forte, quando

encaram diretamente seu objeto, e um ramo fraco e difuso, quando solicitam o

que chamam de “contexto” de seu objeto. Em suma, tratar-se-ia não de inserir o

objeto de análise em seu contexto, mas, ao contrário, de integrar o contexto ao

objeto de análise, assumindo como conseqüência o fato de que, semioticamente

falando, o contexto não se situa “nem antes, nem depois, mas no âmago da lin-

guagem” (Landowski, 1992: 147; 170-172).

Greimas insistia, no desenvolvimento do verbete “semiótica”, no Dicionário i

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 19

(1983: 409-416), que as semióticas-objeto analisadas não coincidem obrigato-

riamente com as semióticas construídas que resultam da análise: estas revelam-

se mais restritas ou mais amplas que aquelas. Em suma, com relação a uma

dada semiótica-objeto, a semiótica construída pode ser “intensa” (concentrada

e focalizada), ou “extensa” (expandida e englobante). No que concerne à semi-

ótica dos objetos, por exemplo, encontramos tanto a versão “intensa” (o objeto

como suporte de inscrições ou de vestígios) quanto a versão “extensa” (o objeto

como um ator entre os demais de uma prática semiótica). A versão “intensa” diz

respeito ao nível de pertinência inferior, pois focaliza as condições de inscrição

do texto, enquanto a versão “extensa” diz respeito ao nível de pertinência supe-

rior, o da prática englobante. Portanto é preciso se esforçar para dar conta da

relação entre as semióticas construídas “intensas” e “extensas”, identifi cando e

articulando seus respectivos níveis de pertinência.

Sobre a análise imanente, devemos hoje distinguir cuidadosamente (1) o

próprio princípio de imanência e (2) a fi xação dos limites da imanência. Essa

questão tornou-se defi nitivamente confusa pela maneira como esses limites,

provisórios e arbitrários, foram recentemente fi xados no texto-enunciado. Se

é verdade, como diz Hjelmslev, que os dados do lingüista apresentam-se como

sendo os do “texto”, isso não é mais uma verdade para o semioticista, que tra-

balha também com “objetos”, com “práticas” ou com “formas de vida” que es-

truturam áreas inteiras da cultura. Assim, o slogan greimasiano deveria ser hoje

reformulado: “Fora das semióticas-objeto não há salvação!”, cabendo a nós de-

fi nir o que são essas “semióticas-objeto”. Quanto ao recurso ao contexto, nessas

condições, trata-se apenas da confi ssão de uma delimitação não pertinente da

semiótica-objeto analisada e, mais precisamente, de uma inadequação entre o

tipo de estruturação buscada e o nível de pertinência em questão.

1.2. O “NÍVEL DE PERTINÊNCIA” DAS PRÁTICAS NO PERCURSO DA EXPRESSÃO

1.2.1. Notas sobre a hierarquia dos níveis

A hierarquia – (1) signos e figuras, (2) textos-enunciados, (3) objetos e

suportes, (4) práticas e cenas, (5) situações e estratégias, (6) formas de vida

– foi apresentada e justificada em outras publicações (Fontanille, 2005: 36),

20 | Jacques Fontanille

como segue2:

Essa hierarquia dos níveis de pertinência semiótica, previamente defi nida

como constitutiva do percurso gerativo do plano da expressão, leva-nos a algu-

mas observações complementares.

De início, e na falta de um inventário mais exaustivo, essa estruturação do

mundo da expressão semiótica em seis planos de imanência3 e de pertinência

diferentes apresenta-se como uma descrição da estrutura semiótica das cultu-

ras. Entre os signos e as formas de vida, ela propõe de fato que se considere o

conjunto dos níveis pertinentes nos quais as signifi cações culturais podem se

exprimir.

Para defi nir seu objeto, na verdade, a semiótica da cultura deve organizar-se

ao mesmo tempo em intensão e em extensão. Em intensão, para dar uma defi -

nição formal e operatória do que é uma cultura do ponto de vista semiótico e,

em extensão, para especifi car seus elementos e níveis pertinentes. Quando um

semioticista como Iuri Lotman descreve, ao longo de sua obra, a cultura russa,

ele não age de modo diferente: por um lado, começa por colocar a defi nição

intensiva da cultura, graças ao modelo da semiosfera (Lotman, 1999), de outro,

2 No texto original, o autor faz referência a Fontanille (2007b). Optamos por apresentar ao leitor uma publica-ção equivalente em português e inserimos no corpo do texto deste trabalho o quadro dos níveis de pertinên-cia. (N.T.)

3 Retomando a feliz fórmula de Jean-François Bordron, em uma comunicação oral.

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 21

não cessa de ir e vir entre textos (em geral literários), formas de vida (coletivas

e individuais, tiradas da história russa), entre signos (arquitetônicos ou verbais,

por exemplo) e estratégias (políticas ou militares). É preciso esclarecer ainda

que, se para Lotman a semiosfera é objeto de uma organização precisa e siste-

mática sobre as bases de uma epistemologia cibernética, os níveis de pertinência

não estão explicitados e só podem ser identifi cados pela diversidade de seus

objetos de análise e de seus exemplos.

O objeto deste estudo é mais especifi camente o nível das práticas, mas sem

jamais perder de vista os demais níveis com os quais elas mantêm relações sem-

pre signifi cantes, segundo um princípio já defi nido por Émile Benveniste (1995:

127-140), o princípio de integração. É verdade que Benveniste limita volunta-

riamente o estudo desse princípio ao domínio das línguas verbais (fonemas,

morfemas, sintagmas, frases), mas o problema do qual ele trata é exatamente

da mesma natureza daquele tratado pela semiótica das culturas, guardadas as

devidas proporções.

Um exemplo permitirá ilustrar concretamente como acontece a integração

semiótica entre os diferentes planos de imanência. É o exemplo banal da corres-

pondência postal. Um texto (o da carta) é inscrito em folhas de papel, que são

colocadas dentro de um envelope, sobre o qual está o endereço do destinatário,

às vezes o do destinador, assim como algumas fi guras e marcas (timbre, selos

etc.) pelas quais o intermediário marca sua presença e seu papel.

As mesmas indicações (o nome e o endereço do destinatário) podem ser

encontradas ao mesmo tempo na carta e no envelope. Mas sua inscrição em

duas partes diferentes do objeto de escrita lhe confere papéis actanciais diversos:

(1) na carta, o nome e o endereço do destinatário participam de uma estrutura

de enunciação, um “endereço” que manifesta a relação enunciativa, eventual-

mente implícita, do texto da carta, e determinam sua leitura; (2) no envelope,

o nome e o endereço do destinatário participam de duas práticas diferentes:

por um lado, constituem uma instrução para os intermediários postais, no mo-

mento das operações de classifi cação, de encaminhamento, de transporte e de

distribuição fi nal, por outro, permitem triar, entre todos os receptores possíveis

da carta, o destinatário legítimo, ou seja, quem tem o direito de abrir o envelope

e ler a carta.

A fronteira entre as duas confi gurações é o estado do envelope: se ele está

fechado, somente a primeira prática está ativa; se está aberto, a segunda prá-

tica pode ser realizada. Assim, encontramos aqui associados a uma morfolo-

gia particular do objeto de escrita, dois tipos de prática, uma instaurada pelo

22 | Jacques Fontanille

gênero epistolar e outra, pelo gênero “comunicação e circulação dos objetos

em sociedade”, encaixadas uma à outra. Cada uma corresponde a uma parte

e a um estado do objeto, assim como a inscrições específi cas, que permitem

administrar a confrontação com outras práticas eventualmente concorrentes,

provenientes de outros gêneros. Se o envelope chega aberto, por exemplo, o

correio deve colocar uma outra inscrição para indicar que a “prática concor-

rente” já fazia parte do processo corriqueiro de distribuição, e não de uma prá-

tica externa ilegítima. Ou ainda, em uma empresa, é a própria formulação do

nome do destinatário que decide o modo de abertura: se o nome é um título

ou uma função, o envelope será aberto antes de chegar a seu destinatário, se é

um nome próprio, ela chegará fechada.

Desse modo, vemos formar-se aqui um outro nível de pertinência, que está

a meio caminho entre o dos objetos e o das situações em geral: o das práticas,

aqui práticas de escrita, práticas de comunicação social e práticas de manipula-

ção de objetos. Os dois modos de inscrição dos mesmos elementos textuais só

aparecem no nível textual sob a forma de propriedades materiais acessórias e só

têm sentido no nível superior, o das práticas. Essa condição evoca diretamente

a regra defi nida por Benveniste:

Um signo é materialmente função dos seus elementos constitutivos, mas

o único meio de defi nir esses elementos como constitutivos consiste

em identifi cá-los no interior de uma unidade determinada onde pre-

enchem uma função integrativa. Uma unidade será reconhecida como

distintiva num determinado nível se puder identifi car-se como “parte

integrante” da unidade de nível superior, da qual se torna o integrante

(Benveniste, 1995: 133).

E ele continua a sistematizar a distinção entre “constituintes” e “integran-

tes”, para chegar a uma conclusão maior, que coincide exatamente com nosso

projeto:

Qual é fi nalmente a função que se pode determinar para essa distinção

entre constituinte e integrante? É uma função de importância funda-

mental. Pensamos encontrar aqui o princípio racional que governa, nas

unidades dos diferentes níveis, as relações entre Forma e Sentido.

[...]

A forma de uma unidade lingüística defi ne-se como a sua capacidade de

dissociar-se em constituintes de nível inferior.

O sentido de uma unidade lingüística defi ne-se como a sua capacidade

de integrar uma unidade de nível superior.

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 23

Forma e sentido aparecem assim como propriedades conjuntas, dadas

necessária e simultaneamente, inseparáveis no funcionamento da língua.

As suas relações mútuas revelam-se na estrutura dos níveis lingüísticos,

percorridos pelas operações descendentes e ascendentes da análise e gra-

ças à natureza articulada da linguagem (Ibidem: 134-136).

1.2.2. A cena predicativa das práticas

É chegado o momento de especifi car a defi nição do nível de pertinência das

práticas, que deve obedecer ao princípio anteriormente formulado. As práticas

recebem uma “forma” (constituintes) de sua confrontação com as outras práti-

cas e, por isso, de um lado, integram os elementos materiais dos níveis inferiores

(signos, textos, objetos) para torná-los elementos distintivos e pertinentes e lhes

dar “sentido”, e de outro lado, recebem um “sentido” de sua própria participação

nos níveis superiores (estratégias e formas de vida).

A forma das práticas está ligada a sua dimensão predicativa, que designare-

mos, daqui por diante, como cena predicativa (no sentido em que, na lingüística

dos anos 1960, falávamos da predicação verbal como de uma “pequena cena”)4.

Sob esse aspecto, uma prática pode comportar um ou vários processos (um

ou vários predicados), atos de enunciação que implicam papéis actanciais de-

sempenhados, entre outros, pelos próprios textos ou imagens, por seus obje-

tos-suportes, por elementos do ambiente, pelo transeunte, pelo usuário ou pelo

observador, tudo o que forma a “cena” típica de uma prática. Do mesmo modo,

ela é composta pelas relações entre esses diferentes papéis, essencialmente re-

lações modais, mas também passionais. Enfi m, a prática comporta geralmente

uma modifi cação dos corpos e das fi guras, que implica uma sintaxe fi gurativa.

O conjunto (papéis, atos, modalizações, paixões e sintaxe fi gurativa) constitui

esse primeiro dispositivo. Ele é centrado (sobre o predicado) e delimitado (pe-

las “valências” actanciais e modais necessárias à atualização desse predicado) e

essas duas propriedades caracterizam a forma da cena.

As ferramentas e as práticas técnicas fornecem o exemplo mais simples

desse tipo de cena predicativa prática: um objeto, confi gurado de acordo com

um uso determinado, vai desempenhar um papel actancial no interior de uma

prática técnica (cujo uso é a atualização enunciativa), que consiste em uma ação

4 Tratar a predicação como uma “cena”, assim como faziam Tesnière, Fillmore, e como fazem muitos outros hoje em dia, consiste justamente em restituir, no momento de defi nir um nível de análise pertinente (o do enuncia-do frástico), uma dimensão de experiência perceptiva: a sintaxe frástica é uma forma pertinente do plano da expressão, obtida por conversão formal da experiência de uma “cena”.

24 | Jacques Fontanille

sobre um segmento fi gurativo do mundo natural (o “substrato” da prática). Nes-

se segmento-substrato, a ferramenta e o usuário estão associados no interior de

uma mesma cena predicativa, em que o conteúdo semântico do predicado é for-

necido pela natureza fi gurativa do substrato e pela temática da própria prática

(cortar, raspar, aplainar etc.), e na qual esses diferentes atores desempenham os

principais papéis actanciais (Floch, 1995: 181-213).

A integração das práticas ao nível superior, o das estratégias5, será feita sob

outras formas sintagmáticas, já que se trata, em suma, nesse caso, de geren-

ciar as conjunturas e intersecções entre práticas: encadeamentos canônicos ou

idiossincráticos, sobreposições e ajustamentos em tempo real, concorrências e

alianças estratégicas entre práticas concomitantes ou paralelas.

Enfi m, para falar como Benveniste, a forma das práticas é predicativa (mais

precisamente processual) e seu sentido é estratégico.

1.3. Contextos, instâncias pressupostas e propriedades sensíveis e materiais

1.3.1. Contextos

Na perspectiva da integração, o que aparece como “contexto”, a um nível

inferior ao das práticas, forma seu arcabouço predicativo, actancial, modal e te-

mático em seu próprio nível e o que aparece como propriedades sensíveis e mate-

riais não pertinentes, no nível inferior, forma a dimensão fi gurativa da prática.

O contexto e a substância não são, portanto, pertinentes no nível “n-1”, e

os elementos que comportam, reconfi gurados em constituintes pertinentes do

nível “n”, não são mais, desse modo, nem “contextuais” nem “substanciais”.

1.3.2. Instâncias pressupostas

Em outro contexto, o estatuto da enunciação e das instâncias enunciantes,

intensamente discutidas por Jean-Claude Coquet (1994), obedece à mesma dis-

tinção: no nível de pertinência do texto, a enunciação só é pertinente se está ali

representada (enunciação enunciada), enquanto a enunciação dita “pressupos-

5 Sobre a questão da estratégia em semiótica, ver especialmente o prólogo de Eric Landowski em Erik Bertin (2003) e Landowski (2006). Sobre o “ajustamento” propriamente dito, ver desenvolvimentos mais específi cos em Landowski (2004: 27-32).

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 25

ta” é um puro artefato que não pode ser observado. Mas no nível de pertinência

dos objetos-suportes, e até mesmo no das práticas que os integram, a enuncia-

ção encontra toda sua pertinência: os atores então ganham um corpo e uma

identidade, o espaço e o tempo da enunciação lhes dão uma ancoragem dêitica

e os próprios atos da enunciação podem inscrever-se fi gurativamente na própria

materialidade dos objetos de inscrição (conforme já dissemos anteriormente

sobre a carta e seu envelope colado ou rasgado).

1.3.3. Propriedades materiais

O nível do objeto-suporte, em seu movimento de integração às práticas, é

um caso exemplar do tratamento das propriedades materiais. Enquanto corpo

material, na verdade, o objeto entra nas práticas e os usos dessas práticas são

em si mesmos “enunciações” do objeto. Sob esse aspecto, o objeto em si só pode

conter traços desses usos (inscrições, desgaste, pátina etc.), ou seja, “vestígios

enunciativos”. Para dar conta de sua “enunciação-uso” global, para além desses

“traços” inscritos, será preciso passar ao nível superior, o da estrutura semiótica

das práticas, em que encontraremos manifestações observáveis dessas enuncia-

ções, elas mesmas analisáveis em conteúdos de signifi cação.

Todavia, o caráter “material” do suporte não signifi ca que ele deva ser obri-

gatoriamente tangível. “Material” deve ser entendido aqui no sentido de Hjel-

mslev, ou seja, como substrato sensível das semióticas-objeto. Ao comparar, por

exemplo, as práticas divinatórias dos romanos e dos dogons, vemos que elas

obedecem claramente ao mesmo princípio: defi nir no espaço natural um su-

porte de inscrição, limites e direções, e interpretar as trajetórias de animais (o

pássaro para os romanos, a raposa para os dogons) no “modelo de leitura” assim

constituído. No entanto, o modelo romano (o templum) é projetado no céu,

enquanto o dos dogons é traçado no solo. A diferença entre os dois suportes

“materiais”, um terrestre e sólido e o outro aéreo e intangível, pertence à ordem

do sensível e substancial e induz até mesmo diferenças nas potencialidades ex-

pressivas dos dois suportes formais: de um lado, o templum pode explorar uma

terceira dimensão do espaço, a profundidade, ou ainda a velocidade e a duração

da passagem, sem poder, no entanto, conservar o rastro dessas fi guras, a não ser

na memória visual; de outro, o modelo dos dogons só pode explorar pegadas

sobre o solo, mas, nesse caso, o suporte as conserva na memória sob a forma de

um vestígio durável.

26 | Jacques Fontanille

Entretanto, esses dois “objetos” de escrita têm direito ao mesmo estatuto de

objeto-suporte, embora suas propriedades sensíveis sejam muito diferentes.

1.3.4. Propriedades sensíveis e passionais

No tratamento das propriedades sensíveis, podemos tomar como exemplo

o caso das paixões induzidas pelos textos-enunciados, os únicos, aliás, que cha-

maram a atenção de Aristóteles, em seu tempo. Na verdade, a semiótica teve

alguma difi culdade para levar em consideração as paixões e as emoções do des-

tinatário. Certamente, elas podem estar inscritas no próprio texto, graças a um

simulacro proposto no enunciado, mas esse caso é muito restrito, se considerar-

mos a amplitude do problema a ser tratado. Realmente, as paixões e as emoções

do destinatário surgem numa prática ou situação semiótica em que o texto é um

dos actantes e, por suas fi guras e sua organização, pode produzir ou inspirar esta

ou aquela paixão, esta ou aquela emoção.

Mais tecnicamente, por exemplo, podemos dizer que o ritmo e a construção

de uma frase são um meio de proporcionar ao leitor a experiência de uma emo-

ção ou um percurso somático, sem afi rmar, entretanto, que esse mesmo ritmo e

essa mesma construção sintáxica “representam” a emoção e o percurso em ques-

tão. É preciso, então, passar ao nível de pertinência da prática interpretativa, em

que o texto é um vetor de manipulação passional e, entre os esquemas motores

e emocionais “vividos” e “experimentados” pelo leitor, encontra-se aquele que é

induzido pelo ritmo e pela construção sintáxica em questão.

De um modo mais geral, a introdução do sensível e do corpo na análise

semiótica tem ocasionado algumas difi culdades que não foram inteiramente re-

solvidas até o presente momento, e que se atêm ao fato de que esse “sensível” e

esse “corpo” não estão necessariamente representados no texto ou na imagem

para serem pertinentes, especialmente quando se trata de articular a enunciação

em uma experiência sensível e em uma corporeidade profunda.

Não basta, por exemplo, remeter as noções provenientes da “foria” e da

“tensividade”, a uma camada “protossemiótica” para lhes conferir um estatuto

claro e operatório. As valências perceptivas da tensividade, entre outras, foram

freqüentemente criticadas em razão da ausência de qualquer ancoragem, au-

sência que dá a sua utilização imprudente um caráter particularmente especu-

lativo. A “percepção” semântica e axiológica de que tratam faz parte do entorno

substancial (e não pertinente) da enunciação textual. Todavia, no nível superior,

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 27

o das práticas semióticas (as práticas de produção de sentido, as práticas inter-

pretativas, especialmente), elas encontram toda sua pertinência: um universo

sensível é dado à apreensão no interior de tal prática, pelas fi guras de um texto,

e é então que as valências desempenham seu papel, como “fi ltro” práxico da

construção axiológica.

A partir dessa constatação, não é mais sufi ciente dizer que a enunciação

de um discurso fundamenta-se sobre uma ou várias experiências, mesmo que

o objeto de análise seja a experiência enquanto tal (o sentido experimentado).

Essas mesmas experiências devem ser, por sua vez, confi guradas em “práticas”

ou em “situações semióticas” para se tornarem semióticas-objeto analisáveis. De

fato, cada nível de pertinência está associado a um tipo de experiência que pode

ser reconfi gurado em constituintes pertinentes de um nível hierarquicamente

superior. A experiência perceptiva e sensorial conduz às “fi guras”, a experiência

interpretativa conduz aos “textos-enunciados”, a experiência prática conduz às

“cenas predicativas”, a experiência das conjunturas conduz às “estratégias” etc.

Mas esse esboço de tipologia das experiências é por si mesmo enganoso, porque

antes de sua declinação em “semióticas-objeto” e em níveis de pertinência, a

própria experiência é indivisível e holística e, assim, é a hierarquia dos planos

de imanência que induz retroativamente a uma hierarquização e a uma segmen-

tação da experiência.

A proposta que fazemos coloca em questão diversas estratégias teóricas que

consistem em atribuir a conceitos e operações, necessários à construção teórica,

estatutos epistemológicos ambíguos e pouco operatórios, como “pressuposição”,

“contexto”, “protossemiótica”, “experiência subjacente” etc. Ela consiste em atri-

buir a esses conceitos e a essas operações um nível de pertinência hierarquica-

mente superior, em que são constituintes de uma semiótica-objeto cujo plano

da expressão tem um modo diferente, ou pelo menos é multimodal e polis-

sensorial. Certamente, não estamos ainda querendo identifi car e inventariar os

aspectos “observáveis” desses constituintes, mas estamos construindo os meios

para fazê-lo e instalando a restrição que nos incitará a fazê-lo.

1.3.5. Sincretismos e sinestesias

Os sincretismos (conjuntos às vezes denominados “pluricódigos” ou “mul-

timodais”) ou as sinestesias (conjuntos ditos “polissensoriais”) serão submeti-

dos à mesma regra de integração: no nível inferior, aparecem como dispositivos

28 | Jacques Fontanille

formais, que só fazem sentido nas práticas. De fato, seus constituintes (modos

semióticos diferentes, modos sensoriais distintos), no momento de sua redistri-

buição nas diferentes composições predicativas, temáticas e fi gurativas da práti-

ca, aí encontram um lugar, um papel, ambos interdefi nidos.

Por exemplo, no funcionamento de um pictograma como “texto-enuncia-

do”, poderemos apenas observar que coexistem semióticas verbais, icônicas e

objetais, e que estamos lidando com uma semiótica-objeto multimodal. Toda-

via, redistribuídos em uma prática cotidiana ou técnica, cada um dos elemen-

tos dessas semióticas multimodais (compreendidas aí as fi guras do pictograma)

desempenha um dos papéis que constituem a cena predicativa (instrumentos,

objetos, agentes etc.), ou incorpora uma das modalizações (dêiticas, espaço-

temporais, factuais) desses papéis.

Outro exemplo: no funcionamento de um “prato” culinário, as diferentes

percepções sensoriais (visuais, táteis, olfativas e gustativas, até mesmo auditivas)

formarão associações polissensoriais se tratamos o “prato” como um “texto” (por

uma espécie de detalhamento de todas as propriedades fi gurativas e sensoriais).

Se esse detalhamento faz aparecer equivalências entre as ordens sensoriais, po-

deríamos até mesmo chegar a uma “sinestesia”, no sentido tradicional do termo.

Mas, se elevamos a análise a um nível superior, o da prática da degustação, cada

um dos modos do sensível encontrará seu lugar nesse conjunto de operações

colocadas em seqüência (anunciar, prometer, verifi car, validar, provar etc.), de

maneira que eles estabeleçam, então, não apenas relações paradigmáticas (equi-

valência e diferença), mas sintagmáticas e predicativas (uns anunciam, prome-

tem ou verifi cam os outros).

Em suma, e mais particularmente na passagem dos “textos-enunciados” às

“práticas” (pelo nível intermediário dos “objetos” e dos “suportes”), a hierarqui-

zação dos níveis de pertinência permite opor dois modos de análise: (1) o deta-

lhamento, que consiste em uma análise de tipo “distribucional” e formal, que se

restringe à análise de um único nível por vez; (2) o realçamento que se apresenta

como “gerativo”, (conforme o “percurso gerativo do plano da expressão”), graças

à integração entre dois ou mais níveis.

Essa distinção (detalhamento/realçamento) exprime, entretanto, o fato de

que, a cada passagem ao nível superior, acrescentamos uma dimensão ao plano

da expressão. Do signo ao texto-enunciado, acrescentamos a dimensão “tabular”

e a consideração da superfície (ou do volume) de inscrição: essa superfície ou

volume de inscrição é dotada de regras sintagmáticas para dispor as fi guras (um

tipo de modelo virtual).

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 29

Do texto-enunciado ao objeto (sobretudo objeto-suporte), acrescentamos a

dimensão da espessura (portanto, do volume) e da complexidade morfológica do

próprio objeto (envelope/estrutura material). Essa nova dimensão (a “espessu-

ra” e complexidade materiais) implica principalmente, do ponto de vista semi-

ótico, propriedades de “resistência” ao uso e ao tempo e, de forma mais geral, a

“corporeidade” das fi guras semióticas.

Do texto-enunciado e do objeto à prática, acrescentamos a dimensão do es-

paço tridimensional de uma cena, assim como outras propriedades temporais

(“aspecto” e “ritmo” da prática, sobretudo) etc. Nesse caso, são estruturas espa-

ciais e temporais independentes do texto e do objeto que acolhem, localizam e

modalizam as interações entre os participantes da prática: podemos então, com

propriedade, falar aqui de uma dimensão “topocronológica” da cena predicativa.

Essa progressiva autonomização das propriedades espaço-temporais em relação

às fi guras pertinentes (atores, objetos etc.) conduz às estratégias, no sentido em

que, nesse caso, são regimes temporais e dispositivos espaciais igualmente “abs-

tratos” que determinam tipos de ajustamento entre práticas.

1.4. Retóricas ascendentes e descendentes

Até o presente momento, vimos as operações de integração na estrita ob-

servância do princípio defi nido por Benveniste, que apenas se interessava pela

análise e pela articulação das linguagens. Consideremos agora esse princípio

como um modo de integração progressiva canônica e um modo de referência:

os textos integram as fi guras, os objetos integram os textos, as práticas integram

os objetos, etc. É assim que funciona o percurso gerativo da expressão, contanto

que ninguém tente modifi cá-lo ou desorganizá-lo.

Entretanto, como todo percurso canônico, ele está sujeito a numerosas va-

riações, decorrentes das enunciações e dos usuários, sendo preciso agora, conse-

qüentemente, levar em consideração a dimensão retórica desse percurso. Desse

ponto de vista, a integração canônica será defi nida como integração ascendente.

Mas encontraremos também movimentos inversos (integração descendente) e

integrações irregulares, entre níveis disjuntos, que designaremos como integra-

ções sincopadas ou, simplesmente, como síncopes ascendentes ou descendentes.

30 | Jacques Fontanille

1.4.1. Integrações e síncopes ascendentes

As síncopes ascendentes consistem em “saltar” um ou mais níveis no per-

curso de integração canônico. Por exemplo, a “desmaterialização” do suporte

da escrita, que suprime o nível do objeto e nos faz passar diretamente do texto

à prática. Sabemos que é preciso desconfi ar dos discursos sobre a “desmateria-

lização” de nossa vida cotidiana, mas as formas de pagamento eletrônico, por

exemplo, se não suprimem o objeto próprio à prática (o cartão magnético, por

exemplo), oferecem, no entanto, uma alternativa aos suportes de inscrição das

unidades do valor monetário (dinheiro em espécie). Por outro lado, como a

lingüística estrutural ignorou sistematicamente o estatuto material do discurso

verbal oral, a maior parte das análises das interações orais baseia-se nessa mes-

ma síncope “desmaterializante”, que “desencarna” as práticas linguageiras, e que

deve evidentemente ser recolocada em questão.

A síncope ascendente pode ser ainda mais radical. Ignorando todos os ní-

veis anteriores, ela permite a um dos níveis do percurso assumir sua autonomia

e parecer “originário”: assim, encontraremos objetos sem fi guras-signos nem

textos aparentes, como a maioria das ferramentas ou das máquinas. Essa última

possibilidade leva-nos, aparentemente, aos limites do domínio tradicionalmen-

te atribuído à semiótica, já que confere um estatuto semiótico a manifestações

sociais e culturais que, no limite, podem não comportar nenhuma “fi gura-sig-

no”, nenhum “texto-enunciado” e, a fortiori, não têm relação com nenhuma ma-

nifestação verbal.

Do mesmo modo, poderíamos tentar reconhecer práticas sem objeto mate-

rial, diretamente ancoradas em uma “topocronologia”, como a dança ou a mími-

ca. Mas, além do fato de que a dança implica um texto musical, não poderíamos

esquecer que essa topocronologia é uma estrutura de apoio que dá signifi cado

aos corpos. Certamente, não são “objetos” no sentido corrente, mas verdadeiros

“sujeitos” que, entretanto, são suportes de inscrição: a expressão coreográfi ca

consiste justamente em inscrever fi guras nos corpos dos dançarinos, como se

fossem, aliás, corpos-objeto.

Enfi m, tais síncopes ascendentes não invalidam a hierarquia dos níveis de

pertinência na medida em que, no sentido da integração descendente (como

demonstraremos a seguir), essas ferramentas ou essas práticas podem ser objeto

de uma notação ou de uma representação textual, seja anterior (um texto ou

uma imagens de prefi guração, o esquema gráfi co de uma ferramenta, por exem-

plo) ou posterior (textos e imagens de representação, por exemplo, a foto de um

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 31

móvel pré-fabricado em um manual de instrução). Na verdade, às vezes é bem

difícil, na ausência de uma investigação genética, saber se estamos diante de

“prefi gurações” ou “representações”, considerando que aquilo que para alguns

parece uma representação a posteriori, seria para outros apenas uma prefi gura-

ção a priori. No entanto, ainda que seja problemática, a distinção entre inscri-

ções de prefi guração e inscrições de representação conduz a uma tipologia dos

modos retóricos da integração entre níveis.

1.4.2. Integrações e síncopes descendentes

Cada nível superior pode manifestar-se nos níveis inferiores, segundo o

percurso de integração descendente. A integração ascendente atua por comple-

xão e por acréscimo de dimensões suplementares, enquanto a integração des-

cendente atua por redução do número de dimensões. Mas os dois percursos não

são contrários um ao outro: na integração ascendente, um texto estará inscrito

num objeto e manipulado em uma prática; na integração descendente, uma prá-

tica estará emblematizada por um objeto, ou encenada num texto. A diferença

entre os dois percursos baseia-se na reciprocidade dos percursos de integração:

a prática integra um texto (direção hierárquica ascendente), o texto integra uma

prática (direção hierárquica descendente).

O caso da dança é particularmente interessante porque, de um lado, corres-

ponde perfeitamente aos critérios de uma prática, esquematizável como “cena

predicativa” e, de outro lado, integra evidentemente, como insiste Landowski

(2004: 155), os “ajustamentos” entre os corpos em movimento. Ora, os ajusta-

mentos espaço-temporais decorrem das estratégias, e quando falamos de ajus-

tamento entre corpos em movimento, seria preciso, para sermos mais claros,

falarmos de ajustamento entre práticas que implicam corpos em movimento

(que é o caso da maioria das situações da vida cotidiana). De fato, a dança é

uma prática (de deslocamento) mais ou menos codifi cada que integra (na di-

reção descendente) formas de ajustamento estratégico e que, a partir do que

se apresenta na vida cotidiana como ajustamentos entre práticas autônomas e

concorrentes, constrói uma só prática para dois ou mais corpos. Portanto, assim

como as práticas podem ser “textualizadas” em tipos de textos específi cos, as

estratégias podem ser “praticadas”, em tipos de práticas específi cas.

32 | Jacques Fontanille

1.4.3. Integrações intensivas e extensivas

1.4.3.1. Condensações e desdobramentos

O caso das prefi gurações e representações textuais das práticas convida-nos

a levar em consideração uma outra dimensão dos procedimentos de integração.

A integração descendente, de fato, apresenta-se como uma condensação, devido à

perda de um certo número de propriedades. De modo inverso, a integração ascen-

dente produz um desdobramento, devido ao aumento do número de dimensões.

Além disso, se admitimos que do ponto de vista retórico, que é o nosso, os

movimentos de integração não respeitam necessariamente um procedimento

canônico, então é possível considerar que essas duas operações sejam graduais,

segundo a importância da perda ou do ganho. Em outras palavras, a condensa-

ção e o desdobramento são modos operatórios respectivamente de integração

descendente e de integração ascendente, mas, tanto numa direção como na ou-

tra, o modo operatório varia entre um mínimo e um máximo. Por exemplo, na

direção da integração descendente, a “prefi guração” benefi cia em geral um grau

de condensação superior à “representação”, como mostramos anteriormente.

1.4.3.2. Otimização e simbolização

A integração descendente não condensa portanto, necessariamente, as for-

mas de vida, as estratégias e as práticas. Ela pode ter, por exemplo, uma seg-

mentação canônica, como num manual de instrução, que gerencia em extensão

a textualização de uma prática; ela pode também visar uma extensão sincrética

(multimodal, compreendendo texto verbal, imagens, emblemas, esquemas) com

valor didático, como nos manuais. Ela pode até ter uma extensão “explicativa”,

com comentários e análises (como num relatório de uma observação etnográfi -

ca ou de uma experiência científi ca).

Nesses casos de integração descendente extensiva (especialmente quando

uma estratégia ou uma prática são assumidas em um texto), “gêneros” espe-

cífi cos impõem suas regras de enunciação e de composição (ou seja, regras de

integração descendente): esses gêneros são, por exemplo, receitas de cozinha,

indicações de uso, manuais de instrução, discursos eruditos ou técnicos que

funcionam, em relação às próprias situações, como discursos de instrução – so-

bre a receita de cozinha, Greimas falava, mais especifi camente, de “discursos de

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 33

programação” (1973). Todos esses casos de integração descendente extensiva

visam globalmente um mesmo objetivo: a otimização da representação. A oti-

mização (sobretudo textual) é a versão mínima da condensação das práticas (na

integração descendente), a ponto de tanger o desdobramento.

Por outro lado, as síncopes aumentam a perda ou o ganho e participam

dessa variação gradual. Ademais, elas suscitam uma tensão que reclama por si

mesma uma compensação: esse mecanismo interpretativo revela, de fato, a soli-

dariedade entre condensação e desdobramento.

Por exemplo, no caso de síncope descendente, uma forma de vida (ideologia,

crença, narrativas, mitos etc.) pode ser condensada e representada (ou prefi gu-

rada) em um só rito (uma prática particular), ou ainda, em uma só fi gura. De

certo modo, é a essa síncope e a essa condensação que Pascal recorre, quando

preconiza: colocai-vos de joelhos, rezai e crereis. Uma forma de vida completa

encontra-se aí ao mesmo tempo condensada fi gurativamente em uma prática

cotidiana, a prece – talvez mesmo no texto e seu suporte corporal –, pois essa

prática pode engendrar, por si mesma, uma reorganização completa da forma

de vida. Em suma, o conjunto do processo só é “efi caz” se a síncope descendente

(a condensação da forma de vida em prática ou em texto) provocar uma tensão

semiótica que se resolva em uma reorganização ascendente (da prática para a

forma de vida).

Guardadas as devidas proporções, o logotipo de uma marca obedece for-

malmente aos mesmos princípios da síncope descendente e de condensação.

No entanto, como se trata de um “texto”, ou até mesmo de uma simples “fi gura”,

essa condensação é produzida por uma síncope de maior amplitude, que produz

dessa vez um efeito de simbolização: o logotipo manifesta então, sem media-

ção, tanto uma cena fi gurativa típica (um texto), uma prática (a missão da mar-

ca), quanto uma forma de vida (valores, um estilo estratégico etc.). Da mesma

maneira, a efi cácia estratégica dessa condensação depende de sua capacidade

de produzir uma tensão problemática, que leva à reorganização interpretativa

ascendente. A simbolização é, portanto, a versão mais radical da condensação,

com síncope descendente.

1.4.4. Movimentos combinados

O próprio princípio da integração faz com que os textos inscritos nos obje-

tos, eles mesmos implicados nas práticas, não tenham o mesmo estatuto, nem

34 | Jacques Fontanille

tenham todos o mesmo “sentido”. O texto literário, inscrito em um livro, em ge-

ral não diz nada sobre a maneira como é preciso organizar a prática na qual ele

funcionará como texto, em contrapartida, o manual de instrução, de um kit de

montar, descreve e organiza a prática da montagem. O primeiro texto está inte-

grado somente na direção ascendente, de maneira canônica, enquanto o segun-

do é objeto de um duplo movimento: (1) a prática está integrada ao texto como

prefi guração discursiva (na direção descendente), e (2) o texto obtido integra-se

ao objeto e à prática que o constrói, como inscrição (na direção ascendente).

Podemos perceber então que, além do valor metodológico e teórico da hie-

rarquia dos níveis de pertinência, esse percurso do plano da expressão oferece

grandes oportunidades heurísticas, graças à combinação e ao seqüenciamento

dos diferentes percursos de integração ascendente e descendente.

A etnologia médica explora muito freqüentemente práticas terapêuticas

africanas que combinam, de fato, várias operações. A perturbação patológica

de um indivíduo, manifestada por signos (nível 1, o das fi guras), é considerada

coletivamente, ao longo de uma cena codifi cada e quase-ritual (nível 4, o das

práticas). Um dos momentos-chave dessa cena é a produção de um objeto (nível

3, objetos) que condensa ao mesmo tempo a perturbação psíquica e/ou corpo-

ral e a busca coletiva de uma solução. O próprio objeto suscitará verbalizações

(nível 2, textos), e outras fases rituais (nível 4, práticas) etc. Enfi m, a efi cácia do

conjunto depende de crenças partilhadas, de uma maneira de ser conjunta, de

interações habituais que se baseiam em uma mesma forma de vida (nível 6). Os

movimentos de integração invertem-se e as síncopes sucedem-se nas duas dire-

ções: o nível de análise pertinente é a terapia, enquanto estratégia (nível 5), mas

essa terapia percorre e relaciona todos os níveis de pertinência, representando

no eixo sintagmático diversos agenciamentos sincréticos.

Conforme o caso, a integração é mais ou menos fi gurativa, mais ou menos

intensiva ou extensiva, e combinada ou não a síncopes de maior ou menor am-

plitude. Em certas combinações, essas integrações descendentes têm uma di-

mensão incitativa ou prescritiva, em outras, simbólica ou mesmo mágica, mas

em todos os casos, elas participam dos efeitos didáticos, persuasivos, conotati-

vos e/ou metassemióticos.

1.4.5. O caso das Ligações Perigosas (Laclos)

A esse respeito, gostaríamos de examinar um caso muito particular de inte-

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 35

gração descendente, tomado da literatura6. O romance epistolar de Choderlos de

Laclos (2008), As Ligações Perigosas, inicia-se de fato antes da apresentação das

próprias cartas, por uma “Advertência do editor” e por um “Prefácio do redator”.

A Advertência do editor questiona a “autenticidade” da coletânea de cartas

e, sobretudo, na forma de uma evidente antífrase, a verossimilhança dos costu-

mes que ali estão encenados.

Já o Prefácio do redator detém-se longamente sobre os processos de com-

posição da coletânea: a seleção e a ordenação das Cartas, das proposições e das

tentativas de abreviação ou de modifi cação estilística de algumas delas (recu-

sadas por seus autores, dizem). Em seguida aborda os objetivos e as possíveis

recepções dessa publicação: prevenir os leitores contra pessoas de má reputação,

apresentar as estratégias de corrupção para suscitar resistências e contra-estra-

tégias. Além disso, o “redator” lança-se a um curioso exame dos antileitores

(aqueles a quem o livro desagradará): os depravados, os puritanos, os céticos,

os sensíveis etc.

Em suma, esse dispositivo mostra a hierarquia concreta (actorial) que re-

cobre o que convém chamar de “enunciação pressuposta” do romance: autores

que produzem as cartas, um redator que as escolhe, retoca e ordena, e um editor

que publica o conjunto. E, ao fazer isso, integra vários níveis de pertinência: (1)

enunciadores dirigem-se a enunciatários por via epistolar; (2) o redator apresen-

ta as cartas no interior de uma prática literária (escolha, reescrita, composição

etc.) cujos parceiros são predefi nidos: (a) autores que ainda têm direito sobre

seus enunciados, (b) um redator, que apresenta seu ethos, revela as razões de

suas escolhas e defi ne a temática da manipulação principal e (c) uma série de

tipos de leitores, que resistem a essa manipulação por razões que lhes são pró-

prias; (3) o editor instala também um jogo de papéis: diante dele, não encontra-

mos “leitores” (que são os parceiros habituais do redator), mas um público, ou

seja, um ator coletivo suscetível de comprar a obra e de confrontá-la com outras

informações e experiências, de outra natureza que não a da leitura. Seu discur-

so trata essencialmente da não-concordância entre essas experiências e aquela

que será proporcionada pela leitura da obra: o redator teria reunido as cartas,

expressando costumes de outro lugar e/ou de outra época, para fazê-los passar

por costumes atuais e franceses. Desse modo, seu discurso diz respeito ao “ajus-

tamento” entre práticas distintas e entre as experiências que lhes correspondem:

o argumento da inautenticidade e do descompasso supõe que aqui mudamos de

6 Esse exemplo nos foi fornecido por Yasuhiro Matsushita (2005), doutor pela Universidade de Limoges, em sua tese consagrada aos paradoxos da enunciação e da perspectiva na literatura e na pintura.

36 | Jacques Fontanille

nível de pertinência e que nos referimos à congruência e ao ajustamento estra-

tégicos. Em suma, denunciando a incongruência do quadro dos costumes que

se constituirá quando da leitura do livro, em relação às observações e às práticas

cotidianas e contemporâneas dos leitores, o Editor nos faz passar para o nível

das “conjunturas” e das “estratégias”.

A integração descendente, que permite “textualizar” ao mesmo tempo a es-

tratégia (editorial e comercial), a prática (redacional) e a troca epistolar, vem

acompanhada de vários efeitos importantes.

A primeira conseqüência disso é uma segmentação do texto do romance em

três “gêneros” de discurso diferentes, a advertência, o prefácio e as cartas, o que

coloca grandes problemas àqueles que quiserem discernir quais os limites do

“texto”. Essa diferença de gêneros permite também compensar o detalhamento

do dispositivo semiótico: inseridos no interior de um mesmo texto, as diferentes

instâncias, que são a estratégia, a prática e o texto-enunciado, ainda são reconhe-

cíveis e hierarquizáveis por seu gênero (advertência, prefácio e cartas).

Formalmente, segundo a concepção tradicional dos “planos de enunciação”,

esses três gêneros fazem parte de três enunciações que se encaixam uma na ou-

tra. Entretanto, as coisas parecem um pouco mais complexas, quando observa-

mos que esses planos de enunciação não são “estanques” e que certo número de

interações é admitido: (1) o redator propõe aos autores das cartas algumas mo-

difi cações, que são recusadas; (2) o redator julga o comportamento dos autores

das cartas enquanto atores dos costumes relatados; (3) o redator procura per-

suadir com sua boa fé e sua sinceridade o conjunto de seus leitores potenciais,

inclusive o editor; (4) o editor julga inautêntico o texto proposto pelo redator e

não se deixa, portanto, persuadir.

Desse modo, não podemos considerar que esses diferentes planos de enun-

ciação são simples “camadas” autônomas. Sob certas condições, todas essas

enunciações interagem entre si: essa condição é a da integração ascendente ou

descendente. É assim que, por exemplo, o redator e os autores podem corres-

ponder-se, porque, nesse momento, fazem parte da mesma prática (a da revi-

são/composição da coletânea). E mais, o editor e o redator só podem corres-

ponder-se de maneira unilateral, na medida em que o primeiro não admitiu o

segundo como parceiro no dispositivo estratégico que avalia.

Em suma, somos levados a considerar que o mesmo ator pode desempenhar

papéis temáticos e actanciais diferentes segundo o nível de pertinência no qual

os apreendemos. Assim, os “autores” das cartas são: (1) nas cartas, enunciadores

para enunciatários e protagonistas; (2) no prefácio, autores responsáveis para o

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 37

redator e os leitores e (3) na advertência, pessoas que testemunham os costumes

para o editor e o Público.

Essa integração descendente produz, entretanto, uma confrontação que per-

manece indeterminável, entre a “verossimilhança” e a “verdade” dessas cartas. O

redator confessa ter sacrifi cado, contra sua vontade, a verossimilhança (compo-

sicional, estilística) em prol da verdade: ele teve que conservar as “verdadeiras”

cartas escritas por seus autores. O editor denuncia a “autenticidade” (a verdade)

a partir de um erro de verossimilhança (a não-congruência entre os costumes

da atualidade e aqueles encenados). Esse confronto só se resolve (quem tem

razão?) devido à integração descendente, que os situa no mesmo texto, mas se

reorganizamos todos esses papéis nos níveis de pertinência superiores, não nos

surpreendemos mais com o fato de que, na perspectiva ética (a do redator), a

verossimilhança e a verdade confrontem-se e que, na perspectiva da estratégia

editorial e comercial, a primeira determine a segunda.

Essa encenação é, por si mesma, própria de uma época e de uma cultura, em

que as mises en abîme e as enunciações encaixadas são particularmente preza-

das, tudo o que uma crise da representação literária envolve. Ela desenvolve uma

espécie de “metassemiótica” do texto de fi cção, em que podemos reconhecer ao

mesmo tempo uma estética, uma ética e uma ideologia da produção literária.

Enfi m, fazendo eco aos diversos papéis dos atores enunciadores, ela oferece

ao leitor-usuário um percurso de manipulação-identifi cação particularmente

sofi sticado, encenando-lhe, em três estratos sucessivos, sua “apresentação do as-

sunto”: público da edição, leitor da obra redigida e narratário indiscreto da fi cção

epistolar. Esse percurso é em si mesmo inevitável, mas sua inscrição no texto

problematiza-o e permite, pelo confronto indecifrável das posições, submetê-lo

a uma avaliação crítica.

1.4.6. A retórica dos níveis de pertinência

Essas inversões e síncopes do percurso de integração dos níveis de perti-

nência constituem, assim, operações retóricas, que agem sobre expressões para

induzir conteúdos e valores problemáticos e para suscitar tensões que deman-

dam resolução.

As inversões do movimento de integração e as síncopes que o afetam pro-

duzem substituições, tensões e competições entre os diferentes níveis da expres-

são e variações dos modos de existência (virtualização, potencialização, atuali-

38 | Jacques Fontanille

zação e realização). O conjunto – tensões e competições para chegar ao plano

da expressão, resoluções e reorganizações graças às modifi cações dos modos de

existência – constitui a base conceitual da dimensão retórica na perspectiva de

uma semiótica tensiva (Bordron; Fontanille, 2000).

1.5. A argumentação e a arte retórica como “práticas”

A construção de uma semiótica das práticas conduz ao mesmo tempo a

descobrir novos domínios de investigação e a ver de uma outra maneira os do-

mínios que acreditávamos conhecer ou dominar. O discurso persuasivo faz par-

te da segunda categoria.

O discurso persuasivo é apreciado no nível do texto, mas a argumentação, da

maneira como é considerada pela retórica geral, é uma prática e a pertinência de

cada argumentação particular só pode ser estabelecida no âmbito de uma estra-

tégia. O próprio “texto” da argumentação só nos permite levantar hipóteses acer-

ca do funcionamento das estratégias argumentativas, acerca das coerções que ele

impõe a essas estratégias (ou, inversamente, acerca das escolhas textuais que estas

impõem) ou, no limite, esboçar “simulacros” dos parceiros da interação.

O silêncio persistente da teoria semiótica sobre a argumentação e a retórica

geral não se explica somente pelo caráter “pré-científi co” das disciplinas que

ainda as estudavam nos anos 1970 ou 1980. De maneira signifi cativa, o verbete

“retórica”, no Dicionário I de Greimas e Courtés, só considera como pertinentes

a dispositio (reduzindo-a à segmentação), a inventio (reduzindo-a ao estudo da

tematização) e a elocutio (reduzindo-a ao estudo da fi guratividade). Mas a retó-

rica como “práxis” só começa a merecer a devida atenção no fi m dos anos 1990,

quando a dimensão retórica da “práxis enunciativa” é levada em conta pelos

semioticistas. Entretanto a “práxis” enunciativa, nesse período, ainda não faz

nenhuma referência a uma teoria das “práticas”. Na verdade, para poder falar

com alguma efi cácia da argumentação e da retórica, é preciso poder convocar,

além do texto persuasivo, a cena do embate, a prática da infl uência em geral e

tratá-las como semióticas-objeto completas.

Sob esse aspecto, o “texto” persuasivo é apenas um dos elementos da prática

argumentativa, já que devem ser levados em conta: (1) os respectivos papéis dos

parceiros, que se defi nem em termos actanciais e em termos de papéis temáticos

e fi gurativos; (2) o ethos preliminar do enunciador, tal como é percebido pelo

enunciatário, que não pode reduzir-se a uma competência e que compreende

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 39

também isotopias fi gurativas e temáticas, posições axiológicas e “simulacros”

modais e passionais; (3) a representação preliminar do enunciatário pelo enun-

ciador (de composição semelhante à do “ethos”); (4) uma cultura comum que

defi ne gêneros, topoi, modos de raciocínio, aceitáveis ou não, adaptados ou não,

ou seja, um certo número de regras para a interação argumentativa, que fi xam

ao mesmo tempo conteúdos semânticos e processos sintagmáticos, eventual-

mente em uma perspectiva normativa.

Nessas condições, a própria prática argumentativa obedece ao princípio da

integração:

(1) No nível “n”, ela tem uma “forma”, a da cena predicativa, que compreen-

de papéis actanciais, sua identidade modal e temática relativa e os predicados

típicos do ato persuasivo;

(2) No nível “n+1”, ela encontra seu “sentido” em uma estratégia, que im-

plica o tempo, o espaço e os atores suplementares (já que “culturas” e “grupos

sociais” são evocados). Essa “estratégia” leva principalmente em conta a memó-

ria coletiva das interações argumentativas anteriores e a identidade construída

e adquirida dos parceiros.

Na prática argumentativa, todos esses elementos interagem e a compreen-

são do discurso persuasivo fi ca incompleta se não podemos apreciar, especial-

mente, o efeito do ethos do orador sobre a força dos argumentos. Perelman e

Olbrechts-Tyteca (2005)7 mostraram que o ethos do orador podia enfraquecer

ou reforçar os argumentos que ele utiliza e, inversamente, que o valor de seus

argumentos modifi ca seu ethos: é o que ele chama de efeito “bola de neve”. In-

vocar a “força” dos argumentos é invocar sua efi cácia persuasiva, que é preciso

então distinguir de sua “forma” persuasiva: esta é observável e pertinente no

texto, enquanto aquela só é observável e pertinente na prática, em função das

reações do auditório.

Do mesmo modo, devemos levar em conta os efeitos da representação do

auditório sobre a escolha dos topoi e dos modos de argumentação: o auditório

“ideal” é uma construção do discurso, embora resulte da análise e da adaptação

entre seu “perfi l” presumido e os topoi ou tipos de argumento que convêm a

esse perfi l.

7 Todas as menções e proposições que remetem, neste estudo, aos trabalhos de Perelman fazem referência a essa obra.

40 | Jacques Fontanille

Portanto, as interações podem tornar-se extremamente complexas, já que,

por exemplo, se a escolha dos argumentos pode ter um efeito sobre o ethos do

orador, e se a escolha dos argumentos depende de uma análise das expectati-

vas do auditório, então, por fi m, as construções da “imagem do auditório” e da

“imagem de si mesmo” são ligadas por transitividade. Entretanto, só podemos

dar conta dessa transitividade (e reciprocidade) das interações indo e vindo en-

tre o texto persuasivo e o “fora do texto”, isto é, situando-nos no nível dos ele-

mentos actanciais, temáticos e modais da própria prática.

A seleção dos topoi, sobretudo, depende estritamente dessas interações prá-

xicas, já que, defi nitivamente, ela comprova as respectivas ideologias dos parcei-

ros da argumentação e a intersecção negociável entre as ideologias dos três pa-

péis identifi cados por Christian Plantin (1996): Proponente/Oponente/Terceiro

controle. Se um dos parceiros utiliza, de preferência, topoi da quantidade (maior

número vale mais que pequeno número) e se o outro apenas se sensibiliza pelos

argumentos da qualidade (o brilho, a raridade e a excelência valem mais do que

o grande número), então o orador tem apenas duas soluções: (1) uma estratégia

de compromisso em que ele só utilizará os topoi da quantidade na medida em

que forem compatíveis com o brilho e a excelência; (2) ou uma estratégia de

distância enunciativa, em que graças a um jogo polifônico de menções e alusões,

ele assumirá os topoi da quantidade por uma “voz” debreada, o que lhe permi-

tirá não comprometer seu ethos aos olhos de seu parceiro.

A negociação da intersecção axiológica só pode ser descrita no nível da prá-

tica, pois no texto apenas poderemos observar argumentos de compromisso, ou

eventuais descompassos entre planos de enunciação. Desde que tentemos dar

conta deles em termos de tensões entre valências inversas (a valência de inten-

sidade e a valência de quantidade), instauramos ipso facto a cena predicativa da

prática, já que apenas os parceiros da prática argumentativa e, não as instâncias

enunciantes do texto unicamente, estão em condições de perceber essas varia-

ções graduais das valências intensivas e extensivas e, portanto, assumir, entre

outras, as posições axiológicas extremas, defi nidas por essas duas valências. Em

suma, a apreciação das “valências” é um ato que está ancorado na prática, en-

quanto os valores diferenciais que daí decorrem são propriedades do texto.

A questão da “presunção” é também muito complexa: na realidade, as ex-

pectativas do enunciatário, assim como a reputação do enunciador, só podem

ser “presunções”. No gênero judiciário cada um dos dois parceiros pode atribuir

ao outro “prejulgamentos” em relação à causa a ser estabelecida e julgada: são

sempre presunções e sabemos que tais presunções enfraquecem os argumentos

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 41

que o orador utiliza, já que parecem assim mais determinados pelos prejulga-

mentos a ele atribuídos do que pelo preocupação com a verdade ou com a efi cá-

cia do intercâmbio em curso.

No texto, as presunções podem funcionar como simples pressupostos, re-

construíveis a partir de enunciados produzidos: é o caso de todo argumento, por

exemplo, que “faz como se” o acusado já fosse mais ou menos considerado como

culpado, ou de uma maneira mais vaga, como “condenável”.

O estatuto dos pressupostos (e da maioria dos implícitos) poderia com van-

tagem ser reconsiderado à luz das práticas, o que lhe permitiria desfazer-se de

sua defi nição atualmente muito logicista (por ser indevidamente muito textual).

De fato, o pressuposto resulta, no texto, de um simples cálculo semântico, cujo

produto é considerado virtual. Ao contrário, na prática a presunção é uma atri-

buição de crença ou de “prejulgado”, por um dos parceiros ao outro, e nada mais

tem de virtual. Essa atribuição tem o caráter quer de um julgamento, quer de

um simulacro passional, projetado sobre o outro, e modalizado (crer, poder ser,

querer ser etc.), o que diz respeito a um ato estratégico e não mais a um cálculo

semântico.

Perelman observa, por outro lado, que para neutralizar antecipadamente

toda presunção, aquele que quer criticar deve obrigar-se a elogiar no início, e

aquele que quer elogiar deve dar espaço à crítica e à reserva. Estratégia para-

doxal que, no texto, só poderíamos compreender, depois de ter constatado a

coexistência de duas posições contrárias, como o efeito de uma ética da medida,

do justo equilíbrio.

No entanto, como esclarece Perelman, a justa medida e o sentido do equi-

líbrio são apenas efeitos secundários e superfi ciais (no texto) de uma estratégia

mais profunda e mais sofi sticada (na prática): trata-se de dissuadir previamente

o auditório de atribuir ao orador prejulgamentos desfavoráveis (quando ele quer

criticar) ou favoráveis (quando ele quer elogiar), de inibir um tipo de contra-

estratégia e rotina defensiva que todo auditório pode apresentar.

Em suma, essa estratégia tem por objetivo separar, de um lado, a apreciação

que o auditório fará sobre os argumentos e, de outro, a que ele já faz sobre as

opiniões presumidas do orador: como diz Perelman, trata-se de “frear” a ligação

entre o ato (os argumentos) e a pessoa (os prejulgamentos e o ethos). Mas, na

perspectiva que defi nimos, trata-se também de “frear” a ligação entre o conteú-

do dos argumentos (o que podemos observar no nível textual) e o ethos adqui-

rido pelo orador (o que só podemos observar no nível práxico).

As estratégias que tratam das presunções apóiam-se, portanto, em parte

42 | Jacques Fontanille

sobre a maior ou menor solidariedade entre o texto (seu conteúdo, sua forma,

seus argumentos, sua credibilidade) e os outros elementos da prática. E, se há

estratégia, é a da integração ascendente e descendente e das síncopes que podem

mascarar ou suspender essa integração. Isso seria, de algum modo, uma prova

particular (limitada ao domínio argumentativo) da existência e da efi ciência do

percurso de integração tal como o defi nimos, cujas modifi cações pertencem,

justamente, à retórica geral. As “frenagens” e “rupturas” descritas por Perelman

a respeito da prática argumentativa podem então ser aqui defi nidas como es-

tratégias retóricas, que consistem em fortalecer ou enfraquecer a integração as-

cendente ou descendente entre o texto persuasivo e a prática argumentativa, ou

ainda, a situação englobante.

Também podemos dizer, como Denis Bertrand (1999), e na esteira de Aris-

tóteles, que “a argumentação está situada no tempo”, embora esse tempo seja o

de uma prática discursiva e não o de um texto-enunciado.

Na verdade, a adesão do ouvinte ao discurso oscila em função da rapidez ou

da lentidão, da urgência ou da demora, e “leva algum tempo”, um tempo incom-

primível, mas elástico. A argumentação pode ser repetida, interrompida, retoma-

da: esse tempo não é o do texto, mas o da ação, isto é, o da práxis enunciativa.

Além disso, cada discurso argumentativo visa uma fase que lhe é posterior:

a crença, a adesão, a decisão e a ação deveriam suceder à argumentação, se ela

fosse efi ciente. Mas a passagem à decisão ou à ação pode ser retardada: uma

estrutura aspectual permite então estruturar o tempo argumentativo que, aqui

também, ultrapassa não só o texto, mas sua enunciação prática, já que leva a um

programa de ação mais amplo, em cujo âmbito ela está compreendida.

Esses dois primeiros tempos podem estar eventualmente e parcialmente

manifestados no texto, mas apenas sob a forma de simulacros, de representações

virtuais ou projetadas: o texto, efetivamente, pode representar esses tempos da

prática argumentativa, mas unicamente em razão das possíveis integrações des-

cendentes que permitem a “textualização” dos níveis de pertinência superiores.

Além disso, a argumentação pode a qualquer momento ser distendida no

tempo, por digressões (que “ocupam” o tempo), por mudanças de nível (espe-

cialmente os metacomentários). O tempo torna-se então uma “substância estra-

tégica”. Na verdade, enquanto no texto essas fl utuações temporais só aparecem

como variantes fi gurativas, na cena prática elas constituem manipulações cog-

nitivas e passionais do enunciatário. Do mesmo modo, quando a tática argu-

mentativa organiza a ordem dos argumentos (no texto), ela age sobre o tempo

da adesão, das resistências e das aceitações (na cena prática), pois se trata de

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 43

modular não só a ordem textual, mas a força relativa dos argumentos.

Todavia, os grandes gêneros da retórica também são, sobretudo, maneiras

diversas de nos situar no tempo, por intermédio da seqüência narrativa, em que

cada um ocupa uma etapa (Bertrand, 1999):

(1) O deliberativo é voltado para o futuro, para o que se deve realizar, para a

programação de ações a praticar, ele antecipa e prevê. São muitos os gêneros de

discurso que exploram essa direção do tempo: debate, sermão, discussões para

“mudar o mundo”, tentativas de prospecção, utopia política, previsão do tempo;

(2) O epidítico ocupa-se do presente (eventualmente expandido) dos valo-

res: qualquer que seja a posição temporal do ato ou da pessoa que vai avaliar,

é sempre o que ele ou ela vale, no momento em que é enunciado, encenado,

atualizado, apresentado vivo a um espectador. São todos aqueles gêneros esta-

belecidos sobre a axiologia do presente e “em presença”: pregação, ditirambo,

apologia, cumprimento, brinde, felicitações, ofensa, elogio;

(3) O judiciário dispõe sobre o passado, mede a conclusão das coisas e,

retrospectivamente, relaciona as ações a suas intenções e objetivos anteriores,

assim como o conjunto dos julgamentos da mesma natureza, cuja memória a

coletividade guardou: a história, a pesquisa, o jornalismo investigativo, a defesa

e a acusação, são gêneros dele derivados8.

Fica bem claro que essas três orientações temporais (prospectiva, presenti-

fi cante e retrospectiva) só funcionam no âmbito da prática argumentativa, e se

elas propõem alguma escolha temporal no próprio texto (o que não é garanti-

do), sua compreensão narrativa não pode nele residir inteiramente. No texto,

por exemplo, o gênero judiciário pode apresentar-se tão simplesmente como

um relato (fatos a reconstituir), e é somente na prática englobante que ele assu-

mirá toda sua dimensão de sanção.

De uma maneira mais abrangente, se existe uma seqüência narrativa canô-

nica subjacente na segmentação da arte retórica em três gêneros, ela pode dar

conta somente da estrutura narrativa (actantes, modalidades, transformações)

de uma prática argumentativa coletiva (uma macrocena predicativa). Cada um

dos três gêneros caracteriza e especifi ca momentos dessa prática, que defi nem

8 Os períodos de tempo próprios a cada um desses gêneros são, para o deliberativo, o futuro, para o judiciário, o passado e para o epidítico, o presente (Aristóteles, 2007).

44 | Jacques Fontanille

“subpráticas”, colorindo de forma diferente os papéis e relações actanciais, as-

sim como os regimes temporais. Como já sugeriu Denis Bertrand, é somente

no interior desses gêneros práxicos que podemos defi nir “gêneros textuais” (por

exemplo, para o gênero práxico judiciário, os subgêneros textuais – histórico e

jornalístico), sabendo que esses subgêneros textuais convocam as propriedades

actanciais e narrativas do gênero práxico englobante.

2. EFICIÊNCIA E OTIMIZAÇÃO

2.1. Da explicação à prática interpretativa

A opção pelas “práticas” na economia geral da semiótica tem como efeito,

dentre outros, o de modifi car o estatuto da descrição e da explicação semióticas:

a própria análise semiótica, na verdade, torna-se, por sua vez, um dos casos

possíveis da prática interpretativa.

A prática semiótica por excelência, que consiste justamente em reformular

a signifi cação numa metalinguagem construída, teve, durante longo tempo, um

estatuto ambíguo. Na verdade, a solução mais simples consiste em tratar essa

reformulação como a “tradução” de um discurso de nível “n” em um discurso

de nível “ n+1”, sendo o primeiro uma semiótica-objeto a ser analisada e o se-

gundo, o próprio discurso da análise. Essa defi nição permitia defi nir a prática

semiótica como “descrição” ou “explicação”, isto é, como “tradução metalingüís-

tica” da signifi cação imanente.

Mas essa defi nição formal já fazia água no próprio campo das teorias da lei-

tura e mesmo no da refl exão hermenêutica. Na teoria da leitura, fomos levados

especialmente a distinguir as “leituras cultas” de outros tipos de leitura9, e assim

fazendo, tropeçávamos então no fato de que umas permitiam a produção de

discurso de análise, enquanto outras só podiam ser consideradas sob a forma de

processos perceptivos e cognitivos (principalmente, nos anos 1960, a teoria das

“fi xações”, “varreduras”, “hipóteses” e “verifi cações de hipóteses”). Entretanto,

ao mesmo tempo, e retrospectivamente, éramos levados a nos interrogar so-

bre as “operações” de leitura relativas à leitura culta, anterior à produção do

9 A. J. Greimas retrucava com a anedota “elitista”: “Não se faz semiótica da música para idiotas musicais”, reafi r-mando, assim, a superioridade originária da análise semiótica, capaz de determinar e articular o conjunto de condições de toda leitura. Certamente, podemos concordar com esse princípio e sustentar que a análise semi-ótica não é uma “leitura”, mas uma “proto” ou “meta” leitura, embora isso, por outro lado, não elimine seu es-tatuto de “prática”. Além disso, nada impede que nos perguntemos se as outras práticas de leitura não propõem também, mesmo implicitamente, “condições” de leitura diferentes das produzidas pela análise semiótica.

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 45

discurso de análise e, principalmente, sobre o estatuto perceptivo e cognitivo

dos modelos utilizados. Assim, o “percurso gerativo da signifi cação” passava de

simulacro da produção do sentido a uma seqüência de experiências do sentido,

ou seja, uma seqüência de procedimentos a serem empregados para produzir

a signifi cação. Isso nos leva a reconhecer que, no nível “n+1”, não se trata mais

apenas de uma simples reformulação, mas de uma prática complexa, pertencen-

te, ela mesma, a uma gama de práticas comparáveis e suscetíveis a tratamentos

variados e pluridisciplinares (cognitivo, semiótico, sociológico etc.).

Na hermenêutica, a célebre crítica de Paul Ricœur (1996), que denunciava

o “direcionamento teleológico” mascarado pela explicação semiótica, remete à

mesma difi culdade. Na verdade, se há “direcionamento teleológico” da explica-

ção, isso signifi ca que essa última não pode ser considerada como um procedi-

mento automático e impessoal de reformulação e que seu resultado não pode

ser apresentado como um “simulacro”.

Segundo Ricœur, a explicação estaria submetida a um “projeto” implícito,

uma visada direcionada por uma apreensão anterior do sentido da ação, uma

espécie de projeção sobre o texto, e pela intermediação dos modelos explícitos da

análise, de nossas intuições forjadas pela experiência do tempo e da temporaliza-

ção da ação. Projeto, visada teleológica, sentido intuitivo, experiência do tempo:

tudo já conduzia a uma outra defi nição da atividade metassemiótica, que produ-

ziria uma semiótica-objeto completa, distinta da semiótica-objeto analisada.

E a refutação de Paul Ricœur vai ainda mais longe, pois ela relativiza a práti-

ca explicativa, considerando-a apenas como uma prática dentre outras. De fato,

ela não difere de outras práticas de leitura a não ser pela forma de explicação,

pela mediação de modelos explícitos que introduz entre o momento da visada

teleológica e o momento da produção da análise. Entretanto, assemelha-se a

todas as outras práticas de leitura, condição que faz dela, justamente, um certo

tipo de hermenêutica: projeto, visada teleológica, sentido intuitivo, experiência

do tempo.

Na verdade, a explicação semiótica mudou seu estatuto muitas vezes. Uma

breve retrospectiva demonstra que esse tipo de refl exão, inicialmente, foi trata-

do na hierarquia dos níveis semióticos, especialmente em Greimas (1973: 22-26)

– como ele estabelece em Semântica estrutural: níveis descritivo, metodológico e

epistemológico –, sobre o modelo concebido por Hjelmslev das semióticas-ob-

jeto, das metassemióticas e das semiologias. A proliferação virtual dos níveis

de metalinguagem, sempre discutida na época do estruturalismo (especialmen-

te por Lacan e pelo próprio Greimas), é aqui interrompida por uma decisão

46 | Jacques Fontanille

epistemológica. Essa concepção da refl exão epistemológica caracteriza-se pela

recursividade do princípio de engendramento que a fundamenta, em relação ao

qual toda imposição de limite parece ser uma decisão arbitrária.

Em seguida, com o desenvolvimento da semiótica do discurso, essa rela-

ção entre níveis metassemióticos foi implicitamente repensada e transformada

graças à noção de “intertextualidade” (ou “interdiscursividade”). No discurso

epistemológico, a descrição semiótica parece ser um intertexto, pois menciona,

cita, comenta e reformula o texto original. E esse intertexto é, ele mesmo, cita-

do, mencionado, descrito e comentado no nível epistemológico. Esse segundo

período favoreceu especialmente alguns procedimentos de semiotização “de

segunda mão”, pois eles permitiram que qualquer discurso descritivo, mesmo

elaborado fora do campo científi co da semiótica, pudesse ser assim “recupera-

do” e reformulado em metalinguagem semiótica. Desde então, o discurso epis-

temológico da semiótica, tomado nesse prisma retroativo e tautológico, serve

apenas para justifi car ulteriormente tal reformulação, sem um verdadeiro ganho

heurístico: trata-se do limite crítico do princípio de refl exividade que caracteriza

essa segunda concepção.

Mas se o “nível n+1” é defi nido como o das práticas, a delimitação e a defi ni-

ção dos planos de imanência obedecem ao menos a quatro novas coerções, que

inviabilizam tanto o funcionamento recursivo quanto o funcionamento refl exivo:

(1) Cada nível é defi nido pelo seu próprio campo de expressão, correspon-

dendo a tipos de experiência diferentes, de maneira que cada um é irredutível

ao outro. A metalinguagem de nível “n+1” obedece então a regras de construção

diferentes da língua natural utilizada no nível “n”. Por exemplo, a organização dos

formantes sensíveis em “dimensão plástica” no nível dos textos-enunciados cons-

titui um ganho de articulação irreversível em relação ao nível das fi guras-signos.

(2) Cada nível atua então de maneira diferente para produzir um “plano de

expressão” pertinente, do qual já se conhece a hierarquia.

(3) Cada nível é defi nido pela maneira como entra em relação com os ou-

tros, antecedentes e subseqüentes, graças às operações de integração e/ou de sín-

copes retóricas, e às semióticas-objeto intermediárias.

Por exemplo, entre o nível dos textos-enunciados e o das práticas, é preciso

levar em conta os suportes e os objetos-suportes, de maneira que os textos-enun-

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 47

ciados possam ser integrados como “objetos” nas práticas, na medida em que

certos objetos implicados em uma prática são suportes de “inscrições”. Então, as

“práticas de leitura” distinguem-se entre si, não somente pelos procedimentos

que empregam e pelos seus produtos, mas também pela maneira como tratam o

objeto-suporte do texto (o livro, por exemplo): a leitura culta, diferentemente da

leitura comum cotidiana ou, no outro extremo, da leitura da prática bibliófíla,

confere pouca importância ao objeto-livro. Conseqüentemente, a maneira pela

qual uma prática de leitura concebe os níveis inferiores e superiores caracteriza

sua defi nição específi ca.

A título de exemplo, na direção da integração descendente, a prática da

leitura culta, como sugerimos anteriormente, “sincopa” o objeto-suporte e pro-

cura ter acesso direto ao texto, enquanto a prática do bibliófi lo, ao contrário,

visa principalmente o objeto-suporte e considera secundário o acesso ao texto

propriamente dito.

Na direção da integração ascendente, a prática da análise procura situar-se

estrategicamente em relação a outras práticas do mesmo tipo e/ou concorrentes

e, por isso, apresenta uma série de garantias que toma a forma de uma fi liação

ou de uma rede de atores, representando globalmente o actante destinador: são

as “referências”, as observações de leituras anteriores e de leitores autorizados e

legítimos, sob a garantia dos quais o analista apresenta-se como um actante “he-

terônomo”. A prática da leitura cotidiana, ao contrário, instala um actante “au-

tônomo”, ou até mesmo um simples “não-sujeito”, que obedece aos códigos ge-

néricos e à experiência imediata que lhe oferece a fi cção, embora nesse processo

deva “ajustar-se” também às outras práticas concorrentes, mas de tipo diferente

e, sobretudo, deva “proteger-se” de outras práticas cotidianas que solicitam o

leitor. Portanto, ambas integram parcialmente o nível da estratégia, uma graças

à integração de uma fi liação crítica, outra pela adaptação ao contexto circuns-

tancial da leitura. No lugar da recursividade ilimitada da primeira concepção e

da refl exibilidade tautológica da segunda, propomos uma terceira via: a da tran-

sitividade integrativa (e retórica).

A princípio, invertendo o raciocínio, podemos dizer, como hipótese de tra-

balho, que toda integração ascendente (isto é, quando o nível “n” integra uma

representação mais ou menos completa do nível “n+1”) é de natureza metasse-

miótica: quando o texto integra representações da prática de leitura ou de análi-

se, ele desenvolve uma dimensão metassemiótica de tipo analítico; quando uma

indicação de uso é afi xada numa máquina, esta também passa a integrar em si

mesma uma dimensão metassemiótica de tipo técnico e didático. Pela mesma

48 | Jacques Fontanille

razão, uma prática que exibe, por sua forma sintagmática, sua relação com ou-

tras práticas, integra uma dimensão metassemiótica de tipo estratégico.

Esse raciocínio leva-nos a considerar que: (1) toda prática pode, a esse res-

peito, integrar estrategicamente uma prática metassemiótica ou, mais simples-

mente, uma prática interpretativa; (2) toda prática interpretativa é confrontada

em razão de uma possível integração de uma dimensão estratégica, a outras

práticas. De uma maneira geral, isso nos leva a concluir que o actante operador

de uma prática qualquer, a partir do momento em que ela integra parcialmente

o nível da estratégia, é também um intérprete ao menos em relação a sua própria

prática. O observador e o intérprete envolvidos em sua própria prática interpre-

tativa: eis um motivo bem banal em antropologia e em sociologia que, entre-

tanto, ainda é preciso ser demonstrado e ter seu valor heurístico validado, para

além das declarações encantadoras e das posições ideológicas infalsifi cáveis.

2.2. A forma sintagmática das práticas integra uma estratégia

2.2.1. A efi ciência da “boa forma”

Buscamos defi nir agora a efi ciência das práticas ou, em suma, identifi car o

que faz delas práticas bem sucedidas, avaliadas positivamente em seu desenvol-

vimento e em seu resultado. A hipótese que nos guia é a de que essa efi ciência

implica uma dimensão interpretativa e a integração parcial de um nível estraté-

gico em toda prática.

O ritual oferece um exemplo canônico de efi ciência sintagmática. Essa efi ci-

ência, de fato, está ligada essencialmente à organização sintagmática, aspectual e

rítmica da seqüência práxica. Mais precisamente, os rituais, e especialmente os ri-

tuais de sacrifício, constituem globalmente um “dom”, embora seja preciso, como

em todo procedimento de dom, que o destinatário saiba reconhecê-lo como tal.

Nesse aspecto, o ritual assemelha-se a uma forma de comunicação persuasiva,

susceptível de fazer o destinatário confi ar e ser capaz de distinguir o procedimen-

to desse ritual de qualquer outro. E os próprios participantes do ritual também de-

vem estar persuadidos de que estão engajados em uma prática específi ca, isolada

de toda prática concorrente e diferente de toda prática semelhante.

De uma maneira geral, no detalhe da análise, o ritmo, a estrutura aspectual

e a organização sintagmática do ritual exercem uma persuasão e facilitam a in-

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 49

terpretação que concerne ao estatuto da prática em curso. Em suma, o caráter

“fechado”, “rígido”, “recorrente” da seqüência é em si mesmo uma modalização

explícita do ato de enunciação, uma “fi gura” que manifesta fi gurativamente e de

maneira perceptível a “boa forma” sintagmática e que está destinada a suscitar

um reconhecimento distintivo do caráter ritual da prática.

No cotidiano, por exemplo, dentre tantas maneiras de se alimentar, existem

algumas que conferem a essa prática o caráter de um quase-ritual: é o caso, es-

pecifi camente, da “refeição em família”, do “jantar entre amigos” ou do “almoço

profi ssional”. Examinaremos, em seguida, exatamente a forma desse ritual mas,

desde já, impõe-se uma evidência: a ritualização das práticas alimentares é a

única maneira que temos de nos persuadir de que estamos enquadrados em

uma prática chamada “refeição” e, de outra forma, é uma maneira de articular

essa prática com outras (a vida em família, as relações de amizade, as reuniões

de trabalho etc.).

2.2.2. Os tipos modais da efi ciência

Pierluigi Basso (2006) propôs distinguir diversos tipos de agenciamentos sin-

tagmáticos, segundo a isotopia modal dominante que lhes garante a coerência.

A práxis é regulada ao menos pelo poder, segundo uma organização sintag-

mática cujo valor reside apenas na possibilidade de uma realização e na capaci-

dade de realizá-la. Trata-se, portanto, de uma forma genérica mínima. Sua ava-

liação é puramente factual: “possível” ou “impossível” a práxis realiza-se ou não.

O procedimento manifesta um saber, na medida em que pressupõe uma pro-

gramação prévia, e a aprendizagem dessa programação pelo actante operador.

Sua avaliação será, portanto, mais elaborada, já que levará em conta, além de sua

capacidade de realização, a organização adequada das etapas da ação.

A conduta é regida por um querer, pois a forma sintagmática adotada é

interpretada nesse caso como imputável a um actante responsável, como se ma-

nifestasse intenções, tendências e valores que lhe são próprios, individualmente.

Assim, a avaliação poderá apoiar-se nessa imputação e tratar, sobretudo, dos

valores expressos pelo comportamento do actante.

O protocolo implica um dever, já que sua efi ciência é regulada do exterior da

práxis por regras e por normas que se impõem a todos os participantes. Aqui, a

avaliação está preestabelecida e trata do respeito das regras e das normas, relati-

vas tanto à organização, aos valores, aos papéis, quanto aos detalhes fi gurativos.

50 | Jacques Fontanille

Finalmente, o ritual supõe um crer específi co (todas as práticas têm uma

base fi duciária geral), partilhado por todos os participantes, e necessário ao

êxito da ação. Nesse estágio de elaboração da prática, a avaliação pode tratar

tanto dos níveis anteriores, quanto da intensidade e da veracidade da crença

específi ca.

Para ser operatória, essa distribuição deve ser apurada, introduzindo um

princípio metodológico estabelecido em Semiótica do discurso (Fontanille,

2007a: 147-185)10 que consiste em desdobrar os níveis de modalizações com-

bináveis. De fato, se é legítimo limitar a práxis, que é o modo de agenciamento

mais generalizado, apenas ao efeito do poder-fazer, o protocolo, por exemplo,

não pode ser estabelecido unicamente sobre um dever, e implica também um

poder-fazer e um saber-fazer. Certamente, no protocolo o dever domina, e, em

alguns casos, pode até mesmo ser assumido por uma instituição ou uma função

específi cas, mas ele só é efi ciente pela combinação com outras modalidades. O

mesmo ocorre com todos os outros tipos, que não são somente defi nidos por

uma isotopia modal dominante, mas também por sua posição hierárquica em

uma combinatória modal.

Propomos, então, a seguinte tipologia:

Nível M1: poder = práxis

Nível M2: poder + saber = procedimento

Nível M3a: poder + saber + querer = conduta

Nível M3b: poder + saber + dever = protocolo

Nível M4a: poder + saber + querer + crer = ritual “autônomo”

Nível M4b: poder + saber + dever + crer = ritual “heterônomo”

Não podemos ignorar que mesmo essa tipologia apurada não é sufi-

ciente para dar conta, de maneira exaustiva, do conjunto de combinações

possíveis. Por exemplo, certas formas de conduta associam apenas o poder

e o querer (sem saber), e podem ser designadas, de forma mais corrente,

como maquinações. Do mesmo modo, a participação em rituais pode ser

puramente imitativa, não comportando nenhum saber prévio. Já a repeti-

ção, regular ou episódica, pode modificar cada uma dessas configurações

modais, para produzir: (1) rotinas (nos níveis M1 e M2: a partir da práxis e

do procedimento); (2) hábitos (níveis M3 e M4: a partir das condutas e dos

10 Essa apresentação foi inspirada em uma proposta oral de Jean-Claude Coquet, não publicada.

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 51

rituais); (3) manias, se a simples repetição puder ser substituída pelo querer

ou pelo dever e efetivar-se.

Ademais, modifi cando alguns outros parâmetros, especialmente a extensão

temporal e a natureza coletiva ou individual do actante responsável, obtemos,

então, os costumes e as tradições.

Tratando-se de realizações práxicas concretas, é preciso, por fi m, esperar

que nenhuma pertença exclusivamente a um ou a outro desses tipos, ou ainda

que a maioria adote sucessivamente as propriedades de várias delas. De fato, na

“prática em ato”, confrontações e ajustamentos ocorrem em todas as fases do

percurso, permitindo passar de um tipo modal a outro, de uma combinação

modal a outra, de uma forma aspectual a outra.

A solução mais prudente e a que melhor pode conduzir a análises adequa-

das, consiste em, primeiramente, identifi car as variáveis, que são ao menos de

três espécies: (1) as isotopias modais dominantes; (2) as combinações e os níveis

de modalização aceitos; (3) as formas aspecto-temporais (especialmente singu-

lativas, iterativas, originárias etc.). Ainda que a pesquisa e a defi nição dos tipos

de seqüência canônica sejam necessárias, ela não é uma fi nalidade em si, menos

ainda o ponto heurístico mais alto da análise.

Na verdade, como tentaremos mostrar agora, o que há de específi co na for-

ma semiótica das práticas e que a distingue principalmente da forma semiótica

dos textos-enunciados e dos signos é realmente o processo adaptativo estratégi-

co da “semiose em ato”. Conseqüentemente, o objetivo é a descrição e a mode-

lização das transformações entre os regimes típicos da prática, a transformação

dos modos de adaptação em devir.

2.3. Efi ciência, confrontações práticas e adaptação estratégica

2.3.1. A generalização do princípio de adaptação

Do ponto de vista do sentido prático, as seqüências canônicas e os regimes

típicos da prática não podem ser simplesmente considerados como modelos

analíticos, disponíveis a um observador ou a um intérprete que não esteja en-

volvido na análise. Como já demonstramos, esse “intérprete” está, ele mesmo,

envolvido em sua própria prática, mas por vezes também, e ao mesmo tempo,

na prática que ele próprio interpreta. E as seqüências canônicas e os regimes

52 | Jacques Fontanille

típicos funcionam como horizontes de referência, de garantia, ou ainda de pres-

são persuasiva, a fi m de resolver problemas provocados pela própria prática.

A sintaxe intrapráxica, ou simplesmente a “práxica”, é então, por defi nição,

uma sintaxe de confrontação e de adaptação, eventualmente (e apenas eventu-

almente) guiada pelo horizonte de uma seqüência canônica e implica sempre,

ao menos implicitamente, uma atividade interpretativa, seja ela refl exiva (auto-

adaptativa) ou transitiva (se ela se refere a um horizonte de referência tipológico

ou canônico).

Poderíamos, por exemplo, ser tentados a defi nir o “protocolo” como uma

programação rígida e inteiramente decidida por antecipação. Mas essa concep-

ção apenas diz respeito, imperfeitamente, ao caso particular das cerimônias, e

mesmo neste caso, a encenação prévia mais detalhada não pode prever tudo,

menos ainda excluir por antecipação todo incidente ou acidente de percurso.

Portanto, vemos que esse caso extremo não pode estabelecer uma teoria da prá-

tica e que, ao contrário, ele é muito específi co, submetido a coerções e restrições

excepcionais.

Fora desse caso ideal e marginal, o protocolo é um conjunto pré-construído

de respostas à maioria de situações e de problemas que são colocados por um

certo tipo de práticas institucionais. Seu uso canônico e genérico supõe então,

por princípio, uma prática em curso, na qual aparecem situações-ocorrências, até

mesmo ocasiões, encontros e incidentes, que deverão ser relacionados a tipos e a

normas, para receber uma solução “protocolar” e simplifi car eventuais negocia-

ções fornecendo respostas pré-construídas.

O caso do ritual é mais delicado, já que sua efi ciência, supõe-se, deriva da

estrita aplicação de um esquema e de um percurso fi gurativo fi xo. No entanto, é

sem dúvida o caso que melhor representa o princípio da adaptação estratégica.

Na verdade, o percurso fi gurativo fi xa apenas uma parte dos elementos da prá-

tica: podemos observar, por exemplo, na história da missa católica, que o com-

portamento e as vestimentas dos fi éis, e mesmo o grau de participação no ritual,

evoluem constantemente e, a esse respeito, a dimensão ritualizada dessa prática

deve ajustar-se, segundo épocas e culturas, aos usos e tendências.

O próprio ritual constitui globalmente uma solução a um problema encon-

trado por uma comunidade. Tal problema pode ser originário e recorrente, de

solução periódica (como no caso da eucaristia) ou acidental, de solução pontual

(como no caso dos rituais terapêuticos africanos). Enfi m, a participação indivi-

dual é regulada por princípios muito variáveis: certos rituais como a missa são

tão-somente ocasiões oferecidas a todos de participar segundo a intensidade de

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 53

sua fé e de seu engajamento, mas a efi ciência do ritual da eucaristia não depen-

de da intensidade da fé dos fi éis. Outros rituais, ao contrário, como as práticas

espiritualistas, são conhecidos por exigir a crença e o engajamento de todos os

presentes, sem os quais o ritual fracassa. São incontáveis as “adaptações” variá-

veis e específi cas.

Portanto, toda prática implica, por defi nição, uma seqüência de resolução,

de formalização signifi cante a partir de uma situação inicial de “falta de sentido”

(retomando a fórmula de Pierluigi Basso), e essa seqüência terá a seguinte forma

canônica:

< falta de sentido – esquematização – regulação – adaptação >

A esquematização é o momento em que uma situação-ocorrência proble-

mática é comparada a uma situação-tipo cuja solução conhecemos, ou reorgani-

zada por auto-adaptação. A regulação é o momento em que a solução (a forma

efi ciente) é projetada sobre a ocorrência. Por fi m, a adaptação é a formalização

estratégica do percurso da prática. A prática tem, então, a forma sintagmática

de uma “cena de resolução” do ponto de vista discursivo e de uma “prova” do

ponto de vista narrativo.

Cada um dos principais “regimes sintagmáticos” da prática, já que obedece

a modalizações específi cas, é portanto caracterizado por um modo de regulação

próprio:

(1) Práxis (poder): a regulação atua sobre os encadeamentos entre as etapas;

(2) Procedimento (saber): a regulação baseia-se numa programação prévia

das fases e de sua sucessão;

(3) Conduta (querer): a esquematização atua por iconização auto-adaptati-

va e a regulação consiste em uma manifestação fi gurativa das motivações;

(4) Protocolo (dever): a esquematização é a cristalização dos papéis e das

etapas e a regulação, uma projeção imediata desses papéis sobre a imprevisibi-

lidade do percurso;

(5) Ritual (crer): a regulação baseia-se no ritmo e na gestão temporal da

seqüência.

54 | Jacques Fontanille

2.2.2. O modelo da efi ciência práxica

A questão a tratar, por meio da efi ciência e da otimização das práticas, é, em

suma, a da emergência da signifi cação na ação e, de uma maneira mais geral, da

construção dos valores práticos. Esses valores, atualizados na forma sintagmática,

são, conseqüentemente, controlados e engendrados por “valências”, que as análises

precedentes já sugerem. Globalmente, a efi ciência é apreciada em função das for-

mas de um processo de adaptação e essa adaptação está submetida a duas direções

concorrentes, a programação e o ajustamento (Landowski, 2004: 27-29; 2006).

De um lado, de fato, a prática deve se submeter a um certo número de coer-

ções, seja pela presença de práticas concorrentes já engajadas, seja pelas normas

e regras que preexistem à construção de toda ocorrência particular: é preciso

levar em conta o fator inevitável da programação externa. Essa valência de pro-

gramação é extensiva, pois é avaliada gradualmente em função do tamanho do

segmento programado, de sua complexidade e de sua duração, do número de

bifurcações e de alternativas consideradas, e da capacidade de antecipação glo-

bal que comporta.

Por outro lado, a prática constrói-se por ajustamento progressivo e atua pela

invenção de um percurso que procura sua própria estabilidade e sua signifi ca-

ção no confronto com as coerções evocadas acima. Vemos claramente que, a

esse respeito, o protocolo é muito mais coercitivo que a conduta, e que o procedi-

mento é menos coercitivo que o ritual. Do mesmo modo, uma conduta singular

é necessariamente mais inovadora do que um hábito, e um procedimento, do

que uma rotina. Quanto às manias, elas impõem uma programação inevitável,

insensível ao contexto e às circunstâncias. Como já sugerimos, existem práticas

auto-adaptativas que se opõem às práticas hetero-adaptativas, e essas práticas

auto-adaptativas são intensivas, pois pressupõem ao mesmo tempo, do ponto de

vista da responsabilidade, graus de imputação da ação ao actante, e, do ponto

de vista do engajamento desse actante, uma avaliação gradual da pressão de

ajustamento que ele exerce sobre sua própria prática.

O impacto e a ênfase da intensidade pertencem à valência de ajustamento e

de abertura, enquanto a coerção, a estabilidade no tempo e no espaço pertencem à

valência da programação e do fechamento. É, portanto, devido à tensão entre essas

duas valências que certas práticas parecem mais “abertas” e outras, mais “fechadas”.

Todavia, não podemos nos ater à oposição entre as práticas auto e hete-

ro-adaptativas, na medida em que cada prática está à procura de sua própria

signifi cação numa negociação permanente entre as duas valências de controle.

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 55

É preciso, portanto, considerar a existência de um modelo mais dinâmico que

o da simples oposição categorial em que os valores da prática são engendrados

pelas tensões e equilíbrios variáveis entre as duas valências11:

Esse modelo das variedades da práxis, que ignora deliberadamente as

defi nições modais e as hierarquias propostas anteriormente, faz surgir novas

propriedades e novas diferenças: os parassinônimos como hábito e rotina, ou

procedimento, protocolo e ritual tornam-se aqui antônimos, em razão de sua

posição distinta em relação à valência do ajustamento.

De fato, a valência intensiva permite apreciar o engajamento do actante no

ajustamento de sua prática às circunstâncias e na busca de sua signifi cação. Fica

claro que, a esse respeito, existem dois tipos de práticas iterativas, aquelas que,

como a rotina, só admitem um investimento fraco no ajustamento circunstan-

cial, e aquelas que, como o hábito, ao contrário, implicam uma perfeita adapta-

ção a todas as circunstâncias. Assumidas coletivamente, elas apresentam a mes-

ma distinção: os costumes são fracamente ajustáveis, enquanto as tradições só

podem existir e perdurar em razão de suas capacidades auto-adaptativas.

Do mesmo modo, se o procedimento permite fazer, ele o faz praticamente

ignorando as circunstâncias, enquanto o protocolo, ao contrário, é inteiramente

concebido para prevê-las, negociá-las, rejeitá-las ou integrá-las. Já o ritual é, no

limite, um tratamento sempre disponível para os problemas propostos no nível

das estratégias e das formas de vida, uma resposta possível às demandas, seja

dos participantes, seja do mundo exterior.

11 Numa perspectiva semelhante Eric Landowski (2006: 72) propôs um modelo que interdefi ne e articula dina-micamente quatro “regimes de sentido e de interação”: programação, manipulação, ajustamento e acidente.

56 | Jacques Fontanille

A conduta comporta, em razão de seu componente volitivo, um forte enga-

jamento auto-adaptativo, embora ele seja modulável, como atesta a série lexical

“maquinação, comportamento, conduta”, em que, aparentemente, o grau de im-

putação da ação a um actante responsável varia entre uma imputação apenas

hipotética (maquinações) e uma imputação confi rmada (a conduta).

Quanto ao acidente, ele não implica nem ajustamento nem programação,

ele é somente um hápax factual que não induz a nenhuma adaptação e por isso

assemelha-se ao lapso e ao ato falho, lembrando-nos sempre de que todo actan-

te engajado em uma prática é um corpo e, como tal, submete-se às interações

contingentes com outros corpos, eles também engajados em outras práticas. O

fato de ser contingente e inadaptável não o torna, por isso, insignifi cante, já que

ele manifesta pelo menos, ao mesmo tempo, uma incompatibilidade provisória

entre duas ou mais práticas e, no mínimo, o caráter somático e “encarnado” da

imputação da ação ao actante12.

Enfi m, o regime genérico da práxis desapareceu desse modelo, já que ele é

comum a todos os outros. Além do mais, como já observamos, ele não é pro-

dutor de um valor específi co, não é uma qualifi cação particular da prática e,

portanto, não pode ocupar uma posição identifi cável nas tensões entre as duas

valências.

Importa muito pouco que os lexemas da língua natural, que utilizamos por

comodidade, obedeçam mais ou menos, a essa distribuição, já que se trata aqui,

não de uma análise lexical, mas de posições construídas que correspondem,

inegavelmente, à experiência cristalizada por esses lexemas e, perfeitamente, a

nossa experiência íntima da gestão das práticas.

2.4. Entre práticas e estratégias

Já observamos que a forma sintagmática das práticas comporta uma di-

mensão metassemiótica (interpretativa), permitindo principalmente, explicitar

a identidade distintiva da prática em curso, em relação às outras que lhe são

concomitantes ou semelhantes. Essa dimensão metassemiótica, pela expressão

de uma forma sintagmática e pelo valor que dela emana, resulta de uma adapta-

ção estratégica de outras práticas.

Todavia, como tentaremos mostrar a seguir, a dimensão metassemiótica é o

próprio lugar onde se forja a signifi cação da prática em curso, o lugar da “busca

12 Sobre a semiótica do acidente e a noção de co-incidência, distinta da noção de inter-ação, ver Landowski (2006: 53-92).

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 57

do sentido” em ato. Se essa hipótese é válida, a descrição de tais processos deve

conduzir à identifi cação de semióticas-objeto stricto sensu, constituídas pela

reunião do plano da expressão e do plano do conteúdo. Em suma, o processo

de adaptação seria o próprio processo semiósico da prática, aquele que constrói

pouco a pouco a relação entre a expressão e o conteúdo.

As duas descrições que seguem, a das práticas amorosas e a das conversas

à mesa, serão consagradas à validação provisória e parcial dessa hipótese de

trabalho.

2.4.1. Práticas amorosas: uma seqüência em construção

2.4.1.1. Expressão e conteúdo “em ato”

Sem pretender fazer uma descrição exaustiva das práticas amorosas, pode-

mos, para começar, examinar os motivos estereotipados das “premissas” do en-

contro amoroso: (1) o olhar trocado; (2) o sorriso recíproco; (3) o contato verbal:

a palavra, o gracejo, a afronta... (4) a primeira atividade comum.

A ordem canônica desses quatro primeiros motivos, não necessariamen-

te obedecendo à ordem cronológica, repousa sobre os graus de engajamento

corporal e pessoal na troca e, conseqüentemente, na cadeia de pressupostos

hierárquicos que embasam as eventuais combinações por encaixamento. Por

exemplo, a “atividade” acolhe palavras, olhares e/ou sorrisos, ou ainda o “sor-

riso” compreende, necessariamente, uma “troca de olhares”. São características

de um processo de abertura recíproco: o olhar acolhe o olhar, o sorriso faz ver e

imaginar uma emoção, a atividade partilhada dá lugar à participação do outro

etc. As relações de pressuposição já conduzem aos esboços de uma seqüência

que, no entanto, não é potencialmente reconhecível.

Acrescentemos, agora: (5) a conivência nascente, que resulta da simples rei-

teração das fases 1 a 4. A conivência, que comporta, se não uma verdadeira

confi ança recíproca, ao menos uma abertura e um crédito a confi rmar (portan-

to, uma fi dúcia potencial), é analisada em várias dimensões. Do ponto de vista

modal, a reiteração das fases anteriores permite verifi car que elas não dependem

do acaso (o que será confi rmado na etapa seguinte, a dos “múltiplos encontros

fortuitos”), mas como cada uma delas guarda a memória das precedentes, pa-

recem resultar de uma pressão que incita à abertura recíproca. Passamos então

do poder não ser ou do não dever ser, para o querer fazer e para o não poder

58 | Jacques Fontanille

não fazer. Do ponto de vista temporal, a conivência confere um futuro à rela-

ção, instalando um maior potencial de abertura, capaz de realizar-se nas trocas

posteriores. Esse potencial de abertura certamente já estava presente nas fases

anteriores, mas lhe faltava pelo menos a confi rmação por reiteração e, portanto,

uma estabilização fi duciária, para que fosse inscrito no devir da relação.

Em seguida, chegamos à etapa 6, aquela dos múltiplos encontros fortuitos,

cada vez menos fortuitos. O conjunto de circunstâncias repetindo-se de forma

idêntica implica um outro tipo de “explicação”, no estado latente, um tipo de

questão implícita ou de problema a resolver que demanda uma resposta. O aci-

dente, em suma, precisa ser convertido numa outra forma de práxis.

O ajustamento “em tempo real” é seguido, particularmente, pela generali-

zação da “pressão” de abertura a outrem, pois a convergência e a troca não se

aplicam mais apenas a alguns motivos isolados, específi cos da relação amorosa,

mas se estendem a todas as atividades, a todas as ocasiões e à maioria das práti-

cas cotidianas. Em suma, nessa etapa do percurso, todos os caminhos levam ao

outro e ambos acabam por perceber isso. Assim reconhecida essa convergência,

o caráter fortuito dos encontros desaparece progressivamente, ao mesmo tempo

em que seu número aumenta e, como uma seqüência canônica pode ser reco-

nhecida, daí em diante uma programação é concebível.

É então que a atividade interpretativa, individual ou dual, intervém. A etapa

7, aquela da leitura retrospectiva das etapas de 1 a 6, conduzirá a uma mudança

de regime práxico e ao reconhecimento da seqüência engajada. Sozinhos, cada

um por si, ou juntos, os parceiros então interpretam o conjunto das “aberturas” e

das convergências, particularmente aquelas dos encontros fortuitos, como uma

“sincronização compulsiva”, sendo a sincronização o resultado de uma releitura

passional do caráter, ao mesmo tempo, “fortuito” e “iterativo” dos encontros.

A atividade interpretativa institui, assim, a “sincronização compulsiva” como

plano da expressão de um conteúdo afetivo que ainda deve ser especifi cado, mas

que é desde então identifi cado como uma “pressão” que independe da vontade

dos dois parceiros – a “pressão auto-adaptativa” para uma abertura recíproca das

práticas dos dois parceiros – , graças a todos os meios de partilha e de troca.

Os encontros fortuitos existiam antes das etapas de 1 a 5, mas não haviam

sido notados, e sua “falta de sentido” (a contingência, a ocasião aleatória) é agora

compensada. Desse modo, as fases de 1 a 4 funcionam como memória da origem

e servirão, em seguida, de ponto de comparação e de situação de referência para

todas as fases anteriores. Se a aventura prolonga-se, elas poderão até mesmo ali-

mentar, entre outras coisas, algumas brigas amorosas ou cenas domésticas.

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 59

2.4.1.2. MARCAÇÕE S, TE NSÕE S E B U SCA DO SE NTIDO

A seqüência é composta de um certo número de motivos canônicos, que

são “ícones” da relação amorosa, embora todos apresentem uma propriedade

particular (a duração, a intensidade, a repetição etc.) que transforma cada um

desses motivos em um elo de uma cadeia que é, ela própria, progressivamente

reconhecível. A troca de olhares é marcada por uma intensidade e uma duração

de fi xação não habituais na interação social comum, e será ainda mais incomum

se não for motivada por uma prática específi ca. O sorriso é também marcado

por sua falta de motivação prática e aí a falta de sentido funciona como “abertu-

ra” aos sentidos possíveis, à espera de preenchimento. E os múltiplos “encontros

fortuitos” demandam uma explicação que só virá num futuro mais à frente.

Nesse caso, a “marca” continua sendo um suplemento sensível que remete a

uma falta imanente, a uma falta de sentido: um excesso de intensidade, de dura-

ção ou de repetição que parece imotivado nas práticas, acasos incompreensíveis,

convergências não habituais etc. O desenvolvimento da prática somente inicia e

prossegue porque essa “falta de sentido” é apreendida, não como um não-senti-

do cristalizado e absoluto, mas como uma falta a reparar, como uma “abertura”

e, portanto, como uma “promessa” de sentido a ser construído: uma expectati-

va (mais ou menos) partilhada, que só pode subsistir se converter a falta atual

em promessa potencial, instala-se. Essas “marcas”, que parecem insignifi cantes

e não funcionais nas práticas em curso, esboçam uma espécie de “isotopia em

negativo” ou, mais tecnicamente, uma presunção de isotopia, uma substância da

expressão que exige uma substância do conteúdo para tomar forma. E é a busca

e o reconhecimento da prática amorosa que fornecerão o conteúdo temático

dessa isotopia em construção.

Conseqüentemente, é sobre essas “marcas” que a adaptação práxica traba-

lha. Todas essas marcas são a “espera”, o “dentilhão”, que exige, por sua própria

falta de sentido, um novo ajustamento e a construção de uma prática diferente

que as faria signifi car de maneira adequada. Então não podemos considerar in-

compatíveis ou contrários o “ajustamento” e a “programação”, já que essas duas

formas de base solicitam-se reciprocamente, cada uma sendo capaz de preparar

as condições de aparecimento da outra, graças a uma inversão das tensões entre

ambas. Em outras palavras, seria uma grande ingenuidade, tanto em matéria de

práticas amorosas quanto em qualquer outra prática, acreditar que, no próprio

momento em que acreditamos “inventar” uma relação, escapemos incólumes da

pressão das formas culturais e das heranças adaptativas.

60 | Jacques Fontanille

A adaptação repousa sobre dois movimentos, duas tensões, uma retrospec-

tiva e outra prospectiva, que dominam alternadamente.

A tensão retrospectiva predomina no início da seqüência, a fi m de constituir

uma “memória da origem”, e após a reiteração, ela consiste, principalmente, na

releitura de uma série de fatos e trocas anódinos, para transformá-los em uma

seqüência necessária de fases ligadas entre si por uma tensão que se apresenta

como prospectiva. Cada motivo, graças à marca específi ca que reconhecemos

agora retrospectivamente, parece então conter em germe (potencialmente) to-

dos os motivos seguintes. Aqui o acidente deriva para uma semiprogramação.

A tensão prospectiva predomina na continuidade da seqüência, quando o

trabalho de adaptação retrospectiva está terminado, e faz de cada novo motivo

uma etapa da progressão que parece então inevitável, à espera dos ajustamentos

ulteriores. Como essa progressão pode ser agora assumida, ela toma então a

forma de uma conduta.

As tensões retrospectivas dão, de algum modo, sentido às coisas que ainda

não o tinham. As tensões prospectivas funcionam como “promessas” abertas

que pedem, às vezes, uma confi rmação (realiza-se uma parte das potenciali-

dades), outras vezes, uma retomada de outras promessas da mesma natureza e

assim por diante. A interação entre as tensões prospectivas (as promessas) e as

tensões retrospectivas (as fi xações de sentido e as confi rmações/invalidações)

permite, assim, a adaptação progressiva e a série forma, então, uma prática que

é reconhecida pelos dois parceiros. Mas para isso, é preciso que a prática passe

por vários “regimes” sucessivos (acidentes, semiprogramação, conduta etc.).

O desafi o é, de fato, o reconhecimento de uma seqüência prática estabiliza-

da na cultura comum dos parceiros (reconhecimento sancionado pela lexicali-

zação: é amor – ou por declaração: eu te amo)13.

Esse tipo de prática amorosa (existem outras...) apresenta-se, então, ini-

cialmente como uma práxis (algo acontece, que é possível e que os parceiros

são capazes de fazer, já que acontece), e rapidamente se especifica como

conduta, graças aos cálculos de intenção e de imputação (ou foi um ou foi

outro quem tomou esta ou aquela iniciativa), ou até mesmo como progra-

ma ou destino, se atribuímos sua responsabilidade a uma “pressão” exterior

ou interior comum. E logo, sobre a base do reconhecimento parcial e in-

termitente de rotinas e hábitos, a prática forma a seqüência particular que

13 É exatamente essa etapa que teme o conde Mosca, na Cartuxa de Parma, de Stendhal (2004): que a palavra “amor” fosse pronunciada entre Sanseverina e Fabrício. Mesmo que a seqüência não tenha sido realizada com-pletamente, mesmo que sua ordem canônica não tenha sido respeitada, ela se torna o fi o condutor de todas as promessas prospectivas e de suas verifi cações retrospectivas.

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 61

pode ser identificada como aventura inter-individual coerente, cujo sentido

é agora partilhado.

Cada um deles pode isolar e enfatizar este ou aquele motivo (o sorriso, o

olhar sustentado, a palavra espirituosa, o toque leve etc.) e fazer disso uma “téc-

nica”, um “estilo” ou um emblema identitário. Cada um pode também jogar com

essa seqüência, suscitando a impaciência (por uma demora geral ou um prolon-

gamento excessivo de cada fase ou de cada etapa intermediária) ou provocando,

de propósito ou involuntariamente, a surpresa (ou mesmo o pânico), sincopando

brutalmente essa ou aquela fase. Pouco importa o inventário dessas variações:

basta constatar que cada uma delas só faz sentido com referência à seqüência

canônica da conduta amorosa e ao procedimento de adaptação em curso.

Dessas múltiplas variações, contentamo-nos em lembrar apenas uma, céle-

bre por sua exploração artística. Trata-se da programação protocolar dessa prá-

tica na cultura familiar. Michael Corleone, no fi lme O poderoso chefão (1972),

fi ca provisoriamente exilado na Sicília, onde conhece uma jovem a quem faz

a corte segundo as formas impostas pela tradição familiar, que compreende o

almoço, o passeio, o presente etc., tudo na presença de todas as mulheres da

família. Mas esse protocolo é ainda compatível com a seqüência canônica da

conduta amorosa, com os olhares, os sorrisos, as palavras etc.

Entretanto, nesse caso, a difi culdade principal está na possibilidade de evi-

denciar uma conduta observável apesar do protocolo, tarefa de que se encarre-

gam as tomadas da câmera e a montagem do fi lme, intercalando nas cenas do

encontro entre as famílias, os ângulos e os quadros (em geral com zoom – ou

planos aproximados), que permitem captar intensivamente o nascimento da

relação amorosa, ou ao menos a proposição e a aceitação inter-individuais, ex-

traindo-os do desenvolvimento coletivo e convencional previsto pela tradição.

Esta última não impede a conduta amorosa: ela se contenta em constrangê-la,

incitando ajustamentos. Em outras palavras, o ajustamento da prática amorosa

é ao mesmo tempo uma adaptação de outra forma, imposta a partir do exterior,

que permite diferenciar essa prática legítima das que não o seriam.

As paixões podem ser apreendidas e interpretadas em todos os níveis de

pertinência da expressão: como fi guras-signos, pela emoção pontual, como tex-

tos-enunciados, na enunciação apaixonada, como práticas, estratégias e formas

de vida. Por exemplo, a cólera perpassa todos os níveis de pertinência, desde o

signo emocional até a forma de vida mítica, própria aos deuses indo-europeus

(os deuses “cólera”), passando pela cólera-estratégia (como em De Ira, de Sê-

neca). O amor e a teoria da “cristalização”, em Stendhal, provêm da evidência

62 | Jacques Fontanille

do amor-texto, enquanto, aqui, escolhemos o amor-prática, a conduta amorosa.

Apenas a abordagem do nível da prática permite restituir às paixões sua verda-

deira dimensão cultural, interativa e social.

2.5. A refeição e a conversa à mesa: uma seqüência canônica e uma montagem estratégica (no romance Les voyageurs de l’Impériale, de Louis Aragon)14

2.5.1. Preâmbulo

Trataremos aqui de um gênero de prática semiótica, a conversa à mesa, e de

seu agenciamento com uma outra prática, a refeição, especialmente a refeição

em família. Globalmente, parece que o conjunto constitui uma única macro-

prática, composta de duas subpráticas, a refeição e a conversa. Mas essa com-

posição está longe de ser regulada a priori e veremos que, mesmo o valor (ou o

não-valor) de uma ou outra dessas duas práticas, depende da qualidade de seu

agenciamento comum. Conseqüentemente, o nível de pertinência adequado,

aquele que decide o valor de montagem, é o da estratégia.

Escolhemos como corpus de referência um corpus literário, onze cenas ou

segmentos, dedicados às refeições no romance Les voyageurs de l’Impériale, de L.

Aragon (1996)15. O interesse desse corpus decorre da estreita conexão que colo-

ca em questão, de um lado, o desenrolar das refeições, e de outro, as conversas.

Uma refeição bem-sucedida adota certamente a seqüência canônica (a ordem, a

completude, o ritmo), mas aqui, esse sucesso depende, além disso, da capacida-

de da conversa em respeitar, reforçar e refl etir essa mesma seqüência.

De fato, as perturbações e os incidentes que afetam a seqüência canônica da

refeição são todos eventos conversacionais: abstrair-se da refeição e mergulhar

em seus pensamentos interiores, recusar um prato, provocar um escândalo etc.

No romance de Aragon, os dois extremos estão representados: a refeição bem

sucedida e “cordial” e a refeição malograda e “morna”, ou o “escândalo”. Pode-

14 Esse motivo romanesco foi objeto de um primeiro estudo publicado em L’Imaginaire de la table (Boutaud, 2004).

15 As cenas são as seguintes: 1. O jantar no restaurante da Exposição Colonial (I, 1, 40-41); 2. O grande jantar anual de Paulette Mercadier (I, 5, 68-69); 3. As refeições de férias em Sainteville (I, 8, 83); 4. As refeições em família do ponto de vista de Pascal Mercadier (I, 13, 125); 5. Uma refeição em Sainteville com os Pailleron (I, 24, 176 e seg.); 6. A refeição festiva da sogra em Sainteville (I, 28, 194-197). 7. O banquete do enterro da sogra (I, 49, 290-292); 8. Um jantar “morno” em Sainteville (I, 52, 311-312); 9. Um jantar solitário no restaurante de Veneza (II, 3, 384); 10. Uma refeição no restaurante com Mercadier e seu “biógrafo” (III, 3, 479-487); 11. As refeições na pensão dos Meyer (III, 5, 488-489; 500-5002).

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 63

mos então destacar as condições de validação e de falsifi cação de um modelo

hipotético para o agenciamento estratégico entre as duas práticas, portador dos

valores de sua conexão.

Nosso estudo visa destacar com mais precisão as condições axiológicas e a

maneira pela qual elas estão ancoradas na estrutura fi gurativa das cenas de re-

feição. Ela se apóia sucessivamente: (1) no plano da expressão, nas relações entre

“falar e comer” e, mais especialmente, nas condições da segmentação recíproca

e das interações entre a seqüência conversacional e a seqüência alimentar; (2)

no plano do conteúdo, nas estruturas de trocas subjacentes a essas cenas de refei-

ção e no modelo que as governa.

2.5.2. Duas práticas bem ajustadas: comer e falar

2.5.2.1. Motivação e concomitância

Para começar, notamos que várias refeições só são lembradas em razão da

conversa que aconteceu nessa ocasião. A refeição na Exposição Colonial (cena

1) foi exclusivamente motivada e organizada pela necessidade “inextricável”

(Aragon, 1996: 40) de falar do almirante, tio de Paulette Mercadier. Essa ne-

cessidade, de início, é o motivo do convite feito ao casal: ele tinha uma outra

obrigação, à qual renuncia para poder desabafar. Além disso, essa necessidade é

tamanha que o faz deixar de lado a cortesia, que consiste em não falar muito de

política “diante de uma bela mulher”.

Do mesmo modo, a única lembrança das refeições de férias em Sainteville

(cena 2) consiste em assinalar que o tio (o “conde”) “falava muito pouco à mesa

com seus sobrinhos” (Ibidem: 83). Enfi m, a última refeição no restaurante com

o “biógrafo” em Paris (cena 10), não tem outro objetivo senão a conversa, no

decorrer da qual, este último espera encontrar explicações defi nitivas para o

comportamento de seu biografado, Mercadier. Para começar, ele diz, aliás, exa-

tamente: “Só conversamos bem com a barriga à mesa” (Ibidem: 479).

Conseqüentemente, entre as duas práticas, uma primeira conexão instala-

se: uma conexão hierárquica que se apóia sobre a articulação entre um programa

de base, que fornece suas condições e seu valor “descritivo”, e um programa de

uso, que fornece os valores modais necessários para a realização do primeiro.

Nada de muito original nesse caso, a não ser o fato de que os dois percur-

sos são concomitantes, em vez de se sucederem, e de que, conseqüentemente, o

64 | Jacques Fontanille

sucesso do programa de uso não é conseguido no momento em que se inicia o

programa de base. Além disso, para sermos mais precisos, o “sucesso” depende

da boa forma do agenciamento entre as duas práticas. Podemos considerar que

esse tipo de conexão, entre dois processos cujos desenvolvimentos são conco-

mitantes e interdependentes, é característico das práticas e de seu nível de per-

tinência, e as distingue dos “programas narrativos”, nos quais a dependência é

de simples pressuposição.

Em outros termos, o “protocolo” da refeição prevê que se fale comendo e,

conseqüentemente, para poder falar, o mais efi caz é sentar-se à mesa (!).

2.5.2.2. Conexão e segmentação

O valor global do agenciamento estratégico entre as duas práticas depende

da qualidade e das propriedades da conexão. No romance, as avaliações explíci-

tas a esse respeito são notáveis: as refeições de férias em Sainteville (cena 3) são

aborrecidas e sem interesse porque não há conversa; a refeição com o almirante

é enfadonha (especialmente para Paulette), porque o almirante fala sem parar,

a ponto de não permitir acompanhar as fases da refeição. A refeição feita com o

biógrafo (cena 10) é bem sucedida, porque as fases da refeição segmentam com

bastante precisão as diferentes fases da conversa. Portanto, há duas maneiras de

desconectar a conversa da refeição: não falar enquanto comem, ou falar de tal

modo que a conversa não respeite as fases da refeição, ocultando ou neutrali-

zando-as. Nesse caso, trata-se exatamente de reunir, de um lado um protocolo e,

de outro, uma conduta, tornando-os complementares, podendo ambos acolher,

segundo as circunstâncias, formas acidentais ou ritualistas.

A ausência de conexão ou uma má conexão entre as duas práticas invalida

o conjunto: aborrecemo-nos enquanto comemos e não apreciamos mais a refei-

ção; não escutamos mais uma conversa que não siga o ritmo da refeição. Então

o valor reside precisamente, não apenas na qualidade da conexão, mas na capa-

cidade desse agenciamento de explicitar-se por si mesmo e de ser reconhecido

pelos participantes. Ora, essa “capacidade” deve ser de tipo metassemiótico, isto

é, estratégica e sensível, pois deve ser observável, se não sempre, ao menos de

maneira recorrente. É a “segmentação recíproca” (ou “co-segmentação”) entre

as duas práticas que cumpre esse objetivo.

Observemos atentamente as condições de uma conexão bem sucedida, por

exemplo, a da refeição com o biógrafo (cena 10). Essa refeição é composta de

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 65

cinco segmentos conversacionais cujas demarcações compreendem todas as fa-

ses marcantes da refeição:

(1) do começo até o fi lé (Ibidem: 480), a conversa não é evocada e o texto

apenas manifesta as impressões de Mercadier, que olha para seu interlocutor: é

o retrato do Sr. Bellemine;

(2) do fi lé até a escolha do segundo vinho (Ibidem: 481), os dois parceiros

avaliam-se mutuamente, procuram um assunto para conversar. Bellemine está

inquieto a respeito do julgamento de Mercadier sobre sua biografi a. Mercadier

demonstra boa vontade, deixando-se levar pela conversa sobre essa biografi a,

mas sem compreender o que o outro espera dele;

(3) do segundo vinho até a escolha dos queijos (Ibidem: 484), sempre sem

compreender o que Bellemine quer dele, Mercadier inverte os papéis, interroga

seu parceiro e delimita suas motivações;

(4) do queijo até o café (Ibidem: 486), enfi m, Bellemine encontrou seu tema

e interroga Mercadier sobre sua relação com o trabalho, o dinheiro e a vida em

sociedade;

(5) após o café e o digestivo, a partir de uma pergunta de Bellemine sobre

seus fi lhos, Mercadier explica porque não retomou o contato com sua família.

Superfi cialmente, essa segmentação apresenta-se como uma investigação

em cinco fases do tema pertinente de conversação. Em profundidade, ela es-

trutura uma prova (no sentido da semiótica narrativa) em três fases canônicas:

(1) a confrontação (primeiro e segundo segmentos): os parceiros avaliam-se, no

início visualmente (reconhecimento), depois verbalmente (inquietação e expec-

tativa); (2) a dominação (terceiro e quarto segmentos): ora um, ora outro, os

dois parceiros tomam a frente, Mercadier em primeiro lugar16, Bellemine em

seguida; (3) a resolução (quinto segmento): Bellemine acha uma brecha e nela

investe, Mercadier não resiste mais e dá a chave do enigma que o biógrafo pro-

curava elucidar.

A relação entre as duas práticas (comer e falar), sob o efeito dessa co-seg-

16 “A situação estava invertida: agora era Mercadier que interrogava, que perscrutava Bellemine, que se apaixo-nava pelo problema Bellemine, sua psicologia.” (Ibidem: 440).

66 | Jacques Fontanille

mentação que destaca dos dois lados uma seqüência pertinente (uma refeição

ordenada e completa, uma prova narrativa conforme a norma), funciona agora

como uma semiótica conotativa, em que uma dessas práticas (falar) confi rma

e explicita, de modo refl exivo, a canonicidade da outra (comer). Se as duas

seqüências forem síncronas, a conduta exprime de modo refl exivo a boa forma

do protocolo.

2.5.2.3. A cordialidade

Sendo a conexão entre as duas seqüências práxicas a condição geral para a

valorização da refeição, a co-segmentação seria a condição de uma valorização

positiva. A co-segmentação é um fenômeno de natureza aspectual e processu-

al e manifesta tanto para o espectador quanto para os participantes – como já

havíamos sugerido –, a “boa forma” sintagmática apropriada da montagem es-

tratégica. No entanto, para confi rmar essa hipótese, é preciso ao menos poder

demonstrar que essa co-segmentação é percebida pelos interessados, e é inter-

pretável enquanto tal: daí então o papel decisivo das “paixões” da co-segmenta-

ção e, particularmente, da “cordialidade”, que sanciona a conexão bem-sucedida

entre as duas práticas.

Dois casos extremos contrapõem-se. A última refeição em família (cena 8)

é uma refeição qualifi cada como “morna”, mesmo que a conversa a respeito das

“mesas girantes” espíritas que a acompanha seja, entretanto, muito animada e

polêmica.

No entanto, observando mais de perto, notamos que essa conversa é evo-

cada sem menção alguma à refeição que a acompanha, e é somente mais tarde,

graças a uma espécie de anáfora generalizada, que a frase “Um jantar morno”,

que encerra a troca conversacional precedente, nos faz saber que se tratava, na

verdade, de uma discussão à mesa. Esse modo de textualização manifesta, pre-

cisamente nesse caso, a impossibilidade ou a insignifi cância da conexão entre

as duas práticas. E, nesse sentido, o julgamento axiológico e a reação afetiva

visam, mais precisamente, essa conexão impossível, na medida em que a ex-

pressão “Um jantar morno” é, ao mesmo tempo, o modo de exprimir a ausência

de conexão (enquanto anáfora generalizada) e o suporte da avaliação (enquanto

predicado axiológico). Uma refeição “morna” é então, em suma, uma refeição

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 67

na qual a conversa está totalmente desconectada da alimentação17, e tudo se

passa como se, na ausência de co-segmentação síncrona, a refeição não fosse

narrável. A comutação funciona bem: a inefi ciência da conduta conversacional

torna o protocolo alimentar insignifi cante.

A longa refeição de férias que reúne as famílias Mercadier e Pailleron em

Sainteville (cena 5), ao contrário, é qualifi cada como “cordial”: “A atmosfera

era extremamente cordial”. Essa apreciação acontece justamente no momento

em que o tio de Sainteville prepara a salada enquanto, ao mesmo tempo, conta

uma história:

A atmosfera era extremamente cordial. E o conde de Sainteville não te-

ria permitido que ninguém temperasse a salada em seu lugar. Ele con-

tava à dama ao seu lado uma história local. Um drama na montanha...

(Ibidem: 177).

O encadeamento é muito claro: o “E” é aqui um conector de glosa, de enri-

quecimento e/ou de ilustração: esse momento de sincronização em que o conde

reivindica o tempero da salada, e a isso se dedica enquanto conta uma história,

manifesta no plano fi gurativo a co-segmentação dos percursos e suscita direta-

mente o efeito de “cordialidade”.

Algumas linhas depois, comentando uma parte da história, a Sra. Mercadier

serve-se de salada: “O senhor sempre diz isso, meu tio, e é injusto! – protestou

a Sra. Mercadier, enquanto se servia de uma folha com algumas gotas de vina-

gre” (Ibidem: 177). Contar/temperar, protestar/servir-se: a sincronização entre

a segmentação da conversa e a da refeição é perfeita.

Os momentos de sincronização estabelecem nós axiológicos, sensíveis e efi -

cientes, que convencem cada um dos participantes do êxito da estratégia coleti-

va, e que se manifestam por um sentimento de cordialidade.

Portanto, a “boa forma” da seqüência estratégica não é apenas uma estru-

tura objetiva, devendo ser também percebida, o que implica, ao menos, uma

competência dos participantes: eles devem estar em condições de reagir a essa

boa forma, devem ser sensíveis à seqüência canônica, sensíveis ao valor que

está associado à co-segmentação. Como em nosso caso a relação entre essas

duas práticas é orientada, esse valor, que aparece por ocasião de uma percepção

afetiva (“cordial” ou “morna”), é apenas a percepção da adaptação da conduta

conversacional ao protocolo da refeição.

17 É na seqüência dessa mesma refeição que Mercadier exprime sua irritação em relação ao caráter formal e insignifi cante do ritual familiar: “Com a família, o essencial é a paciência à mesa”.

68 | Jacques Fontanille

2.5.3. Do plano da expressão ao plano do conteúdo

A relação entre a seqüência alimentar e a seqüência conversacional é refl e-

xiva, porém dessimétrica: (1) a segunda refl ete a primeira, comenta-a, reforça-a

desdobrando-a de maneira redundante e síncrona; (2) a primeira proporciona à

segunda um enquadramento relativamente estável. Na verdade, o estatuto semi-

ótico dessas duas seqüências é bem diferente: a seqüência alimentar, enquanto

protocolo, é regulada por usos culturais e não é decidida no próprio momento da

refeição, mesmo que seja inovadora, ela deve ser regulada e decidida previamente.

Já a seqüência conversacional, enquanto conduta, ao contrário, geralmente não é

planejada e, mesmo que obedeça a algumas regras culturais, sua forma geral deve

ser criada em tempo real, através de um ajustamento estratégico permanente.

Essa dessimetria infl ui, então, sobre os efeitos da conexão, já que a seqüên-

cia alimentar pode ser expressa pela conversa (salvo acidente, em caso de escân-

dalo e de saída prematura), enquanto a seqüência conversacional só pode ser

moldada (ou não) pelas fases da refeição. Em suma, o percurso canônico (da

refeição) pode ser refl etido pelo percurso “em ato” (da conversação), enquanto o

percurso “em ato” só pode ser infl etido pelo percurso canônico.

No entanto, a partir do momento em que levamos em consideração o con-

junto do processo adaptativo, em que dois percursos temáticos competem por

uma mesma confi guração expressiva, a da “co-segmentação síncrona”, a relação

semiótica modifi ca-se. Na verdade, as avaliações implícitas ou explícitas indicam

claramente, como já tentamos mostrar, que é essa regulação auto-adaptativa que

sustenta os valores e que permite, por exemplo, decidir-se pela cordialidade. E

não basta dizer que a conversação síncrona “conota” o sucesso da refeição, pois

nós não saberíamos mais do que isso sobre o conteúdo desse sucesso.

Na verdade, a co-segmentação síncrona só pode ser a expressão do sucesso

se evidenciamos um conteúdo e se, por comutação, podemos verifi car que os

acidentes ou modifi cações de um dos dois planos desencadeiam modifi cações

no outro plano.

2.5.3.1. A troca ritual

É chegada a hora, portanto, de dar um conteúdo a essa expressão rítmica e

aspectual, sendo que esse conteúdo será, como veremos, de natureza antropoló-

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 69

gica. Cada cena de refeição manifesta, na verdade, uma estrutura de troca, base-

ada no modelo do dom e do contra-dom, ao qual a refeição empresta sua forma

sintagmática. Mas essa troca funciona aqui sob uma condição muito peculiar.

Com efeito, entre todos os ritos de troca possíveis, só há um em que o contra-

dom permanece indeterminado, potencial e fi xado sine die. No limite, o dom

não tem outro propósito senão suscitar a boa vontade do destinatário.

Esse tipo de troca ritual é característico do sacrifício. Na verdade, no mo-

mento do sacrifício, um bem é destruído ou consumido em benefício direto

ou indireto de um terceiro. É em troca disso que esse terceiro deverá examinar

favoravelmente as eventuais solicitações ou as necessidades futuras do doador.

Independentemente do conteúdo religioso e fi gurativo desse tipo de prática ri-

tual, podemos conservar as propriedades seguintes: (1) o eventual contra-dom

permanece indefi nido, não restrito, e não se espera que ele seja do mesmo tipo

que o dom (não há jamais, por exemplo, trocas de refeição no romance); (2) a

natureza específi ca dessa estrutura de troca (dom/boa vontade futura), para ser

reconhecível e efi ciente, deve obedecer a uma codifi cação (aspectual e rítmica)

precisa, que funciona como expressão de seu caráter “quase sacrifi cial”; (3) esse

tipo de troca, por fi m, inaugura um tempo social muito particular, indefi nida-

mente estendido (já que não há data fi xa para o contra-dom), mas suscetível de

ser a todo momento decomposto, interrompido, ou reiterado (por novos sacri-

fícios): a boa vontade indefi nida, na verdade, deve ser “mantida”.

De acordo com essa hipótese, todas as propriedades de conexão e de sin-

cronização que foram anteriormente estabelecidas – especialmente os nós

axiológicos da co-segmentação – decorreriam dessa condição e contribuiriam

diretamente para garantir a efi cácia simbólica da seqüência. É, em suma, a ritu-

alização sintagmática do dom-refeição que permite aos parceiros reconhecê-lo

implícita ou explicitamente como uma troca do tipo sacrifi cial, produtora de

uma “dívida de boa vontade”.

2.5.3.2. A promessa e sua realização

Ao fi nal da refeição na Exposição Colonial (cena 1), o almirante desculpa-se

de maneira bem curiosa: “Durante a sobremesa, o almirante lembrou-se de pro-

messas que havia feito: eu me descuidei, com uma bela mulher...” (Ibidem: 41).

Como podemos observar, o texto não traz nenhuma indicação de promes-

sas. A única menção é a de um convite para jantar, imediatamente seguida da

70 | Jacques Fontanille

passagem já citada, em que se exprime sua “inextricável necessidade de falar”.

Podemos ainda supor, sem grande benefício explicativo, uma elipse textual. Pa-

rece mais vantajoso nos perguntar de que maneira as “promessas” estão conti-

das no próprio convite: de acordo com nossa hipótese, o convite abre um ciclo

de troca em que o contra-dom não deve ser nem imediato, nem restritivo, nem

determinado. Ora, nesse caso, o contra-dom (a escuta atenta) é imposto, conco-

mitante e muito preciso. Ele provém certamente da “boa vontade” em geral, mas

sob condições que não respeitam a forma sacrifi cial.

Em suma, se um convite para jantar comporta uma promessa, seria a que

respeitaria as cláusulas do modelo sacrifi cial subjacente. Paulette Mercadier,

a esposa resignada, incorporou perfeitamente esse princípio, que ela emprega

sempre em seus “grandes jantares” anuais: “Era um jantar para fi car quite com

os colegas de Pierre e suas esposas” (Ibidem: 68). O problema aqui, certamente,

é: fi car quite em relação a quê? Como os Mercadier não freqüentam os colegas

do marido, supõe-se que seja justamente essa distância que é preciso ser com-

pensada, e isso é confi rmado pelo texto, quando explicita que o jantar serve para

“fi car quite”, em suma, com a diferença de riqueza e meio social entre Mercadier

e seus colegas mais humildes e com a distância social que eles mantêm entre si.

A forma sacrifi cial – nesse caso, perfeitamente codifi cada: seqüência, protocolo,

distribuição de lugares e papéis – tem por objetivo fazer conhecer a natureza do

contra-dom esperado: um crédito de boa vontade indeterminado, como com-

pensação pela desigualdade das condições sociais e econômicas, que poderiam

inspirar, a contrario, a má vontade.

O mesmo acontece com a refeição em Sainteville, organizada a partir do

convite dos Pailleron. Aproveitando o pretexto do “salvamento” da fi lha Pail-

leron por Mercadier, os Pailleron também propõem um ritual sacrifi cial, des-

tinado a restaurar a boa vontade dos anfi triões, para compensar sua própria

presença incômoda no castelo: de fato, a cordialidade da refeição é, em si mesma

e ao mesmo tempo, uma promessa e uma busca pela boa vontade, em troca do

ritual perfeitamente síncrono.

Em suma, o conteúdo que corresponde à expressão constituída pela “co-

segmentação síncrona das práticas” é, exatamente aqui, uma forma de vida,

regida por uma estrutura sintagmática específi ca (o rito “quase sacrifi cial”),

e que comporta, especialmente, uma expectativa e uma promessa indefi nidas

de boa vontade.

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 71

2.5.3.3. A recusa à boa vontade (provas de comutação)

Em nosso exemplo, provas de comutação não faltam, e dizem respeito, ao mes-

mo tempo, às fi guras da expressão e do conteúdo. A troca fracassa a partir do mo-

mento em que uma das duas propriedades da troca sacrifi cial não é respeitada.

No que concerne ao conteúdo, o contra-dom está predefi nido, restrito a uma

data determinada. É o caso, sobretudo, das refeições na pensão dos Meyer, ao lon-

go das quais é impossível esquecer que fazem parte da remuneração dos professo-

res e inspetores da escola Robinel, razão pela qual são tão mesquinhamente ser-

vidas: essas refeições não têm mais nenhum caráter sacrifi cial, já que participam

de uma troca de tipo trabalho/retribuição e sua qualidade é proporcional ao valor

comercial dos ensinamentos (valor em baixa constante, diga-se de passagem!).

A atmosfera das refeições de férias em Sainteville é menos desagradável,

mas não menos signifi cativa: fi camos sabendo, ao mesmo tempo, que o tio é

pago pelos pais para hospedar os sobrinhos, e que ele pouco fala com eles du-

rante as refeições: sobre o pano de fundo de uma troca de tipo comercial, e não

de tipo sacrifi cial, é inútil, portanto, jogar conversa fora, já que, de qualquer ma-

neira, o objetivo da troca não é despertar a boa vontade de quem quer que seja.

No que concerne à expressão, a co-segmentação síncrona não é respeitada.

É o que se passa com as refeições em que a conexão e a sincronização dos dois

percursos práxicos estabelecem-se mal ou não se estabelecem de forma alguma.

É e o que se passa também com as refeições interrompidas. Por exemplo, a sogra

de Mercadier sempre se recusa a ter boa vontade para com seu genro ou, ainda,

Mercadier recusa-se a ter boa vontade para com sua mulher.

Conseqüentemente, os diferentes tipos de transgressão confi rmam, de for-

ma sistemática, a relação semiótica entre expressão e conteúdo: uns afetam o

conteúdo (o modelo sacrifi cial), outros, a expressão (a co-segmentação das duas

práticas). Mas assim que a transgressão incide sobre um dos dois planos, o ou-

tro é também sistematicamente afetado: a dessincronização das duas seqüên-

cias compromete a boa vontade, e o caráter não-sacrifi cial da troca perturba a

co-segmentação síncrona. Na verdade, é somente quando a ordem da refeição

consegue impor sua seqüência (número e ordem das fases), sua aspectualidade

(completa/incompleta) e seu ritmo (a duração e a intensifi cação das fases) à

conversa, é que ela demonstra sua efi ciência simbólica e suscita, em contrapar-

tida, a boa vontade recíproca dos parceiros. Todavia, é também porque a troca

sacrifi cial não funciona bem (pelo fato de as propriedades do contra-dom não

serem respeitadas, por exemplo) que os dois percursos vão desconectar-se e que

72 | Jacques Fontanille

a montagem estratégica vai desfazer-se, sincopar-se, abreviar-se ou fi xar-se em

uma mera repetição.

No caso da refeição na Exposição Colonial (cena 1), por exemplo, o almi-

rante descumpre sua “promessa” implícita de duas maneiras (daí, talvez, o plu-

ral: suas promessas): (1) no plano do conteúdo (o modelo sacrifi cial), defi nindo

e impondo o contra-dom, nesse caso, a escuta atenta e solícita de sua tagarelice;

(2) no plano da expressão (a co-segmentação síncrona das práticas), mantendo

uma conversa contínua e monótona que permanece insensível à segmentação

da refeição.

Portanto, estamos realmente diante de uma relação semiótica forte, em que

os dois planos são solidários e sensíveis às operações de comutação.

2.6. Efi ciência da forma sintagmática e formas de vida

Desse modo, o caráter canônico da seqüência alimentar, assim como sua

estreita conexão com a seqüência conversacional, atua diretamente na efi cácia

da troca sacrifi cial, e esta instaura a efi cácia simbólica da refeição.

Propusemos analisar a montagem estratégica das práticas da conversa e da

refeição como uma relação semiótica que compreende um plano da expressão

(a co-segmentação síncrona) e um plano do conteúdo (o modelo sacrifi cial).

Em suma, demonstramos que a estratégia é uma semiótica-objeto, dotada de um

plano da expressão e de um plano do conteúdo, entre os quais ocorrem comuta-

ções que verifi cam sua pertinência.

Ademais, esses dois planos obedecem, cada um, a uma condição gradual

orientada pela avaliação: o primeiro, à da sincronização das práticas, e o se-

gundo, à da indeterminação do contra-dom. A variação relativa dessas duas

condições permite prever vários tipos de correlação diferentes entre expressões

e conteúdos.

Partindo dessas duas dimensões, a sincronização das práticas e a indeter-

minação do contra-dom, podemos considerar distribuí-las em uma estrutura

tensiva, sob a forma de dois gradientes orientados: um, indo da maior desestru-

turação à forma canônica completa (da desordem assíncrona à ordem perfeita-

mente sincronizada); o outro, da maior determinação do contra-dom à indeter-

minação aberta (da dívida que deve ser honrada imediatamente à boa vontade

generalizada e difusa).

Esta investigação sobre o romance de Aragon evidenciou, sobretudo, a co-

lusão entre essas dimensões, em virtude do peso axiológico que ele atribui à

sincronização entre a seqüência alimentar e a seqüência conversacional. Entre-

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 73

tanto, outras possibilidades deixam-se entrever, consideradas, aqui, como dis-

funções, mas que poderiam também ser valorizadas positivamente.

Por exemplo, no caso da troca comercial (entre os Meyer, sobretudo no

refeitório da escola), a cristalização estereotipada da seqüência alimentar com-

promete a cordialidade das trocas, mas é só uma questão de tempo para que o

contrato seja fi rmado. Ou ainda: entre Mercadier e seu biógrafo Bellemine, a

troca é de tipo comercial (trocam-se refeições por confi dências), mas o encon-

tro é, globalmente, cordial: há, portanto, circunstâncias – e provavelmente uma

outra forma de vida – em que as duas valências estão em tensão inversa, e em

que seu devir antagonista é valorizado positivamente.

Imaginemos uma outra possibilidade baseada no mesmo princípio: na re-

feição com os Pailleron, o protocolo é pouco a pouco rompido, e o ideal da

refeição, segundo a própria confi ssão de Blanche Pailleron, parece tender ao

piquenique, ou seja, a uma organização embora desestruturada, ainda mais so-

ciável. Nesse caso, a correlação inverte-se, e o aumento da boa vontade esperada

depende da degradação da co-segmentação síncrona.

Portanto, a correlação entre as duas dimensões dá margem a um grande

número de possibilidades, mas somente a dois grandes tipos de correlação: uma

correlação direta, em que as duas dimensões fortalecem-se reciprocamente,

e uma correlação inversa, segundo a qual as duas dimensões enfraquecem-se

reciprocamente. O resultado disso é que a estrutura oferece ao menos quatro

posições salientes e típicas, as duas posições extremas de cada um dos dois tipos

de correlação:

74 | Jacques Fontanille

(1) A troca ritual corresponde a uma combinação da indeterminação do

contra-dom (simples expectativa de boa vontade) e do fortalecimento da forma

sintagmática (conexão e sincronização das práticas);

(2) A troca contratual corresponde ao mesmo grau de sincronização, mas

associado a uma forte determinação dos desafi os e das contrapartidas: a refeição

é “comprada” pelo preço da escuta ou da informação, a refeição faz parte expli-

citamente de uma troca comercial;

(3) A troca confl ituosa corresponde ao mesmo grau de determinação dos

desafi os e das contrapartidas, mas com uma dessincronização das seqüências

práxicas (é a refeição de “altercação”, a armadilha de que todos querem escapar

antes que termine);

(4) A troca informal corresponde ao mesmo grau de dessincronização, mas

com uma fraca determinação dos desafi os e das contrapartidas (é a reunião

“bem comportada”, o piquenique ou a refeição improvisada e informal).

Cada um desses tipos tensivos corresponde a um tipo de sociabilidade (ritu-

al, contratual, confl ituosa e informal), cuja efi cácia é defi nida pela combinação

de duas gradações sobre cada dimensão de controle, em que cada tipo tensivo

caracteriza uma das formas e um dos valores possíveis da montagem estratégica

entre práticas. No entanto, podemos constatar, no romance de Aragon, que es-

ses quatro tipos de sociabilidade agrupam-se em duas formas de vida: uma que

seria característica da upper class (alta burguesia e nobreza rural), forma de vida

“tradicional” e que só oferece a escolha entre a sociabilidade ritual e a sociabi-

lidade confl ituosa; e outra, característica da middle class (pequena burguesia, a

boêmia etc., forma de vida “liberal”), que oferece a escolha entre a sociabilidade

comercial e a sociabilidade informal.

Se essa classifi cação é válida, então a mudança de regime práxico e estraté-

gico das refeições deve acompanhar os declínios e as ascensões sociais: verifi ca-

ção bem-sucedida, já que é o caso de todas as personagens que conhecem tais

imprevistos sociais e, especialmente – detalhe signifi cativo – o caso do conde de

Sainteville, conde arruinado, que alterna entre a sociabilidade comercial (com

sua família) e a sociabilidade ritual (com seus vizinhos).

Diante disso, concluímos que a constituição da relação semiótica (entre pla-

no da expressão e plano do conteúdo) não é somente engendrada no próprio

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização | 75

processo da prática individual ou coletiva, ela é globalmente regida e determi-

nada pela forma de vida da qual a prática em questão provém.

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Semiótica e comunicação | 77

SEMIÓTICA E COMUNICAÇÃO1

José Luiz Fiorin

UMA POLÊMICA NA ÁREA DE COMUNICAÇÃO

Uma polêmica tem agitado a área de Comunicação: qual é seu objeto?

Como deve ele ser tratado? Essa discussão poderia ser considerada um exer-

cício acadêmico, não tivesse ela profundas repercussões sobre os Programas de

Pós-graduação historicamente constituídos, provocando interdição, exclusão e

proscrição de linhas de investigação, de orientações teóricas e mesmo de pes-

quisadores. Wilson Gomes, na época representante da área de Comunicação na

CAPES, em declarações à Revista da FAPESP (nº 82,12: 2002), afi rmou que é

preciso limpar o lixão da área de Comunicação. Para ele, o objeto da Comuni-

cação são os meios de comunicação de massa (a imprensa, o rádio, a televisão, o

cinema, etc.) e esse objeto exige a criação de teorias específi cas para estudá-lo.

A área de Comunicação faz parte da macro-área de Ciências Sociais Aplica-

das, na qual se encontram também Administração, Ciência da Informação, Di-

reito e Serviço Social. Essa macro-área estuda fenômenos que podem ser abor-

dados de diferentes pontos de vista teóricos, criados em outras áreas. Assim, em

Administração, estuda-se o gerenciamento de empresas, etc., à luz da Teoria das

Organizações, elaborada no interior da Sociologia.

No que tange à área de Comunicação, é preciso considerar, inicialmente,

1 Esse artigo foi publicado inicialmente na revista Galáxia, v. 8, p.13-30, 2004.

78 | José Luiz Fiorin

que só uma divisão disciplinar, que está sendo posta em xeque com os novos

avanços da ciência, que exige abordagens inter ou multidisciplinares, permi-

te estabelecer que seu objeto são apenas os meios de comunicação de massa.

A comunicação é a ação dos homens sobre outros homens, criando relações

intersubjetivas e fundando a sociedade. Isso alarga o objeto da comunicação,

incluindo nele uma gama considerável de fenômenos, que vão desde a conver-

sação cotidiana até a internet. Na verdade, seria preciso, numa concepção me-

nos restritiva, ampliar o campo da Comunicação e não o restringir. No entanto,

consideremos para efeito de argumentação que o objeto dessa área sejam apenas

os meios de comunicação de massa. Eles podem ser estudados do ponto de vista

da signifi cação produzida, do impacto que provocam na sociedade, da recepção

pelos seus destinatários e assim por diante. Em cada um desses casos, as teorias

para estudá-los não são singulares, mas teorias gerais da signifi cação, como a

Semiótica, teorias das mudanças sociais, criadas pela Sociologia, teorias da re-

cepção das linguagens, etc.

Os textos criados pelos meios de comunicação são produtos de linguagens e,

por conseguinte, podem ser examinados pelas teorias lingüísticas e semióticas.

Não há uma teoria para cada uma das linguagens, pois uma teoria singular para

cada uma delas não seria um projeto científi co. Afi nal, como já ensinavam os fi -

lósofos medievais, Nominantur singularia, sed signifi cantur universalia2. Mesmo

que as ciências humanas não sejam ciências no mesmo sentido em que o são a

Física ou a Química, elas têm compromisso com a generalização das afi rmações

e com a verifi cação das conclusões. Portanto, se os meios de comunicação po-

dem ser estudados do ponto de vista da signifi cação, uma teoria semiótica deve

poder ser empregada no seu estudo, já que a Semiótica se propõe como teoria da

signifi cação. O sentido gerado por um fi lme não é diferente daquele criado por

um romance. O que distingue um objeto do outro é apenas a forma de manifes-

tar essa signifi cação, é o plano da expressão. No entanto, as teorias semióticas

modernas estão buscando analisar as diferentes manifestações possíveis da sig-

nifi cação e, portanto, não são alheias a nenhuma forma de exprimir o sentido.

Ouvem-se às vezes razões pelas quais é necessário criar uma teoria particu-

lar para as mídias. Vamos aqui elencar três, que são recorrentes:

1) ao contrário dos textos verbais, os textos midiáticos são produzidos por

diferentes enunciadores (por exemplo, a signifi cação de um fi lme é criada pelo

iluminador, pelo diretor de fotografi a, pelo fi gurinista, etc.) e, por isso, é preciso

2 São nomeadas as coisas singulares, mas são signifi cadas as universais.

Semiótica e comunicação | 79

uma teoria para explicar o fazer desse sujeito coletivo;

2) nos meios de comunicação de massa, é preciso ter muita clareza a respei-

to do público a quem o produto se dirige (o target, como dizem os publicitários)

e, por isso, o público é um co-enunciador, como ocorre, por exemplo, nas no-

velas de televisão;

3) os textos da mídia são complexos, uma vez que eles são manifestados por

diferentes linguagens (por exemplo, um jornal é um composto de textos verbais,

de fotos, de gráfi cos, etc.) e, por isso, é preciso que haja uma teoria específi ca

para esses textos.

Sobre a terceira razão, é preciso dizer que a Semiótica discursiva e narrativa

se tem ocupado não só das manifestações do sentido por uma única linguagem,

mas também daquelas em que isso é feito por meio de diferentes linguagens. É

o que ela vai chamar semióticas sincréticas. No entanto, não se pretende discutir

essa questão, neste trabalho. Vamo-nos debruçar sobre as duas primeiras.

O que seria uma teoria própria dos textos que resultam de um fazer coleti-

vo? No caso do cinema, seria uma descrição do fazer do iluminador, do diretor

de fotografi a, do fi gurinista, etc.? Mas uma descrição do fazer real não é uma

teoria. Essa questão do enunciador coletivo, na realidade, é um falso problema,

pois, do ponto de vista da signifi cação, o que o enunciatário (o receptor) apreen-

de é um todo de sentido e não o sentido dado pela iluminação, pelo fi gurino, etc.

O problema real é como se processa a enunciação nas linguagens sincréticas,

como as diferentes linguagens que a constituem manifestam um todo organiza-

do de sentido. Isso diz respeito a uma teoria geral da enunciação, dado que não

são apenas as mídias que são textos sincréticos. Nas artes, há inúmeros exem-

plos: o teatro, a ópera e assim por diante.

A questão é que, quando se examina a problemática da produção do dis-

curso nas mídias, pensa-se no enunciador real, de carne e osso, e não numa

instância signifi cante, um efeito do discurso.

Por outro lado, quando se estuda o público-alvo, o target, tem-se a impres-

são de que isso é uma característica peculiar aos meios de comunicação de mas-

sa e não um fato próprio de todo e qualquer ato de comunicação.

Neste trabalho, vamos pensar essas duas instâncias, o produtor do discurso

e seu receptor, à luz da Semiótica francesa, para mostrar o equívoco daqueles

que afi rmam nada ter a Semiótica a oferecer aos estudos de comunicação.

80 | José Luiz Fiorin

A ENUNCIAÇÃO

Benveniste (1995) mostra que a enunciação é a instância do ego, hic et nunc.

O eu é instaurado no ato de dizer: eu é quem diz eu. A pessoa a quem o eu se

dirige é estabelecida como tu. O eu e o tu são os actantes da enunciação, os

participantes da ação enunciativa. Ambos constituem o sujeito da enunciação,

porque o primeiro produz o enunciado e o segundo, funcionando como uma es-

pécie de fi ltro, é levado em consideração pelo eu na construção do enunciado. O

eu realiza o ato de dizer num determinado tempo e num dado espaço. Aqui é o

espaço do eu, a partir do qual todos os espaços são ordenados (aí, lá, etc.); agora

é o momento em que o eu toma a palavra e, a partir dele, toda a temporalidade

lingüística é organizada. A enunciação é a instância que povoa o enunciado de

pessoas, de tempos e de espaços.

O mecanismo básico com que se instauram no texto pessoas, tempos e es-

paços é a debreagem. Ela pode ser de dois tipos: a enunciativa e a enunciva. A

primeira projeta no enunciado o eu-aqui-agora da enunciação, ou seja, instala no

interior do enunciado os actantes enunciativos (eu/tu), os espaços enunciativos

(aqui, aí, etc.) e os tempos enunciativos (presente, pretérito perfeito 1, futuro do

presente).3 A debreagem enunciva constrói-se com o ele, o alhures e o então, o

que signifi ca que, nesse caso, ocultam-se os actantes, os espaços e os tempos da

enunciação. O enunciado é então construído com os actantes do enunciado (3ª

pessoa), os espaços do enunciado (aqueles que não estão relacionados ao aqui) e

os tempos do enunciado (pretérito perfeito 2, pretérito imperfeito, pretérito mais

que perfeito e futuro do pretérito ou presente do futuro, futuro anterior e futuro

do futuro4). A debreagem enunciativa produz, basicamente, um efeito de sentido

de subjetividade, enquanto a enunciva gera, fundamentalmente, um efeito de sen-

tido de objetividade. Como se vê, a enunciação deixa marcas no enunciado e, com

elas, pode-se reconstruir o ato enunciativo. Este não é da ordem do inefável, mas

é tão material quanto o enunciado, na medida em que ele se enuncia. Podemos

distinguir, pois, nos textos, a enunciação enunciada e o enunciado. Aquela é o

conjunto de elementos lingüísticos que indica as pessoas, os espaços e tempos da

enunciação, bem como todas as avaliações, julgamentos, pontos de vista que são

de responsabilidade do eu, revelados por adjetivos, substantivos, verbos, etc. O

enunciado é o produto da enunciação despido das marcas enunciativas.

3 Chamamos pretérito perfeito 1 a forma verbal que indica anterioridade ao momento da enunciação e pretérito perfeito 2 a forma que assinala a concomitância a um marco temporal pretérito.

4 Presente do futuro é a forma verbal que indica uma concomitância a um marco temporal futuro, futuro ante-rior é a forma que assinala anterioridade a um marco temporal futuro e futuro do futuro é a forma que marca uma posterioridade a um marco temporal futuro.

Semiótica e comunicação | 81

A enunciação é a instância lingüística logicamente pressuposta pela exis-

tência do enunciado. Isso signifi ca que um enunciado como Todo homem é mor-

tal pressupõe um Eu digo (Todo homem é mortal). Essa afi rmação parece um

truísmo, já que, se existe um dito, há um dizer que o produziu. No entanto, ela

é prenhe de conseqüências teóricas. Quando se projeta um eu no interior do

enunciado, de tal forma que se diga Eu digo que todo homem é mortal, haverá

ainda assim uma instância pressuposta que terá produzido esse enunciado: Eu

digo (Eu digo que todo homem é mortal). Isso implica que é preciso distinguir

duas instâncias: o eu pressuposto e o eu projetado no interior do enunciado.

Teoricamente, essas duas instâncias não se confundem: a do eu pressuposto é

a do enunciador e a do eu projetado no interior do enunciado é a do narrador.

Como a cada eu corresponde um tu, há um tu pressuposto, o enunciatário, e

um tu projetado no interior do enunciado, o narratário. Além disso, o narrador

pode dar a palavra a personagens, que falam em discurso direto, instaurando-se

então como eu e estabelecendo aqueles com quem elas falam como tu. Nesse

nível, temos o interlocutor e o interlocutário.

O enunciador e o enunciatário são o autor e o leitor, o produtor do texto e

seu receptor. Cabe, porém, uma advertência: não são o autor e o leitor reais, em

carne e osso, mas o autor e o leitor implícitos, ou seja, uma imagem do autor e

do leitor construída pelo texto.

A IMAGEM DO ENUNCIADOR

Quando falamos em eu e tu, falamos em actantes da enunciação, ou seja,

em posições dentro da cena enunciativa, aquele que fala e aquele com quem se

fala. No entanto, nos diferentes textos, essas posições são concretizadas e esses

actantes tornam-se atores da enunciação. O ator é uma concretização temático-

fi gurativa do actante. Por exemplo, o enunciador é sempre um eu, mas, no texto

Memórias póstumas de Brás Cubas, esse eu é concretizado no ator Machado de

Assis. Nunca é demais insistir que não se trata do Machado real, em carne e

osso, mas de uma imagem do Machado produzida pelo texto.

A questão é então ver como se constrói a imagem do enunciador, isto é, o

ator da enunciação. Para pensar a questão, voltemos à Retórica de Aristóteles.

Numa determinada passagem, o estagirita afi rma:

É o éthos (caráter) que leva à persuasão, quando o discurso é organizado

de tal maneira que o orador inspira confi ança. Confi amos sem difi culda-

82 | José Luiz Fiorin

de e mais prontamente nos homens de bem, em todas as questões, mas

confi amos neles, de maneira absoluta, nas questões confusas ou que se

prestam a equívocos. No entanto, é preciso que essa confi ança seja resul-

tado da força do discurso e não de uma prevenção favorável a respeito

do orador (I, 1356a).

Roland Barthes, comentando essa passagem, diz que os éthe são

os traços de caráter que o tribuno deve mostrar ao auditório (pouco im-

porta sua sinceridade) para causar boa impressão. (...) O éthos é, no sen-

tido próprio, uma conotação. O orador enuncia uma informação e, ao

mesmo tempo, afi rma: sou isso, sou aquilo (1975: 203).

Em termos mais atuais, dir-se-ia que o éthos não se explicita no enunciado,

mas na enunciação. Quando um professor diz eu sou muito competente, está

explicitando uma imagem sua no enunciado. Isso não serve de prova, não leva

à construção do éthos. O caráter de pessoa competente constrói-se na maneira

como organiza as aulas, como discorre sobre os temas, etc. À medida que ele

vai falando sobre a matéria, vai dizendo sou competente. Como vimos acima,

a enunciação não é da ordem do inefável. Por conseguinte, o éthos explicita-

se na enunciação enunciada, ou seja, nas marcas da enunciação deixadas no

enunciado. Portanto, a análise do éthos do enunciador nada tem do psicolo-

gismo que, muitas vezes, pretende infi ltrar-se nos estudos discursivos. Trata-se

de apreender um sujeito construído pelo discurso e não uma subjetividade que

seria a fonte de onde emanaria o enunciado, de um psiquismo responsável pelo

discurso. O éthos é uma imagem do autor, não é o autor real; é um autor discur-

sivo, um autor implícito.

Aristóteles indaga, em sua Retórica, quais são as razões que inspiram con-

fi ança num orador. Afi rma:

Há três coisas que inspiram confi ança no orador, porque há três razões

que nos levam à convicção, independentemente das demonstrações.

São o bom senso, a prudência, a sabedoria prática (phrónesis), a virtude

(areté) e benevolência (eúnoia). Os oradores podem afastar-se da ver-

dade por todas essas razões ou por uma dentre elas. Por causa da falta

de bom senso, podem não exprimir uma opinião correta; por causa de

sua malvadeza podem, mesmo pensando bem, não expressar aquilo que

pensam; mesmo sendo prudentes e honestos, podem não ser benevolen-

tes. Por essas razões, os oradores podem, mesmo conhecendo a melhor

solução, não aconselhá-la. Não há nenhum outro caso (II, 1378a).

Semiótica e comunicação | 83

Esse passo da obra do estagirita deve ser lido, como nos mostram os comen-

tadores, como uma descrição do éthos do orador. Um orador inspira confi ança

se seus argumentos são razoáveis, ponderados; se ele argumenta com honesti-

dade e sinceridade; se ele é solidário e amável com o auditório. Podemos, então,

ter três espécies de éthe: a) a phrónesis, que signifi ca o bom senso, a prudência,

a ponderação, ou seja, que indica se o orador exprime opiniões competentes e

razoáveis; b) a areté, que quer dizer a virtude, mas virtude tomada no seu sen-

tido primeiro de “qualidades distintivas do homem” (latim uir, uiri), portanto,

a coragem, a justiça, a sinceridade; nesse caso, o orador apresenta-se como al-

guém simples e sincero, franco ao expor seus pontos de vista; c) a eúnoia, que

denota a benevolência e a solidariedade; nesse caso, o orador dá uma imagem

agradável de si, porque mostra simpatia pelo auditório. O orador que se utili-

za da phrónesis se apresenta como sensato, ponderado, e constrói suas provas

muito mais com os recursos do lógos do que com os dos páthos ou do éthos (em

outras palavras, com os recursos discursivos); o que se vale da areté se apresenta

como desbocado, franco, temerário e constrói suas provas muito mais com os

recursos do éthos; o que usa a eúnoia apresenta-se como alguém solidário com

seu enunciatário, como um igual, cheio de benevolência e de benquerença, e

erige suas provas muito mais com base no páthos.

Dominique Maingueneau diz que o éthos compreende três componentes: o

caráter, que é o conjunto de características psíquicas reveladas pelo enunciador

(é o que chamaríamos o éthos propriamente dito), o corpo, que é o feixe de

características físicas que o enunciador apresenta; o tom, a dimensão vocal do

enunciador, desvelada pelo discurso (1995: 137-140).

Quando se fala em éthos do enunciador, estamos falando em ator e não em

actante da enunciação. Um ator é “uma unidade lexical, de tipo nominal, que,

inserida no discurso, é suscetível de receber, no momento de sua manifesta-

ção, investimentos da sintaxe narrativa de superfície e da semântica discursiva”.

(Greimas e Courtès 1979: 7) Por ser o lugar de convergência e de investimento

de um componente sintáxico e de um componente semântico, o ator deve ter,

pelo menos, um papel actancial e um papel temático. O ator pode, enfi m, ser

fi gurativizado. Lembram Greimas e Courtès:

Do ponto de vista da produção do discurso, poder-se-á distinguir o ac-

tante da enunciação, que é um actante logicamente implícito, logicamen-

te pressuposto pelo enunciado, do ator da enunciação: nesse último caso,

o ator será, por exemplo, “Baudelaire”, na medida em que se defi ne pela

totalidade de seus discursos (1979: 8).

84 | José Luiz Fiorin

A análise do éthos do enunciador é, como já se disse, a análise do ator da

enunciação. No entanto, verifi camos que há diferentes níveis enunciativos num

texto: enunciador, narrador e interlocutor. Não há qualquer difi culdade para

determinar o que se poderia chamar o éthos do interlocutor, já que este é uma

personagem construída na obra, com todas as suas características físicas e psí-

quicas. O problema é distinguir o caráter do enunciador e o do narrador. É

Greimas quem nos dá a pista para fazer essa distinção. Diz ele, em passagem

citada acima, que o enunciador tomado como ator da enunciação se defi ne pela

totalidade de sua obra. Quando analisamos uma obra singular, podemos defi nir

os traços do narrador, quando estudamos a obra inteira de um autor é que po-

demos apreender o éthos do enunciador. No caso de um jornal, quando anali-

samos o texto de um articulista (José Simão, por exemplo), defi nimos os traços

de um narrador; apenas quando investigamos o jornal como uma totalidade de

sentido, encontramos um enunciador, que denominamos como o Estadão, a

Folha, o JB. É a percepção intuitiva desse enunciador único que nos leva a afi r-

mações como O Estadão tem uma linha mais defi nida do que a Folha, pois esta

acolhe uma pluralidade de opiniões maior.

Norma Discini de Campos mostra que a totalidade em que se busca o ca-

ráter do enunciador é diferencial, construída para os propósitos da análise. Por

exemplo, se vamos estabelecer os éthe do que se chama, comumente, imprensa

séria e imprensa sensacionalista, verifi camos que os jornais O Estado de S. Paulo

e Folha de S. Paulo estão englobados dentro da mesma totalidade, enquanto

Notícias populares pertence a outra totalidade. No entanto, se a análise visa a

mostrar a distinção entre os éthe do Estadão e da Folha, cada um desses jornais

constitui uma totalidade (2003: 117-222).

Onde se encontram, na materialidade discursiva da totalidade, as marcas

do éthos do enunciador? Dentro dessa totalidade, procuram-se recorrências em

qualquer elemento composicional do discurso ou do texto: na escolha do assunto,

na construção das personagens, nos gêneros escolhidos, no nível de linguagem

usado, no ritmo, na fi gurativização, na escolha dos temas, nas isotopias, etc. Num

jornal, a imagem do enunciador se mostra até mesmo no tamanho das letras utili-

zadas, no número de colunas ocupadas pela manchete e assim por diante.

Valendo-nos de uma análise feita por Norma Discini de Campos dos jor-

nais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, de um lado, e Notícias Populares, de

outro (2003: 117-152), tracemos os elementos principais dos éthe da chamada

imprensa séria e da denominada imprensa sensacionalista. Na dita imprensa

Semiótica e comunicação | 85

séria, a diagramação é equilibrada; respeita-se a divisão da página, padronizada

em seis colunas; os textos e as fotos apresentam uma distribuição simétrica; as

manchetes são compostas por letras regularmente pequenas; não há contrastes

gritantes de cores e de letras. Sua temática privilegiada são a política nacional,

a economia, a política internacional; o primeiro caderno trata das notícias po-

líticas. Seu domínio narrativo é o público. Por isso, as notícias policiais, por

exemplo, são dadas com muita discrição. Com o apagamento das marcas da

enunciação no enunciado (por exemplo, com o uso das formas impessoais de

narrar), cria-se um efeito de sentido de objetividade e de distanciamento. Com

o apagamento da enunciação, é como se as notícias se enunciassem a si mesmas,

o que gera um efeito de sentido de verdade. Com o uso de procedimentos como

ouvir os dois lados, produz-se um simulacro de isenção. Utiliza-se a norma cul-

ta da língua e evitam-se as gírias e os palavrões. Há uma busca da explicação da

notícia e da tomada de posições. Nada nesses jornais é hiperbólico, tudo está na

“justa medida”.

Em Notícias Populares, os padrões são completamente diferentes. Na pri-

meira página, a manchete, em letras enormes, em negrito, mais espessas do

que o padrão dos outros jornais, ocupa mais da metade da página. As fotos

são imensas e nelas o colorido é extremamente forte. A primeira página parece

anárquica, porque nela os títulos e as fotos parece amontoarem-se na página. A

temática privilegiada em NP são os faits divers, os esportes, as “dicas” de sobre-

vivência no aqui e agora, a vida dos artistas, os assuntos referentes ao misticis-

mo, ao esoterismo. Buscam-se os eventos mais extravagantes e trágicos da vida

privada. Fica-se no domínio imediato da experiência (por exemplo, esse jornal

não tem editoriais). A linguagem utilizada é uma variante popular, repleta de gí-

rias e termos chulos (“Corno elétrico causa blecaute” - 19/11/2000): manchete

de notícia a respeito de um marido traído que subiu num poste de eletricidade

e causou um apagão). Usam-se muitos aumentativos (por exemplo, Timão, Ver-

dão, Fogão, para fazer referência aos times de futebol Corinthians, Palmeiras e

Botafogo). Há muitas fotos e poucas palavras (mancha bastante arejada e letras

com tipos grandes). Isso dá um ritmo acelerado à enunciação. Tudo em NP é

hiperbólico. Não se apagam todas as marcas da enunciação no enunciado. Mos-

tram-se muitas fotos de mulheres semidespidas. Debocha-se do mundo com, por

exemplo, manchetes enganadoras ou frases maliciosas (“Padre Marcelo vai mudar

de Igreja” - 19/02/1999): sobre a mudança do local de celebração das missas do Pa-

dre Marcelo; Exclusivo furo mundial: “John Kennedy casou ontem em São Paulo”

- 24/07/1999): sobre um indivíduo que tinha o nome de John Kennedy e que se

86 | José Luiz Fiorin

casou). Ao falar sobre artistas de televisão, misturam-se realidade e fi cção (por

exemplo, “Xuxa cansou de beijar Fred” - 5/12/2000): Fred era uma personagem

de uma novela que era mostrada na época em que o jornal foi publicado).

Essas marcas composicionais e estilísticas permitem compor o éthos da

imprensa séria e o da sensacionalista. Aquele é sutil, fi no, busca compreender

o mundo em que vive, apresenta-se como alguém aparentemente isento, con-

fi ável, porque transmite um saber englobante do mundo. Seu corpo é sóbrio e

contido, seus gestos são calculados. O tom de sua voz é sério, mas brando, é

uma voz que não se eleva, pausada e ritmada, sua expressão é equilibrada. É um

éthos de reserva e elegância, um éthos da “justa medida”. Já o éthos do enuncia-

dor criado por Notícias populares é mais rude, fala com franqueza, exibe sua

virilidade (o que se observa no apelo erótico explícito das mulheres seminuas),

sem “frescuras”, sem a contenção dada pelas normas da polidez. É um ator

redundante, “espaçoso”, impaciente (o que se nota na enunciação acelerada).

Esse ator tem um corpo avesso à contenção, seus gestos são atabalhoados. Ele

não fala, grita. Seu tom de voz nada tem da intensidade das vozes consideradas

bem educadas.

Como se vê, embora o jornal seja uma criação coletiva, os diferentes fazeres

dos diversos sujeitos reais que atuam em sua produção estão subordinados a

uma instância signifi cante única, que permite que o produto seja apreendido

como um todo de sentido (Landowski 1989: 155-166). Para o estudo do sentido

do objeto midiático, não têm nenhum relevo os vários fazeres dos sujeitos reais,

mas o que importa é apreensão da imagem do enunciador veiculada pelo texto.

O que foi dito do jornal vale também para o cinema, a televisão, etc. No cinema,

por exemplo, o enunciador é o diretor: não, evidentemente, o diretor de carne e

osso, mas sua imagem construída pela sua obra.

A IMAGEM DO ENUNCIATÁRIO

Como já se disse, o eu sempre se dirige a um tu e, portanto, a cada instância

da enunciação, em que um actante diz eu, corresponde um tu. Ao enunciador

está em correlação o enunciatário; ao narrador, o narratário; ao interlocutor, o

interlocutário. Cabe ainda lembrar que ensina Greimas que enunciador e enun-

ciatário constituem o sujeito da enunciação. (1979: 125) Ao colocar o enuncia-

tário como uma das instâncias do sujeito da enunciação, Greimas quer ressaltar

seu papel de co-enunciador. Com efeito, a imagem do enunciatário constitui

Semiótica e comunicação | 87

uma das coerções discursivas a que obedece o enunciador: não é a mesma coisa

produzir um texto para um especialista numa dada disciplina ou para um leigo;

para uma criança ou para um adulto. O enunciatário é também uma construção

do discurso. Não é o leitor real, mas um leitor ideal, uma imagem de um leitor

produzida pelo discurso. Assim como no texto particular se constrói a imagem

do narrador, enquanto é numa totalidade discursiva que se encontra o éthos do

enunciador, também num texto singular se constrói a imagem do narratário,

seja ele explícito ou implícito, enquanto numa totalidade discursiva, recortada

para os fi ns da análise, constrói-se a imagem do enunciatário. Essa distinção

remete à possibilidade de uma diferença entre as duas imagens.

É preciso analisar como se constrói a imagem do enunciatário, isto é, esse

ator da enunciação, que não é uma instância abstrata e universal, o tu, pressupos-

ta pela existência do enunciado. Ao contrário, é uma imagem concreta a que se

destina o discurso. O enunciatário, como vimos, não é um ser passivo, que ape-

nas recebe as informações produzidas pelo enunciador, mas é um produtor do

discurso, que constrói, interpreta, avalia, compartilha ou rejeita signifi cações.

Para pensar o enunciatário como ator da enunciação, vamos voltar novamen-

te à Retórica, de Aristóteles. Num ato de comunicação, três elementos acham-se

envolvidos: o orador, o auditório e o discurso, ou, em outros termos, o éthos, o

páthos e o lógos. Atualmente, poder-se-ia dizer que, num ato comunicativo, há

uma relação entre três instâncias: o enunciador, o enunciatário e o discurso.

Mostra o estagirita que os argumentos válidos para certos auditórios

deixam de sê-lo para outros; os argumentos adequados em certos momen-

tos não o são em outros; os argumentos apropriados em determinados luga-

res não atingem o resultado esperado em outros. O orador, portanto, para

construir seu discurso, precisa conhecer seu auditório. Mas conhecer o

quê? O páthos ou o estado de espírito do auditório. O páthos é a disposição

do sujeito para ser isto ou aquilo. Por conseguinte, bem argumentar implica

conhecer o que move ou comove o auditório a que o orador se destina. (I,

II, 1356a). Aristóteles trata longamente das paixões que movem o auditório

no livro II da Retórica. Cícero, no De oratore, afirma: “...nobis tamen, qui

in hoc populo foroque uersamus, satis est, ea de moribus hominum et scire

et dicere quae non abhorrent ab hominum moribus” (I, 219)5. Por essa ra-

zão, assim o romano define as qualidades do orador: “Acuto homine nobis

opus est, et natura usuque callido, qui sagaciter peruestiget, quid sui ciues,

5 Para nós que nos ocupamos desse povo e do foro, basta conhecer os costumes das pessoas e dizer aquelas coisas que não contrariam a opinião delas.

88 | José Luiz Fiorin

quibus aliquid dicendo persuadere uelit, cogitent, sentiant, opinentur, exs-

pectent” (I, 223).6

O páthos não é a disposição real do auditório, mas a de uma imagem que o

enunciador tem do enunciatário. Essa imagem estabelece coerções para o dis-

curso: por exemplo, é diferente falar para um auditório de militantes políticos

ou para um auditório que julga a política uma coisa aborrecida. Nesse sentido,

o auditório, o enunciatário, o target, como dizem os publicitários, faz parte do

sujeito da enunciação; é produtor do discurso, na medida em que determina

escolhas lingüísticas do enunciador. Evidentemente, essas escolhas não são ne-

cessariamente conscientes.

A imagem do enunciatário é um papel temático, que é composto de uma

complexa rede de relações. Cícero diz que o orador precisa saber o que pensam

(cogitent), sentem (sentiant), opinam (opinentur), esperam (exspectent) aque-

les a quem deseja persuadir. Isso quer dizer que essa imagem, consubstanciada

num papel temático, tem uma dimensão cognitiva: de um lado, ideológica, da

ordem do saber (cogitent), de outro, da ordem do crer (opinentur); uma dimen-

são patêmica (sentiant) e uma dimensão perceptiva (exspectent).

O Presidente Lula parece ter uma percepção muito aguda da imagem do

enunciatário a quem se dirige. Num de seus discursos sobre as reformas da pre-

vidência afi rmou que não era justo que uma procuradora ou uma professora

universitária se aposentassem aos quarenta e oito anos, enquanto uma cortado-

ra de cana se aposenta aos sessenta anos. Disse que iria mudar essa situação. O

enunciatário poderia ser tematizado como o “povão”, que é constituído de uma

rede de relações semânticas: percebe a sociedade brasileira como um lugar de

privilégios e injustiças, sente revolta diante desse estado de coisas e espera um

salvador que mude essa situação. Por isso, o éthos do enunciador construído no

discurso presidencial é o de um salvador, de um redentor. Daí o tom messiânico

de seu discurso: é ele quem vai reparar as injustiças. Não existe, nesse discurso,

a mediação democrática do Congresso Nacional; as mudanças dar-se-ão pela

vontade do presidente. Em 2003, em Pelotas, o Presidente afi rmou: “A coisa que

eu mais queria na minha vida, quando casei com a minha galega [Marisa], era

um fi lho. Ela engravidou logo no primeiro dia de casamento, porque pernam-

bucano não deixa por menos” (FSP, 18/6/2003). O éthos do macho, que associa

desempenho sexual à valentia, à coragem; que se apresenta como o homem sim-

ples e sincero, dirige-se a um enunciatário, cujo páthos tem o mesmo perfi l.

6 É necessário um homem agudo, hábil por natureza e experiência, que tenha uma sagaz percepção do que pensam, sentem, opinam e esperam seus cidadãos e aqueles a quem deseja persuadir pelo seu discurso.

Semiótica e comunicação | 89

Vejamos, de maneira rápida, apenas à guisa de ilustração, como os jornais O

Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo constroem seus enunciatários. Este tem tex-

tos menores do que aquele, tem mais fotos e fotos maiores e tem páginas menos

compactas. Apresenta uma seção internacional menos densa. Exibe, com gran-

de freqüência, quadros azuis, em que são explicados os antecedentes da notícia

que está sendo dada, e parênteses explicativos para as siglas apresentadas: por

exemplo, CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito); TCU (Tribunal de Contas

da União), TST (Tribunal Superior do Trabalho). Os textos são escritos no que se

poderia chamar a norma culta real. Os períodos dos textos não são muito longos.

Dá mais espaço do que o Estado para a cultura e as diversões, apresentando, com

muita freqüência, movimentos culturais alternativos. Tem um ombudsman que,

aos domingos, apresenta críticas, às vezes bastante duras, ao jornal. Na página

dos editoriais, apresenta, além de uma charge, artigos de cronistas sediados no

Rio, em São Paulo e em Brasília e artigos de colaboradores variáveis. Já o Estadão

apresenta textos maiores do que os da Folha e tem páginas mais compactas. Sua

seção internacional e seu caderno de Economia são mais densos do que os da

Folha. Traz menos explicações dos antecedentes das notícias e os parênteses ex-

plicativos aparecem apenas em situações excepcionais. Os textos são escritos no

que se poderia denominar a norma culta escolar. Os períodos são mais longos e a

sintaxe, mais complexa. Seu caderno de cultura dá mais espaço à cultura erudita

e à cultura popular tida como mais sofi sticada. Não tem ombudsman e sua pá-

gina de editoriais apresenta somente a posição do jornal e as cartas dos leitores.

Seus editoriais são com mais freqüência modalizados pela certeza, enquanto a

Folha modula, freqüentemente, seus pontos de vista pela contingência (exemplo

típico disso é apresentar um assunto, sob a forma de uma interrogação, que é

respondida por três articulistas: um responde afi rmativamente; outro, negativa-

mente; outro, em termos). Poderíamos continuar a enumerar diferenças entre os

dois jornais. No entanto estas bastam para pensarmos na imagem do enunciatá-

rio construída por esses órgãos da imprensa.

O enunciatário do Estadão é um homem que pertence às elites do país, que

conhece bem os fatos da política e da economia, para quem, portanto, não é

preciso, a todo momento, explicar os antecedentes das notícias, o papel exercido

por determinadas personalidades citadas nos textos e o signifi cado das siglas

de órgãos governamentais. É um consumidor da cultura erudita e das mani-

festações consideradas mais sofi sticadas da cultura popular. Esse homem tem

posições políticas bem defi nidas, é conservador em matéria de economia e po-

lítica. É cheio de certezas e, portanto, o jornal pode apresentar-se com posições

90 | José Luiz Fiorin

bem marcadas, enfatizando menos a relatividade e a pluralidade de opiniões.

Para ele, a leitura é o meio mais importante de obtenção de informações. Já o

enunciatário da Folha é o descolado (artistas, professores universitários, etc.),

que tem interesses muito variados. Não é que não se interesse pela política, mas

seu interesse por ela é relativo. Por isso, não conhece todos os órgãos governa-

mentais nem todos os atores da política ou da economia nacionais. Interessa-

se apenas pelas grandes questões da política internacional. É um consumidor

de todas as manifestações culturais, entre elas as alternativas. Tem curiosidade

pelas matérias relativas ao comportamento (veja-se, por exemplo, a pauta da

Revista da Folha). Não se informa apenas pelos jornais e, por isso, não dedica

muito tempo a sua leitura. É pluralista. Para o leitor do Estadão, o mundo é ob-

jeto do conhecimento e campo de ação; para o leitor da Folha, o mundo é objeto

de contemplação. O tom do primeiro é viril, educado, sério, peremptório; o do

segundo é levemente blasé tingido por certa ironia.

Como se vê, cada um dos jornais constrói seu público, seu leitor, a partir

de características discursivas. Essa imagem do enunciatário passa a ser um co-

enunciador, na medida em que ela determina a escolha das matérias que entra-

rão no jornal, a forma como os textos são redigidos, a disposição da página, etc.

Por outro lado, o enunciatário adere ao discurso, porque nele se vê constituído

como sujeito, identifi cando-se com um dado éthos do enunciador.

A efi cácia do discurso ocorre, quando o enunciatário incorpora o éthos

do enunciador. Essa incorporação pode ser harmônica, quando éthos e páthos

ajustam-se perfeitamente (é o caso do enunciatário da Folha ou do Estado) ou

complementar (quando o éthos responde a uma carência do páthos (é o caso dos

manuais de auto-ajuda, em que a um enunciatário inseguro, confuso, que busca

segurança, corresponde um enunciador cheio de certezas). O Ministro da Jus-

tiça Márcio Tomás Bastos afi rmou que era uma afronta à Prefeita de São Paulo

jogar uma galinha sobre ela, como fi zeram alguns estudantes da Faculdade de

Direito do Largo de São Francisco, da mesma forma como seria afrontoso jo-

gar um veado sobre um homem (FSP, 12/08/2003). Ele teve, depois de variados

protestos, que pedir desculpas pela infelicidade de sua frase, porque ela revelava

preconceito contra os homossexuais (FSP, 13/08/2003). Evidentemente, ele se

dirigiu a um enunciatário que não admite esse tipo de preconceito e, portanto,

seu discurso não foi efi caz.

A efi cácia discursiva está diretamente ligada à questão da adesão do enun-

ciatário ao discurso. Ele não adere ao discurso apenas porque este é apresentado

como um conjunto de idéias que expressa seus possíveis interesses, mas sim,

Semiótica e comunicação | 91

porque se identifi ca com um dado sujeito da enunciação, com um caráter, com

um corpo, com um tom. Assim, o discurso não é apenas um conteúdo, mas

também um modo de dizer, que constrói os sujeitos da enunciação. O discurso,

ao construir um enunciador, erige também seu correlato, o enunciatário.

Onde se encontram, na materialidade discursiva da totalidade, as marcas

do páthos do enunciatário? Dentro dessa totalidade, procuram-se recorrências

em qualquer elemento composicional ou no estilo do discurso. Em outras pala-

vras, as marcas da presença do enunciatário não se encontram no enunciado (o

dito), mas na enunciação enunciada, isto é, nas marcas deixadas pela enuncia-

ção no enunciado (o dizer).

Analisemos sucintamente um programa de televisão, o do Ratinho, para

examinar a efi cácia de seu discurso. Como mostramos acima, não se trata de

buscar a imagem do enunciatário num programa específi co, mas no programa

visto como uma totalidade.

O programa do Ratinho tinha, basicamente, duas vertentes: uma, que se po-

deria chamar jornalística e de serviços, e outra, em que se apresentavam atra-

ções artísticas. Os serviços prestados pelo programa eram realização de exames

de DNA para determinação de paternidade, busca de familiares que não se sabia

onde estavam, ajuda para que a pessoa pudesse começar um pequeno negócio ou

realizar um sonho. As notícias eram aquelas bastante “bizarras”, que mostravam

a “miséria humana”: fatos policiais, brigas familiares, comportamentos sexuais

minoritários (ou não tão minoritários assim), doenças estranhas, fenômenos pa-

ranormais. As notícias mostravam tudo o que é “extravagante” e trágico na vida

privada. Quando se falava de política, falava-se apenas daquilo que atinge direta e

imediatamente o telespectador: aumento da contribuição do INSS, criação da taxa

de lixo e de iluminação, etc. Trata-se de notícias mais do âmbito privado do que

do público. No que diz respeito às atrações artísticas, apresentava-se aquilo que é

considerado brega: cantores sertanejos, cantores da “dor de cotovelo”, etc.

O estilo do apresentador era escrachado e politicamente incorreto. Dois

exemplos mostram isso. Comentando o casamento da Prefeita de São Paulo,

disse que, durante o almoço da festa, foi servido picadinho de carne. Afi rmou

que, se tivesse sido convidado, daria a ela um presente muito bom, como uma

baixela de prata ou um serviço de jantar de porcelana, e que, portanto, não ad-

mitiria que servissem picadinho a ele. Ridicularizou o cardápio, um almoço de

comidas tradicionais de fazenda. Como se observa, o apresentador fazia derri-

são do estilo de vida das classes altas e exaltava um estilo de vida popularesco,

em que se busca um certo “luxo”. Afi nal, como dizia Joãozinho Trinta, quem

92 | José Luiz Fiorin

gosta de pobreza é intelectual. Por outro lado, seu estilo era politicamente in-

correto: por exemplo, um homossexual que foi reclamar que seu parceiro era

sexualmente insaciável foi objeto de todos os tipos de brincadeiras; as histórias

das pessoas que iam pedir exame de DNA para comprovação de paternidade

eram representadas sob o modo do escárnio; permitia-se e incentivava-se que

as mulheres que acompanhavam o homem que ia ser submetido a exame para

comprovação de paternidade brigassem entre si e, portanto, fossem apresen-

tadas como desequilibradas, enquanto o homem fi cava olhando e um letreiro

dizia: “e o bonitão nem aí”. Muitas vezes, o que era dito era permeado de expres-

sões de duplo sentido ou francamente grosseiras.

Ratinho apresentava um bom senso rude, em que não havia lugar para

nenhuma fi nura intelectual nem para nenhuma elaboração das idéias. Sobre

ecologia, repressão à criminalidade, vida conjugal, etc. repetia preconceitos e

chavões. O cantor Waguinho, preso por não pagar pensão alimentícia, foi ao

programa, para defender-se, segundo ele, do que dizia sua ex-mulher. Num

dado momento, Ratinho diz para seu auditório que o cantor não poderia fi car

como o mau na história, pois um homem não faz um fi lho sozinho. Deslocou

a questão do pagamento da pensão alimentícia para a geração de um bebê e,

portanto, tornou a ex-mulher culpada do que aconteceu.

O apresentador mostrava indignação contra o sistema político. Considera-

va que os políticos não faziam nada e eram, em geral, corruptos. Apresentava-

se como alguém que não tinha medo, que era franco no falar, que afrontava a

tudo e a todos, inclusive as leis e as decisões judiciais. Com freqüência, afi rmava

que podiam processá-lo porque ele não tinha medo. As ONGs eram parte do

sistema contra o qual se insurgia. Era o caso das instituições que se dedicavam à

preservação do meio ambiente e da Sociedade Protetora dos Animais.

O registro lingüístico utilizado era o popular, muitas vezes beirando o chulo.

A norma culta era muitas vezes usada com afetação, como que dizendo que se

tratava de uma linguagem de homossexuais. Tudo era anárquico no programa,

de sua decoração a sua condução. O programa recusava a cerimônia e a ritua-

lização das classes mais elevadas. Era um texto que não parecia pronto, pois as

marcas de sua feitura estavam nele presentes. Era antes um texto in fi eri do que

um texto factus. Tudo era apresentado hiperbolicamente, no modo do excesso.

A intensidade da voz do apresentador era bem forte. Na verdade, pode-se dizer

que ele gritava. O andamento do programa era acelerado.

Essas características permitem-nos traçar o éthos do apresentador e o pá-

thos de seu auditório. O enunciador apresentava um éthos masculino, franco no

Semiótica e comunicação | 93

falar, “espaçoso”, que não tem medo. Seu enunciatário também era o estereótipo

do papel masculino tradicional. Para ele, o mundo não era lugar de conheci-

mento nem campo de ação ou de mudança, mas lugar de diversão com base

em estereótipos e preconceitos. Por isso, no programa, não se buscavam a ob-

jetividade ou o distanciamento refl exivo, mas a subjetividade e o envolvimento

cúmplice. Suscitava o riso preconceituoso e o bom senso grosseiro. Nada havia

no programa do grotesco regenerador ou da carnavalização, pois não havia no

que era apresentado nenhuma positividade, mas uma negatividade fundada no

escárnio, que buscava reiterar os papéis sociais tradicionais. Nada devia ser mu-

dado no mundo, nele cada um devia desempenhar bem seu papel.

O programa do Ratinho era um discurso efi caz, porque o enunciatário re-

conhecia nele seu discurso, já que ele foi criado a partir de uma imagem sua

muito bem feita. Aderia a um enunciador, em que se via. Isso explica a longevi-

dade e a audiência do programa.

Os atores da enunciação, imagens do enunciador e do enunciatário, consti-

tuem simulacros do autor e do leitor criados pelo texto. São esses simulacros que

determinam todas as escolhas enunciativas, sejam elas conscientes ou incons-

cientes, que produzem os discursos. Para entender bem o conjunto de opções

enunciativas produtoras de um discurso e para compreender sua efi cácia é pre-

ciso apreender as imagens do enunciador e do enunciatário, com suas paixões e

qualidades, criadas discursivamente.

Como se observa, o sujeito coletivo da produção dos objetos midiáticos não

existe do ponto de vista da signifi cação, pois ele deve constituir-se numa ima-

gem unitária do enunciador, para que a signifi cação possa ser apreendida como

totalidade. Por outro lado, o papel co-enunciativo do receptor, como já mostra-

va Aristóteles, está presente em qualquer tipo de comunicação e não constitui

uma especifi cidade dos objetos criados pelos meios de comunicação de massa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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retórica. Petrópolis: Vozes, 1975. 147-221 p.

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94 | José Luiz Fiorin

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CÍCERO, Marcus Tullius. De oratore. Paris: Les Belles Letres, 1972.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e

tempo. São Paulo: Ática, 1996.

GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Sémiotique. Dictionnaire

raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1979.

LANDOWSKI, Eric. La société réfléchie: essais de socio-sémiotique. Paris:

Éditions du Seuil, 1989.

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Semiótica midiática e níveis de pertinência | 95

SEMIÓTICA MIDIÁTICA E NÍVEIS DE PERTINÊNCIA

Jean Cristtus Portela

Filosofi camente, toda fronteira absoluta proposta

à ciência é sinal de um problema mal formulado.

Gaston Bachelard (2008: 75)

O LEVANTE MIDIÁTICO EM SEMIÓTICA

Nos últimos anos, sobretudo na França, no Brasil e na Itália,1 países cuja pro-

dução editorial em semiótica sempre se manteve ativa, os estudos semióticos de

inspiração greimasiana aplicados à mídia e a outros fenômenos socioculturais

ligados à comunicação social (a política, a publicidade, a sociabilidade cotidiana,

a cidade, para citar apenas alguns) vêm conquistando um espaço importante nas

publicações especializadas e nos grupos universitários de pesquisa. Na origem

do levante midiático em semiótica estão semioticistas como Jean-Marie Floch e

Eric Landowski, cujas obras pioneiras (Floch, 1985, 1990, 1995, 1997; Landowski,

1989, 1997, 2004) – a do primeiro erigida em torno da refl exão sobre a semióti-

ca plástica, a do segundo, assentada no terreno da sociossemiótica – tomaram

uma distância estratégica dos corpora etnoliterários e literários que imperavam

na primeira fase de elaboração da semiótica, trazendo à luz semiótica objetos de

1 Algumas publicações francesas e brasileiras no domínio da semiótica midiática (em alguns casos, em sua derivação mercadológica) serão citadas e comentadas ao longo deste artigo. Quanto às italianas, as seguintes obras constituem uma pequena mas representativa amostra da produção editorial em semiótica midiática na Itália: Bertetti e Scolari (2007), Pezzini (2006), Marrone (2005, 1998), Rutelli e Pezzini (2005), Semprini (2005) e Bettetini (1996).

96 | Jean Cristtus Portela

pesquisa que terminaram por ampliar e redefi nir alguns conceitos da teoria.

No Brasil, embora as relações entre semiótica e comunicação não tenham

sempre sido, do ponto de vista institucional, tão amigáveis (ver o artigo de José

Luiz Fiorin, “Semiótica e Comunicação”, de 2004, reeditado nesta coletânea),

muitos são os cursos de comunicação social em nível de graduação e pós-gra-

duação que contam com semioticistas engajados na análise das mídias, como

atestam as publicações recentes de Fechine (2008), Primo et al (2008), Duarte e

Castro (2008, 2007a, 2007b, 2006) e Duarte (2004), sem contar a contribuição

sistemática de publicações seriadas como o Caderno de Discussão do Centro de

Pesquisas Sociossemióticas da PUC/SP, editado por Ana Claudia de Oliveira e

seus colaboradores, a revista Galáxia, a clássica Signifi cação (que deixou de ser

“Revista Brasileira de Semiótica” e passou a se subintitular, a partir do número

27, “Revista de Cultura Audiovisual”) ou, ainda, periódicos como Verso & Re-

verso (Unisinos), Ícone (UFPE) e Comunicação Midiática (Unesp).2

Colocando em prática sua vocação de disciplina aplicada, a semiótica tem-

se prestado à análise dos mais variados tipos de mídia, desde as mídias tradi-

cionais cujo uso consagrou-se no século XX (a imprensa escrita, o rádio e a

televisão) até as chamadas “novas mídias”, como a internet, o videogame e os

aparelhos celulares que, cada vez mais, apresentam uma completa convergência

midiática, ao desempenhar as funções de aparelho telefônico portátil, reprodu-

tor de música e vídeo, terminal de internet e computador pessoal.

No plano do conteúdo, essas análises exploram em sua maioria bem mais

do que os dispositivos clássicos do percurso gerativo do sentido e seus níveis,

procurando encontrar nos textos analisados as relações enunciativas que os

constituem, do ponto de vista tanto dos sujeitos da enunciação que neles in-

teragem quanto dos universos socioculturais nos quais fazem sentido. Assim,

a semiótica do texto, que tanto insistiu em seus primeiros anos na necessidade

de uma análise imanentista, de cunho formal e localista, vê-se, na prática de

análise das mídias e da comunicação social em geral, diante da necessidade de

“semiotizar o contexto”, para usar a programática expressão cunhada por Lan-

dowski (1989: 199) que, no começo dos anos 1980, já defendia a elaboração de

uma “semiótica das situações”.

No plano da expressão, os esforços da semiótica midiática voltam-se para os

2 Todo inventário corre o risco de pecar por inclusões e exclusões obscuras. Preocupei-me aqui em citar, sem qualquer pretensão de exaustividade, alguns livros recentes e periódicos já consolidados que atestam a ferti-lidade da pesquisa em semiótica midiática, especialmente em sua vertente greimasiana. Vale lembrar que a infl uência da mídia na pesquisa semiótica atual é tão abrangente que chegou até mesmo a revistas como Alfa (Unesp) e Estudos Lingüísticos (GEL), em que é cada vez mais comum encontrar análises lingüísticas e semió-ticas da mídia impressa, televisiva, radiofônica e digital.

Semiótica midiática e níveis de pertinência | 97

estudos do sincretismo de linguagens, com o objetivo de estabelecer tanto uma

tipologia estratégica do uso de várias linguagens na concepção de um produto

midiático quanto a construção de uma teoria que explique como as linguagens

hierarquizam-se e combinam-se, resolvendo as heterogeneidades locais em fun-

ção de um todo de sentido orientado. Paralelamente à investigação sobre as lin-

guagens sincréticas, ocorre um aprofundamento dos estudos sobre o semi-simbo-

lismo enquanto elemento primordial na organização dos sistemas semióticos, na

medida em que lhes confere unidade e gerencia efeitos de deformação coerente na

expressão e no conteúdo que difi cilmente deixam seu destinatário indiferente.

Tudo se passa como se o semioticista das mídias, honrando a tradição que

dá sentido a seu “projeto de vida” (termo caro a A. J. Greimas e a L. Landowski),

aprendesse a pensar à medida que pensa, analisar à medida que analisa, extrain-

do da prática, da observação direta do fenômeno, a teoria ad hoc de que necessi-

ta (nos moldes, é claro, da epistemologia de base que fundamenta seu trabalho).

Nesse embate cotidiano com o sentido, poucos são aqueles que elevam o olhar

para além de seus objetos e problemas concretos e põem-se a refl etir metodica-

mente sobre temas como a segmentação da análise e seus limites e a natureza

fenomenal e formal das semióticas-objeto analisadas.

Essa refl exão, de caráter metassemiótico por excelência, está relacionada à

questão da pertinência (do objeto e da análise) em ciências humanas e sociais

ou, mais especifi camente, ao problema dos níveis de pertinência semiótica por

meio dos quais uma disciplina estabelece seu objeto e seu domínio de atuação.

Nas linhas que seguem, procurarei demonstrar a importância do conceito

de “nível de pertinência” em semiótica e analisarei, privilegiando o ponto de

vista da semiótica midiática, a proposta mais recente de que se tem notícia sobre

a matéria: os níveis de pertinências da semiótica das culturas, elaborados por

Jacques Fontanille (2004).3

NÍVEIS DE PERTINÊNCIA E GERAÇÃO DE SENTIDO

Se o princípio de pertinência é respeitado, o trabalho

de pesquisa científi ca funciona, leva a algo.

Caso contrário, limitamo-nos a brincar como crianças.4

A. J. Greimas (1995: 177)

3 Cf. o diagrama dos níveis de pertinência no artigo de Fontanille traduzido para esta coletânea (p. 18). Aqui, o diagrama será chamado de “percurso gerativo da expressão”, “percurso da expressão” ou, ainda, “percurso dos níveis de pertinência”.

4 Essa e as demais traduções de obras sem tradução em língua portuguesa são de minha autoria.

98 | Jean Cristtus Portela

Essa epígrafe, extraída de uma conferência ministrada em Palermo em

1987, mostra a posição de Greimas em relação ao fazer taxionômico da semi-

ótica. É sabido que o mestre lituano condenava os métodos laxistas (Greimas,

1989), tal qual o poeta americano Robert Frost, para quem fazer versos livres era

como jogar tênis sem uma rede.

A questão dos níveis de pertinência em semiótica encontra-se em germe no

nascimento da própria teoria. A opção inicial da semiótica pela análise textual

em detrimento da análise frásica foi um deslocamento de interesse fundador,

que nada mais é do que uma mudança de nível de pertinência. O mesmo se

pode dizer da passagem da perspectiva semiológica clássica (L. Prieto, G. Mou-

nin e R. Barthes), que se focava no estudo do signo e de seus tipos e arranjos,

para a perspectiva efetivamente semiótica, que prioriza o texto como o lugar de

relações formais explicitáveis pela análise. Foi em torno do nível de pertinência

do texto que a semiótica greimasiana concebeu seu instrumental teórico, fi xan-

do-se mais especifi camente no plano do conteúdo, que antecede a manifestação

textual propriamente dita. É desse princípio epistemológico que derivam todos

os desenvolvimentos teóricos que resultaram no percurso gerativo do sentido,

como apresentado por Greimas e Courtés (1979).

Desse modo se, por um lado, o programa de pesquisa da semiótica greima-

siana focou-se no nível de pertinência do texto e dos enunciados que o com-

põem, por outro, a semiótica foi considerando, pouco a pouco, a existência de

outros níveis de pertinência semiótica e isso desde muito cedo, se considerar-

mos sua evolução histórica. No começo dos anos 1980 (Bertin, 2007; Landowski

2007), já se faziam pesquisas sobre a natureza estratégica do esquema narrativo,

pesquisas que se serviam do princípio de semiotização do contexto, vital para

uma semiótica das situações, segundo a proposição de E. Landowski. Os anos

1990 testemunharam o surgimento de análises de objetos e práticas cotidianas,

como as análises de Floch (1990) sobre os viajantes do metrô parisiense ou so-

bre a identidade visual e o conceito das campanhas publicitárias, ou, ainda, suas

análises sobre a faca francesa da marca Opinel ou o look de Coco Chanel (Floch,

1995). O último seminário de A. J. Greimas (Fontanille, 2003), que teve como

tema “A Estética da Ética” (1991-1992), já sinalizava mudanças importantes na

maneira como os semioticistas viam à época os níveis de pertinência semiótica

e sua integração. Prova disso é a proposta greimasiana de valer-se das “formas

de vida” cunhadas por L. Wittgenstein para designar uma instância enunciativa

englobante que, condensando um “estilo de vida”, servia de moldura e matriz

para a ocorrência dos enunciados.

Semiótica midiática e níveis de pertinência | 99

Assim, percebe-se claramente como o percurso gerativo do plano da ex-

pressão da semiótica das culturas proposto por Jacques Fontanille inscreve-se

rigorosamente na tradição greimasiana, na medida em que se serve, para sua

constituição, dos resultados da pesquisa coletiva em semiótica dos últimos 20

ou 30 anos. Além disso, esse percurso apresenta algumas características que

marcaram a refl exão greimasiana: a passagem do simples ao complexo, do pro-

fundo ao superfi cial, das instâncias virtualizadas às instâncias realizadas. Enfi m,

ele tem todas as características do clássico percurso gerativo do sentido, que

começa pelas instâncias inferiores: no caso do percurso do sentido, as estruturas

semionarrativas, no caso do percurso da expressão, o nível de pertinência dos

signos e das fi guras.

A primeira vez que Fontanille apresentou à comunidade semiótica seu per-

curso foi no Colóquio “Transversalidade do sentido: pesquisa e confrontação

de modelos”, que ocorreu na Universidade de Paris VIII, no começo de maio de

2004. Ao fi nal do mesmo mês, o texto dessa apresentação é publicado na revista

on-line italiana E/C (Fontanille, 2004). Esse texto foi republicado, com peque-

nas alterações (a única mudança substancial foi a exclusão do último nível de

pertinência, a cultura, que só aparece no texto de 2004), em Fontanille (2005),

em Fontanille e Zinna (2005) e em Fontanille (2006), este último tratando-se na

verdade da publicação tardia das atas do referido colóquio.

No Brasil, o percurso gerativo da expressão e a problemática dos níveis de

pertinência semiótica foram introduzidos por Fontanille em agosto de 2005, no

curso de curta duração “Signifi cação e visualidade: exercícios práticos” que o

semioticista francês ministrou no Programa de Pós-Graduação em Ciências da

Comunicação da Unisinos (São Leopoldo, RS). Essas informações, assim como

os textos debatidos no curso, podem ser encontrados em Fontanille (2005), obra

lançada concomitantemente à vinda do semioticista francês ao Brasil.

Quando analisado de perto, o percurso gerativo da expressão revela-se como

a intersecção de soluções epistemológicas correntes na semiótica greimasiana,

mas também de algumas concepções teóricas mais recentes, sobretudo no que

concerne à constituição fenomenológica e sensível da signifi cação, à esquema-

tização de propriedades formais/estruturais a partir de propriedades materiais

e sensíveis e, conseqüentemente, à reavaliação do conceito de imanência. Em

linhas gerais, as contribuições inovadoras do percurso proposto por Fontanille

decorrem da adoção de três atitudes fundamentais:

(1) Eleger como pertinentes as instâncias da experiência e da existência semi-

100 | Jean Cristtus Portela

óticas e relacionar a forma da expressão à substância da experiência e a forma do

conteúdo à substância da existência, defi nindo um horizonte ôntico de signifi ca-

ção, no qual despontam, irrompem, fenômenos apreensíveis pelos vários modos

de percepção do sensível (tipos de experiência) que podem ser hierarquizados

em diferentes níveis de pertinência de análise (Fontanille, 2004: 1). É nesse sen-

tido que se pode chamar o percurso que sintagmatiza os níveis de pertinência de

percurso gerativo da expressão. Não da expressão em sentido restrito, identifi cada

geralmente à manifestação material de um fenômeno, mas a expressão da mani-

festação semiótica, baseada na experiência de um sujeito senciente;

(2) Propor uma operação gerativa de “motivação” entre as instâncias in-

feriores e superiores do percurso, de modo que uma instância superior {N+1}

confi gure-se a partir das propriedades sensíveis e materiais de sua instância in-

ferior {N}. Por exemplo: a instância formal das cenas predicativas constitui-se

segundo as propriedades sensíveis da instância formal dos objetos, o que equi-

vale a dizer que o tipo de experiência da corporeidade é que delimita a extensão

do tipo de experiência prática. Isso fi ca evidente, por exemplo, pela forma como

os esportistas relacionam-se com as diversas práticas esportivas que dependem

da manipulação de uma bola (futebol, vôlei, basquete, rúgbi, tênis, etc.): a for-

ma, o tamanho, a densidade, o peso, a resistência e a aderência da bola-objeto

participam das práticas somáticas e cognitivas de manipulação, de modo que as

ciências do esporte procuram otimizar a produção das bolas-objeto para otimi-

zar, por conseguinte, a realização das práticas (e estratégias) esportivas;

(3) Estabelecer um percurso de geração de experiências e formas semióticas

que respeita o princípio de imanência, ao mesmo tempo que o amplia. Isso é

possível, como reconhece Fontanille (ver texto nesta coletânea, p. 18), graças a

uma idéia de Jean-François Bordron, que sugeriu a existência de vários “planos

de imanência” que variariam segundo o enfoque dado à semiótica-objeto (se-

gundo o nível de pertinência em questão). O conceito de “planos de imanência”

liberta o semioticista de uma concepção unitária da imanência que está inscrita

na semiótica clássica do texto. Nessa nova perspectiva, haverá tantos planos de

imanência quantos níveis de pertinência houver, na medida em que cada nível

postula um nível-domínio de análise semiótica.

As três opções epistemológicas que acabo de apresentar por si só já justi-

fi cariam o interesse do semioticista que trabalha com as mídias pelo percurso

Semiótica midiática e níveis de pertinência | 101

dos níveis de pertinência semiótica, na medida em que o percurso formaliza

semioticamente o que se considerou por muito tempo como extrapolação do

texto ou violação do princípio de imanência. A seguir, apresentarei o percurso

explicitando sumariamente a origem de seus níveis e as implicações que seu

estudo traz para a semiótica midiática.

OS NÍVEIS DE PERTINÊNCIA FONTANILLIANOS E A MÍDIA

Para mero efeito de clareza e explicitação, propus em Portela (2008: 53) uma

nova sistematização gráfi ca dos níveis de pertinência fontanillianos (ver Anexo).

O diagrama proposto leva em conta algumas idéias da primeira parte do texto

de Fontanille publicado nesta coletânea, especialmente as passagens em que o

semioticista francês descreve as operações de condensação e desdobramento

do percurso, por meio dos movimentos ascendentes (em direção à cultura) e

descendentes (em direção aos signos). Neste artigo tratarei apenas dos níveis em

uma perspectiva intensa e discreta, realçando suas propriedades constitutivas.

Para uma análise detalhada dos movimentos ascendentes e descendentes (ope-

rações de natureza extensa e contínua) no interior dos níveis de pertinência, o

leitor deverá consultar o texto de Fontanille que inicia esta coletânea.

Por ora, vejamos como, de cada tipo de experiência semiótica particular,

surge um nível de pertinência que pode ser abordado na análise das mídias.

Signos: a experiência da fi guratividade

O primeiro nível de pertinência semiótica foi chamado por Fontanille (2004)

de nível dos “signos” ou “signos-fi guras” e é considerado, do ponto de vista histó-

rico da semiótica, o patamar que é preciso superar para chegar a fazer semiótica

efetivamente. Da lexicografi a à semântica transfrásica, da semiologia à semiótica

de fato, é o domínio das unidades mínimas da signifi cação que se deve abando-

nar para ter uma visão de conjunto do projeto semiótico sobre o sentido.

Entretanto, o nível de pertinência dos signos continua sendo essencial para

que pensemos a nossa relação com o mundo signifi cante, já que esse nível é

construído a partir da experiência da fi guratividade. Seja na refl exão saussuria-

na sobre signo, orientada pelo princípio da arbitrariedade, seja na refl exão peir-

ciana, que prevê nuanças no princípio de arbitrariedade do signo em função da

102 | Jean Cristtus Portela

“distância” que ele mantém de seu objeto, estamos sempre diante do problema

da esquematização e da valoração das unidades de signifi cação e da forma como

nos relacionamos com elas. De uma maneira geral, o que está sempre em jogo

na nossa relação com o mundo dos signos são as questões (1) da abstração e da

fi guração, das (2) propriedades intrínsecas e das contingentes e dos (3) valores

de esquema e de uso.

Os signos, mesmo tomados como entidades isoladas, exercem um fascínio

inegável sobre nossa inteligência. O menor ruído, a quase imperceptível osci-

lação da luz, a ínfi ma variação na temperatura ambiente ou o discreto irrom-

pimento de um gosto ou cheiro desconhecidos convidam o sujeito senciente a

mobilizar sua visada na busca de uma apreensão.

É essa propriedade de espontânea e imediata captação do fl uxo de atenção

que dá ao nível de pertinência dos signos uma fértil aplicação no campo da se-

miótica midiática, na medida em que as mídias vivem em busca daquilo que de

forma mais rápida e efi ciente toca a sensibilidade do sujeito. O ícono-texto que

é a primeira página do jornal, por exemplo, deixa claro o papel proeminente da

seleção e combinação de signos (formas, cores, contrastes, projeções, volumes).

Os textos-enunciados e sua interpretação

A experiência da fi guratividade, passada sua fase de contato imediato, que é

caracterizada por lampejos, insinuações de sentido, desemboca na experiência

semiótica da interpretação. Não basta ao sujeito perceber a existência de um

fenômeno, a questão, no nível de pertinência dos textos-enunciados, é conferir

sentido ao que é percebido, é posicionar-se seja como intérprete seja como pro-

dutor em relação ao que é percebido.

O nível de pertinência dos textos-enunciados é por excelência o nível de

pertinência da simbolização e da racionalização subjacentes aos materiais que

manipulamos para fazer sentido. É esse o nível escolhido pela semiótica dos

anos 1970, para a concretização de seu projeto de teoria geral da signifi cação.

Nessa época, o texto era para a semiótica, independentemente da linguagem

pela qual é manifestado, a perfeita evidência (ou a única evidência!), a prova

material irrevogável da atividade humana de construção do sentido. A ele os

semioticistas tinham que se ater como a uma tábua de salvação, fora da qual não

havia redenção possível. É conhecido – e, hoje, amplamente questionado – o

aforismo greimasiano que parafraseava a máxima “extra ecclesiam nulla salus”,

Semiótica midiática e níveis de pertinência | 103

atribuída a São Cipriano de Cartago: “fora do texto não há salvação, todo o tex-

to, nada mais que o texto, nada fora do texto” (Greimas, 1974: 25).

O estudo do texto midiático impresso, televisivo, radiofônico e digital pro-

vavelmente jamais será deixado de lado, pois a preocupação com a concreção

dos textos-enunciados, por mais que a semiótica atual coloque-a em questão, é

uma característica fundadora da episteme semiótica greimasiana. No entanto,

na abordagem do texto midiático percebe-se que o problema-chave da análise

não é descrever a enunciação enunciada e o enunciado enunciado simplesmente,

mas recuperar, por catálise, os elementos enunciativos que permitem ao analista

restituir o sentido do enunciado não enunciado.

A problemática da depreensão do enunciado na mídia impressa cotidiana,

por exemplo, passa por algumas questões fundamentais que nos fazem pensar

sobre a natureza e os limites do nível de pertinência do texto: (1) a notícia ou

o artigo são enunciados resultantes de uma demanda contínua e orientada, de-

terminada pela organização das pautas do jornal; (2) esses enunciados têm um

contexto de ocorrência preestabelecido (a página, o caderno, a publicação como

um todo, o grupo de comunicação no comando); (3) eles tratam de narrativas

e valores cuja elaboração quase sempre está inacabada (a produção da notícia,

segundo as várias tendências editoriais, tenta estabilizar, por exemplo, as narra-

tivas políticas, mas o fato é que ela não tem controle – ou não deveria ter – sobre

os acontecimentos políticos).

Assim, fi ca evidente como o nível de pertinência do texto-enunciado por si

só não consegue sincretizar de forma coerente e satisfatória toda a problemática

da depreensão do enunciado nas mídias. É o percurso da expressão que orga-

niza, então, essa heterogeneidade multimodal (cada modo de funcionamento

equivalendo a um nível do percurso) a partir da introdução e da articulação de

outros níveis de pertinência, sendo este o fenômeno que Fontanille (2005: 32-3)

chama de resolução sincrética.

Corpo, objeto, dispositivo e técnica

A questão do nível de pertinência do objeto, que pertence ao domínio da

experiência corpórea e referencial, não é exatamente nova em semiótica grei-

masiana, não ao menos do ponto de vista teórico (Coquet; Petitot, 1991). No

entanto, no que diz respeito a seu aspecto aplicado, excetuando algumas in-

cursões pioneiras de Floch (1995), é só muito recentemente que o campo de

104 | Jean Cristtus Portela

estudos sobre o objeto expandiu-se realmente, como provam as obras de Ce-

riani (2008), Cavassilas (2006), Fontanille e Zinna (2005) e Arabyan e Klock-

Fontanille (2005), que tratam, respectivamente, de objetos díspares, como os

celulares de última geração, as técnicas de embalagem, a concepção dos objetos

que povoam nosso cotidiano e as antigas inscrições em tabuletas, que têm em

comum o fato de serem todos fenômenos semióticos inscritos em um objeto-

suporte material e formal.

Esse interesse da semiótica pela corporeidade do sujeito e pelos objetos que

ancoram sua experiência no mundo natural, compreendido como mundo do

“vivido”, resultou em uma semiótica “aberta” (Boutaud, 2007) e “extrovertida”

(Landowski, 2004: 37). Surpreendentemente, a área em que mais se empreende-

ram pesquisas semióticas sobre o objeto, até agora, foi a área de mercadologia

(marketing e concepção de produtos)5, que possui um interesse estratégico no

instrumental heurístico da semiótica como subsídio para a criação6 (Couégnas

et al, 2005; Ceriani, 2003; Bertin, 2002).

O nível de pertinência do objeto é também o nível dos dispositivos (ana-

lógicos e digitais) e das técnicas que os operam, estas últimas compreendidas

como práticas cognitivas otimizadas de manipulação e transformação de obje-

tos semióticos. Assim, tudo que concerne à captação e registro de uma lingua-

gem está relacionado ao nível do objeto: o papel e o modo de impressão, o tipo

de tela-suporte (resolução, cor, brilho, contraste) e a linguagem de codifi cação/

programação (sinal analógico codifi cado no caso da televisão, arranjos binários

no caso da imagem do computador ou da TV digital), os sistemas de transmis-

são e aparelhos de recepção em geral.

A refl exão sobre o objeto-suporte material e formal pelo qual um texto é

manifestado pode nos ajudar a compreender melhor a interação entre os avan-

ços tecnológicos e a criação de novos tipos textuais. Isso nos possibilitaria an-

tever o esperado estilhaçamento da narrativa a partir do advento da TV digital

ou, ainda, otimizar a criação de websites adaptados para exibição em celulares

e computadores de mão.

5 O campo mercadológico, tanto pelos objetos que tem analisado (jornal, cartaz, panfl eto, música, vídeo, websi-te e artefatos em geral) quanto por sua tessitura enunciativa (que supõe a primazia do actante coletivo), pode ser situado no interior do campo midiático, que seria responsável pelo instrumental (os gêneros e os formatos das diversas mídias) que a empresa, seja organização pública ou privada, dispõe para comunicar-se com seus destinatários.

6 A esse respeito, é exemplar a frase visionária de Floch (1990: 12): “A semiótica pode ajudar a administrar um sucesso”.

Semiótica midiática e níveis de pertinência | 105

Cenas práticas

Situando a cena predicativa das práticas como o termo mediador entre o

mundo “palpável” dos objetos e a dimensão pragmático-cognitiva das estraté-

gias, Fontanille certamente avança na construção de uma teoria semiótica que

possa abordar as práticas sem perder o caráter científi co de seu projeto como

disciplina, o que é garantido por sua articulação com os demais níveis de perti-

nência. Em uma entrevista de Fontanille a Portela (2006: 181), pode-se encon-

trar uma defi nição sintética de prática semiótica:

Uma prática é constituída em sua superfície por um conjunto de atos,

cuja signifi cação raramente é conhecida de antemão, e que se constrói

“em tempo real” por adaptações desses atos em relação uns aos outros.

Ela se defi ne também por sua temática principal, que fornece o “predi-

cado” central da prática, ao redor do qual se organiza um dispositivo ac-

tancial que compreende um operador, um objetivo e, sobretudo, outras

práticas com as quais a prática de base interage.

Assim, por meio de uma programação prévia que prevê sucessivas adapta-

ções (ajustamentos) e combinações com outras práticas, a cena predicativa es-

tabiliza o sentido da signifi cação valendo-se de uma narrativização da situação

semiótica, que faz as vezes de “contexto” do texto prático.7

A importância da experiência prática na compreensão da mídia revela-se

pertinente, por exemplo, nos trabalhos de Oliveira (2006a; 2006b) que estudam

o jornal impresso tanto em sua plasticidade quanto na experiência corporal for-

necida por sua leitura. De maneira semelhante, é com a cena predicativa e sua

experiência prática que estamos lidando quando Diniz (2002) refl ete sobre as

práticas orais e escritas e seus estereótipos consagrados pelo uso, investigan-

do sua manifestação no telejornal. Ainda no domínio da mídia televisiva, é só

pensar na maneira como o mobiliário de um programa de comportamento e

sua distribuição topológica participam das práticas de troca conversacional do

apresentador com os entrevistados, com o auditório e com os telespectadores

(Soldi, 2008).

7 A semiotização do “contexto” em situação semiótica (Landowski, 1989: 189-99; 2004: 15-37) é amplamente aceita na semiótica atual, que se preocupa, aliás, em desvencilhar-se da noção de “contexto”, que supõe um acréscimo exterior ao texto propriamente dito e não uma mudança de nível de pertinência da ordem da conti-nuidade do fenômeno semiótico. Cf. Fontanille (2008; 2007).

106 | Jean Cristtus Portela

A inteligência estratégica e sua conjuntura

A experiência da conjuntura produz o nível de pertinência da estratégia,

que, segundo Montbrial e Klein (2000: 527), é “a ciência da ação humana aca-

bada, voluntária e difícil”. A ação estratégica é acabada, pois exige uma visão de

conjunto tanto do objeto da estratégia (uma batalha, a inserção de um produto

no mercado, a organização da grade de programação) quanto do plano estra-

tégico (a invasão na calada da noite, a inovação na propaganda, a alternância e

a repetição de determinados programas em detrimento de outros). É também

voluntária, pois, mesmo quando subsumida pelo /dever/, exige um /querer-ser/

e um /querer-fazer/. Em ambos os casos o esforço para a aquisição do objeto é

consciente, orientado e sistemático. E é difícil, porque pressupõe uma disjunção

entre sujeito e objeto, que só um planejamento efi ciente (uma estratégia) poderá

reverter. Assim, o caminho ou método que conduz ao sucesso aparece como um

quebra-cabeça, um enigma, um código, um obstáculo que é preciso conhecer,

dominar ou explicar.

Como toda teoria consiste em uma solução/programação racional e efi -

ciente de um problema, a semiótica já se situa, por princípio, como ciência in-

terpretativa estratégica: ela identifi ca, descreve e analisa as semióticas-objeto,

buscando a estratégia enunciativa e enunciva (Greimas; Courtés, 1979) que lhes

permite existir no âmbito da cultura. Além dessa dimensão estratégica interpre-

tativa, é preciso reconhecer na semiótica uma dimensão estratégica produtiva,

que permite que o semioticista não só classifi que a existência semiótica de uma

semiótica-objeto, mas diga algo sobre seu devir e seus usos na cultura, a exem-

plo do manual de webdesign de Pignier e Drouillat (2004), que é inteiramente

embasado em análises semióticas.

Passando a um outro domínio, o das narrativas audiovisuais fi ccionais, te-

mos, por exemplo, o problema da oscilação da audiência ocasionada por va-

riações no enredo: a história de amor impossível, mas plausível, aumenta o in-

teresse do público; as personagens de um núcleo de novela que não está bem

entrosado na trama atraem pouco interesse. Nesse caso, valendo-se do pensa-

mento estratégico, é possível conceber novas narrativas que explorem os mo-

tivos já consagrados pelos telespectadores ou, ainda, avaliar o risco assumido

na criação de novos programas e formatos. É o que se pode chamar de aspecto

prospectivo ou preditivo da semiótica estratégica.

Semiótica midiática e níveis de pertinência | 107

Forma de vida e sentido da existência

Concebido para ser o penúltimo patamar dos níveis de pertinência, na po-

sição que antecede à instância formal da cultura, a forma de vida é, na verdade,

o último nível em que se pode operar semioticamente, se se leva em conta que

a cultura em si é uma unidade difi cilmente decomponível e analisável, a não ser

pelo exame dos seis níveis de pertinência que ela subsume e sincretiza. Tanto

isso é verdade que em Fontanille (2005), por exemplo, a instância formal da

cultura, que é produzida pela experiência da identidade espaço-temporal coleti-

va, não fi gura como nível de pertinência, ao contrário de sua proposta original

(Fontanille, 2004), que previa um lugar para a cultura na economia geral do

percurso gerativo do plano da expressão.

Novamente se está diante de um nível de pertinência já conhecido em semi-

ótica, embora pouco praticado em termos de análise desde a sua concepção, que

remonta ao começo dos anos 1990 (Fontanille, 1993), década ao fi nal da qual

o conceito de forma de vida acabou por ser incluído como verbete na espécie

particular de terceiro dicionário de semiótica que é Tensão e Signifi cação (1998),

de Fontanille e Zilberberg (2001: 203-26).

Como se sabe, na origem do conceito de forma de vida está o pensamento

de L. Wittgenstein sobre a integração da signifi cação em uma rede conceitual de

uso e reconhecimento, que ele assim discrimina (apud Fontanille; Zilberberg,

2001: 203):

Expressões → Usos → Jogos de linguagem → Formas de vida

Assim, as formas de vida são o termo resultante (a condensação discursi-

va) de uma operação complexa de esquematização que parte da materialidade

dos enunciados lingüísticos, passa pela realização social de seus usos e chega a

enunciados mais gerais que os condensam na forma de um jogo codifi cado de

linguagem potencial, característico da práxis enunciativa.

As formas de vida estudadas até o momento – o belo gesto, a armadilha, o

absurdo, a precisão, a marginalidade (todas formas de vida analisadas no núme-

ro da revista RSSI, que Fontanille (1993) apresenta), a parábola (Greimas, 1993),

o jardim (Zilberberg, 1996), a aventura de Tintin no Tibete (Floch, 1997: 196-

208) e as drogas (Alonso, 2006), para citar as mais conhecidas – dão um indício

da diversidade de manifestações que uma forma de vida pode assumir.

108 | Jean Cristtus Portela

No domínio das mídias, a utilidade do conceito de forma de vida surge,

no limite, como uma necessidade real de explicação de alguns fenômenos, tais

como: (1) o comportamento e o ethos dos personagens emblemáticos (astros,

apresentadores, políticos, jogadores e demais heróis de ocasião) e de seus fãs; (2)

o ethos dos apresentadores de tevê, dos radialistas, dos blogueiros e dos podcas-

ters; (3) as formas de vida que presidem a organização dos gêneros e formatos

midiáticos consagrados:8 a forma de vida investigativa ou denunciativa, no caso

dos programas que exercitam o documentário, a forma de vida descomprome-

tida e iconoclasta, no caso de certos programas de humor ou, ainda, a forma de

vida didática baseada na auto-ajuda, exercitada por programas sobre comida,

vida familiar e sexual, cultura geral, etc.

O devir do percurso gerativo da expressão

Há três coisas que eu vejo, investigações que gostaria de empreender e

que eu lego às gerações futuras. Em primeiro lugar, a semiótica discur-

siva resta por fazer [...]. Por outro lado, não esqueçamos que o plano do

signifi cante, da expressão, não foi ainda estudado semioticamente [...].

Portanto, é preciso considerar, de um lado, a semiótica discursiva sobre

o plano do conteúdo e, de outro, o percurso gerativo do plano da expres-

são: fazer algo equivalente ao que existe para o plano do conteúdo. Em

terceiro lugar, há o que eu chamei recentemente de aventura axiológica.

A. J. Greimas (1986: 56-7)

O percurso proposto por Fontanille está, em verdade, longe de ser um

percurso defi nitivo9 ou de ser tão operacional quanto o percurso gerativo do

sentido, que, além de delimitar os níveis de pertinência de análise, contém as

instruções mínimas da constituição da semântica e da sintaxe de cada nível. Os

níveis do percurso da expressão fontanilliano podem ser analisados, isolada ou

conjuntamente, segundo a grade de leitura do percurso gerativo do sentido. Por

um lado, isso mostra a continuidade e a compatibilidade da semiótica clássica

com os novos desdobramentos da semiótica atual, por outro, uma suspeita justi-

fi cada pode tomar de assalto o espírito do semioticista: não seria preciso desen-

volver novos instrumentos teóricos para analisar novos níveis de pertinência? A

8 No caso da televisão, a proposta de organização dos gêneros televisivos de François Jost (1999: 21-34), que prevê a existência dos modos lúdico, autentifi cante (real) e fi ccional, pode servir de base para uma abordagem socioletal das formas de vida, em detrimento das abordagens de cunho idioletal que até hoje predominaram.

9 Nesse sentido, são oportunas as críticas que lhe fazem Sémir Badir (2006; 2007; 2008) para quem o percurso da expressão de Fontanille mistura expressão e conteúdo e não leva em consideração a distinção entre práticas interpretativas e práticas produtivas.

Semiótica midiática e níveis de pertinência | 109

pergunta a essa resposta virá certamente com o tempo: tempo de análise e veri-

fi cação, tempo de experimentação, partilha e consolidação do saber semiótico.

O devir do percurso gerativo da expressão seguirá de perto o devir da pró-

pria semiótica e dependerá, entre outros fatores, do lugar que a semiótica ocu-

pará em um futuro próximo nas ciências humanas e sociais, na medida em que

a elaboração dos níveis de pertinência de que trata uma disciplina está intima-

mente ligada à maneira como a disciplina recorta o campo científi co.

Diante da produção constante e fecunda e de sua penetração generalizada

na elaboração dos novos desdobramentos em semiótica geral, à semiótica mi-

diática caberá provavelmente a tarefa de liderar o projeto que estabelecerá os

limites da atuação da semiótica enquanto aventura axiológica.

110 | Jean Cristtus Portela

ANEXO

Semiótica midiática e níveis de pertinência | 111

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Parte II

JORNALISMO IMPRESSO E TELEVISADO

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 119

CARTAS NA MÍDIA IMPRESSA Uma prática semiótica entre leitores e editores

Matheus Nogueira SchwartzmannMariza Bianconcini Teixeira Mendes

Os editoriais e as cartas de leitores são semióticas-objeto semelhantes e

fazem parte de uma prática que, nos jornais e revistas impressas, tem função

enunciativa importante na comunicação entre sujeitos que se consideram se não

“praticamente” amigos, ao menos parceiros de um bate-papo e troca de opinião.

Tanto os editoriais, que muitos órgãos de imprensa chamam de “carta aos leito-

res”, mostrando eles próprios o fenômeno que vamos analisar, quanto as cartas

dirigidas aos editores e ao grande público, fazem parte da matéria opinativa

na distribuição dos textos jornalísticos, constituindo uma espécie de gênero de

discurso midíático. Na verdade, a única diferença entre estes e outros textos

opinativos está no sujeito enunciante, geralmente corporativo-profi ssional no

primeiro caso e individual-amador no segundo, já que os destinatários, também

chamados em semiótica de co-enunciadores, são sempre potencialmente gené-

ricos e coletivos, para todos os casos.

Mesmo que nos outros meios de comunicação de massa – das novas mídias

audiovisuais às novíssimas hipermídias – possa haver uma troca de opiniões

entre enunciadores e enunciatários, é apenas o jornalismo impresso que a orga-

niza como prática muito antiga, dando-lhe visibilidade em espaços consagrados

pelo hábito, com formatos e títulos diversifi cados, mas sempre vistos como uma

correspondência explícita entre editores e leitores.

120 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

Lembremos ainda que, apesar das profecias sobre a provável extinção do

jornalismo impresso desde a invenção do rádio, sua sobrevivência em nossos

dias é uma vitória da linguagem escrita em papel e tinta sobre a linguagem oral

e a audiovisual. Para muitos, realmente é um feito notável, já que de certa for-

ma as novas mídias tinham grandes chances de ganhar a disputa pelos leitores-

consumidores, graças a seus recursos expressivos e estilísticos sincréticos, que

seduzem destinadores e destinatários do discurso de forma sempre provocante,

por conta de um maior “apelo emocional”.

Para desenvolver nossa proposta de pesquisa e dar encaminhamento à aná-

lise dos textos em questão, extraídos de alguns veículos de comunicação da mí-

dia impressa, temos que dar primeiramente dois passos importantes: (1) buscar

os fundamentos da teoria semiótica que defi nem a carta como um meio de co-

municação – tão antigo quanto a invenção da escrita, mas também tão atual em

sua forma de sobrevivência nos meios eletrônicos – e (2) realizar a difícil tarefa

de escolher nossos objetos de estudo, em um universo amplo e diversifi cado,

construído e mantido pela prática do contato diário, semanal ou mensal entre

editores e leitores.

A CARTA COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO ESCRITA

A carta, no seu mais amplo sentido, embora detentora de uma forma de ex-

pressão relativamente estável (uso da escrita, datação, abertura e fechamento),

que poderíamos chamar de canônica, é um tipo de texto bastante maleável e

articulável, pois jamais assume uma confi guração totalmente fi xa e única. Pode-

mos dizer ainda que, independentemente de sua fi nalidade ou intencionalidade,

esse objeto de comunicação é, com muita freqüência e justamente por conta de

sua natureza “imprecisa”, tratado das mais diversas maneiras: para alguns seria

um mero documento, testemunho de uma realidade histórica, política, econô-

mica ou literária, e para outros, portador de um repertório íntimo, confessio-

nal, sentimental e passional. No caso deste trabalho, estamos considerando dois

tipos de carta que têm mais pontos convergentes do que divergentes: tanto o

editorial como a carta do leitor, embora na aparência dirijam-se a “destinatários

concretos”, na essência têm como “destinatários virtuais” um grande número de

possíveis leitores.

Greimas, em seu prefácio à edição dos artigos do Colóquio Interdiscipli-

nar de Friburgo dedicado às cartas, já nos chamava a atenção para o adjetivo

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 121

“heterogêneo” – segundo ele, inapropriado – que comumente atribuímos a essa

semiótica-objeto. No entanto, o simples reconhecimento da versatilidade da

carta não nos leva muito longe. É preciso buscar a invariabilidade, aquilo que

possa defi nir, na comunicação epistolar como um todo, os traços recorrentes e

as formas constantes:

Evidentemente, a troca epistolar é un fenômeno cultural, circunscrito e

variável no tempo e espaço sociais. Em nosso contexto ocidental ela se

organizou inicialmente como uma instituição fortemente regulamenta-

da, como uma axio-tipologia do saber-fazer epistolar […] obedecendo a

dois critérios de classifi cação cruzados: uma temática, segundo o tipo de

discurso focalizado: familiar, comercial, político, religioso, e uma mor-

fologia gradual dos destinatários: público/privado, inferior/superior, ho-

mens/mulheres (Greimas, 1988: 5).1

Essa “instituição” constitui, na verdade, uma prática semiótica que, enquan-

to tal, tem seus contornos defi nidos dentro de uma tradição cultural, razão pela

qual obedece a determinados critérios classifi catórios. No Dicionário I, de Grei-

mas e Courtés (1983: 344-5), encontramos uma defi nição para as práticas semi-

óticas, que seriam:

os processos semióticos reconhecíveis no interior do mundo natural e

defi níveis de modo comparável aos discursos [...]. As práticas semióti-

cas (que se pode igualmente qualifi car de sociais) apresentam-se como

seqüências signifi cantes de comportamentos somáticos organizados [...].

Os modos de organização desses comportamentos podem ser analisados

como programas (narrativos) cuja fi nalidade só se reconhece a posteriori

(Greimas; Courtés, 1983: 344-5).

Desse modo, podemos considerar a troca epistolar que ocorre na mídia

impressa como uma prática semiótica, no sentido que lhe dá J. Fontanille (ver

artigo nesta coletânea), ou seja, um comportamento regido por valores socio-

culturais, e tomá-la como uma espécie de comunicação ao mesmo tempo pú-

blica e particular – testemunhando tanto uma objetividade vinda do “exterior”

quanto uma subjetividade construída no “interior”, íntima e passional – tipos de

discurso previstos na referida classifi cação de Greimas, segundo a “morfologia”

dos destinatários. Dentro dessa prática, que é um simulacro singular das mais

diversas situações de comunicação, teríamos a confi guração de uma integração

1 Para as obras que não têm versão em língua portuguesa, as citações baseiam-se em traduções feitas especial-mente para este trabalho.

122 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

social específi ca: a interação entre editores e leitores da mídia impressa, exposta

no próprio veículo de comunicação, de forma muitas vezes surpreendente.

Para defi nir como se processa a interação entre editores e leitores nos edito-

riais e cartas, vejamos primeiramente como Greimas e Courtés defi nem a inte-

ração, do ponto de vista semiótico, no Dicionário II:

Na teoria semiótica da ação, entende-se por interação a confrontação

entre o modo de agir de dois sujeitos distintos. A interação pode dar-

se, assim, entre dois sujeitos autônomos ou independentes, porém in-

terdependentes no que se refere a suas intencionalidades [...] (Greimas;

Courtés, 1986:116).

Podemos perceber, assim, que o que se passa com as cartas na mídia im-

pressa assemelha-se muito à defi nição semiótica de interação, que é uma troca

regida pelas competências modais e cognitivas, entre dois sujeitos colocados

em presença. Mas no nosso caso, a preocupação primeira é essa “colocação em

presença”, já que se trata na verdade de uma relação entre sujeitos disjuntos no

tempo e no espaço. A troca epistolar é uma forma de comunicação que simula

textualmente alguns dos processos mais gerais da interação comunicacional por

manifestar marcas tanto de uma enunciação enunciada, que reproduz o fazer

enunciativo no discurso, quanto de uma práxis enunciativa, que é o pressuposto

lógico do enunciado.

A práxis desenvolve-se e fi xa-se no campo do discurso, que é o domínio es-

paço-temporal em que são geradas as confi gurações propriamente semióticas:

o percurso gerativo do sentido, com destaque para temas, fi guras e isotopias do

nível discursivo. E para que exista comunicação entre dois sujeitos, individuais

ou coletivos, é preciso que um mesmo campo discursivo seja estabelecido entre

eles. No caso das situações de comunicação em estudo – editoriais e cartas de

leitores – cada texto está englobado num contexto maior, que implica tanto a

linha editorial do órgão de imprensa quanto seu público alvo.

É nesse campo que se dão as trocas, a passional e a axiológica: o escritor-

destinador tem sempre algo a dizer e o leitor-destinatário tem sempre algum

interesse, ainda que potencial, na leitura da carta. Esse interesse é regulado pelos

valores cognitivos, pragmáticos e especialmente afetivos que o campo comu-

nicacional construído pela revista põe em causa. Podemos ver, dessa maneira,

que a carta só tem sentido se for escrita em função de um outro, de um leitor

pressuposto. Mais uma vez tal tipo de interação parece-nos concretizar um ato

de comunicação humana e seu modo de produção de sentido, já que eviden-

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 123

cia, no próprio ato de escrita da carta, alguns dos seus elementos processuais,

textualizando-os nos vocativos comumente empregados, que estabelecem uma

espécie de presença “real”.

Para entender melhor como isso é possível, é preciso observar como Lan-

dowski trata duas questões que, na comunicação por carta, são primordiais, a

constituição de um “outro” (o interlocutor) e o processo de interação:

Se o sentido nasce da relação com o outro, como se constrói aquilo que

preenche, caso por caso, o lugar e a função desse “outro”, fazendo sentido

precisamente como outro? Com efeito, graças a qual privilégio a “alteri-

dade” […] poderia ser dada e não construída, como todos os outros efei-

tos de sentido, e em ato, favorecendo alguma interação “com o Outro” ?

Para não entrar num processo sem fi m, estabeleçamos por um lado [...]

que a alteridade do outro é evidentemente sempre relativa, ou seja, cons-

truída do ponto de vista de um sujeito de referência, e por outro lado,

que do ponto de vista desse sujeito aparecerá “como outro” simplesmente

aquilo com que ele interage (Landowski, 2004: 32).

Ou seja, a partir do momento em que um sujeito decide interagir em algu-

ma situação, constrói e instaura, para si mesmo, um “outro” com quem possa

manter essa interação. Fica evidente, assim, como a troca de cartas na mídia

impressa é baseada nesse processo de interação com o outro.

A DEFINIÇÃO DO NOSSO OBJETO DE ANÁLISE

Tomamos como objeto de estudo as diversas formas de organização dos edi-

toriais e das seções de cartas dos leitores em algumas revistas impressas da atu-

alidade brasileira. Os modos de presença desses textos epistolares num meio de

comunicação de massa têm a ver com alguns fatores: (1) as relações enunciativas

entre editores e leitores, (2) a linha editorial da revista e (3) os efeitos de sentido

dos discursos vindos de ambos os lados, de dentro e de fora da redação. São to-

dos fatores que consolidam o “diálogo midiático” como prática interativa.

Para fazer uma triagem entre várias revistas da nossa mídia impressa, e

já deixando à mostra alguns objetivos do trabalho, nossa primeira decisão foi

não tomar como objeto de análise as mais conhecidas e de maior tiragem. O

primeiro motivo da decisão é que muitas delas já foram tomadas como obje-

tos de vários estudos, semióticos ou não, vindo em segundo lugar uma razão

de ordem axiológica: as revistas instaladas e consagradas há décadas são de-

124 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

masiadamente marcadas pelo cunho mercadológico e ideológico das grandes

empresas a que pertencem, o que poderia tornar a análise um tanto óbvia e,

talvez, até desnecessária.

Resolvemos, portanto, visitar os editoriais e seções de cartas dos leitores das

revistas mensais Caros Amigos (Editora Casa Amarela, 12 anos de existência e

40.000 exemplares) e Revista do Brasil (Atitude Editora Gráfi ca, 2 anos e 360.000

exemplares), ambas com o mesmo caráter de matérias noticiosas e opinativas

sobre assuntos de interesse geral no país e no mundo. Outro ponto em comum

entre as duas revistas é o pequeno número de anúncios comerciais, em compa-

ração com as congêneres da “mídia grande” (termo posto em uso pela própria

Caros Amigos). Visitamos ainda algumas revistas de linha editorial voltada para

interesses científi cos, produzidas nesse caso por grandes empresas jornalísti-

cas, com tiragens razoáveis, como a Superinteressante (Editora Abril, 20 anos,

440.500 exemplares) e a Galileu (Editora Globo, 17 anos – antiga Globo ciência,

170.00 exemplares).

O objetivo de nossa busca em quatro publicações, com pares semelhantes

quanto à organização jornalística, era descobrir, de um lado, se a publicação

das cartas dos editores e dos leitores seguia sempre uma linha de conduta que

obedecesse ao mesmo tipo de prática e, de outro lado, como se dava o cru-

zamento com outras práticas possíveis, oriundas de formas de vida distintas,

fossem elas individuais (construídas pelos leitores) ou corporativas (construí-

das pelos editorialistas).

SISTEMATIZAÇÃO E CONFLUÊNCIA DAS PRÁTICAS

Vamos partir de uma descrição geral das formas de organização dos edi-

toriais e das cartas dos leitores nas revistas que escolhemos como corpus de

nossa pesquisa, para chegar à análise de casos especiais de “diálogo” entre leitor

e editor. Nesse percurso analítico partiremos em busca de um argumento fi nal

que justifi que as considerações feitas até aqui, principalmente a respeito do con-

ceito de prática semiótica. Nosso instrumento de análise será o percurso gerativo

do plano da expressão, formalizado por J. Fontanille, que prevê seis níveis de

pertinência, partindo do mais simples e concreto ao mais complexo e abstrato:

(1) signos e fi guras, (2) textos-enunciados, (3) objetos e suportes, (4) práticas e

cenas, (5) situações e estratégias, (6) formas de vida.

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 125

A tabela abaixo, com base em uma segmentação temática e topológica, pode

mostrar como as práticas em questão são organizadas em cada revista:

Título da revista

Título da Seçãodo Editorial

Título da Seção de Cartas dos leitores

Posição do/das Editorial/Cartas

Caros Amigos sem título de seção “Caros leitores” antes/depois

Revista do Brasil “Carta ao leitor” “Cartas” depois/antes

Superinteressante “Agora escuta” “Desabafa” depois/antes

Galileu “Da redação” “Fale com a gente” antes/depois

Podemos perceber que as duas primeiras revistas da tabela optam por um es-

quema canônico, mais próximo da prática epistolar, fórmula que parece ser a mais

freqüente na mídia impressa em geral. As outras duas “importam” outras práti-

cas, ligadas certamente à comunicação epistolar, mas com um estilo de linguagem

oral, buscando provavelmente fortalecer sua relação com o público jovem.

Para melhor explanação de nossa análise, vamos dividi-la em duas partes.

Na primeira, a que nos interessa de modo especial, vamos descrever como se

constroem, no espaço jornalístico, os editoriais e as seções de cartas dos leitores

nas duas revistas de noticiário geral: Caros Amigos e Revista do Brasil. Na segun-

da parte, vamos examinar as duas revistas ditas “científi cas”: Superinteressante

e Galileu. Mas é preciso dizer que tal cientifi cidade aparece diluída, sem pro-

fundidade, satisfazendo um público de “consumação rápida”, que busca apenas

curiosidades científi cas.

Convém ainda ressaltar que, no caso das duas últimas, há uma profusão

de anúncios comerciais, algumas vezes disfarçados de “matérias científi cas”, ou-

tras vezes incorporados à própria identidade da revista (no uso das cores, por

exemplo). Esse procedimento aponta para uma busca de “efi ciência” na prática

publicitária dentro da prática jornalista. Essa efi ciência inclui também, eviden-

temente em todas as ocorrências semelhantes na mídia impressa, a forma como

as cartas publicadas são escolhidas em cada edição, sempre segundo um cri-

tério preestabelecido pelos editores. Tal critério manifesta-se no fato de que,

comumente, as cartas selecionadas ou contêm elogios para o próprio órgão de

imprensa, ou favorecem de algum modo a construção de sua identidade, fun-

cionando também como uma alternativa de autopromoção.

126 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

CAROS AMIGOS E REVISTA DO BRASIL

Caros Amigos, uma revista já bastante conhecida do público, embora de

pequena tiragem, traz no próprio nome o já mencionado “vocativo das cartas”,

ilustrando a teoria desenvolvida neste trabalho. A revista certamente constrói

a idéia de correspondência entre leitores e editores, oferecendo-se como uma

“carta aberta”, que evidencia dois aspectos importantes, ligados em maior ou

menor grau à própria axiologia por ela construída: (1) a transparência de seu

processo editorial e sua conseqüente idoneidade e (2) a instauração da igual-

dade entre os participantes dessa troca comunicacional, duas características que

a diferenciariam de outras revistas similares.

O editorial da revista surge na primeira página interna, à esquerda do su-

mário, sem as defi nições costumeiras de “carta do editor” ou “carta ao leitor”. O

título varia, pois está sempre relacionado ao assunto principal da edição, que

nem sempre é a “matéria de capa”. A seção de cartas vem na página seguinte e

tem um título “carinhoso”, que reforça a isotopia semântica criada pelo nome

da revista: “Caros Leitores”. É justamente numa dessas seções de cartas à reda-

ção (edição nº 137, agosto 2008) que encontramos o exemplo mais expressivo

de “diálogo” entre leitor e editor. Um leitor manifestou sua “consternação, mas

infelizmente sem surpresas”, ao ver que “uma parte da imprensa da esquerda

brasileira continua à venda sempre por um preço de ocasião”.

A decepção fora causada por um anúncio da empresa Vale que, para o autor

da carta, “não tem idoneidade moral, incorreu nos mais graves erros, trapaças

e sujeiras”. E para pôr em xeque o “esquerdismo da revista”, concluiu: “É lícito

aceitar dinheiro de quem não ‘vale’ nada?”. Logo abaixo, vem uma Nota da reda-

ção: “O prezado leitor esquece que, embora sejamos socialistas, temos de pagar

as contas”. E depois de mostrar, em números, os custos de cada edição, o editor

usa o argumento mais forte de sua autodefesa: “O mais importante é que publi-

camos anúncio da Vale mas continuamos uma revista independente. E a primei-

ra à esquerda”. Termina o desabafo com uma espécie de afago-desafi o bastante

comum em desavenças entre “amigos”: “Observe este número. Continue nos

honrando com sua preferência. E verifi que se mudaremos um milímetro nossa

linha”. O mais interessante nessa troca de cartas é o fato de o leitor ter ignorado

o editorial da edição anterior (nº 136, julho 2008), exatamente a que trazia, logo

nas primeiras páginas, o anúncio polêmico. É uma situação talvez inédita na

mídia impressa, em que o editor “lamenta” o aumento do preço do seu produto,

como podemos ver em seguida:

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 127

Após 18 meses com preço de capa de R$ 8,90, tivemos de passar a R$

9,90. Mesmo assim, aumentamos 11,2% contra IGPM de 12,5% - além do

quê, os maiores aumentos incidiram sobre nossos principais custos: pa-

pel, impressão e transporte. Lamentamos, mas não deu mais pra segurar

(grifo nosso).

Já em outra edição (nº 130, janeiro 2008), o editorial tinha um título intri-

gante – “feliz ano novo?” – e expunha aos leitores, como fazemos com amigos

íntimos, a difícil situação fi nanceira da empresa e suas razões: “a receita de pu-

blicidade nas páginas de Caros Amigos não cobre os nossos custos”. Ao dizer

que a empresa não conseguia o mínimo de anúncios para ir em frente, o editor

acrescentava que a colocação era feita segundo um “princípio jornalístico aber-

to, sem peias e quase íntimo com o leitor”. Como vemos, a Caros Amigos vale-se,

mais que suas congêneres, do artifício epistolar, para caminhar na direção de

uma diluição da força editorial e de uma concentração da força dos leitores,

fi gurativizados na revista como os “caros amigos” e também como os “articulis-

tas-amigos” que dela participam.

A segunda revista noticiosa, com um nome óbvio, mas sugestivo – Revista

do Brasil – é uma publicação recente: surgiu há dois anos, com distribuição

gratuita para os sindicatos que a patrocinam, bem como para os associados que

reivindicam a entrega domiciliar. A venda nas bancas, pela metade do preço

normal de uma revista do mesmo tipo, começou em junho de 2008. A revista

dá espaço ao editorial – anunciado como “Carta ao leitor”, mas com um título

relacionado ao tema principal da edição – na primeira página, à direita do su-

mário, que se chama “Conteúdo”. A seção dos leitores chama-se simplesmente

“Cartas” e vem na segunda página, ao lado dos créditos da publicação. A pre-

sença da foto da capa da edição anterior (à qual se refere a maioria das cartas

de leitores) é uma prática comum em quase todas as revistas, mas só nesta no-

tamos fotos de várias edições, inclusive no espaço do editor, funcionando como

“autopromoção”, justamente por ser uma publicação recente. O “diálogo” a ser

destacado está no desafi o de um leitor pró-FHC, que aproveita para questionar

a “gramática” da redação:

Até gosto de alguns bons artigos publicados por vocês (grifo nosso).

Quando FHC fala que quer brasileiros “melhor educados” ele se refere

à formação escolar, melhor educados nas escolas [...] e não “mais bem

educado”, cujo antônimo é mal-educado. Percebe-se que vocês são pró-

Lula, mas acho que o “Por qué non te callas?” vai para vocês [...] (RdB,

nº 21, fevereiro 2008).

128 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

A resposta, na “Nota da redação”, é muito sutil, pois se atém ao aspecto

gramatical, ignorando o comentário sobre partidarismo político: “Segundo a

Gramática de Base, de Celso Cunha, advérbios comparativos regulares ‘mais

bem’ e ‘mais mal’ são usados antes de adjetivos-particípios”. A polêmica surgiu

em virtude de um comentário na seção “Resumo” da revista (nº 19, dezembro

2007), a respeito da discreta e constrangida repercussão na mídia sobre a “gros-

seria de FHC, que em evento de seu partido disse que quer brasileiros melhor

educados (grifo da revista) e não brasileiros liderados por gente que despreza a

educação, a começar pela própria”.

É interessante notar que a revista é dirigida e editada por sindicalistas, e

nada mais justo que priorizar então a palavra de uma maioria de “brasileiros”,

como a própria revista diz em sua primeira edição, ao comentar como ela foi

concebida e criada:

Este é o primeiro número da Revista do Brasil, que será distribuída a cer-

ca de 360 mil sócios dos sindicatos participantes deste novo projeto de

comunicação popular. Ele vem à luz depois de longo período de gestação

– em que dirigentes, jornalistas e apoiadores (grifo nosso) realizaram um

sem-número de debates em busca de sua identidade editorial, seu dese-

nho gráfi co, seu nome e os temas que ocuparão suas páginas neste e nos

próximos números. A revista começa a circular mensalmente, com 36 pá-

ginas (RdB, nº 1, maio 2006).

Nossa análise quer ver como a revista se vê: talvez seja por sua crença na

pluralidade de opiniões que o conselho editorial é formado por representantes

de diversos sindicatos. Do ponto de vista da prática editorial e seu cruzamento

com a prática epistolar, podemos dizer que a Revista do Brasil é a mais tradicio-

nal entre os exemplos que analisamos: apresenta-se, logo de início, numa carta

editorial e abre espaço, na seqüência, para as cartas dos leitores. Não há novida-

de nos títulos, nem ruptura com a ordem “editorial + cartas dos leitores”, a mais

freqüente na mídia impressa de um modo geral. No entanto, dentro dessa regra,

encontramos ao menos uma exceção, já que na edição de dezembro de 2007, por

um lapso, um erro de diagramação ou talvez intencionalmente, há uma quebra

da norma, que só faz confi rmar nossa hipótese: as cartas dos leitores passam à

frente, surgindo antes do sumário e do editorial, sugerindo, embora num caso

isolado, que são eles, os leitores, que encaminham a linha editorial da revista.

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 129

SUPERINTERESSANTE E GALILEU

Na Superinteressante, a mais original nos títulos das seções em foco, o sumá-

rio chama-se [CARDÁPIO] – “As opções do mês”, reforçando nossa classifi cação

da revista como “alimento de consumação rápida”. A seção dos leitores exibe o

título [DESABAFA] – “Solte o verbo”, e às vezes ocupa duas páginas inteiras. Os

editoriais vêm depois, com o interessante título [AGORA ESCUTA] – “Direto da

redação”, ao lado dos créditos próprios de uma publicação da Editora Abril.

As cartas dos leitores são apresentadas antes do editorial, depois de uma

seqüência de anúncios. O título “Desabafa” remete a uma prática falada, como

se a revista, ao invés de cartas, propusesse um bate-papo com os leitores – jo-

vens em sua maioria. A oralidade e o bate-papo estão confi rmados no título do

editorial, como se os editores dissessem “Você desabafou? Agora escuta”. Essa

informalidade procura escapar do ambiente restrito da mídia impressa, pois a

revista propõe a leitura de sua página na internet, numa espécie de “contágio”

(Landowski, 2004) entre seu suporte de papel, estático e concreto, e a prática

dinâmica e virtual da internet. Tal dinamismo aparece em diversas seções da

revista, nem sempre “linkadas” com a internet, como a própria seção de cartas

dos leitores, em que podemos ver uma nota, dentro de um círculo, indicando

quantas mensagens a revista recebeu, o que nos lembra certamente os contado-

res de acesso dos sites e blogs. Uma coluna comenta o teor da maioria das cartas

recebidas sobre a edição anterior e há ainda um espaço para a correção de erros

da edição passada. Dessa maneira, a leitura não é apenas linear, o olho do leitor

pode passear pelas diversas regiões da página, sem seguir necessariamente uma

ordem de leitura tradicional, da esquerda para a direita, de cima para baixo. Mas

essa observação pode ser feita a respeito da mídia impressa em geral, talvez pela

própria prática da leitura de hipertextos, nos dias atuais.

Por todos esses aspectos, a Superinteressante acaba sendo uma revista “rui-

dosa”, pela alta quantidade de informações que ela pretende veicular, mais uma

vez nos lembrando a internet. E, assim como acontece no mundo virtual, o au-

mento na quantidade de textos, imagens e infográfi cos impõe, no suporte mate-

rial do texto escrito, uma diminuição da profundidade dos temas. A linguagem

informal entre amigos, proposta nas seções de abertura das revistas (trocas de

cartas entre leitores e editores), frutifi ca na Superinteressante, aliando-se à sua

prática editorial, e a informalidade acaba por contagiar outras seções.

A revista Galileu, da Editora Globo, assim como a anterior, divide e mistu-

ra espaços de curiosidades científi cas, anúncios comerciais e seções epistolares.

130 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

A primeira página contém o sumário e, depois de uma propaganda de página

inteira, vem o editorial, ao lado dos créditos, com chamada no alto à esquerda

– DA REDAÇÃO – e um título relacionado ao conteúdo principal da edição.

A seção dos leitores, depois de mais uma página de propaganda, tem chama-

da semelhante – CORREIO – “Fale com a gente”. Nessa revista temos ainda

um fenômeno que, ao menos no nosso corpus, é único: o “Canto do Orkut” e

o “Canto dos blogs”, seções que passaram a chamar-se, recentemente, apenas

“Blogs” e “Orkut” e mostram claramente o “contágio” entre a mídia digital e a

mídia impressa, de que já falamos. Na edição de abril de 2008, temos ainda uma

curiosa inserção de um bate-papo por MSN, no próprio editorial. A matéria de

capa “Mal.com, o lado sombrio da internet” é comentada pelo editor, que inclui

parte da conversa dos jornalistas que fi zeram pesquisas para a reportagem. O

bate-papo aparece não apenas transcrito, mas no formato que é gerado no pró-

prio MSN.

Entretanto, por mais que haja novidade nos “cantinhos” e na inclusão de

um diálogo por MSN, as práticas em jogo na revista, a orkutiana, a blogueira e

a messengeira, têm como base fundadora a troca epistolar. No próprio Orkut, a

troca de mensagens escritas pode ser vista tanto nas comunidades que funcio-

nam como fóruns de discussão quanto nas “páginas de recados” dos usuários.

E nos blogs, a troca interativa está nos comentários de leitores sobre os textos

dos autores.

A Galileu tem um ritmo menos acelerado que a Superinteressante e menor

número de propagandas, o que acaba por privilegiar as matérias, que são mais

desenvolvidas. Finalmente podemos dizer que nessas revistas pseudo-científi cas

temos a construção de uma “forma de vida” singular: os leitores, ávidos por novi-

dades, encontram apenas um conhecimento superfi cial sobre os temas tratados.

Essas características, a curiosidade solicitante e a superfi cialidade oferecida, mar-

cam as práticas que circulam nas duas revistas, pois delas nascem os infográfi cos,

com informações condensadas e geralmente localizados nos cantos laterais das

páginas, e também as propagandas com aparência de matéria informativo-noti-

ciosa, no caso da Superinteressante, e os “cantos” no caso da Galileu.

REFLEXÕES FINAIS

Queremos crer que nossas análises mostraram o princípio de integração

entre os níveis de pertinência do percurso gerativo da expressão nas práticas de

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 131

comunicação por carta na mídia impressa. Como vimos, é nesse percurso – uma

sistematização do fenômeno semiótico da semiose – que se percebe a diferença

entre os níveis de pertinência: no nível inferior, as fi guras-signos compondo os

textos-enunciados, que se materializam nos objetos-suportes, no nosso caso,

o papel impresso. No nível superior, a práticas integram-se às estratégias (mo-

dos de manipulação enunciativa dos leitores e dos editores) e às formas de vida

(procedimentos sociais e culturais na comunicação entre editores e leitores),

buscando sempre a efi ciência e a otimização.

A efi ciência da prática epistolar na mídia impressa, analisada nas revistas

do nosso corpus, depende da construção, na dimensão enunciativa, de papéis

actanciais e actoriais preestabelecidos. No caso dos editoriais temos sempre im-

plícitos os editores como sujeitos-enunciantes, que se dirigem aos destinatários-

leitores, no papel temático de assíduos companheiros da revista, seguindo aten-

tamente a trajetória das matérias publicadas. E no caso contrário, os leitores são

os sujeitos-enunciantes, que contam com a presença de um destinatário coletivo,

o corpo editorial. No entanto, a prática torna-se realmente efi ciente quando se

adapta estrategicamente às possíveis variações a que a revista está sujeita. É essa

capacidade de adaptação estratégica (o ajustamento entre duas práticas, a epis-

tolar e a editorial) que a torna efi ciente. Mudam-se os anos, mudam-se os temas

políticos, científi cos, e as revistas mantêm-se ativas, pois para tanto se valem

de uma “prática sociossemiótica que se articula em diversos planos diferentes”

(Landowski, 2004: 213-214), já consagrada pelo uso, que é a prática epistolar.

Não importa, para a conquista dos leitores, apenas o conteúdo da revista,

mas também a forma como ela o organiza, no plano da expressão. Enquanto

mantiver a mesma organização, terá os mesmos leitores e outros mais, numa

espécie de processo de fi delização. Por essa razão, os casos pontuais que destaca-

mos, tanto da Caros Amigos, quanto da Revista do Brasil, tornam-se justamente

exemplos do processo de adaptação efi ciente de uma prática interativa: uma

seção específi ca (carta aos leitores) cede parte de seu espaço às características de

outra seção (editorial), em favor da manutenção da prática de trocas de cartas

na mídia impressa.

132 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2008; nº. 137, agosto 2008.

GALILEU. São Paulo: Globo, n°. 201, abril 2008; n°. 205, agosto 2008; n°. 206,

setembro 2008.

GREIMAS, Algirdas Julien. Préface. In: CALAME, Claude (org.). Actes du VI

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Universitaires, 1988.

GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad.

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LANDOWSKI, Eric. Passions sans nom. Paris: PUF, 2004.

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Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 133

PRÁTICAS DE DIRECIONAMENTO DO FLUXO DE ATENÇÃO NO TELEJORNAL

Juliano José de Araújo

E a própria vida ainda vai sentar sentida

vendo a vida mais vivida que vem lá da televisão.

Chico Buarque, A televisão (1967)

A televisão é hipnoticamente envolvente: qualquer movimento no ecrã

trai a nossa atenção tão automaticamente como se alguém nos tivesse tocado.

Kerckhove (1997)

INTRODUÇÃO

O telejornal desempenha na sociedade brasileira papel fundamental tanto

na produção como na divulgação de informações. A maioria da população de

nosso país informa-se diariamente sobre os principais acontecimentos de seu

cotidiano através dos telejornais, gênero televisivo que é uma espécie de pro-

pagador da “verdade” e, sempre que necessário, invocado como um argumento

seguro. As emissoras de televisão aberta têm dedicado atenção especial aos tele-

jornais1. A Rede Globo, por exemplo, conta atualmente com quatro telejornais

transmitidos em caráter nacional: Bom dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal Nacional e

Jornal da Globo. E isso sem contar os telejornais locais e os plantões que irrom-

1 É importante destacar que, conforme estabelece o decreto lei 52.795, de 31 de outubro de 1963, que trata do regulamento dos serviços de radiodifusão, as emissoras devem dedicar o mínimo de 5% do horário de sua programação diária à transmissão de notícias (Curado, 2002: 15).

134 | Juliano José de Araújo

pem o fl uxo da programação televisiva a qualquer momento.

Na esteira da Globo, as demais emissoras abertas também passaram a in-

vestir nos telejornais, que se tornaram o carro-chefe da programação das emis-

soras. Squirra (1990: 14) afi rma que “o telejornal é o tipo de programa que mais

credibilidade proporciona às emissoras. Credibilidade junto aos anunciantes

(cujos espaços para anúncios são geralmente os mais caros) e prestígio junto ao

poder político e econômico da nação”2.

Nesse contexto, o telejornal constitui-se, a nosso ver, em um terreno pro-

fícuo de análise, sobretudo se considerarmos o fato de ele ser veiculado pela

TV, único meio de comunicação de caráter realmente massivo3. Entretanto,

Machado (2005: 99-100) aponta que o telejornal talvez seja o gênero televisual

mais difícil de ser abordado. Isso acontece, segundo o autor, porque boa parte

das pesquisas sobre os telejornais restringe-se à análise de conteúdos, como por

exemplo, o método de estudo do Glasgow University Media Group, que consiste

em tabular quantas vezes um telejornal traz matérias favoráveis ao governo e

matérias contra o governo ou quanto tempo é dedicado a questões relacionadas

com a esquerda ou a direita. Tais abordagens são, em certa medida, equivoca-

das, pois partem do pressuposto de que o telespectador é ingênuo, repetindo de

forma acrítica a “intenção” da empresa ou da equipe que faz o telejornal. O autor

defende uma análise do telejornal que abstraia seus aspectos episódicos, como

por exemplo, o acompanhamento de campanhas eleitorais e as denúncias de

corrupção, e estude sua forma signifi cante, ou seja, as práticas e operações que

caracterizam esse gênero televisivo enquanto construção discursiva.

Neste artigo, propomo-nos deslocar o foco da análise dos conteúdos vei-

culados pelo telejornal para sua forma signifi cante, ou seja, sua estrutura sin-

tagmática evidenciando como esse gênero televisivo faz para captar a adesão

do telespectador e, sobretudo, para mantê-la durante sua transmissão. Nossa

hipótese de análise é que, embora o telejornal pareça revelar o predomínio das

dimensões cognitivas (que articulam formas de saber) e pragmática (que estru-

tura seqüências de ações) do discurso, ele capta a adesão de seu público, direcio-

nando seu fl uxo de atenção a partir da dimensão sensível (passional).

Para demonstrar a pertinência dessa abordagem, tomaremos uma edição

do Jornal Nacional (JN), telejornal da Rede Globo de Televisão transmitido no

2 Prova da crescente importância dos telejornais na grade de programação das emissoras pôde ser vista recen-temente com o lançamento do canal Record News, da Rede Record, que se dedica 24 horas ao jornalismo. A emissora criou um canal jornalístico nos moldes da Globo News, que está no ar desde outubro de 1996. No entanto, o Record News é veiculado na rede aberta de televisão, diferentemente da Globo News, que é um canal cujo acesso se faz mediante assinatura.

3 Segundo Capparelli e Lima (2004: 46), a Rede Globo tem uma cobertura de 99,86% dos domicílios com TV; o SBT, 97,18%; a Bandeirantes, 87,13%; e a Record, 76,67%.

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 135

horário nobre, como corpus4. O referencial teórico será a semiótica francesa, a

partir do ponto de vista do discurso em ato. O telejornal será, assim, conside-

rado como uma prática de comunicação social, inserida em nosso cotidiano

e veiculada pela TV. O percurso que desenvolveremos será o seguinte: 1) ini-

cialmente, apresentaremos algumas considerações sobre o método de análise,

a semiótica do discurso, e os elementos teóricos empregados para o estudo do

telejornal, notadamente os atuais desdobramentos da teoria, conforme sinteti-

zados por Fontanille (2007); 2) segmentaremos e analisaremos uma edição do

JN, evidenciando a estruturação e hierarquização das notícias no telejornal; e

3) apontaremos, buscando uma esquematização do modo de funcionamento

do telejornal, os esquemas tensivos que regem esse gênero televisivo5, operação

que nos permitirá identifi car as práticas que emprega para direcionar o fl uxo de

atenção do telespectador.

DO MÉTODO

A semiótica do discurso, assim como as ciências cognitivas, não pode mais ignorar

a interação do sensível e do intelígivel. Na verdade, a formação das categorias

e a signifi cação em ato são elas próprias submetidas ao regime do sensível.

Fontanille (2007: 30)

As novas tecnologias da informação garantem a onipresença dos meios de

comunicação e também possibilitam a instantaneidade da difusão da informa-

ção (Rodrigues, 1999). As mídias, sobretudo os meios eletrônicos6 (cinema, in-

ternet, rádio e televisão), estão cada vez mais presentes em nosso cotidiano,

possibilitando que nos desloquemos no espaço-tempo para qualquer lugar do

planeta e fora dele. A partir das técnicas da montagem audiovisual7, o telejornal

nos fornece um mundo plástico e dinâmico, forja uma percepção de profun-

didade e movimento, além de produzir o efeito de sentido de “realidade”. Será

que é por isso que Chico Buarque canta, na epígrafe que abre este artigo, que a

4 A edição do JN que será analisada neste artigo foi veiculada em 1º de junho de 2004.5 Para uma discussão sobre os gêneros televisivos, veja Machado (2005), em especial, o capítulo “Gêneros televisuais e o

diálogo”, p. 67-113.6 Segundo classifi cação de Briggs e Burke (2004), as mídias são classifi cadas em impressas e eletrônicas.7 É importante observarmos que o atual estágio de desenvolvimento da televisão, e de seus gêneros e formatos,

não deve ser entendido de forma isolada dos demais meios de comunicação, mas a partir das conquistas e aperfeiçoamentos de outros meios, como por exemplo, a literatura, o teatro, a música e, sobretudo, o cinema e a fotografi a (Squirra, 1990: 19). Todos esses meios, com características próprias, fornecem elementos que são empregados na televisão e engendram uma sintaxe complexa, na medida em que há uma longa tradição de diálogo e colaboração entre cinema, televisão e meios eletrônicos em geral, pois as mídias operam em um processo de interseção de linguagens (Machado, 1997: 189-190).

136 | Juliano José de Araújo

vida “que vem lá da televisão” é “mais vivida”? E o que Derrick de Kerckhove,

em uma das epígrafes que abre este artigo, quer dizer ao afi rmar que qualquer

movimento na tela da TV “atrai a nossa atenção tão automaticamente como se

alguém nos tivesse tocado”?

Tais indagações levaram-nos em direção ao conceito de discurso em ato,

perspectiva de análise relativamente recente na semiótica, em que a teoria passa

a se ocupar não apenas dos discursos não-verbais, mas também e, sobretudo, de

um conjunto de comportamentos e/ou procedimentos reconhecíveis em um dado

texto, seja ele verbal, não-verbal ou sincrético, pois o sentido emerge não somente

do discurso enunciado, mas da e na própria situação de enunciação. Esse ponto de

vista traz para os estudos semióticos a problemática de uma apreensão sensível do

sentido, em que a percepção e a sensibilidade são elementos centrais.

Diniz (2007: 2) lembra-nos que a partir da publicação de Semiótica das

paixões (Greimas e Fontanille, 1993), a teoria semiótica abriu o texto para o

“mundo natural”, considerando que a signifi cação se articula em duas direções,

uma manifestada e realizada, outra manifestante e realizante. Para a primeira

perspectiva, centrada na análise de textos verbais, os esquemas actanciais e os

programas narrativos são efi cazes para identifi car a “arquitetura conceitual” e o

“conteúdo ideológico” dos enunciados. Para a segunda perspectiva, entretanto,

os elementos a serem tratados são a percepção, as sensações e a intencionalida-

de, que surgiram diante dos novos objetos que se colocaram à prova de análise

dos semioticistas. Landowski esclarece-nos esta mudança de ponto de vista ao

dizer que:

em vez de considerar o texto como objeto empírico, imediatamente

produzido, fomos levados cada vez mais a considerá-lo como o resul-

tado de uma construção que implicava um jogo complexo de relações

entre o que se refere ao próprio ser dos objetos “lidos” ou percebidos

- a suas estruturas imanentes - e ao que depende do fazer dos sujeitos

interpretantes ou “que lêem” (leitores “ingênuos” ou analistas, teorica-

mente mais espertos) e, ao mesmo tempo, como uma realidade capaz

de articular diferentes linguagens entre si, ou melhor, várias semióti-

cas, verbais ou não (2001: 326).

Dessa forma, percebemos que o sentido pode ser entendido, por um lado,

como uma “grandeza realizada”, ou seja, presente “nos” enunciados e imanen-

te aos discursos; por outro, o sentido também pode ser entendido como uma

forma permanentemente “em vias de construção”, “em ato” e, desse modo, em

situação, no momento exato em que o processo se realiza. Landowski (2002:

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 137

166) esclarece-nos que “menos que o texto, como produto, como enuncia-

do que tem um sentido (ou, por que não, vários), é o discurso, enquanto ato

de enunciação efetuado em situação e produzindo sentido, que nos interessa,

neste quadro”. Nessa perspectiva, Fontanille (2007: 17) afi rma que “pode-se

apreender o sentido do discurso somente na atualidade que defi ne o ato de

discurso” e completa: “o projeto da semiótica do discurso está assim delimita-

do: a enunciação carrega em si uma semiose em ato e é dessa semiose que deve

a semiótica do discurso tratar”.

O conceito de discurso em ato, ao trazer a discussão sobre a percepção e a

sensibilidade para os estudos semióticos, interessa-nos sobremaneira, pois bus-

camos evidenciar as práticas que o telejornal emprega para direcionar o fl uxo de

atenção dos telespectadores que, segundo nossa hipótese de análise, concretiza-

se a partir da dimensão sensível do sentido. Zilberberg (2002: 111) explica-nos

que essa perspectiva implica em considerar que a signifi cação é conduzida pela

afetividade, a qual recebemos a partir da articulação da intensidade e da exten-

sidade. Dessa forma, Fontanille afi rma que:

perceber algo – antes de reconhecer esse algo como uma fi gura perten-

cente a uma das macrossemióticas – é perceber mais ou menos intensa-

mente uma presença. De fato, antes de identifi car uma fi gura do mundo

natural, ou ainda uma noção ou um sentimento, percebemos (ou “pres-

sentimos”) sua presença, ou seja, algo que, por um lado, ocupa uma certa

posição (relativa a nossa própria posição) e uma certa extensão e que,

por outro lado, nos afeta com alguma intensidade. Algo, em suma, que

orienta nossa atenção, que a ela resiste ou a ela se oferece (2007: 47).

O autor explica que esse direcionamento/orientação decorre a partir da vi-

sada, mais ou menos intensa, e da apreensão, mais ou menos extensa, modalida-

des a partir das quais a signifi cação pode emergir da percepção. Tanto a visada

como a apreensão pertencem ao chamado esquema tensivo, que rege todos os

discursos e garante a solidariedade entre o sensível (a intensidade, o afeto, a

emoção, a paixão) e o inteligível (o desdobramento na extensão, aquilo que é

mensurável e compreendido). O esquema tensivo consiste, assim, em um mode-

lo que objetiva responder às questões deixadas em aberto pelo modelo clássico,

como no caso do quadrado semiótico, por exemplo, que apresenta as categorias

semânticas como um todo acabado e que não estão mais sob o controle de uma

enunciação viva (Fontanille, 2007: 47-74).

Articulando intensidade e extensidade, o esquema tensivo, conforme pro-

posto por Zilberberg (2002) e retomado por Fontanille (Ibidem), permite-nos

138 | Juliano José de Araújo

avaliar as qualidades sensíveis de uma determinada semiótica-objeto. Pense-

mos, a título de exemplo, nas qualidades visuais da televisão, em particular, nos

enquadramentos. Fontanille afi rma que:

quando a edição vale-se de um estreitamento (progressivo ou repentino)

do campo até chegar a um rosto enquadrado em close-up ou apreendido

por uma “inserção”, ela passa do desenrolar descritivo e narrativo a um

efeito puramente emocional. Inversamente, quando ela amplia progres-

sivamente o campo, partindo de um close-up ou de um plano próximo

para chegar a uma série de planos gerais ou panorâmicas, descritivas ou

narrativas, ela passa do efeito emocional (o equivalente, de alguma forma,

a uma questão ou a uma exclamação) a um desdobramento explicativo e

cognitivo (Idem: 114).

Esse “ir” e “vir” dos enquadramentos, a partir do zoom-in e do zoom-out8,

alterna a produção de uma tensão afetiva, marcada pelos enquadramentos mais

fechados (close-up e plano próximo), e o relaxamento, caracterizados pelos pla-

nos mais gerais (plano geral e de conjunto).

Os efeitos de presença, sejam visuais (no caso dos enquadramentos televisi-

vos), sonoros (entonação e prosódia) ou táteis (liso e áspero), para serem quali-

fi cados de fato como presença, ou seja, para que sua signifi cação exista a partir

da percepção, associam um certo grau de intensidade e de extensidade. A partir

dessa correlação, as fi guras semióticas se formam e se estabilizam (Idem: 76-77).

Grafi camente, o esquema tensivo pode ser representando como segue:

8 O zoom é uma possibilidade de aproximar ou distanciar os objetos que estão sendo focalizados, a partir de movimentos óticos, realizado com o emprego de lentes próprias. O zoom mostra uma cena com maior ou menor grau de detalhe. O movimento de aproximação é o zoom-in, o de afastamento, o zoom-out.

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 139

Acreditamos que, a partir da articulação dos gradientes de intensidade (o

sensível) e extensidade (o inteligível), conforme apresentados acima, podemos

pensar justamente a forma como o telejornal direciona o fl uxo de atenção do

telespectador a partir da dimensão sensível do sentido, estruturando e hierar-

quizando as notícias que veicula em uma estrutura sintagmática orientada na

direção de uma maior tensão ou de um maior relaxamento. É dessa tarefa que

nos ocuparemos agora: analisar uma edição do JN, procurando identifi car os

esquemas tensivos que a regem.

DA ANÁLISE

O jornalismo hoje é essencial para a vida em sociedade. Os telejornais cumprem

uma função de sistematizar, organizar, classifi car e hierarquizar a sociedade.

Dessa forma, contribuem para a organização do mundo circundante.

Vizeu (2006: 4)

Os acontecimentos e fatos do cotidiano percorrem um longo caminho, até

chegar ao telespectador, desde a pauta, a apuração, a captação das informações,

a redação, a edição e a veiculação. Toda a rotina de um dia de trabalho em uma

redação de TV começa a ser estruturada no dia anterior, com a elaboração de

um espelho, ou seja, um esboço indicando a organização do telejornal e apre-

sentando as notícias que farão parte daquela edição. O espelho é elaborado du-

rante as reuniões da chefi a de reportagem, sob o comando do editor-chefe, que

determina os assuntos da pauta para cobertura pelas equipes de reportagem.

Com a pauta em mãos, o repórter, juntamente com o cinegrafi sta, sai para

o trabalho de campo para apurar e captar as informações, ou seja, em busca

dos entrevistados e, notadamente, de imagens acerca do fato que vão reportar.

Cabe ao repórter realizar as entrevistas, checar as informações e redigir os

textos das matérias.

As notícias em um telejornal podem ser apresentadas sob os seguintes for-

matos: 1) nota simples: são matérias redigidas a partir das informações das agên-

cias de notícias, do rádio-escuta, de press-releases ou outras fontes. De maneira

geral, a nota simples é uma matéria curta que não tem imagens de cobertura

nem de arquivos para ilustrá-la e é lida pelo apresentador ou âncora; 2) nota

coberta: tem a mesma estrutura da nota simples com o diferencial de apresentar

imagens sobre o assunto narrado; 3) reportagem: é a forma mais completa de

apresentação das informações em um telejornal, porque pode apresentar o texto

140 | Juliano José de Araújo

em off do repórter e é “casado” com imagens, trechos de entrevistas (sonoras), a

passagem e o encerramento. A passagem é a entrada do repórter no vídeo, em

algum momento da narração, para dar ao telespectador uma informação que

não foi possível passar no texto em off . No encerramento, o repórter aparece

para explicar os desdobramentos de determinado fato (Squirra, 1990: 71-72);

(Curado, 2002: 49-50).

Captado todo o material, imagens e áudio, é chegada a hora da edição, que

transforma o material bruto em produto fi nal: a notícia. O editor deve dar se-

qüência lógica à matéria produzida, dosando imagem e texto, além de observar

a sua devida interação. Editor de texto e de imagens, assim como repórter e

cinegrafi sta, devem trabalhar em conjunto. Squirra (1990: 94) destaca que os

editores devem fi car atentos à carga emotiva e informativa das reportagens, não

esquecendo da angulação pretendida pela emissora. Todo o material coletado

pelo repórter é visto e recortado. Os excessos são excluídos, os erros são corri-

gidos, as melhores imagens, passagens e entrevistas são selecionadas: o roteiro

da reportagem começa a ganhar forma. Curado (2002: 96) diz que, em linhas

gerais, as reportagens produzidas para os telejornais diários têm entre 1min5s

e 1min30s, no máximo, e seguem a seguinte estrutura: 1) texto do apresenta-

dor - cerca de 15 segundos - que encaminha ou chama a reportagem, também

denominado de cabeça da matéria; 2) texto em off do repórter - entre 20 e 30

segundos; 3) sonora ou fala do entrevistado - entre 10 e 15 segundos; 4. passa-

gem do repórter (participação do repórter no vídeo) - entre 15 e 20 segundos;

4) sonora (entrevista ou fala de uma ou mais pessoas) - entre 12 e 20 segundos;

e 5) narração fi nal em off do repórter - entre 10 e 15 segundos. A autora indica

que, às vezes, a narração fi nal é substituída pelo encerramento, ou seja, o repór-

ter aparece no fi nal de reportagem, fechando-a. É pertinente observar que, em

termos de duração, os telejornais têm investido em reportagens maiores, como

a análise de nosso corpus demonstrará.

Como pensar, no entanto, o telejornal do ponto de vista semiótico? É essa

questão que se coloca agora, após expormos, de forma resumida, sua rotina

de produção. Vimos que as notícias em um telejornal podem ser apresenta-

das, regra geral, sob três formatos: nota simples, nota coberta e reportagem.

Conjugadas a essas estruturas, temos a escalada, a chamada inicial que abre o

telejornal, na qual os apresentadores trazem as manchetes do dia, e as passa-

gens de blocos. Podemos encontrar também entrevistas no estúdio e os links

em que os repórteres são chamados “ao vivo” do local de um determinado

acontecimento. Há ainda, às vezes, a presença de comentaristas, a previsão do

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 141

tempo, charges, como no caso do JN. Nessa perspectiva, Fechine sugere-nos

que pensemos o telejornal como:

um enunciado englobante (o noticiário como um todo) que resulta da

articulação, por meio de um ou mais apresentadores, de um conjunto

de outros enunciados englobados (as notícias) que, embora autônomos,

mantêm uma interdependência. Podemos assim, em outros termos, con-

ceber o telejornal como um conjunto que emerge justamente da articu-

lação dessas sucessivas unidades numa instância enunciativa que as en-

globa. (...) todos os enunciados englobados (unidades) organizam-se em

função desse enunciado englobante implícito (todo) justamente porque

estão inseridos, e são articulados entre si, numa mesma temporalidade

defi nida pelo início e pelo fi m do programa (Fechine, 2006: 140).

A partir da relação entre enunciado englobante e enunciados englobados,

realizaremos a segmentação de nosso corpus, uma edição do JN. Apresenta-

remos, a seguir, uma tabela trazendo os enunciados englobados dessa edição,

classifi cados por tipo e indicando os assuntos abordados e também sua duração

para depois passarmos à nossa análise.

142 | Juliano José de Araújo

Estrutura do enunciado englobante do JNBloco 1

Tipo de enunciado englobado

Assunto Tempo de duração

1. Escalada(manchetes do dia)

a) Prisão / maior contrabandista do país;b) Julgamento / atirador do cinema;c) Final da rebelião / Casa de Custódia;d) Chuva / Alagoas;e) Exportações brasileiras / recorde;f) Desconto / Imposto de Renda;g) Petróleo / preço recorde;h) Novo presidente / Iraque;i) Jogo Copa / eliminatórias

0-1min18s

2. ReportagemPrisão do chinês Law Kin Chong, acusado pela polícia de ser o maior contrabandista do país.

1min19s – 8min58s

3. Reportagem Começa o julgamento de Mateus da Costa Meira 8min59s – 11min16s

Passagem de bloco 1

a) Vereadores / reajuste salário;b) Ministros STJ / benefícios;c) Desconto / Imposto de Renda.

11min17s – 11min31s

Bloco 2

4. ReportagemDesconto no Imposto de Renda é anunciado pelo governo

11min32s – 13min

5. Nota simples Medida provisória / salário mínimo 13min01s – 13min35s

6. ReportagemMinistros do Superior Tribunal de Justiça recebem reforço no contra-cheque

13min36s – 15min02s

7. Reportagem Vereadores reajustam o próprio salário 15min03s – 17min04s

8. Nota simples Fim da greve no INSS 17min05s – 17min19s

Passagem de bloco 2

Final da rebelião / Casa de Custódia 17min20s – 17min28s

Bloco 3

9. ReportagemRebelião na Casa de Custódia do Rio termina e deixa 31 mortos

17min29s – 20min

10. ReportagemRebelião revela fragilidade da construção da Casa de Custódia

20min01s – 22min35s

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 143

11. Nota simples Presídios / Corte Interamericana de Direitos Humanos 22min36s – 23min

12. Nota coberta Chuva deixa mortos e desabrigados em Alagoas 23min01s – 23min35s

13. Previsão do tempo

------------------------- 23min36s – 24min05s

Passagem de bloco 3

a) Exportações brasileiras / recorde;b) Novo presidente / Iraque;c) Nélson Mandela / vida pública

24min06s – 24min20s

Bloco 4

14. Nota coberta Nélson Mandela anuncia que deixará a vida pública 24min21s – 25min

15. ReportagemNovo presidente do Iraque é anunciado em meio a protestos

25min01s – 26min36s

16. Nota simples Preço do petróleo atinge recorde em 21 anos 26min36s – 26min56s

17. Nota simples Baixa a cotação do dólar 26min57s – 27min06s

18. Nota cobertaMinistério da Agricultura interdita soja contaminada em armazém do Rio Grande do Sul

27min07s – 27min33s

19. Nota simples Exportações brasileiras atingem recorde 27min34s – 27min55s

20. Charge do Chico

Crítica ao governo Lula 27min56s – 28min08s

21. Nota simplesPrisão de norte-americano procurado pelos EUA no Rio Grande do Norte

28min09s – 28min33s

22. Reportagem ONGs indígenas desviam verba do Ministério da Saúde 28min34s – 30min26s

23. Nota simplesJustiça Federal pede prisão de empresários que estão envolvidos em fraudes de medicamentos

30min27s – 30min53s

Passagem de bloco 4

Último treino da seleção antes do jogo pelas eliminató-rias da Copa contra a Argentina

30min54s – 31min03s

Bloco 5

24. ReportagemO craque Ronaldo doa 45 mil euros para o espaço Criança Esperança de Belo Horizonte

31min04s – 31min46s

25. ReportagemPreparativos para o último treino da seleção brasileira, antes do jogo pelas eliminatórias da Copa contra a Argentina, agitam Belo Horizonte

31min47s – 33min38s

26. Reportagem Brasileiros recepcionam jogadores argentinos 33min39s – 35min10s

27. ReportagemParreira comanda o último treino da seleção brasileira, uma festa para 30 mil pessoas

35min11s – 37min32s

Encerramento ------------------------- 37min33s – 37min53s

144 | Juliano José de Araújo

O telejornal é estruturado em cinco blocos que trazem: a escalada, repor-

tagens, notas simples e cobertas, a previsão do tempo, passagens de bloco, a

charge do Chico Caruso e o encerramento. Há no todo do enunciado engloban-

te da edição o predomínio de reportagens que, em nosso caso, totalizam treze.

Identifi camos também oito notas simples e três notas cobertas. É interessante

observar que os blocos 1 e 5, o primeiro e o último do telejornal, trazem duas e

quatro reportagens, respectivamente, sendo que uma das reportagens veicula-

das no bloco 1 teve a duração de 7min39s, tempo muito superior ao das demais

reportagens. O bloco 2 traz uma alternância entre reportagens e notas simples.

Já o bloco 3 traz duas reportagens, seguidas por uma nota simples e uma cober-

ta. O bloco 4 tem uma alta concentração de notas simples (quatro, sendo que no

total da edição, temos oito) e cobertas (duas de três, do total da edição) e apenas

duas reportagens, trazendo também a charge do Chico Caruso.

A indicação de como a edição do JN está estruturada pode, em um primeiro

momento, parecer sem importância. No entanto, se observarmos que tal estru-

turação é a forma da expressão, no caso, de um enunciado englobante, devemos

considerar a distribuição dos enunciados englobados no telejornal enquanto

efeito de sentido que visa justamente manejar a afetividade do telespectador, de

forma a captar sua adesão, a partir da instauração de uma tensão que rompe a

continuidade.

Nessa perspectiva, o bloco 1 do telejornal seria o momento fulcral para o

enunciador captar a adesão do enunciatário, trazendo as matérias de maior im-

pacto e despertando-lhe a afetividade. Não é à toa que a escalada do telejornal,

que traz as notícias de destaque da edição, abre o bloco 1, empregando uma série

de recursos técnico-expressivos que resultam em uma progressão visual das ima-

gens que, como veremos, produz um efeito de sentido de caráter emocional, cau-

sando expectativa e surpresa a partir de um valor de irrupção (fi gura ao lado).

A escalada do JN é caracterizada por uma acentuada alternância de planos,

enquadrando ora os apresentadores William Bonner e Fátima Bernardes em pla-

no próximo (fi guras B, F, I, L e N), ora trazendo a inserção de imagens das maté-

rias que são anunciadas, os chamados teasers (provocadores), que têm a função

de despertar a curiosidade do telespectador (fi guras C, D, E, G, H, J, M, O e P).

O enquadramento em plano próximo dos apresentadores caracteriza uma

embreagem que, somada à modulação e tonalidade das vozes, às expressões fa-

ciais e à interpelação do telespectador através do eixo “O-O”9, criam um efeito

9 Segundo Verón (2003: 17), a interpelação pelo olhar através do eixo “O-O” (“olhos nos olhos”) é um aspecto fundamental da televisão, o qual remete ao corpo signifi cante.

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 145

de sentido de proximidade, produzindo no enunciatário a sensação de dialogar

com os apresentadores, ou melhor, de “estar com” William Bonner e Fátima Ber-

nardes, que lhe contam as notícias do dia. Martins (2006: 133) afi rma que o en-

quadramento em plano próximo estabelece “uma distância interpessoal mínima

com o telespectador, refl etindo também intimidade em diferentes graus e permi-

tindo ao ‘homem do sofá’ perceber a direção dos olhares dos âncoras”. Ou seja, o

enunciatário, de certa forma, estabelece um laço físico com o apresentador, como

aponta a autora. Esse tipo de enquadramento caracteriza a chamada estética dos

talking heads (cabeças falantes), expressão segundo a qual os estadunidenses de-

signam os primeiros planos dos apresentadores de televisão. Segundo Machado

146 | Juliano José de Araújo

(1995: 49-50), a talking head “fala diretamente ao espectador, crava-lhe os olhos,

pressupõe a sua presença”, visto que o enunciatário é “o alvo direto e confesso

tanto do aliciamento quanto do contato buscado pelas talking heads”.

As imagens dos teasers, por sua vez, revelam uma grande preocupação do

enunciador com sua composição visual. A fi gura C traz o empresário chinês

Law Kin Chong, que acaba de ser preso, focalizado em plano médio no interior

de uma viatura da Polícia Federal. Em D temos uma imagem feita por uma

câmera escondida, mostrando que o empresário tentou subornar o deputado

Luiz Antonio de Medeiros, que presidia a Comissão Parlamentar de Inquérito

sobre a “pirataria”. É importante observarmos a presença das bordas sombrea-

das na imagem, que acentuam o caráter investigativo da reportagem anunciada

pelos apresentadores. Em E temos, em um close-up, parte dos setenta e cinco

mil dólares, dinheiro com o qual Law tentou subornar o deputado Medeiros

que, de certa forma, aciona a tatilidade do espectador. Em G e H temos uma

tomada em plano médio e em close-up, respectivamente, de Mateus da Cos-

ta Meira, o atirador do shopping. Note-se que a imagem G traz, em primeiro

plano, as grades de uma prisão, e Mateus, em segundo. A imagem J traz um

plano geral aéreo da Casa de Custódia, no Rio de Janeiro, que acabara de pas-

sar por uma rebelião. Em M temos um plano de conjunto mostrando algumas

pessoas com água até os ombros no corredor de uma residência alagada de-

vido às fortes chuvas. Já em O temos outro plano de conjunto mostrando um

homem ajoelhado segurando o que parece ser uma metralhadora e, ao fundo,

alguns prédios em ruínas. Em P temos o plano geral de um campo de futebol.

A descrição das imagens presentes na escalada do JN mostra que o enunciador

faz uso de uma alternância dos planos, empregando focalizações fechadas e

abertas, fato que assegura o ritmo ágil e dinâmico da abertura do telejornal:

em G e H, por exemplo, temos o mesmo ator discursivo visto segundo dife-

rentes focalizações. A imagem J faz com que enunciatário tenha a sensação de

“sobrevoar” a Casa de Custódia, no Rio de Janeiro, e a imagem M, devido ao

ângulo em que a tomada foi feita, permite a criação de uma ilusão enunciativa,

como se o telespectador estivesse ali, caminhando naquele corredor inundado,

“vivenciando” aquela enchente.

Diniz (2001: 4), em um estudo sobre a credibilidade do JN, afi rma que “a

imagem acopla valores naturais e culturais para tecer seu discurso no sentido de

persuadir pela afetividade, manipulando paixões”. Na escalada da edição ana-

lisada, percebemos que as imagens suscitam no enunciatário, em apenas um

minuto e dezoito segundos, emoções, paixões e sensações diversas, conforme os

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 147

textos lidos pelos apresentadores as ancoram: 1) “O JN conta a história da prisão

do maior contrabandista do Brasil”, 2) “São Paulo: o julgamento do atirador que

matou três pessoas num shopping”, 3) “Rio de Janeiro: a polícia conta 31 mortos

na rebelião de presos”, 4) “Calamidade pública: a chuva mata e deixa desabriga-

dos em Alagoas”, 5) “Atentados marcam anúncio do novo nome do presidente

do Iraque”, e 6) “Eliminatórias da Copa: Brasil e Argentina a menos de vinte e

quatro horas do grande confronto”.

Além desses efeitos de sentido, a escalada do telejornal permite, literalmen-

te, que o enunciatário experiencie os acontecimentos narrados, devido à dina-

micidade da montagem10 audiovisual que reproduz o mundo natural em uma

“exposição sistemática e paradoxal do ‘proprioceptivo11’ agitado” (Landowski,

2002: 151). Apesar da mediação da TV, o enunciador busca justamente apresen-

tar o mundo natural reconstituindo-o com todas as suas qualidades sensíveis a

partir do emprego dos recursos técnico-expressivos do meio televisivo12.

Tanto o texto oral quanto o visual da escalada apresentam elementos que

rompem a continuidade do cotidiano do telespectador, introduzindo um senti-

mento de constrangimento ou falta, abalando-o: “sua sensibilidade é desperta-

da, uma presença afeta seu corpo” (Fontanille, 2007: 130). O próprio apresen-

tador do JN, William Bonner, durante a palestra “Produção do Jornal Nacional:

da pauta à transmissão”, ministrada no dia 6 de setembro de 2005, no XXVIII

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado na Universidade

Estadual do Rio de Janeiro, afi rmou que o telejornal, logo no início, tem que

causar um certo impacto no telespectador, “um constrangimento” no público,

de forma que ele não troque o telejornal por um outro programa13. Note-se que

o lexema “constrangimento” quer dizer sentimento de vergonha, de mal-estar

“que sente quem foi desrespeitado ou exposto a algo indesejável” (Ferreira,

10 A montagem vertical parte do princípio da justaposição de uma série de elementos (visual, dramático, sonoro) em uma única imagem. A montagem vertical de Eisenstein procura explorar toda a expressividade do meio em termos de articulação de diferentes linguagens, ou seja, de diferentes sistemas semióticos, que são coloca-dos em relação em um mesmo texto.

11 Segundo Greimas e Courtés (1983: 357), proprioceptividade, termo de inspiração psicológica, designa o con-junto dos traços semânticos usados para denotar a percepção (eufórica ou disfórica) que o homem tem de seu próprio corpo.

12 Do lado do sistema visual, podemos destacar: 1) a linguagem verbal escrita; 2) a linguagem cinética (imagem em movimento); 3) a linguagem gestual (incluindo a expressão facial dos apresentadores e repórteres); 4) a linguagem cenográfi ca (cenários do telejornal e fi gurinos dos apresentadores e repórteres); 5) a proxêmica (dis-tribuição e movimentação de atores no espaço); 6) os recursos técnicos de gravação; 7) de edição; 8) recursos visuais (o gerador de caracteres, por exemplo); 9) gráfi cos; e 10) de câmera (planos de gravação, zoom-in e out). Já do sistema de áudio, teríamos: 1) a linguagem verbal oralizada (incluindo a entonação dos apresentadores e repórteres); e 2) todos os recursos de sonoplastia, como o áudio ambiente, música ou background. A classifi cação ora apresentada retoma, em partes, o modelo do sistema audiovisual, apresentado por Herreros (citado por Campos, 1994: 56-57).

13 Cf. “Os jornalistas da TV Globo Ali Kamel, Fátima Bernardes, Willian Bonner e Zileide Silva discutem as escolhas de pauta, edição e linguagem do Jornal Nacional no Intercom”. Disponível em: <http://www2.uerj.br/~agenc/agenciauerj/htmmaterias/materias/2005mes_09_06/05.htm>. Acesso em 25 de junho de 2006.

148 | Juliano José de Araújo

2001: 179). O enunciador quer, sobetudo no início do telejornal, aumentar a

intensidade do discurso e captar a atenção do enunciatário de uma forma afeti-

vamente efi ciente.

No entanto, captada a adesão de telespectador logo no início, é preciso fa-

zer com que ele continue a assistir o programa até o fi nal. É nessa perspectiva

que o enunciador, ao distribuir os enunciados englobados no todo do enuncia-

do englobante do telejornal, hierarquiza as matérias (notas simples, cobertas e

reportagens) pensando justamente em empregar o que Fontanille (2007: 114)

denomina de “dialética do sensível e do inteligível”, ou seja, escolhendo ora um

esquema tensivo ascendente ora um descendente. Este é caracterizado pela di-

minuição da intensidade articulada com o desdobramento da extensão, objeti-

vando produzir um relaxamento cognitivo. Aquele, por sua vez, é regido pelo

aumento da intensidade combinado com a redução da extensão para produzir

uma tensão afetiva.

Nessa perspectiva, é importante observar que o bloco 1, além da escalada,

traz duas reportagens cujos conteúdos são intensos (eixo da intensidade), para

produzir justamente uma tensão afetiva e tocar o enunciatário estesicamente.

A primeira delas, como mostra a tabela da estrutura do enunciado englobante,

trata da prisão do chinês Law Kin Chong e remete à isotopia da /impunidade/.

A segunda refere-se ao julgamento de Mateus da Costa Meira, jovem que entrou

em uma sala de cinema atirando e deixou três mortos e inúmeros feridos, que

também tem como isotopia a /impunidade/, visto que o rapaz cometeu o crime

em 1999 e ainda não havia sido julgado, fato que gera a indignação e revolta dos

parentes das vítimas. O bloco 3, nessa mesma linha, traz duas reportagens sobre

a rebelião na Casa de Custódia, no Rio de Janeiro e tem os semas da /violência/

como isotopia. Já o bloco 5, por sua vez, é totalmente dedicado à cobertura do

futebol, em particular do jogo pelas eliminatórias da Copa entre Brasil e Argen-

tina, fato que contrasta com a isotopia das reportagens dos blocos 1 e 3. Embora

a temática esportiva possa ser considerada por muitos como algo pejorativo,

sem importância, não devemos nos esquecer de sua capacidade de envolver

multidões e como-ver14.

Enquanto isso, os blocos 2 e 4 trazem duas e três reportagens, respectiva-

mente, veiculadas juntamente com notas cobertas e simples. As reportagens dos

blocos 2 e 4 são, de certa forma, enunciados que tendem, se pensarmos na dia-

lética do sensível e do inteligível, a uma dimensão cognitiva e pragmática e não

tanto à sensível. Resgatemos, a título de exemplo, algumas das chamadas dessas

14 Termo empregado por Landowski (1996).

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 149

matérias: “Desconto no Imposto de Renda é anunciado pelo governo”, “Minis-

tros do Superior Tribunal de Justiça recebem reforço no contra-cheque”, “Fim

da greve no INSS”, “Nélson Mandela anuncia que deixará a vida pública”, “Preço

do petróleo atinge recorde em 21 anos”, “Prisão de norte-americano procurado

pelos EUA, no Rio Grande do Norte”.

Para não sobrecarregar o telespectador em termos afetivos, o enunciador

produz uma tensão afetiva, de certa forma, em “doses”. Assim, o bloco 1 é o

momento em que o enunciador deve mostrar ao enunciatário tudo aquilo que

ele tem a lhe oferecer para que acompanhe a edição do programa até o fi nal. Já

o bloco 3 seria um momento de “realimentar” o contrato com o telespectador,

fi rmado no bloco 1, garantindo que ele assista ao telejornal até o fi nal da edição.

E há um momento em que o contrato deve ser reafi rmado, para que no próximo

dia ele veja o programa, justamente o que acontece no bloco 5. E os blocos 2 e 4

constituem um momento em que o enunciador, devido ao fato de o contrato já

ter sido fi rmado com o enunciatário, não lança mão das estratégias de intensi-

dade, tendendo a um relaxamento afetivo e cognitivo e veiculando informações

que resgatam o equilíbrio e a continuidade: notas simples, cobertas e poucas

reportagens.

Podemos, a esta altura, pensar em uma esquematização da estrutura sig-

nifi cante do telejornal, a partir dos esquemas ascendente e descendente, como

veremos nas fi guras abaixo:

150 | Juliano José de Araújo

Os blocos 1, 3 e 5 do telejornal são, portanto, regidos pelo esquema ascen-

dente, caracterizado pelo aumento da intensidade combinado com a contenção

da extensidade, fato que gera uma tensão afetiva. Já os blocos 2 e 4 seguem o

esquema descendente, no qual temos um relaxamento cognitivo produzido a

partir da diminuição da intensidade e do desdobramento da extensidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

... é preciso que a análise se dê conta de que não é (nem poderia jamais

ser) a explicação última de seu objeto. Mesmo quando efi ciente, ela não

pode almejar mais que o diagrama da obra analisada, algo assim como

um mapa abstrato de seu funcionamento como produção de sentido.

Machado; Vélez (2007: 13)

As práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornal não se es-

gotam no trabalho ora apresentado, pois fazem parte de uma pesquisa maior

que objetiva justamente discutir as práticas midiáticas nos meios eletrônicos

e impressos. Além disso, devido à limitação deste espaço, não pudemos apre-

sentar uma análise mais detalhada, por exemplo, das reportagens apresentadas

na presente edição do JN. Limitamo-nos em apresentar algumas considerações

gerais sobre os esquemas tensivos que regem o modo de funcionamento do

telejornal. Com a identifi cação desses esquemas poderemos, em um segundo

momento da pesquisa, pensar em estilos de categorização ou formação de tipos

das notícias.

Nossa hipótese de análise de que o telejornal direciona o fl uxo de atenção

dos telespectadores a partir da dimensão sensível confi rma-se. A partir da es-

truturação e hierarquização das notícias no telejornal, o enunciador emprega a

dialética do sensível e do intelígivel priorizando, nos momentos fulcrais, para

captar a adesão do enunciatário, a dimensão sensível do sentido, fi gurativizada,

no caso em questão, em reportagens cujos conteúdos são intensos e têm um

valor de irrupção. Dessa forma, constatamos que o telejornal apresenta um cer-

to padrão, estilo ou identidade, caracterizado por sua divisão em blocos e, por

conseguinte, pela hierarquização dos enunciados englobados. Trata-se, enfi m,

no caso em questão, de práticas para manipular a atenção do telespectador.

Acreditamos que, ao evidenciar tal estrutura, espécie de diagrama da forma

sintagmática do telejornal, baseada nos esquemas ascendente e descente, apre-

sentamos elementos para compreender como esse gênero televisivo confi gura-

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismo | 151

se uma prática de comunicação cuja força social está cada vez mais presente

em nossa cultura. Ela infl uencia, inclusive, outras práticas, como a da vida em

família, a das relações de amizade, a das relações no trabalho. Daí decorre a im-

portância e a necessidade de estudar o telejornal e suas práticas, pois apesar da

mediação tecnológica imposta pela televisão, é através dele que experienciamos

a signifi cação dos acontecimentos do mundo natural.

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Parte III

VINHETAS

Break comercial: estratégia e efi ciência | 157

BREAK COMERCIAL Estratégia e efi ciência

Jaqueline Esther Schiavoni

Desde o início, a televisão brasileira caracterizou-se como veículo publici-

tário, seguindo de perto o modelo comercial norte-americano. Esse modelo tem

por base o fi nanciamento da programação mediante inserções comerciais. Para

termos uma idéia de como isso se deu no Brasil, entre 1976 e 1979 o país chegou

a ocupar o quarto lugar em gastos publicitários em televisão, atrás apenas dos

Estados Unidos, Japão e Inglaterra.

Ao longo dos anos, pode-se dizer, a televisão foi o veículo que mais se bene-

fi ciou dos investimentos publicitários (ver Anexos – Tabela 1) e o motivo é sim-

ples: tal como o rádio, a televisão consegue atingir todos os segmentos sociais,

ricos e pobres, a população alfabetizada e a analfabeta, mas tem a vantagem da

imagem em movimento, a sedução pelas cores, formas e texturas. Entretanto,

foi só a partir dos anos 1960, quando se adaptou para aumentar a audiência,

dirigindo-se a classes mais baixas e satisfazendo as necessidades das agências de

publicidade e seus clientes, que a televisão se transformou no principal meio de

publicidade no país.

Por essa razão, a discussão que pretendemos desenvolver neste capítulo tem

por objetivo considerar algumas das estratégias que regem o processo de orga-

nização dos breaks1 comerciais. A análise será feita, principalmente, a partir da

1 Break é o nome utilizado, principalmente na área de Propaganda e Publicidade, para designar os intervalos da programação televisiva nos dias de hoje.

158 | Jaqueline Esther Schiavoni

esquematização (ver Anexos – Tabela 2 e 3) de alguns intervalos comerciais na

programação das cinco principais emissoras brasileiras (Rede Globo de Televi-

são, Rede Bandeirantes de Televisão, Sistema Brasileiro de Televisão, Fundação

Padre Anchieta e Rede Record de Televisão).

Tal discussão acompanha as preocupações da teoria semiótica que vem bus-

cando observar e entender as organizações anteriores à constituição do sentido,

quer dizer, o ato de enunciação que constitui o texto manifestado. Entendendo o

break comercial como uma prática televisiva, preocupamo-nos em demonstrar

seu “sintagma estruturante”: da mesma forma que seguimos algumas regras de

sintaxe ao dispor as palavras para formar orações, a organização dos spots pu-

blicitários nos intervalos comerciais também tem sua lógica. E é justamente essa

lógica que buscamos desvendar. Os aspectos abordados no decorrer do trabalho

demonstrarão algumas das coerções a que a prática do break está submetida,

e como o processo de ajustamento a essas coerções possibilitou um percurso

estável de produção.

Assim, quando falamos de prática estamos falando de um modo habitual

de agir, um uso estabelecido, um certo modo de fazer as coisas – tal como os

próprios dicionários designam esse termo – que abriga a estratégia, ou seja, a

arte de dirigir um conjunto de disposições, muitas vezes conseguida, dilapidada

e mesmo validada somente pela repetição (tentativa e erro) no decorrer do tem-

po, até estabelecer modelos canônicos.

Isso signifi car observar a efi ciência do break, já que esta é avaliada em fun-

ção da adaptação de uma prática a outras e essa adaptação está submetida a dois

procedimentos, a programação e o ajustamento, conforme descreve Fontanille

(ver artigo nesta coletânea, p. 52):

De um lado, de fato, a prática deve submeter-se a um certo número de

coerções, seja pela presença de práticas concorrentes já engajadas, seja

pelas normas e regras que preexistem à construção de toda ocorrência

particular: é preciso levar em conta o fator inevitável da programação

externa.

[...] Por outro lado, a prática constrói-se por ajustamento progressivo e

atua pela invenção de um percurso que procura sua própria estabilidade e

sua signifi cação no confronto com as coerções evocadas.

Nosso intuito, então, não é apenas descobrir como as coisas funcionam, por

assim dizer, mas também por que funcionam de tal modo. De certa forma, é uma

pergunta que antecede a prática, mas que pode ser por ela mesma revelada.

Interessante notar que os modelos canônicos de que falamos anteriormen-

Break comercial: estratégia e efi ciência | 159

te, justamente por se valerem de certas estratégias, têm êxito nos seus propósitos

e por isso mesmo se perpetuam. E muitas vezes, em vista da segurança que es-

ses modelos nos proporcionam, investimos neles todas as nossas fi chas, mesmo

sem entender exatamente a estratégia por trás da prática. Passamos, então, a

copiar aquilo que deu certo.

Mas no caso das práticas televisivas, especialmente os breaks, esse caráter

ordinário – ou da ordem usual das coisas, rotineiro – não é sufi ciente para expli-

car sua existência: não é porque desde os primórdios da televisão existem inter-

valos comerciais que eles ainda reinam na telinha. Queremos descobrir, então,

que razões impulsionariam tal prática até hoje. Muitos diriam, sem titubear, que

os intervalos comerciais surgem da necessidade de fi nanciar esquemas caros

e complexos de produção televisiva, e nisso, sem qualquer sombra de dúvida,

reside boa parte da resposta. A própria história da televisão brasileira deixa evi-

dente esse aspecto, como vimos no início deste texto.

É importante observar também que, em suas primeiras décadas, a televisão

não atingia um grande público e por isso mesmo também não conseguia atrair

muitos anunciantes. Na própria TV Tupi, o primeiro ano de faturamento pu-

blicitário foi garantido por apenas quatro grandes patrocinadores: Seguradora

Sul Americana, Antarctica, Laminação Pignatari e Moinho Santista. Resultado:

como a produção contava com poucos mas grandes anunciantes, os patrocina-

dores determinavam os programas que deveriam ser produzidos e veiculados,

bem como todo o seu conteúdo.

Por isso, nas duas primeiras décadas da televisão brasileira, os programas

costumavam ser identifi cados pelo nome do patrocinador. Em 1952, e por vá-

rios anos subseqüentes, os telejornais, por exemplo, tinham como títulos: “Te-

lenotícias Panair”, “Repórter Esso”, “Telejornal Bendix”, “Reportagem Ducal” ou

“Telejornal Pirelli”. Os demais programas também levavam o nome do patroci-

nador: “Gincana Kibon”, “Sabatina Maizena” e “Teatrinho Trol”. A programação

vinha da cabeça dos patrocinadores, que muitas vezes agiam como ditadores

(Mattos, 2002: 70-1).

Hoje em dia, as produções televisivas são fi nanciadas por uma variedade de

marcas e isso, sem dúvida, contribui para a independência dos programas. Sen-

do assim, perguntamo-nos: se há dezenas de marcas fi nanciando as produções

televisivas, como é feita a venda do espaço publicitário? Como os comerciais

são organizados?

Observemos que há muitas formas de se comercializar o espaço publicitário:

a) Nos comerciais, a venda é feita em múltiplos de 15 segundos. O padrão é 30.

160 | Jaqueline Esther Schiavoni

b) Cada programa tem um valor conforme sua audiência média aferida

pelo Ibope.

c) Também há planos para patrocínios de programas, assinaturas de cha-

mada, merchandising, eventos, etc.

d) As compras de espaço publicitário são pagas antecipadamente e não po-

dem ser canceladas.

Há também diferentes modos de organizar esse espaço. A título de exemplo,

dispusemos em um quadro sinótico a seqüência em que aparecem alguns pro-

dutos (ver Anexos – Tabela 2).

As seqüências destacadas evidenciam três lógicas de organização do espaço

publicitário. Na primeira delas, os anúncios de concorrentes diretos são coloca-

dos o mais longe possível um do outro, tal como vemos no caso do supermerca-

do A e supermercado B (EXEMPLO 1), dispostos nos extremos do break. Assim,

não há confronto direto (comparação por parte do telespectador) dos anuncian-

tes e seus produtos, o que poderia desestimular a compra do espaço. É o que

acontece com marcas como Ford x Fiat ou Casas Bahia x Magazine Luiza.

A segunda lógica de organização é também separar produtos que não com-

binam, como macarrão e laxante (EXEMPLO 2), de modo a não provocar as-

sociações desfavoráveis para anunciantes e produtos. Por fi m, os comerciais de

clientes diferentes, mas que podem se complementar, são colocados próximos,

provocando associações que podem estimular as vendas. É o que ocorre com

itens como biscoito e suco, shampoo e desodorante ou sabão em pó e máquina

de lavar roupas (EXEMPLO 3).

Ainda podemos observar nesses exemplos que: a) evita-se que os comer-

ciais com artistas da emissora apareçam próximos às chamadas do programa

que eles fazem; b) os comerciais de clientes nacionais, em geral, são programa-

dos no início dos intervalos por causa do fator técnico, visto que é mais fácil

para as emissoras afi liadas exibirem a sua carga de comerciais locais de uma só

vez em um mesmo intervalo; c) alguns clientes pagam 25% a mais para ter o

direito de defi nir em que posição querem seus anúncios, por exemplo, abrindo

o primeiro intervalo.

No mais, não pode haver erros:

O comercial tem de ser veiculado conforme a compra do espaço do cliente.

Se ele comprou 30 segundos, não podem ser exibidos 29 nem 31.

Não pode haver problemas técnicos, como desníveis de áudio, ruído no ví-

deo, etc.

Break comercial: estratégia e efi ciência | 161

Não são aceitos comerciais de baixa qualidade técnica, ou que apresentem

problemas com a justiça, como direitos autorais, racismo, etc.

Não são aceitos comerciais estrelados por artistas do mesmo programa: se

um ator está na novela das sete, os comerciais que ele protagoniza não podem

entrar nesse horário.

Não pode haver choques entre concorrentes.

Mas, como comentamos anteriormente, nisso está apenas uma parte da res-

posta. Se tudo se resumisse a questões de fi nanciamento, como explicar então

a existência de breaks (não comerciais, inclusive) em emissoras por assinatura,

como os canais de televisão a cabo?

Outra parte da resposta que explica a existência do break está na fl uidez da

televisão. Afi nal, são praticamente 24 horas de programação diária ininterrup-

ta. Como administrar o tempo e tantos conteúdos? É nisso também que está

a importância do intervalo, mesmo que ele não seja comercial. Nesse caso, tal

como acontece em emissoras privadas, por exemplo a MTV (Music Television,

do grupo Editora Abril), os breaks são preenchidos com comerciais auto-refe-

rencias, que dizem respeito à própria grade de programação do canal televisivo,

e vinhetas institucionais.

A partir de agora, portanto, analisaremos justamente o caráter não comer-

cial dos breaks. Se, como vimos, a prática comporta a estratégia, realizaremos

semioticamente um processo de desconstrução, analisando a estratégia para en-

tender as razões por trás da prática: um percurso que parte dos usos para chegar

às funções.

O CARÁTER NÃO COMERCIAL DO BREAK

Como estamos tomando o break comercial como uma prática televisiva,

vale a pena entender algumas características desse meio de comunicação antes

de prosseguirmos. A estética da televisão é marcada por dois aspectos básicos: a

auto-refl exividade e a auto-referencialidade.

O primeiro aspecto citado é o que temos maior difi culdade para encontrar

na grade de programação. Pouco comum, a auto-refl exividade diz respeito a

uma produção que discute a própria linguagem do meio e suas potencialida-

des, tal como acontece em Cinema Paradiso (1989), de Giuseppe Tornatore, no

caso do cinema; em Adaptation (2002), de Spike Jonze, no caso da produção

de roteiro para fi lmes; ou na própria vídeo-arte, com os Distorted TV Sets que

162 | Jaqueline Esther Schiavoni

Nam June Paik (1963) apresentou na Alemanha. Mas, para citar um exemplo

próprio da televisão, basta pensar na vinheta de abertura do Jornal da Globo:

ao trabalhar fi gurativamente com uma imagem-luz, de aspecto granuloso, cuja

forma somente aparece a partir do momento em que a câmera se distancia, o

artista-criador está, na verdade, colocando em evidência características da pró-

pria imagem televisiva, discutindo seu processo de formação, já que é ela mes-

ma uma imagem-mosaico, formada de pequenos pontos luminosos que são os

pixels (Schiavoni, 2008).

Mas o aspecto que queremos destacar neste momento não é o da auto-re-

fl exividade, mas o da auto-referencialidade, que diz respeito ao caráter meta-

lingüístico da programação televisiva. Entendemos isso melhor se atentarmos

para a Tabela 3 (ver Anexos). Essa tabela traz o conjunto de breaks comerciais

de alguns programas (telejornais, novelas, seriados, revistas eletrônicas etc.) da

televisão brasileira – escolhidos aleatoriamente – discriminando-os, conforme

as ocorrências encontradas:

(C) Comerciais (de caráter nacional ou local)

(I) Comerciais institucionais – relativos/fi nanciados pela emissora ou afi -

liada

(R) Comerciais auto-referenciais – relativos à grade de programação

(A) Comerciais de apoio à programação – marcas que fi nanciam determi-

nados programas.

(G) Comerciais de produtos do grupo – ex: Tele-sena, Som livre etc.

(P) Programas

( _____ ) Intervalo entre programas

Com relação ao aparecimento de vinhetas, encontramos:

(1) Vinhetas de abertura – aparecem no início dos programas

(2) Vinhetas de passagem – aparecem no início e/ou fi m de cada bloco

(3) Vinhetas de encerramento – aparecem ao término dos programas

(4) Vinhetas institucionais – logo da emissora ou afi liada

Como pode ser observado nos dados da tabela, faz parte da estética da tele-

visão a auto-referência. Se, de modo geral, considerarmos em cada emissora ape-

nas os blocos que não têm comerciais de apoio à programação2, a porcentagem

2 Os comercias de apoio à programação constituem um tipo “híbrido”, pois ao mesmo tempo em que destacam um produto ou marca independente da emissora, seu uso está atrelado à programação televisiva, o que lhes confere uma aparição diferenciada. Por essa razão, optamos por estabelecer as porcentagens em blocos sem comerciais de apoio.

Break comercial: estratégia e efi ciência | 163

de propaganda institucional ou referencial atinge os seguintes números: 58% na

Globo, 60% na Bandeirantes, 47% no SBT, 82% na Fundação Padre Anchieta e

39% na Record. E esses comerciais – os referenciais, institucionais e as vinhetas

institucionais – são os que prevalecem no caso de breaks entre programas. Sem

dúvida, trata-se de uma fórmula criada para manter o telespectador aprisionado

na programação e estabelecer mais fortemente a marca da emissora.

Nesse intuito, as vinhetas desempenham papel fundamental, visto que toda

propaganda institucional e também o comercial referencial são realizados tendo

como base uma vinheta de apresentação, seja a dos programas em questão ou

da própria emissora. Mas por que isso é tão signifi cativo? Se hoje há dezenas de

marcas de um mesmo produto, a construção de marcas fortes parece ter sido

um imperativo para a sobrevivência no mundo mercadológico. Nos próximos

parágrafos vamos explicar isso melhor, tomando como base o caso exemplar do

telejornalismo.

Diversos tipos de programas televisivos, mas especialmente os telejornais,

não escaparam à lógica mercantil e, como produtos midiáticos, buscaram esta-

belecer marcas sufi cientemente fortes para vender a si próprios:

Uma marca é um nome diferenciado e/ou símbolo (tal como um logoti-

po, marca registrada ou desenho de embalagem) destinado a identifi car

os bens ou serviços de um vendedor ou de um grupo de vendedores e a

diferenciar esses bens e serviços daqueles dos concorrentes. Assim, uma

marca sinaliza ao consumidor a origem do produto e protege, tanto o

consumidor quanto o fabricante, dos concorrentes que oferecem produ-

tos que pareçam idênticos (Tarsitano; Navacinsk, 2004: 230).

Uma análise, mesmo que breve, dos telejornais veiculados atualmente pode

revelar o processo de homogeneização a que estão submetidos. Não se trata

apenas de questões estéticas, tal como a disposição da bancada de apresenta-

ção, o enquadramento realizado, a vestimenta sóbria de seus apresentadores

– problemas que outros tipos de programas (infantis, femininos, de entrevista)

também enfrentam. Mas, especialmente no caso do telejornalismo, a homoge-

neização se dá também em aspectos relacionados ao conteúdo dos programas.

A possibilidade de recorrer às mesmas agências de notícias, somada às facilida-

des proporcionadas pelas novas tecnologias – tanto para captação e transmissão

de imagens como produção e veiculação “ao vivo” de conteúdos em qualquer

parte do mundo – parece ter permitido o fi m das maiores disparidades entre

os telejornais. Desse modo, podemos observar uma correspondência tanto na

estrutura dos programas (quanto às editorias: esporte, economia, internacional)

164 | Jaqueline Esther Schiavoni

como também de notícias. As diferenças costumam se destacar apenas de acor-

do com o horário em que os programas são veiculados e, conseqüentemente,

com o público a que se destinam, conferindo para cada tipo de enunciatário

uma abordagem particular do fato (Schiavoni, 2005).

Assim, o investimento em uma marca forte parece ter sido uma solução

para escapar do processo de homogeneização, na medida em que possibilita di-

ferenciar o produto em relação aos concorrentes. Mas isso não é tudo. A marca

também é capaz de assegurar qualidade e representar uma garantia para o con-

sumidor. Essa garantia se dá à medida que o consumidor consegue identifi car a

origem do produto que tem permitido entrar em sua casa.

Conforme é apresentado na própria defi nição do termo “marca” (Rabaça;

Barbosa, 2001), tal identifi cação pode ser obtida por várias formas signifi cantes:

a) o nome da empresa, da instituição ou do produto em sua forma gráfi ca (es-

crita) ou sonora (falada), de modo a indicar instantaneamente a entidade ou a

coisa representada; b) símbolo visual – fi gurativo ou emblemático; c) logotipo

– representação gráfi ca do nome, em letras de traçado específi co, fi xo e caracte-

rístico; d) o conjunto desses símbolos, numa só composição gráfi ca, permanen-

te e característica, constituída pelo nome, pelo símbolo e pelo logotipo.

Com relação às vinhetas, podemos dizer que todos os recursos citados an-

teriormente são utilizados. É possível observar em tais videografi smos uma ten-

tativa constante de aproximar-se do próprio nome e estética da marca maior na

qual estão inseridos: suas emissoras. Buscam, portanto, aproveitar um contrato

anterior, instaurado pelas várias produções já realizadas, veiculadas e conheci-

das do público. A qualidade observada, mesmo em outros segmentos – entrete-

nimento, esporte, variedades – pode, então, ser revalidada ou mesmo intensifi -

cada, por exemplo, no segmento noticioso e vice-versa. Esse é, portanto, um dos

aspectos estratégicos do sintagma criado pelas emissoras em seus intervalos: a

auto-referencialidade. Como já dissemos, essa estratégia busca fi rmar, por repe-

tição, a identidade visual da empresa.

Além disso, as vinhetas também aparecem de modo estratégico nos breaks

comerciais, seguindo, em geral, a fórmula R2P: a seqüência de um comercial

auto-referencial, a vinheta de passagem e o programa. Essa seqüência permite

que o telespectador reconheça – quer pelo áudio da vinheta (sobretudo se esti-

ver distante do ecrã), quer pelo visual – que o programa que está acompanhan-

do entrará no ar em segundos, podendo então realizar seus últimos ajustes e,

desse modo, não perder parte da atração televisiva. Nesse sentido, outro aspecto

estratégico que merece ser levado em consideração tem a ver com os comerciais

Break comercial: estratégia e efi ciência | 165

de apoio. Esse tipo de comercial funciona como uma espécie de resumo da pro-

paganda e, em decorrência disso, seu tempo de exibição é menor. Dessa forma,

uma seqüência de 3 a 4 comerciais de apoio e uma locução dinâmica imprime

um ritmo diferente ao break. Quando ocorre esse tipo de construção, o telespec-

tador pressente – pelo hábito – que o intervalo terminará em breve.

No desenvolvimento de alguns programas, tais como as revistas eletrôni-

cas, o papel da vinheta é também fundamental. É ela que marca a organização

dos assuntos abordados, fazendo a separação entre as sessões. Em todos esses

casos, a vinheta aparece estrategicamente, de modo a operacionalizar a fl uidez

do tempo, já que a serialidade é uma das principais características da televisão

analógica e, portanto, componente formador de sua identidade (Williams, 1979;

Machado, 2000).

A TELEVISÃO DIGITAL INTERATIVA E O BREAK COMERCIAL

Com a televisão digital interativa, o fl uxo da programação – ou seja, a vei-

culação de conteúdos seguindo uma grade horária – tenderá a ser substituída

pelo armazenamento de conteúdos (sistema on demand), de modo que o teles-

pectador ou, melhor dizendo, o usuário poderá formar a sua própria grade de

programação.

Isso signifi ca que a publicidade terá que se adaptar, criar novos modelos

de inserção e, sobretudo, buscar novas estratégias. De certa forma, isso já vem

acontecendo desde a criação do Tivo. Nos Estados Unidos, esse gravador de

vídeo digital já é vendido há vários anos. Além de permitir buscas (encontrar

fi lmes com um determinado ator), monitorar as preferências dos usuários e su-

gerir programas de acordo com elas, pausar transmissões ao vivo e permitir que

o usuário veja replays instantâneos das cenas que desejar, o Tivo tem um guia de

programação eletrônico que ajuda a gravar programas da televisão. Isso signifi -

ca que há não apenas a possibilidade de detecção, mas também de exclusão da

publicidade usada nos programas da televisão comercial.

Como fazer, então, com que os usuários assistam aos comerciais? A KFC

– Kentucky Fried Chicken, uma rede de restaurante de comida rápida estaduni-

dense – bolou uma maneira inteligente de fazer com que assistam a seus anún-

cios. No último comercial lançado, se o anúncio for passado em slow-motion, os

telespectadores serão capazes de decodifi car uma mensagem secreta que lhes

166 | Jaqueline Esther Schiavoni

dará direito a um sanduíche gratuito!3

Outra saída que já vem sendo sugerida aos grandes anunciantes é que par-

ticipem mais do conteúdo da programação. Um bom exemplo nesse sentido é

o fi lme Náufrago. Nele, a empresa de transportes Fedex e uma bola de vôlei da

Wilson fazem parte da história, não são meros anunciantes. Exemplos como

esses, pautados na experiência que a publicidade já tem no cinema, televisão e

internet, apontam o caminho que a publicidade deverá tomar com a chegada da

televisão digital interativa. Mas, se como vimos, a estratégia e a efi ciência de-

correm da prática – quer dizer, são conseguidas, dilapidadas e mesmo validadas

pelo uso e sua repetição no decorrer do tempo – teremos de esperar ao menos

um certo amadurecimento desse novo meio.

3 DVR – Publicidade na TV Digital. Disponível em: <http://marketingdeguerrilha.wordpress.com/category/dvr-publicidade-na-tv-digital/>. Acesso em: 20 de dezembro de 2007.

Break comercial: estratégia e efi ciência | 167

ANEXOS

TABELA 14

Ano Televisão Jornal Revista Rádio Outros

1962 24.7 18.1 27.1 23.6 6.5

1964 36.0 16.4 19.5 23.4 4.7

1966 39.5 15.7 23.3 17.5 4.0

1968 44.5 15.8 20.2 14.6 4.9

1970 39.6 21.0 21.9 13.2 4.3

1972 46.1 21.8 16.3 9.4 6.4

1974 51.1 18.5 16.0 9.4 5.0

1976 51.9 21.1 13.7 9.8 3.2

1978 57.8 16.2 14.0 8.1 3.9

1980 57.8 16.2 14.0 8.1 3.9

1982 61.2 14.7 12.9 8.0 3.2

1984 61.4 12.3 14.3 6.8 5.2

1986 55.9 18.1 15.2 7.7 3.1

1988 60.9 15.9 13.9 6.6 2.7

1991 56.0 27.4 9.2 5.1 2.3

1993 53.0 34.0 7.0 5.0 1.0

1995 55.0 28.0 9.0 5.0 3.0

1997 60.4 26.9 6.6 4.6 1.5

1999 62.7 23.3 6.0 5.0 2.9

2001 58.1 24.3 7.8 5.8 4.0

2003 56.6 21.0 7.0 5.3 10.0

2005 60.2 17.2 6.7 4.5 11.4

2007 60.2 16.9 7.0 4.4 11.6

Distribuição percentual da verba de mídia por veículo

TABELA 2EXEMPLO 1 EXEMPLO 2 EXEMPLO 3

Supermercado A

Loja de roupas

Construtora

Drogaria

Concessionária

Loja de presentes

Supermercado B

Telefonia celular

Macarrão instantâneo

Supermercado

Loja de eletrodomésticos

Automóvel

Banco

Laxante

Tinta de cabelo

Sandálias

Loja de eletrodomésticos

Sabão em pó

Maquina de lavar

Chá

Loja de roupas

4 Para o período que vai de 1962 a 1997, baseamo-nos em Mattos (2002: 56). Dessa data em diante, servimo-nos de: Intermeios. Disponível em: <http://www.projetointermeios.com.br>. Acesso em: 20 de Abril de 2007.

168 | Jaqueline Esther Schiavoni

TABELA 3REDE GLOBO DE TELEVISÃO

TELEJORNAL NOVELA REVISTA ELETRÔNICA

1ºbloco P1RCCCRIAAAACR2P P1RCCCCRGCCCR2P 1P2RICCRCCCR2P

2ºbloco P2RCCCRICCR2P P2RCCRCRCCCIR2P P2RCCIRCICCRA2P3

3ºbloco P2RCRCIAAAAACCR2P P2RCCRRCGRA2P3 _______

_____ RP1 RARP RCP

REDE BANDEIRANTES DE TELEVISÃO

PROG. FEMININO PROG. DE ESPORTE TELEJORNAL

1ºbloco 1P2RCCCRCCCCR2P 1P2CCICRCIRACCCRRAA2P 1PI4CRAAA2P

2ºbloco P2RCCCCCCCR2P P2RCCCCCCRRA2P P2RACCCCCRIAA4RA2P

3ºbloco P2RCCCCRR4CCCR2P P2RCCCCCCCIRAAA2P3 P2RACCCIR2P

_____ P34P RAAAIIRAA P3RAAAI4RAP

SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO

PROG. ENTREVISTA TELEJORNAL PROG. MUSICAL

1ºbloco P1P2RACCCCCCCC2P P1P2CCCCC2P 1PRCCCCCCCC2P

2ºbloco P2RAAACCCCCCCAA2P P2CGCI2P P2CCGGCCCCCI2P

3ºbloco P2RACCCCG2P3 P2GCGCG2P P2RCGCGCCCCCC2P3

_____ R4P RAAIR RAAAAARIRAA

FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA

TELEJORNAL REVISTA ELETRÔNICA PROG. ENTREVISTA

1ºbloco P1P2RAAARCCRCR42P 1P2RAACCCCCR42P 1P2RAACCCIR42P

2ºbloco P2RACCRCCR42P P2RAACCCCCR42P P2RACRCIR42P

3ºbloco P2RIRCR4P P2CCCCCCCIA RAA2P3 P2RCRCIR42P3

_____ 4RAARRAAAACR4 4RAAARCCRAA 4RAAARR4

REDE RECORD DE TELEVISÃO

TELEJORNAL NOVELA REALITY SHOW

1ºbloco P1P2CCCRAAAARCCR2P P1RCCCCCCRAACCCCCI2P 1P2RCCCRRCCCCIR2P

2ºbloco P2CIAAAAACCCC2P P2RCCCCCCCC2P P2RCRCRCCCCRAAAAAAA2P

3ºbloco P2CCRAAAARCI2P3 PRCRAACCCCCC2P3 _______

RICRP RIP PRP

A auto-referencialidade na produção estética da televisão

Break comercial: estratégia e efi ciência | 169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000.

MATTOS, Sérgio. História da televisão brasileira. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

RABAÇA, Carlos; BARBOSA, Gustavo. Dicionário de comunicação. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2001.

SCHIAVONI, Jaqueline. Telejornal: recortando a notícia. Anais do XXVIII

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – INTERCOM. Rio de Janeiro,

2005. 1 CD-ROM.

SCHIAVONI, Jaqueline Esther. Vinheta: uma questão de identidade na televisão.

132 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Arquitetura,

Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2008.

TARSITANO, Paulo; NAVACINSK, Simone. Marca: patrimônio diferencial

das empresas e diferencial dos produtos. In: MELO et al (orgs.). Sociedade do

conhecimento. São Bernardo do Campo: Celacom, 2005.

WILLIAMS, Raymond. Television: technology and cultural form. Glasgow:

Fontana/Colins, 1979.

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 171

FIGURALIDADE E SEMI-SIMBOLISMO NA ABERTURA DA TELENOVELA BELÍSSIMA

Loredana Limoli

Sabemos que as aberturas desempenham algumas funções específi cas na

enunciação das novelas. Elas são como uma espécie de título expandido do tex-

to teledramatúrgico, construído não em linguagem puramente verbal, mas, usu-

almente, em sincretismo verbo-visual e sonoro. Como título, elas sinalizam o

conteúdo da novela e contribuem, de modo geral, para a manipulação do teles-

pectador-enunciatário, na medida em que apresentam um avant-goût da trama,

funcionando como elemento de sedução. Paralelamente a essa função manipu-

latória, que desemboca num “querer assistir”, a abertura serve-se de cuidadoso

material sonoro para sinalizar, dentro dos lares, o momento de interrupção das

atividades domésticas, funcionando como um verdadeiro “toque de recolher”,

de inegável efi cácia sobre o público fi delizado. “Hora da novela”, nos lares brasi-

leiros, tornou-se um paradigma temporal tão importante quanto deve ter sido,

em civilizações distantes, o nascer e o pôr do sol.

As aberturas são parte integrante da estratégia de distribuição das novelas.

De olho no mercado consumidor, os produtores de abertura buscam associar

imagens a uma música, que fará parte, evidentemente, do arquivo sonoro que

compõe a chamada “trilha” – um dos produtos de maior lucratividade da em-

presa mercadológica envolvida na produção. Em geral, as aberturas repetem-se

172 | Loredana Limoli

parcialmente a intervalos, já que servem, também, para trazer de volta à tela as

pessoas que se desligaram momentaneamente da tv. Pela repetição, o texto de

abertura remete-nos constantemente ao texto maior da novela, em perspectiva

metonímica.

Tendo-se benefi ciado, nas últimas décadas, do altíssimo desenvolvimento

da tecnologia videográfi ca, as aberturas de telenovelas hoje estão aptas a com-

petir com qualquer outro gêneros ou subgênero televisivo, no que diz respeito

ao padrão de qualidade estética. A abertura da telenovela Belíssima, exibida

pela rede Globo de televisão no período de novembro de 2005 a julho de 2006,

é um desses exemplos de investimento bem sucedido de construção textual,

que resultou numa produção sincrética tão apreciada pelo público, quanto foi

a própria novela a que servia de introdução. Pelo incremento estético, a aber-

tura de Belíssima ganhou, assim, outra dimensão, destacando-se como um

produto videográfi co de alta qualidade, o que nos leva a considerá-la como

uma pequena obra de arte dentro do universo da televisão brasileira. Pela se-

dução poética, manipulando nossos sentidos para o novo e para o belo, essa

abertura convida-nos à análise e permite-nos observar, além da evidente fun-

ção metonímica, relações simbólicas que nem sempre acompanham esse tipo

de texto-síntese.

A abertura de Belíssima tem como cenário uma vitrine, enquadrada como

se o observador estivesse no interior da loja e pudesse perceber três planos dis-

tintos: no primeiro plano, a protagonista (a modelo Michelle Alves) move-se

em câmera lenta, dentro da vitrine; em segundo plano, algumas pessoas passam

como se estivessem caminhando na calçada, em ritmo normal de caminhada,

sugerindo uma situação de fi nal de trabalho ou intervalo de almoço; no terceiro

plano, enfi m, carros entrecruzam-se velozmente nas ruas, enquanto se vêem, ao

fundo, prédios e arranha-céus de uma grande cidade (provavelmente São Paulo)

e as nuvens no céu movem-se rapidamente, graças ao recurso do fast. Enquanto

a modelo desenvolve no tempo e no espaço uma coreografi a sensual, ouve-se a

canção “Você é linda”, na voz de Caetano Veloso.

Ao encararmos essa abertura como uma pequena “obra de arte” temos em

mente algumas idéias, hoje um pouco esquecidas, de V. Chklovski que transpa-

recem nas palavras do autor:

Os objetos muitas vezes percebidos começam a ser percebidos como

reconhecimento: o objeto se acha diante de nós, sabemo-lo, mas não o

vemos. Por isso, nada podemos dizer sobre ele. Em arte, a liberação do

objeto do automatismo perceptivo se estabeleceu por diferentes meios.

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 173

[...] e eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos,

para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da

arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento;

o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos...

(Chklovski, 1971:45)

Tomada como objeto estético, de natureza sincrética, a abertura de Belíssi-

ma foge ao lugar-comum do texto puramente apresentativo, de linguagem se-

dimentada, cujo objetivo principal seria apenas transmitir ao público-receptor

informações sobre a equipe produtora, atores e demais profi ssionais da novela.

Enquanto “gênero”, portanto, inclui algo mais, que a libera do automatismo per-

ceptivo que acompanha esse tipo de produção. Sua individuação consiste na

elaboração de um conjunto harmônico de elementos imagéticos, sonoros e ges-

tuais e, principalmente, no prolongamento do efeito estético produzido sobre

o enunciatário, por meio de uma feliz associação entre arte e técnica. Mostra-

remos, a seguir, como o enunciador consegue, graças à combinatória de ele-

mentos de linguagens diferentes, aspectualizar durativamente o efeito plástico,

interferindo na percepção da mensagem, que, sob a modelização durativa, passa

a ser apreciada, ao mesmo tempo, como totalidade e inovação.

Para aspectualizar durativamente o efeito plástico da cena, a enunciação te-

levisiva lança mão de estratégias que agem sobre o conteúdo, mas também sobre

a expressão, o que nos faz pensar que a própria operação de semiose é afetada

pela duratividade. Dentre essas estratégias de persuasão, a fi gurativização assu-

me um papel preponderante, ao lado de procedimentos como a redundância, os

paralelismos formais, alguns elementos semânticos distribuídos numa sintaxe

que instiga a completude, além, é claro, de tudo o que pode interferir senso-

rialmente na percepção. É o caso da música, que está sempre associada a esse

gênero “abertura”, e também das tomadas em planos e angulações diferentes,

que permitem que uma mesma imagem seja apreciada sob múltiplos pontos de

vista, o que, por si só, age no sentido de prolongar o efeito plástico.

No que se refere à fi gurativização da abertura em análise, três aspectos são

observados, seguindo-se a idéia de que “o enriquecimento semântico do dis-

curso proporcionado pela fi gurativização produz efeito de realidade, de corpo-

ralidade e de novidade individual e criativa” (Barros, 2004a:14). A propaganda

trabalha evidentemente com as três possibilidades de efeito; e a abertura, como

uma espécie de propaganda de novela, também lançará mão desses recursos.

Assim, nessa abertura, pelo alto grau de iconização da imagem fotográfi ca,

e pelo investimento pessoal que cada um de nós está apto a despender no ato de

174 | Loredana Limoli

recepção da mensagem, reconhecemos como pertencente a uma dada realidade

a modelo-dançarina, que evolui sensualmente no espaço fechado de uma vitrine

– este último reconhecível pela união entre forma espacial (semântica) e sintaxe

do espaço em torno, onde circulam os transeuntes. Portanto, é graças ao plano

do conteúdo icônico que temos acesso a essa realidade, que nos é permitido

compartilhar, sem que a validação ou não de um universo tangível imponha

obstáculo à percepção geral que temos da cena.

Música, efeitos imagéticos, gestualidade, proxêmica, colaboram, por sua

vez, para a concretização sensorial, que produz efeitos de suavidade, sensuali-

dade, leveza, liberdade, etc. Nesse sentido, pode-se dizer que a abertura de Be-

líssima faz a manipulação do sensível pelo belo, ao eleger como objeto plástico

uma dança protagonizada por uma modelo perfeitamente inserida nos padrões

estéticos vigentes. Ressalte-se que o público masculino parece ter sido o alvo

maior dessa proposta de sedução pelo belo.

Mas é a “novidade individual e criativa” o que mais nos interessa enfocar,

para continuarmos a seguir a linha de raciocínio inicial, que focaliza a plastici-

dade do texto em associação com as idéias sobre a obra de arte, tal qual a encara

o formalista Chklovski. Sob esse aspecto, a relação entre tema e fi gura, presente

na discursivização da abertura, é responsável por um primeiro impacto percep-

tivo, já que o investimento fi gurativo (uma manequim dançando e parcialmente

despindo-se numa vitrine) não é uma correspondência tão usual para a temática

da moda quanto seria, por exemplo, uma passarela de desfi le. Trata-se de uma

“modelo-viva”, mas que se movimenta com gestualidade em nada semelhante

aos manequins tradicionalmente encontrados em algumas lojas de roupas de

grandes cidades. A relação tema/fi gura, portanto, foge um pouco ao comum e

por isso é valorizada esteticamente.

Além disso, intervém na constituição da novidade uma série de elemen-

tos que, relacionando expressão e conteúdo, contribuem, sobremaneira, para a

produção de sentidos e a ênfase na poeticidade. Trata-se, aqui, do que a semió-

tica chama de semi-simbolismo, defi nido como uma relação de conformidade,

não mais termo a termo, como acontece no caso do símbolo – por exemplo,

quando entendemos que uma clave de sol representa a música ou a estrela de

Davi o judaísmo – mas entre categorias do conteúdo e da expressão. Fontanille

(2007:137) destaca a importância do semi-simbólico para o tratamento analítico

do discurso, opondo-o ao simbólico, cuja origem seria ou por demais conven-

cional, ou, ao contrário, dependente apenas de subjetividades do analista. Já as

conexões entre sistemas de valores, próprias ao semi-simbolismo, garantiriam a

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 175

coerência do conjunto discursivo e, portanto, seriam um material privilegiado

para a análise da práxis enunciativa.

Por ser uma codifi cação de cunho particular e específi co, dependente de

uma dada enunciação, o semi-simbólico tem uma importância muito grande na

instauração do novo, na criação artística, na elaboração da arte e, também, na

pregnância cognitiva da mensagem. “O semi-simbolismo é uma das formas de

estabilização do sentido no discurso: ele o estabiliza, tornando-o mais específi co”

(Fontanille, 2007:138). Não é à toa que a publicidade, por exemplo, faz uso, em

larga escala, do semi-simbolismo, não apenas para individualizar um anúncio

em relação a outros, conferindo-lhe uma dose de poeticidade, que o especifi ca,

mas, principalmente, para fi xar na memória do consumidor, estabilizando-as, as

associações valorativas do produto que apresenta.

Para a análise da abertura de Belíssima, retivemos como produtiva a opo-

sição fundamental /identidade/ vs /alteridade/, sendo o primeiro termo repre-

sentativo da individualidade da modelo, que se destaca dos demais personagens

pelo caráter insólito de sua performance gestual e personaliza-se pela espaciali-

dade da vitrine e os movimentos da dança; enquanto que a /alteridade/ estaria

ligada ao cotidiano dos “outros”, que circulam no caos da metrópole e consti-

tuem o corpo social amorfo e incógnito da civilização urbana dos tempos atuais.

Essa oposição do nível profundo relaciona-se, mais superfi cialmente, à temática

do tempo que, para a modelo, é um tempo individual, distenso, prazeroso, o

que contrasta, marcadamente, com o ritmo acelerado e tenso das massas que se

deslocam em meio a carros em alta velocidade.

Sobre a oposição fundamental do plano do conteúdo, articulam-se cate-

gorias próprias à expressão das linguagens que se fundem na produção do tex-

to televisual, constituindo o arcabouço semi-simbólico dessa mensagem. Com

relação ao movimento, por exemplo, temos uma aspectualidade durativa para

a moça, enquanto que os transeuntes são marcados pelo pontual terminativo

(há uma pausa do movimento dos passantes quando eles se aproximam da

vitrine). Sob o ponto de vista da captação de imagens, identifi ca-se a isotopia

/nítido/ vs /embaçado/, em que o primeiro termo aparece correlacionado ao

sujeito “moça”, enfatizando sua relevância como indivíduo diferente, distinto

dos demais; os “outros” aparecem em cena sob efeito de desfocagem, o que, no

plano do conteúdo, corresponde à idéia de indistinção, característica das mas-

sas. Apenas quando os passantes se aproximam da vitrine é que o foco se torna

mais nítido, dando a idéia de “contágio” dessa situação particular de novidade

vivida pela modelo. Quanto às linhas que integram a composição visual da cena,

176 | Loredana Limoli

há o predomínio de senóides no espaço interno ocupado pela moça, enquanto

que o espaço externo dos passantes é marcado pela presença das linhas retas

dos prédios.

As oposições mínimas destacadas podem ser visualizadas, esquematica-

mente, a seguir:

Identidade Alteridade(insólito) (cotidiano)(moça) (outros)

Cinético durativo Cinético terminativoNítido Embaçado

Predominância de senóides Predominância de linhas retas

Essas isotopias encontram, no nível discursivo, uma correspondência temá-

tica. Destacam-se alguns temas a que a abertura remete: estética corporal, har-

monia das formas, beleza feminina, glamour, emergência da lingerie (que passa,

de “roupa de baixo”, para o status de “roupa de cima”). Em relação metonímica,

esses temas refl etem a organização discursiva da novela, que, como se sabe, de-

senvolveu a trama em torno de uma sofi sticada indústria de lingerie e procurou

relacionar o mundo da moda aos detentores do poder econômico.

A análise da abertura passa, forçosamente, pelo exame da telenovela como

um todo, e isso não apenas em relação aos aspectos da materialidade da ima-

gem, mas, principalmente, de sua interação com o código verbal, a partir do

qual são geradas as conotações mais signifi cativas.

É sabido que, como muitos outros gêneros fi ccionais televisivos, a telenove-

la está a serviço do consumo de uma gama enorme de produtos e subprodutos,

anunciados de forma explícita ou implícita durante o período de divulgação

do programa. Muitas vezes, como é o caso de Belíssima, parte da campanha

mercadológica está diretamente associada à situação comunicativa específi ca da

história encenada, ou seja, há um contínuo ir e vir entre a enunciação da novela

propriamente dita e o simulacro enunciativo da realidade, ou telerrealidade. Em

se tratando de um gênero fi ccional com identidade própria, por excelência poli-

fônica, não encontramos na telenovela marcas de um enunciador individualiza-

do, por mais que se identifi que, principalmente no caso analisado, um leve estilo

autoral. O “enunciador” é na verdade um “arqui-enunciador”, constituído pelas

vozes de enunciadores-delegados (personagens, que convertem o texto escrito

em texto encenado e são embreadores do discurso) e para-enunciadores (publi-

citários, governantes, militantes, atores não-semióticos, etc.). Assim, o “centro

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 177

do discurso” caracteriza-se pela mobilidade e certa dose de imprevisibilidade,

controlada por índices de audiência e resultados comerciais. Além da comple-

xa rede enunciativa, a telenovela coloca em funcionamento diversas estratégias

persuasivas com o fi m de conquistar a adesão do espectador-enunciatário, como

o cenário, a composição temático-fi gurativa das personagens (atores semióti-

cos), a gestualidade, a trilha sonora e o fi gurino. Todos esses elementos agem

em conjunto, quase sempre de forma redundante, para gerar efeitos de sentido,

na maioria das vezes previstos pela própria organização seqüencial e seriada da

novela, embora possam, algumas vezes, juntar-se posteriormente – e até mesmo

inesperadamente – a elementos persuasivos já inseridos.

Herdeira dos folhetins literários do século XIX, a telenovela destaca-se, en-

quanto gênero textual, não pelo acréscimo da imagem (a telenovela continua

sendo essencialmente verbal), nem por inovações de cunho narrativo, mas pela

solicitação constante à adesão e à identifi cação do telespectador. Nesse tipo de

emissão, as construções referenciais se dão pela linguagem (verbal e visual, prin-

cipalmente), mas também por uma série de eventos que se tornam concomitan-

tes ao momento vivido na realidade extralingüística, como é o caso bem conhe-

cido da preparação para festas religiosas, como Natal e Páscoa, ou referências

contextuais a acontecimentos de interesse nacional. Respeitando-se, na medida

do possível, um tempo-calendário semelhante à realidade, incorpora-se à esfera

fi ccional uma parte sensível de contextualização do “real” e do “contemporâneo”,

seguindo-se uma lógica de atualidade participativa (uma espécie de “experiên-

cia compartilhada” entre personagens e público), na qual se torna possível a par-

ticipação de enunciadores eventualmente não previstos pelo diretor/produtor

da obra, principalmente do enunciador-testemunha – o próprio público-alvo.

Aqui interfere a diferença, apontada por Greimas (1979:48), entre o fazer-pro-

dutor e o fazer-comunicativo: uma vez transformado em espetáculo, na mira de

uma multidão de observadores, o diálogo entre dois personagens, por exemplo,

produz sentidos que ultrapassam largamente as fronteiras do script verbal. E

a enunciação televisiva, reconhecidamente caleidoscópica, torna-se, na novela,

um dispositivo de alta complexidade, em que é impossível distinguir, a qualquer

momento e com precisão, “quem fala” e “de onde fala”. É como se a enunciação

da telenovela fosse constituída de estratos, que vão desde o escritor da peça, pas-

sando pelo diretor, atores, publicitários, anunciantes e o próprio público, que,

por meio de sondagens de opinião, participa de decisões importantes quanto ao

desfecho da trama, vestuário, linguagem, comportamentos sociais, moralidade,

etc. Além disso, nem sempre há congruência perfeita entre a narração verbal e a

178 | Loredana Limoli

narração visual e sonora na própria fi lmagem dos capítulos, o que acentua ainda

mais o caráter plurienunciativo da narrativa telenovelística.

Esse transbordamento do texto televisivo por ação de enunciadores distintos

do produtor da novela, embora à primeira vista incontrolável, está sujeito às normas

fi xadas pela produção: aquilo que não se traduz em aumento ou, pelo menos, manu-

tenção de audiência, deve ser imediatamente descartado. Mas, de qualquer maneira,

ele se torna um elemento importante dentro da estratégia comercial que acompanha

(e gera) esse tipo de programação. Primeiro, porque esse “público-alvo” a que se

destina a novela é, na realidade, um público vasto e heterogêneo e, portanto, quanto

maior for a disponibilização de pontos de vista, a multiplicidade de personagens e a

gama de interesses ideológicos vinculada aos participantes da produção comunica-

tiva, maior será a chance de ampliação do horizonte de penetração de audiência.

A diversifi cação de enunciadores e a presentifi cação da novela (Belíssima

simula uma concomitância com o presente extralingüístico) são aspectos im-

portantes do estabelecimento do contrato fi duciário entre o destinador da men-

sagem (produtor + diferentes enunciadores) e o destinatário (público-alvo).

Trata-se do contrato enunciativo, “que visa estabelecer uma convenção fi duci-

ária entre o enunciador e o enunciatário sobre o estatuto veridictório (o dizer-

verdadeiro) do discurso-enunciado”. (Greimas, 1979:71). Há, a princípio, dois

contratos principais em jogo: um primeiro contrato estabelece o limite entre

a realidade e a fi cção, e apresenta-nos a totalidade enunciativa como verdade

(é e parece fi cção); o outro contrato diz respeito às relações de internalização

do enunciatário-telespectador, que crê nos possíveis narrativos em virtude da

semelhança dos fatos com o real vivido ou vivível. Neste último caso, a parciali-

dade enunciativa (uma cena, um capítulo, um “núcleo”) é entendida ao mesmo

tempo como ilusão (parece real, mas não é) e como verdade (é e parece possí-

vel). Essa ambigüidade do contrato enunciativo, que nos faz oscilar entre uma

adesão total e uma desconfi ança do que vemos, ocorre porque as “verdades” do

texto-ocorrência (a novela) são validadas exclusivamente no interior do mundo

da fi cção. Em nossos mecanismos de recepção da mensagem fi ccional, há uma

espécie de válvula de escape que nos permite distanciar da trama vivida sempre

que nossas crenças forem incapazes de validar determinadas verdades textuais.

Optamos, nesses momentos, por uma saída do enunciado rumo à enunciação, o

que provoca uma opacização do signifi cante.

À medida que os participantes da comunicação (enunciador e enunciatário) to-

mam seus lugares da enunciação, a TV propõe seus pactos enunciativos e o público

responde com adesão a crenças diversas, entregando-se ao universo fi ccional pre-

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 179

estabelecido. A recepção pressupõe a colocação em funcionamento de dispositivos

sócio-simbólicos, que vão desde a compreensão de jargões e dialetos específi cos a

determinados grupos (os gregos e os turcos de Belíssima, por exemplo) até o estabe-

lecimento do contrato enunciativo propriamente dito, que dita as normas de veri-

dicção condicional da trama, mediante a adesão do enunciatário à esfera fi ccional.

Se pudéssemos eleger um único aspecto do fazer-transformador dessa tele-

novela, que revelasse na relação enunciador/enunciatário a performance de sua

adesão, diríamos que Belíssima opera a transformação da estética corporal em

valor de prestígio. Pela fi gurativização, a novela propõe uma organização mítica

intra-discursiva, segundo a qual os cuidados com aparência física tornam-se

não apenas um trampolim para a fama, mas principalmente um meio efi caz de

acesso ao poder. Ou seja, narrativamente falando, a estética corporal serve de

objeto modal, inserido no programa de base “ascensão social”.

A idéia de associação do valor estético ao valor de prestígio é partilhada na sin-

taxe narrativa e discursiva da novela por dois grupos principais de personagens:

1) O núcleo que tem prestígio social: está associado à empresa de lingerie,

desfi les de moda e agências de publicidade. Fazem parte deste grupo a malvada

Bia Falcão, a boazinha Júlia, Alberto e sua irmã (a socialite Ornella) e Rebeca,

dona de uma agência de modelos.

2) O núcleo que aspira ao prestígio social e econômico, bem mais numeroso

e diversifi cado. Desse grupo, destacam-se:

- André, o moço pobre e inescrupuloso que participa do sórdido esquema

montado por Bia Falcão para se apoderar da empresa herdada por Júlia.

- Katina (faixa etária “mãe de família”) que, além de atender com esmerada

dedicação às solicitações do marido, fi lhos e netos, revende produtos de beleza

de uma marca conhecida, para ampliar a renda familiar.

- Guida Guevara, ex-atriz de teatro de revista, que faz pequenas malandra-

gens para conseguir de volta seu papel na sociedade; ao lado dela, Mary Mon-

tilla, com quem constitui um actante dual na busca do antigo sucesso dos pal-

cos. Ressalta-se que Mary teve que se submeter a uma lipoaspiração para poder

ser aceita no universo dos shows.

- Giovana (ala jovem) que quer ser modelo e tem como parâmetro a con-

corrente Érica que, além de modelo, é rica.

- Narciso – veja-se a redundância fi gurativa do nome do vaidoso persona-

180 | Loredana Limoli

gem – fi lho de Katina, que quer ser modelo. Embora bonito, não tem talento

e vê-se obrigado a posar seminu para um outdoor, como forma de integrar o

ingrato mundo da publicidade da moda.

- Mateus, neto de Katina, que se torna garoto de programa das ricas socia-

lites Ornella e Bia. Indolente e desavergonhado, o rapaz é a representação mais

fl agrante de transformação do valor estético em valor econômico.

Para promover o corpo como meio de acesso ao poder, à fama e ao dinhei-

ro, a novela conta com a valorização da lingerie, que é o elemento fi gurativo

central da aparência, já que “Belíssima” é o nome de uma empresa especializada

nesse tipo de roupa. Mas fervilham, também, lojas de departamento, academias

de ginástica, produtos de maquiagem, massagistas e cabeleireiros famosos, que

reforçam a idéia do parecer belo para ser alguém. Além disso, a novela põe em

relevo outras estéticas domésticas, que não são necessariamente corporais, mas

que se somam a outros componentes ideológicos para constituir uma identi-

dade de ser “cuidadoso com a imagem corporal”. Assim, por exemplo, há uma

profusão de espelhos e vasos de fl or de todos os tipos, adornando os mais dife-

rentes ambientes, desde a cozinha de Katina até a ofi cina mecânica de Pascoal,

passando, é claro, pelas luxuosas instalações da fábrica de lingerie.

Mesmo os personagens que representam a classe humilde, e que não aspi-

ram necessariamente ao poder, como o mecânico Pascoal e a empregada Regina

da Glória, estão envolvidos em situações que promovem a valorização da estéti-

ca corporal. Se, no espaço da ofi cina, temos um Pascoal que fala errado, “caipi-

ra”, e é descuidado com a aparência, vemos um Pascoal cheiroso e arrumadinho

transpor as barreiras do ambiente de trabalho para conquistar a namorada, a

quem oferece fl ores. Até mesmo o gato Mustafá, bichinho de estimação de uma

família de classe média, não é um gato qualquer, mas um animal de raça, de

aparência impecável, que só come ração de determinada marca.

Os produtos e serviços anunciados fi cticiamente durante a exibição dos

capítulos correspondem a outros que existem de fato e estão à disposição dos

consumidores, como é caso ostensivamente exibido da ração para gatos e da

linha de cosméticos. A telerrealidade construída pela novela encarrega-se de

dotar esses bens de consumo de valores ideológicos, transformando os objetos

descritivos em objetos-valor.

Os valores ideológicos, gerados pela enunciação complexa da telenovela,

ligaram-se, em última análise, ao objeto de desejo “lingerie”, que é a fi gura do-

minante da discursivização da abertura. Voltamos, assim, à moça da vitrine, em

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 181

sua busca da beleza como realização pessoal. Sem ser personagem da novela,

a modelo é a representação sensível do belo e sintetiza a idéia de individuação

pela posse do valor estético.

O estudo da dimensão temático-fi gurativa da abertura é um requisito ne-

cessário, porém não sufi ciente, para o entendimento dos processos de produção

de sentidos desse texto sincrético. Como nos lembra Barros (2004b), além da

semântica do discurso, podemos recorrer, também, às relações intertextuais e

interdiscursivas, para termos acesso a elementos sócio-históricos que partici-

pam da construção de sentidos.

Ao observarmos a moça da vitrine, notamos que o conjunto de sua gestuali-

dade assemelha-se aos movimentos de uma tocha, uma labareda de fogo. Pode-

mos pensar que o fogo está associado à vida, ao princípio divino e provoca, aqui,

por metáfora visual, o efeito de sentido de incandescência do amor sensual.

Observemos, agora, a logomarca de um dos principais anunciantes da no-

vela, o Banco Santander (fi g. 1):

Identifi camos, imediatamente, uma curiosa correspondência do corpo

da mulher em posição fi nal da abertura com a tocha estilizada que simboli-

za o banco. Algumas semelhanças são fl agrantes, no que diz respeito à forma

da expressão: idéia de volume, oscilação, inclinação, sinuosidade, base circu-

lar, bi-cromatismo, alternância claro/escuro nas diagonais paralelas. Vejamos

a imagem congelada, ao fi nal da apresentação (fi g. 3), e para maior clareza da

exposição, com apagamento do fundo (fi g. 4):

182 | Loredana Limoli

A idéia de semelhança entre o logotipo do banco e a imagem fi nal da mode-

lo de Belíssima (que se tornou, aliás, uma espécie de logomarca da novela) ganha

mais um elemento persuasivo, ao examinarmos algumas das propagandas do

Santander inseridas nos intervalos da novela. Em particular, o anúncio veicu-

lado na época do Natal utiliza os recursos de nitidez e embaçamento, também

presentes na abertura, para mostrar um céu cheio de fogos de artifício e sua

transmutação, gradativa, no logotipo do banco (fi g. 2). Aqui, também, o emba-

çado torna-se nítido, correspondendo, semi-simbolicamente, no plano do con-

teúdo, à transformação do automatismo e do inexpressivo do cotidiano, no úni-

co, no diferente, no “melhor” (palavra que faz parte do slogan do banco). É você

“tomando forma”, diferenciando-se do resto, tornando-se visível, como acontece

com os passantes em contato com a realidade vivida pela moça da vitrine.

O recurso fi gurativo formal utilizado pela Santander na elaboração de sua

logomarca é a estilização de uma tocha, ou, como nos ensina Silva (1995:34),

um percurso gerativo “ao contrário”, que parte da tocha plena à sua estrutura

fi gurativa elementar.

Enquanto a Santander estiliza, a logo da novela corporaliza a tocha, par-

tindo do fi gural para o fi gurativo pleno, ressemantizado pela associação com a

linguagem da dança. Assim procedendo, a abertura proporciona uma espécie de

revitalização do símbolo, que havia perdido sua motivação original de fogo:

Fogo de Santander = vivacidade, farol que ilumina, que guia; permanência,

constância, continuidade, fi rmeza sobre uma base sólida

Fogo da abertura = ardência, entusiasmo, sensualidade, vida sobre uma

base sólida e repousante

Vê-se, então, como a transmutação da moça em tocha (= beleza) e a aproxi-

mação com a tocha de Santander (= dinheiro) refl etem, justamente, o conteúdo

da novela: a tocha revitalizada e remotivada na abertura, inserida numa vitrine,

é ipsis litteris a representação visual da transformação do valor estético em valor

econômico, conforme esquematizado abaixo:

BANCOPLANO DA EXPRESSÃO tocha estilizada

PLANO DO CONTEÚDO valor econômico

NOVELA(Abertura em relação

metonímica)

PLANO DA EXPRESSÃO tocha encenada

PLANO DO CONTEÚDO valor estético

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 183

Entendida essa interessante rede de signifi cações que se procedeu por fi gu-

ratividade e fi guralidade, resta-nos perguntar: por que o banco optaria por uma

estratégia de marketing tão diferenciada, utilizando uma forma de propaganda

tão sutil? Não nos cabe, enquanto analistas do discurso, procurar uma resposta

defi nitiva a essa pergunta. Mas, se nos é permitido avançar hipóteses, pensamos

que a sutileza de penetração do Banco Santander no mercado econômico brasi-

leiro, em razão da aquisição e privatização do maior banco público do Estado de

São Paulo, justifi ca esse cuidado. Propondo uma visualização de marca de forma

não-convencional, os estrategistas publicitários puderam oferecer, aos milhares

de consumidores-fi éis, a associação entre o produto anunciado (o próprio ban-

co) e uma imagem de sucesso. Mas a metonímia, desta vez, foi impregnada de

metáforas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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48, n. 2, 2004a. 11-31 p.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz

(org.). Introdução à lingüistica II. São Paulo: Contexto, 2004b.

CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio (org.).

Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1971.

FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l´oeil et de l´esprit - pour une

sémiotique plastique. Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985.

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São

Paulo: Contexto, 2007.

GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Sémiotique. Dictionnaire

raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette Université, 1979.

SILVA, Ignacio Assis. Figurativização e metamorfose. São Paulo: Ed. UNESP,

1995.

O Nu de Boubat e a Globeleza | 185

O NU DE BOUBAT E A GLOBELEZA

Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

INTRODUÇÃO

Em seu texto sobre “práticas semióticas” (ver artigo nesta coletânea), Jac-

ques Fontanille chama-nos a atenção para o fato de que a teoria semiótica de

linha francesa já ultrapassou os limites do texto, no sentido do célebre slogan

defendido por A. J. Greimas: “Fora do texto não há salvação”.

Para ele, a semiótica da atualidade vem revendo sua posição a respeito do

estatuto das operações de “produção de sentido” e redefi nindo sua preocupação

com a natureza das inúmeras semióticas-objeto, “consideradas como máquinas

signifi cantes e dinâmicas”, a fi m de assumir pesquisas conduzidas fora do texto,

porém, sem abandonar os princípios da imanência e da pertinência, ou seja, sem

caminhar para “fora da semiose” (solidariedade entre expressão e conteúdo).

Diferentemente de outros semioticistas, J. Fontanille defi ne o percurso gera-

tivo do plano da expressão e assim apresenta sua hierarquia de níveis: (1) signos

e fi guras, (2) textos-enunciados, (3) objetos e suportes, (4) práticas e cenas, (5)

situações e estratégias, (6) formas de vida. É assim que o autor amplia o espaço

de análise, acrescentando à conhecida semiótica concentrada e focalizada no

percurso gerativo do sentido (dedicada ao plano do conteúdo) uma outra, que

considera o plano da expressão e caminha em direção à semiótica da cultura.

Fontanille ainda postula outra hipótese, que chama de forte e produtiva,

186 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

para descobrir esquemas internos da enunciação em ato, tomando como ponto

de partida os níveis do plano da expressão, conforme a hierarquia acima. O

objetivo é revelar sentidos (ou camadas de sentidos) homologáveis ao plano do

conteúdo, como fez Jean-Marie Floch em seu livro Petites mythologies de l’œil et

de l’esprit – Pour une sémiotique plastique (1985).

Esses dois autores, embora tenham usado modos diferentes de análise, estão

próximos na consideração que fazem do percurso gerativo do plano da expres-

são, como ponto de partida de uma semiótica “intensa”, que trata dos elementos

materiais dos níveis inferiores, tais como os signos, textos e objetos, chegando

a uma semiótica “extensa” que dá a esses níveis um sentido de participação e de

integração com os níveis superiores: as práticas, estratégias e formas de vida.

Procurando, então, seguir a trilha teórica deixada por Fontanille e por Flo-

ch, resolvemos retomar a análise de uma fotografi a de Edouard Boubat (Floch,

1985: capítulo primeiro, “Um Nu de Boubat”), com o objetivo de descobrir, atra-

vés da descrição dos esquemas de signifi cação, o que vem a ser um “nu artístico”,

ou seja, um nu aceito pelo coletivo da sociedade como uma prática ligada às

artes plásticas, que não é considerado imoral e por isso não sofre censura.

Com esse propósito, elegemos como objeto da análise comparativa, a nudez

completa da Mulata Globeleza, que durante anos (desde 1990 até 2007), com

poucas interrupções, anunciava o carnaval carioca, através de um produto au-

diovisual: uma vinheta televisiva da Rede Globo de Televisão.

A “GRAMATICALIDADE” DA IMAGEM

A nudez feminina sempre foi tema recorrente em artes plásticas, e algumas

esculturas e telas tornaram-se famosas, sendo copiadas e reproduzidas através

dos séculos. Por exemplo: Vênus de Milo e O nascimento de Vênus, de Botticelli,

a Vênus de Urbino, de Ticiano, a Vênus do espelho, de Velazquez, La Maja Desnu-

da, de Goya, Olímpia, de Manet, Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, Nu Azul

4, de Matisse1 e muitas outras. Mas o que diferencia alguns nus femininos, acei-

tos como prática artística, de outros tantos, considerados como simplesmente

eróticos e imorais?

Conforme Antonio Vicente Pietroforte (2004: 24-36), a apresentação do

corpo humano em sua nudez, tanto o masculino como o feminino, aparece de

forma diferente conforme o discurso: se for conotado teremos beleza estética,

1 Todas as obras de arte citadas acima estão disponíveis na internet.

O Nu de Boubat e a Globeleza | 187

misticismo e erotismo, se for denotado teremos nus vazios de conteúdos morais

e estéticos, como estão nos livros de Medicina e de Ciências para o ensino de

anatomia. Contudo, o mais comum é encontrarmos o corpo humano em poses

eróticas que exploram a sexualidade, principalmente em “outdoors” e em fotos

que ilustram revistas para adultos ou são exibidas pela televisão e internet.

Recentemente, conforme notícias em jornais, o Ministério da Justiça deci-

diu subir a classifi cação da censura de 12 para 14 anos, da novela Duas Caras

da Rede Globo, por ter exibido cenas de nudez, consideradas de apelo sexual,

envolvendo a personagem da atriz Flávia Alessandra, na apresentação da pole

dancing, dança usualmente realizada por strippers. Mas, de que modo os leito-

res-enunciatários de uma imagem interpretam um nu como fora dos padrões

morais de uma dada sociedade de um nu reconhecido e festejado como arte por

essa mesma sociedade?

A resposta a essa questão pode estar na análise semiótica que Floch fez da

foto de Edouard Boubat2, reproduzida abaixo:

Figura 1

Trata-se de uma jovem vista quase de costas (não se vê o rosto), com o busto

e os braços nus, os cabelos negros cortados bem curtos e, da cintura para baixo,

envolta por uma saia de tecido estampado com fl ores. Observamos que com a

2 Essa foto foi e ainda continua a ser publicada na França. Podemos encontrá-la em Boubat (1972; 1974) e, no Brasil, em Pietroforte (2004: 25).

188 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

mão direita a jovem segura uma parte do tecido, que poderia ser a blusa que

cobriria o busto. Mas o que faz com que essa fotografi a seja vista como prática

artística?

Inicialmente, poderíamos dizer que esse tipo de fotografi a foge ao conven-

cional, que seria a modelo completamente nua, posando para uma foto eróti-

ca ou completamente vestida, como se fosse apresentar-se na passarela de um

desfi le de modas. O que signifi ca esse momento entre estar vestida e ao mesmo

tempo despida? Como podemos descobrir as camadas de sentido que são ima-

nentes e pertinentes a ela, ou seja, de que modo o plano da expressão estrutura

o plano de conteúdo e diferencia essa fotografi a de tantas outras?

Em seu texto3, Floch inicia a análise separando, em diferentes tipos, o que

ele chama de unidades do discurso plástico ou “contrastes”. São contrastes sim-

ples, que fazem parte do paradigma do sistema fotográfi co, como a oposição

entre nítido e não-nítido (fl ou) ou claro e escuro, elementos de base das lingua-

gens plásticas. Porém, em sua proposta, o autor encontra outras oposições, que

resultam em contrastes complexos, como o modelado vs achatado4.

O semioticista francês trabalha, então, com camadas de signifi cação que

ressaltam contrastes sobre contrastes, ou seja, a partir do contraste simples claro

vs escuro, o analista acrescenta o contraste modelado vs achatado, ambos do

plano da expressão, para dividir a fotografi a em quatro espaços, conforme suas

características picturais e topológicas: (1) o fundo escuro; (2) o espaço negro

dos cabelos; (3) o espaço claro do busto e dos braços e 4) o espaço que apresenta

a textura do tecido estampado.

Assim a fi gura total da jovem aparece iluminada contra um fundo de nu-

anças entre o cinza e o preto, mais escuro à direita (sombra da própria jovem,

causada pela iluminação da esquerda para a direta), sendo que as costas, o pes-

coço, os braços e o seio direito aparecem modelados, isto é, com volume. Já os

cabelos curtos e negros e a saia de tecido estampado aparecem sem volume, sem

nuanças, ou seja, achatados (chapados), “recortados” contra o fundo.

Defi nida a análise do plano da expressão, apresentada aqui de maneira mui-

to resumida, Floch começa sua argumentação a fi m de construir ou constituir

relações semióticas com o plano do conteúdo. Para tanto, busca estabelecer uma

categoria semântica que dê conta de justifi car o contraste modelado vs achatado,

do plano da expressão, agora no plano do conteúdo:

3 Os comentários sobre o texto de Jean-Marie Floch estão em português, traduzidos para este trabalho.4 A tradução de modelé/aplat (Floch, 1985: 26-29) como modelado/achatado segue o uso de tais vocábulos no

artigo de Jorge Coli publicado em Novaes (1988: 231).

O Nu de Boubat e a Globeleza | 189

Ao fazer a análise do plano do conteúdo desse texto, J.M.Floch propõe a

categoria semântica mínima natureza vs. cultura para sua semântica fun-

damental. Justifi ca-se demonstrando que no busto nu da modelo é fi gura-

tivizada a natureza, e em seus adereços, que são os arranjos dos cabelos e

o tecido que envolve sua cintura, a cultura. Nesse ponto de vista, a análise

de Floch não se restringe apenas ao conteúdo do nu de Boubat, mas a

todo texto que pode ser reconhecido como tal. Em sua concepção, há um

termo complexo formado pela categoria semântica natureza vs cultura na

defi nição desse tipo de texto. Assim sendo, o nu deixa de ser simplesmen-

te o despido, a natureza, e passa a ser o despido articulado com outros

valores culturais, de modo que o estatuto semiótico do nu não se estabe-

lece como uma simples referência ao corpo humano sem roupas. Há no

chamado nu artístico a construção de uma estética que realiza a nudez em

meio a valores culturais, e é entre eles que o corpo que se despe adquire

seu estatuto semiótico (Pietroforte, 2004: 25).

Portanto, quando Floch propõe, como análise da foto de Boubat, a cate-

goria semântica natureza vs cultura, para o plano do conteúdo, homologável

ao plano de expressão modelado vs achatado, observamos que a coerência

discursiva apóia-se na criação de um sistema particular de valores, utilizan-

do o que a semiótica chama de linguagem semi-simbólica. Ou seja, ao usar

o esquema modelado: natureza :: achatado: cultura, o autor estabelece cone-

xões que colocam em ligação duas figuras e duas funções, tais como a nudez

como figurativização do que é natural e os adereços como figurativização do

que é cultural.

Estamos considerando como adereços, a saia ampla (franzida, com pregas?),

de tecido estampado e os cabelos negros e curtos, pois eles funcionam como

“ornamentos” que enfeitam a jovem, mas não chegam a cobri-la. Ainda o corte

curto (quase masculino) dos cabelos e a saia ampla e estampada lembram o que

estava em moda nos anos 1960.

Com esse tipo de análise, Floch penetra o âmago da signifi cação da foto,

mostrando sua poeticidade, através do chamado sistema semi-simbólico da lin-

guagem. Segundo Jacques Fontanille “o semi-simbólico é um código semiótico

estritamente ligado ao exercício de uma enunciação particular, individual ou

coletiva, ele é o único meio de ir até a estrutura de uma linguagem, quando essa

última não possui “língua” ou “gramática” generalizável, como é o caso da ima-

gem” (Fontanille, 2007:138-140).

Diferente da linguagem simbólica, que estabelece uma conexão coerente entre

isotopias conhecidas no universo cultural humano, como, por exemplo, o que está

no alto é o céu ou o celeste, o que está embaixo é a terra ou o terrestre, a análise da

190 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

chamada linguagem semi-simbólica estabelece novas conexões, agora entre siste-

mas de valores particulares, criados em uma práxis enunciativa, ou seja, nos tex-

tos não-verbais e verbais produzidos pela cultura. Em uma relação semi-simbólica

possível, o que está no alto é o celeste e o sagrado; o que está embaixo é o terrestre e o

profano, o que, de forma abreviada, dizemos: alto : baixo :: sagrado : profano.

No caso de Floch, a “gramaticalidade” da imagem é defi nida pela oposição

semi-simbólica defi nida como nu : com adereços :: natural : cultura, o que resul-

ta em uma interpretação do nu artístico, ou seja, aquele que opõe a fi gurativi-

zação de uma mulher nua como algo próprio da natureza e a mulher “coberta”

com alguns adereços, como uma saia estampada e os cabelos negros, cortados

curtos, como algo próprio da cultura e, diga-se de passagem, de uma época

(anos 1960) em que as mulheres usavam cabelos curtos e vestidos com saias

amplas, de tecidos estampados.

Na foto de Boubat, a jovem quase nua representa ao mesmo tempo o natu-

ral e o cultural, numa ambigüidade que chama a atenção do observador-enun-

ciatário, que “gosta” do que vê e procura compreender ou interpretar o que está

diante de seus olhos, pois sente que há nela certo estranhamento ou mistério, o

que é próprio de uma foto artística. Assim, como vimos fazendo, tal estranha-

mento pode ser descoberto por uma observação mais acurada, própria do pes-

quisador-analista, através de procedimentos teóricos encontrados na semiótica

de linha francesa, inaugurada por A. J. Greimas.

A LINGUAGEM SEMI-SIMBÓLICA

Segundo o Tomo II do Dicionário de Semiótica de Greimas e Courtés (1991:

227-229), a investigação sobre o semi-simbólico tem sido estimulada para res-

ponder a questões sobre o estatuto semiótico de unidades sintagmáticas que os

pintores costumam chamar de contrastes plásticos. Mas o que vem a ser o siste-

ma semi-simbólico da linguagem ou a linguagem semi-simbólica?

Na verdade, foi Hjelmeslev que opôs a linguagem que ele chamou de “mo-

noplana” ou simplesmente simbólica à linguagem semi-simbólica: a primeira

caracterizada pela conformidade entre as unidades do plano da expressão e do

plano do conteúdo e a segunda pela não conformidade entre as unidades dos

dois planos, mas pela conformidade entre categorias. Ou seja, na linguagem

monoplana, a distinção entre elementos repousa apenas em discriminação sim-

ples, por exemplo: um desenho infantil é reconhecido como desenho infantil,

O Nu de Boubat e a Globeleza | 191

por ele mesmo (pelo plano da expressão); o desenho de um coração “simboliza”

o amor; o desenho de um coração ultrapassado por uma fl echa signifi ca que

alguém está apaixonado ou sofrendo por amor, e assim por diante.

Na linguagem semi-simbólica não existe uma correspondência termo a ter-

mo entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, mas a correspondência

realiza-se na ordem do supra-segmental, entre categorias abstratas de natureza

semântica como vida/morte, natureza/cultura, ou como no caso dos gestos que

reforçam a oralidade, em que “sim” e “não”, em nossa cultura, correspondem,

respectivamente, à verticalidade e à horizontalidade.

Foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss que estabeleceu um padrão para a

linguagem semi-simbólica, quando defi niu uma fórmula para o mito: a oposi-

ção entre duas fi guras colocadas em relação à oposição entre duas funções. Por

exemplo, a maior parte das culturas primitivas africanas se serve do contraste

cromático vs acromático (roxo vs. negro) para a oposição vida vs morte.

A linguagem semi-simbólica funciona, então, como camadas de signi-

fi cação sobrepostas a uma linguagem simplesmente simbólica. É como se ao

simbólico fossem acrescentados outros procedimentos de signifi cação, a fi m de

articular as duas dimensões da linguagem, plano da expressão e plano do conte-

údo, ou seja, para os mitos africanos o negro signifi ca, além da ausência de cor, a

presença da morte. No caso da fotografi a de Boubat, a nudez, apresentada como

modelada ou com volume, signifi ca o natural e os adereços (penteado e saia

estampada), apresentados como achatados, marcam o cultural.

Segundo o dialogismo do lingüista Mikhail Bakhtin, todo discurso estabe-

lece um diálogo com outro, pois “o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas

se elabora em vista de outro. Em outras palavras, o outro perpassa, atravessa,

condiciona o discurso do eu” (Fiorin, 1994: 29).

Na foto de Boubat vemos a modelo com o busto despido, mas com as ancas

cingidas por uma saia, não vemos as pernas, assim como na Vênus de Milo, que

se apresenta ao mesmo tempo despida e vestida com “panejamentos” que lhe

cobrem o púbis, as nádegas e as pernas (de costas, a escultura deixa à mostra o

início das nádegas como fazem as garotas do século XXI, ao usarem roupas que

deixam à mostra o que na gíria seria o “cofrinho”)!

Em O nascimento de Vênus, de 1484, tela que está em Florença, na Galeria

Uffi zi, Botticelli retrata uma mulher nua, de frente e em pé, sobre uma concha

enorme, com cabelos longos e claros, que em parte esvoaçam ao vento e em par-

te estão amarrados com fi tas, e lhe caem pelas costas e pela frente do corpo, para

serem apanhados pela mão esquerda para cobrir o púbis. Com a mão direita ela

192 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

cobre um dos seios, deixando o outro à mostra e seu olhar está direcionado para

algo distante do observador-destinatário.

Por sua vez, a Vênus de Urbino, de Ticiano (1538), que também está em Flo-

rença, na mesma galeria, encontra-se recostada (a cabeça da esquerda para a direi-

ta) sobre cama acolchoada, os olhos baixos, os cabelos longos, porém castanhos e

a mão esquerda também cobre o púbis e ela traz uma pulseira no pulso direito.

A Vênus do espelho, de Velásquez (1644-1648, National Gallery, Londres),

diferente das duas Vênus citadas acima, apesar de também estar nua e recostada

sobre cama acolchoada, apresenta-se de costas, em posição semelhante à Vênus

de Urbino, ou seja, deitada da esquerda para a direita, porém os cabelos casta-

nhos e longos estão presos num penteado e podemos ver seu rosto, que encara o

destinatário através de um pequeno espelho que um cupido segura diante dela.

La Maja desnuda de Goya (1799, Museu do Prado, Madri) também encara

o destinatário, porém está recostada em posição inversa, ou seja, da direita para

a esquerda e seus braços estão atrás da cabeça o que dá destaque para os seios.

Esse nu repete a mesma pose de outra tela em que a modelo está vestida. Trata-

se de La Maja vestida, do mesmo ano e no mesmo museu.

Já na Olímpia, de Édouard Manet (1863, Paris, Museu d’Orsay), o pintor

retoma a posição da esquerda para a direita e o gesto da mão esquerda que

cobre o púbis, porém a atitude da modelo é outra, pois seus olhos encaram atre-

vidamente o observador e, apesar de nua, ela está enfeitada ou adornada com

alguns adereços: uma fl or nos cabelos ruivos cortados curtos, colar no pescoço

e pulseira no braço direito.

Chegando ao século 20, com Picasso e Les Demoiselles d’Avignon (1907,

Moma, Nova Iorque), apesar da geometrização cubista da tela, parece que esta-

mos diante de uma síntese de todas as mulheres nuas retratadas anteriormente.

Nessa tela, famosa por ter inaugurado o Cubismo, as cinco fi guras femininas

repetem gestos e poses semelhantes às demais. Senão vejamos: duas delas estão

centralizadas e encaram o destinatário; uma delas, assim como a Vênus de Milo,

apresenta “panejamentos” que lhe cobrem o púbis; uma está de perfi l, outra está

sentada de costas, porém, seu rosto, estranhamente voltado para o destinatário,

o encara, como se a cabeça estivesse inteiramente virada para as costas; quatro

delas têm os braços erguidos atrás da cabeça; entre elas vemos fi guras geométri-

cas que estamos interpretando como pedaços de um espelho estilhaçado (talvez

o espelho de Velásquez?). O Nu Azul 4, de Matisse, é uma colagem do tipo si-

lhueta, construída com papel azul, que representa uma mulher nua, sentada.

Embora possamos analisar cada “nu” individualmente, em suas unidades

O Nu de Boubat e a Globeleza | 193

constitutivas de forma e de signifi cação, ou seja, do ponto de vista do plano da

expressão e do plano do conteúdo, através de uma semiótica “intensa”, também

podemos ampliar essa análise através de uma semiótica “extensa” ou engloban-

te, que reúne manifestações discursivas próprias de uma prática social e cultural

como a maneira de esculpir, de pintar, ou seja, de representar o nu feminino,

construindo através dos séculos o que se tornou uma prática das artes plásticas,

reconhecida como “nu artístico”.

“Os temas e fi guras são determinados sócio-historicamente e trazem para os

discursos o modo de ver e de pensar o mundo das classes, grupos e camadas so-

ciais, garantindo assim o caráter ideológico desses discursos” (Barros, 2004:12).

A originalidade ou a criatividade estaria justamente na retomada dos mesmos

temas agora atualizados, através de estratégias diferentes, que confi rmam a pre-

sença da linguagem semi-simbólica e suas camadas de signifi cação.

Assim, a cada cem anos, a partir do Renascimento, o nu feminino, conside-

rado como arte, embora retome poses e atitudes de obras anteriores, apresenta

a mulher cada vez mais “atrevida”, em atitudes mais despojadas. As mulheres

deixam de ser deusas, denominadas como Vênus, para serem Majas e Demoi-

selles, os cabelos recebem tratamentos diversos de cor e penteados e cada nu

se renova através de pequenas diferenças de pose e de adereços. Entretanto, os

seios estão sempre à mostra, enquanto que a região pubiana está quase sempre

coberta, o que nos leva a propor o mesmo valor semântico para o plano de

conteúdo, homologável pelo plano da expressão: as partes do corpo que estão

descobertas aparecem destacadas com procedimentos ligados a diferentes ma-

nifestações plásticas, que não nos compete analisar, pois devem ser realizados

por especialistas em arte (o que não é o nosso caso). Para nossa análise semió-

tica, esses procedimentos dão signifi cado ao natural, enquanto que os adereços

que acompanham os diversos nus (gestos, penteados, “panejamentos”, mobílias,

colares, pulseiras, fl ores) carregam a signifi cação ou as marcas do cultural.

GLOBELEZA, SINCRETISMO E SEMI-SIMBOLISMO

Chegamos enfi m ao nosso objetivo primeiro, ou seja, apresentar a vinheta

televisiva da Globeleza como mais uma atualização do que estamos analisando

como “nu artístico”.

Até aqui os objetos que citamos estão representados sobre suportes que os

tornam estáticos, como a foto de Boubat, a escultura Vênus de Milo, ou as telas

194 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

de pintores famosos com mulheres nuas. Agora, porém, passamos para a te-

levisão, suporte cuja característica principal é a imagem em movimento que,

como no cinema, reproduz, além das imagens, os sons das falas dos atores, das

músicas orquestradas e cantadas, como também caracteres escritos, o que nos

coloca diante do sincretismo, ou seja, diante da presença de várias linguagens de

manifestação em um só produto audiovisual, ou seja, um todo de sentido.

Conforme a explicação encontrada no Tomo I do Dicionário de Semiótica

(1983: 426), não só a ópera ou o cinema (a televisão inclusive) acionam várias

linguagens de manifestação, mas também a comunicação verbal do nosso dia-

a-dia, pois inclui, além da língua falada, os gestos, a proxêmica, o tom de voz, o

nível de linguagem formal, coloquial, regional e outros possíveis aspectos.

Embora não haja espaço neste trabalho para discussão tão complexa, queremos

crer que o sincretismo não leva à criação de uma nova linguagem ou de linguagens

paralelas, mas acrescenta substâncias ao plano da expressão, porém todas elas cor-

respondentes ou homologáveis ao plano do conteúdo de uma mesma linguagem.

Continuando, quando acompanhamos a análise da foto de Boubat feita

por Floch, com a percepção dos procedimentos técnicos que conferem uma

descrição e interpretação à expressão e sua correspondência a uma descrição

e interpretação de um conteúdo específi co (modelado: achatado :: nu : com

adereços e ainda nu : natural :: com adereços : cultural) achamos possível

transpor essa fórmula para a vinheta televisiva da Globeleza que, completa-

mente nua, porém “coberta” com adereços, invadia nossas casas para anun-

ciar o Carnaval carioca.

O autor do clip da Globeleza foi o famoso artista da mídia televisiva, o aus-

tríaco Hans Donner que, enquanto chefe de equipes de designers, ilustradores,

técnicos em computação e especialistas em animação da Rede Globo criou vi-

nhetas de abertura para programas como o Jornal Nacional e o Fantástico, assim

como para as novelas Sinal de alerta (1978-79), Brilhante (1981-82), Champagne

(1983-84), Corpo a corpo (1984-85), além de vinhetas de chamada, como a que

apresentava a modelo Valéria Valenssa (sua esposa), na pele da Globeleza.

Embora muitas pessoas possam ter se escandalizado com as primeiras

aparições de uma mulata dançando nua na tela de sua televisão, anunciando a

cobertura que a Rede Globo faria dos desfi les das escolas de samba do Rio de

Janeiro, nunca se soube de censura que proibisse sua apresentação, o que nos

leva a dizer que se trata de um produto audiovisual aceito como prática social e

cultural, possível durante o período das festas de Momo. Mas de que maneira a

vinheta foi construída para chegar a tal resultado?

O Nu de Boubat e a Globeleza | 195

A vinheta Globeleza é uma produção videographics composta de um clip,

produzido em videoteipe, com cores e efeitos inseridos pelo processo de

computação gráfi ca na fi nalização. O resultado é uma mistura de imagens

de vídeo e imagens sintéticas. A trilha sonora é do tipo incidental, feita

especialmente para a vinheta pelo compositor de samba Jorge Aragão e

interpretada por Dominguinhos da Estácio, com ritmo de bateria de es-

cola de samba, gravada em estúdio. É, na verdade, um jingle feito com um

típico samba carnavalesco que exalta a festa do carnaval e a Globo, que faz

a cobertura do desfi le. No refrão, o slogan “Globo: a gente se vê por aqui”.

A relação imagem-música é direta, dita música descritiva, uma vez que se

trata de uma dança, ou seja, cadência de passos ao som e ao compasso da

música, havendo sincronização entre imagem e ritmo. Ainda sobre o fundo

azul, a marca da Globo, formando a letra “o” do lettering “Globeleza”, com

letras estilizadas, espalhafatosas, em tamanho decrescente da esquerda para

a direita, compõe o último quadro da vinheta, recebendo uma chuva de

confetes, purpurina e muita luz (Petrini, 2004: 130).

O mesmo autor ainda diz que com essa vinheta a Rede Globo prepara-

va o espírito do espectador para suas transmissões “em forma de um grande

festival de simulacros, festa e alegria com música e imagens de nus durante

mais de um mês de carnaval”, enquanto explorava o mito do carnaval cario-

ca “espetáculo global, subproduto da indústria cultural, para ser consumido

nacionalmente e no exterior, revelando um estereótipo da mulher brasileira”

(Petrini, Ibidem).

Como podemos observar, Petrini faz uma análise da vinheta como produto

da cultura de massa, a ser vendido pela Globo, com críticas ao acréscimo da

autopromoção da emissora, mas sem tocar nos aspectos artísticos da apresen-

tação do nu da modelo Valéria Valenssa, como é o nosso objetivo. Na verdade,

as seqüências do clip, quando visto em movimento, são muito rápidas e seguem

o ritmo da batucada: a modelo apresenta-se em nudez completa, sempre dan-

çando ao som da música de Jorge Aragão. A imagem se afasta e se aproxima

do telespectador, num vaivém constante, em sincronia com o ritmo da trilha

sonora; há seqüências muito rápidas de nu frontal, mas, quase sempre a edição

corta o corpo em pedaços, ou seja, mostra a cabeça, o rosto e em seguida os pés;

mostra pernas, coxas e nádegas de perfi l, cortando a cabeça e os pés; os seios

estão à mostra e os braços em constante movimento ao ritmo da música; os

pés sempre calçados com sandálias prateadas ou douradas, de salto alto e pla-

taforma, lembrando aquelas usadas pela legendária Carmen Miranda; o púbis

apresenta-se sempre coberto com um tapa-sexo. Vamos, então, observar como

a apresentação desse nu se encaixa na prática do “nu artístico”.

196 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

Apesar de nua, o corpo da modelo está “coberto” com adereços, ou seja,

pintado com símbolos do carnaval: confetes, serpentinas, traços coloridos,

brilhos e purpurinas, estrelas, fi guras geométricas só de uma cor ou de co-

res diversas, conforme a escolha de um tema, tais como formas e cores que

lembram o espaço e os astronautas, letras típicas do japonês, etc. (conforme

informação divulgada pela internet, a preparação levava até 20 horas, com o

sacrifício da modelo que, mantinha-se deitada e depois em pé, até que a pin-

tura fosse concluída). Os cabelos ou estão soltos e armados, característicos da

raça negra, e enfeitados com brilhos, ou penteados para o alto. Muitas vezes

a modelo ostenta adereços de cabeça, como aqueles das fantasias de escola

de samba.

É justamente a nudez “coberta” com adereços, que estamos destacando

como procedimento artístico, embora a própria técnica de afastar e aproximar a

imagem na tela e os cortes do corpo mostrado aos pedaços, em sincronia com o

ritmo da música, também utilizem o “mostrar e esconder” como procedimento

do plano da expressão em correspondência ao plano do conteúdo: mostrar = nu;

esconder o nu = adereços (pintura do corpo, sandálias, cabelos soltos ou pentea-

dos, adereços de cabeça), a técnica do afastamento e da aproximação e os cortes

da edição. Portanto, temos a mesma fórmula obtida com a foto de Boubat: o nu

fi gurativizando o natural e os adereços representando o cultural.

Esperamos que tenha fi cado claro que nosso objetivo não foi racionalizar a

análise, a ponto de negar a magia e o apelo sensual e sexual presentes na vinheta

que, pela beleza do visual, do sonoro e pela repetição em horários diferentes,

preparava o espectador para assistir à grande “ópera” popular brasileira: o desfi -

le das escolas de samba no sambódromo do Rio de Janeiro, que seria transmiti-

do pela Rede Globo de Televisão.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Assim como Jacques Fontanille nos ensina que o campo de exercício da

semiótica é a signifi cação em ato, a signifi cação viva, “é o discurso e não o signo:

a unidade de análise é um texto, seja ele verbal ou não-verbal” (2007: 29), para

concluir nosso trabalho, vamos posicionar a análise da vinheta da Globeleza na

hierarquia criada por ele (ver texto nesta coletânea):

a) fotos, telas, videoclips são textos-enunciados que contêm signos e fi guras;

b) a foto de Boubat, uma tela de Boticelli, a vinheta da Globeleza são objetos

O Nu de Boubat e a Globeleza | 197

e suportes que contêm indicações e marcas de discursos autorais;

c) os discursos fazem parte de práticas: a prática de pintar, de fotografar, de

produzir vinhetas para a televisão, tendo como tema mulheres nuas;

d) as práticas criam cenas, situações e estratégias que acontecem em deter-

minados ambientes socioculturais, com suas formas de vida: a vinheta televisiva

da Globeleza passou a fazer parte do ritual do carnaval brasileiro e, especifi ca-

mente, do carnaval do Rio de Janeiro, através das transmissões da Rede Globo.

Portanto, partimos de uma semiótica dos textos-enunciados, na sua versão

“intensa”, quando seguimos os passos de Floch a fi m de analisar a vinheta da

Globeleza, para ir até a versão “extensa” e “englobante” da semiótica da cultura,

podendo agora responder às questões formuladas por Fontanille, em trecho de

“Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimização”:

[...] as pesquisas cognitivas convidam a semiótica a tomar uma posição

sobre o estatuto das operações de “produção de sentido” que ela identifi -

ca em suas análises de discurso: são operações cognitivas dos produtores

ou dos intérpretes? São rotinas desenvolvidas coletivamente no interior

de cada cultura? São atividades das próprias semióticas-objeto, consi-

deradas como “máquinas signifi cantes” e dinâmicas? (ver artigo nesta

coletânea, p. 15).

A primeira questão é muito interessante, pois parece ironizar o próprio

trabalho dos semioticistas: será que quem tirou a foto, pintou a tela, compôs

a vinheta tinha clareza sobre as operações de produção de sentido que estava

criando, ou são os intérpretes-analistas que, com grande inventividade teórica,

encontram marcas nunca pensadas pelo produtor do texto?

Quero crer que podemos responder não e sim. Primeiramente precisamos

explicar que a semiótica não se interessa pelo contexto ou pela biografi a do fo-

tógrafo, do pintor ou da equipe que compôs a vinheta para a televisão, pois o

que lhe interessa é a imanência e pertinência do texto, isto é, como o texto diz

o que diz.

Desse modo, a primeira resposta é não, pois quem produz cria sentidos

através de operações cognitivas, que estão sendo pensadas naquele momento,

portanto, sem ter absoluta clareza do como estão criando. Mesmo crianças,

quando pretendem desenhar objetos colocados diante delas, olham rapidamen-

te para eles e em seguida abaixam os olhos e se põem a desenhar, sem tornar a

olhá-los. Algumas crianças dizem que gostam de fechar os olhos para imaginar

o que vão desenhar.

198 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

A segunda resposta é sim, pois o semioticista ou o intérprete-analista preci-

sa de instrumentos teóricos que o levem a encontrar marcas do que foi pensado

no momento da enunciação ou signifi cação em ato, que é o trabalho do artista,

no momento da criação. Desse modo, tanto os produtores quanto os intérpretes

lidam com operações cognitivas que produzem sentido, os primeiros na própria

produção e os segundos no desvendamento dessa produção.

Quanto às duas questões fi nais, vamos responder sim: a) cada cultura reco-

nhece práticas que fazem parte de rotinas de formas de vida, que são vivencia-

das como rituais considerados habituais (tirar fotos, pintar telas) e são próprias

de festas e comemorações (mulheres nuas ou seminuas dançando na época do

carnaval brasileiro); b) semióticas-objeto são “máquinas signifi cantes” e dinâ-

micas que a cada análise desenvolvem novas operações de produção de sentido,

“espichando” a teoria até onde é possível, naquele momento.

Concluo com as palavras de Fontanille (2007, p. 18):

[...] será na experiência sensível, encarnada em um corpo enunciante,

que os dois planos da linguagem, a expressão e o conteúdo, serão ins-

taurados solidariamente a partir das primeiras impressões signifi cantes

exteroceptivas e interoceptivas, respectivamente. Todavia, a solidarieda-

de entre esses dois tipos de impressões e entre os dois planos da lin-

guagem só se deve a um único princípio: seu enraizamento comum em

um terceiro tipo de impressões, as proprioceptivas, impressões do pró-

prio corpo enquanto corpo sensível. Desse primeiro gesto, assim como

dessa solidariedade proprioceptiva entre os dois planos da semiose, vão

se originar todos os outros, especialmente o controle tensivo imposto

à formação dos valores, da actância, das paixões e, de uma forma mais

abrangente, da organização sintagmática do discurso, de seus esquemas

rítmicos, prosódicos e axiológicos.

Ainda em defesa da teoria semiótica de linha francesa: com ela o analista

pode “mergulhar” na narratividade dos textos, “lendo” ou “des-cobrindo” aquilo

que os artistas deixaram gravado como expressão e conteúdo do que estavam

sentindo e pensando no momento.

O Nu de Boubat e a Globeleza | 199

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2008.

PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual – os percursos do olhar. São

Paulo: Contexto, 2004.

Parte IV

REALITY SHOW E PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 203

PRÁTICAS ENUNCIATIVAS COMO ESTRATÉGIAS DE INTERAÇÃOBig Brother Brasil

Maria Lúcia Vissotto Paiva DinizSarah Caramaschi Degelo

PREMISSAS

O formato reality show foi inaugurado em 1999, em um canal de televisão

holandês, o Veronica. Dois anos depois já se via difundido por 19 países, entre

eles, Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Portugal, Suécia, Suíça

e Bélgica. Sempre acompanhado de altos índices de audiência, o programa de

caráter voyeurístico foi se adaptando às tevês dos territórios pelos quais passou,

conforme determinações das emissoras que adquiriram seus direitos.

Apesar do inegável sucesso desses programas, ainda hoje a eles atribuído,

não se pode negar uma lenta, porém contínua, queda de interesse do público em

todo mundo. Esse fato pode ser constatado ao observar o curto tempo de vida

de alguns desses programas. Depois de amargar fracassos mantendo o mesmo

esquema do modelo inicial, cada rede, em diferentes países, buscou construir

um formato que fosse bem recebido pelo público. Alguns são mal sucedidos,

204 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

outros vêm alcançando repercussão invejável1.

No Brasil, o representante de maior visibilidade, o Big Brother Brasil (BBB),

produzido e veiculado pela Rede Globo de Televisão, desde 2002, segue o forma-

to inicial e teve sua oitava edição em 2008. Segundo artigos publicados em mí-

dias de grande circulação2, essa edição apresentou um decréscimo de audiência.

O programa de estréia, que foi ao ar em oito de janeiro de 2002, registrou 36 pon-

tos de média com picos de 43 pontos e 56% de share (o percentual de televisores

sintonizados em um canal específi co), sendo a segunda audiência mais baixa de

uma estréia de edição de um BBB (perdendo somente para o primeiro episódio

da segunda edição, de 2003, que fi cou com 29 pontos de audiência). O programa

fi nal, exibido em 25 de março de 2008, teve a segunda pior audiência de todas

as edições do BBB, marcando uma média de 46 pontos na Grande São Paulo e

fi cando acima somente da segunda edição do programa, que marcou 45.

Esses dados, no entanto, quando olhados com atenção, não são sufi cientes

para afi rmar que houve uma queda de interesse do espectador tão signifi cativa

quanto se pode imaginar em uma leitura apressada. É preciso atentar para o fato

de que o sistema televisivo sofre mudanças constantes. A programação geral da

Rede Globo convive com uma perda de audiência, o que deriva da migração

de espectadores tanto para outras emissoras ou canais de TV a cabo ou satélite,

quanto para outros suportes de mídia, em especial a internet. Nesse sentido, há

que considerar o fato de que a própria internet vem sendo utilizada de forma

crescente pela emissora na exploração do conteúdo e na relação com o telespec-

tador. Interessante notar ainda que, mesmo no período em que o BBB não está

no ar, de março a janeiro, o site do programa continua a desenvolver conteúdos

e garante um grande volume de acessos.

Nesse cenário, as últimas edições do BBB apresentam números relevantes.

Segundo dados disponíveis no site ofi cial da Rede Globo, pelo menos 13 mi-

lhões de internautas visitaram o site da sétima edição em seu primeiro mês de

exibição. Só os vídeos com trechos do programa da Rede Globo registraram 71

milhões de acessos, o que corresponde a um crescimento de 772% em relação

à sexta edição do programa. A edição de número 8 apresenta ainda um outro

dado considerável: a fi nal do programa registrou 75,6 milhões de votos, recorde

do jogo, segundo o apresentador Pedro Bial.

1 No Brasil, algumas emissoras tentaram fazer certas adaptações e foram mal sucedidas, assim como na França, por exemplo, em 2006, em que o programa foi adaptado à Idade Média e interrompido por declínio signifi -cante de audiência. Recentemente, França e Inglaterra realizam, todo ano, um formato similar para eleição do melhor intérprete entre cantores amadores provenientes de todas as regiões, com altos índices de audiência e incrível repercussão até internacional.

2 Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 205

Nesse momento, uma questão mostra-se relevante: o que faz do BBB um

programa que gera esse amplo interesse por parte do espectador? A hipótese

levantada por este ensaio é de que o responsável por essa audiência não é exa-

tamente o conceito de realidade do programa mas, antes de tudo, a estrutura

discursiva que o sustenta. A partir de uma leitura atenta do conteúdo veiculado

em canal aberto e daquele disponível no site do programa, é possível reconhecer

uma estrutura complexa e inovadora de produção de sentido. O instrumental

teórico eleito para embasar este trabalho é proveniente da semiótica discursiva,

de linha francesa, no que toca principalmente ao conceito de práticas enunciati-

vas, uma contribuição teórica signifi cativa para a área da comunicação.

PRÁXIS ENUNCIATIVA

[...] a todo momento da evolução de uma cultura e dos discursos que a

constituem, em todo ponto de sua difusão, convivem ao menos dois tipos

de grandezas: as engendradas a partir do sistema e as fi xadas pelo uso. De

tal forma que, como todo discurso dispõe, hic et nunc, desses dois tipos

de grandeza, a exigência mínima de coerência impôs, de certo modo, o

conceito de práxis enunciativa, para explicar sua co-presença discursiva

(Fontanille; Zilberberg, 2001: 174).

A análise do discurso do BBB será orientada a partir da práxis enunciativa,

que primeiramente identifi ca as práticas engendradas pelo sistema e pelo uso,

duas grandezas que constituem todo e qualquer discurso. Assim, ao conceber a

enunciação como a instância de mediação entre o discurso e o mundo natural,

em que pese a tensão entre os modos de existência aí contidos, o trabalho pro-

põe uma análise da articulação entre o fazer persuasivo do enunciador e o fazer

interpretativo do enunciatário. Para isso buscaremos, no enunciado, marcas que

levem à enunciação e que tornem claros os efeitos de sentido relacionados a

ela, através de um levantamento das diferentes formas de instauração actan-

cial, temporal e espacial no discurso. Com isso, pretendemos tornar claros os

procedimentos que articulam a coexistência entre a enunciação enunciada e o

enunciado dentro do discurso, e os efeitos que daí decorrem.

Nesse momento, é preciso esclarecer a distinção entre enunciação propria-

mente dita e enunciação-enunciada. A enunciação defi ne-se como prática (ou

práxis) enunciativa e fundamentalmente existe como pressuposto lógico do

enunciado. Pode ser defi nida como:

206 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

uma mediação entre o atualizado (em discurso) e o realizado (no mun-

do natural). Em suma, a enunciação é uma práxis na exata medida em

que dá certo estatuto de realidade [...] aos produtos de atividade da lin-

guagem: a língua se destaca por defi nição do “mundo natural”, mas a

práxis enunciativa a reincorpora nele, sem o que os “atos de linguagem”

não teriam qualquer efi cácia nesse mundo. Existem de fato dois tipos de

atividades semióticas, as atividades verbais e as não-verbais, mas ambas

estão ligadas a uma só “práxis” (Ibidem: 172).

A enunciação enunciada faz-se pela instauração, dentro do discurso, de um

simulacro do ato da enunciação. “A enunciação enunciada deve ser considerada

como constituindo uma subclasse de enunciados que se fazem passar como sen-

do a metalinguagem descritiva (mas não científi ca) da enunciação” (Greimas;

Courtés, 1983: 144).

O lugar de residência e exercício da enunciação, no que se refere à prática

enunciativa, pode ser localizado dentro de um espaço em que ela aparece como

entidade englobante do discurso e englobada pela realidade. Esse fenômeno é

aqui entendido como o lugar em que se relacionam os sujeitos ônticos, “de carne

e osso”. Do espaço que delineia a idéia de discurso participam duas instancias:

enunciação e enunciado. No lugar em que se encerra o primeiro conceito, en-

contram-se os sujeitos da enunciação: enunciador e enunciatário. O enunciador

é responsável pela produção do discurso e pela comunicação persuasiva com o

enunciatário. Ambos, enunciador e enunciatário são, na verdade, uma forma de

representação, um simulacro do sujeito do mundo natural, pois são entidades

discursivas. Já o enunciado, ou texto, considerado um todo de sentido, é forma-

do por categorias actanciais, espaciais e temporais próprias, instauradas pela

enunciação, através dos procedimentos sintáxicos de embreagem e debreagem3,

e também por fi guras e temas, já na dimensão semântica. A fi m de projeta-

rem-se dentro do texto, o enunciador e o enunciatário travestem-se, respec-

tivamente, de narrador e narratário, fazendo uso dos procedimentos citados:

são entidades “de papel”, construídas por fi guras da expressão e do conteúdo.

O narrador pode, através do discurso direto, dar voz aos atores discursivos, que

tomam, assim, as posições de alocutor e alocutário. No enunciado do Reality

Show em questão, os vários espaços pelos quais caminham as representações e

as várias maneiras de se colocarem neles estabelecem simulacros de relações de

proximidade e distanciamento entre a instância produtora do discurso e o texto

propriamente dito, gerando diversos efeitos de sentido, como o de “realidade” e

3 As noções de embreagem e debreagem, defi nidas no Dicionário de Semiótica I (Greimas; Courtés, 1983), foram desenvolvidas por Fiorin (1996).

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 207

o de “afetividade” principalmente. Esses efeitos acabam por convergir na cons-

trução do efeito de verdade, que dá suporte à crença fi duciária e, assim, permite

a ocorrência do fazer manipulador.

A partir da análise da estrutura discursiva do texto, é possível reconhecer

dois percursos temáticos principais assumidos pela enunciação: produção e co-

municação. Para Barros, essa “duplicidade de percursos temáticos permite, cer-

tamente, considerar a enunciação como a atividade humana por excelência, ao

mesmo tempo, produção e comunicação” (Barros, 2002: 137).

PRODUÇÃO DE SENTIDO E PRÁTICAS ENUNCIATIVAS

A realização da enunciação enquanto produção prevê um sincretismo en-

tre enunciador e enunciatário, denominados “sujeitos da enunciação”, para que

ambas as instâncias compartilhem a responsabilidade pela edifi cação do sentido

do enunciado. No discurso do programa de tevê Big Brother Brasil, esse papel te-

mático apresenta uma estrutura complexa e inovadora em relação às narrativas

fi ccionais clássicas. Nele, as instâncias de produção são problematizadas, deslo-

cadas e rearranjadas, assumindo posições diversas no quadro de suas funções

narrativas e temáticas.

Em primeiro lugar, o enunciador (apresentador) é também actante da nar-

rativa como personagem da trama, pois ele atua junto aos demais, fomentando e

desenvolvendo intrigas e até mesmo estabelecendo diálogo direto com as demais

personagens (candidatos), conjugando o papel de sujeito narrador-ator. Assim

também há, na construção do enunciado, o envolvimento direto do enunciatá-

rio. Este age como parte integrante, não só do processo de autoria, mas também

como actante da trama, já que ele interage em sua construção.

Desse modo, o formato do programa apresenta-se como uma narrativa

aberta, na qual a trama é “costurada” durante o ato enunciativo, no qual, tanto

enunciador quanto enunciatário tornam-se atores do discurso. Há uma interpe-

netração e troca de papéis entre entidades do enunciado e da enunciação, pois

há um deslocamento dessas instâncias nos diferentes momentos da apresen-

tação. O papel do enunciatário ultrapassa o fazer interpretativo na produção

do discurso e ganha força no espaço que, na narratividade fi ccional clássica, é

reservado ao fazer do enunciador. Daí afi rmarmos que de espectador – dono

de um fazer meramente interpretativo – o espectador está sendo promovido a

co-produtor, dono de um fazer colaborativo – característico da relação de inte-

208 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

ratividade possibilitada pelos suportes digitais4.

Ora, não podemos negar, com isso, que as direções que guiam o enredo

são estabelecidas por uma entidade a que pertencem os realizadores do progra-

ma: diretores, produtores, anunciantes, editores. Trata-se, pois, de uma entidade

complexa do discurso. As categorias de pessoa, espaço e tempo, no nível dis-

cursivo do percurso gerativo do sentido, continuam sendo programadas, pla-

nejadas e articuladas de acordo com a intencionalidade do sujeito enunciador.

As características do próprio suporte midiático “televisão” não permitem que

se fuja dessa intencionalidade, na medida em que apresenta, como condição

de existência, elementos como o enquadramento e a edição, que prevêem, en-

quanto produtos de um fazer seletivo, a mediação do enunciador. Essa escolha

determina, portanto, um ângulo ideológico do discurso. Ler essas marcas é des-

cobrir o que a entidade enunciadora quis “mostrar” do fato acontecido. Assim

sendo, o ângulo de observação do objeto analisado é extremamente revelador

de intencionalidades existentes dentro do enunciado. Nesse sentido, podemos

dizer que a participação autoral do espectador é também planejada e, logo, pre-

visível. Contudo, não pode ser negada sua participação efetiva na construção

da narrativa, já que, em certos instantes, ele se torna personagem da história

narrada, participando da trama.

É possível, então, conceber o sujeito da enunciação, em determinados mo-

mentos dessa narrativa, no papel temático da produtor do discurso, na união de

um enunciador e um enunciatário, ambos de natureza complexa e coletiva, já

que a função de cada um é problematizada e reformulada no formato do reality

show, mostrando nuanças novas dessa relação, que podem ser denominadas de

intradiscursivas.

A reformulação da dimensão enunciativa do texto acaba por gerar efeitos

de sentido que colaboram para o estabelecimento do contrato fi duciário entre

enunciador e enunciatário no processo que embasa o segundo papel temático

em questão: o da comunicação. Nele, a enunciação manifesta-se através de um

enunciador-manipulador, que comunica ao enunciatário-manipulado os va-

lores investidos no discurso-objeto em questão e realiza um fazer persuasivo

sobre ele. Em uma situação ideal, o enunciatário é levado a realizar seu fazer

interpretativo em conformidade com a intencionalidade do primeiro e, assim,

induzido a crer e a fazer. Tanto na produção quanto na comunicação, a enun-

ciação manifesta-se através do enunciado, deixando nele suas marcas. A esse

respeito, diz Barros:

4 A interação no BBB realiza-se pelo uso da internet, pelo telefone ou celular.

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 209

se tanto o fazer persuasivo do enunciador quanto o interpretativo do

enunciatário se realizam no e pelo discurso, conclui-se que, para conhe-

cer e explicar tais fazeres e por meio deles apreender a instância da enun-

ciação, precisa-se proceder à análise interna e imanente do texto (Barros,

2002: 137).

Portanto será preciso realizar uma leitura do discurso do BBB no plano do

conteúdo, a fi m de reconhecer essas “marcas” e tornar claros, através delas, os

procedimentos de projeção da enunciação no enunciado, os efeitos de sentido

aí gerados e as formas de articulação dos contratos fi duciário e veridictório no

processo de comunicação manipulativo.

EFEITOS DE SENTIDO DAS PRÁTICAS ENUNCIATIVAS

No percurso gerativo do sentido, o nível mais superfi cial, o das estruturas

discursivas, guarda marcas importantes do nível semântico profundo. Ao olhar

para as categorias de pessoa, espaço e tempo, podemos reconhecer elementos que

estão na construção dos efeitos de aproximação e distanciamento entre enuncia-

ção e enunciado. Para se projetar no enunciado, a enunciação utiliza os recursos

sintáxicos da debreagem e da embreagem. A respeito da debreagem, quando esse

procedimento instaura um simulacro do sujeito da enunciação, surge o efeito

de sentido de subjetividade, ou seja, a aproximação citada. A debreagem, nesse

caso, é chamada enunciativa. Ao contrário, na debreagem enunciva, aparece a

objetividade, que tende a afastar o texto da sua instância de produção, criando o

efeito de distanciamento. Já a embreagem é uma tentativa de reengate das formas

debreadas no discurso pela enunciação. Com isso, cria-se o efeito de identifi ca-

ção do enunciado com a instância da enunciação (Fiorin, 1996).

A transmissão do reality show, em canal aberto, apresenta uma estrutura

híbrida e complexa. Os tipos de projeção da enunciação no texto são arranjados

dentro de um emaranhado de formas, a fi m de desenhar jogos de cena diversos.

Quatro práticas enunciativas distintas e elementares (ou regimes de presença)

podem ser percebidas no enunciado em questão. Na primeira, temos o recurso

discursivo caracterizado pelo aproveitamento do material pré-gravado. Aqui,

um narrador onisciente, em terceira pessoa, afasta o acontecimento narrado do

processo de narração.

Essa forma de narrar marca um discurso objetivo que busca estabelecer,

210 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

com o espectador, um contrato fi duciário calcado no “dizer verdadeiro”. Nesse

caso, a busca pela verdade liga-se a um esforço pela comprovação referencial

do que está sendo comunicado, gerando então um efeito de “realidade” (reality)

no discurso. No BBB, tal efeito é construído, em grande medida, pela referen-

cialização actancial, através de debreagens internas de segundo grau, que esta-

belecem o discurso direto entre as personagens, o que acaba por criar a ilusão

de “realidade” e atribuir desse modo, aos diálogos, o estatuto de verdade. Esse

recurso instaura ainda um tempo não presente ao ato da enunciação, relativo a

um “então”, já recortado e montado. O lugar demarcado para o desenrolar da

narrativa é o “lá”, a casa-confi namento, distante tanto do enunciador quanto

do enunciatário. Esse tipo de instauração discursiva de tempo, espaço e pessoa,

pelo mecanismo da debreagem enunciva, ocorre nas transmissões do material

audiovisual já editado.

A segunda prática enunciativa está presente nas transmissões ao vivo, no

momento em que o apresentador (narrador) dirige-se diretamente ao espec-

tador (narratário). Nesse caso o enunciador, complexo e coletivo, projeta um

simulacro de si mesmo no enunciado e desenha um conjunto de marcas que

constituem o que se denomina enunciação enunciada. Para isso traveste-se de

narrador, na fi gura de apresentador, e se faz ouvir enquanto narrador em pri-

meira pessoa. Da mesma forma, ele projeta também dentro do texto audiovi-

sual o enunciatário – que se faz, então, narratário – ao se referir ao espectador

através da segunda pessoa (o tu recoberto pelo pronome de tratamento “você”).

Estabelece-se, dessa maneira, um tempo simultâneo entre o ato de enunciar e

o texto enunciado, criando um efeito de instantaneidade. O espaço que abriga

esse tipo de situação é, de certa forma, comum entre as entidades envolvidas.

Nele relacionam-se narrador e narratário. Cria-se o efeito de subjetividade, que

também está na base do contrato fi duciário, porém não pretendendo um “fazer-

crer verdadeiro” pelo recurso da referencialização do mundo natural enquanto

efeito de sentido, mas criando um laço afetivo de empatia entre o enunciador e

o enunciatário.

Esse contato entre enunciador e enunciatário, que edifi ca tanto o contrato

fi duciário quanto o veridictório, estreita-se ao ponto de esses atores transforma-

rem-se de entidades idealizadas em entidades indicialmente concretizadas no

espaço narrado. Há, nesse instante, um efeito de sentido que busca uma repre-

sentação da práxis enunciativa no seu exercício de esquematização dos modos

de existência que, partindo da virtualidade semiótica, tendem a deslocar-se em

direção às práticas do mundo da existência numênica. Objetiva-se, com isso,

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 211

embasar um acordo de confi ança, que determina a ligação entre destinador

manipulador e destinatário manipulado. Esse conjunto de marcas, que projeta

o sujeito da enunciação dentro do texto, determina a debreagem enunciativa,

encontrada no discurso do BBB nas transmissões ao vivo. Esse tipo de projeção

é reconhecível dentro dos mais variados suportes textuais, sejam eles verbais

ou não-verbais. A possibilidade da transmissão ao vivo, no entanto, confere à

televisão uma situação especial, no que se refere à distância temporal entre o

fazer do enunciador e o do enunciatário, na medida em que praticamente anula

a distância e intensifi ca o efeito de aproximação:

A partir da televisão, o registro do espetáculo que se está ainda enuncian-

do e a visualização/audição do resultado fi nal podem se dar simultanea-

mente e é justamente o traço distintivo da transmissão direta: a recepção,

por parte de espectadores situados em lugares muito distantes, de eventos

que estão acontecendo nesse mesmo instante (na verdade, não é exata-

mente o mesmo instante, pois há um ligeiro atraso entre captação, trans-

missão e recepção, devido ao percurso do sinal nos canais eletrônicos,

mas essa diferença é mínima e pode ser ignorada em termos práticos)

(Machado, 2000: 125).

O terceiro regime de presença dá-se quando, ainda na transmissão ao vivo,

o apresentador estabelece um contato direto com as personagens da trama, os

candidatos que estão na casa-confi namento, falando-lhes diretamente, ou seja,

fazendo-os assumir a segunda pessoa do discurso na situação do diálogo. Esse

regime, ocorrendo durante a transmissão ao vivo, mantém a representação es-

paço-temporal da enunciação a que pertencem as noções de “aqui” e “agora” e

do “eu”, assumidas pelo apresentador. A categoria actancial, no entanto, é des-

locada, ao transferir os candidatos da 3ª para a 2ª pessoa, o que em situação de

diálogo coloca o apresentador em comunicação com os candidatos, e o enun-

ciatário (telespectador) se estabelece como 3ª pessoa. Essa reconfi guração das

relações discursivas constitui o processo da embreagem enunciva, que desloca

as categorias actancias da enunciação para o enunciado.

Há ainda um quarto tipo de regime de presença. Dentro do espaço enuncivo

da casa-confi namento, os atores do discurso são levados, em situações específi -

cas, a falar com os espectadores. Isso ocorre quando dois deles vão a julgamento

no “paredão”. A cada um é reservado um tempo para que possa se defender do

julgamento negativo do público do programa e, assim, evitar a sanção negativa

representada pelo seu desligamento do enunciado. Ocorre, aqui, ao contrário

da situação anterior, um processo de embreagem enunciativa. A posição de 3ª

212 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

pessoa da personagem, em relação à instância da enunciação, é desviada para

a de 1ª pessoa do discurso ao se ligar à 2ª pessoa, assumida pelo enunciatário.

O espaço da ação funde-se na enunciação e confunde-se com ela. No mesmo

tempo do “agora”, coexistem o “lá” – que abriga as relações entre as personagens

e permanece distante do enunciatário – e o “aqui”, referente ao lugar da enuncia-

ção. Esse processo cria a ilusão de retorno das formas ora desembreadas às mãos

da enunciação e contribui para o efeito de aproximação entre essa entidade e o

discurso, na construção da idéia de afetividade, já comentada anteriormente.

Essas várias formas de projeção da enunciação no enunciado fazem reco-

nhecer, no discurso do BBB, um emaranhado de efeitos de sentido que, ora

aproximam as instâncias produtoras do seu próprio produto, ora fazem des-

te último uma entidade dona das suas próprias regras. Todo esse jogo está na

base das estratégias persuasivas dispostas pelo enunciador, no momento em que

propõe o programa ao enunciatário, pois o coloca na posição de “telespectador

participante” do enunciado televisivo, uma forma de interatividade ideal. Esse

conjunto de práticas enunciativas distintas, que sinalizam os regimes de presen-

ça aqui levantados, procura evidenciar, antes de tudo, o “efeito de veracidade”

que essas estratégias provocam e a troca fi duciária entre destinador e destina-

tário, que possibilita, com base na confi ança em um dizer-verdadeiro, vínculos

que estruturam todas as demais estratégias de manipulação reconhecíveis no

discurso em questão.

Os quatro regimes, sistematizados na tabela a seguir, pretendem eviden-

ciar as práticas enunciativas mais freqüentes no BBB. Contrastando debreagem

e embreagem, enunciva e enunciativa, cada regime apresenta um tipo distinto

de relação entre actantes no espaço e no tempo. No regime 1, cada candidato

dialoga com outro candidato no texto pré-gravado, instaurando-se diante do

apresentador e dos telespectadores como um sujeito (ele), na casa-confi namen-

to (lá) num tempo passado (então), o que denota um afastamento. No regime

2, o diálogo se instaura entre o apresentador e o telespectador, ao-vivo, ins-

taurando um sujeito (eu) no mesmo espaço (aqui) e num tempo simultâneo

(agora), criando o efeito de aproximação. No regime 3, o apresentador dialoga

com os candidatos, também ao-vivo e diante dos telespectadores. Isso provoca

um desdobramento do eu (o apresentador ou o candidato assumem a primeira

pessoa alternadamente), do aqui (ora é a casa, ora o estúdio), criando o efeito

de sentido de expansão ou difusão. No regime 4, o candidato dialoga com o

telespectador em texto pré-gravado, instaurando-se como um eu, aqui, agora

que tenta explicar suas atitudes (dele) diante dos telespectadores (aqui), realiza-

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 213

das na casa (lá), detalhando fatos passados (então) no momento atual (agora),

evidenciando a coexistência actancial, espacial e temporal que cria o efeito de

sentido de fusão.

Regime 1 Regime 2 Regime 3 Regime 4

debreagem enunciva

debreagem enunciativa

embreagem enunciva

embreagem enunciativa

candidato-candidato

apresentador-telespectador

apresentador-candidato

candidato-telespectador

pré-gravado ao-vivo ao-vivo pré-gravado

ele, lá, então eu, aqui, agoradesdobramento do

eu e aqui

coexistência do eu/ele; aqui/lá; então/agora...

afastamento aproximação difusão fusão

PARA TERMINAR

Esses quatro regimes de presença aqui apontados e descritos representam

formas diferentes de persuasão ideologicamente construída dentro dos parâ-

metros midiáticos, nos quais, além de uma simples narrativa, há interesses ou-

tros, no nível profundo da elaboração do discurso, como o do merchandising.

Quando, por exemplo, um prêmio é ofertado para um participante, dentro de

um determinado capítulo do reality show, todo um processo de discurso apela-

tivo fi ca subjacente à história narrada. Esse objeto oferecido como prêmio não

é apenas o objeto-valor do personagem (vencedor de uma prova do jogo), mas

duplamente valorizado: como objeto-valor da entidade enunciadora, que busca

recursos fi nanceiros para sustentar o programa, e como objeto-valor da entida-

de fi nanciadora, que faz sua publicidade. O que queremos dizer é que, muito

além de um simples prêmio conquistado, há uma seqüência de manipulações: a

do candidato que é manipulado para “entrar no jogo”, a da empresa que mostra

seus produtos (automóvel, viagem, jóia, etc.) e a da própria empresa de televi-

são, que premia angariando recursos e faz a publicidade indireta da empresa e

do produto no reality show.

No entanto, o que realmente importa é que o candidato escolhido (ven-

214 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

cedor daquela etapa ou no fi nal da série) pareça ter sido aquele desejado pelo

telespectador (afi nal, é ele quem vota!). O observador atento, que assiste ao BBB,

poderá perceber a presença constante do enunciador coletivo (equipe de res-

ponsáveis), sobretudo no primeiro regime, na apresentação do material pré-gra-

vado5. Não é possível apresentar o volume total da gravação de todas as câmeras

localizadas na casa-confi namento. Logo, é feita uma seleção, uma escolha, que

deve trazer benefícios a um candidato e danos a outro. O processo de votação

exige do espectador um posicionamento, que se fundamenta em sua aprovação

ou repulsão ao candidato, diante dos valores registrados em seu comportamen-

to apresentados no vídeo. Assim sendo, uma cadeia de manipulações subjaz à

trama como um todo. Predominam os interesses comerciais (publicitários e de

audiência), sem dúvida, pois as atividades da casa-confi namento fomentam a

competitividade, a discórdia e o embate, ingredientes que garantem a audiência

e forjam o merchandising na narrativa. O telespectador-enunciatário é mani-

pulado e envolvido nesse jogo. E, instigado a fazer prevalecer seus “próprios”

valores, elege “seu” candidato, num processo de identifi cação exemplar.

Apontamos e tentamos descrever aqui apenas quatro regimes de presen-

ça que representam estratégias efi cientes para a interação com o telespectador.

Há outras fomas, algumas já identifi cadas, tais como as chamadas do BBB ao

longo da programação da emissora, em que telespectadores (pessoas comuns

abordadas na rua) opinam sobre os candidatos e instigam a curiosidade do te-

lespectador. Além disso, a oitava edição, iniciada em janeiro de 2008, inaugurou

outros dispositivos: instalação de telefone na casa-confi namento, redação de di-

ários pelos candidatos, páginas que são publicadas no site ofi cial do programa,

avaliação diária do “humor” que reina na casa e do “humor” pessoal de cada

candidato, dentre outros. Assim, há um feixe de depoimentos (tanto dos can-

didatos quanto dos telespectadores), muitas vezes controversos, que somados

às quatro práticas enunciativas identifi cadas e descritas, representam o que em

jornalismo chamamos as várias versões do fato, ângulos que revelam pontos de

vista diferentes, constituindo também um feixe de informações cada vez mais

necessário para a formação de opinião, uma exigência conduzida pelas novas

tecnologias, como a internet, que se impõe progressivamente ao homem da so-

ciedade contemporânea.

Apesar dos oito anos sucessivos de Big Brother Brasil, sempre nos mesmos

moldes originais, observa-se um certo cansaço. Insistindo nos mesmos propó-

5 Não esquecer que o apresentador também conduz, ou seja, exerce a manipulação tanto sobre os telespecta-dores (prática enunciativa do regime 2), quanto sobre os candidatos (regime 3). Conseqüentemente, dirige ambos de forma quase “possessiva” e dominadora, direcionando o percurso narrativo ou a diegese.

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 215

sitos, ou seja, no comportamento “sentimental” de seus participantes, esse for-

mato parece atrair sobretudo os telespectadores jovens. Entretanto, há inúmeros

outros temas, questões mais abrangentes que poderiam ser enfocadas para uma

macrodiscussão do tema na sociedade. Idealismos à parte, as práticas enunciati-

vas instauradas pelo programa são efi cientes como estratégias e carecem de um

aprofundamento nos estudos de comunicação. Responsáveis pela interação al-

cançada pelo programa, essas estratégias representam também a almejada ten-

dência à interatividade que os meios de comunicação tanto buscam, e que será

cada vez mais possível e explorável comercialmente a partir da consolidação da

TV digital.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4o ed. São Paulo:

Ática, 2005.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3ª

ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1996.

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São

Paulo: Contexto, 2007.

FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e signifi cação. Trad.

Ivã Carlos Lopes et al. São Paulo: Discurso Editorial: Humanitas/FFLCH/USP,

2001.

GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima

et al. São Paulo: Cultrix, 1983.

MACHADO, Arlindo. Televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000.

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 217

PRÁTICAS PASSIONAIS NA MÍDIA TELEVISIVAProgramas de comportamento

Dimas Alexandre Soldi

SEMIÓTICA DAS PAIXÕES

Dos estados de coisas aos estados de alma

O estudo das dimensões passionais do sujeito, desenvolvido em Semiótica

das paixões de Algirdas Julien Greimas e Jacques Fontanille (1993), parte da di-

mensão sintáxica da semiótica da ação – nível narrativo da semiótica standard

– e traz contribuições metodológicas e teóricas a fi m de “construir uma semân-

tica da dimensão passional nos discursos, isto é, a paixão não naquilo em que

ela afeta o ser efetivo dos sujeitos ‘reais’, mas enquanto efeito de sentido inscrito

e codifi cado na linguagem” (Bertrand, 2003: 358).

A semiótica da ação, ligada à narratividade ou sintaxe narrativa, decorre de

estudos desenvolvidos conforme as contribuições de Vladimir Propp em Mor-

fologia do conto maravilhoso (1984), cujas funções, executadas por personagens,

orientam a narrativa dos contos eslavos por ele analisados e que, mais tarde,

contribuíram para a formulação do modelo teórico desenvolvido por Greimas.

O nível narrativo do percurso gerativo do sentido, de inspiração proppiana, apre-

senta os enunciados mínimos (de estado e de fazer) sobre os quais se constroem

218 | Dimas Alexandre Soldi

as teias narrativas que, organizadas, geram percursos actanciais que compõem o

esquema narrativo canônico. Cada enunciado baseia-se na natureza da relação

do sujeito com o objeto, seja ela de junção, de disjunção ou de seus contraditó-

rios. Todos os textos estariam, dessa forma, estruturados, sintaxicamente, por

quatro grandes percursos narrativos, o da manipulação (fi rmação do contrato

entre destinador-manipulador e sujeito), o da competência (o fazer-fazer ou a

doação de competência modal ao sujeito – querer, dever, poder ou saber-fazer),

o da performance (a própria ação do sujeito) e o da sanção (o destinador-julga-

dor interpreta a ação do sujeito e a sanciona positiva ou negativamente). Esses

percursos caracterizam a ação do sujeito na conquista dos objetos, compostos

de um feixe de modalidades variáveis.

No entanto, essa sistematização do agir de sujeitos em busca de objetos não

leva em conta a modulação dos estados afetivos desses actantes, despreza os

efeitos passionais que explicam as suas condutas, modalizadas acima de tudo

pelos estados de alma. O estudo da dimensão passional tem o intuito de ob-

servar as variações passionais que orientam a ação dos sujeitos e preencher os

hiatos existentes nos momentos anterior e posterior à ação.

As paixões, do ponto de vista da semiótica, são efeitos de sentido de confi -

gurações passionais, ou seja, modalizações que modifi cam o sujeito de estado.

De acordo com Bertrand, existem as boas e as más paixões que, quando “subme-

tidas a regimes de sensibilização e moralização variáveis, formam taxionomias

conotativas que permitem identifi car e distinguir formas culturais” (2003: 373).

Num primeiro momento, a semiótica procurou:

determinar qual o arranjo modal e qual a estrutura narrativa que ca-

racterizam e sustentam as denominações de paixões, como a cólera, a

frustração, o amor ou a indiferença. Trata-se, em suma, de descrevê-las

com uma sintaxe narrativa modal em que se examinem as combinações

de modalidades (Barros, 2001: 47).

Contudo a abordagem presente na obra de Barros, que aproxima a semióti-

ca da paixão da semiótica da ação, necessitou de uma mudança de perspectiva:

nos últimos anos, a sintaxe narrativa que descreve os componentes passionais

aproxima-se, cada vez mais, de uma sintaxe tensiva:

Durante os anos 80, a análise das paixões era uma análise dos lexemas

ou dos papéis passionais: a cólera, o desespero, a nostalgia, a indiferença,

a avareza ou o ciúme. No curso dos anos 90, ela se consagra cada vez

mais ao estudo da dimensão passional do discurso e, notadamente, às

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 219

manifestações passionais não-verbais, ou ‘não-verbalizadas’ (Fontanille;

Zilberberg, 2001: 297).

O que os pensadores franceses querem dizer é que, na verdade, a paixão não

deve ser vista apenas sob o enfoque modal que caracteriza uma determinada

manifestação passional. Por exemplo, a paixão da ambição não pode ser enten-

dida apenas como a modalização de um querer, ou apenas pela redução sintáxi-

ca dos termos que a regem, ou seja, pela simplifi cação encontrada nos estados

de coisas. Ao contrário, os sintagmas passionais associam várias dimensões, não

apenas as modais, mas, principalmente, as aspectuais, as temporais e outras. Na

semiótica das paixões encontra-se a complexidade dos elementos que, em con-

junto, instauram um universo passional regido pela timia. Fontanille e Zilber-

berg, nessa perspectiva de associação de diferentes dimensões correlatas entre

si no seio de um sintagma discursivo, tendo em vista que as correlações são ao

mesmo tempo sensíveis e inteligíveis, propõem três condições:

1. que as dimensões envolvidas seriam de dois tipos: modais e fóricas;

2. que as modalidades implicadas se referem tanto à existência (modali-

dades existenciais) quanto à competência (querer, dever, saber, poder e

crer); 3. e que a foria conjuga essencialmente a intensidade e a extensi-

dade, com seus efeitos induzidos por projeção no espaço e no tempo, os

efeitos de tempo e de ritmo (Idem: 298).

Acredita-se, assim, que uma investigação dos caminhos afetivos percorri-

dos por um sujeito patêmico deve levar em conta, obrigatoriamente, essas duas

dimensões, modais e fóricas, que, juntas, podem traduzir-se em efeitos de sen-

tido passionais, e estes são eminentemente culturais. Identifi car uma paixão sig-

nifi ca reconhecer elementos signifi cantes de nossa própria cultura, de modo que

deve ser percebida e apreendida dentro do crivo de leitura de um espectador

que compartilha do mesmo universo cultural, sem o qual há o risco de não se

sentir o impulso passional do sujeito do discurso:

É a práxis enunciativa que decide in fi ne o que é paixão e o que não

é, por meio de uma espécie de sanção intersubjetiva e social, uma in-

tencionalidade que deve ser reconhecida e partilhada para ser operante.

Isso signifi ca que, assim que uma paixão é identifi cada e denominada,

não estamos mais na ordem da dimensão passional viva, mas na dos

estereótipos culturais da afetividade. Não podemos, portanto, começar

a descrição das paixões identifi cando ‘unidades’ ou ‘signos’ passionais,

sobretudo lexicais, pois tal identifi cação está, de imediato, submetida

220 | Dimas Alexandre Soldi

ao crivo cultural do observador; em compensação, é lícito passar pelo

campo intermediário de seus ‘efeitos de sentido em discurso’. De fato, a

paixão em discurso será caracterizada pela natureza e pelo número de

dimensões correlatas, como também pelos formantes sintáxicos capazes

de sensibilizar a manifestação discursiva (Idem: 299).

Esquema passional canônico

Tal como no nível narrativo, em que Greimas apresenta o esquema narrati-

vo canônico, em Semiótica das paixões aparece a sistematização do esquema pa-

têmico canônico, que mantém relação muito próxima com o outro, mas procura

evidenciar os estados de alma dos sujeitos passionais: ao percurso do “fazer” do

sujeito se junta, entrelaçando-se a ele, um percurso do “ser”. “A uma semiótica

do agir (narratividade) se integra uma semiótica do sofrer (a dimensão pas-

sional)” (Bertrand, 2003: 374). Bertrand (Ibidem) propõe a seguinte correlação

entre os dois esquemas:

Disposição Sensibilização Emoção Moralização

Contrato Competência Ação Sanção

Dessa forma, a manipulação (contrato) equivaleria à disposição; a compe-

tência, à sensibilização; a ação, à emoção; e a sanção, à moralização. Os sujeitos

passionais, cada qual à sua maneira, passariam por esses percursos. Greimas e

Fontanille defi nem cada uma das acepções, em sentido inverso ao do esquema:

A moralização intervém em fi m de seqüência e recai sobre o conjunto

da seqüência, mas mais particularmente no comportamento observável.

Ela pressupõe, portanto, a manifestação patêmica, denominada emoção,

cuja aparição no discurso assinala que a junção tímica está cumprida,

dando a palavra ao corpo próprio. A sensibilização é pressuposta pela

emoção: é a transformação tímica por excelência, a operação pela qual

o sujeito discursivo transforma-se em sujeito que sofre, que sente, que

rege, que se emociona. Ela própria pressupõe essa programação discur-

siva que denominamos disposição, e que resulta da convocação dos dis-

positivos modais dinamizados e selecionados pelo uso; ela aciona uma

aspectualização da cadeia modal e um “estilo semiótico” característico

do fazer patêmico. A constituição determina, enfi m, o teto de seqüência,

o ser do sujeito, a fi m de que ele esteja apto para acolher a sensibilização;

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 221

essa etapa obriga a postular, no nível do discurso, uma determinação

do sujeito discursivo anterior a toda a competência e a toda disposição:

um determinismo – social, psicológico, hereditário, metafísico, seja lá

qual for – preside, então, à instauração do sujeito apaixonado (Greimas;

Fontanille, 1993: 155).

PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO E SUAS PRÁTICAS PASSIONAIS

O objeto de pesquisa deste trabalho é composto por dois programas tele-

visivos de comportamento: (1) Casos de família – exibido diariamente em rede

nacional pelo SBT, Sistema Brasileiro de Televisão, desde 2004. Trata-se de um

programa temático em que os participantes discutem assuntos íntimos, relacio-

nados ao tema familiar. Apresentado pela jornalista Regina Volpato, está no ar

há mais de quatro anos; (2) Programa Silvia Poppovic – versão exibida pela TV

Cultura, emissora pública de televisão, como os tradicionais programas apre-

sentados por Silvia Poppovic. Estreou em rede nacional, no início de 2005, com

exibição inédita e com reprises semanais. Os assuntos discutidos no programa

faziam parte do tema “qualidade de vida no mundo contemporâneo”. Saiu do ar

no fi nal de 2006, um ano e meio após seu início.

Cada programa, à sua maneira, estabelece contratos passionais com seu

enunciatário, tendendo a uma maior ou menor sensibilização, que depende das

práticas adotadas. No primeiro programa, dois convidados expõem, em con-

frontação, um assunto relacionado ao tema da emissão. Após essa apresentação,

um especialista e a apresentadora fazem “julgamentos” direcionados especifi ca-

mente aos “casos” narrados. Em Silvia Poppovic, os convidados apenas relatam

suas histórias pessoais, comentadas por um especialista e pela apresentadora,

que não se limitam a discutir os fatos, mas tentam ampliar o enfoque.

Essas duas diferentes práticas de organização televisiva constituem diferen-

tes estratégias passionais, a partir das quais podemos perceber maior ou menor

envolvimento do telespectador com o enunciado. Vejamos como isso ocorre em

dois exemplos retirados dos programas.

222 | Dimas Alexandre Soldi

PRÁTICA PASSIONAL EM CASOS DE FAMÍLIATema da edição do programa:“Você tem que me apresentar para a sua família”1

A construção passional de um segredo: avanço à intensidade

Na narratividade, Cristiane é o actante sujeito que está em busca de um ob-

jeto-valor, a conjunção com a família do marido, José, seu anti-sujeito. Ela não

conhece a família dele e se queixa da disjunção que o marido insiste em manter.

No percurso do sujeito, o actante Cristiane, modalizado pelo destinador, que é

fi gurativizado pela apresentadora Regina Volpato, com o poder e o saber-fazer

(que garantem apenas sua participação no programa), cumpre a performance

de reclamar, num programa de entrevista, o que a impede de ter mais qualidade

de vida, para si e para seus fi lhos. Tal trama, do ponto de vista da narratividade,

esconde todos os desdobramentos passionais que implicarão no julgamento que

será proclamado no programa. No entanto os estados de alma devem ser inves-

tigados, na tentativa de compreender as motivações passionais que orientam as

ações dos sujeitos.

A apresentadora, ao chamar a convidada do programa, instaura o universo

passional que orientará a entrevista: “Agora a gente vai conhecer a Cristiane que

tem 29 anos e diz: ‘Cada hora o José inventa uma desculpa para não me apresentar

para a família dele, eu acho que ele tem vergonha de mim’”. Do ponto de vista do

julgamento, (1) o percurso do anti-sujeito é revestido pela condição de segredo,

representada no quadrado de veridicção, já que ele “inventa desculpas”, não diz

a verdade; (2) o actante é colocado na conjugação do ser com o não-parecer; (3)

essa condição levará a narrativa na direção de tentar desvendar esse segredo para,

a partir daí, realizar o julgamento. De imediato, aparece uma elucidação – “ele

tem vergonha de mim” – que, ao tentar revelar o segredo, constrói um simulacro

de verdade (veridicção) e fi gurativiza o anti-sujeito como ser preconceituoso. O

maniqueísmo já se evidencia: um sujeito sofre o preconceito do próprio marido,

o anti-sujeito. Nascem o herói e o vilão em uma narrativa dita “real” (ou não-

fi ccional). As fi guras e os temas que vão sendo incorporados ao enunciado vão

tornando signifi cativos os efeitos passionais decorrentes das marcas discursivas.

1 Edição exibida em 26/06/2006. A análise desse item foi dividida em três partes para fi car em sintonia com o formato do programa Casos de família, no qual os convidados são entrevistados um de cada vez até formar uma dupla sobre o mesmo caso. Na primeira parte, é realizada uma análise da primeira entrevista com um dos participantes da dupla, a Cristiane; na segunda, a análise centra-se na entrevista realizada com o segundo membro da dupla, o marido de Cristiane, José; e por fi m, na última parte, é realizada uma avaliação do “jul-gamento”, que compõe o fi m do programa. As constantes citações das entrevistas e do “julgamento” fi nal do segmento, introduzidas nas análises, dispensam a apresentação em anexo da transcrição de todo o material.

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 223

Cristiane, revestida de traços semânticos que modulam a especifi cidade de

suas linguagens, revela-se como um ator marcado pelo estereótipo do oprimido,

ser desprovido do poder e do saber, confi gurando a fase da disposição do es-

quema canônico, que oferece as condições necessárias para que a sensibilização

entre em ação. As diferentes linguagens que a compõem corroboram com esse

estereótipo: (1) as fi guras do conteúdo e da expressão do signifi cante visual,

tais como, a cor negra de sua pele e a ausência de elementos na vestimenta que

concederiam à personagem requinte e sofi sticação (brincos, colares, cabelos lu-

xuosos etc.); (2) a gestualidade, que mostra uma mulher envergonhada, sem

grande expressividade ao falar, com gestos comedidos; (3) a articulação verbal,

que mostra difi culdade em formular e concluir frases, difi culdade em responder

às perguntas da apresentadora, falta de fl uência na fala; (4) a linguagem ver-

bal oralizada, excessivamente coloquial e em desacordo com uma norma culta

(“nóis”, “aí ele pegou”, “minhas prima”, etc.). Tudo isso marca o não-poder e o

não-saber que orientam a passionalidade do sujeito.

Posteriormente, é na sensibilização que o efeito de sentido passional come-

ça a ganhar forma. A disposição por si só não é capaz de produzir esse efeito, a

sensibilização deve agir para produzir o componente afetivo; é a transformação

do ser propriamente dito que produz efeitos passionais em seu percurso sintáxi-

co. Trata-se da primeira fase enunciativa da colocação em discurso das paixões.

“Verticalmente, de alguma forma, ela constrói as taxonomias culturais que fi l-

tram os dispositivos modais para manifestá-las como paixões no discurso; hori-

zontalmente, ela se coloca na sintaxe discursiva da paixão, como processo total”

(Greimas; Fontanille, 1993: 143). Em relação ao nosso objeto, tudo se inicia pela

falta, aquela de origem proppiana reconhecida em Greimas pela imperfeição

(2002): Cristiane, por “sete anos”, espera conhecer a família do marido. O sen-

timento de espera, de retardamento, subvalência do andamento, modifi ca o ser

do sujeito, fazendo-o querer com mais intensidade e, principalmente, reforça no

discurso o efeito de opressão. Assim, tal como Zilberberg (2006) afi rma, o sen-

sível controla o inteligível, a subdimensão do andamento, da intensidade, regula

a subdimensão da temporalidade, da extensidade: Cristiane reforça seu estatuto

de sujeito (em oposição ao do anti-sujeito) pela opressão (anos em disjunção

com a família do marido) que a caracteriza, colocando o marido na condição de

anti-sujeito, de opressor.

Entretanto, na tentativa de desvendar esse retardamento e mostrar porque

a conjunção não se efetiva, é que o discurso se modifi ca e aumenta sua passio-

nalidade. É quando surge a emoção propriamente dita. Segundo Bertrand, “à

224 | Dimas Alexandre Soldi

‘emoção’ corresponde a crise passional que prolonga e atualiza a sensibilização;

é o momento da patemização propriamente dita que manifesta, por exemplo, o

discurso passional” (2003: 374). Ela pode ser sentida nas palavras de Cristiane:

“eu fi quei pensando que ele tem vergonha de mim, por causa da minha cor...”. Há

um sujeito que sofre pelo preconceito do próprio marido. Ocorre uma gradação

disfórica: o marido de Cristiane tem vergonha dela, tem preconceito e a humi-

lha: “É porque sempre fala que as prima dele são tudo loira, alta, tanto que a

irmã dele é assim branca que nem ele, o sobrinho também né...aí eu fi quei pen-

sando, só pode ser isso, né! Talvez ele tem vergonha de chegar e apresentar pra

família dele (...) É... preconceito assim pela cor, pela nossa classe social também,

porque ele fala que um tio dele tem mercado, o outro tem açougue, tem uma

condição fi nanceira boa, entendeu? E nóis não, nóis mora numa invasão, assim

ele trabalha, faz bico, ele se vira de tudo jeito, mas não chega a uma condição

assim...a gente já teve carro, tudo pra ir lá, ele não...”.

Pronto! Enfi m foi construída a imagem de Cristiane, tal como Cinderela,

pobre e humilhada2, o que confi gura a injustiça que marca sua trajetória. É im-

portante salientar a importância que isso signifi ca: parece que somos impelidos,

talvez em decorrência dos interdiscursos judaico-cristãos que orientam o nosso

pensamento ocidental, a acreditar que o sujeito (ou o protagonista de qualquer

narrativa de fi cção ou de “realidade”) deve ser sempre, ou pelo menos na gran-

de maioria das vezes, um sujeito humilhado, um sujeito injustiçado, carente de

poder e de saber. Solidarizamo-nos com esse tipo de situação e, em oposição,

construímos a imagem do anti-sujeito, aquele que é emancipado, que detêm o

saber e o poder e faz-fazer.

A subdimensão espacial também é decisiva para reforçar a injustiça que

sofre Cristiane. Na indignação marcada pela intensidade (tonifi cação) da voz da

apresentadora ao se referir à curta distância que separa o sujeito de seu objeto:

Todos moram “aqui em São Paulo?!”.

Na realidade, todos os efeitos passionais desse enunciado se desenvolvem

a partir do percurso do sujeito passional Cristiane, vítima da humilhação im-

posta pelo marido (pelo menos até a primeira parte do texto), que rompe com

o esperado e instaura o inesperado (Greimas, 2002). No termo de Zilberberg, o

acontecimento (2007) rompe com a continuidade e intensifi ca o discurso:

De acordo com o Micro-Robert, o acontecimento se defi ne como “aquilo

que acontece e tem importância para o homem”. A primeira indicação é

2 J. Courtés (1979) analisa algumas versões da história de Cinderela que em muito se relacionam com a história de Cristiane.

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 225

mais legível que a segunda, por ser da ordem do sobrevir, da subtaneida-

de, ou seja, do andamento mais rápido que o homem possa experimen-

tar. A segunda indicação, “e tem importância para o homem”, refere-se

à tonicidade, na medida em que esta é a modalidade humana por exce-

lência, estabelecendo o próprio estado do sujeito de estado (Zilberberg,

2006: 181).

O esperado é o marido admirar a mulher, quando o inverso ocorre, princi-

palmente se reforçado pelo lexema “vergonha”, há uma intensifi cação do discurso

gerada pelo inesperado, pela subtaneidade, pelo acontecimento: pela quebra de

protocolo. Isso ocorre pelo modo de junção concessivo. Nas palavras de Diniz:

Zilberberg defi ne como modos de junção a implicação e a concessão. O

modo implicativo é aquele conhecido como o da “causalidade legal”, “o

direito e o fato estão em concordância um com o outro”: “se a, então b”. O

modo concessivo é, segundo os gramáticos, aquele da “causalidade ino-

perante”: “mesmo que a, no entanto não b”. Geralmente, a intensifi cação

concessiva, por seu andamento vivo e elevado, é mais intensa que a pri-

meira; por isso mesmo é que a concessão é tão preciosa (Diniz, 2007: 7).

A concessão, na maioria das vezes, realiza-se pelo uso de um conectivo con-

cessivo, como, por exemplo, “apesar de”. Embora no texto não tenhamos esse

conectivo expresso lexical e culturalmente, devido às circunstâncias presentes

em toda a extensão do enunciado, a concessão se realiza com igual “preciosi-

dade”. Podemos entender o enunciado da seguinte maneira: “apesar de ele ser o

marido dela, apesar de viverem juntos por sete anos, ele tem vergonha dela, ele

a humilha, ele não lhe apresenta a sua família”. Assim, por todas as linguagens

(verbal, visual e sonora) que envolvem Cristiane, houve um constante aumento

da intensidade discursiva, responsável pela passionalidade. A presença do se-

gredo e a sua suposta revelação (vergonha), marcada pela concessão, foram res-

ponsáveis, principalmente, pelo sentido patêmico presente no enunciado. Isso

ocorre, evidentemente, pela construção de uma paixão intersubjetiva que liga

sujeito e anti-sujeito. A humilhação imposta por José à Cristiane, ancorada pelas

marcas discursivas já assinaladas, caracteriza o grande impacto passional e re-

vela a paixão. O não-saber, o não-poder e o não-ser que representam Cristiane

estão em oposição ao poder, ao saber e ao ser que representam José. O diagrama

seguinte mostra o avanço da intensidade durante a primeira entrevista:

226 | Dimas Alexandre Soldi

Onde:

(1) a relação é do tipo conversa: quanto mais, mais...;

(2) o efeito orientado pelo modo de junção concessivo intensifi ca-se pela

extensidade;

(3) a vergonha relaciona-se apenas à cor e à classe social de Cristiane; a humi-

lhação, à cor, à classe social, ao tempo e ao espaço;

(4) a humilhação é acionada em função do tempo e do espaço. Num primeiro

momento, José tem vergonha de Cristiane pela cor e pela classe social; a humi-

lhação só se inicia, de fato, a partir do momento em que o tempo da disjunção

torna-se longo (“sete anos”) e o espaço curto (“aqui em São Paulo!”).

Para concluir, uma oposição semântica delineia-se na arquitetura do sentido,

responsável pelo efeito de /injustiça/ que marca o sujeito oprimido Cristiane:

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 227

A revelação do segredo: retorno à extensidade

No entanto, durante a segunda entrevista, quando a apresentadora chama

José, marido e anti-sujeito de Cristiane, para ser entrevistado... “Então vamos

conhecer o José que tem 31 anos e diz ‘eu não tenho muito contato com os meus

familiares, eles só me procuram quando precisam de alguma coisa’. José, por

favor, entre”, percebemos uma atenuação da intensidade e um retorno a extensi-

dade, de modo que o efeito de sentido passional diminui. No texto que introduz

José, o sentimento de vergonha que orientou toda a primeira entrevista, deixa

de ter sentido, pois nem é mesmo citado. O modo de junção concessivo, que nos

sensibilizou na primeira parte, não existe mais. O segredo começa a ser revelado

e toma outro rumo. É a quebra isotópica entre uma entrevista e outra que vai

garantir o retorno à extensidade.

Num primeiro momento, José diz que não leva Cristiane para conhecer

seus familiares por falta de tempo: uma tentativa frustrada de revelação, pois

“faz sete anos” que estão juntos, que é reforçada pela sonoridade, pois a falta

de fl uência na fala maquia o efeito de verdade. O segredo só começa a ser re-

velado após outra pergunta da apresentadora. Nas palavras dela: “E é falta de

vontade também sua de visitar a sua família, porque tem família que não se

dá bem, não tem aquela história de família que fi ca bem no porta-retrato e tal,

tem gente que não gosta de visitar a família, que não se dá bem, que se sente

diferente da família?”.

A partir das declarações de José uma nova passionalidade intensiva vai to-

mando forma. São os atritos com a família, no passado, que impedem a con-

junção tão almejada por Cristiane; não é mais a suposta vergonha (concessiva)

que defi niu a intensidade passional num primeiro momento, mas a rejeição e o

conseqüente desejo de vingança que modalizam o anti-sujeito. José é rejeitado

pela família (“...eles chegaram e nem abriram o portão, foram no portão aí.../ O

que que eu refl eti: eles não me receberam...”) e deseja vingar-se (“eu tô tentando

ou eu tô pensando ao menos retribuir o mínimo que eles fi zeram por mim”).

Vale lembrar que José tenta em vão construir uma boa imagem de si mesmo,

substituindo o termo “vingança” por “retribuição”. Mas o seu discurso, por mais

que pretenda ser envolvente e persuasivo, não convence nem mesmo a si pró-

prio, surgindo assim contradições e ambigüidades.

Ocorre um declínio da intensidade pela quebra isotópica marcada pelo fi m

da junção concessiva, tematizada pela “vergonha”, com o retorno à extensidade.

Posteriormente, inicia-se a tentativa de retorno à intensidade, na qual os sen-

timentos de rejeição e de vingança se destacam. Podemos pensar no seguinte

228 | Dimas Alexandre Soldi

diagrama que marca a variação patêmica durante as duas entrevistas:

O número (1), no alto da primeira curva, indica o momento de maior pas-

sionalidade durante a primeira entrevista, em que aparece a concessão marcada

pela vergonha, pela humilhação (tempo e espaço), é o pico da intensidade, é a

“emoção” que segue até o fi nal da entrevista de Cristiane. O número (2), alta

intensidade ainda, é o momento em que José participa do programa, quando

o segredo começa a ser revelado por José, confi gurando a tensão presente. No

entanto, a partir da fala de José, ocorre uma diminuição da intensidade pelo fi m

da concessão, chegando até o número (3), próximo da extensidade. A partir dis-

so, uma nova intensidade começa a ser estabelecida depois da quebra isotópica,

quando José fala da “rejeição” da família e de suposta “vingança”, intensidade

que segue até o fi nal da entrevista.

Evidentemente, é impossível estabelecer com exatidão as ondulações desse

diagrama, ele apenas tenta representar os aspectos mais relevantes, porém sem

rigor matemático. Entretanto é possível perceber pela análise representada no

diagrama, que a segunda curva é menos intensa que a primeira, isso porque as

paixões que orientam José (rejeição – vingança) não são marcadas pela conces-

são, tendendo sempre à extensidade.

O julgamento

Por fi m, após ouvirem os envolvidos, Cristiane e José, chega o momento da

“sentença”, do julgamento, da moralização, última etapa do esquema canônico do

sujeito passional. Ela ocorre quando um observador social encarrega-se de interpre-

tar o percurso passional realizado por um sujeito, pressupondo e ao mesmo tempo

mascarando a sensibilização, que foi responsável pela patemização do discurso. Nas

palavras de Fontanille e Greimas, o julgamento se realiza da seguinte forma:

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 229

O avaliador estabelece seu julgamento a partir de considerações veredictó-

rias (o falso para a vaidade, mas também a mesquinhez, o segredo para a

hipocrisia), epistêmicas (para a sufi ciência ou a presunção), aspectuais (o

excesso) etc. Mas qualquer que seja a categoria modal em nome da qual o

julgamento é enunciado, o motivo que parece suscitar o próprio julgamento

é sempre da ordem do “demais” ou do “pouco demais” (1993: 150-151).

Em Casos de família, quem sentencia é o destinador-julgador, fi gurativizado

pela apresentadora, pela platéia (“conhecimento popular” - fé) e pelo especialis-

ta (“conhecimento científi co” - razão). O julgamento aparece na tentativa de: (1)

interpretar a fala dos dois entrevistados; (2) identifi car qual posição deve ocu-

par o discurso de cada entrevistado no quadrado de veridicção,; (3) fi nalmente,

moralizar, ou seja, atribuir um juízo de valor após a interpretação, levando em

conta a aspectualização das modalizações.

Pela interpretação, durante a primeira entrevista, podemos perceber que

Cristiane construiu uma verdade (ser + parecer) inicial opondo-a ao segredo

(ser + não-parecer) que representava o marido. A verdade era a humilhação

imposta a ela; o segredo referia-se a todos os desdobramentos passionais que

marcariam a trajetória do marido, descobertos apenas na segunda parte. Com

o início da segunda entrevista, o discurso de Cristiane foi colocado em xeque,

ocupando a posição de falsidade (não-ser + não-parecer); por fi m, o discurso de

José, após denunciar a rejeição de sua família e o seu sentimento de vingança,

deixa de ocupar a posição de segredo e ocupa a posição de verdade.

Na fase da moralização propriamente dita, momento de atribuir um juízo de

valor aos dois convidados, o julgamento das paixões em jogo e principalmente as

suas aspectualizações são compreendidas com precisão. Nas falas da especialista,

Anahy D´amico, (1) Cristiane é julgada pelo “erro” cometido (“É incrível como

mulher tem esse movimento de puxar pra si o que ta errado (...) e isso é um erro

né!”); (2) Cristiane tem um querer intenso demais (“então quando a gente fi ca

forçando a barra, a gente acaba encurralando o outro numa situação que ele não

tá preparado”; “começam a pressionar para serem apresentadas”); (3) a paixão de

Cristiane deve ser menos intensa (“não adianta fi car pressionando, essas coisas

acontecem na hora que tem que acontecer”). Finalmente, a apresentadora Regina

Volpato expõe ao longo de seu arremate, reforçando o que a especialista já disse,

a intensidade da paixão de Cristiane que deve ser amenizada, deve tender à ex-

tensidade (“apresentar pra família pode acontecer ou não, mas tem o seu devido

tempo, naturalmente”; “não adianta pressionar, calma, forçar a barra não resolve

nada, aí sim pode prejudicar a vida do casal”).

230 | Dimas Alexandre Soldi

PRÁTICA PASSIONAL NO PROGRAMA SILVIA POPPOVICTema da edição do programa:“A difícil tarefa de encontrar a alma gêmea”3

Greimas e Fontanille apontam, em Semiótica das paixões (1993), a sutil dife-

rença entre papel temático e papel patêmico, cuja problemática surge do fato que,

em ambos, o ator é investido de segmentos de papéis sensibilizados e moraliza-

dos, o que difi culta a distinção. Essa elucidação teórica será imprescindível para

que se compreenda a diferença pontual entre os dois programas em questão.

Podemos dizer de imediato que os sujeitos-entrevistados do programa Casos de

família cumprem papel patêmico, enquanto que os do Programa Silvia Poppovic

estão revestidos por papel temático. Essa diferença sutil, mas tão signifi cativa,

faz com que no primeiro exemplo os sujeitos “sintam”, vivenciem as paixões

recorrentes e, no segundo, os sujeitos apenas as “relatem”, descrevam.

A aspectualização de uma paixão defi ne o modo de ser de um sujeito. O

papel patêmico afeta o ator em sua totalidade e é permanente, o papel temá-

tico é iterativo. Um ator patêmico deve apresentar, através de todas as marcas

discursivas, elementos que o constituirão como tal, modos de falar, modos de

agir, detalhes em sua expressão, enfi m, o seu ser e o seu parecer devem cons-

tituir-se única e permanentemente de manifestações da paixão. Cristiane, por

exemplo, a nossa protagonista de Casos de família, como foi dito, apresenta to-

das as características de um ator oprimido, de modo que a humilhação sofrida

constitui parte de seu próprio ser. Cristiane sente e sofre. As emoções emanam

e contaminam todo o seu percurso, patêmico por excelência. Por outro lado, o

ator que cumpre um papel temático não precisa constituir-se unicamente de ele-

mentos que dizem respeito a uma determinada confi guração passional. Para os

semioticistas franceses, “a manifestação do papel temático obedece estritamente

à disseminação do tema no discurso, enquanto a do papel patêmico obedece à

lógica dos simulacros passionais, a uma disseminação imaginária independente

do tema” (Fontanille; Greimas, 1993: 161).

Na edição do programa tematizado “A difícil tarefa de encontrar a alma

gêmea”, Rosangela vai ao Programa Silvia Poppovic para, como todos os sujei-

tos participantes, servir como exemplo ao tema. Sua história pessoal de vida é

relatada para exemplifi car o assunto do dia: após anos de casamento, Rosangela

descobre que foi traída pelo marido que, de “príncipe”, como fora considerado,

transformou-se em “sapo”.

3 Edição exibida em 13/07/2006.

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 231

Há, em seu relato, a formação de uma junção concessiva principalmente

ligada à temporalidade. Algumas frases indicam o estado inicial do sujeito: “Ele

[o marido] era o meu príncipe, realmente eu jamais esperava qualquer coisa

desse tipo”, “ele poderia estar aqui no nosso programa, se não tivesse aconteci-

do do jeito que aconteceu, [eu dizendo] ‘como fui feliz’, ‘como eu achei o meu

príncipe’”. Entretanto, não foi isso o que aconteceu. Embora tivessem um re-

lacionamento duradouro, depois de passados 15 anos juntos, ela foi traída. O

tempo cumpre fator determinante para conceder uma maior passionalidade ao

percurso do sujeito. “Apesar de” terem fi cado juntos por um longo tempo, te-

rem tido um relacionamento duradouro, aconteceu uma traição, de modo que

a decepção torna-se ainda mais sentida. Em outras palavras, quanto mais longo

é o tempo (extensidade), maior será a intensidade confi gurada pela decepção

de ser traída.

No entanto, esse percurso passional não se completa em sua plenitude, jus-

tamente porque Rosangela não cumpre papel patêmico, apenas temático. Vamos

explicar: outros papéis adquirem mais representatividade durante a entrevista

do sujeito do que o próprio papel de sujeito traído (decepcionado). Rosangela

cumpre papel temático de mulher bem sucedida profi ssionalmente (“é tradutora

e professora de inglês”), de mulher sensual (cabelos bem cuidados, roupa exi-

bindo o colo, maquiagem marcante) e, juntamente com os outros, de superação

(muito sorridente, demonstrando descontração). Desse modo, a paixão advinda

pela frustração de um relacionamento (um não-poder-ser) não se concretiza,

ou fi ca num tempo já passado. O presente, que deve acentuar a aspectualização

permanente de uma paixão, demonstra o oposto de uma mulher traída. Desse

modo, poderíamos descrever o seguinte diagrama passional:

232 | Dimas Alexandre Soldi

Em que:

(1) indica o momento inicial, quando a apresentadora anuncia Rosangela,

apontando uma passionalidade marcada pela “decepção” de um amor mal-re-

solvido: “Longe das capas de revistas e da televisão, os casais levam, às vezes,

muito tempo pra reconhecer que o conto de fadas acabou, em primeiro lugar. E,

às vezes, quando descobrem que acabou, eles não podem acreditar que acabou

porque aquela pessoa se fazia passar por alguém que ela não era...”;

(2) é o momento em que a entrevistada começa a falar e acentua uma ambi-

güidade: como uma mulher traída, decepcionada, pode parecer diferente dessa

confi guração passional? Há um “ser” conjugado com um “não-parecer”, o que

confi gura um “segredo”;

(3) há o decorrer da entrevista, até uma estabilização da curva, em que o

“segredo” é revelado substituindo a confi guração passional da “decepção” pela

da “superação”. As isotopias fi gurativas constroem o sujeito como desprovido

de um “não-poder-ser” (decorrente da frustração), ao mesmo tempo em que

o tema da superação torna-se evidente. Isso deixa claro que o sujeito não se

tornou um sujeito patêmico, é apenas um sujeito que cumpre o papel temático

de mulher traída.

Ocorre, na realidade, uma frustração do telespectador em relação ao texto

inicial. Rosangela, de início, representa o estereótipo da mulher traída, decep-

cionada, que em muitos casos desenvolve um querer vingar-se, no entanto, a

caracterização do sujeito é constituída tendo em vista a superação e o não desejo

de vingança. Desse modo, parece haver um engodo, uma quebra isotópica, a

promessa de um relato que, aos poucos, vai se tornando falsa. Assim, a passio-

nalidade discursiva (como mostra o diagrama) tende a ser menos intensa.

EFEITOS TEMÁTICOS E PATÊMICOS

Apesar da aparente similitude, cada programa traz diferentes questões semió-

ticas, que podem ser constatadas a partir da organização dos diferentes elementos

presentes em programas de comportamento. Após a observação dos efeitos temáti-

cos e patêmicos dos dois programas, é possível inseri-los em dois grupos distintos,

de acordo com as diferentes estratégias adotadas, como mostra a tabela ao lado:

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 233

Práticas patêmicas e temáticas

Programa Silvia Poppovic Casos de família

Actante cumpre papel temáticoActantes cumprem papel temático e

patêmico

Tempo passado (então) Tempo concomitante (agora)

Entrevista curta (poucos detalhes)Entrevista longa

(são relatados detalhes variados)

Pontos de vista semelhantes no conteúdo e heterogêneos nos tipos de participantes

Pontos de vista opostos no conteúdo e heterogêneos nos tipos de participantes

O sujeito (convidado) no Programa Silvia Poppovic apenas relata suas expe-

riências passadas, que se situam no tempo do então, como os verbos no preté-

rito indicam: Rosangela foi traída pelo ex-marido. Assim, o que percebemos na

narrativa analisada é que o sujeito não se encontra mais na situação disfórica do

tempo do relato, isso porque o problema (a disforia) foi, ao menos, amenizado:

Rosangela aparenta ter superado a traição no casamento.

O tempo passado retira de uma confi guração passional a aspectualização

de “algo que não acaba nunca” (interminável), transformando o percurso do

sujeito em papel temático, não patêmico. Desse modo, não há um “sentir” das

paixões que poderia contagiar todo o discurso do sujeito, não há um mergulho

em direção ao estado de alma desse participante, há apenas o “relatar” de expe-

riências (passionais) passadas.

Além disso, a entrevista realizada é curta em relação ao tempo de duração,

o que difi culta um aprofundamento no estado do sujeito pelos poucos detalhes

narrados. Como o especialista e a apresentadora podem emitir opiniões (co-

mentários) a qualquer momento, o relato do entrevistado acaba se misturando

com as demais vozes e sempre ocorre, a partir disso, um deslocamento da aten-

ção. A discussão deixa de ser centrada no entrevistado e em sua experiência

pessoal para generalizar-se, fato ligado evidentemente ao próprio formato do

programa, que procura não discutir um caso específi co, mas sempre abordar o

assunto de modo abrangente (extensão), buscando atender a um público hete-

rogêneo que eventualmente esteja passando pela mesma situação.

Soma-se a isso a ausência de pontos de vista opostos, embora haja pontos de

vista heterogêneos. Um mesmo assunto é discutido a partir apenas de opiniões

234 | Dimas Alexandre Soldi

convergentes, que se complementam: Silvia Poppovic, a especialista e seus convi-

dados têm as mesmas opiniões sobre o tema, e embora cada um aponte um aspec-

to diferente, todos compõem juntos um único sujeito narrativo, o que impede, de

forma defi nitiva, a consolidação de sujeitos patêmicos.

O programa Casos de família apresenta idéias opostas, pontos de vista con-

traditórios, que põem em evidência a distinção entre sujeito e anti-sujeito. Uti-

lizando a “moral ingênua” da narrativa canônica dos contos de fadas, com seu

maniqueísmo, ou seja, personagens que ocupam posições ideológicas, morais,

éticas, uns para o bem, outros para o mal, esse programa mistura tais posições,

ao entrevistar primeiro um, depois o outro envolvido na trama. Isso faz com que

o assunto (tema da edição) seja tratado, no mínimo, por dois ângulos ou posi-

cionamentos diferentes, ouvindo cada parte de uma vez e, posteriormente, ou-

vindo pessoas da platéia e especialistas. Mesmo que aparentemente a platéia e os

telespectadores pareçam divididos, o julgamento dos especialistas e da própria

apresentadora é sempre conciliatório: posição prudente e de acordo com a ex-

pectativa de um produto de comunicação de massa. Tal procedimento demons-

tra uma aparente pluralidade de opiniões, de idéias, de sentidos, de atitudes,

de comportamentos. E, assim, a estratégia produz um discurso dinâmico, pois

incita ao diálogo, à confrontação e, em última instância, à própria construção da

“verdade”, ou do “senso comum”.

Assim, Casos de família permite que o discurso torne-se mais passional: as

entrevistas são mais longas, são apresentados mais detalhes dos casos, contribuin-

do para uma maior fi gurativização e tematização dos assuntos propostos. Tais

estratégias discursivas passionais estão nos papéis patêmicos assumidos pelos su-

jeitos, que não apenas relatam suas histórias e facetas de vida, mas as vivenciam no

palco. Prova disso, é o tempo verbal no presente: Cristiane acredita que o marido,

José, sente vergonha de sua cor e de sua condição social e que, por isso, não lhe

apresenta a sua família. José tem problemas mal-resolvidos com sua família e por

isso não tem contato com ela. São sujeitos patêmicos que, aqui e agora, sentem,

sofrem, contagiam o discurso e o tornam intensamente passional.

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 235

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2001.

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DINIZ, M. L. V. P. O telejornal como experiência hiperbólica: uma questão de

tensividade. Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação

- Intercom, Santos, 2007. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/

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Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Discurso Editorial:

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Madrid: Editorial Gredos, 1991.

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PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.

ZILBERBERG, Claude. Louvando o acontecimento. Trad. Maria Lúcia Vissotto

Paiva Diniz. Galáxia, Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação

e Semiótica da PUC, N0 13, São Paulo: EDUC, 2007.

ZILBERBERG, Claude. Síntese da gramática tensiva. Trad. Luiz Tatit e Ivã

Carlos Lopes. Signifi cação – Revista Brasileira de Semiótica. N. 25. São Paulo:

Annablume, 2006. p. 163-204.

Parte V

NOVAS MÍDIAS

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 239

INTERNET, YOUTUBE E SEMIÓTICANovas práticas do usuário/produtor

Tânia Ferrarin Olivatti

INTRODUÇÃO

Alcance, acessibilidade, circulação ilimitada de mensagens, descentraliza-

ção da produção. Esses termos com freqüência aparecem nos estudos sobre a

internet e, sem dúvida, ajudam a caracterizá-la. Mas indo além das análises so-

bre essa semiótica-objeto como mídia, é preciso olhar para seu conteúdo e seus

usuários, refl etir sobre as formas de signifi cação inauguradas (ou reinaugura-

das) a partir da rede.

Nessa perspectiva, o que as inúmeras pesquisas sobre a mídia digital bus-

cam compreender não deve ser somente seu caráter contemporâneo, seus re-

cursos, ferramentas e a forma como a informação é arquitetada no ambiente

virtual. O fazer do analista deve incidir (este nem todos tenham plena consciên-

cia disso) sobre o desvelamento daquilo que a semiótica francesa de vanguarda

tem chamado de “práticas semióticas”, bem como sobre os “contratos” fi rmados

nesse novo ambiente.

Este trabalho apresenta hipóteses relacionadas aos vídeos veiculados no site

de compartilhamento de vídeos YouTube1. Uma pesquisa paralela ainda em an-

1 YouTube. Disponível em: <http://www.youtube.com>. Acesso em: 22 de agosto de 2008.

240 | Tânia Ferrarin Olivatti

damento apresenta um corpus já delimitado e analisa a produção de sentido em

cinco vídeos do YouTube de produção independente cujo tema é a “mídia”. Ao

fi nal dessa pesquisa, acredita-se que as inferências apresentadas neste ensaio

possam ser comprovadas, refutadas ou reelaboradas de acordo com os resulta-

dos encontrados.

Enquanto isso, apresentam-se refl exões prévias sobre as práticas semióti-

cas on-line e seu sujeito (geralmente intitulado internauta), que será aqui cha-

mado de usuário/produtor. Ele é a “fi gura” desse novo comunicador, que não é

somente alguém que está em rede (como no caso da primeira denominação),

nem muito menos um simples receptor de mensagens. Além de enviar e-mails,

participar de comunidades, acessar banco de dados, esse usuário pode também

produzir imagens, sendo este o objeto que aqui se pretende compreender me-

lhor: os vídeos veiculados no YouTube. Assim, esperamos entender como essas

novas práticas de interação on-line constituem as formas de vida e a cultura

desses comunicadores.

O VIÉS COMUNICACIONAL

Ainda que apenas cerca de 40 milhões de pessoas no Brasil tenham acesso à

internet2, é preciso considerar as mudanças que o ciberespaço tem provocado nos

conceitos até então conhecidos sobre os fenômenos comunicacionais, “transfor-

mando nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecno-

lógico que se organiza em torno da tecnologia da informação” (Castells, 1999: 67).

A dimensão desses fenômenos é claramente demonstrada por Vilches:

Meio século depois da criação da televisão, primeira tentativa de fazer a

imagem do mundo ascender aos céus, veio a Internet, o primeiro projeto

humano em forma de rede que trata de reunir todas as expressões huma-

nas, numa única arquitetura comunicativa. A globalização do mercado e

da sociedade da informação, a concentração econômica e a conseqüente

indistinção dos meios, por um lado, e, por outro, o sincretismo de pro-

gramas, gêneros e formatos fazem da televisão e de sua associação com a

Internet uma nova Babel (Vilches, 2003: 96).

2 Os números equivalem a 22,5% da população e são referentes ao acesso em qualquer ambiente, como casa, trabalho, escola, cybercafés e bibliotecas. O dado foi divulgado em 27 de junho pelo Ibope/NetRatings, e refere-se ao primeiro trimestre deste ano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informati-ca/ult124u416776.shtml>. Acesso em: 26 de agosto de 2008. Pesquisa não tão recente, publicada em 2005 pelo IBGE em parceria com o Comitê Gestor da Internet (CGI), aponta que 21% da população brasileira tem acesso à Internet. Disponível em: <http://www.ibge.com.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=846&id_pagina=1>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 241

Os motivos para a formação dessa “nova Babel” são muitos. Um deles é

a produção de sentido ilimitada que se efetiva nessa nova mídia, um amál-

gama entre o que o usuário produz e o processo (temporal/cultural) em que

está inserido. Além disso, a rede possibilita a circulação de mensagens “in-

dependente de territórios geográficos, de tempo, das diferenças culturais e

de interesses, sejam eles econômicos, culturais ou políticos, globais, nacio-

nais ou locais” (Peruzzo, 2005: 268). Para Lemos, essa possibilidade ocorre

pela nova dinâmica técnico-social da cibercultura, que instaura uma estru-

tura midiática ímpar na história da humanidade, visto que pela primeira

vez qualquer indivíduo pode, em princípio, emitir e receber informações

(sejam elas escritas, imagéticas ou sonoras) em tempo real, para qualquer

lugar do planeta (Lemos, 2003: 14).

Também são características fundamentais do ciberespaço a abolição da

fronteira entre autor e leitor (espectador, usuário), bem como o descentra-

mento das escrituras lingüística e audiovisual (Vilches, 2003: 152). Assim, tor-

na-se possível alterar o sistema convencional dos processos de informação, até

então concentrados nos profi ssionais das empresas de comunicação. Como

afi rma Peruzzo (2005: 268), a internet viabiliza a “produção de conteúdos

endógenos e sua transmissão, sem fronteiras, pelos próprios agentes sociais”.

Segundo a autora, uma das principais diferenças em relação às outras mídias é

a desestruturação das emissões por um só pólo, pois agora passam a ser feitas

por muitos emissores:

O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de

conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e

dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de

processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimen-

tação cumulativo entre a inovação e seu uso.

Conseqüentemente, a difusão da tecnologia amplia seu poder de

forma infinita, à medida que os usuários apropriam-se dela e a re-

definem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente

ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos

(Castells, 1999: 69).

Nesse contexto de “descentralização das emissões” e de “processos a serem

desenvolvidos”, o YouTube foi lançado em fevereiro de 2005. O site tornou-se,

em pouco tempo, o maior serviço de compartilhamento de vídeos na rede. Pau-

tando-se pelo seu sucesso, o grupo Google tentou superar o fenômeno e lançou

em janeiro de 2006 um serviço similar. Sem conseguir vencer a concorrência,

242 | Tânia Ferrarin Olivatti

comprou o YouTube em outubro do mesmo ano por US$ 1,65 bilhão. A transa-

ção comercial mostra, além de um bom negócio para seus criadores, o interesse

e o impacto que a imagem causa na sociedade atual:

A migração digital supõe também um desenvolvimento das tecnologias

do conhecimento. Entre essas, as tecnologias da imagem desempenham

uma função essencial para a formação da percepção e da compreensão

da realidade.

O desenvolvimento das tecnologias digitais da imagem permitirá uma

percepção diferente das relações com os objetos, o tempo e o espaço. As

tecnologias não lineares e os hipertextos permitirão o desenvolvimento

da narrativa digital, facilitando uma maior progressão da atividade cogni-

tiva enquanto se acompanham os argumentos da fi cção e das histórias.

Mesmo assim, a interatividade nos formatos narrativos digitais po-

deria permitir um aumento da criatividade na construção de his-

tórias e na capacidade para desconstruir textos fechados de ficções

tradicionais. Para isso será necessário acesso às bases de imagens

(Vilches, 2003: 172).

Publicada em 2003, A Migração digital, de Lorenzo Vilches, já anunciava a for-

mação do que ocorreria pouco tempo depois com a criação do YouTube. Além da

produção exponencial de vídeos para o site, os usuários podem acessar imagens

alheias (o que rendeu inclusive algumas batalhas na justiça por direitos autorais),

divulgando-as em seu estado original ou mesclando-as para formar novos conteú-

dos. No vídeo de usuário Midiatrix3, por exemplo, seu autor utilizou cenas do fi lme

Matrix, modifi cou diálogos, trilhas e inseriu imagens do símbolo da emissora Globo.

Isso tudo para criticar uma suposta manipulação da mídia em geral sobre a popula-

ção brasileira. Nesse caso, é possível observar claramente a interação entre a imagem

e a escrita para a produção de sentido do vídeo, mostrando como a imagem é capaz

de ancorar o discurso. Indo além, a imagem busca concretizar valores da oralidade e

escrita – provenientes do produtor – no espírito do receptor (Diniz, 2002).

É preciso notar que essa produção de sentido operada nos vídeos, verdadei-

ra bricolagem, está inserida num contexto praticamente inédito, quando compa-

rado àquele que deu origem ao chamado “público” dos meios de comunicação.

Nem nas inúmeras tentativas de interatividade, em geral tímidas e frustradas,

que os veículos de televisão empreenderam e empreendem ainda hoje (progra-

mas como Você Decide e Big Brother da emissora Globo ou, mais recentemente,

3 Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=Sv55JusfEC8&feature=related>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 243

o SBT Brasil, com sua pesquisa de opinião diária4), o público teve tanta chance

de interagir e principalmente produzir, como a internet vem permitindo. Essa

relação “íntima” entre TV e internet possibilitou o inusitado: nunca antes os

receptores tiveram a oportunidade de se transformar em emissores/produtores

de imagens que pudessem ser transmitidas em tal escala e velocidade, como

ocorre no site YouTube.

Depois de conquistar os processos de troca de textos, bate-papos, fóruns e

outras formas de comunicação “todos para todos” oferecidas pela internet, o site

YouTube, com seu crescimento exponencial, abriu as portas para a democracia

da imagem:

Fala-se, portanto, de uma verdadeira revolução no campo da imagem,

no sentido em que, mudando de maneira radical nossa relação com o

visível, modifi cam-se a forma e o conteúdo dos objetos que produzimos

ou recebemos. Conseqüentemente, as novas imagens modifi cam tanto o

objeto representado quanto os modos de produzi-lo.

Não há dúvida de que a informática alterou os conceitos tradicionais

de representação visual. Por essa razão, é imprescindível refl etir sobre o

novo status dos objetos compostos de elementos estritamente icônicos

(Vilches, 2003: 252).

Além disso, é importante lembrar que “na forma da expressão – recursos

visuais – reside o conteúdo ideológico subjacente, servindo como grande ma-

nipulador, pois o que está em jogo é a transformação da competência modal do

enunciatário-sujeito” (Diniz, 2002: 2). Assim, não é possível ignorar as transfor-

mações pelas quais a vida em sociedade está passando, vinculadas à sua forte

relação com a imagem.

OS NÍVEIS DE PERTINÊNCIA SEMIÓTICA NO CONTEXTO DO USUÁRIO/PRODUTOR DO YOUTUBE

A análise aqui proposta ocorrerá em duas etapas: primeiro, a teoria dos

níveis de pertinência semiótica de Fontanille (ver capítulo desta coletânea) será

aplicada na análise sobre a prática da produção de vídeos do YouTube de uma

forma geral, sem um corpus específi co. Em seguida, será analisado apenas um

vídeo, intitulado Midiatrix.

4 Esse telejornal realiza todos os dias, por telefone, uma “pesquisa” sobre determinado tema, ouvindo opiniões de dez telespectadores por programa, que se manifestam a favor ou contra determinado assunto.

244 | Tânia Ferrarin Olivatti

Podemos considerar que a recente e frenética produção de imagens tem

como resultado esses vídeos, que se enquadram no segundo tipo da experi-

ência que Fontanille apresenta em sua segmentação dos níveis de pertinência

semiótica, o da interpretação. Os vídeos são considerados, do ponto de vista

formal, textos-enunciados que se baseiam nas possibilidades de composição

do nível 1 (o das fi guras-signos), por sua vez composto por cores, formas,

sons, legendas, etc. Ascendendo no percurso dos níveis de pertinência, temos

os objetos, que são a experiência corpórea dos usuários/produtores com o

meio e com as técnicas pelas quais se expressam e diz respeito à materialida-

de dos objetos manipulados. É preciso não confundir nesse caso o YouTube

com a própria rede, pois o primeiro localiza-se numa transição entre níveis,

podendo estar mais no nível das estratégias do que no nível dos objetos. À

internet confere-se o caráter de suporte, que participa da constituição mate-

rial/virtual do objeto.

Vale notar que, numa primeira análise, podemos imaginar a ocorrência de

uma operação de síncope do nível 2 (textos-enunciados) para o nível 4 (cenas pre-

dicativas). Ainda que o mais singular nesses vídeos seja justamente seu suporte,

este já foi incorporado de tal maneira no processo de signifi cação que sua impor-

tância material (ou virtual) torna-se latente. Assim, os vídeos/textos-enunciados

parecem tornar-se “‘objetos’ das práticas, na medida em que certos objetos impli-

cados em uma prática são suportes de ‘inscrições’” (J. Fontanille, ver artigo nesta

coletânea, p. 17). No entanto, a única forma de ampla divulgação desses textos

é por meio da rede, fazendo com que a internet seja determinante nessa prática

semiótica. Dessa forma, concluímos que a operação também é de integração dos

níveis 3 e 4, e não simplesmente de síncope do nível 2 para o nível 4.

As cenas predicativas constituem-se pela prática da produção dos vídeos,

que se estabelece de forma gerativa desde o nível 1. O usuário/produtor escolhe

os signos que vão compor seu texto, sejam eles provenientes de imagens alheias

ou de captações próprias do autor. A partir disso, arquiteta vídeos e os insere no

suporte on-line. Nesse sentido, observa-se a passagem por todos os níveis, de 1

a 4, consecutivamente, cada nível crescendo em complexidade.

Vemos assim que o YouTube localiza-se entre o nível dos objetos e o das es-

tratégias. Apesar de a sua produção de sentido seguir hierarquicamente do nível

1 ao 4, em operações de integração, paralelamente existe uma operação de sín-

cope. Evidentemente, as práticas não estão excluídas do processo (sendo mesmo

sua “motivação”), mas o YouTube coloca-se na intersecção de dois níveis não

subseqüentes. Apesar de constituir um suporte, o site funciona mais como uma

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 245

estratégia efi caz de circulação de vídeos, prática quase concomitante à produção.

O usuário nunca pôde participar da produção dos meios de comunicação

considerados de massa, e o YouTube dá-nos justamente essa conjuntura e essa

possibilidade, diferentemente de outras páginas da web. É somente por meio do

site que o usuário/produtor alcança o poder-fazer efetivo, que não seria possível,

porém, sem o suporte da internet. Até então, o saber-fazer não bastava a quem

quisesse compartilhar sua produção, mesmo porque qualquer texto só se torna

objeto de sentido a partir do momento em que é recebido por alguém pois, até

que encontre um enunciatário, é somente um objeto material.

Dessa forma, as práticas de produção e divulgação são confrontadas num

mesmo regime de espaço e tempo com uma estratégia de inserção de conteú-

dos. As propriedades sensíveis e materiais dessa estratégia espelham assim os

valores do usuário/produtor, que quer fazer parte do processo comunicacional,

ocupando também o posto de enunciador e não somente de enunciatário. Seu

comportamento mostra como a imagem está arraigada na cultura contemporâ-

nea, com um estatuto de nobreza nas práticas semióticas. A imagem participa

diretamente da forma como o sujeito manifesta a sua presença e sua interven-

ção, ela determina o ethos do sujeito. Isso porque, como explica Vilches (2003:

251), “provavelmente, o advento mais espetacular da migração digital tenha a

imagem como protagonista. A relação entre a imagem e a realidade, preocupa-

ção constante da cultura desde Platão até nossos dias, é também um dos temas

favoritos da sociedade digital”. Dessa forma, se esse sujeito não pode produzir

(ou aparecer5) na mídia tradicional, encontra na rede um local acolhedor, o que

contribuiu para um verdadeiro boom na quantidade de vídeos produzidos des-

de a criação do YouTube6. Notamos então o surgimento de uma forma de vida

“marginal” em relação à mídia, na medida em que o usuário/produtor ocupa

uma posição à margem do que já está estabelecido (a “grande” mídia). Essa for-

ma de vida “marginal” fi ca evidente na procura do sujeito por novas maneiras

de expressão. O usuário/produtor domina o poder+saber+querer+fazer na web

e produz textos (sejam eles descartáveis ou não) para o ambiente virtual, como

forma de demarcar um novo e alternativo território. Trata-se de uma estratégia

original de ocupação do espaço virtual.

5 Os reality shows surgem na esteira dessa sociedade imagética. Podemos caracterizar então dois tipos de su-jeitos: 1) os que querem ser “ouvidos” e encontram na produção de materiais audiovisuais uma forma de expressão; 2) os que querem simplesmente “aparecer” (são comuns histórias frustradas de indivíduos que se inscreveram no Big Brother Brasil e não foram selecionados). Quando esse segundo querer não é alcançado na mídia tradicional, resta-lhe apelar para meios mais “democráticos”, como a internet.

6 Em meados de 2006, quando o YouTube se popularizou, cerca de 65 mil novos vídeos eram colocados na pági-na diariamente. Quanto ao acesso, o número chegava aos 100 milhões por dia. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/tecnologia/mat/2006/08/31/285490135.asp>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.

246 | Tânia Ferrarin Olivatti

Quando trata da efi ciência e da otimização das práticas semióticas, Fonta-

nille (ver artigo nesta coletânea, p. 47) recorre aos arranjos sintagmáticos pro-

postos por P. Basso, aperfeiçoando-os para formar os tipos modais da efi ciência.

Segundo essa tipologia, a atuação do usuário/produtor enquadra-se na idéia de

conduta, pois consegue aproximar seu querer+fazer do poder+saber+fazer. Na

conduta, o querer é sempre mais representativo entre os possíveis controles co-

letivos (poder, saber, dever ou crer), favorecendo a iconização e a manifestação

das motivações do usuário/produtor.

A segmentação sugerida pelos níveis de pertinência semiótica permite

compreender, do ponto de vista da concepção de um objeto cultural, o papel

do usuário/produtor do YouTube. Como apontado anteriormente, a seleção de

signos e fi guras compõe tais vídeos (textos), que, em seguida, são inscritos (ma-

terializados) em objetos-suportes (no caso, a rede), onde se confi guram então as

cenas predicativas das quais o usuário/produtor participa.

Esses vídeos (textos) incorporam a internet na prática semiótica on-line, ou

seja, o texto integra as possibilidades materiais do objeto, formando, segundo

Fontanille (Ibidem, p. 45), uma dimensão metassemiótica de tipo técnico ou

didático. Se um mesmo vídeo fosse divulgado na televisão, seu estatuto ou a

signifi cação gerada por ele seria diferente. Da mesma forma, a produção dos

vídeos não é uma prática isolada, interagindo com a prática da divulgação, do

“aparecer”/“exibir-se”, pois apresenta uma dimensão metassemiótica do tipo es-

tratégico, nas suas relações com outras práticas.

A prática semiótica on-line constrói sua efi ciência na adaptação com outras

práticas, servindo-se das valências do ajustamento e da abertura. Não há ou há

poucas coerções na internet, se comparada a outras mídias. Desde sua criação,

em 2005, o YouTube representou uma revolução no meio virtual e imagético.

Em algumas ocasiões tentaram “controlá-lo”, mas somente contribuíram para

mostrar sua força, como no caso do vídeo protagonizado pela modelo Daniella

Cicarelli7, em 2006, ou em produções relacionadas com o terrorismo (até mes-

mo o governo dos Estados Unidos admitiu não ter como controlá-lo)8. Ainda

que os administradores da página tirem alguns vídeos do ar, é muito fácil postar

outros. Dessa forma, é fácil compreender que as características do meio contri-

buem para o alcance da efi ciência práxica que, nesse caso, é regulada pela for-

7 Daniella Cicarelli foi fi lmada em cenas íntimas com o namorado numa praia da Espanha. O vídeo foi parar no YouTube em setembro de 2006. A modelo e o namorado entraram na justiça contra o site, processo que se alongou por cerca de seis meses, sem êxito para Cicarelli, que ainda foi obrigada a pagar as custas do processo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/post.asp?cod_post=63188>. Acesso em: 23 de agosto de 2008.

8 Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=420MON012>. Acesso em: 23 de agosto de 2008.

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 247

ça da intensidade em detrimento da extensidade. A alta usabilidade da página,

as novas tecnologias de captação de imagens, sempre mais acessíveis (celulares

possuem câmeras com resolução de imagem cada vez melhor e custo mais baixo

e alguns deles podem postar vídeos diretamente no YouTube) e a falta de con-

trole sobre a imensa maioria dos conteúdos postados são elementos que carac-

terizam o campo de atuação das práticas do usuário/produtor e, portanto, seu

modo de efi ciência.

EM BUSCA DA PRÁTICA NA INSTÂNCIA DOS TEXTOS-ENUNCIADOS: ANALISANDO MIDIATRIX

Nesta seção será realizada uma breve análise do vídeo Midiatrix, veiculado

desde 2006 no YouTube. Midiatrix Revelations9 foi construído a partir de cenas

do fi lme Matrix (1999)10. O autor modifi cou diálogos (legendas) e trilhas so-

noras, e inseriu imagens do símbolo da rede Globo, cenas de novela, telejornal

(miséria, guerra), desenho animado (a personagem Homer Simpson), entre ou-

tras fi guras e signos.

O texto-enunciado conta a história de um rapaz (personagem de Neo no

fi lme original) que é convidado por Morfeu a jogar fora sua TV e atentar para

a diferença entre simulacro e realidade. A rede Globo é tratada como a grande

manipuladora da humanidade. A revista Veja também é elencada, chamada de

“muita porcaria”. Neo toma a pílula vermelha para conhecer o que é a Midiatrix,

e logo após vê o caos ignorado até então: um mundo de pobreza e destruição.

O vídeo traz um programa narrativo de manipulação, tanto no nível do

enunciado, quanto no da enunciação. No enunciado, o actante Neo parte de

um estado de conjunção com o objeto mídia. O actante Morfeu opera um

programa de manipulação, até fazer Neo disjungir-se dos valores da mídia.

Dessa forma, ele incute um dever-fazer em Neo, pautado em categorias tími-

cas principalmente disfóricas (o diálogo traz os seguintes termos: vida medí-

ocre e confortável, medo, preconceito, “revelações”, falta de ética, mundo de

9 Segundo consta na página, Midiatrix foi postado em 18 de outubro de 2006, sendo exibido – até a última data de acesso – 190.229 vezes. Não existe na página um campo indicativo da procedência (país) do fi lme, mas o conteúdo e os comentários postados (quase 500) pelo público e pelo próprio autor (que se apresenta como “Ferrorama”) evidenciam que o vídeo é brasileiro. Disponível em “Midiatrix” <http://br.youtube.com/watch?v=Sv55JusfEC8&feature=related>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.

10 Trilogia: Matrix (1999), Matrix Reloaded (produzido em 2002, mas lançado em 2003) e Matrix Revolutions (2003). Os gêneros ação e fi cção científi ca marcam a produção realizada pelos irmãos Wachowski e protago-nizada por Keanu Reeves no papel de Neo. Matrix tem como tema a luta do ser humano, por volta do ano de 2200, para se livrar do domínio das máquinas que evoluíram após o advento da inteligência artifi cial. Dispo-nível em: <pt.wikipedia.org/wiki/Matrix>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.

248 | Tânia Ferrarin Olivatti

plástico, simulacro, velha elite, caos, jogo político, manipulação, sacanagem,

mundinho, porcaria etc.). Essas ocorrências são atribuídas a quem estiver em

conjunção com a mídia, portanto atribuem uma signifi cação negativa a esse

estado conjuntivo. Depois que o querer e o dever-fazer são estabelecidos, o

ator discursivo Neo passa a ter competência para negar a mídia, adquirindo o

poder e o saber-fazer ao fi nal da narrativa.

Morfeu conseguiu que Neo passasse ao estado de disjunção com a mídia.

Isso foi possível porque ele conseguiu estabelecer um contrato11 fi duciário com

Neo, no nível patêmico e no pragmático.

Contratos patêmicos ou passionais ocorrem quando a motivação contra-

tual (o crer) dá-se por meio da afetividade ou empatia que um sujeito desper-

ta em outro: o contrato “fundamenta-se na timia, disposição afetiva de base

determinante da relação que um corpo sensível mantém com o que o cerca,

que pode ser positiva, negativa ou neutra, ou seja, euforia, disforia ou aforia,

respectivamente” (Diniz, 2001: 4). Morfeu consegue manipular Neo através

da timia gerada por meio das isotopias negativas atribuídas à mídia, seja pelo

jogo de palavras (sempre oferecendo a Neo a chance de “ver com os próprios

olhos”), seja pelas imagens adicionadas às originais ou ainda pela trilha sono-

ra contundente. Já os contratos pragmáticos estão ligados às práticas, e geram

ações. A manipulação exercida por Morfeu, ainda que utilize estratégias tími-

cas, tem explicitamente a intenção de provocar uma ação: que Neo se separe

da mídia, que jogue fora a sua TV.

No nível da enunciação, o discurso do enunciador é exatamente o mesmo

que Morfeu apresenta no enunciado, pois quer provocar uma disjunção de seu

enunciatário com a mídia. O enunciatário nesse caso são os usuários do YouTu-

be ou, de uma forma geral, da internet. O enunciador acredita que esses usuá-

rios sejam milhões que pensam como o personagem que ele mesmo constrói e

ilustra (Neo), ou seja, receptores acríticos da mídia de massa. Nesse nível o con-

trato patêmico sobressai-se em relação ao pragmático, pois o enunciador não

espera que os enunciatários entrem em disjunção total com a mídia, mas apenas

refl itam sobre ela. A timia vai garantir a credulidade do discurso e provocar no

enunciatário o desejo de querer-ser mais crítico. É por isso que o enunciador uti-

lizou-se de imagens que fazem parte da cultura do povo brasileiro. Além disso,

11 “Num sentido muito geral, pode-se entender por contrato o fato de estabelecer, de ‘contrair’ uma relação inter-subjetiva que tem por efeito modifi car o estatuto (o ser e/ou o parecer) de cada um dos sujeitos em presença. Sem que se possa dar uma defi nição rigorosa dessa noção intuitiva, trata-se de propor o termo contrato, a fi m de determinar progressivamente as condições mínimas nas quais se efetua a ‘tomada de contato’ de um sujeito para com o outro, condições que poderão ser consideradas como pressupostos do estabelecimento da estrutura da comunicação semiótica” (Greimas; Courtés, 1983: 84, grifos dos autores).

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 249

em vários momentos inseriu um mesmo áudio (som de raios e vozes humanas,

como no clímax de uma ópera) para atribuir impacto às imagens adicionadas e

editadas por ele sobre as cenas do fi lme original.

A propósito dessa questão, Diniz (2001: 4) esclarece como as imagens po-

dem contribuir para a concretização do contrato patêmico no momento da

enunciação: “Na enunciação, acreditamos poder tratar da paixão no nível do

discurso imagético, pois a representação do mundo sensível é construída de

certo modo para ser apreendida pelos sentidos do enunciatário, a percepção do

mundo pelo corpo, pelos sentidos, de que nos fala Merleau-Ponty”.

Midiatrix enquadra-se nas hipóteses há pouco apresentadas sobre os níveis

de pertinência nos vídeos produzidos para o YouTube. A escolha da crítica à mí-

dia por parte do enunciador mostra um pouco da necessidade de produção, de

“participação imagética” que se instaura no ethos do usuário, até pouco tempo

excluído, como já dissemos, do processo de produção midiática.

É claro que, a partir da análise de um único vídeo, não se pode atribuir

a todos os usuários do YouTube os mesmos elementos encontrados no ethos

do usuário/produtor de Midiatrix. No entanto, estas refl exões iniciais permitem

mais algumas inferências, sendo que uma delas encontra embasamento na obra

de Dominique Wolton.

Ainda que não seja semioticista, Wolton (2006) discorre a respeito do que

as novas práticas semióticas on-line signifi cam na instância das formas de vida.

Para o autor, as novas tecnologias adquiriram uma dimensão social, pois repre-

sentam uma espécie de “nova chance” ao antigo grande público: “As novas tec-

nologias são, como uma fi gura de emancipação individual, ‘uma nova fronteira’.

Não é somente a abundância, a liberdade e a ausência de controle que seduzem,

como também essa idéia de uma autopromoção possível, de uma escola sem

mestre, nem controle” (Wolton, 2006: 85-86).

Transportando o pensamento de Wolton para a teoria semiótica, o objeto/

suporte da internet passa a ser determinante nas cenas predicativas dos novos

usuários, promovendo o que ele chamou de “emancipação individual”. Essas

práticas, por sua vez, são determinadas pelo comportamento do sujeito, ou seja,

a forma de vida vertiginosamente imagética que agora acompanha sua vida.

Ainda no domínio do texto-enunciado, podemos observar a polêmica es-

trutura argumentativa que o enunciador buscou para o vídeo. Ele utiliza simu-

lacros (edição de imagens, legendas e trilhas) para criticar uma mídia que para

ele só apresenta simulacros. Isso só é possível ao usar uma mídia para criticar

outras mídias. O usuário opera um programa narrativo de manipulação para

250 | Tânia Ferrarin Olivatti

criticar justamente a manipulação das mídias. E, por fi m, considera o enuncia-

tário das mídias (e também o seu) como um receptor passivo, mas ele mesmo,

enquanto enunciatário das mídias e usuário/produtor “pensante”, serve-se de

meios de manipulação “midiáticos” e, no limite, autoritários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que não seja conclusivo (certezas irrefutáveis podem ser encontradas

nas ciências humanas?), o presente ensaio procurou refl etir sobre questões que

perpassam as maiores mudanças ocorridas nos meios de comunicação nos úl-

timos anos. Optar por tais questões sem dúvida causou (e ainda causa) descon-

forto. Tendo consciência de que o objeto escolhido é intrínseco a um universo

de acelerada mutabilidade, que tange nosso presente, perdemos, de antemão, a

chance de buscar amparo no distanciamento histórico. Por outro lado, as mais

recentes teorizações sobre os níveis de pertinência semiótica não contam ainda

com aplicações exaustivas, o que aumenta a responsabilidade desta análise.

A internet tem progressivamente deixado de ser um meio elitista e, hoje, faz

parte do cotidiano de uma parcela considerável da população. Da mesma forma,

os recursos de captação de imagens e som são cada vez mais acessíveis e seu

manuseio cada vez mais simples. Esse progresso tecnológico provavelmente é

fruto da também crescente necessidade do homem de viver em comunhão com

a imagem (a imagem de si e a imagem do outro), seja por impulsos narcisísticos,

emancipatórios, ou mesmo associativos.

Nessa perspectiva, será que as práticas tratadas aqui não representam uma

forma de vida ávida pelos elos perdidos? Se a grande rede criou “solidões inte-

rativas” (ou foram elas que criaram a internet?), estaria esse ethos em busca de

uma espécie de comunhão? O que se pode afi rmar é que a prática construída por

enunciados audiovisuais criou a necessidade de novos objetos-suporte e que esses

novos objetos imaginados e criados pelo homem estimulam, por sua vez, o surgi-

mento de novas práticas, em uma espécie de semiose cíclica e auto-adaptada.

Longe de tentar descobrir a exata relação de precedência entre o “ovo e a

galinha” das práticas semióticas e sociais, esperamos que estas considerações

acerca das práticas realizadas pelo usuário/produtor na internet possam servir

de terreno fértil aos que procuram analisar os objetos das novas mídias à luz da

semiótica de origem greimasiana.

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 251

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Estudos Lingüísticos XXXI, revista do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado

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DINIZ, Maria Lúcia Vissotto Paiva. Contratos na Mídia: O Jornal nacional na

berlinda. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de; MARRONI, Fabiane Vilella (eds.)

Caderno de Discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, n. 7, publicação

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In: LEMOS, A. CUNHA, P. (orgs). Olhares sobre a cibercultura. Porto Alegre:

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VILCHES, Lorenzo. A migração digital. São Paulo: Loyola, 2003.

WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006.

Rádio e podcast: intersecção das práticas | 253

RÁDIO E PODCASTIntersecção das práticas

Djaine Damiati RezendeMatheus Nogueira Schwartzmann

O Ciberespaço1 – juntamente com todas as tecnologias informáticas da

contemporaneidade e seu modus operandi – pontua uma mudança de supor-

te dos processos sócio-culturais, ressignifi cando o contexto das mídias e ins-

tituindo novas práticas e procedimentos comunicacionais e reconfi gurando os

elementos da comunicação tais como os conhecíamos até então. E é nesse ce-

nário de hibridismo, de convergências e colaboratividade que surge um novo

processo midiático na internet, um tipo de comunicação sonora que, embora

guarde similitudes com o rádio, possui particularidades e atributos típicos desse

ambiente digital: o podcast.

Neste texto propomos, portanto, um olhar sobre as práticas empregadas

na produção de podcasts, sobretudo aqueles desvinculados das organizações ou

pólos de emissão de informação. Buscaremos ainda compreender o modo como

tais práticas vêm se constituindo e validando-se num processo colaborativo e

de experimentação contínua, estimulando a emergência de novos formatos e

1 Entendemos por ciberespaço “uma estrutura virtual transnacional de comunicação interativa” (Trivinho, 1996).

254 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

linguagens, que começam a infl uenciar também as práticas radiofônicas promo-

vendo sua atualização por meio do fenômeno cross-media2.

O CONCEITO DE PODCAST

Neologismo criado a partir dos termos “iPod” (tocador de MP3 da Apple) e

“broadcasting” (transmissão, sistema de disseminação de informação em larga

escala), o podcast surgiu no fi nal de 2004, a partir da idéia do ex-VJ da MTV

americana, Adam Curry, de reunir (agregar) automaticamente, em um mesmo

lugar, as produções em áudio espalhadas pela internet3. O podcast seria então

um sistema de produção e difusão de arquivos sonoros em que um usuário,

mediante o que se convencionou chamar de assinatura4 e com a ajuda de um

soft ware agregador de conteúdo5, recebe o áudio automaticamente, sem para

isso ter que acessar o site em que foi inicialmente publicado.

Com um computador doméstico, um microfone e soft wares de edição de

áudio, o podcaster6 grava e edita sua produção, salva como arquivo em formato

MP3 e o disponibiliza em sites indexados aos agregadores. O usuário faz o do-

wnload do arquivo para o computador podendo, na seqüência, transferi-lo para

seu tocador de MP3.

O fenômeno do podcast é recente, mas tem atingido índices exponenciais

de crescimento. Em 2005, podcast foi considerada a palavra do ano pelo dicio-

nário New Oxford American Dictionary e, em menos de seis meses de existên-

cia, foram encontradas no Google mais de 4.940.000 referências para a palavra

podcasting. Estima-se que há mais de 6 milhões de usuários do sistema no

mundo.

A completude desse sistema, cujos arquivos em áudio guardam similitudes

com o formato dos programas de rádio, signifi ca a defi nitiva liberação dos pólos

de emissão, possibilitando que cada vez mais usuários tornem-se produtores

2 Cruzamento de mídias.3 Informações extraídas do verbete “podcasting”, da enciclopédia livre Wikipédia. 4 Neste procedimento, o usuário copia o endereço do feed\xml do podcast selecionado e cola no soft ware agre-

gador que, a partir de então, verifi cará automaticamente se há novos arquivos publicados e iniciará seu down-load.

5 Os “agregadores” são soft wares responsáveis por fazer a busca dos feeds, com base nos sites (feeders) que foram assinados pelo usuário. Graças aos agregadores, podemos usufruir dessa ferramenta em que o usuário não é mais obrigado a visitar os sites um a um, para ler notícias e novidades ou novas postagens dos blogs. Dessa maneira, são as notícias, as novidades e as postagens que vão até ele. Existem tipos diferentes de agre-gadores, que têm formas distintas de gerenciar e organizar as informações coletadas. No caso dos podcasts, os agregadores vasculham automaticamente a internet à procura dos podcasts assinados, baixando-os para o computador, e descarrega-os em seguida num MP3 player conectado.

6 Pessoa que produz o podcast.

Rádio e podcast: intersecção das práticas | 255

dos seus próprios shows, numa espécie de democratização da difusão sonora,

como aponta Lemos (2005: 2):

O suposto excesso de informação nada mais é do que a emergência de

diversas vozes, exprimindo-se sobre diversos assuntos, e sob diversos

formatos, distribuídos ao redor do mundo. Outra característica impor-

tante em questão é o princípio de conexão, o compartilhamento de expe-

riências, arquivos, soft wares em redes. Estamos vendo esse tripé em ação

com os podcasts: 1. liberação do pólo da emissão (ouvinte produtor), 2.

princípio de conexão: distribuição por indexação de sites na rede (RSS)

em conexão planetária e 3. reconfi guração dos formatos de emissão de

conteúdos sonoros (em dois pólos: o “faça você mesmo” a sua rádio; e as

rádios massivas criando programas em podcasting, como a BBC.

Apesar das semelhanças, podemos dizer que rádio e podcast individuali-

zam-se à medida que analisamos as características de interação de cada suporte

e as práticas envolvidas em seus processos de produção e recepção. Alex Primo

(2005: 2) vai além nesse raciocínio, afi rmando que o podcasting remedeia o rá-

dio e o faz tomando emprestadas algumas das características de seu predecessor,

não somente herdando-as e apropriando-se delas, como também atualizando-

as. Para Primo, não basta que analisemos os processos de emissão, afi nal, são

novos contextos de produção e recepção que se abrem com o podcast, e por isso

mesmo é necessário que levemos em conta as interações dialógicas ocorridas a

partir de seu nascimento, como já assinala Primo (2005: 7), quando diz que:

os fenômenos de blogs e podcasting precisam ser observados para além

da facilidade e da satisfação egóica de publicação. É preciso estudar a

relação complexa das condições de produção, do entorno midiático, com

quem se fala e de suas condições de recepção. E, além disso, investigar

como esses atores interagem entre si e com a tecnologia que permite a

virtualização do tempo e do espaço, que outrora imporia barreiras para

tal intercâmbio.

Desse modo, percebemos que estamos diante de um leque de novas variá-

veis na produção de sentido, cujas possibilidades combinatórias e construções

sintagmáticas podem nos levar a novas perspectivas na comunicação sonora

mediada. Devemos considerar, no entanto, que a atualização que o podcast traz

ao rádio não se dá no aspecto técnico apenas (características tecnológicas ine-

rentes ao suporte, tais como emissão, formas de acesso, apresentação e distribui-

ção), mas em função do próprio meio, pois cada um tem propriedades materiais

256 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

distintas, que atuam diretamente nas práticas empregadas.

Sendo assim, podemos realmente dizer que rádio e podcast interseccionam-

se, de fato, no nível das práticas, tendo como base a metodologia semiótica,

poderemos confi rmar, já em uma análise geral, a ocorrência desse fenômeno,

justamente na relação entre os níveis de pertinência semiótica no percurso ge-

rativo da expressão.

PODCASTS E PRÁTICAS SEMIÓTICAS

A semiótica tem formalizado novos conceitos através da análise das práticas

semióticas. Dessa forma vai avançando no terreno da expressão à medida que

constrói um modelo capaz de identifi car as operações de produção de sentido,

que tanto poderiam ser operações cognitivas dos produtores ou dos intérpretes,

quanto propriedades das semióticas-objeto, ou ainda rotinas desenvolvidas co-

letivamente no interior de cada cultura.

Jacques Fontanille (ver artigo nesta coletânea) é um dos autores que vêm

contribuindo com essa abertura, pois estabelece uma relação hierárquica dos ní-

veis do percurso da expressão. Para o autor, cada nível se defi ne pela forma com

que se relaciona com os outros, tanto com o anterior quanto com o posterior,

através do que ele chama de “operações de integração” ou “síncopes retóricas”.

É a partir dos níveis de pertinência semiótica que se organizam as idéias deste

texto. Entendemos que a relação entre o suporte/objeto e as cenas predicativas,

exemplifi cada anteriormente por Fontanille, pode estar representada no contexto

dos podcasts, pois é na relação com as propriedades sensíveis e materiais do suporte

midiático que se estruturam as novas práticas na comunicação sonora. Sendo as-

sim, embora o referencial para a produção de sentido nos podcasts seja o rádio (e

todas as práticas e cenas predicativas nele envolvidas), é impossível que nesse tipo

de suporte se reproduza, exatamente a receita (ou percurso da expressão) do meio

predecessor. Isso porque as relações entre práticas, suportes e textos-enunciados

são determinantes para a arquitetura de novos modos de produção e signifi cação e,

no caso do podcast, a arquitetura do rádio reaparece, porém reformulada.

Em um nível mais profundo, podemos dizer ainda que também as formas

de vida revelam-se relevantes na emergência de novas práticas, já que o podcast

enquanto micromídia (conjunto de meios de baixa circulação, que visam pe-

quenos públicos, incluindo desde impressos rudimentares até ferramentas di-

gitais cuja importância é particular para muitas subculturas) tem suas práticas

Rádio e podcast: intersecção das práticas | 257

validadas dentro de um universo particular e de uma cultura muito própria.

A relação entre os podcasters, o modo como manifestam suas percepções e/ou

endossam as dos demais por meio de comunidades virtuais, assume a dimensão

de um campo, onde há a busca pela sistematização das práticas, numa tendência

à construção do habitus responsável por uma espécie de reconhecimento entre

os membros da comunidade podcaster. Não raro, encontramos nessa estrutura

algumas práticas de caráter metassemiótico, na medida em que exibem relações

com outras práticas, como veremos no exemplo do portal Podcast Café7, em que

podcasters utilizam o próprio meio para dele tratar, em uma mistura de refl exão,

análise e tentativa de sistematização das práticas de produção para podcasts.

A BUSCA PELA SISTEMATIZAÇÃO DAS PRÁTICAS NO PODCAST CAFÉ

Existem várias práticas que reforçam a idéia de comunidade entre os pod-

casters. Eles se aglutinam virtualmente através de grupos de e-mails, chats e áu-

dio-conferências, twitter, entre outros mecanismos de comunicação em rede,

mas é nos sites e portais dedicados ao hosting8 que percebemos mais explicita-

mente a tentativa de normatizar, de criar procedimentos e regulamentar condu-

tas no campo do podcast (ou seja, uma das práticas correntes entre podcasters é

justamente uma prática normativa), embora tal prática contraponha o princípio

da colaboratividade e o caráter anárquico das relações características da web 2.0.

O Podcast Café deveria ser, como dissemos, um hosting brasileiro para podcast

que, além da função de hospedagem, tomaria para si a tarefa de sistematizar as

práticas na produção de podcasts, através da participação de vários produtores

convidados. O site reunia artigos e podcasts com textos e entrevistas em que

eram discutidas as próprias práticas do meio, o que nos mostra também certa

tendência por uma prática didática. Os temas variados abordavam desde a via-

bilidade econômica de podcasts até uma lista com as coisas que irritam os ouvin-

tes e que podem ser consideradas “dicas” do que não se deve fazer na produção

de um show, confi rmando ainda mais o caráter didático do hosting.

Tomemos este último exemplo, o “Bate-papo com Tatto Garcia”, em que

entrevistado e entrevistador (no caso o escritor Christian Gurtner) são pro-

7 O site não se encontra mais publicado na internet. Para acessar o seu conteúdo, sugerimos o site de busca de podcasts <http://www.podnova.com/>, mais especifi camente o canal <http://www.podnova.com/chan-nel/35700/>.

8 Hospedagem de podcasts na internet.

258 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

dutores (podcasters) e ouvintes de podcast. Ao longo da conversa ambos lis-

tam práticas usuais de produção que consideram inapropriadas. Tais práticas

seriam tanto de ordem técnica quanto “conteudística”. Do ponto de vista da

técnica pura e simples, os dois elencam três itens, ligados especialmente à

questão da qualidade do áudio do arquivo produzido. Seriam eles: (1) a não

utilização de background (trilha sonora) durante uma fala extensa (o que ain-

da poderia ser interpretado como um problema de conteúdo do programa

gravado); (2) a presença de ruídos na gravação e/ou apenas a falta de qualida-

de técnica do áudio – principalmente nos casos de podcasts musicais – e (3) o

mau posicionamento do microfone, fazendo com que a respiração apareça na

gravação durante a fala, ocasionando “pufs” resultantes do choque do ar com

a cápsula do microfone, na pronúncia de consoantes labiais como “p” e “b”. Do

ponto de vista do conteúdo do programa produzido, seriam dois os problemas

apontados como graves: (1) um discurso exacerbado de autopromoção e (2)

a falta de conhecimento sobre o tema abordado, que é realmente uma falta

gravíssima. A relação de coisas que irritam o ouvinte, de acordo com Gurtner

e Garcia, ainda inclui a ausência de elementos sonoros sinalizando o encerra-

mento do programa, como uma vinheta, e problemas de dicção, impostação

exagerada da voz ou a tentativa de disfarçá-la, buscando fazer o ouvinte crer

que se trata de outra pessoa – que acabam por mesclar o que chamamos de

problemas técnicos e de conteúdo.

Em outro programa, intitulado “Filosofi a podcaster”, a relação produtor-

ouvinte em meio à entropia do ciberespaço é retomada quando são questio-

nadas as estratégias para se estabelecer contratos nesse contexto. Os artigos

escritos também trafegam pela mesma seara, dando “dicas” sobre escolha de

temas, alertando os podcasters sobre o modo como o enunciador é percebido

nos conteúdos publicados e suas implicações num texto que leva o nome “Seu

Podcast é você.” Há ainda uma auto-entrevista feita pelo podcaster Sérgio Viei-

ra, em que o hibridismo produtor/usuário está explícito nas perguntas que

o podcaster faz a si próprio. Nesse caso, o autor do texto posiciona-se tanto

como ouvinte quanto como produtor e responde a perguntas do tipo: “O que o

levou a produzir o primeiro podcast?” e “O que mais o atrai num podcast?” ou

“O que faz você abandonar um podcast que tenha assinado?”, e ainda “O que o

podcast mudou na sua atitude em relação às mídias tradicionais?”. Perguntas

e respostas, que evidenciam a preocupação em se mapear as práticas tanto

do ouvinte quanto do produtor (preocupação de caráter, como já dissemos,

metassemiótico e didático) nesse processo midiático tão recente, diferindo-o,

Rádio e podcast: intersecção das práticas | 259

portanto, de maneira marcante, das práticas pré-estabelecidas (tradicionais)

que envolvem as produções radiofônicas

PERSPECTIVAS DE UMA NOVA PRÁTICA

Em meios em que a fl uidez constrói-se a partir da convergência de traje-

tórias e do entrelaçamento dos pensamentos de diversos sujeitos, o signifi cado

constitui-se pelo convívio, pela solidariedade e pelos confl itos que emergem no

instante da interação e não apenas na seqüência temporal. Desse modo, a cola-

boratividade, que poderia ser vista também como a própria troca de objetos de

valor entre os sujeitos, acaba tornando-se um novo valor cultural. Sendo assim,

sistematizar práticas, delimitar procedimentos e protocolos torna-se uma tarefa

bastante difícil, uma vez que as variantes possíveis, na relação estabelecida em

colaboração, são inúmeras. Essa relação colaborativa prevê ainda uma conduta

padrão, baseada nas modalidades do /poder/, do /saber/ e do /querer/. A co-

laboratividade torna o processo labiríntico e a modalização do usuário, com a

preponderância do /querer/, abre um leque de possibilidades ainda maiores, o

que favorece a experimentação e o surgimento de novas práticas.

A partir do momento em que o podcast possibilitou aos usuários/produto-

res9 a produção e a distribuição de seus próprios programas em áudio, foi preci-

so modalizar um sujeito que desconhecia, até então, tais práticas. Essas práticas

de produção, sistematizadas ao longo da evolução da história do rádio, e das

estratégias de produção de sentido validadas nesse campo10, foram obviamente

baseadas nas características massivas e específi cas do suporte em questão, vi-

sando, certamente, atingir os sujeitos usuários desse novo “produto” midiático.

Estes produtores/usuários do podcast enquanto micromídia (não os de or-

ganizações da mídia tradicional ou profi ssionais oriundos dela) tiveram certa-

mente a referência do rádio, tido então como modelo, mas sob a perspectiva do

ouvinte. Parece claro que esse outro ponto de vista da comunicação sonora já

atribui a esse sujeito modo específi co de produzir textos, que lhe oferece opções

sintagmáticas diferenciadas, ou seja, sua prática de produção é marcada profun-

damente por uma prática de consumo, que não vislumbra todo o processo de

produção, tendo como perspectiva primeira o objeto acabado.

9 Utilizamos aqui o termo para referendar o hibridismo de papéis na contingência da comunicação no ciberes-paço.

10 Aqui a idéia de campo é aquela a que se refere Bourdieu (1974) como sendo o campo em que os sujeitos vali-dam suas práticas e desenvolvem o hábito.

260 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

O caráter individual das mídias pós-massivas também é um fator a ser con-

siderado na análise das práticas de podcasts. De acordo com Lemos (2007: 124),

as mídias pós-massivas são aquelas que funcionam a partir de redes telemáti-

cas, são personalizáveis e permitem a qualquer um produzir informação sem a

necessidade de vínculo com uma organização econômica ou midiática, já que

não estão centradas em um único território, situando-se virtualmente em todo

o planeta, trabalhando, na maioria das vezes, em fl uxos comunicacionais bi-di-

recionais (todos-todos).

Ao contrário do que ocorre nas emissoras de rádio, em que os programas

são produzidos em equipe e em que temos bem defi nidos os papéis de produ-

tor, roteirista e editor, nos podcasts caseiros todas essas funções são incorpora-

das por um único elemento humano que, com recursos técnicos e ambientais

limitados, reúne em si mesmo todos os papéis desempenhados na prática ra-

diofônica tradicional. Nesse caso devemos considerar não só as possibilidades

de uso dos recursos tecnológicos (soft wares de edição de áudio e publicação,

placas de som e acessórios como microfones e fones de ouvido), mas princi-

palmente a competência do indivíduo para lidar satisfatoriamente com cada

um deles, pois, como acabamos de dizer, esse único indivíduo acaba sendo

responsável por todas as etapas do processo de produção do podcast. Como

conseqüência disso, por exemplo, o nível de conhecimento do indivíduo sobre

propriedades acústicas ou possibilidades de produção de efeitos sonoros e mi-

xagem de trilhas (back grounds) certamente terá um refl exo signifi cativo nas

suas opções sintagmáticas. Temos, portanto, uma prática individual, sincreti-

zada, em que um único sujeito detém o /poder/, o /saber/ e o /querer-fazer/).

Além disso, ela pode ser recriada e reinventada a todo o momento, dada a

maleabilidade de seu suporte digital/virtual.

A INTERSECÇÃO DAS PRÁTICAS

Em razão das muitas semelhanças existentes entre as formas de emissão

para rádio e podcast, o que se observa é que os usuários/produtores tendem,

num primeiro momento, a reproduzir as estratégias normalmente empregadas

nas produções do primeiro. Até mesmo a maior parte das “dicas”, relacionadas

pelos podcasters (como observamos no exemplo do Podcast Café) para aqueles

que desejam produzir seus próprios programas, no fundo são heranças diretas

das práticas radiofônicas, procedimentos edifi cados ao longo de muitas décadas

Rádio e podcast: intersecção das práticas | 261

de experimentação e exploração das propriedades materiais do meio, como des-

creve McLuhan (1964: 336-337):

O rádio afeta as pessoas, digamos, como que pessoalmente, oferecendo

um mundo de comunicação não expressa entre o escritor-locutor e o

ouvinte. Este é o aspecto mais imediato do rádio. Uma experiência par-

ticular. As profundidades subliminares do rádio estão carregadas daque-

les ecos ressoantes das trombetas tribais e dos tambores antigos. Isto é

inerente à própria natureza deste meio, com seu poder de transformar

a psique e a sociedade numa única câmara de eco. A dimensão ressona-

dora do rádio tem passado despercebida aos roteiristas e redatores, com

poucas exceções. A famosa emissão de Orson Welles sobre a invasão

marciana não passou de uma pequena mostra do escopo todo-inclusivo

e todo-envolvente da imagem auditiva do rádio.

Porém, entre as práticas radiofônicas reproduzidas e reproduzíveis nos

podcasts, é possível encontrar também aquelas que são próprias deste tipo de

emissão sonora, ou até mesmo aquelas adaptadas do teatro, do cinema e prin-

cipalmente da literatura. São as propriedades sensíveis e materiais do meio que

permitem, na verdade, essas possibilidades diferenciadas e versáteis que podem

ou não ser exploradas pelos produtores.

Entre as propriedades materiais do podcast, destacamos, em primeiro lugar,

a ausência da necessidade de vínculo com algum pólo emissor (indústria da

informação ou entretenimento) – como já comentamos anteriormente, em se-

gundo lugar o alcance desterritorializado, porém interdito àqueles que não têm

acesso à internet ou não dominam tal instrumental, em terciero lugar a segmen-

tação por nichos (um grupo restrito de interesses específi cos em comum), e, por

fi m, a transmissão assíncrona (on demand), em que é o usuário quem determina

quando e por quanto tempo vai estar em contato com o conteúdo (seja por meio

do seu MP3 player, iPod ou celular, depois de ter baixado e transferido o arqui-

vo, ou ainda no próprio computador). Temos, portanto, um suporte material

que promove total liberdade ao objeto, porém, em todos os casos a interação só

acontece pela ação do enunciatário, como explica Médola (2006: 186):

O papel do enunciador é anterior, pressuposto logicamente como em

qualquer linguagem, mas nesse caso ele somente é manifestado concre-

tamente, ou seja, auditiva e visualmente, pela ação de um enunciatário,

sujeito operador nesse processo comunicativo dotado de competência

semântica e competência modal para agir. Desta forma, o enunciado,

alocado no ciberespaço, é uma virtualidade que somente se atualiza pela

intervenção de um outro.

262 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

Outra característica desse meio (e não apenas dos sujeitos que nele circu-

lam) é o sincretismo. O podcast é um tipo de emissão sonora alocada na internet

e, por esse motivo, dispõe também dos recursos visuais disponíveis no site, o

que não acontece com o rádio tradicional. Apesar de o sistema RSS permitir que

o arquivo de áudio seja disponibilizado automaticamente no computador do

usuário, normalmente sua apresentação encontra-se num site, onde estão dis-

poníveis textos de apresentação, informações adicionais sobre o áudio, imagens

e até mesmo animações.

Devemos evidenciar também seu particular modo de distribuição através

do RSS, um sistema cujas propriedades também podem ser analisadas enquanto

desencadeadoras de práticas, pois nos podcasts, ao contrário da instantaneidade

do rádio, a oferta de conteúdo é permanente. Nele, é o ouvinte quem decide a

hora e o lugar da audição. É na relação com essa propriedade que enunciadores

e enunciatários (não esquecendo que ambos podem, ou não, ser um único indi-

víduo) desenvolvem hábitos de publicação e consumo.

Todas as propriedades sensíveis e materiais elencadas são responsáveis por

desencadear as práticas específi cas do meio, cuja refl exão faz-se necessária para

que esse enunciador consiga estabelecer contratos com o enunciatário, satisfa-

zendo assim a sua necessidade de fazer conhecer a si e as suas produções.

A tabela a seguir apresenta algumas características do podcast e do rádio,

em relação tanto à produção quanto à consumação das suas diversas produções,

capazes de gerar práticas específi cas, desenvolvidas certamente a partir das pro-

priedades do próprio suporte podcast. Vejamos:

Rádio e podcast: intersecção das práticas | 263

Características do podcast Características do rádioEn

unci

ador

1. Direcionamento de conteúdos específi cos a pequenos nichos.

2. Possibilidade de versões diferentes do texto em várias línguas.

3. Liberdade para escolha de formato, maior abertura para inovação.

4. Descompromisso com a freqüência de publicação.

5. Atemporalidade do conteúdo.

6. Abertura para comentários e participações dos ouvintes (interações on-line).

7. Interação da produção sonora com a lingua-gem visual do site onde se hospeda (confl uên-cias de práticas).

8. Descompromisso com a qualidade técnica.

9. Descompromisso estilístico.

10. Mobilidade para produção (prática dinâmica).

1. Conteúdo abrangente.

2. Conteúdo único para diversas pessoas.

3. Formato induzido, freqüentemente, por razões mercadológicas ou axiológicas.

4. Rigidez na freqüência e horários de veiculação.

5. Instantâneidade/imediatismo do conteúdo.

6. Interações reativas.

7. Linguagem sonora exclusiva e indepen-dente.

8. Rigidez técnica.

9. Rigidez estilística.

10. Produção centralizada (prática estática).

Enun

ciat

ário

1. Não periodicidade de verifi cação do agregador (acesso ao conteúdo determinado pelo enun-ciatário).

2. Audição possível em mídia móvel ou em desktop.

3. Possibilidade de transferência entre mídias.

4. Volume ilimitado de podcasts assinados.

5. Limite de podcasts ouvidos depende da disponibilidade do usuário.

6. Possibilidade de comentários ou participações nos podcasts ouvidos depende do ouvinte/enun-ciatário.

1. Acesso ao conteúdo determinado pelo ouvinte/enunciatário.

2. Audição possível em mídia móvel, desktop ou receptores fi xos.

3. Uma única mídia possível.

4. Volume limitado de transmissões dispo-níveis.

5. Limite de programas ouvidos depende do usuário.

6. Possibilidade de comentários ou participa-ções depende do produtor/enunciador.

No rádio, assim como no podcast, as propriedades do suporte também

exercem sua infl uência na constituição das práticas e, para uma melhor siste-

matização, dividimos as características das duas práticas, a do podcasting e a

radiofônica, a partir de duas perspectivas, a do enunciador e a do enunciatário,

embora esses papéis sejam cambiantes nesse tipo de mídia. No entanto, mesmo

sendo dinâmica a relação entre suporte e práticas, percebemos que há uma con-

solidação das práticas radiofônicas, numa espécie de institucionalização, prin-

cipalmente no que diz respeito à prática do ouvinte. Observando atentamente

264 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

a tabela, podemos chegar às seguintes conclusões: a prática radiofônica é, na

essência de sua produção, coletiva e apurada tecnicamente, delimitando muito

claramente, na maior parte das vezes, seu público ouvinte, seja graças à rigidez

de horários e formatos (durante a madrugada será muito provável que o público

ouvinte seja formado por um conjunto de notívagos, boêmios, trabalhadores

noturnos, e não por donas-de-casa, por exemplo), seja pela própria recorrência

de motivos e valores que vão ao encontro do gosto do público. Já a prática pod-

casting pode ser tida como uma prática de liberdade, basicamente porque para

funcionar basta, de uma maneira geral, a presença de um único produtor e, por

conseqüência, de seus próprios valores e motivações. Do ponto de vista da re-

cepção, a prática do ouvinte radiofônico é regida, de certa forma, pela liberdade

de escolha, no entanto, a prática da recepção altera-se quando se muda para o

suporte digital, já que o volume de escolha é maior, as interfaces são outras, e os

critérios de escolha também são outros. Além disso, estamos tratando da dis-

tribuição assíncrona que, como assinala Negroponte (1995:162), altera o modo

como o fruidor relaciona-se com o conteúdo, seja no que diz respeito ao tempo

de fruição, seja sobre o controle do conteúdo, podendo, por exemplo, ouvir o

mesmo programa repetidas vezes, ou mesmo editá-lo e modifi cá-lo.

Atribuímos o fenômeno de institucionalização das práticas radiofônicas a

dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, podemos considerar seu tempo

de existência, visto que a prática radiofônica tem quase um século de atividade

e, nesse longo período, toda forma de experimentação foi testada. Desse modo,

houve tempo sufi ciente para que certas práticas fossem aprovadas, sedimen-

tando-se assim no meio radiofônico, e encontrando respaldo na audiência e no

habitus do enunciatário. Em segundo lugar, por ter estado sua produção sempre

concentrada nas mãos de poucos (os poucos que ainda detem poderes políticos,

fi nanceiros, infl uência na sociedade), as práticas radiofônicas foram tornando-se

modelares, tendo inclusive infl uenciado os primeiros passos da televisão. Desse

modo, as práticas desenvolvidas foram validadas dentro do próprio campo dos

produtores, sistematizadas e transmitidas enquanto procedimento e protocolo,

até transformarem-se em rituais tão introjetados na cultura de produtores e ou-

vintes que, mesmo diante de novas possibilidades, observa-se uma tendência à

conservação, como vimos no exemplo do Podcast Café.

Embora haja apropriação de muitas das práticas radiofônicas nos podcasts,

basicamente devido ao fato de terem em comum a emissão sonora, é importante

observar que muitas delas não se caracterizam apenas em função das diferenças

Rádio e podcast: intersecção das práticas | 265

entre as propriedades materiais de ambos os meios, no entanto é indiscutível

que há uma tendência de preservação dos modelos difundidos pelo rádio. Te-

mos que admitir que o podcast ainda não teve tempo nem condições favoráveis

para a sistematização de suas práticas tal como observamos no rádio. Ao con-

trário, suas propriedades favorecem outro tipo de desenvolvimento, o caminho

da interação e da colaboratividade, dada a maleabilidade a versatilidade de seu

suporte. Provas disto são o surgimento e a consolidação de programas colabo-

rativos nas emissoras de rádio tradicionais (e em menor escala, na televisão,

principalmente em programas que se valem de uma linguagem jovem) que já

têm como base a participação do ouvinte como produtor ativo e a transmissão

de podcasts produzidos pelos ouvintes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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São Paulo: Perspectiva. 1974.

FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e signifi cação. Trad. Ivã

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LEMOS, André. Cidade e mobilidade. Telefones celulares, funções pós-massi-

vas e territórios informacionais. Matrizes – Revista do Programa de Ciências da

Comunicação da Universidade de São Paulo. São Paulo, Ano 1, N. 1, outubro

de 2007.

LEMOS, André. Podcast. Emissão sonora, futuro do rádio e cibercultura.

404nOtF0und – Revista do Centro de Estudos e Pesquisas em Cibercultura da

Faculdade de Comunicação da UFBA. Salvador, Ano 5, N. 46, Vol. 1, junho de

2005.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São

Paulo: Cultrix, 1964.

MÉDOLA, Ana Sílvia Lopes Davi. Globo Média Center: Televisão e internet

em processo de convergência midiática. In: LEMOS, André; BERGER, Chris-

ta; BARBOSA, Marialva (orgs.). Narrativas Midiáticas Contemporâneas. Porto

Alegre: Sulina, 2006.

266 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras,

1995.

PRIMO, Alex Fernando Teixeira. Para além da emissão sonora: as interações no

podcasting. Intexto. n. 13. Porto Alegre, 2005.

267

OS ORGANIZADORES

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz é Pós-doutora em Comunicação (Rádio

e Televisão) como bolsista da CAPES em Limoges e Paris. É professora do curso

de Comunicação Social, vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universi-

dade Estadual Paulista (Unesp) e líder do GESCom-Unesp. Tem numerosa pro-

dução bibliográfi ca no campo da semiótica midiática, dedicando-se atualmente

a sua corrente tensiva.

[email protected]

Jean Cristtus Portela é Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa pela

Unesp de Araraquara, com período anual de estágio de doutorando na Uni-

versidade de Limoges (França), Mestre em Letras pela Universidade Estadual

de Londrina e Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Unesp de

Bauru. Traduziu Semiótica do Discurso (Contexto, 2007), de Jacques Fontanil-

le, e é autor de vários artigos e traduções nas áreas de Lingüística, Semiótica e

Comunicação.

[email protected]

269

OS AUTORES

Adriane Ribeiro Andaló Tenuta é Mestre em Comunicação pela Unesp/

Bauru e membro do GESCom. Autora de Alfabetização, Letramento, Produção

de Texto – Em busca da palavra-mundo (FTD, 2000). Foi professora na rede

pública, tendo sido Delegada de Ensino de Bauru.

[email protected]

Dimas Alexandre Soldi é Mestre em Comunicação pela Unesp/Bauru, Ba-

charel em Comunicação Social (Jornalismo) pela mesma instituição e membro

do GESCom, tendo sido bolsista FAPESP desde a Iniciação Científi ca.

[email protected]

Djaine Damiati Rezende é mestranda do Programa de Pós-graduação em

Comunicação da Unesp/Bauru. Graduada em Tecnologia em Informática pela

FATEC/Jaú, é radialista profi ssional com 13 anos de atuação em rádio e TV

como produtora, apresentadora e diretora. Vice-diretora de comunicação da

ABPod – Associação Brasileira de Podcasters.

[email protected]

Jacques Fontanille é professor titular de Semiótica na Universidade de Limo-

ges (França), da qual é reitor. É também titular da cátedra de Semiótica do Instituto

Universitário da França, fundador do Centro de Pesquisas Semióticas (CeReS) e co-

diretor do Seminário Intersemiótico de Paris. Até o momento, publicou em tradu-

ção brasileira: Semiótica das Paixões (Ática, 1993), em co-autoria com A. J. Greimas;

Tensão e Signifi cação (Discurso/Humanitas, 2001), em co-autoria com C. Zilberberg;

Signifi cação e Visualidade (Sulina, 2005) e Semiótica do discurso (Contexto, 2007).

[email protected]

270

Jaqueline Esther Schiavoni é Mestre em Comunicação pela Unesp/Bauru,

Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela mesma instituição e mem-

bro do GESCom, tendo sido bolsista FAPESP desde a Iniciação Científi ca.

[email protected]

José Luiz Fiorin é Livre-docente em Teoria e Análise do Texto e Doutor em

Lingüística pela Universidade de São Paulo. Professor associado do Departa-

mento de Lingüística da FFLCH/USP, foi membro do Conselho Deliberativo do

CNPq e representante da área de Letras e Lingüística na CAPES. Autor, dentre

muitos outros, de As astúcias da enunciação (Ática, 1997) e Introdução ao pen-

samento de Bakhtin (Ática, 2006).

jolufi @uol.com.br

Juliano José de Araújo é Mestre em Comunicação pela Unesp/Bauru, profes-

sor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Rondônia (Unir) e mem-

bro do GESCom. Atualmente, também é assessor de comunicação da Unir.

[email protected]

Loredana Limoli é Pós-doutora em Letras pela USP e Doutora em Filolo-

gia e Lingüística pela UNESP/Assis. Professora associada do Departamento de

Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina, co-orga-

nizou, entre outros, os livros Entrelinhas, entretelas: os desafi os da leitura (Edi-

tora da UEL, 2001) e Nas fronteiras da linguagem: leitura e produção de sentido

(Editorial Mídia, 2006).

[email protected]

Mariza Bianconcini Teixeira Mendes é Doutora em Letras pela Unesp/

Araraquara e Mestre em Letras pela Unesp/Assis. Autora de Em busca dos contos

perdidos: o signifi cado das funções femininas nos contos de Perrault (Editora da

Unesp, 2000) e membro pesquisadora do grupo GESCom e do grupo CASA-

Unesp/Araraquara.

[email protected]

271

Matheus Nogueira Schwartzmann é Mestre em Estudos Literários pela

Unesp/Araraquara e doutorando em Lingüística e Língua Portuguesa pela

mesma universidade, com estágio de doutorado de um ano na Universidade

de Limoges (França). É membro do grupo GESCom e do grupo CASA-Unesp/

Araraquara.

[email protected]

Sarah Caramaschi Degelo é Bacharel em Comunicação Social, com habili-

tação em Rádio e Televisão, produtora de TV e membro do GESCom.

[email protected]

Tânia Ferrarin Olivatti é mestranda do Programa de Pós-graduação em Co-

municação da Unesp/Bauru, Especialista em Comunicação, Publicidade e Negó-

cios pelo Centro Universitário de Maringá (Cesumar, PR), Bacharel em Jornalis-

mo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e membro do GESCom.

[email protected]

Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESComMARIA LÚCIA VISSOTTO PAIVA DINIZ

Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi ciência e otimizaçãoJACQUES FONTANILLE

Semiótica e comunicaçãoJOSÉ LUIZ FIORIN

Semiótica midiática e níveis de pertinênciaJEAN CRISTTUS PORTELA

Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editoresMATHEUS NOGUEIRA SCHWARTZMANN E MARIZA BIANCONCINI TEIXEIRA MENDES

Práticas de direcionamento do fl uxo de atenção no telejornalismoJULIANO JOSÉ DE ARAÚJO

Break comercial: estratégia e efi ciênciaJAQUELINE ESTHER SCHIAVONI

Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela BelíssimaLOREDANA LIMOLI

O Nu de Boubat e a GlobelezaADRIANE RIBEIRO ANDALÓ TENUTA

Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother BrasilMARIA LÚCIA VISSOTTO PAIVA DINIZ E SARAH CARAMASCHI DEGELO

Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamentoDIMAS ALEXANDRE SOLDI

Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtorTÂNIA FERRARIN OLIVATTI

Rádio e podcast: intersecção das práticasDJAINE DAMIATI REZENDE E MATHEUS NOGUEIRA SCHWARTZMANN

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