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Sennett, Autoridade (resenha)

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Sennett, Autoridade (resenha)

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  • RESENHAS/REVIEWS

    Raul FIKER1

    SENNETT, R. Authority. Londres: Faber and Faber, 1993. 197p.

    O que pode nos revelar uma anlise de um fenmeno como o da autoridade a partir de seu lado "interno", psicolgico? Ou, mais precisamente, em seus meandros subjetivos, nos termos da dialtica hegeliana do senhor e do escravo? Em Authority (publicado nos EUA em 1980), Richard Sennett, autor do clssico O declnio do homem pblico - obra, alis, em que na grade arqueolgica proposta a "personalidade" nada mais do que o mero resultado da desintegrao da sociedade clssica e a crtica da psicologizao levada ao ponto de uma desvalorizao da psicologia como uma cincia sem objeto -, prope justamente este tipo de abordagem e nos revela muita coisa.

    O pequeno livro (197 pginas), cuja origem uma Sigmund Freud Memorial Lecture na Universidade de Londres em 1977 (ano de publicao do Declnio), proposto como o primeiro de uma srie de quatro ensaios inter-relacionados sobre os vnculos emocionais da sociedade moderna na perspectiva das complexas relaes entre psicologia e poltica. Os outros trs abordariam a solido, a fraternidade e o ritual.

    A delimitao preliminar do conceito passa pela imagem do maestro de orques-tra, e pela enumerao de certas caractersticas bsicas da autoridade, bem como pelas suas relaes de intercambialidade com o termo "poder" e vai se tornando mais precisa quando Sennett parte da tenso entre a necessidade e o medo da autoridade para explorar o que ele v como o dilema da autoridade de nossa poca: o fato de

    1 Departamento de Antropologia, Poltica e Filosofia - Faculdade de Cincias e Letras - UNESP - 14800-901 -Araraquara - SP.

  • sentirmo-nos atrados por figuras fortes que no acreditamos serem legtimas. Eis uma configurao contraditria em termos de Weber, mas compreensvel para Freud, na medida em que caracteriza perfeitamente a experincia adolescente da autoridade (embora a definio freudiana de "legitimidade" no possa escapar de certa estreiteza).

    Na primeira parte do livro, so explorados os vnculos da autoridade ilegtima; na segunda, v-se como vnculos mais legtimos podem vir a ocorrer. Sennett comea mostrando como o prprio ato de rejeio da autoridade pode ser construdo de forma pessoa sentir-se ligada a quem ela est rejeitando. O segundo e o terceiro captulos descrevem duas imagens de autoridade que so rejeitadas desta maneira: uma imagem de autoridade que professa um falso amor e outra que no professa amor ou considerao alguma pelos outros. Ambas, malignas e baseadas em formas ilegtimas de controle social, constituem uma armadilha aos que as negam. Na segunda metade do livro, o quarto captulo examina as maneiras pelas quais as pessoas alteram intimamente as formas malignas de autoridade que as fizeram sofrer. O quinto captulo explora os usos que esta experincia ntima pode ter em relao autoridade no domnio pblico. O sexto conclui remetendo novamente relao entre autoridade e iluso de onde parte o livro.

    Neste percurso, Sennett vai da Carta ao pai, de Kafka, ao Grande inquisidor, de Dostoivski; do "orgulho patolgico" de Saint-Just "transparncia" ilusria do tirano moderno; recorre a exemplos e ilustraes to inesperados quanto eficazes: casos clnicos; estudos de tcnica de gerenciamento; a experincia utpico-paternalista do empresrio George Pullman, o "Lear moderno", em que uma peculiar combinao de idealismo saint-simoniano e uma capacidade quase mecnica de coordenar uma organizao de grande escala num subrbio de Chicago no fim do sculo XDC culminou numa das greves mais selvagens at ento ocorridas; categorias weberianas; o estudo de Louis Dumont sobre o sistema de castas; personagens de Turgenev; a mulher de Andr Gide. Para chegar conscincia infeliz de Hegel, eixo da abordagem: a relao com a autoridade deve antes de tudo ser resolvida subjetivamente.

    Sennett define dois plos das formas de autoridade pessoal dominantes na sociedade industrial moderna. Uma a autoridade sem amor, ou autoridade da autonomia pessoal. Ela opera pelos princpios de indiferena aos outros e expertise auto-suficiente que absorve rebelies de baixo exercendo ainda poderosos controles da vergonha (que substituiu a violncia do Antigo Regime) sobre aqueles que so rebeldes. A outra, de incio caracterstica de capitalistas individuais e mais tarde absorvida tambm pelas burocracias socialistas, uma autoridade de falso amor, a autoridade do paternalismo. Ela opera como uma ostentao de benevolncia que existe apenas na medida em que est no interesse do dirigente e requer aquiescncia passiva como o preo de ser cuidado, protegido. Entre estes plos, acrescenta Sennett, "revolve a dependncia desobediente, as fantasias de desapario e substituio idealizada, como entre os aborgenes da Nova Guin que regularmente, ritualmente, ameaam seu chefe; tendo insultado-o, negado-o, descarregado a raiva sobre ele, eles permanecem seus sditos" (p.131).

  • Numa das passagens mais interessantes do livro, ao examinar o papel da vtima na teia da autoridade, Sennett nota que, embora o enobrecimento do sofrimento tenha sido o fundamento moral do romantismo, o status moral da vtima nunca foi maior ou mais perigoso do que agora. A capacidade de sofrer vista como um sinal de coragem humana; as massas so hericas; seu sofrimento a melhor medida da injustia social. A este canibalismo psicolgico, Sennett ope a fora que transcende esta postura do "pobre de mim", de envergar os ferimentos e sofrimentos como medalha de honra, fora presente em documentos como a carta de Kafka a seu pai.

    Igualmente mistificadora pode ser certa "transparncia". Neste sentido, Sennett procura mostrar que a busca de imagens claras e distintas de autoridade, embora razovel, perigosa. J Burckhardt referiu-se aos tiranos da era moderna como "simplificadores brutais". Uma pessoa pode ser clara e forte ao mesmo tempo, o que impossvel para uma grande burocracia. Ao apelar s virtudes da simplicidade, os lderes autoritrios tentam quebrar ou descartar a mquina comum de governo para que possam governar somente por meio da fora da personalidade. O poder s aliviado de sua complexidade por mentiras sobre o que ele . O que no desqualifica as exigncias de que as figuras de autoridade pblica sejam legveis e visveis. E se elas podem ser lidas a partir dos processos subjetivos descritos atravs do livro, esta leitura pode ocorrer tambm na vida pblica. Isto ocorre nas ocasies em que a estrutura elementar do poder, a cadeia de comando, rompida. Toda a parte final do livro trata das vrias maneiras em que isto pode acontecer.

    Tais rupturas, longe de criar o caos ou destruir a sensao de que algum com fora est no comando, ofereceriam aos governados uma oportunidade de negociar com seus dirigentes e ver com mais clareza o que estes podem e no podem - devem e no devem - fazer. O resultado destas rupturas seria remover a qualidade de onipotncia das figuras de autoridade na cadeia de comando. Para Sennett, vincular autoridade e desordem simplesmente levar a srio o ideal de democracia.